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Do legado fez-se espólio

Megaeventos, violações de direitos humanos e


luta social na cidade do Rio de Janeiro
Do legado fez-se espólio
Megaeventos, violações de direitos humanos e luta social na
cidade do Rio de Janeiro

ISBN: 978-65-87127-00-2

Título: Do legado fez-se espólio


Subtítulo: Megaeventos, violações de direitos humanos e luta social
na cidade do Rio de Janeiro
Formato: Papel
Veiculação: Físico
Realização
Justiça Global

Em parceria com
Fundação Ford

Organizadoras
Glaucia Marinho e Daniela Fichino

Autoras/es
Adriana Fernandes, Alexandre Magalhães, Ana Carolina Brandão Vazquez, Ana
Paula da Silva, Anelise dos Santos Gutterres, Betina Sarue, Fábio do Nascimen-
to Simas, Frank Andrew Davies, Fransérgio Goulart, Giovanni Diniz Machado da
Silva, Guilherme de Jesus France, Ivie Soares Garrido, João Rafael da Conceição,
José Rodrigues de Alvarenga Filho, Karyne Cristine Maranhão de Matos, Luan
Carpes Barros Cassal, Luccas Cardoso Real Martins, Mario Brum, Natan Aguilar
Duek, Poliana Monteiro, Raphael Soifer, Taísa Sanches, Thaddeus Gregory Blan-
chette, Thais Lemos Duarte, Veronica Freitas,Viviane Suzano Martinhão.

Fotografias
Bárbara Dias, Kauê Pallone, Wagner Maia (Coletivo Fotoguerrilha)

Projeto Gráfico
Jackson Anastácio

Justiça Global
Coordenadoras: Glaucia Marinho, Isabel Lima, Melisanda Trentin, Sandra Carva-
lho.
Equipe: Ana Esther Santos, Antonio Neto, Daniela Fichino, Danielle Duarte, David
Ramos, Francisca Moura, Guilherme Pontes, Lourdes Deloupy, Milena Teixeira,
Monique Cruz, Raphaela Lopes, Raoni Dias.

www.global.org.br
contato@global.org.br
(21) 2544-2320

Se permite a reprodução parcial ou total desta obra,


desde que citada a fonte.
Sumário
05 Apresentação

06 A cidade do futuro do pretérito (composto): Rio de Janeiro e os Jogos


Olímpicos de 2016
Taísa Sanches

16 A ofensiva da Landnahme e a criminalização da resistência social no


contexto da Copa do Mundo de 2014
Natan Aguilar Duek e Luccas Cardoso Real Martins

25 As jornadas de junho de 2013 e a outra resposta do Congresso Nacional


Guilherme de Jesus France

34 Baixada Fluminense, Mexicanização e Racismo


Fransérgio Goulart

38 Cidade sob armas: tráfico, milícia e Exército no Rio de Janeiro dos me-
gaeventos
Frank Andrew Davies e Thais Lemos Duarte

45 Circuito-ocupações: fragmentos de estórias, destruição, (re)aparições


Adriana Fernandes

56 Jogos Olímpicos Rio 2016: memorial da ausência. Narrativa em duas


vozes da calamidade olímpica
Viviane Suzano Martinhão e Ivie Soares Garrido

63 Mate(,) a cultura local: impedimentos na Copa de 2014


Giovanni Diniz Machado da Silva

67 No meio do caminho: o antigo Elevado da Perimetral e os meninos que


atiram pedra
José Rodrigues de Alvarenga Filho

71 O neodesenvolvimentismo, as Olimpíadas e as remoções de favelas no


Rio de Janeiro
Alexandre Magalhães

76 O legado Olímpico como laboratório de política urbana: a economia


política do projeto Porto Maravilha
Betina Sarue

85 O medo como legado dos grandes eventos


Veronica Freitas

93 Caos e lutas: o legado dos megaeventos na cidade do Rio de Janeiro


Coletivo Fotoguerrilha
112 O urbanismo olímpico na cidade patriarcal: moradia, remoções e violên-
cia contra a mulher
Poliana Monteiro

120 Planejamento estratégico e política de segurança pública: o Rio de


Janeiro dos megaeventos
Ana Carolina Brandão Vazquez

126 Repressão e expropriação na era dos megaeventos no Rio de Janeiro


Fábio do Nascimento Simas e João Rafael da Conceição

133 Restos da política pública para população LGBT no Rio de Janeiro


Luan Carpes Barros Cassal

140 Rumores, remoções e resistências na era dos megaeventos


Anelise dos Santos Gutterres

147 Sem clientes e sem capital: o desastre dos megaeventos cariocas para
a prostituição na cidade
Ana Paula da Silva e Thaddeus Gregory Blanchette

