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O enfrentamento do

sofrimento psíquico
na Pandemia:
diálogos sobre o
acolhimento e a
saúde mental
em territórios
vulnerabilizados

Edição:

ACESSO À PUBLICAÇÃO

Apoio:
O enfrentamento do sofrimento
psíquico na pandemia:
diálogos sobre o acolhimento e a saúde
mental em territórios vulnerabilizados

Organização: Paulo Amarante (Laps/Ensp/Fiocruz e Abrasme), Annibal Amorim (IdeiaSUS/Fiocruz), Ana


Paula Guljor (Laps/Ensp/Fiocruz e Abrasme), José Paulo Vicente da Silva (IdeiaSUS/Fiocruz) e Katia
Machado (IdeiaSUS/Fiocruz)
Revisão e Diagramação: Katia Machado (IdeiaSUS/Fiocruz)
Capa: Gilvan Mariano (IdeiaSUS/Fiocruz)
Apoio Administrativo (bolsista): Mayara Temoteo Gonçalves (IdeiaSUS/Fiocruz)
Publicado por IdeiaSUS/Fiocruz, em www.ideiasus.fiocruz.br
Parceiros Editoriais: Laps/Ensp/Fiocruz e Abrasme
Permitida a reprodução, desde que citadas as fontes: IdeiaSUS/Fiocruz; Laps/Ensp/Fiocruz; e Abrasme.
Livro digital, formato A4, pdf, 82 páginas
1

Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública

E56e O enfrentamento do sofrimento psíquico na pandemia: diálogos sobre o


acolhimento e a saúde mental em territórios vulnerabilizados /
organizado por Paulo Amarante... [et al.] ― Rio de Janeiro:
IdeiaSUS/Fiocruz, 2020.
82 p.

ISBN: 978-65-88986-00-4
Inclui Bibliografia.
Site: www.ideiasus.fiocruz.br

1. Saúde Mental. 2. Pandemias. 3. Infecções por Coronavirus. 4.


Acolhimento. 5. Vulnerabilidade Social. 6. Estresse Psicológico. 7. Sistema
Único de Saúde. 8. Saúde do Trabalhador. 9. Atenção Psicossocial I.
Amarante, Paulo (Org.). II. Amorim, Annibal (Org.). III. Guljor, Ana Paula
(Org.). IV. Silva, José Paulo Vicente da (Org.). V. Machado, Katia (Org.).
VI. Título.

CDD - 23.ed. – 362.2

1
SUMÁRIO

1. Apresentação ........................................................................................................................ 01

2. Visões da Saúde Mental sobre a Pandemia ......................................

2.1. La América Latina enfrentó el Coronavirus?, de José León Uzcátegui ..................02 2

2.2. Vulnerabilidad social en tiempos de pandemia. Hacia la construcción de políticas


de cuidado en salud mental en Argentina, de Alejandra Barcala e Silvia Faraone ........... 05

2.3. Por um triz, de Rogério Giannini ................................................................................. 09

2.4. Almost (tradução), de Rogério Giannini .................................................................... 12

2.5. A Pandemia, territórios vulnerabilizados, pessoas em sofrimento psíquico e o


“novo normal”, de Annibal Coelho de Amorim ..................................................................... 15

2.6. Covid-19: perspectivas para a formação de recursos humanos em Saúde Mental,


de Ana Paula Freitas Guljor, Leandra Brasil da Cruz e Paulo Amarante ........................... 19

3. Paradigmas do cuidado em saúde mental ........................................

3.1. Cuidado em Saúde Mental no SUS: desafios e invenções na atenção às crises em


contexto de pandemia, de Ana Regina Machado, Anna Laura de Almeida e Celina Maria
Modena ............................................................................................................................................ 22

3.2. The Psychological Impact of a Pandemic: Let’s Not Pathologize Our Suffering, de
Robert Whitaker ........................................................................................................................... 25

3.3. O impacto psicológico da pandemia: contra a patologização de nosso sofrimento


(tradução), de Robert Whitaker ................................................................................................ 28

3.4. Trabalhadores da saúde na linha de frente da Covid19: implicações para a saúde


mental, de Luciene de Aguiar Dias e Sônia Regina da Cunha Barreto Gertner................ 32

3.5. O impacto na saúde mental dos trabalhadores da saúde no frontline: reflexões


e desafios, de Luciana Bicalho Cavanellas e Marcello Santos Rezende .............................. 36

3.6. Subjetividade e gestão da clínica no combate à Covid-19, de Luna Cassel Trott


e Paulo Amarante .......................................................................................................................... 39

2
4. Redes de Atenção à Saúde Mental na pandemia ..............................

4.1. Redes de Atenção Psicossocial: desafios do cuidado em tempos de pandemia, de


Ana Paula Guljor e Paulo Amarante ........................................................................................... 42

4.2. A força das articulações dos Centros de Atenção Psicossocial no território em


tempos de Covid-19, mapeada na ação de extensão universitária, de Maria Goretti
Andrade Rodrigues ....................................................................................................................... 45 3

4.3. Liberdade e inclusão: bases de um serviço de atenção à saúde mental, de


Francisco Sayão .............................................................................................................................. 48

4.4. A Pandemia de Covid-19 e a questão dos hospitais psiquiátricos, de Rafael


Wolski de Oliveira ........................................................................................................................ 52

4.5. O efeito da distância segura no afeto dos inviabilizados em tempos de Pandemia,


de Daniel de Souza e Valeska Holst Antunes ......................................................................... 55

4.6. Como um serviço universitário reinventou o acolhimento e o enfrentamento do


sofrimento psíquico: relato de prática, de Osvaldo Takeda ................................................. 58

5. Sociedade e Covid-19 .........................................................................

5.1. Como a sociedade civil tem atuado durante a Covid-19?, de Eroy Aparecida da
Silva ................................................................................................................................................... 61

5.2. Encontros e Memórias: Loucura na rede, de Ariadne de Moura Mendes .......... 64

5.3. Movimentos antimanicomais na pandemia: como estão enfrentando estes?, de


Ed Otsuka ........................................................................................................................................ 68

5.4. Pandemia: as prioridades da contrarreforma psiquiátrica, de Katia Liane


Rodrigues Pinho e Leonardo Pinho ........................................................................................... 72

5.5. Como a Terapia Comunitária Integrativa tem ajudado pessoas a enfrentarem o


sofrimento durante a Pandemia da Covid-19?, de Milene Zanoni da Silva, Adalberto
Barreto, Josefa Emília L. Ruiz, Jussara Otaviano, Maria Lucia A. Reis, Maria José
Mendonça, Walfrido Kühl Svoboda, Catalina Baeza, Maria de Oliveira F. Filha .............. 75

6. Autores e organizadores do livro: quem somos? ................................................... 79

3
APRESENTAÇÃO Psicologia (CFP) e do Conselho
Nacional de Direitos Humanos
(CNDH), por meio de sua Subcomissão
Ainda no início da Pandemia da Covid- de Saúde Mental, o 3º Encontro Virtual
19, a Fiocruz lançou uma chamada IdeiaSUS promoveu um rico debate
pública para apoiar ações emergenciais sobre o enfrentamento do sofrimento
junto a populações vulneráveis. O psíquico em meio à pandemia de Covid-
adensamento nas favelas e periferias, 19. 1
bem como em áreas mais distantes das
metrópoles, como territórios indígenas E foi dessa parceria, na realização do 3º
e quilombolas, tornou-se um fator de Encontro Virtual IdeiaSUS, que nasceu a
preocupação, com vista à propagação do ideia de publicação deste livro, sob o
coronavírus. Em um vasto universo de título “O enfrentamento do sofrimento
iniciativas que buscavam amenizar os psíquico na Pandemia: diálogos sobre o
impactos da pandemia, a Fiocruz acolhimento e a saúde mental em
selecionou 145 projetos de diferentes territórios vulnerabilizados”. Reunimos
regiões brasileiras, que buscavam nesta publicação, buscando a reflexão
construir redes de solidariedade e, ao sobre os cuidados em saúde mental e o
mesmo tempo, apresentavam soluções sofrimento psíquico em meio à
criativas para problemas bastante Pandemia de Covid-19, um total de 23
conhecidos da população. artigos, sendo duas traduções,
produzidos a partir de um convite feito
Decorridos mais de seis meses da a pesquisadores, trabalhadores e
Pandemia, a Plataforma Colaborativa militantes da Saúde Mental e da Atenção
IdeiaSUS, sob a coordenação da Psicossocial, atuantes no Brasil, na
Presidência da Fiocruz, buscou América Latina e nos Estados Unidos.
estabelecer sintonia com tais esforços,
promovendo o compartilhamento O material aqui disponibilizado,
desses projetos em três debates virtuais. organizado pelo IdeiaSUS/Fiocruz,
O primeiro encontro deu voz a Laps/Ensp/Fiocruz e Abrasme, é de livre
iniciativas da chamada pública da Fiocruz acesso e reprodução, representando
que estavam sendo desenvolvidos em mais um momento em que a Fiocruz e a
favelas e periferias urbanas do país. O sociedade civil reafirmam sua disposição
segundo reverberou as vozes das de continuar dando visibilidade àqueles
florestas, do campo e das águas, em um que juntos trazem reflexões valiosas
debate com lideranças indígenas, acerca da temática da saúde mental e da
quilombolas, caiçaras e pescadores atenção psicossocial, de temas que
sobre os impactos da Covid-19 em seus ganham destaque em meio a medidas
territórios. A terceira edição desta necessárias de isolamento e
proposta, por sua vez, oportunizou a distanciamento social no enfrentamento
troca de ideias entre projetos de da pandemia de Covid-19.
acolhimento e cuidado em saúde mental
em territórios vulnerabilizados. Desejamos um boa leitura!

Com apoio do Laboratório de Atenção Annibal Amorim e Katia Machado


Psicossocial da Escola Nacional de Saúde
(IdeiaSUS/Fiocruz)
Pública (Laps/Ensp/Fiocruz), da
Associação Brasileira de Saúde Mental
(Abrasme), do Conselho Federal de

1
La América Latina de sus familiares, la falta de personal
sanitario en los centros de atención, la
enfrentó el Coronavirus? escasez de medicamentos e incluso de
alimentos por las medidas de
José León Uzcátegui emergencia y las carencias provocada
por esta invasiva enfermedad, las
abiertas y encubiertas acciones de
Los gobiernos de América Latina, en su violencia en sus distintas modalidades 2
mayoría, no han podido ni sabido que se incrementan, entre otras
enfrentar el Coronavirus. Sus sistemas falencias.
de salud, ni son sistemas ni son de salud.
Son agregados de instituciones que Así las cosas, se impone la necesidad de
atienden de manera ineficaz e ineficiente otra mirada, de plantearse otro enfoque
las enfermedades. Las políticas sobre el carácter de esta pandemia. El
neoliberales en unos casos modelaron coronavirus es lo coyuntural, es el
estructuras sanitarias que conciben la acontecimiento de este momento
salud como una mercancía, y en otros histórico, en términos de una calamidad
casos, como Brasil o Bolivia, vienen cuyas características han sido
desmantelando los sistemas de salud ampliamente divulgadas. Sin embargo, lo
universales, gratuitos y únicos que se esencial, lo que se pone en evidencia es
construyeron en gobiernos progresistas. la crisis estructural que generó esta y
Es la diferencia entre concebir la salud provocará nuevas pandemias. Y no se
como un derecho, en consecuencia, el trata solo de enfermedades, es la crisis
Estado tiene la responsabilidad de global, planetaria, del sistema-mundo
garantizarla, o concebirla como una capitalista. Comprende una crisis
mercancía, en cuyo caso cada individuo económica, política, social, ambiental, y
o familia tiene que comprar en el ética, global. Y más allá aún, afirmamos
mercado la posibilidad de recuperarse que se trata de la crisis de una manera
de la enfermedad. Pero además, en los de vivir, de una manera de producir, de
gobiernos neo-liberales, lo fundamental organizarse; de una manera de
es la economía mientras que la salud y la alimentarse, de curarse, de educar, de
vida de la población ocupan un rol criar los hijos, de amar. Se trata de una
secundario1.No es posible enfrentar con crisis civilizatoria2. El progreso, el
éxito esta, ni cualquier otra pandemia, si crecimiento, el desarrollo resultaron
no se entiende y acepta que la salud es mitos de la modernidad, que nos han
un derecho y no una mercancía. conducido al caos y al desastre3. Este
modelo civilizatorio mercantil basado en
Si esto es válido para la salud en general, la ganancia y el lucro está poniendo en
con más énfasis se evidencian las peligro la vida humana sobre el planeta;
consecuencias que esto tiene para la un modelo patriarcal, antiecológico,
salud mental de la población, para las colonial, racista, clasista, que está
personas con sufrimiento psíquico. Los llegando a su fin: el capitalismo, y lo que
excluidos de siempre, los que apareció como su opuesto, el
permanecen en cuarentena obligatoria, socialismo, resultó capitalismo de
las víctimas del modelo manicomial aún estado. Esta pandemia es expresión de
imperante en nuestra América Latina una crisis civilizatoria que nos lleva a la
ahora padecen el doble encierro: el del necesidad impostergable y urgente de
manicomio o el asilo y el obligado por la construir una nueva manera de vivir.
pandemia. Sus carencias y padecimientos
se multiplican: la poca o inexistente visita

2
Enfrentar el Coronavirus en América a los demás saberes. Que no podemos
Latina ha sido obra de los gobiernos. El ni debemos seguir atrapados en la
fracaso, en general, con pocas camisa de fuerza del positivismo y la
excepciones, ha sido evidente. El gran racionalidad instrumental. Que el
ausente en esta amenaza planetaria ha pensamiento eurocéntrico y la
sido la participación activa, consciente y colonialidad del poder, del saber y del
crítica de la gente, del poder del pueblo ser impuestos por la modernidad
organizado. provocaron un epistemicidio que 3
debemos superar como condición para
Este acontecimiento universal nos salir de la barbarie en que nos han
pudiera estar mostrando enseñanzas y sumido y condenado. Se impone un
dando lecciones que ojalá tengamos la encuentro de saberes, una nueva
sabiduría de saber interpretar. construcción epistemológica desde el
sur, desde nuestra Abya-Yala5.
Una primera lección nos muestra que el
ser humano, supuestamente la parte Una cuarta lección, nos obliga a un
inteligente de la madre tierra, se ha proceso de repensar nuestros esquemas
convertido en un peligro para la vida conceptuales en relación a la salud y a la
sobre el planeta4. Que la tierra no nos salud mental en particular. La pandemia
pertenece, que nosotros le ha sido una demostración de la
pertenecemos a ella. Que lo que le impotencia e incapacidad de hacerle
hagamos a la Pacha Mama nos lo frente ya que se ha intentado desde una
estamos haciendo a nosotros mismos. visión biologicista, mercantil y utilitaria
Que la locura por el dinero y el poder de la vida. Es otro el enfoque posible y
de unos pocos está desencadenando necesario que se ha venido
tragedias como este virus y los que construyendo desde la Medicina Social,
probablemente seguirán apareciendo. Se la Salud Colectiva, la Epidemiología
impone construir una civilización Crítica, y más recientemente desde la
biocéntrica, no antropocéntrica, en la cosmogonía indígena andina ancestral
cual el centro sea la vida. con los conceptos del Buen Vivir/ Vivir
Bien. Mucho que aprender, mucho que
Una segunda lección, es la necesidad de construir, pero ahora desde el sur,
construir juntos, colectivamente, una desde nuestros ancestros, que van
nueva manera de vivir, de pensar, de alumbrando el camino6, 7, 8.
organizarnos, de producir, de
alimentarnos, de jugar, de convivir; de Así, los ejemplos se multiplican, las
estar en paz consigo mismo, con el otro, lecciones van apareciendo solas: se
con los otros y con la naturaleza. La impone repensar la relación estado-
crisis civilizatoria que estamos viviendo sociedad: de una sociedad
nos obliga, por razones de mercadocéntrica (capitalismo), luego
sobrevivencia, a construir una sociedad devino otra estado-céntrica (socialismo
post-capitalista: humana, solidaria, justa, como capitalismo de estado), ahora
equitativa, ecológica, basada en aparece la posibilidad de marchar hacia
principios y valores no mercantiles. una sociedad socio-céntrica en la cual la
sociedad controle al estado y al
Una tercera lección, plantea repensar mercado9; plantearse que la industria
los saberes. Entender que la ciencia es farmaceútica-tecnomédica y los medios
una manera de conocer, pero es una masivos de información monopolizados
más, no la única; que debemos abrirnos por el Estado o el mercado sean
controlados por la sociedad organizada;

3
de esta manera ir avanzando hasta Disponible
donde los poderes creadores del pueblo en:https://elsiglo.cl/2020/03/23/el-
sean capaces de despertar en su desastre-perfecto-para-el-capitalismo-
potencialidad infinita para que a partir de de-desastre/.
una amenaza de muerte como la actual
nos propongamos construir, desde 5. De Sousa Santos, B. La crisis del
abajo, con la gente, una sociedad de coronavirus. Entrevista. Ethic: 8 julio
justicia, de paz y de abundancia para 2020. 4
todos y todas.
6. Huanacuni, F. Buen Vivir/ Vivir Bien.
Es un sueño, una utopía… quizás, pero Guayaquil: Oxfam; 2018.
la pandemia pudiera ser la campana, el
aldabonazo, la última advertencia de que 7. Acosta, A. “El Buen Vivir, más allá del
es ahora o nunca; que si dejamos que desarrollo”. En: “Buena Vida, Buen Vivir:
continúe imperando la vieja normalidad, imaginarios alternativos para el bien
la de la miseria, la explotación y la común de la humanidad”. 2014. Libro en
dominación, o no advertimos que la línea. Disponible en:
llamada nueva normalidad que nos http://www.giandelgado.net/.
quieren vender es peor que lo anterior,
nos estamos condenando
8. Atreyu “El buen vivir. La alternativa de
definitivamente a un proyecto tanático,
los pueblos a la crisis mundial”. 2012.
a una tragedia de enfermedad y de
Jornadas en Álava. Disponible en:
muerte.
http://filosofiadelbuenvivir.com/.
Quizás llegó la hora… y tendríamos
9. Cunil, N. “La rearticulación de las
entonces que darle hasta las gracias al
relaciones Estado-Sociedad: en
Coronavirus si nos hace despertar de
búsqueda de nuevos sentidos”. En:
esta pesadilla en la cual nos mantuvieron
Revista de Economía y Ciencias
sometidos.
Sociales,2 (4), 79-106; 1996.
Referências bibliográficas

1. Butler, J. “El utilitarismo está


dispuesto a dejarnos morir para que la
salud de la economía se mantenga
fuerte”. 2020. Disponible en:
https://www.latercera.com/culto/2020/0
5/26/judith-butler .

2. Lander, E. Crisis civilizatoria.


Guadalajara: Editorial Universitaria;
2019.

3. Bautista, R. Del mito del desarrollo al


horizonte del Vivir Bien. La Paz: Karpos;
2017.

4. Boff, L. “El desastre perfecto para el


capitalismo de desastre”.2020.

4
Vulnerabilidad social en sociales, de usuarias/os, agrupaciones
sindicales, gestores de políticas públicas
tiempos de pandemia. y trabajadoras/res del campo de la salud
Hacia la construcción de y los derechos humanos – instituyeron
políticas de cuidado en ámbitos de intercambio y debate en los
cuales la protección de la salud mental
salud mental en fue paulatinamente conformándose
Argentina como un componente central para com- 5
prender la dimensión del sufrimiento
psíquico que la pandemia producía. Así
Alejandra Barcala y Silvia Faraone
las condi-ciones de vida y el entramado
intersubjetivo y comunitario ligado a la
La irrupción inesperada de la pandemia salud mental es-tuvieron fuertemente
provocada por el SARS-CoV-2 ha tenido presentes en el debate público. Tal es así
un fuerte impacto sobre las distintas que a los fines de apor-tar a una
dimensiones de la vida social, económica construcción de políticas y prácticas que
y cultural, que transformó las prácticas incluyeran la dimensión de la subjeti-
institucionales, las tramas vinculares y vidad, a los expertos asesores del
produjo un profun-do impacto en la presidente de la Nación, en un principio
subjetividad. En Argentina la pandemia, infectólogos y epidemiólogos, se
al igual que en otros países de sumaron profesionales del campo de la
Latinoamérica, no sólo involucró salud mental.
múltiples cambios en las áreas sanitaria,
social, de género, política y económica, Si bien en Argentina los primeros casos
sino que además se desarrolló en un de contagio estuvieron vinculados a
contexto de vulne-rabilidad social que regresos de viajantes del extranjero, es
deja al descubierto la profundización y decir en grupos sociales de estratos
reproducción de las desigual-dades ya económicos más elevados,
existentes. También puso en evidencia posteriormente la enfermedad se
las enormes diferencias en el acceso a expandió hasta afectar a todos los secto-
bienes y servicios presentes en las res sociales y con mayor impacto en
distintas provincias y ciudades del país1. poblaciones en situación de
Cabe des-tacarse que la pandemia vulnerabilidad que su-fren inequidades
comenzó unos meses después de asumir históricas; es decir, a personas que viven
un nuevo Gobierno y con un Estado en barrios populares (en condiciones de
prácticamente arrasado en lo hacinamiento, con dificultad de acceso al
económico, social y sanitario, espacios agua potable, los alimentos y las
que el neoliberalismo había atacado con tecnologías digitales, entre otros),
saña2. familias migrantes y pueblos originarios,
perso-nas internadas en geriátricos,
Bajo la consigna de defensa de la vida, las cárceles, hogares de niñas/os y en
medidas tempranamente adoptadas de instituciones monova-lentes por
ais-lamiento social preventivo y razones de salud mental y/o consumo
obligatorio constituyeron un problemático. Estas últimas vieron
instrumento indispensable para evitar la incrementadas las violencias
masificación de contagios y muertes, institucionales, así como los procesos de
como sucedió en países como China, exclusión, discri-minación y vulneración
España e Italia. A partir de esto, distintos de derechos. Según diversos análisis, la
actores del campo de la salud ment – pandemia de Covid-19 muestra la
como universidades, movimientos velocidad con la cual la explotación

5
capitalista y la desigualdad radical en- ministerio, por lo que el Gobierno
cuentran formas de reproducirse y dispuso medidas para recuperar la
fortalecerse y, tal como señala Paul jerarquía que históricamente había
Preciado3, ma-terializa e intensifica a asumido y avanzar aceleradamente en un
toda la población las formas dominantes importan-te aumento en la inversión en
de gestión biopolítica y necropolítica equipamiento, infraestructura
que ya estaban trabajando sobre los hospitalaria y camas de terapia intensiva.
territorios y sus límites. En el campo de la salud mental la 6
pandemia interpeló a las institucio-nes e
En un progresivo clima de tensión social, instó a repensar la producción y los
con cacerolazos absurdos, marchas modos de cuidados y las prácticas
disfraza-das de republicanismo, una desarro-lladas por los servicios.
prensa amarilla que instala discursos
falaces y funcionarios opositores que Sin embargo, por tratarse Argentina de
pujan por evitar el distanciamiento en un país federal, la adhesión a las políticas
nombre de las libertades indivi-duales y de salud nacionales dependen de cada
la economía, el Gobierno Nacional jurisdicción, por lo cual la gestión de la
sostuvo una preocupación por la epidemia en términos de la protección
dimensión social y humana de la de las usuarias/os de los servicios de
pandemia apostando a frenar la salud mental mostró comportamientos
velocidad de contagio y garanti-zar la muy diversos. Por ejemplo, la región
reorganización de un sistema de salud donde se encuentra el mayor
desbastado. En este camino, debió asu- conglomerado urbano y la
mir, además, un conjunto de medidas de concentración más importante de
protección social desplegadas a fin de hospitales monovalentes, es decir el
paliar la profunda crisis en que los AMBA que comprende la Ciudad de
sectores más empobrecidos estaban Buenos Aires y una porción de la provin-
sumergidos y que la pandemia agravó cia de Buenos Aires, son gobernadas por
desgarradoramente. Se implementó el grupos políticos opuestos – la primera
Ingreso Familiar de Emergen-cia, dirigido perte-neciente al partido neoliberal que
a un conjunto de población entre 18 y gobernó la Argentina durante los
65; un subsidio extraordinario a la últimos cuatro años y la segunda al
Asignación Universal por Hijo y por frente que gobierna el país en la
Embarazo; un refuerzo adicional en la actualidad – en ambos espacios las
Tarjeta Ali-mentar; y el Programa de políticas implementadas fueron
Asistencia de Emergencia al Trabajo y la heterogéneas y opuestas.
Producción para dar algún tipo de alivio
económico inmediato a empresas y Mientras que en la provincia de Buenos
trabajadoras/es afectados di-rectamente Aires, en el marco de la Ley Nacional de
por la caída de la actividad económica. Salud Mental 26.657, que desde una
Estas medidas se establecieron pa- perspectiva de derechos plantea el
ralelamente a la negociación con los cierre de instituciones monovalentes en
acreedores de una de las deudas más 2020, se avanzó, entre otras, en políticas
importante e injusta que el país viviera de des/institucionalización como el
en el marco de un default virtual dejado cierre de las admisiones en dichas
por el Gobierno anterior. instituciones, el apoyo a los servicios de
salud mental en hospitales generales y la
Tal como se señaló, el sector salud apertura de casas convivenciales en la
también presentaba un profundo comu-nidad para la externación de
vaciamiento y la desaparición de su personas internadas. Por el contrario,

6
las políticas segui-das ante la pandemia desarrollar acompaña-mientos a las
en la Ciudad de Buenos Aires generaron personas con Covid-19 en la última
un aumento de las tec-nologías de etapa de su vida, y en el duelo de los
control sobre las personas usuarias en seres queridos. La imposibilidad de
los cuales la modulación de los des- despedida reedita dolorosamente en
plazamientos y la vigilancia en los nuestra memo-ria la historia reciente de
hospitales psiquiátricos expuso a esta desaparición de cuerpos. Memoria que
población a un doble aislamiento, lo que entendemos genera y transforma el 7
evidenció el confinamiento en la que se mundo social y a quienes trabajan con
encontraba desde mu-cho antes. Bajo la ella como sujetos activos en los
consigna de la protección a las personas procesos de transformación simbólica y
internadas para evitar el contagio (es elaboración de los sentidos del pasado5.
decir, un recrudecimiento de la Diver-sos organismos de derechos
concepción biomédica y tutelar), se humanos dieron un profundo sentido a
eliminó la posibilidad de intercambios, la despedida e hi-cieron hincapié en la
con lo cual se obstaculizó el necesidad de desarrollar políticas
sostenimiento de lazos socia-les. Esto públicas que establezcan el duelo como
intensificó el aislamiento en espacios un derecho, e instando a que este no
donde, debido a las inequidades existen- quede reducido a una cuestión
tes, no se contaba con conexión digital individual, al arbitrio de las condiciones
que acortara el distanciamiento tanto económicas de cada grupo, ni de los
con fami-liares, grupos de pertenencia o conocimientos que pue-da tener sobre
los propios equipos tratantes. En este cómo encontrar un camino más amable
contexto se ahondaron las violencias que el estandarizado6. Así se fue
institucionales y la vulneración de forjando un encuadre estatal de políticas
derechos dejando al descu-bierto la idea orientadas a darle a estas muertes una
de que hay vidas que son vivibles en su elaboración colectiva, contemplando la
precariedad y otras no, vidas que valen diversidad y acompañando a las
la pena y otras, no4. Pero también personas para que no estén solas frente
mostrando las deudas pendientes de las al fallecimiento de sus seres queridos.
políti-cas públicas que establece la Ley
Nacional de Salud Mental, tanto en las También se afianzaron con potencia
referidas a la transformación de los organizaciones sociales que, con un
hospitales monovalentes como a la fuerte senti-miento de comunidad y
construcción de prácticas territoriales y reconocimiento del semejante,
comunitarias. desarrollan acciones solidarias. Ellas
desplegaron estrategias de cuidados y
Desde otras dimensiones, y vinculado al lógicas de cooperación en territorios
sufrimiento psíquico, no queremos dejar donde la pandemia produjo mayores
de introducir un aspecto central que la estragos y donde el Estado estuvo
pandemia ha producido. Nos referimos ausente o fue insufi-ciente. Por ejemplo,
a que la Covid-19 modificó la forma de en los barrios carenciados de la Ciudad
morir, así como de enfrentar y llevar a de Buenos Aires, donde las muertes
cabo los rituales de despedida dejaron profundas huellas, estos
establecidos para las diferentes movimientos consolidaron espacios
creencias. En este escenario, más allá de comunita-rios para que sin romper las
las dificultades iniciales y las tensiones en medidas de distanciamiento siguieran
readecuar las prácticas en el campo de funcionando las ac-ciones colectivas.
la salud mental, emergió como
construcción social la necesidad de

7
Este momento histórico nos exige 7. De Sousa Santos, B. El coronavirus y
rescatar nuestra memoria colectiva, nuestra contemporaneidad. En Bringel,
situada, para la comprensión de los B., Ple-yers, G. (eds.), Alerta global.
inéditos y complejos acontecimientos Políticas, movimientos sociales y futuros
que suceden en nuestro con-tinente. Y en disputa en tiempos de pandemia.
en el marco de un pensamiento dialógico Buenos Aires; CLACSO; agosto de
e imaginación alternativa construir, a 2020.
partir de las luchas, conocimientos y 8
prácticas que avancen en la disputa
simbólica de sentidos que aborda la
complejidad de la existencia humana y
sus sufrimientos. Si-guiendo a
7
Boaventura de Souza Santos , a la
narrativa del miedo habrá que contrapo-
ner la narrativa de la esperanza, ya que
la forma en que se decida esta disputa
deter-minará si queremos o no
continuar teniendo derecho a un futuro
mejor.

Referências Bibliográficas

1. Piovani, J. I., Salvia, A. La Argentina en


el siglo XXI. Cómo somos, vivimos y
convi-vimos en una sociedad desigual.
Bs. As.; Siglo XXI; 2018.

2. Iriart, C. Pandemia: neoliberalismo y


sistema sanitario argentino. Río Cuarto;
Uni-Río; 2020. Disponible en:
https://bit.ly/32zi0HR

3. Preciado, P. Aprendiendo del virus.


En: diario El País, 27 de marzo de 2020.
Disponi-ble en https://bit.ly/3b5aQip

4. Butler, J. Vida precaria: el poder del


duelo y la violencia. Bs. As. Paidós, 2006.

5. Jelín, E. Los trabajos de la memoria.


Madrid-Buenos Aires; Siglo XXI; 2002.

