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forumdoc.bh.

2019
23º festival do filme
documentário e etnográfico
fórum de antropologia
e cinema

22 nov > 01 dez


Esse projeto foi realizado com recursos da
Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.
Este festival é dedicado a Agnés Varda,
D.A. Pennebaker, Jonas Mekas, Luis Ospina,
Med Hondo e Paulo Paulino Guajajara.

Toda solidariedade aos guerreiros


Guajajara da TI Araribóia!
sumário • summary

Kõmãyxop ‘ãta
Canto da Kõmãyxop vermelha

sessão de abertura • opening films

mostra mortos e a câmera


the dead and the camera showcase
Paulo Maia

mostra contemporânea brasileira


brazilian contemporary showcase
Daniel Ribeiro Duarte, Carla Italiano, Ewerton Belico, Layla Braz

sessões especiais • special screenings

seminário • seminar

ensaios e entrevistas • essays and interviews


Fragmentos de um cinema-jiboia tikmũ’ũn
Sueli Maxakali, Rosângela de Tugny, Isael Maxakali e André Brasil  93

Abraços da Morte
Michael Boyce Gillespie  115

A condição da vida negra é o luto


Claudia Rankine  128

Numa terra estranha: sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação


de Shawara Maxakali e Charles Bicalho
Roberto Romero  134
O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973:
Invenção da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981)
Mateus Araújo  137

Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte


Fabio Rodrigues Filho  140

Entrevista com Wang Bing


Emmanuel Burdeau  145

Cura Bantu
Castiel Vitorino Brasileiro  150

a ponte caiu, se vira e atravessa nadando


Davi de Jesus do Nascimento  154
ensaio sobre fragilidades
sobre Bup, de Dandara de Morais, e Motriz, de Taís Amordivino
Alessandra Brito  156
Entre o passado implacável e as interações vivas:
a casa-cinema de Letícia, Heliana e Clementina
sobre Casa, de Letícia Simões
Roberta Veiga  159

A batalha está no campo do corpo


conversa com Barbara Wagner e Benjamim De Burca sobre Swinguerra
Nina Gazire  164

A retomada de posse das corpas dissidentes


sobre Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman
Giovanna Heliodoro  167
O canto da boca da mata: notas sobre
Ma’e Mimu Haw – A história dos cantos
sobre filme de Jamilson, Pollyana, Jacilda e Lemilda Guajajara
Cristiane Lima  169
Olhares de Matis jovens nos filmes Dia de caçada
e Meninos soprando cana fina
Clarisse Alvarenga  172
De como utilizar a câmera como se fosse um petyngua
sobre O último sonho, de Alberto Alvares
Daniel Ribeiro Duarte  175
Sete anos em maio:
entre a solidão do sobrevivente e a expansão do trauma
sobre filme de Affonso Uchôa
Cláudia Mesquita  178
Saber Cinema: A práxis cinematográfica
contemporânea e as imagens porvir
sobre Um Filme de Verão, de Jô Serfaty, e Entre-Vistas, do coletivo Olhares (Im)possíveis
Ana Tereza Melo Brandão  183

Disputar imagens e espaços. Encerrar cordialidades


sobre Quantos eram pra tá?, de Vinícius Silva
Breno Henrique  186

As imagens também se elegem


sobre Eleições, de Alice Riff
Carol Almeida  189

Anotação de instantes
sobre Sem título # 5: a Rotina terá seu Enquanto, de Carlos Adriano
João Paulo Rabelo  192

Afrofabulando imagens: Tudo que é apertado rasga


sobre filme de Fabio Rodrigues Filho
Kênia Freitas  195

Ainda estamos aqui


sobre Enquanto estamos aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti
Eduardo de Jesus  198

O triunfo da Ideia
sobre A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro
Luiz Soares Júnior  201

Guardiões da Floresta: CÂMERAS EM AÇÃO!


sobre filme de Jocy Guajajara e Milson Guajajara
Ruben Caixeta de Queiroz  204

Virou Brasil
sobre filme de Pakea, Hajkaramykya, Arakurania, Petua, Arawtyta’ia, Sabiá e Paranya
Renata Otto Diniz  210

CHÃOS
sobre filme de Camila Freitas
Antônio Bispo dos Santos  216
Tempo de cultivo
sobre Chão, de Camila Freitas
Vinícius Andrade  220

Rememorações em Apiwtxa: a emancipação Ashaninka


sobre Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko
César Guimarães  223

Na pele tesa das coisas


sobre Sedução da Carne, de Julio Bressane
Victor Guimarães  228

Tudo que aqui tem espaço mesmo sem língua


notas à margem de A Febre, de Maya Da-Rin
Ewerton Belico  231

Artistas da fome
sobre Fakir, de Helena Ignez
Jair Tadeu da Fonseca  236

arte forumdoc.bh.2019
Natureza Morta, de Denilson Baniwa
Karen Shiratori   241

índices • index

créditos • credits
Kõmãyxop ‘ãta
Canto da Kõmãyxop vermelha1

Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
ĩy mõ koxi
   venham ficar em minha casa
Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
ĩy mõ koxi
   venham ficar em minha casa
nãn kup xip ma
   lá onde se levanta o pé de urucum

Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
nãn kuk xup ma
   lá onde está a tinta do urucum
ĩy mõ koxi
   venham ficar em minha casa

Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
nãn xat xip ma
   lá onde se levanta o tiê-sangue
ĩy mõ koxi
   venham ficar em minha casa

Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
na ix yũm ma
   lá onde está a panela de barro
ĩy mõ koxi
   venham ficar em minha casa

Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
11

ĩy mõ koxi ĩy mo koxi


   venham ficar em minha casa    venham ficar em minha casa
ĩy kuku xup ma
   lá onde corre o rio Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela
Kõnãy me mõy ãm niy xup ma
   Kõnãy, vá nos passos dela    lá onde está a noite
ĩy mõ koxi ĩy mo koxi
   venham ficar em minha casa    venham ficar em minha casa
Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela Kõnãy me mõy
ĩy mõ koxi ãm niy xup ma
   venham ficar em minha casa ĩy mo koxi

ya a ai haíi ya Kõnãy me mõy


ãm niy xup ma
Kõnãy me mõy ĩy mo koxi
   Kõnãy, vá nos passos dela
ã mot mi ma Ya a ai hai hai
   lá no fundo onde está a areia Yak ha mi ax ho ho
ĩy mo koxi
   venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy
ĩy mo koxi
Kõnãy me mõy
   Kõnãy, vá nos passos dela Ya a ai hai hai
mim tap xip ma Yak ha mi ax ho ho
   lá onde está de pé o pau seco

1. Trechos escolhidos do canto Kõmãyxop ‘ãta, completo e originalmente publicado em: Kõmãyxop, cantos xamânicos
maxakali / tikmũ’ũn. Toninho Maxakali & Eduardo Pires Rosse [org.], Museu do índio, Funai, Rio de Janeiro, 2011.
sessão de abertura
opening film
15

Yãmĩyhex, as mulheres-espírito • Yãmĩyhex, the women-spirit


Brasil, 2019, cor, 77’ • direção directors Sueli Maxakali, Isael Maxakali • assistentes de direção assistant directors
Carolina Canguçu, Roberto Romero • fotografia cinematography Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Alexandre Maxakali,
Cassiano Maxakali, Yxa Py, Roberto Romero, Carolina Canguçu • montagem editing Luísa Lanna em colaboração com/
in collaboration with Carolina Canguçu, Roberto Romero • finalização de som sound mix Pedro Portella • produção
production Associação Filmes de Quintal • contato contact filmesdequintal@gmail.com

Após passarem alguns meses na Aldeia Verde, as yãmĩyhex (mulheres-espírito) se preparam para partir. Os cine-
astas Sueli e Isael Maxakali registram os preparativos e a grande festa para sua despedida. Durante os dias de
festa, uma multidão de espíritos atravessa a aldeia. As yãmĩyhex vão embora, mas sempre voltam com saudades
dos seus pais e das suas mães.
After spending a few months in the Vila Verde Village, the yãmĩyhex (women-spirit) prepare to leave. The
filmmakers Sueli and Isael Maxakali register the preparations and the great feast for their farewell. During the
feast days, a legion of spirits crosses the village. The yãmĩyhex go away, but they always come back missing
their fathers and mothers.

Cine Humberto Mauro, 22 nov, 19h30 *Sessão comentada pela diretora e pelo diretor
mostra
mortos e a câmera
showcase the dead and the camera
19

Mortos e a câmera
forumdoc.bh.2019

Paulo Maia1

Ao viajar, diferentemente daquele que se diz explorador e do turista, o


etnógrafo exibe sua posição no mundo, ultrapassa seus limites. Ele não
circula entre o território dos selvagens e dos civilizados: em qualquer
sentido que vá, ele retorna entre os mortos.
Claude Lévi-Strauss

Em memória de Dona Cida, minha mãe.

Piaculum
“As formas elementares da vida religiosa – O sistema totêmico na Austrália”, de Émile
Durkheim, publicado originalmente em 1912, é provavelmente um dos livros mais
impactantes que uma estudante de Ciências Sociais encontra nos primeiros semestres
de seu percurso formativo na universidade. Comigo não foi diferente, e me lembro bem
do entusiasmo ao descobrir no “Livro III”, última parte dessa obra monumental, o enig-
mático termo piaculum – donde a expressão, igualmente enigmática, “ritos piaculares”.
Os quatro primeiros capítulos do “Livro III” das Formas Elementares estabelecem
uma distinção complementar importante na economia do livro como um todo, a saber, a
diferença entre cultos negativos e positivos. Os cultos negativos se caracterizam, segundo
Durkheim, pela produção de “seres separados” e de um “estado de separação”, ou ainda,
de um “sistema de abstenções”, entre outras, a abstenção no sentido trágico da inibição
de qualquer atividade, do viver (DURKHEIM, 1996, p.317-347).
Por outro lado, os cultos positivos são marcados por um “estado de espírito” no
qual prevalece a confiança, a alegria e até mesmo o entusiasmo (1996, p.427). São
festas alegres, define Durkheim, “mas há também festas tristes, que têm por objeto
ou enfrentar uma calamidade, ou, simplesmente, relembrá-la e deplorá-la. Esses ritos

1. Antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Coordenador do curso de Formação


Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e do projeto de extensão forumdoc.ufmg. Co-fundador e curador
do forumdoc.bh desde 1997, se destacando as mostras/seminários “O animal e a câmera” (2011), “Queer e a
câmera” (2016), dentre outros.
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têm uma fisionomia muito particular que procuraremos caracterizar e explicar (…).
Propomos chamar piaculares as cerimônias desse gênero. O termo piaculum tem, com
efeito, não só a vantagem de sugerir a ideia de expiação, mas também de conter uma
significação bem mais ampla. Toda infelicidade, tudo que é de mau augúrio, tudo o que
inspira sentimento de angústia ou de temor necessita um piaculum e, em consequência,
é chamado de piacular. Portanto, a palavra parece própria para designar ritos que se
celebram na inquietude ou na tristeza”. “O luto”, conclui Durkheim, “nos oferece um
primeiro e importante exemplo de ritos piaculares” (1996, p.426).
Mais tarde, a leitura da etnografia de Manuela Carneiro da Cunha, “Os mortos e os
outros – Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Khraó”,
publicada em 1978, foi igualmente importante na elucidação dos tais ritos piaculares
introduzidos por Durkheim. Essa etnografia é reconhecida por ter complexificado sobre-
maneira a análise e a descrição antropológicas da relação social entre vivos e mortos,
sobretudo no que diz respeito aos processos que realçam a ruptura ou oposição entre
os polos dessa relação, sendo o sistema funerário um aspecto central nessa economia
(1978, p.142).
A análise de Manuela teve um caráter seminal para a etnografia/etnologia indígena
americanista, na medida em que evidenciou as práticas de conhecimento relativas aos
mortos e esclareceu aspectos da noção de pessoa entre os índios Krahó. Não está no
seu escopo, entretanto, mostrar a relação dos Khraó com o “mundo dos brancos”, a partir
da qual as representações relativas aos mortos tendem a se atualizar de maneira muito
peculiar, como demonstra de forma exemplar o filme Chuva é cantoria na aldeia dos
mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora (2018), exibido no forumdoc de 2018.
Durkheim, ao tipificar os cultos negativos por oposição aos cultos positivos, revelou
toda uma engrenagem repressora modulada das mais diferentes maneiras por diferentes
culturas e sociedades. Ainda que o tópico do racismo seja estranho à agenda sociológica
de Durkheim, suas análises sobre os ritos piaculares, em particular, assim como o trabalho
de Manuela Carneiro da Cunha, foram fundamentais para o que poderíamos chamar de
“políticas de consideração”, a fim de utilizarmos uma expressão cunhada recentemente
pelos amazonistas José Antonio Kelly e Marcos Almeida (2019).
Observamos que o racismo institui uma norma de conduta ou culto negativo, no
sentido durkheimiano, imposto pela branquitude às pessoas não-brancas, marcado
por regimes de abstenções, censuras, interdições, obediências, reprovações públicas,
encarceramentos e assassinatos, cujo corolário é toda uma gama de práticas de sepa-
ração de domínios tratados ora como “sagrados”, ora como “profanos”, marcados por
segregações, desigualdades e mortes injustas.

viver como morto ou fingir de morta?


Como sobreviver aos regimes de vigilâncias e controles constantes, como escapar e
resistir às políticas de morte que nos colocam diante de um “dilema fatal”: viver como
morto ou fingir de morta? Achiles Mbembe definiu de forma definitiva essa política;
em suas palavras, a necropolítica é a “expressão máxima da soberania [que] reside,
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em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve
morrer” (2018, p.5).
Dando continuidade às “conexões parciais” entre antropologia [et al] e cinema no
forumdoc, seria possível e profícuo indagarmos a respeito de uma filmografia “piacular”,
que se celebra na inquietude ou na tristeza, parafraseando a célebre formulação de
Durkheim? Ou ainda, para utilizarmos os termos de Michael Gillespie (2017), seria impor-
tante indagarmos a respeito de um “cinema na vigília” (cinema in the wake), inspirado na
abordagem existencial de Christina Sharpe (2016) a respeito de um aspecto central da
negritude (blackness), indicando os contornos de uma existência “na vigília” (in the wake)
que demanda, por sua vez, todo um “trabalho de vigília” (wake work). Esse “trabalho de
vigília” assume “uma gama de conotações, incluindo ‘velar os mortos, o caminho de um
navio, uma consequência de algo, na linha de fuga e/ou de visão, o despertar e a cons-
ciência”. “O trabalho de Sharpe”, esclarece Gillespie, “mobiliza novos investimentos para
o estudo da morte negra e da arte da negritude. Com o cinema e o vídeo contemporâneo
negro em mente, seu trabalho sugere de forma vital uma mudança de ênfase, do retrato
do horror para uma concentração em como as formas cinematográficas promovem uma
resistência crítica e estética ao horror do antinegritude” (2017, p.53).
Como já é costume “traduzir” ou “transformar” nossos interesses antropológicos e
cinematográficos em mostras/seminários de nossa programação, “Mortos e a Câmera”
pretende dar continuidade à série de mostras/seminários realizadas em torno do ciclo
“Cinemas e Alteridades”, coordenadas pelo programa/projeto de extensão forumdoc.
ufmg na programação oficial de diferentes edições do forumdoc (“O animal e a
câmera”, 2011; “A mulher e a câmera”, 2012; “O inimigo e a câmera”, 2013; “Queer e a
câmera”, 2016 ).
A equipe curatorial se esforçou para a composição de uma filmografia heteróclita,
sobretudo no que diz respeito às estratégias e formas audiovisuais utilizadas, para sermos
mais justos às invenções cinematográficas propostas pelos diferentes filmes. A mostra
apresenta um conjunto de vinte e dois títulos de diferentes formatos e durações, que vão
de filmes focados em relatos e testemunhos a filmes de linhagens mais experimentais,
passando por títulos que se baseiam em ficções especulativas ou que utilizam técnicas
de stop motion, animação, imagem de arquivos, reconstituição, recriação, entre outros,
sem falar nos diferentes aspectos constitutivos dos universos sonoros filmográficos. Essa
heterogeneidade das formas em parte advém das diferentes assinaturas dos trabalhos:
realizadores homens, mulheres e travestis; negros, indígenas, brancos, asiáticos, sepa-
rados ou associados, de diferentes regiões e continentes do mundo.
Outro aspecto importante dessa filmografia é que ela lida diretamente com perfor-
mances e/ou rituais de morte que exploram o que poderíamos chamar de uma “cosmo-
justiça cinematográfica”, inspirada em algumas variantes já mencionadas que podem
ser descritas sob a alcunha de “cinemas piaculares” e/ou “cinema na vigília”. São filmes
que tratam do respeito, do cuidado, da saudade, da memória de pessoas, lugares, seres
e entidades importantes, espíritos e almas de defuntos inquietos ou sob controle, de
vidas interrompidas e silenciadas pelo racismo e por regimes autoritários, em suma,
dos complexos processos políticos e sociais marcados por sentimentos ambivalentes
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entre vivos e entre vivos e mortos, mesclados de respeito e revolta, silenciamentos,


apagamentos e sepultamentos não realizados e por realizar.

ter cuidado com os mortos e os outros [não descuidar…]


Dois filmes internacionais sintetizam exemplarmente os diferentes aspectos em jogo
na mostra “Mortos e a Câmera”: Dead Souls (Almas Mortas), do cineasta chinês Wang
Bing, e Graves without names (Túmulos sem nomes), do cineasta cambojano Rith Pahn,
ambos de 2018.
Wang Bing é sem dúvida um dos grandes documentaristas da atualidade. Com
uma filmografia heterogênea, é também reconhecido por seus documentários de longa
duração, como Tie Xi Qu: West of tracks (2003), com nove horas de duração, um de
seus filmes emblemáticos, exibido no forumdoc em 2009.
Dead Souls (Almas Mortas), seu filme mais recente, segue o mesmo ritmo, e nas suas
mais de oito horas torna-se uma oportunidade rara para o espectador testemunhar o horror
a que foram submetidos os chamados “direitistas” pela Campanha Anti-Direitista de 1957,
instituída pelo governo comunista chinês, até o chamado “período de reabilitação” em
1978. Dividido em quatro partes, o filme é a mais extensa pesquisa cinematográfica, com
um vasto trabalho de montagem, sobre a história de um conjunto completo de “campos
de trabalho/reeducação” conhecido pelo nome de Jiabiangou, na província de Gansu, no
noroeste da China. Filmado quase que integralmente em 2005, o projeto foi interrompido
e retomado em 2014. Wang Bing, em entrevista concedida a Emmanuel Burdeau, cuja
tradução publicamos em primeira mão neste catálogo, informa que coletou/filmou cerca
de 120 testemunhos de sobreviventes desses campos de concentração, somando cerca
de 600 horas de material bruto, sendo a sua intenção original realizar um documentário
que compilasse o maior número de testemunhas desse período. Baseado no livro de
Yang Xianhui, Chronicles of Jiabiangou, Dead Souls desnuda a máquina repressora ou
a necropolítica implantada pelo regime comunista chinês em “campos de reeducação”
do ponto de vista do testemunho de vítimas sobreviventes.
Um dos inúmeros aspectos intrigantes do filme consiste no fato de que, a princípio,
a intenção de Wang Bing era realizar um filme no qual, idealmente, os relatos de sobre-
viventes dessem conta da magnitude do regime de remoções, encarceramento e morte;
contudo, revela o diretor, “a perspectiva das pessoas não ia além do alcance de uma
família ou de um povoado”. Nas palavras de Emmanuel Burdeau, tratava-se da “lacuna
entre as palavras dos sobreviventes e o silêncio dos mortos”. Talvez seja dessa lacuna
que o filme retire sua força.
Rith Pahn, de modo correlato, enfrenta em Graves without names (Túmulos sem nomes),
não pela primeira vez em sua carreira, o “genocídio cambodiano” do regime totalitarista
do Khmer Vermelho, que, na década de 1970, exterminou cerca de 2 milhões de pessoas,
de uma população total de 7 milhões. Vítima e sobrevivente do regime, Rith Pahn foi
testemunha da morte por exaustão e desnutrição de seus pais, irmãos e outros parentes.
O filme descreve a busca dos corpos de seus familiares mortos quando o diretor tinha
apenas 13 anos de idade, tendo sido resgatado e levado para a Europa em condições
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de extrema despossessão (Maia e Flores, 2013). Nessa busca, o que se construiu foi um
filme radical que se sustenta em si mesmo, para utilizarmos uma expressão do antro-
pólogo Roy Wagner. É filmando que Rith Pahn descobre onde seus familiares mortos
foram abandonados, por intermédio do laborioso trabalho de uma xamã local, para
em seguida realizar o enterro apropriado e de acordo com a tradição, em busca de paz
espiritual e justiça social, em respeito aos mortos e sobreviventes do regime genocida.
Se Wang Bing concentra sua performance documental no registro extensivo de
testemunhos, através do controle da unidade dos relatos de sobreviventes, tidos como
absolutamente essenciais e num certo sentido suficientes para os efeitos esperados, a
performance de Rith Pahn, intervém corporalmente em cena, quando não cria imagens
e máscaras, ou performatiza ritos que, ao modo de um storytelling, acabam por animar
a memória e os mortos, dando-lhes voz e materialidade, bem como espaços, paisagens
e túmulos dignos e nomeados.

exaltar os mortos e a vida


Ressurreição (1987) e Sonhos e Histórias de Fantasmas (1996), de Arthur Omar, enca-
beçam a listagem de filmes nacionais da mostra. Ressurreição é um filme de 1987, anterior
à Constituição Brasileira de 1988. Transgressor na forma e na política, é um filme de
intensidades incomparáveis. Exibimos Ressurreição pela primeira vez no forumdoc de
2001; o impacto da sessão de abertura desse ano ainda reverbera em nossos corações
com a força de um choque elétrico. O curta-metragem é inteiramente composto de
fotografias encontradas em arquivos de “jornais sensacionalistas” e do Instituto Médico
Legal (IML) de corpos mortos violentamente, várias delas de chacinas em favelas cariocas.
A montagem que articula a banda sonora, composta por hinos religiosos do catolicismo
popular, parece exaltar as imagens de arquivo de um modo nada convencional, mania-
camente. Sem dúvida, um filme desconcertante.
Arthur Omar é um artista da exaltação. Seu trabalho fotográfico e audiovisual é
marcado por uma postura experimental no modo como ele atua na cena de captura e
composição de sons e imagens para um documentário. Exaltação contra a representação.
Em vez de colocar sua máquina cinematográfica a serviço da representação de uma
comunidade ou cultura, como os dispositivos documentais costumam fazer ao acen-
tuar o caráter informativo do gênero, Sonhos e Histórias de Fantasmas seguem outra
direção, igualmente exemplar em relação ao seu método cinematográfico no campo do
documentário. As “conexões parciais” entre um quilombo em Minas Gerais e um morro
carioca são um dos pontos altos do filme. Tais conexões se dão por meio, entre outros, de
um corte espaço-temporal radical, como sugere o crítico Felipe Bragança, que provoca
uma verdadeira rasteira no espectador – e, eu acrescentaria, no gênero documental –,
ao desestabilizar unidades tomadas como díspares ou incomensuráveis, acentuando o
caráter sempre incompleto e parcial de qualquer abordagem documental.
Omar estará presente no forumdoc.bh.2019 e fará uma sessão comentada (no dia
25/11) dos dois filmes mencionados, que compõem a mostra. Chance única de assistir
Ressurreição em uma cópia 35mm. Em comunicação recente por WhatsApp, Omar me
24

enviou um trecho de uma entrevista de 2006 que compartilho com vocês: “Meus filmes
são como um fantasma que vêm do outro mundo para assombrar o documentário: eu
envolvo o filme com um lençol, desenho dois olhos arregalados, ponho uma máscara de
caveira, e faço Buuuuu!. Eles levam um susto e saem correndo. Aí eu chamo: — pessoal,
não tenha medo, é só a morte da linguagem!”.

cinema in the wake | cinema na vigília


Durante o ano de 2018, realizei um estágio pós-doutoral no Departamento de Perfor-
mance (Performance Department) e no Hemispheric Institute of Performance and Politics
da Universidade de Nova York (NYU).2 Dentre as atividades realizadas naquele ano na
NYU, tive a chance de acompanhar um curso no Departamento de Cinema, intitulado
“Black Documentary”, do professor e crítico de cinema Michael Boyce Gillespie, já citado
nessa apresentação. Gillespie publicou, em 2016, um livro instigante, intitulado Film
Blackness – American Cinema and the Idea of Black Film. De um modo geral, seu esforço
tem sido explorar os significados da expressão blackness, muitas vezes traduzida para
o português como negritude, dentro do que ele chama de “black visual and expressive
culture”, sendo o cinema um dos principais campos de sua pesquisa. Vale destacar
que o que o autor chama de American Cinema and Black Film se restringe à produção
norte-americana.
Com esse escopo, o curso foi uma espécie de história do Cinema Negro produzido
nos Estados Unidos, desde suas experiências iniciais, na passagem do século XIX para o
XX, até a filmografia contemporânea. Destacou-se a variedade de formatos audiovisuais
dessa produção, de filmes documentários, ficção, doc-fic, experimentais, a programas
televisivos, passando por performances artísticas e televisivas, clipes de música, anima-
ções, imagens de arquivo, além de filmes construídos especialmente para o circuito de
galerias de arte, entre outros. Desse modo, o curso contou com uma vasta filmografia e
bibliografia, tendo como espinha dorsal o livro Struggles for Representation – African
American Documentary Film and Video, de 1999, editado por Phyllis R. Klotman e Janet
K. Cutler e devotado ao exame de mais de 300 filmes não-ficcionais produzidos por mais
de 150 African American film/videomakers.
Dois aspectos dessa filmografia – a existência de um arquivo audiovisual fragmentário
e racista que limita e impõe uma certa forma ao “black documentary”, articulada aos
modos como a experiência de pessoas ou grupos de pessoas negras foi representada
pela “black experience on film” – são explorados de diferentes maneiras pelos autores
de Struggle for Representation, que buscam extrair “as consequências do material de
arquivo fragmentário para a prática documental negra e a relação entre a tecnologia
disponível e a representação histórica, traçando os esforços feitos pelos afro-americanos

2. Agradeço imensamente a equipe do Hemi, em especial, Diana Taylor e Marcial Godoy pela acolhida afetuosa e
troca de conhecimentos nesse período, sem o apoio de vocês boa parte da pesquisa realizada para essa mostra
não teria sido possível.
25

para documentar sua experiência e os fatores econômicos, sociais, estéticos e históricos


que impulsionam seu trabalho” (Introdução, 1999, p.xxvi).
Assim que comecei a me familiarizar com a filmografia apresentada no curso, tive a
impressão, já com a curadoria da mostra “Mortos e a Câmera” em mente, que a maioria
dos filmes tratava da morte saudosa e, na maioria das vezes, injusta de pessoas negras,
ou seja, boa parte da filmografia apresentada no curso denunciava a morte de negros.
Assistimos a inúmeros velórios, e o conjunto desses filmes acabou por me provocar um
sentimento de que esses corpos estavam sendo velados através dos filmes, sendo este
cinema um cinema enlutado, marcado por injustiças e lutas antirracistas.
Ao comentar, em meu inglês trôpego, essa minha impressão em uma de suas aulas,
Gillespie esclareceu que esse era um dos temas em que estava interessado, tendo
escrito, inclusive, um artigo para a revista Film Quartely cujo objetivo era o de articular
black death (morte negra) e film form (forma fílmica) no cinema afro-[norte]-americano
contemporâneo. Nesse artigo, intitulado Death Grips, que traduzimos e publicamos em
primeira mão no nosso catálogo, Gillespie, inspirado no livro In the Wake: On Blackness
and Being (2016), de Christina Sharpe, explora as diferentes conotações da concepção
de wake work (trabalho de vigília ou de luto, o rastro deixado na água por um navio,
consciência, entre outros sentidos correlatos). Nas palavras de Christine Sharpe, o
“trabalho de vigília” se realiza

[...] plotando, mapeando e coletando os arquivos do cotidiano da morte imanente e iminente dos
negros, e rastreando as maneiras pelas quais resistimos, rompemos e interrompemos, estética
e materialmente, essa imanência e iminência. Estou interessada em como podemos imaginar
maneiras de conhecer o passado, o excesso de ficções contidas nos arquivos, mas não apenas
isso. Também estou interessada em saber como reconhecemos as muitas manifestações da
ficção e esse excesso, esse passado ainda não passado, no presente. (2016, p.13)

memory for forgetting | memória para esquecer


No rastro de Sharpe, Gillespie explora, nesse artigo da Film Quartely, a ideia de um
cinema na vigília (in the wake) a partir da análise de três filmes recentes, que foram
incorporados na curadoria da mostra “Mortos e a Câmera”. Everybody Dies! (2016),
de Frances Bodomo, Dead Nigga BLVD (2015), de Leila Weefur, e White (2011), de A.
Sayeeda Clarke. Segundo Gillespie:

Com concepções distintas e convincentes sobre a morte negra, esses três curtas-metragens
estão profundamente localizados em seu momento americano contemporâneo. Pensar com
esses filmes envolve pensar através dos objetos performativos, do grotesco racial e do futuro
da exclusão social. Juntos, esses filmes suspendem, promovem rupturas e perturbam, cons-
tituindo historiografias e estratégias visuais distintas. Dead Nigga BLVD., com sua articulação
em stop-motion dos mortos, reúne três narrativas históricas para demonstrar um agravante
arco de injustiça. Everybody Dies! se apropria dos estilos mortos de um game show infantil
de televisão aberta para considerar a frequência enlouquecedora e o acúmulo da injustiça
26

violenta. A encenação do afrofuturismo em White, como uma modalidade de vida após a morte
da escravidão, reconsidera os efeitos desiguais da crise global. (2015, p. 59)

Foi também no segundo semestre de 2018, por indicação de Michael Gillespie, que
estive presente em uma sessão de still/here (2001), do norte americano Christopher
Harris, na NYU, em Nova York, que contou com a presença do diretor. O documentário
destoa singularmente dos demais filmes do diretor, cuja obra se caracteriza, entre outros,
por não repetir o mesmo método ou proposta fílmica em seus trabalhos, de modo que
a linguagem de cada filme se esgota naquele mesmo projeto.
still/here, que faz parte da mostra “Mortos e a câmera”, retrata em preto e branco
as ruínas e os lotes vagos da paisagem familiar de uma vizinhança (neighborhood), a
zona norte de St. Louis, Missouri (EUA), um bairro outrora povoado em sua maioria por
trabalhadores pobres afro-americanos, em estado de decomposição e abandono. Como
no filme de Rith Pahn, Christopher Harris também retorna à paisagem de sua infância, mas,
diferentemente do primeiro, a distância temporal e o vazio espacial não são preenchidos;
pelo contrário, é pelo confronto entre a presença do cinema e a ausência profunda de
uma comunidade destruída que o registro documental ganha força.3
Espero que tenha ficado claro o quanto a curadoria da presente mostra se valeu do
trabalho excepcional de Michael Gillespie, que, além de autorizar a tradução de Death
Grips para o português e sua publicação em nosso catálogo, nos ajudou na produção das
autorizações de exibição dos três filmes descritos acima. Foi também no seu sylabus, ou
programa de curso, que descobri um daqueles textos que impactam o leitor da primeira à
ultima linha; trata-se do famoso ensaio “A condição da vida negra é o luto” (The condition
of Black Life Is One of Mourning), da poeta jamaicana e professora de inglês Claudia
Rankine, publicado pela primeira vez em junho de 2015 no jornal The New York Times.
Transcrevo o primeiro parágrafo, a fim de instigá-los à leitura desse ensaio espetacular,
traduzido também em primeira mão na seção de ensaios do nosso catálogo, que traduz
de forma contundente a condição existencial de pessoas negras em sociedades racistas:
“Uma amiga recentemente me falou que, quando ela deu à luz seu filho, antes de
nomeá-lo, antes mesmo de amamentá-lo, seu primeiro pensamento foi: tenho que tirá-lo
deste país. Nós duas rimos. Talvez nosso humor negro tenha a ver com a compreensão de
que sair não era uma opção nem o desejo real. É assim a nossa vida. Aqui trabalhamos,
temos cidadania, pensões, seguro de saúde, família, amigos e assim por diante. Ela
não poderia ir embora, ela não foi. Anos após seu nascimento, sempre que seu filho sai
de casa, seu status de mãe de um ser humano permanece tão precário como sempre.
Somado aos medos naturais de todos os pais que enfrentam a aleatoriedade da vida,
há ainda o conhecimento das maneiras pelas quais o racismo institucional funciona em

3. Em 2019, o 21º FestCurtasBH, festival de cinema de Belo Horizonte, não somente convidou o cineasta para
vir ao Brasil, mas também contou em sua programação com duas mostras correlacionadas: uma retrospectiva
completa de Christopher Harris intitulada “Poética e política da forma” e uma curadoria de filmes composta pelo
realizador intitulada “Influências e Ressonâncias”. Além de “Notas de still/here (fac-simile)”, o catálogo conta
com entrevistas e ensaios sobre a obra do cineasta.
27

nosso país. O nosso riso foi o riso da vulnerabilidade, do medo, da identificação e de


uma estagnação absurda”.
Mas a estagnação é parcial e momentânea, demonstra Rankine no decorrer do ensaio;
o movimento Black Lives Matter, segundo ela, pode ser lido como um movimento que
lamenta e protesta contra a vidas negras em constante estado de precariedade. Nesse
sentido, Rankine sugere um alinhamento desse movimento com os mortos, na forma de
enlutamento e recusa de esquecimento das injustiças diante de todos nós. “Se fôssemos
vistos como viventes, não estaríamos morrendo simplesmente porque os brancos não
gostam de nós”, contra-ataca a autora. Compartilhamos do desejo de, através desta
mostra/seminário, estabelecermos um “alinhamento com os mortos” através do cinema,
numa política de memória pelo esquecimento de traumas sociais.

genocídio à brasileira
Foi Abdias Nascimento quem tornou célebre a formulação ou denúncia sobre “O genocídio
do negro brasileiro”, que, acompanhado do subtítulo “Processo de um racismo masca-
rado”, tornou-se o nome de um dos livros (rejeitados) mais importantes da historiografia
brasileira. A atualidade da análise de Abdias é contundente, como confirmam os dados
mais recentes, publicados em maio de 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no Atlas da Violência, docu-
mento público sobre o número de assassinatos por ano no Brasil. Os dados divulgados
referem-se ao período de 2007 a 2017, e de um modo geral são alarmantes; quando
observados os aspectos raciais, de gênero e de geração, a situação parece bem pior.
Falta no Atlas um tratamento mais acurado dos dados referentes à população indígena.
De todo modo, o número de homicídios em 2017 foi de 65.602 pessoas assassinadas,
o que equivale a uma taxa de 31,6 mortes para cada cem mil habitantes, o maior nível
histórico de letalidade violenta intencional no país; para se ter um ideia, o número de
homicídios em 2007 não chegava a 50.000.
Os dados referentes à violência letal contra a população negra brasileira são surpreen-
dentes e bastante significativos. Somente em 2017, 49,5 mil pessoas negras foram
mortas, o que corresponde a 75,5% do total de homicídios. Outro dado chocante se
refere ao fato de que 35.783 pessoas assassinadas em 2017 tinham entre 15 e 29 anos,
sendo 94,4% do sexo masculino. As análises interseccionais desses dados corroboram
todo um “sistema de opressão interligado”, como sugere a reflexão epistemológica de
Patricia Hill Collins.4
Compondo uma deriva contemporânea nacional que tangencia de diferentes maneiras
a memória justa contra a morte injusta de negros, mulheres, indígenas, lgbtqi – em

4. Para maiores informações, cf. Atlas da Violência: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads


/2019/ 06/Atlas-da-Violencia-2019_05jun_vers%C3%A3o-coletiva.pdf>; Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP): <http://www.forumseguranca.org.br/>; a plataforma Violência contra as Mulheres em Dados:
<https://dossies.agencia patriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/>; sobre os dados relativos à violência
LGBTFóbicas: <https://www.mdh. gov.br/biblioteca/consultorias/lgbt/violencia-lgbtfobicas-no-brasil-dados-
-da-violencia e http://dapp.fgv.br/dados-publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-29-anos-de-comba-
28

especial, travestis e transgêneros – no território brasileiro, fazem parte da mostra os


filmes Chico (2018), dos Irmãos Carvalho; Apelo (2014), de Clara Ianni e Débora Maria
da Silva; Pontes sobre Abismos (2019), de Aline Motta; Para todas as moças (2019),
de Castiel Vitorino, A-Gente Laranja (2019), de Denilson Baniwa e Yvy Reñoi, Semente
da terra (2017), da ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas). Juntos
formam um bloco de resistência política e linguagens cinematográficas inventadas
por corpos e corpas cuja existência se dá em um estado de precariedade marcada por
mortes precoces e senso de injustiça, para utilizarmos o vocabulário de Claudia Rankine.
O primeiro bloco formado por Chico (2018), dos Irmãos Carvalho; Apelo (2014),
de Clara Ianni e Débora Maria da Silva; Ponte sobre Abismos (2019), de Aline Motta;
Para todas as moças (2019), de Castiel Vitorino, são filmes marcados por diferentes
estratégias cinematográficas de lidar com o pan-óptico afrofuturista, o anonimato de
mortes criminosas e cemitérios clandestinos, o tempo e a memória ancestral, o trauma
brasileiro contra “o fogo do esquecimento” que, como sugere Fabio Rodrigues Filho em
belo ensaio escrito especialmente para a mostra, “ameaça os mortos e os vivos”.
A-Gente Laranja (2019), de Denilson Baniwa e Yvy Reñoi, Semente da terra (2017),
da ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas), ambos assinados por
indígenas, são construídos tendo como pano de fundo os territórios e terras indígenas,
ameaçados pela ganância do capital e de homens brancos. Denilson Baniwa, multi-artista,
é responsável pela maravilhosa série de imagens de “satélite baniwa” intitulada “Natu-
reza Morta” (2016-2019) que chama atenção para a destruição de áreas preservadas,
entenda-se, territórios indígenas, capturadas por uma lente que transcria “imagens de
satélite” aglutinando as áreas devastadas, pelo fogo e pelo agronegócio, em formas ou
silhuetas de corpos de humanos e animais, dentre outros. A-Gente Laranja, por sua vez,
é um curta metragem no qual se destaca a montagem alucinante de diferentes aero-
naves, em diferentes lugares e épocas, sobrevoando comunidade e aldeias despejando
venenos (armas químicas) sobre elas. Sabemos de diferentes casos no país, sobretudo
em relação aos Guarani, de ataques de fazendeiros a comunidades indígenas utilizando
aeronaves para dispersão de produtos letais, parte das imagens do filme de Denilson
são justamente destes casos.
Yvy Reñoi, Semente da Terra, do coletivo ASCURI, aborda a resistência indígena
frente aos conflitos territoriais a partir dos ataques realizados por capangas e fazen-
deiros milicianos contra os Kaiowa e Guarani da aldeia de Teukue no Mato Grosso do
Sul em 2016. Num ritmo frenético a câmera acompanha a retirada de mais um corpo
de um indígena morto por fazendeiros, nesse caso em específico, cinco dias após a
visita a Campo Grande do inimigo número um dos povos indígenas no Brasil, o atual
presidente Jair Bolsonaro.

te-ao-preconceito/>; finalmente, sobre a violência contra povos indígenas: <https://cimi.org.br/wp-content/


uploads/2018/09/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas _2017-Cimi.pdf>.
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ecocídio e extinção
Sabemos que não apenas os corpos e vidas de pessoas em estado de vulnerabilidade e
expostas ao racismo estrutural estão sob ataque constante no Brasil, os meio-ambientes
ou territórios que nutrem, alimentam, hidratam, refrescam, abrigam essa diversidade de
gentes não cessam de ser apropriados e invadidos, capitalizados e, finalmente, destruídos.
As consequências da falta de cuidado com os diferentes seres que constituem o que
chamamos simplesmente de Terra estão apenas se iniciando, mas se tomarmos como
base todos os crimes ambientais ocorridos no Brasil nos últimos meses, estamos diante
de um colapso ambiental e, consequentemente, social sem precedentes.
De acordo com a ONG Global Witness, ao menos 164 ativistas ambientais foram
mortos por defenderem seus territórios em 2018; comunidades, casas, terras e recursos
naturais, contra projetos agro-industriais-florestais-mineirais-hidroelétricos, para ficarmos
entre os mais destrutivos. O Brasil consta entre os países que mais matam ambienta-
listas; em 2017, foram registrados 57 homicídios. O documentário Chico Mendes: Eu
Quero Viver, do inglês Adrian Cowell, reconhecido como um dos maiores cineastas
da Amazônia, não mostra um caso fora da curva, mas a trajetória e execução do maior
líder seringueiro brasileiro. Em tempos de crimes ambientais constantes, rompimento
de barragens, queimadas descontroladas, derramamento de óleo na costa brasileira
e invasões de terras por particulares, Chico Mendes: Eu Quero Viver continua com o
trabalho de luta contra a destruição e a comoditização do meio ambiente e dos povos que
vivem na Amazônia. Sua programação na mostra “Mortos e a Câmera” é uma deferência
em relação a sua memória e a seu legado, e contaremos com uma sessão comentada do
filme (30/11) por Ruben Caixeta de Queiróz e Ademilson Concianza.

cosmopolíticas de consideração [os vivos e os mortos]


O último bloco de filmes da mostra articula diferentes aparatos cosmológicos de dois
povos indígenas situados no Brasil, os Tikmũ’ũn (Maxakali) e os Kamayurá; dos povos
indígenas australianos Tiwi e Karrabing e do povo Dogon, no Mali africano. Tatakox Vila
Nova (2009), da Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho, Mãtãnãg, a encantada
(2019), de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, Uaká (1988), de Paula Gaitán, Good-bye
Old Man (1977), de David MacDougall, Wutharr, Saltwater Dreams, de Elizabeth Povi-
nelli e o Karrabing Film Collective, e Sigui Synthèse (1981), de Jean Rouch e Germaine
Dieterlen, são filmes que, de modos singulares e a partir de estratégias fílmicas e tradições
estilísticas distintas, realizam um trabalho de “alinhamento” em relação ao mundo dos
mortos, denotando diferentes modulações do que, na esteira de uma expressão cunhada
recentemente pelos amazonistas A. José Kelly e Marcos Almeida (2019), vamos chamando
de “cosmopolíticas de consideração”, em particular, de consideração aos mortos.
Um de nossos interesses norteadores quando criamos o forumdoc, em 1997, em
Belo Horizonte (MG), era “indigenizar” o campo do cinema no Brasil, em especial aquele
dos festivais de cinema dedicados ao documentário e ao filme etnográfico. Nosso desejo
foi o de criar um festival de cinema no qual os povos indígenas estivessem, desde sua
origem, implicados, seja por meio da curadoria e da exibição de filmes sobre pessoas e
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povos indígenas, seja por meio de uma filmografia que ia se formando e que podemos
dizer que hoje, cerca de 20 anos depois, encontra-se plenamente consolidada, qual seja,
aquela produzida por “realizadores indígenas”, categoria não menos problemática que
“cinema indígena”, mas que, na falta de outras melhores, seguimos utilizando. Destaca-se
entre essa produção aquela dos realizadores indígenas do povo Maxakali, localizado no
nordeste de Minas Gerais (Brasil).
Tatakox (2007), de Isael Maxakali, que infelizmente não exibiremos nesta mostra, e
Tatakox Vila Nova (2009), assinado coletivamente pela Comunidade Maxakali Aldeia Nova
do Pradinho, que, felizmente, exibiremos, são exemplares e portadores de uma marca
ou particularidade essencial no que diz respeito à estética indígena cinematográfica: a
proximidade ou mesmo simultaneidade entre o fazer fílmico e o fazer ritual. Podemos
falar aqui então de filme-ritual, evocando os longos planos-sequência neles apresen-
tados e a presença paradigmática da “ação encorporada” dos personagens enquadrados
pela cena ou “campo cinematográfico”, do “antecampo” (pessoa ou equipe que dirige e
filma a cena) e do “fora-de-campo” (tudo aquilo que está fora de cena, fora de quadro,
inclusive o sobrenatural e os fazendeiros do entorno), para utilizarmos os termos analí-
ticos propostos por André Brasil e Bernardo Belisário (2016) para o “cinema indígena”.
Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali, são um povo falante da língua indígena
maxakali, da família linguística Macro-Jê. Habitantes de um outrora vasto território de
Mata Atlântica, estão hoje reduzidos a pequenas porções de terras demarcadas, porém
cercadas de fazendas particulares no nordeste do estado de Minas Gerais, no Brasil,
totalizando cerca de 1.500 pessoas distribuídas em quatro diferentes aldeias. A história
do povo maxakali é uma história de resistência contra a invasão de seu território e a expro-
priação e a destruição de sua fauna e flora, essenciais para o bem viver nas comunidades.
Ambos os filmes foram realizados em aldeias maxakali. O primeiro, com equipamento
amador e em condições improvisadas, após Isael Maxacali ter participado de uma oficina
de realização cinematográfica oferecida pelo já então famoso cineasta indígena xavante
Divino Tserewahú, no forumdoc, em Belo Horizonte. Tatakox é o primeiro filme de Isael
e aborda o ritual de mesmo nome, um ritual de iniciação de meninos nas práticas de
conhecimento do xamanismo, ritual de intensa plasticidade e vigor performático. Tatakox
é também o nome do “espírito da lagarta”, responsável pela iniciação de meninos durante
o período em que ficam reclusos no Kuxex, ou casa dos cantos, quando recebem lições
valorosas do mundo masculino.
O filme de Isael foi o primeiro realizado por um indígena maxakali e gerou reações
interessantes por parte de outros Maxakali que não vivem na mesma aldeia. Quando os
Maxakali da comunidade vizinha do Pradinho assistiram ao filme de Isael, não ficaram
satisfeitos. Acharam que o filme, além de não estar completo, não retratava bem a forma
como, na perspectiva deles, o ritual do Tatakox deve ser realizado e apresentado. Após
uma oficina de realização ministrada pelo célebre projeto Vídeo nas Aldeias na aldeia
de Pradinho, em 2008, um grupo liderado por Guigui Maxakali resolveu responder
ao Tatakox de Isael com outro filme-ritual, igualmente impactante, mas que difere do
primeiro num aspecto fundamental – o filme feito na aldeia de Pradinho mostra, sem
cortes, as crianças mortas/espíritos tatakox sendo retiradas de um buraco debaixo
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da terra, sob o som estridente de flautas de taquara e rodopios sem fim de crianças
e jovens paramentados. Tatakox e Tatakox Vila Nova são filmes-rituais realizados em
longos planos-sequências e marcam duas perspectivas cinematográficas sobre um
ritual culturalmente compartilhado e dirigido pelos espíritos tatakox.
Mãtãnãg, a encantada, de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, é fruto de uma oficina
de desenhos e animação coordenada por Charles Bicalho no território tikmũ’ũn, mais
especificamente na Aldeia Verde, no município de Ladainha (MG). Roberto Romero, em
ensaio escrito especialmente para a mostra, identifica na “transcriação filmíca” proposta
pelo filme uma espécie de “transformação do mito”, centrada em uma história do vasto
repertório mítico tikmũ’ũn. Mãtãnãg, esclarece Romero, “é conhecida como uma mulher
muito antiga que, inconformada com a morte do marido por uma picada de cobra,
recusou-se a enterrá-lo e resolveu acompanhá-lo até a aldeia dos mortos. O caminho
até lá é tortuoso: Mãtãgnãg prepara beijús com a carne do marido morto e come para
encantar-se e seguir os seus rastros. No percurso, uma série de desafios dificulta o seu
caminho: o tronco de uma árvore que gira tentando impedir sua passagem sobre um rio;
um mamoeiro que lança seus frutos; uma nuvem de gafanhotos ferozes, tudo parece feito
para impedir a passagem dos vivos ao mundo dos mortos. Mas chegando lá, a surpresa:
a aldeia dos mortos é habitada por feras como onças, leões, elefantes e hipopótamos.
Assustada e com saudades dos parentes do lado de cá, Mãtãgnãg decide voltar, porém,
sob uma condição: não contar nada do que viu para os vivos”. Os desenhos vibrantes
em stopmotion formam camadas e sobreposições que dinamizam o caminho descrito
pelo mito de ida e volta, às vezes, somente de ida ao mundo dos mortos.
Uaká, de Paula Gaitán, explora delicadamente o universo e os movimentos de um
dos rituais mais famosos dos povos indígenas xinguanos, o Kuarup. Ritual em deferência
aos mortos ilustres compartilhado por diferentes povos indígenas da região, o Kuarup
é um rito que, na sua origem, teria sido realizado para trazer trazer de volta das aldeias
dos mortos os parentes defuntos. Uaká foi filmado durante a preparação de um ritual
kuarup, que contou com a participação de nove diferentes povos da região, em uma
aldeia kamayurá chamada Takumã, no Xingu. Como Arthur Omar e ao seu modo, Paula
Gaitán desvia do propalado método etnográfico rumo ao universo do encantamento e
da exaltação de corpos e falas indígenas. Exaltação contra a representação.
Good-bye Old Man, de David MacDougall, é um filme encomendado por um homem
tiwi chamado Geoffrey Mangatopi, que, já próximo de sua morte, teria solicitado a filmagem
de seu próprio ritual fúnebre, chamado na região de Pukamani. O filme e o realizador
tornaram-se clássicos do gênero etnográfico, ao seguir de perto a longa preparação de
uma tradição funerária ancestral, que culmina no deslocamento de toda uma comuni-
dade para uma praia chamada Carslake, onde o ritual é dançado por especialistas e as
exéquias realizadas. Narrado por um dos participantes da cerimônia a partir de suas
observações sobre o filme editado, a voz em off, bem como o som direto, são aspectos
fundamentais e complementares do filme.
Wutharr, Saltwater Dreams é o terceiro filme do Coletivo Karrabing Filme (Karrabing
Film Collective), formado em sua maioria por realizadores karrabing, mas não exclusi-
vamente, vez que a antropóloga norte-americana Elizabeth Povinelli também faz parte
32

do grupo. Filmado em uma paisagem aborígene muito semelhante à de Good-Bye Old


Man, esse é sem dúvida um dos filmes mais intrigantes da mostra, de uma ousadia
formal inédita, caracterizado pela própria Povinelli como um “realismo improvisado”
(improvisational realism). De uma estética surreal e inovadora, o filme se estrutura em
uma série de flashbacks que apresentam diferentes versões sobre o que teria causado
o problema no motor de um barco, deixando a família presa em uma praia distante. A
mise-en-scène dos mortos ou ancestrais como prováveis causadores do estrago do
motor é um dos pontos altos do filme.
Last but not least, fechamos com o magistral Sigui Synthèse, dos gigantes Jean
Rouch e Germaine Dieterlen, defuntos ilustres, entre outros, de nossa mostra piacular.
Sigui Synthèse é o filme síntese de uma série de sete filmes realizados entre os anos de
1966 e 1974 sobre as cerimônias que os Dogon do Mali chamam de Sigui. Realizadas
a cada 60 anos e com duração de sete anos, essas cerimônias foram primeiramente
descritas por Marcel Griaule, em 1907. Durante a cerimônia, os Dogon comemoram a
revelação da palavra oral aos homens, a transformação ou regeneração da terra, bem
como a morte e funeral dos primeiros ancestrais dogon. É impossível esquecer os cantos
e as danças de centenas de pessoas, em ritmo marcado pelo solo árido das montanhas
do território dogon, bem como o comentário over, na voz inconfundível do realizador
que, como demonstra Mateus Araújo, em ensaio escrito especialmente para a mostra,
“interage com as vozes dos Dogon (nunca legendadas), os sons da sua vida comum, as
músicas das suas cerimônias (cantos, percussões etc) e a força de suas falas rituais, que
Rouch traduz e recita com sua típica entoação encantatória”.
Não é a primeira vez que esse filme magistral é exibido no forumdoc: a primeira
sessão, interminável, foi realizada dentro da mostra Rouch-Dieterlen de 2000, no antigo
Cine Nazaré, talvez em seu último ano de vida, com um projecionista, como bem recorda
nosso colega Ewerton Belico, que não sabia trocar os rolos de 16mm, e foi marcada pelas
quebras e pausas constantes causadas tanto pela inépcia do projecionista quanto pela
antiguidade da cópia. Reza a lenda que essa sessão durou alguns dias, e a sensação
era a de uma sessão que nunca iria terminar, como os ritos e filmes de longa-duração.

wake work | trabalho de vigília


A mostra “Mortos e a Câmera” será acompanhada de um seminário, no Cine Humberto
Mauro (Palácio das Artes-MG), casa do forumdoc desde 1997, que pretende abordar
as conexões parciais entre memória, necropolíticas, cosmojustiças e cinema, antropo-
logia, performance e arte. A intenção do seminário é se alinhar à proposta de Michael
Gillespie a partir da formulação “cinema na vigília” (cinema in the wake), na esteira de
Christina Sharpe, bem como ao chamado de Claudia Rankine, de modo a expandi-los
para territórios não explorados por esses autores. O fato de a existência de pessoas
negras, mulheres, indígenas e lgbtqi, entre outros, ser uma existência na vigília (exis-
tence on the wake), marcada pela escravidão e pelos genocídios, faz toda a diferença
para pensarmos os modos como lidamos com a vigília de nossos mortos, em especial
quando utilizamos mediações políticas e artísticas, raramente acadêmicas, para fazer esse
33

percurso obrigatório de ir e voltar do encontro com nossos mortos. Vale ainda esclarecer
que, para Sharpe (2016, p.14), o modo de “existência na vigília” e o “trabalho de vigília”
(wake work) são entendidos como formas de consciência/conhecimento (consciousness).
Sobre o “trabalho de vigília”, Sharpe resume: “Se, como sugeri até agora, pensamos na
metáfora da vigília em todos os seus significados (vigiar os mortos, o caminho de um
navio, uma consequência de algo, na linha de voo e/ou visão, despertar e consciência)
e se juntamos a vigília ao trabalho, a fim de fazer da nossa vigília e trabalho de vigília
nossa analítica, podemos continuar imaginando novas maneiras de fazer vigília na vigília
da escravidão, nas vidas após a escravidão (slavery’s afterlives), para sobreviver (e mais)
a vida após a morte da propriedade. Em resumo, quero dizer que o fio do trabalho de
vigília é um modo de habitar e romper essa episteme com nossos conhecimentos vividos
e vidas in/imagináveis. Com essa análise, podemos imaginar o contrário do que sabemos
agora na vigília da escravidão”. (2016, p.17-18)
A primeira sessão será dedicada ao cinema do e com o povo Tikmũ’ũn (Maxakali).
Dois filmes compõem a sessão: Tatakox Vila Nova e Mãtãnãg, a encantada, que será apre-
sentado e comentado por Suely e Isael Maxakali, Charles Bicalho, no dia 23/11, às 17h.
No dia 25/11, às 17h, será a abertura do seminário “Mortos e a Câmera”, com a
apresentação do coordenador de curadoria Paulo Maia e nossa convidada especial,
Leda Maria Martins, poeta e professora da Faculdade de Letras da UFMG. Leda fará
uma conferência de abertura, estabelecendo aproximações e afastamentos a respeito
do tema proposto. Nesse mesmo dia, às 21h, Arthur Omar estará presente na sessão
comentada de seus filmes Ressurreição e Sonhos e Histórias de Fantasmas.
No dia 26/11, às 15h, teremos nossa primeira mesa redonda, intitulada “Trabalho
de vigília” (wake work), com a participação de Denilson Baniwa, Castiel Vitorino, Davi
de Jesus do Nascimento e Célia Xakriabá. Roberto Romero fará a mediação da mesa,
cujo foco será dado aos agenciamentos artísticos e políticos que podem ser entendidos
na clave dos “trabalhos de vigília”.
A segunda mesa ocorrerá no dia 27/11, às 15h, será intitulada “Cinema na vigília”
(cinema in the wake) e contará com a participação de André Brasil, Tatiana Carvalho
Costa, Fabio Rodrigues e Ademilson Kaiowá. A mediação ficará a cargo de Carla Italiano.
Nessa mesa esperamos explorar o cinema, como sugere Michael Gillespie, na vigília,
abordando suas experimentações formais e capacidades críticas. Às 17h os filmes Chico
Mendes - Eu quero Viver, de Andrian Cowell e Yvy Reñoi, Semente da terra, assinado
coletivamente pela ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas) serão
comentados por Ruben Caixeta de Queiróz e Ademilson Concianza, membro da ASCURI.
No dia 30/11 às 19h, Renato Sztutman irá comentar os filmes Good-Bye Old Man
(Adeus Meu Velho), de David MacDougall e Wutharr, Saltwater Dreams (Sonhos de Água
Salgada), assinado pelo Karrabing Film Collective (coletivo Karrabing Filme).
Fecharemos a mostra/seminário “Mortos e a Câmera” com chave de ouro no dia
1º/12, com a sessão de encerramento, às 21h, com o filme Sigui Synthèse, de Jean
Rouch e Germaine Dieterlene, apresentado por Júnia Torres.
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ensaios e entrevistas
Na seção de Ensaios e Entrevistas do presente catálogo forumdoc.bh.2019, publicamos
o artigo “Death Grips” (Abraços da Morte), de Michael Boyce Gillespie e o ensaio “The
Condition of Black Life Is One of Mourning” (A Condição da vida negra é o luto), de
Claudia Rankine, ambos traduzidos em primeira mão pelo forumdoc.bh; “Numa terra
estranha: sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação de Shawara Maxakali e Charles
Bicalho” de Roberto Romero; “O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973:
Invenção da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981)” de Mateus
Araújo; “Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte” de Fabio Rodrigues Filho; um
trecho de uma entrevista de Emmanuel Burdeau com Wang Bing. Também publicamos
a transcrição de uma fala de Castiel Vitorino intitulada “Cura Bantu” (2019) , e o ensaio
visual “A ponte caiu se vira e atravessa nadando” (2019), de Davi de Jesus do Nascimento.

Referências
ARAÚJO, Mateus. O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973: Invenção
da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981). In: Catálogo forumdoc.
bh.2019, Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2019.
BRASIL, André e BELISÁRIO, Bernardo. Desmanchar o cinema: variações do fora-de-
-campo em cinemas indígenas. Sociologia e Antropologia. Vol. 6, no. 3, Rio de Janeiro,
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37

Dead Souls • Almas Mortas • Si Ling Hun


França/Suíça, 2018, cor, 495’ • direção director Wang Bing • fotografia cinematography Wang Bing • montagem editing
Catherine Rascon • produção production Les Films D’ici, CS Productions • contato contact t.lionel@docandfilm.com

Na província de Gansu, no noroeste da China, encontram-se os restos de inúmeros prisioneiros abandonados no


Deserto de Gobi há sessenta anos. Designados “ultra-direitistas” na Campanha Anti-Direitista de 1957 do Partido
Comunista, morreram de fome em campos de reeducação. O filme convida-nos a conhecer os sobreviventes,
para descobrir, em primeira mão, quem foram essas pessoas, as adversidades que tiveram de suportar e qual
foi o seu destino.
In Gansu Province, northwest China, lie the remains of countless prisoners abandoned in the Gobi Desert sixty
years ago. Designated as “ultra-rightists” in the Communist Party’s Anti-Rightist campaign of 1957, they starved to
death in the Jiabiangou and Mingshui reeducation camps. The film invites us to meet the survivors of the camps to
find out firsthand who these people were, the hardships they were forced to endure and what became their destiny.

Cine Humberto Mauro, 28 nov, 19h - Parte 1 • 29 nov, 14h30 - Parte 2

Les Tombeaux Sans Noms • Túmulos Sem Nome • Nameless Grave


França/Camboja, 2018, cor, 115’ • direção director Rithy Panh • fotografia cinematography Rithy Panh, Prum Mésar •
montagem editing Rithy Panh • música music Marc Marder • produção production Catherine Dussart Production, Arte
France, Anupheap Production • contato contact joris@playtime.group

Quando uma criança de 13 anos de idade, que perdeu a maior parte da família sob o regime do Khmer Vermelho,
embarca em uma procura pelas sepulturas de seus familiares, o que ela encontra lá? O documentário registra
a busca por paz espiritual, tanto para quem foi morto quanto para os sobreviventes do sistema político que
dominou o Camboja na década de 1970.
When a 13 years old kid, who has lost most of his family under Khmer Rouge’s regime, goes on a search for the
graves of his relatives, what will be found? The documentary film shows the search for spiritual peace, both for
who was killed and for the survivors of the political system that dominated Cambodia in the 1970s.

Cine Humberto Mauro, 24 nov, 19h


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Ressurreição • Resurrection
Brasil, 1987, p&b, 6’ • direção director Arthur Omar • fotografia cinematography Arquivos de Jornais • montagem editing
Aida Marques • músicas music Coração Santo, Queremos Deus • produção production Córtex Digital • contato contact
arthuromar@gmail.com

Composto com fotografias de arquivos de jornais populares brasileiros especializados em assassinatos violentos,
e do Instituto Médico Legal. As estranhas posturas dos corpos massacrados lembram as figuras dos pintores
Maneiristas. Menos uma denuncia, que um estudo sobre a ação da lei da gravidade sobre corpos sem vida.
The film is made with archive photography from Brazilian newspapers specialized in violent murders and from
morgues. The strange postures of the slaughtered bodies remind the pictures of the Mannerism period. It is less
a denouncement than a study on the action of law of gravity on lifeless bodies.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 21h *Sessão comentada por Arthur Omar

Sonhos e Histórias de Fantasmas • Dreams and Ghost Stories


Brasil, 1996, cor, 45’ • direção diretor Arthur Omar • contato contact arthuromar@gmail.com

Raízes negras e psicanálise selvagem. Um quilombo no interior de Minas Gerais formado por velhos ligados à
tradição. Uma turma funk no Rio de Janeiro, jovem, sem qualquer ligação com o passado. Pressão comunitária
e êxtase metafísico, com aparições de fantasmas, numa linguagem sensorial.
Black roots and wild psychoanalysis. A quilombo in the countryside of Minas Gerais formed by the elderly linked
to the traditions. A funk group in Rio de Janeiro, young, not connected to the past. Communitarian pressure and
metaphysical ecstasy with ghost appearing in a sensorial language.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 21h *Sessão comentada por Arthur Omar
39

Dead Nigga Blvd


Estados Unidos, 2015, cor e p&b, 5’ • direção director Leila Weefur • fotografia cinematography Leila Weefur • contato
contact leilaweefur@gmail.com

Dead Nigga Blvd encontra-se em algum lugar entre a vida na Terra e a vida após a morte. Emmet Till, Oscar
Grant e Trayvon Martin vivem em frustração e confusão ao serem forçados a confrontarem suas mortes da
mesma forma que nós as confrontamos, através de uma transmissão. Esses três jovens representam apenas
uma pequena porcentagem de mortes causadas por injustiças raciais, mas seus rostos se tornaram icônicos no
debate sobre o racismo norte-americano.
Dead Nigga Blvd. exists somewhere between life on Earth and the afterlife. Emmett Till, Oscar Grant, and Trayvon
Martin dwell in frustration and confusion as they are forced to confront their deaths in the same way we all
have confronted their deaths, through a broadcast. These three young men represent only a small percentage
of deaths caused by racial injustices but their faces have become iconic in the conversation of American racism.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30

Noise+Thirst • Barulho+Sede
Estados Unidos, 2018, cor, 7’ • direção director Leila Weefur • contato contact leilaweefur@gmail.com

Noise+Thirst é uma vídeo instalação que apresenta a negritude como habitante do espaço entre barulho &
silêncio e entre sede & satisfação. A colagem sonora que a acompanha, uma gestalt da masculinidade negra,
questiona até que ponto devemos escrutinar minuciosamente nossa negritude para testemunhar um contraste
que ocorre naturalmente?
Noise+Thirst is a video installation presenting blackness as an inhabitant of the space between noise & silence
and thirst & satisfaction. The accompanying sound collage, a gestalt of black masculinity, asks how closely must
we scrutinize our blackness to bear witness to a naturally occurring contrast?

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30


40

Everybody Dies! • Todo Mundo Morre!


Estados Unidos, 2016, cor, 9’ • direção director Nuotama Frances Bodomo • fotografia cinematography Chananun
Chotrungroj • montagem editing Colin Elliott • som sound Eli Cohn • produção production Laurie Thomas, Valerie
Steinberg • contato contact moreinfo@nuotamabodomo.info

Em um programa de TV de acesso público, Ripa, a ceifadora, ensina crianças negras sobre o dia em que morrerão.
A public access tv show in which ripa the (grim) reaper teaches black kids about the day they’ll die.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30

White • Branca
Estados Unidos, 2011, cor, 16’ • direção director A. Sayeeda Moreno • fotografia cinematography Jeffrey Kim • montagem
editing Frederic Tcheng • som sound Laura Sinnot • produção production Smriti Mundhra • contato contact a.sayeeda.
moreno@gmail.com

É mais um dia de 48 graus, a cinco dias do Natal, e calor é a única estação que resta para a cidade de Nova York.
Bato e sua esposa Gina estão esperando um bebê. Embora tenham planejado ter o bebê em casa, agora Gina
necessita dos serviços de uma clínica para um parto prematuro. Sem dinheiro, Bato começa uma corrida contra
o tempo para salvar sua família.
It’s another 120-degree day with five more days to Christmas and hot is the only season left in New York City. Global
warming has become a tangible threat and everyone is creating new ways to protect themselves from the sun. Bato
and his wife Gina are expecting a baby. Although they planned to have the baby at home, Gina now requires the
services of a clinic for the premature delivery. With no money, Bato enters into a race against time to save his family.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h


41

still/here • ainda/aqui
Estados Unidos, 2001, p&b, 60’ • direção director Christopher Harris • fotografia cinematography Christopher Harris,
Joel Wanek • montagem editing Christopher Harris • som sound Christopher Harris • produção production Christopher
Harris • contato contact christopher-harris@uiowa.edu

ainda/aqui é uma meditação sobre a vasta paisagem de ruínas e lotes vagos que constitui a zona norte de St.
Louis, uma área povoada quase exclusivamente pela classe operária e por trabalhadores pobres afro-americanos.
Embora construa um registro documental de flagelo e decadência, ainda/aqui é uma recusa ao fim que reside
no espaço da ruptura e confronta a presença de uma ausência profunda. (C.H.)
still/here is a meditation on the vast landscape of ruins and vacant lots that constitute the north side of St. Louis,
an area populated almost exclusively by working class and working poor African Americans. Though it constructs
a documentary record of blight and decay, still/here is a refusal of closure that dwells within the space of rupture
and confronts the presence of a profound absence. (C.H.)