151 Sonhos sujos e The Brazilian Dream of the American Way of Life
Raphael (Raphi) Soifer

157 UPP e a cidadania através do controle de deveres: o caso da eletricidade


Mario Brum

166 Vila Autódromo e a violação dos direitos à moradia - aspectos históricos


à época pós olimpíadas
Karyne Cristine Maranhão de Matos
Apresentação

Do legado fez-se espólio. Des- Movimentos e ativistas que es-


de 2007, com a realização dos tiveram na linha de frente da
Jogos Panamericanos, a cidade denúncia dos processos de ge-
do Rio de Janeiro viveu à espe- nocídio, de remoção, de gen-
ra do legado prometido. A cada trificação e de malversação do
megaevento, propagandas em dinheiro público foram sujei-
rádio e tv, outdoors, folhetos tos a graves práticas de intimi-
e jornais traziam a notícia da dação, acossamento, e mesmo
chegada de um novo tempo, à incriminação formal pelos
uma completa modernização órgãos do sistema de justiça.
dos modos de vida na cidade. A engrenagem que trabalhava
“Todas as favelas serão urbani- às sombras da chama olímpica
zadas até 2020”, dizia o prefei- garantia o enriquecimento de
to. Com a chegada das UPPs, a poucos e o silenciamento de
segurança pública seria com- muitos.
pletamente reestruturada. Este dossiê pretende resgatar
Corredores viários, ampliação as narrativas silenciadas dos
do metrô, e até um bilionário anos de megaeventos espor-
VLT garantiriam que a mobili- tivos, cujo acerto histórico se
dade no Rio estivesse próxima torna mais do que nunca evi-
a das cidades mais desenvolvi- dente. O tipo e a forma das
das do mundo. violações de direitos humanos
Mas nada disso aconteceu. impostas à população da cida-
Olhar para os dez anos de me- de do Rio de Janeiro são tão
gaeventos que se estenderam extensos quanto diversos, e as
entre o Pan e as Olimpíadas é diferentes perspectivas aqui
ter a certeza de que o que res- contempladas pretendem tri-
tou foram as lágrimas sobre lhar um pouco dessas histórias
os escombros e as vidas muti- de luta e de dor que marcarão
ladas. O processo de espolia- o futuro da cidade por ainda
ção do patrimônio público em muitos anos à frente.
prol do enriquecimento ilícito Através desta coletânea, espe-
de uma casta política levou à ramos que a memória crítica
prisão grande parte dos go- deste passado recente seja útil
vernantes que bradavam pelo à compreensão das continui-
legado dos megaeventos. O dades e rupturas necessárias
espólio está, agora, nas contas à formulação dos espaços de
públicas de um estado que tem resistência do presente.
os maiores índices de desem-
prego do país. Boa leitura!
Recuperar o significado dos
megaeventos para a cidade do
Rio de Janeiro impõe, igual-
mente, ressaltar o silencia- Glaucia Marinho e
mento e a criminalização da Daniela Fichino
crítica durante todo este ciclo. Editoras 05
Taísa Sanches
Mestre e Doutoranda PPGCIS/
A cidade do futuro do pretérito
PUC-Rio (composto):
Rio de Janeiro e os Jogos
Olímpicos de 2016
Resumo

A partir da análise das políticas urbanas colocadas em prática pela


prefeitura do Rio de Janeiro como preparação aos Jogos Olímpi-
cos de 2016, este artigo procura analisar suas principais consequ-
ências relativas à segregação socioespacial na cidade.

O tempo verbal denominado fu- ro, mas preservando o passado”;