6. CELS. Los duelos individuales y


colectivos necesitan acompañamiento.
Centro de Es-tudios Legales y Sociales;
2020. Disponible en
https://bit.ly/34Om3mm

8
Por um triz Promover saúde que nomeio de outros
modos, como fabricar bem estar,
tricotar o bem viver, cultivar a
Rogério Giannini solidariedade, enxugar prantos, lamber
feridas, jogar o jogo coletivo da vida,
É uma felicidade saber que existem brincar na roda. E assim, como pessoas
eventos, lives e publicações por meio encarnadas, reconhecerão
das quais podemos ser apresentados a coletivamente o que faz doer, e poderão 9

práticas que nos possibilitam pensar a produzir resistências, acolhimentos e


saúde mental fora de uma perspectiva confortos. E os saberes científicos e
patologizante, perspectiva essa que cria técnicos? Que sejam acima de tudo
quadrados com nomes pomposos, com éticos e possam estar junto e a serviço
jargões de uma psiquiatria de raiz de tudo isso.
longínqua na história, com suas
síndromes, espectros, riscos e Como representante da Subcomissão de
classificações... e depois sai, Drogas e Saúde Mental do Conselho
diligentemente, em busca de seres Nacional dos Direitos Humanos
humanos complexos, históricos, (CNDH)1, digo que, desde o início,
profundos, feitos de carne, osso, pusemo-nos a confrontar a máquina de
sonhos, desesperos, contradições, morte em curso que atende pelo nome
sofrimentos e festas, para que caibam de pandemia. Mas falando assim,
nas caixas, tão ao gosto das estatísticas “pandemia’’, corremos o risco de achar
e números que se tornam dóceis às que se trata de uma coisa, um fenômeno,
correlações e inferências prontas para algo em si, autoexplicativo.
habitar o mainstream da ciência
dominante. Mas não, quando dizemos “pandemia”,
falamos de como, frente a um
“Mal escapo à fome determinado vírus que causa
Mal escapo aos tiros determinada doença e que tem
Mal escapo aos homens determinadas formas de propagação, as
Mal escapo ao vírus” sociedades e os governos se organizam
para combatê-la – ou não! Como parece
(Música ‘Feliz por um triz’, de Gilberto Gil) estar largamente demonstrado, parte da
nossa sociedade e de nossos
Pensar saúde também fora de uma governantes se organizou, frente à
perspectiva banalizadora das terapias, propagação do vírus, para tomar a
dos discursos psicologizantes e pandemia como algo a ser disputado,
terapeutizantes, pois, quando falo de com a finalidade de acumular força na
saúde mental, quero dizer antes do bem sociedade para a consolidação de um
viver, da possibilidade de comunicação projeto de necropoder2.
entre sujeitos, que falando,
“desassujeitam-se”, que nos encontros, Projeto que para nós fica nítido quando,
podem sentir a força da solidariedade em plena pandemia, nos deparamos com
que brota da comunidade, que nos seus a portaria do Ministério da Cidadania de
territórios, podem reconhecer no nº 340, de 30 de março3, em que foram
agente de saúde uma presença do estado definidas regras a serem seguidas
que o toma como cidadã e cidadão durante a pandemia pelas chamadas
portador de direitos, que podem, em “comunidades terapêuticas”.
última instância, promover saúde.

9
De maneira irresponsável, a regra da salário, trabalhando em troca de
portaria foi manter os acolhimentos habitação e comida, como uma forma de
como ficou expressa na recomendação sobre-institucionalização perversa e
de que os acolhimentos já iniciados não permanente4.
deveriam ser interrompidos (Art. 5º da
portaria). Ou seja, em desconforme com Mesmo que considerássemos as
tudo que a epidemiologia consagra, a internações em CTs legítimas, o que não
portaria orientava como manter a são, pois sustentam-se nas lacunas e 10
situação de risco provocada pelo puxadinhos institucionais, estando em
asilamento. franca discordância com a lei que regula
a saúde mental (Lei 10.216/2001)5, é
A ressalva da portaria é que pessoas óbvio que um protocolo de
acolhidas que estivessem com suspeita biossegurança feito à luz de uma visão
de contaminação pelo vírus deveriam ter sanitária, certamente definiria que a
alta administrativa e serem manutenção de internações deveria ser
encaminhadas ao sistema de saúde. Mas a exceção, depois de esgotados os
isso é francamente insuficiente, pois esforços de cuidado em liberdade, pois
sabemos todos a facilidade como o vírus as dificuldades para a manutenção
se propaga e o fato de muitos infectados desses espaços livres de contaminação
serem assintomáticos ou pré- do coronavírus são praticamente
sintomáticos. intransponíveis. E é só imaginarmos uma
CT com 30 internos que dormem em
A portaria alude, num exercício de alojamentos e convivem no pátio e local
cinismo institucional, a que a de refeição comuns. Somado às visitas e
regulamentação das CTs defina que o ao contato com os monitores, qual a
acolhimento tem caráter voluntário, o chance de um isolamento social efetivo?
que pressuporia que as pessoas podem
escolher interromper a internação. Nem preciso dizer que a manifestação
Contraditoriamente, orienta manter em unânime e vigorosa do movimento
quarentena de 14 dias os novos antimanicomial e da saúde mental foi de
acolhidos (sim, como se nada estivesse repulsa a essa portaria e que o CNDH,
acontecendo), e ressalva que as CTs que fazendo eco a isso, produziu uma
não possuem condições materiais e de resolução solicitando a revogação da
pessoal que possibilite esse portaria. Infelizmente, acho que todos já
procedimento devem cessar os novos imaginam, os protestos não foram
acolhimentos. Diz, inclusive, que quem escutados e a recomendação do CNDH
tem exame negativo recente (isso não foi acatada, em mais um exemplo de
mesmo, sem prazo, recente é de exercício de necropoder e de violência
quantos dias?) fica desobrigado de fazer de estado.
quarentena.
Mais do que um erro ou um engano por
Dezenas de inspeções já foram feitas nos desconhecimento, ou mesmo uma
últimos anos em CTs, e a constatação imprudência de não avaliar com cuidado
mais comum foi de, entre outros as possíveis consequências, o que
problemas, precariedade das instalações assistimos com a publicação da portaria
e baixa qualificação da equipe, nas quais é a reprodução da lógica manicomial e o
muitos dos chamados monitores são império do lucro na frente do cuidado
antigos usuários da CT que tornam-se humano.
trabalhadores informais e, às vezes, sem

10
Mas, também da produção da lógica do et/article/PIIS0140-6736(20)31681-
necropoder e da necrocultura dos 0/fulltext
nossos tempos6. Lógica que a pandemia
veio revelar justamente porque 3. Portaria nº 340, de 30 de março de
escancarou e exacerbou desigualdades e 2020. Acessível em
iniquidades. Se, em algum momento, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-
pudemos imaginar que o vírus /portaria-n-340-de-30-de-marco-de-
“democrático” colocasse a solidariedade 2020-250405535 11
na ordem do dia, rapidamente as raízes
históricas de nossas formas sociais de 4. Relatório da Inspeção Nacional em
dominação, turbinadas pela onda Comunidades Terapêuticas do MPF.
protofascista, odiosa e violenta que se Acessível em
constituiu em poder de fato com a http://www.mpf.mp.br/atuacao-
eleição de Bolsonaro, puseram esse tematica/pfdc/midiateca/nossas-
sonho por terra, nos confrontando com publicacoes/relatorio-da-inspecao-
a dura realidade pela qual estudos nos nacional-em-comunidades-terapeuticas-
mostram que morrem 2017/view
proporcionalmente de Covid-19 mais
periféricos do que centrais, mais podres
5. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001.
do que ricos, mais homens que
Acessível em
mulheres, mais pretos que brancos7,
https://www.direitonet.com.br/artigos/e
mais em leitos públicos do que privados
xibir/8650/Por-uma-sociedade-sem-
e mais índios do que qualquer outro
manicomios-advento-da-Lei-no-10216-
grupo.
2001
Além da necessária denúncia dos males,
6. O doloroso saldo do coronavírus
aqui estamos também para visibilizar e
após seis meses no Brasil. DW notícias.
festejar o que há de vivo e pulsante na
Acessível em https://www.dw.com/pt-
sociedade, que inventa formas criativas e
br/o-doloroso-saldo-do-
as vezes surpreendentes de cuidados.
coronav%C3%ADrus-após-seis-meses-
Fundamental também louvar as
no-brasil/a-54701126
instituições do estado (justamente por
assim se reconhecerem) que ainda
resistem e insistem em cumprir seu 7. Dados do sus revelam vítima-padrão
compromisso ético de buscar o bem de covid-19 no brasil: homem, pobre e
comum8. Que bom que possamos estar negro. Revista Época. Acessível em
entre elas. https://epoca.globo.com/sociedade/dado
s-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-
covid-19-no-brasil-homem-pobre-
Referências bibliográficas
negro-24513414
1. Página do CNDH no Facebook.
8. Pitacos no Facebook, página de
Acessível em
Rogério Giannini no Facebook.
https://www.facebook.com/conselhode
Acessível em
direitoshumanos/
https://www.facebook.com/rgpitacos/po
sts/159639475642070
2. Political and institutional perils of
Brazil's COVID-19 crisis. The Lancet.
Acessível em
https://www.thelancet.com/journals/lanc

11
Almost* resistance, welcome and comfort. What
about scientific and technical
knowledge? That they are above all
Rogério Giannini ethical and can be together and at the
service of all this.
It is a joy to know that there are events,
live presentations, and publications in As a representative of the
which we can be introduced to practices Subcommittee on Drugs and Mental 12

that allow us to think about mental Health of the National Council for
health outside a pathologizing Human Rights/(Conselho Nacional dos
perspective. Such perspective creates Direitos Humanos – CNDH1)I say that,
boxes with pompous names with the since from the beginning, we began to
jargon of a distant-root psychiatry in confront the ongoing death machine that
history, with its syndromes, spectra, goes by the name of pandemic.
risks, and classifications... and then However, when we use the term
diligently search for complex, historical, ‘pandemic’, we run the risk of thinking
profound human beings, made of flesh, that this is something, a phenomenon,
bone, dreams, despairs, contradictions, something which is self-explanatory by
suffering and parties, so that they fit in itself.
the boxes to the pleasure of statistics
and numbers, which become docile to This is not the case. When we refer to
the correlations and inferences ready to the pandemic, we think about facing a
inhabit the mainstream of the dominant given virus that causes a certain disease,
science. which has certain ways of spreading, and
makes societies and governments
Thinking about health outside a organize themselves to fight it. Or not!
banalizing perspective of therapies is Like it is already amply demonstrated,
also important, psychologizing and part of our society and of our governors
therapeutizing discourses, because when organized themselves, in face of the
I talk about mental health, I refer to spread of the virus, to see it (the
before a good living, the possibility of pandemic) as something to be disputed
communication between subjects who with the purpose of accumulating
speak out, who can feel the strength of strength in society for the consolidation
solidarity that springs from the of a necropower project2.
community when meeting others, who
can, in their territories, recognize in the This project is clear to us when, amidst
health agent a presence of the state that the pandemic, we are faced with the
considers them citizens and a citizen Ordinance 340, of March 303, by the
entitled to rights, who can, ultimately, Brazilian Ministry of Citizenship, in
promote health. which rules were defined to be followed
by the so-called “therapeutic
Promoting health, which I call by other communities” (TCs) during the
names, such as producing well-being, pandemic.
knitting a good living, cultivating
solidarity, drying wail, licking wounds, Irresponsibly, the ordinance rule was to
playing the collective game of life, playing maintain welcoming according to what
in the circle. And so, as incarnate people, was expressed in the recommendation:
they will collectively recognize what that every welcoming already started
hurts, and will be able to produce should not be interrupted (Art. 5 of the

12
ordinance). That is, in disagreement with disagreement with the law that regulates
everything that epidemiology enshrines, mental health - Law 10.216/2001)5, it is
the ordinance provided guidance on clear that a biosafety protocol, made in
how to maintain the risk situation the light of a sanitary vision, would
caused by asylum. certainly define that the maintenance of
hospitalizations should be the exception
The ordinance caveat is that people who after exhausting the efforts of free care,
are admitted and suspected of being given that the difficulties to maintain 13
infected by the virus should be these spaces free from contamination of
discharged from administration and the coronavirus are practically
referred to the health system. However, insurmountable. We can only imagine
this is frankly insufficient, because we all the reality of a TC with 30 inmates who
know how easily the virus spreads and sleep in lodgings, and live in the common
are aware that many infected people are courtyard and dining area. Adding this to
asymptomatic or pre-symptomatic. visits and contact with monitors, what is
the chance of effective social isolation?
The ordinance alludes, in an exercise of
institutional cynicism, that the regulation Not to mention that the unanimous and
of the TCs defines that welcoming is vigorous manifestation of the anti-
voluntary, which would presuppose that asylum movement and mental health
people can choose to interrupt was of repulsion to this ordinance.
hospitalization. Contradictorily, it Besides that, the CNDH, echoing this,
advises maintaining quarantines for new produced a resolution requesting the
patients (yes, as if nothing were ordinance revocation. Unfortunately, I
happening). One remark is that CTs that believe everyone already imagines that
do not have the material and personnel protests were not heard, and the
conditions that make this procedure recommendation by the CNDH was not
possible must cease new accepted, in yet another example of the
hospitalizations. It even says that those exercise of necropower and state
with a recent negative exam (yes, no violence.
expiry date, how many days is it?) is
released from quarantine. More than a mistake or a misinformed
mistake, or even an imprudence of not
Dozens of inspections have already been carefully evaluating the possible
carried out in TCs in recent years, and consequences, what we see with the
the most common finding was, among ordinance publication is the
other problems, precarious facilities and reproduction of the asylum logic and the
low team qualification, in which many empire of profit before human care.
“monitors” are former users of TCs
who become informal workers and, But also, the production of the
sometimes, receive no salary, thus necropower and necroculture logic of
working in exchange for housing and our times6. With no doubt, the
food, as a perverse and permanent over- pandemic came to reveal realities,
institutionalization4. precisely because it opened and
exacerbated inequalities and inequities.
Even if we consider hospitalizations in If we could imagine, at any time, that the
TCs to be legitimate, which they are not “democratic” virus put solidarity on the
(because they are based on institutional agenda, the historical roots of our social
gaps and difficulties, being in direct forms of domination, fueled by the

13
proto-fascist, hateful and violent wave nacional-em-comunidades-terapeuticas-
that was constituted in power with the 2017/view
election of Bolsonaro, quickly ended this
dream by confronting a harsh reality, in 5. Law 10.216, of April 6, 2001. In:
which studies show us that more https://www.direitonet.com.br/artigos/e
peripheral people die proportionally xibir/8650/Por-uma-sociedade-sem-
from Covid-19 than central people, manicomios-advento-da-Lei-no-10216-
more poor than rich, more men than 2001 14
women, more black than white people7,
more in public beds than private, and 6. The painful balance of coronavirus
more indigenous than any other group. after six months in Brazil. DW notícias.
In: https://www.dw.com/pt-br/o-
In addition to the necessary doloroso-saldo-do-
denunciation of ills, we are also here to coronav%C3%ADrus-após-seis-meses-
recognize and celebrate what is alive and no-brasil/a-54701126
pulsating in society, which invents
creative and sometimes surprising forms 7. Data from the sus reveal victim-
of care. Praising state institutions is also pattern of covid-19 in Brazil: man, poor
essential (precisely because they and black. Época Maganize. In:
recognize themselves), because they still https://epoca.globo.com/sociedade/dado
resist and insist on fulfilling their ethical s-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-
commitment to seek the common covid-19-no-brasil-homem-pobre-
good8. Glad we can be among them. negro-24513414

References 8. Facebook page of Rogério Giannini. In:


https://www.facebook.com/rgpitacos/po
1. CNDH no Facebook. In: sts/159639475642070
https://www.facebook.com/conselhode
direitoshumanos/

2. Political and institutional perils of * Text translated by Bruna Beatriz


Brazil's COVID-19 crisis. The Lancet. Gabriel, teacher, translator and
Acessível em interpreter, member of the Brazilian
https://www.thelancet.com/journals/lanc Association of Translators and
et/article/PIIS0140-6736(20)31681- Interpreters; Translation of ‘Por um
0/fulltext triz’.

3. Ordinance 340, of March 30, 2020. In:


https://www.in.gov.br/en/web/dou/-
/portaria-n-340-de-30-de-marco-de-
2020-250405535

4. Report of the National Inspection in


Therapeutic Communities of the Federal
Public Prosecutor's Office. In:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-
tematica/pfdc/midiateca/nossas-
publicacoes/relatorio-da-inspecao-

14
A Pandemia, territórios sociedade e das pessoas que habitam o
mundo em que vivemos, situando-nos a
vulnerabilizados, pessoas partir de polaridades.
em sofrimento psíquico
e o “novo normal” Por um momento, ao me desviar das
“ciências da vida”, refugio-me na
literatura de Bertolt Brecht3 (2017),
Annibal Coelho de Amorim examino o posfácio e caracterizo 15
conversas que, servindo-se das ciências
Diante da expressão “novo normal” naturais, apontam que “[...] no mundo
presente em publicações, reflito sobre microscópico, não observamos a vida
meus primeiros contatos com pessoas normal, mas uma vida perturbada, por
que vagavam pelos hospitais nossa própria observação [...]”, pois a
psiquiátricos e leituras sobre a História “[...] luz dos microscópios tem de ser
da Loucura de Foucault1 (2014), tão forte que acaba produzir
particularmente sobre as “naus aquecimentos no mundo dos átomos
errantes” em que eram embarcados os [...] enquanto estamos observando
que “desviavam das normas”. Segundo ateamos fogo justamente àquilo que
historiadores, pessoas embarcadas eram desejamos observar [...]” (p.148).
“prisioneiros da passagem”, muitos
“desembarcavam” apenas pelo Assim, ao propor o horizonte do “novo
tombadilho quando suas vidas se normal”, estamos parametrizando a
esvaíam. Isso nos leva a problematizar a vida, restaurando a ordem das
adoção da expressão “novo normal”, hierarquias de valor, nas quais linguistas
quando nos encontramos a bordo da como Blikstein4 (1995) ressaltam a
gravíssima “nau sanitária” da Covid-19, a presença de valências pejorativas
maior pandemia desde a chamada gripe (negativas), que, em última análise,
espanhola. servem de referência aos discursos
científicos, segundo Ramos5 (2014),
Questiono a expressão “novo normal”, reiterando categorias do complexo-
porque ela, invariavelmente, nos remete acadêmico-médico-industrial (CMAI) –
às velhas antinomias (“normal” versus presentes na psiquiatria –, situando-as
“anormal”; “eficiente” versus entre a Novilíngua e a Língua Tertii
“deficiente”), pares de oposição que, Imperii, como ricamente analisado por
muitas vezes, se reapresentam em Lima6 (2014).
nossas falas, das simples as mais
complexas. Segundo Portocarrero2 Ao escrever esse recorte – “A
(2012), referindo-se à história das Pandemia e as pessoas em sofrimento
ciências da vida, tem-se a intenção de psíquico: ‘novo normal’?” – percebo que
“elucidar o surgimento dos saberes que muitos de nós encontram-se igualmente
correspondem ao aparecimento de um “embarcados em naus errantes”, que,
novo regime no discurso, apontado em pleno 3º Milênio, mais de 140 mil
através das descontinuidades, das brasileiros(as) já perderam suas vidas,
rupturas”. enquanto a experiência do sofrimento
(psíquico, sociocultural etc.) existencial
Assim, a meu ver, a proposta do “novo ainda está muito longe de acabar.
normal”, apesar de apontar ruptura, “já Naturalizada nos pequenos gestos,
nasce velha”, porque está implicada com diante do prenúncio do “novo normal”
a patologização do cotidiano, da – muitos não sabem dizer exatamente o

15
que é ou o que será –, acredito que o vulnerabilizam a saúde da população no
“novo normal” nos impõe alguns pontos plano somático ou psíquico. O “novo
de interrogação. Estaríamos, por acaso, normal” anunciado representaria, por
inventando uma nova expressão acaso, a mudança do habitus, que insiste
capacitista, de caráter estrutural, como em se fazer presente no cotidiano das
afirma Rita Louzeiro7? Seria algo que pessoas fazendo-as sofrer?
remete ao mundo pós-pandêmico, no
qual um “estado de normalidade” é As situações referidas acima apontam 16
“restaurado” ou ”reabilitado”? que as ciências da vida também estão em
processo de mudança, reposicionando-
Em alusão aos tempos pandêmicos, se para dar conta do atual “mal-estar da
distanciados ou não, com ou sem pós-modernidade”. Editoriais de
máscaras, vagamos perdidos entre associações de profissionais – nacionais
discursos, em um verdadeiro e internacionais –, têm enfatizado o grau
pandemônio que, em maior ou menor de estresse e sofrimento dos
grau, geram incertezas e instabilidades – profissionais de saúde posicionados na
no plano individual ou coletivo – quanto linha de frente da pandemia. Enquanto
ao presente e ao futuro, atingindo em isso, na retaguarda, assistimos
cheio o que Borges8 (2015) denominou declarações inusitadas por parte das
de territórios existenciais ético- autoridades, que insistem em
estéticos das pessoas, que em seu transformar os cotidianos em
histórico de vida vivenciam problemas “verdadeiros laboratórios” de tolices.
relacionados à saúde mental. Enquanto implodem-se as rotinas a que
estávamos acostumados, implanta-se
Pesquisas do Projeto ELSA-Brasil de através da mídia e redes sociais uma
alcance nacional, por meio de infodemia de informações, que ao
questionários virtuais mensais e uso de mesmo tempo que intranquiliza,
telefones celulares, acompanharão a estimula grupos em estado de
distância pelo período de seis meses, vulnerabilidade social aos riscos do
sinais e sintomas referentes ao aumento sofrimento existencial. Dentro das
do estresse e da ansiedade e/ou “bolhas de isolamento”, as pessoas em
depressão das pessoas expostas à diferentes faixas etárias e classes sociais
pandemia, podendo ser indicadas buscam se reinventar, adotando padrões
intervenções psicológicas de suporte às adequados aos tempos pandêmicos,
pessoas que venham a necessitar de rompendo com aquilo que conheciam
profissionais especializados em situações como sua rotina “normal”, por assim
de sofrimento como as atualmente dizer.
vivenciadas. Se, por um breve momento,
nos detivermos em exemplos do “velho Se de perto ninguém é normal, diria
normal” – vivenciado por sujeitos Caetano Veloso, durante a pandemia,
individuais ou coletivos – em territórios imaginem só o que sentem pessoas em
vulnerabilizados, constata-se que “velho sofrimento que vivem em territórios
normal” pode ser a falta d’água em vulnerabilizados. Famílias se organizam
favelas e periferias, a violência para alternar no trabalho em casa,
recorrente (nas incursões policiais ou a trocando turnos e obrigações caseiras –
ostensividade de práticas milicianas), “agora está na minha hora de usar o
tanto quanto a insuficiente presença de computador!” –, grupos solidários se
políticas intersetoriais (saúde, educação, constituem do “lado de fora” – alguns
habitação) nesses locais. Exemplos da não têm a opção do trabalho em casa –
“velha normalidade” expõem e e se veem responsáveis por observar

16
que o Estado se faz ausente e dão o seu mostrar de que maneira as forças lutam
jeito para identificar – entre todos os entre si [...]” (p.47).
vulneráveis – aqueles que são ainda mais
vulneráveis. Entre estes figuram os que Diante do “laboratório-tribunal de
residem em residências terapêuticas, juízes”, julgados que somos, nasce o
dispositivos que substituíram “naus veridicto do “novo normal”. Querendo
errantes dos manicômios”. E, ainda por ou não, somos condenados a conviver
cima, nos vem com essa conversa de com as antinomias que expressam forças 17
“novo normal”. (“normal” e “patológico”) que se
opõem, uma disfunção a qual devemos
Diante da incerteza, sentimo-nos em um nos opor radicalmente por meio da
grande “laboratório” de normatividades, sábia manifestação de Antonin Artaud, a
motivo pelo qual, apoiados em que Amorim10 se refere:
Portocarrero2 (2012), buscamos
Canguilhem – que se opõe ao “[...] Amanhã, na hora da visita, quando sem o
positivismo devido a seu racionalismo auxílio de qualquer léxico, tentardes
geral –, refletindo sobre a “noção do comunicar-vos com esses homens, possais vos
laboratório” (p. 42): lembrar, e o reconhecer, que sobre eles não
tendes mais do que uma única superioridade:
“[...] Ao modelo de laboratório, pode-se opor, a força [...]” (Manifesto de artistas franceses –
para compreender a função e o sentido de Revolução Surrealista de 1924)
uma história das ciências, o modelo da escola (Amorim,1997, p. 288)
e do tribunal, de uma instituição e de um lugar
onde se fazem julgamentos sobre o passado Pergunta-se, finalmente, que forças são
do saber, sobre o saber do passado. Mas é essas que “advogam” ou “prenunciam” o
necessário aqui um juiz. A epistemologia é que “novo normal”? Na realidade, quem
é chamada a fornecer à história o princípio de quer que sejam, estão advogando sobre
um julgamento [...]” uma nova norma. Tudo bem não ser
“normal”, porque afinal de contas, o que
Desta forma, quando insistem (quem significa mesmo a normalidade?
insiste?) em falar do “novo normal”,
devemos admitir que há algo de Referências bibliográficas
estranho no ar. Esse “estranhamento”,
tão necessário para Gyorgy Lukács9 1. Foucault, M. A História da Loucura
(2013), é parte de uma ação crítica que (2014), 10a Ed, Perspectiva: SP
cabe a cada um de nós, sejam os que
constroem teorias ou os que dela 2. Portocarrero, V. As Ciências da Vida
produzem práticas. Apoio-me nas – de Canguilhem a Foucault (2012),
Ciências da Vida e Bruno Latour para Editora Fiocruz: RJ.
explicar que essa insistência em anunciar
o “novo normal” tem a ver com uma
3. Brecht, B. Conversas de Refugiados
relação de forças. Mas é em Foucault
(2017), 1a Ed, Editora 34: SP.
que encontramos uma chave, afirma
Portocarrero2 (2012), quando o
historiador ressalta que “a emergência 4. Blikstein, I. Kaspar Hauser ou a
de um acontecimento – por exemplo, a Fabricação da Realidade (1995). Cultrix:
da Pandemia – se produz sempre em um SP.
estado de forças [...] Analisá-la é

17
5. Ramos, F. Do DSM-III ao DSM-5:
Traçando o percurso médico-industrial
da Psiquiatria de Mercado. In: A criação
de diagnósticos na Psiquiatria
Contemporânea (2014) (Orgs:
Zorzanelli, R; Bezerra Jr, B; Costa, JF),
Garamond Universitária/Faperj: RJ.
18
6. Lima, RC. O DSM entre a Novilíngua
e a Lingua Tertii Imperii. (2014). In: A
criação de diagnósticos na Psiquiatria
Contemporânea (2014) (Orgs:
Zorzanelli, R; Bezerra Jr, B; Costa, JF),
Garamond Universitária/Faperj: RJ.

7. Louzeiro, R. O que é capacitismo.


Coordenação da Abraça. In:
https:///www.prefeitura.sp.gov.br/cidade
/secretarias/

8. Borges, SAC. Territórios existenciais


ético-estéticos em saúde coletiva.
(2015) Fractal, Rev. Psicol. [online],
vol.27, n.2, pp.107-113. ISSN 1984-0292.
http://dx.doi.org/10.1590/1984-
0292/1012.

9. Lukács, G. Para uma ontologia do ser


social II. (2013) Boitempo Editorial: RJ.

10. Amorim, CA. “O Espetáculo da


Loucura – Alienismo Oitocentista ...
Psiquiatria do III Milênio: A Construção
Social da Linguagem do Déficit e a
Progressiva Enfermidade da Cultura”
(1997). Dissertação de Mestrado: UERJ.

18
Covid-19: perspectivas de pensamento crítico1. Outro
desdobramento deste princípio diz
para a formação de respeito à relação de equacionamento
recursos humanos em crítico dos saberes científicos, que se
Saúde Mental traduz, no caso da saúde mental - muito
especialmente na adoção irrestrita dos
conceitos de patologias, transtornos e
Ana Paula Freitas Guljor, Leandra Brasil outros equivalentes - que podem 19
da Cruz e Paulo Amarante representar riscos de patologização ou
medicalização das experiências de
A pandemia da Covid-19 traz algumas sofrimento e mal-estar psíquico.
reflexões importantes para o processo
de formação de profissionais na área da O Cesmap tem tido um papel
saúde mental, especialmente aqueles fundamental na formação de quadros
inseridos em projetos, serviços e para o serviço público de saúde, sendo
dispositivos de cuidado. Ter como pioneiro na formulação do campo
clientela, predominantemente, os epistêmico na área, desde a tomada de
profissionais que diretamente atuam no consciência acerca do papel social e
cuidado têm sido característica do político das instituições psiquiátricas às
Curso de Especialização em Saúde propostas de reforma, renovação e
Mental e Atenção Psicossocial superação das mesmas, além da
(Cesmap), da Escola Nacional de Saúde importância das interfaces com outros
Pública Sergio Arouca da Fundação campos de saberes e práticas. Inspirado
Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), nestes na concepção de reforma psiquiátrica
quase quarenta anos de existência. E no como processo social complexo2,3,
contexto de pandemia, esta diretriz optou por estimular a construção de um
assume importância ainda maior, já que pensamento crítico, propondo uma
muitos trabalhadores se encontram na discussão de base epistemológica sobre
linha de frente de combate à Covid-19, a produção do conhecimento, os
quando se torna essencial o apoio à conceitos e os processos que definem o
construção de espaços de reflexão, que é ciência e os seus limites, a noção
discussão e fundamentação crítica e de paradigma e de estruturas
inovadora das suas práticas. paradigmáticas, as relações de saber e
poder, as relações entre hegemonia,
Muitas das questões surgidas nesse dominação e, ainda, entre ciência e
período já fazem parte das história.
preocupações e debates propostos
nesse projeto de formação, como é o Procurando apresentar apenas algumas
caso das questões relativas ao próprio das referências desta orientação, as
objetivo da “formação”, o processo de obras clássicas de Foucault, Goffman,
formar. Na base desta questão, está a Laing, Cooper, Szasz e Basaglia vêm
tradição pedagógica de Paulo Freire complementadas por obras de autores
como referência tanto ética quanto mais contemporâneos que atualizam
epistemológica, na medida em que se suas questões (M. Angell, J. Moncrieff, R.
entende não uma espécie de Whitaker, J. Seikkula, I. Hacking, P.
treinamento, capacitação ou qualificação Conrad e outros). Porém, cumpre
técnica com o intuito de transferir destacar a importância da contribuição
conhecimentos, e sim de desencadear de Franco Basaglia4 que, a partir de uma
um processo de emancipação e criação concepção fenomenológica de E.
Husserl, propõe colocar a doença

19
mental entre parênteses para se ocupar na “doença” ou “transtorno” mental,
do sujeito na sua mais total e complexa mas também na promoção de saúde e
experiência-sofrimento. Invertendo, proteção social.
portanto, o projeto psiquiátrico
tradicional de se ocupar da doença e não A visão crítica trabalhada no processo
do sujeito. Operando essa inversão no de formação tem contribuído para
campo prático e teórico, o legado de respostas inventivas – não
Basaglia tem sido fundamental nos dias patologizantes – às demandas dessa 20
atuais, por revelar as possibilidades de natureza, o que não significa negar a
lidar com sujeitos e não com doenças ou existência do sofrimento e da
transtornos, o que abre novas necessidade de cuidados adequados,
perspectivas e possibilidades de inclusive um acolhimento em serviços
potencialização das reações e das abertos de base territorial como é o
relações. caso dos Centros de Atenção
Psicossocial. Outro aspecto se refere à
Por outro lado, desde o início do importância do reconhecimento de
confinamento oriundo da pandemia, se sujeitos coletivos, conscientes e ativos,
admite um significativo aumento de que se organizam para buscar respostas
quadros psiquiátricos. Estaria havendo criativas e singulares em cada um dos
um aumento dos quadros psiquiátricos, territórios. Em outras palavras, tornar
um crescimento de transtornos possível valorizar as formas de
mentais? Ou estaria ocorrendo um reinvenção da vida que muitos sujeitos
processo de patologização em massa das estão encontrando durante a pandemia,
inúmeras formas de respostas? sejam eles denominados de usuários,
diagnosticados pela psiquiatria, ex-
A experiência do confinamento usuários, vítimas da psiquiatria ou outras
propiciou uma consciência da finitude e denominações5.
a necessidade de um auto isolamento
como preservação, as incertezas em Vale destacar que a crítica à
relação ao futuro e aos projetos de vida, patologização do sofrimento faz com
além da impossibilidade de encontros que o profissional ganhe um outro lugar
com pessoas queridas. O desconforto nesse processo de cuidado e, com isso,
emocional vivenciado a partir dessa possa trazer para o debate, nessa
situação deveria ser compreendido em dimensão sociocultural, questões
sentido exclusivamente psicopatológico? fundamentais para uma outra relação
A dor e a tristeza vivenciadas poderiam com o dito louco e a loucura.
ser reduzidas a sintomas?
Provavelmente não. Mas como olhar Em conferência proferida no seminário
para tudo isso de forma diferente? dos 15 anos do Cesmap, Franca Basaglia
Como não se deixar contagiar pela onda resgatou o pensamento de Theodor
da psicopatologização da vida? Adorno que sustenta que “aquilo que o
cientificismo considera, apenas e
Uma reflexão importante que tem sido simplesmente, como progresso foi
sublinhada é a da potência do sempre, também, sacrifício”. A autora
acompanhamento qualificado dos salienta então alguns elementos deste
profissionais de saúde mental no lidar “sacrifício” “considerando suas
com estas experiências, mesmo sem consequências práticas em relação à
considerá-las patológicas, na medida em saúde e à doença e às modificações que
que estes profissionais atuam não apenas a conquista do direito à saúde implica,

20
destacando muito especialmente o profissionais que trabalham no campo da
último item a seguir: a objetificação do saúde mental, é precioso o acesso, em
homem como premissa à cientificidade sua formação, às reflexões mais amplas
da intervenção médica e, portanto, a sobre as questões que dizem respeito à
expropriação das experiências vida; a complexidade e polissemia da
corpóreas e da participação subjetiva experiência humana. Sobre a produção
nestas experiências; a tendência a de sentidos das atividades
confirmar somente como dado natural, essencialmente humanas, Castoriadis 21
biológico, fenômenos dependentes observa que “história é essencialmente
também de condições sociais, poiésis, e não poesia imitativa, mas
psicológicas e de relações; e a tendência criação ontológica no e pelo fazer e o
a considerar patológicos fenômenos representar/dizer dos homens. Este
naturais ampliando o campo da fazer e este representar/dizer se
intervenção técnica”6. instituem também historicamente, a
partir de um momento, como fazer
Este último item permite remeter à pensante ou pensamento se fazendo”8.
“Casa dos Loucos”, de Foucault, ao
discutir a questão da “produção da Referências bibliográficas
verdade”/prova e do
conhecimento/constatação, no que 1. Freire P. Pedagogia da Autonomia: saberes
tange ao poder-saber médico. Ao necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra; 2006.
resgatar as técnicas de Charcot com
suas doentes na busca por caracterizar a
2. Rotelli F. Desinstitucionalização. São Paulo:
histeria como enfermidade, afirma: Hucitec; 1990.

