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Abordagem Centrada na Pessoa

- Relação Terapêutica e Processo de Mudança1


Cecília Borja Santos*

Resumo:
A Abordagem Centrada na Pessoa surge como Inserindo-se na corrente da Psicologia
reacção aos paradigmas psicanalítico e compor- Humanista, a Abordagem Centrada na Pessoa
tamentalista propondo uma diferente visão do ser desenvolve-se a partir da década de 40 nos
humano sobre a qual será criada uma nova forma Estados Unidos da América. Como reacção às
de terapia: a terapia centrada na pessoa. Depois práticas e aos modelos teóricos que então
de caracterizar as ideias-chave destes princípios dominavam a Psicologia e a psicoterapia
e valores, o autor refere a sua relação com os (Comportamentalismo e Psicanálise), Carl Rogers
conceitos fundamentais desta abord a g e m . (1902-1987) traz para a psicoterapia uma
Apresentará seguidamente uma breve caracteriza- diferente perspectiva do Homem e, consequente-
ção da terapia centrada na pessoa focalizando-se mente, uma forma diversa de encarar a pessoa que
nas condições para a mudança terapêutica. pede ajuda e a relação terapeuta/cliente – uma
Palavras-chave: Terapia centrada na pessoa; abordagem não-directiva da relação terapêutica.
Fenomenologia; Tendência actualizante; Não-
directividade; Empatia; Olhar positivo incondi- Contrastando com a ideia que reduz o Homem a
cional; Congruência. uma existência fatalmente determinada por fac-
t o res que, quer do exterior (por exemplo
ABSTRACT: pressões sociais ou culturais), quer do interior
Person Centred Approach appeared as a re a c- (impulsos inconscientes ou características her-
tion to the psychoanalytical and behaviourist dadas) o condicionam na sua capacidade de
paradigms proposing a rather diff e rent con- livre-arbítrio, Carl Rogers vê o ser humano como
ception of the human being witch originated inerentemente dotado de liberdade e de poder de
of a new form of therapy: the person-centre d escolha.
t h e r a p y.
After characterizing this principles and val- Mesmo nas condições mais adversas, mesmo sob
ues the author relates them to the Person- as condicionantes mais severas, o Homem pode
C e n t red Approach basic concepts. preservar e desenvolver alguma capacidade de
P e r s o n - c e n t red therapy will be briefly autonomia e auto-determinação. Sem subestimar
p resented the focus being upon the condi- o impacto negativo que as mais diversas situações
tions necessary to that therapeutic change podem ter sobre o desenvolvimento e o bem-estar
can occur. do indivíduo, Rogers mantém a firme convicção
K ey word s : Person centred therapy; de que o ser humano mantém, em algum grau,
N o n d i rectiveness; Actualising tendency; capacidade para não se limitar a reagir aos acon-
Unconditional positive re g a rd; Empathic tecimentos e a ser por eles conduzido. Pode,
understanding; Congruence. ainda assim, ser um agente criativo na realidade
que o rodeia.