turo do pretérito (composto) é por isso o futuro do pretérito.
utilizado quando queremos nos
Desde a data da escolha da cida-
referir a um fato que poderia ter
de para sediar os Jogos Olímpi-
ocorrido depois de um determi-
cos de 2016, em outubro de 2009,
nado fato passado. Por exemplo:
muitas transformações foram fei-
se eu tivesse ganhado na loteria,
tas no ambiente urbano. O Rio de
teria comprado uma casa. Esco-
Janeiro adotou, a partir de então,
lho este tempo verbal para intro-
o título de “Cidade Olímpica”, que
duzir a discussão que será feita
esteve presente em todas as logo-
aqui, acerca dos efeitos sociais
marcas oficiais da cidade e serviu
causados pelas políticas públicas
como guia de políticas públicas
urbanas levadas a cabo no Rio de
e obras desenvolvidas na cidade.
Janeiro.
A prefeitura da cidade, inclusive,
As transformações urbanas co- criou um site na internet (www.
“O título de
locadas em prática na cidade do cidadeolimpica.com.br) onde di-
cidade olímpica Rio de Janeiro durante sua prepa- vulgava todas as transformações
se transformou ração para os Jogos Olímpicos ti- urbanas que foram feitas duran-
na definição mais nham como fio condutor a cons- te aquela gestão, que tinha por
tante justificativa de construção objetivo transformar a cidade e
completa do Rio de um futuro melhor. Elas bus- deixá-la apta a receber o evento.
de Janeiro à época, cavam devolver à cidade algumas O site se tornou o meio de comu-
uma vez que a das características e obras públi- nicação mais ativo da prefeitura,
cas realizadas no início do sécu- pois nele eram divulgados, por
cidade era então
lo XX, como se quisessem dizer exemplo, projetos como Rio Mais
definida pelo que que finalmente o futuro desejado Social e Cartão da Família Cario-
ela seria no futuro.” àquela época iria chegar, evitan- ca, que não estavam diretamente
do os erros cometidos anterior- relacionados aos Jogos. O título
mente. Eduardo Paes, prefeito da de cidade olímpica se transfor-
cidade1 na data de inauguração da mou na definição mais completa
Praça Mauá após ampla reforma, do Rio de Janeiro à época, uma
disse: “É um resgate da história. vez que a cidade era então defi-
Uma cidade que olha para o futu- nida pelo que ela seria no futuro.
06
Situação semelhante ocorreu na este prefeito foi posteriormente
Exposição Mundial sediada na chamado de “Haussman tropical”
cidade em 1922, e definida por (BENCHIMOL, 1990), uma vez que
Sant’Ana (2008) como “a própria como este, lidou com a intensifi-
materialização da efemeridade do cação do capitalismo e seus efei-
presente, estimulada por visões e tos ao espaço urbano da cidade.
reflexões do passado” (SANT’ANA, As principais transformações do
2008: 13). Ser o país sede da Ex- espaço urbano do Rio de Janeiro
posição Mundial trazia a respon- realizadas por Pereira Passos se
sabilidade de dar lugar a um dos referem à construção da Aveni-
maiores símbolos da modernida- da Central (hoje Rio Branco), ao
de, como aponta Benjamin (1985), alargamento das ruas do centro,
e o “desejo em obter reconheci- calçamento com asfalto de diver-
mento e status de nação símbolo sas ruas da cidade, construção da
de progresso, avanço e civiliza- Avenida Beira Mar entre Botafo-
ção apresenta-se comum a todos go e Flamengo, e construção do
os expositores” (SANT’ANA, 2008: Teatro Municipal. Segundo Abreu
27). Muitas transformações urba- (1997), Passos determinou, em
nas foram realizadas para a oca- mensagem intitulada “Embele-
sião, dentre elas, a derrubada do zamento e Saneamento da Cida-
Morro do Castelo. de”, encaminhada à Câmara em
O Rio de Janeiro candidatou-se a setembro de 1903, diretrizes que
sediar a Exposição Mundial des- iam de saneamento e higiene à
de 1861, quando foi realizada a desocupação de milhares de ca-
primeira Exposição Nacional do sas que se situavam na área onde
Brasil, tentativa de “inserção do hoje localiza-se a Avenida Rio
Brasil no cenário industrial in- Branco.
ternacional” (SANT’ANA, 2008: Este é o primeiro momento em
27). O intento de mostrar o país que o investimento do capital
como inserido na modernidade se mostra no espaço, e a rique-
industrial falhou, uma vez que za passa a se evidenciar nele. A
“sobressaiu a atração exercida denominada Reforma Passos, se-
pelo exotismo cultural, pelo valor gundo Abreu (1997) é represen-
da produção agrícola, pela maté- tativa principalmente por ser “o
ria-prima e minerais nacionais” primeiro exemplo de intervenção
(Ibid.). De qualquer forma, a par- estatal maciça sobre o urbano,
tir de tal data o país passou a ser (...) sob novas bases econômicas
convidado a participar das expo- e ideológicas, que não mais con-
sições mundiais. diziam com a presença de pobres
O início do período republica- na área mais valorizada da cida-
no do país, e da cidade do Rio de” (ABREU, 1997: 63). Paradoxal-
de Janeiro como capital, trouxe mente, a expulsão da população
como bagagem a intenção mo- pobre das áreas centrais da cida-
dernizadora do final do século de fez com que um maior número
XIX. Foi no início do século XX de pessoas procurasse viver nas
que Pereira Passos procurou de- proximidades, o que “se constitui
senhar a cidade que represen- em exemplo de como as contra-
taria a moderna capital do país, dições do espaço, ao serem resol-
inspirada em Paris, e evocando os vidas, muitas vezes geram novas
mesmos dilemas com que aquela contradições para o momento
cidade havia se deparado em seu de organização social que surge”
passado. Não é por menos que (Idem: 66). É neste período que os 07