“O ponto de perfeição, miraculosa em 3. Amarante P. Teoria e crítica em saúde mental


demasia, foi atingido quando as doentes do - textos selecionados. São Paulo: Zagodoni;
serviço de Charcot, a pedido do poder-saber 2015.
médico, se puseram a reproduzir uma
sintomatologia calcada na epilepsia, isto é, 4. Basaglia F. Escritos selecionados em reforma
psiquiátrica e saúde mental. Rio de Janeiro:
suscetível de decifração, conhecida e Garamond; 2005.
reconhecida nos termos de uma doença
orgânica. (...) O poder do médico lhe permite 5. Rodrigues MGA, Almeida AA, Ferreira, TF,
produzir doravante a realidade de uma Goldenzweig RE, Amarante, P. Saúde mental,
doença mental cuja propriedade é a de articulações intersetoriais e o apoio da
universidade em tempos de COVID-19.
reproduzir fenômenos inteiramente acessíveis Diversitates International Journal. Vol. 12; N.1;
ao conhecimento. (...) A relação de poder 06–16; 2020.
aparecia na sintomatologia como
sugestibilidade mórbida. Tudo se desdobrava 6. Basaglia FO. Saúde/doença In Amarante P. e
daí em diante, na limpidez do conhecimento, CRUZ LB (orgs). Saúde mental, formação e
crítica. Rio de Janeiro: LAPS/Fiocruz; 2008; 17-
entre o sujeito conhecedor e o objeto 36.
conhecido”7.
7. Foucault M. A casa dos loucos. In. microfísica
A reprodução de um paradigma do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979; 113-128.
científico acrítico que ‘produz’ verdades
pautado em relações de poder que 8. Castoriadis C. A Instituição imaginária da
ratificam um status quo, gera sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1982.
reducionismos e submissão. É
importante assinalar que, para os

21
Cuidado em Saúde 1. A preservação da saúde dos
trabalhadores e usuários nos CERSAMs.
Mental no SUS: desafios O primeiro desafio vivenciado por
e invenções na atenção trabalhadores e usuários foi a falta ou a
às crises em contexto de insuficiência de insumos (equipamentos
de proteção individual e testes)
pandemia necessários à prevenção e ao controle
da pandemia. Na construção de 22
Ana Regina Machado, Anna Laura de respostas a essa situação, o controle
Almeida e Celina Maria Modena social, por meio da Comissão Municipal
de Reforma Psiquiátrica do Conselho
Municipal de Saúde (CMRP/CMS), teve
A Covid-19 impôs restrições ao modo uma atuação fundamental que envolveu:
de funcionamento das redes de atenção a inclusão da pauta “Pandemia e a RAPS
psicossocial (RAPS) que, embora BH” em todas as suas reuniões virtuais
necessárias para o controle da mensais; a realização de visita a um
pandemia, produziram novos desafios CERSAM, com a participação de
para assegurar o cuidado a pessoas com trabalhadores e usuários, para averiguar
sofrimento mental grave em situações condições de trabalho e de cuidado; a
de crise. realização de uma “live”1 com a
participação de uma trabalhadora da
Na RAPS de Belo Horizonte, este RAPS e de um médico infectologista,
cuidado é feito primordialmente em professor da UFMG, para esclarecer
nove Centros de Atenção Psicossocial dúvidas relacionadas às especificidades
(CAPS), cinco Centros de Atenção do trabalho na Rede de Saúde Mental.
Psicossocial - Álcool e outras Drogas Além da CMRP/CMS, o Movimento de
(CAPS AD), três Centros de Atenção Trabalhadores da Rede de Saúde Mental
Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPS i) – de Belo Horizonte mobilizou e articulou
denominados no município de Centro trabalhadores em reuniões on-line,
de Referência em Saúde Mental criando um espaço que favoreceu o
(CERSAM), CERSAM AD e CERSAMI, acolhimento de angústias decorrentes
respectivamente – e, também, em dois da pandemia no coletivo e também
Serviços de Urgência Psiquiátrico reafirmou o papel político do
Noturno (SUP). movimento. Nesta perspectiva, o
Movimento produziu duas notas, a
Buscaremos, por meio do relato da “Nota dos trabalhadores da rede de
experiência da rede de saúde mental de saúde mental aos demais trabalhadores,
Belo Horizonte, apresentar desafios gestores e usuários do SUS-BH” e a
enfrentados e invenções construídas por “Carta aos usuários, familiares e amigos
diversos sujeitos, em diferentes espaços, de usuários da Rede de Saúde Mental de
para assegurar a atenção às crises de Belo Horizonte”. Toda essa articulação
pessoas com sofrimento mental grave foi importante para assegurar algumas
no Sistema Único de Saúde (SUS) em um conquistas junto à gestão municipal para
contexto de pandemia. preservação da saúde de trabalhadores
e usuários, como a garantia de EPI’s e a
Na experiência da RAPS de Belo facilitação do acesso aos testes.
Horizonte, alguns desafios têm se
destacado, exigindo diferentes 2. Mudanças na oferta do cuidado nos
invenções. Dentre eles, destacamos: CERSAMs. As práticas desenvolvidas
nos CERSAMs envolvem contatos

22
próximos, vínculos, afetos e convivência dos pontos de atenção da RAPS, com
entre trabalhadores e usuários. As fluxos definidos de atendimentos para
medidas de distanciamento social usuários com síndrome gripal com e
afetaram diretamente o cotidiano dos sem sinais de gravidade. A Nota Técnica,
serviços, que tiveram que se organizar embora abrangente, não alcança todos
de modo a preservar a continuidade da os embaraços que se apresentam no
oferta de cuidados, essenciais às pessoas cotidiano da rede.
que a eles recorrem. Mudanças na oferta 23
de atenção foram rapidamente 3. Restrição de acesso dos usuários a
implantadas, entre elas: a redução redes de apoio social e a outros
drástica de usuários na Permanência Dia; recursos do território. No contexto de
a suspensão de atividades coletivas, pandemia, os usuários dos CERSAMs
como assembleias e oficinas; o têm apresentado dificuldades para
cancelamento e/ou o espaçamento de acessar outros recursos do território
atendimentos presenciais com a garantia que compõem seus arranjos de vida. Há
do fornecimento da medicação; a limitações de acesso até mesmo em
realização de teleatendimentos outros pontos da rede de saúde mental,
buscando preservar os vínculos e o como os Centros de Convivência, a
cuidado; a aferição da temperatura dos Suricato (Incubadora de
usuários na entrada do serviço, a Empreendimentos Econômicos e
realização de orientações sobre lavagem Solidários), o Programa Arte da Saúde –
das mãos, uso de máscaras e Ateliê de Cidadania (destinado a
distanciamento social; a priorização da crianças e adolescentes). Estes serviços
utilização de áreas externas para a proporcionam laços sociais, arte e
espera ou para a realização dos cultura por meio de atividades coletivas
atendimentos, entre outras. e tiveram seus funcionamentos
suspensos ou reduzidos. Algumas
Tendo em vista as áreas físicas restritas ofertas foram mantidas como, por
e, em alguns casos, inadequadas dos exemplo, o estabelecimento de contato
CERSAMs, o acolhimento de usuários e a realização de atividades por meio de
em crise e com quadro suspeito ou redes sociais virtuais, a disponibilização
confirmado de Covid-19, sem critérios de material para que os usuários
para internação hospitalar, mas também pudessem realizar atividades em casa e a
sem condições de realizar a quarentena oferta de atividades individuais nos
em casa, devido ao quadro de saúde serviços.
mental ou mesmo ao seu contexto
social, gerou muita preocupação a Os usuários também têm tido
trabalhadores e usuários, considerando dificuldades de acesso em outros
os riscos envolvidos. Apesar dos setores, como educação e assistência
arranjos realizados nos CERSAMs, social. As escolas foram fechadas e os
persiste a necessidade de aperfeiçoar a Centros de Referência da Assistência
organização dos serviços, por parte dos Social passaram a funcionar em
gestores e trabalhadores, para melhor teletrabalho, o que impediu ou dificultou
reagir diante das incertezas e o acesso a benefícios, práticas e redes de
imprevistos decorrentes da experiência apoio social. Passados quase seis meses
da pandemia. No mês de junho de 2020, da adoção de medidas de
a Gerência de Saúde Mental da distanciamento social, as consequências
Secretaria Municipal de Saúde lançou desta falta ou dificuldade de acesso se
uma Nota Técnica2 para a rede de saúde fazem notar, pode-se perceber a
mental, com orientações para cada um importância de diferentes recursos do

23
território para os usuários dos consolidados no SUS em Belo Horizonte
CERSAMs. Diante deste desafio, que e a atuação de diferentes sujeitos
envolve articulações e decisões de (controle social, movimentos sociais de
gestores do setor saúde e de outros usuários e trabalhadores, gestores)
setores, poucas invenções foram feitas. contribuíram para a adoção de medidas
Há esforços de trabalhadores para capazes de preservar a saúde de
viabilizar o acesso a alguns recursos, mas usuários e trabalhadores e para a
a atenção, entretanto, tem reorganização e invenção de formas de 24
permanecido, muitas vezes, restrita ao cuidado. A atenção realizada nos
acolhimento de urgências nos CERSAMs tem se apresentado como um
CERSAMs, descaracterizando o projeto recurso importante para as pessoas com
de saúde mental da cidade. sofrimento mental grave e tem também
revelado a imprescindibilidade de
Por fim, é importante dizer que a diferentes redes, recursos e pontos de
pandemia impôs modificações também atenção, que não têm sido
na comemoração do dia da Luta disponibilizados ou acessados durante a
Antimanicomial (18 de maio), que tem pandemia, para a produção do cuidado e
sido sustentada pelo Fórum Mineiro de para a promoção de saúde mental.
Saúde Mental e pela Associação dos
Usuários de Saúde Mental (Assusam), Referências bibliográficas
movimentos sociais com importante
atuação política em Minas Gerais. 1. Live “A RAPS-BH em tempos de
Tradicionalmente, a construção da pandemia”, disponível em
comemoração começa no mês de https://www.facebook.com/cmsbh/video
janeiro com reuniões para a definição da s/1185785668435275.
temática a ser levada para as ruas de
Belo Horizonte, pela Escola de Samba 2. Nota técnica 009/2020 da SMS/ PBH
Liberdade Ainda que Tam Tam, e assim com recomendações para adequação
foi feito neste ano. A chegada da das atividades dos dispositivos da RAPS
pandemia em março provocou a disponível em
reorganização das ações, que https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/defaul
aconteceram de modo virtual no mês de t/files/estrutura-de-
maio. Foram realizadas lives, vídeos governo/saude/2020/nota-tecnica-
temáticos, um encontrão on line, covid-19-n009_2020-atualiz-
projeções antimanicomiais em um 15062020.pdf
prédio da cidade e a divulgação de cerca
de cem vídeos enviados por serviços
3. Eventos virtuais comemorativos do
substitutivos de todo o estado3.
Dia 18 de maio disponíveis em
https://www.facebook.com/F%C3%B3ru
Considerações finais m-Mineiro-De-Sa%C3%BAde-Mental-
229120503955704
Mesmo considerando as restrições, as
incertezas e os desafios decorrentes da
pandemia, os CERSAMs têm assegurado
a oferta de cuidado a usuários de saúde
mental grave, sustentando o
acolhimento de crises e os vínculos já
existentes entre usuários e
trabalhadores. A existência de práticas e
serviços de saúde mental já

24
The Psychological psychiatric diagnosis, causing a
worsening of their “symptoms”.
Impact of a Pandemic:
Let’s Not Pathologize This is a framework that has two effects
Our Suffering on readers. We are led, as a society, to
think that to struggle in this way is to be
“ill”, and individuals suffering in this way
Robert Whitaker are prompted to think that something is 25
wrong with them.
The Covid-19 pandemic has created
difficulties for people around the globe, In short, using the language of illness
and that may be particularly true for colors understandable struggles as
those living in countries – such as Spain, pathological, when such struggles should
the United States and Brasil – where the be understood – and responded to – as
death toll has been particularly high. Yet, a communal reaction to these difficult
as media have reported on this, they times.
have often used the language of mental
illness to describe the toll it is taking on Here are a few of the headlines that
people. appeared in March and April in the
United States:
There are, of course, so many reasons
that the coronavirus pandemic is taking “Anxiety and Depression Likely to Spike
a toll on us all. We may be grieving the Among Americans as Coronavirus Pandemic
death of a love one. We may be fearful Spreads” – ABC News1.
of falling ill from the virus, or that others
close to us will. We miss our old social “Health Officials Warn of Increasing Mental
lives. We may feel lonely because of the Illness Symptoms During COVID-19 crisis.” –
social distancing rules. We may feel sad CBS affiliate2.
that our children cannot play as they did
before. We may have lost work and are “Mental Health Professionals Are Preparing for
now struggling to buy food and pay rent. an Epidemic of Anxiety Around the
We may be anxious as we imagine the Coronavirus” – Mother Jones3.
future... when will this end? Will we ever
get back to the lives we had? “As Coronavirus Takes Emotional Toll, Mental
Health Professionals Brace for Spike in
Demand” – Reuters4.
And so, it goes for “us.” I write “us”
because we are living in a difficult time, “The Mental Health Costs of Containing the
and so of course it is normal to struggle Coronavirus Outbreak: A Pandemic takes a
and to suffer in numerous ways. The
Unique Toll on People with Mental Illnesses” –
grief, the sadness, the loneliness, the
The Hill5.
anxiety... these are all difficulties that can
be expected during such a time. Many of the articles cited above did note
that feeling anxious and depressed
Yet, as this pandemic has unfolded, there during the pandemic could be a
have been numerous articles in the U.S. “normal” reaction. Yet, the language
media and elsewhere worrying about used put this “normal” reaction into a
how the pandemic is stirring new category described as an “illness.” There
episodes of “mental illness,” or, among is an “epidemic” of anxiety loose in our
those who may already have a society. People are suffering from the

25
“symptoms” of mental illness. Normalcy diagnostic equation: you had an illness if
quickly blends into “pathology” in these you felt emotions and behaved in ways
articles. that were said to be “symptoms” of the
disease.
This slide into pathology can be seen in
an August 2020 report by the Centers DSM III was the book that led to the
for Disease Control and Prevention “medicalizing of normal.” And since
(CDC). In a June survey6, the CDC then, the American Psychiatric 26
found that 40% of U.S. adults were Association, as it published successive
suffering from “mental health or editions of its Diagnostic and Statistical
substance abuse” problems. The CDC Manual, has made it easier and easier to
advised that the “public health response diagnose someone – including young
to the Covid-19 pandemic should children – with a psychiatric disorder.
increase intervention and prevention Based on the criteria in DSM IV,
efforts to address associated mental researchers have reported7 that nearly
health conditions”. 20% of American adults suffer from a
bout of mental illness each year, with
And what intervention might be psychiatric drugs the most common
expected? A pill for the anxiety or treatment.
depression is a likely one. Yet, how can
a pill possibly change the difficulties that This psychiatric expansion can exact a
are arising from the pandemic? All a pill toll on both the individual and society.
can possibly do is make one less For the individual, diagnosis and
emotionally engaged with the difficult treatment, within this disease model
environment. Is that a good thing for the framework, encourages a self-image of
individual? Or for society? being “ill”, of being “abnormal,” and that
alone can prove debilitating for a person.
This medicalizing of emotional distress There can be a loss of confidence that
in reaction to the pandemic speaks to a comes with this new self-image and a
larger issue in society today. Over the loss of optimism. The medications may
past 40 years, there has been an also impair one’s emotional response to
extraordinary expansion of the the world and ability to function within
psychiatric enterprise in developed it.
countries, and this can be seen as more
of the same. At a societal level, this expansion of
diagnostic boundaries and increased
In 1980, when the American Psychiatric prescribing of psychiatric drugs has led
Association published the third edition to a public health disaster. The burden
of its Diagnostic and Statistical Manual of mental illness in developed societies
(DSM III), it promoted the idea that has steadily increased during the past 40
depression, anxiety and any number of years. Mood disorders, in particular, are
other diagnoses in the manual were said to be increasing in frequency and
“diseases” of the brain. If you met the severity8. And in developed societies
criteria for a diagnosis of depression or around the world – the United States,
anxiety, there was something amiss UK, Denmark, Sweden, Australia, New
within you. The understanding that often Zealand and so forth – the number of
people got depressed or became adults receiving disability payments due
anxious in response to difficulties in to mental illness9 has increased in
their lives was removed from the

26
lockstep with the increase in prescribing 2. Health Officials Warn of Increasing Mental
of antidepressants. Illness Symptoms During COVID-19 crisis. CBS
affiliate. In:
https://www.wdbj7.com/content/news/Health-
However, the pandemic, oddly enough, officials-warn-of-increasing-mental-illness-
provides societies with an opportunity symptoms-during-COVID-19-crisis-
to curb this psychiatric expansion. The 568956061.html.
articles cited above are meant to stir
empathy for those who are struggling, 3. Mental Health Professionals Are Preparing for 27
an Epidemic of Anxiety Around the Coronavirus.
and regularly offer advice for dealing Mother Jones. In:
with the emotional fallout from the https://www.motherjones.com/politics/2020/03/
pandemic. But precisely because the mental-health-professionals-are-preparing-for-
language of “mental illness” implies that an-epidemic-of-anxiety-around-the-coronavirus/
there is something abnormal or
unhealthy about struggling during these 4. As Coronavirus Takes Emotional Toll, Mental
times, readers are prompted to say, wait Health Professionals Brace for Spike in Demand.
Reuters. In: https://www.reuters.com/article/us-
a minute – can’t we expect to suffer and health-coronavirus-mentalhealth/as-
struggle when our lives have been so coronavirus-takes-emotional-toll-mental-health-
deeply upended? professionals-brace-for-spike-in-demand-
idUSKBN2171HJ.
Indeed, when one reads articles that
pathologize emotional responses to the 5. The Mental Health Costs of Containing the
Coronavirus Outbreak: A Pandemic takes a
pandemic, one is tempted to think: Unique Toll on People with Mental Illnesses. The
wouldn’t it be a bit abnormal to not feel Hill. In: https://thehill.com/changing-
anxious or uneasy during these america/well-being/mental-health/487493-the-
uncertain times? mental-health-cost-of-containing-the.

Thus, perhaps this pandemic is offering 6. Czeisler MÉ, Lane RI, Petrosky E, et al. Mental
Health, Substance Use, and Suicidal Ideation
us a much needed referendum on the During the COVID-19 Pandemic — United
pathologizing – and medicating – of States, June 24–30, 2020. MMWR Morb Mortal
ordinary human reactions. If we resist Wkly Rep 2020; 69:1049–1057. In:
seeing our suffering through that disease https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69/wr/mm
lens, we can then see that so much of 6932a1.htm#suggestedcitation.
the distress present today arises from
social environments that may be terribly 7. Mental Health Information of National
Institute of Mental Health (NIH). In:
unhealthy for so many reasons. https://www.nimh.nih.gov/health/statistics/ment
al-illness.shtml.
In short, the pandemic may help us
rediscover that to suffer in response to 8. Depression News. World Health
difficult environments is to be human. Organization (WHO). In:
https://www.who.int/news-room/fact-
sheets/detail/depression
References
9. Whitaker, R. Causation, not just correlation:
1. Anxiety and Depression Likely to Spike increased disability in the age of Prozac. May
Among Americans as Coronavirus Pandemic 2016. In: https://www.madinamerica.com/wp-
Spreads. ABC News. In: content/uploads/2016/05/Causation-not-just-
https://abcnews.go.com/Health/anxiety- correlation-copy-5.pdf.
depression-spike-americans-coronavirus-
pandemic-spreads/story?id=69749677.

27
O impacto psicológico No entanto, conforme a pandemia
progrediu, diversos artigos na mídia dos
da pandemia: contra a EUA e em outros veículos preocupam-
patologização de nosso se sobre como a pandemia está
sofrimento* provocando novos episódios de
“doenças mentais” ou, entre aqueles que
já possuem um diagnóstico psiquiátrico,
Robert Whitaker como ela está causando um 28
agravamento desses “sintomas”.
A pandemia da covid-19 criou
dificuldades para pessoas em todo o Essa estrutura tem dois efeitos nos
mundo, o que pode ser ainda mais leitores. Somos levados, como
verdadeiro para aqueles que vivem em sociedade, a pensar que lutar dessa
países como Espanha, Estados Unidos e maneira é estar “doente”, e os
Brasil – onde o número de mortos tem indivíduos que sofrem dessa maneira são
sido particularmente alto. Ainda assim, levados a pensar que tem algo errado
conforme notícias da mídia, o termo acontecendo com eles.
doença mental é usado com frequência
para descrever o preço que as pessoas Em suma, usar a linguagem da doença
vêm pagando com relação aos seus define lutas compreensíveis como sendo
efeitos. patológicas, quando, na verdade, essas
lutas devem ser entendidas – e
Existem, é claro, muitos motivos pelos respondidas – como uma reação comum
quais a pandemia do coronavírus está a esses tempos difíceis.
afetando todos nós. Estamos sofrendo
com a morte de entes queridos, com o Aqui estão algumas manchetes de março
medo de ficarmos doentes com o vírus e abril nos Estados Unidos:
ou de que outras pessoas próximas a
nós adoeçam. Sentimos falta de como
“Ansiedade e depressão tendem a aumentar a
nossa vida costumava ser. Sentimo-nos
entre os americanos conforme a pandemia de
solitários devido às regras de
coronavírus se espalha” – ABC News1.
distanciamento social. Ficamos tristes
porque nossos filhos não podem brincar “Profissionais da área da saúde alertam sobre
como faziam antes. Perdemos nosso o aumento dos sintomas de doenças mentais
emprego e, agora, lutamos para comprar
durante a crise da covid-19” – CBS affiliate2.
comida e pagar o aluguel. Ficamos
ansiosos ao imaginar o futuro. Quando “Profissionais que cuidam da saúde mental
isso irá acabar? Será que algum dia estão se preparando para uma epidemia de
voltaremos à vida que costumávamos ansiedade devido ao coronavírus” – Mother
ter? Jones3.

E isso vale para “nós”. Escrevo “nós” “Conforme o coronavírus nos afeta
porque vivemos um momento difícil e, emocionalmente, os profissionais que cuidam
por isso, é normal lutar e sofrer de da saúde mental se preparam para um
várias maneiras. A dor, a tristeza, a aumento na demanda de seus serviços” –
solidão, a ansiedade... todas essas são Reuters4.
dificuldades que podem ser vividas
durante esse período. “Os custos à saúde mental para conter o surto
do coronavírus: os impactos únicos de uma

28
pandemia nas pessoas com doenças mentais” desenvolvidos, fato que pode ser
– The Hill5. interpretado como mais do mesmo.

Muitos dos artigos supracitados Em 1980, quando a Associação


observaram que sentir-se ansioso e Americana de Psiquiatria publicou a
deprimido durante a pandemia pode ser terceira edição de seu Manual
uma reação “normal”. No entanto, a Diagnóstico e Estatístico de
linguagem utilizada categoriza essa Transtornos Mentais (DSM III), a ideia 29
reação “normal” como uma “doença”. de que depressão, ansiedade e qualquer
Há uma “epidemia” de ansiedade outro diagnóstico no manual eram
correndo solta em nossa sociedade. As “doenças” mentais foi promovida.
pessoas estão sofrendo de “sintomas” Quem atendesse aos critérios de um
de doenças mentais. A normalidade diagnóstico de depressão ou ansiedade
rapidamente se confunde com a sabia que tinha algo de errado dentro de
“patologia” nesses artigos. si. A compreensão de que muitas vezes
as pessoas ficavam deprimidas ou
Esse movimento em direção à patologia ansiosas em resposta às dificuldades em
é encontrado em um relatório de agosto sua vida foi removida da equação
de 2020 dos Centros para Controle e diagnóstica: as pessoas estavam doentes
Prevenção de Doenças (CDC). Em uma caso sentissem emoções e se
pesquisa realizada em junho6, os CDC comportassem de maneiras que
descobriram que 40% dos adultos dos configuravam os “sintomas” de uma
EUA sofriam de problemas de “saúde determinada doença.
mental ou abuso de substâncias”. Os
CDC informaram que a “resposta de O DSM III foi o livro que levou à
saúde pública à pandemia da covid-19 “medicalização do normal”. Desde
deve aumentar os esforços de então, a Associação Americana de
intervenção e prevenção para lidar com Psiquiatria, ao publicar edições
as condições de saúde mental a elas sucessivas de seu Manual Diagnóstico e
associadas”. Estatístico de Transtornos Mentais,
tornou cada vez mais fácil diagnosticar
E quais intervenções podemos esperar? alguém – incluindo crianças pequenas –
Provavelmente, um remédio para com um transtorno psiquiátrico. Com
ansiedade ou depressão. No entanto, de base nos critérios do DSM IV, os
que forma um remédio poderia pesquisadores relataram que quase 20%
modificar as dificuldades que surgiram dos adultos americanos sofrem de um
com a pandemia? Na melhor das surto de doença mental a cada ano,
hipóteses, conseguiria deixar as pessoas sendo as drogas psiquiátricas o
menos envolvidas emocionalmente com tratamento mais comum para elas7.
o cenário difícil que se apresenta. Isso é
bom para o indivíduo? E para a Essa expansão psiquiátrica pode causar
sociedade? prejuízos tanto ao indivíduo quanto à
sociedade. Para o indivíduo, o
Essa medicalização do sofrimento diagnóstico e o tratamento, dentro
emocional em reação à pandemia está desse modelo de doença, estimulam
relacionada a um problema maior na uma autoimagem de estar “doente”, de
sociedade atual. Nos últimos 40 anos, ser “anormal”, e isso, por si só, pode ser
houve uma expansão extraordinária do debilitante para uma pessoa. É possível
empreendimento psiquiátrico nos países que haja uma perda de confiança, que

29
acompanha essa nova autoimagem, e de sentirmos ansiosos ou inquietos nesses
otimismo. Os medicamentos também tempos de incerteza?
podem prejudicar a resposta emocional
de uma pessoa ao mundo e sua Portanto, talvez a pandemia esteja nos
capacidade de funcionar dentro dele. oferecendo um referendo muito
necessário sobre a patologização – e a
Em nível social, essa expansão das medicação – das reações humanas
fronteiras diagnósticas e o aumento da comuns. Se resistirmos a analisar nosso 30
prescrição de drogas psiquiátricas sofrimento através das lentes das
levaram a um desastre de saúde pública. doenças, conseguiremos enxergar que
O fardo das doenças mentais nas grande parte do sofrimento presente
sociedades desenvolvidas está surge em ambientes sociais que podem
aumentando constantemente nos ser extremamente prejudiciais por
últimos 40 anos. Os transtornos do muitos motivos.
humor, em particular, estão
aumentando em frequência e gravidade8. Em suma, a pandemia pode nos ajudar a
E nas sociedades desenvolvidas em todo redescobrir que sofrer em resposta a
o mundo – Estados Unidos, Reino ambientes difíceis apenas significa que
Unido, Dinamarca, Suécia, Austrália, somos humanos.
Nova Zelândia e assim por diante – o
número de adultos que recebem por Referências bibliográficas
invalidez devido a doenças mentais9
aumentou concomitantemente ao
1. Anxiety and Depression Likely to
aumento da prescrição de
Spike Among Americans as Coronavirus
antidepressivos.
Pandemic Spreads. ABC News. In:
https://abcnews.go.com/Health/anxiety-
Contudo, a pandemia está oferecendo depression-spike-americans-
às sociedades a oportunidade de conter coronavirus-pandemic-
essa expansão psiquiátrica, por incrível spreads/story?id=69749677.
que pareça. Os artigos citados
anteriormente têm como objetivo
2. Health Officials Warn of Increasing
despertar empatia com quem está
Mental Illness Symptoms During
passando por dificuldades e oferecem,
COVID-19 crisis. CBS affiliate. In:
com regularidade, conselhos para lidar
https://www.wdbj7.com/content/news/
com as consequências emocionais da
Health-officials-warn-of-increasing-
pandemia. Justamente devido à
mental-illness-symptoms-during-
linguagem da “doença mental” implicar
COVID-19-crisis-568956061.html.
que exista algo anormal ou doentio na
luta do momento, os leitores são
levados a parar e pensar: já não era 3. Mental Health Professionals Are
esperado sofrimento e luta visto que a Preparing for an Epidemic of Anxiety
nossa vida sofreu uma transformação Around the Coronavirus. Mother Jones.
tão profunda? In:
https://www.motherjones.com/politics/
2020/03/mental-health-professionals-
Na verdade, quando lemos artigos que
are-preparing-for-an-epidemic-of-
patologizam as respostas emocionais à
anxiety-around-the-coronavirus/
pandemia, ficamos tentados a pensar:
não seria um pouco anormal não nos
4. As Coronavirus Takes Emotional Toll,
Mental Health Professionals Brace for

30
Spike in Demand. Reuters. In:
https://www.reuters.com/article/us-
health-coronavirus-mentalhealth/as-
coronavirus-takes-emotional-toll-
mental-health-professionals-brace-for-
spike-in-demand-idUSKBN2171HJ.