18 • Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca


* Membro da Associação Portuguesa de Counselling e Psicoterapia Centrada na Pessoa.
1
Comunicação apresentada no Serviço de Psiquiatria do Hospital Fernando Fonseca.
Março 2004.
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Por outro lado, o Homem é visto como sendo Para tal, propõe C. Rogers, o terapeuta tentará
intrinsecamente motivado para um processo "ver através dos olhos da outra pessoa, perceber
construtivo. É esta motivação, uma espécie de o mundo tal como lhe aparece, aceder, pelo
sabedoria do organismo, que o leva a sobreviver, menos parcialmente, ao quadro de referência
a manter a sua organização, a sarar, se for interno da outra pessoa"1. A empatia é, assim, o
necessário, e a evoluir na direcção de uma pro- meio através do qual o terapeuta se pode aproxi-
gressiva complexidade e autonomia. mar de um "tipo particular de compreensão dis-
tinto de outros tipos de compreensão resultantes
É a partir destes princípios gerais que a terapia de enquadramentos exteriores, tais como dia-
não-directiva se vai fundamentar. gnósticos, ou julgamentos, ou esclarecimento de
suposições"2.
P ro g ressivamente aprofundadas ao longo do
tempo, as elaborações teóricas que inicialmente Esta atitude do terapeuta é, para C. Rogers, a base
se restringiam à psicoterapia encontraram apli- para o uso do termo «centrado-no-cliente»3. É a
cação em outras áreas como a aprendizagem, os experiência global do indivíduo que constitui o
grupos terapêuticos ou as relações familiares. No foco da atenção do terapeuta. Não é uma mera
entanto, todas estas extensões mantiveram uma etapa inicial do processo destinada a fortalecer a
sólida ancoragem nos princípios e valores que relação, ou um instrumento para melhor identi-
desde sempre estão subjacentes à prática psi- ficar a raiz dos problemas, de forma a que o téc-
coterapêutica justificando a sua inclusão sob a nico possa então passar a dirigir o processo te-
designação mais genérica de Abord a g e m rapêutico da forma por ele considerada como
Centrada na Pessoa. sendo a mais adequada à resolução das dificul-
dades do cliente 4.
I – Conceitos fundamentais da Abordagem
Centrada na Pessoa Sempre conduzida pelo princípio da não-direc-
- Método fenomenológico tividade, a compreensão empática não tem outro
Pondo em suspenso a crença no valor dos juízos, con- fim que não seja o de transmitir ao cliente os ele-
ceitos e teorias a respeito do outro, a terapia centrada mentos e as condições que promovem o exercício
na pessoa enfatiza a importância fundamental da do seu poder de auto-direcção. A relação torna-
experiência subjectiva e pré-reflexiva como critério de -se, deste modo, um fim em si mesma.
conhecimento.
Esta nova forma de terapia, ao propiciar a "rara
Decorrendo desta atitude fenomenológica, o papel do oportunidade de observar tão directa e clara-
terapeuta será assim o de, a partir do ponto de vista mente a dinâmica interna da personalidade é,
fenomenal do cliente, procurar a compreensão da para o clínico, uma experiência profunda de
consciência vivencial da experiência de si e do mundo. aprendizagem"1. Foi este ponto de vista privilegiado

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que, segundo Rogers, lhe permitiu realizar uma no qual a personalidade da criança se desen-
série de observações que virão a fundamentar, ou volve. A existência de um contexto de relações
consolidar, as hipóteses centrais na estruturação interpessoais na qual a criança se sinta aceite e
e no desenvolvimento da sua teoria do processo amada de forma incondicional, é o factor crucial
terapêutico e no questionamento sobre a organi- na evolução de uma personalidade que possibilite
zação da personalidade1. a máxima expressão da tendência natural para a
Refira-se, por exemplo, o postulado básico da actualização.
a b o rdagem rogeriana: a existência de uma
tendência natural para o crescimento e para a A capacidade do ser humano de ter consciência
socialização que constitui, por si, o verdadeiro de si próprio, de reflexão sobre as suas próprias
factor curativo. escolhas, vai marcar decisivamente os seus
processos de actualização. A diferenciação da
Tendência actualizante estrutura do self, funcionando como um instru-
Diz C. Rogers que, dadas determ i n a d a s mento da tendência actualizante, vai abrir novas
condições, as pessoas fazem opções positivas e vias para uma maior complexidade e autonomia
construtivas; isto é, escolhem vias que con- do organismo na relação que estabelece com o
tribuem para o seu desenvolvimento enquanto meio. Uma das possibilidades adquiridas consiste
pessoa 5 . na faculdade de conhecer e avaliar o seu próprio
funcionamento e, em certas condições, reestrutu-
A motivação para tais opções tem origem na rar-se de forma a melhor realizar as potenciali-
tendência actualizante: todas as motivações, dades de actualização do organismo.
necessidades ou impulsos, são uma expressão da
tendência do organismo para a actualização das E assim, juntamente com o sistema motivacional
suas capacidades e potencialidades. Esta tendên- acima referido, o ser humano vai caracterizar-se
cia representa, pois, o único conceito motiva- por possuir o poder de se auto-regular, isto é, em
cional na teoria rogeriana6. função da avaliação da sua experiência, será
capaz de modificar a sua própria estrutura inter-
Sendo sensível às condições do meio, que podem na (o seu self) para atingir os seus fins7.
facilitar ou dificultar a sua expressão, a tendência
actualizante actua, no entanto, de forma perma- Não-directividade
nente e inerentemente construtiva. "São estas duas características – tendência actua-
lizante e sistema de avaliação da experiência –
Estas condições podem ser inúmeras e muito que explicam que o indivíduo tenha o poder de se
diversas, mas C. Rogers atribui importância espe- dirigir a si mesmo e também o poder de reorga-
cial às influências exteriores ao organismo, nizar a sua concepção de self, se esta estiver afas-
nomeadamente à qualidade do relacionamento tada da experiência total do organismo"7.