morros mais próximos ao centro Époque de Pereira Passos”, mas
passam a ser massivamente ocu- que na ocasião de sua reinaugu-
pados. ração “emerge como um gran-
de vazio estruturante”, pois seu
Também é nesta época que se
projeto foi entregue a uma par-
dá a consolidação da formação
ceria público privada que levou
dos subúrbios mais próximos ao
em conta somente “as diretrizes
centro, como Engenho Novo, En-
do cálculo de eficiência político e
genho Velho e São Cristóvão. A
da racionalidade instrumental da
população residente em São Cris-
obra, o que quer dizer dos políti-
tóvão, por exemplo, passou de
cos de mandado e das empreitei-
22.202 habitantes em 1890, para
ras e seus consórcios”.
45.098, em 1906 (MORTARA, 1947.
Apud ABREU, 1997: 67). É justa- Inaugurado em dezembro de
mente nesta região em que hoje 2015, e situado na Praça Mauá,
localiza-se o Bairro Carioca, onde o museu não apresenta obras
desenvolvi o estudo de caso que do passado ou referências a ele,
será apresentado no capítulo 4. como seria comum a uma ins-
tituição desta. Pelo contrário, o
Mike Davis (2009) ao descre- museu nega o passado da Praça e
ver as transformações urbanas da cidade e reverencia o futuro. A
de Los Angeles (LA) na primei- preocupação com a estética des-
ra metade do século XX, mostra ta obra é fundamental. Por não
como essa cidade, quando com- apresentar grandes exposições
parada a outras de mesmo porte, em seu interior, a própria cons-
“pode ser planejada ou projetada trução do museu é futurística,
num sentido muito fragmentário negando o passado do local onde
(principalmente no nível de sua está construído.
infraestrutura), mas ela é infinita-
mente visualizada” (DAVIS, 2009: Por outro lado, à população mais
55. Marcações do autor). O Rio de pobre da cidade cabe o passado.
Janeiro, assim como LA, é uma ci- Ao mesmo tempo que a cidade
dade muito imaginada, principal- tem sua imagem voltada ao futu-
mente pelo poder público e por ro, tenta-se manter vivo o espíri-
sua elite econômica. As referên- to comunitário atribuído às fave-
cias à cidade são quase sempre las e à população pobre do início
em relação aquilo que ela irá se do século XX. Como se somente
tornar, ou sobre aqueles proble- mantendo-se harmoniosos e re-
mas que irão ser solucionados, vitalizando as tradições do samba
parece que existe uma enorme a população mais pobre pudesse
dificuldade em pensar o que a ci- sobreviver na cidade imaginada.
dade representa no presente. Orlando Alves dos Santos Junior
(2015), que denominou as trans-
O Museu do Amanhã e a reestru- formações do Rio de Janeiro dos
turação da Praça Mauá são signi- jogos de “modernização neolibe-
ficativos neste contexto de cida- ral”, acredita que este processo
de do futuro. Em texto publicado “parece se aproximar das práti-
em dezembro de 2015, o profes- cas patrimonialistas, que tanto
sor João Masao Kamita,2 analisa as marcam a história da cidade do
transformações da praça, e mos- Rio de Janeiro, e se distanciar da
tra como ela “parece recuperar gestão democrática associada ao
o brilho do passado, do início do ideário do direito à cidade” (Idem:
século 20, quando surgiu como 479). A cidade permaneceu, en-
08 a porta de entrada do Rio Belle tão, neste meio caminho entre o
futuro glorioso e o passado visto ca uma definição de cidade, o que
com saudosismo, que remete às acaba por torna-las superficiais,
tradições do samba, da malan- “como se só as camadas superio-
dragem. Neste passado, a vida res da alma, que se limitam a cap-
nas favelas remetia à harmonia, tar reflexos, a fruir passivamente,
situação que era confortável ao respirassem ainda, enquanto a
Estado, que mantinha relações de sua realidade plena permanece
clientelismo e patronagem com à margem como que num sonho
seus moradores. indolente” (SIMMEL, 2003: 126)
Em alguma medida, a forma como Assim como ocorreu à época da
o investimento na cidade se pro- Exposição Mundial de 1922, o Rio
duziu no Rio de Janeiro durante a de Janeiro se candidatou a sediar
preparação para os jogos olímpi- um evento de alcance mundial
cos se aproxima também daque- repetidamente, tendo sido eleita
le verificado no período desen- em 2009 para organizar os jogos
volvimentista (1946-1964). Ainda em 2016. E da mesma forma que
que, àquela época, a principal ocorreu no início do século XX,
orientação econômica estives- também agora a cidade passa por
se relacionada à industrialização intensas transformações urba-
do país, alavancada por políticas nísticas, que afetam em especial a
protecionistas de substituição de população mais pobre da cidade.
importações, a forma como se re- O que se indica pelas políticas ur-
alizaram os investimentos na área banas e habitacionais da prefei-
urbana traz semelhanças com a tura do Rio de Janeiro, como ve-
atualidade. A preocupação laten- remos a seguir, é que ela percebe
te em se modernizar o país esteve a cidade como uma empresa a ser
presente nos projetos de habita- gerida, e “negligencia as singula-
ção social da época, “introduzin- ridades da vida urbana, os modos
do novos hábitos e um modo de de viver da cidade, o habitar pro-
vida ‘moderno’ que romperiam priamente dito” (LEFEBVRE, 1991:
com o atraso do país, expresso no 57).
subdesenvolvimento” (BONDUKI,
2013: 138). Foram construídos, à
época, conjuntos habitacionais A cidade olímpica e a gestão de
que seguiam ideais de moderni- alto desempenho: padrões de
zação, como o Edifício Pedregu-
segregação urbana na cidade
lho, em São Cristóvão, em 1947.