5. The Mental Health Costs of 31


Containing the Coronavirus Outbreak:
A Pandemic takes a Unique Toll on
People with Mental Illnesses. The Hill. In:
https://thehill.com/changing-
america/well-being/mental-
health/487493-the-mental-health-cost-
of-containing-the.

6. Czeisler MÉ, Lane RI, Petrosky E, et


al. Mental Health, Substance Use, and
Suicidal Ideation During the COVID-19
Pandemic — United States, June 24–30,
2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep
2020; 69:1049–1057. In:
https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69
/wr/mm6932a1.htm#suggestedcitation.

7. Mental Health Information of National


Institute of Mental Health (NIH). In:
https://www.nimh.nih.gov/health/statisti
cs/mental-illness.shtml.

8. Depression News. World Health


Organization (WHO). In:
https://www.who.int/news-room/fact-
sheets/detail/depression

9. Whitaker, R. Causation, not just


correlation: increased disability in the
age of Prozac. May 2016. In:
https://www.madinamerica.com/wp-
content/uploads/2016/05/Causation-
not-just-correlation-copy-5.pdf.

* Texto traduzido por Bruna Beatriz


Gabriel, professora, tradutora e
intérprete, membro da Associação
Brasileira de Tradutores e Intérpretes;
Tradução do texto “The Psychological
Impact of a Pandemic: Let’s Not
Pathologize Our Suffering”.

31
Trabalhadores da saúde emergências, unidades de terapia
intensiva (UTIs), enfermarias etc.
na linha de frente da relatam sofrimento que vêm afetando
Covid-19: implicações sua saúde mental e física.
para a saúde mental
Além das exigências profissionais e
pessoais, questões relacionadas à
Luciene de Aguiar Dias e Sônia Regina da organização, à intensificação e ao 32
Cunha Barreto Gertner aumento do fluxo de trabalho
ocasionam estresse e desgaste.
A maior crise sanitária desse século
provocada pela epidemia da Covid-19 Saúde e trabalho
impactou profundamente a vida
cotidiana das populações de mais de 200 Nesse contexto de incerteza e
países ao redor do planeta. Os sistemas desconhecimento, de inexistência de
estão sendo levados a situações de vacina, de terapia comprovada e de
pressão sem precedentes: saúde pública, testagem insuficiente, as condições de
economia e segurança social. Perdas e trabalho devem ser motivo de estudo e
prejuízos alcançam os indivíduos, as investigações. Rego e Palácios, baseados
famílias, as comunidades, e isto de forma na ergonomia francesa, nos levam a
bem diferenciada, especialmente no refletir sobre os impactos do trabalho na
Brasil. Em uma sociedade tão desigual saúde mental dos trabalhadores de
como a nossa, a situação de recessão saúde1. Citam Wisner (1994), ao
econômica só agrava a realidade da assinalar os três aspectos da carga de
pobreza e do desemprego. trabalho: a carga física, a carga cognitiva
e a carga psíquica. No entanto,
Diante do desconhecido, o isolamento acrescentam a carga moral, “aquela que
foi indicado como a medida demanda do trabalhador a tomada de
mundialmente adotada para o controle decisões, que mobilizam não só o fazer
da transmissão do coronavírus, técnico, mas também os conteúdos que
enquanto as pesquisas e a busca por o permitam tomar uma decisão em
vacinas e medicamentos são consonância com sua estrutura moral”1.
intensificadas. Contudo, o governo Por exemplo, no caso de escassez de
brasileiro faz questão de minimizar o recursos ou leitos no CTI, qual a escolha
risco, mesmo diante de um número a ser feita, em que bases e critérios,
triste e assombroso de mais de 130 mil daquele que deverá ser atendido e, por
mortes em início de setembro. A isso, talvez ser salvo ou morrer.
experiência do isolamento, para alguns, “Lembrando que a carga é sempre uma
intensificou sentimentos de solidão, relação entre as exigências do trabalho
desamparo, tédio, tristeza e medo que e os recursos que se pode lançar mão,
impactam a vida de modo geral. de cada trabalhador e coletivamente”1.
Refletindo sobre a carga moral e seu
impacto no sofrimento dos
No setor da saúde, temos milhões de
trabalhadores, nos reportamos a
trabalhadores que em sua rotina diária
Foucault (2005) na analogia que faz entre
enfrentam igualmente estes
o Monarca soberano que determinava
sentimentos, acrescidos da incerteza e
quem iria deixar viver ou deixar morrer,
preocupações trazidos pelos riscos a sua
com a reaparição de escolhas eugênicas
saúde e a de sua família. Profissionais que
por meio das quais se decide entre o
estão atuando no frontline, nas
“fazer viver e deixar morrer”.

32
A angústia muitas vezes é devido aos pandemia, como estresse pós-
2
aspectos do trabalho que trazem essa traumático . Esta informação nos coloca
sensação de vulnerabilidade, medo e em alerta para a necessidade da atenção
insegurança. Segundo Rego e Palácios, ao cuidado em saúde mental. Os autores
“essa carga psíquica pode gerar quadros analisam outro estudo com 1.563
psicossomáticos ou de distúrbios profissionais, que mostrou que 50,7%
mentais menores ou serem gatilhos para relataram sintomas depressivos, 44,7%
quadros psicopatológicos mais graves”1. ansiedade e 36,1% distúrbios do sono2. 33
E citam alguns exemplos de situações Carga de trabalho excessiva, isolamento
que acontecem no cotidiano das e discriminação foram relatados como
relações e ambientes de trabalho, tais agravantes do sofrimento psíquico,
como o assédio moral, violência no tornando-os vulneráveis a sofrer
trabalho, a falta de controle/participação exaustão física e psíquica, medo,
dos trabalhadores, condições de distúrbios emocionais e problemas de
trabalho precárias e o isolamento social sono, sintomas mais identificados em
no trabalho. enfermeiras, mulheres e profissionais
que prestavam cuidado direto a
No atual contexto da pandemia, a pacientes com Covid-19.
situação de trabalhadores da saúde no
Estado do RJ que foram contratados Em estudo realizado na Pandemia de
pelo governo estadual, através de uma Covid-19, Humerez, Ohl e Silva citam a
Organização Social, para atuarem em observação da Organização Mundial da
Hospitais de Campanha, traz à luz essa Saúde (OMS) de que os trabalhadores da
realidade. Trabalharam dois meses sem enfermagem pressionados apresentam
receber e tinham que decidir se altos níveis de ansiedade, acrescidos do
abandonariam seus postos com risco de adoecer, provocando severos
pacientes ou se continuariam problemas de saúde mental e
trabalhando e talvez nunca vir a receber, aumentando os casos da Síndrome de
colocando em risco sua própria saúde. É Burnout3. Acrescentamos que outras
inquestionável o impacto sobre a saúde reações comportamentais podem se
mental desses trabalhadores devido ao somar a estas observações, tais como
somatório das diferentes cargas de alterações ou distúrbios de apetite,
trabalho. distúrbios do sono e conflitos
interpessoais.
Enfrentamento do sofrimento
psíquico durante a pandemia Nem todos que trabalham com Covid-
19 vão adoecer psiquicamente. Na
Identificar os fatores estressores é um Psicodinâmica do Trabalho, abordagem
primeiro passo para o cuidado da saúde desenvolvida por Christophe Djours,
dos trabalhadores da saúde que, observa-se que alguns trabalhadores
inevitavelmente, estão mais vulneráveis desenvolvem defesas para o seu não
inclusive para as questões emocionais. adoecimento, a despeito das condições
adversas à saúde provocadas pela
Saidel et al comentam dados de estudo organização do trabalho. Diante das
desenvolvido na China em que se adversidades do trabalho o trabalhador
observou que vários profissionais de busca recursos individuais e coletivos
saúde ficaram traumatizados pela que podem minorar o sofrimento. Cabe
epidemia e sofrem de sintomas ressaltar que sofrimento psíquico não é
psiquiátricos persistentes mesmo após a doença. Portanto, é preciso avaliar bem
a necessidade de medicalizar alguns

33
sinais esperados frente à situação limite. de proteção individual; b) Treinamento
O contexto de pandemia requer essa adequado; c) Informações seguras; d)
maior atenção ao trabalhador de saúde. Espaço agradável de descanso, com
atividades de lazer e fornecimento de
Materiais produzidos pela Fiocruz alimentação adequada.
trazem reflexões e recomendações úteis
aos gestores e equipes de trabalho4. Finalizando, as questões aqui
Algumas reproduzimos aqui. apresentadas não abrangem todas as 34
dificuldades encontradas pelos
1. Mapear e divulgar ações de trabalhadores, muito menos esgota as
cuidado em saúde mental disponíveis soluções, porém esperamos ter
para os trabalhadores, como: suporte contribuído com o tema no sentido de
psicológico on-line, equipes de saúde destacar a necessidade de atenção à
mental que possam atender os saúde mental daqueles que estão no
trabalhadores e/ou atuar junto aos frontline, sem descuidar dos demais
profissionais de saúde in loco com os trabalhadores. Saúde mental não se
pacientes e núcleos de saúde do enfrenta sozinho (a), muito menos em
trabalhador. tempos de pandemia – precisa ser alvo
de atenção e mobilizar
2. Evitar responsabilizar ou responsabilidades individual, coletiva e
culpabilizar individualmente algum institucional.
trabalhador que esteja encontrando
dificuldades ou que precise se ausentar Referências bibliográficas
das suas atividades. É preciso pensar a
situação, as condições de trabalho e as 1. Rego S, Palácios M. Saúde mental dos
estratégias coletivas de enfrentamento; trabalhadores de saúde em tempos de
coronavírus. Publicada no Informe
3. Garantir comunicação de boa ENSP. RJ, 30 março de 2020. Acesso em
qualidade e atualizações das informações https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocr
pode atenuar a incerteza que os uz.br/files/documentos/saude_mental_d
trabalhadores têm, bem como ajudar a os_trabalhadores_de_saude_em_temp
proporcionar uma sensação de controle; os_de_coronavirus.pdf

4. Garantir que sua equipe tenha o 2. Saidel MGB, Lima MHM, Campos
descanso e a recuperação de que CJG, Loyola CMD, Esperidião E, Santos
precisa. O descanso é importante para o JR COVID-19: saúde mental dos
bem-estar físico e mental e permitirá profissionais de saúde. Ver. enferm.
que os trabalhadores implementem suas UERJ, Rio de Janeiro, 2020;
atividades de autocuidado necessárias; 28:e49923.Acesso em 30 de
Agos.2020.https://www.e-
5. Mobilizar reuniões permitindo publicacoes.uerj.br/index.php/enfermag
que os trabalhadores expressem suas emuerj/article/view/49923/33859
preocupações e tirem suas dúvidas.
3. Humerez DC de, Ohl RIB, Silva MCN
A principal intervenção sobre a saúde da. Saúde mental dos profissionais de
mental da equipe de linha de frente é enfermagem do Brasil no contexto da
garantir boas condições de trabalho e de pandemia Covid-19: ação do Conselho
descanso, assegurando5: a) Confiança na Federal de Enfermagem. Cogitare
eficiência e qualidade dos equipamentos enferm. [Internet]. 2020 [acesso em 30

34
de ago. de 2020. Disponível em:
https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/vi
ew/74115/40808

4. Weintraub, Ana Cecília A. de Moraes


et al. Saúde mental e atenção
psicossocial na pandemia COVID-19:
orientações aos trabalhadores dos 35
serviços de saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz/CEPEDES, 2020. Cartilha. 17p.
Acesso em 30 de agos de 2020:
https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/ic
ict/41828/2/Cartilha_TrabalhadoresSau
de.pdf

5. Barbosa, C.et al. Orientações para o


cuidado e autocuidado em saúde mental
para os trabalhadores da FIOCRUZ –
Diante da pandemia da doença pelos
SARS-COV-2 (Covid-19). Versão
26.03.2020.

35
O impacto na saúde perguntarmos se haveria outras
necessidades mais urgentes como a
mental dos adequação das condições de trabalho,
trabalhadores da saúde dos equipamentos de proteção
no frontline: reflexões e individual, da organização dos turnos e
plantões, dos salários, dos locais de
desafios descanso e outros, para que pudessem
realizar suas atividades de modo mais 36
Luciana Bicalho Cavanellas e Marcello tranquilo e seguro.
Santos Rezende
Faltaram perguntas antes das respostas!
”Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”1.
A preocupação com os profissionais de
A pandemia da Covid-19, além dos saúde é maior justamente porque se
impactos inerentes a uma crise de supõe que ao lidar com maior risco de
tamanha dimensão, tem tornado contágio e morte ele estaria mais
evidente a gravidade de problemas e propenso ao sofrimento psíquico. No
desafios já existentes previamente. entanto, se pudéssemos medir o grau de
sofrimento dos diferentes grupos
O trabalhador da Saúde e a Saúde populacionais, poderíamos de fato
Mental dos trabalhadores foram alguns afirmar que esse é o grupo que mais
dos assuntos que se tornaram foco de sofre? E, além disso, poderíamos
atenção nesses tempos, mas sabemos relacionar este sofrimento
nós que esses são temas antigos e caros exclusivamente às circunstâncias
ao campo da Saúde do Trabalhador e geradas pela pandemia?
das Clínicas do Trabalho2,3.
Os profissionais da saúde já enfrentavam
Curiosamente, na pandemia, a um contexto de trabalho permeado pela
preocupação com a saúde mental dos sobrecarga e precarização. Viana,
trabalhadores da saúde na linha de Martins e Frazão4 apontam para um
frente tomou proporções inéditas, quadro de modalidades contratuais
atingindo a sociedade como um todo e frágeis, inadequação quantitativa do
gerando respostas significativas por quadro de pessoal, baixa qualificação
parte de pessoas, grupos e instituições profissional e alta rotatividade que
que se organizaram rapidamente para resultam em sobrecarga de trabalho,
levar apoio psicológico e/ou diferentes diminuição do grau de autonomia e
ofertas de cuidado para esses ausência de reconhecimento e apoio
profissionais. social oferecido pelos colegas, chefias e
usuários dos serviços.
Do nosso ponto de vista, no entanto, as
respostas vieram antes das perguntas. As organizações de saúde já são
Faltou perguntarmos sobre que tipo de comumente reconhecidas como
cuidado seria necessário para insalubres, e perigosas: o contato direto
conseguirem realizar seu trabalho e se com situações limites, o elevado nível de
manterem na chamada linha de frente. tensão e altos riscos para si e para as
Faltou perguntarmos sobre que tipo de outras pessoas, contato com agentes
suporte médico e psicológico gostariam infecciosos, dentre outras5. Ao lado
de receber, se gostariam, e se seria esse disso, se olharmos para maioria dos
o melhor momento. Faltou profissionais de saúde, como indica o

36
perfil dos profissionais de enfermagem saúde que mostraram irritabilidade e
no Brasil6 encontramos uma difícil estresse, mas recusaram qualquer ajuda
realidade de trabalho: 64,2% sentem e afirmavam que não tinham quaisquer
desgaste profissional associado ao uso problemas. Muitos trabalhadores
de força física ao longo do dia; mencionaram que não precisavam de um
sobrecarga, escassez de recursos psicólogo, e sim de mais descanso,
humanos; falta de condições de trabalho; número suficiente de EPIs, e maior
baixos salários e elevadas exigências de preparo para lidar com os pacientes que 37
cumprimento de metas; 39,4% não se não cooperavam por causa do pânico ou
sentem à vontade para expressar falta de conhecimento sobre a doença.
opiniões e queixas, ou até mesmo O hospital investiu em locais de
discutir a melhor forma de organizar o descanso, alimentação saudável,
trabalho com os superiores treinamento sobre conhecimento da
hierárquicos; 60% não se sentem doença e medidas de proteção, além de
protegidos no ambiente de trabalho. identificação e respostas a problemas
psicológicos em pacientes com Covid-
Na linha de frente da luta contra a 19.
Covid-19, os trabalhadores da saúde
têm, portanto, sofrido enorme pressão Em nossa realidade brasileira, temos
para atuar em uma estrutura que já se visto um enorme número de redes de
apresentava insuficiente. A pandemia apoio sendo criadas, com profissionais
veio acrescentar novos agravantes como disponíveis para atendimentos online,
a proteção inadequada; treinamento em modalidades diferentes, e uma
inadequado ou mesmo ausente; procura reduzida por parte dos
protocolos para tratamento inexistentes trabalhadores da saúde, contrariando as
ou em elaboração; discriminação pelos expectativas e o desejo de contribuir e
parentes, amigos, vizinhos, por um lado, fazer parte de uma engrenagem que, em
e falta de contato com familiares, além última instância, pretende salvar vidas.
de medo de contaminá-los, por outro
lado7. Também temos visto um número
alarmante de profissionais de saúde
O primeiro relato de que tivemos afastados, contaminados pelo covid-19,
conhecimento tratando de uma precisando se recuperar para voltar à
intervenção em saúde mental no linha de frente, por falta de recursos, de
contexto da Covid foi através de um gente, de estrutura, de fragmentação de
artigo relatando a experiência de uma um sistema de saúde profundamente
atuação voltada para os profissionais de abalado por inúmeras intervenções ao
saúde de um grande hospital de longo do tempo. São trabalhadores
referência para Covid na China8. Este esgotados e exauridos pelo excesso de
artigo descreve o que deu certo e o que trabalho duro, difícil, isolado, triste,
deu errado nesta intervenção, incerto..., que não podem parar,
apontando para uma maior descansar, conviver, se abraçar,
complexidade no que tange às questões compartilhar com colegas ou familiares.
de saúde mental e trabalho. Nesse Junto a isso, temos uma histórica falta de
hospital foi desenvolvida uma aproximação e intimidade com as
intervenção psicológica que incluía práticas psicológicas e psicoterápicas
atendimento individual e de grupo. No por grande parte dos profissionais de
entanto, a implementação deste serviço saúde, já acostumados à medicalização
encontrou obstáculos: profissionais do sofrimento, assim como boa parte da
relutantes em participar. Profissionais de sociedade.

37
Ao mesmo tempo em que esses sociedade brasileira contemporânea.
trabalhadores são chamados de heróis 1ed.Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011.
por um lado, por outro são descartados,
precarizados e estigmatizados. Heróis 3. Glina DMB, Rocha LE. (Org.) Saúde
num dia, subempregados e possíveis mental no trabalho: da teoria à prátic.
desempregados no outro. Poderíamos São Paulo: Roca, 2010.
acrescentar que existem muitos
trabalhadores da “linha de trás” 4. Viana D, Martins C, Frazão P. Gestão 38
precisando de apoio, mas esse é outro do trabalho em saúde: sentidos e usos
assunto... da expressão no contexto histórico
brasileiro. Trab. educ. saúde [online].
Sim, os trabalhadores da linha de frente 2018, vol.16, n.1, pp.57-78. Epub Dec
encontram-se pressionados, fatigados e 11, 2017. ISSN 1981-7746.
sofrem com isso. No entanto, oferecer https://doi.org/10.1590/1981-7746-
exclusivamente suporte médico e sol00094.
psicológico pode não apenas ser pouco
eficaz, mas também encobrir uma 5. Máximo T, Torres T, Sousa A, Franco
realidade de condições de trabalho de Medeiros MB, Silva W, Silva K, Silva J.
historicamente desfavoráveis. Trabalhadores(as) da saúde em foco:
reconhecimento e saúde no trabalho.
Então, antes de nos apressarmos em João Pessoa: Editora UFPB, 2020.
continuar a dar respostas, o que ainda
precisamos ver? De que sofrimento se 6. Machado M, Santos M, Oliveira E,
trata? Como ele se engendra e se Wermelinguer M, Vieira M, Lemos W,
transforma? E, afinal, que estratégias Ferraz W, Aguiar Filho W, Souza Junior
podem ser repensadas e recriadas numa P, Justino E & Barbosa C. Condições de
situação de extrema dificuldade e Trabalho da Enfermagem. Enfermagem
desafios imprevisíveis? Finalmente, o que em Foco, 7, 63-71, 2016
os faz continuar?
7. Souza E, Njaine K, Ribeiro A, Legay L
Entendemos que precisamos estar & Meira K. Abrasco: GT Violência e
atentos ao que essa pandemia nos Saúde - Especial Coronavirus, 2020 19
possibilita enxergar e, no que se refere maio. 5p.
à saúde mental, mais uma vez,
precisamos ter a capacidade de
8. Chen Q, Liang M, Li Y, et al. Mental
reconhecer-lhe a importância, mas
health care for medical staff in China
também a complexidade.
during the COVID-19 outbreak. Lancet
Psychiatry. Published Online, February
Referências Bibliográficas: 18, 2020 https://doi.org/10.1016/S2215-
0366(20)30078-X
1. Saramago, J. Epígrafe do "Ensaio sobre
a cegueira", citando o "Livro dos
Conselhos" de El-Rei D. Duarte.

2. Athayde M. Saúde 'Mental' e Trabalho:


Questões para discussão no campo da
Saúde do Trabalhador. In: Minayo-
Gomes C, Machado JMH, Pena PGL.
(Org.). Saúde do trabalhador na

38
Subjetividade e gestão compõem o desafio da tomadas de
decisões sobre a produção de cuidado.
da clínica no combate à
Covid-19 Os serviços de saúde, neste momento,
são exigidos de respostas rápidas e
Luna Cassel Trott e Paulo Duarte de eficazes, se fazendo necessária a
Carvalho Amarante reorganização de seus modos de
trabalho. Ainda que o âmbito hospitalar 39
tenha ganhado centralidade no
Estamos vivendo um novo período de enfrentamento à Covid- 19, toda a rede
desafio na produção do cuidado no SUS. de atenção sofreu adaptações e
Se desde a sua constituição os temas prossegue realizando a gestão da clínica
sobre financiamento, precarização das a partir da gestão dos casos, das
relações de trabalho, desafios clínico- condições de saúde, das listas de espera
assistenciais já demonstravam a de eventos de Covid-19 ou outros
complexidade do ato de cuidar, hoje agravos.
esta dimensão cresce ainda mais.
Entendemos como gestão da clínica um
Trata-se de um momento de novidades: conjunto de ferramentas de micro
no mês de janeiro deste ano, a gestão dos serviços presentes no
Organização Mundial de Saúde (OMS) trabalho em saúde, que contribuem para
declarou o Novo Coronavírus como assegurar bons padrões clínicos,
uma emergência de saúde pública de aumentar eficiência e diminuir riscos
importância internacional1 e, em março, para profissionais e usuários4. Neste
foi caracterizada como uma pandemia contexto, então, essas ferramentas
pela mesma organização. Neste novo tomam novas configurações. Dentre as
contexto, temos visto serviços, mudanças no fluxo de trabalho
instituições de pesquisa e profissionais orientadas pelo Ministério da Saúde
que atendem diretamente à população estão as diferentes filas de espera, a
lançarem exaustivos esforços na presença dos materiais de biossegurança
tentativa de criar mecanismos de para os profissionais, novas divisões de
enfrentamento a uma enfermidade turno, diferenças na regulação dos
desconhecida e à situação psicossocial serviços, entre outros5.
que se instaura e agrava as
vulnerabilidades já existentes. A Além disso, vemos uma outra dimensão
vigilância epidemiológica é dinâmica, implicada nesta produção do cuidado e
atualizações e novas orientações são que tem impacto sobre a efetivação da
feitas a todo momento2. atenção à saúde: as relações subjetivas
presentes no processo de cuidado. Para
Na esfera social, a perda significativa de além dos desafios já presentes, os
vidas brasileiras, os diferentes impactos agentes de saúde podem experimentar
causados pela desigualdade, a novas sensações diante do contexto
necessidade de medidas de proteção pandêmico. Estudos sobre os
social3 e os aspectos psicossociais trabalhadores enfermeiros, por
decorrentes do afastamento, exemplo, comunicam que estes
complementam os desafios presentes do profissionais têm lidado com o medo de
cotidiano da atenção e demandam novas ser contaminado, as altas demandas e
formas de trabalho para os profissionais afastamento de colegas6, sensações de
da saúde. Isto é, são aspectos que frustração, sentimento de impotência e

39
insegurança profissional7. Além disso, Ferramentas que vêm sendo construídas
em trabalhos em situação de desastres e utilizadas diante da restrição do
os profissionais podem sofrer com a contato presencial são as tecnologias de
exaustão física e emocional, dificuldade comunicação, por meio de aplicativos de
em gerir os efeitos psicossociais dos mensagem de texto e voz, chamadas de
usuários dos serviços, dilemas éticos áudio e vídeo, para atendimentos e para
profissionais, entre outros8, além de reuniões de equipe, a construção de
lidar com a precarização e flexibilização articulações intersetoriais, o trabalho 40
já existentes nas relações de trabalho do conjunto com atores sociais do
SUS. território, entre outros. Experiências de
aproximação entre serviços
Não é novo que as relações subjetivas especializados e atenção básica são
sejam tomadas como parte da produção ampliados. Destaca-se a necessidade
do cuidado em saúde. Merhy9 colocada em conectar as redes
desenvolve a perspectiva deste ofício existentes, avivar coletivos, espaços de
como um trabalho vivo em ato, ou seja, elaboração entre as equipes para os
que é realizado a partir de técnicas conflitos do cotidiano do cuidado, entre
relacionais, no encontro entre outras possibilidades de reflexão
subjetividades. Nos processos de coletiva. Nos territórios, redes de
organização do trabalho, as relações solidariedade e cuidado mútuo também
intersubjetivas, como possíveis defesas têm lugar fundamental na organização da
dos trabalhadores para o que faz sofrer, atenção à saúde11,12.
a questão do lugar do reconhecimento e
a ausência do sentido sobre o fazer Se pensarmos a execução da gestão da
profissional e a relação com a morte na clínica, então, vemos que esta se
produção do cuidado10, são aspectos encontra atravessada por estes
comuns na saúde. aspectos. Essas ferramentas de micro
gestão, se encontram nesse intermédio
Considerar as relações subjetivas do entre a gestão dos processos de
cuidado neste contexto torna-se, assim, trabalho e a dimensão subjetiva na
uma questão importante. Entretanto, é relação da produção do cuidado, à
necessário que haja cautela em relação a medida que exige decisões e
uma possível patologização de respostas negociações entre trabalhadores e
psicossociais à situação de desastre que usuários. Essas relações também estão
vivemos. Estamos experimentando presentes e têm sua especificidade na
novas formas de nos relacionarmos, de situação de pandemia.
lidarmos com as dificuldades impostas
socialmente pela pandemia. Por isso, ao Portanto, vemos que a relação entre
olharmos com reducionismo às essa gestão da clínica e a subjetividade
manifestações de sofrimento presentes no contexto da pandemia gera impactos
neste momento, corremos o risco de sobre a efetividade e eficiência do
cairmos em uma lógica centrada na trabalho, além da manutenção da
doença e de uma atenção medicalizante. própria saúde dos trabalhadores e
Neste sentido, damos destaque para o usuários. Neste novo momento de
caráter inventivo das equipes que desafios na produção do cuidado no
seguem realizando o trabalho em uma SUS, pensar o planejamento das ações
perspectiva ampliada de cuidado. de combate à Covid- 19 e seus novos
arranjos em saúde, para durante e pós
pandemia, exige o olhar sobre a
subjetividade de quem executa, em ato,

40
o cuidado à população. E ainda mais para 9. Research, Society and
as possibilidades de invenção coletiva na development[Internet]. 2020; 9:8.
efetivação de um cuidado que
potencialize a vida. 8. Ordem dos psicólogos. COVID-19.
Autocuidado e bem-estar dos
Referências Bibliográficas profissionais de saúde durante a
pandemia. 2020.
1. Organización Panamericana de La 41

Salud. Consideraciones psicossociales y 9. Merhy EE. Saúde: A cartografia do


de La salud mental durante el brote de trabalho vivo. 3. ed. São Paulo:Hucitec;
COVID-19. 2020. 2002.