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30

Chico
Brasil, 2018, cor, 22’ • direção director Irmãos Carvalho • fotografia cinematography Gabriela Almeida • montagem
editing João Rabllo • som sound Gustavo Andrade • produção production Nasceu Na Rua Filmes • contato contact
marcosmagalhaescarvalho@hotmail.com, eduardomagalhaescarvalho@yahoo.com.br

2029. Treze anos depois de um golpe de Estado no Brasil, crianças pobres, negras e faveladas são marcadas em seu
nascimento com uma tornozeleira e têm suas vidas rastreadas por pressupor-se que elas irão, mais cedo ou mais
tarde, entrar para o crime. Chico é mais uma dessas crianças. No aniversário dele, é aprovada a lei que autoriza a
prisão desses menores. O clima de festa dará espaço a uma separação dolorosa entre Chico e sua mãe, Nazaré.
Brazil, 2029. Black and favela children are marked with an anklet at birth and have their lives monitored since it’s
assumed that sooner or later they will join crime. Chico is one of those kids. On his birthday, a law authorizing
the arrest of these minors is approved. The party mood will give way to a painful separation between Chico and
his mother, Nazaré.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h


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Apelo • Appeal
Brasil, 2014, cor, 13’ • direção director Clara Ianni, Débora Maria da Silva • fotografia cinematography Pedro Sotero •
montagem editing Onze Corujas • som sound Confraria de Sons e Charutos • produção production Massa Real • contato
contact clara.ianni@gmail.com

Apelo surge da urgência em lidar com a institucionalização da violência no Brasil – consolidada ao longo da
história do país. Filmado no Cemitério Dom Bosco na periferia de São Paulo, a obra conecta atos de violência
do presente com os do passado por meio de um discurso público de Débora Maria da Silva, que teve seu filho
assassinado em 2006, vítima das ações conduzidas por esquadrões da morte da polícia militar de São Paulo.
Appeal emerges from the urgency in dealing with the institutionalization of violence in Brazil – consolidated throu-
ghout the history of the country. Filmed in Dom Bosco Cemetery, in the outskirts of São Paulo, the film connects
violent acts of the present to the ones of the past through a public speech of Débora Maria da Silva, who had her
son murdered in 2006, victim of actions of the death squads of the military police of São Paulo.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h

Pontes Sobre Abismos • Bridges Over The Abyss


Brasil, 2017, cor, 9’ • direção director Aline Motta • fotografia cinematography Aline Motta • montagem editing Fernando
Lima • som sound Bruno Elisabetsky • produção production Aline Motta • contato contact 1alinemotta@gmail.com

Instigada pela revelação de um segredo de família, Aline partiu em uma jornada à procura de vestígios de seus
antepassados. Ela viajou para áreas rurais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Portugal e Serra Leoa, pesquisando
em arquivos públicos e privados e, ao mesmo tempo, criando uma contra-narrativa do que geralmente se conta
sobre a forma como as famílias brasileiras foram formadas com sua história violenta e as noções românticas de
sua louvada miscigenação.
Instigated by the revelation of a family secret, Aline left on a journey to look for traces of her ancestors. She
has travelled through Rio de Janeiro, Minas Gerais, Portugal and Sierra Leone researching in public and private
archives and creating a counter-narrative about what is usually told about the formation of the Brazilian families.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h


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Para Todas as Moças • For All the Ladies


Brasil, 2019, cor, 3’ • direção director Castiel Vitorino Brasileiro • montagem editing Castiel Vitorino Brasileiro • contato
contact castielvitorinob@gmail.com

Macumba de travesti, só bixa consegue desfazer. Feitiço de bixa, só travesti consegue quebrar.
Queen macumba, only queers get to undo it. Queer spell, only queens get to break it.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h

A-Gente Laranja
Brasil, 2019, cor, 2’ • direção director Denilson Baniwa • fotografia cinematography Imagens de Arquivo • montagem
editing Denilson Baniwa • contato contact denilsonbaniwa@gmail.com

No vídeo A-gente Laranja (2019), o artista propõe-se a inter-relacionar imagens de ataques químicos a popula-
ções Guarani-Kaiowá perpetrados por fazendeiros no estado do Mato do Grosso do Sul ao longo dos anos 2000,
com imagens de arquivo de aviões norte-americanos sobrevoando e lançando o herbicida Agente Laranja em
pleno período de Guerra do Vietnã, nos anos 70. O trabalho conecta arquivos e histórias que à princípio não
estariam relacionadas.
In the short film, the artist proposes the interaction between images of chemical attacks to Guarani-Kaiowa
indigenous population perpetrated by farm owners of Mato Grosso do Sul state through the 2000s, with archive
images of US choppers spraying the herbicide Agent Orange during the Vietnam War period, in the 1970s. The
work connects archive and stories that otherwise wouldn’t be connected.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 14h


44

Yvy Reñoi, Semente Da Terra • Yvy Reñoi, Seed Of The Earth


Brasil, 2017, cor, 15’ • direção director Coletiva da ASCURI • roteiro script Eliel Benites sob orientação do Aty Guasu •
fotografia cinematography Ademilson Concianza Verga, Gilmar Kiripuku Galache • contato contact ascuri.ms@gmail.com

A luta dos Kaiowa e Guarani da aldeia Teykue pela retomada do seu território tradicional é marcada por disputas
de terra. Em junho de 2016, um novo ataque financiado por ruralistas resultou em mais um indígena morto e quatro
feridos. 90 cápsulas de balas foram encontradas na retomada e inúmeras marcas de tiros. Nenhum fazendeiro
foi preso. Tudo isso acontece cinco dias após a visita do atual presidente Jair Bolsonaro (então no PSC/RJ) a
Campo Grande. Coincidência?
The struggle of the Kaiowa and Guarani, of the Teykue hamlet, for taking back their traditional territory has
many land disputes. In June, 2016, an attack financed by big farm owners resulted in one more indigenous death
and four wounded. 90 bullets jackets were found and countless shot marks. No farm owner was jailed. All this
happens five days after the now President Jair Bolsonaro (then in PSC/RJ) visit to Campo Grande. Coincidence?

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 14h

Chico Mendes: Eu Quero Viver • Chico Mendes: I Want to Live


Brasil, 1989, cor, 56’ • direção director Adrian Cowell • fotografia cinematography Vicente Rios, Auro Lu • montagem
editing Chris Christophe, Terry Twigg, Andrew Mason • som sound Vanderlei de Castro, Rafael de Carvalho, Nélio Rios •
produção production Roger James, Vicente Rios, Morrow Cater • contato contact igpa@pucgoias.edu.br

O filme mostra a trajetória de Chico Mendes, líder seringueiro no Acre, em defesa da Amazônia. Com registros
feitos entre 1985 e 1988, acompanhamos Chico Mendes na organização dos seringueiros em defesa da floresta,
no nascimento da Aliança dos Povos da Floresta, e na luta pela demarcação das primeiras reservas extrativistas
na Amazônia. O filme mostra, ainda, a trama armada para seu assassinato e as repercussões no Brasil e no mundo.
The film presents the path of Chico Mendes, a rubber tapper leader form Acre, defending the Amazon. Shot
between 1985 and 1988, it shows Chico Mendes organizing the rubber tappers to defend the forest, the birth of
Aliança dos Povos da Floresta (Forest People’s Alliance), and the struggle for the demarcation of extractive reserves
in the Amazon. The film also presents the plot made to murder him and the repercussion in Brazil and the world.

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 17h *Sessão comentada por Ruben Caixeta de Queiroz
45

Tatakox – Aldeia Vila Nova • Tatakox – Vila Nova Village


Brasil, 2009, cor, 22’ • direção director Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho • fotografia cinematography
João Duro Maxakali • montagem editing João Duro Maxakali • som sound João Duro Maxakali • produção production
Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho • contato contact rtugny@gmail.com

Quando as mulheres sentem saudade das suas crianças que morreram pequenas, os Tatakox vão buscá-las e
trazem-nas às aldeias para que as mães as vejam. Com a filmadora nós pudemos ver de onde é que os Tatakox
tiram as crianças. Depois, no mesmo dia, os meninos vivos da aldeia são levados de suas mães pelos espíritos
para ficar na casa dos homens e aprender.
When women miss their children who died small, the Tatakox fetch them so their mothers can see them in their
hamlet. With the camera we are able to see from where the Tatakox bring the kids. Then, on the same day, the
living boys are taken by the spirits from their mothers to stay in the house of men to learn.

Cine Humberto Mauro, 23 nov, 17h *Sessão comentada por Sueli e Isael Maxakali e Charles Bicalho

Mãtãnãg, a Encantada • Mãtãnãg, the Enchanted


Brasil, 2019, cor, 15’ • direção director Shawara Maxakali, Charles Bicalho • fotografia cinematography Jackson Abacatu •
montagem editing Charles Bicalho, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho • som sound Guilherme Bahia • produção
production Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho • contato contact charlesbicalho@gmail.com

Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por
uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno
do mundo espiritual. Falado em língua Maxakali e legendado em português, o curta se baseia em uma história
tradicional do povo indígena Maxakali.
Mãtãnãg, the Enchanted follows the path of the indigenous Mãtãnãg, who is following the spirit of her dead
husband, killed by a poisonous snake’s bite, to the hamlet of the dead. Together they overcome the obstacles
that separate the living world from the dead world. The short film, spoken in Maxakali, is based on a traditional
story of the Maxakali indigenous people.

Cine Humberto Mauro, 23 nov, 17h *Sessão comentada por Sueli e Isael Maxakali e Charles Bicalho
46

Uaká
Brasil, 1988, cor, 90’ • direção director Paula Gaitán • fotografia cinematography Jonnhy Howard • montagem editing
Aida Marquez • som sound Alberto Camuirano • produção production Tarcísio Vidigal, Hilton Kauffmann • contato
contact paulagaitan@gmail.com

Os gestos dos índios Kamayurá, suas vozes, seus adornos corporais e a natureza exuberante do Xingu neste que
é um filme-poema ao redor da preparação do ritual do Kuarup.
The gestures of the indigenous Kamayurá, their voices, their body adornments and the exuberant nature of Xingu
are in this film, which is a poem-film on the preparation of the Kuarup ritual.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 15h

Good-Bye Old Man • Adeus Meu Velho


Austrália, 1977, cor, 66’ • direção director David MacDougall • fotografia cinematography David MacDougall • montagem
editing David MacDougall • som sound Bryan Butler • produção production AIAS Film Unit (Australian Institute of
Aboriginal Studies, Canberra) • contato contact collectionenquiry@aiatsis.gov.au

O último pedido de um homem Tiwi, da Ilha Melville, foi que fizessem um filme sobre a cerimônia de pukumani
(luto) de sua morte. O filme acompanha sua família, desde os dias de preparação até a partida final do velho
homem. O filme conta com a narração de Thomas Woody Minipini, um dos participantes.
A last request of a Tiwi man on Melville Island was that a film be made of the pukumani (bereavment) ceremony
to follow his death. The film follows his family, from the days of preparation to their final leave-taking of the old
man. Commentary by Thomas Woody Minipini, one of the participants.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 18h30 * Sessão comentada por Renato Sztutman
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Wutharr, Saltwater Dreams • Wutharr, Sonhos De Água Salgada


Austrália, 2016, cor, 29’ • direção director Karrabing Film Collective • fotografia cinematography Natasha Lewis •
montagem editing Elizabeth A. Povinelli • som sound Leandros Ntounis • produção production Karrabing Indigenous
Corporation • contato contact karrabingkarrakul@gmail.com

Através de uma série de flashbacks cada vez mais surreais, uma família indígena discute o que pode ter causado
o problema no motor de seu barco que os deixou encalhados no mato. Enquanto especulam os papéis que os
ancestrais, o Estado regulador e a fé cristã exerceram sobre o incidente, Wutharr, Sonhos de Água Salgada explora
as múltiplas demandas e os incontornáveis vórtices da vida indígena contemporânea.
Across a series of increasingly surreal flashbacks, an extended indigenous family argues about what caused their
boat’s motor to break down and leave them stranded out bush. As they consider the roles played in the incident
by the ancestral present, the regulatory state and the Christian faith, Wutharr, Saltwater Dreams explores the
multiple demands and inescapable vortexes of contemporary indigenous life.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 18h30 * Sessão apresentada por Renato Sztutman

Sigui Synthèse (1967 - 1973) - L’ Invention de la Parole et de la mort


Sigui Síntese (1967 - 1973) - A invenção da palavra e da morte
Mali/ França, 1981, cor, 120’ • direção director Jean Rouch, Germaine Dieterlen • fotografia cinematography Jean Rouch •
montagem editing Danielle Teissier • som sound Gilbert Rouget, Moussa Hamifou, Guindo Ibrahim • contato contact
www.comitedufilmethnographique.com/contact/

Ensaio de síntese da série dos sete filmes de Rouch (1967-1974) sobre as complexas cerimônias do Sigui, que os
Dogon do Mali organizam a cada 60 anos para celebrar e reviver a invenção do mundo, a doação da linguagem
aos homens e a morte de seus ancestrais.
The film is a synthesis essay of the seven films by Rouch (1967-1974) on the complex Sigui ceremonies that the
Dogon, of Mali, organize every 60 years to celebrate and revive the invention of the world, the donation of language
to humankind and the death of their ancestors.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 21h * Sessão comentada por Júnia Torres
mostra
contemporânea brasileira
brazilian contemporary showcase
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Mostra
Contemporânea Brasileira
Carla Italiano
Daniel Ribeiro Duarte
Ewerton Belico
Layla Braz

É grave o momento que vivemos, como são graves os ataques à cultura e à educação que
continuamente se sucedem. Neste contexto difícil, com restrições cada vez maiores ao
campo da cultura – que limitam não apenas a produção cinematográfica, mas a realização
de inúmeros festivais e mostras – a equipe do forumdoc.bh resiste e realiza, em 2019, a
sua 23ª edição. Fomos obrigados, entretanto, a lidar com cortes orçamentários severos,
o que levou a mudanças consideráveis na estrutura da programação, como, por exemplo,
o cancelamento da Mostra Contemporânea Internacional a fim de priorizar a produção
nacional. E mais: pelas dificuldades de logística e produção que um extenso número de
filmes inscritos acarretaria, tivemos que mudar o método de trabalho, organizando esta
Mostra Contemporânea Brasileira não mais por meio de inscrições, mas por convites
realizados pela comissão de organização do festival. Torcendo para que essa decisão
seja uma excepcionalidade, esperamos que nas próximas edições o forumdoc.bh possa
retornar com a abertura de inscrições, que, sabemos, é etapa fundamental para a neces-
sária pluralidade dos filmes exibidos. E que todos os festivais brasileiros que tiveram
suas atividades descontinuadas possam ser retomados em breve.
Embora tal processo tenha acarretado em um número menor de obras assistidas,
procuramos fugir de um conjunto óbvio de filmes e ampliar o escopo da pesquisa, atin-
gindo produções de variados formatos, regiões do país, temas e modos de realização.
Os critérios elementares dos nossos debates deram continuidade ao que têm norteado
as seleções de anos anteriores, sendo também atravessados por fatores contingenciais,
como a diminuição das oportunidades de circulação da produção brasileira de olhar
marcadamente documental (com a ausência de festivais de fôlego, como o Cachoei-
raDoc, no Recôncavo Baiano). Isso levou à preferência, de nossa parte, por filmes que
não tiveram lançamento nas salas de Belo Horizonte, ou que eram inéditos em âmbito
nacional. Nossas diretrizes também buscaram responder (ou melhor, escutar) aos ques-
tionamentos e demandas lançados pelo debate público dos últimos anos acerca dos
critérios de valoração do cinema – ou da arte - no cenário contemporâneo, especialmente
no que concerne às questões interligadas de representação e representatividade. Assim,
52

esta programação foi motivada por pontos como: a permeabilidade entre a forma do
filme e a realidade das pessoas filmadas; a densidade das relações que se estabelecem
por meio do fazer cinematográfico, sobretudo quando há uma dimensão de inscrição
de si aliada a uma afirmação comunitária em jogo; a busca por certa originalidade na
abordagem proposta; o investimento em temáticas e situações urgentes no atual contexto;
e a consciência dos riscos implicados nessas escolhas.
Os onze programas que compõem a Mostra Contemporânea Brasileira deste ano
possibilitam apontar algumas linhas de força que nos parecem significativas. A primeira
dessas linhas diz respeito a uma escrita de si fílmica, que passa pela elaboração de um
estar no mundo enquanto mulher negra, elaboração que se dá, sobretudo, na relação com
outras mulheres de diferentes gerações. É o caso, por exemplo, de três filmes criados
por jovens realizadoras: os curtas Bup e Motriz, assim como o longa Casa. Já a segunda
linha de força tem como foco os corpos em performance atravessados por uma dimensão
de performatividade de gênero. Isso ocorre em meio a um potente universo LGBTQI+,
especificamente trans, que implode a rigidez das normatividades e suas várias fobias,
escancarando, assim, o caráter eternamente mutável da constituição de sujeito e de
subjetividade. Isso fica evidente na intersecção entre artes visuais e etnografia proposta
pelo curta Swinguerra; ou ainda nos “corpos sem juízo” de Bixa Travesty (como na música
da personagem Jup do Bairro), longa com roteiro e presença de Linn da Quebrada. Outra
frente importante da mostra está no olhar sensível lançado às manifestações culturais de
povos originários, especialmente em suas dimensões ritualísticas, em filmes de autoria
indígena que imbricam o ponto de vista fílmico à perspectiva das comunidades. Isso é
notável no registro dos cantos e dos saberes de caça que inscrevem a história coletiva
de um povo, como em Ma’e Mimiu Haw – A História dos cantos, da etnia Guajajara; nos
curtas Kapuakit Nëtë – Dia de caçada e Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Meninos soprando
cana fina, ambos com realização coletiva Matis; ou na profundidade e beleza da relação
entre vivos e mortos no filme Guarani O Último Sonho.
Outra frente diz respeito à juventude enquanto sensibilidade para as forças em
atuação no presente, assim como abertura de caminhos para mudanças futuras. Essa
perspectiva é modular: está no relato da violência policial sofrida por adolescentes, com
as suas distintas formas de resposta através das imagens, presente tanto em Entre-Vistas,
fruto de oficinas realizadas em escola de Ouro Preto, quanto em Sete anos em maio,
protagonizado por Rafael ‘Fael’ dos Santos. Tal perspectiva também está na lida com o
racismo estrutural que cruza o dia-a-dia de três jovens negros na maior universidade
da capital paulista, no curta Quantos eram pra tá?; ou em Um filme de verão, cuja força
motriz vem da pulsação própria à passagem para a vida adulta, possibilitando entrever,
em situações cotidianas, as contradições de um país em plena crise. Tal dimensão é
marcante, ainda, na eleição para o grêmio secundarista retratada em Eleições, que é
capaz de reverberar toda a complexidade da ambivalente “crença e descrença” do/as
brasileiro/as em relação à política partidária.
Duas outras linhas de força da mostra se caracterizam pela primazia de suas cons-
truções formais. A primeira investe na montagem como um gesto que se auto-afirma,
ou como um gesto de re-elaboração da História, com o entendimento que essa história
53

também se escreve pelo cinema. Em Sem título #5: a rotina terá seu enquanto, é colocado
em curso mais um capítulo da série “Cine (Auto)Biografia em Regresso”, ao mergulhar
nas imagens do derradeiro filme de Yasujiro Ozu, de modo a entrelaçar vida e arte,
reflexão existencial, nostalgia e amor. Por sua vez, em Tudo que é apertado rasga, são
as atrizes e os atores negros que atravessaram a história do cinema brasileiro de modo
enviesado, submetida/os a diferentes estereótipos racistas, que agora ganham prota-
gonismo, criando “rasgos” que reinstauram a potência de seus corpos no interior dos
arquivos mobilizados pela montagem. Já a segunda dessas frentes formais aposta em um
hibridismo que costura intimamente ficção e documentário. Tal aposta está em Enquantos
estamos aqui, com seu investimento em um improvável encontro entre imigrantes que
emerge dos sons e imagens de procedência documental, evidenciado um amor tornado
(provisoriamente) possível apenas através do cinema. Em uma chave bastante distinta, A
rosa azul de Novalis cria uma espécie de autobiografia ficcional aos moldes de narrativa
memorialística, constantemente questionando a veracidade de seu relato, e convocando,
assim, a/o espectador/a a um engajamento tão inquieto quanto instigante.
Por fim, a última frente da mostra é marcada pela defesa de diferentes territórios
atrelada a lutas cotidianas pelo direito de existir. Ela se faz presente em Zawxiperkwer
Kaa – Guardiões da floresta, com a vigília do povo Guajajara nas fronteiras de sua terra
indígena sob constante ameaça; em Virou Brasil, na difícil relação dos Awá-Guajá com
as forças destrutivas do agronegócio e da mineração, numa dimensão de resistência
que convive lado a lado com a potência dos seus rituais, cantos e conhecimentos. E em
Chão, que mostra em cinema “direto” a resiliência, aliada à potência do trabalho coletivo
e comunitário, de integrantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra no interior
de Goiás, em meio a um contexto nacional de crescente criminalização dos movimento
sociais e de suas lideranças.
Os critérios descritos acima não foram absolutos, é claro. São nossa tentativa de
responder ao caminho cada vez mais vertiginoso que se tem tomado em direção à
destruição da cultura e dos saberes tradicionais no país, de perseguição dos corpos
e modos de vida. Para mais, a seleção seguiu as questões objetivas e subjetivas dos
debates, nos quais o encontro de olhares e argumentos reúne o múltiplo ao imponderável.
Certamente, as linhas de força acima podem ser reconfiguradas de diversas maneiras,
como um quebra-cabeça que se desmonta a cada novo visionamento, ou a cada novo
agrupamento de imagens e temas. No entanto, para além dos filmes aqui citados, acre-
ditamos que tais frentes extrapolam o contexto desta mostra e se reverberam no cinema
documental brasileiro dos últimos anos, dizendo respeito a muitos outros títulos que
não couberam no escopo deste festival.
Na seção Ensaios e entrevistas deste catálogo, da página 154 a 220, um conjunto de
textos inéditos escritos por autoras e autores convidados busca prolongar esse debate
em torno dos atravessamentos que os filmes da Mostra Contemporânea Brasileira nos
propuseram.
55

Brazilian Contemporary
Showcase
Carla Italiano
Daniel Ribeiro Duarte
Ewerton Belico
Layla Braz
Translation: Henrique Cosenza

The times in which we are living are grave, and so are the attacks on culture and education
that occur continuously in Brazil. In this difficult context, with increasing restrictions on
the field of culture – limiting not only the cinema production, but also film festivals and
showcases – forumdoc.bh’s team resists and, in 2019, organizes its 23rd edition. We
were forced, however, to deal with severe budget cuts, leading to considerable changes
in the structure of the program, such as the canceling of the International Contemporary
Showcase to prioritize national production. And more: due to logistic and production
difficulties that a great number of film submissions entail, we had to change our working
method, no longer calling for entries for the Brazilian Contemporary Showcase, but by
the festival’s organizing committee making invitations to filmmakers. Hoping this decision
to be an exception, we expect that in further forumdoc.bh editions we can come back
with the public submissions, since we recognize this to be a fundamental step toward a
necessary plurality of films. And we also hope that all Brazilian film festivals which had
their activities discontinued will be able to come back soon.
Although this process has entailed that fewer films were watched, we tried to avoid
an obvious collection of films and to broaden the scope of research, reaching several
production formats, regions of the country, themes, and making processes. The elemen-
tary criteria of our debates is contiguous to what has been the north of previous selec-
tions, although being also trespassed by circumstantial factors, such as the decrease of
opportunities of circulation of the Brazilian film production with a documentary approach
(due to the absence of important festivals such as CachoeiraDoc, in Bahia). This led us
to prefer films that were not released in Belo Horizonte or that were unreleased nation-
wide. Our guidelines also tried to respond (or listen) to the questionings and demands
brought by the public debate in the last years concerning the criteria in the appraisal of
cinema – or of art – in contemporary setting, specially the issues related to representation
and representativeness. Thus, this program was motivated by things such: the perme-
ability of the film’s form and the reality of the people filmed; the density of the relations
56

established through the cinematographic making, especially when there is one self’s
inscription together with a communitarian assertion at stake; the search of originality in
the proposed approach; the investment on urgent themes and situations in the current
context; and the consciousness of the risks of those choices.
The eleven programs that make up the Brazilian Contemporary Showcase of 2019
make it possible to point at a few guiding lines that seem meaningful to us. The first of
these lines concerns the filmic inscription of oneself, which goes through the elaboration
of being in the world as a black woman, an elaboration that happens, above all, in the
relation with other women of different generations. That is the case of, for example, three
films by young women filmmakers: the short-films Bup and Motriz, as well as the feature
film Home (Casa). The second guideline has as its focus bodies in performance trespassed
by a gender performativity dimension. This occurs amongst a powerful LGBTQI+ universe,
especially Trans, which implodes the normative stiffness and its various phobias, thus
revealing the ever-changing nature of the constitution of subject and subjectivity. This
becomes evident in the intersection between visual arts and ethnography proposed by
the short-film Swinguerra; or in the “bodies with no judgement” (like in the song of the
character Jup do Bairro) of Tranny fag (Bixa Travesty), a feature film with the script and
presence of singer Linn da Quebrada. Another important section of the showcase is in
the sensitive look at native people’s cultural manifestations, especially in their ritualistic
dimensions, in films of indigenous authorship which overlap the filmic point of view and
the community perspectives. This can be observed in the recording of chants and hunting
knowledge that inscribe the collective history of a people, like in Ma’e Mimiu Haw – The
history of chants (A história dos cantos), from the Guajajara people; in the short-films
Kapuakit Nëtë – Hunting day (Dia de caçada) and Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Kids
blowing thin reed (Meninos soprando cana fina), both made collectively by the Matis
people; or in the depth and beauty of the relation among the living and the dead in the
Guarani film The last dream (O último sonho).
Another section deals with youth as being the sensitivity for the forces acting in the
present, as well as openness to future changes. This perspective is a modular one: it is
on the report of police violence on adolescents, with their distinct ways of responding
through images, which are present both in Inter-views/Between Views (Entre-vistas),
an offspring of workshops held in a state school of Ouro Preto city, and in Seven years
in May (Sete anos em maio), starred by Rafael ‘Fael’ do Santos. It is in the dealing with
structural racism that crosses the everyday lives of three young black people in the
largest university in São Paulo, in the short-film How many should there be? (Quantos
eram pra tá?); or in Sun inside (Um filme de verão) , which the driving force comes from
the characteristic pulsation of becoming an adult, allowing us to detect, in ordinary
situations, the contradictions of a country in the middle of a crisis. This perspective is
striking also in the election of a student body pictured in Elections (Eleições), which can
reverberate all the complexity of the ambivalent “belief and disbelief” of the Brazilians
in political parties and their politics.
Two other guiding lines of the showcase are characterized by their primacy in formal
constructions. The first is focused in the editing as a gesture that is self-affirming or as a
57

gesture of reworking history, understanding that this history is also written by cinema. In
Untitled #5: a tune of none at noon (Sem título #5: a rotina terá seu enquanto), another
chapter of the series “Cine (Auto)Biografia em Regresso” is put forward by the immer-
sion in the images of the last of Yasujiro Ozu’s film, intertwining life and art, existential
reflection, nostalgia and love. On the other hand, in Pressed, Riped apart (Tudo que é
apertado rasga), it is the Black actresses and actors that have been subordinated to racist
stereotypes through the history of Brazilian cinema that now become protagonists, making
“rips” that reestablish the power of their bodies in the archive mobilized in the editing. The
second one invests on a hybridism which closely intertwines fiction and documentary
film. It can be seen in While we are here (Enquanto estamos aqui), proposing an unlikely
meeting among two immigrants emerging from sounds and images of documentary origin,
presenting a love made (temporarily) possible only through cinema. In a completely
different fashion, The blue flower of Novalis (A rosa azul de Novalis) creates a kind of
fictional autobiography made in a memoir manner, constantly questioning the truth of
its narrative, and thus calling the viewer in a both intriguing and restless engagement.
At last, the final guideline of the showcase is marked by the defense of different
territories linked to everyday struggle for the right to exist. It is evident in Zawxiperkwer
Kaa – Guardians of the forest (Guardiões da floresta), showing the Guajajara vigil on the
borders of their land under sustained threat; in It became Brazil (Virou Brasil) presenting
the difficult relations of the Awá-Guajá people with the destroying forces of the agribusi-
ness and mining, in a resistance which coexists with the potency of their rituals, chants
and knowledge. And in Landless (Chão), which presents through direct cinema the
resilience, together with the power of collective and communitarian work, of members
of the Landless Workers Movement (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) in Goiás
countryside, in a national context of growing criminalization of social movements and
their leaders.
The criteria described above were not absolute, of course. They are our attempt to
respond to the increasingly vertiginous path that has been taken on the way to destroy
culture and traditional knowledge in the country, a path of persecution of bodies and ways
of life. Moreover, the selection followed the objective and subjective questions brought
up in the debates, in which the exchange of points of view and arguments gathered the
multiple to the imponderable. Certainly, the guiding lines here presented can be recon-
figured in several ways, like in a jigsaw puzzle that is dismantled under every new look,
or after a new grouping of images and themes. However, in addition to the films cited
here, we believe that those guidelines go beyond this showcase’s context and reverb in
Brazilian documentary cinema of the last years, referring to many other titles that did
not fit the scope of this festival.
59

A Rosa Azul de Novalis • The Blue Flower of Novalis


São Paulo, 2019, cor, 70’ • direção director Gustavo Vinagre, Rodrigo Carneiro • fotografia cinematography Bruno Risas •
montagem editing Rodrigo Carneiro • som sound Ruben Valdés • produção production Rodrigo Carneiro, Gustavo
Vinagre • contato contact rodrigocarneirocine@gmail.com

Marcelo, 40 anos, possui uma memória inigualável. Revive lembranças familiares em sua cabeça e tem recor-
dações de suas vidas passadas. Em uma delas, foi Novalis, poeta alemão que perseguia uma rosa azul. E nessa
vida atual, o que Marcelo persegue?
40-year-old Marcelo possesses an unparalleled memory. He relives familiar memories in his head and recollects
his past lives. In one of them he was Novalis, German poet, chasing a blue rose. And in this current life, what
does Marcelo pursue?

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h

Bakuëbom Bompisën Tëkikbo - Meninos Soprando Cana Fina


Bakuëbom Bompisën Tëkikbo - Kids Blowing Thin Reed
Amazonas (Ti Vale Do Javari), 2018, cor, 13’ • direção director Damë Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis, Damë, Kaxë
Mentuk, Shapu Sibo, Dani, Damba Matis, Chawa Atsa, Tumi Rieli • fotografia e som cinematography and sound Damë Bëtxun
Matis • produção production CTI (Centro De Trabalho Indigenista) • contato contact manuella@trabalhoindigenista.org.br

Resultado de oficina realizada pelo CTI sobre as tecnologias tradicionais de caça nas aldeias Matis Bukuwak,
Tawaya e Kudaya, na TI Vale do Javari/AM. O curta registra os meninos da aldeia imitando os adultos caçando
com zarabatanas.
A result of a workshop held by the CTI about traditional hunting technologies in the Matis villages Bukuwak,
Tawaya and Kudaya, in the Indigenous land of Vale do Javarí/AM.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural


Cine Humberto Mauro, 27 nov, 10h • Sessão BDMG Cultural Jovem*
* para alunos do programa Jovem Aprendiz do CEDUC Virgílio Resi
• SESSÃO BDMG CULTURAL •
60

Bixa Travesty • Tranny Fag


São Paulo, 2018, cor, 75’ • direção director Claudia Priscilla, Kiko Goifman • fotografia cinematography Karla da Costa •
montagem editing Olivia Brenga • som sound Confraria de Sons & Charutos • roteiro script Claudia Priscilla, Linn da
Quebrada, Kiko Goifman • produção production Evelyn Mab • contato contact producoesvalvula@gmail.com

Documentário de longa-metragem com a cantora transexual brasileira Linn da Quebrada. Grande expoente na
cena musical de São Paulo, dona de uma forte e ousada presença no palco, busca constantemente discutir e
quebrar paradigmas e estereótipos.
Feature documentary with Brazilian transsexual singer Linn da Quebrada. Major exponent of São Paulo’s musical
scene, holder of a strong and bold presence on stage, she constantly seeks to discuss and break paradigms and
stereotypes.

Cine Humberto Mauro, 24 nov, 21h

Bup
Pernambuco, 2018, cor, 7’ • direção director Dandara de Morais • fotografia cinematography Dandara de Morais •
montagem editing Dandara de Morais • som sound Dandara de Morais • produção production Dandara de Morais •
contato contact dandarademorais@gmail.com

Um tributo ao silêncio. Olá, ansiedade!


Bup é a ausência do silêncio. Uma tragicomédia em ritmo frenético sobre a presença da angústia, incômoda
insegurança e constante inquietude. Que pena que saí do útero.
A tribute to silence. Hello anxiety!
Bup is the absence of silence. A tragicomedy at a frenetic pace about the presence of anguish, uncomfortable
insecurity and constant restlessness. Too bad I have left the womb.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h


61

Casa • Home
Pernambuco, 2019, cor, 93’ • direção director Letícia Simões • fotografia cinematography Breno César, Letícia Simões •
montagem editing Eduardo Chatagnier • som sound Nicolau Domingues • produção production Carnaval Filmes • contato
contact prod.executiva@carnavalfilmes.com.br

Letícia, a filha recém-separada, se culpa por ter se distanciado da mãe em dez anos longe de casa; Heliana, a
mãe, está encarando uma séria crise depressiva que começou depois da decisão de colocar a sua mãe, Carmelita,
num asilo de idosos. Na construção dos espaços de afeto entre essas mulheres, Casa questiona o que é sanidade,
o que é memória, o que é o feminino, o que é a solidão, o que é família, o que é casa.
Letícia, the daughter who recently got divorced, blames herself for being distant from her mother after ten years
away from home; Heliana, the mother, is facing a serious depressive crisis which started after putting her own
mother, Carmelita, in a nursing home. In the process of building affection spaces among these women, Home
questions what is sanity, memory, feminine, loneliness, family, and what home is.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 16h30

Chão • Landless
Distrito Federal, 2019, cor, 110’ • direção director Camila Freitas • fotografia cinematography Camila Freitas, Cris Lyra,
Carol Matias • montagem editing Marina Meliande, Fred Benevides • som sound Camila Machado, Olivia Hernandez
Fernandez • produção production Leonardo Feliciano, Camila Machado, Francisco Craesmeyer, Douglas Duarte • contato
contact camilasfreitas@gmail.com

Junto ao Movimento Sem Terra, Chão vivencia a ocupação das terras de uma usina de cana-de-açúcar em processo
de falência. Apesar da estagnação jurídica e da aridez do agronegócio no sul de Goiás, os mais de 600 acampados
regam diariamente a utopia de um lugar por vir, em um futuro projetado no horizonte ainda intocável da reforma agrária.
Following the Landless Workers’ Movement, one of the longest-running Brazilian social movements, Ground
registers the squatting of lands of a sugarcane plant that has filed for bankruptcy. Despite the legal stagnation
and the scarcity of agribusiness in the south of Goiás, where more than 600 people daily foster the utopia of a
place to come, in a future projected on the still intact horizon of land reform.

Cine Humberto Mauro, 23 nov, 19h


62

Eleições • Elections
São Paulo, 2018, cor, 100’ • direção director Alice Riff • fotografia cinematography Vinicius Berger • montagem editing
Yuri Amaral • som sound Marina Bruno • produção production Heverton Lima • contato contact aliceriff@gmail.com

É época de eleições para o grêmio estudantil. Secundaristas se organizam para a corrida eleitoral. Quatro grupos
de estudantes criam propostas, debatem estratégias de campanha e lutam por melhorias na escola. Os conflitos
e tensões entre as chapas revelam suas diferenças políticas, e a contundência da realidade cotidiana convive com
a resistência do sonho, da amizade e do direito de criar caminhos para o mundo em que se acredita.
It’s election time for the student’s union. High schoolers organize themselves for the election race. Four groups
of students, with different opinions and worldviews, create propositions, debate campaign strategies and strive
for improvements in their school. Conflicts and tensions among the groups reveal their political discrepancies,
and the forcefulness of everyday reality coexists with the resistance of dreams, friendship and the right to build
ways for the world they believe in.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 19h

Enquanto estamos aqui • While we are here


Minas Gerais, 2019, cor, 77’ • direção director Clarissa Campolina, Luiz Pretti • fotografia cinematography Clarissa
Campolina, Luiz Pretti, Rodrigo Fischer • montagem editing Clarissa Campolina, Luiz Pretti • som sound Pedro Durães,
Luiz Pretti • produção production Luana Melgaço • contato contact luana@anavilhana.art.br

Lamis e Wilson são imigrantes em Nova Iorque. Ela, uma libanesa que acaba de chegar e ele, um brasileiro que
mora ilegalmente na cidade há 10 anos. Uma narrativa híbrida construída com uma abordagem poética; um
diário de viagem que se torna uma crônica e nos leva para a essência da micropolítica humana em tempos de
globalização: um reino incerto de desejos, esperança e medo.
Lamis and Wilson are immigrants in New York. She is a newly arrived Lebanese, and he is a Brazilian who has
lived illegally in the city for 10 years. A hybrid narrative built with a poetic approach; a travel journal that becomes
a chronicle and takes us to the essence of human micropolitics in times of globalization: an uncertain reign of
desires, hope and fear.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 21h *Sessão comentada pelos diretores e equipe
63

Entre_vistas • Interviews/Between Views


Minas Gerais, 2018, cor, 5’ • direção director Coletivo Olhares (Im)Possíveis • fotografia e som cinematography and
sound Pedro Henrique Nunes (Batata), Henrique Julio (Dollynho), Luiz Antônio Santana Junior, Bruno Fernando Ferreira,
Hudson Monteiro Sales, Junio Gomes, Wendel Valeriano, Rafael Santos Araújo, Hudson Apolinário • montagem editing
Henrique Julio (Dollynho), Luiz Antônio Santana, Hudson Monteiro Sales, Arthur Medrado • produção production Arthur
Medrado, Olga Ferreira • contato contact arthurmedrado@gmail.com

Realizado por estudantes da Escola Estadual de Ouro Preto, este documentário experimental partiu de entrevistas e
dispositivos utilizados durante as oficinas Olhares (Im)Possíveis. Tendo como prática as metodologias do “Inventar
com a diferença” e da “The Black School”, o filme mostra as vivências da juventude negra do Bairro Pocinho.
Experimental documentary made by students of the Ouro Preto State School. Through the experimentation with
methodologies from the “Inventing with difference” and “The Black School” projects, the film derives from devices
used during the (Im)Possible Gazes workshops to show the experiences of the black youth of Pocinho neighborhood.

Cine Humberto Mauro, 28 nov, 16h30

Kapuakit Nëtë – Dia de Caçada • Kapuakit Nëtë – Hunting Day


Amazonas (TI Vale Do Javari), 2018, cor, 18’ • direção, fotografia e som directors, cinematography and sound Damë
Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis, Damë Matis, Kaxë Mentuk Matis, Shapu Sibo Matis, Dani Matis, Damba Matis, Chawa
Atsa Matis, Tumi Rieli Matis • montagem editing Damë Bëtxun Matis, Damba Matis, Shapu Sibo Matis, Tumi Rieli Matis •
produção production Centro de Trabalho Indigenista (CTI) • contato contact manuella@trabalhoindigenista.org.br

Resultado de oficina audiovisual do Centro de Trabalho Indigenista sobre as tecnologias tradicionais de caça
nas aldeias Matis da Terra Indígena Vale do Javari/AM. Nos conta um dia de caçada de macaco barrigudo com
“Tëdinte” (zarabatana) e “Pësho” (veneno).
This film results from an audiovisual workshop conducted by the Indigenous Work Center about traditional hun-
ting technologies in the Matis villages, located in the indigenous territory of Vale do Javari, in Amazonas state.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural


Cine Humberto Mauro, 27 nov, 10h • Sessão BDMG Cultural Jovem*
*  para alunos do programa Jovem Aprendiz do CEDUC Virgílio Resi
• SESSÃO BDMG CULTURAL •
64

Ma’e Mimiu Haw – A História Dos Cantos


Ma’e Mimiu Haw – The History Of Chants
Maranhão, 2019, cor, 27’ • direção director Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara, Lemilda
Guajajara • fotografia e som cinematography and sound Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara,
Lemilda Guajajara, Jocy Guajajara, Milson Guajajara • montagem editing Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda
Guajajara, Luisa Lanna, Joelton Ivson • produção production Ana Carvalho, Vincent Carelli • contato contact olinda@
videonasaldeias.org.br

O cantor Tachico Guajajara compartilha a história de como o seu povo aprendeu os cantos sagrados que regem
seus rituais e festas.
Chanter Tachico Guajajara shares the story of how his people learned the sacred chants that conduct their rituals
and festivities

Cine Humberto Mauro, 29 nov, 19h

Motriz
Bahia, 2018, cor, 15’ • direção director Tais Amordivino • fotografia cinematography Tais Amordivino • montagem
editing Tais Amordivino • finalização post-production Daiane Rosario, Julia Morais • som sound design Piratas, F&M •
trilha sonora soundtrack Matheus Aragão, Felipe Aragão • produção production Tais Amordivino • contato contact
contatotaisamordivino@gmail.com

Apesar dos olhos d’água, Bete carrega consigo um sorriso largo que entrelaça a dor, o afeto e a saudade das filhas.
Despite her watery eyes, Bete displays a wide smile that intertwines pain, affection and longing for her daughters.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 16h30


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O Último Sonho • The Last Dream


Rio de Janeiro, 2019, cor, 60’ • direção director Alberto Alvares • fotografia cinematography Alberto Alvares, Guilherme
Cury • montagem editing Alberto Alvares • som sound Jessica Dionisio • produção production Aldeia Sapukai • contato
contact albertotuparay@yahoo.com.br

O documentário de longa metragem O Último Sonho homenageia o grande líder espiritual Guarani, Wera Mirim –
João da Silva da aldeia Sapukai/Angra dos Reis – RJ, que teve o seu passamento em 2016. Ele sempre ouvia e
seguia a orientação de Nhanderu para guiar o seu povo na caminhada no território através da sabedoria e do
seu sonho e de suas belas palavras.
The feature documentary honors the great Guarani spiritual leader Wera Mirim – João da Silva – from the indi-
genous village of Sapukai/Angra dos Reis, in Rio de Janeiro state – who passed away in 2016. He always listened
and followed the guidance of Nhanderu to lead his people on the territory through wisdom, his dreams and the
beauty of his words.

Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural *comentada pelo diretor e equipe
• SESSÃO BDMG CULTURAL •

Quantos Eram Pra Tá • How Many Should There Be?


São Paulo, 2018, cor, 30’ • direção director Vinícius Silva • fotografia cinematography Caio Mazzilli • montagem
editing Jacqueline Almeida, Vinícius Silva • som sound Ariel Henrique • produção production Studio l • contato contact
viniciusausub@gmail.com

Acompanhamos o cotidiano de três jovens estudantes da Universidade de São Paulo. Eles simbolizam uma primeira
geração de estudantes negros que, graças à nova política educacional do governo, podem frequentar as melhores
universidades públicas do país - lugares tradicionalmente reservados para uma elite branca.
We follow the daily lives of three young students at the University of São Paulo. They symbolise a first genera-
tion of black students that, thanks to the government’s new education policy, are able to attend the best public
universities in the country – places traditionally reserved for a white elite.

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 19h


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Sem Título # 5 : A Rotina Terá seu Enquanto


Untitled # 5: A Tune of None at Noon
São Paulo, 2019, cor, 10’ • direção e fotografia director and cinematography Carlos Adriano • montagem editing Carlos
Adriano • som sound Carlos Adriano • produção production Carlos Adriano • contato contact adriano.carlos.ca@gmail.com

Um kino haikai de found footage. Cinepoema de reapropriação composto de elementos ressignificados do último
filme de Yasujiro Ozu (1903-1963) – A Rotina tem seu Encanto (Sanma no Aji; 1962) –, de sua filmagem e de filmagens
rodadas em 2018 durante uma viagem de trem entre Ouro Preto e Mariana e durante um sol nascente em Salvador.
This found footage film haiku poem – whose title plays with the words “Encanto” (charm) and “Enquanto” (meanwhile) –
places the wizard of Ozu’s film testament (An Autumn Afternoon) in Brazilian 2018 footage (a train trip from Ouro
Preto to Mariana and a sunrise in Salvador, Bahia).

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 21h

Sete Anos em Maio • Seven Years in May


Minas Gerais, Brasil/Argentina, 2019, 42’ • direção director Affonso Uchôa • fotografia cinematography Lucas Barbi,
Rodrigo Beetz • montagem editing João Dumans • som sound Marcela Santos, Bruno Vasconcelos • produção production
Camila Bahia, Vasto Mundo, Un Puma • contato contact camilacbbraga@gmail.com

Em uma noite de Maio, sete anos atrás, Rafael chegava em casa depois do trabalho. Quando abria o portão,
alguém chamou seu nome. Ele olhou pro lado e viu pessoas que não conhecia. Rafael saiu da sua casa carregado
pelos desconhecidos e nunca mais voltou. Desde então ele vive como se aquela noite nunca tivesse terminado.
One night in May, seven years ago, Rafael came home from work. As he opened the gate, someone called his
name. He looked to his side and saw people he didn’t know. Rafael left his home carried by the strangers and
never returned. Since then, he’s lived as if that night had never ended.

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 19h *Sessão comentada pelo diretor e equipe
67

Swinguerra
Pernambuco, 2019, cor, 22’ • direção director Bárbara Wagner, Benjamin de Burca • fotografia cinematography Pedro
Sotero • montagem editing Eduardo Serrano • som sound Nicolau Domingues • produção production Dora Amorim, Thaís
Vidal, Julia Machado • contato contact doraa.amorim@gmail.com

Na quadra de uma escola pública, dançarinos têm uma rotina altamente disciplinada e ensaiam sob o olhar atento
do seu coreógrafo. Tensões assombram desejos pessoais, enquanto eles são observados por uma trupe rival.
In a sports court of a public school, dancers have a highly disciplined routine and rehearse under the watchful
eye of the choreographer. Personal desires are haunted by tensions, while they are being watched by a rival crew.

Cine Humberto Mauro, 24 nov, 21h

Tudo que é apertado rasga • Pressed, ripped apart


Bahia, 2019, cor, 27’ • direção director Fabio Rodrigues Filho • montagem editing Fabio Rodrigues Filho • som sound
Fabio Rodrigues Filho • produção production Fabio Rodrigues Filho • contato contact fabiorodrigz@gmail.com

Na tentativa de forjar uma ferramenta capaz de operar o corte por justiça, este filme retoma e intervém em
imagens de arquivo na busca de reestudar parte da cinematografia nacional à luz da presença e agência do ator
e da atriz negra.
In an attempt to forge a tool capable of operating the cut for justice, this film reclaims and intervenes in archive
images willing to restudy part of Brazilian cinematography, shedding light on the presence and agency of black
actors and actresses.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h *Sessão comentada pelo diretor


68

Um Filme de Verão • Sun Inside


Rio de Janeiro, 2019, cor, 94’ • direção director Jo Serfaty • fotografia cinematography Pedro Pipano • montagem editing
Cristina Amaral, Lucas Andrade (assistente/assistant) • som sound Guilherme Farkas • produção production Fagulha
Filmes, Julia Motta • contato contact joserfaty@gmail.com

Durante o verão, Karol, Junior, Ronaldo e Caio estão no último mês das aulas na escola pública do Rio de Janeiro.
Quando as férias chegam, a temperatura alcança 40 graus. Imersos nos fios emaranhados que cobrem o céu
da favela e os súbitos apagões, estes quatro jovens são afetados pela crise da cidade e se reinventam diante
de tanta adversidade.
During the summer, Karol, Junior, Ronaldo and Caio are in the last month of classes at a public school in Rio de
Janeiro. When vacation starts, temperatures reach 40 °C. Immersed in the tangled threads that cover the slum
sky and the sudden blackouts, these four teenagers are affected by the city crisis and reinvent themselves in
the face of so much adversity.

Cine Humberto Mauro, 28 nov, 16h30

Virou Brasil • It Became Brazil


Maranhão/Pernambuco, 2019, cor, 81’ • direção, fotografia e som director, cinematography and sound Pakea,
Hajkaramykya, Arakurania, Petua, Arawtyta’ia, Sabiá, Paranya • fotografia adicional additional cinematography Vincent
Carelli, Alexandre Verá • montagem editing Fábio Costa Menezes • produção production Vídeo nas Aldeias • contato
contact olinda@videonasaldeias.org.br

Uma nova geração de jovens Awá-Guajá nos conduz pelos caminhos que levaram sua terra a “virar Brasil”. Hoje,
em meio ao assédio dos karaí no entorno e a proximidade com a ferrovia da Vale – que leva obras, projetos e
funcionários para dentro da aldeia – estão os desafios para manter a terra e as tradições, enquanto também
assimilam-se os novos costumes.
A new generation of young Awá-Guajá takes us through paths that have led their land to “becoming Brazil”. Today,
amid the harassments from surrounding karaí [white men] and the proximity to Vale do Rio Doce’s railroad, they
face the challenges of keeping the land and traditions, while also absorbing new customs.

Cine Humberto Mauro, 24 nov, 17h


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Zawxiperkwer Kaa – Guardiões Da Floresta


Zawxiperkwer Kaa – Guardians Of The Forest
Maranhão, 2019, cor, 52’ • direção director Jocy Guajajara, Milson Guajajara • fotografia cinematography Jocy
Guajajara, Milson Guajajara • montagem editing Jocy Guajajara, Milson Guajajara, Luisa Lanna, Joelton Ivson • som
sound Jocy Guajajara, Milson Guajajara • produção production Ana Carvalho, Vincent Carelli • contato contact olinda@
videonasaldeias.org.br

Jocy e Milson Guajajara são membros do grupo “Guardiões da Floresta” na Terra Indígena Caru (MA), onde vivem.
Como cineastas, documentam as atividades do grupo nas missões de vigilância e proteção do território indígena.
Jocy and Milson Guajajara are members of the “Guardians of the Forest” group in the indigenous territory of Caru,
in Maranhão state, their homeland. As filmmakers, they document the group’s activities on the surveillance of
indigenous territory and protection missions.

Cine Humberto Mauro, 29 nov, 19h


sessões especiais
special screenings
73

Antônio e Piti
Brasil, 2019, cor, 78’ • direção director Vincent Carelli, Wewito Piyãko • fotografia cinematography Vincent Carelli,
Wewito Piyãko, Tiago Campos, Ernesto de Carvalho, Tsirotsi Ashaninka • montagem editing Amandine Goisbault, Fábio de
Menezes, Sérgio Borges, Tatiana Almeida • som sound Camila Machado, Rodrigo Lacerda, Tiago Campos, Vincent Carelli •
produção production Olivia Sabino, Alexsandra Araújo, Ana Karenina • contato contact olinda@videonasaldeias.org.br

Uma história amazônica de um amor rebelde que rompe fronteiras morais e culturais da época, narrado por Dona
Piti, filha de Chico Coló, um “soldado da borracha”, e por Antônio, um Ashaninka oriundo do Peru.
An Amazonian story of a rebel love that breaks the moral and cultural boundaries of the time, told by Dona Piti,
daughter of Chico Coló, a “rubber soldier”, and by Antonio, an Ashaninka from Peru

Cine Humberto Mauro, 23 nov, 21h *Sessão comentada pelos diretores


e mediada por Juca Ferreira

Rua Guaicurus • Guaicurus Street


Brasil, 2019, cor, 75’ • direção director João Borges • fotografia cinematography Lucas Barbi • montagem editing Fabian
Remy • som sound Victor Brandão • produção production Yara Produções • contato contact embaubafilmes@gmail.com

A rua Guaicurus é uma das maiores zonas de prostituição do Brasil, localizada no centro da cidade de Belo
Horizonte, desde os anos 50. Atualmente funcionam mais de 25 hotéis na região, com aproximadamente três
mil trabalhadoras do sexo. O filme vai revelar este enorme complexo de prostituição por meio de situações que
eclodem das relações entre suas personagens.
Guaicurus Street is one of the largest prostitution zones in Brazil, located in the center of the city of Belo Horizonte,
since the 1950s. There are currently more than 25 hotels in the region, with approximately three thousand sex
workers. The film intends to reveal this enormous prostitution complex through situations that arise from the
relationships between its characters.

Cine Humberto Mauro, 24 nov, 15h *Sessão comentada pelo diretor e equipe
74

Filme dos Outros • Other’s Movie


Brasil, 2018, cor, 20’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem editing
Lincoln Péricles • som sound Lincoln Péricles • produção production Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@
gmail.com

Primeiro cinema: Eles se gravam, nóis assiste. Filme realizado a partir de imagens retiradas de cartões de memória
que estavam em equipamentos de filmagem roubados.
First cinema: they record, we watch. A film made from images taken from memory cards which were in stolen
filming equipment.

A sessão especial Jean-Claude Bernardet convida irá discutir a obra de Lincoln Péricles, cineasta morador
do Capão Redondo (periferia de São Paulo) e as representações da classe trabalhadora no cinema brasileiro.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor

Aluguel: O Filme • Rent: The Movie


Brasil, 2016, cor, 16’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem
editing Lincoln Péricles • roteiro script Bruno Marra, Felipe Terra, Lincoln Péricles • som sound Bruno Marra • produção
production Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@gmail.com

A reunificação pacífica não acontecerá.


The pacific reunification will not happen.

Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor
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Ruim é Ter que Trabalhar • Work Sucks


Brasil, 2015, 9’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem editing
Lincoln Péricles • roteiro script Adriano Araujo, Lincoln Péricles • som sound Lincoln Péricles • produção production
Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@gmail.com

Alguns dias antes da Copa do Mundo no Brasil, um operário reflete sobre seu trabalho.
A few days before the World Cup in Brazil, a laborer gives thought to his job.

Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor

Tarumã
Brasil, 1975, cor, 14’ • direção director Aloysio Raulino, Guilherme Lisboa, Mário Kuperman, Romeu Quinto • contato
contact gustavo@movafilmes.com.br

O filme consiste num dramático depoimento rural da região oeste do Estado de São Paulo (Tarumã, nas proxi-
midades de Assis) sobre as condições de vida de sua família e de sua classe social. Coletado para fazer parte
do filme Êxodo rural, o depoimento dessa bóia-fria atingiu uma densidade que levou à sua utilização mediante
a colagem de duas longas tomadas ininterruptas.
The film is a dramatic rural testimonial on the living conditions of a family and their social class in the west region
of São Paulo state (Tarumã, near Assis).

Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida, realizada em parceira com o projeto História Permanente do
Cinema/Cine Humberto Mauro.

Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e por Lincoln Péricles
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Jakaira
Brasil, 2019, cor, 16’ • direção director Coletiva da ASCURI • orientação de roteiro script advisor Eliel Benites • fotografia
cinematography Kiki Concianza, Gilmar Kiripuku Galache, Renan Braga • montagem editing Kiki Concianza, Gilmar
Kiripuku Galache produção production ASCURI • contato contact ascuri.ms@gmail.com

Situado na aldeia Guyra Kambi’y do povo Kaiowá (MS/Brasil), o filme nos guia pelo ritual de batismo do milho
branco, o Jerosy Puku. Os cantos e as danças que compõem a cerimônia conduzem a vinda de Jakaira: o dono
do milho branco, entidade associada à fertilidade das roças. Documental, com elementos ficcionais, o filme
aponta para a importância da manutenção dos costumes para a preservação do “jeito de ser” Kaiowá (ñandereko).
Located in the Guyra Kambi’y village of the Kaiowá indigeous people (MS/Brazil), the film guides us through the
white corn baptism ritual, the Jerosy Puku. Documentary, with fictional elements, the film points to the importance
of maintaining customs for the preservation of the Kaiowá “way of being” (ñandereko).

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 17h *Sessão comentada por Gilmar Kiripuku Galache
e Kiki Concianza

Sedução da Carne • Seduction of the Flesh


Brasil, 2018, cor, 78’ • direção director Julio Bressane • fotografia cinematography Pepê Schettino, Pablo Baião, Pablo
Hoffmann • montagem editing Rodrigo Lima • som sound Damião Lopes • produção production TB Produções • contato
contact tbproducoes@gmail.com

Uma escritora tenaz e delicada, viúva há 3 anos, se envolve em conversas frequentes com um papagaio. Entretanto,
ela é observada por uma grande porção de carne crua.
A tenacious and delicate writer, a widow for 3 years, engages herself in conversations with a parrot. However, she
is observed by a big portion of raw meat.

Sessão realizada em parceira com o projeto História Permanente do Cinema/Cine Humberto Mauro.

Cine Humberto Mauro, 27 nov, 21h


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A Febre • The Fever


Brasil/França/Alemanha, 2019, cor, 98’ • direção director Maya Da-Rin • fotografia cinematography Barbara Alvarez •
montagem editing Karen Akerman • som sound Felippe Schultz Mussel, Breno Furtado, Romain Ozanne • produção
production Maya Da-Rin, Leonardo Mecchi, Juliette Lepoutre • contato contact contato@tamanduavermelho.com /
contato@enquadramen.to

Justino, um indígena de 45 anos do povo Desana, é vigilante do porto de cargas de Manaus. Enquanto sua filha
se prepara para estudar medicina na capital, Justino é tomado por uma febre misteriosa.
Justino, a 45-year-old member of the indigenous Desana people, is a security guard at the Manaus harbor. As his
daughter prepares to study medicine in Brasilia, Justino comes down with a mysterious fever.

Cine Humberto Mauro, 29 nov, 21h *Sessão comentada pela diretora e pela atriz Rosa Peixoto

Uma Semente de Ara Pyau • Una Semilla de Ara Pyau • A Seed of Ara Pyau
Argentina/Brasil, 2017, cor, 23’ • direção director Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau (Dalma Chamorro, Hugo Ramos,
Ralf Ortega, Aldana Verenice, Karla Benitez, Rosi Benitez, Reyi Remirez, Luiyi Duarte, Luz Duarte, Miriam Benitez,
Bernardo Benitez, Ernesto de Carvalho, Bruno Huyer, Matías Barrientos, Thyni Ramirez, Patricia Ferreira, Chiki Villalba,
Ariel Ortega, Saul Duarte, Valentin Yoel Benitez, Marcial Paredes, Orlando Benitez, Jonatan Duarte, Leo Duarte, Sandro
Duarte, Diego Sanchez, Ariel Sanchez) • montagem editing Ernesto de Carvalho, Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau •
produção production Vídeo nas Aldeias, Instituto de Artes Audiovisuales de Misiones (IAAviM), UNAM Transmedia •
contato contact olinda@videonasaldeias.org.br

Jovens, crianças e velhos sentem a passagem do tempo e das estações na comunidade de Tamanduá, Misiones.
Young people, children and old people feel the passage of time and seasons in the community of Tamanduá, Misiones.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 15h


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Entre Casas • Between Homes


Brasil, 2019, cor, 14’ • direção e fotografia director and cinematography Isabella Rodsil, Vinijoe, Matheus Gomes, Cysi
dos Anjos, Nym Smit, João Marcos, Camille Reis, Débora Vasconcelos • som sound Yara Torrês • produção production
Filmes de Quintal, Arthur Medrado, Layla Braz • contato contact filmesdequintal@gmail.com

No filme somos conduzidos pelas cartografias (individuais e coletivas) de 8 jovens moradores do Aglomerado da
Serra, em Belo Horizonte. Partindo da casa de cada um/a deles/as somos levados pelos caminhos cotidianos e os
encontros pelo bairro até chegar ao centro cultural Lá Da Favelinha, sua segunda casa. Entre Casas é resultado
da oficina de realização em documentário da mostra de extensão do forumdoc.bh 2019.
In the film we are conducted by the cartographies (individual and collective) of 8 young residents of Aglomerado
da Serra slam, in Belo Horizonte. Starting from each one’s houses, we are taken by the daily paths and their
encounters through the neighborhood until we reach the cultural center Lá Da Favelinha, their second home.
Between homes is the result of a documentary workshop organized by the forumdoc.bh 2019 extension project.

Cine Humberto Mauro, 01 dez, 15h *Sessão comentada pela equipe

Banquete Coutinho
Brasil, 2019, cor e p&b, 74’ • direção diretor Josafá Veloso • fotografia cinematography Ticão Okada • montagem editing
Eugenio Puppo, Gustavo Vasconcelos • som sound Fabio Gonçalves, Rica Saito • produção production Eugenio Puppo •
contato contact heco@heco.com.br

Banquete Coutinho propõe olhar para a obra de Eduardo Coutinho como um grande todo. Teria um dos mestres
do cinema brasileiro feito sempre o mesmo filme? A partir de um encontro filmado com o diretor em 2012 e vasto
material de arquivo, o filme mantém acesas as inquietações do cineasta, falecido dois anos após a entrevista.
Obra e pensamento de Coutinho resistem ao tempo, que a tudo apagará.
Banquet Coutinho proposes to look at the work of Eduardo Coutinho as a great all of it. Would one of the masters
of Brazilian cinema have always made the same film? Using a meeting filmed with the director in 2012 and a vast
archive material, the film keeps the filmmaker’s concerns burning two years after the interview. The work and
the thoughts of Coutinho resist time, which will erase everything.

Cine Humberto Mauro, 23 nov, 15h


79

Fakir
Brasil, 2019, cor, 92’ • direção director Helena Ignez • fotografia cinematography Toni Nogueira • montagem editing
Sergio Gag • som sound Sergio Gag • produção production Mercúrio Produções • contato contact smercurioproducoes@
gmail.com

Retrata o sucesso do faquirismo no Brasil, América Latina e França. Esse espetáculo de arte popular originário
do circo é apresentado e analisado através de um acervo que revela o êxito dessas apresentações com seus
campeonatos de resistência a dor e a grande presença do público. Fakir se estende em filmagens atuais de artistas
contemporâneos que mantêm viva essa arte em performances e shows.
Fakir portrays the success of fakirism in Brazil, Latin America and France. This show of popular art from the
circus is presented and analyzed through a collection that reveals the success of these presentations with their
championships of resistance to pain and the great presence of the public. Fakir extends into current footage of
contemporary artists who keep this art alive in performances and shows.