Em ambos os casos, os projetos
de habitação social se encontram A administração da Prefeitu-
entre a melhoria do aspecto da ra do Rio de Janeiro que teve
cidade, excluindo-se os mais po-
início em 2009 decidiu por
bres de habitações precárias que
outro caminho: se guiar pelas
destoam do cenário, e projetos
melhores práticas de gestão
de baixo custo que maquiam a
(...)
realidade da população que neles
habita. A chamada Gestão de Alto
Desempenho da Prefeitura
Talvez seja possível afirmar que
o Rio de Janeiro, por ser cená-
estava pautada em três va-
rio natural reverenciado mun-
lores fundamentais: foco em
dialmente, se compare à Veneza resultados, pragmatismo e
descrita por Simmel (2003). Em disciplina.
ambas se busca na beleza estéti- 09
Estas três características de- social pelo mercado das políticas
veriam ser reconhecidas em públicas atuais. Para ele, “a habi-
cada decisão tomada. tação social contemporânea é a
ponta da operação de mercados
Ou seja, ao invés de agir so- financeiros transnacionais” (FEL-
mente pela necessidade ou TRAN, 2014: 507), sendo funda-
intuição, a Prefeitura passou mental “associar ao dispositivo
a agir com método. mercantil uma cunha de desti-
(Gestão de Alto Desempenho, tuição do “direito a ter direitos”
prefeitura do Rio de Janeiro (Idem: 508), no sentido em que
2009-2012) o direito à habitação é dado via
aquisição de imóvel, mas não ofe-
rece aos beneficiários um real
Os trechos acima, retirados de acesso à vida pública que a cidade
um relatório chamado Gestão de possibilita. Veremos como os pla-
Alto Desempenho, elaborado pela nos e projetos, leis e decretos da
prefeitura do Rio de Janeiro para prefeitura e do governo federal
demonstrar o cumprimento das influenciaram o processo de se-
metas propostas para o período gregação urbana no Rio de Janei-
de 2009 a 2012, primeiro man- ro a partir destas perspectivas.
dato de Eduardo Paes, sugerem
O Plano Estratégico que guiou a
que seu governo se inspirou em
gestão da prefeitura de Eduardo
práticas de gestão mais comuns
Paes entre 2013 e 2016 se baseou
ao setor privado. O relatório é
nas políticas “exitosas” que fo-
importante para mostrarmos a
ram implementadas no primei-
partir de qual ponto se iniciam os
ro mandato, e traz ao debate a
desenhos urbano e habitacional
questão habitacional – que não
colocados em prática no Rio de
estava presente no relatório dos
Janeiro durante sua preparação
primeiros anos. O Plano propu-
para os jogos olímpicos de 2016.
nha a construção de 100 mil re-
Orlando Alves dos Santos Jr. sidências, e a redução em 5% da
(2015) viu neste projeto um novo área do município ocupada por
ciclo de mercantilização do es- favelas, mas não explicava quais
paço urbano, à medida em que a as atividades que seriam desen-
cidade passa a ser gerida de for- volvidas nesse sentido. A palavra
ma empresarial, e que se inserem habitação aparece menos de 10
áreas e serviços públicos da ci- vezes no documento, e a palavra
dade “aos circuitos de valoriza- favela, quatro vezes. O Progra-
ção do capital” (Idem). O autor ma Minha Casa Minha Vida não é
sugere que se colocou em curso mencionado.
um “processo de intensificação
Outro documento oficial impor-
da elitização da cidade”, tanto por
tante para desenhar a conjuntura
conta da “transferência forçada
habitacional e urbana da cidade
de ativos sob a posse ou controle
do Rio de Janeiro foi o decreto
das classes populares para seto-
número 34.522, de outubro de
res do capital imobiliário”, quanto
2011, que aprovava “as diretrizes
pela “criação de novos serviços e
para a demolição de edificações
equipamentos urbanos que pas-
e relocação de moradores em
sariam a ser geridos pela iniciati-
assentamentos populares”. Este
va privada” (Ibid.).
decreto estabelecia “a necessida-
Na mesma direção, Feltran (2014) de de atualizar e uniformizar os
10 aponta para o caráter de inclusão procedimentos da administração
municipal para a desocupação de Os investimentos da prefeitura
áreas em assentamentos popula- em habitação, desde então, fo-
res, necessárias à implantação de ram feitos no sentido de reali-
projetos de interesse público”, e zar o “sonho” mencionado pelo
apresentava o PMCMV como al- prefeito. A legislação da cidade
ternativa de relocação das famí- foi alterada abrindo espaço para
lias removidas. a realização das transformações
desejadas por aquela gestão. O
Estes documentos epresentam as
Plano Diretor da cidade do Rio de
políticas públicas urbanas colo-
Janeiro, por exemplo, aprovado
cadas em prática na cidade, de-
em 2011, previa, em seu Artigo 15,
monstrando que os dois manda-
segundo parágrafo, que
tos de Eduardo Paes trouxeram o
“problema favela” de volta ao de-
bate. Quando assumiu, em 2009,
Os moradores que ocupem
o prefeito deu uma entrevista
favelas e loteamentos clan-
à revista Veja, na qual dizia que
destinos nas áreas referi-
as remoções de favelas seriam a 4
das no parágrafo anterior
única solução em alguns casos.
deverão ser realocados,
Ele propôs, nesta entrevista, que
obedecendo-se às diretri-
os moradores de favelas que de-
zes constantes do art. 201
veriam ser removidas fossem re-
desta Lei Complementar,
locados no subúrbio da cidade,
do artigo 429 da Lei Orgâni-
pois,
ca do Município, observado
os dispositivos do Art. 4º da
Medida Provisória nº 2.220,
Tem linha de trem, metrô,
de 4 de setembro de 2001.
hospital, escola, rua asfal-
tada, água, esgoto e luz. Os
moradores dessas regiões
O art.201, mencionado acima,
reclamam que ali só há in-