2. Brasil. Ministério da Saúde. 10. Sá MC, Azevedo CS. Subjetividade e


Recomendações de proteção aos gestão:explorando as articulações
trabalhadores dos serviços de saúde no psicossociais no trabalho gerencial e no
atendimento de COVID-19 e outras trabalho em saúde. Ciência e Saúde
síndromes gripais. 2020. Coletiva[Internet]. 2010. 15(5).
Disponível em:
3. Perissé A, Leandro BB, Baristella CE, https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1
Barcellos C, Santos JL, Angelo JR, et al. 413-
Nota técnica: COVID-19 e 81232010000500010&script=sci_abstra
vulnerabilidades- Considerações sobre ct&tlng=pt
proteção social nas favelas. FIOCRUZ;
2020. 11. Cruz NMLV, Souza EB, Sampaio CSF,
Santos AJM, Chaves SV, Hora RN, et al.
4. Ministério da Saúde (Brasil). Portaria Apoio psicossocial em tempos de
nº. 4.279 de 30 de dezembro de 2010. COVID-19: experiências de novas
Estabelece diretrizes para organização estratégias de gestão e ajuda mútua no
da Rede de Atenção à Saúde no âmbito sul da Bahia, Brasil. APS em
do Sistema Único de Saúde. Diário revista[Internet]. 2020.2. Disponível em:
Oficial da União 31 dez 2010; Seção 1. https://apsemrevista.org/aps/article/view
/94
5. Brasil. Ministério da Saúde.
Orientações para o manejo de pacientes 12. Rodrigues MGA, Almeida AA,
com COVID19. 2020. Ferreira TF, Goldenzweig RE, Amarante
PDC. Saúde Mental, articulações
6. Moreira AS, Lucca SR de. Apoio intersetoriais e o apoio da universidade
psicossocial e saúde mental dos em tempos de COVID-19. Diversitates
profissionais de enfermagem no International Journal[Internet].
combate ao covid-19. Enferm Em Foco 2020.12(1).Disponível em:
[Internet]. 2020;11. Disponível em: http://www.diversitates.uff.br/index.php
http://revista.cofen.gov.br/index.php/enf /1diversitates-uff1/article/view/309
ermagem/article/view/3590

7. Pereira MD, Torres EC, Pereira MD,


Antunes PFS, Costa CFT. Sofrimento
emocional dos enfermeiros no contexto
hospitalar frente à pandemia de COVID-

41
Redes de Atenção indivíduos e de uma sociedade lidar com
o diferente. A solidariedade, a equidade,
Psicossocial: desafios do integralidade e a garantia de direitos são
cuidado em tempos de conceitos fundamentais neste processo.
pandemia
As Redes de Atenção Psicossocial hoje
existentes permitiram o exercício da
Ana Paula Guljor e Paulo Amarante cidadania a uma parcela significativa de 42
usuários em saúde mental com
Nos últimos 40 anos, a Reforma sofrimento psíquico grave. O
Psiquiátrica se consolidou como política acolhimento cotidiano que sustentou a
de Estado e, desta forma, sua agenda se manutenção de vínculos, também
configura como um importante cenário mediou a articulação de redes
de disputas em âmbito técnico, social e territoriais e o desenvolvimento do
cultural. O cuidado em liberdade, sentimento de pertencimento a um
preceito estruturante do processo de grupo, a um coletivo ou a uma cidade e,
reforma, implicou uma proposta de em última instância, à inclusão social4. As
reorientação tanto das relações éticas e diversas estratégias que possibilitaram
políticas entre a sociedade e as pessoas estas conquistas pautaram-se em ações
em sofrimento psíquico quanto do multifacetadas dentro e fora das
modelo assistencial, que buscou estruturas de serviços. A
abandonar a centralidade do hospital e intersetorialidade das ações se traduz
do saber psiquiátricos, para construir pelo entendimento que a integralidade,
uma rede complexa e diversificada, com para além dos níveis de complexidade na
estratégias intersetoriais e hierarquia dos serviços de saúde, inclui
transdisciplinares de dispositivos de as necessidades no âmbito micro e
atenção psicossocial no âmbito dos macropolítico. Deste modo, a produção
territórios. de subjetividades se dá através do
acesso à moradia, à renda básica, ao
A perspectiva de um olhar para o sujeito lazer, ao trabalho e à educação, do
em sua existência-sofrimento pressupõe mesmo modo em que também aos
uma rede de cuidados que deve estar serviços de saúde mental com suas
muito além da simples reorganização de equipes multiprofissionais.
serviços. Partindo da concepção de que
a Reforma Psiquiátrica é um processo No atual contexto, quando se aproxima
social complexo1, essa se constitui em os 180 dias da decretação de uma
dimensões que incorporam o arcabouço pandemia mundial, o sofrimento
jurídico e a luta política, a desconstrução psíquico se tornou pauta prioritária de
de um paradigma pautado no modelo organismos internacionais e das
biomédico e a transformação de um populações. No quadro brasileiro a rede
imaginário social de irracionalidade, de dispositivos territoriais enfrenta o
incapacidade e periculosidade2. enorme desafio de garantir o
acompanhamento contínuo em um
Ao abordar os desafios deste cuidado momento de exigências de
em tempos de pandemia de covid-19, distanciamento social e uma realidade de
reafirma-se a Reforma Psiquiátrica como três milhões de pessoas infectadas, em
um ‘processo civilizatório’, como um país com uma curva de contágio
definido por Sergio Arouca3, que abarca ascendente e mais de 140 mil casos letais
os modos de relações entre os (até a última semana de setembro de
2020). Sendo assim, não se pode iniciar

42
esta análise sem apontar aspectos perspectiva sociocultural. Os
fundamentais que envolvem as agenciamentos coletivos geram recursos
condições políticas e socioeconômicas em prol da reafirmação da vida
no país, mesmo não sendo possível seu potencializando outras formas de
detalhamento. subjetivação5. Ainda na assertiva deste
autor, “(...) os novos encontros através
A epidemia de Covid-19 tem da concepção de pertencimento ao
apresentado de forma impactante ao território e a cidade, via a construção de 43
Brasil e ao mundo a indissociabilidade identidades que rompam com a
entre a precariedade das condições de ‘impotência subjetiva’ (op.cit)”. Estes
vida e o sofrimento psíquico, destacando agenciamentos têm as organizações de
a importância do debate sobre direitos cooperação, as religiosas, de
humanos e desigualdade social neste disseminação de tradições regionais, de
campo. A construção de estratégias produção de arte. Ou melhor dizendo, a
efetivas de cuidado em saúde mental relação com movimentos sociais e
enfrenta o desafio de, através de uma culturais possibilitam a criação de outros
perspectiva complexa, garantir uma espaços de cuidado, voltados à cidade e
oferta de continuidade aos usuários das aos contextos de vida. Assim, se produz
redes de atenção em saúde mental ao acolhimento para além da simplificação
mesmo tempo que exige ampliar um técnica. Complexifica-se ações através
olhar sobre o sofrimento decorrente do olhar para o sujeito, suas
dos agravos que a pandemia, com a necessidades e não apenas com
precarização das condições de vida, as intervenções sobre a ‘doença’.
perdas de vidas humanas em escala
exponencial e a incerteza quanto ao Na perspectiva dos dispositivos das
futuro, impôs a sociedade. Rede de Atenção Psicossocial,
principalmente os Centros de Atenção
Fundamentalmente, é preciso fugir da Psicossocial, a condição de
visão reducionista do modelo distanciamento social implicou a
biomédico, rompendo com a noção que necessidade de reorganização das
o sofrimento em questão se traduz dinâmicas de funcionamento e
inexoravelmente em diagnósticos reinvenção de modos de proximidade
psiquiátricos e, deste modo, redunda em que garantissem a manutenção da
psiquiatrização e/ou psicologização das intensividade do cuidado bem como o
fragilizações subjetivas fruto das suporte aos momentos de crise, para
intempéries cotidianas. A preocupação uma clientela que em grande parte
de não lidar com as pessoas como se possui histórias que, além do sofrimento
fossem meros objetos da intervenção psíquico grave, agregam experiências de
clínica, e sim sujeitos, é estruturante, e violência.
boa parte das medidas pode e deve ser
feita com a compreensão, O conceito “violência” inclui neste
consentimento e colaboração recorte outras populações vulneráveis,
participativa e criativa dos envolvidos. sendo uma chave analisadora
estruturante de ações para além do
É importante ressaltar também que o “campo saúde”, visto que consideramos
campo da reforma psiquiátrica, em todas violências as internações prolongadas,
as suas dimensões, é reconhecido por situações de discriminação e
ser um campo criativo, seja em uma constrangimentos, homicídios, suicídios,
perspectiva epistemológica seja em uma rupturas de vínculos, cerceamento de
acesso a direitos básicos. Neste escopo,

43
encontramos o ponto de interseção teórico-ético e político da Reforma
entre todos em sua condição de Psiquiátrica procura acreditar e investir
existência-sofrimento, a importância da no potencial humano de adaptação às
criação de caminhos coletivos que adversidades da vida, na possiblidade de
reafirmem um lugar social e uma rede de autopoiésis, de ressignificação de valores
apoio solidária a qual reconheça na e reinvenção do cotidiano. Uma vasta
diversidade sua potência. literatura demonstra a positividade
desses princípios. É na linha inspiradora 44
Na trajetória recente das estratégias de de Gabriel Garcia Marques6 que nos
cuidado psicossociais é possível orientamos no sentido de ressignificar a
identificar experiências, muitas vida e a aprender com os tempos de
construídas através de recursos crise!
comunitários e respeitando as origens e
peculiaridades de suas culturas. Em um Referências bibliográficas
país de dimensões continentais como o
Brasil, identificamos muitos “brasis” 1. Rotelli, F., et al.
com suas riquezas e mazelas. Saúde Desinstitucionalização, uma outra via. In:
mental, neste recorte, é promoção de Desinstitucionalização, pp. 17-59, São
vínculos, proximidade e projetos de Paulo: Hucitec, 1990.
vida. Não há resposta pronta, pré-
concebida. As diretrizes da Reforma 2. Amarante, P. O homem e a
Psiquiátrica apontam para valores serpente. Outras histórias para a
fundamentais como a integralidade, a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro:
equidade e a liberdade. No entanto, seus Editora Fiocruz, 2019, 4 ed.
projetos estão sempre em construção,
provisórios e inacabados como as
3. Revista Radis, Comunicação em
histórias de vida de cada sujeito em
Saúde. Sergio Arouca: o eterno guru da
sofrimento.
Reforma Sanitária. v. 3, p. 18-21, 2002.
Considerações finais
4. Rodrigues, MG.A., et al. Saúde
A perspectiva do cuidado em liberdade Mental, Articulações Intersetoriais e o
desta forma aponta para permanente Apoio da Universidade em Tempos de
reinvenções de estratégias. A garantia da COVID-19. Diversitates International
continuidade do acompanhamento se Journal – Vol. 12, N.1, Junho/Dezembro
reflete no âmbito clínico como nos (2020), p. 06 – 16
plantões noturnos on-line de
acolhimento às crises, mas também na 5. Lancetti, A. Clínica peripatética.
utilização de recursos comunitários por São Paulo: HUCITEC, 2008, 3ª ed.
meio dos quais se suscita a solidariedade
e o pertencimento. O investimento na 6. Márques. G.G. O amor nos
construção coletiva a partir do tempos do cólera. Rio de Janeiro:
protagonismo do usuário tem Editora Record, 1985.
possibilitado desenvolver ações
horizontalizadas na relação usuário-
profissional-comunidade, desdobrando-
se na superação de estigmas e no
intercambio de vivências como fator de
amenização do sofrimento. A equipe de
saúde mental formada no contexto

44
A força das articulações proposta metodológica, ética e política.
Tal proposta não tem sido tarefa fácil,
dos Centros de Atenção pois a descrença nas políticas
Psicossocial no território governamentais e o avanço de medidas
em tempos de Covid-19, neoliberais têm produzido profundo
descrédito e desânimo entre os
mapeada na ação de trabalhadores de saúde mental dos
extensão universitária municípios visitados. Neste sentido, é 45
importante situar o momento de
retrocesso pelo qual passamos no que
Maria Goretti Andrade Rodrigues
se refere às políticas públicas no estado
do Rio de Janeiro e a nível federal.
Todas as unidades de base do SUS estão Santos2 aborda que a pandemia se
sendo acionadas no enfrentamento da mostra como um analista cruel de como
pandemia da Covid-19 e as políticas o capitalismo neoliberal incapacita o
públicas em saúde emergem como Estado para responder com eficácia às
imprescindíveis, como estratégias de emergências.
planejamento e ação. O mesmo se deu
com os dispositivos em saúde mental, Na experiência de apoio da universidade
como os Centros de Atenção através da ação de extensão, sob uma
Psicossocial que, como todas as outras perspectiva de educação extra muros,
estratégias de cuidado em saúde, problematizamos o fazer coletivo e
tornou-se importante protagonista do vivemos a potência do encontro, por
cenário atual. meio da qual assistimos como os
serviços de saúde mental têm se
Nesse contexto da Pandemia, o Projeto reinventado nesses tempos de
de Ensino, Pesquisa e Extensão Saúde pandemia.
Mental, Articulações Intersetoriais e o
Apoio da Universidade em Tempos de As ações de apoio institucional à gestão
Covid-19, da Universidade Federal dos serviços e espaços coletivos são
Fluminense (UFF), aponta para desenvolvidas com a finalidade de
desenvolver estratégias educativas e de propiciar a ampliação da capacidade de
processos grupais que promovam a análise e intervenção das equipes da
visibilidade, tanto externa quanto rede municipal, nas reuniões através da
internamente, da articulação do Centro ferramenta do Google Meet. O foco das
de Atenção Psicossocial (CAPS) no ações do apoio institucional pela
território de forma mais ampliada nesse universidade enfatiza dar potência aos
momento, através de recortes de cenas espaços coletivos para cogestão e
de situações cotidianas. operacionalização de diretrizes da
política pública de saúde mental
A costura de uma rede de saúde que se implementada no município, além da
fundamenta em um trabalho baseado análise e revisão do espaço instituído,
nos “especialismos” demonstra-se seus objetivos com definição de nova
extremamente fragmentada e é um formatação e atribuições a partir das
desafio para os trabalhadores dos CAPS. diretrizes apresentadas pelos grupos3.
Apresentamos a função apoio na Saúde
como um dispositivo dinamizador de Trabalhamos imersos nos Centros de
uma formação inventiva1, com a Atenção Psicossocial de dois municípios
ampliação da extensão dialógica como do noroeste fluminense, Miracema e

45
Santo Antônio de Pádua, que são e da rede de atenção psicossocial, nos
atravessados por reuniões quinzenais, dois municípios. Apesar de toda a
com docentes da UFF e estudantes da fragilidade das estruturas do sistema
Pós-graduação em Ensino. Além da público de saúde brasileiro, este
escuta oferecida, há a sistematização de demonstrou importância estratégica por
temas para discussão, sendo estar sendo a base fundamental da
disponibilizados textos e artigos de resposta na pandemia.
apoio que sustentam as reflexões 46
As equipes de trabalhadores e
A tática das reuniões aparece como trabalhadoras da saúde mental põem em
disparador de reflexões para a equipe do relevo a amplitude de possibilidades que
CAPS de Miracema, onde na discussão podem surgir a partir da dificuldade de
sobre a criação de um comum e a realização das ações e das orientações
corresponsabilização dos casos, a do trabalho preconizadas nas diretrizes
estratégia de acolhimento do MS quanto à lógica do apoio
compartilhado foi ressaltada e trazida matricial, de característica dialógica,
para o cotidiano do serviço, nesses com reuniões para discussão de caso e
tempos de pandemia. construção em conjunto de um projeto
terapêutico singular para o
Em uma dessas reuniões virtuais, no acompanhamento do caso. Evidenciam,
contato com a rede de serviço de Santo também, o surgimento de recursos
Antônio de Pádua, os relatos criativos e utilização de ferramentas
vislumbraram a pulverização do tecnológicas disponíveis para as
especialismo como marca da clínica urgências que se apresentam, bem como
ampliada. As relações com o corpo, com reforçam a importância de transpor os
a subjetividade, com a arte e a produção entraves que se impõem a cada dia,
de vida se revelaram nos singulares acrescidos da realidade de descaso por
relatos dos trabalhadores com os parte das atuais gestões.
usuários no CAPS. No campo da saúde
mental, é comum a grande ênfase dada Tais elementos nos fazem pensar em
aos discursos e saberes psiquiátricos e ações de resistência e, ainda, remete-
psicológicos como prescritores e nos à importância de dar voz às ações,
direcionadores das práticas a nortear os transpor os limites dos dados
processos terapêuticos. Ao se pensar epidemiológicos e a restrição dos
nos elementos formativos em saúde, na indicadores numéricos, sem desmerecer
aprendizagem inventiva articulada ao sua importância, promover a
cuidado de si, a aposta é em um lugar transformação a partir das vivências e
criado para além dos especialismos e das experienciação, registrando, contando
práticas protocolares. As oficinas são as histórias, realçando a visibilidade do
alguns desses espaços de excelência a fazer desses serviços e suas articulações
fazer e construir cotidianos, que têm se com a Atenção Primária à Saúde (APS).
reinventado com propostas on-line em
redes sociais. Frente às medidas de prevenção e
contenção da Covid-19 e às orientações
Na problematização na proposta de uma de distanciamento e isolamento social, o
ação de formação inventiva de apoio, Centro de Atenção Psicossocial tem
como ação de extensão universitária, investido em atendimentos domiciliares,
assistimos os deslocamentos a partir do assim como tem contado com o apoio
diálogo entre os trabalhadores do CAPS da APS, além dos agentes comunitários

46
de saúde (ACS), que cumprem papel implantação de um alojamento para
fundamental no território, via moradores de rua. A riqueza das
intervenções e contatos telefônicos. As estratégias de não tomar os moradores
reuniões semanais da equipe do de rua como “doentes mentais”, que
Departamento de Saúde Mental poderiam ser medicalizados num
deixaram de ser presenciais e passaram primeiro momento, mas esse não é o
a ser online, via Google Meet, assim caminho proposto. Estes moradores
como foram feitos convites a outros estão sendo vistos como sujeitos, 47
elos da Rede de Atenção Psicossocial, articulados às ESFs, com exames para
porém as propostas tecnológicas via tuberculose, vacinação, entre outros
internet intimidam tanto quanto os cuidados3.
desafios e as necessárias interlocuções
presenciais. Esse conjunto de ações e reinvenção de
abordagens interpessoais pretendem
A partir de escalas e turnos de trabalho contribuir para a construção de outras
são realizados atendimentos presenciais possibilidades de existência, ênfase que
diversos e conjuntos de variadas áreas é dada ao cuidado compartilhado e à
de atuação, além da contratação de integralidade da saúde coletiva.
novos profissionais, para os
atendimentos e desafios que surgem a Referências bibliográficas
partir do coronavírus. Juntamente com
as informações sistemáticas referente 1. Dias, R.O.; Rodrigues, H.B.C.
aos cuidados de higiene, foram Pensamento e invenção: por uma
elaborados folders impressos e digitais formação outra. Mnemosine Vol.16, nº1,
para outras unidades de saúde e para os 2020, p. 4-32.
pacientes, assim como orientações das
assistentes sociais sobre inclusão nos
2. Santos, B. S.A Cruel Pedagogia do
programas governamentais.
Vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
Available from
São realizados, ainda, atendimentos https://www.cpalsocial.org/documentos/
ambulatoriais e presenciais de casos 927.pdf
emergenciais e, para os casos possíveis,
acompanhamento psicológico individual
3. Rodrigues, MG. A., et al. Saúde
remoto em aplicativos de voz e vídeo
Mental, Articulações Intersetoriais e o
como Google Hangouts, além de
Apoio da Universidade em Tempos de
telefone fixo ou celular. Deste modo o
COVID-19. Diversitates, v. 12,2020, p.
projeto terapêutico singular assume
02-13.
outras proporções e abrangências3.

A construção da rede intersetorial é


permanente. Base do SUS, os arranjos
locais no território se mostram fortes
nesse momento, como estratégia de
enfrentamento do absurdo número de
mortes causado pelo Covid-19. Na
insistente potência do viver, a
reinvenção do cuidado comunitário se
entrelaçou às ações das equipes de
estratégia de saúde da família (ESF) na

47
Liberdade e inclusão: como o Serviço Móvel de Urgência
(Samu), entre outros serviços. Também
bases de um serviço de mantínhamos um hospital-dia, uma
atenção à saúde mental enfermaria e um ambulatório.

Francisco Sayão Em 2001, começamos a participar do


conselho comunitário de segurança da
região, que se reunia uma vez por mês. 48
O Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro O conselho organizava um café da
(CPRJ) iniciou seus trabalhos em agosto manhã com a participação de órgãos de
de 1998, ocupando o prédio segurança (Polícia Militar, Polícia Civil,
abandonado do antigo Albergue da Boa Guarda Municipal), escolas, moradores e
Vontade, situado na antiga Praça da empresários. Foi uma boa forma de nos
Harmonia, na região portuária do Rio de integrarmos na região. Atualmente,
Janeiro. Foi inicialmente formado por nossa coordenadora de recursos
profissionais do antigo Posto de humanos está presidindo pela terceira
Atendimento Médico (PAM-Venezuela), vez este conselho.
que estavam sendo despejados do
prédio da Justiça Federal e, na ocasião, Em parceria com a Justiça Federal,
precisou ocupar integralmente o imóvel. iniciamos um programa de penas
Além dos profissionais do Ministério da alternativas da 1ª e 9ª Varas da Justiça
Saúde, contava com bolsistas Federal, recebendo prestadores de
multiprofissionais da Universidade serviços de vários segmentos
Federal do Estado do Rio de Janeiro profissionais (advogados, padeiros,
(Unirio), que vieram para implantar o mestre de obras, cozinheiros etc.), o
novo serviço. A ideia era montar um que muito nos ajudou de forma
centro integrado de saúde mental que inesperada.
pudesse atender os pacientes nos
diferentes momentos que a doença A partir de 2007, nesta atual gestão,
imprime ao seu portador (na crise, na instituímos como meta a ser alcançada o
estabilidade, na necessidade de desafio de “como garantir o acesso, a
documentos, de trabalho e renda e continuidade e a integralidade ao
outros). tratamento das pessoas acometidas com
sofrimento psíquico”. No mesmo ano,
As vantagens de montar um serviço, foi iniciado o programa de residência
desde seu início, eram algumas: poder médica, inaugurando o desejo de sermos
seguir os preceitos do Sistema Único de também um serviço de formação de
Saúde (SUS) de equidade e profissionais para trabalhar na rede de
universalidade, de forma livre, como saúde mental. Já tínhamos convênio com
também de não receber a herança de um a enfermagem da Fundação de Apoio à
serviço com características manicomiais, Escola Técnica (Faetec) e com os alunos
o que nos deixou livre do peso de ter de medicina da Universidade Unigranrio,
que desmontar modelos asilares de que tinham o CPRJ como campo de
difícil enfrentamento. aprendizagem.

Começamos a funcionar em um modelo Quanto aos nossos desejos de garantir


tradicional, sendo constituído por uma acesso ao tratamento, observamos que
porta de entrada aberta à demanda não era suficiente estarmos com as
espontânea, aos encaminhamentos, portas abertas, alguns pacientes não

48
conseguiam chegar ao serviço. Por CPRJ, onde a gerência é desenvolvida
exemplo: vários pais e parentes de por usuários ligados ao projeto com
pacientes graves com isolamento apoio de um profissional da casa que
intenso não conseguiam trazê-los para o tem experiência em comércio. A
tratamento – ou, quando conseguiam, mudança de posição desses pacientes no
era quebrada sistematicamente a núcleo familiar em muito melhorou o
continuidade do cuidado. Foi com esta convívio, pois passaram a ter condições
demanda que foi organizado o Programa de contribuir no orçamento familiar, 49
de Visita Domiciliar, que vem mesmo que de forma singela, deixando
funcionando desde 2005. de ser um peso.

Outra dificuldade apresentada no acesso Inauguramos um espaço chamado


ao tratamento foi em relação a alguns Bazarte, que foi criado na intenção de
pacientes idosos do ambulatório que receber e comercializar produtos
começavam a apresentar sinais de confeccionados no CPRJ e em outras
prejuízo cognitivo. Esses pacientes não instituições parceiras. Chegamos a ter
tinham para onde ser encaminhados 22 serviços associados (CAPS Quissamã,
para tratamento devido à falta de Niterói, Bispo do Rosário, Angra dos
serviços no município do RJ – só havia Reis e outros). Atualmente, mantemos o
um serviço no Instituto de Psiquiatria da funcionamento, porém houve
UFRJ, IPUB. diminuição no número de serviços
associados.
Desta forma, foi organizado, no próprio
CPRJ, o Programa de Atenção Nossa enfermaria conta com 23 leitos
Ambulatorial da Terceira Idade para internação dos casos agudizados e
(PATER), composto por nossa médica de difícil manejo, com um tempo médio
clínica que é geriatra, um neurologista, de permanência de 13 dias, o que nos
um psiquiatra especializado no deixa abaixo de outros serviços com
tratamento de idosos, terapeuta internação. A participação dos pacientes
ocupacional, fisioterapeuta e psicólogos. internados em oficinas terapêuticas fora
da enfermaria tem ajudado as pessoas a
Desde 2001, participamos do Núcleo de conhecerem os outros espaços que
Saúde Mental e Trabalho (NUSAMT), na funcionam no serviço e, com isso,
época em convênio com a Secretaria diminuir o medo ou receio de procurar
Estadual de Trabalho. Atualmente, toda o espaço das oficinas. O que também
a documentação do NUSAMT está no ajuda nesta estratégia é que os
CPRJ, onde funciona atualmente o profissionais que fazem atividades na
Programa de Trabalho e Geração de enfermaria oferecem oficinas fora da
Renda (PGTR) para portadores de enfermaria (ambulatório, hospital-dia e
transtornos mentais. Alguns avanços atividades externas), mantendo assim a
foram conquistados em relação ao continuidade do trabalho.
trabalho formal como, por exemplo, a
adaptação do contrato por horas Quanto às atividades externas, temos o
trabalhadas e a supervisão semanal do “Bota pra Fora”, criado pela residência
grupo de pessoas que estão atuando no multiprofissional em 2014 (entre
mercado formal. No trabalho protegido, Secretaria Estadual de Saúde do RJ, CPRJ
temos pacientes trabalhando na e a Universidade do Estado do Rio de
produção de salgados e bolos, o que Janeiro). Todas as terças-feiras,
garante o funcionamento da cantina do aproveitando o dia de gratuidade nos

49
museus, os programas são feitos em karaokê, discoteca) – o Ponto de
espaços como AquaRio, MAR, Museu do Cultura tem seu acervo ligado ao Grupo
Amanhã, CCBB, entre outros, e alguns Harmonia Enlouquece, formado por
pacientes internados que têm condições pacientes e profissionais, funciona às
também participam do programa. A quartas-feiras, com apresentação da
residência multiprofissional, iniciada em história ou de show de um artista
2012, é composta por dois enfermeiros, (estrangeiro ou nacional), possui uma
dois psicólogos e dois assistentes sociais. rádio com funcionamento interno, com 50
sonorização musical nos diversos
Em 2001, após um grupo que discutiu a ambientes. No segundo sábado de cada
possibilidade dos pacientes trabalharem, mês, recebemos o Clube da Esquina, que
o psicólogo e músico Sidnei Dantas conta com pacientes de outras
listou aleatoriamente palavras daqueles instituições, como Pinel, Instituto de
que participavam da discussão (relógio Psiquiatria da UFRJ, o CAPS Magal e
de ponto, chefe nervoso, vale transporte convidados, ocasião em que passam o
etc.). Usando essas palavras, foi dia. Pela manhã, escutamos discos de
composta a 1ª música do grupo “Será vinil escolhidos pelos participantes.
que dá”. A partir daí alguns pacientes Após a atividade da manhã, oferecemos
começaram a compor (João e almoço e, no período da tarde, exibimos
Hamilton). Foi então formado o grupo documentários e shows de nosso
musical Harmonia Enlouquece. O grupo, acervo. A frequência média é de 45
em atividade até hoje, tem o Hamilton convidados. Nestes sábados, acontecem
como principal compositor, letrista e pela manhã as reuniões da Associação de
intérprete. Nos 20 anos de atividade, Usuários, Familiares e Amigos do CPRJ,
mais de 70 pessoas passaram pelo grupo. a AUFACEP.
Atualmente, temos dez integrantes e
terminando o processo de mixagem do O espaço também é destinado aos
4º disco. Todas as músicas são colegas que trabalham nos consultórios
composições próprias. de rua, que podem encaminhar sua
clientela. Recebemos alguns pacientes
Descrição do hospital-dia que se encontram em abrigos e hotéis
populares da Prefeitura do Rio,
A unidade do CPRJ tem três funções localizados em nossa área programática
primordiais: 1) oferecer oficinas rotineiramente. Os pacientes vindos do
terapêuticas, como costura, cozinha, processo de desinstitucionalização, por
artesanato, pintura, mosaico, escrita, sua vez, estão morando no entorno do
poesia, grupo de orientação a saúde, CPRJ. Através de seus benefícios e com
teatro, yoga, pilates, sob a coordenação a ajuda das equipes de visita domiciliar e
de Eni Nascimento e equipe; 2) hospital-dia, alugaram quartos em casas
promover a capacitação para trabalho e de famílias ou pensões. Os pacientes do
geração de renda, através do PGTR do hospital-dia têm programas terapêuticos
núcleo de saúde mental e trabalho individualizados, podendo ir ao
(NUSAMT), sob coordenação de Dóris tratamento diariamente – ou o número
Diogo e Vera Pazos – todas as segundas- de vezes estipulado, em acordo com a
feiras há supervisão do grupo que está equipe.
em trabalho formal, e os candidatos
podem se inscrever nas segundas-feiras O CPRJ foi submetido duas vezes ao
no Ponto de Encontro; 3) ser um centro Programa Nacional de Avaliação de
de convivência, com área cultural e de Sistemas Hospitalares, nos anos de 2003
recreação (ping-pong, sinuca, totó, e 2007. Nas duas ocasiões, fomos

50
melhor serviço avaliado no Estado do 5) Coordenação Serviço Social: Leila
Rio de Janeiro. Desde 2014, fazemos Correia (Assistente Social)
parte do Programa de Qualidade de
Serviços de Saúde (PQRIO), e pelo 6) Coordenação dos Programas da 1ª e
quarto ano consecutivo fomos 9ª Vara da Justiça Federal: Telma Rangel
premiados. Estamos sempre buscando (atual presidente do Conselho
melhor classificação no ranking de Comunitário de Segurança)
serviços. 51

7) Coordenação PATER: Ana Lucia


Tivemos a satisfação de receber dois Vilela (Geriatra)
profissionais da Argentina (médicos
residentes), um do Chile, um da 8) Coordenação Enfermagem: Gilson
Inglaterra e dois residentes da França Torres (Enfermeiro)
para concluir aqui suas formações.
Assim como tivemos uma residente
9) Coordenação núcleo segurança
nossa de psicologia fazendo parte de sua
paciente: Ana Paula (enfermeira)
formação em Trieste (Itália). Utilizam
nosso campo para estágio e formação
residentes do Hospital Universitário 10) Coordenação Documentação
Clementino Fraga, alunos da UFF e do Científica: Sergio Vinicius
Hospital da Aeronáutica. Além dos (Administrador)
estagiários do IBMR, ligados ao
Programa de Geração de Renda e 11) Coordenador Residência Médica:
Trabalho (PISTRAB). Marcos de Miranda Gago

A direção é composta por 12 12) Coordenação de Trabalho e


coordenadores que se reúnem às Geração de Renda: Dóris Diogo e Vera
segundas-feiras para tratar de questões Pazos.
surgidas na semana. O ponto forte é que
oito dos 12 coordenadores já trabalham A esses se acrescentam dois
a mais de 30 anos em saúde mental e coordenadores, o de visita domiciliar,
mantém o interesse na melhoria Edna (técnica de enfermagem), e da
continuada de suas ações. São eles: ouvidora, Maria Marlene (assistente
social). A ouvidoria não participa de
1) Direção-geral: Francisco Sayão reunião por ser independente e
(médico psiquiatra – Curso em gestão autônoma, sua equipe promove busca
ENSF 2007 e FGV 2009) ativa para mensurar a satisfação da
clientela (enfermaria, ambulatório, sala
2) Direção-técnica: Marcos de Miranda de espera, hospital-dia). O CPRJ
Gago (psiquiatra-FGV 2009) participa desde 2004 do Conselho
Distrital de Saúde, tendo o diretor como
conselheiro e Maria Marlene como
3) Diretor administrativo: Gilner Nunes
delegada. Eventualmente, outros
(Administrador – FGV 2009)
profissionais participam da reunião
semanal dos coordenadores, como a
4) Coordenação das atividades coordenação de Nutrição (Mara) e
psicossociais: Eni Nascimento Farmácia (Ana Paula). Desta forma
(Terapeuta Ocupacional) estamos montados e funcionando.