Cine Humberto Mauro, 30 nov, 15h


seminário
seminar
83

Seminário
Mortos e a Câmera

CINE HUMBERTO MAURO

25 de novembro, 17h (segunda-feira)


ABERTURA
Apresentação: Paulo Maia
Conferência: Leda Maria Martins

26 de novembro, 15h (terça-feira)


MESA 1: TRABALHO DE VIGÍLIA | WAKE WORK
Com: Denilson Baniwa, Castiel Vitorino Brasileiro, Davi de Jesus do Nascimento e Célia
Xakriabá Mediação: Roberto Romero

27 de novembro, 15h (quarta-feira)


MESA 2: CINEMA NA VIGÍLIA | CINEMA IN THE WAKE
Com: Tatiana Carvalho Costa, André Brasil, Fabio Rodrigues Filho e Ademilson Concianza
Mediação: Carla Italiano

SESSÕES COMENTADAS
23 de novembro, 15h (sábado)
MÃTÃNÃG, A ENCANTADA (Shawara Maxakali, Charles Bicalho, 2019, 15’)
TATAKOX VILA NOVA (Comunidade Maxakali Aldeia Vila Nova do Pradinho, 2009, 21’)
Comentada por Sueli Maxakali, Isael Maxakali e Charles Bicalho

25 de novembro, 21h (segunda-feira)


RESSURREIÇÃO (Arthur Omar, 1987, 6’)
SONHOS E HISTÓRIAS DE FANTASMAS (Arthur Omar, 1996, 45’)
Comentada por Arthur Omar

27 de novembro, 17h (terça-feira)


YVY REÑOI, SEMENTE DA TERRA (direção coletiva ASCURI, 2019, 15’)
CHICO MENDES: EU QUERO VIVER (Adrian Cowell, 1989, 56’)
Comentada por Ademilson Concianza e Ruben Caixeta de Queiroz
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30 de novembro, 18h30 (sábado)


WUTHARR: SALTWATER DREAMS
(Sonhos de Água Salgada, Karrabing Film Collective, 2016, 29’)
GOOD-BYE OLD MAN (Adeus meu velho, David MacDougall, 1977, 66’)
Comentada por Renato Sztutman

1o de dezembro, 21h (domingo)


SIGUI SYNTHÈSE (1967 - 1973) - L’ INVENTION DE LA PAROLE ET DE LA MORT
(A invenção da palavra e da morte, Jean Rouch, Germaine Dieterlen, 1981, 120’)
Apresentada por Júnia Torres

ENDEREÇO
Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes
Av. Afonso Pena, 1537 | Centro | Belo Horizonte – MG
Entrada franca
85

Mini-currículos

Ademilson Concianza é indígena do povo Guarani Kaiowá e membro da Associação


Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI). Estudou Montagem na Escola de Cinema
Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro.
André Brasil é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal
de Minas Gerais, integra o corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação.
Pesquisador do CNPq, participa do Grupo Poéticas da Experiência (CNPq/UFMG) e da
equipe de editores da Revista Devires - Cinema e Humanidades. Atualmente, integra
o Comitê Pedagógico de Formação Transversal em Saberes Tradicionais na UFMG.
Desenvolve pesquisas no domínio do cinema e do cinema documentário, com atenção
à produção de filmes por diretores e coletivos indígenas.
Castiel Vitorino Brasileiro é artista, graduanda em Psicologia na Universidade Federal do
Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em que corpos não-humanos se desprendem
das amarras da colonialidade. Compreende a macumbaria como um jeito de corpo
necessário para que a fuga aconteça. Dribla, incorpora e mergulha na diáspora Bantu e
assume a vida como um lugar perecível de liberdade.
Célia Xakriabá é ativista indígena do povo Xakriabá, de Minas Gerais. Graduou-se pela
primeira turma de Educação Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais e mais
tarde obteve um mestrado em Educação na Universidade de Brasília. Primeira mestre
de seu povo, atualmente cursa o doutorado em Antropologia na UFMG.
Davi de Jesus do Nascimento é artista plástico, performer e poeta barranqueiro. Gerado
às margens do rio São Francisco, curso d’água de sua pesquisa, Davi trabalha coletando
afetos da ancestralidade ribeirinha e percebendo “quase-rios” no árido. Na fotografia,
utiliza o corpo como instrumento de medida do mundo. Corpo-médium, confrontado
e confundido com a natureza. Uma natureza aquática, barrenta e silenciosa, que pode
ser lida como isca, peixe e pedra.
Denilson Baniwa nasceu na aldeia Darí, no Rio Negro, Amazonas. Sua trajetória como
artista inicia-se a partir das referências culturais de seu povo já na infância. Na juventude,
o artista inicia a sua trajetória na luta pelos direitos dos povos indígenas e transita pelo
universo não- indígena aprendendo referenciais que fortaleceriam o palco dessa resis-
tência. O artista em sua trajetória contemporânea consolida-se como referência, rompendo
paradigmas e abrindo caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional.
Fabio Rodrigues Filho é mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Minas
Gerais e graduado no mesmo curso na Universidade Federal do Recôncavo Bahiano.
Realizador do filme-ensaio Tudo que é apertado rasga (2019). Cineclubista, coordenou
o Cineclube Mário Gusmão, participou do Cine Tela Preta e do Cinema em Vizinhança.
Escreve para revistas, catálogos, e para o blog pessoal Tocar o Cinema. Integra o Fórum
Itinerante de Curadoria (FIC), membro do Áfricas nas Artes e do Poéticas da Experiência.
86

Compôs comissões de seleção de festivais, mostras e laboratórios de filmes (como


CachoeiraDoc, Festival Mimoso, DiásporaLab, etc.).
Leda Maria Martins é rainha da Irmandade de Nossa Senhora do Jatobá, poeta e
ensaísta. Pós-Doutorado em Performance Studies, New York University, Tisch School
of the Arts; Pós-Doutorado em Rito, Dramaturgia e Teatralidade, Universidade Federal
Fluminense. É professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2017
foi homenageada com a criação do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras.
Tatiana Carvalho Costa é doutoranda e mestre em Comunicação Social pela Universi-
dade Federal de Minas Gerais. Fez direção e roteiro para a série Gênero e Diversidade na
Escola e a direção de curtas metragens não ficcionais: TransHomemTrans, Muito Prazer:
Travestis e Transexuais de Juiz de Fora, Memorial Travestis e Transexuais de BH. Dirigiu os
curtas O Ciclone Lento e Sutil (2001), Oficina de Agosto, Pensamentos do Toti e Zezim.
Seu curta-metragem Las cartas de la plaza de Santo Domingo foi o projeto vencedor da
seleção DOCSDF (México) em parceria com SAV/MinC (Brasil) em setembro de 2009 e
recebeu Menção Especial do Júri na 4ª Edição deste festival. Atualmente, coordena os
projetos de extensão universitária “Viver Ciências” e “Pretança” no Centro Universitário
UNA. É integrante do movimento Segunda Preta.

MEDIAÇÕES
Paulo Maia possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas
Gerais (1999), doutorado em Antropologia Social pelo PPGAS - Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e estágio pós-doutoral (2018) no Perfor-
mance Department e Hemispheric Institute of Performance and Politics da New York
University. Atualmente é professor associado e coordenador do Curso de Formação
Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) na Faculdade de Educação (FaE-UFMG).
Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em Etnologia Sul Americana e
Educação Indígena, tendo realizado pesquisa de campo com os Baré (alto rio Negro).
Também é um dos idealizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e
Etnográfico de Belo Horizonte.
Roberto Romero é etnólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional
(UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). Desenvolve pesquisa
entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) sobre os temas dos sonhos, das armadilhas, da doença
e da cura. Desde 2009 é um dos organizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme
Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte.
Carla Italiano trabalha com pesquisa e curadoria em cinema. É doutoranda em Comuni-
cação Social pelo PPGCOM-UFMG, com mestrado pela mesma instituição e graduação
em Cinema pela UFSC. Desde 2011 integra a Associação Filmes de Quintal e a equipe do
forumdoc.bh. Foi co-curadora da Retrospectiva Helena Solberg (CCBB RJ/SP/DF, 2018)
e outras, compondo a seleção do festival Olhar de Cinema de Curitiba (2017-2019). É
natural do Recife e residente em Belo Horizonte.
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SESSÕES COMENTADAS MOSTRA “MORTOS E A CÂMERA”


Arthur Omar é cineasta, fotógrafo, compositor e construiu, desde os anos 1970, uma
trajetória que dissolve fronteiras entre diferentes territórios artísticos. Política e poética,
sua obra transita entre imagem estática e em movimento, música eletrônica, instalação e
web arte, e tem na violência social um tema-chave. Objeto de uma grande retrospectiva
no MoMA de Nova York em 1999, expôs na Bienal de São Paulo de 2002 a série de
fotografias Viagem ao Afeganistão, realizadas na zona de catástrofe próxima a Cabul.
Júnia Torres documentarista e antropóloga, doutoranda em Antropologia Social pelo
PPGAN/ Universidade Federal de Minas Gerais, integra a Associação Filmes de Quintal
e organiza o forumdoc.bh desde sua primeira edição.
Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de
São Paulo. É mestre (2000) e doutor (2005) em Antropologia Social pela USP, área de
etnologia indígena. Realizou pós-doutorado, em 2015, no Departamento de Filosofia da
Universidade de Paris Ouest Nanterre. É pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios
(CEstA-USP) e do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP). Foi editor
responsável, entre 2013 e 2017, da Revista de Antropologia (Depto. de Antropologia
da USP). Foi um dos fundadores e co-editou, entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira.
Ruben Caixeta de Queiroz possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de Minas Gerais (1987), mestrado em Antropologia Social pela UNICAMP (1991)
e doutorado em Letras e Ciências Humanas pela Universidade Paris-Ouest Nanterre la
Défense (1998). Atualmente é professor Associado da Universidade Federal de Minas
Gerais, onde coordena o Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico. Foi membro
das comissões que criaram o Programa de Acesso e Permanência do Estudante Indígena
na UFMG e os cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia da UFMG.
Isael Maxakali é coordenador da Escola Estadual Isabel Silva, na Aldeia Verde (Reserva
Maxakali), em Ladainha/MG. Com uma vasta filmografia, o cineasta indígena dirigiu os
filmes “Tatakox” (2007); “Xokxop pet” (2009); “Yiax Kaax – Fim do Resguardo” (2010);
“Xupapoynãg” (2011); “Kotkuphi” (2011); “Yãmîy” (2011); “Mîmãnãm” (2011); “Quando os
yãmîy vêm dançar conosco” (2012); “Kakxop pit hãmkoxuk xop te yũmũgãhã” (“Iniciação
dos filhos dos espíritos da terra”, 2015), “Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali” (2016) e
“Yãmiyhex: as mulheres-espírito” (2019). Atualmente, é vereador na cidade de Ladainha
(MG) e participa, como professor, do Programa de Formação Transversal em Saberes
Tradicionais da UFMG.
Sueli Maxakali nasceu às margens do córrego Água Boa, onde cresceu cantando e
dançando com os yãmiyxop. Em 2007, criou com alguns parentes a Aldeia Verde, onde
vive e trabalha. Com o projeto Imagem-corpo-verdade, iniciou seu trabalho como fotógrafa,
reunido no livro Koxuk Xop: Imagem. Co-dirigiu com Isael Maxakali os filmes Quando os
yãmiy vêm dançar conosco (2011, co-direção Renata Otto Diniz), Xupapõynãg (2013),
Kotkuphi (2013) e Yãmĩy (2014) e Yãmĩyhex: as mulheres-espírito. É também co-autora
do livro Hitupmã’ãx: curar (Literaterras, 2012) e pesquisadora do OEEI - FaE/UFMG. Foi
88

professora convidada do programa de formação transversal em saberes tradicionais


da UFMG.
Charles Bicalho é graduado em Letras, língua portuguesa (1997) e língua alemã (2000),
pela UFMG. Master of Arts pela Universidade do Novo México (2004), EUA. Doutorado
em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG com a tese intitulada “Koxuk,
a imagem do yãmĩy na poética maxakali” (2010). Organizador geral e curador da Mostra
Pajé de Filmes Indígenas em Belo Horizonte. Produtor, roteirista, editor e diretor cine-
matográfico. Diretor dos filmes de curta-metragem Caligrafilmes (2008); Making of
Dicionário (2012); Pirapora (2012); Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali (2016) e Mãtãnãg,
a Encantada (2019).
ensaios e entrevistas
essays and interviews
ensaios • sessão de abertura 93

Fragmentos de um
cinema-jiboia tikmũ’ũn1
Sueli Maxakali
Rosângela de Tugny
Isael Maxakali
André Brasil

No limiar do fim do mundo, quando os antepassados quase acabaram, quando um


mundo está prestes a acabar e outro a surgir, transitando entre os dois, algo surge. Um
quase, uma imagem (corpo e verdade).
Com fome, descontentes com a voracidade dos homens (que saem para a caçada
e não dividem a carne com elas), as mulheres se retiram. Viram as costas (aos homens,
ao cinema), miram o rio com os olhos vendados: ali, encontram uma jiboia, que cortam,

1. Para marcar as várias vozes que compõem esta conversa entre os realizadores indígenas Sueli Maxakali e
Isael Maxakali e os professores Rosângela de Tugny (UFSB) e André Brasil (UFMG) em torno do filme Yãmĩyhex
(2019), optou-se, nestes fragmentos, pela variação do tamanho da fonte e do itálico. Agradecemos ao professor
Eduardo Rosse e à equipe editorial do catálogo do forumdoc.bh a leitura generosa e os comentários ao artigo.
94 ensaios • sessão de abertura

repartem e comem. Escamas da cobra restam em seus dentes. Os homens descobrem


e perseguem as mulheres que mergulham no rio, desaparecendo com seus cantos no
mundo subaquático. Sozinha, uma menininha chora à beira do rio, até ser levada à aldeia
por kotkuphi (povo-espírito da mandioca).

A partir dessa menina que


kotkuphi levou, nós, Tikmũ’ũn,
continuamos.

••••

Yãmĩyhex são as irmãs ancestrais das mulheres da aldeia que se tornaram mulheres-
jiboia. Toda mulher na aldeia tem yãmĩyhex. As meninas possuem yãmĩyhex a quem
devem alimentar e oferecer vestidos. As mulheres da aldeia, mães dos yãmĩyxop (os
povos-espíritos), cuidam da memória de todas as yãmĩyhex que receberam em vida e
das que foram passadas às suas filhas. Não querem esquecê-las. Os homens, “pais dos
yãmĩyxop”, agem intermediando estas relações: preparando os objetos necessários para
os atos pontuais que serão necessários naqueles encontros, recompondo as palhas do
kuxex (a casa dos cantos, ou casa dos yãmĩyxop, que se situa numa das extremidades
do círculo da aldeia), trazendo e levando discretos recados para as mulheres, transpor-
tando alimentos das casas até os visitantes do kuxex, saindo com os yãmĩyxop no pátio
da aldeia, ora dançando, ora secundando seus passos e cantos, ora intermediando os
gestos que os yãmĩyxop trocam com as suas mulheres. Tudo se passa entre as mulheres
e os yãmĩyxop. Elas se embelezam, preparam os alimentos, costuram os novos vestidos e
aguardam com um ativo silêncio os momentos de efusão, com cantos, brincadeiras, lutas
e danças, ou realizam discretos gestos de preparo e trocas de alimentos, fumo, bolsas,
fazendo-se presentes nos intensos momentos de despedida. Tendo aprendido a arte
da pesca com as lontras, as mulheres ancestrais se transformaram, elas também, em
seres das águas. Além da pesca, yãmĩyhex trazem em suas visitas às aldeias os cuidados
com a casa, a cura das doenças e, sobretudo, buscam calibrar as trocas, os desejos e
os vínculos que porventura se encontram em desequilíbrio. Uma fina e complexa rede
de parentesco se tece por fragmentos quando estes seres ali se tornam presentes.
Somos tentados a traduzir yãmĩy-hex como “espírito-mulher”, ou, quem-sabe, “espírito
do feminino”. A respeito de um forte e significativo evento entre as pessoas Kuikuro,
Bruna Franchetto nos oferece a tradução “hipermulheres”, nome que também rendeu
um belíssimo filme de Takumã Kuikuro2, e que para nós aqui se torna muito sugestivo. A
tradução para yãmĩy ou yãmĩyxop (o sufixo xop indicando um coletivizador), que muito

2. As hipermulheres (Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, 2011, 80’, cor).
ensaios • sessão de abertura 95

comodamente vimos glosando como “espírito” ou “povo-espírito”, poderia ser pensada


como aquilo que torna capacidades e afetos mais intensos. Roberto Romero (2015,
p. 84) relata uma breve e inspiradora conversa sobre a etimologia desta palavra que
certamente encerra uma trama conceitual muito mais complexa do que podemos por
enquanto alcançar:

Quando notei que a palavra continha entre suas raízes o verbo mĩy (fazer), além de yã, um
enfatizador, perguntei o óbvio a Isael Maxakali, que nutre um gosto todo especial por etimologia:

— Yãmĩy e mĩy se parecem, não?


— Sim! Yãmĩy é assim – exemplificou-me – quando uma coisa está formando,
formando, mas ainda não acabou...
— Como transformando?
— Isso! Muito inteligentes, né, os Mõnãyxop...

Assim, se yãmĩy ou yãmĩyxop se aproximam da ação e da potência de fazer, da pura


energia transformadora, yãmĩyhex seria a força feminina que se instaura entre todos
que ali se encontram, criando sobretudo um “lugar de ressonância para os harmônicos
ainda não escutados”, pois ela permite que toda a aldeia possa tratar do indizível, das
experiências com o sonho, da necessidade da cura e sobretudo a elaboração daquilo
que é monstruoso. Yãmĩyhex deixa de ser uma categoria de seres ou “espíritos” para
se tornar uma perspectiva, a do feminino, um evento no qual uma “história impensada
tenta se inscrever” (DAVOINE, 2008, p. 64-65). Ouvimos diálogos entre as mulheres que
interpelam os homens, mas também os lastros de uma impensável história de perseguição,
violência e estupro das mulheres indígenas, pela voz dos imhu, uma legião de espíritos-
-que-roubam-mulheres, que vociferam atrás das paredes do kuxex. É neste “lugar de
ressonância” que também um engenhoso sistema de amizades cerimoniais herdadas e
renovadas entre as gerações deve ser observado. Cada canto, cada movimento de troca
de alimentos, cada aproximação das mulheres com os yãmĩyxop supõe um criterioso
cálculo genealógico e comunitário discutido discretamente entre as casas e o kuxex. Não
pode haver equívocos. Cabe às mulheres da aldeia saberem agir diante de uma grande
variação de procedimentos adotados nas trocas com os yãmĩyxop. Claudia Magnani
tratou belamente do xamanismo feminino e discreto entre as mulheres tikmũ’ũn: ela
descreveu como pode se dar esta variação de procedimentos que aprendem desde cedo,
chamando atenção para a centralidade das trocas mediadas pelas mulheres na relação
entre Tikmũ’ũn e yãmĩyxop. No caso da oferta alimentar, momento importantíssimo em
cada ritual, suas modalidades variam: cozinham coletiva ou individualmente; levam
comida ao grupo de yãmĩyxop ou a este e àquele singularmente.

Em suma, as mulheres têm que saber quando, como e para quem levar comida; se manda-lo
para o kuxex ou se esperar em casa que os yãmĩyxop a busquem; se leva-la para os yãmĩyxop
que estão no pátio ou para um yãmĩy em particular, às vezes ligado por laços de adoção/
parentesco à própria pessoa ou família. (...) (MAGNANI, 2018, p. 173)
96 ensaios • sessão de abertura

No filme Yãmĩyhex (Sueli Maxakali e Isael Maxakali, 2019), o tempo se constrói por
uma sequência de acontecimentos calmamente preparados, e rapidamente desfeitos: um
homem levando um tição puxa uma fileira de outros homens e meninos que sai em linha
reta do kuxex em direção à casa situada em seu eixo; uma longa fileira de yãmĩyhex sai do
kuxex, dançando com seus vestidos brilhantes e coloridos, os braços entrelaçados, sobre
o fundo dos cantos de uma fonte sonora que permanece oculta, movimentos regulados
pelo olhar dos pais dos yãmĩyxop; as mulheres replicam a dança dos passos saltitantes
dos yãmĩyhex; um yãmĩy envolto em sua pele-cobertor sai com uma grande vara que
serve como cabide e aguarda que, uma a uma, mulheres e crianças tragam os vestidos
cuidadosamente amarrados com um laço e os pendurem, formando um singular aparato
de peles coloridas; uma fileira de yãmĩy sai do kuxex acompanhada de seus cantos e as
mulheres, com seus cobertores coloridos, produzem uma cerca que protege a mirada
das grávidas e crianças não iniciadas, criando o espaço de uma declamação cantada,
cuidadosamente deslocada para suas extremidades; outras fileiras de danças vigorosas
em que as mulheres de mãos dadas com suas yãmĩyhex estão de frente e em oposição
aos yãmĩy-ãyuhuk, os espíritos dos não-indígenas e os xunĩm; multidões de andorinhas
despontam e se multiplicam no pátio com seus anteparos para evitar o toque molhado
da cachoeira que as mulheres lhes atiram; ou ainda o bando de lontras que trazem um
arsenal de objetos produzidos pelos não-indígenas para expor às mulheres os motivos
de um embate corporal que acontece sem tréguas.
Em todos estes acontecimentos, que se sucedem, a câmera desenha um movi-
mento quase sistemático: ora estes convidados, yãmĩyhex, yãmĩyxop, yãmĩy, xunĩm,
acompanhados de seus pais, saem do kuxex ou da mata, vêm até as casas onde estão
as suas “mães” e retornam ao kuxex, ora o cortejo sai do kuxex, vem até o centro do
pátio ao encontro das mães, retornando em seguida. A câmera é então o olhar feminino
que está atento a estes filhos visitantes, estes filhos-imagens-cantos que chegam, se
ensaios • sessão de abertura 97

alimentam, dançam, brigam e se despedem retornando a um lugar onde esta mirada


não deve alcançar. As mulheres e os homens tikmũ’ũn se referem a eles como filhos,
sentem saudades, pedem que venham e os adotam no espaço de cada evento que os
torna produção de brilho e vibração acústica, cada um com sua precisão e singulari-
dade. Todos yamĩyxop com seus olhos vendados. Tudo se passa sem que as miradas
se cruzem. Aquele monumento-limite, o kuxex, que vimos quase desfeito a certa altura
destes encontros, é de onde, por momentos, estes filhos saem, tornam-se perceptíveis,
táteis e sonoros e para onde novamente desaparecem.

imagens do sonho (cinema táctil)

“Pode uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem vir
em sonho e agir no real, sem permanecer apenas como um resíduo do
imaginário, mantido e cultivado à parte, ou uma fantasia encerrada na
interioridade de alguém, como o seu pequeno segredo?”
(GUIMARÃES, 2019, p. 58)

O filme Yãmĩyhex acompanha este movimento de aparições e desaparições, de entrada


e saída do campo visível, deixando que os limiares do kuxex regulem as passagens entre
mundos: da aldeia à floresta, da superfície ao subterrâneo ou ao mundo subaquático.
Acompanhando essas passagens, articulando suas câmeras a esta câmera-kuxex, o cinema,
máquina fenomenológica (que filma o visível), torna-se também máquina cosmológica
(a filmar o trânsito do visível ao invisível).
Mostra-se assim contemporânea, atual e presente, a transformação das mulheres
ancestrais: filma-se o que é visível para que a imagem prossiga, longe dos olhos, em
direção ao invisível. Depois de escutar o canto que ecoa pelos espaços, vemos então
o grupo de mulheres que brinca, canta e mergulha no rio: o visível para aí e o canto
desaparece mergulhando com elas. Seguindo a narração de Sueli Maxakali, a imagem
atravessa o limite do que os olhos alcançam, nos exigindo, quem sabe, outro tipo de
visão. Um a um, vários corpos transformam-se em um corpo-jiboia (que se fragmentará
novamente para se multiplicar).
O cinema é máquina cosmológica ainda quando empresta dos cantos xamânicos
tikmũ’ũn seus movimentos. Como em outros filmes tikmũ’ũn, aqui também o espaço se
altera por chegadas e partidas, por povoamento e esvaziamento; ele se rarefaz, se adensa
e se expande, em ligação com o entorno. Assim como nos cantos, são blocos sensíveis
que se modulam por coagulação, adensamento e diluição. Repetidamente, nos filmes,
a cena abriga a chegada de corpos e sons, seu encontro e adensamento e sua posterior
dispersão, até que o plano se esvazie, aberto a um novo evento. Conduzida por Luiza
98 ensaios • sessão de abertura

Lanna, a montagem abriga longos planos e respeita esse movimento de concentração


e expansão, permitindo que o filme respire; que ele guarde os vazios entre eventos de
grande intensidade. O trabalho de montagem não hierarquiza as situações filmadas, nem
destaca aquelas que seriam tomadas como “rituais”, em detrimento das atividades de sua
preparação (sendo estas também, afinal, parte do ritual). Da mesma forma, a montagem
respeita os movimentos de fragmentação e “distribuição” das partes do ritual, o que acaba,
talvez, por espacializar o tempo: como se o tempo deitasse sobre a aldeia distribuindo-se
em fragmentos, partículas, tal como o sereno que cai sobre a madrugada diante do olhar
encantado das crianças: os vestidos – suas cores, seus brilhos – suspensos nas fachadas
das casas ou a cruzar o espaço entre elas; a dança de braços entrelaçados – os passos
lentos ou acelerados – a pontuar dia e noite; os cantos que surgem, desaparecem, se
repetem e ecoam pelos espaços, sem que se saiba ao certo sua fonte; a comida que se
distribui em pequenos ritos de que se alimentam os yãmĩyxop; a jiboia que se forma por
muitos corpos e que se destrincha para que, pendurados nas casas, de seus pedaços
surjam mulheres. Aqui, a montagem – que opera mais por contato do que por sucessão –
não lineariza, nem armadilha o tempo, mas o distribui pelo espaço, que se altera e se
matiza por suas variações.

••••

Este é um cinema-ritual que parece assim retirar sua força do modo efêmero, frágil, como
emergem seus fragmentos. E ao mesmo tempo, do modo cioso como são preparados,
compostos, distribuídos. Se os eventos emergem em uma espécie de limiar – fazendo-se
quase por se desfazer –, se, vez ou outra, as relações se desequilibram – principalmente
pela voracidade dos ãyuhuk –, as yãmĩyhex parecem instaurar um mundo de manejo e
ensaios • sessão de abertura 99

cuidado (manejo cuidadoso, que é o contrário do domínio e da exploração extrativista).


É com atenta sensibilidade que o cinema adentra esse mundo constituído por outros,
para filmá-lo e para dele participar.

Temos que respeitar, saber como filmar à


distância. Não devemos chegar pertinho e
filmar, filmar o rosto. Somos tihik, fizemos
treinamento e respeitamos o pajé. Nós
sabemos filmar com os pajés, aprendendo
o que pode e o que não pode mostrar.
Nós temos leis diferentes dos ãyuhuk
(não-indígenas). Por isso, somos
cineastas indígenas.
Sobre os rituais, a gente não vai contar
tudo. Antigamente, tinha muito mato e os
yãmĩy se escondiam dentro do mato. Hoje
não, só há um pouquinho de mato e eles
estão no nosso cabelo, nos acompanhando.
Se disser alguma coisa errada, yãmĩy está
me ouvindo.
Em fase com os gestos discretos e ciosos das mulheres, com a precisa e intensa
emergência de cada evento, com os fios tênues que os ligam, o cinema guia-se pelo tato
(mais do que pelo olhar). É assim que, na noite pouco iluminada, enquanto o jovem casal
atravessa o pátio para entregar vestidos às yãmĩyhex, os pequenos insetos, as partículas
luminosas de poeira, o brilho dos tecidos, o cricrilar dos grilos, o murmúrio das crianças
povoam a imagem, conferindo a ela uma qualidade táctil, como se pudéssemos mesmo
tocar estes minúsculos acontecimentos. O tato permite que a câmera, ela também
discreta, acompanhe os eventos com cuidado, de modo a não desfazer a teia invisível
que os conecta, de modo a não iluminar aquilo que deve permanecer à sombra e não
adentrar lugares que devem se guardar em segredo.
100 ensaios • sessão de abertura

Yãmĩyhex aguardam os vestidos em


silêncio no interior do kuxex. Nem os
homens nem as mulheres podem filmar
ali. É um segredo nosso, um segredo que
mantemos. Ele também faz parte da cura.
Porque se vier um tempo em que não tem
mais segredo, acaba nossa cura.
ensaios • sessão de abertura 101

Vez ou outra, diante de uma imagem que dura e que toma todo o enquadramento, o
olhar deve recuar, ou melhor, detém-se, armadilhado em sua complexa tessitura: cerra-se
o olhar para que se transforme em tato, novamente, e em escuta. Uma única imagem
mostra-se várias, como uma câmara de ressonâncias: o canto dos homens, o canto do
galo, os cantos dos passarinhos, o canto-lamento das yãmĩyhex; ou, em outra sequência,
o canto das yãmĩyhex a repetir, diferindo, o canto dos yãmĩy. Pouco a pouco, o olhar de
novo se desprende para acompanhar os sons e reencontrar sua fonte: a madrugada, a
vigília, o dia que chega, as crianças que se aquecem na pequena fogueira. O latido dos cães.

••••

Aquele que se mostra um evento de contornos tênues, no limite de se desfazer, segue


protocolos precisos. O cinema participa de um jogo de visibilidade que o antecede, do
qual se compõe e que ele agora ajuda a compor. Ele adentra uma cena de obstruções,
refrações e passagens. Em um exemplo, os pajés Totó e Mamei estão em cena a conduzir
os cantos. A câmera filma os yãmĩy que, rostos cobertos, não lhe devolvem o olhar. Os
cobertores são anteparo: os yãmĩy já são imagem e os meninos que não foram iniciados
no kuxex não podem vê-los, assim como as mulheres grávidas. Os cantos, nesse caso,
não devem ser traduzidos, não devem ser ensinados aos brancos. “Eu mesma não
sei”, diz Sueli Maxakali. No centro da cena, em certo sentido, contribuindo para que
ela aconteça, o cinema mostra o ritual, sob a direção dos pajés. Como os cantos, as
imagens são passagem (mas constituída de cuidados). Na cena ritual maxakali, o cinema
não pode tudo. Pode algo, o que confere aos filmes uma beleza exigente: é preciso
fazer recuar o olhar (ou, ao menos, torná-lo tateante) para que outro tipo de visão
seja acionada.
102 ensaios • sessão de abertura

Nas bordas do ritual, as meninas notam (ou sentem) a chegada do sereno: “está
lavando o céu para amanhecer”. Elas brincam, saltam e tocam a noite com as mãos,
vendo o que não vemos. Ou nos fazendo ver, por meio de seu toque, aquilo que os olhos,
em sua mirada, não alcançam. Imagem menos para ser mirada do que para ser tocada,
ela nos permite ver, com outros olhos, o que as crianças maxakali veem: um delicado
evento cósmico que prepara a chegada da manhã. Se essa se assemelha a uma imagem
do sonho não é porque ela nos permite ver de olhos fechados, fazendo o corpo adentrar
a noite, ou tatear sua fina película? É assim que estas imagens-sonho nos convidam a
entrar nelas – o que não significa conhecê-las por inteiro, mas sentir sua multiplicidade
inapreensível – e da mesma forma podem entrar em nós, agir sobre os corpos e os espaços.

Sonhei que um pajé já falecido – Badu –


passou lama em mim. Adoeci. Minha mãe
– Delcida – passou bolsa de embaúba
(tuhut) em mim. Os pajés vieram me curar,
ritual veio na minha casa e três dias depois
eu sarei. E então, na festa das yãmĩyhex, as
lontras passaram lama em meu corpo, na
câmera. Nunca havia acontecido isso.
Sueli havia confiado à pesquisadora Claudia Magnani (2018, p. 246) uma explicação
sobre o poder da bolsa de embaúba manufaturada pelas mãos das mulheres fortes:

Quando você vai fiando a embaúba e você


vai molhando a linha com a saliva, você vai
passando seu espírito para ela. Quando
uma pessoa está doente a mulher vai
esquentar sua tuthi [rede de embaúba] e
seu yãmĩy que está lá dentro, forte, passa
para a pessoa doente, porque o yãmĩy
dela está fraco, doente. A mulher passa
ensaios • sessão de abertura 103

seu yãmĩy na pessoa e ele cura. Mas não


é toda mulher que faz isso. Só mulher
que respeita yãmĩyxop, que dá comida
para yãmĩyxop, que sabe muito canto,
entende? Como dona Delcida. Só ela que
faz. Daldina fazia também. Só Ũn Ka’ok, só
mulheres fortes. Mas só mulher que sabe
usar para poder curar. A mulher esquenta,
passa no rosto e espanta coisa ruim que
está no corpo da pessoa.
(Sueli Maxakali, Aldeia Verde, 20 de fevereiro de 2017)

Magnani nos lembra que a prática feminina de passar a malha em cima da fumaça
para ativar suas qualidades de cura pode ser associada à transformação das mulheres
ancestrais em mulheres yãmĩyhex, “a qual, iniciada pela ingestão da sucuri, se completa
quando seus corpos passam em cima do fumo”. (MAGNANI, 2018, p. 247)

••••

“Choveu à noite, mas agora parou. A


chuva não é ruim, é muito boa. Ela molha
os Tikmũ’ũn e as nossas plantações. E
traz água para os Tikmũ’ũn fazerem suas
atividades. E para os yãmĩyxop beberem
e os bichos também. Já está amanhecendo
e agora as andorinhas vão sair para as
mulheres molharem.”
104 ensaios • sessão de abertura

Enquanto a aldeia acorda, Sueli Maxakali comenta a chuva que passou, a noite anterior
e o dia que chega. Em sua narração em voz over que pontua o filme, ela menos explica
os eventos do que cuida das passagens entre um e outro. Se no ritual, a presença das
yãmĩyhex se distribui em eventos-dispositivos que emergem e se dispersam, o comen-
tário alinhava um ao outro, sem desfazer os vazios entre eles. Entre um evento e outro,
as tarefas miúdas que os preparam; entre a noite em vigília e o dia, a madrugada ( junto
à qual o cinema amanhece); entre uns e outros povos-espíritos, a câmera, vulnerável
aos corpos e aos movimentos; entre imagem e som, o tato.
Vez ou outra, Sueli e Isael Maxakali adentram a imagem para cuidar de alguma
tarefa de preparação do ritual, para dirigir pontualmente esta ou aquela cena. A foto-
grafia é então assumida por outros, parentes e afins (Alexandre e Cassiano Maxakali,
Carolina Canguçu, Roberto Romero e Para Yxapy – Patrícia Ferreira – sensível cineasta
mbyá-guarani que viajou a Aldeia Verde para compor a equipe), e o filme se constrói
nessas alianças, variando, aqui e ali, seu ponto de vista. A película que separa o filme
do ritual – que separa aquele que filma daquele que prepara e atua no ritual –, se desfaz,
permitindo que o primeiro adentre o segundo, seja para participar de seu curso, seja
para dirigi-lo, na companhia dos pajés.
E novamente o espaço se esvazia observado à distância (que não é demasiada) pela
câmera. O silêncio torna-se tátil – como se, de fato, o trabalho da madrugada fosse manejo
de luzes e sons – e pouco a pouco o entorno vai-se povoando por uma leve agitação
que faz companhia à cineasta – as primeiras conversas, o ruído das panelas, mulheres
e crianças que atravessam de uma a outra casa. É de manhãzinha que as andorinhas
(xamoka) chegam, para resvalar seus corpos delicadamente na água. Chegam para
brincar e para curar. Ouvimos, neste cinema táctil, uma voz que, detrás da câmera,
irrompe em seu desejo de molhar as andorinhas ou ainda lutar corpo a corpo com as
lontras lamacentas. São momentos desconcertantes, que nos colocam ali, na cena do
enfrentamento, na preparação de corpos que suportariam guerras, totalmente desabri-
gados de nosso posto de observação, e nunca tão distantes desta consumação voraz
das imagens-fantasmas do mundo do espetáculo.

política dos corpos destrinchados

A lontra preta atravessa a aldeia silenciosa. O pajé é seu guia, sopra trechos de seu canto
solitário que ecoa até os limites das casas cobertas de palha, das outras de tijolos, de
um curral vazio, dos barrancos. O canto vasculha em seu silêncio o espaço da aldeia.
Os passos da lontra firmes e desajustados ao compasso do canto seguem percutindo
quando a voz se recolhe. Após algum tempo, detrás das paredes emana o pranto de uma
mãe de yãmĩyxop pouco a pouco ampliado por outras vozes de outras mães. O canto
de despedida da lontra preta que vem buscar as fileiras de fumo traz a lembrança de
pajés que se foram para as aldeias invisíveis. Outrora a lontra foi filha adotiva de um
ensaios • sessão de abertura 105

casal Tikmũ’ũn, que, com sua sabedoria, trazia a fartura da pesca. Mas a voracidade
de um cunhado que não soube retribuí-la a fez partir e mandar para esta humanidade
um dilúvio, um quase extermínio do povo Tikmũ’ũn. São as lontras que retornam hoje
às aldeias, lembrando às mulheres que seus vestidos vibrantes e coloridos feitos dos
tecidos adquiridos no mercado dos brancos foram trocados pela pele de suas mães. É
o desequilíbrio das trocas injustas que está sendo cobrado, sobretudo quando um de
seus agentes é o ãyuhuk, o povo dos não-indígenas, este povo voraz, da incontinência,
das armas, dos gritos, e de uma certa tecnologia que tudo silencia e tudo quer capturar.
Sempre que vêm às aldeias, as lontras trazem e expõem os objetos dos ãyuhuk denun-
ciando o mercado de peles que quase levou ao extermínio este povo das águas doces.
Hoje tendo como nova pele estes vestidos, as mulheres os oferecem às suas yãmĩyhex.
Os embates corporais que assistimos entre as mulheres e as lontras também inten-
sificam o devir mulher das jovens da aldeia, tornando-as fortes, resistentes e capazes de
lidar com a violência e a força que parece contrastar com a etiqueta discreta que também
aprendem a observar nestes encontros. Como tão bem nos apresentou Claudia Magnani,

se por um lado “ser mulher” entre os Tikmũ’ũn demanda a aquisição de um modo de estar e
agir no mundo delicado e quase inaudível – capaz de perceber um campo de indícios sutis,
de produzir linhas encantadas e poderosas, de entrelaçar e desvincular parentes – por outro,
implica em cultivar um corpo/espírito forte, alegre e resistente – capaz de aguentar dores,
fatigas, tristezas e deter seres violentos. (MAGNANI, 2018, p. 333-334)

Há bichos que, pelas regras maxakali,


não podemos caçar. Quando alguém na
aldeia mata e come uma lontra, yãmĩy vê
e xupapõynãg (povo-lontra-espírito) vem
para se vingar.

É um ritual que expõe a exploração


descuidada da mata, da pesca, da
caça. Coisas que o homem branco faz.
Xupapõynãg volta imitando as coisas
do homem branco, volta para mostrar
a violência contra a natureza e contra
106 ensaios • sessão de abertura

os indígenas. Por isso nós enfrentamos


xupapõynãg, para mostrar que lutamos
contra essa violência.
As meninas são muito valentes e não é fácil
para filmar a luta. Tem que saber filmar,
porque o ritual não é ensaiado, não é igual
novela, em que as pessoas ensaiam.
É a realidade.
Xupapõynãg imita as armas e as
tecnologias do homem branco. Celular,
gravador e até as filmadoras do cinema
ele imita. Esse ano, xupapõynãg veio mais
violento, como a polícia, andando com
carro, apontando arma pesada. Veio como
Bolsonaro, querendo acabar com a aldeia.
ensaios • sessão de abertura 107

Ĩnmõxa são corpos mortos, semi-apodrecidos, que não alcançaram transcendência,


não viraram yãmĩy. Vindos do subterrâneo, em contato com o sol, têm sua pele endure-
cida, impenetrável. Também surgiram dos cemitérios dos brancos. Devoradores, gritam,
não cantam, não dançam e suas mãos de faca nem recebem, nem trocam. Causam medo
aos mais íntimos. Para matá-los, é preciso esperar que adormeçam e, com taquaras,
furar seus pontos vulneráveis, os olhos, o umbigo. Dona Delcida dispôs dois ĩnmõxa
sobre folhas de bananeira: de seus corpos de polvilho do beiju destacam-se apenas os
olhos, desenhados com carvão. Os yãmĩy teriam medo destes bichos e os matariam.
Vindos da noite silenciosa em torno do kuxex, dois yãmĩy caminham sorrateiramente,
torsos curvados, longas varas às mãos. O silêncio é denso, composto dos sons noturnos,
percorrido pelos passos dos yãmĩy. Entre eles, um mastro fino e longo divide a imagem,
108

divide a noite. Esse fio tênue parece também adentrar o céu noturno permitindo que os
seres por ali subam e dali desçam novamente à terra. De súbito, o silêncio se rompe
quando, em um, dois, três golpes, os yãmĩy destroçam ĩnmõxa deitados sobre folhas de
bananeira. Sua pele dura se esfarela e os dois desaparecem novamente noite adentro.
Em um corte, vemos o kuxex, suas paredes quase a se desfazer, enquanto ouvimos o
canto (teria surgido das passagens, dos buracos feitos pelas taquaras dos yãmĩy?).

Eu sempre quis fazer um filme, que


mostrasse a política. A terra é nossa
mãe. Por que a terra é nossa mãe? As
mulheres mergulharam no rio e viraram
yãmĩyhex. Não tinha mais mulher. O lobo
(Kokexkata) foi no barreiro, onde busca
barro para produzir panela e tigela, fez
sexo com a terra e daí saiu uma menina.
Ela nasceu do mesmo barro das panelas
e tigelas que usamos para fazer nossas
comidas. O lobo escondeu a menina em
109

uma bolsa de couro e levou para sua casa.


Toda noite, ele tirava a mulher de dentro
da bolsa e dormia com ela. Os parentes
desconfiaram: Kokexkata morava no centro
do pátio e agora mudou para longe. Eles
mandaram dois coelhos (kũnĩõg) dormirem
na casa do lobo para ver se ele tinha
mulher escondida lá. À noite, enquanto
os coelhos dormiam, o lobo tirou a mulher
da bolsa. Kũnĩõg descobriu e falou: “ah,
meu tio tem mulher sim”. Os homens
vieram e o lobo jogou a mulher em cima
de uma árvore. Toda vez que o ritual saía,
a mulher barreira respondia aos cantos lá
de cima da árvore. Os homens derrubaram
a menina, destrincharam e distribuíram
as partes dentro das casas. Eles saíram,
mudaram para outra aldeia. Passaram-se
quinze dias e quando voltaram, mandaram
o beija-flor para ver se havia mulheres
na aldeia. Beija-flor vinha, via, voltava e
não tinha. Aí voltaram, beija-flor levou a
resposta de que havia mulher já dentro
das casas. Dos pedaços, surgiram
as mulheres.
110

Deste corpo da mulher de barro despedaçada (da qual nasceram as mulheres tikmũ’ũn)
surgem os eventos-dispositivos do filme Yãmĩyhex: em pedaços, o filme se compõe e
se distribui. De cada fragmento – quase a se desfazer – nasce um mundo de corpos,
movimentos, brilhos e ressonâncias. Estes pedaços são memória de tempos ancestrais
e notícias do mundo, a crônica de suas alianças, de suas violências e desequilíbrios. São
também “receitas”, modos de fazer, possibilidades de cura que não se dissociaram do
segredo e do sonho. E não se dissociaram tampouco de uma forma de povoar os terri-
tórios pelos ancestrais tikmũ’ũn. Se os corpos são acúmulos de sequências de cantos
adquiridos ao longo da vida e dos encontros com os yãmĩyxop, quando são destrinchados
e distribuídos, assim como o é o mĩmãnãm (o mastro “brilhante”, colorido, impregnado
de grafismos), permitem recompor vínculos com os territórios que percorrem. Esta é
uma forma quase invisível de resistirem à guerra que lhes é perpetrada pelo Estado,
retirando-lhes seus corpos e seus espaços de circulação. Esta foi a tese trilhada por
Douglas Campelo em um extenso e cuidadoso trabalho.

O corpo de uma pessoa tikmũ’ũn pode ser quebrado e começar a fazer circular os cantos
por aquelas pessoas com quem elas começarem a estabelecer algum tipo de troca. Possivel-
mente foi isso o que ocorreu nesses deslocamentos de pequenos bandos oriundos da Bahia
e de outras regiões de Minas Gerais. Essas pessoas carregavam em seus corpos cantos e os
fizeram circular entre outras pessoas, que assim estabeleceram relações. Não é incomum ouvir
esses nomes de pajés do passado circularem no espaço da kuxex enquanto os pajés procuram
rememorar sequências de cantos e assim fazer a máquina do parentesco começar a agir nos
corpos das pessoas tikmũ’ũn.
Essa forma de produzir sociabilidade através da circulação dos cantos remete àquela
reflexão de Suely Maxakali, quando ela nos diz que do corpo da mulher se dividiu partes que
foram diferenciadas ao longo do tempo. Dos corpos desses pajés circularam cantos que foram
partidos entre os vivos, produzindo agenciamentos e devir em coletivos e pessoas. (CAMPELO,
2018, p. 352)

Outras histórias narradas pelos tikmũ’ũn remetem ao corpo despedaçado, como é o


corpo do ancestral que se transformou em gavião e foi deplumado pelos seus parentes.
De seu corpo morto surgiu um povo encantado dos gaviões-espíritos, uma pletora de
espécies, cantos, brilhos, línguas, palavras e formas de dançar.
Esta fragmentação corporal, uma quase-morte, é também narrada pelo xamã Davi
Kopenawa, quando “os novos espíritos vão chegando a nós aos poucos”:

Depois de me cortarem, os xapiri fugiram depressa com as partes do meu corpo que tinham
acabado de trinchar, para longe da nossa floresta, muito além da terra dos brancos. Eu tinha
perdido a consciência e foi minha imagem que eles desmembraram, enquanto minha pele
permanecia no chão. Voaram para um lado com meu torso e para o outro com o meu ventre e
minhas pernas. Carregaram minha cabeça numa direção e minha língua em outra. Foram as
imagens dos sabiás yõrixiama, dos japins ayokora e dos pássaros sitipari si, todos donos dos
cantos, que arrancaram minha língua. Pegaram-na para refazê-la, para torná-la bela e capaz
111

de proferir palavras sábias. Lavaram-na, lixaram-na e alisaram-na, para poder impregná-la


com suas melodias. Os espíritos das cigarras a cobriram com penugem branca e desenhos de
urucum. Os espíritos do zangão remoremo moxi a lamberam para livrá-la aos poucos de suas
palavras de fantasma. Por fim, os espíritos sabiá e japim puseram nela as de seus magníficos
cantos. Deram-lhe a vibração de seu chamado: “Arerererere!”. Tornaram-na outra, luminosa e
brilhante como se emitisse raios. Foi assim que os xapiri prepararam minha língua.
(...) Então, assim que eles recompuseram as partes do meu corpo, meu pensamento começou
a desabrochar de novo. Senti-me acordar, imerso no perfume forte da tinta de urucum com que
me tinham pintado e na fragrância de suas plantas mágicas yaro xi e aroari. A tropa dos xapiri
recém-chegados permanecia junto a mim, todos imóveis, no brilho de seus adornos magníficos.
Tinham concluído sua dança de apresentação. Agora estavam ansiosos para construir uma casa
nova na qual pudessem se instalar! (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 154-155)

Nossos rituais registram muita coisa do


mundo hoje. Se vê algo novo, vai surgir
o canto também, o pajé vai sonhar com
yãmĩy e vai trazer o novo canto. Nossos
cantos registram tudo o que vemos: os
rios, o céu, os bichos; coisas do fazendeiro,
carro, avião. Nossos rituais fazem canto de
casa, carro, objetos dos não-indígenas
Onde moramos, a terra é pequena. Tem
pouca caça também. Antigamente, era
muita floresta, muita caça e muita fruta.
O nosso canto canta através dos bichos, da
caça, da pesca. Se não tem mais os bichos,
não vamos ter os cantos.
Mas os cantos preservam os bichos que
não existem mais hoje: a onça pintada, a
112

anta. Não acabou, porque está nos cantos.


Não acaba porque nossos desenhistas
estão registrando também
Acabou, mas não acaba.
113

A mulher de barro tinha colares no


pescoço e nos tornozelos. Quando seus
pedaços destrinchados se transformaram
em outras mulheres, as partes com colares
brilhantes, que haviam ficado com os
pajés, demoraram mais tempo para se
transformar. Toda vez que as mulheres
maxakali iam pegar água, cantavam: “colar,
se transforma rápido”.

Como que atraídas pelo canto, uma breve multidão de mulheres chega com a manhã.
Elas carregam cobertores estampados e coloridos e formam uma longa fila diante do
kuxex. A câmera acompanha a fila, agora nos mostrando os rostos abrigados pelos
cobertores: o cinema parece cumprir ali, precariamente, sua tarefa política, aquela que
Georges Didi-Huberman (2011) resumiu pela pergunta: “como fazer para que os povos
se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento?”. Como fazer para que seus
rostos apareçam, em recusa seja à sua invisibilidade (uma subexposição), seja à sua
visibilidade demasiada (uma sobreexposição)? De que maneira pode o cinema, tal como
reivindica Huberman (a partir de Hannah Arendt), dar a ver ou cumprir “uma parcela
da humanidade”?
114

Mulheres e crianças aguardam o momento em que as yãmĩyhex lançarão cinzas,


aquelas cinzas encantadas do corpo queimado da primeira mulher que os homens
mataram, para que tenham sorte na pescaria por vir. Enquanto a fila caminha, uma
nuvem se forma, como se estivéssemos a ver, em câmera lenta, a rápida passagem da
cobra multicor, que deixa o rastro de poeira em sua passagem.

Referências
CAMPELO, Douglas Ferreira Gadelha. Das partes da mulher de barro: a circulação o
de povos, cantos e lugares na pessoa tikmũ’ũn. Tese de doutorado. Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Floria-
nópolis, 2018.
DAVOINE, Françoise. Don Quichote, pour combattre la mélancolie. Paris: Stock, 2008
GUIMARÃES, César. A estética que vem. In: PICADO, Benjamin. Escritos sobre comu-
nicação e experiência estética: sedimentos, regimes, modalidades. Belo Horizonte:
PPGCOM/UFMG, 2019.
HUBERMAN-DIDI, George. Coisa pública, coisa dos povos, coisa plural. In: Silva, R. (Org.).
A república por vir: Arte, política e pensamento para o Século XXI. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2011.
KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami.
Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das letras, 2015.
MAGNANI, Claudia. Un ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes
extra-ordinários das mulheres tikmũ’ũn-maxakali. Tese de doutorado. Programa de
Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018.
ROMERO, Roberto. A errática tikmũ’ũn_Maxakali: imagens da guerra contra o Estado.
Dissertação de mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional, UFRJ. Rio de Janeiro, 2015.
ensaios • mostra mortos e a câmera 115

Abraços da Morte1
Michael Boyce Gillespie2
Tradução: Victor Guimarães

Estou interessada em maneiras de ver e imaginar respostas ao terror


nas várias e variadas maneiras em que nossas vidas negras são vividas
sob ocupação; maneiras que atestam as modalidades
da vida negra3 na, como, sob e apesar da morte negra.
Christina Sharpe em In the Wake: On Blackness and Being

A concepção de Christina Sharpe de “trabalho na vigília” se concentra em abordar como


a cultura visual e expressiva representa e contempla a morte e a vida após a morte da
escravidão na vida negra4. Para Sharpe, isso envolve um foco em como “a literatura,
a performance e a cultura visual observam e mediam essa des/sobrevivência”.5 Sua
abordagem da existência “na vigília” como um posicionamento crítico se relaciona ao
estrutural e ao afetivo, com referência a uma gama de conotações, incluindo “velar os
mortos, o caminho de um navio, uma consequência de algo, na linha de fuga e/ou de visão,
o despertar e a consciência6”.7 O trabalho de Sharpe mobiliza novos investimentos para

1.Publicação original: Gillespie, Michael Boyce, “Death Grips” in Film Quarterly, Vol. 71, no. 2, Winter 2017, pp.
53-60 (c) 2017 by the Regents of the University of California. Published by the University of California Press.
[Publicado originalmente pela Universidade da Califórnia Press]
2. Michae Boyce Gillespie é um teórico e historiador do cinema com interesse em cultura visual e expressiva
negra, teoria do cinema, gênero, historiografia visual, cinema global, estudos da música popular e arte contemporânea.
É autor do livro Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film (Duke University Press, 2016).
3. N.T. Há um dissenso atualmente em torno da melhor maneira de traduzir o vocábulo “black”. Alguns tradutores,
reivindicando um movimento semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos a partir do fim dos anos 1960,
com a adoção do “black” (em contraposição ao “negro”, que era a palavra politicamente correta para se referir às
populações afro-americanas até aquele momento), têm preferido valorizar o termo “preto/a”. No entanto, diante
de uma predominância do “negro” nas discussões de cinema no Brasil – “cinema negro”, “crítica negra”, “produção
negra” – e da presença minoritária de expressões como “cinema preto”, preferimos manter o termo “negro”.
4. SHARPE, Christina. In the Wake: On Blackness and Being. Durham: Duke University Press, 2016, p. 20.
5. Ibidem, p. 14.
6. N.T. As expressões de Christina Sharpe são “wake work” e “in the wake”. O vocábulo wake possui uma polissemia
intraduzível para o português: pode significar vigília, despertar, velório, mas também, num campo semântico
distinto, o rastro deixado por uma embarcação na água, que leva a expressões figurativas como “na esteira de”
ou “no encalço de”. Como aponta Michael Gillespie, a autora explora no livro as ressonâncias entre os vários
sentidos, em um jogo de palavras que não se pode traduzir inteiramente.
7. Ibidem, pp. 17-18.
116 ensaios • mostra mortos e a câmera

o estudo da morte negra e da arte da negritude. Com o cinema e o vídeo contemporâneo


negro em mente, seu trabalho sugere de forma vital uma mudança de ênfase, do retrato
do horror para uma concentração em como as formas cinematográficas promovem uma
resistência crítica e estética ao horror do antinegritude.
A morte negra no cinema contemporâneo exige entender como a negritude cine-
matográfica sempre envolve provocar novas e entrelaçadas medidas das capacidades
estéticas, culturais, políticas e sociais da cultura visual e expressiva negra. Como resul-
tado, a consequência crítica da negritude cinematográfica sempre envolve questões
de afeto, narratividade, historiografia visual e gêneros/modalidades.8 A morte negra,
portanto, significa tanto a violenta injustiça das mortes afro-americanas quanto a repre-
sentação da morte no cinema. Três curtas-metragens de cineastas negras representam
um arquivo cada vez maior de trabalhos recentes que merecem atenção crítica à medida
que avançam práticas cinematográficas que apontam para novas filosofias políticas e
circuitos de conhecimento relacionados à morte negra e à forma fílmica. Tomados em
conjunto como um “cinema na vigília”, os três – Dead Nigga BLVD., de Leila Weefur
(2015), Everybody Dies!, de Frances Bodomo (2016) e White, de A. Sayeeda Clarke
(2011) – lançam uma miríade de proposições formais sobre a morte negra que incluem
a animação, o grotesco racial e a ficção especulativa.

Essas representações são mediadas por telas, filtradas por vozes estranhas e processadas
por quantidades infinitas de dados digitais... Eu me debati com as formas de comunicar as
maneiras pelas quais os corpos negros são constantemente confrontados e negociam o espaço
liminar entre a vida e a morte. Eu queria construir esse lugar fictício como se ele existisse. Mas,
como o céu e o inferno, ele não possuía localização ou associações específicas a uma geografia
tangível... O lugar e os personagens nele tinham que habitar e funcionar dentro do espaço da
necrose, ao qual o staccato natural do stop motion se presta.

Leila Weefur9

Um boneco é introduzido no quadro por um barbante pendente de cima, e colocado


em um espaço desolado ao lado de modelos de edifícios, garrafas espalhadas no chão
fabricado e cordas de forca penduradas em árvores artificiais. Três outros bonecos
chegam ao longo do filme. Um dos bonecos veste calça, camisa social e chapéu fedora,
o outro veste jeans e um capuz cinza e o terceiro tem um boné de malha preto, capuz
preto e jeans. No entanto, esses bonecos não são objetos anônimos ou desconhecidos.
Cada um deles porta uma imagem icônica distinta como rosto: Emmett Till, Trayvon
Martin e Oscar Grant.10 Esses objetos com rosto de fotografia produzem um eterno

8. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film. Durham: Duke
University Press, 2016.
9. WEEFUR, Leila. (Comunicação pessoal). 29 de junho de 2017.
10. N.T. Nomes nacionalmente conhecidos de jovens negros brutalmente assassinados em situações de racismo
nos EUA. Aos 14 anos de idade, Emmett Till foi assassinado em 1955 em Money, Mississipi, supostamente depois
ensaios • mostra mortos e a câmera 117

retorno do olhar: seus olhos são aberturas para três almas ausentes, todas consideradas
ameaçadoras, julgadas descartáveis e emolduradas como inelegíveis para empatia ou
proteção.11 Filmado em preto e branco, Dead Nigga BLVD. de Leila Weefur centra-se
nesses três bonecos solenes.12 Graça seletiva: três para o mundo inteiro ver.
Constituídos como força fantasmagórica por meio da animação em stop motion,
os bonecos são “objetos performáticos” posicionados como imagens em movimento
encarnadas.13 Aqueles que foram, de forma terminal, desarticulados, tornam-se figuras
articuladas em movimento. Como Jack Halberstam observou, “a dinâmica entre movi-
mento e quietude é a dinâmica entre a vida e a morte, que não é captada em nenhum
lugar de maneira mais dramática do que na animação em stop motion”.14
Além disso, a inspiração da prática de animação dos primeiros anos de Jan
Švankmajer desperta a fabulação da própria Weefur de uma revista de hantologia15
contemporânea. Não o tropeço ou a gagueira dos que foram enterrados indevidamente,
nem dos mortos-vivos. Essas figuras em movimento ecoam um argumento que Sianne
Ngai tece em suas considerações sobre raça, automação e animação: como o efeito da
animação demonstra uma fusão de “sinais de sujeição do corpo ao poder com sinais
de sua liberdade ostensiva”.16 Dead Nigga BLVD. emprega animação para conjurar
matéria negra, numa intimação em stop motion dos remanescentes ativos da morte.
Ao longo do filme, a voz over opera menos como um narrador onisciente e abstrato
do que como uma voz de deliberação, processamento e disputa. Há um deslizamento
impressionante na narração, uma vez que ela opera, em partes iguais, como narradora
onisciente e como monólogo interior de suas figuras corporificadas. Consideremos
esta passagem, por exemplo: “Como passamos a existir nesse estado de nada... Há um
momento em que seus sentidos do trabalho exterior se dissolvem e você pode sentir,

de ter assobiado para uma mulher branca. Em 2009, Oscar Grant foi morto aos 22 anos, em Oakland, Califórnia,
com um tiro pelas costas disparado pelo policial Johannes Mehserle enquanto estava algemado e de joelhos.
Trayvon Martin, aos 17 anos, foi assassinado pelo segurança de um condomínio, George Zimmerman, em Sanford,
Flórida, em 2012. Nos protestos do movimento Black Lives Matter, esses nomes foram constantemente invocados.
11. KELLEY, Robin D. G. “Thug Nation: On State Violence and Disposability”. In: CAMP, Jordan T. HEATHERTON,
Christina (eds). Policing the Planet: Why the Policing Crisis Led to Black Lives Matter. New York: Verso, 2016,
pp. 67–68.
12. Após a decisão do júri de não indiciar Daniel Pantaleo (3 de dezembro de 2014) pelo assassinato de Eric
Garner (17 de julho de 2014), a galeria Smack Mellon no Brooklyn, Nova York, adiou uma exposição planejada
e abriu uma chamada para trabalhos que respondessem ao “fracasso contínuo dos Estados Unidos em proteger
seus cidadãos negros da discriminação e violência policial”. Grande parte dos trabalhos recebidos nessa chamada
se tornaram a exposição Respond, que ficou em cartaz de 17 de janeiro a 22 de fevereiro de 2015. Dead Nigga
BLVD., realizado durante o primeiro ano de Weefur como aluna de MFA no Mills College, é uma das peças
incluídas na exposição Respond. Disponível em: http://smackmellon.org/index.php/exhibitions/past/respond/
13. Ver PROSCHAN, Frank. “The Semiotic Study of Puppets, Masks, and Performing Objects”. Semiotica, 47
(1983), p. 4.
14. HALBERSTAM, Jack. The Queer Art of Failure. Durham: Duke University Press, 2011, p. 177.
15. Conceito criado pelo filósofo Jacques Derrida em seu livro Espectros de Marx (1993). O neologismo (no
francês, “hantologie”) costuma ser traduzido assim.
16. NGAI, Sianne. Ugly Feelings. Cambridge and London: Harvard University Press, 2005, p. 100.
118 ensaios • mostra mortos e a câmera

tocar, ver e provar o fim… No Dead Nigga BLVD., a soma de nossa existência é quase
irrecuperável”.
O rosto do boneco de Emmett Till é a fotografia de um garoto bem vestido e sorri-
dente do natal de 1957, uma imagem que antes era metade de uma díade esmagadora,
destinada a obrigar o reconhecimento e a empatia pela vida de um garoto comum, filho
de alguém, alguém que era amado.17 A fotografia de Trayvon Martin é uma selfie com
capuz – seu autorretrato e sua autovaloração casuais circularam retroativamente como
uma veneração e um prenúncio.18 O rosto do boneco de Oscar Grant o mostra sentado
e sorrindo com um bebê no colo. Essa fotografia, fornecida por sua família e posterior-
mente cortada e distribuída amplamente, usualmente mostra uma parte da cabeça do
bebê em seu canto inferior esquerdo, um corte que conota uma ruptura brutal, uma
demarcação de sua perda de lugar entre os vivos. Todas as três fotografias ressoam
com a solicitação identificativa de um “Eu sou ____”, emoldurada para atestar uma vida
e uma injustiça.19 Eles são meninos e homens negros executados por assassinos tanto
institucionais como contratados.
Essas fotografias icônicas, juntamente com seus bonecos em movimento, são gene-
rativamente imbricadas e impulsionadas por historiografias dedicadas à mobilização de
corpos e às provocações de resistência. Como Leigh Raiford argumenta de maneira vital:

As fotografias se tornam ferramentas para auxiliar a memória. Somos convidados, deman-


dados, até exigidos a recontar e rememorar. A lembrar. Mas o que exatamente estamos sendo
demandados a lembrar? Como estamos sendo demandados a lembrar? E com que finalidade?20

Cada uma dessas fotografias, reapropriadas como o rosto de um boneco, transmite


uma frequência visual distinta de memória e capacidade de reclamação, uma irrecon-
ciliação própria.21 A senciência indicial das fotografias é combinada e amplificada pela
escritura formal de Weefur como um estado além da morte.
Em três sequências recorrentes, cada boneco se aproxima individualmente de um
monitor em uma das paredes do modelo de edifício que projeta as circunstâncias de
suas respectivas chegadas neste local. Esta é a sua vida. Esta é a sua morte. O monitor de
Till mostra um close-up de sua foto de natal, um caixão levado por carregadores, a foto
de um garoto destruído e um corpo que uma mãe não deixaria que fosse silenciado por
soda cáustica e mentiras. O monitor da figura de Martin mostra as imagens de vigilância

17. Ver BAKER, Courtney. Humane Insight: Looking at Images of African American Suffering and Death. Urbana–
Champaign: University of Illinois Press, 2015.
18. FLEETWOOD, Nicole R. Racial Icons: Blackness and the Public Imagination. New Brunswick: Rutgers University
Press, 2015, pp. 16–17.
19. SCHWARTZ, Margaret. Dead Matter: The Meaning of Iconic Corpses. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2015, p. 60.
20. RAIFORD, Leigh. Imprisoned in a Luminous Glare: Photography and the African American Freedom Struggle.
Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 4.
21. Ver BUTLER, Judith. Frames of War: When is Life Grievable? New York: Verso, 2009. N.T.: Tradução brasileira:
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Tradução de Sérgio Lamarão e Arnaldo
Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
ensaios • mostra mortos e a câmera 119

de suas compras de Skittles e um chá gelado da marca Arizona antes de voltar para casa
e encontrar seu fim. Ele veste um capuz e, portanto, convida a um cenário letal de perfis
em que “o capuz primeiro sinaliza uma possível ameaça e depois torna visível o possível
criminoso”.22 Para a figura de Grant, o monitor reproduz as imagens de celular de seu
assassinato na estação Fruitvale. A circulação viral do vídeo de Grant ocorreu, como em
muitos outros casos em que gravações digitais de afro-americanos sendo assassinados
pela polícia, na esperança de que a visão do ato em si pudesse ser uma verdade proba-
tória que garantiria justiça.23 Esse arquivo visual representa os canais midiáticos do
jornalismo impresso, das mídias sociais e da “contra-vigilância” dos registros digitais.24
As narrativas coletivas do trio demonstram os horrores cotidianos e sistêmicos da
vida negra, não aqueles perpetrados pelo Destino, mas aqueles impostos por árbitros
e executores aleatórios. Os três bonecos exibem tristeza, consolam-se, agitam-se com
conversas e se unem numa comunhão dos mortos negros. A reunião deles sugere que
os mortos negros precisam de mais do que moedas nas pálpebras para encontrar a paz
(ou justiça) do outro lado. Os mortos negros podem atravessar com a ajuda daqueles que
foram antes, dos roubados, como Claudia Rankine explica: “porque os homens brancos
não são capazes de policiar sua imaginação, os homens negros estão morrendo”.25 Nos
seus comentários finais sobre a antinegritude americana e sua representação na cultura
visual e expressiva negra, Elizabeth Alexander acrescenta: “O que as pessoas fazem com
suas histórias de horror? O que significa testemunhar no ato de assistir a uma narração?
O que significa carregar a memória cultural na carne?”26 Dead Nigga BLVD. oferece uma
proposição adicional: “O que significa para os mortos testemunharem suas próprias
mortes?” Antes do início da sequência de créditos no fechamento do filme, aparece
uma nota: Quando Isso Terminará? A animação com bonecos do filme, seu exercício
da vida dos objetos negros, sugere uma resposta a essa pergunta, reconhecendo que o
que distingue um boneco de uma pessoa, uma coisa de um sujeito, é uma questão de
poder e não apenas de interpretação.27

Eu estava sendo demandada a fazer um filme de sonhos, mas eu estava tendo muitos pesadelos
em torno da violência policial e essas eram as imagens em minha mente... O centro emocional
do meu filme é uma mulher chamada Elizabeth Poles. Ela era uma mulher negra mais velha
que se levantou um dia e simplesmente começou a andar. Ela estava andando numa estrada

22. NGUYEN, Mimi Thi. “The Hoodie as Sign, Screen, Expectation, and Force”. Signs, 40.4, Verão de 2015, p. 799.
23. Ver MALKOWSKI, Jennifer. Dying in Full Detail: Mortality and Digital Documentary. Durham: Duke University
Press, 2017, p. 170. Ver JUHASZ, Alexandra. “How Do I (Not) Look? Live Feed Video and Viral Black Death,” Jstor
Daily, 20 de julho de 2016. Disponível em: https://daily.jstor.org/how-do-i-not-look/.
24. Ver BROWN, Simone. Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Durham: Duke University Press, 2015.
25. RANKINE, Claudia. Citizen: An American Lyric. Minneapolis: Graywolf Press, 2014, p. 135.
26. ALEXANDER, Elizabeth. “‘Can You Be Black and Look at This?’: Reading the Rodney King Video(s)”. Public
Culture, 7.1, 1994, p. 94.
27. Ver CHIN, Mel. Animacies: Biopolitics, Racial Mattering, and Queer Affect. Durham: Duke University Press,
2012, p. 210. Ver MCMILLAN, Uri. “Objecthood, Avatars, and the Limits of the Human”. GLQ: A Journal of Lesbian
and Gay Studies 21.2/3, Junho de 2015, pp. 224-227.
120 ensaios • mostra mortos e a câmera

na Virgínia e tinha sido vista em vários estados, vestida de negro da cabeça aos pés, com uma
bolsa preta e uma bengala. Havia um peso emocional nela, nesse momento desvairado, que
ficou impregnado em mim.