previa que a política de habitação
tervenções para melhorar as
deveria “produzir novas soluções
favelas e que o bairro em si
habitacionais” e “incentivar a for-
está completamente aban-
mação de parcerias com entida-
donado. É verdade. O subúr-
des públicas e privadas”, entre
bio, que já foi o símbolo de
outras coisas. Portanto, os mo-
um Rio pujante, se deterio-
radores de favelas e loteamentos
rou. Ali, a lógica do processo
clandestinos, deveriam, segundo
está invertida: áreas degra-
o Plano Diretor da cidade, ser re-
dadas, como as favelas, vão
movidos e realocados em solu-
ocupando e destruindo o
ções habitacionais que preveem
tecido urbano consolidado.
a parceria público privada.
Meu sonho como prefeito é
inverter esse fluxo, inves- Se nos anos 1990 e 2000 as re-
tir nos bairros e fazer com moções de favelas foram estig-
que a lógica da cidade for- matizadas pelos movimentos so-
mal passe a influenciar as ciais e postas de lado pelo poder
áreas onde a favela avançou, público, na gestão de Eduardo
possibilitando que haja um Paes voltaram a se configurar
adensamento populacional como política habitacional, reali-
civilizado (entrevista com zada em parceria com o governo
Eduardo Paes, Revista Veja, federal, através do PMCMV. Es-
maio de 2009) 3 tima-se que 67.000 pessoas fo-
11
ram removidas entre 2009 e 2013 além da oferta de um estilo de
(AZEVEDO & FAULHABER, 2015: vida. Para as empreiteiras, este
36), o que representava cerca de tipo de construção as isenta da
1% da população da cidade à épo- responsabilidade de gerir a ma-
ca. Este representa outro ponto nutenção dos edifícios após a
de semelhança com Pereira Pas- entrega aos moradores, o que as
sos, que removeu 20.000 pesso- exime dos custos relativos a isso.
as, ou cerca de 2,5% da popula- Os moradores, após mudarem
ção daquele tempo. aos conjuntos, devem se respon-
sabilizar pela gestão dos blocos
No Rio de Janeiro, o investimen-
de edifícios.
to no ambiente urbano devido
aos jogos olímpicos foi enorme, No Rio de Janeiro, grande parte
e seus impactos na urbanização dos conjuntos do PMCMV locali-
da cidade seguiram o mesmo pa- za-se em áreas afastadas do cen-
drão, uma vez que absorveram tro da cidade. As empresas bus-
“as mercadorias excedentes que cam terrenos mais baratos, que
os capitalistas não param de pro- ofereçam maiores chances de lu-
duzir em sua busca de mais-valia” cro, e a população é realocada em
(HARVEY, 2014:33). Nas margens locais distantes e sem infraes-
da cidade, os efeitos do inves- trutura urbana. O que o PMCMV
timento do excedente de capi- não leva em conta é que existem
tal produziram outro fenômeno especificidades em relação aos
descrito por Harvey: a criação de tipos de segregação e desigual-
uma “vida sem alma”, através da dades presentes na cidade. Ofe-
construção de empreendimen- recer condomínios padronizados
tos monótonos de moradia que a diferentes populações e inseri-
pretendem vender uma “réplica -los em bairros também carentes
customizada da vida nas cidades” de infraestrutura denuncia um
“O acesso à (HARVEY, 2013: 41). São empre- tipo de visão que homogeneíza os
cidade oferecido endimentos imobiliários que re- problemas das periferias. Como
plicam bairros inteiros, como é o solução, são oferecidas “políti-
aos mais pobres, caso do Bairro Carioca, em Tria- cas redistributivas para espaços
portanto, através gem, parte do Programa Minha periféricos (...) que ficam perdi-
Casa Minha Vida na cidade. das entre a evidente insuficiência
da construção do que é realizado e a irrelevân-
No Brasil, os conjuntos habita-
de conjuntos cionais construídos em parceria
cia das iniciativas, diante do que
deveria (e até poderia) ser feito”
habitacionais com o PMCMV, revelam a relação
(MARQUES, 2005: 54).
entre política pública de habita-
homogêneos, sendo ção social e mercado existente no O acesso à cidade oferecido aos
país, despontando o que Shimbo mais pobres, portanto, através
a maioria deles
(2010) denomina como habitação da construção de conjuntos ha-
nas fronteiras social de mercado. A localização bitacionais homogêneos, sendo
periférica de alguns conjuntos a maioria deles nas fronteiras ur-
urbanas, aumenta a habitacionais, a baixa qualidade banas, aumenta a segregação so-
segregação social.” construtiva e a adoção do mode- cial. Cardoso e Lago (2015), con-
lo “condomínio” são algumas das cluem, após analisar os impactos
consequências de um acordo en- da relação entre Estado e capital
tre governo e setor privado, onde imobiliário na formulação de pro-
a busca de lucro pelas empresas gramas habitacionais no Rio de
tem influência nas suas escolhas. Janeiro desde 2000, que a adoção
A opção por adotar a forma de do padrão de condomínios para a
12 “condomínios”, por exemplo, vai oferta de habitação social
tem fortes implicações na to Habitacional Nelson Mandela,
negação da cidade, na priva- com 3.101 moradores, e o Con-
tização de espaços públicos, junto Habitacional Samora Ma-
na segmentação do viário chel, com 3.188 habitantes, entre
e da circulação, na criação outros. Além disso, nas proximi-
de barreiras à mobilidade e, dades se encontra o Complexo
ainda, na ampliação e priva- do Jacarezinho, alvo de um inves-
tização dos custos de manu- timento de R$ 609.000.000,00,
tenção dos espaços públicos pelo PAC2, do governo federal,
que deixam de ser de respon- que prevê a realocação de várias
sabilidade das Prefeituras e famílias.6
passam a ser geridos pelos
condomínios (CARDOSO &
LAGO, 2015: sem página) 3 Notas de conclusão