51
A Pandemia de Covid-19 condena a maior parte da humanidade à
cessação prematura da respiração”2.
e a questão dos hospitais
psiquiátricos Para maioria de nós, no entanto, e
especialmente nas partes do mundo
Rafael Wolski de Oliveira onde os sistemas de saúde foram
devastados por anos de abandono
A pandemia de Covid-19 impôs, em organizado, o pior ainda está por vir. Na 52

escala global, inúmeros esforços em ausência de leitos hospitalares,


saúde coletiva para conter a respiradores, exames em massa,
disseminação do coronavírus e máscaras, desinfetantes à base de álcool
minimizar seus impactos na saúde e outros dispositivos de quarentena para
mental da população. No entanto, a as pessoas já afetadas, serão muitos
desigualdade de condições para o aqueles que, infelizmente, não passarão
enfrentamento da pandemia é evidente pelo buraco da agulha2.
em diferentes comunidades e, até
mesmo, em populações inteiras nos É certo que, se não tivéssemos o
países com heranças coloniais como o Sistema Único de Saúde (SUS), os
Brasil, onde os efeitos em meio à impactos do Covid-19 seriam muito
pandemia já englobam um número piores em nosso território. No entanto,
assombroso de vítimas fatais e apresenta igualmente se faz necessário afirmar que
uma série de limitações para o cuidado o SUS sofre anos de subfinanciamento e,
em saúde mental de diversos grupos especificamente, nos últimos anos que
sociais. Neste sentido, como já antecederam à pandemia, tem sido
apresentado em recente publicação do atacado duramente por mudanças na
IdeiaSUS, vivemos o “maior desafio de condução macropolítica e a implantação
saúde do século 21”1, motivo pelo qual de modelos neoliberais de austeridade
é fundamental dar visibilidade e nos em gastos públicos que impactam
debruçarmos sobre a questão de como diretamente na assistência, como por
“grupos socialmente vulneráveis estão exemplo, a Emenda Constitucional nº
enfrentando a pandemia”1 para 95, que congelou, a partir do ano de
pensarmos estratégias de 2018, os gastos em saúde por 20 anos3,
empoderamento, acolhimento, assim sendo que a real necessidade da
como criarmos ações de cuidado e população brasileira era – e ainda é – de
proteção. ampliação dos recursos investidos em
saúde pública. Dessa forma, a
O filósofo camaronês Achille Mbembe, precarização da saúde pública,
em recente texto sobre a pandemia de intensificada nos últimos anos, cobra o
Covid-19, expressa que a asfixia já era seu preço neste momento pandêmico
uma ameaça à humanidade antes mesmo em que vivemos, mas se iludem aqueles
desse vírus se espalhar. Mbembe (2020) que acreditam que os responsáveis
alerta que a utilização da palavra diretamente pela precarização serão os
“guerra” não se aplicaria aos esforços de devedores dessa fatura, quem paga com
contenção da pandemia, que bem o próprio corpo, são as populações
sabemos são ações especificas do campo vulnerabilizadas, que correm o risco de
da saúde coletiva. “Se houver guerra, não passarem pelo buraco da agulha,
portanto, ela não será contra um vírus como sinaliza Mbembe. No caso
em particular, mas contra tudo o que brasileiro, os povos originários, a
população negra, trabalhadores
informais, população carcerária, pessoas

52
em situação de rua, moradores das Em julho de 2020, trabalhadores dos
periferias e os idosos. hospitais e alguns usuários que tinham
contato com o exterior começaram a
Apesar dos avanços das políticas denunciar a gravidade da situação,
públicas implementadas no campo da principalmente para a imprensa, o
saúde mental, após o movimento de Sindicato dos Servidores Públicos do Rio
Reforma Psiquiátrica brasileira, a Grande do Sul (Sindisepe/RS) e o Fórum
invisibilidade produzida pelos ainda Gaúcho de Saúde Mental, destacando a 53
existentes hospitais psiquiátricos no insuficiência de equipamentos de
Brasil torna-os um problema, além de proteção individual (EPIs), levando os
ineficiente e ultrapassado, ainda mais trabalhadores a improvisar ou a
grave durante a pandemia viral. Com a comprar equipamento próprio, um
presença histórica do descaso e a grande número de usuários
violência arraigada em seu modelo, contaminados em estado grave e sendo
neste momento da pandemia de Covid- tratados na própria instituição (que não
19, os hospitais psiquiátricos requerem é um hospital de referência para
atenção maior do poder público, tratamento de Covid-19), sem acesso a
gestores e de trabalhadores da saúde, equipamentos fundamentais para
semelhante ao que deveria ocorrer em recuperação ou conforto, óbitos de
instituições similares, como as moradores com Covid-19 nas
comunidades terapêuticas, presídios, dependências dos hospitais, grande
ILPI’s. Poder-se-ia dizer que as principais quantidade de trabalhadores afastados
problemáticas que decorrem desses por serem do grupo de risco ou por
locais são a falta de transparência do que estarem com sintomas de Covid-19, não
advém dali e a dificuldade de realização de testes, impossibilidade de
implementar um plano de contingência manter distanciamento social seguro,
da pandemia efetivo, seja pelas devido às aglomerações de usuários nas
dificuldades estruturais, aglomerações unidades, e indisponibilidade de álcool
de pessoas e possíveis marcadores nos gel ou quaisquer meios de higienização
usuários ali presentes, como uso nas áreas de convívio dos usuários
problemático de drogas, idosos, pessoas institucionalizados.
com deficiências, comorbidades clínicas,
fatores estes que podem potencializar Frente à gravidade das denúncias e à falta
os riscos de contaminação e evolução de transparência da gestão estadual,
para um quadro mais grave. persistindo na “estratégia” de não dar
satisfações aos questionamentos dos
Foi o que ocorreu no estado do Rio movimentos sociais e do controle social,
Grande do Sul em dois hospitais o Fórum Gaúcho de Saúde Mental
psiquiátricos públicos estaduais. Apesar acionou diversos órgãos de garantia de
dos esforços dos movimentos sociais e direitos e de movimentos pelo direitos
do controle social que, desde março de dos usuários, como o Ministério Público
2020, princípio da pandemia no país, Estadual, a Defensoria Pública, a
cobravam dos gestores medidas de Assembleia Legislativa, a Comissão
proteção da população institucionalizada Estadual de Direitos Humanos, a
nos manicômios, as respostas da Comissão Nacional de Direitos
Secretaria Estadual de Saúde foram Humanos e a Associação Brasileira de
imprecisas e vagas, sem apresentar plano Saúde Mental. Frente à urgência da
de contingência ou lidar com situação, que cada dia poderia custar
transparência sobre os riscos e agravos vidas humanas, e à ausência de
presentes nas instituições. informações do estado, o passo seguinte

53
foi solicitar medidas cautelares à Corte pandemia para ter a chance de acessar o
Interamericana de Direitos Humanos da cuidado em liberdade.
Organização dos Estados Americanos
(OEA), que tem por finalidade observar Referências bibliográficas
e investigar a garantia dos direitos
humanos dos Estados que são membros 1. Trindade N, Fernandes VR.
da organização. Apresentação. In: Mendes A, Vinagre
AB, Amorim A, Chaveiro E, Machado K, 54
O que se agrava neste momento de Vasconcellos LCF de, et al.,
pandemia em relação aos hospitais organizadores. Diálogos sobre
psiquiátricos é, na verdade, Distanciamento Social: Territórios
consequência de um problema histórico existenciais na pandemia [Internet].
que já deveria estar resolvido com o IdeiaSUS/Fiocruz; Comitê Fiocruz pela
efetivo cumprimento da Reforma Acessibilidade e Inclusão de Pessoas
Psiquiátrica Brasileira e a definitiva com Deficiência; Departamento de
desinstitucionalizacão desses Direitos Humanos, Saúde e Diversidade
equipamentos. Não obstante, a atual Cultural da Escola Nacional de Saúde
política de saúde mental configura um Pública Sergio Arouca; e Universidade
explícito retrocesso no modelo de Federal de Goiás; 2020. p. 1. Available at:
atenção psicossocial, quando coloca http://www.ideiasus.fiocruz.br/portal/pu
novamente na Rede de Atenção blicacoes-ideiasus/livros/247-dialogos-
Psicossocial os hospitais psiquiátricos sobre-acessibilidade-inclusao-e-
como equipamentos possíveis de existir, distanciamento-social-territorios-
através da portaria nº 3.588, de 20174. existenciais-na-pandemia
Nesse sentido, retomamos Mbembe2
com o alerta em tempos pandêmicos: 2. Mbembe A. O Direito Universal à
Respiração. 2020. Disponível em:
“Se, nessas condições, ainda houver um dia https://n-1edicoes.org/020
seguinte, ele não poderá ocorrer às custas de
alguns, sempre os mesmos, como na Antiga 3. Brasil. Emenda Constitucional no 95,
Economia. Ele dependerá, necessariamente, de de 15 de dezembro de 2016. Brasília.
todos os habitantes da terra, sem distinção de 2016. Disponível em:
espécie, raça, gênero, cidadania, religião, ou https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/co
qualquer outro marcador de diferenciação. Em nstituicao/emendas/emc/emc95.htm
outras palavras, ele só poderá ocorrer ao custo
de uma ruptura gigantesca, produto de uma 4. Brasil. Portaria No 3.588, de 21 de
imaginação radical”2. dezembro de 2017. Brasília. 2017.
Disponível em:
Mbembe (2020) afirma que o direito http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis
universal à respiração deve “ser /gm/2017/prt3588_22_12_2017.html
entendido como um direito fundamental
à existência”2. Na saúde mental, significa
retomarmos com força o lema “Por uma
sociedade sem manicômios!”,
lembrando que os moradores de longa
permanência nessas instituições já se
caracterizam por um público
vulnerabilizado há bastante tempo e que
requer proteção especial durante a

54
O efeito da distância de tempo, insistência, reflexão,
discussão em equipe e disposição.
segura no afeto dos
inviabilizados em tempos No tocante ao Sistema Único de Saúde
de Pandemia (SUS), não raro a ausência de
comprovante de residência fixa é um
dificultador para o acesso aos serviços.
Daniel de Souza e Valeska Holst Este foi um fator chave para o 55
Antunes surgimento do CnaR como
equipamento da atenção básica, para
Este texto traz o relato de uma equipe promover o acesso à saúde para esta
de Consultório na Rua (CnaR), que atua população específica. Sua metodologia
na zona norte do Rio de Janeiro, desde tem como bases os princípios da
2011, e de reflexões dos desafios para a Atenção Primária à Saúde, as práticas de
continuidade do trabalho durante o a Redução de Danos, de matriciamento e
pandemia em 2020. de atuação nos territórios onde se
tramam as relações constituídas pela
Pessoas em situação de rua encontram própria população atendida. Entre seus
dificuldades de integração dentro da objetivos, estão o estímulo à autonomia
sociedade que, em geral, as analisa de dos sujeitos para o cuidado de si, o
forma estereotipada, com base no senso cuidado e a prevenção das principais
comum ou midiático cheio de doenças mais prevalentes e a melhoria
afirmações equivocadas e dificilmente da qualidade de vida através da
como sujeitos de direitos. As políticas promoção da saúde e do estímulo ao
públicas voltadas a essas pessoas protagonismo dos indivíduos. As
persistem flagrantemente insuficientes e equipes trabalham de forma articulada
são recorrentes propostas de solução em rede e de maneira interdisciplinar.
simplistas e que violam direitos básicos,
como os recolhimentos compulsórios. Profissionais que trabalham com pessoas
em situação de rua seguem um longo e
No tocante à vulnerabilidade humana, tortuoso caminho de combate à
sabemos que as pessoas em situação de discriminação, ao preconceito e à
rua apresentam reações inerentes a invisibilidade desta população,
todo o processo de marginalização e promovendo um confronto com a visão
inferiorização a que são submetidas. que, em geral, se tem sobre a rua e quem
Acreditam nos rótulos que lhe são vive nela. Com ações de inserção
incutidos, desenvolvendo sentimentos sociocultural, as equipes de consultórios
de medo, rejeição e revolta e, muitas de rua vêm conseguindo avançar na
vezes, demonstram descrédito nas atenção integral, com atendimento
instituições governamentais humanizado e universalizado à pessoa
em situação de rua.
Decorrente disso, a procura espontânea
a serviços da saúde ou da assistência é, Imersos no cenário deste trabalho que
em muitos casos, um processo que traz consigo tantos desafios, nos
depende da elaboração e do deparamos com um novo evento de
aprimoramento das relações de vínculo grandes proporções: a pandemia de
entre trabalhador e usuário. Essa Covid-19. Assim como a maioria dos
ferramenta, o vínculo, pode não se trabalhadores da saúde, fomos tomados
estabelecer de imediato, necessitando pela sensação de insegurança, pelo medo

55
do adoecimento (nosso, dos próximos, sabemos que os usuários mais
dos pacientes), pelas incertezas vulneráveis não alcançam a unidade. Para
relacionadas à necessidade de adaptação o CnaR a atuação de rua não pode
radical do processo de trabalho. simplesmente parar. Na ausência de
apoio técnico qualificado para nos
O fluxo de acolhimento da unidade de orientar, buscamos estudar, adaptar e
saúde sofreu modificações, demandando mesmo criar metodologias sobre
mudanças de escala e das nossas procedimentos e sobre o uso, troca e 56
práticas. Pessoas em situação de rua, descarte de EPI nos atendimentos de
assim como todos os outros usuários, rua, sobre as técnicas e estrutura de
são incialmente triados para sintomas higienização do veículo da equipe etc.
respiratórios e, neste caso,
encaminhados a um local específico e A educação em saúde relacionada à
atendidos pelos profissionais escalados pandemia também precisou ser
do dia, que não obrigatoriamente são da adaptada. Como falar de lavar as mãos
equipe do CnaR. Desfaz-se o sentimento para quem não tem acesso à água
construído ao longo dos anos entre corrente? Logo avaliamos que a oferta
nossos usuários do livre acesso ao de insumos seria necessária. Para tanto,
interior da unidade, utilizada não apenas a própria equipe iniciou um processo de
para o cuidado em saúde, mas também captação de doação de galões de água
como local de apoio para acesso à água com bomba manual, sabonetes,
potável, banheiro, eletricidade para detergente, álcool gel, máscaras e afins.
carregar o celular/rádio e mesmo como Nesta busca, encontramos ofertas
espaço de convívio dentro da lógica da espontâneas para outro problema que
redução de danos. gritava: a fome. Com o fechamento do
comércio, muitas fontes de subsistência
As novas normas de biossegurança dessas pessoas foram comprometidas.
também trouxeram uma limitação a um Iniciamos então uma atividade que
recurso elementar: o contato físico. Não persiste até hoje de captação e
é mais possível abraçar ou tocar a mão distribuição de alimentação pronta
do paciente naquele momento do (quentinhas), configurando mais uma
recurso do silêncio ao longo da consulta estratégia de manutenção de contato e
que, simplesmente comunica “tome seu captação de demandas de saúde da
tempo, estou aqui contigo”. Mais que pessoa em situação de rua. A
isso, vestidos com os EPIs, passamos a disponibilidade da sociedade civil em
carregar conosco uma mensagem de atender este pedido foi uma grata
“não me toque” e “mantenha uma surpresa que nos mostra que valores
distância segura entre nós”. Para esta como a solidariedade e responsabilidade
população, carregada de estigmas, isso é social não deixaram de existir. Por outro
facilmente internalizada como uma lado, registramos que a inciativa mais
reação de repulsa. É preciso manter uma vez não parte do Estado,
atenção o tempo todo para estas responsável constitucional pela garantia
reações, mais uma vez utilizando o do bem estar de todo o cidadão.
vínculo de todo o trabalho pregresso no
convencimento de que esta nova atitude Usuários pertencentes aos grupos de
significa proteção, e não preconceito. risco vêm sendo outro desafio.
Iniciamos um mapeamento de pacientes
Na atenção básica, as atividades no mais graves com abordagens individuais
território ficaram restritas. Porém para planos singulares de proteção. Para
alguns, organizamos e viabilizamos o

56
retorno à residência de familiares. momentos, precisamos compor escalas
Alguns outros optaram pelo de atendimento da unidade de saúde e
abrigamento. A estrutura da rede de novas atividades foram incorporadas.
abrigamento, contudo, sofre limitações Logo, podemos afirmar que não vivemos
crônicas pelo baixo investimento. um momento de normalidade da nossa
Apesar da estratégia da Prefeitura de oferta de serviços. Ainda assim,
inauguração de um novo abrigo afirmamos que, mesmo neste contexto,
provisório com muitas vagas, tem sido possível manter o cuidado e, 57
percebemos muitas lacunas na garantia junto com nossos parceiros, atuar como
de biossegurança destes locais. mecanismo de garantia de cidadania.

Nesta caminhada, muitos dos nossos Referências Bibliográficas


usuários apresentaram sintomas. A
maioria sintomas leves e autolimitados, BUCHER. R. A ideologia do discurso de
sem acesso a testagem confirmatória “combate às drogas”, in: BUCHER, R. Drogas e
Sociedade nos Tempos de Aids. Brasília: Editora
(apenas, a partir de agosto, foram Universidade de Brasília, 1996.
contemplados para realização de teste
rápido sorológico). Outros agravaram, FREIRE, P. A educação e o processo de mudança
foram internados e tiveram confirmação social. In: FREIRE, P. Educação e Mudança. 19.ed.
diagnóstica através de PCR. Também São Paulo: Paz e Terra, 1979.
enfrentaram todos os desafios dos
pacientes assistidos por uma rede de ACSELRAD, G. A educação para a autonomia:
saúde que lutava para se adaptar à construindo um discurso democrático sobre as
avalanche da epidemia. Àqueles que não drogas. In: Acselrad G. 2ª.edição. Avessos do
prazer: Drogas, AIDS e Direitos Humanos. Rio
resistiram assumimos o papel de garantir de Janeiro. Ed. FIOCRUZ, 2005.
o sepultamento digno, dificultado,
principalmente, aos que foram BASTOS, F. I. Ruína e reconstrução: AIDS e
transferidos para outros municípios nos drogas injetáveis na cena contemporânea. Rio de
primeiros meses de pandemia, quando o Janeiro: Relume-Dumará/ABIA/IMS-UERJ, 1996.
município enfrentou grave insuficiência
de leitos de UTI. BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de
Atenção à Saúde. Departamento de Atenção
Básica. Manual sobre o cuidado à saúde junto a
De maneira geral, o impacto em termos população em situação de rua/ Ministério da
de mortalidade da PSR parece ter sido Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
equivalente à população em geral,
felizmente contrariando nossas BRASIL, Ministério da Saúde. Portaria GM, nº
primeiras previsões mais pessimistas e 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as
demonstrando que a Covid não é diretrizes de organização e funcionamento das
Equipes de Consultório na Rua.
justificativa plausível para a
implementação de internação
CRUZ, M. S. Considerações sobre Possíveis
compulsória, como mais uma vez Razões para a Resistência às Estratégias de
aventado. Porém não existem dados Redução de Danos. In: CIRINO, Oscar &
oficiais de análise. Mais uma amostra da MEDEIROS, R. (Orgs). Álcool e Outras Drogas:
negligência das políticas públicas quando escolhas, impasses e saídas possíveis. Belo
se trata da PSR. Horizonte: Autêntica 2006.

LANCETTI, A. Clínica peripatética. São Paulo:


A pandemia nos trouxe muitos desafios.
HUCITEC, 2008.
Nossa equipe persiste com redução de
praticamente 50% do efetivo. Em muitos

57
Como um serviço Bioenegética e TISE-Toque Integrativo
Somato Emocional.
universitário reinventou
o acolhimento e o Novas Estratégias de acolhimento e
enfrentamento do enfrentamento
sofrimento psíquico: Tendo em vista as dificuldades que
relato de prática da USP temos enfrentado durante o isolamento 58
social, exigido neste contexto de
Osvaldo Hakio Takeda pandemia da Covid-19, devido à
necessidade de acolhimento, para que os
Em abril de 1996, foi inaugurado o pacientes não se sentissem tão isolados,
reduzir os fatores de estresse, reduzir as
Centro de Reabilitação e Hospital Dia
consequências negativas na saúde mental
(CRHD) do Instituto de Psiquiatria (IPq)
e no bem-estar e que pudessem se
do Hospital das Clínicas da Faculdade de
manter conectados e interagir entre si,
Medicina da Universidade de São Paulo
viu-se necessário construir uma nova
(HCFMUSP), que tem como objetivo
rotina.
atender pessoas adultas de ambos os
sexos, com transtornos mentais graves
(TMG), que necessitam de tratamento Inicialmente, no período de suspensão
intensivo, visando à reabilitação das atividades presenciais, para o
psicossocial, com um plano terapêutico acolhimento dos pacientes, foram
diferenciado e personalizado. A unidade criadas algumas atividades: Grupo de
oferece tratamentos intensivos em Convivência, que consiste em um grupo
regime de hospitalização parcial, com de Whatsapp, para que os pacientes
atividades terapêuticas de segunda à possam estar conectados – participam
sexta-feira, das 8h às 16h. desse grupo, pacientes, técnicos e
psiquiatras; Grupos On-line, que
consistem em grupos realizados por
A equipe é composta por psiquiatras e
meio das plataformas Zoom, Google
residentes, enfermeiro e técnicos em
Meet, Skype e Whatsapp Vídeo; Grupo
enfermagem, psicólogo, terapeuta
ocupacional, assistente social, professor de Residentes de Psiquiatria, para
de educação física, terapeutas interação, avaliação e acompanhamento
integrativos, estagiários, aprimorandos, dos pacientes; Grupo de Família, com a
especializandos e capacitandos diversos. promoção de reunião com os familiares,
conduzida por uma psicóloga e uma
assistente social, promovendo um
A grade de atividades terapêuticas do espaço de escuta e acolhimento das
CRHD é ampla e diversificada, diversas demandas; Grupo de
estabelece um programa terapêutico Reencontro, realizado às segundas-
através de métodos psicológicos, feiras, para recepcionar os pacientes do
biológicos, sociais, ocupacionais, final de semana; Grupo de Jornal, por
corporais, lúdicos, esportivos e práticas meio de reuniões para
integrativas e complementares em saúde discussão/atualização pelas notícias dos
(PICS), estas iniciadas em 2000 e com jornais; Grupo de Psicoterapia; e Sarau.
importante destaque no ano de 2008,
com as práticas de Shiatsu, Reiki,
Acupuntura, Aurículoterapia, Yoga, Este último nasceu da ideia de
transformar as oficinas de poesia, que já
Aromaterapia Florais de Bach,
existia de forma presencial, em saraus
Reflexoterapia, Cromoterapia,

58
on-line. Às quintas feiras, desde abril, é ansiedade e depressão nem que seja
realizado um encontro virtual de música somente no dia da atividade.
e poesia. Sempre às 15h, durante uma
hora, os pacientes participam de Os atendimentos de reiki continuam,
diversas maneiras: recitam poesias de desde março, por meio do Enkaku (em
própria autoria e de poetas japonês), ou Reiki a Distância, como é
consagrados, tocam violão, cantam, conhecido no Ocidente uma das
expõem suas ideias em relação à arte, técnicas do sistema de imposição de 59
fazem analogias entre o que foi escrito, mãos. Essa técnica é aprendida em nível
lido, o momento atual e a própria vida. avançado no processo de formação do
terapeuta de Reiki, que possibilita ajudar
Além da interação, o intuito é resgatar o pessoas de modo não presencial.
contato com a linguagem poética, Baseado em uma técnica xintoísta, quem
contribuindo para o fortalecimento de recebe Enkaku sente-se mais aliviado
um olhar crítico e da autoestima, quanto ao grau de estresse ou cansaço
despertando o interesse para literatura ou pode apresentar um grau de melhora
e trazendo um universo muitas vezes do seu estado emocional. O mecanismo
esquecido ou ignorado para a vida do de ação do Enkaku continua sendo um
paciente. Segundo relato dos próprios ponto de interrogação a ser investigado,
pacientes, os saraus servem de alimento provavelmente pelo mesmo motivo que
para o corpo e a alma, trazem foco e a orações e meditações têm seu elemento
possibilidade de ver a vida por outros de cura. Nessa forma de atendimento
ângulos. não existe a necessidade de o terapeuta
contatar o paciente.
“A poesia é tudo o que há de íntimo em tudo”
(Victor Hugo) Já nos casos de reiki on-line
personalizado, o terapeuta entra em
Além das atividades listadas acima, contato com o paciente e os dois
seguimos com a prática da yoga. Com o conversam por vídeo do Whatsapp,
objetivo de dar continuidade às aulas de canal pelo qual o paciente relata como
yoga e meditação presencial do CRHD, se sente, sendo ele, em seguida,
mantendo os propósitos de atenuar os orientado a se colocar numa posição
sintomas de estresse, ansiedade, confortável e relaxada. A sessão começa
depressão e comorbidades relacionadas, assim que a conversa termina e o
por meio de técnicas de autorregulação, Whatsapp é desligado. O terapeuta
autogerenciamento e autoconsciência, realiza o Enkaku com a duração
foi criado o Grupo de Yoga On-line. As aproximada de 40 minutos e, após
aulas são semanais, às terças-feiras, com finalização do atendimento, o terapeuta
uma hora de duração, das 11h às 12h. entra em contato novamente com o
Apesar de a adesão às aulas on-line ser paciente, a fim de obter a devolutiva da
menor do que às presenciais, os sessão e ambos marcam a próxima
participantes relatam sempre, ao sessão. A princípio o paciente recebe
término da aula, bem-estar. Os que quatro sessões de reiki a distância,
conseguem manter a disciplina e a podendo essas sessões ser estendidas,
constância potencializam esses conforme a demanda do paciente. Esta
resultados, prolongando-os e forma de atendimento foi criada para
encorpando-os, mas os participantes potencializar a sensação de cuidado. Os
esporádicos também se beneficiam, pacientes que não participam do
tendo reduzidos os níveis de estresse, atendimento on-line personalizado,
continuam recebendo Enkaku.

59
Além dos pacientes, ampliamos Os Florais oferecem recursos ao
atendimentos do reiki on-line indivíduo que ampliam sua consciência
personalizado para os cuidadores e de modo a manter o corpo, mente e
colaboradores do IPq. O grupo de emoções equilibrados, harmonizados e
Jikiden Reiki do CRHD acredita que protegidos. Possibilita a melhora das
dessa maneira pode dar um suporte para questões ligadas a ansiedade, agitação,
alívio do estresse e cansaço aos estresse, sensações de medo, que se não
pacientes, cuidadores e funcionários tratadas pode evoluir para o pânico e até 60
durante essa fase de quarentena e para a Síndrome de Burnout,
isolamento social. fortalecendo a motivação, o
compromisso do cuidar, diminuindo
O Canta CRHD é uma atividade que estresse, ansiedade e insegurança de
tem por objetivo promover uma forma todos os envolvidos.
de descontração, um tempo de cultivar
alegria e celebrar a amizade nesses Conclusão
tempos tão difíceis e oferecer aos
participantes a oportunidade de A reinvenção do acolhimento e do
usufruírem alguns benefícios da prática enfrentamento do sofrimento psíquico,
de canto coral como a ampliação da por meio do cuidado on-line,
percepção auditiva, a concentração, o possibilitou diminuir a distância,
relaxamento, a sociabilização, a melhoria trazendo a oportunidade de ter um
dos padrões respiratórios e de profissional abrindo escuta e
articulação, emissão da voz e criação de acolhimento, obtendo suporte, assim
um repertório de canções brasileiras. como cuidando das dores emocionais e
das feridas abertas pelas perdas ou falta
As aulas-ensaio têm duração de 60 de adaptação.
minutos, cada, nas quais os participantes
trabalham com canções do repertório É muito bom constatar que, para aqueles
da música popular brasileira. Durante a que estão abertos a esta forma de
aula, são realizados exercícios atendimento on-line, “funciona”. De
específicos de relaxamento, respiração, forma geral, entendemos que as pessoas
articulação, entre outros, para o estão se adaptando, talvez os
preparo vocal, seguidos da interagentes achem um pouco frio,
aprendizagem e da prática das canções porque sentem falta do contato, pois
escolhidas. temos uma máquina intermediando. Mas
o vínculo humano se sobrepõe à
O cuidado ampliado da saúde mental máquina e a distância. Então, há perdas
inclui também os Florais de Bach. Esta sim, mas temos muitos ganhos.
ação terapêutica junto aos cuidadores e
funcionários preveem atendimentos
semanais individuais on-line, momento
em que são evidenciados, através da
relação entre terapeuta e paciente, o
acolhimento, a escuta ativa, o diálogo
respeitoso e o vínculo empático. É
disponibilizada uma agenda, na qual o
profissional que tiver interesse entra em
contato para marcar um horário dentro
da disponibilidade.