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A atitude não-directiva encontra aqui o seu fun- realidade global da pessoa – estado de incon-
damento teórico. Ao terapeuta cabe apenas criar gruência. A imagem de si é, então, falseada; são
as condições para que, através daquela relação utilizados critérios de avaliação da experiência
particular, o indivíduo possa reorganizar-se e própria que, tendo sido introjectados directa-
reencontrar a sua própria direcção. O poder que mente de outrem, não são adequados à especifici-
lhe é atribuído, e a inerente responsabilização dade daquele indivíduo. A base reguladora do
pelo seu próprio processo de mudança, repre- comportamento deixa assim de residir nos seus
sentam um estímulo à sua autonomia. próprios critérios e objectivos.
Consequentemente, a avaliação de si mesma, do
II - Relação terapêutica e processo de mudança carácter benéfico ou prejudicial que certas si-
Antes de nos debruçarmos sobre as condições tuações ou experiências poderão assumir para a
necessárias para a mudança terapêutica, será sua realização, dos passos a dar para a resolução
talvez útil caracterizar resumidamente o conceito das suas dificuldades, conduzirá a opções inade-
de incongruência, visto que traduz o estado de quadas e, portanto, a sentimentos de insatisfação,
desajustamento que a terapia reverterá. incapacidade, desajustamento.

Como acima foi referido, a criança necessita de O objectivo da relação terapêutica vai consistir no
se sentir aceite e respeitada na sua singulari- restabelecimento do acordo perdido entre a expe-
dade, de se sentir como merecedora do amor dos riência total da pessoa e a experiência consciente
que lhe são importantes. Quando determinados do self, libertando o cliente para um amadureci-
elementos da sua experiência (desejos, sentimen- mento e um desenvolvimento normais.
tos, necessidades…) são associados ao senti- Para tal, a actuação do terapeuta deve consubstan-
mento de perca desse amor, poderá haver um ciar três atitudes que constituem as condições
afastamento da consciência desses elementos, ou necessárias à criação de uma relação potenciado-
uma distorção do seu significado, de forma a pos- ra de mudança construtiva: a compreensão empáti-
sibilitar a manutenção de um conceito de si como ca, o olhar positivo incondicional, a congruência.
sendo alguém digna de ser amada.
A compreensão empática designa "um proces-
A acção destes processos defensivos é acompa- so dinâmico que consiste na capacidade de pene-
nhada pela interiorização dos valores ou normas trar no universo do outro, sendo sensível à mobi-
que servem de referência ao outro para classificar lidade e significação das suas vivências. Permite
os elementos em causa como sendo aceitáveis ou tomar consciência de sentimentos que ainda não
não. lhe são claros, mas respeitando o ritmo das suas
descobertas próprias (não desvelando precoce-
O self que se vai elaborando sob tais condições de mente) e mantendo uma abertura a tudo o que de
valor estará, em maior ou menor grau, afastado da novo possa surgir"8.

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A procura activa de uma compreensão cada vez ameaçadoras podem então ser abertamente per-
mais precisa e completa do cliente por parte do cepcionadas, exploradas e integradas no conceito
terapeuta propicia, por sua vez, que cada vez mais de si.
experiências possam aceder à consciência do
cliente, possibilitando a revisão e o alargamento A congruência refere-se à consistência interna,
do auto-conceito. ao estado de integração psicológica do terapeuta
no espaço da relação. Pode ser entendida como a
No entanto, esta tomada de consciência não con- preparação do terapeuta para poder experimen-
duz, só por si, a um funcionamento mais integra- tar as atitudes de compreensão empática e olhar
do e saudável. Para assimilar na estrutura do self positivo incondicional3. Se o terapeuta, ele
uma atitude, desejo ou tendência comportamental próprio, estiver incongruente, preso à rigidez das
anteriormente ameaçadores, o seu significado suas próprias defesas, como conseguirá pro-
subjectivo e o seu impacto no olhar do indivíduo mover a fluidez do cliente ou estar aberto à sua
para si próprio têm de mudar9. diversidade e complexidade? Se tiver medo da
dor, como será ele capaz de ouvir e de ajudar o
Para que experiências ameaçadoras possam ser cliente a enfrentar a sua própria dor? Se, na
adequadamente simbolizadas na consciência e relação terapêutica, o terapeuta for confrontado
integradas na estrutura do self, tem de haver uma com experiências que lhe ameaçadoras, como
diminuição das condições de valor que o indiví- manter o seu poder de escuta e de compreensão,
duo se impõe a si mesmo e um aumento na ou mesmo a sua capacidade em discernir os seus
incondicionalidade do seu olhar próprio10. sentimentos dos do cliente?11