Essa reflexão nos leva a questio- A reconstrução do antigo subúr-


nar se os empreendimentos do bio industrial do Rio de Janeiro,
PMCMV podem ser caracteriza- que antes estava sendo toma-
dos como Agier (2015) classifica do por favelas, como colocou o
os campos de refugiados e acam- prefeito, mostra como a cidade
pamentos informais, ou seja, se apodera das significações po-
como espaços “colocados em he- líticas e as expõe em edifícios;
terotopia”, marcados por “sepa- as políticas habitacionais segre-
rar, retardar ou suspender todo gacionistas se expressam nestes
reconhecimento de uma igualda- conjuntos e no território, cada
de política entre seus habitantes vez mais polarizado. Como diria
e cidadãos comuns” (AGIER, 2015: Lefebvre, “a estrutura social está
46). presente na cidade, é aí que ela
se torna sensível, é aí que signi-
A efetivação destas políticas habi- fica uma ordem. Inversamente, a
tacionais tem efeitos também na cidade é um pedaço do conjunto
forma urbana do Rio de Janeiro. social; revela porque as contem e
O subúrbio pujante do Rio de Ja- incorpora na matéria sensível, as
neiro, também evocado na fala do instituições, as ideologias” (LE-
prefeito Eduardo Paes, tem se es- FEBVRE, 1991: 60).
tabelecido como um emaranha-
do de conjuntos habitacionais, A formação territorial do Rio de
devido não só às ações da gestão Janeiro, cuja pesada herança ain-
atual, mas de um histórico de po- da hoje reflete padrões cliente-
líticas habitacionais que levam a listas e escravistas, vai na con-
isso. Na antiga área industrial da tramão daquela que foi uma das
cidade, próximo à Manguinhos, condições para a formação das
existem diversos conjuntos, comunas que originaram as ci-
como os recém construídos Bair- dades. Weber (1999), ao analisar
ro Carioca, com 10.000 unidades o surgimento das cidades medie-
habitacionais, e a Nova CCPL, na vais e da antiguidade, demonstra
área da antiga fábrica da CCPL,
5
que sua existência decorre de
com 728 unidades habitacionais; certa organização estrutural, ba-
além daqueles mais antigos, que seada no território. A delimitação
pertencem ao Complexo de Man- do espaço onde os mesmos códi-
guinhos: CHP2, com uma popula- gos valerão a todos os indivíduos
ção de 3.908 pessoas, o Conjun- que dentro dele viviam era con-
13
dição fundamental para a garan- segregam, quando superpõem e
tia das características de um tipo amontoam a população em um
ideal de cidade. Viver sob códigos mesmo território. Unindo-se ao
comuns em um território delimi- que propõe Joseph, pode-se tra-
tado seria condição fundamental zer o que Marcuse (1997) consi-
para a existência das cidades. É dera a respeito de segregação.
através do pertencimento a um Para este autor, diversos tipos
mesmo código moral que se nor- de separação espacial reforçam
matiza a igualdade na cidade. O a segregação social, uma vez que
conceito de cidadania estaria, as- “integração significa algo mais
sim, imbricado ao de igualdade, que não-segregação: significa
uma vez que ele explicita o papel uma interação positiva, uma mis-
de cada indivíduo perante o acor- tura, uma comunicação em anda-
do associativo da cidade. mento entre grupos” (Idem: 251).
Para DaMatta (1997), o conceito É nesta medida que, neste traba-
de cidadania implica “de um lado, lho, buscamos compreender em
a ideia fundamental de indivíduo que grau a cidade do Rio de Janei-
(e a ideologia do individualismo), ro “integra, desagrega, segrega e
e, de outro, regras universais (um separa” para usar os termos de
sistema de leis que vale para to- Marcuse (1997), as classes popu-
dos em todo e qualquer espaço lares, em um contexto de trans-
social)” (DAMATTA,1997: 66). Ana- formação urbana radical e quan-
lisar como este conceito é colo- do comparada a outras políticas
cado em prática, no entanto, im- urbanas realizadas no passado.
plica também compreender que
ele é “socialmente instituciona-
lizado” – por leis, e “moralmente
construído” (Idem: 67) – cultural-
mente. O autor mostra que uma Notas
sociedade igualitária é aquela
onde, no espaço público, todos
são vistos como indivíduos, e não
como pessoas. Não deve existir, 1. Eduardo Paes foi eleito em 2008
e reeleito em 2012.
portanto, diferenciações em ne-
2. Texto publicado em 16 de de-
nhuma hipótese. Ser cidadão é zembro de 2015, disponível no
possuir os mesmos direitos e de- site http://www.vitruvius.com.
veres de todos os demais indiví- br/revistas/read/arquitex-
duos pertencentes a uma mesma tos/16.187/5885.
sociedade. 3. Disponível em http://pmdb.org.
br/noticias/chega-de-demago-
Isaac Joseph (2005), indo pelo gia-diz-eduardo-paes-em-en-
mesmo caminho, acredita que a trevista-a-veja/. Acesso em no-
oferta de espaço público não é vembro de 2015.
suficiente para levar à cidadania: 4. Ou seja: áreas de risco; faixas
marginais de proteção de águas
“a passagem da urbanidade à ci- superficiais; faixas de proteção
dadania não corresponde a uma de adutoras e de redes elétricas
consequência natural” (JOSEPH, de alta tensão; faixa de domínio
2005: 96). O autor considera de estradas federais, estaduais e
que as cidades, em sua nature- municipais; áreas de Preserva-
za, contêm a ideia de integração, ção Permanente e Unidades de
Conservação da Natureza; áreas
na medida que unem indivíduos que não possam ser dotadas de
diferentes sob os mesmos códi- condições satisfatórias de ur-
14 gos, e por conseguinte também banização e saneamento básico;
áreas externas aos ecolimites, diação para o conflito social contem-
que assinalam a fronteira entre porâneo. CADERNO CRH, v. 27, n. 72,
as áreas ocupadas e as destina- p. 495-512, Salvador, 2014.
das à proteção ambiental ou que HARVEY, David. O direito à cidade.
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qualquer natureza; vãos e pilares São Paulo, 2012.
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Bacharelando em direito pela
A ofensiva da Landnahme e a
Universidade do Estado do Rio
de Janeiro criminalização da resistência
Luccas Cardoso Real social no contexto da Copa do
Martins
Bacharelando em direito pela Mundo de 2014
Universidade do Estado do Rio
de Janeiro