60
Como a sociedade civil indígenas, trabalhadores informais,
pessoas em situação de rua, trazendo
tem atuado durante a preocupações muito sérias em relação
Covid-19? aos seus impactos e consequências tanto
no presente quanto no futuro. Um
levantamento realizado pela Fiocruz2,
Eroy Aparecida da Silva
em julho deste ano, apontou que as
regiões onde a pobreza é mais 61
Estamos enfrentando mundialmente acentuada e faltam politicas públicas
uma crise de proporções sem básicas, como educação, saúde e
precedentes devido à pandemia do saneamento, a doença se amplia com
Covid-19, que desafia os modos de vida muito mais rapidez. Muitos equívocos
do planeta em praticamente todos os governamentais em relação às práticas
níveis, desde o microbiológico, o de cuidado com a saúde coletiva foram
familiar, até o macrossocial, político, responsáveis por colocar o Brasil em
econômico, ambiental e cultural. segundo lugar mundial de óbitos (mais
Embora a contaminação pelo vírus atinja de 140 mil óbitos por Covid-19 na
todas as partes do mundo, não podemos última semana de setembro).
deixar de refletir que os impactos dessa
contaminação, em relação ao contágio, e Este cenário de descuido mobilizou
número de óbitos são diferentes, ainda mais a sociedade civil,
apontando que a população mais representada tanto pelas organizações
vulnerabilizada, ou seja, aquela em não governamentais, associações de
estado de pobreza e miséria, é a que moradores, redes formais e informais
mais sofre. No Brasil, isso não é coletivas e movimentos sociais, para
diferente. Somos um país continental, apoiar a população de vulneráveis,
populoso, miscigenado e marcado por incluindo famílias de baixíssima renda,
raízes escravocratas, coronelistas e pessoas em situação de rua, crianças,
populistas, responsáveis por uma adolescente e idosa. Grande parte desta
desigualdade ímpar e contraditória, mobilização social já atuava antes da
onde no qual a opulência contrasta com pandemia e, felizmente, diante da
a miséria absoluta. calamidade social, essa mobilização
ampliou e está trabalhando
Segundo dados do Banco Mundial1, em incansavelmente nas regiões esquecidas
apenas quatro anos (de 2014 a 2018), o pelo Estado, em comunidades
aumento de pessoas convivendo abaixo ribeirinhas, locais de difícil acesso,
da linha da pobreza aumentou 67% entre indígenas, dentre outras,
a população brasileira. O ano de 2019 cotidianamente. Esta rede de atuação e
finalizou com 13,8 milhões de brasileiros mobilização de toda a sociedade tem
vivendo com menos de dois dólares por sido uma importante estratégia no
mês. Este contexto já desolador pré- enfrentamento da pandemia, embora
pandemia do Covid-19 agravou ainda muitos destes coletivos de apoio sofram
mais no Brasil, após a primeira morte internamente com os poucos recursos
por contaminação do coronavírus, em que possuem para atender uma
meados de março de 2020. Inicialmente demanda quase sempre muito maior do
advinda de classes médias ou altas, que os recursos oferecidos.
chegando de viagens do exterior, a
contaminação se espalhou rapidamente A cada dia, novas iniciativas da sociedade
pelo país e atingiu as comunidades mais civil surgem e se somam a esta luta de
vulneráveis, principalmente os negros, enfrentamento ao vírus, ampliando as

61
frentes de ação em defesa da vida A pobreza no Brasil não será
humana em várias áreas da saúde, com a solucionada meramente com ações
distribuição de máscaras, produtos de assistenciais/filantrópicas. É necessário
higiene, como sabonetes e álcool gel, que nosso país avance no enfrentamento
material de limpeza, doações aos da sua desigualdade, situação essa que
hospitais de equipamentos de proteção nos coloca no ranking de um dos
individuais (EPIs), alimentação, seja com maiores do mundo neste quesito. Vale
a oferta de marmitas à população de rua, lembrar que, embora muitos recursos 62
cestas básicas, água, dentre outros midiáticos e tecnológicos tenham sido
materiais como cobertores, agasalhos e desenvolvidos diante da pandemia, uma
outros gêneros de necessidades, ou camada significativa de pessoas não tem
ainda em escutas individuais dos acesso a eles. Inúmeras crianças estão
sofrimentos. fora do ambiente escolar on-line porque
não têm acesso a internet ou não
Especialmente na cidade de São Paulo, possuem computadores, tabletes ou
vários coletivos foram formados nas qualquer outro dispositivo para
próprias comunidades periféricas para acompanhar as aulas. Além disso,
arrecadação de suas necessidades. importante lembrar, que um número
Vários institutos não governamentais significativo da população, em pleno
apoiam organizações sérias nas áreas de século 21, não acessa oportunidades de
educação, saneamento e alimentação. A condições de vida e saneamento,
Rede Nacional de Mobilização Social3, enfrenta a falta de trabalho e não possui
assim como várias outras redes e renda suficiente para manutenção de sua
organizações da sociedade civil, tem prole. É necessário que lutemos como
auxiliado a trazer benefícios baseados sociedade civil organizada, em defesa de
não apenas no assistencialismo, mas no direitos, da dignidade humana e do bem
cuidado e acolhimento da população estar, no enfrentamento e na adaptação
vulnerada, através delas mesmas, a essa dura realidade pandêmica que
apoiando movimento de mulheres denuncia o descuido dos poderes
empreendedoras no ramo têxtil, de público, econômico e político em
costura, bordados e alimentação. Diante relação à saúde coletiva das pessoas.
deste cenário observamos
otimistamente crescimento do Sob esta perspectiva, de forma
Advocacy4, ou seja, como advogar a propositiva, especialmente na cidade de
favor de causas que envolvem a São Paulo, vários coletivos formados
solidariedade, a inclusão, a cidadania, o pela sociedade civil trabalham
empoderamento da própria comunidade cotidianamente tanto para atender
na luta tanto por melhor condição de solidariamente quanto para mapear as
vida quanto pela garantia de seus necessidades junto às comunidades
direitos. Esta estratégia defende que vulneradas, frente à pandemia do
mais do que mitigar os problemas é coronavírus. Dentre eles, citamos:
necessário enfrentá-los e tratá-los nas Centro de Convivência É de Lei;
suas causas, lidando com as Coletivo Tem Sentimento;
desigualdades sociais, bases das Amparar/Rede Contra Genocídio;
atrocidades humanas no Brasil. Pastoral Carcerária; Pastoral do Povo da
Rua; A Cor da Rua; Centro de Educação
Embora tenhamos vários movimentos pela Arte (CISARTE); Rede Fundão do
filantrópicos significativos e atuantes, Grajaú-Mulheres da Billings; Movimento
precisamos de muito mais. É preciso que Nacional e Estadual dos Moradores de
avancemos nas raízes das desigualdades. Rua; Rede de Apoio Popular do Butantã;

62
Centro de Apoio e Pastoral do sociedade-civil-no-combate-ao-
Migrante; ACT, Promoção de Saúde; coronavirus
Associação das Mulheres de
Paraisópolis; Novos Herdeiros 4. Castro, D. Advocacy: como a
Humanistas; Projeto Séfora´s; Coletivo sociedade pode influenciar os rumos do
Favela Fundão; Família Apoia Família; Brasil. SG-Amarante Editorial, 2016.
Vida Corrida; e Central Única das
Favelas (CUFA). Em outros estados 63
brasileiros, contamos também com
inúmeras organizações não
governamentais que militam em prol de
uma vida digna, que durante a pandemia
está trabalhando com a população.

Acreditamos que reside nesse esforço


conjunto e articulado de todos estes
setores, juntando ainda os recursos
públicos e privados disponíveis, a forma
mais efetiva de enfrentarmos tanto a
pandemia do coronavírus quanto a
desigualdade que assola o país.

É dever da sociedade civil organizada


exigir do atual governo o cumprimento
das leis e a garantia da defesa dos
direitos humanos, de um Estado laico,
do respeito à diversidade, enfim a
garantia da vida humana no sua real
potência.

Referências bibliográficas

1. Brecha de pobreza a $1,90 por día


(2011 PPA). Publicação do Banco
Mundial. Disponível em:
https://datos.bancomundial.org/indicado
r/SI.POV.GAPS?view=chart

2. Populações vulneráveis. Publicação do


Portal Fiocruz. Disponível em:
https://portal.fiocruz.br/populacoes-
vulneraveis

3. Sociedade Civil e Combate ao


Coronavírus. Publicação da Rede
Nacional de Mobilização Social (Coep).
Disponível em:
http://coepbrasil.org.br/iniciativas-da-

63
Encontros e Memórias: último dia de trabalho presencial. Muitas
vezes trabalhamos de casa, no fim de
Loucura na rede semana, mas naquela segunda feira, 16,
quando conseguimos enviar o projeto,
Ariadne de Moura Mendes iniciava-se uma nova era para o Loucura.

Na semana anterior ao decreto do Acho que ficamos meio em estado de


choque nos primeiros dias. Talvez um 64
isolamento, o Ponto de Cultura Loucura gosto de descanso, quase férias, que
Suburbana viveu uns dias bastante inicialmente o isolamento provocava. Ao
agitados – o que, aliás, não era incomum. mesmo tempo, insegurança, medo e
Era dia 11 de março, uma quarta-feira, e esforço para entender e se adaptar à
receberíamos a visita dos novos nova realidade foram sentimentos
residentes em saúde mental, além de vivenciados pela equipe nos primeiros
estarmos envolvidos com reuniões da dias. Parada no tempo, no espaço, na
comissão de patrimônio e parcerias do dinâmica das relações.
projeto institucional da criação de um
novo museu, o Museu da Psiquiatria ou
Mas essa realidade começou a se impor
o da História da Saúde Mental, do
e o Ateliê foi acionado para a confecção
Instituto Nise da Silveira. O dia seguinte,
de máscaras de tecido para usuários e
momento da Oficina de Percussão, pela
servidores do Nise da Silveira, tendo
manhã, e de Oficina Livre de Música, à
início uma mobilização a distância,
tarde, foi dedicado a organizar o Ateliê
envolvendo setores do Nise, a
de Adereços e Fantasias e o Barracão,
coordenação e frequentadoras do
que ainda refletiam os dias intensos de
Ateliê, moradoras do bairro do Engenho
preparação e dos empréstimos das
de Dentro, zona norte do Rio de
fantasias – afinal, tínhamos voltado do
Janeiro, estabelecendo–se uma rede
recesso pós-desfile há alguns dias, no dia
solidária que se responsabilizou pela
2 de março.
produção de mais de mil máscaras.
Nosso 20º desfile tinha ocorrido no dia
Essa foi a primeira rede pós início da
20 de fevereiro de 2020. Celebramos
pandemia. O que acontece depois é a
muito essa profusão de vintes. O Cyber,
descoberta e a imersão no mundo
que oferece acesso gratuito à internet,
virtual. Iniciamos pelas reuniões de
funcionou normalmente com a presença
equipe, ainda tateando o mundo
dos usuários dos serviços de saúde
desconhecido das plataformas que
mental e dos alunos do Clube Escolar.
foram ficando mais amigáveis, gratuitas e
Durante todo o dia, uma parte da equipe
mais acessíveis com o tempo e
trabalhou na elaboração do projeto que
enfrentando as limitações dos aparelhos
seria enviado para concorrer ao edital
de muitas pessoas da equipe, que
da Secretaria Municipal de Cultura de
apresentavam pouca capacidade de
Circulação de Música, nas lonas, arenas
manter as conexões e que, por isso, não
e areninhas culturais. Estávamos
conseguiam ficar presentes o tempo
empolgados, queríamos gravar mais um
todo ou ficavam só com voz, porque a
CD com os sambas campeões de 2012 a
imagem não funcionava. Apesar dessas
2020 e fazer um show de lançamento no
limitações, esses encontros regulares da
teatro do Parque de Madureira, no fim
equipe foram – e são até hoje –
de novembro. Tínhamos que correr
importantes elementos de sustentação
com o projeto, para entregá-lo no dia 16
dos vínculos afetivos e de trabalho,
de março. O dia 12 de março foi nosso

64
permitindo que mantivéssemos a prática desafios para a equipe e a oportunidade
rotineira da construção coletiva das de novos aprendizados.
nossas atividades, desta vez desafiada a
inventar algo novo. As lives realizadas até agora passearam
pela história da fundação do Bloco
E é aí que surge a ideia de promover Loucura Suburbana, da constituição do
encontros através de recurso que vinha Ateliê de Adereços e Fantasias, pelas
começando a ser amplamente utilizada, trajetórias e importância das oficinas 65
as lives. Há muito tempo pensávamos musicais do Loucura – de percussão e
em conseguir dar uma parada na livre de música –, e podem ser revistas
intensidade de nossas atividades, para no canal do Loucura Suburbana no
nos dedicar mais a alguns projetos que Youtube. Com esse conjunto de
registrassem a história do Bloco encontros e memórias, fomos
Carnavalesco Loucura Suburbana. Um percebendo que continuamos o
dos quais já tinha tido um começo movimento de juntar pessoas com
quando colhemos depoimentos de música, carnaval, criatividade e alegria,
algumas pessoas ligadas ao carnaval, ao desta vez colocando o bloco nas redes
bairro do Engenho de Dentro e à sociais. Houve, inclusive, participação
instituição psiquiátrica – o Instituto dos foliões e foliãs internautas numa
Municipal Nise da Silveira –, dentre eles votação para escolher a ordem de
alguns personagens emblemáticos da apresentação das últimas três lives.
história do samba carioca.
O desafio da sustentabilidade, constante
A primeira live, Loucura na Luta, na vida do dia a dia do Loucura
realizada no dia comemorativo do Dia Suburbana, uniu-se dessa vez à
Nacional da Luta Antimanicomial, necessidade de reinvenção das
reunindo pessoas ligadas ao Loucura propostas de participação em editais
Suburbana e, também, à saúde mental, públicos. Representou um verdadeiro e
só fez demonstrar que o início de um agradável laboratório de ideias a
projeto de memória começava e que a concepção de três projetos virtuais de
via virtual representava um facilitador membros da equipe para concorrer a
dos encontros. Encontros também com um edital público de auxílio aos
pessoas que já foram muito próximas e fazedores de cultura: um vídeo arte com
que estavam fisicamente distantes no poesias da autora deste artigo; uma
espaço e no tempo. E assim foi oficina de percussão, A Insandecida em
concebida uma programação regular de Casa; e uma editora virtual, A
lives, algumas com caráter mais Encantarte Virtual. Infelizmente, apenas
acentuado de depoimentos de a oficina foi contemplada e realizada.
trajetórias com papéis mais marcantes Esse desafio da sustentabilidade continua
na fundação e na construção do a ocupar a equipe na busca de
Loucura, tanto bloco quanto ponto de financiamentos e apoios que garantam a
cultura. Esses agradáveis encontros têm continuidade do trabalho.
contribuído não só para tornar pública a
história e seus personagens, mas para Para entender por que estamos
que a própria equipe a conheça mais, em conseguindo passar por esse momento
detalhes. Principalmente, para que todos de distanciamento social e, em muitos
nós a revivamos – afinal, recordar é casos, de isolamento mesmo, mantendo
viver. A utilização de várias plataformas a equipe unida e com boa estabilidade
e seu manejo para a realização dos emocional, é interessante
encontros virtuais representou também

65
apresentarmos brevemente a história, a sim, mas também do trabalho – somos
estrutura e a prática de anos de uma equipe de trabalho que bota o
funcionamento do Loucura Suburbana. bloco na rua, que produz cultura.

O Bloco Carnavalesco Loucura A relação cotidiana de trabalho e os


Suburbana foi criado no Instituto espaços para expressão, criatividade e
Municipal Nise da Silveira, em 2001, acolhimento das diferenças permitem
quando realiza seu primeiro desfile desenvolver potenciais, revelar talentos 66
reunindo usuários, familiares e e habilidades, fazendo com que as
funcionários da rede pública de serviços pessoas com sofrimento mental
de saúde mental, além de moradores do adquiram novas identidades, que se
bairro do Engenho de Dentro, subúrbio constituam como sujeitos de sua própria
do Rio de Janeiro, onde se situa a história, que a reescrevam como
unidade. Sua criação foi coletiva, cidadãos, abandonando a identidade
envolvendo atores de diversos serviços, estigmatizada do louco, introjetada
não só da instituição, mas de outras, durante anos pelo preconceito da
além da comunidade, e representou o sociedade com relação à loucura, e que
protagonismo da saúde mental ao ganhem a cidade.
romper os muros do hospício, levando
para a cidade seu primeiro bloco de A construção de uma história coletiva,
carnaval em saúde mental, além de ter simultaneamente à construção e
tido o importante papel de revitalizar o reconstrução de histórias individuais,
carnaval de rua do Engenho de Dentro, gera contínuos movimentos de
potente no passado, mas que naqueles ressignificação de vidas e consolida uma
anos não estava existindo mais. prática democrática do viver. É uma
chance continuar, na rede, a construção
Em 2009, torna-se o primeiro ponto de dessa história, de agregar e aprofundar
cultura em saúde mental da cidade o histórias que correm o risco de ficar
Ponto de Cultura Loucura Suburbana: esquecidas ao longo de tantos anos do
Engenho, Arte e Folia, com apoio da nosso existir. Reviver a história do
Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Loucura é mantê-la viva e continuar
Janeiro. A partir daí, começa a oferecer dando sentido às existências individuais
oficinas gratuitas, permanentes, abertas dentro do coletivo, das relações que
à população em geral, ligadas ao carnaval compõem o coletivo.
e ao samba, incorporando mais tarde
outros dois projetos, a Escola de Essas relações, os vínculos afetivos em
Informática Nise da Silveira e a ligação permanente, o desenvolvimento
Encantarte Editora. criativo e o que foi introjetado e
produzido durante anos pelos
É importante destacar que toda a frequentadores do Loucura
construção do Loucura foi feita com a representam uma estrutura que tem
participação de usuários dos serviços de servido de base para que os usuários de
saúde mental que compõem, desde saúde mental, assim como toda a equipe,
sempre, a equipe, participando das enfrentem saudavelmente a
decisões, já que nossa gestão é coletiva impossibilidade de estarem juntos
e horizontalizada. O Loucura cria fisicamente nas atividades habituais, bem
espaços de integração com a população como as ameaças constantes do
e inaugura uma forma peculiar de lidar desmonte da política de saúde mental
com a loucura: através da cultura e arte,

66
construída pela Reforma Psiquiátrica
brasileira.

Antes, sim, no aglomerado de seres


indiferenciados, sem nome, de um
hospício cruel, era o isolamento. Agora
é o isolamento vivido sem angústia com
o desafio de ser suportado, de ser 67
transposto, de ser reconstruído, de ser
colorido.

Para finalizar segue o depoimento de


nossa porta-bandeira, Elisama Arnaud:

“Se eu tenho hoje conhecimento, foi devido ao


curso de informática, e ficou muito aguçado
em mim. E isso é uma base que fica para a
vida toda. Com ele eu posso mexer na
internet, no celular, fazer lives, me
desembaraçar. Por causa disso, eu tenho um
emprego. E o Ponto de Cultura, na epidemia,
me ajudou a me orientar na questão da
máscara, ter que ficar em casa. Isso me ajuda
bastante, porque estou sempre me
comunicando com vocês. Estou sobrevivendo
sem ficar doente de novo, sabendo orientar
minha família. O Ponto de Cultura me ajudou
a ser positiva, não negativa, a aprender a olhar
para o futuro. Estou sendo produtiva,
pintando, estou escrevendo, cuidando de mim,
procurando um futuro melhor. Sinto-me
empoderada, porque pago minhas contas,
compro minha comida... Antes eu era uma
dona de casa, agora sou uma mulher, me
respeito, gosto de mim, me aceito do jeito que
eu sou, não fico me julgando, dizendo que eu
não consigo. Agora eu consigo, eu vou em
frente. Eu sei os meus direitos, eu agarro ali,
com unhas e dentes, e me defendo.
Antigamente, eu não conseguia nada disso e
quem me ensinou tudo isso foram vocês. Vocês
seguraram na minha mão e disseram ‘vai’, e
eu fui”.

67
Movimentos computador ou um celular, e de acesso
à rede de internet. Ou seja, é necessário
antimanicomiais na acesso a bens e conhecimento, que,
pandemia: como estão todos sabemos, não é nada
enfrentando estes democrático.
desafios? Pois bem, demanda-se a criação e a
consolidação de espaços para a 68
Ed Otsuka participação coletiva de usuários,
trabalhadores, familiares, estudantes e
Em tempo de pandemia, novos desafios militantes. Por consequência, evidencia-
se a urgência de novas formas de
se apresentam. Para lançarmos luz sobre enfrentamento de um quadro que
nossas ações é necessário considerar, perdura e se agrava. Os movimentos
também, que as oportunidades de sociais, com tão poucos recursos e
criação e transformação encontram tantas batalhas a serem travadas, ao
novo horizonte. Especialmente, quando menos, possuem a resiliência e a
tratamos de questões que tendem a capacidade de criar. Abrem-se
serem mantidas por aspectos históricos, possibilidades de transformação, que
políticos, econômicos e culturais. A podem ter origem em tempo de
lógica manicomial se alastra e se pandemia, mas não se encerram quando
reproduz pelas diversas dimensões da e se esse tempo for superado. Que o
vida cotidiana na sociedade brasileira. acesso a essas ferramentas de expressão
e comunicação permaneça como um
“A conceituação em saúde mental é marcada importante aliado na garantia de voz à
por muitos caminhos, cada um deles se diversidade e à singularidade. Que todas
oferecendo para instituí-la, e nenhum deles e todos possam se apropriar desses
podendo dar conta da liberdade de abstração instrumentos, que constituíram
necessária, dos nós ideológicos, das heranças importantes meios para construção de
(sejam as materialistas, fenomenológicas ou seus próprios projetos de vida.
outras) que produzem as nomeações para a
saúde e a doença”. (FERNANDES, 2005)1 Quando dizemos, nesse caso, que é pelo
medo que o grupo reage a uma
A emergência de antigas questões e a experiência nova, ao que é
demanda por novas práticas e novos indeterminado ou ao que é
saberes não se encerram em tempo de desconhecido, enunciamos uma verdade
pandemia, mas podem ser disparados muito mais ampla do que aquela que nós
pelo quadro em tela, cujas cores ficam mesmos reconhecemos e, por
mais “vivas” nesse período. Citamos conseguinte, o grupo também só
aqui o acesso a ferramentas e consegue reconhecer os aspectos
tecnologias de comunicação e expressão superficiais dessa afirmação. Não é
individuais e coletivas, que consiste em apenas a novidade que provoca o medo,
lacuna perpetuada pelas desigualdades mas também o desconhecido que existe
sociais, que se faz ainda mais grave no interior daquilo que é conhecido
quando soma à segregação cotidiana e (BLEGER, 1991)2.
histórica das pessoas em sofrimento
psíquico, sobre as quais paira uma Os movimentos antimanicomiais, como
constante aura de incapacidade. denunciantes e transformadores da
Necessitamos para essas novas práticas, ordem estabelecida, não podem negar
que se tornam banais, de um

68
essa face da realidade que nos encara de sobre a fragilidade do outro, “passando
frente. Na impossibilidade do encontro a boiada”. Identificamos, denunciamos e
que se faz pelo toque e se fortalece no atuamos sobre o aumento da produção
coro de vozes que se sobrepõe pela de sofrimento psíquico por meio de
proximidade de muitos, é necessário instituições e práticas manicomiais,
reinventar formas de construção como as Comunidades Terapêuticas
coletiva e demonstração de unidade, pela Resolução 03/2020, do Conselho
mesmo que a distância física seja Nacional de Políticas sobre Drogas 69
sinônimo de cuidado. Se o silêncio não é (Conad)3, órgão superior permanente
uma opção, precisamos amplificar e do Sistema Nacional de Políticas sore
juntar as vozes com as ferramentas de Drogas (Sisnad), que “regulamenta o
que dispomos. tratamento de adolescentes com
dependência química em Comunidades
A Luta Antimanicomial só existe porque Terapêuticas”, ou a Portaria nº 69/2020
a transformação urge e a construção de do Ministério da Cidadania4, que
coisas belas em ambiente árido é estabelece a internação de pessoas em
essência. O encontro do novo, do situação de rua e imigrantes, nessas
diverso e do novo saber sempre foi mesmas instituições. Como também
desafio, que não se pode evitar, para a pelos Hospitais Psiquiátricos, cuja
Luta Antimanicomial. Como projeto distorção do cuidado se soma à
amplo de sociedade/comunidade mais exposição e proliferação do vírus,
justa e igualitária, busca nesse período, manifestando a necropolítica5, que
aliada aos seus princípios, articular com historicamente atingiu o dito “louco”,
diversos movimentos sociais. No que pela disseminação do atendimento
tange à saúde e à saúde mental, a ambulatorial em diversos serviços de
integralidade do sujeito e da vida não saúde mental, que encontra cenário
podem ser negados. As questões étnico- fértil para sua expansão, o que fomenta
raciais, da população em situação de rua, a lógica da medicalização, patologização
do sistema prisional, da população e reificação da vida.
LGBTQI+, de pessoas internadas em
instituições asilares em geral, da violação No manicômio, não há singularidade, os
dos direitos dos trabalhadores do pacientes são todos iguais, são postos
campo da saúde, da violência de Estado, em determinados diagnósticos, são
da exploração pelo trabalho, só podem reduzidos à doença. É tirado deles o
ser vistas de forma transversal. O direito de ser um indivíduo que interage
diálogo como forma dialética e ações com o outro e com o mundo. Segundo
conjuntas são estratégias fundamentais Franco Rotelli6, o manicômio é o lugar
para o aprofundamento e a ampliação da zero da troca. O paciente é privado de
discussão acerca da saúde mental e da trocar, de dialetizar com o mundo. Há a
Luta antimanicomial. necessidade do distanciamento e do
isolamento social, como forma de
Os movimentos antimanicomiais só cuidado, mas a troca afetiva não deve
podem se realizar na concretização do jamais cessar.
que defendem, na horizontalização das
relações e na garantia de direitos. Assim, Copa da Inclusão junto com outros
as novas construções devem se basear movimentos da Luta Antimanicomial
na democratização dos espaços de
locução. Nesse período, os movimentos A Copa da Inclusão, organizada pela
estão atentos a ações de oportunistas entidade Sã Consciência, é um projeto
sempre alertas em impor seus interesses

69
que promove o acesso a atividades de a novos ambientes, que consiste em um
lazer, esportes, artes e geração de de nossos objetivos centrais, por
renda, como dimensões essenciais na exemplo, se realiza nos ambientes
promoção integral de saúde mental. virtuais. O próprio encontro afetivo e de
Trata-se de uma ação política que construção coletiva, Show de Talentos
ocorre há 19 anos, anualmente. Conta (apresentações artísticas livres), Oficinas
com a participação de aproximadamente Culturais e Terapêuticas, Feira de
90 serviços de saúde mental (Centros de Geração de Renda e Roda de Conversa 70
Atenção Psicossocial - CAPS, Centro de foram garantidos. Por conta do cenário
Convivência e Cooperativa - CECCO, de pandemia, todas as atividades
SRT - Serviço Residencial Terapêutico, ocorreram por meio de ferramenta
UAs - Unidades de Acolhimento), digital.
localizados na capital, região
metropolitana e interior de São Paulo. A articulação e a construção coletiva são
Cada edição é planejada em reuniões elementos basilares para a Copa da
abertas que contam com a participação Inclusão e os movimentos
de usuários, trabalhadores, familiares e antimanicomiais. No período de
militantes da Luta Antimanicomial. pandemia, buscamos fomentar a
aproximação com diversos movimentos
De forma ampla, buscamos contemplar parceiros na Luta Antimanicomial e da
as dimensões culturais, políticas, defesa dos direitos humanos, como
históricas da vida de cada usuário e de frentes e fóruns da luta antimanicomial,
cada serviço. Aspectos como a com destaque para a Frente Estadual
intersetorialidade, a construção e Antimanicomial de São Paulo, o
fortalecimento das redes de saúde, a Movimento PopRua, coletivos de
territorialidade, a participação e o Economia Solidária, sindicatos,
controle social, o projeto terapêutico conselhos profissionais, conselhos de
social do sujeito e da instituição, formas participação e controle social, entre
alternativas de relações de trabalho, a outros. Assim, seguimos, sem
garantia de acesso à cidade, o convívio estagnarmos, sempre buscando novas
social e comunitário e a apropriação dos construções e novas estratégias para o
espaços e bens públicos. fortalecimento da Luta Antimanicomial e
Compreendemos que a saúde mental por uma sociedade mais justa, igualitária
apenas se promove abrangendo todos e fraterna.
esses elementos.
“O desejo de saber deve ser constante. Não
Em meio à pandemia, continuamos pode ter um fim. De outra forma serve apenas
sendo guiados por essas questões, a busca de certezas que será imposta ao
mesmo que algumas não pudessem ser objeto sobre o qual se debruça. O objetivo de
realizadas concretamente. O projeto conhecer se desvia para o de produzir uma tal
não poderia paralisar num momento que verdade. Assim, encerra-se o saber, sem
é tão demandado e que aspectos da vida necessidade de outro futuro continuamente em
são tão explicitados, gerando ainda mais desenvolvimento. O devir deixa de existir, bem
sofrimento. como sua possibilidade de se realizar.
Qualquer avanço é bloqueado”. (OTSUKA,
Em 2020, quando é realizada a 19º 2017, p. 123)
edição do projeto, o encontro que
consiste em sua essência, é concretizado Referências Bibliográficas
por novas formas e caminhos. O acesso

70
1. Fernandes, MIA. Negatividade e
vínculo: mestiçagem como ideologia. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p.41.

2. Bleger J. O Grupo como Instituição e


o Grupo nas Instituições. In: A
instituição e as instituições: estudos
psicanalíticos. São Paulo: Casa do 71
Psicólogo, 1991. p. 46.

3. Brasil. Ministério da Justiça e


Segurança Pública/Conselho Nacional de
Políticas sobre Drogas. Resolução nº 3,
de 24 de julho de 2020. Brasília,
Ministério da Justiça e Segurança Pública,
2020.

4. Brasil. Ministério da
Cidadania/Secretaria Especial do
Desenvolvimento Social/Secretaria
Nacional de Assistência Social. Portaria
nº 69 de 14 de maio de 2020. Brasília,
Ministério da Cidadania, 2020.

5. MBEMBE, Achille. Necropolítica:


biopoder, soberania, estado de exceção,
política da morte. São Paulo: n-1
edições, 2019.

6. Rotelli F. Desinstitucionalização. 2nd


ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.

71
Pandemia: as prioridades Reunir os conselhos nacionais de
direitos para pensar uma agenda
da contrarreforma emergencial?
psiquiátrica
Não! A agenda da contra reforma
Katia Liane Rodrigues Pinho e Leonardo psiquiátrica tinha outras prioridades. A
Pinho partir das premissas do atual governo os
operadores da contra reforma 72
psiquiátrica, enxergaram a pandemia
O vídeo da reunião do dia 22 de abril como uma oportunidade para passar a
de 2020, entre o presidente Jair boiada e ganhar dinheiro usando
Bolsonaro e seus ministros de Estado, recursos públicos.
teve seu sigilo retirado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) e o país assistiu As medidas anunciadas foram
as prioridades e a agenda do atual essencialmente voltadas a ampliar o
governo. Duas declarações demonstram mercado das internações, garantindo
como utilizar a pandemia como mais leitos em HP e nas CT, e a criar
oportunidade. uma rede privada de atendimento em
saúde mental.
O ministro Ricardo Salles orientando o
presidente e os demais ministros Enquanto isso se amplia pelo país os
afirmou: casos de contaminação e mortes por
Covid-19 em locais de isolamento, como
“[...] a oportunidade que nós temos que a nos HP de Porto Alegre (RS),
imprensa está nos dando um pouco de alívio denunciados à Comissão Interamericana
nos outros temas é passar as reformas de Direitos Humanos da Organização
infralegais de desregulamentação, e continuou: dos Estados Americanos (CIDH-OEA),
ir passando a boiada e mudando todo o onde ao menos 57 pacientes e 38
regramento e simplificando normas [...]”1. trabalhadores foram contaminados,
além de 8 óbitos2.
Na mesma lógica, o ministro da Fazenda,
Paulo Guedes, afirmou: Para garantir a ampliação de internações
em CT, a SENAPRED lançou a Portaria
“Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos 340, com orientações em tempos de
públicos para salvar grandes companhias”1. Covid-19: “Art. 3º - As atividades e os
serviços realizados pelas Comunidades
No atual contexto de pandemia: quais Terapêuticas são considerados
foram as principais preocupações da essenciais, nos termos dos incisos I e II
Coordenação Nacional de Saúde Mental do art. 3º do Decreto nº 10.282, de 20
do Ministério da Saúde e da Secretaria de março de 2020”3.
Nacional de Prevenção às Drogas
(SENAPRED) do Ministério da Outra medida comemorada pelos
Cidadania? Reunir os coordenadores de atores da contra reforma psiquiátrica foi
saúde mental de todos os estados a Portaria nº 69, de 14 de maio de
brasileiros, para ter uma estratégia 20204, que tem como objetivo
nacional de prevenção? Criar estratégias possibilitar a consolidação das CT como
nacionais de cuidado? Ter planos de parte dos fluxos das políticas à
contingência de hospitais psiquiátricos população em situação de rua:
(HP) e comunidades terapêuticas (CT)?