Frances Bodomo28

“O racismo é a produção e a exploração de vulnerabilidades diferentes de grupos específicos


à morte prematura, sejam elas sancionadas pelo Estado ou extrajudiciais.”29 Ruth Wilson
Gilmore mapeia como as forças institucionais e não institucionais regulam, constroem e
manobram as possibilidades de vida de grupos específicos, de acordo com suscetibilidades
específicas. Essa é a lógica em jogo que pressiona em direção ao resultado da morte prema-
tura. A irracionalidade brutal da antinegritude sempre prevê a ocasião do grotesco racial, o
que, no cinema, invariavelmente significa considerar como a própria forma do filme encena
a antinomia entre humano e não humano, entre pessoa e propriedade.30 O poder epistemo-
lógico gerado pelas representações do grotesco racial produz uma oposição direta à cultura
visual antinegra.31
Everybody Dies!, de Frances Bodomo, encena uma lógica que carrega resultados
inquietantes de absurdo e morte violentos na América.32 A palavra “PLAY” aparece no
canto superior direito de uma tela azul. A imagem em tela cheia é suave e acompanhada
por um ruído na trilha sonora. As linhas de rastreamento se espalham pela tela enquanto
as imagens aparecem ao longo da parte superior e inferior do quadro, numa onda perma-
nente de pedaços de óxido ausentes, um glitch à moda antiga, baseado na degradação
da fita de vídeo, as memórias materiais de um colecionador fantasma. Num gesto em
direção a uma mídia abandonada, a aparência do vídeo induz a uma nostalgia analógica.33
Um corte leva da tela azul até uma sequência de montagem com imagens de crianças
negras brincando, seus rostos em expressões variadas, o título do programa organizado

28. BODOMO, Frances. (Comunicação pessoal). 30 de julho de 2017. Poles foi vista caminhando da Geórgia até
Ohio ao longo de vários meses durante o verão de 2014.
29. GILMORE, Ruth Wilson. “Race and Globalization”. In: JOHNSTON, R. J. TAYLOR, Peter J. WATTS, Michael J.
(eds). Geographies of Global Change: Remapping the World. Malden, MA: Blackwell, 2002, p. 26.
30. Ver BEST, Stephen. The Fugitive’s Properties: Law and the Poetics of Possession. Chicago: University of
Chicago Press, 2010. Ver CASSUTO, Leonard. The Inhuman Race: The Racial Grotesque in American Literature
and Culture. New York: Columbia University Press, 1997.
31. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film. Durham: Duke
University Press, 2016, pp. 17-49. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. “Dirty Pretty Things: The Racial Grotesque and
Contemporary Art”. In: MAUS, Derek. DONAHUE, Jim. Post-Soul Satire: Black Identity after Civil Rights. Jackson:
University Press of Mississippi, 2014, pp. 68–84.
32. Everybody Dies! é um dos cinco curtas-metragens de cinco cineastas diferentes de Nova York que compõem
a antologia Collective: Inconscious (2016). Cada cineasta (Daniel Patrick Carbone, Lauren Wolkstein, Josephine
Decker, Lily Baldwin e Bodomo) compartilhou uma “descrição de sonho”, uma descrição muito breve de um sonho
que eles tiveram, que foi então designado e adaptado por um dos outros cineastas. O filme de Bodomo é uma
adaptação expansiva do sonho de Josephine Decker.
33. HILDERBRAND, Lucas. Inherent Vice: Bootleg Histories of Videotape and Copyright. Durham: Duke University
Press, 2009, p. 6 e p. 13.
ensaios • mostra mortos e a câmera 121

para se parecer com um arco-íris e uma mulher negra com uma túnica preta e um grande
xale preto na cabeça. Em um plano, ela segura uma foice. Em outro, ela fica ao lado de uma
porta com a inscrição “MORTE”. Um locutor diz o texto de abertura do programa, sobre
os ruídos de gritos e aplausos de crianças: “Da antecâmara da morte, seja bem-vindo a
Todo Mundo Morre, seu portal para a vida após a morte, toda quinta às 8:30 da manhã.
Veja como sua anfitriã, Tripa, a Estripadora, recebe os recém-mortos em seu novo lar. E
agora, a estrela de Todo Mundo Morre, Tripa, A Estripadora!”.
Tripa (Tonya Pinkins) está no palco, um proscênio improvisado com uma parede de
serpentinas douradas como pano de fundo, um mapa dos Estados Unidos e o banner
de arco-íris de Todo Mundo Morre pendendo de cima, e um microfone em um suporte
conectado a um amplificador no chão. Uma legenda anuncia seu título oficial: Depar-
tamento da Morte Negra. Os adesivos nas portas que ficam à esquerda e à direita do
palco simplesmente indicam: VIDA e MORTE. Uma bola de espelhos paira acima. Esta
é a discoteca da morte.
A baixa fidelidade dos valores de produção desse programa de televisão alude à
programação da televisão aberta e sua comunidade pressuposta de um “nós”, mas, como
sugerem os rostos da montagem inicial, este é um programa voltado para as crianças
negras, seu público-alvo em todos os sentidos. O conceito do filme – um programa de
televisão sobre crianças negras mortas sendo introduzidas à vida após a morte – é uma
comédia absurda construída a partir da combinação entre uma emissão de TV aberta,
um programa infantil e um game show. Com a descartabilidade negra apresentada como
entretenimento, o grotesco racial fervilha de críticas às economias afetivas da morte negra.
O filme produz um anacronismo cruel, uma incongruência entre o passado analógico e
o horror cotidiano do presente futuro. No entanto, Everybody Dies! não é simplesmente
uma reedição de um estilo antigo ou morto, uma vez que sua encenação dramatiza o
impacto duradouro da antinegritude e da supremacia branca.
“Você pode não estar pronto, mas eu estou pronta para você”, diz Tripa. Ela mantém
seu sorriso por muito tempo, enquanto um xilofone a leva a cantar a música-tema do
programa com a melodia de “Brilha, brilha, estrelinha”, uma canção de ninar que significa,
aqui, algo mais profundo e permanente do que fazer dormir.

Vocês sabem que vai acabar


Não precisam nem tentar
Podem chorar ou sofrer
Todo mundo vai morrer
Sou sua última e única amiga
É assim que sua história termina
Me dê a mão, vamos caminhar
E esse mundo vamos deixar

“Você pode não estar pronto, mas eu estou pronta para você”, diz Tripa, enquanto
lista as maneiras inesperadas de perecer: escorregar no chuveiro, ser atropelado por um
carro ou sucumbir a uma doença súbita. A trajetória de estranhamento do filme aumenta
122 ensaios • mostra mortos e a câmera

com o som dos gritos das crianças, enquanto tiros apontam para um mapa que o locutor
declara ser “O Mapa do Assassinato”. Vinculando uma cartografia da morte negra a
uma aula de geografia cultural americana, o mapa entra em erupção com o piscar das
lâmpadas vermelhas que sinalizam alguém recém expirado. Tripa puxa seu microfone
de cabeça enquanto seu tom muda de formal para desvairado, e ela começa a sair do
roteiro: “Você pode estar fugindo da polícia. Você pode estar fugindo de um estranho
que pensa que ele é a polícia. Você pode estar brincando com uma arma de brinquedo.
Você pode não estar vendendo cigarros”. Ela adiciona novas letras à música-tema:

Todo mundo vai morrer


Ela e ele e você e você
Cuidado com o atropelo
Especialmente se você é negro

Aparentemente, uma decisão executiva é tomada a partir da sala de controle do


estúdio, a tela é tomada por barras coloridas e aparece uma mensagem: “Por favor,
aguarde. Estamos enfrentando dificuldades técnicas”.
Michael Brown. Trayvon Martin. John Crawford III. Tamir Rice. Eric Garner. Eles são
os assassinados a quem Tripa alude em seu desvio do roteiro, complementando a litania
de circunstâncias acidentais com incidentes de intenção fatal e deliberada. Existem os
fatos naturais e existem os atos cruéis.
Numa variante arrepiante do jogo de carnaval conhecido como caça à toupeira, um
segmento CAÇA À ALMA se abre com uma foto estática de um jovem garoto negro, com
a legenda “DeShawn Matthews. Delinquente juvenil”. Segue-se um corte seco para uma
mão ensanguentada disparando dardos em uma sacola, depois um grito e, em seguida,
um corte para Tripa se curvando e golpeando a sacola com uma frigideira de metal.
Quando a sacola está parada, ela se levanta e diz: “É assim que você caça uma alma”.
Ela então se esforça enquanto arrasta a sacola pela porta marcada MORTE.
No segmento intitulado “Captura de hoje”, Tripa pergunta a cinco crianças negras:
“Qual é a resposta certa?”. As crianças respondem com: “quarenta e oito anos”, “cara-
mujo”, “Nova Jersey”, “12h30” e “basquete”. Tripa responde: “Ohhhh, crianças. Essas
respostas estão erradas. A morte é a resposta certa, porque todo mundo morre!” As
crianças gritam enquanto são empurradas, puxadas e arrastadas pelo portal da MORTE.
Não há lógica para explicar suas mortes.
Tripa está tendo um dia ruim em seu trabalho, que não tem a glória e a elegância de
seu mítico antecessor, Charon. Ela tenta sair e escapar de seu papel, mas está tão presa
na armadilha quanto as crianças. Ela corre pela porta da MORTE apenas para chegar de
volta à porta da VIDA. Tripa é uma mera marionete do Departamento da Morte Negra, o
rosto institucional de uma burocracia maior fora da tela. Tripa é apenas uma trabalhadora,
não uma gerente, não uma executiva e, certamente, não uma integrante do conselho.
O papel de Tripa como uma pastora sisifiana do passado/presente/futuro invoca
uma longa história de jogos mortais nos quais o show deve continuar. O ciclo vicioso
da forma do programa produz significado para a incessante morte negra. No final, Tripa
ensaios • mostra mortos e a câmera 123

tenta cantar a canção de ninar novamente, mas agora seu sorriso treme enquanto ela
chora. A voz de um locutor direciona abruptamente os espectadores para o próximo ciclo.
“Isso é tudo, pessoal, no episódio desta semana. Sintonize na próxima semana, e vamos
começar tudo de novo!”. Corte seco para o preto. Nesse espaço de nada, ouvimos o
som de uma inspiração aguda, o som de alguém surpreso – ou arrebatado. Jogando com
uma relíquia VHS de um tempo sem esperança, no qual vidas negras não importavam,
Everybody Dies! é um programa infantil para crianças que nunca são codificadas como
crianças. EJETAR.

Você abre esta porta com a chave da imaginação. Além dela está outra dimensão – uma
dimensão de som, uma dimensão de visão, uma dimensão da mente. Você está entrando numa
terra de sombra e substância, de coisas e ideias. Você acaba de chegar Além da Imaginação.

Rod Serling34

O tipo de crítica especulativa de Rod Serling em Além da Imaginação (The Twilight Zone,
CBS, 1959-1964) operava consistentemente ao longo de um arco temático que incluía
estranhamento, ironia, deus ex machina ou simplesmente justiça poética. Não há tempo
suficiente; nós deixamos o diabo livre. Nós não acreditamos em desejos; nós nos afas-
tamos de um sol que não veio. Nós estamos mortos. Parte do significado duradouro de
Além da Imaginação está nas maneiras pelas quais a série de televisão representou o
tempo. A ficção especulativa geralmente se concentra em medir as condições do presente
através de uma escavação dos restos do amanhã, que distende as lógicas temporais e
epistemológicas da narrativa e da historiografia.
Consequentemente, as ficções especulativas negras promovem prodigiosas ence-
nações da vida política, das memórias culturais, das capacidades expressivas e visuais
e das texturas historiográficas da negritude. O afrofuturismo opera como um princípio
organizador e uma narratividade crítica da tradição especulativa negra e de suas “possibi-
lidades de intervenção dentro da dimensão do preditivo, do projetado, do proléptico, do
previsto, do virtual, do antecipatório e do futuro condicional”.35 Isso é o que Kodwo Eshun
chama de possibilidades “cronopolíticas” do afrofuturismo, como um modo artístico de
resistência que concebe o tempo como o cerne gerador da fabulação cultural e política.

Digo às pessoas que, no instante em que fomos colocados nos navios negreiros, já estávamos
vivendo no mundo do Branco. Qualquer coisa que pudesse ser extraída de nós – nossas almas,
nosso próprio ser – foi tomada e transformada em mercadoria.

34. Narração de abertura da quarta e quinta temporadas de Além da Imaginação (The Twilight Zone, CBS,
1959–1964).
35. ESHUN, Kodwo. “Further Considerations on Afrofuturism”. CR: The New Centennial Review, 3. 2, Verão de
2003, p. 293.
124 ensaios • mostra mortos e a câmera

Sayeeda Clarke36

Em White, de A. Sayeeda Clarke, Além da Imaginação é reinventado em uma chave


especulativa negra. O filme fez parte da segunda temporada de FutureStates (2010-
14), uma iniciativa de websérie inspirada em Além da Imaginação, desenvolvida pelo
Independent Television Service (ITVS) para apoiar e financiar o cinema independente
em uma plataforma alternativa conduzida por cineastas independentes (“prognostica-
dores”), selecionados para “explorar possíveis cenários futuros através das lentes das
realidades globais de hoje”.37
Com uma paleta estética inspirada tanto em Um Dia de Cão (Sidney Lumet, 1975)
como em Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón, 2006), White abre com a cena de um
homem negro andando de bicicleta pela rua. O nome dele é Bato (Elvis Nolasco). Ativista
comunitário, ele grita “Nem uma gota!”, enquanto entra pelas ruas ladeadas pelo mercado.
Não há carros. Uma transmissão de rádio envia notícias e celebra o feriado. Esta é a
cidade de Nova York cinco dias antes do natal, em um dia típico sob uma temperatura
de 48 graus.
Bato chega ao centro comunitário onde trabalha. Ao entrar, ele rasga panfletos que
dizem: “PRECISA DE CA$H RÁPIDO. HÁ UMA RESPOSTA FÁCIL: EXTRAÇÃO. TRANS-
FORME COR EM CA$H.” Corta para o interior e uma sala cheia de crianças desenvol-
vendo projetos de arte. A sala é decorada com ilustrações de Emory Douglas, desenhos
de James Baldwin e Jean-Michel Basquiat, um letreiro “Happy Kwanzaa” e uma pintura
de uma menorá. Enquanto as crianças juntam suas coisas para ir embora, uma jovem
fica para trás em sua mesa de desenho. Quando Bato pergunta o que está errado, ela
responde: “Meu pai fez isso”. Bato faz uma pausa. “É um apagão”, ele diz, enquanto pega
a mão dela, toca sua pele e diz: “Você sempre terá a herança dele em você”.
Bato é chamado em casa. Sua parceira, no último mês de gravidez, está prestes a
entrar em trabalho de parto e precisa de atenção médica. Eles não têm recursos para
a taxa de inscrição da clínica. Precisando encontrar dinheiro imediatamente, Bato sai
apressado, mas não antes que sua sogra lhe diga solenemente: “Você sabe o que eles
levarão ao invés disso”. O cofre do centro comunitário está vazio, a tentativa de assalto
à mão armada de Bato é frustrada. Sua única opção restante é então revelada.
Bato entra em um Centro de Extração de Melanina, identificado por uma placa com
um slogan tranquilizador: “Juntos podemos sobreviver ao sol”. Corta para a um consul-
tório médico dentro do prédio, onde Bato está de pé na frente de um mapa do mundo
em vários tons de marrom, com a legenda: Distribuição de Cores da Pele Humana. Bato
fica pensativo enquanto olha para um formulário de consentimento. Perguntado sobre
sua raça por um funcionário, Bato responde: “Negro. Porto-riquenho negro.” O técnico
diz a ele que, após o procedimento, seu status oficial será “desmelanizado”. A cena
final do filme é a de Bato chegando em casa a tempo do nascimento de sua filha. Seus

36. CLARKE, A. Sayeeda (Comunicação pessoal). 4 de agosto de 2017.


37. “FutureStates”. Pbs.org, 2017, Disponível em: www.pbs.org/show/futurestates/.
ensaios • mostra mortos e a câmera 125

braços cinzentos, desmelanizados, seguram sua bebê recém-nascida, rica em melanina.


O choro da criança continua audível quando a tela fica preta.
Com o conceito de uma camada de ozônio severamente comprometida, White ressoa
como uma forma daquilo que Selmin Kara chamou de “Antropocinema”. Para Kara,
esse termo refere-se a um cinema que “em vez de focar nas causas de nossa morte
ecológica... nos coloca frente a frente com os efeitos da chamada Era do Homem, ou
Anropoceno, incluindo a possibilidade de um colapso ecossistêmico total ou de uma
auto-aniquilação humana.”38 A ciência e as teorias da adaptação sustentam que pessoas
de pigmentação escura, com níveis mais altos de melanina, toleram melhor a exposição
sustentada e elevada à radiação ultravioleta, em comparação às pessoas de pele mais
clara, com baixo nível de melanina.39 Assim, no futuro de White, a melanina circula como
um remédio exclusivo e eficaz para a crise ecossistêmica de maior suscetibilidade, uma
mercadoria comprada de pessoas de cor a uma taxa fixa para ser graduada, refinada
e vendida lucrativamente para brancos ricos, agora conhecidos como “pessoas com
deficiência de melanina”.
Clarke cria um conceito eco-fanoniano de adaptação às mudanças climáticas, pelo
qual a epidermalização é reformulada como um processo industrial de tecnologia de
extração de melanina e capital financeiro. Esse comércio de pele diz respeito às políticas
climáticas, à sustentabilidade e às iniciativas ecológicas. Em White, o “desmelanizado”
é desprovido de herança e autobiografia, esfolado e abandonado como um recurso
esgotado.40 O slogan de Bato (“Nem uma gota”) reverte a “regra de uma gota de sangue”
do período Jim Crow e sua retórica baseada no medo da miscigenação e nas fantasias
de pureza. Em White, essas gotas se tornam uma moeda em um clima de antinegritude
financeira e preços segundo a escala pantone: Nozes Negras. Mocha de Chocolate,
Amêndoa Queimada no 9.41
Sara Ahmed sugere que a pele funciona como uma fronteira de sentimento e um
limiar afetivo entre interioridade (o sujeito) e exterioridade (o outro), mas no caso de
White, Bato é um corpo sem fronteiras ou opções.42 A análise de Hortense Spillers sobre
gênero e o comércio transatlântico de escravos, no qual os corpos eram transformados
em carne, é crucial para a compreensão de White. Para Spillers, a “lucrativa ‘atomi-
zação’ do corpo em cativeiro fornece outro ângulo para pensar sobre a carne dividida...

38. KARA, Selmin. “Anthropocenema: Cinema in the Age of Mass Extinctions”. In: DENSON, Shane. LEYDA, Julia.
(eds). Post-Cinema: Theorizing 21st Century Film. Falmer: REFRAME Books, 2016, p. 770. Considerações sobre
o status epocal do Antropoceno requerem atenção ao comércio escravagista transatlântico, ao genocídio e à
supremacia branca. Ver LUCIANO, Dana. “The Inhuman Anthropocene”. Avidly, um canal da Los Angeles Review
of Books, 22 de março de 2015. Disponível em: http://avidly.lareviewofbooks.org/2015/03/22/the-inhuma-
nanthropocene/. Ver MIRZOEFF, Nicholas. “It’s Not The Anthropocene, It’s The White Supremacy Scene, Or, The
Geological Color Line”. In: GRUSIN, Richard (ed). After Extinction. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.
39. JABLONSKI, Nina G. Skin: A Natural History. Berkeley: University of California Press, 2013, p. 83.
40. Ver PROSSER, Jay. “Skin Memories”. In: AHMED, Sara. STACEY, Jackie. Thinking Through the Skin. New
York: Routledge, 2001, 52-68.
41. Ver o “Humanae Project”, de Angélica Dass. Disponível em: www.angelicadass.com/humanae-work-
in-progress.
42. AHMED, Sara. Strange Encounters: Embodied Others in PostColoniality. New York: Routledge, 2000, pp. 44–45.
126 ensaios • mostra mortos e a câmera

os procedimentos adotados para a carne em cativeiro demarcam uma objetificação


total, pois toda a comunidade cativa se torna um laboratório vivo.”43 O emaranhado de
ciência, finanças e personalidade no laboratório vivo do filme significa a “fungibilidade
da mercadoria” durante a escravidão e suas vidas posteriores.44
“Juntos podemos sobreviver ao sol”. O futuro da ecopolítica previsto por White é
aquele em que raça e classe se tornam opções mais acessíveis do que qualquer esforço
de adaptação ou mitigação das mudanças climáticas.45 “Nós” não sofreremos igualmente.
Os negros e pardos são vulneráveis a algo mais que o sol quando o acesso à assistência
médica, a falta de emprego e os credores predatórios se tornam acessórios em um
processo de colheita. Bato inicialmente atribui o valor da pele a uma herança cultural e
histórica, mas o valor de mercado da pele anula essa garantia de herança. Seu próprio
esgotamento e obsolescência sinalizam um apagamento total, uma morte social.46
Com concepções distintas e convincentes sobre a morte negra, esses três curtas-me-
tragens estão profundamente localizados em seu momento americano contemporâneo.
Pensar com esses filmes envolve pensar através dos objetos performativos, do grotesco
racial e do futuro da exclusão social. Juntos, esses filmes suspendem, promovem rupturas
e perturbam, constituindo historiografias e estratégias visuais distintas. Dead Nigga
BLVD., com sua articulação em stop-motion dos mortos, reúne três narrativas históricas
para demonstrar um agravante arco de injustiça. Everybody Dies! se apropria dos estilos
mortos de um game show infantil de televisão aberta para considerar a frequência
enlouquecedora e o acúmulo da injustiça violenta. A encenação do afrofuturismo em
White, como uma modalidade de vida após a morte da escravidão, reconsidera os efeitos
desiguais da crise global.
Como um cinema na vigília, esses filmes são perturbados por incitações da forma
fílmica, materialidades, temporalidades e concepções do ser negro. Porém, ainda mais
importante, pensar sobre a morte negra através da experimentação formal e das capa-
cidades críticas desses trabalhos é enfrentar uma urgência duradoura: a precariedade
da vida negra.

43. SPILLERS, Hortense. “‘Mama’s Baby, Papa’s Maybe’: An American Grammar Book”. In: Black, White, and in
Color: Essays on American Literature and Culture. Chicago: University of Chicago Press, 2003, p. 208.
44. HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America.
New York: Oxford University Press, 1997, p. 21.
45. Sou muito grato a Harold Perkins por seus pensamentos sobre White e o futuro da adaptação à mudança
climática. (Comunicação pessoal). 14 de outubro de 2014.
46. No meu projeto mais amplo sobre a morte, agora em andamento, considero White e sua carne lucrativa em
relação a outras obras de ficção especulativa e ficção científica, tendo como objeto a utilidade dos corpos negros
e pardos. Isso inclui a adaptação de “The Space Traders”, de Derrick Bell, Cosmic Slop (Reggie Hudlin, 1994),
Sleep Dealer, de Alex Rivera (2008), Transfer, de Damir Lukacevic (2010) e Corra! (Get Out, 2017), de Jordan
Peele, juntamente com seus abundantes intertextos.
Dead Nigga BLVD (Leila Weefur, 2015)

Everybody Dies! (Frances Bodomo, 2016)

White (A. Sayeeda Clarke, 2011)


128 ensaios • mostra mortos e a câmera

A condição da vida
negra é o luto1
Claudia Rankine2
Tradução: Roberto Romero

Uma amiga recentemente me disse que, quando ela deu à luz ao seu filho, antes de
nomeá-lo, antes mesmo de amamentá-lo, seu primeiro pensamento foi: eu tenho que tirá-lo
deste país. Nós duas rimos. Talvez nosso humor negro tenha a ver com a compreensão de
que sair não era uma opção nem o desejo real. É assim a nossa vida. Aqui trabalhamos,
temos cidadania, pensões, seguro de saúde, família, amigos e assim por diante. Ela
não poderia ir embora, ela não foi. Anos após seu nascimento, sempre que seu filho sai
de casa, seu status de mãe de um ser humano permanece tão precário como sempre.
Somado aos medos naturais de todos os pais que enfrentam a aleatoriedade da vida,
há ainda o conhecimento das maneiras pelas quais o racismo institucional funciona em
nosso país. O nosso riso foi o riso da vulnerabilidade, do medo, da identificação e de
uma estagnação absurda.
Perguntei a outra amiga como é ser mãe de um filho negro. “A condição da vida negra
é o luto”, ela disse sem rodeios. Para ela, o luto habitava em tempo real a realidade dela
e do filho: a qualquer momento ela pode perder a razão de viver. Embora a imaginação
liberal branca goste de se sentir temporariamente mal com o sofrimento dos negros, não
há realmente nenhum modo de empatia que possa replicar a tensão diária de saber que,
como pessoa negra, você pode ser morto por simplesmente ser negro: sem as mãos nos
bolsos, sem estar tocando música, sem movimentos bruscos, sem dirigir seu carro, sem
andar à noite, sem andar de dia, sem entrar nesta rua, sem entrar neste prédio, sem se
deitar no chão, sem estar aqui, sem estar ali, sem ficar parado, sem responder, sem usar
armas de brinquedo, sem viver enquanto for preto.
Onze dias depois que eu nasci, em 15 de setembro de 1963, quatro meninas negras
foram mortas no atentado à bomba da Igreja Batista da Rua 16 em Birmingham, Alabama.
Agora, 52 anos depois, seis mulheres negras e três homens negros foram baleados e
mortos durante uma reunião de estudo da Bíblia na histórica Igreja Episcopal Metodista
Africana de Emanuel em Charleston, SC. Eles foram mortos por um terrorista doméstico,
identificado como um supremacista branco, que também pode ser um “jovem perturbado”

1. Originalmente publicado no jornal The New York Times, em 22 de Junho de 2015.


2. Claudia Rankine é professora de inglês em Pomona College. É autora de cinco coletâneas de poemas,
incluindo, mais recentemente, Citizen.
ensaios • mostra mortos e a câmera 129

(como várias agências de notícias o descreveram). Foi relatado que uma mulher negra
e sua neta de 5 anos sobreviveram ao tiroteio por terem se fingido de mortas. Elas são
duas dos três sobreviventes do ataque. A família branca do suspeito diz que para eles
esse é um momento difícil. Isso é indiscutível. Mas para as famílias afro-americanas,
essa vida em um estado de luto e medo permanece lugar-comum.
O espetáculo do tiroteio sugere um evento fora do tempo, como se o assassinato
de negros com justificativa supremacista branca interrompesse qualquer coisa que não
fosse a programação regular da televisão. Mas Dylann Storm Roof não se criou do nada.
Ele cresceu com a retórica e a orientação do racismo. Ele viu homens brancos como
Benjamin F. Haskell, Thomas Gleason e Michael Jacques se declararem culpados ou
condenados por queimarem a Igreja de Deus da Macedônia em Cristo em Springfield,
Massachusetts, apenas algumas horas após a eleição do Presidente Obama. Qualquer
declaração racista que ele tenha feito, ele pode ter ouvido durante toda a sua vida. Ele,
assim como o resto de nós, tem vivido cercado por corpos negros mortos.
Vivemos em um país onde os americanos assimilam cadáveres em suas idas e vindas
diárias. Negros mortos fazem parte da vida normal aqui. Morrendo em cascos de navios,
jogados no Atlântico, pendurados em árvores, espancados, mortos a tiros em igrejas,
mortos a tiros pela polícia ou alojados em prisões: historicamente, não há cotidiano sem
o corpo negro escravizado, acorrentado ou morto para ser contemplado, para ouvir-se
falar ou se posicionar contra. Quando os negros ficam sobrecarregados com a desordem
da nossa cultura e protestam (em última análise, para nosso próprio prejuízo, porque o
protesto justifica a militarização da polícia, como fizeram em Ferguson), a falsa questão
é: que tipo de selvagens somos? Em vez de: em que tipo de país nós vivemos?
Em 1955, quando o corpo mutilado e inchado de Emmett Till foi resgatado do rio
Tallahatchie e colocado numa caixa de pinho fechada com pregos para o sepultamento,
sua mãe, Mamie Till Mobley, exigiu que seu corpo fosse transportado do Mississippi,
onde Till estava visitando parentes, para sua casa em Chicago. Depois que a funerária
de Chicago recebeu o corpo, ela tomou uma decisão que abriria um novo caminho sobre
como pensamos um corpo linchado. Ela pediu que o caixão fosse aberto e permitiu que
tirassem e publicassem fotos do corpo desfigurado do seu filho morto.
A recusa de Mobley em manter o luto pessoal em privado permitiu que um corpo
que não significava nada para o sistema de justiça criminal se tornasse uma evidência.
Ao colocar tanto o seu corpo quanto o do filho em posições de recusa em relação à
etiqueta do luto, ela se “desidentificou” da tradição da figura linchada deixada à vista
do público como um aviso para a comunidade negra, usando assim a tradição do lincha-
mento contra si mesma. O espetáculo do corpo negro, em suas mãos, tornou pública a
injustiça inscrita no cadáver de seu filho. “Deixe as pessoas verem o que eu vejo”, disse
ela, acrescentando: “eu acredito que todo os Estados Unidos estão de luto comigo”.
É muito improvável que sua crença num luto nacional tenha sido plenamente realizada,
mas seu desejo de fazer com que o luto adentrasse o nosso dia-a-dia criava um novo tipo
de lógica. Ao se recusar a desviar o olhar da carne de nossos assassinatos domésticos,
insistindo em que olhemos com ela para os mortos, ela reformulou o luto como um
130 ensaios • mostra mortos e a câmera

método de reconhecimento que ajudou a energizar o movimento pelos direitos civis


nas décadas de 1950 e 1960.
A decisão de não divulgar fotos da cena do crime em Charleston, talvez por defe-
rência às famílias dos mortos, não impede nosso luto. Mas, ao fazê-lo, os corpos que
demonstram de maneira muito trágica que “a pele negra não é uma arma” (como dizia
um pôster de protesto lido no ano passado) são transformados em abstração. Uma coisa
é imaginar nove corpos negros sangrando no chão da igreja e outra coisa é vê-la. A falta
de evidências visuais permanece em contraste com o que vimos em Ferguson, onde a
polícia, em sua recusa em mover o corpo de Michael Brown, talvez tenha continuado,
sem saber, onde a mãe de Till parou.
Depois que Brown foi baleado seis vezes, duas delas na cabeça, seu corpo foi deixado
de bruços na rua pelos policiais. Seja qual tenha sido o raciocínio deles, ao não mover o
cadáver de Brown quatro horas após o assassinato, a polícia fez do luto por sua morte
parte do que significava captar os detalhes de sua história. Ninguém poderia considerar
os fatos da interação de Michael Brown com o policial de Ferguson, Darren Wilson,
sem pensar no corpo cheio de balas sangrando no asfalto. Seria um erro presumir que
todos que viram a imagem lamentaram Brown, mas uma vez exposta a ela, uma pessoa
teve que decidir se seu corpo negro morto importava o suficiente para ser lamentado.
(Outra opção, é claro, é que ela se torne um espetáculo para a pornografia branca: o
corpo morto como um objeto que satisfaz um desejo ilícito. Talvez seja aqui que Dylann
Storm Roof tenha entrado em cena).
O Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), movimento fundado pelas ativistas
Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, começou com a premissa de que as expe-
riências incomensuráveis do racismo sistêmico criam condições de jogo desiguais. A
imaginação americana nunca foi capaz de se recuperar totalmente dos seus primórdios
supremacistas brancos. Consequentemente, nossas leis e atitudes têm se esforçado
contra a desvalorização do corpo negro. Apesar das boas intenções, as associações
da negritude com a criminalidade bestial e desarticulada persistem sob a aparência da
civilidade branca. Este pressuposto enquadra e determina nossas interações e expe-
riências individuais como cidadãos.
A tendência americana de normalizar as situações privilegiando a branquitude foi
consciente ou inconscientemente demonstrada quando certos brancos, como o presi-
dente do Smith College, procuraram alterar a linguagem do “Black Lives Matter” (Vidas
Negras Importam) para o “All Lives Matter” (Todas as vidas importam). O que a princípio
deveria ser interpretado como um movimento humanista – “não somos todos apenas
pessoas aqui?” – não levou em conta um sistema habituado com cadáveres negros em
nossos espaços públicos. Quando o juiz na audiência de Charleston com Dylann Storm
Roof pediu apoio para a família de Roof, também foi uma mudança sutil para longe de
valorizar o corpo negro em nosso tempo de profundo desespero.
O racismo contra os negros está na cultura. Está nas nossas leis, nos nossos anúncios,
nas nossas amizades, nas nossas cidades segregadas, nas nossas escolas, no nosso
Congresso, nos nossos experimentos científicos, no nosso idioma, na Internet, nos nossos
corpos (independentemente da raça), nas nossas comunidades e, o que talvez seja mais
ensaios • mostra mortos e a câmera 131

devastador, no nosso sistema de justiça. Os corpos negros desarmados e mortos nos


espaços públicos transformam a tristeza em nosso sentimento cotidiano de que algo está
errado em todos os lugares e o tempo todo, mesmo que localmente as coisas pareçam
normais. Tomando café, passeando com o cachorro, lendo o jornal, pegando o elevador
para o escritório, deixando as crianças na escola: toda essa vida boa é cercada pela
sensação de que, a qualquer momento, uma pessoa negra está sendo morta no meio
da rua ou em sua casa pelo ódio armado de um colega americano.
O movimento Black Lives Matter pode ser lido como uma tentativa de continuar
lamentando uma dinâmica aberta em nossa cultura, porque as vidas negras existem
em um estado de precariedade. O luto então suporta tanto a vulnerabilidade inerente
às vidas negras quanto a instabilidade em relação a um futuro para essas vidas. Ao
contrário dos movimentos black power anteriores que tentavam lutar ou segregar para a
autopreservação, o Black Lives Matter se alinha com os mortos, continua o luto e recusa
o esquecimento diante de todos nós. Se o movimento pelos direitos civis do Reverendo
Martin Luther King Jr. fez exigências que alteraram o curso das vidas americanas e as
sustentou com a vontade de desistir de sua vida a serviço dos seus direitos civis, com
o Black Lives Matter, mais mudanças internas estão sendo solicitadas: reconhecimento.
A verdade, a meu ver, é que se homens e mulheres negros, meninos e meninas negros,
importassem, se fôssemos vistos como viventes, não estaríamos morrendo simples-
mente porque os brancos não gostam de nós. Nossas mortes dentro de um sistema
racista existiam antes de nascermos. O legado dos corpos negros como propriedade e
consequentemente como três quintos humanos continua a poluir a imaginação branca.
Para gozar plenamente da nossa cidadania, nós precisamos não somente entender isso,
mas também atingir isso. Nas palavras do dramaturgo Lorraine Hansberry: “o problema
é que precisamos encontrar um meio com esses diálogos para mostrar e incentivar o
liberal branco a deixar de ser liberal e se tornar um radical americano”. E, como meu
amigo crítico e poeta Fred Moten escreveu: “eu acredito no mundo e quero estar nele.
Quero estar nisso até o fim, porque acredito em outro mundo e quero estar nele”. Esse
outro mundo, esse mundo, provavelmente seria aquele em que vidas negras importam.
Mas não podemos chegar lá sem reconhecer profundamente o que está aqui.
O ódio indisfarçável de Dylann Storm Roof por pessoas negras; Black Lives Matter;
cidadãos gravando as mortes de negros; o Departamento de Polícia de Ferguson deixando
o corpo de Brown na rua – todas essas ações apoiam a crença de Mamie Till Mobley
de que precisamos ver ou ouvir a verdade. Precisamos da verdade de como os corpos
morreram para interromper o curso da vida normal. Mas se manter os mortos à frente
da nossa consciência é crucial para o nosso corpo político, o que dizer das famílias dos
mortos? Como deve ser para um membro da família entender que o falecido é mais
importante como evidência do que como indivíduo para ser enterrado e repousar?
A mãe de Michael Brown, Lesley McSpadden, foi mantida afastada do corpo de seu
filho porque era uma evidência. A ela foram negados os direitos de uma mãe, um fato
triste que lembra os tempos anteriores à Guerra Civil, quando, como escrava, não teria
direito legal a seus filhos. McSpadden soube de sua nova identidade como mãe de um
filho morto a partir das testemunhas: “tinha algumas meninas lá em baixo que gravaram
132 ensaios • mostra mortos e a câmera

a coisa toda”, disse ela a repórteres. Uma garota, ela disse, “me mostrou uma foto em
seu telefone. Ela disse: ‘esse não é seu filho?’, eu apenas gritei ainda mais. Só para ver
isso, meu filho deitado sem vida, sem motivo aparente”. Circulando o perímetro ao redor
do corpo do filho, McSpadden tentou dispersar a multidão: “tudo o que eu quero que
eles façam é pegar meu bebê”.
McSpadden, ao contrário de Mamie Till Mobley, parecia ter pouco desejo de expor
o corpo de seu filho à mídia. Seu filho não era um corpo órfão para todo mundo ver. Ela
queria que ele fosse coberto e removido da vista. Ele pertencia a ela, seu bebê. Depois
que o cadáver de Brown foi finalmente levado, duas semanas se passaram antes que sua
família pudesse vê-lo. Essa perda de controle e autoridade pode explicar porque, após
a morte de Brown, McSpadden estava supostamente na posição precária de abordar
ambulantes que vendiam camisetas exigindo justiça para Michael Brown, que usavam
o nome de seu filho. Não foram apenas os procedimentos em torno do cadáver de seu
filho; seu nome havia sido comoditizado e assimilado aos nossos modos de capitalismo.
Alguns dos vizinhos de McSpadden em Ferguson também queriam criar uma distância
entre eles e a vida pública da morte de Brown. Eles não precisavam de um lembrete
constante de como os corpos negros não importam para os policiais no seu bairro. A
pedido da comunidade, o memorial improvisado original – com flores, fotos, anotações
e ursinhos de pelúcia – foi finalmente removido pelo pai de Brown no que seria seu
aniversário e substituído por uma placa oficial instalada na calçada ao lado de onde
Brown morreu. O lembrete permanente pode ser acionado ou ignorado, dependendo
dos desejos do pedestre.
Para ficar longe do local do assassinato de seu filho, Tamir Rice, Samaria saiu de
sua casa em Cleveland e foi para um abrigo. (Sua família acabou mudando de lugar). “O
mundo inteiro viu o mesmo vídeo que eu vi”, disse ela sobre Tamir sendo baleado por
um policial. O vídeo, que foi exibido e reexibido na mídia, documentou os dois segundos
que a polícia levou para chegar e atirar; os dois segundos que marcaram o fim da vida de
seu filho e que se tornaram um documento a ser examinado por todos. É possível que
esse escrutínio compartilhado explique por que a polícia reteve seu corpo de 12 anos
durante seis meses após sua morte. Todos podiam ver o que a polícia teria que explicar.
O sistema de justiça não foi capaz de fazê-lo, e um juiz encontrou uma causa provável
para acusar o policial que matou Rice por assassinato. Enquanto isso, para Samaria Rice,
a memória de seu filho desenterrado tornava seu bairro insuportável.
Independente dos desejos dessas mães – mães de homens como Brown, John
Crawford III ou Eric Garner, e também mães de mulheres e meninas como Rekia Boyd
e Aiyana Stanley-Jones, cada um deles morto pela polícia – a morte de seus filhos irá
permanecer nos discursos públicos. Para aqueles que acreditam que o mesmo compor-
tamento que fez com que essas pessoas fossem mortas se exibido por um homem ou
menino branco não teria encerrado suas vidas, o fracasso subsequente em indiciar ou
condenar os policiais envolvidos nesses vários casos exige que o luto público continue
e permaneça por tempo indeterminado. “Quero ver um policial atirar nas costas de um
adolescente branco desarmado”, disse Toni Morrison em abril. Ela continuou: “quero
ver um homem branco condenado por estuprar uma mulher negra. Então, quando você
ensaios • mostra mortos e a câmera 133

me perguntar: ‘acabou?’, eu direi que sim”. Morrison está certa ao sugerir que essa ação
sinalizaria mudanças, mas a mudança real precisa ser uma reorientação da crença interior.
É um desafio individual que precisa acontecer antes que qualquer ação de um sistema
de justiça política signifique uma verdadeira mudança social.
Os assassinatos em Charleston nos alertaram para o fato de que num sistema tão
imerso no racismo qualquer dia pode ser temporada de caça aberta para qualquer pessoa
negra – velha ou jovem, homem, mulher ou criança. Não existe realidade equivalente
para os americanos brancos. A bandeira de batalha confederada continua a voar na
sede da Carolina do Sul como um lembrete de uma história marcada por corpos negros
linchados. Podemos nos distanciar desse fato até a próxima matança horrível, mas não
conseguiremos superar isso. A autoridade da história sobre nós não se quebra mantendo
um silêncio sobre seus efeitos contínuos.
É necessário um estado permanente de luto nacional pelas vidas negras, a fim de
apontar a sua inegável desvalorização. A esperança é que um tal reconhecimento rompa
um movimento que as leis não conseguiram alterar. Susie Jackson; Sharonda Coleman-
-Singleton; DePayne Middleton-Doctor; Ethel Lee Lance; o Rev. Daniel Lee Simmons Sr .;
a Rev. Clementa C. Pinckney; Cynthia Hurd; Tywanza Sanders e Myra Thompson foram
assassinados por serem negros. É extraordinário o quão banal é para o nosso pesar se
assentar neste fato. Uma amiga disse: “eu tenho tanto medo todos os dias”. A infância de
seu filho parece impossível, porque ele terá que ter – tem que ter – muito mais cuidado.
Nosso luto, este luto, está em sincronia com as nossas vidas. Não há vida fora da nossa
realidade aqui. Isso é algo que pode ser visto e conhecido pelos pais de crianças brancas?
Essa é a pergunta que me incomoda. O luto nacional, como preconizado pelo Black Lives
Matter, é um modo de intervenção e interrupção que pode ser assimilado na categoria
da perturbação pública. Isso é totalmente possível; mas também é possível reconhecer
que falta um sentimento pelo outro que é o nosso problema. A tristeza, portanto, por
esses mortos outros pode alinhar alguns de nós, pela primeira vez, com os vivos.
134 ensaios • mostra mortos e a câmera

Numa terra estranha:


sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação de
Shawara Maxakali e Charles Bicalho

Roberto Romero1

A morte não existe para os mortos


Carlos Drummond de Andrade

A história de Mãtãnãg, a encantada, é transmitida há gerações entre os Tikmũ’ũn, mais


conhecidos como Maxakali, cerca de 2.000 pessoas vivendo em três terras indígenas
no Vale do Mucuri (MG). Mãtãnãg foi uma mulher muito antiga que, inconformada com a
morte do marido por uma picada de cobra, recusou-se a enterrá-lo e resolveu acompa-
nhá-lo até a aldeia dos mortos. O caminho até lá é tortuoso: Mãtãnãg prepara beijús com
a carne do marido morto e come para encantar-se e seguir os seus rastros. No percurso,
uma série de desafios dificulta o seu caminho: o tronco de uma árvore que gira tentando
impedir sua passagem sobre um rio; um mamoeiro que lança seus frutos; uma nuvem
de gafanhotos ferozes, tudo parece feito para impedir a passagem dos vivos ao mundo
dos mortos. Mas chegando lá, a surpresa: a aldeia dos mortos é habitada por espíritos
e feras como onças, leões, elefantes e hipopótamos. Assustada e com saudades dos
parentes do lado de cá, Mãtãnãg decide voltar, porém, sob uma condição: não contar
nada do que viu para os vivos.
Toda elaborada a partir do trabalho dos desenhistas tikmũ’ũn em Aldeia Verde
(Ladainha, MG), Mãtãnãg, a encantada (2019), segunda animação de Charles Bicalho
desta vez com a estreante Shawara Maxakali na direção e assessoria de Isael e Sueli
Maxakali pode ser muito bem entendida como uma “transformação do mito”. Recente-
mente, Isael Maxakali explicava para uma plateia de professores da rede municipal de
Belo Horizonte o conceito tikmũ’ũn de transformação:2 “Se eu fizer um desenho, eu vou
formar, transformar, eu vou formar o desenho do bicho, aí fiz transformou, entenderam?”.
Assim, este filme sobre um mito é, a seu modo, um mito. Uma variação do mito que

1. Roberto Romero é etnólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do
Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). Desenvolve pesquisa entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) sobre os temas
dos sonhos, das armadilhas, da doença e da cura. Desde 2009 é um dos organizadores do forumdoc.bh – festival
do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte.
2. O conceito tikmũ’ũn de transformação, yãy hã mĩy, é tema da exposição coletiva Mundos Indígenas, com
curadoria de Isael e Sueli Maxakali, entre outros, no Espaço de Conhecimento da UFMG.
ensaios • mostra mortos e a câmera 135

mais uma vez demonstra – agora através do cinema – sua capacidade aparentemente
interminável de se transformar.
Os Tikmũ’ũn contam muitas outras histórias em que os antigos atravessaram os limites
deste mundo, indo ao encontro das terras estranhas onde habitam espíritos, mortos e
povos-animais. Certa vez, um homem ingeriu a cabeça da larva do morotó kutekut, um
poderoso alucinógeno usado pelos antigos, e cruzou uma comprida taquara até chegar
no céu, onde foi ter com o seu cunhado morto, que vivia entre o povo urubu-rei. A certo
ponto, os urubus farejaram a carniça de uma anta morta e prepararam-se para descer.
Como ele não sabia voar, o cunhado o ajudou fincando penas nos seus braços e juntos
eles saltaram do céu, descendo, voando. Aqui na terra, os parentes do homem que
virou urubu-rei cantavam ao redor do seu corpo desfalecido, chamando o seu koxuk
(alma) de volta. Ao descer com o bando de urubus, o homem ouviu os parentes e sentiu
saudades. Decidiu voltar.
Com o tempo, conforme os Tikmũ’ũn me contavam essas e outras histórias, comecei
a perceber a profunda semelhança entre estes percursos dos antigos e aqueles que eles
percorrem à noite, em seus sonhos. Os Tikmũ’ũn dizem que, durante a noite, enquanto
dormem, o koxuk (alma) das pessoas deixa os seus corpos e perambulam por aí, muitas
vezes indo parar, como Mãtãnãg, nas aldeias distantes onde vivem os seus parentes
mortos. Chegando lá, eles são invariavelmente recebidos com tentadoras ofertas de
comida. Os pajés ensinam que o koxuk viajante deve recusar, mas sempre tem quem se
esqueça disso durante o sonho. O problema é que quem partilha da comida dos mortos
tende a se identificar com eles, a se “acostumar” – como dizem em português – com
o lado de lá... Quem desperta de um sonho assim, não costuma passar bem. Acorda
cansado, preguiçoso, sem vontade de fazer nada, o que os Tikmũ’ũn encaram com
enorme preocupação. Confirmada a doença, os parentes da pessoa convocam os pajés
da aldeia para examiná-la e a primeira pergunta que fazem ao doente é: “com o que
você sonhou?”. Só então os pajés decidem cuidadosamente o repertório de cantos que
irão cantar para o doente, na tentativa de chamar de volta a sua alma, que se encontra
como que dividida entre os vivos e os mortos. Como na história do homem que comeu
kutekut, ouvindo os parentes daqui, espera-se que o koxuk viajante sentirá saudades e
voltará ao corpo que lhe pertence. A pessoa, então, estará curada.
Enquanto realizava seu trabalho de campo entre os Piro, na Amazônia Peruana, o
antropólogo escocês Peter Gow ouviu certa tarde a história de “um homem que viajou
para dentro da terra”. Na história, um homem cansado de viver entre os seus parentes
decide partir para a floresta até que encontra um buraco de onde saíam os porcos do
mato. O homem entra no buraco e vai parar “do outro lado”, onde quase é morto num
ataque dos porcos. Mas a dona dos porcos lhe devolve a vida e pergunta se ele gostaria
de viver por lá, ao que ele responde “sim”. Ela então o veste com couro e pelos típicos
dos habitantes daquele mundo. Após um tempo, porém, o homem sente saudades dos
seus parentes “do lado de lá” e pede para voltar e chamá-los para junto de si. No retorno,
porém, ele já não reconhece aquele mundo como antes: tudo é vermelho e por pouco
ele não encontra o caminho da antiga casa. Chegando lá, tampouco sua esposa o aceita
e apenas um dos seus filhos decide acompanhá-lo. Ao voltar ao mundo subterrâneo,
136 ensaios • mostra mortos e a câmera

o homem se casa novamente “com uma pequena porca do mato, talvez” – especula o
narrador – e, quando é a vez do filho sentir saudades e querer voltar já é tarde demais:
o buraco havia se fechado (GOW, 2001).
Analisando este mito e a sua história, o antropólogo observa que, em muitos aspectos,
a trajetória daquele homem confundia-se com a sua própria, um escocês que decide
“abandonar” seus parentes para viver entre os Piro. Porém, mais do que isso, o mito, como
o etnólogo demonstra, dizia também sobre como os Piro concebem a própria ideia de
“morte”, as relações entre “vivos” e “mortos” e os modos particulares de relação com a
alteridade e, em especial, com os “gringos” na história da região. Como concluía Artemio
Gordón, seu compadre, pouco depois de ter-lhe narrado a história: “eu jamais poderia
viver longe daqui. Seria como a morte. O que é a morte senão nunca mais ver os seus
parentes de novo, sua mãe e seu pai?” (GOW, 2001; tradução minha).
Se levarmos a sério a afirmação de Artemio ou aquilo o que os relatos tikmũ’ũn de
sonhos e viagens – ou dos sonhos como viagens e vice-versa – parecem igualmente
afirmar, então a “morte” não é, nestes contextos indígenas, uma questão de “vida ou
morte”, mas um problema de gradiente de transformação ou de ponto de vista. Se, como
definiu Tânia Stolze Lima, “o ponto de vista implica uma certa concepção, segundo a qual
só existe mundo para alguém” (1996, p. 31), então não é exagerado afirmar que, nestes
mundos, também só existe “morte” para alguém: para os vivos, notadamente. Como disse
o poeta: “a morte não existe para os mortos”. A consequência disso é que estar vivo (e
não morto) é muito mais uma questão de com quem e como quem alguém decide viver ou
se aparentar – nos sentidos tanto de “parecer-se com” quanto de “tornar-se parente de”.
Mesmo tendo atravessado para o “lado de lá”, Mãtãnãg, que viajou de corpo e alma
para a aldeia dos mortos, não é capaz de se identificar com os moradores dali: suas
axilas não projetam raios como as das mulheres-espírito, ela não consegue pescar...
Estivesse morta, possivelmente veria os habitantes da aldeia como gente, e não como
espíritos, onças, elefantes e hipopótamos. O desajuste entre as perspectivas logo torna
inviável a sua permanência entre eles e Mãtãnãg, com saudades dos parentes, decide
voltar. O preço é o segredo que, uma vez rompido, é cobrado com a sua própria morte.
Mas agora, ela diz ao final do filme, “estou igual ao meu marido e posso ficar com ele.
E quando tiver um ritual na aldeia, eu vou junto entranhada nos cabelos das pessoas,
como os espíritos yãmĩy costumam fazer”. Os mortos vão, mas sempre voltam.

Referências
GOW, Peter. An amazonian myth and its history. Oxford, Oxford University Press, 2001.
LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em
uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p. 21-47.
ensaios • mostra mortos e a câmera 137

O cinema e os ritos
funerários Dogon em
Sigui 1967-1973:
Invenção da Palavra e da Morte
(Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981)

Mateus Araújo1

Jean Rouch nunca chegou a se tornar uma autoridade antropológica em relação ao povo
Dogon, que o encantou porém desde sua primeira visita ao seu país em 1946. Quatro
anos mais tarde, ele voltou a visitá-lo, e fez ali seu primeiro filme sobre um rito funerário
daquele povo, o curta Cemitérios na falésia, de 1950-1. Na década seguinte, voltaria a
este universo, já credenciado por uma obra imponente de cineasta (que incluía filmes
de impacto como Os Mestres Loucos, Eu um Negro, A Pirâmide Humana, Crônica de
um Verão, Caça ao Leão com Arco e Gare du Nord) e por uma tese de doutorado de
estado em antropologia defendida em 1952 na Sorbonne sobre a religião e a magia dos
Songhay, sob a orientação de Marcel Griaule.
De meados da década de 1960 aos inícios da de 1980, Rouch faria uma dúzia de
filmes sobre ritos funerários dos Dogon, nove dos quais sobre o Sigui, um ciclo de ceri-
mônias que eles organizam a cada 60 anos e se estende por sete anos consecutivos, em
cada um numa cidade diferente do território Dogon, para celebrar e reviver a invenção
do mundo, a doação da linguagem aos homens e a morte de seus ancestrais.
À diferença de seu mestre comum Marcel Griaule (1898-1956), que se limitou a
descrevê-las a partir de testemunhos dos próprios Dogon sobre o ciclo anterior de
1907-1913, Germaine Dieterlen e Jean Rouch tiveram a sorte de assistir de perto às
cerimônias de 1967-1973 e, assim, de poder documentá-las numa série de oito filmes
etnográficos de primeira importância: 1) Sigui année zéro (1966, 10’); 2) Sigui 1967: A
Bigorna de Yougo [L’enclume de Yougo] (38’); 3) Sigui 1968: os Dançarinos de Tyogou
[Les Danseurs de Tyogou] (26’); 4) Sigui 1969: A Caverna de Bongo (39’); 5) Sigui 1970:

1. Professor de teoria e história do cinema na ECA-USP. Organizou ou co-organizou os volumes Glauber Rocha /
Nelson Rodrigues (Magic Cinéma, 2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (Balafon, 2010),
Straub-Huillet (CCBB, 2012), Charles Chaplin (Fundação Clóvis Salgado, 2012), Jacques Rivette (CCBB, 2013), Godard
inteiro ou o mundo em pedaços (CCBB/Heco, 2015), O cinema interior de Philippe Garrel (CCBB, 2018), Glauber
Rocha: crítica esparsa e Glauber Rocha: O Nascimento dos deuses (Fundação Clóvis Salgado, 2019, no prelo).
138 ensaios • mostra mortos e a câmera

Os Clamores de Amani (36’); 6) Sigui 1971: A Duna de Idyeli (56’); 7) Sigui 1972: As
Tangas de Yamé [Les Pagnes de Yamé] (52’); 8) Sigui 1973-4: O Abrigo da circuncisão
[L’auvent de la Circoncision] (18’), este último reconstituindo em 1974 aspectos da
cerimônia de 1973, que Rouch não conseguira filmar em virtude de uma seca severa
que assolara a região.
Com a exceção do primeiro da série, que precedeu o ciclo das cerimônias numa
espécie de reconhecimento do terreno e contato inicial com algumas autoridades religiosas
que o coordenariam nos anos seguintes,2 os sete outros filmes traziam uma estrutura
relativamente parecida, com uma ou outra variante. As diferenças maiores estavam no
de 1969 (o único comentado em over por Rouch a partir de texto escrito por Germaine
Dieterlen) e no de 1974, cuja reconstituição parcial da cerimônia de 1973 não mobilizou
a comunidade do povo Dogon, e se limitou a reencenar a itinerância de três de suas
autoridades religiosas de vilarejo em vilarejo. De uma maneira geral, os filmes começavam
mostrando as paisagens do lugar em que ocorreriam as cerimônias (os vilarejos de Yougo,
Tyogou, Bongo, Amani, Idyeli, Yamé e Songo, respectivamente), para se concentrar em
seguida nos seus preparativos imediatos, nos seus componentes materiais (roupas,
paramentos, máscaras, pinturas, instrumentos musicais, bebidas rituais etc.) e no seu
desenrolar festivo, diante do qual Rouch tendia a adotar uma postura humilde e discreta,
contentando-se em registrar “ao rés do rito”, com câmera na mão e som direto, suas
principais etapas, sem intervir no comentário verbal, sem legendar falas e cantos Dogon,
sem inventar muito na montagem. Apesar desta contenção estética (ou por causa dela?),
os documentos que daí resultam são preciosos, sem prejuízo da exuberância plástica
de vários dos desfiles, das procissões e das danças mostradas.
Este ciclo de filmes apresentava portanto um caráter eminentemente descritivo, como
uma espécie de primeira organização do material que permitisse a Rouch e a Dieterlen
(a verdadeira especialista da dupla em cultura e cosmologia Dogon, na linhagem de
Griaule) ir estudando e elucidando progressivamente os ritos mostrados, com a ajuda
incontornável de seus informantes e amigos nativos, com o auxílio dos textos referenciais
do próprio Griaule, e com o feedback dos Dogon, a quem conseguiram mostrar num
dado momento os filmes resultantes. Vendo e revendo as imagens com a ajuda de todos
os interlocutores, os cineastas podiam ir assim completando as informações, identifi-
cando personagens e situações, decifrando simbologias inicialmente opacas, associando
elementos que permaneceriam dispersos se as filmagens não permitissem fixá-los e
compará-los a posteriori. Numa palavra, estes filmes não só constituíam preciosos
documentos etnográficos como ajudavam a produzir conhecimento antropológico.
Este trabalho paulatino, sempre em progresso, de exame e decifração propriamente
cinematográficos dos ritos do Sigui encontra uma segunda sistematização no longa-me-
tragem Sigui 1967-1973: Invenção da Palavra e da Morte [Invention de la Parole et de
la Mort], finalizado em 1981 por Rouch e Dieterlen. Em pouco mais de duas horas, a
montagem de Danièle Tessier condensa nele o que os cineastas julgam essencial das mais

2. Segundo uma ficha recente do CNC (VVAA. Jean Rouch, l’Homme-Cinéma: Découvrir les films de Jean Rouch,
Paris, CNC, 2017, p.159), este filme teria uma duração original de 50’. Como só tive acesso a uma cópia em
vídeo de 10’, suponho que o filme mostre muito mais coisa do que vi.
ensaios • mostra mortos e a câmera 139

de três horas dos oito episódios iniciais, inserindo ainda pontualmente cenas de pelo
menos dois outros filmes de Rouch sobre ritos funerários Dogon, o já referido Cemitérios
na Falésia (1950-1), e o maravilhoso Dama de Ambara (1974), uma das obras-primas
da sua filmografia. Nesta montagem sintética, as sete etapas anuais do Sigui, de 1967
a 1973, aparecem recompostas em obediência à cronologia do seu desenrolar, ano a
ano, emolduradas por um prólogo trazendo informações de caráter histórico sobre os
Dogon, sua civilização, sua cosmologia e suas cerimônias, que ocuparão todo o filme,
até que um desfecho retome imagens aéreas do país Dogon, e se refira ao próximo ciclo
do Sigui em 2027.
Se o prólogo evocava a história dos Dogon e a tradição ancestral do Sigui, o desfecho
apontava para o seu futuro, vislumbrando seu próximo ciclo e fechando de modo simétrico
o filme. Este assumia assim, em sua própria forma, o caráter de elo intermediário numa
cadeia de transmissão daquela tradição ancestral, cuja vigência se deseja garantir. Num
gesto cultural paradoxal, o cinema vem assim assumir a função do Griot, substituindo o
relato oral do narrador tradicional por um complexo dispositivo audiovisual que procura
assegurar a transmissão da experiência cosmológica dos Dogon. Esta parecia duplamente
ameaçada: de um lado, pelo rolo compressor da civilização moderna – de que o cinema
é ao mesmo tempo emblema e agente; de outro, pela própria ordem natural das coisas,
evidenciada pelas mortes recentes do velho Anaï Dolo (1848-1971), do Hogon de Sanga
e de Ambara Dolo, ancestrais Dogon e guardiães de sua memória coletiva, cujos funerais
Rouch filmou respectivamente em Funerais em Bongo - O Velho Anaï (1972), O Enterro
do Hogon (1972-3) e O Dama de Ambara (1974-80).
A exemplo do que já ocorria neste último filme, a transmissão da memória dos Dogon
encontra eco e paralelo, em Sigui Síntese, numa segunda transmissão, esta concernindo
a comunidade do próprio Rouch. Seu comentário over, que atravessa o filme do início
ao fim, com algumas pausas no miolo, configura a transmissão em ato de um saber
antropológico sobre os Dogon, de Griaule a Dieterlen, e desta a Rouch.
Sua voz interage com as vozes dos Dogon (nunca legendadas), os sons da sua vida
comum, as músicas das suas cerimônias (cantos, percussões etc.) e a força de suas
falas rituais, que Rouch traduz e recita com sua típica entonação encantatória. O texto
apresenta a civilização dos Dogon, descreve as suas cerimônias que vemos, relata a
experiência concreta dos cineastas ao filmá-las, invoca a respeito delas os ensina-
mentos de Griaule e instaura os de Dieterlen, amparados em pesquisas de longa data
mas resultantes também de novas pesquisas ajudadas pelos informantes Ambara Dolo,
Amadigné Dolo, Diamgouno Dolo e Youssouf Tata Cissé.
Desta síntese de imagens e sons compósitos e entrelaçados, o resultado é um expe-
rimento antropológico de rara pregnância.
140 ensaios • mostra mortos e a câmera

Quem cala sobre


teu corpo, consente
na tua morte
Fabio Rodrigues Filho1

Um grito rompe o breu do plano, como estas palavras querem romper a palidez da página.
Uma mulher em trabalho de parto numa cela coloca sozinha um filho no mundo, e a
sombra de um policial vistoria por função a dor da detenta, mas logo lhe dá as costas.
Frieza maior do que a morte é a do matar. O enquadramento nos faz ver de fora da cela,
nos ata por dentro e nos segura diante da cena. Perante os gritos que suplicam ajuda, ser
espectador parece pouco, não dar as costas já é muito. Ela é um corpo, ele uma sombra
que se quer totalitária. Seu rosto? Uma mão branca que segura uma tornozeleira de
controle e que, por sua vez, sobreidentificará o destino daquela criança que nem nome
ainda tem (nem sequer título do filme apareceu).
Parto dos primeiros instantes de Chico (Irmãos Carvalho, 2016) para falar das mães
neste conjunto de filmes, ou melhor seria dizer: falar de dar à luz, dar/inaugurar a vida
apesar ou na iminência da morte que ronda – tarefa próxima à elementar função das
imagens. As primeiras palavras em Pontes sobre Abismos são: “vejo uma mãe”, quando
apenas vemos um rosto se multiplicar. Em Apelo, são os passos de Débora Maria da
Silva, uma das integrantes do movimento Mães de Maio que, logo do acompanhá-la ao
longe andando no desterro, nos encontramos frente a frente à sua interpelação: “foram
nossos filhos que morreram indigente”. Não esqueçamos, o direito ao nome foi um dos
primeiros usurpados pela empreitada colonial. Entre aquele condenado antes mesmo
de ter um nome (e apresentar um rosto), e os tantos que foram mortos sem direito à
sepultura, lápide, ou mesmo um corpo para enterrar... sem direito, enfim, a um nome, o
direito e o dever da memória se estende e se complica. Como lembrar daquilo que não
se pode nomear? Como lembrar daquilo em que o corte brusco da morte matada se
impôs com tal requinte de crueldade, com tal força de interrupção da juventude, que
faz a vida ter parecido morte, e morrer o que marca o corpo? As mães se apresentam
aqui em primeiro momento para lembrar, como diz Débora: “eles viveram! (...) Nós
demos à luz, nós demos a vida, e isso nós não vamos esquecer”. Antes de mortos,
vidas interrompidas.

1. Atua em curadoria, montagem e design para cinema. Mestrando em Comunicação na UFMG, é membro do
Poéticas da Experiência e do Áfricas nas Artes (Cahl/UFRB). Escreve para o blog pessoal Tocar o Cinema.
ensaios • mostra mortos e a câmera 141

O ano é 2029, amanhã é o aniversário de Chico, mas a comemoração será hoje.