O olhar positivo incondicional é uma genuína CONCLUSÕES:


aceitação do outro que se mantém constante inde- A terapia centrada na pessoa e, mais generica-
pendentemente daquilo que o cliente revela sobre mente, a Abordagem Centrada na Pessoa assen-
si, um respeito pela forma como este conduz o tam numa visão do Homem como um ser essen-
processo terapêutico (temas abordados, ritmo do cialmente livre e com o poder de reagir activa-
processo, decisões, etc.), o reconhecimento do mente às situações que o constrangem na sua
seu direito à diferença e à autonomia. auto-determinação, que tentam abafar a sua
individualidade prendendo-o a esquema rígidos
O olhar positivo incondicional do terapeuta de comportamento e de pensamento, em suma,
face ao cliente é a condição básica para a que restringem a sua evolução e crescimento
mudança na terapia centrada na pessoa. A per- pessoais.
cepção desta atitude resulta no enfraquecimento
ou dissolução das condições de valor e aumenta o Tem ainda como hipótese nuclear que a tendên-
olhar próprio incondicional: as experiências antes cia para o crescimento é natural e universal,

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impulsionando o indivíduo no sentido de procu- Bibliografia:


rar realizar as suas potencialidades numa 1. Rogers, C. R. Some observations on the orga-
existência caracterizada pela autenticidade. nization of personality. Consultado em Março, 2003,
através de:
http://psychclassics.york.ca/rogers/personality.htm
A terapia centrada na pessoa propõe-se assim
como um meio de criar as condições interpes- 2. Schlien, J. A. Empatia em psicoterapia. A Pessoa
soais favoráveis à dissolução dos obstáculos que Como Centro, 1998; 1: 40-53.
impedem a livre expressão deste potencial cons-
trutivo e que conduzem ao desequilíbrio psi- 3. Bozarth J. Person-centered therapy: a revolutionary
paradigm. United Kingdom: PCCS Books. 1998.
cológico e ao desajustamento social.
Pela sua natureza fenomenológico existencial, 4. Brissos Lino, J. O paradigma rogeriano da pessoa
elege o ponto de vista fenomenal do cliente como como centro: na perspectiva da liberdade pessoal. A
único critério e modo de conhecimento, dando Pessoa como Centro, 2001; 7: 53:63.
especial ênfase à experiência imediata e pré-
5. Rogers, C. R. A terapia centrada no paciente.Lisboa:
-reflexiva.
Moraes Editores. 1974.

A relação terapêutica que se estabelece com base 6. Brodley, B. O conceito de tendência actualizante na
em tal conjunto de premissas implica uma impor- teoria centrada no cliente. A pessoa como centro,
tante redefinição do papel do terapeuta. Mais do 1998, 2:37-49.
que pelas técnicas ou instrumentos que utiliza, o
terapeuta define-se pelas atitudes que transporta 7. Pagès, M. Orientação não-directiva em psicote-
rapia e psicologia social. São Paulo: E.P.U. 1970.
para a relação e que constituem o verdadeiro fac-
tor impulsionador da mudança. Tendo em conta
8. Hipólito, J. Comunicação pessoal. 1991. cit. Nunes, O. Uma
os princípios que justificam e dão sentido a tais abordagem da relação de ajuda. A pessoa como centro, 3:59-64.
atitudes, elas não são concebíveis na ausência de
uma participação pessoalizada do terapeuta na 9. Barrett-Lennard, G. Carl Rogers’s helping system –
relação. O genuíno interesse e valorização da journey & substance. London: Sage Publications. 1998.
pessoa e da experiência do cliente, a confiança
na sua capacidade em superar as incongruências, 10. Rogers, C. R. A theory of therapy, personality, and
interpersonal relationships, as developed in the client-
o respeito pelo seu direito de ser livre em qual-
centered framework. 1959. In Kirschenbaum, H., &
quer escolha que faça, não são susceptíveis de Anderson, V.L. (Eds.), The Carl Rogers reader (pp.236-
serem reduzidas a fórmulas prontas a aplicar de 257). Londres: Constable. 1990.
forma mecânica e impessoal. A autenticidade do
terapeuta é fundamental numa relação que é, 11.Freire, E. & Tambara, N. A terapia centrada na pes-
deste modo, sobretudo humana. soa: os desafios da clínica. A Pessoa como Centro,
2001; 7: 81-88.

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