72
“[...] tendo em vista o atendimento a Vale destacar que as ilegalidades na
necessidades das pessoas em situações de rua Resolução nº 3 do Conad5 foram
que sejam dependentes de álcool e outras apontadas pela recomendação conjunta
drogas, orienta-se que, nos locais em que haja nº 3839672 da Defensoria Pública da
demanda específica para tal, a Rede União/RJ8 em conjunto com diversas
Socioassistencial, juntamente com a Rede de defensorias estaduais:
Atenção Psicossocial-RAPS da saúde, acordem
protocolos e fluxos de encaminhamento com “[...] não ser permitida, em qualquer caso, a 73

as Comunidades Terapêuticas cadastradas permanência de adolescentes em comunidades


junto à Secretaria Nacional de Cuidados e terapêuticas, pois o acolhimento em
Prevenção às Drogas (SENAPRED)[...]”4. instituições depende sempre de ordem judicial
e só poderá ser efetuado em estabelecimentos
Avançando ainda mais na agenda, no dia próprios, que preencham os requisitos dos
6 de julho de 2020, em pleno período artigos 92 e 94 da Lei nº 8.069/90 e a
crítico da pandemia pela Covid-19 no Resolução Conjunta nº 1/2009, que estabelece
Brasil, o Conselho Nacional de Políticas as Orientações Técnicas: Serviços de
sobre Drogas (Conad) reuniu-se Acolhimento para Crianças e Adolescentes”8.
extraordinariamente e aprovou a ilegal
regulamentação do acolhimento de No dia 13 de agosto de 2020, dia do
adolescentes em CT. A Resolução nº 3 psiquiatra, em vídeo da Associação
foi publicada em Diário Oficial dia 24 de Brasileira de Psiquiatria (ABP),
julho de 20205. secretários do Ministério da Saúde
anunciam um momento histórico, que o
O Conad com essa regulamentação presidente da ABP sintetizou como: “O
pretende autorizar que as CT recebam que foi proposto aqui hoje é um sistema
dinheiro público, com a finalidade de PRIVADO ofertado para o Sistema
criar internações que podem chegar a Público”1.
um ano de duração. Esse tipo de
internação de longa permanência viola O conjunto de iniciativas realizadas
os direitos humanos e, claramente, não durante a pandemia não vai no sentido
visa cuidado e tratamento, se de fortalecer o sistema único de saúde e
assemelhando a uma medida de de assistência social, de criar estratégias
restrição de liberdade. de cuidado e prevenção e de atuar para
evitar as mortes e contaminações que
Na Câmara Federal, a reação foi vêm ocorrendo no país em HP e CT
imediata, sendo apresentadas duas privadas. Ao contrário, ver a pandemia
iniciativas: como oportunidade. Momento de
passar medidas ilegais, infralegais, usar as
1 - O Projeto de Decreto Legislativo canetadas (portarias e decretos) para
207/20 que anula a Portaria do ampliar o mercado de repasses públicos
Ministério da Cidadania que estabelece para o setor privado.
regras para o enfrentamento da
pandemia pela COVID-19 em CT6; Enquanto a maioria da população, a
imprensa, os trabalhadores da saúde e
2 – O Projeto de Decreto Legislativo da assistência social mostram empatia e
354/20 que susta os efeitos da prioridade à vida, a contrarreforma
Resolução nº 3, de 24 de julho de 20207. psiquiátrica tem outra prioridade.
Seguindo Salles, “passando a boiada e
mudando todo o regramento e

73
simplificando normas”, e, seguindo 5. Brasil. Resolução nº 3, de 24 de julho
Guedes, “ganhar dinheiro usando de 2020. Regulamenta, no âmbito do
recursos públicos”1. Sistema Nacional de Políticas Públicas
sobre Drogas - Sisnad, o acolhimento de
A agenda da contrarreforma psiquiátrica adolescentes com problemas
vê na pandemia uma oportunidade para decorrentes do uso, abuso ou
ampliar o mercado das internações dependência do álcool e outras drogas
privadas, pagas com dinheiro público, e em comunidades terapêuticas. 74
de criar uma rede privada de saúde
mental. Uma clara agenda de 6. Brasil. Projeto de Decreto Legislativo
regressividade dos direitos humanos, 207/2020, de 11 de maio de 2020. Susta,
impondo uma reversão ao paradigma do nos termos do Artigo 49, V, da
tratamento em liberdade, cuja rede Constituição Federal, a Portaria Nº 340,
substitutiva, pública, intersetorial e de de 30 de março de 2020, que
base comunitária para tratamento e “Estabelece medidas para o
promoção de direitos em saúde mental enfrentamento da Emergência em Saúde
e drogas no Brasil é substituída pelo Pública de Importância Nacional
modelo privado de isolamento e decorrente de infecção humana pelo
exclusão. Um retorno ao modelo que novo coronavírus (Covid-19), no âmbito
levou aos “holocaustos brasileiros”9. das Comunidades Terapêuticas.

Referências bibliográficas 7. Brasil. Projeto de Decreto Legislativo


354/2020, de 05 de agosto de 2020.
1. Psiquiatria, Associação Brasileira. Susta os efeitos da Resolução nº 3, de 24
Novos rumos para as Políticas de Saúde de julho de 2020, Ministério da Justiça e
Mental no Brasil. Youtube. 17 de agosto Segurança Pública, que regulamenta, no
de 2020. âmbito do Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas - Sisnad, o
2. Gomes, L. E. Entidades apontam falta acolhimento de adolescentes com
de transparência e omissão do Estado problemas decorrentes do uso, abuso
após surto de covid-19 em hospitais ou dependência do álcool e outras
psiquiátricos. Sul21. 05 ago 2020. drogas em comunidades terapêuticas.
Coronavírus.
8. Brasil. Recomendação nº 3839672 -
3. Brasil. Portaria nº 340 de 30 de março DPU RJ/GABDPC RJ/1DRDH RJ, de 03
de 2020. Estabelece medidas para o de agosto de 2020. Acolhimento de
enfrentamento da Emergência em Saúde jovens com idade entre 12 e 18 anos
Pública de Importância Nacional incompletos em comunidades
decorrente de infecção humana pelo terapêuticas.
novo coronavírus (Covid-19), no âmbito
das Comunidades Terapêuticas. 9. ARBEX, Daniela. Holocausto
brasileiro. 1 ed. São Paulo: Geração
4. Brasil. Portaria nº 69 de 14 de maio Editorial, 2013.
de 2020. Aprova recomendações gerais
para a garantia de proteção social à
população em situação de rua, inclusive
imigrantes, no contexto da pandemia do
novo Coronavírus, Covid-19.

74
Como a Terapia genuinamente brasileira, que nasce pelo
trabalho de Adalberto de Paula Barreto,
Comunitária Integrativa com a colaboração de Airton Barreto,
tem ajudado pessoas a em 1987, em Fortaleza (CE), que, ao
enfrentarem o longo das décadas, tem se expandindo a
partir da Atenção Primária à Saúde
sofrimento durante a (APS), nacional e internacionalmente,
Pandemia da Covid-19?* em países da América Latina, Europa e 75
África. No contexto do Sistema Único
de Saúde (SUS), a TCI foi aprovada a
Milene Zanoni da Silva, Adalberto de
partir da Portaria 849/2017.
Paula Barreto, Josefa Emília Lopes Ruiz,
Jussara Otaviano, Maria Lucia A. Reis,
Maria José Mendonça, Walfrido Kühl A TCI é uma estratégia de cuidado
Svoboda, Catalina Baeza, Maria de solidário, realizada em grupos, com o
Oliveira Ferreira Filha objetivo de promover a saúde mental,
construir redes de apoio social e
“Confinados nos desligamos do social para vínculos saudáveis, estimular relações
religarmos com a família e nossa casa
que possibilitam compartilhar
experiências, resgatar habilidades e
interior". (Adalberto Barreto)
superar adversidades.
Embora as pandemias sejam milenares, A TCI está ancorada em cinco
a Covid-19 está sendo única no que fundamentos: pensamento sistêmico;
concerne sua amplitude, magnitude e pragmática da comunicação;
rapidez, já que pessoas em mais de 213 antropologia cultural; pedagogia de
países em todo o mundo foram afetadas Paulo Freire; e resiliência. Seu método
simultaneamente, em um curto período pauta-se em etapas e regras3, onde o
de tempo1. Além de mitigar os impactos recurso é a palavra para dar voz às
danosos de casos e óbitos por Covid-19, emoções, uma vez que ao verbalizar
há outro desafio necessário para sentimentos nos conectamos com a
preservar vidas: em uma pandemia, o nossa humanidade4.
medo e os níveis de ansiedade e de
estresse em indivíduos saudáveis
A TCI no cenário de isolamento
aumentam e os sintomas daqueles com
distúrbios psiquiátricos pré-existentes social
intensificam.
A partir do início da pandemia pelo novo
coronavírus no Brasil, as rodas de TCI,
Em um cenário em que há um interesse que historicamente eram realizadas de
significativo nos recursos vinculados às forma grupal e presencial, foram
Práticas Integrativas e Complementares testadas para assumir um novo modus
em Saúde (PICS), no manejo da Covid- operandi no ambiente virtual, utilizando
192, sabe-se que vem ocorrendo a oferta para isso diversas plataformas, como o
de PICS na atenção primária e em WhatsApp, Zoom, Google Meet, entre
serviços especializados de forma outras. Esta prática rapidamente
presencial e/ou virtual, por meio do espalhou-se em diversas partes do país e
telecuidado, tais como as rodas de da América Latina, com apoio da
Terapia Comunitária Integrativa on-line. Associação Brasileira de Terapia
Comunitária Integrativa (Abratecom) e
A Terapia Comunitária Integrativa (TCI)
é uma abordagem interpessoal

75
da Associação Brasileira de Psiquiatria que ocorria de realização de rodas de
Social (APSBRA). TCI on-line e, concomitantemente,
estimular e capacitar o maior número de
Para dar sustentação ao processo de atores envolvidos neste processo.
mudança na forma de realizar as rodas
de TCI, vale destacar três aspectos que Dentre os 42 Polos de
impulsionaram o seu crescimento neste Formação/Cuidado em TCI, tem-se
período de pandemia: verificado diferentes movimentos no 76
que concerne ao registro das rodas,
1) A Abratecom criou um Grupo de como polos que estão realizando rodas,
Trabalho com o objetivo de traçar mas que têm dificuldades para o seu
diretrizes para a realização das rodas de registro, polos que têm seus sistemas
TCI on-line, apontando os cuidados próprios de registro e polos que estão
metodológicos e tecnológicos para utilizando o sistema de informação
realizá-las; SISrodas (22 polos)5.

2) Implementação de parcerias No que diz respeito ao SISrodas, de abril


estabelecidas entre a Abratecom, a julho, no Brasil, foram ofertados
APSBRA e a Coordenação Nacional das treinamentos, formação de equipes de
PICS do MS para o oferecimento de trabalho para apoiar os registros de
rodas de TCI on-line, destinada aos informações para os polos que
profissionais de saúde, especialmente apresentavam maiores limitações.
àqueles e àquelas que estão na linha de
frente no combate à Covid-19. Desde Foram 398 rodas registradas, com 9.706
abril, foi construída uma agenda participantes, de 15 países diferentes,
contendo mais de 20 rodas de TCI on- sendo 61,7% mulheres adultas e 23% de
line por semana, em diferentes horários, mulheres idosas. Os temas mais
disponibilizada pelo frequentes foram estresse (29%),
ObservaPICS/Fiocruz-PE; conflitos familiares (16%) e depressão
(16%). Em relação às estratégias de
3) Incentivo e capacitação para o enfrentamento, surgiram principalmente
registro das rodas realizadas por parte empoderamento pessoal e autocuidado
dos polos da rede Abratecom e (40%), redes solidárias (20%) e ajuda
terapeutas comunitários. religiosa/espiritual (15%). A
aprendizagem que mais chama a atenção
Sistema de Registro das Rodas de é a capacidade resiliente de fazer dos
acontecimentos traumáticos ocasião
TCI pelos Polos de Formação
para criar6.
A cultura para o registro, monitorização
e avaliação das PICS é fundamental para É necessário lembrar que estes dados
dar visibilidade à magnitude e a sua não refletem a totalidade do que,
importância no cenário brasileiro. Esta efetivamente, tem acontecido na prática
diretriz coaduna com os objetivos da das rodas de TCI on-line. Avançamos
PNPIC e de documentos sobre muito no que se refere ao registro, mas
Medicinas Tradicionais da Organização ainda há muito mais que progredir para
Mundial da Saúde (OMS). Com a trazer, de fato, uma dimensão mais
chegada da pandemia no Brasil, fidedigna ao movimento vivo que se tem
percebeu-se a necessidade iminente de dado neste contexto de crise.
quantificar e caracterizar o movimento

76
A vitalidade comunitária como com propriedades semelhantes, ou seja,
recurso para aliviar o sofrimento primeiramente num movimento de
vitalidade intracomunitária para depois o
Vale a pena ser valorizado, neste estímulo para a construção de
contexto de múltiplas mudanças a partir vitalidades intercomunitárias. Estas
da pandemia, que a TCI tem percepções têm acontecido tanto no
demonstrado significativa capilaridade ambiente presencial, como no ambiente
geográfica, afetiva e social (BARRETO et virtual. 77
al, 2020)6. Isto nos remete ao conceito
de vitalidade comunitária que é As rodas de TCI, no meio cibernético,
caracterizada por relacionamentos têm se mostrado uma estratégia fértil
fortes, ativos e inclusivos entre os para o estabelecimento de conexões,
atores na própria comunidade e fora para além das virtuais, trazendo afetos e
dela, envolvendo parcerias com setor vínculos saudáveis e transformações
público, setor privado e organizações da construtivas. Isto é possível pois a
sociedade civil que trabalham para emoção não distingue entre virtual e
promover bem-estar individual e presencial. Para os seres vivos, como
coletivo7. relata Maturana (1990)8, a experiência
vivida, a emoção, seja uma ilusão ou uma
As comunidades de atores em TCI são percepção, sempre será real.
inteiramente vivas, ativas e coadunam
com a ideia de “comunidades vitais”, No ambiente virtual, como acontecem
aquelas capazes de cultivar e organizar as rodas de TCI durante a pandemia, as
relacionamentos/conexões a fim de emoções ocorrem ao falar constatando
criar, se adaptar e prosperar no mundo que os limites geográficos e a distância
em mudança e, assim, aliviar o física não são empecilhos para
sofrimento e melhorar o bem-estar das estabelecer relações advindas dos
pessoas. sentimentos relatados durante a
realização das mesmas. Essa interação
Nós, terapeutas comunitárias e recursiva, dada no escutar e conversar,
comunitários, nos percebemos em uma sobre nossas emoções, tem favorecido a
grandiosa e fortalecida teia – a partir dos criação e o fortalecimento de vínculos
fundamentos do pensamento sistêmico saudáveis, solidários e comunitários.
e complexidade –, que possibilita a
compreensão vivida pela experiência do Referências Bibliográficas
que é na prática o termo comunitário.
Parte-se dos princípios de nos sentirmos 1. Tandon R. COVID-19 and mental
fazendo parte de algo em comum, tais health: Preserving humanity, maintaining
como valores e objetivos com sanity, and promoting health. Asian J
promoção do senso de pertencimento e Psychiatr.2020, 51: 102256.
de resiliência comunitária.
2. Portella CFS et al. Evidence map on
A partir desse sentimento coletivo de the contributions of traditional,
coesão, segurança, reciprocidade, complementary and integrative
solidariedade e suporte social na rede medicines for health care in times of
viva de atores em TCI, é possível COVID-19. Integrative Medicine
perceber que a existência da vitalidade Research.2020, 9:1-7.
entre os membros da teia, possibilita o
fortalecimento de novas comunidades,

77
3. Barreto AP. Terapia Comunitária
Passo a Passo. 3 ed. Fortaleza: Gráfica
LCR, 2010.

4. Silva MZ et al. Práticas Integrativas


impactam positivamente na saúde
psicoemocional de mulheres? Estudo de
Intervenção da Terapia Comunitária 78
Integrativa no Sul do Brasil. Cad.
Naturol. Terap. Complem. 2018,
7(12):33-42.

5. SisRodas. Sistema de Registro de


Rodas de Terapia Comunitária
Integrativa: Banco de Dados. Instituto
Acreditar e Compartilhar Ltda.
Disponível em:
<www.acreditarecompartilhar.com.br/r
odas/rodas>. Acesso em: 31 jul. 2020.

6. Barreto, AP, et al. Integrative


community therapy in the time of the
new coronavirus pandemic in Brazil and
Latin America. World Soc
Psychiatry.2020, 2:103-105.

7. UNESCO. Organização das Nações


Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura. Community Vitality. 2010.
Disponível em:
http://www.unesco.org/new/fileadmin/M
ULTIMEDIA/HQ/CLT/pdf/communityvi
talitydomainreport.pdf. Acesso 11 set
2020.

8. Maturana H. Emociones y Lenguaje en


Educación y Política - Colección
Hachette-Comunicación Chile. 1990.

* Este artigo é um agradecimento à rede


viva de atores em TCI, incluindo os
terapeutas comunitários e os 42 polos
de Cuidado e Formação em TCI, que
fortalecem diariamente nossa
inteligência coletiva nesta teia da vida.

78
Autores e organizadores: Anna Laura de Almeida – mestre em
Saúde Coletiva pelo Instituto René
quem somos? Rachou (IRR/Fiocruz-MG); trabalhadora
da Rede de Saúde Mental de Belo
Adalberto de Paula Barreto - Horizonte (MG).
doutor em psiquiatria pela Universidade
René Descartes (Paris/França)) e em Annibal Coelho de Amorim –
Antropologia pela Universidade Lyon médico neurologista, MD, Msc, Ph.D.; 79
(França); professor emérito da mestre em Psicologia Social e Práticas
Universidade Federal do Ceará; Socioculturais (Uerj), doutor em Saúde
presidente da Associação Brasileira de Pública (Ensp/Fiocruz) acerca da Política
Psiquiatria Social e criador da Nacional de Humanização do SUS;
metodologia da Terapia Comunitária coordenador-adjunto da pesquisa PMA
Integrativa. Fiocruz 2020 no campo da deficiência,
fellow da Ashoka Innovators for The
Alejandra Barcala - licenciada em Public e ex-trainee da Japan
Psicologia, mestre em Saúde Pública e Internacional Cooperation Agency;
doutora em Psicologia pela Universidade consultor e pesquisador da Plataforma
de Buenos Aires – UBA (Argentina); pós Colaborativa IdeiaSUS/Fiocruz.
-doutora em Ciências Sociais, Infância e
Juventude; diretora do doutorado em Ariadne de Moura Mendes -
Saúde Mental Comunitária da psicóloga do Instituto Municipal Nise da
Universidade Nacional de Lanús – UNLa Silveira (RJ); coordenadora do Bloco
(Argentina) e docente do mestrado e do Carnavalesco e Ponto de Cultura
doutorado em Saúde Mental Loucura Suburbana (RJ).
Comunitária da UNLa, do mestrado em
Saúde Mental da Universidade Nacional Catalina Baeza Cárdenas - chilena,
de Entre Ríos – UNER (Argentina) e do psicóloga clínica, terapeuta de família e
mestrado na área da Infância e Juventude terapeuta comunitária; diretora do
da UBA; membro do Conselho Nütram (Movimento Integrado de Saúde
Consultivo Honorário de Saúde Mental. Comunitária Chile); formadora e
supervisora em Terapia Comunitária
Ana Paula Freitas Guljor – Integrativa e Técnicas de Resgate da
psiquiatra, Msc, Ph.D. em Saúde Pública, Autoestima.
pesquisadora em Saúde Mental,
coordenadora do Laboratório de Celina Maria Modena – pesquisadora
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e visitante do Instituto René Rachou
Atenção Psicossocial (IRR/Fiocruz-MG).
(Laps/Ensp/Fiocruz) e vice-presidente da
Associação Brasileira de Saúde Mental Daniel de Souza – articulador do
(Abrasme). consultório na rua da Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
Ana Regina Machado – doutora em (SMS/RJ), na Área Programática AP 3.1;
Saúde Coletiva pelo Instituto René ator; e redutor de danos do Centro de
Rachou (IRR/Fiocruz-MG) e docente da Atenção Psicossocial – CAPS AD Raul
Escola de Saúde Pública do Estado de Seixas.
Minas Gerais (ESP-MG).
Ed Otsuka – militante da luta
antimanicomial e da defesa dos direitos

79
humanos, psicólogo e professor Psiquiatria Comunitária, doutorado em
universitário, coordenador-geral da Saúde Pública e em Ciências Sociais;
ONG Sã Consciência (SP). militante da Associação Latino-
Americana de Medicina Social e Saúde
Eroy Aparecida da Silva – doutora Coletiva (Alames) e da Rede Latino-
em Ciências pelo Programa de Pós- Americana de LOMSODES (Direito à
Graduação Departamento de Saúde).
Psicobiologia da Universidade Federal de 80
São Paulo (Unifesp), psicoterapeuta José Paulo Vicente da Silva –
familiar e comunitária, psicóloga e enfermeiro, mestre em Saúde Coletiva
esquisadora da Associação Fundo de pelo Instituto de Medicina Social da
Pesquisa a Psicofarmacologia (AFIP); Universidade do Estado do Rio de
ativista social e colaboradora de vários Janeiro (IMS/Uerj); especialista em
coletivos que trabalham com pessoas Educação Profissional em Saúde pela
em situação de rua na cidade de São Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Paulo. Venâncio (EPSJV/Fiocruz); foi assessor
da Vice-Presidência de Ambiente,
Francisco Sayão – médico-psiquiatra e Atenção e Promoção da Saúde
diretor do Centro Psiquiátrico do Rio (VPAPS/Fiocruz) e professor da
de Janeiro (CPRJ); recebeu o prêmio EPSJV/Fiocruz; tecnologista em Saúde
Nise da Silveira de Boas Práticas e Pública da Fundação Oswaldo Cruz
Inclusão em Saúde Mental. (Fiocruz); atualmente, na Plataforma
IdeiaSUS/Fiocruz.
João Ricardo Nickenig Vissoci –
membro do grupo de pesquisa Global Jussara Otaviano – enfermeira
Emergency Medicine Innovation and especialista em Saúde Coletiva e
Implementatino (GEMINI), da Divisão Metodologias Ativas, mestre em
de Emergência Médica do Educação, terapeuta comunitária,
Departamento de Cirurgia de Duke docente na Unidade Anhembi Morumbi,
University (Research Design and coordenadora do Instituto Afinando
Analysis Core (RDAC), Duke Global Vidas (SP).
Health Institute).
Katia Liane Rodrigues Pinho –
Josefa Emília Lopes Ruiz – psicóloga, terapeuta ocupacional, trabalhadora do
neuropsicóloga, terapeuta comunitária Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira
do Centro de Pesquisas da Infância e da (SP); doutoranda no Programa de Pós-
Adolescência da Universidade Estadual Graduação em Ciência, Tecnologia e
Paulista (Unesp-Araraquara-SP); Sociedade da Universidade Federal de
presidente da Associação Brasileira de São Carlos (PPGCTS/UFSCar).
Terapia Comunitária (Abratecom).
Katia Machado – jornalista,
José León Uzcátegui – médico- especializada em Saúde Pública e
psiquiatra na Venezuela; psiquiatria jornalismo científico; mestre em
infanto-juvenil pela Universidade de Educação pela Universidade do Estado
Montreal, Canadá; Epidemiologia do Rio de Janeiro (Uerj); foi subeditora
Psiquiátrica pela Universidade McGill, do Programa Radis, Comunicação e
Montreal; doutor em Ciências Sociais Saúde da Escola Nacional de Saúde
(UC. Valencia, Venezuela); atualmente, Público Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz);
professor em pós-graduação em coordenou a Secretaria de

80
Comunicação da Rede de Escolas mestre em Saúde Pública pela Escola
Técnicas do SUS (RET-SUS), sediada na Nacional de Saúde Pública Sergio
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Arouca (Ensp/ Fiocruz) e doutor em
Venâncio (EPSJV/Fiocruz); atual Psicologia Social pela Universidade do
assessora de comunicação e editora da Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Plataforma Colaborativa
IdeiaSUS/Fiocruz. Maria de Oliveira Ferreira Filha –
doutora em Enfermagem; docente do 81
Leandra Brasil da Cruz – psicóloga, Programa de Pós-Graduação em
mestre em psicologia social pela Enfermagem da Universidade Federal da
Universidade do Estado do Rio de Paraíba (UFPB); terapeuta comunitária.
Janeiro (UERJ); coordenadora adjunta
do curso de Especialização em Saúde Maria Goretti Andrade Rodrigues –
Mental e Atenção Psicossocial da Escola professora associada do Departamento
Nacional de Saúde Pública Sergio de Ciências Humanas e do Programa de
Arouca (Ensp/Fiocruz). Pós-graduação em Ensino da
Universidade Federal Fluminense (UFF);
Leonardo Pinho – presidente da doutora em Saúde Pública pela Fundação
Associação Brasileira de Saúde Mental Oswaldo Cruz (Fiocruz).
(Abrasme) e vice-presidente do
Conselho Nacional de Direitos Maria Jose Mendonça de Góis –
Humanos (CNDH). terapeuta comunitária, assistente social;
mestre em Gestão Urbana.
Luciana Bicalho Cavanellas –
psicóloga da Coordenação de Saúde do Maria Lucia de Andrade Reis –
Trabalhador da Fundação Oswaldo Cruz terapeuta comunitária, coordenadora
(Fiocruz); mestre em Filosofia pela pedagógica do Instituto Caifcom (RS).
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj); e doutora em Saúde Milene Zanoni da Silva –
Pública pela Escola Nacional de Saúde farmacêutica, terapeuta comunitária,
Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). mestre e doutora em Saúde Coletiva
(UEL); vice-presidente da Associação
Luciene de Aguiar Dias – enfermeira, Brasileira de Terapia Comunitária
mestre em Saúde Pública e doutorando Integrativa (Abratecom) e integrante do
pela Escola Nacional de Saúde Pública Consórcio Acadêmico Brasileiro de
Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Saúde Integrativa (CABSIN);
coordenadora do Pólo de Cuidado
Luna Cassel Trott – psicóloga Movimento Integrativo em Saúde
formada pela Universidade Federal de Comunitária do Paraná.
Santa Catarina (UFSC); especialista em
Saúde Mental Coletiva pela Universidade Osvaldo Hakio Takeda – mestre pela
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Escola de Enfermagem da Universidade
e mestranda em Saúde Pública pela de São Paulo (EEUSP); graduado em
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Educação Física pela Universidade de
Arouca (Ensp/Fiocruz). Santo Amaro (UNISA); coordenador do
Núcleo de Cuidados Complementares e
Marcello Santos Rezende – Integrativos (NUCCI) do Centro de
psicólogo do trabalho da Coordenação Reabilitação e Hospital Dia (CRHD) do
de Saúde do Trabalhador da Fiocruz, Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital

81
das Clínica da Faculdade de Medicina da Silvia Faraone – licenciada em
Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Trabalho Social; mestre em Saúde
Pública e doutora em Ciências Sociais
Paulo Amarante – psiquiatra, Msc, pela Unievrsidade de Buenos Aires –
Ph.D. em Saúde Pública, pesquisador em UBA (Argentina); coordenadora do
Saúde Mental; pioneiro do movimento Grupo de Estudos sobre Saúde Mental e
brasileiro de reforma psiquiátrica; Direitos Humanos do Instituto de
fundador do Laboratório de Estudos e Investigação Gino Germani da Faculdade 82
Pesquisas em Saúde Mental e Atenção de Ciências Sociais da UBA; docente do
Psicossocial da Escola Nacional de Saúde curso de Trabalho Social da Faculdade
Pública Sergio Arouca de Ciências Sociais da UBA, do
(Laps/Ensp/Fiocruz); presidente de doutorado em Saúde Mental
honra da Associação Brasileira de Saúde Comunitária da Universidade Nacional
Mental (Abrasme). de Lanús – UNLa (Argentina) e do
mestrado em Saúde Mental da
Rafael Wolski de Oliveira – Universidade Nacional de Entre Ríos –
psicólogo, mestre em psicologia social e UNER (Argentina); membro do
institucional (UFRGS), doutorando em Conselho Consultivo Honorário de
psicologia social e institucional (UFRGS), Saúde Mental.
professor da graduação em psicologia e
da residência multiprofissional em Saúde Sônia Regina da Cunha Barreto
Mental da Unisinos e membro da Gertner – psicóloga, coordenadora de
diretoria da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador da Fiocruz,
Saúde Mental (Abrasme). mestre em Saúde Pública e doutorando
pela Escola Nacional de Saúde Pública
Robert Whitaker – jornalista Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).
estadunidense, editor do site Mad in
América, autor de livros premiados e Valeska Holst Antunes – médica do
artigos sobre transtornos mentais e a consultório na rua da Secretaria
indústria farmacêutica no campo da Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
psiquiatria; os livros ‘Mad in Améria’, (SMS/RJ), na Área Programática AP 3.1,
‘The mapmaker’s wife’ e ‘On the laps of e da Residência Terapêutica da Clínica
gods’ foram destacados como Livros do da Família Victor Valla (RJ).
Ano nos EUA e seu livro ‘Anatomia de
uma epidemia (pílulas mágicas, drogas Walfrido Kühl Svoboda – terapeuta
psiquiátricas e o aumento assombroso comunitário do Hospital das Clínicas da
da doença mental)’, considerado o Universidade Federal do Paraná (HC-
melhor trabalho de jornalismo UFPR); médico veterinário pela UFPR;
investigativo pela Investigative mestre em Engenharia de Alimentos
Reporters & Editors em 2010 (publicado pela Universidade Estadual de Campinas
no Brasil pela Editora Fiocruz). (Unicamp); doutor em Ciência Animal
pela Universidade Estadual de Londrina
Rogério Giannini – psicólogo, (UEL); professor-pesquisador do
coordenador da Subcomissão de Drogas Programa de Residência em Saúde da
e Saúde Mental do Conselho Nacional Família e do Programa de Pós-
dos Direitos Humanos e secretário da Graduação em Políticas Públicas e
Associação Brasileira de Saúde Mental Desenvolvimento da Universidade
(Abrasme); ex-presidente do Conselho Federal da Integração Latino-Americana
Federal de Psicologia (CFP). (Unila).

82
O enfrentamento do sofrimento psíquico na pandemia:
diálogos sobre o acolhimento e a saúde
mental em territórios vulnerabilizados.

A Pandemia de Covid-19 deixa mais evidente as profundas desigualdades


sociais no Brasil e na América Latina, principalmente em relação ao acesso a
serviços básicos de responsabilidade do Estado. Em meio a essa grave crise
sanitária, a maior do século 21, observa-se um enorme impacto na saúde
mental das pessoas em isolamento social prolongado, implementado como
medida para frear a propagação do coronavírus. Diante desse contexto, o
livro “O enfrentamento do sofrimento psíquico na pandemia: diálogos sobre
o acolhimento e a saúde mental em territórios vulnerabilizados” busca
pensar os cuidados em saúde mental e o sofrimento psíquico em meio à
Covid-19, trazendo também ao conhecimento de todos iniciativas de atenção
à saúde mental em curso em contexto de isolamento e distanciamento social,
à luz dos direitos humanos e da Reforma Psiquiátrica brasileira. O livro reúne
um total de 23 artigos, sendo duas traduções, produzidos a partir de um
convite feito a pesquisadores, trabalhadores e militantes da Saúde Mental e
da Atenção Psicossocial, atuantes no Brasil, na América Latina e nos Estados
Unidos. A publicação, no formato pdf, digital, com 82 páginas, é uma
iniciativa da Plataforma Colaborativa IdeiaSUS, sob a coordenação da
Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e tem o apoio do
Laboratório de Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e da Associação Brasileira de Saúde
Mental (Abrasme). Esta publicação é de livre acesso e reprodução,
representando mais um momento em que a Fiocruz e a sociedade civil
reafirmam sua disposição de continuar dando visibilidade àqueles que juntos
trazem reflexões valiosas acerca da temática da saúde mental e da atenção
psicossocial, de temas que ganham destaque em meio a medidas necessárias
de isolamento e distanciamento social no enfrentamento da pandemia de
Covid-19.

ISBN:978-65-8898-600-4

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