Bolo feito pela mãe, mas comemorado pela avó – tal como parido pela segunda, e
carregado pela primeira. Poderíamos pensar a recente produção do Cinema Negro no
Brasil a partir das recorrentes cenas de aniversário nos filmes, e logo reconheceríamos
neste aspecto comum o quanto a felicidade do negro é uma felicidade guerreira, como
bem canta Gilberto Gil. Nas entrelinhas da celebração, no subtexto da canção de para-
béns, o reconhecimento de mais um ano vivo frente à guerra genocida que é o racismo.
Parece-nos, no entanto, que o pedido ao assoprar a vela, não das personagens, mas
dos próprios filmes, é o mesmo. Em Chico, foi preciso adiantar o aniversário sob pena
de faltar o aniversariante a sua festa. É na catástrofe política, na guerra anunciada, que
uma mãe sonda o impossível e solda a possibilidade de libertar para além da polícia, da
moral, da política, do menino Jesus, e da ficção aquela criança – paradigma do humano,
verdadeira pátria trucidada em continnum pela ordem e progresso que estampa a imagem
e o discurso nacional. A mãe entrega ao filho um presente que nem ele mesmo pode ver,
entrega-lhe a imensa vontade que ele permaneça vivo, que o amanhã lhe seja um direito.
Nós espectadores vemos, testemunhamos seu nascimento, sabemos do destino que lhe
aguarda e lemos nas entrelinhas do ríspido falar da mãe, na violência do gesto que o
amarra na pipa, uma fagulha de amor revolucionário negar a morte matada e o destino
imposto. Esta fagulha, que durante o filme faz com que a mãe construa a máquina-pipa
que o fará livre, para ao final empiná-la, toca o real não só por uma suposta verdade dos
corpos filmados, mas por uma espécie de festa da imaginação, ou se preferirmos, um
incêndio, ardor da imaginação que reabre a utopia. Haveria aqui uma modalidade de
imagem que se apresenta pelo gesto e olhar da mãe que o espelha, que seria: imagens
que enchem nossos olhos de água. Choremos pra ver se irriga os campos desolados
pela guerra genocida em curso neste país, dentro e fora do filme.
Como filmar algo que já por si fere nossos olhos? Se em Chico o tremor da câmera,
a inscrição do humano que a segura e lhe confere humanidade a faz próxima e implicada
na dor que se mostra, a câmera que vê, em Apelo (Clara Ianni e Débora da Silva, 2014),
a câmera que olha desliza e parece facilmente driblar as covas, lápides e entulhos. Mas
é a voz e o discurso de Débora Silva que, sem titubear, impede que façamos uma visita
passageira por sua história de vida (dela e de tantas outras pessoas), mostrada aberta
como uma ferida que não para de doer porque desprezada e permeada de injustiça.
Ferida histórica, trauma brasileiro, como diz Castiel Vitorino Brasileiro (2019). Sangue
derramado, sangue nosso que, como fala Débora, rega essa terra, “sangue nosso que
dá de beber à lavoura e dá liga aos cimentos a cada nova cidade”.
Fora os trabalhadores do cemitério Dom Bosco que aparecem na cena final, Débora
é a única pessoa que vemos na paisagem filmada, habitada por moscas, saúvas, e por
um vazio imenso. Vazio não só pelas mortes que se acumulam ali, pela perda que nos
olha em cada cova (em que a estaca que a identifica com um número sequer forma uma
cruz), mas por ser aquele um cemitério que até pouco tempo era clandestino – sintoma
de nossa história nacional, arco entre a ditadura militar de 64 e os dias de hoje. Em algum
momento, vemos Débora proferir um discurso: “Não podemos ter medo, não podemos
ter medo da bala, não podemos ter medo do açoite. Eles não vão viver alimentados do
142 ensaios • mostra mortos e a câmera

meu medo”. Se o cemitério foi sempre palco para narrar os horrores, é ali que uma mãe
singulariza aquela história, num gesto de subjetivação e negação do medo. Porém, profere
sua incisiva fala pro vazio de olhos e de ouvidos. Duplo dever nosso diante do depoimento
de Débora. O primeiro exposto de modo eloquente na fala da própria personagem: “me
ajude a barrar as rajadas das metralhadoras”; o segundo apontado dolorosamente pelo
filme ao nosso olhar e a nossa escuta. Ser um espectador vivo diante daquela imagem
e ter um nome reconhecido nos concerne uma função inalienável: “Temos que lembrar
dos mortos, temos que lembrar dos nossos, esse é o dever dos vivos. Esse trabalho não
é um trabalho perdido”. A mise-èn-scéne que em primeiro momento faz ela discursar ao
vazio, para covas abertas ou preenchidas de uma dupla ausência, nos exige ser todos
olhos e ouvidos, oferecer o mínimo: “não deixar que o grito se transforme numa palavra
muda a ecoar pela paisagem”.
Para respeitarmos Débora e sua dor incomensurável é preciso que acionemos uma
espécie de olhar opositivo (HOOKS, 2019, p. 216) ao próprio filme, resistir ao corte
que emudece o grito naquela paisagem que a câmera olha de modo niilista. Nossa
mudez não pode se estender diante dessa imagem e, sobretudo, do chamado gritado de
Débora. A eloquência do grito na cena ameaça se perder na ausência, no anonimato, na
morte – dever de quem ver aquela mulher, oferecer um ouvido que escute e uma boca
que grite. “Quem cala, morre contigo, mais morto que estás agora” é o desdobramento
do alerta que faz o título deste texto e metáfora justa ao que devemos recusar diante
do apelo daquela câmera. O dever exibido inverte a proposição lançada: trata-se mais
aqui dos vivos e a câmera.
O fogo do esquecimento ameaça os mortos e os vivos porque significa, aqui, a
vitória do inimigo. E como bem escreveu Walter Benjamin em 1940, “o inimigo não tem
cessado de vencer”. Se a imagem em alguma medida parece aderir ao desterro daquele
cemitério, é a experiência e convocação de Débora que reacende o fogo. Fogo porque
faz aparecer ali naquele lugar onde quiseram silêncio, anonimato e impunidade, voz,
nomeação e presença. Onde se queria cinzas, ausência de rastros e a vitória da frieza do
matar, emerge calor de não esquecer e brasa que volta a queimar. Fogo da convocação
porque é a justiça do fogo, justiça sensível, mas não menos decisiva que está em jogo.
Falo de justiça sensível, e gostaria de lembrar um fator básico que marca a nossa história,
além do aprisionamento pelas próprias leis, o sistema escravocrata também significou
um “longo processo de construção de incapacidade jurídica” (MBEMBE, 2018, p. 44).
A perda do direito de recorrer aos tribunais, escreve Mbembe, “fez do negro uma não
pessoa do ponto de vista jurídico” (2018, p. 45), aliás, tratava-se de um sistema legítimo
e legitimado perante a lei. Inevitável a conexão com nosso tempo presente. É preciso
que demos corpo e nome ao “você” que Débora convoca, mínimo gesto de humanidade
e pacto pela marcha da justiça que não se fará pelo apagamento. Dualidade do fogo que
aqui se apresenta: negar o fogo do esquecimento e realizar o fogo da justiça.
Um segredo contado é uma espécie de fósforo que se acende e resguarda na sua
intermitência de chama a possibilidade de incêndio, é isso que acontece em Pontes sobre
Abismos (Aline Motta, 2017). Antes da morte, a avó conta para a neta o fato de nunca ter
conhecido o pai. A história familiar dá a ver uma marca registrada da história nacional,
ensaios • mostra mortos e a câmera 143

mas o incêndio não está apenas em recolher as cinzas e tão somente encontrar o nome
ausente da certidão de nascimento. A operação de justiça é muito mais complexa do
que a inversão, ou tê-la como quebra-cabeça da qual a peça faltante uma vez encon-
trada resolveria a imagem por se completar. A verdade aqui não se contenta nem com o
desvelar, nem o revelar, mas com o incêndio do véu, ao desmascarar o real – trazendo à
tona a realidade que nos conforma. O tempo se embaraça na trança que Aline entretece.
É nisso, pois, que a justiça que se esboça é sensível, ela não se acomoda aos limites
jurídicos, mas sim ao cuidado com os vivos e os mortos, evoca-se as imagens, lava-se
com água, quara-se no vento, como quem lava a história e solta-se dos vícios e lodos do
poder. Ora, fazer justiça a história, as memórias, é uma possibilidade de descansar em paz.
Se intitulei este modesto texto com um trecho da música Menino (1976), canção
gritada por Milton Nascimento, e composta por ele e Ronaldo Bastos após o assassinato
do estudante Edson Luís, em 1968, foi para não só chamar atenção à infeliz atualidade
da canção, mas extrair do gesto (o que se canta e como se canta) alguma energia de
luta, alguma palavra que, longe de resolver, nos acenda uma pequena vela – intermitente
calor mas fundamento da prece, ponto de contato e de diálogo. Vela que nos ajudaria
menos a analisar este conjunto de filmes, do que pensar nossa posição diante deles.
Castiel Vitorino Brasileiro, a mesma que nos lembra em um dos seus filmes que “o grito
é um canto” (e vice-versa), canta em Para todas as moças (2019) uma evocação: “se
meu corpo é água de hibisco, quando eu virar vento serei chuva que irá fertilizar essa
terra maldita, essa terra que me assassina”. Com a força dos elementos a justiça se fará,
os segredos serão preservados, embarcações serão quebradas, nos ensina Castiel, tal
como a fábula do leopardo, do amigo do fogo, em Pontes sobre Abismo, resguarda uma
lição não apaziguada porque dual: a destruição pelo fogo é por vezes irreparável, mas
deixa suas marcas em quem se relacionou com ele. Sendo canto o grito, é dever citar o
inverso complementar do título: “quem grita, vive contigo”. Não é que podemos muito,
mas cantar é uma forma, pois, de estarmos e gritarmos juntos e, sobretudo, um modo
dos inimigos não viverem alimentados do nosso medo e, assim, não consentirmos a
tantas mortes injustas que ameaçam o tempo inteiro nos calar.

Referências
MBEMBE, Achile. O sujeito racial. In: Crítica da Razão Negra. Trad.: Sebastião Nascimento.
São Paulo: n-1 Edições, 2018. Pág. 27-77.
NASCIMENTO, M.; BASTOS, R. Menino. Rio de Janeiro: UMG (em nome de EMI Music
Brasil Ltda), 1976. (2min46seg)
BRASILEIRO, Castiel Vitorino. O trauma é brasileiro. [Entrevista concedida a] Diane
Lima. Revista Contemporary And América Latina, 2019. Disponível em: <http://amlatina.
contempo raryand.com/pt/editorial/trauma-brasileiro-castiel-vitorino/?fbclid=IwAR-
3XsLyNsU09LYGicYo f1zjsNSXSGJg51BgFMutEmv0EGibTUMlb90F_3gM>. Acesso
em: 11 de outubro de 2019
144 ensaios • mostra mortos e a câmera

DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Revista Pós. Escola de
Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), v.2, ed. nr. 4, 2012.
HOOKS, bell. Olhar Opositivo: mulheres negras espectadoras. In: Olhares Negros: raça e
representação. Trad.: Stephanie Borges. São Paulo: Editora Elefante, 2019. Pág. 214-240.
BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política -
ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São
Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
ensaios • mostra mortos e a câmera 145

Entrevista
com Wang Bing1
Emmanuel Burdeau
Tradução: Luis Fernando Moura

Emmanuel Burdeau: De onde surgiu seu interesse pela história da repressão no fim dos
anos 1950 e 1960, contra aqueles que o governo chinês chamava de “os direitistas”?
O que você sabia sobre esse período da história antes de começar a imensa pesquisa
que resultou em Almas mortas?
Wang Bing: Sem que eu fosse um especialista no assunto, sabia sim um pouco sobre
ele. Por exemplo, eu sabia que dois dos irmãos do meu pai tinham sido acusados de
ser direitistas.
A mesma coisa aconteceu a outros habitantes do meu povoado. E na minha infância
eu ouvia falar sobre esse momento particularmente sombrio da nossa história recente.
Como eu, muita gente sabe sobre ele. Sabíamos que tinha havido uma repressão,
que um grande número de pessoas tinha sido enviado para um campo de reeducação
porque tinham escrito ou pronunciado uma única frase, ou por um detalhe, às vezes por
absolutamente nada… Mas não sabíamos nada sobre a realidade desses campos e da
vida lá. Não estávamos cientes da magnitude das remoções, das incontáveis mortes, da
escala nacional do movimento antidireitista. Sabe-se pouco sobre tudo isso. A perspectiva
das pessoas não ia além do alcance de uma família ou de um povoado.
E.B.: A maior parte dos testemunhos incluídos em Almas mortas foi registrada em 2005.
Por que você esperou doze anos para fazer este filme?
W.B.: Eu estava ocupado com outros projetos, e com um filme de ficção, The Ditch, em
particular, cuja realização impulsionou minha pesquisa sobre os direitistas. Em 2004,
quando eu era um artista residente na Cinéfondation em Paris, li o livro de Yang Xianhui,
Chronicles of Jiabiangou, que lida diretamente com a repressão a partir de testemunhos
das vítimas. Imediatamente adquiri os direitos de adaptação do livro para o cinema. No
final da minha residência, eu tinha escrito o roteiro do filme. O livro serviu como a base
do filme, mas não era suficientemente detalhado no que diz respeito a locais e à vida
nos campos. Para que fosse verdadeiramente completa, sua transposição para o cinema
precisava de pesquisa aprofundada.

1.Trecho originalmente publicado no material promocional do filme Almas mortas no contexto do seu lançamento
no Festival de Cannes em 2018. Cf.: “Excerpt from an interview with Wang Bing”: <http://grasshopperfilm.com/
wp-content/uploads/2018/07/DEAD-SOULS-Press-Kit_Icarus-Films-and-Grasshop per-Film-1.pdf>.
146 ensaios • mostra mortos e a câmera

No intuito de preencher as lacunas, e sem antes pensar em nada que não fosse
realizar meu filme de ficção, saí em busca de outros testemunhos de pessoas que tinham
vivido nos campos. Mas eu sou antes de tudo um documentarista: provavelmente é por
isso que desde muito cedo tive a impressão de que havia um filme para ser feito destes
relatos, ou ao menos a promessa de um filme. Logo comecei a pensar sobre realizar um
documentário que compilasse o máximo possível de testemunhos de sobreviventes.
Muito rapidamente notei que o projeto era de uma grande complexidade.
Primeiramente porque vasta investigação era necessária. E, em segundo lugar, porque
os recursos e o tempo requeridos para filmar em basicamente todas as regiões da China
tinham que ser buscados. E então veio a questão mais importante: como exatamente o
filme iria ser estruturado. Essa questão surgia naturalmente a cada entrevista, que eu
tentava conduzir com uma visão geral do filme em mente, mas na realidade só encontrei
a estrutura do filme depois de vasto trabalho de montagem.
The Ditch foi finalizado em 2010. Em 2011, depois de ter filmado Três Irmãs, fiquei
seriamente doente e tive que parar de trabalhar por um tempo. Eu então fiz Até que a
loucura nos separe e foi apenas em 2014 que eu tive condições de começar a trabalhar
em Almas mortas de novo.
E.B.: Havia três campos: Jiabiangou, Mingshui, Xintiandun. Quais as diferenças entre eles?
É importante fazer uma distinção entre eles ou eles faziam parte de um único complexo?
W.B.: Jiabiangou era o nome do conjunto completo de campos de trabalho situados na
província de Gansu. O complexo era formado pela unidade central de Jiabiangou, de
Xintiandun, seu anexo situado a aproximadamente sete quilômetros da unidade principal
e pelo campo de Mingshui aberto depois, no outono de 1960, quando a maioria dos
direitistas de Jiabiangou já tinha morrido de cansaço e fome.
E.B.: E, ainda assim, é esse último local que é anunciado quando o filme começa: “Minghsui,
I”. Por que esse campo é tão importante? E por que você quis falar sobre esse campo
primeiro quando, historicamente falando, foi o último campo a ser aberto?
W.B.: Para responder sua questão, devo contar a você que, durante a montagem, eu não
segui a ordem cronológica dos acontecimentos mas, antes, a ordem das entrevistas. E
acontece que as primeiras entrevistas foram filmadas na cidade de Lanzhou, e essa cidade
é localizada perto da região de Mingshui. Todos os testemunhos eram relacionados a
esse campo e é por isso que ele é mencionado antes.
E.B.: Por que essa maneira de estruturar o filme prevalece sobre uma reconstituição
cronológica?
W.B.: Uma reconstituição cronológica parecia mesmo mais lógica e mais fácil de
compreender… mas não teria valorizado suficientemente os testemunhos, o que para
mim era absolutamente essencial. O que todas essas pessoas têm em comum? Todas
foram acusadas de ser direitistas, todas passaram por coisas horríveis, inimagináveis.
E todas tinham em comum, é claro, o fato de que sobreviveram. Isso é o que fundamen-
talmente as distingue das milhares que nunca retornaram. Seus relatos são, portanto,
muito pessoais. O foco delas está em descrever os campos e aqueles que morreram lá,
ensaios • mostra mortos e a câmera 147

mas acima de tudo elas revelam o que cada uma delas teve que fazer para permanecer
viva, assim como as injustiças a que foram submetidas desde que foram classificadas
como direitistas até sua reabilitação em 1978, o que não dissipou a marca que continuou
a pesar sobre elas e suas famílias.
No princípio, isso me surpreendeu um bocado e eu devo dizer que justo o aspecto
pessoal dos relatos delas me incomodava um pouco. Eu tinha tido a impressão de estar
o mais perto possível da verdade quando eu estava na região dos antigos campos,
situado no meio daquelas zonas vazias, desertificadas, tomadas por ossos que tinham
sido abandonados, sem túmulos, por décadas. É essa a sensação que eu queria sentir
de novo com os relatos e memórias dos sobreviventes. Mas eu não a encontrei, ou
não propriamente.
E.B.: Como você preencheu a lacuna entre as palavras dos sobreviventes e o silêncio
dos mortos?
W.B.: Esse problema me atormentou por muitos anos, até o ponto em que questionei a
possibilidade mesma de realizar o filme. Como costuma ser o caso, contudo, o problema
era a solução: eu finalmente entendi que era essa lacuna que seria o objeto de Almas
mortas. Eu finalmente notei que o que me interessava, mediante a memória dos sobre-
viventes, era poder chegar à realidade daqueles que tinham morrido. Mas tudo isso
permanece muito teórico… De um ponto de vista prático, eu ainda não sabia como a
realidade daqueles que estavam mortos iria se apresentar a partir dos relatos daqueles
que estavam, em contrapartida, ainda vivos e que, quando eram entrevistados, falavam
praticamente só disso: o fato de que tinham sobrevivido. Só achei a resposta para essa
questão em 2014. Eu tinha decidido re-entrevistar as testemunhas que eu tinha encon-
trado em 2005. Estava determinado a perguntar a elas questões mais precisas sobre
seus companheiros mortos. Mas, no meio tempo, algumas dessas testemunhas tinham
morrido, e outras tinham ficado muito fracas. Suas memórias estavam falhando. Em
certo sentido esse obstáculo era terrível, mas em outro terminou por ser uma grande
vantagem. O esforço que essas pessoas faziam, sendo agora de fato muito idosas e elas
mesmas perto da morte, para lembrar coisas que tinham acontecido tanto tempo atrás,
as tentativas delas de lembrar os rostos e nomes dos seus companheiros que tinham
desaparecido eram muito comoventes.
De repente eu estava diante de duas relações com a morte extremamente próximas
uma da outra: a morte nos campos e a morte devido à velhice. A segunda é natural;
a primeira, não. Ainda que em oposição uma à outra, elas se tocam. E, em especial,
visualmente. Eu me lembro de uma pessoa especialmente, entre outras: Zhou Zhinan,
a quem filmei com uma idade bastante avançada numa cama de hospital; magro e
fraco, sua voz era quase inaudível. A imagem dele deitado em sua cama parecia ilustrar
os relatos que seu irmão Zhou Huinan tinha acabado de me fazer, e especificamente
quando ele me contou do seu companheiro de quarto que tinha morrido de fome em
Mingshui… Eu tenho muita dificuldade em expressar com palavras o que eu senti naquele
momento exato. Mas eu sei que é algo que me incentivou consideravelmente a fazer
Almas mortas.
148 ensaios • mostra mortos e a câmera

E.B.: Voltando à estrutura do filme, como a organização dos testemunhos veio a se relacionar
com o que você tem chamado de “relato”2 em cada um dos seus filmes documentários?
W.B.: O primeiro testemunho em Almas mortas é o de um casal, Zhou Huinan e sua mulher.
Eles nos fornecem alguns dados contextuais: como alguém chega a ser acusado? Quem
eram os direitistas? Um segundo testemunho abre os portões dos campos de trabalho
e explica como eles eram operados. Um terceiro nos conduz até as profundezas da vida
no campo. Daí em diante, começamos a ouvir testemunhos mais detalhados sobre os
prisioneiros que morreram. Uma visão de conjunto progressivamente se forma: depois
de três horas, o relato nos oferece uma perspectiva tão global quanto concreta das
condições de vida nos campos.
A partir da quarta hora, os testemunhos são todos de sobreviventes que vieram do
mesmo local, e que mais ou menos se conheciam antes de serem enviados para longe.
O que acontece então, de uma maneira completamente natural e sem qualquer inter-
ferência da minha parte, é que os testemunhos se tornam eles mesmos interligados.
E.B.: Aqueles com quem você se reuniu tinham sido vítimas da repressão. Você plane-
java também dirigir suas investigações para o outro lado, quer dizer, reunir-se com os
acusadores e entrevistá-los?
W.B.: A única pessoa com quem eu tive como me reunir foi um guarda. Ele aparece na
parte final do filme e é através dele que descobrimos uma foto do campo. Devemos
lembrar que os líderes do Partido tinham já em torno de quarenta anos de idade em
1950. Estão todos falecidos. Essa é a razão porque, à parte esta única exceção, estão
ausentes do filme.
E.B.: Você desperta memórias incômodas, tão dolorosas quanto, para muitos, humilhantes.
Aqueles com quem se encontrou consentiram facilmente em falar sobre seu suplício?
W.B.: Quando eu iniciei as entrevistas, a China estava experienciando um período de
abertura política e econômica. Algumas das pessoas que contatei não quiseram falar sobre
o que aconteceu, mas a maior parte delas prontamente aceitou partilhar suas histórias.
Estou ciente, é claro, de que omitiram coisas a mim. Todo mundo tem um jardim secreto.
E.B.: A extraordinária cena do funeral de Zhou Zhinan é um dos raros momentos em
que o filme se afasta do dispositivo do testemunho. Por que abrir esses parênteses?
W.B.: A história não é abstrata. É composta de indivíduos reais, de carne e osso. A
indignação do filho de Zhou, que fala das injustiças a que seu pai fora submetido, é
exemplar nesse sentido. Ele não faz nenhum discurso, não fala em generalidades. Ele
nos conta quem seu pai foi, como ele viveu, como ele morreu. A mim me pareceu que

2. N.T.: Na primeira versão da entrevista, publicada em francês, “récit”. Na tradução em inglês, “recounting”.
Entendemos que há um valor conceitual na ideia, que a diferencia de noções como a de “testemunho”, e optamos
por respeitar todas as suas menções na edição francófona (por vezes substituída por “testimony” ou “story” na
anglófona). Neste sentido, seguimos o texto em francês também para fins de desambiguação entre “testemunho”
e “depoimento”, optando pela primeira, bem como para identificar menções a “história” (“histoire”) ou “dispo-
sitivo” (“dispositif”).
ensaios • mostra mortos e a câmera 149

uma cena como essa era necessária já logo no início para permitir ao espectador real-
mente entrar no filme.
E.B.: O filho teve que, em contrapartida, pagar pelos supostos erros do pai dele?
W.B.: Sem sombra de dúvida. Até 1978, todos os filhos de direitistas eram excluídos da
universidade e banidos da sociedade.
E.B.: No conjunto, que material você finalmente compilou?
W.B.: 120 testemunhos. Em torno de 600 horas de filmagens.
E.B.: Como você decidiu por onde começar a organizar e reduzir um volume como esse?
W.B.: Eu estabeleci algumas normas de montagem para mim mesmo. Não queria que
nem um único testemunho sobressaísse em relação aos outros. Eu queria assegurar um
tipo de balanço, porque era o todo que deveria sobressair. De um ponto de vista formal,
os relatos todos tinham que ocupar mais ou menos o mesmo espaço. E notei, durante
a montagem, que uma boa duração para um testemunho era em torno de meia-hora, e
que todos os testemunhos podiam respeitar esse limite.
Um outro princípio: se o filme deveria ser percebido como um todo, cada testemunho
precisava ter sua própria unidade, sua própria autonomia. Então decidi nunca cruzá-los,
à diferença de alguns documentários que, em vez disso, entrelaçam as histórias que
estão sendo contadas. Se uma pessoa é vista duas vezes no filme é porque eu retornei
para entrevistá-la alguns anos depois. Dessa maneira, pude respeitar a decisão que
tinha feito e mencionei anteriormente, ou seja, progredir com a narrativa seguindo a
cronologia das entrevistas mais que a dos acontecimentos. É por isso que cinco horas
de filme – as últimas cinco – são dedicadas aos direitistas que vieram todos do mesmo
local. Sejam os direitistas que foram eles mesmos enviados aos campos, ou outros,
como Fan Peilin, que era a mulher de um direitista, ou ainda aqueles com quem nos
familiarizamos através das suas cartas.
Há ainda incontáveis testemunhos que registrei em outras regiões. Eles vão encontrar
seu lugar em meus projetos futuros.
150 ensaios • mostra mortos e a câmera

Cura Bantu1
Castiel Vitorino Brasileiro2

Tudo isso surge com uma promessa que um Preto Velho fez a mim, mas uma promessa
também que fiz a ele quando ele comprou meu primeiro carrinho de bebê; meu avô.
Então “O trauma é brasileiro” surge dessa promessa mútua que eu faço com Benedito
Brasileiro, que é Bininho, que é Castiel e que é Augusto Brasileiro também. Veja, o meu
avô Benedito conseguiu fazer com seu filho o que seu pai fez com ele; fez isso com o
nome. Então, sobre meu bisavô que é o pai de meu avô Benedito: um senhor branco de
escravos deu a ele o nome de Brasileiro e inaugurou em minha história familiar um novo
trauma. Isso no início do século XX.
E esse mesmo bisavô que criou para si um outro significado pro nome Brasileiro,
também criou para si um outro nome: Augusto. E meu avô, Benedito Brasileiro, deu o
nome do seu primeiro filho, de Augusto Brasileiro. E meu pai, Augusto Brasileiro, também
tem se chamado de Gustavo, e assim como eu criou para si um nome de guerra. Então a
Família Brasileiro é uma família de guerra, assim como a Fonte Grande é uma experiência
de aquilombamento.
Quando o quilombo passa a ser compreendido como uma experiência de crueldade?
Por quem? Por quem, na contemporaneidade e, porque, a Fonte Grande e a Piedade tem
sido entendidos como territórios não de aquilombamentos e de Cura e sim de perigo e
de violência? Por quem e para quem?
É a partir disso que eu subo a Fonte Grande e assumo essa promessa e crio essa
promessa com o meu avô Binhinho. Mas não só com meu avô Bino, também com minha
avó Julite, com minha avó Éda, com minha mãe Ingrid que desapareceu há 10 anos, com
Renato Santos e com todas as vidas que compõem esse território e com todas as vidas
que compõem essa fotografia.
É uma promessa que assumo com os cachorros que estão nesta fotografia e com o
banco e com a terra e com a vista. Eu assumi uma promessa com essa vista, de sobreviver
e, a partir desse desejo de sobreviver, eu subo a Fonte Grande todos os dias. A promessa

1. Transcrição da participação de Castiel Vitorino Brasileiro na roda de conversa Cura Bantu, junto de Renato
Santos. Essa conversa pública aconteceu em 02 de Julho de 2019, e fez parte das atividades da primeira exposição
individual da artista, “O trauma é brasileiro”, na Galeria Homero Massena, Vitória/ES.
2. Artista, graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em
que corpos não-humanos se desprendem das amarras da colonialidade. Compreende a macumbaria como um
jeito de corpo necessário para que a fuga aconteça. Dribla, incorpora e mergulha na diáspora Bantu, e assume a
vida como um lugar perecível de liberdade. Idealizadora do projeto de imersão em processos criativos decoloniais
Devorações. Mora em Vitória/Espirito Santo – Brasil. Contato: castielvitorinob@gmail.com, https://castielvito-
rinobrasileiro.com/sobre.
Foto: Acervo da Família Brasileiro

que eu fiz para a Fonte Grande e pra todas as vidas é de subir a Fonte Grande toda
semana enquanto eu quiser continuar viva. E essa subida não é apenas de subindo o
morro, mas a subida é quando eu encontro Renato Santos aqui atrás e converso com ele
sobre a Fonte Grande. É uma subida afetiva, cognitiva, emocional, espiritual e energética,
de um modo que quero que seja inexplicável ainda para alguns.
Como falar de cura? Que trauma é esse? Porque essa exposição anuncia-se num
trauma mas, a experiência dela é de cura. Eu, assim como Renato, assim amigos meus,
artistas negros e racializados também como indígenas contemporâneos, estamos dando
gargalhadas do ideal da branquitude em cima de nossas experiência estéticas. Aqui
não há tentativa nenhuma de criar um espetáculo em cima de nossas experiência de
adoecimento. Não quero que as pessoas que me violentam cheguem aqui e sintam-se
confortáveis em me ver sofrendo.
Mas esse não querer é um desejo meu e não delas; delas e de alguns de vocês que
estão comigo agora compondo esse território. Conosco. É o desejo que não tenho controle
e também não quero ter controle sobre o desejo do outro. O único desejo que eu posso
talvez ter controle e direcionar, é o meu. E qual desejo eu quero desejar? É o desejo da
sobrevivência e da Cura. E quero continuar viva e para eu continuar viva, Renato precisa
continuar vivo, Nape Rocha precisa continuar vivo, Felipe precisa continuar viva, minhas
amigas precisam continuar vivas. É um desejo de vida.
E daí vem o “O trauma é brasileiro”. Nessa exposição eu apresento minha terceira
experiência instalativa Quarto de Cura, que é um quarto onde… não é uma apresentação
de resultados das experiências estéticas que tive na Fonte Grande mas é uma proposição
de um outro marco nessa experiência de imersão que eu assumi com a Fonte Grande no
leito de morte do meu avô Bininho, na última vez que o vi nesta vida terrena e quando eu
152 ensaios • mostra mortos e a câmera

disse pra ele: você não estará aqui nesta exposição com o seu corpo terreno, mas você
estará aqui no meu nariz, na minha tonalidade de pele e no meu desejo de comer peixe
e também no Brasileiro. Eu não sabia muito bem como seria o nome dessa exposição,
mas assumimos ali, na ultima vez que eu senti o seu sopro de vida, daquela forma, que
no nome da exposição teria Brasileiro.
E a partir daí eu começo a assumir essa pesquisa e nomeá-la.
Veja, “Cura Bantu;’ esse é o nome com que resolvi nomear esse encontro.
Bem, semana passada completei 23 anos de existência terrena e carnal. E hoje acon-
tece um eclipse solar na lua nova. Será que a lua e sol se cansam enquanto dançam? E o
que acontece nessa dança, que me faz querer continuar o giro do anti horário? E como
giro ou danço, se estou cansada? Enquanto estou cansada, ainda me movimento, pois
o descanso é uma dança, é uma respiração. É a dança que o vento faz dentro de mim
durante minha meditação.
Eu medito desde os primeiros anos que assumi a guerra. Nunca precisei me assumir
bixa ou travesti, pois o meu corpo é autônomo a essas linguagens faladas, criadas por
essa ocidentalidade. Antes da linguagem, há a língua. Veja, antes da linguagem há a
língua. Mas não é só o ver, é também o sentir. Sinta essa língua, o órgão, o corpo. Antes
da linguagem verbalizada, acontece a linguagem gestual. Antes do convite ser aceito,
meu corpo já dança com a lua e com o sol.
E o convite, qual é esse convite? Eu convido você a entrar nesse território de liberdade
perecível que é o Quarto de Cura. Aqui eu proponho alguns convites, e não são a todos
e podem ser para alguns; que juntos fazem o todo. E esse é o todo que venho criando,
é esse todo que venho desejando. Um todo criado por alguns.
Esse quilombo que tenho construído é diferente daquele que existe na Fonte Grande
e, que existia e que já existiu. É uma pergunta e uma constatação: é diferente? Já deixou
de existir esse quilombo na Fonte Grande e na Piedade? E como é? É uma pergunta e
uma constatação. É uma verdade ou uma origem que não descubro e sim crio enquanto
visito e crio aquilombamento na Fonte Grande. Não há uma tentativa de descobrir uma
origem em um passado que teoricamente está estático.
Há uma experiência de construção dessa origem. E que origem é essa que tenho
construído? É de fato essa origem Bantu que Renato tanto me ensina todos os dias que
eu ligo pra ele - e às vezes ele não me atende. É uma ordem que se cria enquanto danço
lá em cima e enquanto quero dançar na boca da mata.
Essa foto foi tirada na boca da mata. Essa casa foi construída pelos meu bisavós. Esse
quintal hoje e essa casa, pertencem a uma família indígena evangélica que tem vergonha
de ser indígena. E continua sendo indígena e continua sendo quilombo. Dançar nessa
boca enquanto percebo e enquanto lembro no gesto que sou filha da lua crescente.
Dançar na boca da mata e lembrar que sou filha da boca crescente.
Nasci semana passada e quando Renato me convidou para montar o Quarto de
Cura em sua casa na Fonte Grande. A gente passou 30 dias em sua casa ao modos
das benzedeiras e das psicólogas anti racistas, que não são quaisquer psicólogas. Eu
me propus, eu e Renato Santos, a ficarmos lá por 30 dias. Montei o Quarto de Cura lá,
antes daqui. Ficamos de dezembro de 2018 até janeiro de 2019, produzindo descarrego
ensaios • mostra mortos e a câmera 153

desses traumas coloniais e descarrego dos carregos dessa colonialidade que cria uma
experiência de mortificação e violência para pessoa negras. Negras capixabas, mas
não só, também as pessoa negras que vivem a experiência da diáspora nesse planeta.
E nasci enquanto morria, porque eu morri quando lembrava de minha existência; que
são de quinhentos anos e mil anos. Quando pergunto quantos anos eu tenho ou quando
me questiono sobre minha existência, eu afirmo: eu não tenho vinte e dois anos. Eu não
tenho vinte e três anos e eu não tenho e não terei vinte e quatro anos. Assim como já tive
dezoito, e quinze e também já tive e tenho ainda hoje quinhentos e mil anos. A minha
existência é composta por mil anos anos e mil vidas. E não só mil vidas mas é composta
por um conjunto de vidas que eu não consigo nem nomear.
Esse conjunto de vidas que muitos deles estão justamente nas Kalungas que Renato
tanto diz e me ensina. Então, quantos anos de fato eu tenho? Quero ter a idade de uma
semente e ser novamente plantada pela minha avó Julite e pela minha avó Éda.
Mas se ainda não sou, serei aquela que irá plantar um jardim para não precisar de ir
na farmácia. É assim que surge a Vila Rubim? De um desejo de não querer ir na farmácia?
Pois é assim que me curo, indo na Vila Rubim.
Coreografias aprendidas enquanto desaprendo a colonialidade. É quando crio meus
eclipses solares e lunares. E hoje realmente está acontecendo um eclipse solar na lua
nova, em uma lua de câncer. Sim, os crio sempre que choro ou descaso, mas não tenho
chorado ou descansado muito nos últimos meses. Faz alguns meses que não chove em
meus sonhos e também faz alguns meses que meus músculos desejam o descanso.
A Cura é assim isso e é assim que faço a cura. Compreendendo-a para continuar viva.
A Cura é uma questão de Tempo, e os meses podem ser dias ou meia hora. O amor de
Marinheiros é um amor de meia hora. Quanto Tempo dura meia hora? Estou descobrindo
quanto Tempo dura meia hora enquanto me proponho a todas as semanas e a todos os
dias subir e descer a Fonte Grande e criar ali uma outra situação temporal e geográfica.
E qual Tempo que se inaugura na Fonte Grande quanto eu subo e quando decido
subir? Quando eu faço o Quintal Bantu lá, junto com Renato, Rafael Segatto, Natan Dias,
junto com Kika Carvalho, junto com Felipe Lacerda, junto com tantos outros artistas que
juntos construímos uma situação aí de liberdade e de cura e de crueldade.
Esse Tempo estou descobrindo e estou descobrindo enquanto estou virando sereia.
Assim como já fui e sou uma planta. Sou um corpo-flor. Sou planta, terra e mar. E se todo
conhecimento tem uma origem, qual origem consigo criar com o meu corpo cansado?
É sempre quando eu consigo mergulhar nas kalungas sem me afogar.
E como aprendi a nadar? Como estou aprendendo a nadar nessa kalunga, nesse
mar, nesse atlântico?
Eu aprendo a nadar quando tive a coragem de mergulhar e aprender.
Obrigada.
154 ensaios • mostra mortos e a câmera

a ponte caiu,
se vira e atravessa nadando
Davi de Jesus do Nascimento1

“a ponte caiu, se vira e atravessa nadando”, exorcismo de dor, lembrete e fotografia


contidos dentro de fragmento de álbum, 33 x 26 cm, 2013-2018.
trabalho realizado dias após a morte de minha mãe.

depois que minha mãe morreu ainda morei um ano em pirapora. nesse um ano eu ia
com muita frequência no cemitério onde ela foi enterrada, pra catar as sementes do pé
de tamboril – que caíam sobre o túmulo – e tomar café com cuscuz e umbuzada. fazia
esse lanche lá pra me sentir mais conectado com os chocalhos. percebi que o som que
eu produzia quando mastigava e tomava um gole do café balançando as sementes ao
mesmo tempo, parecia com o cheiro do sorriso marrom da gengiva de minha mãe atolada
no esqueleto do maior inseto que encontrei na vida de uma caranguejeira.

1. Artista plástico, performer e poeta barranqueiro. Gerado às margens do rio São Francisco, curso d’água de
sua pesquisa, Davi trabalha coletando afetos da ancestralidade ribeirinha e percebendo “quase-rios” no árido.
Na fotografia, utiliza o corpo como instrumento de medida do mundo. Corpo-médium, confrontado e confundido
com a natureza. Uma natureza aquática, barrenta e silenciosa, que pode ser lida como isca, peixe e pedra.
ensaios • mostra mortos e a câmera 155
156 ensaios • mostra contemporânea brasileira

ensaio sobre fragilidades


sobre Bup, de Dandara de Morais,
e Motriz, de Taís Amordivino

Alessandra Brito1

O primeiro filme que assisti na vida foi Esqueceram de mim (Chris Columbus, 1990).
Eu, minha mãe, meu irmão e minha irmã tínhamos ido dormir na casa da minha vó e
estava passando o filme na Tela Quente. Era uma televisão preto e branco. Achei o filme
assustador, a criança sozinha em casa, tudo era meio sombrio. Isso talvez porque eu tive
muito medo do escuro até os meus 13, 14 anos mais ou menos. Fiquei pensando no
contexto de uma criança esquecida em casa e no modo como ela arma aqueles truques
maldosos contra os invasores, no final, acho que peguei no sono antes do filme acabar.
A primeira vez que fui numa sala de cinema eu tinha 19 anos, vi um filme do James
Bond, 007 - Casino Royale (Martin Campbell, 2006), era comemoração de aniversário
de um amigo. Saí do cinema e tomei uma casquinha de sorvete refletindo sobre a história
da personagem Vesper Lynd, o que poderia estar por trás das decisões tomadas por
ela no enredo.
Hoje eu não tenho mais tanto medo do escuro, compreendo um pouco melhor porque
as personagens Bond Girls, como é o caso da Vesper Lynd, não têm trajetórias próprias
em filmes do agente 007, e, sobretudo, me pergunto, por que tantos outros corpos não
ganham vidas e existências nas imagens?
Assistindo Bup (Dandara de Morais, 2018) e Motriz (Taís Amordivino, 2018) me
lembrei de todas essas histórias – as minhas, as dos filmes e as que criamos, depois
que vemos os filmes, com elementos que muitas vezes não podemos ver ali, materia-
lizados na imagem, mas que se misturam com o que somos no mundo. Dandara de
Morais, Taís Amordivino, Dona Nilzabete, Grasiele e as palavras de Conceição Evaristo
me convidam a observar os silêncios, os olhares e a capturar o que escapa às imagens.
O professor e pesquisador Mahomed Bamba escreveu que “além de produzir uma forma
de pensamento a partir dos filmes, o teórico do cinema pode ser também um ‘escritor’
da sua própria vida e de sua relação com os filmes” (BAMBA, 2016, p. 299). Este texto
se move fortemente por esse esteio, pelas palavras de bell hooks sobre a espectato-
rialidade das mulheres negras e por sua defesa do amor como uma metodologia de

1. Jornalista graduada pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e militante junto à segundaPRETA.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 157

resistência política e caminho para construção de imagens partindo do exercício do


poder de olhar.
O filme Bup começa com a voz em off da ex-presidenta Dilma Rousseff, Dandara
se sentando e mostrando um papel onde consta seu nome, altura e telefone. Durante
os 4 minutos e 40 segundos ela olha para a câmera. Cabelos trançados, tranças sobre
os ombros, uma profusão de palavras, a voz da atriz e diretora, sons, músicas, outras
vozes ocupando a tela convidam o espectador para um outro universo confuso, acele-
rado, barulhento em contraponto à face séria de Dandara, que segue nos observando.
O que podemos e o que não podemos capturar na imagem de uma mulher negra
olhando para uma câmera? Olho o silêncio e ouço o caos, o “Lago dos Cisnes”, a sobre-
posição das músicas, sinto vontade de encontrar uma brecha. Dandara inventa uma
maneira de dizer aquelas coisas que são difíceis de falar, nos apresenta fragilidades que
podem parecer quase invisíveis, irreveláveis, mesmo para quem está ali, a se mostrar
diante da câmera. “Dói tudo, dói até a alma. A alma dói porque não posso dançar. Hahaha.
Que cafona!”, ela diz sem mover os lábios, se recostando no sofá, cobre a face com as
mãos numa carícia que denuncia as unhas com esmaltes descascando.
Em uma linguagem experimental, desfiando pensamentos, Dandara nos apresenta,
ainda que flertando com o desejo de ocultar, uma parte de seu mundo. “Um tributo
ao silêncio. Olá, ansiedade! Bup é a ausência do silêncio. Uma tragicomédia em ritmo
frenético sobre a presença da angústia, incômoda insegurança e constante inquietude.
Que pena que saí do útero”, diz a sinopse do filme. Em um comentário sobre o filme
na internet alguém disse: “Pisou em Cisne Negro”, em referência ao filme de Darren
Aronofsky (2011), mas me interessa pensar quais corpos têm permissão para expressar
alguma fragilidade?
Em Motriz, Taís também nos entrega um pouco do seu mundo, sua família, sua mãe,
referenciado seu olhar como Conceição Evaristo referenciou os olhos de Dona Joana
Josefina Evaristo Vitorino: olhos d’água. O filme começa com a viagem, a janela do ônibus,
a paisagem mudando. Salvador à Jordânia. Tela preta escrito “Motriz. Substantivo feminino.
Força que impulsiona, que faz mover ou ocasiona o movimento”. Taís pergunta à sua
mãe nome, idade e faz uma pequena entrevista. A câmera conduzida pela filha cineasta
nos mostra sua mãe de perto, muito perto. A proximidade me causa uma sensação de
que ela tenta nos mostrar algo que talvez estivesse para além da imagem. Penso nas
visitas que faço à minha mãe, em como me encanta observar seus movimentos pela
casa, coisas mínimas, sutis, e que são dela, só dela. Talvez fosse essa a busca de Taís.
Como no conto de Conceição, apesar dos olhos em lágrimas, sua mãe sorria feliz, Dona
Nilzabete nos dá seus sorrisos e suas lágrimas.
E há também aqueles momentos em que elas nos entregam seus silêncios, um tomar
café distraída na cozinha, catar feijão, cozinhar, cuidar da casa, cuidar de si, pentear-se.
Aquela mulher que, como tantas de cor semelhante, recebe a missão de ser a personi-
ficação da força, vive a sutileza de sua existência, de uma vida que segue com uma filha
a menos. Tela preta, a palavra “Saudade. Substantivo feminino. Sentimento melancólico
devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar”.
158 ensaios • mostra contemporânea brasileira

O espaço é um elemento importante na narrativa dessas mulheres, vemos, pelo olhar


delicado da diretora, o cotidiano de uma família – avó, mãe e filha –, a cidade pequena,
suas ruas, seu céu, suas flores, seus sons, seus meninos que brincam na rua. O modo
como ela captura essa espacialidade diz também de suas ausências. Um ano. O tempo e
suas transformações e permanências. A mudança no cabelo de Dona Bete, e a passagem
do desconforto de alguns momentos com a câmera até o momento em que ela diz sobre
sua filha ser cineasta, assiste a um corte do filme, se comove.
Patricia Hill Collins (2013) referia-se a uma recusa das imagens controladoras e
estereotipadas sobre mulheres negras, reclamando a autodefinição e a autovalorização
para criação de imagens autênticas dessas mulheres. Penso que é esse o movimento
feito por Taís e sua mãe, com a inscrição de seus corpos na cena, suas histórias, sua
família de mulheres.
bell hooks diz que “ao olharmos e nos vermos, nós mulheres negras nos envolvemos
em um processo por meio do qual enxergamos nossa história como contramemória,
usando-a como forma de conhecer o presente e inventar o futuro” (HOOKS, 2019, p.
240). Com as imagens de Taís Amordivino, eu invento um dia em que eu, minha mãe e
meu pai vamos ver um filme – vai ser a primeira vez deles no cinema – e assistimos Motriz.

Referências
BAMBA, Mahomed. Reflexões sobre o valor heurístico do uso da experiência pessoal na
formalização teórica da espectatorialidade fílmica. In: Pesquisa em comunicação: meto-
dologias e práticas acadêmicas. MOURA, Cláudia Peixoto de; LOPES, Maria Immacolata
Vassallo (Orgs.) Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016. p. 296-317.
COLLINS, Patricia Hill. O poder da autodefinição. In: Pensamento feminista negro: conhe-
cimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Natália Luchini. Seminário
Teoria Feminista, Cebrap, 2013. [Em inglês, Black feminist thought: knowledge, cons-
ciousness, and the politics of empowerment. Nova York/Londres, Routledge, 1990.
Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4123078/mod_resource/
content/1/Patricia%20Hill%20Collins.pdf>. Acesso em: 15/05/2019.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 159

Entre o passado implacável


e as interações vivas:
a casa-cinema de Letícia, Heliana e Clementina
sobre Casa, de Letícia Simões

Roberta Veiga1

Casa, de Letícia Simões, é um filme de família, porém não no sentido consagrado, de


filmes caseiros rodados em ambiente doméstico, em ocasiões festivas, que podem ou não
vir a público, mas num sentido complexo: quando a família falta, pode o cinema intervir?
Pode o cinema ser menos forma de representação e mais aparato de intervenção nos
vínculos afetivos de modo a tencioná-los e reinstitui-los, a partir de ações pragmáticas
no universo familiar? Casa é isso: um cinema de experiência pessoal, feminino, um
documentário que quer reunir três gerações de mulheres de uma mesma família: a de
Letícia, a diretora e personagem do filme, a de Heliana, sua mãe, e a de Carmelita, sua
avó. Letícia volta a Salvador, sua cidade natal, e morada da mãe e da vó, em busca das
formas de relação entre elas: as arruinadas pela dor, as existentes ainda que aos pedaços,
e, principalmente, as possíveis, aquelas que o filme irá disparar, como dispositivo de
elaboração e produção de afetos comuns. Apartadas pela distância geográfica, temporal,
ou por histórias e temperamentos diferentes, as três mulheres em uma tríade ou em
suas díades – filha-diretora com mãe; neta-diretora com vó; mãe com mãe – se abrem
ao chamado do cinema, à reconstrução mnemônica do familiar, de uma casa onde a
união, empírica e imaginária, é possível.
Não alheio aos procedimentos de filmes de experiência pessoal,2 que lidam com a
vida íntima e familiar, nos quais a cineasta se inscreve filmicamente, muitas vezes ao
biografar um ente próximo, o mecanismo cinematográfico de Casa se institui. Em seus
atos de busca pelas memórias e afetos que constituem os laços e as vivências cruzadas
dessas mulheres, Letícia faz uso de arquivos fotográficos domésticos; das conversas entre

1. Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do PPGCOM da FAFICH-UFMG. Editora da Revista


Devires – Cinema e Humanidades. É coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas;
a mulher está no cinema (UFMG). Tradutora do livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday,
de Ivone Margulies, autora de vários artigos em revistas sobre o tema “cinemas femininos em primeira pessoa: o
pessoal é político”, e de capítulos nos livros Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro e Mulheres de Cinema.
2. Sobre o conceito de filme de experiência pessoal cf. VEIGA.
160 ensaios • mostra contemporânea brasileira

elas; da revisita às casas onde a família viveu em algum passado; de cenas de uma, duas
ou três, feitas nos encontros suscitados pela câmera; bem como de imagens-paisagens
do mar, da praia. Tanto os arquivos vindos do passado quanto as cenas gravadas no
presente serão recobertas pela voz off da diretora-personagem e narradora, seja em
primeira pessoa – no caso das pequenas biografias das três (do pai e do avô), inseridas
ao longo do filme –, seja em terceira pessoa, nas leituras das mensagens trocadas entre
Letícia e Heliana. Para além dessas estratégias, há momentos de maior experimentação,
nos quais propostas performáticas, mise-en-scènes fotográficas e intervenções pictóricas
nos arquivos fazem a passagem do documentário ao ensaio.
O resultado é um dispositivo mnemônico complexo no qual a diretora como filha
se recoloca na relação com a mãe, que, através do filme, se reafirma em relação a sua
própria mãe, a avó de Letícia, que, ao filmá-las, virando a câmera para si e para as duas,
ora se inclui no jogo, ora se mantém de fora, incapaz de abrir mão do lugar da cineasta
que, do antecampo, pensa o que e como filmar. Ao oscilar entre fora e dentro da casa de
mulheres, do ponto de vista fílmico e memorial, Letícia cria por vezes uma permutação de
lugares e funções, por outras uma tensão entre eles, e ainda uma sobreposição dessas
instâncias de modo a permitir que o processo de criação seja mais coletivo, que os
afetos passem por ela, como filha e neta, e enseje a elaboração de experiências íntimas
que atravessam as três mulheres.

Do arquivo ao inconsciente implacável

Já próximos ao fim do filme ouvimos a mãe, Heliana, dizer: “você quer que eu vá pegar os
arquivos implacáveis, né Letícia?” Nesse momento, nos perguntamos novamente acerca
da implacabilidade dos tais, uma vez que desde o início do filme compartilhamos com
Letícia a curiosidade pela foto que teria capturado um momento de extrema felicidade
na casa de Itaparica em que ainda criança, ao entrar no mar com o amiguinho, ela teria
tirado a calcinha. Tal momento, junto a outras lembranças, sabemos estar guardado entre
os arquivos que Heliana nomeia implacáveis, por ela trancados a muitas chaves, dos
quais Letícia, durante o filme, negocia a abertura pela qual aguardamos. Quando a filha
insiste que os mostre, a mãe responde que “está tudo arrumado”. E para que mexer no
passado que ela já organizou? Porque o filme não se contenta, ao contrário, só se faz de
lembranças, remexendo-as. Na mensagem, que ouvimos em off, enquanto Letícia caminha
pela praia carregando a foto do pai como que lhe procurando, a filha pergunta à mãe se
ele poderia ser um espírito obsessor sobre ela, ao que Heliana responde: “obsessor é o
inconsciente, esse sim implacável!”. O significante (que se referia aos arquivos) se refere
agora ao inconsciente. É a deixa para o espectador de que não haverá acesso fácil àquelas
imagens, assim como não há acesso direto às imagens guardadas na memória. Fotos
antigas são como lembranças do passado arquivadas em profundos armários escuros. E
para Heliana tanto os arquivos materiais (de papel) como os imateriais (as imagens que
rondam o inconsciente) são implacáveis. Implacável é aquilo que é inabalável, por isso
impossível de se aplacar. Incomplacente, portanto incapaz de perdoar, e de ser flexível
ensaios • mostra contemporânea brasileira 161

como o é Letícia (que segundo a mãe, nesse aspecto, diferente dela, se assemelha ao
pai). É duro, inclemente, como Heliana com sua mãe. Ao mesmo tempo, o implacável
também é o cruel, o algoz, assim como Carmelita, a vó de Letícia, fora com a filha. Não
restam dúvidas que esses arquivos encarnam materialmente afetos e sentimentos de
uma vida em família impossíveis de se acalmar, de se atenuar. Por mais que Letícia se
esforce em apaziguar, eles estão ali trancados para que não retornem indóceis a cobrar
a reparação dos danos do passado, teimando em fazer justiça pelo que realmente houve.
Daí que a lida de Letícia com os arquivos materiais é, como nos lembra Didi-Huberman
(via Walter Benjamin), própria à dinâmica da história: imaginada, sonhada, rememorada,
e não um passado instituído. Ao se valer dos arquivos físicos, as velhas fotografias
guardadas, revolvê-las, temporalizá-las e conjugá-las para o filme, o cinema de Letícia
remonta também (no presente) o imaterial da vida, aquilo que se foi (o passado), para o
que poderá ser (o futuro dos muitos sentidos e entregas que o filme irá gerar). É ali que
ela pode intervir e intervirá. Pois ainda que achemos que estamos esperando, e ainda que
esperemos o filme inteiro pela abertura dos arquivos tão intocados por Heliana, desde o
começo as fotos antigas, amareladas, descascadas – que vemos em sequências; empu-
nhadas pela cineasta-personagem em sua visita à casa de Itaparica; postas em cena num
ritual em que afundam nas águas do mar; dispostas no asfalto encharcado, recostadas
num velho muro; que vemos passar pelas mãos da mãe e da filha – constituem o arquivo
implacável. Esse que está a todo momento sendo cinematograficamente profanado pelo
gesto da diretora de torná-lo filme e por isso fazendo da história doméstica uma história
partilhada, que transborda para a escravidão, o racismo, a miséria, o cangaço, para um
Brasil de um povo apagado, e que mesmo pouco nítido na imagem surrada pela idade
das fotos, ainda “lampeja nesse instante de perigo” (como dirá Benjamin) em que vivemos.
Rasuradas de azul – por listas, reenquadramentos, flores – ao reconstruir as biografias das
mulheres, do pai e do avô, mãe e avó dialogam entre si e constroem o filme da filha e neta –
que chegou depois, trazendo o alento e a força do mar de Salvador no azul “insistente” –,
para a família que “somos nós uma casa”, como ela mesma diz em seu canto final.

As interações vivas

Se a mãe parece certa de que aprisionar arquivos ordenados em armários aliviará qual-
quer inquisição dura do passado, ao mesmo tempo ela aceita de imediato que a filha
retorne a Salvador para fazerem o filme. Talvez Heliana tenha subestimado a força do
cinema em intervir nas relações, revolver lembranças, criar afetos. Em sua dimensão
processual, a câmera provoca e testemunha interações que também cobram das perso-
nagens-mulheres que se mostrem, se digam, se desloquem. Daí que os encontros entre
filha-mãe-neta-avó-mãe não acontecem sem tensões, mas na oscilação de Letícia – de
estar fora (cineasta-narradora) e dentro (personagem) – que turva certas águas e trans-
forma outras em tempestades.
Talvez em busca da imagem que falta para integralizar sua lembrança feliz, perse-
guida desde o início do filme – a infância na casa de Itaparica – a cineasta conduza o
162 ensaios • mostra contemporânea brasileira

filme para aquela morada da memória como a um telos e, por isso, escute menos dois
apelos recônditos da mãe, mas que voltam no processo fílmico (que também atesta sua
autonomia): a velhice e a pobreza. Percebemos que Heliana teme cansar a filha com
sua doença, crises e problemas. Em uma primeira interação, no carro, logo após a filha
ajeitar a câmera no painel, a mãe diz angustiada: “apesar de ter anos de terapia, eu estou
enfrentando um problema novo... a velhice”. Essa frase ressoa na diferença visível entre
as duas flagradas frontalmente (se Heliana é frágil em sua bipolaridade anunciada, a
filha é jovem e bem resolvida). Mas Letícia vira o rosto para a paisagem que passa pelas
janelas do carro e corta. Daquele fio de dor, a filha não faz laço, desfita. Em seguida, ao
ser questionada sobre qual seria o título de sua autobiografia “não-autorizada” – essa
que ela mesma não sabe que está escrevendo ao se inscrever ali3 – Heliana responde
que seria “pobre menina pobre”. A filha é incisiva: “como você começaria a contar...
como?”. Mas, e esses dois “pobres” na mesma frase? Já não se tratariam de um começo
e tanto para história, ao implicarem duas pobrezas diferentes? No entanto, a pergunta
de Letícia leva a uma burocratização. A mãe se põe a falar do começo, da data, de
quando nasceu, e ainda assim a pobreza não sai dali. Após esse detour, ela volta a dizer
que o momento de epifania de sua vida foi quando viu o padrinho chegar em Itaparica
acompanhado de seu pai pela manhã: “meu padrinho, meu deus do céu, conseguia ser
mais pobre que a gente. Ah a pobreza!”. Não há como dissociar o amor pelo padrinho
de uma dignidade da pobreza, e a cineasta novamente arrasta o fio da memória para a
casa de Itaparica. A conversa se (re)burocratiza em uma discussão geográfica que visa
situar a mesma imagem da memória que o filme procura. Mas não há saída, no caminho
dessa casa, novamente surge a velhice. Depois de identificarmos o limite nebuloso entre
as duas – a mãe acha que não deve se meter na vida da filha, que por sua vez lhe cobra
diálogo – Letícia abrirá os seus arquivos pessoais: seu álbum de casamento. Ao justificar
sua ausência na cerimônia, a mãe lembra que não ficou bem de saúde depois de ir à
festa de uma colega e sofrer uma queda. Ela repete: “eu estava me sentindo muito velha”.
(Tanto para cair quanto para ir ao casamento da filha?) Mais um desolhar. Letícia então
conta do aborto, uma outra impossibilidade – signo do conservadorismo materno que
a filha tenta apaziguar – se desdobra: a mãe é contra o ato, como é contra assumir seus
cabelos enrolados, seus traços negros, assim como exalta valores conservadores – o
casamento, filhos, família – laços que, nas interações vivas que o filme propõe, faltam.
Quando a avó entra no jogo, a neta-cineasta se vira contra a mãe tentando apaziguar
as relações e fechar o triângulo do filme, porém parece impossível que Heliana perdoe
Carmelita. Ela já contara que fora abusada pela mãe física e moralmente, chorando em
cena por um passado que não passa. Na visita à avó, a câmara se esforça para colocar
as três em quadro. Carmelita está assentada na cama, Letícia ao lado dela, e Heliana
numa cadeira afastada, no canto do enquadramento, com as mãos no rosto num gesto
de quem sofre por estar ali. A avó pede a ela que melhore a cara, reclama da depressão
que também não passa. Quando chega o Natal, a tensão explode, Letícia não suporta ver
a mãe atacar a avó. Diz que Heliana estragou seu Natal, que diz: “e Carmelita estragou

3. Sobre conceito de “autobiografia-autorizada” cf. VEIGA, 2016.


ensaios • mostra contemporânea brasileira 163

o meu”. Quem terá estragado o Natal de Carmelita uma vez que sua mãe (a bisavó) não
está lá? Falta uma mãe... e percebemos que o triângulo não fecha porque não é a figura
correspondente. Trata-se de um rizoma onde muitas mães e muitas famílias vão aparecer.
Depois que a avó morre, resta filme até que a cineasta tenha que cortar, para fazer
outro, para que a vida dela siga naturalmente. Já para a mãe fica a pergunta: como voltar
à vida, se aquele filme com a filha era a possibilidade de fazer família. Se aquele filme foi
até ali à sua casa? Fica então a ressoar, no cinema e pelo cinema, o pedido de Carmelita
à neta-cineasta que reze, que faça com que a filha lhe abra o coração.

Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e Técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens.
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2015.
VEIGA, Roberta. Autobiografia “não-autorizada”: por uma experiência limiar no docu-
mentário na primeira pessoa. Doc On-line, n. 19, p. 42-59, mar.de 2016.
____________. Por uma política da rememoração: a potência histórica no cinema de expe-
riência pessoal. Contracampo, Niterói, v.35, n. 03, dez. 2016/ mar. de 2017.
164 ensaios • mostra contemporânea brasileira

A batalha está
no campo do corpo
conversa com Barbara Wagner e
Benjamim De Burca sobre Swinguerra

Nina Gazire1

Em 2015, Barbara Wagner e Benjamim De Burca iniciaram uma pesquisa de campo


sobre os grupos de swingueira, ritmo também conhecido como pagode baiano, axé
rápido, originário da periferia de Salvador. A pesquisa resultou em Swinguerra (2019)
atentando para a relação de resistência dos grupos dançarinos da periferia recifense e
para as competições de dança das quais costumam participar. A princípio parece mostrar
na performance destes coletivos, todos de dançarinos profissionais, uma preparação
cujo campo de batalha se inicia na escola pública CAIC-Atenção Integral à Criança e ao
Adolescente, em Peixinhos, Olinda. O complexo foi desenvolvido nos anos 1990 pelo
arquiteto João Filgueiras, o Lelé, também responsável pelos CIEPS-Centros Integrados
de Educação Pública do Rio de Janeiro, projetos que se tornaram utopia para a educação
brasileira. Inicialmente o trabalho teve caráter instalativo em dois canais, e representou o
Brasil no pavilhão nacional na 58ª Bienal de Veneza, em 2019. De caráter inclassificável,
o filme é o resultado do desenvolvimento de uma metodologia que tensiona tipologias
do campo das artes, do cinema etnográfico e do cinema em continuidade com a mídia
pop (youtube e a estética da “viralização” de corpos “instagramados”, não-binários), não
por isso menos potente e que foge aos exotismos clichês. De maneira virtuosa, Wagner
e De Burca transformam esse modus operandi que engana/encanta o expectador de um
jeito “quase hitchcockiano”, mas estamos em 2019. “É muito importante que o que seja
entendido aqui é que nossa metodologia parte de uma ética em relação ao olhar sobre o
mundo e outros artistas que trabalham com a gente diante de um contínuo que não cabe
mais em rótulos e que inclui artistas que criam suas dinâmicas próprias”, afirma a dupla.
Trabalhando juntos desde 2013, Wagner e De Burca criam sempre com outros grupos de
artistas em tempos e situações difíceis. Talvez o exemplo mais conhecido é Terremoto
Santo (2017), exibido ano passado no forumdoc, imprimindo uma responsabilidade
difícil ao expectador ao mostrar a performance de uma cantora Gospel cantando uma

1. Marina Gazire é jornalista, curadora e professora universitária. Possui mestrado em Comunicação e Semiótica
e é uma das pioneiras em pesquisadoras sobre arte, tecnologia e ciberfeminismo no Brasil. 
ensaios • mostra contemporânea brasileira 165

música homônima, onde câmera e performer perdem seus limites juntos. O filme foi
extremamente polemizado. Swinguerra não é diferente. Adaptado agora para os festivais
de cinema mundo afora, o curta foi exibido no formato de canal único, em agosto, no
tradicional festival de Locarno, na Suíça. Em entrevista para o catálogo do forumdoc.
bh.2019, os artistas conversaram sobre Swinguerra e seu caráter híbrido:
N.G.: Inicialmente Swinguerra foi concebido como uma instalação comissionada pela
33ª Bienal de São Paulo, sob responsabilidade do curador Gabriel Pérez-Barreiro, que
levou o trabalho em formato instalação para o Pavilhão Giardini da Bienal de Veneza, de
2019. Como é para vocês essa transição do trabalho, primeiro idealizado para ser uma
instalação, depois a uma mostra de cinema etnográfico e para outros circuitos diferentes?
B.W.: O meu trabalho em parceria com Benjamin tem essa natureza híbrida. Os filmes
que fazemos circulam tanto nas instituições da arte quanto em festivais de cinema. Isso
é uma escolha intencional, não é casual. Nos atentamos às diferenças desses espaços
e a forma como esses trabalhos são recebidos, tanto no Brasil quanto fora. E a gente
se interessa, principalmente, por esse cruzamento de linguagens e público e canais de
circulação. Isso é uma questão que está impressa nos nossos trabalhos. Trabalhamos com
uma equipe de cinema: direção, diretores de fotografia, técnicos de captação de som e
montamos uma equipe que pense em um plano de filmagem, que tenha um tratamento
muito profissional com as pessoas que participam do filme, o elenco, etc. A pós-produção
é realizada dentro de um tipo de prática que é advinda do cinema profissional, diferen-
temente dos filmes que a gente pode chamar de videoarte, filmes de arte ou filmes de
artista. Queremos, intencionalmente, trabalhar dentro da convenção do cinema como
prática e como indústria, mas o que fazemos no sentido artístico é experimentar no
processo de pesquisa e produção.
B.d.B: Falando especificamente dessa transição de Swinguerra, este filme nunca será
mostrado, no caso de museus e galerias, em único canal. Mas para o cinema isso muda.
Tivemos que adaptar para o cinema ao exibi-lo no Festival de Locarno em agosto. Eu digo
isso, porque o filme foi feito para ser mostrado como instalação primeiramente. Talvez
essa seja uma questão que não faria diferença atualmente, mas no caso de Swinguerra
isso é diferente. As pessoas entram no Pavilhão do Brasil e existem duas telas: uma
de um lado esquerdo e outra do lado direito que mostram variações. É o mesmo filme,
só que com outras tomadas e diferentes vistas. Porém, nesse caso, o expectador fica
no meio do filme. Como se o expectador estivesse no meio da batalha e tivesse que
escolher um lado. Ali não há como consumir a imagem, no cinema você a consome. O
que eu acho mais importante no caso da Bienal de Veneza é que o Swinguerra é visto
por pessoas de diferentes lugares do mundo e eles querem consumir uma imagem. E
o queremos com este filme é exatamente o contrário, especificamente as imagens dos
corpos. Impedimos uma objetificação dessa imagem. Não se trata de levar um produto
cultural das swingueiras para eles consumirem, mas forçá-los a entender outra dinâmica.
E eles são obrigados a isso quando se posicionam dentro da instalação.
166 ensaios • mostra contemporânea brasileira

N.G.: Vocês trabalharam com três grupos de swingueira que aderem a ritmos e suportes
diferentes em suas práticas. La Mafia, que trabalha com brega-funk, o Passinho do
Maloka que faz coreografias específicas para instagram, e o Extremo, que tem como
ritmo preferencial a swingueira. Nos Estados Unidos, um dos maiores programas de
audiência é o programa American Best Dance Crews, com modus operandi da coreografia
parecidos com os grupos de swingueira, em se tratar de um treinamento e coreografia
quase militarizados em sua precisão. Em Swinguerra vemos referências a Beyoncé, e
toda uma gramática dessa cultura que parece ser desmembrada em nível global e local,
mas que estão intrinsicamente ligados às culturas periféricas e corpos marginalizados.
Como vocês analisam esse fenômeno pensando na hibridização desses fenômenos?
B.W.: O filme não é pensado apenas em relação ao circuito. O trabalho é, principalmente,
sobre jovens que se encontram semanalmente, até mais de uma vez por semana, nas
periferias do Recife. Eles encontram-se em quadras esportivas de escolas públicas ou
praças. Esses dançarinos têm em torno de 15 a 25 anos, em situação precária de acesso
à educação e emprego. Isto engloba, também, questões de gênero. Nos últimos anos, na
nossa pesquisa sobre a swingueira, percebemos uma fluidez de gênero muito natural. Isso
é um dado muito importante. Mas a prática da dança nas quadras esportivas resulta em
um concurso onde os grupos de dança performam na frente de jurados. Se a etnografia
clássica dá a ver e dá a ouvir voz e visibilidade aos grupos não visíveis e invisíveis, ou não
descobertos pela mídia, ou pela produção de imagem – no sentido de tipologias – o que
fazemos hoje quando decidimos fazer Swinguerra, desde 2015, foi dar ênfase à nossa
pesquisa com estes coletivos que praticam e produzem sua própria arte em circuitos
mais alternativos, reconhecemos que eles são visíveis e têm domínio e controle sobre
a própria voz. E aí que fica visível o nosso entendimento de etnografia. A única maneira
de contribuirmos é fazendo um trabalho em colaboração com eles, porque também
estamos aprendendo etapas e metodologias das práticas destes artistas. O que é mais
importante para nós, em suma, é que esses jovens performam a si próprios. Existe essa
questão delicada, de lugar de fala, onde não há como redimirmos. Sobre essa questão
da influência dos grupos de dança internacionais e sua penetração nas periferias do
Brasil, e na periferia do Recife, o que esses jovens realizam é uma adaptação, não dá
para entender que isso venha de cima para baixo.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 167

A retomada de posse
das corpas dissidentes
sobre Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman

Giovanna Heliodoro1

Você já se questionou sobre o que torna determinados corpos alvo de interesse ou


controle de muitas instituições e grupos sociais? Você já se reconheceu enquanto uma
identidade, uma raça, uma sexualidade, um gênero dominante ou um sujeito cisgênero?
Você já pensou sobre quais são os mecanismos, as práticas e as suas ações que cola-
boram com a morte simbólica e física de travestis e transexuais?
É comum pensarmos que o preconceito, as fobias e os tabus fazem parte da nossa
estrutura social, mas dificilmente conseguimos nos reconhecer enquanto sujeitos precon-
ceituosos, proponentes, propulsores ou integrantes desta estrutura. Ninguém deseja
ser associado à transfobia, mas tão pouco sabe dizer sobre onde estão as travestis e as
transexuais em sua vida. Uma prova disso é que certamente você não tem em seu círculo
social nenhuma travesti ou transexual como amiga, que uma travesti nunca visitou a sua
casa, nunca integrou o seu cotidiano, nunca sequer foi abraçada por você e que você
nunca assistiu a um filme protagonizado por uma travesti NEGRA.
O documentário Bixa Travesty (Claudia Priscilla e Kiko Goifman, 2018), te faz reco-
nhecer enquanto sujeito privilegiado, propõe encontros, confrontos e incômodos neces-
sários através de vivências da protagonista – e co-roteirista – Linn da Quebrada. Uma
travesti negra, artista, compositora, jovem, à margem da sexualidade dominante e dos
discursos que insistem em patologizar as identidades travestis, trans e intersexuais
como distúrbios e ou anomalias.
Contrapondo a isso, essa obra promove um papel fundamental de naturalização
dos corpos dissidentes, é a partir dela que aqueles sujeitos que nunca conviveram ou
sequer pensaram em estabelecer trocas com pessoas marginalizadas passam a criar
determinada aproximação. Por meio da lógica de que os encontros podem estabelecer
mudanças, a protagonista cria então um canal direto ou programa radiofônico que esta-
belece um diálogo com as pessoas cisgêneras. Ao mesmo tempo em que as temáticas

1. Giovanna Heliodoro é uma travesti negra, da zona norte de Belo Horizonte, historiadora pela Pontifícia Universi-
dade Católica de Minas Gerais. Artista independente, pesquisadora de gênero, articuladora política e social. Integra
o Coletivo Pretas T, é protagonista do Canal Trans Preta no Youtube e autora do livro Raízes – Resistência Histórica.
168 ensaios • mostra contemporânea brasileira

ligadas à harmonização, à binariedade, à família, ao corpo biológico e à solitude de


corpas travestis vão sendo apresentadas em fragmentos.
Entre o ficcional e o espontâneo vão se construindo narrativas que expõem registros
dos shows, das performances artísticas, do cotidiano, das reflexões, das trocas com a
mãe e da amizade de Linn com as suas parceiras Jup do Bairro, Gabriella Duchamp e
Liniker Barros. É inegável a tamanha exposição e aproximação que a artista estabelece
durante o filme. Talvez esse inclusive venha a ser o único contato intimista de muitos
espectadores com uma travesti.
Entre os confrontos e muitos questionamentos, o corpo da protagonista se apresenta
como ela mesma narra, uma arma. Um instrumento de ressignificações, ocupações,
experimentações, existência, sobrevivência e sobretudo resistência. Ao mesmo tempo
também, este mesmo corpo se mostra frágil quando tece lembranças do passado ou de
sua solidão, tornando a Linn da Quebrada naturalizada como humana, como um sujeito
amplo, mais próximo.
Ao final ressalto que sim, nós travestis e transexuais já estamos estabelecendo
proximidade de vocês, pessoas cisgêneras, para conquistar a retomada de posse do
direito sob o nosso corpo, aprendemos as suas técnicas e agora vamos aprimorá-las
em prol de nossas vidas.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 169

O canto da boca da mata:


notas sobre Ma’e Mimu Haw –
A história dos cantos
sobre filme de Jamilson, Pollyana,
Jacilda e Lemilda Guajajara

Cristiane Lima1

Protagonizado por Tachico Guajajara, o filme dirigido por Jamilson Guajajara, Pollyana
Guajajara, Jacilda Guajajara, Lemilda Guajajara (2018) propõe um breve percurso em
meio à mata no entorno da Aldeia Maçaranduba, território indígena Caru, no Maranhão,
recontando as origens dos seus cantos e como estes atravessaram gerações até os dias
de hoje. O filme se inicia com um plano de algum lugar entre o céu e a terra, no início de
uma manhã, ao sabor dos sons da floresta. Seguem-se alguns breves planos das copas
das árvores, enquanto escutamos uma miríade de sons que se sobrepõem e se diferem,
compondo uma massa sonora descontínua e rica em nuances, na qual conseguimos
distinguir gorjeios de pássaros de diferentes espécies, cricrilar de grilos, zumbidos de
insetos (abelhas, talvez) que se aproximam do dispositivo de gravação. O balanço das
folhagens ao vento remete ao movimento, à vibração e nos deparamos com um retrato
da mata como lugar de múltiplas formas de vida, cuja presença se faz sensível, mesmo
que não de todo visível na imagem – o que já de saída nos remete às características
mesmas do som enquanto fenômeno acústico, esse objeto-subjetivo, que é concreto e
ao mesmo tempo invisível e impalpável; “que está dentro e fora, não pode ser tocado
diretamente, mas nos toca com uma enorme precisão” (WISNIK, 1989, p. 28). O som –
e o canto, como sabemos – é elemento que conecta, que põe em relação, que permite
a comunicação dos seres viventes entre si e também com os espíritos, em diferentes
povos, indígenas e não indígenas.
Logo veremos Tachico percorrer a mata com familiaridade, conversando com aqueles
por detrás da câmera, bebendo água no rio usando a folha como suporte. Mas antes
disso, ele se detém no meio do caminho para entoar o canto do Tepetepen, o dono dos
cantos da mata. Embora ele seja hoje o porta-voz deste e de outros cantos transmitidos
pelos pássaros a seus parentes, ele explica que a vida de cantor é triste, pois já não há

1. Cristiane Lima é professora da Universidade Federal do Sul da Bahia e doutora em Comunicação Social pela
UFMG.
170 ensaios • mostra contemporânea brasileira

jovens interessados em aprender os cantos sagrados. Fica explicitada aí a importância do


filme – como já vimos em tantas produções do Vídeo nas Aldeias – enquanto dispositivo
de memória. Porém, há saberes que não serão revelados – pelo menos não agora, como
é o caso do canto da chuva.
Conforme contaram seus antepassados, houve um índio que, ao sair para caçar,
subiu uma colina e encantou-se com os belos cantos entoados por vários pássaros em
forma de gente (Tepetepen, Viramé, Zyriu, Pacahu, Arara, Tucano Viruhu, Zapu, Virapon),
reunidos ao fundo de um boqueirão da mata. Mas como Tachico explica, todos os bichos
têm seu canto (mesmo a rã, a borboleta). O índio caçador então, comovido pelos cantos,
desce até o boqueirão para escutar de onde vinha aqueles sons, quando encontra os
pássaros na forma de homens, mulheres, velhos. E antes de partir, o gavião entrega-lhe
os cantos para que os leve para sua aldeia. Tem-se assim o início de sua transformação
em pajé, agora que se tornara conhecedor da sabedoria dos cantos.

Zyriu está aqui.


Zyriu está aqui.
O canto está aqui.
O canto está aqui.
É aqui que o canto está sendo cantado pra nós.
A música é diferente pela manhã.
Zyriu está aqui.
Zyriu está aqui.

Veremos mais um plano geral da mata – dessa vez visto de longe – até chegarmos
à vida em comum na aldeia, quando os cantos encontram finalmente as novas gera-
ções. Não sabemos por quantos anos eles serão retransmitidos aos mais jovens, mas
já sabemos que o canto está aqui hoje e desde sempre. Ele está na aldeia, ele está no
filme, impregnado em suas imagens e sons desde o primeiro frame.
Cabe dizer, para encerrar, que Ma’e Mimu Haw – A história dos cantos foi produzido
durante as oficinas de formação audiovisual do Vídeo nas Aldeias, dentro das Ações
do Plano Básico Ambiental do Projeto de Expansão da Estrada de Ferro Carajás (EFC)
da mineradora Vale. Embora se trate de um outro contexto, ao ler os créditos finais do
filme, nos lembramos do triste episódio ocorrido em 25 de janeiro de 2019, quando a
Mina Córrego do Feijão, sob responsabilidade da mesma mineradora, em Brumadinho,
situada na região metropolitana de Belo Horizonte, se rompeu, ocasionando a morte
de 249 pessoas e deixando 21 desaparecidos até a data.2 As consequências diretas e
indiretas do desastre ainda são incalculáveis. Sabe-se que o acidente teve impactos na
vida dos indígenas pataxó hã-hã-hãe, da aldeia Naõ Xohã, no município de São Joaquim
de Bicas, às margens do Rio Paraopeba, que assistiram à morte dos peixes na região e
a uma crise no abastecimento de água potável – para citar apenas dois exemplos. Nos

2. Cf.: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/oito-meses-apos-rompimento-de-barragem-bom-
beiros-encontram-corpo-em-brumadinho.shtml>.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 171

lembramos ainda das palavras de Ailton Krenak, nascido na região do Rio Doce, lugar
profundamente afetado pela atividade mineradora (lembremos também do rompimento
da barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015, empreendimento conjunto
das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, que levou à morte o Rio Doce ao longo de
toda a sua extensão). No livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), Krenak denuncia
o discurso de “humanidade” e “sustentabilidade” entoado pelas empresas multinacionais
capitalistas “para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (KRENAK, 2019,
p.16). Para adiar o fim do mundo que nos é imposto diariamente por essas corporações
que buscam apenas multiplicar seus lucros, caberia às pequenas constelações de gente
conectada à terra e à natureza – os povos indígenas, mas também quilombolas, comuni-
dades pesqueiras, ribeirinhas ou rurais, etc. – insistir com suas histórias, danças e cantos.

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições.
Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial.
É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer
consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir
subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos
capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma
maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades,
nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. (KRENAK, 2019, p. 33)

Embora o fim do mundo não seja objeto de reflexão do filme propriamente, lembremos,
pois, como estratégia de sobrevivência, do primeiro plano do filme, direcionado ao ar,
àquele lugar entre céu e terra, o Iwak, onde moram os donos dos cantos que ainda nos
dias de hoje – contrariando as forças do capital – insistem em sair da boca da mata.

Referências
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
172 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Olhares de Matis jovens


nos filmes Dia de caçada e
Meninos soprando cana fina
Clarisse Alvarenga1

Os Matis vivem na bacia do Rio Javari, que em quase toda sua extensão constitui a
fronteira Brasil-Peru, na região do Alto Solimões, sudoeste do estado do Amazonas. Da
parte do Brasil, a maior parte da população está distribuída entre 3 aldeias na Terra
Indígena Vale do Javari, uma das maiores terras indígenas do país, reconhecida em 1999,
demarcada fisicamente em 2000 e homologada em maio de 2001. Ali também habitam
outros povos falantes de línguas Pano (os Marubo, Matses, Kulina Pano, Korubo), os
Kanamari (de língua Katukina), os Kulina (de língua Arawá), além de grupos indígenas
que permanecem em isolamento voluntário, apesar do contato mortífero com não-in-
dígenas desde o final dos anos 1970.
Em conjunto os filmes Dia de caçada e Menino soprando cana fina nos apresentam
os saberes e práticas envolvidos na caçada Matis, tal como realizada pelos anciãos (no
primeiro filme) e reproduzida pelas crianças (no segundo). O primeiro filme se dedica
a acompanhar um dia de caçada dos adultos desde o preparo minucioso da coleção de
dardos com veneno, que serão lançados pelas zarabatanas, até o retorno à aldeia no fim
do dia. O segundo concede atenção às crianças, que sopram a cana fina como se fosse
zarabatana e o barro como dardo para imitarem a maneira como seus pais e avós caçam,
numa encenação na qual por meio da brincadeira experimentam a situação da caça. 
No entanto, é preciso lembrar que quem de fato transita entre as duas circunstâncias
são jovens, pois é um grupo constituído por nove Matis jovens de três aldeias – Kudaya,
Tawaya e Bukuwaya – que realiza o filme: Damë Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis,
Damë Matis, Kaxë Mentuk Matis, Shapu Sibo Matis, Dani Matis, Damba Matis, Chawa
Atsa Matis, Tumi Rieli Matis. Eles e elas estão com suas câmeras a testemunhar que a
passagem entre a caçada dos anciãos para a das crianças não se dá de maneira direta –
muito se transformou e continua a se transformar ao longo do tempo.

1. Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua como docente no Curso de Formação Inter-
cultural para Educadores Indígenas (FIEI) e como coordenadora do Laboratório de Práticas Audiovisuais
(Lapa). É autora do livro Da cena do contato ao inacabamento da história (Edufba, 2017) e realizadora dos
longas-metragens Ô, de casa! (2007) e Homem-peixe (2017).
ensaios • mostra contemporânea brasileira 173

Dia de caçada se inicia com uma criança tentando entrar na espaçosa maloca onde
os adultos estão a preparar os instrumentos usados na caçada. Mas, ela é advertida por
meio de uma voz que escutamos, sem saber quem exatamente a profere, dizendo que
o menino Matis não poderia entrar vestido de camisa. Assim, um adulto retira a camisa
dele enquanto escutamos alguém dizer também que, em seguida, a camisa precisa ser
lançada ao chão. Depois desse aviso dado à criança desavisada e a nós, espectadores,
somos introduzidos ao ambiente interno da maloca.
Os homens reunidos explicam que estão aplicando veneno no dardo para pegar
macaco barrigudo gordo na caçada. Uma voz que, mais uma vez não identificamos de
quem seria, mas que obviamente pertence a um ancião, alerta que não se pode preparar
os dardos da maneira como os adultos homens estão preparando. O correto, na sua
concepção, seria preparar o dardo sozinho e não em grupo, esperando moça na beira
do rio, para onde elas vão tomar banho. A aplicação do veneno teria que se dar dentro
da mata e não na maloca. Nessas duas ponderações fica, portanto, a sugestão de que o
trabalho de preparação da caçada, na explicação dos anciões, alcançava a relação entre
homem e mulher e também de que não são apenas as crianças que desconhecem as
regras que cercam a caçada: até mesmo os caçadores que passaremos a acompanhar
parecem desconhecê-las.
Essa preparação, feita hoje pelos adultos dentro da maloca, serve como uma espécie
de introdução, tanto do filme como da situação da caçada. Após essa primeira parte do
filme, os caçadores saem de barco pelo rio. A atividade do olhar é filmada, como se a
câmera buscasse enquadrar de perto o olhar dos Matis caçadores vigiando a floresta.
Nesse momento, escutamos sons de cantos que foram inseridos posteriormente na
montagem sobre o som do motor do barco. 
Quando adentramos na mata, os planos se tornam mais abertos e a atividade de
escuta é enfatizada. Um deles explica que a partir dali vão imitar macaco preto. O som
direto capta justamente os sons que os caçadores fazem para dialogar com os macacos.
Nesse momento, um dos caçadores sugere que os realizadores deixem a câmera no mato
para pegar depois, na volta. Surge um segundo comentário no sentido de que a câmera
deveria ser posta na ponta da zarabatana, o que indica talvez um lugar privilegiado a se
postar o olhar na situação da caçada. Nesses dois breves comentários fica subentendido
que a câmera é tratada como um instrumento de caça ou é posta em relação com eles,
assim como a relação entre homem e mulher estava vinculada à preparação no passado,
por exemplo. A partir daí, inicia-se um momento em que avistamos a floresta do alto, com
mais movimentação entre os caçadores, que se deslocam, assobiam e fazem tentativas
de abater os macacos. Trata-se do momento de maior proximidade com a presa, em
que a atenção dos caçadores e de nós, espectadores, está toda voltada para acertar os
macacos. É como se o ponto de vista realmente fosse o da ponta da zarabatana. 
Tendo conseguido abater os macacos, um após o outro, eles mostram como retiram o
dardo do corpo atingido e como amarram as presas com uma corda de palha. Uma mulher
pede para que seja mostrado para a câmera os dois procedimentos. Alguém pergunta
quem irá carregar os macacos e um outro caçador brinca dizendo que os meninos é que
174 ensaios • mostra contemporânea brasileira

vão carregar. Ao que os meninos respondem dizendo que irão carregar correndo, como
se fosse fácil para eles suportar a carga, o que é uma ironia.
Chega o momento de retornar ao rio, quando escutamos novamente cantos Matis
até que a embarcação chega à aldeia. As mulheres preparam a comida no fogo. O filme
termina com um dos caçadores descansando na rede ao lado de cachorros, que também
dormem, e galinhas ciscando.
O filme Meninos soprando cana fina se inicia com os meninos saindo de dentro da
mata e explicando que da mesma maneira como os velhos fazem zarabatanas para caçar
macaco barrigudo, as crianças fazem cana fina para matar gafanhotos. No momento em
que eles fazem o corte da cana fina, uma formiga ferroa uma das crianças, mostrando
que ali talvez elas sejam as presas.
Após cortarem cana fina, passam ao rio onde pegam barro e amassam. Esse barro
é usado para fazer um suporte na zarabatana de cana fina onde se apoia a mão, sendo
que o barro também é usado como dardo. As crianças disparam suas zarabatanas de
frente para a câmera, mirando no alto, e dizendo: me filma, branco (nawa)!
Daí em diante, partem para uma encenação da situação da caçada. Metade do grupo
assume o lugar das presas, subindo nas árvores como fazem os macacos. Os caçadores
fazem a disputa por quem ataca os macacos e reproduzem a sonoridade da cena da caçada.
Os macacos-crianças atingidos caem das árvores como ocorre aos macacos barrigudos
na caçada dos adultos. São retirados os dardos dos corpos deles que supostamente
teriam sido atingidos. Voltam pra aldeia, carregando suas caçadas-crianças nas costas.
Ambos os filmes foram feitos pelo mesmo grupo de realizadores, no entanto são
muito diferentes do ponto de vista da maneira de filmar. O filme dos adultos é bastante
detalhista, enfatiza o olhar dos caçadores e as técnicas usadas no preparo dos instru-
mentos e na caçada. A relação entre o instrumento que produz o filme (a câmera) e os
instrumentos da caçada é explicitada. O filme das crianças enfatiza a maneira como
as crianças experimentam a caçada ao seu modo, por meio da brincadeira, por vezes
tratando a caçada como uma encenação. 
Nesse sentido, talvez os olhares de Matis jovens sejam olhares que transitam – não
de maneira fácil e sem antes serem advertidos –, entre as fases da vida e, ao fazer isso,
acabam indicando caminhos possíveis de diálogos entre gerações. É esse caminho,
aberto pelos Matis jovens, que o cinema vai seguir, buscando captar as transformações
do ritual da caçada e das formas como ela pode ser partilhada com as novas gerações.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 175

De como utilizar a câmera


como se fosse um petyngua
sobre O último sonho, de Alberto Alvares

Daniel Ribeiro Duarte1

Porque o filme é igual a um cântico. Por exemplo, para você aprender a


cantar em Guarani, tem que aprender a ouvir o som e o ritmo do canto.
A mesma coisa com a câmera, você tem que aprender a guardar a
sabedoria e tem que usar o equipamento como se fosse o segundo olho,
ouvindo e respeitando o momento de cada entrevistado, assim aprendo
com os mais velhos a cada momento na aldeia.
Alberto Alvares

O último sonho cumpre uma das tarefas primordiais do cinema indígena, a de guardar
com a imagem a memória da cultura. Se antigamente esta memória era integralmente
transmitida pela oralidade, agora os povos indígenas se beneficiam do vídeo para forta-
lecer a cultura no presente e para o futuro. Neste filme, Alberto Alvares o faz através da
“homenagem ao grande sábio Wera Mirim”, como ficamos sabendo num lettering logo
nos primeiros segundos. Esta homenagem póstuma, entretanto, vai atingir camadas mais
profundas do que um simples filme memorial, pois além de trabalhar com imagens de
arquivo do Xeramoin (avô, ou um dos mais velhos da aldeia em língua guarani), o cineasta
mostra estas imagens aos parentes que o conheceram, dando-nos a dimensão do vasto
conhecimento que detinha, mas também registrando na comoção dos espectadores
guarani a forma como sua presença alargava e insuflava o sentido da vida em comunidade.
Em O último sonho, o realizador trabalha a história do Xeramoin que, em um sonho,
visualizou o lugar propício para a aldeia Sapukai, procurou-o por dois anos e liderou a
fundação desta, próximo a Angra dos Reis. Não se trata de um sonho individual – nem
aspiração pessoal nem vagueação noturna – mas um sonho que se projeta coletivamente
e se alarga em cada gesto de Wera Mirim que, segundo vemos no filme, o viveu até o
último dia de sua vida.
Logo no início do filme vemos a imagem de uma criança em primeiro plano e em
segundo plano Alberto Alvares com a câmera, filmando. Este é um plano de afirmação do

1.Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Cinema pela
Universidade Nova de Lisboa.
176 ensaios • mostra contemporânea brasileira

realizador indígena e sua presença, mas é também, e principalmente, um indício de que


o filme, inspirado na sabedoria que vem do passado (de um sábio já falecido), tem o seu
centro gravitacional no futuro. Sendo O último sonho um filme de escuta e transmissão,
a aparição do realizador com a criança em primeiro plano figura este endereçamento
da sabedoria em direção à continuidade da cultura.
Wera Mirim era um grande sábio entre os Guarani Mbya. Sabia “como se cami-
nhava antes”, nos tempos ancestrais, em busca da “Terra Sem Males”. Trata-se de um
lugar mítico guarani, onde não há violência, fome ou mau-proceder. Vale lembrar que
este povo, quando da chegada dos europeus à América do Sul, distribuía-se numa
faixa territorial que ia de onde hoje está o litoral de São Paulo até o Rio Grande do Sul,
estendendo-se também a oeste até a fronteira tríplice de Paraguai, Brasil e Argentina
e por todo o território paraguaio até a Bolívia.2 Sua grande população (contando-se as
variantes Kaiowá, Mbya e Nhandeva) foi drasticamente reduzida entre as colonizações
portuguesa e espanhola, a expansão agrícola cada vez mais industrial e o surgimento
das grandes cidades. Se ainda há cultura guarani, é pela resistência de gerações de
sábios como Wera Mirim que, tendo a visão de sua cultura e a força do bom proceder – o
Nhandereko − conseguiram manter as tradições vivas enquanto o seu território original
era sucessivamente invadido para dar lugar às maiores ocupações tanto rurais quanto
urbanas do Brasil atual.
Nas imagens de arquivo, Wera Mirim ensina o Xondaro, uma dança guarani mas
também uma arte marcial que segundo o Xeramoin era ensinada para que cada um
aprendesse a tomar conta de seu espaço.3 Seu domínio da palavra e da tradição espi-
ritual também o fazia um grande rezador, capaz de liderar com seriedade e alegria os
rituais. Tudo isso podemos ver através deste bem composto filme de arquivo, em que
as imagens conseguem recuperar um pouco da presença de Wera Mirim.
Depois destas imagens de arquivo, vemos um ritual póstumo, feito no lugar onde o
Xeramoin está sepultado, no qual uma mulher, com seu petyngua, faz um longo discurso
sobre ele e todos cantam, muitos choram e se lamentam. Vemos imagens que se demoram
nos rostos dos parentes e amigos, e sentimos num tempo distendido a dificuldade trazida
pela sua ausência. Segue-se uma sequência de muitas imagens da mata, quando Alvares
explica em voz off que as pessoas que morrem não se vão completamente. Na cultura
guarani, o corpo se vai mas o espírito fica. Assim, os ancestrais estão próximos daqueles
que rezam por eles, protegendo o lugar e as pessoas que nele vivem, participando
das danças, estando presentes às reuniões e fumando o petyngua quando os vivos o
fumam. Talvez seja a primeira sequência do filme em que a presença humana não está

2. Através do Mapa Guarani digital, online em <https://guarani.map.as>, podemos visualizar a ocupação Guarani
original, as aldeias e terras indígenas existentes e os sítios arqueológicos desta tradição.
3. “Tem vários motivos para essa dança ser praticada. Xondaro é uma forma de chamar os meninos que desde
pequenos recebem ensinamentos e metodologias dos mais velhos, pessoas experientes e sábios em geral. A
dança em si ensina muitas coisas, como se defender, ter agilidade, estar sempre atento para tudo e estar disposto
a tudo. Os vários movimentos ajudam a ter o corpo mais ágil e leve, e também a ter mais saúde, principalmente
através do suor, que elimina as doenças e limpa a pessoa. Assim, ficamos mais alegres e mantemos nosso estado
físico e espiritual.” Xondaro Mbaraete: a força do Xondaro. Coordenação editorial Centro de Trabalho Indigenista
(CTI). São Paulo, 2013. p. 28.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 177

evidente, pois o que vemos são plantas, mas as palavras de Alberto Alvares convocam
uma multidão de ancestrais para estarem nestas imagens, invisíveis.
Talvez este filme seja uma concretização ainda mais radical do que o realizador
escreveu sobre o seu aprendizado com o cinema em Os verdadeiros líderes espirituais.
Para ele, filmar o Wera Tupã havia sido um aprendizado de como utilizar a câmera da
mesma forma que os velhos utilizam o petyngua:

Depois da palavra do xeramoin Alcindo, passei a usar a câmera como se fosse um petyngua,
para me conectar espiritualmente com a sabedoria do silêncio. Passei a usar minha imaginação
no mundo da lente, sem ter o medo de quebrar o equipamento. O equipamento tem preço,
podemos consertar. A memória tem valor maior, inestimável. Não tem preço. E quando ela se
perde, é difícil trazê-la de volta.4

“Quando não lembrarmos mais dos espíritos, eles não saberão mais viver” – é como
Alvares finaliza, no filme, o seu relato de como o mundo espiritual está sobreposto ao
cotidiano da aldeia. Se o petyngua é um instrumento de meditação que convoca os
espíritos dos ancestrais, permite a sua aproximação silenciosa e o aconselhamento,
Alberto Alvares procura dar à câmera um uso semelhante. Numa atitude de espera e
escuta o realizador se aproxima da figura ausente-presente de Wera Mirim e consegue
se conectar com a sabedoria do silêncio, permitindo que o seu espírito e o de outros
ancestrais fortaleçam os Guarani em sua caminhada.

4. ALVARES, Alberto. Da aldeia ao cinema: o encontro da imagem com a história. Trabalho de conclusão do
curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2018. p.18.
178 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Sete anos em maio: entre a


solidão do sobrevivente e
a expansão do trauma1
sobre filme de Affonso Uchôa

Cláudia Mesquita2

No artigo “Conversa em torno da fogueira” (2012), Jacques Rancière escreveu que a


política seria, em um filme, o cruzamento entre uma questão de justiça e uma prática de
justeza. Sete anos em maio (Affonso Uchôa, 2019) também abriga uma conversa noturna
à beira do fogo, associação que me levou a essa citação de Rancière. Permito-me então
começar por ela; afinal, neste filme, à urgência do problema, e à violência extrema que
ele encerra, corresponde o rigor da busca (ensaística) de formas justas para elaborá-lo.
No centro de Sete anos em maio, está o testemunho de Rafael dos Santos Rocha,
o Fael, morador do Bairro Nacional (Contagem/MG), confundido com um traficante e
barbaramente torturado por oito policiais, em 2007, quando tinha 20 anos. A trans-
missão dessa experiência traumática move o filme, que desdobra, em cada uma de
suas três partes, tentativas de elaborá-la. Bastante diferentes entre si, as sequências
do filme se relacionam por alguns elementos em comum. O mais decisivo é o corpo de
Fael, presente em todas elas. Outro traço fundamental é a escuridão: noturnas, as três
partes se conectam pela atmosfera clandestina, de sonho sombrio ou coisa obscura,
que marca o filme todo.
A começar pelo primeiro plano, fragmento denso, espécie de cifra, anterior às três
sequências que estruturam a narrativa. Nele, Fael caminha sozinho por uma estrada escura,
precariamente iluminada por postes e faróis intermitentes. Ele caminha em direção à
câmera, como quem “retorna”. Corpo em contraluz, mal se distingue seu rosto: Fael é
como uma sombra. A errância do personagem, sua fuga e desterro são aí cifrados, bem
como um movimento de “volta”, para contar. O plano figura ainda a solidão extrema do

1. Esse artigo é debitário de muitas conversas. Em especial, com Rafael dos Santos Rocha, Ewerton Belico e
estudantes da turma de Formas e processos da imagem (PPGCOM-UFMG), em 2019/2. A todxs, obrigada!
2.Claudia Mesquita é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação
Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência, e orienta pesquisas de graduação,
mestrado e doutorado. Em 2018-2019, realizou pós-doutorado na UFC, desenvolvendo o projeto “O presente
como história - estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo”.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 179

sobrevivente, condição de quem não sucumbiu ao próprio assassinato (“fechei o olho e


escutei quatro disparos (...) pra mim eu tava morto já”), mas experimentou no corpo a
fissura: desconexão da vida familiar e cotidiana, espécie de sina de “morto-vivo” (“não
tinha jeito deu voltar para casa”, “minha vida desandou totalmente”, “fiquei vagando”).3
A primeira parte, a seguir, propõe uma reencenação do episódio traumático. À noite,
em um descampado, parcialmente iluminado por lanternas e focos de mato seco quei-
mando, um grupo de rapazes do Bairro Nacional, às voltas com roupas e objetos dispostos
em uma mala pela equipe do filme, vestem-se de policiais. Escolhem seus “figurinos” e
armas, buscam a cumplicidade da câmera, exibem-se uns para os outros, entre gracejos
e pequenas atuações (“sempre quis usar uma roupa assim”). O trabalho de (re)encenar é
exposto em seu caráter construído, precário, parcial (é apenas um fragmento) e também
lúdico, apesar da gravidade do episódio reencenado. “Brincando” de polícia, os rapazes
abordam Fael, que integra o grupo, mas dele se distingue: na cena que se defasa, brech-
tianamente, da situação real, Fael é o único que viveu precisamente o papel que encarna.
Daí a ambiguidade do segmento, que não deixa de expor, no corpo de Fael em cena,
o sofrimento real de que foi vítima e que o marcou. Noutras palavras: mesmo que não se
pretenda repor o acontecimento de modo verossimilhante e naturalista, em sua inteireza
de fato passado, a elaboração presente ainda passa pelo corpo marcado do sobrevivente.
Não que os garotos do bairro tenham se transformado em algozes. Eles, que atuam
ironicamente “como policiais”, provavelmente já foram vítimas do racismo e da truculência
da polícia; tiveram amigos, irmãos, primos ou vizinhos violentados. Sua atuação, entre irônica
e desejante, expõe sobretudo o repertório que manejam, por serem alvos constantes desse
tipo de abordagem: gestos abusivos, falas intimidatórias, crueldades “de polícia”.
Já o registro de Fael – que faz o seu próprio papel – não poderia passar pela distância
irônica. Seu corpo em cena conecta a encenação improvisada à experiência real (com
tudo o que ela traz de não-compartilhável). Um plano marca precisamente a passagem
entre o fragmento de reencenação e a sequência seguinte, centrada no testemunho
do protagonista: Fael vagueia sozinho pela subestação da Cemig onde foi torturado,
observando o espaço, silenciosamente. Reforçado pelo que ouviremos em seu teste-
munho a seguir, o plano sugere que há, ali, algo mais para se ver do que geradores e
postes iluminados. O corpo retornado de Fael assinala naquele espaço aparentemente
inócuo outras camadas de tempo, a latência de vestígios, de histórias desconhecidas. A
subestação da Cemig torna-se assim uma testemunha muda, algo como um “não lugar
de memória” (lugar de tortura, morte, destruição, apagamento).4 Será preciso que Fael
vocalize o seu testemunho para subtrair esse espaço ao silêncio.
É o que se faz na segunda parte, a mais longa do filme. Tendo como premissa que um
testemunho deve ser colocado em cena para que seja inscrito (em um filme), podemos

3. Assim dizendo, antecipo informações e provavelmente sobrecarrego o primeiro plano do filme. Embaraço da
escrita. Pois cada segmento de Sete anos em maio não encerra em si tantos sentidos; eles vão se somando à
medida que as sequências, coordenadas, se sucedem, e o espectador ressitua o que viu a partir das chaves que
lhe oferece o trecho seguinte. A não ser que haja outra indicação, as citações entre aspas, em primeira pessoa,
foram extraídas do testemunho de Fael, na segunda parte do filme.
4. Refiro-me aos “lugares de memória” teorizados por Pierre Nora (1984), sítios nos quais, em momento de crise
180 ensaios • mostra contemporânea brasileira

elencar algumas características fundamentais dessa contundente mise-en-scène teste-


munhal. Sentado no chão, próximo a uma fogueira acesa numa lata, Fael fala no mesmo
lugar onde foi torturado. Sozinho em campo, ele desfia um longo relato, testemunho de
anos de uma vida, em um plano sem cortes. A princípio, imaginamos que o personagem,
quase sempre cabisbaixo, sem olhar diretamente para a câmera (trabalho de enqua-
dramento), narre o que viveu motivado pela presença da equipe no antecampo (em
uma situação tipicamente “documentária”). Mas o monólogo se revela diálogo quando,
depois de 17 minutos de performance testemunhal, um corte vem expor a presença de
outro personagem em cena. Sete anos encena, assim, não apenas o testemunho, mas
uma escuta precisa.
Impossível qualificar a violência bárbara e covarde de que Fael foi vítima. Seu relato
da tortura que lhe impingiram oito policiais é de uma precisão inaudita, difícil de suportar.
O trauma e a ameaça dos policiais (foram exigidos dele, “para sexta-feira” e em troca
da sobrevivência, “5 mil em crack, 5 mil em cocaína, e 5 mil em dinheiro”) provocaram
a errância, o desterro forçado, “épico do escape e da fuga” (na expressão de Affonso
Uchôa)5 que parece não ter fim (“isso nunca mais saiu da minha cabeça”, “o pior é
essa raiva que nunca passa”, “é como se aquele dia nunca deixasse de existir”). Fael
viveu em muitos lugares, e sobreviveu de muitas maneiras, antes de voltar “para casa”.
Embora ele se refira ao passado, seu testemunho não encena esse retorno. Mantendo
uma lacuna entre a errância e o presente da filmagem, Sete anos em maio posiciona o
próprio testemunhar como “ponte”, possibilidade de “retorno”, de reconexão e retomada
do fluxo da vida, a partir de uma escuta.
Nesse sentido, é muito estratégico posicionar o relato testemunhal como diálogo,
figura “prototipicamente ficcional”, no dizer de Affonso Uchôa. Quem escuta é um jovem
negro, alguém como Fael, da periferia, sujeito à violência arbitrária e impune do Estado,
alguém que pode dizer: “a sua história é triste, igual a de muitos que eu encontrei por aí,
a minha é igual à sua”. Se o filme figura, através de algumas de suas escolhas, a solidão
do sobrevivente, o diálogo que se segue vem tirar o testemunho de Fael do círculo da
literalidade e da unicidade extremas, vem “des-singularizar”, situando sua experiência
traumática numa história coletiva de violências, apagamentos e injustiças.
Não é só isso que realiza essa conversa precisa – e, por vezes, emblemática – entre
os dois personagens. Ela instaura uma reflexão sobre a justiça, da perspectiva de quem
vive à margem da Justiça (com J maiúsculo). É possível justiça? Que justiça? Ruminar a
própria dor (e o desejo de vingança) não seria a única forma de manter viva a memória
da violência sofrida? Afinal, esquecer não é justamente o projeto dos algozes? Mas se é

da transmissão, “pendura-se” a memória coletiva. A expressão “não-lugares de memória” foi utilizada por Claude
Lanzmann para sublinhar a diferença marcante dos espaços revisitados por sobreviventes do Holocausto em
seu filme Shoah (1985): sítios arruinados, marcados pela ausência, pelo apagamento, pelo projeto nazista de
não deixar rastros. O retorno de Fael à sub-estação da Cemig faz pensar na volta de Simón Srebnik, um dos dois
únicos sobreviventes do campo de extermínio de Chelmno, ao sítio na Polônia onde esteve confinado (quando
tinha apenas 13 anos de idade). Ele volta para a filmagem de Shoah, 34 anos depois do final da Guerra.
5. “Um épico do escape: formas de retratar uma vida”. Entrevista com Affonso Uchôa por Adriano Garret. Site
CineFestivais, publicado em 19/06/2019. Disponível em: <http://cinefestivais.com.br/affonso-uchoa-fala-so-
bre-sete-anos-em-maio/>. As outras citações do cineasta provêm dessa entrevista.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 181

remota a hipótese de reparação pública, a possibilidade de vingança também é colocada


em questão pelo interlocutor de Fael (vivido por Wederson Neguinho, de A vizinhança
do tigre): “polícia é igual formiga, você vai atrás de um, vem cinco mil, 20 mil atrás de
você para te pegar”.
Por fim, e não menos importante, o diálogo prepara o registro alegórico que marcará
a última parte do filme. No final da conversa, a fala de Neguinho alça voo literário, e
parece poder se referir, em sua densidade e enigma, a muitas dimensões da experiência:
da necessidade (inclusive terapêutica) do testemunho à tenebrosa conjuntura socio-
política do país; das escolhas do filme à expansão da história trágica de Fael, assim
situada em um processo de apagamento continuado, de extermínio (e ocultamento de
suas marcas) da juventude negra, pobre e periférica no Brasil:6 “Ainda dá para ver as
manchas de sangue no asfalto. E não é só o seu. Tem muita gente morrendo todo dia.
A gente tá cercado por uma pilha de gente morta. E essa pilha só tá crescendo, desde
antes da gente nascer. E ela já tá tão alta que já tapou até o céu. E é por isso que tá tudo
tão escuro. Mas não tem noite que dure para sempre. A gente tem é que seguir adiante.
Por nós e por eles também”.
Sobrepassando o testemunho, o diálogo não apenas o transmite, em suma, mas
reflete sobre a necessidade, a exigência ética do testemunhar; situa a experiência de
Fael numa história coletiva, sem deixar de figurar a solidão absoluta do sobrevivente,
corpo fissurado pelo trauma. E abre ainda uma reflexão sobre a justiça, o que alinha
essa conversa a outras “conversas noturnas em torno da fogueira”, verdadeiro topos no
cinema, como indica Jacques Rancière, ao tratar de um filme dos Straub (Da nuvem à
resistência), no artigo já mencionado.7
“Por nós e por eles”. A última frase do interlocutor de Fael ecoa no plano seguinte, o
primeiro da terceira parte do filme, em que vemos dezenas de jovens caminhando, pernas
e pés atravessando o quadro. Quando saem de campo, a câmera se detém no asfalto, e
ficamos a imaginar as manchas de sangue na calçada. Nesse segmento também noturno,
jovens periféricos performam o jogo infantil de “vivo ou morto”, sob o comando de um
policial. De novo, como no diálogo, a sequência, propositiva e alegórica, sugere uma
expansão da experiência de Fael (que agora, participante do jogo, não está sozinho). Mas

6. Apenas no Rio de Janeiro, desde 1997, mais de 16 mil pessoas foram mortas por policiais. Em janeiro de
2018, foram 158 pessoas, cerca de 5 por dia. Em torno de 98% dos inquéritos sobre mortes ocorridas em ações
policiais acabam arquivadas sem investigação. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
a polícia matou, entre 2015 e 2016, três vezes mais negros do que brancos no Brasil (dos 5.896 boletins de
ocorrência de mortes devido a intervenções policiais, 76,1% das vítimas eram negros). Grande parte é jovem:
35,5% têm idades entre 18 e 29 anos, e cerca de 10% são menores de idade (estatística baseada nos casos em
que esse dado foi levantado).
7.“A conversa noturna em torno da fogueira é um episódio cinematográfico bastante familiar. Lembremos o seu
papel nos filmes de faroeste, em que confere uma dupla profundidade à ação que fica suspensa. É primeiro uma
espessura biográfica, um tempo liberado do ritmo da ação, os personagens contam sua história, falam do lugar
de onde vêm e para onde gostariam de ir. É também uma reflexão sobre a justiça da ação encetada para afirmar
um direito, praticar uma vingança ou receber um prêmio. (...) A diferença está em que, no filme de faroeste, as
perguntas surgidas na discussão noturna sempre são resolvidas quando a ação recomeça. (...) Não é o que
acontece nos filmes dos Straub. Nenhuma ação vai resolver o objeto da discussão. A ação do filme consiste
nesses diálogos em que os personagens apenas discutem sobre o que é justo e injusto” (2012, p. 124). No livro
As distâncias do cinema (RJ: Contraponto, 2012).
182 ensaios • mostra contemporânea brasileira

um por um, entre os comandos de “vivo!” ou “morto!”, os jovens vão saindo da brincadeira
e de cena. Ao final, Fael resta sozinho no quadro, de pé, insistindo em permanecer vivo
(apesar dos insistentes comandos de “morto!” do policial).
Tendo como matéria a violência desmedida sofrida por Rafael,8 Sete anos em maio
não se deixar tragar pelo horror (o que não significa minimizá-lo). Emoldurado por
sequências alegóricas (o plano na estrada, o jogo do “morto, vivo”) e ficcionalizado no
diálogo, o testemunho é encenado como fragmento de um trauma coletivo. Mas notemos
que o filme começa e termina com Rafael sozinho em quadro: sua história é parecida
com inúmeras outras, mas seu corpo segue carregando o peso do vivido.

8. Posteriormente à finalização deste texto, soube do trabalho apresentado por Ana Caroline de Almeida (UFPE)
na Socine 2019: “Constelação de imagens ardentes: um cinema brasileiro ao redor do fogo”. A partir de imagens
do elemento “fogo” extraídas de sequências de seis filmes brasileiros contemporâneos (entre eles, Sete anos em
maio, Tremor Iê, Branco sai preto fica e Era uma vez Brasília), a pesquisadora propõe pensar a convocação de
“processos de transformação ora desejados, ora frustrados”: o fogo como “organizador de uma condição política
do Brasil dos anos 2010”.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 183

Saber Cinema:
A práxis cinematográfica
contemporânea e as imagens porvir
sobre Um Filme de Verão, de Jo Serfaty, e Entre-Vistas,
do coletivo Olhares (Im)possíveis

Ana Tereza Melo Brandão1

Um Filme de Verão, de Jo Serfaty, e Entre-Vistas, do coletivo Olhares (Im)possíveis, são


filmes produzidos com jovens brasileiros, moradores de comunidades populares. Com
diferentes motivações, estratégias de abordagem e recursos narrativos, são filmes que
se abrem ao olhar dos adolescentes sobre si mesmos, sobre os outros, e sobre o mundo
que vivenciam. Em suas especificidades estéticas, os dois filmes buscam desestabilizar
o estatuto do “real”, abrindo-se aos imaginários juvenis através de narrativas auto-
biográficas, inserindo brechas às subjetividades condicionadas e concomitantemente
inventivas, potentes em seus devires. As tensões entre o cotidiano e o imaginário, entre
trabalho e lazer, entre a adolescência e a vida adulta são singularizadas e recriadas pela
mise-en-scène de suas próprias experiências. São vivências potentes pela diferença que
os aproxima em uma busca ontológica “de ser mais”, uma procura do que Paulo Freire
chamou de “inédito viável”.
A noção de comunidade se amplia rompendo paradigmas que guiaram a produção
cinematográfica dos anos 2000, expandindo-se para além do território geográfico e da
classe social, indicativa da ideia do comum partilhado, simultaneamente estilhaçado
em territórios e sentidos identitários múltiplos. Em um trecho do filme Entre-Vistas,
por exemplo, um jovem pergunta ao colega: – “Qual é a sua comunidade?”. O colega
compreende apenas depois de nova pergunta sobre sua “cultura” e responde: “Negro”.
Em uma passagem do Um Filme de Verão, Carol se transfigura em uma cantora pop
oriental e encena um videoclipe pelas ruas de seu bairro, e Caio lida com o candomblé
diante da renovação evangélica. São sujeitos em câmbios identitários, em constante
negociação consigo mesmos.

1. Ana Tereza Brandão é produtora audiovisual, mestre em Educação e pesquisa a relação com o saber e as
práticas midiáticas juvenis. Dirigiu a Associação Imagem Comunitária, a Oi Kabum! Escola de Artes e Tecnologia,
e coordenou diversos projetos de produção audiovisual e programas públicos de arte e cultura da Secretaria
Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Foi diretora da Rede Minas de Televisão, e participou da implantação
do Educom.TV- ECA-USP.
184 ensaios • mostra contemporânea brasileira

A influência da mediação da tecnologia no uso de recursos da narração de si nos


dois filmes é objeto de processos educativos na construção das narrativas e das monta-
gens, um saber construído na interação pela internet, pelo uso da câmera observando
a vizinhança, pela procura de referências musicais diversas pelo youtube. Observam e
se apropriam criticamente de linguagens de diferentes culturas.
Os tradicionais papéis de personagens, público, artistas, autores são embaralhados,
e a morte do narrador é anunciada: “Definindo-se como narrador defunto”, “morto
por dentro”, “ele pode escrever a própria morte”, parte do diálogo dos jovens no pátio
da escola, falas emblemáticas dos jovens personagens coautores do roteiro do filme.
Richard Sennet chama atenção para a diferenciação histórica que se deu na literatura
entre narradores e autores, sendo os primeiros mais próximos da antiga figura do artífice,
aquele que faz, e os segundos mais próximos do artista, aquele que cria. A noção de
autoria se mantém revigorada nos circuitos profissionais de cinema. O diretor controla
de modo menos ou mais dialógico os procedimentos do filme. Incluído esse outro em
seus processos criativos, respeitada a alteridade desse outro filmado, o cinema se renova
com esse encontro e com novos modos de contar a vida, como na belíssima montagem
de Um Filme de Verão.
No curta Entre-Vistas, parodiando modelos televisivos, jovens anônimos, sem rostos,
falam do medo, da violência, do desejo de lazer, e da arte. O filme usa técnicas rústicas,
trucagens, preservando o espontaneísmo típico da adolescência. Produzido fora dos
circuitos tradicionais e modos de produção vigentes, a autoria se dissolve. Um coletivo
pressupõe horizontalidade nas práticas de produção do filme, e para a moral da arte
burguesa, misturar-se em uma massa anônima seria perder-se de sua singularidade. No
entanto, segundo o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (2008), essa concepção ingênua
deixa de lado, por exemplo, o desejo do anonimato entre os que são ameaçados cons-
tantemente em suas buscas existenciais. Ser visto é uma ameaça, em algumas situações,
para quem vive em camadas populares. Importante pensarmos sobre as mistificações
de nossas artes e saberes, pois no encontro com esse outro estranho a mim, devo ser
capaz de reconhecer-me também outro, compreendendo o papel de mediação de nossas
ideias, de nossas obras de arte, que em si mesmas não produzem sentido algum esse
outro, além de alienação e fetichização do conhecimento.
O que esses filmes parecem indicar é que a produção cinematográfica se expande pela
escola, pela web, e se transforma ao recriar modos de abordagem e relações estabelecidas
dentro da produção de filmes. São filmes que seguem a crescente de ficcionalização do
real, da exibição da intimidade de ‘qualquer um’, e a estetização subjetiva. O “povo” agora
tem relativo acesso aos recursos de produção audiovisuais, antes restritos às classes
privilegiadas, e não precisa mais que cineastas contem suas histórias. É curioso notar
que é exatamente a fascinação pelas histórias ordinárias, pela ficcionalização do real e
pelo desejo de empoderamento do lugar de fala que parece ser o centro gerador de um
mercado milionário midiático. E o cinema diante disso? É a sala de cinema ou o circuito
de distribuidoras que definem a nossa arte? E como ficam os ideais libertadores da arte,
o desejo de autoria desvencilhado das amarras do mercado? Qual é o real espaço para
diferença no cinema nacional contemporâneo? E quais ilusões e potências sustentamos
ensaios • mostra contemporânea brasileira 185

quando propomos novos encontros, a suspensão de hierarquias, e abertura para esse


outro que desconhece o cinema como meio de pertença?

Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 2014.
PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
SIBILIA, Paula. O show do eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2008.
186 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Disputar imagens e espaços.


Encerrar cordialidades
sobre Quantos eram pra tá?, de Vinícius Silva

Breno Henrique1

Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao


mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um
para o outro, dando o nome ao que vemos.
bell hooks

Como poderiam as imagens disputar e reconfigurar novos mundos quando não consti-
tuídas por medo? Como o cinema responderia à história se articulado e dominado por
aqueles sobre os quais sempre lançou projeção? Como criar um espaço fílmico capaz
de descolonizar o pensamento e romper com as estruturas de poder que se encontram
atualmente vigentes? Como poderia o cinema dar a ver modos de criação de espaços,
onde a inscrição e constituição dos dissensos que agenciam as relações raciais se deem
por outro interlocutor?
Diante de extremas disparidades que sustentam e organizam a produção e realização
de cinema e audiovisual no Brasil, o curta metragem se apresenta e se impõe cada vez
mais como lugar-espaço de resistência e disputa para cineastas e realizadores negros e
negras. Articulados de forma independente, produzidos por coletivos e movimentos sociais,
realizados como trabalhos de conclusão de curso, filmes elaborados nesse respectivo
formato se apresentam como território de disputa e dispositivo de tencionamento para
com a história lida como oficial.
“Quantos eram pra tá?” “Me diz, quantos?”. A primeira informação incidida e concebida
ao curta metragem Quantos eram pra tá? se constitui como uma interrogação elaborada
no fora de campo do filme. O questionamento colocado pelo rapper Sant, na canção Eram
pra tá, nos interpela de modo objetivo e pragmático: discutiremos ausências históricas
e sistemáticas reivindicando sobretudo reparações sobre as mesmas.
Ao nos apresentar três estudantes negros da Universidade de São Paulo, o filme dirigido
por Vinícius Silva elabora um prismático movimento de construção da mise-en-scène.

1. Pesquisador de cinema e realizador. Mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Integra o grupo de pesquisa
Poéticas da experiência (UFMG). Dirigiu o curta-metragem Como se o céu fosse oceano, vencedor do prêmio de
melhor filme pelo júri oficial da Mostra Competitiva Minas do 21º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 187

Dandara (Dandara de Morais), Vinicius (Vinicius Silva) e Luiz (Luiz Felipe Lucas) compar-
tilham a complexa, desafiadora e não confortável experiência de serem corpos negros,
atravessados por múltiplas e distintas experiências sociais, em um território construído
para a branquitude.
A materialidade do filme e os enquadramentos apresentados nos informam estudantes
negros em situações, contextos e dinâmicas minoritárias atuando de modo a disputar
a hegemonia branca que se faz presente em espaços de produção e legitimação do
conhecimento. Interseccionados por gênero, classe, orientação sexual e geografias dissi-
dentes, múltiplos e plurais, elaborando perspectivas e leituras de mundo multifacetadas,
continuam pretos, e, portanto, em falta em espaços de poder e instituições da vida social.
Vinicius atravessa a cidade para se deslocar até a universidade, contextualizando-
-nos de certo modo sua existência em territórios periféricos. Dandara veio da região
nordeste e dorme no alojamento concedido como auxílio estudantil pela universidade.
Luiz complexifica nosso olhar sobre as relações afetivas que se dão entre os três amigos,
ao se inserir em uma realidade socioeconômica que destoaria da de seus colegas.
O racismo ecoa e escorre nos ambientes e espaços que cerceiam Luiz, Vinícius
e Dandara, aparece com as violências que são imanentes ao seu caráter estrutural e
institucionalizado, e por vezes se dá de forma velada pelos brancos que compartilham
o espaço acadêmico, nunca horizontal e abertamente democrático com os três jovens.
Em um ambiente hostil, uma comunidade de afeto, de aquilombamento, é construída.
Entre signos em comum, obstruções partilhadas de forma semelhante, a aparição de
fraternidades e fronteiras passa a ser desenhada, localizando sempre as nuances que
compõem a singularidade de cada indivíduo.
A dimensão das fraturas, distanciamentos e desigualdades promovidas pela bran-
quitude se dá a maior parte do tempo pela palavra, através da fala e do diálogo que
surge a partir dos três jovens. Embora frequentem cursos diferentes (Dandara, aluna
de ciências sociais. Vinícius, estudante de cinema, Luiz, matriculado no curso de teatro),
cada um a seu modo se depara em alguma medida com os vestígios e resquícios do
período colonial na universidade.
Em uma aula de teatro, uma professora profere de modo altivo e orgulhoso sua
suposta e aparente capacidade em interpretar uma pessoa pobre, ainda que presentifi-
cada em um corpo que “expressasse riqueza”. Discutindo e refletindo indagações sobre
a mesquinhez que agencia comportamentos dos alunos da USP com uma amiga branca,
Dandara devolve perguntas ao lembrar que o ato de questionar não exclui a trajetória e
experiência branca de mundo que a mesma (sua amiga) possui.
Entre agressões e violências cíclicas que se dão em dimensões micros e macros, existe
um âmbito e atmosfera de resistência promovida e engendrada pelo filme. Para além
das potências e implicações que significam se assumir como um jovem negro na atual
conjuntura política, existem reparos e desestabilizações para com ordens hegemônicas
em reivindicar que pessoas, espaços e instituições também se reconheçam brancas.
Se as primeiras cenas do filme nos apresentam os personagens solitários em seus
distintos territórios, deslocando seus respectivos corpos negros implicados com espe-
cíficas objeções até a universidade, as cenas finais irão elaborar outro movimento. A
188 ensaios • mostra contemporânea brasileira

dinâmica observacional promovida pela câmera é subvertida, e os olhares interpelam


de certa forma o público ativando e desafiando futuras e possíveis espectatorialidades.
Após a trajetória apresentada, o racismo exposto e problematizado, o filme convoca
movimentos de ação e resolução para o mundo. Em gestos performáticos de dança, os
três jovens apontam e sugerem possibilidades iniciais de resolução para conflitos que
talvez se façam sempre irresolutos. Ao som da cantora Rihanna, celebrando apesar do
caos, o som novamente incide através do fora de campo a inscrição e constituição da
imagem. As palavras ecoam e se desdobram do filme potencializando o fim de pactos
de cordialidade. Bitch Better Have My Money é a canção que encerra o filme, mas
aparentemente não o debate.

Referências
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
HOOKS, bell. Loving Blackness as Political Resistance. In: Black looks: race and repre-
sentation. Boston: South End Press, 1992. p. 9-20.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 189

As imagens
também se elegem
sobre Eleições, de Alice Riff

Carol Almeida1

De todos os movimentos políticos surgidos no Brasil pós-2013, talvez aquele que, de


fato, tenha aberto uma janela utópica e cindido o horizonte de desalento tenha sido
justamente o liderado por estudantes secundaristas de escolas públicas no segundo
semestre de 2016. O material audiovisual da época é vasto: foram vídeos e mais vídeos,
gravados quase sempre dos celulares dos próprios estudantes, com enfrentamentos e
depoimentos extremamente afinados em consciência política, debates identitários e
novas formas de organização na ação. Com esse arsenal de imagens em mente, assistir
ao segundo longa-metragem de Alice Riff não deixa de ser uma experiência que desloca
algumas expectativas – ou esperanças – de como pode funcionar o microcosmo político
de uma escola pública secundarista tão pouco tempo depois dos movimentos de 2016.
Eleições é filmado no começo de 2018, não apenas ano eleitoral no Brasil, mas ano em
que Marielle Franco é assassinada. Esse fato, aliás, atravessa o filme em um momento
muito importante.
A proposta é acompanhar todo o processo de formação de chapas de alunos que
irão disputar as eleições para grêmio estudantil na Escola Estadual Doutor Alarico da
Silveira, localizada no centro da cidade de São Paulo. Do primeiro momento em que o
professor de sociologia dá uma aula explicando a importância de ter representatividade
nas decisões que dizem respeito à escola até a votação em si, o que se vê de modo geral
é uma reprodução dos vícios e tiques daquilo que se consolidou como imaginário da
arena política brasileira: mesmo que existam várias boas intenções, há debates pouco
profundos, propostas esvaziadas de ação, bate-boca e pequenas infrações eleitorais.
Há um elemento adicional também bastante presente no contexto contemporâneo: a
neopentecostalização da discussão: uma das chapas é inspirada nos princípios de uma

1. Doutoranda no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema


contemporâneo brasileiro. Faz parte das equipes curatoriais do Festival Olhar de Cinema/Curitiba e do Recifest/
Recife e dá oficinas sobre crítica de cinema, curadoria e representação de mulheres no cinema. Já integrou juris
de festivais como Tiradentes, Mostra de São Paulo, FestCurtas BH, Janela de Cinema e Animage. Escreve sobre
cinema no blog foradequadro.com.
190 ensaios • mostra contemporânea brasileira

igreja frequentada por aquele que talvez seja o rapaz mais articulado em suas falas – e
certamente o mais empenhado em ganhar a eleição em questão.
Ainda que assuma as premissas do cinema direto e certamente tenha criado uma
relação de intimidade entre a câmera e os adolescentes ao longo das filmagens a ponto
de haver a ilusão da invisibilidade da presença da equipe e seus equipamentos, o filme
anda numa corda bamba no seu exercício de observação distanciada. Mesmo não tendo
situações nitidamente encenadas, como acontecia em seu primeiro longa, Meu corpo é
político (2017), aqui Alice Riff cria um roteiro que se retroalimenta dos personagens que
elege, induzindo conversas que só existem em função da presença da câmera – como
uma em que duas meninas falam sobre o que querem fazer no futuro e são filmadas de
frente e de costas para quem as assiste. Tudo, no entanto, é feito sempre com a cautela
de não riscar mais profundamente as intensidades em cena.
Há uma decisão prévia, que se mantém na montagem do filme, de não desenvolver
a fundo a vida não-escolar de nenhum dos adolescentes. Surge um risco pensado nesse
gesto. Ao mesmo tempo que o documentário nos oferece a ideia de escola como um
organismo vivo em si, com todas as peculiaridades de convivência, afetos e atritos dentro
dela, com todas as rachaduras na parede no fundo da cena, com todos os vazamentos
que atravessam a parede sempre que chove, há também brechas abertas para plani-
ficações de todos esses jovens em uma massa única de pessoas ora desinteressadas
em qualquer tipo de debate, ora ainda confusas em relação aos interesses genuínos de
seus respectivos grupos (o grupo LGBTQI e o rapaz evangélico se encaixam nessa última
categoria). Curiosamente o interesse pela escola enquanto parte de um sistema de poder
parece ser algo bem mais abstrato para todas essas alunas e alunos que, certamente,
conviveram com aquelas e aqueles estudantes das ocupações de 2016.
Para além da captura de todo o processo de criação das chapas e das disputas elei-
torais, o filme cria um artifício de manter duas alunas como correspondentes de todas as
etapas dessas eleições e esse é um recurso que, se por um lado dá a ver corpos já treinados
por uma coreografia artificial diante da câmera – como age um corpo “popular” dentro
da escola? o cinema e a TV costumam responder a isso –, por outro termina esvaziando
ainda mais o debate político que estaria no cerne do filme. Há, de fato, três momentos
em que o político toma a imagem. Quando primeiro surge a fotografia de Marielle no
centro do quadro, e essa é uma foto que causa desconforto porque os próprios alunos
não sabem muito bem lidar com a gravidade do que tinha sido a execução da vereadora
poucos dias antes dessa cena acontecer; quando, depois, filmagens de celular mostram
a ação da polícia reprimindo alunos para não entrarem na escola após o horário limite;
e, finalmente, quando a diretora da escola, ciente de que está sendo filmada, age como
a voz do Estado que a contrata.
Confrontada por alguns alunos em relação à severa política de horários de entrada
para as aulas, a diretora da escola faz a seguinte afirmação: “Nós temos a nossa vida,
desde que nascemos até quando morremos, toda regida pelo quê? Por normas e leis e
regras”. Uma vida “toda regida” fundamentalmente por normas e leis e regras parece ser
a raiz do problema. E, no entanto, esse depoimento, tão sintético e catalisador de todos
os problemas de vigilância e punição que oprimem qualquer possibilidade de educação
ensaios • mostra contemporânea brasileira 191

libertadora, não consegue ter maiores desdobramentos nas operações do filme. Por
quê? Permito-me criar uma suspeita: não se trata de culpabilizar o modo cinema direto.
Mas de talvez questionar como é possível, sob determinados contextos políticos, que
o cinema se aproxime ou mesmo interfira delicadamente nas coisas mantendo sempre
uma distância segura delas? O registro panorâmico dos fatos tem sua importância
histórica e seus méritos estilísticos, mas carrega também o ônus de se preservar em
momentos extremamente tensos quando essa preservação pode ser o problema político
mais essencial de todos.
192 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Anotação de instantes
sobre Sem título # 5: a Rotina terá seu Enquanto, de Carlos
Adriano

João Paulo Rabelo1

Quando floresce a ameixeira


nada sei
como o coração dos poetas
Matsuo Bashô

“O haicai não é um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento
breve que acha, de golpe, sua forma justa”, afirma Roland Barthes em O Império dos
Signos (2007, p. 99). De súbito, esta forma poética nos põe no limite da linguagem, numa
estreita faixa em que a distinção entre significante e significado se encontra travada,
fazendo as palavras emergirem como coisas concretas, que destacam o instante do
tempo que foge e logo silenciam. O haicai sustém, em intensidade, o que se esconde
nas experiências rotineiras sob o signo do “banal”. Como uma vibração curta, ele dá a
ver o “enquanto” de uma circunstância. De maneira isomórfica, Sem título # 5: a Rotina
terá seu Enquanto (Carlos Adriano, 2019) se aproxima da cultura japonesa ao fazer um
elogio do exato momento, do tempo presente, do que a vista alcança: o nascer do sol, o
retorno às imagens de um filme querido, um passeio de trem em boa companhia. Pela
delicadeza de seu exercício estético, na matriz do cinema experimental, o cineasta nos
conduz para um passeio de contemplação, que se dirige mais aos sentidos do que ao
sentido (aquele que se deseja pleno, satisfeito, colmatado).
O filme, quinto da série apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso), é
construído segundo os procedimentos do cinema de reapropriação de arquivo, conhecido
como found footage – a rigor, metragem de filme encontrada. O gênero, explorado pelo
cineasta desde o seu terceiro filme, Remanescências (1994-97), se apropria de imagens
alheias e as ressignifica por diversas operações, como intervenções cromáticas, cortes,
texturas, interferências sonoras, ralentações ou alterações na progressão. Num gesto
amoroso – ao cinema e à vida –, os cinepoemas de Carlos Adriano buscam produzir um
reencantamento com as imagens. No caso de Sem título # 5, com as imagens do último

1. Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFMG com a dissertação O que amas de verdade permanece:
A poética da memória no cinema de Carlos Adriano (2018).
ensaios • mostra contemporânea brasileira 193

filme dirigido por Yasujiro Ozu (1903-63), A Rotina tem seu Encanto (1962). Gesto que
se manifesta, logo de saída, no jogo entre o título original e sua derivação: um desloca-
mento que multiplica os significados. Por homofonias quase perfeitas, a justaposição faz
corresponder o encantamento com aquilo que diz da duração. No limite, este eco cria
uma nova unidade de sentido que sugere a estrutura do haicai: o vital maravilhamento
dentro do fluir habitual do tempo. Um momento suspenso que rapidamente atravessa
a linguagem.
A primeira sequência traz as mesmas cartelas dos créditos iniciais de Ozu, com a
mesma trilha musical. Sem legendas, elas podem ser apreendidas apenas em sua beleza
harmoniosa, como biombos japoneses que separam o dentro e o fora do filme. Um corte
no som inscreve um haicai de Bashô sobre um fundo preto. Logo em seguida vemos um
homem, de costas, que fotografa o nascer do sol. O registro, feito para o curta-metragem,
nos aparece brevemente em preto e branco. O título surge e, então, alvos de um campo
de golfe tomam a tela, com reenquadramentos e coloração avermelhada em algumas
bordas. No instante seguinte, um gesto lúdico propõe uma conversa inventiva com o
estilo de Ozu, conhecido pela rigorosa composição do quadro – simétrico, harmônico,
equilibrado: a imagem de um corredor, em rotações espelhadas, alterna o teto e o
chão, mantendo sempre o portal do fundo como eixo. Num diálogo progressivo com
os ambientes construídos pela câmera do diretor japonês, duas lâmpadas acesas em
cenários diferentes coincidem no mesmo ponto, em revezamento, como uma rima visual
percebida dentro do filme original.
Propondo derivações para a arquitetura precisamente registrada por Ozu, Carlos
Adriano reconstrói os espaços, pela montagem, com alterações nas bordas. As dupli-
cações laterais deslocam o centro simétrico para algum lado da tela e nos causam um
estranhamento na percepção. Uma vista da rua ou cômodos entrevistos pelos corredores
nos engajam na busca pelo que destoa, até que o olhar se reorganize neste novo espaço.
O gesto atualiza os cenários que o espectador do cinema de Ozu já toma como naturais.
Reinsere o estranhamento no familiar. Propõe uma nova contemplação do comum. Quando
uma porta de correr se abre, as imagens seguem o mesmo movimento, variando na tela
como se estivessem sobre trilhos. Outros ambientes também aparecem com semelhantes
padrões de duplicação enquanto ouvimos ruídos de construção, com batidas ao longe.
Mas não são apenas os espaços que são retrabalhados. As relações humanas também
são manejadas de modo sensível, como na sequência em que os homens confraternizam.
Enquanto bebem – com as falas em maior parte suprimidas –, podemos colher algo do
gesto, dos olhares, do estar junto. No Japão, como escreveu Roland Barthes, “o império
dos significantes é tão vasto, excede a tal ponto a fala, que a troca dos signos é de uma
riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinantes [...]. A razão é que lá o corpo
existe, se abre, age, se dá sem histeria, sem narcisismo [...]” (2007, p. 18). Outros trechos
nos inserem nesta dimensão cotidiana da vida: cozinhar, limpar a casa, dar corda num
relógio, enrolar uma fita métrica, ficar em silêncio, chorar. Tudo é simples, sem gravidade,
como um deslizar suave pelo rio do tempo – que ouvimos, na trilha, em badaladas. O
encantamento, como nos mostra o haicai, não é pretensioso.
194 ensaios • mostra contemporânea brasileira

O rumor de água acompanha algumas imagens – chuva ou lágrimas são, naturalmente,


estações da vida. Mas também há os momentos de celebração, de amizade, de êxtase
diante da beleza. O reencontro do protagonista (fuzileiro naval da Segunda Guerra Mundial)
com um subordinado, à época, expõe no filme este sentimento festivo. A banda sonora
e as perfurações laterais da película – a dimensão material da arte cinematográfica –,
que já víamos em diversas cores, se tornam mais frequentes nesses momentos. Até que
florescem, como cerejeiras, num tom rosa que emoldura o companheiro de viagem de
Carlos Adriano e Ozu no set de filmagem. O trem da ficção passa. O cinema dobra o
tempo. Os dois homens de hoje embarcam. O amor, entre as imagens, lampeja.

Referências
BARTHES, Roland. O Império dos Signos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 195

Afrofabulando imagens:
Tudo que é apertado rasga
sobre filme de Fabio Rodrigues Filho

Kênia Freitas1

O que fazer diante de um arquivo que é ao mesmo tempo e na mesma intensidade


violência e potência de vidas negras? Essa é uma das perguntas da qual parte Saidiya
Hartman no seminal artigo “Venus in two acts” (HARTMAN, 2008). Em seu texto, diante
da impossibilidade de achar nos registros do tráfico escravagista do Atlântico Negro
algo além do desdém, da crueldade e da interrupção brusca da narrativa e da vida das
mulheres negras, Hartman se colocará então a fabular criticamente o que poderia ter
sido. O método historiográfico proposto não evita assim a materialidade violenta do
arquivo, mas suspende a sua reprodução no presente por mera repetição. Nas brechas
abertas pela negociação com o narrar histórico, é possível buscar fagulhas de existências
(imaginárias e reais) não mortificadas das pessoas negras.
Diante de outro arquivo – das atuações das atrizes e atores negras e negros no cinema
brasileiro – o filme Tudo que é apertado rasga (Fabio Rodrigues Filho, 2019) nos faz
perguntas semelhantes à questão de Hartman. O que fazer diante das imagens e sons
que machucam? Como pensar os protagonismos que não existem? Como prolongar
uma presença no cinema que a princípio foi assistida sem ser vista e ouvida sem ser
escutada? É possível falar do que aperta e rasga sem refazer os gestos de violências
primordiais (do apagamento, invisibilidade e estereotipização)? Como colar novamente
os pedaços há décadas fragmentados do cinema negro brasileiro (AUGUSTO, 2018) e
da representação negra no cinema nacional?
O método fabular crítico proposto por Fabio Rodrigues Filho será o de uma montagem
cinematográfica das imagens de arquivo que passa pelo corte e pelo reenquadramento.
Um processo de aproximação intensivo e rítmico sobre as imagens das atrizes e atores
negras e negros em suas encenações nos filmes da Atlântida, da Vera Cruz e sobretudo
do Cinema Novo. Uma aproximação tão insistente que parece querer ver (e nos mostrar)
o que há (ou pode haver) atrás daquelas imagens. Um método que ao mesmo tempo

1. Professora, crítica e curadora de cinema, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro. Pós-doutoranda
(CAPES/PNPD) em Comunicação da UNESP. Escreve críticas para o site Multiplot! Integra o Elviras - Coletivo
de Mulheres Críticas de Cinema.
196 ensaios • mostra contemporânea brasileira

que singulariza e repensa a encenação negra, deixa evidente que como imagem e sons
do cinema, ela também é uma materialidade dobrável, manipulável, rasgável.
O método recoloca em movimento uma sina que atravessa a produção do cinema
contemporâneo: o fato que atrás de uma imagem existem já (e sempre) outras imagens.
Mas que imagens podem existir atrás dos lampejos de presença negra não este-
reotipada do cinema hegemônico (branco) nacional? O que Fabio Rodrigues Filho
evidencia com o seu método é o fato de que atrás destas imagens estão imagens do
cinema negro que faltam (BARROS; FREITAS, 2018). Perante essa ausência, o que
o filme se põe a fazer é reinventar, criar e fabular encontros impossíveis – e por isso
mesmo necessários.
Assim, cortando e dobrando imagens e sons uns sobre os outros, é possível que a
narração do poema lido por Jorge (interpretado por Zózimo Bulbul) em Compasso de
Espera (Antunes Filho, 1973) ecoe sobre as imagens de Alma no Olho (Zózimo Bulbul,
1974). E Alma no Olho que foi feito das sobras de o Compasso de Espera reencontra sua
matriz no espelhamento da encenação de Bulbul. Da mesma forma é possível e neces-
sário que no grito cantado de Zezé Motta caibam os gritos silenciosos de Ruth de Souza,
Milton Gonçalves, Grande Otelo...
As duas partes do filme dedicam-se a materialidades diferentes das ausências
negras nas imagens e sons. Na primeira, “O aperto”, o filme busca nas entrevistas
televisivas de Zezé Motta, Grande Otelo, Ruth de Souza, entre outras atrizes e atores
negros os testemunhos dessa falta. A repetição das histórias, piadas, comentários,
denúncias e reclamações sobre a invisibilidade e a sub representação negra no cinema
e na mídia nacional, mostra o caráter verborrágico da televisão no regime de produção
de imagens e sons. Tudo é dito. Tudo é repetido. Mas ninguém ouve. E no programa
seguinte Zezé Motta repetirá a mesma piada sobre fazer papel de empregada, com novos
risos da plateia.
Depois do aperto, vem “O rasgo”. Estamos de volta ao cinema. Olhando e examinando
atentamente o mesmo arquivo fílmico: Também Somos Irmãos (José Carlos Burle, 1949),
Sinhá Moça (Tom Payne, Oswaldo Sampaio, 1953), Rio Zona Norte (Nelson Pereira
dos Santos, 1957), Barravento (Glauber Rocha, 1962), Ganga Zumba (Cacá Diegues,
1963), a lista segue... Agora no entanto o corte de Fabio Rodrigues Filho encontra os
personagens negros que devolvem o olhar. Eles nos encaram. E por alguns instantes
quebram o jogo, mostram a sua codificação e como subvertê-la em um gesto simples.
Gesto que Tavia Nyongo (2018) chamará de performar para e contra a câmera – um
lugar de resistência que complica as relações de poder do cinema hegemônico sobre os
corpos negros e de outras minorias. Essas atrizes e atores por instantes, ao devolverem
o olhar, afetam a hierarquização das imagens. É isso o que algo atravessa a locomotiva
do cinema e a faz rasgar de volta.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 197

Referências
AUGUSTO, Heitor. Passado, presente e futuro: cinema, cinema negro e curta-metragem.
In: SIQUEIRA, Ana [et al]. Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (catálogo).
Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.
BARROS, Laan; FREITAS, Kênia. Experiência estética, alteridade e fabulação no cinema
negro. Revista ECO-Pós, 21.3 (2018): 97-121. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/
index.php/eco_pos/article/view/20262>. Acesso 13 Set. 2019
HARTMAN, Saidiya. Venus in Two Acts. In: Small Axe, 1 June 2008.
NYONG’O, Tavia. Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York: NYU
Press, 2018.
198 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Ainda estamos aqui


sobre Enquanto estamos aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti

Eduardo de Jesus1

Haveria uma paisagem, de cada vez que o espírito se deslocasse de uma


matéria sensível para outra, conservando nesta última a organização
sensorial conveniente ou, pelo menos, a sua lembrança. A terra vista da
lua por um terráqueo. O campo visto pelo citadino, a vila pela agricultor.
A desorientação seria a condição da paisagem.
Jean-François Lyotard

Cinema e cidade se relacionam de forma intensa desde suas origens, contaminam-se


mutuamente de distintos modos entre tramas que enlaçam visível e invisível. O visível
do espetáculo – da cidade do capitalismo global – e o invisível das texturas sutis da vida
cotidiana, dos lugares ordinários e das vidas comuns. Aquilo que “ainda não é observado,
o que não se tornou olhar, o que não para de passar, o tempo e seu cortejo de fantasmas
(...)” (COMOLLI, 2008, p. 180).
Neste jogo – entre visível e invisível, experiência e memória, corpo e olhar – cons-
truímos paisagens entre fixos e fluxos, que a seu modo o cinema tenta captar. Geografia
da montagem, que permite que o cinema em sua invenção possa desterritorializar a
cidade de seu espetáculo neoliberal contemporâneo para reterritorializa-la como fabu-
lação de uma cidade outra, com outros espaços, que apesar de ressoarem as ausências
conseguem trazer fragmentos de uma singularidade nômade, que se depreende das
experiências de distanciamento da terra natal.
Enquanto estamos aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti, 2018) parece colocar em
movimento justamente esse processo de desterritorialização para fazer com que a cidade
se revele como um gesto narrativo poético, sutil e potente que surge nos espaços urbanos
mais ordinários como praças, estações de metrô, estacionamentos vazios e ruas comuns.
No jogo entre visível e invisível, a narrativa mistura-se com a paisagem urbana comum
criando poéticos jogos de sentido entre palavra e imagem, entre o que vemos na imagem
e o que as narrações nos trazem. A forma fílmica, com isso, assume as forças caracte-
rísticas de modos peculiares de experimentar a cidade e faz figurar essas dimensões
ordinárias das paisagens urbanas cheias de poesia. A fugacidade polifônica da cidade

1. Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG.


ensaios • mostra contemporânea brasileira 199

surge no filme pelas músicas, nos ruídos e no som ambiente e se reforça ao trazer um
texto poeticamente lacônico na narração sussurrante de Grace Passô. Da mesma forma,
os fluxos intermitentes e eruptivos, que cruzam a cidade e suas relações, também atra-
vessam a narrativa fazendo com que a história da libanesa Lamis e do brasileiro Wilson
reverbere em muitas outras histórias possíveis, em diferentes dimensões que ao se
tangenciarem, alargam o alcance. As entradas dos fragmentos poéticos de Ana Martins
Marques e Rodrigo Fischer atravessam e ampliam as potências de sentido da narrativa.
Na cidade-imagem, paisagem de encontro e solidão, o filme se constrói assumindo
para si as forças da cidade e seus modos de ser. No entanto, ao contrário de revelar
as desgastadas imagens típicas da cidade em suas grandiosidades turísticas, lança-se
ao oposto e nos mostra a poesia dos lugares comuns e ordinários, onde, assim como
Lamis e Wilson, também experimentamos nossa vida cotidiana. Da mesma forma, fluxos
imagéticos nos fazem passar de uma cidade a outra como se passássemos de uma
lembrança a outra. A produtiva e resistente desorientação da paisagem. Desorienta-se
porque desloca-se. Estrangeiros em fluxo migratório que se de um lado descobrem,
inventam e enfrentam a cidade, de outro trazem consigo a impossibilidade da terra
natal. “Os indianos, os mexicanos, os filipinos conversam entre os seus”. Qualquer lugar,
qualquer um, em qualquer tempo.
Em alguns momentos são as lembranças, como as da infância, que invadem a narra-
tiva. “(...) até que aos poucos, no fundo da memória, surge uma melodia distante, sua
infância” e ouvimos o belo samba de Wilson Batista. A memória que vem do fora de
campo, do fora de lugar, do outro continente atravessa imagem e narrativa instaurando
relações ainda mais complexas, já que a lembrança talvez possa criar outras gradações
mais nuançadas entre visível e invisível.
Com isso, na desterritorialização instaurada, o filme com esses sujeitos em desloca-
mento, nos faz lembrar com suas imagens, outras histórias, lembranças e experiências
que, em sua fugacidade, a cidade ao guardar, deixa sumir. Vestígio mínimo que em alguns
momentos explode no filme em quase epifanias, como no momento que Lamis pousa
sua mão no ombro de Wilson, na fugacidade de alguns instantes.
Nessas operações entre tempos, as lembranças são embaladas por cartas, músicas
ou imagens que invadem a cena. Em diversas passagens o tempo parece estar suspenso,
especialmente nos momentos que a narração se silencia por longos períodos, nos fazendo
ouvir a cidade e ver seus espaços vazios. Quase melancólicos, esses espaços vazios
revelam-se importantes na narrativa para marcar esse outro tempo, entre memórias e
“agoras”. Estranha duração do tempo presente deslocando-se para a paisagem. Em um
dos momentos, Lamis fala com seu tio sobre sua vida, enquanto vemos uma imagem de
montes de entulhos e escombros de construção, em um rigoroso e bem composto plano
aberto, diante dos quais corre suavemente um canal. Antes de ouvirmos a voz vemos
essa imagem durar silenciosamente no quadro, com sua crueza industrial que contrasta
com a suave voz de Lamis. Tanto nessa passagem quanto em outras, a intensidade do
tempo presente marca o filme com imagens que desejam revelar um instante do qual
não se sabe a duração, fugacidade extrema da cidade e das narrativas que vemos na
cidade-imagem diante de nós. No entanto, apesar da cidade tramar-se em múltiplas
200 ensaios • mostra contemporânea brasileira

memórias o filme nos informa pela narração: “(...) tão pouco sabemos há quanto tempo
esse momento aconteceu, mas sabemos que ele se dá no presente, sempre no presente”.
Frase que se repete no filme em algumas passagens e que instaura um produtivo para-
doxo: como saber do tempo quando nos desorientamos na paisagem? Talvez fazendo
a memória ressoar pelos espaços, contrapondo assim o urgente tempo presente da
cidade, que não para de passar, com as lembranças de outros tempos e espaços que
guardamos. Esse modo de operação da memória no espaço, traz um traço literário que
se ressalta nas narrações. No entanto, nos longos trechos sem narração, o filme explora
a paisagem urbana como protagonista dessas histórias, nesse urgente tempo presente
do agora que passa incessantemente na cidade, mas que a cada instante nos mostra
fragmentos, estilhaços das histórias dos dois imigrantes.
Por isso, o que se efetiva na paisagem urbana que se constrói nessas operações fílmicas
é muito mais que pano de fundo ou cenário, é a cidade ativando a cena, se insinuando
para nossos olhares e nos fazendo pensar no inescapável ponto de passagem entre
presente e passado. Paradoxo entre passagem do tempo e permanência da memória que
o filme alimenta e se serve para nos colocar em meio a cidades das quais a paisagem que
emerge nos convoca – tanto em níveis pessoais, quanto nos mais coletivos – a construir
cidades subjetivas que guardem histórias dos sujeitos em fluxo.

Referência
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder A inocência perdida: cinema, televisão, ficção e
documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 201

O triunfo da Ideia
sobre A rosa azul de Novalis,
de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro

Luiz Soares Júnior1

Com exceção do expressionismo, o cinema levou muito tempo para individualizar um


retrato, e do sujeito retirar o arcabouço do contexto e estirá-lo nu sob os holofotes da
autópsia; de fato, precisamos ultrapassar todos os limites na representação de uma
sociedade (pensemos nos planos de conjunto e sequência de Mizoguchi e Renoir dos
anos 30, baladas mortuárias para invocar a multidão pela última vez, pelo menos segundo
um gregarismo que coubesse no plano, agora mais plástico e variável) para aceder,
persignados e culposos, à sua célula-mater: o indivíduo. E o que este dejeto de tantas
multidões, esta quase-parte maldita da divina Criação – que no cinema, arte de fatura
monstruosa espacial, sempre privilegiou o conjunto de indivíduos –, este irredutível Uno
chamado Homem tem a nos dizer, quando colocado num tête-à-tête tantas vezes perverso,
majoritariamente narcisista, com a câmera? Ao ver A rosa azul de Novalis, de Gustavo
Vinagre e Rodrigo Carneiro, lembrei-me a princípio de um desses filmes de tête-à-tête
que soube aliar a confissão intimista à performance, e que foi a baliza intermediária entre
os painéis, existenciais ou épicos, dos 60 e as sociedades secretas dos 70, o Retrato
de Jason, de Shirley Clarke. O que nos dizia Jason? Que não existe vida íntima, que não
existe vida performativa (pensemos como os lógicos: o verbo do ato, da vida como ação)
sem a palavra; mas não qualquer palavra. Esta palavra, de que Jason nos deu os Codex
da Cena com suas piruetas de bêbado e lágrimas de mártir underground, é, digamos,
uma supra-palavra, pois agrega a seu significante de base os êxtases do Gesto, as acro-
bacias artaudianas do grito, a textura tamisada de sonho de uma inscrição deste corpo
no corpo do plano de cinema; só aí já temos dois corpos; imaginemos, então, o vasto e
ressoante fora de campo inervado pelo trabalho do campo, imaginário e memória dos
espectadores inclusos, e temos um espetáculo de si-mesmo que rivaliza em grandeza
cênica com as feiras circenses que assistiram à aurora do cinema.
Porém, tudo isto em Retrato de Jason ainda é virtual, estritamente vinculado à
palavra-sintoma (de vária textura cênica e diapasão, é certo), mas à palavra de nosso
herói negro e miché; A rosa azul de Novalis dá talvez um passo além, ou empreende

1. Luiz Soares Júnior é crítico de cinema, tradutor do francês e ensaísta, formado em Filosofia pela Universidade
Federal de Pernambuco.
202 ensaios • mostra contemporânea brasileira

materializar no corpo do filme esta bifurcação do corpo de Marcelo Diorio em pelo


menos dois corpos outros: um corpo que fala (e esta fala não apenas descreve o que lhe
aconteceu, gênero memorial intimista, mas emite valores, perverte os dados herdados
da família conservadora, mitifica, oniriza o real, trazendo-o para as categorias, os modus
operandi, os textos do personagem Marcelo) e um corpo encenado, com o auxílio do
filme, em três cenas que nos oferecem um vértice triangular como fundamento de um
terceiro corpo, chamado, numa operação de conversão do imanentismo-crônica do filme
para uma referência de transcendência cultural e cultual, – no caso, o romantismo de
Iéna –, de Rosa azul de Novalis; temos acesso a pelo menos três sequências essenciais
para se entender este processo de mão dupla na qual o corpo que fala, um soma que
se exprime, torna-se também este elemento cênico semi-utópico, no qual a fantasia
presentifica os valores do personagem, os materializa cenicamente: o velório do irmão,
coroado pelo beijo incestuoso que resgata as notas de rodapé nas quais Freud interpretou
a homossexualidade como um Édipo falho, aqui sobre-elevado, e portanto redimido, à
categoria de pulsão estruturante da Cena familiar; e as duas trepadas, o ‘frango assado’
e o boquete no rapaz mascarado; estas três cenas de denotação sexual assinalam ao
mesmo tempo a conotação mítica de um Marcelo Diorio que se engendra com o auxílio
de presentificação do próprio filme: o triunfo da Ideia, com a implicada transfiguração
das vicissitudes da imanência em um luminoso escopo de mediações fantasiosas: o
que seria destas ações sem o discurso tantas vezes irônico ou autocomplacente de
Diorio, e em igual medida o que nos revelaria este discurso se não fora encarnado em
atos cênicos que o cravassem com a firmeza de um promontório de significante, sobre o
corpo, fundamento de todo gesto ou fala, lugar necessário de fixação de uma palavra que
jamais cederá a ser tragada pelas estruturas mais abstratas da linguagem? O sexo para
Diorio é o equivalente aos distúrbios domésticos de Nina Simone, à carta amargurada de
Kafka ao Pai, à misantropia de Glenn Gould, referenciais culturais (e repito: de culto, por
parte do personagem) que o processo de reapropriação do filme torna característicos da
persona de Marcelo, integra a este, aquele que busca a divindade da transcendência ao
aprofundar o buraco negro da imanência, como nos revela o plano final, que se converte
em um Outro por intercessão de uma sondagem escatológica de sua Mesma profundeza
desejante: falar e trepar (ou beijar) são duas moedas da mesma economia libidinal, ou
poderíamos ainda falar como Freud que boca e cu (Linguagem e pulsão) pertencem a
um mesmo e outro canal de excreção, um na superfície da boca e outro na cauda que
restou do cóccix, e que aquilo que os diferencia é apenas uma questão de interpretação,
de releitura dos baixios segundo códigos mais elevados, como um filme?
A Rosa azul é este terceiro corpo de Marcelo Dirorio, interstício ou efeito metafórico
da contraposição entre o corpo falante e o corpo desejante ‘em ação’; é o buraco do olho
do cu – e atenção redobrada a ambas as expressões, pois o olho aqui representa-nos
o olhar de Apolo na cultura grega, ou consciência de si, enquanto que o cu é o lugar da
excreção da matéria absorvida pela percepção; em todo caso, ao contrário do que nos
pode parecer a princípio, ambos fazem parte de um mesmo sistema de enunciação, e
se relacionam paradigmaticamente, pois não é, tanto como o cu, o olho, equivalente
cinematográfico da boca, o lugar de uma expulsão do fenômeno absorvido sob a forma
ensaios • mostra contemporânea brasileira 203

de linguagem? – que nos contempla ao final do filme; a rosa azul, jamais encontrada por
Novalis mas que por isso mesmo vive como o Mito de uma aspiração ao infinito, é antes
de tudo o triunfo da Ideia, pois esta se caracteriza, como a história do olho batailliana
ou as pirâmides sadianas (a primeira também citada no filme), por um uso superior
que se imprime às adversidades da vida física ou, para ainda pensar como Freud, um
destino sublime para dois corpos que vigem sob o império da imanência; o filme de
Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro se ancora numa concepção do corpo outra que o
corpo-organismo, mas também de linguagem, pois ao discurso direto livre do cinema
verdade ele integra a fantasia do personagem falante, lugar de uma bifurcação disléxica
entre a imanência e o Eterno.
204 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Guardiões da Floresta:
CÂMERAS EM AÇÃO!
sobre filme de Jocy Guajajara e Milson Guajajara

Ruben Caixeta de Queiroz1

Guardiões da Floresta (Jocy Guajajara; Milson Guajajara, 2018) é um filme, tal qual Virou
Brasil (Pakëa; Hajkaramykya; Arakurania; Petua; Arawayta’ia; Sabiá; Paranya, 2019), que
surgiu a partir de duas oficinas realizadas, em 2017, pelo projeto Vídeo nas Aldeias no
noroeste do Maranhão, respectivamente nas aldeias Maçaranduba e Tiracambu, ambas
situadas na Terra Indígena Caru. Esta Terra se insere numa região habitada por três
povos indígenas tupi-guarani: Guajajara, Awá-Guajá e Ka’ apor. Ali, os povos indígenas
resistem contra a invasão de seus territórios pelos madeireiros e criadores de gado!
Tendo devastado a floresta amazônica na parte ocidental do Maranhão, os colonizadores
cobiçam agora o que resta de madeira e de mata no interior das terras indígenas: ramais
de estradas e serrarias cortam a floresta, ameaçando, inclusive, a sobrevivência dos
índios isolados Awá-Guajá, que se refugiam nas zonas de mais difícil acesso.
O filme não mostra, mas se o leitor quiser facilmente ver uma imagem aérea desse
lugar, basta abrir o google earth, procurar pelo nome de uma cidadezinha (as aldeias
não são “visíveis”), por exemplo, Zé Doca ou Santa Inês, e encontrará algumas manchas
verdes de floresta. Não precisa se espantar, elas são os limites circunscritos pelas terras
indígenas ou unidades de conservação. O resto, o que está fora destes limites, já foi
totalmente devastado pelas madeireiras e pelas fazendas. Para transitar entre essas
ilhas de verde, os povos indígenas precisam cruzar os terrenos baldios, ex-florestas que
viraram pasto para gado. O pior, o que resta de floresta no interior das terras indígenas
está sendo destruído pelas madeireiras, pelo fogo, pelo gado invasor!
Guardiões da Floresta é um filme que retrata as ações de uma auto-organização
homônima dos indígenas para proteger o que ali resiste de floresta! O filme apenas evoca
esse cenário e o espectador que quiser saber mais sobre essa realidade precisa ir atrás
de outras informações. Se ele ainda quiser saber mais sobre a história, a organização
social e a cosmologia dos povos que ali habitam, precisa ler os trabalhos de antropologia,
como aqueles de Darcy Ribeiro, Willian Balée, Eduardo Galvão e, mais recentemente,
Uirá Garcia e Renata Otto.

1. Professor de antropologia da UFMG, etnólogo e pesquisador do CNPq. Pesquisa junto aos povos indígenas
Karib das Guianas desde 1994.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 205

Um filme documentário (ou de ficção), como se sabe, apenas evoca ou exprime parte
de uma realidade. Um recurso narrativo muito empregado neste tipo de filme é a voz off
ou voz over, como forma de alargar a compreensão do tema apresentado ou de reforçar
o que é mostrado pela imagem. No entanto, a opção em Guardiões da Floresta, foi pela
supressão completa deste tipo de comentário, se concentrando apenas nas imagens das
ações (de vigilância territorial) que ocorrem no momento mesmo que a oficina de vídeo
é realizada. Por isso, trata-se de um filme em direto, quase que próximo do tipo “cinema
observacional”, e muito distante de outros filmes do projeto Vídeo nas Aldeias, como
Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) e Martírio (Vincent Carelli, 2016), nos quais o comen-
tário over revela-se fundamental para tecer os fios de uma história e do protagonismo
indígena contra a colonização e a expropriação violenta de seus territórios. Ao contrário
também dos filmes de Isael Maxakali – nos quais, no momento mesmo da captação da
imagem e do som, o cineasta emite um comentário sobre o que está sendo filmado –, o
filme guajajara parece querer apenas acompanhar as ações de fiscalização, e a câmera,
de certa forma, age como uma arma ou uma câmera de vigilância não ligada de forma
ininterrupta (algumas vezes camuflada e observando de longe, outras de muito perto,
disposta sempre a partir do ponto de vista dos índios, não do inimigo), mas pronta a ser
disparada assim que seja detonada do outro lado (do invasor, de frente para a objetiva)
uma reação armada ou violenta.
O suspense do filme também é criado em torno da possibilidade de um abate do
gado pelos índios em ação de fiscalização, fato que é recorrentemente aludido ao longo
da narrativa e nas conversas entre indígenas e invasores (em geral, pequenos proprie-
tários rurais, vaqueiros ou empregados de madeireiras que estão na linha de frente
das atividades predatórias das terras indígenas e que também são vítimas das práticas
de grilagem de terras e do latifúndio no país). Na montagem do filme constrói-se este
suspense, já que, logo no início, nos é dado a ver, numa cerca disposta na beira da terra
indígena (marcada pela placa da Funai, que anuncia a sua proteção legal e interdição de
ocupação por não-indígena, de acordo com a legislação em vigor), uma fileira enorme
de carne de gado a ser secada pelo sol. Mas, ao longo de todo o filme, não vemos sequer
um animal abatido pelos índios, não vemos sequer uma ação violenta deles contra os
invasores (como a gente sabe, por outras fontes, às vezes isso ocorre de fato, pois os
índios podem prender, amarrar e expulsar aqueles criminosos que se encontram no
meio das suas terras tirando madeira ou criando gado), e vice-versa. O que vemos é um
diálogo ou uma conversa mais dura das lideranças indígenas contra os invasores, expli-
cando-lhes a ilicitude de suas práticas e a necessidade de proteção da floresta, muito
embora o semblante dos índios (alguns deles encapuzados ou com rostos pintados) e
dos próprios invasores seja de medo ou de revide.
Se podemos ver essa “expectativa” e esse “suspense” estampado no filme Guardiões
da Floresta, ali pouco discernimos quem são mesmo esses índios por trás da câmera ou
das ações de vigilância. Só um profundo conhecedor da realidade local poderia saber que
dentre eles se encontram misturados os índios Guajajara e Awá-Guajá. Eles ( juntamente
com os Ka’ apor) realizam hoje inúmeras ações de proteção de suas terras (o que seria
uma obrigação legal do Estado, aqui, ausente), por conta própria, criando para isso o que
206 ensaios • mostra contemporânea brasileira

chamam de brigadas de guardiões da floresta, uns se inspirando nos outros. Em alguns


casos, os índios de mais longo contato com a sociedade nacional, agem exatamente no
sentido de proteger aqueles que ainda estão isolados (e ameaçados) no meio da floresta.

O cerco e o extracampo

No entanto, no extracampo, a violência é cotidiana e muito mais estampada e difundida


por uma população que, insuflada pelos ruralistas e pelos políticos do país, acredita que
os indígenas são entraves ao desenvolvimento. No caso da Terra Indígena Araribóia (um
dos lugares onde habitam os Guajajara), segundo dados do Conselho Indigenista Missio-
nários (CIMI), desde 2006, foram 13 índios mortos, dos quais, três agentes ambientais
indígenas conhecidos por guardiões da floresta: Afonso, Acísio e Cantídio Guajajara. De
acordo com uma liderança indígena, junto ao corpo de Afonso, os madeireiros deixaram
uma lista com os nomes dos outros agentes ameaçados, como um recado da violência
futura. “Os caras (madeireiros) deixam claro: ‘se eu ver o guardião eu vou matar’”.2
Como já dissemos, naquelas terras indígenas do Maranhão, há a presença de índios
isolados, os Awá-Guajá, cada vez mais ameaçados pelos invasores e pelo fogo que
destroem a floresta onde habitam. A proteção destes índios foi justamente uma das
motivações para o surgimento, na Terra Indígena Araribóia, em 2011, dos guardiões
da floresta. Antes disso, em 2007, os índios Guajajara já tinham passado por uma
experiência dolorosa e começaram a pensar numa forma de organização autônoma para
a resistência: naquele ano o cacique Tomé Guajajara expulsou alguns madeireiros que
tinham invadido a terra indígena, e, em retaliação, um mês depois, um grupo de homens
armados apoderou-se da aldeia, entrou na casa de Tomé e o executou. A esposa e o filho
foram baleados, mas sobreviveram.3
De forma paralela, a partir de 2010, os vizinhos Ka’ apor (um povo também tupi-gua-
rani, habitante da Terra Indígena Alto Turiaçu) organizaram uma experiência inédita na
qual articula um sistema de educação com a proteção territorial: junto com o “Projeto de
vida e formas de pensar a gestão territorial e ambiental do TI Alto Turiaçu”, organizaram
o “Projeto pedagógico e curricular de educação básica ka’apor” (Ka’ namo jaju jumu’e há
katu – aprendendo com a floresta). Através desta articulação foram criadas formas de
valorizar a cultura e de cuidar das pessoas com proteção territorial, na busca de maior
autonomia e sustentabilidade. Num documento denominado “Nossa floresta é nossa
vida: o povo Ka’apor não aceita mais mentira do governo e invasão do território por
madeireiros”, elaborado pelos próprios Ka’apor, podemos ler:

Não vamos aceitar que mais ataques e ameaças. Por isso, decidimos cuidar e proteger nosso
território e não esperar mais pela Funai, pelo governo. Eles sempre pedem para esperar. Enquanto

2. Instituto Socioambiental. Assim lutam os Guajajara, guardiões da floresta. Disponível em: <https://outraspa-
lavras.net/outrasmidias/assim-lutam-os-guajajara-guardioes-da-floresta/>. Acesso em: 05/10/2019.
3. Instituto Socioambiental. Assim lutam os Guajajara, guardiões da floresta. Disponível em: <https://outraspa-
lavras.net/outrasmidias/assim-lutam-os-guajajara-guardioes-da-floresta/>. Acesso em: 05/10/2019.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 207

isso os invasores destroem nossos bens naturais, enganam nosso povo, dão bebidas para
nossos parentes, levam nossas caças, tiram alimento de nossos filhos. Só nós sabemos de
nossos problemas porque sentimos e sofremos. Só nós sabemos os caminhos que temos que
seguir. Não aceitamos mais que o governo decida e faça por nós. Nós mesmos vamos vigiar,
proteger e trabalhar a gestão de nosso território.4

A câmera como arma

O filme Guardiões da Floresta documenta essa experiência de proteção territorial na qual


os índios Guajajara e Awá-Guajá enfrentam os madeireiros e criadores de gado, que estão
invadindo e devastando as terras indígenas. Armados, ora de flechas (empunhadas pelos
Awá-Guajá, que também estão uniformizados de preto), ora de espingardas (portadas
pelos Guajajaras, que estão pintados para a guerra), os índios percorrem o seu território
e observam de longe o gado invasor e os vaqueiros, ao mesmo tempo que, numa base
de vigilância, tentam dialogar e “pacificar” os invasores: “a proteção desta terra e da
floresta é importante para nós, mas também para todo mundo”, dizem aos forasteiros.
No filme, conforme já dissemos, nenhum tiro é disparado, nenhuma flecha é usada seja
para atingir os invasores, seja para matar o gado. A câmera tudo filma, acompanha as
ações dos guardiões, está presente nos momentos mais tensos de enfrentamento direto.
Dessa forma, a câmera funciona a favor dos indígenas como testemunha e como arma
na proteção do território, e da vida!
No momento político atual do país, de ataque tão brutal contra os direitos dos
povos indígenas, contra a floresta e a vida, Guardiões da Floresta (2018), juntamente
a Virou Brasil (2019), se revelam filmes indispensáveis para nos informar, nos tocar e
nos formar numa aliança com os povos da floresta. E isso deveria ser feito não apenas
por uma questão de solidariedade ou de empatia, pois, não é exagero dizer, a nossa
sobrevivência, de todos nós (indígenas e não-indígenas), depende cada vez mais da
sabedoria indígena – e não da “nossa” civilização. Zezico Rodrigues, uma liderança
guajajara, diz que “quando chegou o europeu começou um processo de extermínio para
ocupar o Brasil. E a gente foi sobrevivendo, se salvando. [...] Eu abracei essa causa porque
desde quando o Brasil foi formado, que era o nosso território, muitos parentes foram
assassinados. [...] Se a nação indígena acabar, toda a nação irá junto. Toda a floresta,
todos os animais, vão junto”. Recentemente, o indígena Flay Guajajara, que colaborou
na produção de imagens para Guardiões da Floresta, postou na internet uma filmagem
curta de seu encontro na mata com um índio isolado Awá-Guajá, com o objetivo de que
essa imagem pudesse circular e evitar a extinção desse povo no Maranhão. Ele mesmo
traçou o seu objetivo: “Esperamos que esse filme traga um resultado positivo e faça uma

4. Nossa Floresta é nossa vida. O Povo Ka’apor não aceita mais mentira do governo e invasão do território por
madeireiros. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=128726>. Acesso em:
05/10/2019.
208 ensaios • mostra contemporânea brasileira

repercussão internacional com um olhar voltado para a questão de proteger um povo,


uma floresta, uma nação, uma terra e uma história”.5
A câmera e a imagem são armas cada vez mais usadas pelos indígenas e por coletivos
como o “Mídia Índia”, para sua proteção e para dar recado aos brancos. Assim como
as câmeras, inclusive as de celulares, as ações em campo de proteção territorial e da
floresta, as palavras dos xamãs, as rezas e os cantos são formas de evitar “a queda do
céu e o fim do mundo”. Nesse sentido, um índio Awá-Guajá sabe muito bem que o canto
é uma forma de suspender a rudeza da vida mundana e, ao mesmo tempo, uma maneira
de abrir caminho para o céu, como tão lindamente nos mostra uma sequência de cantos
seguida da indignação de uma mulher awá no filme Virou Brasil (2019): “pergunte pros
Karaí [brancos]: por que querem nos matar?”. Ao que um cantor-dançarino responde:
“Não sei porque eles querem nos matar, a gente nem fica aqui na terra.” Mais à frente,
depois de uma turma awá atravessar um caminho antigo de caça, agora esburacado
pela fúria de um trator e da construção da Estrada de Ferro Carajás, um homem awá
fala para a câmera:

Eu penso, se eu ficar velho com meus filhos e morrer... Quando a gente fica velho, morre. Aí o
trator virá aqui pra perto deles. Por isso eu canto. Eu sempre canto, eu não fico à toa, sem cantar.
Por isso eu tenho a memória boa, a cabeça boa. Eu sempre penso lá na frente, no meu futuro.
Eu olho para os Karaí e me pergunto se querem mesmo trabalhar ou apenas tomar nossa terra.
Aí, eu olho para os meus filhos e vejo eles animados com o trabalho dos Karaí. Eu digo pra eles:
logo vão matar a gente, eles estão de olho na terra do índio. É o que eu falo pros meus filhos:
esses Karaí não estão aqui à toa. O chefe deles, que vive longe, está de olho na terra do índio.

É dessa forma que o índio awá está lendo os ataques e a cobiça de sua terra pela
elite capitalista do país (e do mundo), comandada pelo atual Presidente. Salivando tanto
ódio contra os índios, disfarçado de patriotismo e desenvolvimentismo, o Presidente
e seus seguidores têm vociferado coisas como “no meu governo índio não terá nem
mais um milímetro de terra”; “os estrangeiros não estão interessados no índio ou na
porra da árvore, mas no minério”; “os estrangeiros querem que o índio continue como o
homem pré-histórico, que não tem acesso à tecnologia, à ciência, às mil maravilhas da
modernidade”. Diante destas falas, creio que todas as pessoas minimamente informadas
reconhecem que o Presidente está, na verdade, por trás de sua truculência e estupidez,
defendendo grandes interesses da indústria madeireira e da mineração.
Essas “maravilhas da modernidade” não podem disfarçar, por exemplo, a miséria e
a violência que rondam nossas cidades, muito menos as mortes causadas pelo rompi-
mento das barragens, ou a ferrovia e o projeto minerário da Serra dos Carajás, no Pará,
que, dentre outros estragos, rasgaram ao meio a terra dos índios Awá-Guajá (aqueles
mesmos retratados na saga de Karapiru, no filme extraordinário de Andrea Tonacci,
Serras da Desordem, 2006). Ao contrário do que pensam os partidários do Presidente,

5. Ver o filme e a fala de Flay Guajajara aqui: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/


geral/m%C3%ADdia-ind%C3%ADgena-divulga-imagens-de-etnia-isolada-e-amea%C3%A7ada-por-ma-
deireiros-no-brasil-1.353347>.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 209

há uma outra civilização que detém a mais avançada das mais avançadas das tecnolo-
gias – que é um conhecimento e um respeito profundo pela floresta e pela vida humana
e não-humana que os brancos não têm e, parece, nunca terão. Restam-lhes ouvir a voz e
o pensamento indígenas, antes que o fogo e a busca ilimitada por produção e consumo
de mercadorias possam nos engolir todos juntos, decretando a extinção da humanidade.
Corte final, ou consumo final! Apaguem as luzes, e as câmeras! Fins dos tempos, de
criação. Fogo! Morte! Desmatamento! Tempos sombrios e escuridão parecem marcar a
obsessão perseguida pelo atual governo. Que os povos indígenas possam nos apontar
uma luz, a partir do interior de suas câmeras e de suas mentes avançadas, como diria
Caetano Veloso! Vejam os filmes Guardiões da Floresta (2018) e Virou Brasil (2019),
pensem, saiam do conforto, leiam esse apelo dos Guardiões da Floresta, um coletivo
de indígenas extremamente corajosos e inspiradores que estão colocando suas vidas6
em risco para proteger a floresta Amazônica da destruição:

Caros amigos,

Estamos enviando estas palavras a vocês hoje porque precisamos de apoio urgente. Nossa terra
está sendo invadida, agora, neste momento. É uma emergência. Nós patrulhamos a floresta,
identificamos os madeireiros, destruímos seus acampamentos e os expulsamos. A gente já
combateu muita invasão de madeireiros. Está funcionando. Nós recebemos constantemente
ameaças de morte da poderosa máfia madeireira. Três de nós já foram assassinados. Mas, nós
continuamos, porque a floresta é nossa vida. Sem ela, todos nós estaríamos mortos. Nossos
irmãos isolados também vivem na floresta. Eles não sobrevivem se ela for destruída. Enquanto
nós estivermos vivos, nós estamos lutando por todos nós aqui, pelos isolados, e pela natureza.

6. Já quase indo para a impressão, na data de hoje, 02/11/19, lemos a notícia na Folha de S. Paulo, confirmada
pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão, que um grupo de madeireiros
ilegais, dentro da TI Arariboia, fez uma emboscada contra os Guardiões da Floresta, atirando e assassinando o
líder indígena Paulo Paulino Guajajara. Ainda, um outro líder indígena, Laércio Souza Silva, sofreu ferimentos
graves. Toda força aos Guardiões da Floresta, e o forumdoc.bh conclama pelo fim da política genocida contra os
povos indígenas que está em curso no país, ainda e com maior força.
210 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Virou Brasil
sobre filme de Pakea, Hajkaramykya, Arakurania,
Petua, Arawtyta’ia, Sabiá e Paranya

Renata Otto Diniz1

Virou Brasil resulta de uma oficina, realizada pelo pessoal do Vídeo nas Aldeias, entre
os Awá-Guajá, da aldeia Tiracambu, na TI Caru, situada no Maranhão, no ano de 2017.
Certamente vocês conhecem o Vídeo nas Aldeias. Do contrário, podem imediatamente
consultar as informações disponíveis no site do projeto.2 Talvez seja bom apenas ressaltar
o caráter pioneiro do VNA em promover o domínio dos equipamentos audiovisuais pelos
indígenas no Brasil. Ressaltar ainda que o efeito mais original dessa atitude tem sido
o surgimento de filmes nos quais tanto o enquadramento (o quadro, o foco, o recorte
etc.), quanto o campo enquadrado (a matéria, os fluxos, talvez possamos dizer, a vida
em continuidade) são definidos nos termos do mundo indígena. Mesmo que o “índio”
mire os “brancos”, ou os cachorros, ou o invisível..., o mundo que ele mira é sempre o
indígena, porque nada está fora do mundo de alguém que está em posição de sujeito.
Virou Brasil é um exemplo extraordinário do sucesso desse mecanismo de composição,
ou melhor, de tradução entre mundos, acionado por meio audiovisual. Não pela ênfase
no polimento ou no esmero perfeccionista – ainda é um filme debutante. Mas justamente
pela sua pungência, pelo frescor com que os protagonistas – os Awá-Guajá, estando por
trás e na frente das câmeras – manobram sua auto mise-en-scène.
Provavelmente vocês não conhecem os Awá-Guajá. Eles são um dos cerca de “225
povos indígenas” que vivem atualmente no Brasil.3 Eles são talvez menos conhecidos
que os demais por terem sido apenas recentemente “contatados”. O primeiro contato do
órgão indigenista com os Awá, aquele que conta no censo, deu-se em 1973, em plena
“década da destruição da Amazônia”.4 Na verdade, foram dois contatos naquele mesmo
ano. Ambos frutos de expedições indigenistas, seguindo notícias sobre “bandos” de

1. Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de
Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação
e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu, com Isael Maxakali e
Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy Vêm Dançar Conosco (2012). Integra o coletivo da Filmes de Quintal.
2.Cf.: Vídeo nas Aldeias: <http://videonasaldeias.org.br/2009/>.
3. Consultar: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos>.
4. O cineasta Adrian Cowell tem uma série de filmes sob esta alcunha. Consultar o acervo disponível na pagina
da Fundação Oswaldo Cruz, acessível em <http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/decada-da-destruicao>.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 211

uma gente “nômade” que estava sendo alvo de toda sorte de violência: aprisionamento,
deslocamento forçado, afugentamento com tiro e cachorros, mortandade por doenças
etc. A primeira expedição, feita nas regiões do vale do rio Turiaçu (atualmente no interior
da TI Alto Turiaçu), onde habitam os índios Ka’apor, encontrou 15 pessoas awá, entre
crianças, homens e mulheres adultos, velho nenhum, habitando 4 casas de acampamento –
tapiris. A segunda deu-se no vale do Rio Pindaré, nas cabeceiras do rio Caru, região
atualmente demarcada no interior da TI Caru, onde também habitam os Guajajara. Esta
segunda expedição encontrou apenas dois “sobreviventes”, dois garotos doentes, cujos
pais e irmãos foram encontrados mortos no antigo abrigo. Segue-se, durante as décadas
1980 e 90, quase uma dezena de contatos ou avistamentos com o objetivo daquilo
que os sertanistas chamam de “resgate”. Por isso, o que se deu com os Awá não foi um
“contato”. O contato oficial com os Awá-Guajá consiste numa série interminável, cujo
episódio mais recente se deu em 2015.5 Além disso, atualmente res(x)istem famílias
em grupos que rejeitam o contato e vivem no interior da TI Araribóia, também habi-
tada pelos Guajajara no estado do Maranhão. Se os Awá estampam o noticiário é mais
por conta dessa porção de sua população que mantêm-se em “isolamento voluntário”.
Mas, provavelmente, vocês já viram os Awá em filme. Foram eles que encenaram, com
Andrea Tonacci, o incrível Serras da Desordem (2006). Inclusive, os Awá protagonistas
do Serras e do Virou Brasil são quase os mesmos, pessoal da mesma aldeia, Tiracambu.
Só que no filme de Tonacci, o protagonismo awá ainda se restringia à mise-en-scène
em frente à câmera. Tratava-se lá, de contar a saga de Karapiru,6 justamente como um
exemplo daquilo que se passou reiteradamente na história dos Awá, no momento da
invasão dos karaí sobre seu território, seus harakwá, sua T/-terra, sua “terra-planeta”,
como diz Davi Kopenawa.
Karapiru é um homem awá que sobrevivera à emboscada de capangas de fazendeiros
invasores em 1978. Os pistoleiros incendiaram o mato e as casas e abriram tiroteio
contra crianças, mulheres e homens. Karapiru escapara das balas e do fogo jogando-se
ao igarapé, levando consigo seu bebê de colo. Sem poder olhar para trás, e saber se
haveria outros parentes vivos, Karapiru segue sua fuga frenética. Seu filho não suporta
e falece. Karapiru continua andando e alcança um lugarejo ocupado por sertanejos no
interior da Bahia. Lá ele é recebido por uma família que lhe abriga temporariamente.
Quase uma década depois em 1987, é “resgatado” por Sidney Possuelo, então coorde-
nador do departamento de Índios Isolados da FUNAI, e seu companheiro, Wellington
Figueiredo. Eles o levam de carro para Brasília. Ao tentar identificar sua língua e sua etnia,
o pessoal de Possuelo convoca Benvindo Xiramuku Guajá, jovem adulto que residia nas
imediações do Posto de Atração do interior da TI Alto Turiaçu, local do primeiro contato
awá-guajá. Tendo sido criado no convívio com os indigenistas, Xiramuku trabalhava
eventualmente para eles e falava português. Poussuelo quis testar a mútua compreensão
linguística entre os homens e tentar desvendar a história de Karapiru. Ao se encontrarem

5. Sobre esse contato, consultar meu próprio artigo: “Outra vez, me deixa em paz, crônicas do (des)encontro tupi
no Maranhão”. na Revista de Antropologia da UFSCAR, 2017 acessível em: <http://www.rau.ufscar.br/wp-content/
uploads/2017/10/4_Renata_Otto_Diniz.pdf>.
6. Conforme Luis Carlos Forlini na Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 11, volume 18(2): 293-302 (2007).
212 ensaios • mostra contemporânea brasileira

em Brasília, Karapiru e Xiramuku percebem que não apenas falavam a mesma língua
(guajá), mas que se reconheciam pessoalmente. Eram pai e filho. Tinham sido sepa-
rados no momento da chacina que colocou Karapiru em fuga para um lado e Xiramuku
para outro. Grande história! Grande narrativa! Grande filme! Serras é um exemplo dos
extermínios awá-guajá, uma história do sertão do Maranhão, com seus coronéis. Mas
também uma história de gente da terra - dos índios antes dos brancos, e dos sertanejos
desvirados índios... Como no sonho de Karapiru, que inicia o filme, Serras conta como
antes a história dos Awá era harmoniosa, tranquila, confortável, idílica até. E como uma
violenta e extravagante passagem os transportou para o tempo de depois: o tempo da
estrada de ferro aberrante, do trem da Vale, este animal monstruoso dos brancos que
chafurdou e cortou o território awá e separou os parentes, muitos em definitivo.
Virou Brasil já se inicia no tempo de depois. Ele parte daí para então voltar atrás, ou
melhor, pelo avesso, para dar a ver a versão awá sobre a sua relação com estes agentes
da morte. Mas também apresentar, amistosamente, as coisas fundamentais de sua
socialidade. Nesse sentido, podemos enumerar várias lindas passagens:

As pegadas de Maxikoa

Maxikoa apanha mangas caídas dos pés nos arredores do posto. Já disseram certa vez
que as aldeias Awá ficam no posto e não o contrário. Mas Maxikoa anda seu andar antigo
mesmo ali. Ela tem o caminhar típico das mulheres e homens awá que viveram muito
tempo habitando na mata, a pisada torce o metatarso para dentro do calcanhar. Assim,
os pés escapam das ramas que poderiam embaraçar a caminhada. São detalhes do
corpo, detalhes do filme que revelam a T/terra-saber. Maxikoa anda como se estivesse
caminhado o seu harakwá, o que significa literalmente meu saber. Para o andar na mata,
se diz wata ka’a pe. Watá se traduz por caçar e andar. Ka’a pe significa lugar da floresta.
Donde se conclui que não se anda por andar na floresta. Mas se anda-caça. Assim como
se constrói o território. Harakwá é uma terra-saber. O saber andar na floresta entre os Awá
constrói sua atenção, seu corpo, sua “(r)ex(s)istência”. As pegadas de Maxikoa o revelam.

O testemunho de uma velha mulher sobre o bem viver

Amy Paranawãj seca fibra de tucum e conta sua própria trajetória. “A gente só comia
capelão e jabuti. A gente não encontrava nem inhame do mato. Quando chegamos ao
cocal, deixamos nossa bagagem lá. A gente foi morando lá. Nosso marido pegando guariba.
A gente assava porque não sabia cozinhar. Uma vez a gente estava comendo, quando
chegou a turma do Xiami. Eles chegaram de surpresa, falando igual karaí. Nosso marido
perguntou: tudo bem, karaí? A gente não conhecia eles, a gente achava que eram mesmo
karaí. Todo mundo ficou curioso querendo saber quem eram. Xiami respondeu: Eu sou
awá também. Mataram meu pai e minha mãe. Depois, eles foram embora e voltavam
para nos visitar. A gente foi se acostumando. Mas eu fiquei gripada, como sempre estou
ensaios • mostra contemporânea brasileira 213

desde então. Nosso marido dava guariba ao Xiami. Nosso marido falava: eu sou índio
do mato mesmo, estou morando aqui, comendo babaçu, só porque no mato acabaram
os frutos. Era bom quando era apenas a nossa família!”.

Uma ausência significativa

Majakaty, que era um garoto pequeno na época em que o Serras foi rodado (início da
década de 2000), hoje, jovem adulto, casado, pai de filhos, talvez dentre todos da aldeia
Tiracambu aquele que mais perfeitamente fala português, não gosta de ser famoso entre
os brancos, por ter sido filmado curumim, garoto nu, se divertindo no acampamento com
seu bicho, o porco, maty. Quando, na aldeia, algum karaí amigo propicia uma sessão do
Serras, Majakaty dá um jeito de sumir. Majakaty também não apareceu no Virou Brasil
(a não ser muito brevemente nas primeiras tomadas, em planos gerais coletivos). Talvez
nos próximos filmes, ele deixe de se ressentir com o enquadramento branco dos Awá
e tome parte no enquadramento awá dos brancos... Todavia, ressalto que o sentimen-
to-atitude de raiva-vergonha de Majakaty não prevalece para a maioria dos Awá. Ao
contrário. Mihaxa’á, por exemplo, que no Serras representou Karapiru jovem, em Virou
Brasil, se compraz em representar a si. Aliás, é ele quem explica a chegada desastrosa
dos karaí sobre seus territórios, e emboca a expressão título, “virou brasil”. Para ele, ou
para seu irmão, Majhuxa’á, e suas respectivas esposas Pakawãj, Ameri, para a mãe deles,
Amy Paranawãj, para a jovem mulher Pinowá e seu sábio marido, Akamaty, para o velho cantor
Kamairu, o grande mestre de cerimônias, renomado em todas as aldeias awá, para todos
eles, o filme desvela um desejo de expressarem-se, de afirmarem e refletirem suas ações.

Presenças míticas

Os irmãos Mihaxa’á e Majhuxa’á estão na frente do “olho da câmera” durante várias cenas.
Eles encabeçam a saída de caça. No caminho, matam uma cobra. Acham uma colmeia no
tronco de uma árvore. Cortam a árvore. Retiram e tomam o mel. Perseguem os macacos
guaribas. Abatem os animais. Alimentam a flecha no sangue da presa. Tomam café. Se
revoltam contra os tratores. Mostram como os trilhos da estrada de ferro cortaram
seus caminhos antigos... Não resisto em comparar essas passagens protagonizadas por
eles, com os episódios em que, os irmãos míticos, Maíra e Mukura, filhos do primeiro
demiurgo, Maíra-pai, vão dando forma ao mundo atual, na medida de suas aventuras no
patamar terrestre, desde que este se descolou do céu. Os dois pares de irmãos (gêmeos),
demiurgos e atuais, contam como o mundo foi estabelecido ou transformado a partir do
que já estava.7 O filme como a vida awá, às vezes, confundem os tempos.

7. Lembro ainda que o nome Majhuxa’á é derivado do nome majhu, que designa uma cobra do tipo jiboia. Esta,
para os Awá, conforme uma versão mítica contada por eles, foi a forma adotada por Maíra pai, para enganar
o urubu-gavião-coruja, Urutá, que era o dono original do fogo. Na forma de Majhu, Maíra fingiu-se de morto e
começou a feder. Assim, atraiu Urutá, para sua carcaça. Urutá ainda hesitou um pouco porque o olho do bicho
214 ensaios • mostra contemporânea brasileira

O mel, primeiro avatar da coleta:

Os caçadores, dentre os quais Mihaxa’á e Majhuxa’á, encontram uma árvore com uma
colmeia. Cortam o tronco com o machado para retirar dela o mel. Ao fazerem isso,
comentam: “Os brancos vão pensar: tudo isso só para pegar mel? Mas nós somos Awá
mesmo!” (aliás, awá é o termo que várias línguas da família Tupi-Guarani empregam para
se referir às pessoas humanas, algo como a gente, mais ou menos como um pronome
inclusivo para a categoria de humanos. Pode ser que ainda adjetivem awá-té, nós, gente
de verdade). “Nós não ficamos parados não! Quando vemos o mel, cortamos logo para
tomar”. O mel é um alimento ambíguo: líquido, que, todavia não serve para matar a sede,
ao contrário, a provoca. Alimento líquido, encontrado preferencialmente durante a seca.
Alimento líquido, todavia, conceitual e empiricamente seco. Alimento, enfim, que não
mata propriamente nem a fome, mas serve, melhor, como uma sobremesa. O mel é um
alimento cozinhado por natureza, apanhado pronto. O mel é um requinte, um suplemento.
O Mel é uma delícia! Um alimento lascivo, como, aliás, os irmãos não deixam de comentar
às risadas: “Você está enfiando a mão no buraco melado! É gostoso!”. “Nossa, eles vão
pensar que você é sujo!” – como quem diz também, ambiguamente, “promíscuo”. Ao que
uma mulher, Ameri, responde: “Não, eles irão pensar: esta é a comida deles! Os brancos
apenas irão pensar: eles comem a comida deles, assim como nós comemos a nossa”.
Sim, ao tomar o mel, eles estão num banquete cerimonial! Os dois casais encenam num
quadro perfeitamente composto, simetricamente espelhados, os dois homens no centro,
ladeados pelas esposas, com os mesmos gestos, os braços coreografados, apanhando e
sugando o mel com ajuda de ramas. O quadro baixo, imóvel, compõe um retrato falado,
uma crônica exemplar da vida awá. Sim, o mel é um alimento fundamental na “dieta”,
e na vida awá em geral. Pois se as “saídas para a mata”, que consistem na prática que
alicerça a economia trivial, podem ter, e frequentemente têm, a extração do mel por
propósito, não há saída para a mata em que não se procure o mel. Assim, o mel pode
ser tomado como avatar da “caminhada”, do andar na mata, “watá ka’a pe”. Enfim, o mel
é o avatar da própria “coleta”.

O guariba, primeiro avatar da caça

Existem outros sujeitos que podem revezar este lugar-avatar da caminhada. A captura
dos macacos guariba, waria, é, melhor, o avatar do watá ka’a pe, quando o motivo é mais
propriamente a caça (do que a coleta). A cena em que os mesmos irmãos perseguem os
guaribas, junto a um grupo maior, ostentando suas coleções de flechas, há um quadro
anterior “vazio” em que se escutam os guaribas cantando alto. Os machos cantam muito!
Por isso são chamados capelões. Os caçadores escalam o alto das árvores, ao modo de
suas presas potenciais. As mulheres falam com eles: “Nossos maridos vão matar vocês,

ainda brilhava e acusava a vida no corpo. Mas não se conteve, pousou sobre ele, no que este lhe desferiu o bote
e lhe tomou a chama original em favor dos humanos. Pois bem, Majhuxa’á, dei-me conta enquanto escrevo, tem
o próprio olho cicatrizado por um ferimento antigo.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 215

porque estamos com fome”. Kamairu, o velho, o mestre cantor, fala na língua deles:
“wam wam wam”. Os bichos são abatidos. As flechas que lhes atingiram são alimentadas
pelo sangue da presa. Se tornarão doravante melhores, mais eficientes, estarão melhor
criadas, como flechas. A caça foi um sucesso, pois o guariba foi caçado!

Por quê cantam os Awá?

O velho Kamairu também se mostra para o filme cantando muito. Os outros homens
também o fazem, mas Kamairu, especialmente, faz questão de anunciar e comentar o
que está ou estão fazendo em cena, por meio do seu cantar. Ele volta da caçada ao waria
cantando: “eles não queriam que a espingarda se mostrasse, mas eu a mostro. Agora não
há mais munição” etc. Noutra cena, Kamairu aparece construindo flechas. Está sentado
no chão apontado a taquara. Ele canta contando isto. Segue cantando, e por meio do
seu canto, conta como foi que aprendeu cantar e porque: Quando ele era bem garoto,
sua mãe perguntou por que ele não subia ao céu? Então, ele foi saber com os homens
adultos. Ele experimentou cantar e uma vez subiu ao céu. Ele viu o céu. Ele canta desde
então. O canto é a chave para a subida ao lugar celeste! Kamairu não se arrisca a perdê-la!
O canto também tem seu momento espetacular no contexto ritual, quando os homens
se paramentam para a grande subida. Aí, o canto é coletivo. Vários homens cantam, as
mulheres respondem cantando também. É noite, a jornada terrestre está terminando,
inicia-se a jornada celeste, aquela que faz colar os patamares de volta. Assim como
tinha sido antes, nos velhos tempos, quando cantam, os homens awá caminham o céu.

••••

Enfim, Virou Brasil coleciona cenas da vida, privada ou pública, que sintetizam a forma
particular da socialidade awá. Mas talvez ainda sua maior riqueza seja tornar evidente
o orgulho com que o fazem. Sua alegria e altivez em demonstrarem-se. Têm certeza
de que o filme é uma oportunidade de ensinar os brancos. Requintam em elaborar a
forma de existir dos brancos. Antes, os brancos não existiam. Chegaram bem depois,
só recentemente. Antes, o mundo já era mundo. Só depois é que, desfortunadamente,
“virou brasil”.
216 ensaios • mostra contemporânea brasileira

CHÃOS
sobre filme de Camila Freitas

Antônio Bispo dos Santos1

No mês de junho do ano de 1995, tive a honra de participar da coordenação de duas


importantes ocupações de terras no município de Canto do Buriti, no estado do Piauí.
As ações faziam parte de uma jornada de lutas chamadas grito da terra Brasil e eram
organizadas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MSTR (Movi-
mento Sindical de Trabalhadores Rurais) e vários outros movimentos sociais que atuavam
e ou atuam no campo. Eu participei como representante da FETAG (Federação dos
Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí). As fazendas ocupadas foram: fazenda
INCA (Indústria Nordestina de Carnes) e Caju Norte. Ambas as áreas faziam parte de
vários projetos agrícolas e ou agropecuários pertencentes a um senhor de Pernambuco
conhecido como Fernando Brasileiro e estavam abandonadas já a algum tempo. Projeto
é a denominação popular, criada para identificar supostas fazendas, que na época
contraíam dinheiro público através de grandes empréstimos… A maioria captava esses
empréstimos através da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste)
e vários outros agentes públicos de financiamento. Os empréstimos geralmente eram
subsidiados, ou a juros muito baixos e com prazos de pagamento a perder de vista…
mesmo assim os supostos fazendeiros, aplicavam uma pequena parte dos recursos,
desviavam uma grande quantia e depois sucateavam o pouco que investiam e quando
chegava o tempo de pagar, geralmente eram agraciados com negociações generosas
que geralmente se transformavam em anistia. Só nos municípios de São João do Piauí e
Canto do Buriti do Piauí, esse moço chamado Fernando Brasileiro, sucateou e abandonou
quatro grandes projetos que hoje são assentamentos do MST.
As ocupações das quais eu participei foram bastante exitosas. Eu fiquei mais tempo
no acampamento – onde hoje é o assentamento – Malhada Inca, por isso é de onde eu
posso faltar com mais pertencimento. Se eu fosse descrever essas ocupações, as pessoas
que assistiram ou assistirem o documentário Chão, poderiam pensar que se tratava da
mesma situação e não estariam erradas, pois mesmo acontecendo em lugares e tempos
diferentes, os personagens, o roteiro e as cenas se assemelham. Então, poderia surgir a
seguinte pergunta… nesse sentido, qual a importância do documentário? Eu pessoalmente

1. Escritor e liderança quilombola na comunidade Saco do Curtume, município de São João do Piauí, é autor de
Colonização, quilombos: modos e significações, publicado em 2015 pelo INCT de Inclusão/CNPq/UNB, com
republicação em 2019.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 217

diria que o documentário Chão vem exatamente comprovar que a história é consequente
e, por assim ser, algumas vezes ela aparece como repetição e outras como permanência…
De forma mais pragmática, o documentário nos ensina sobre a grande capacidade de
percepção, mobilização e comunicação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra) tanto na oralidade, através das palavras de ordem, como na escrita através
de cadastros e anotações que aparecem em várias cenas e audiovisual, através das
belas imagens e falas dos personagens, quando de formas bem articuladas, retratam a
realidade de uma sociedade colonial que ainda hoje, manda para os impérios a maior
parte do seu patrimônio natural.
Diante disso, também pode surgir a seguinte pergunta… o que aquelas ocupações
realizadas em 1995 tem a ver com esse filme e o que o filme tem a ver com elas?... Eu
acostumo dizer que a história, contada só por um lado, não é história, é ficção. Também
acostumo falar que não existem críticas construtivas e críticas destrutivas… críticas são
críticas e ponto! Sem adjetivos e com fundamentos, ao contrário, não são críticas! São
xingamentos! Digo isso para dizer que sou um dos mais ferrenhos críticos dos movimentos
sociais! Crítico e autocrítico. Então é isso que aquelas ocupações que foram realizadas
em junho de 1995, no município de Canto do Buriti no estado do Piauí, tem a ver com
o filme Chão… a questão é essa! Eu estava lá! Eu não era, nem nunca fui do MST, porém,
estou fazendo a crítica e o filme proporciona várias abordagens.
Conforme falei no início do texto, as duas ocupações das quais eu participei como
dirigente sindical dos trabalhadores rurais fizeram parte de uma ação integrada por
vários movimentos sociais do campo, era uma agenda nacional chamada grito da terra
Brasil, que depois passou a ser uma agenda do MSTTR (Movimento Sindical dos Traba-
lhadores e das Trabalhadoras Rurais), enquanto o MST passou a fazer uma outra jornada
de lutas chamada abril vermelho… Vale ressaltar que as duas ocupações realizadas
com êxito, nas fazendas sucateadas Caju Norte e INCA, durante algum tempo, tiveram
orientações políticas compartilhadas, depois ficando apenas sobre a orientação do MST.
Para a Caju Norte, que passou a ser chamada Caju Nossa... foram aproximadamente
três quartos das famílias mobilizadas e apenas um quarto para a INCA, que passou a ser
chamada Malhada Inca… Ah! Você pode estar se perguntando: e qual foi o critério para
decidir sobre quem ia para qual área? Essa foi uma das partes mais bonitas de todo o
processo, senão vejamos: a ideia inicial era fazer as duas ocupações, porém aconteceram
alguns problemas que dificultaram a mobilização e, diante disso, parte da coordenação
avaliava que com as famílias mobilizadas só dava para fazer uma ocupação e a outra
parte defendia que dava para fazer as duas. Nesse caso, como é de praxe, fomos para
a famosa votação em uma assembleia deliberativa e foi aí que nos deparamos com a
seguinte surpresa: três quartos das famílias mobilizadas votaram a favor de uma única
ocupação e seria a Caju Norte porque ainda restava um pouco de infraestrutura e um
quarto votou de fazer as duas ocupações porque queriam ir para a INCA. Resultado?
Uma aula de deliberação, maioria e minoria se respeitaram e cada uma delas foi para
o lado que escolheu. E, naquele momento, eu aprendi que as deliberações encami-
nhadas por maiorias matemáticas, o que convencionalmente chamam de democracia…
são nada mais nada menos que ditaduras coletivas! O que aquelas famílias fizeram
218 ensaios • mostra contemporânea brasileira

foi decidir de forma compartilhada. Como chamar isso, não sei, porém, o resultado
vou dizer no final.
As duas áreas tinham infraestrutura bem diferentes: na Caju Norte, com uma área
de aproximadamente 50.000ha (cinquenta mil hectares), embora sucateada, ainda
sobraram aproximadamente 3.000ha, com algumas cercas e um resto de plantações de
capim e caju. Existiam também algumas casas, não me recordo quantas… ainda tinha
uma rede de energia elétrica instalada, só que estava cortada e com um débito muito
grande. Com relação à propriedade da terra, descobriu-se que eram terras públicas
devolutas, pertencentes ao patrimônio público imobiliário do estado do Piauí. O que a
princípio facilitaria, transformou-se em um grande complicador. É que depois do desen-
cadeamento de várias batalhas tanto no judiciário como no administrativo, na hora que
estava tudo pronto para criar o assentamento, no ano de 2003… o governo do estado
do Piauí, com o aval do Governo Federal, resolveu fazer um convênio mirabolante com
uma suposta empresa chamada Brasil Ecodiesel e lançaram o enigmático Programa
Biodiesel! Não vou aqui me aprofundar nessa parte do biodiesel, pois esse não é mais
um capítulo da mesma história e, sim, mais uma história com muitos capítulos e trabalho
para muitos autores. Já a INCA tinha uma área de aproximadamente 1.800ha, uma casa
sede e seis pequenos açudes construídos em sequência. No entanto, segundo o INCRA
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), as terras eram particulares e por
isso foram desapropriadas e transformadas em assentamento da reforma agrária… Eis
a parte que me anima! Então, esse é o capítulo que falta no filme, ou esse é o filme que
falta no capítulo?... O que em 1995, era a carcaça de uma suposta fazenda e virou uma
ocupação, hoje é o assentamento Malhada Inca. As famílias que ocuparam na época,
hoje são aproximadamente o dobro. E aqueles 1.800ha de terras que serviam para que
uma única família vivesse saqueando os recursos públicos... hoje é um lugar onde várias
pessoas vivem de forma harmoniosa com a natureza e ainda alimentam muitas pessoas
na cidade de Canto do Buriti.
Ah! Você quer dados estatísticos? Temos sim!
No ato da ocupação, eu que fazia parte da coordenação, tinha que estar muito atento a
tudo que acontecia. Foi quando, de repente, um dos companheiros se aproximou de mim
e perguntou… posso dar um tiro? E perguntei como assim? Ele respondeu: eu estou com
vontade de dar um tiro! Então eu falei, olha, se você atirar agora, os outros companheiros
podem pensar que é um ataque e pode complicar tudo. Porém, depois que tivermos
acampados falaremos sobre isso. Quando acampamos e tudo estava tranquilo, chamei
o companheiro e perguntei porque você quer atirar? Ele me prometeu que depois que
atirasse me dizia…Então, concordamos, ele atirou e depois me disse: agora estou feliz!
Atirei e acertei na escravidão! Na minha opinião, a maior estatística sobre um povo é a
sua liberdade e a liberdade é o mais importante produto da Reforma Agrária e de todas
as formas de lutas dos povos! Anos depois, visitei esse companheiro e ele me falou…
quem quiser saber o que é fome não venha para o assentamento Malhada Inca! Aqui
ninguém sabe o que é isso! Com relação à Caju Norte, que virou Caju Nossa e depois
virou Santa Clara, com a intervenção do Estado com o pretexto de produzir biodiesel…
recomendo um turismo desenvolvimentista! Eu prefiro falar das flores!
ensaios • mostra contemporânea brasileira 219

Diante de tudo isso, expresso toda minha gratidão ao MST e a todas as pessoas que
de uma forma ou de outra compuseram esse documentário! Por proporcionar a mim
e, com certeza a muitas outras pessoas, as possibilidades de se reeditar na ficção e
se conectar na realidade. Pois a história sem ficção seria insuportável! Aproveito para
dizer que o Brasil colônia não é o meu país! Porém, os assentamentos, os quilombos,
as aldeias e todos os territórios dos povos e comunidades contracolonialistas são os
nossos CHÃOS! AQUILOMBAR-SE SEMPRE! Abraços contracolonialistas!
220 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Tempo de cultivo
sobre Chão, de Camila Freitas

Vinícius Andrade1

Se eles tivessem o conhecimento que a gente tem, se eles pegassem


a enxada, todos os dias levantassem às 5 horas da manhã, ir pra terra,
trabalhar, plantar e depois colher, eles não tavam fazendo isso com a gente
Lucicleide Maria dos Santos
(liderança do Assentamento Normandia, Caruaru-PE)2

Como ensaiar uma primeira aproximação ao filme Chão, de Camila Freitas, sem pinçar de
sua sequência de abertura a tocante frase “Vou correr atrás do meu sonho”, verbalizada
por uma jovem senhora militante sentada a fitar o horizonte, cabelos grisalhos, perfil
marcado, chamada carinhosamente de vó pelo homem com quem dialoga?3 Aparen-
temente banal, mas selecionada do contexto de uma não menos tocante conversa, tal
frase não tem a ver apenas com seu impacto sensível em quem assiste, ela nos ajuda a
introduzir algumas ideias gerais sobre o filme.
Chão acompanha um conjunto de processos vinculados à luta do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado de Goiás, com destaque para a disputa
em torno da Usina Santa Helena, latifúndio de cerca de 15 hectares dominado pela
monocultura da cana-de-açúcar, em débito com a União, e então legitimamente ocupado
por cerca de 600 famílias de trabalhadores. A experiência de pesquisa com filmes enga-
jados4 nos ensina que um proveitoso método para examinar casos de colaboração entre
documentaristas e movimentos sociais é sondar as maneiras pelas quais a dimensão
formal dos filmes se revela permeável à luta: como um determinado documentário se
organiza narrativamente e cria procedimentos em diálogo com as estratégias de ação do
movimento, como adota recursos para expressar pautas, discursos, slogans e cânticos

1. Doutor em Comunicação Social pela UFMG com pesquisa sobre documentários engajados em lutas urbanas,
mestre também em Comunicação Social pela UFPE.
2. Trecho de matéria feita pela jornalista Helena Dias para o site Marco Zero Conteúdo.
3. São Natalina Cândida e Wilmar Fernandes, o P.C., cujos nomes constam nos créditos finais do filme.
4. Me refiro à tese de doutorado Intervir na história - Modos de participação das imagens documentais em lutas
urbanas no Brasil que concluí em maio desse ano sob a orientação da professora Cláudia Mesquita, a quem
agradeço pelo amadurecimento das reflexões nas quais me amparo neste texto.
ensaios • mostra contemporânea brasileira 221

de luta, como se abre às tomadas de palavra dos militantes, entre outras possibilidades
jamais dadas de antemão.5
Em Chão, nos ocorre que essa permeabilidade encontra expressão decisiva na
temporalidade administrada pelo filme – nutrida na observância a algumas importantes
conversas, gestos, corpos e paisagens, que faz ritmo fora de uma lógica industrial. Ora,
é sabido que o centro de atuação do MST está na terra e trabalhá-la requer tempo, tanto
para o cultivo de diferentes plantios quanto para o cultivo dos modos de existência a
eles associados. Temporalidade paciente do filme, que ecoa o manejo que o solo exige,
o respeito aos ciclos que regem a agricultura (diários e sazonais), em sua escala familiar,
ecologicamente comprometida, orgânica e sustentável. Com isso, do mesmo modo que
“o tempo é luta”, para lembrar inspiradora formulação da professora Amaranta Cesar
em entrevista sobre o cinema de intervenção feito hoje,6 podemos dizer também que
luta é tempo.
Não obstante, numa das sequências finais de Chão, em que um grupo de trabalhadores
se prepara para o ato político de ocupação de uma fazenda, uma das coordenadoras
adverte que não é necessário registrar a ação com celulares, já que alguns militantes
estariam incumbidos de cumprir tal tarefa. Quando o trabalho imediato de circulação
e divulgação das informações de um movimento já está encaminhado, o cinema se vê
“liberado” para operar em fluxo distinto. Lembro, então, outra entrevista, dessa vez de
Renato Tapajós,7 na qual o documentarista afirma que a produção de registros urgentes
abre aos cineastas a possibilidade de construir, numa chave complementar, narrativas
de fôlego diferenciado, aprofundadas.
A temporalidade identificada em Chão parece guiar a proposta que permite ao
documentário acomodar e articular as diversas dimensões que compõem a luta do
MST. Exemplo do que acontece na já mencionada cena inicial, em que o conteúdo da
conversa, o desenho das casas projetado na lousa por P.C., o horizonte recortado pela
janela e fustigado pelos sonhos de Dona Natalina, a “vó”, sugerem um imbricamento
entre resistência, trabalho e sonho. Ou ainda na maneira como o filme transporta uma
pedagogia de luta, interessando-se por reuniões, encontros, bate-papos, em que ressalta
o processo de construção eminentemente coletiva do movimento, a terra enquanto
conquista por se efetivar. E se conquistá-la é um sonho atrás do qual se corre através
do tempo, é igualmente, ou deve ser, um direito.
A ideia de permeabilidade também sugere reflexões sobre as possibilidades e limites
da colaboração estabelecida entre documentarista e movimento social. Este debate não
caberia no espaço deste texto, mas gostaríamos de adiantar uma especulação. Ao optar,
não raras vezes, por manter posições de média distância em relação aos sujeitos filmados,
dosando o que poderia ser confundido com a perspectiva situada dos trabalhadores,

5. Trata-se da ideia de permeabilidade entre cena política (a situação concreta de conflito) e a cena fílmica (as
formas inventadas pelo filme para expressá-la), compartilhada generosamente por César Guimarães conosco
na ocasião da banca de qualificação da tese mencionada na nota anterior.
6. Concedida ao jornalista e militante Chico Ludermir para a Revista Cardamomo.
7. Concedida a membros do Laboratório Multiusuário da Unicamp, a propósito da participação do documentarista
na disciplina “Questões Agrárias e Multimeios”.
222 ensaios • mostra contemporânea brasileira

Chão age não para desacreditar das possibilidades das imagens, mas para nos fazer
perceber melhor suas potências e os pontos de apoio concretos e simbólicos entre
militância e produção audiovisual – que podem ser desde o registro documental de
saberes e práticas forjados nos conflitos com os poderes instituídos, para posterior
transmissão, até a difusão das pautas e reivindicações do movimento, fornecendo lastro
para a expansão de suas alianças.
Planos com relativo distanciamento fazem-se presentes também numa chave mais
convencional, sobretudo para dar conta das plantações de cana. Estas tomadas abrem
e retornam ao final do filme, como fossem responsáveis por nos informar, visualmente,
as circunstâncias adversas que o MST precisa enfrentar. Mas depois de retornarem,
passeamos uma última vez o olhar pelo acampamento Leonir Orback. Ventanias revolvem
poeira e o lugar não parece exatamente o mesmo que conhecemos ao longo da narrativa.
Mas aqui a ação do tempo não sugere um refluir da luta, pelo contrário; atesta que Chão
permanece numa frequência capaz de retroalimentar as energias e vibrações no interior
das quais foi tramado.

Referências
CÉSAR, Amaranta; LUDERMIR, Chico. O tempo é luta: Entrevista com a curadora Amaranta
Cesar. 2017. Disponível em: <http://www.revistacardamomo.com/o-tempo-e-luta-en-
trevista-com-a-curadora-amaranta-cesar/>. Acesso em: 03 de outubro de 2019.
DIAS, Helena. Qual a importância do Centro Paulo Freire?: Fomos à Normandia para
entender. 2019. Disponível em: <https://marcozero.org/qual-a-importancia-do-centro-
-paulo-freire-fomos-a-normandia-para-entender/>. Acesso em: 08 out. 2019.
TAPAJÓS, Renato. Palestra do Documentarista e Escritor Renato Tapajós. 2016. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=W5C_SdCmAQU>. Acesso em: 05 out. 2019
ensaios • sessões especiais 223

Rememorações em Apiwtxa:
a emancipação Ashaninka
sobre Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko

César Guimarães1

Um filme é mais bonito quando a gente deixa ele


guardado por um tempo. Vira história.
Isaac Piãko

“Quando eu via os kampa passando assim, lá no seringal onde nós morava, eu tinha um
amor por esse povo. Aí, quando chegava aquele horror, horror mesmo de ashaninka,
lá, eu achava muito bonito, eu achava lindo, lindo, tudo varejando...”. A voz feminina
que narra esse encontro – amoroso desde o princípio – com o povo Ashaninka vem da
curva do rio Amônia, no extremo oeste do Acre, mas a imagem mostrada vem da região
dos seus parentes no Peru. Vestidos com as kushmas amarronzadas (como a pele da
cobra), dezenas e dezenas deles chegam em suas canoas, lenta e astuciosamente, para
tomarem o gigantesco barco daquele delirante barão da borracha, fã de Enrico Caruso,
que almejava construir uma casa de ópera na cidade de Iquitos, na Amazônia peruana.
Estamos diante de um plano de Fitzcarraldo (1982), mas os indígenas que um dia
atuaram anonimamente – não sem coerção ou violência – como figurantes do controverso
épico de Werner Herzog, deram lugar aos protagonistas de uma saga familiar que se inicia
com uma história de amor proibido – entre Piti (filha do seringueiro Chico Coló) e Antônio
(filho de Samoyri Piãko, o fundador da aldeia de Apiwtxa) –, prossegue rememorando
as trajetórias de luta e resistência do casal, e alcança a atuação de quatro de seus filhos
nos dias de hoje: Wewito, Isaac, Moisés e Benki. Todos envolvidos nas tarefas e funções
da vida em comunidade, distribuídos entre as lidas de professor, liderança política, pajé,
cineasta e manejadores dos recursos da fauna e flora da região.
Em Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko, a cena de conver-
sação em torno da história de amor marcada por um interdito cultural – tenazmente
alimentado pelo preconceito dos brancos frente aos indígenas – se inicia na casa de
Piti, enquanto ela tece no tear (à maneira ashaninka, aprendida com a sogra). Com os
netos brincando ao redor, ela conta sua história aos autores do filme, começando pelo
conflito gerado pela sua decisão de se casar – nas duras palavras do pai – com um “índio
puro”, escolha que “faria vergonha” à família. Decidida a seguir com Antônio para o Peru,

1. Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da FAFICH-UFMG e pesquisador do CNPq.


224 ensaios • sessões especiais

se preciso fosse, ela acaba por ganhar o apoio do pai, que consente na união, embora
contrariado. A mãe, porém, negou-se a participar da cerimônia. Enquanto escutamos
esses episódios, surgem e duram na tela, delicadamente, as fotografias de Piti e Antônio,
em diferentes épocas: mais próximas do nosso tempo (emoldurados no porta-retratos,
como um casal) ou mais distantes, ainda na juventude deles. No retrato da jovem Piti,
as ranhuras e os desgastes da película colorida – marcas da passagem dos anos – não
apagaram a força da decisão sustentada com firmeza e alegria (como se vê no sorriso
dela, que atravessa as épocas).
É também numa cena de conversação de Wewito com seu pai, Antônio, que este
recorda passagens da sua história: ele caçou muito com seus cunhados e tirou muita
pele de gato-do-mato até conseguir dinheiro suficiente para se casar com Piti. Instado
pelo filho (“Pai, conta um pouco do meu avô?”), ele fala do velho Samuel (Samoyri Piãko),
enquanto trabalha na confecção do amatherentsi, o chapéu feito da palha da palmeira
cocão e de penas de arara. Fugindo da patroa peruana que os explorava, Samuel e
outros ashaninka “um dia se cansaram e fugiram”, descendo o rio Amônia até chegar em
Apiwtxa, onde trabalharam por muitos anos, extraindo madeira. A narração de Antônio
é entremeada por fotografias extraídas de coleções de museus etnográficos (como as
que Georg Huebner fez entre os Ashaninka do Peru) e outras realizadas pelo antropólogo
Arno Vogel. Wewito acrescenta suas lembranças do avô: ainda cedinho, ele era visto
tecendo a rede de pescar; de tardinha, dispunha várias esteiras para se sentar, esco-
lhia seu canto, e quando chegava a noite, convidava a todos para beber ayuhasca com
ele. Um pouco mais adiante – após uma cena cotidiana na qual as crianças sussurram
entre si, entretidas perto da fogueira, na manhã friorenta –, o filme expõe o motivo que
o guia, em voz over:
ensaios • sessões especiais 225

Eu, Wewito, e meu irmão Isaac, éramos alunos nas oficinas de vídeo quando gravamos, em
2003, o depoimento de Chico Coló, pai da nossa mãe Piti. A ideia era fazer um filme sobre a
história de nossa família. Fizemos os outros filmes, mas este não. O Vincent retomou a ideia, e
o Isaac encontrou a fita de 2003, que assistimos agora, pela primeira vez, anos após a morte
do velho Chico Coló.

Acionada pelas conversas iniciadas por Vincent e Wewito e combinada em novos


arranjos pela montagem, a rememoração põe as imagens para circular, movimenta o
passado, entreabrindo-o às reflexões e afetos que surgem no presente. O filme plane-
jado em 2003, sobre a história da família de Antônio e Piti, agora se desenvolve diante
dos nossos olhos.

A primeira imagem retomada oferece o testemunho de Chico Coló, ex-soldado da


borracha, pai de Piti. Reunidos à volta de um notebook, Isaac, Wewito, Antônio e Piti
(comovida) reencontram o velho seringueiro. Ele relembra o seu primeiro encontro com
o povo então chamado de kampa e a hospitalidade do líder deles, que lhe oferecera
caiçuma. Gesto exemplar: os povos ameríndios não precisam nem integrar (assimilando
e matando a diferença) nem expulsar o outro que deles se aproxima. Tragicamente, a
recíproca não é verdadeira: os brancos invadem as terras indígenas, devastam seus
recursos naturais e promovem o genocídio dos seus habitantes.
A conversa gravada com Chico Coló será mostrada aos parentes da mãe que moram
na reserva extrativista próxima à cidade de Marechal Thaumaturgo, onde Isaac se candi-
datara a prefeito. Juntos, os familiares comentam brevemente a imagem do passado que
viera ao seu encontro: “Forte, né?” (...) “Parece que tudo tá vivo, né?” (...) “É tudo real”.
Isaac conta que quando vinha pelo rio, gostava de encostar a canoa para conversar com
o avô, que estava sempre atualizado, a par do que acontecia no país e em Marechal
226 ensaios • sessões especiais

Thaumaturgo. A conversa chega no tema da eleição para prefeito, e um dos homens


afirma: “Quando o primo for embora, vai vim um pior que o primo”. Frente ao ceticismo
dos parentes de Piti diante da política, considerada uma irremediável sucessão de
quadrilhas no poder local, Vincent pergunta se Isaac tem chance de ganhar a eleição.
“Acho que dá pra tentar. Tá difícil. Eu não acredito não, por causa do povo, que tem
muito preconceito”, responde o primo sentado na rede, traduzindo o sentimento dos
habitantes da região, que temem, segundo ele, que com um prefeito indígena, toda a
região se transformaria em terra indígena. O prognóstico, pessimista, será contrariado
ao final do filme, com a vitória de Isaac nas eleições. Outra parente relembra o medo
inspirado pelos kampa (conhecidos como grandes guerreiros) que, na época dela criança,
chegavam ao povoado em sua “fieira de canoas”. Hoje as compridas canoas, movidas a
motor, levam para a escola as numerosas crianças que embarcam nos barrancos à beira
do rio, com cadernos e lápis nas mãos.

Ao persistente preconceito sofrido pelos Ashaninka, o velho Samuel já respondera


há muito tempo atrás, quando acolhera Piti e também o irmão dela, Chico Velho, visitado
por Isaac em sua campanha para angariar o apoio dos parentes na candidatura a prefeito
de Marechal Thaumaturgo. Chico Velho viveu por mais de vinte anos na vizinhança de
seu compadre Antônio, ambos dividindo, reciprocamente, o resultado de suas caçadas.
Foi só com a demarcação das terras ashaninka, em 1992, que alguns parentes de Piti
se mudaram para a reserva extrativista do Alto Juruá. Nesse momento, por um breve
instante, a montagem nos conduz de volta à cena da conversa e do tear, quando Vincent
menciona a expressão “caboclos da Piti”, como era conhecida, antigamente, a aldeia
do velho Samuel. Piti narra então o esforço para que os filhos aprendessem a ler e a
escrever, e conta do professor peruano que um dia ela contratou, que dava suas lições
às crianças na praia do rio, escrevendo no chão. Ela própria se valera dos seus conhe-
cimentos para impedir que os comerciantes brancos enganassem os Ashaninka, assim
como se envolvera em vários conflitos para defendê-los. Seu protagonismo nesses
embates com o mundo dos brancos é ressaltado pelo marido, Antônio.
Em sua tessitura de lembranças e relatos, o filme vai pouco a pouco ressaltando
a importância crucial que os Ashaninka deram aos seus projetos de emancipação, a
ensaios • sessões especiais 227

começar por aquele do velho Samuel, como destaca Antônio, ao comentar o processo
de demarcação das terras iniciado com a chegada da Funai: “Tudo aconteceu de maneira
muito rápida, porque já estávamos organizados. O Samuel já tinha um projeto. Não
houve patrão nem desmando que conseguisse desestruturar sua família”.2 É admi-
rável o empenho da comunidade de Apiwtxa em sustentar os seus diferentes projetos,
valendo-se estrategicamente das imagens como um potente aliado, como afirma Isaac
Pyãko: “hoje a gente tem um trabalho de sistema agroflorestal, de repovoamento de
pequenos animais. Eu considero o vídeo, também, como uma forma de pesquisa para
você organizar a questão dos trabalhos”.3
A escola, com suas várias atividades, tendo à frente os professores indígenas, bem
como as diferentes iniciativas ligadas ao ensino das técnicas de sustentabilidade e de
reflorestamento – como o Centro Yorenka Ãtame (Saberes da Floresta), fundado por
Benki em Marechal Thaumaturgo – são iniciativas decisivas para a construção da auto-
-determinação do povo Ashaninka. Em uma das aulas, que reúne crianças, homens e
mulheres de diferentes idades, o pajé Moisés – que também pinta as visões oferecidas
pela ayuhasca – narra os diversos abusos e violências cometidos pelos brancos contra
as mulheres ashaninka, presenciados na sua infância, e que a mãe ajudou a coibir (como
reforça a narração de Wewito). “Os brancos só queriam a nossa derrota, pisavam em cima
da gente”, afirma Moisés, com veemência. Donos de seu discurso e atores da sua própria
história, figurados em variadas auto-mise-en-scènes construídas em aliança com o povo
do cinema (o projeto Vídeo nas Aldeias), os Ashaninka se desvestem dos nomes que
lhe foram concedidos um dia (kampa ou caboclos) e afirmam sua identidade, reatando
sua vinculação com o passado, como diz Antônio, dançando e batendo seu tambor, em
uma das festas de comemoração da demarcação das terras, realizadas anualmente:
“Não fiquem sentados. É assim que faziam nossos antepassados”. Porém, mesmo hoje,
quando estão “unidos em torno de um território”, tendo abandonado o “predatório modelo
extrativista da região” (como diz Wewito), os Ashaninka ainda necessitam de guerrear
em novas frentes, como mostram as passagens retomadas do filme A Gente Luta mas
Come Fruta (2006), de Isaac Pinhanta e Valdete Pinhanta, em que grupos organizados
se põem a fiscalizar e a vigiar a floresta, afugentando os madeireiros e caçadores que
invadem suas terras. O tempo da festa – como naquela caiçumada na qual Chico Velho,
irmão de Piti, canta um forró ao lado de Antônio, seu compadre e antigo companheiro
de caçadas – ainda não se separou do tempo da luta. Entre uma e outra, ao anoitecer –
desde as noites ancestrais, incontáveis – conduzidos pela ayuhasca e pelos cantos, os
Ashaninka ascendem a novos aprendizados, nos encontros com povos e seres – felizmente –
inalcançáveis pelas viagens que os brancos costumam realizar no território dos outros.

2. Vídeo nas aldeias, 25 anos: 1986-2011 (Ana Carvalho Ziller Araújo, organizadora). Olinda: Vídeo nas aldeias,
2011, p. 83.
3.Vídeo nas aldeias, 25 anos: 1986-2011 (Ana Carvalho Ziller Araújo, organizadora). Olinda: Vídeo nas aldeias,
2011, p. 85.
228 ensaios • sessões especiais

Na pele tesa das coisas


sobre Sedução da Carne, de Julio Bressane

Victor Guimarães1

Sedução da Carne começa como um filme de viagem. A câmera explora paisagens


recônditas que ora se descortinam, ora se desarranjam diante do olhar de quem filma –
o próprio Bressane, presente na imagem desde o primeiro plano. Mais do que extensão
do olho, a câmera é uma continuação das mãos: percorre o tronco das árvores, tateia as
pedras, explora mil angulações oblíquas entre a floresta, as montanhas e o mar, enquanto
ouvimos a respiração do viajante e o ruído do vento. Reconhecemos os arredores de
Sils Maria, o vilarejo suíço onde Nietzsche passou seus últimos verões a caminhar e a
escrever algumas de suas obras mais célebres, geografia fundante em Nietzsche Sils
Maria Rochedo de Surlej (Julio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima, 2019). De súbito, o
céu claro de Sils Maria dá lugar a uma menina a mergulhar em câmera lenta, e o rochedo
piramidal às margens do lago de Silvaplana convoca uma praia de mar bravio, de ares
indianos, povoada por pescadores a puxar a rede em meio à algazarra das aves marí-
timas. Novamente, é o sentido do tato que impera: a câmera roça a superfície da corda,
enquanto a vibração do vento no microfone impõe sua força de presença; os movimentos
da imagem intranquilizam o olhar sobre a paisagem, enquanto a banda sonora incorpora
os ruídos da filmagem e faz do ouvido um órgão permanentemente retesado.
Como a filosofia derradeira de Nietzsche, a obra recente de Bressane é um cinema da
imanência. Mais do que adotar os pressupostos filosóficos nietzschianos, porém, trata-se
de desdobrá-los, encontrar uma reverberação formal dessa imanência na carne das
imagens e dos sons. Da deriva na praia oriental, onde umas gotas de sangue se anunciam
na areia, uma elipse – temporal, espacial, cósmica – nos leva ao mergulho concentrado
num espaço cênico fechado, onde uma mulher, Siloé (Mariana Lima), contracena com
um papagaio, uma porção de livros, uma jarra d’água e um prato cheio de carne crua.
A elipse introduz uma perspectiva – narrativa, imagética, corporal – nova: agora é essa
mulher que nos conduzirá pelo filme. Viúva há três anos, ela nos conta que seu marido
morreu de repente, numa viagem que faziam juntos “por lugares quase secretos desse
mundo”. Tudo o que vimos até aqui é tragado pela voracidade da ficção, sem perder nada
de sua presença material. As imagens do prólogo se afirmam em sua imanência carnal,

1. Crítico de cinema, programador e professor. Escreve regularmente na revista Cinética e no portal Con Los Ojos
Abiertos. Contribuiu com publicações como Senses of Cinema, La Fuga, Desistfilm e La Furia Umana. Doutor em
Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3).
ensaios • sessões especiais 229

ao mesmo tempo em que são imantadas por uma força narrativa que, agora sabemos, é
parte do universo ficcional de Sedução da Carne. O filme de viagem que víamos até ali se
transforma em memória enlutada, no mesmo movimento em que a prosa memorialista
de Siloé é encampada por uma encenação que busca a vibração tátil das superfícies: a
pele ou as penas, as páginas dos livros, os objetos de cena delicadamente iluminados,
o suor ou a saliva. “A poesia, a imaginação, os meus sonhos, tudo isso é real” – diz Siloé,
como se reverberasse a empreitada do filme.
A deriva agora não é pela imensidão das paisagens secretas, mas pelos meandros
dessa eremita e de seu reino. Ela nos conta do sexo entre homens e animais – fartamente
documentado nos livros de história da arte que ela folheia – ou das exegeses de João
Ribeiro para os aforismos da língua portuguesa, enquanto a câmera desliza pelas penas
do papagaio ou pelas curvas do vestido de Mariana Lima. Numa súbita aparição de
imagens de arquivo, um microfone ausculta as inscrições gravadas em pedras imemo-
riais ou registra um indígena andino a tocar seu charango. De volta ao espaço cênico, o
som dos arquivos rebate na banda sonora, numa interpenetração que não cessa, como
se o filme se tornasse uma membrana permeável, constantemente vazada pelas cenas
de outrora: os ruídos do mar a perturbar o sono da viúva, a multiplicação insistente dos
pios de pássaro, até que eles passem a operar como acompanhamento musical das
derivas de Siloé pelo espaço. Enquanto a carne se acumula no prato, o corpo de Mariana
Lima se reparte em perambulações, converte-se em superfície pictórica, desfaz-se em
espelhamentos, sombras, desfigurações.
Se o papagaio, no dizer de Siloé, é o “guardião da memória das coisas antigas” –
como o bicho levado dos trópicos por Humboldt, que guardava na voz a língua da
tribo exterminada dos maipuré –, Bressane não é o último zelador da grande tradição
da mise-en-scène entre nós, como quer uma crítica idealista, mas sobretudo um cole-
cionador obsessivo das espessuras acústicas do passado e do presente, um guardião
curioso das intensidades luminosas de ontem e de hoje. Os ecos do passado estão aqui,
junto com os filmes anteriores do cineasta – a obra recente de Bressane é também uma
autobiografia fílmica em processo –, mas sem um pingo de nostalgia. O cineasta que
decide incluir na trilha sonora uma canção interpretada por Nora Ney ou arvora elogios
à prosa elegante e “atenta aos arcaísmos” de João Ribeiro é o mesmo que investiga a
materialidade das câmeras amadoras, deixa vazar as conversas com Rosa Dias na banda
sonora ou constrói um espaço cênico perfeitamente insular, hermeticamente fechado,
para depois implodir o artifício, sempre integrando-o na energia do filme como uma
dobra insuspeita da ficção.
As geografias de algures, as páginas dos livros, a penugem do papagaio, a luz que
vaza pelo tecido do estúdio, a língua vermelha e as cavidades do rosto de Mariana Lima:
tudo é imanência, tudo é proximidade, tudo é superfície imantada. Bressane filma como
quem roça a pele das coisas – que, arrepiadas pelo toque, devolvem a energia em forma
vibrátil. Perto do fim, essa obsessão pelas texturas encontra um anteparo: na convocação
das longas sequências do matadouro de O Sangue das Bestas (Georges Franju, 1949),
não por acaso o filme que, junto com Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), introduzira
Serge Daney em seu longo aprendizado das distâncias do cinema, a paixão carnal de
230 ensaios • sessões especiais

Sedução da Carne encontra seu limite. O olho enfrenta o intolerável. É então que os
pedaços de carne acumulados no prato durante todo o filme se voltam contra Siloé de
forma avassaladora.
Mas, antes do final terrível, a carne será manuseada, vestida, penetrada pela língua
ereta de Mariana Lima, num êxtase triunfal. Ainda que a eremita enuncie que “a matança
diária e industrial dos animais é um espelho de nós mesmos”, ainda que a carne morta
reviva e se rebele contra a protagonista, espalhando-se pela casa e possuindo-a mortal-
mente, Bressane continuará sempre fiel à vida que se aninha na carne das matérias. Do
primeiro plano até o último, Sedução da Carne é um filme sempre teso, de atenção máxima
à sensualidade das superfícies, às suas vibrações imprevistas. Um filme inteiramente
seduzido pelo mistério sob a pele de tudo, testemunha contumaz de suas manifesta-
ções exteriores. No aparente contrassenso da aniquilação da protagonista pela carne
ressuscitada, aninha-se uma lição mais profunda: frente a um cinema cada vez mais
desencarnado, é preciso reencontrar, na pele tesa das coisas, a carne viva do mundo.
ensaios • sessões especiais 231

Tudo que aqui tem


espaço mesmo sem língua
notas à margem de A Febre, de Maya Da-Rin

Ewerton Belico1

Nosso caminho listrado


O caminho encontrando
Venham para cá!
Tronco de tucum-japó
Qual espinhento tronco
Falantes pássaros da terra
Cantando e cantando vêm
Yawa Shokã
(canto para atrair os porcos do mato, por Antônio Marubo)

Em entrevista ao Estado de São Paulo sobre A Febre, Maya Da-Rin afirma: “Para muitos
povos indígenas, a compreensão de uma dimensão mágica ou fantástica é complexa
e não está necessariamente apartada da vida cotidiana. Ou seja, não se trata de uma
fantasia em oposição à realidade; são universos que coexistem e dialogam. Os filmes do
Apichatpong Weerashethakul também trabalham nessa chave2”. Aparentemente, A Febre
se situaria em um campo estético-político cujas coordenadas poderiam ser delineadas
com razoável simplicidade: tratar-se-ia de uma modalidade de inserção dependente
de realizadores provenientes de cinematografias periféricas, na qual a incorporação
de elementos fantásticos em uma roteirização de base realista aludiria à cosmologia
de povos originários, e cujo exemplo mais acabado seria o trabalho de Apichatpong
Weereshethakul.3 Esse campo possuiria uma fatura narrativa privilegiada – o protagonista

1. Ewerton Belico é diretor, roteirista, professor e curador. É um dos curadores do forumdoc.bh - festival do filme
documentário e etnográfico de Belo Horizonte -, e foi ainda curador do Festival Internacional de Curtas de Belo
Horizonte e do Fronteira - Festival de cinema documentário e experimental de Goiânia. Foi corroteirista do longa-
-metragem Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, e lançado na XX Mostra de Cinema de Tiradentes; e corroteirista
e codiretor ( juntamente com Samuel Marotta) do longa-metragem Baixo Centro, vencedor do prêmio de melhor
longa metragem da XXI Mostra de Cinema de Tiradentes. Atualmente desenvolvem o roteiro do projeto A Luta
que não pode Parar, com fomento da CODEMGE.
2. “Maya Da-Rin no termômetro de Locarno”, entrevista concedida a Rodrigo Fonseca, https://cultura.estadao.
com.br/blogs/p-de-pop/maya-da-rin-no-termometro-de-locarno/
3. Sobre essa breve caracterização que faço do cinema de Apichatpong, ver INGAWANJI, May Adalol. “Animism
232 ensaios • sessões especiais

em condição liminar, que oscila entre o mundo moderno e o tradicional, entre o mundo
dos vivos e o dos mortos, frequentemente acossado por uma moléstia inexplicável nos
termos do pensamento ocidental – ao mesmo tempo que oferece uma solução aceitável,
no horizonte de expectativas da crítica que orbita em torno do universo do world cinema,
à nossa tão contemporânea rejeição à ambiguidade e à decepção de expectativas:4 a
informação narrativa que é negada, o plot que permanece fraturado e inacabado, toda
obscuridade enfim é imediatamente imputada ao universo indevassável de um pensa-
mento mítico que permanecerá oculto aos espectadores ocidentais.5

••••

Mas talvez as rotas dessa cartografia não sejam tão claras. Pensemos nos trabalhos
anteriores de Maya, Margem e Terras, nos quais o deslocamento é tanto procedimento
quanto objeto.6 Tomo Terras como exemplo, no qual a dissolução de fronteiras constitui-se
como princípio articulador do conjunto heteróclito de materiais que o compõe. Entre
Tabatinga (Brasil), Letícia (Colômbia) e Santa Rosa (Peru), fronteira tríplice afastada dos
centros metropolitanos de seus respectivos países, na passagem entre as cidades e a
floresta, os deslocamentos são tanto espaciais quanto subjetivos: o barqueiro que leva
passageiros e mercadorias, os taxistas que atravessam incessantemente as fronteiras,
o povo Bora que se espalha pelos três países indiferentes às separações postas pelos
estados nacionais, a vendedora de pupunha que circula entre a floresta e a cidade; mas
também a retomada dos mecanismos de cura tradicionais e dos usos da ayahuasca em
contexto urbano, a crescente presença cristã em contexto indígena, plasmada na cantiga
religiosa entoada em tukano; tudo parece apontar para um universo em que pouco há
de estanque, e no qual as separações, sejam entre pessoas ou espaços, continuamente
se revelam porosas. Terras afigura um imaginário espacial sobre a Amazônia no qual o
urbano aparece atravessado pela mata, em uma incrustação no qual convivem os sons
da floresta e o ruído incessante de motores de motos e de rádios; e ainda deslocados
e migrantes diversos para os quais a floresta é desde sempre um espaço tanto de resi-
dência quanto de trânsito.7

and Performantive Realist Cinema in Apichatpong Weereshethakul”. In: NARRAWAY, Guinnevere and PICK, Anat.
Screening Nature - Cinema beyond human. Oxford/New York: Berghahn Books, 2013
4. Penso aqui no tão frequente quanto infrutífero debate que explode de quando em vez sobre qual posição
política seria afinal “traduzida” por esse filme ou aquele.
5. No caso brasileiro, poderia citar de modo mais imediato Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de Renée
Nader e João Salaviza, como exemplar desse paradigma acima delineado.
6. Talvez pudéssemos traçar um paralelo da trajetória de Maya Da-Rin com outra cineasta-viajante: Marília Rocha
que, assim como Maya Da-Rin, realizou mais recentemente seu primeiro trabalho ficcional, e que também, por
vias próprias, vem realizando um trabalho no qual espaço e subjetividade parecem se cruzar como estrutura
fundante de seus filmes. Sobre isso, ver DUMANS, João. “Um outro espaço”. IN_BRASIL, André e TEIA. IN_TEIA
2002-2012. Belo Horizonte: Teia, 2012.
7. Sobre Terras, ver <http://www.pixfolio.com.br/arq/1458144068.pdf>.
ensaios • sessões especiais 233

A porosidade de fronteiras parece contaminar os modos de apresentação de Terras,


em um ecletismo deliberado que transita entre a entrevista e a observação, renunciando
periodicamente à aderência a esse ou aquele procedimento, hibridismo que destoa
da contradição que se afigurava no documentário brasileiro entre um primado da fala
(realizado na entrevista, em uma herança direta do cinema praticado por Coutinho a
partir dos anos 2000) e um primado do corpo8 (materializado no gosto por personagens
em trânsito, solitários, desenraizados, universo pelo qual transitaram autores e filmes
diversos, tal como Andarilho, de Cao Guimarães).
Há continuidades importantes entre os procedimentos de Terras e Febre: o deslo-
camento constante de suas personagens (sobretudo de seu protagonista, Justino, cujos
espaços que compõem sua travessia diária vemos com uma constância ritmada que
atravessa A Febre; mas há ainda vários outros, representados e anunciados, tal como
de Vanessa, sua filha, cujo anúncio de mudança se ata inextricavelmente ao mal-estar
que contamina a trajetória de Justino); o desenho de som, que cruza os sons da floresta
com os ruídos constantes de máquinas e de motores;9 a iconografia porosa no qual as
sombras e as massas de escuridão parecem irmanar espaços naturais e industriais, em
um procedimento de contágio que germina em Terras; na retomada de elementos de
uma espiritualidade tradicional em contexto urbano; no trânsito constante entre línguas
diversas, cifra da deriva identitária que permeia seus filmes.
Gostaria de chamar a atenção para dois elementos importantes, anunciados nos
trabalhos anteriores de Maya e retomados em A Febre: o primeira deles, uma certa
dialética entre a mudez e a expressividade. Justino é um trabalhador solitário, flagrado
no exercício de um conjunto solitário de atividades cotidianas, no trabalho e em trân-
sito entre sua casa e o porto. A solidão e o silêncio de Justino – que não é o silêncio
de A Febre, sempre povoado por uma banda sonora rica e complexa – atravessam a
narrativa, em um conjunto cíclico de ações que se sobrepõem à ordenação sucessiva
dos acontecimentos. A “falta de palavras e a dificuldade de dizê-las10” parece se cons-
tituir no signo de um duplo lugar social que se materializa em Justino: a do trabalhador
precarizado e a do indígena deslocado para um espaço citadino povoado sobretudo de
indiferença. Seu silêncio, que se irmana com um segundo emudecimento, àquele das
personagens indígenas cercadas pela incompreensão de homens e mulheres brancos,
tem como antípoda um segundo conjunto de segmentos no qual ao silêncio se opõe a
narração: seja em português ou em tukano, Justino é sobretudo um narrador, seja em
feição singularizante – na língua dos estrangeiros, quando fala de sua trajetória pessoal
ao colega de trabalho recém-apresentado, para quem ele é “o índio” – seja na transmissão
de um saber coletivo – agora em tukano – ao contar o mito sobre a caça para as crianças

8. Sobre essa questão, ver VALENTE, Eduardo. “Na fronteira”. IN_ Cinética, outubro de 2009. <http://www.revis-
tacinetica.com.br/terras.htm> e ainda FOSTER, Lila. “O Homem e o mundo”. In: Cinética, abril de 2007. <http://
www.revistacinetica.com.br/caolila.htm>.
9. Sobre o desenho de som de A Febre, realizado por Felipe Mussel, ver a entrevista de Maya Da-Rin constante
em https://cineuropa.org/en/interview/376513/
10. Retomo aqui a expressão de Cláudia Mesquita, constante em MESQUITA, Cláudia. “Os nossos silêncios: Sobre
alguns filmes de Teia”. BRASIL, André e TEIA. In: TEIA 2002-2012. Belo Horizonte: Teia, 2012.
234 ensaios • sessões especiais

que comem. A visão da mata, a febre constante que se segue ao anúncio da mudança de
Vanessa, a criatura cuja sombra parece persegui-lo, figuram uma perda da experiência
coletiva sumarizada na condição do exilado, e expressa na própria impossibilidade de
se expressar: o que se vive não pode mais ser dito, pois se perdeu um horizonte comum
de experiência.
O segundo elemento para o qual gostaria de chamar a atenção é que, se essa dialé-
tica parece retomar em nova chave a ambiguidade essencial de procedimentos que
era fundante de Terras, entre o primado do corpo e o primado da linguagem, também
religa A Febre uma questão essencial do cinema brasileiro dos anos 90 e do começo
dos anos 2000, a dizer: “uma dramaturgia dos espaços e encontros reticentes11”. Ou
seja, uma certa sensação de desidentificação, de não-pertencimento – que se materia-
liza narrativamente no trânsito constante das personagens e que no cinema moderno
era sobretudo cifra da experiência burguesa na modernidade tardia – e que assume
no cinema brasileiro o papel de signo da precariedade ao dar forma à experiência de
personagens marginalizados, conectando “imigração, encontros e desencontros e a
pauta de personagens angustiadas12”.

••••

A título de epílogo, gostaria de mencionar outra fronteira porosa presente em A Febre, a


dizer, aquela entre ficção e etnografia, presente sobretudo no modo como o filme elabora
narrativamente o adoecimento de Justino.13 Indígena Desana,14 Justino pertence a um
povo para o qual a doença “não se reduz a uma simples desordem biofisiológica, mas
integra-se num sistema de explicações que remete ao conjunto das representações do
homem, de suas atividades na sociedade, do seu ambiente natural15”. A condição liminar
de Justino patenteia uma espécie de relação com a natureza que não tem mais lugar no
espaço urbano e moderno onde reside, e que permanece obscura à medicina ocidental
doravante praticada por Vanessa. Sem maiores pretensões de me alongar sobre os modos

11. Ver a entrevista de Ismail Xavier “Wenders marcou a geração dos 90, aponta Xavier”. Folha de São Paulo/
Caderno Ilustrada, São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007. Ver <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/
fq0302200708.htm>.
12. XAVIER, I. Op. Cit.
13. Sobre isso, ver a conversa entre Gustavo Beck e Maya Da-Rin, em “Mysteries of Nature: Maya
Da-Rin discusses The Fever”, Notebook, 13 de agosto de 2019. <https://mubi.com/pt/notebook/posts/
mysteries-of-nature-maya-da-rin-discusses-the-fever>.
14. Os Desana são um dos 15 grupos patrilineares exogâmicos do grupo linguístico tukano oriental que vivem na
região do Uapés, nos dois lados da fronteira colombiano-brasileira. Os Tukano compartilham uma área geográfica
contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura
de coivara, sendo a “mandioca brava” o principal produto. Sobre os tukano, ver “Etnias do Rio Uapés - Tukano”,
Povos indígenas do Brasil, ISA - Instituto Socioambiental <https://pib.socioambiental.org /pt/Povo: Tukano>.
15.BUCHIELLET, Dominique. “Interpretação da doença e simbolismo ecológico entre os Desana”, Boletim do
Museu Emílio Goeldi, série Antropologia 4(1), 1988.
ensaios • sessões especiais 235

como o saber etnográfico é recebido em A Febre – questão que por si só demandaria


uma investigação mais detida – gostaria de concluir chamando a atenção para dois
traços do mal-estar de Justino: seu caráter relacional – uma vez que as representações
da doença, por um lado, põem a pique sua aparente integração ao mundo dos brancos, e
por outro assumem uma dimensão cosmológica, na qual o conjunto de seres que compõe
o ambiente sócio-natural Desana é mobilizado no processo mesmo de adoecimento – e
tradutório – pois a doença e uma possível cura de Justino mobilizam séries de esboços
de traduções possíveis: entre medicina ocidental e dos saberes tradicionais indígenas,
entre o tukano e o português, entre os homens e os animais, entre o mundo dos vivos
e o mundo frio e inerte dos ancestrais.
236 ensaios • sessões especiais

Artistas da fome
sobre Fakir, de Helena Ignez

Jair Tadeu da Fonseca1

“ao distinto público, ouvintes de casa, vou ficar aqui


exposto à audição pública como o faquir da dor”
Jards Macalé e Waly Salomão

“Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Se antes
compensava promover, por conta própria, grandes apresentações desse gênero, hoje
isso é completamente impossível. Os tempos eram outros.” (KAFKA, 1991, p. 23). Assim
começa “Um artista da fome”, conto que o próprio autor escolheu para fazer parte de
sua primeira coletânea de narrativas, no estilo misto de realismo e absurdo que carac-
teriza sua obra, algo relacionável ao filme escrito e dirigido por Helena Ignez, e lançado
em 2019: documentário sobre o “faquirismo” e muito mais do que isto. Pois ao lidar
com algo que para muita gente pareceria absurdo, de uns tempos para cá, mas que fez
parte de nossa estranha realidade, Fakir, como Kafka, projeta tudo isso numa “trama
do cosmos”, conforme se ouve a própria cineasta dizer, ao fim do filme, que pode ser
considerado como parte de um cinema “corpo mais alma” (SGANZERLA, 2010, p. 83).
Trama-se um documentário, num dos sentidos clássicos do termo, a designar um
filme que reúne documentos (principalmente imagens de artigos publicados na imprensa,
de gravações para TV, de memorabilia em geral, depoimentos de voz e locuções) sobre
cenas culturais importantes do Brasil, em décadas anteriores, criando-se também cenas
cineteatrais sobre essas cenas culturais, no presente da realização do filme, mesclando-se
diferentes tipos de registro e ligando-se temporalidades diversas, a indicar-se que as
épocas de antes eram outras, embora correspondam às que se inventam e se “documentam”
no aqui e agora da filmagem e da montagem. Fakir não apenas reúne documentação
sobre o faquirismo – o movimento ou a condição dos faquires e principalmente das
faquiresas no Brasil dos anos 50 e 60, de modo até didático-informativo, mas procura
sugerir, de maneira poético-alegórica, a relação dessa manifestação paradoxalmente
popular e marginal, com a situação do Brasil em geral, e em particular com a situação
da arte e dos artistas no país, especialmente as mulheres.
Quanto à primeira dimensão, histórico-político-social, é notável que a própria realidade
“documentada” permita a percepção das relações entre a cena do faquirismo e a cena

1. Professor de Teoria Literária do Centro de Comunicação Social da UFSC, e pesquisador das relações entre
literatura e outras artes. Poeta e cancionista.
ensaios • sessões especiais 237

político-institucional da época. Por exemplo, mesmo a imprensa e o rádio, que explo-


ravam e alimentavam de modo sensacionalista esses pobres e espantosos espetáculos,
encarregavam-se de apresentá-los como importantes, devido à presença neles de “altas
autoridades civis e militares”, como a de Ademar de Barros (1901-1969), importante
político paulista, populista de direita que, segundo matéria de um jornal, ilustrada com
foto, “entrou em negociações com a esposa do faquir Silki, para colocar pessoalmente no
jejuador a faixa de ‘Campeão Mundial da Fome’”. Em uma sequência seguinte, que trata
da faquiresa Verinha, salienta-se um recorte de jornal, também com foto, no qual se lê
que “uma bandeira do Brasil ao fundo dava uma solenidade quase cívica ao ambiente”.
Sendo tal ambiente a câmara da artista da fome, assemelhada a uma câmara de tortura,
onde se coloca a urna ou cama de pregos, com cobras, para o jejuador ou a jejuadora
ficarem expostos à visitação pública. Tais ambientes são muitas vezes toscos tugúrios,
e em um caso, significativamente, uma sala de cinema popular, o Cineac Trianon, do
Rio. Embora noutro diapasão, cabe lembrar aqui a reflexão de Glauber Rocha sobre
as difíceis condições políticas, econômicas e sociais em que as artes, particularmente
o cinema, se dão em países como o Brasil, através do que ele chamou, em 1965, de
“Estética da fome” (ROCHA, 2004). A fome, como parte da realidade cruel e injusta de
grande parte do povo pobre, é tomada como metáfora não só de tudo o que falta a uma
plena realização artística, mas principalmente como questionamento dessa plenitude
e como entendimento da arte enquanto falta.
Quanto à segunda dimensão acima referida, e que se relaciona à primeira, é a da arte
e dos artistas, principalmente as mulheres e outras forças oprimidas e marginalizadas,
evidenciando-se no filme a relação do faquirismo com o chamado cinema marginal, dos
anos 1960 e início dos 70, e com outras modalidades artísticas, como a da literatura,
principalmente no campo da chamada poesia marginal, e antes no teatro e na canção
pop-popular. Pois o que era considerado lixo cultural passou a ser algo valorizado a partir
da Tropicália, ou Tropicalismo, como parte do que constituiria a cultura no Brasil. Não
por acaso, a cena da boate de O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968),
com uma dançarina e sua cobra, é enxertada em Fakyr, havendo neste, também, trechos
de O Profeta da Fome (Maurício Capovilla, 1970) e de filmes de José Mojica Marins.
Sobre isso, cabe lembrar o que não está no filme de Helena Ignez, mas a ele pode ser
relacionado: as odaliscas e vedetes dos filmes de Julio Bressane e seu recurso zombe-
teiro ao estilo “grosso” da imprensa sensacionalista da época, também encontradiço em
Sganzerla, os cenários de “trens fantasmas” dos parques de diversões mambembes de
Ivan Cardoso e Luiz Rosemberg Filho, os quais também lançaram mão de referências a
gêneros populares, como o da chanchada cinematográfica, e seus antecedentes circenses,
desprezados como de baixo valor, e relativos ao teatro de revista mais pobre, fontes
importantes para os espetáculos de faquirismo, que vinham, de fins do século XIX e
do início do XX, justamente quando surge o cinema, numa Europa que explorava em
caça-níqueis o fascínio popular pelo exotismo orientalista, e pelo bizarro que, também
nos Estados Unidos, se materializou nos freak shows, nas exibições de aberrações e
atrocidades, ou shows de horrores.
238 ensaios • sessões especiais

Confirmando essa importante reconsideração das marginalizadas (as mulheres)


entre os marginalizados em Fakyr, uma sequência visual sucede a um depoimento
verbal em que se afirma serem as faquirezas as fichadas pela polícia, inclusive junto a
prostitutas: a câmera faz um travelling pelas paredes de um interior, nas quais há uma
série de quadros com fotos de algumas das faquiresas, junto a lutadoras de luta livre,
vedetes e atrizes diversas, como Luz Del Fuego ou Marilyn Monroe, e um retrato da
própria cineasta enquanto jovem atriz e “artista da capa”, sem que haja legenda, fala
ou indicação disso, afora o close nessa imagem na parede. Tal discreta autorreferência
faz de Helena Ignez parte solidária daquilo de que trata, sendo seu evidente papel na
direção de cenas cineteatrais do filme e sua própria voz na locução de Fakyr algo que
mostra não haver fronteiras fechadas entre a suposta objetividade documentária e
a subjetivação, entre ficção e “vida real”, entre o quadro histórico-social e os traços
autobiográficos particulares. Nesse aspecto, outro detalhe sutil está em um recorte do
jornal Última Hora a noticiar o concurso da “Rainha das Atrizes”, de que participa uma
das mais extraordinárias personagens da saga de Fakyr, Susi King, a qual aliás apresenta
uma série de nomes grafados de diversas maneiras e estilos. Uma de suas concorrentes,
como se mostra, é a vedete Janete Jane, e não por acaso este é nome que inaugura, em O
Bandido da Luz Vermelha, a transgressiva e brilhante galeria de personagens encarnadas
por Helena Ignez nos filmes que fez com Sganzerla.

Referências
KAFKA, Franz. Um artista da fome. In: Um artista da fome e A construção. Trad. Modesto
Carone. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 22-35.
MACALÉ, Jards; Salomão, Waly. O faquir da dor. In: Aprender a nadar. São Paulo: Rock
Company, 1974. CD. Faixa 1.
ROCHA, Glauber. Eztetyka da fome. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac
Naify, 2004. p. 63-67.
SGANZERLA, Rogério. Corpo mais alma. In: Textos críticos I. Florianópolis: Ed. da UFSC,
2010. p. 83-88.
241

NATUREZA MORTA,
Denilson Baniwa, 2019
Karen Shiratori1

Um satélite baniwa aponta suas lentes para a Amazônia. As imagens produzidas corres-
pondem ao período de 2016 a 2019, anos conhecidos pelo aumento significativo das
taxas de desmatamento e outras formas de destruição da floresta e seus habitantes,
humanos e não humanos. Em janeiro de 2019, o Sistema de Alerta de Desmatamento
do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) detectou 108 quilôme-
tros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal, um aumento de 54% em relação
a janeiro de 2018, quando o desmatamento somou 70 quilômetros quadrados. Já em
junho de 2019, foram destruídos 920,4 quilômetros quadrados de floresta amazônica
contra 488,4 quilômetros quadrados no mesmo período de 2018, segundo o Inpe (Insti-
tuto de Pesquisas Espaciais), cuja política de transparência de dados é um instrumento
fundamental para o monitoramento da Amazônia há mais de uma década. Na sequência
das imagens, o solo nu expõe as cicatrizes deixadas pelo corte raso feito por tratores,
correntões e motosserras; o que aparece inicialmente como mancha de desmatamento
adquire uma nitidez aterradora nas infogravuras vindas do satélite indígena. Elas revelam,
ou melhor, escancaram a destruição da floresta no contorno dos corpos que a consti-
tuem, pois floresta é feita de gente, de aves, de bichos, de plantas, de fungos, também
de microrganismos, em suma, de vidas incontáveis, todas relacionadas num complexo
emaranhado que passamos a chamar de sociobiodiversidade. No chão desnudado, os
contornos do corpo indígena morto, que lembram aquelas marcas feitas para sinalizar
os vestígios da cena de um crime, coincidem com aqueles do avanço predatório dos
madeireiros, fazendeiros, grileiros. A imagem prescinde de legenda, não há mistério:
destruir a floresta é também exterminar os seus povos. Para quem não faz um corte radical
entre humanidade e natureza nem considera floresta uma mercadoria, é isso a natureza
morta, obra do artista Denilson Baniwa. Toda árvore que tomba é o anúncio de outros fins.

Denilson Baniwa é um artista indígena; é indígena e é artista, e seu ser indígena lhe
leva a inventar um outro jeito de fazer arte, onde processos de imaginar e fazer são por
força intervenções em uma dinâmica histórica, a história da colonização dos territórios
originários que hoje conhecemos como Brasil.

1. Doutora em antropologia pelo Museu Nacional. Atualmente, é pós-doutoranda do Departamento de Antropologia


da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Cesta /Centro de Estudos Ameríndios.
242

índice de diretores
index by director

A. Sayeeda Moreno 38 Isabella Rodsil 76


ASCURI 42 Isael Maxakali 13
Adrian Cowell 42 Jacilda Guajajara 62
Affonso Uchôa 64 Jamilson Guajajara 62
Alberto Alvares 63 Jean Rouch 45
Alice Riff 60 Jo Serfaty 66
Aline Motta 40 João Borges 71
Aloysio Raulino 73 João Marcos 76
Arakurania 66 Jocy Guajajara 67
Arawtyta’ia 66 Josafá Veloso 76
Arthur Omar 36 Julio Bressane 74
Bárbara Wagner 65 Karrabing Film Collective 45
Benjamin de Burca 65 Kaxë Mentuk Matis 57
Camila Freitas 59 Kiko Goifman 58
Camille Reis 76 Leila Weefur 37
Carlos Adriano 64 Lemilda Guajajara 62
Castiel Vitorino Brasileiro 41 Letícia Simões 59
Charles Bicalho 43 Lincoln Péricles 72, 73
Chawa Atsa Matis 57 Luiz Pretti 60
Chawa Wassa Matis 57 Mário Kuperman 73
Christopher Harris 39 Matheus Gomes 76
Clara Ianni 40 Maya Da-Rin 75
Clarissa Campolina 60 Milson Guajajara 67
Claudia Priscilla 58 Nuotama Frances Bodomo 38
Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau 75 Nym Smit 76
Coletivo Olhares (Im)Possíveis 61 Pakea 66
Comunidade Maxakali Aldeia Nova Paranya 66
do Pradinho 43 Paula Gaitán 44
Cysi dos Anjos 76 Petua 66
Damba Matis 57 Pollyana Guajajara 62
Damë Bëtxun Matis 57 Rithy Panh 35
Damë Matis 57, 61 Rodrigo Carneiro 57
Dandara de Morais 58 Romeu Quinto 73
Dani Matis 61 Sabiá 66
David MacDougall 44 Shapu Sibo Matis 57
Débora Maria da Silva 40 Shawara Maxakali 43
Débora Vasconcelos 76 Sueli Maxakali 13
Denilson Baniwa 41 Tais Amordivino 62
Fabio Rodrigues Filho 65 Tumi Rieli Matis 57
Germaine Dieterlen 45 Vincent Carelli 71
Guilherme Lisboa 73 Vinícius Silva 63
Gustavo Vinagre 57 Vinijoe 76
Hajkaramykya 66 Wang Bing 35
Helena Ignez 77 Wewito Piyãko 71
Irmãos Carvalho 39
243

índice de filmes
index by film

A Febre 75 e da morte) 45
A Rosa Azul de Novalis 57 Sonhos e Histórias de Fantasmas 66
A-Gente Laranja 41 still/here (ainda/aqui) 39
Aluguel: o Filme 72 Swinguerra 65
Antônio e Piti 71 Tarumã 73
Apelo 40 Tatakox – Aldeia Vila Nova 43
Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Tudo que é Apertado Rasga 65
Meninos Soprando Cana Fina 57 Uaká 44
Banquete Coutinho 76 Um Filme de Verão 66
Bixa Travesty 58 Uma Semente de Ara Pyau 75
Bup 58 Virou Brasil 66
Casa 59 White (Branco) 38
Chão 59 Wutharr, Saltwater Dreams (Sonhos de Água
Chico 39 Salgada) 45
Chico Mendes: Eu Quero Viver 42 Yãmiyhex, As Mulheres-Espírito 13
Dead Nigga Blvd 37 Yvy Reñoi, Semente da Terra 42
Dead Souls (Almas Mortas/Si Ling Hun) 35 Zawxiperkwer Kaa – Guardiões da Floresta 67
Eleições 60
Enquanto Estamos Aqui 60
Entre Casas 76
Entre_Vistas 61
Everybody Dies! (Todo Mundo Morre!) 38
Fakir 77
Filme dos Outros 72
Good-bye Old Man (Adeus meu velho) 44
Jakaira 74
Kapuakit Nëtë – Dia de Caçada 61
Les Tombeaux sans Noms (Túmulos sem
Nome) 35
Ma’e Mimiu Haw – A História dos Cantos 62
Mãtãnãg, A Encantada 43
Motriz 62
Noise+Thirst (Barulho+Sede) 37
O Último Sonho 63
Para Todas as Moças 41
Pontes Sobre Abismos 40
Quantos eram pra tá? 63
Ressurreição 36
Rua Guaicurus 71
Ruim é ter que Trabalhar 73
Sedução da Carne 74
Sem Título # 5: A Rotina Terá Seu Enquanto 64
Sete Anos em Maio 64
Sigui Synthèse (1967 - 1973) - L’invention de
la parole et de la mort (A invenção da palavra
244

organização geral • produção filmes de quintal revisão técnica


Júnia Torres Glaura Cardoso Vale
Carla Italiano Roberto Romero
Layla Braz colaboração
Andreza Vieira Valéria de Paula Martins
Ana Carolina Antunes
Daniel Ribeiro Duarte projeto gráfico & diagramação
Ana C. Bahia
mostra/seminário mortos e a câmera
curadoria arte
Paulo Maia Denilson Baniwa
Natureza Morta, 2019
organização
Roberto Romero gestão e assessoria jurídica
Carla Italiano Diana Gebrim
Júnia Torres Sociedade Individual de Advogados
Diversidade Gestão e Desenvolvimento
mostra contemporânea brasileira
de Projetos
curadoria/seleção
Daniel Ribeiro Duarte produção executiva
Carla Italiano Layla Braz
Ewerton Belico Junia Torres
Layla Braz
captação
sessões especiais Pedro Leal
seleção
coordenação de logística/tradução
Júnia Torres
Ana Carolina Antunes
programa de extensão forumdoc.ufmg
site
Claudia Mesquita
Gustavo Teodoro
Paulo Maia
Mariana Nunes
Ruben Caixeta de Queiroz
vinheta
catálogo Luísa Lanna
produção editorial e organização
Glaura Cardoso Vale redes sociais
Júnia Torres Andreza Vieira
Carla Italiano
245

fotografia/cobertura agradecimentos acknowledgements


Edgar Xakriabá Ademilson Concianza, Adirley Queiroz, Adrien
Vidal-Berthaud, Alessandra Brito, Alice Lamou-
tradução/legendagem
nier, Ana Carvalho, Ana Estrela, Ana Martins
Henrique Cosenza
Marques, Ana Tereza Brandão, André Brasil,
Luís Fernando Moura
André Di Franco, Antônio Bispo dos Santos, Arthur
Pedro Veras
Omar, Bernard Machado, Breno Henrique, Bruno
Roberto Romero
Hilário, Bruno Pinheiro Wanderley Reis, Bruno
Victor Guimarães
Vasconcelos, Roberta Veiga, Nina Gazire, Carol
autoração digital/ projeção forumdoc.bh Almeida, Castiel Vitorino, Célia Xakriabá, César
Hatari Filmes Guimarães, Charles Bicalho, Christopher Harris,
Julio Cruz Cínthia Gil (Doc Lisboa), Claudia Rankine, Cláudia
Vitor Miranda Mesquita, Clarisse Alvarenga, Claudiney Ferreira,
Cristina Amaral, Cristiane Lima, David MacDou-
assessoria de imprensa gall, Daniel Queiroz, Daniela Vargas, Davi de Jesus,
Helga Prado Denilson Baniwa, Diana Taylor, Eduardo de Jesus,
colaboração/assistência de produção Eliane Lopes (IGPA/PUC Goiás), Elizabeth Povi-
Cora Lima nelli, Emmanuel Burdeau, Ernesto de Carvalho,
Fernanda Torres Campos Fábio Andrade, Fabio Rodrigues Filho, Film
Gabriel Nunes da Silva Quarterly, Francisco Rocha, Gabriel Portela
Marcos Afonso Alves Rocha Saliés, Gabriel Sanna, Gabriela Moullin, Gilmar
Mariana Nunes Galache, Giovanna Heliodoro, Heitor Augusto,
Isabel Casimira, Isael Maxakali, Israel do Vale,
colaboração/pesquisa filmes indígenas Jair Fonseca, João Paulo Rabelo, Juca Ferreira,
Ana Carvalho Karen Shiratori, Karime Gonçalves, Kênia Freitas,
Leda Maria Martins, Leonardo Lessa, Luís Felipe
gerência de cinema
Flores, Luiz Soares Júnior, Marcial Godoy, Mateus
Cine Humberto Mauro
Araújo, Matheus Pereira, Michael Boyce Gillespie,
gerente
Miguel Ribeiro, Milene Migliano, Olívia Sabino,
Bruno Hilário
Paula Berbert, Paula Gaitán, Pedro Aspahan,
produção Pedro Portella, Rafael Barros, Renata Marquez,
Julio Cruz Renata Otto Diniz, Renato Sztutman, Rosângela
Mariah Soares de Tugny, Stella Penido, Sueli Maxakali, Tatiana
Matheus Pereira carvalho Costa, Théo Lionel,Tomyo Costa Ito,
Vitor Miranda Vicente Rios, Victor Guimarães, Vinícius Andrade,
estagiária Wellington Cançado, e a todxs xs realizadorxs,
Josi Santos equipes e coletivos que compõem esta 23ª edição
administrativo do forumdoc.bh.
Roseli Miranda
projeção Cine Humberto Mauro
Frames

associação filmes de quintal


Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia
CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil ISBN: 978-85-63837-18-9 (impresso)
filmes@filmesdequintal.org.br ISBN: 978-85-63837-19-6 (eletrônico)
forumdoc.org.br Impressão: Imprensa Universitária da UFMG

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