Resumo:

O presente trabalho tem como objeto analisar a relação estabe-


lecida entre a Landnahme, caracterizada aqui como a expansão
da lógica capitalista para novos territórios, e a Copa do Mundo
que teve como epicentro a cidade do Rio de Janeiro. Em seguida,
explora-se a reação dos movimentos sociais a esta investida mer-
cadológica. Por fim, será investigado o papel essencial do Estado
na lógica de viabilização da acumulação financeira, direcionando
suas agências punitivas ao processo de criminalização secundária
de movimentos que atuassem em sentido desmercantilizante.

espaço ou grupo social para


a exploração de toda sua
I - Introdução potencialidade e mercanti-
lização. (...) Trata-se de um
Ao longo desta exposição, pre- conceito macrossociológi-
tende-se situar a Copa do Mun- co, isto é, reflete diferentes
do de Futebol de 2014 dentro do processos de expropriação
contexto do processo de repro- de um espaço social lato
dução do capitalismo em sua fase sensu (não se resumindo a
financeirizada e neoliberal, utili- um território geográfico,
zando como referencial teórico o mas contendo também re-
conceito da Landnahme, cunha- lações sociais) com fins de
do por DÖRRE, o qual expressa, mercantilizá-lo.” (GONÇAL-
essencialmente, uma tendência VES; 2017; pp.1028-1082. p.
expansiva do capitalismo. 24)
Conforme explica GONÇALVES,
Pretendemos explorar breve-
mente a reação social a esta in-
o termo alemão Landnahme vestida mercadológica e analisar
significa literalmente “to- a lógica de viabilização da acu-
mada da terra”. Sua origem mulação financeira, no âmbito da
teórica encontra-se em Lu- alegada necessidade de criar um
xemburgo que atribuiu à ambiente atrativo e seguro para
expansão capitalista o con- os investidores e seus contratos
teúdo do colonialismo dos bilionários. Por fim, será explora-
países não-europeus. Con- da a criminalização secundária de
forme aplicado por Dörre, movimentos sociais que atuam de
essa noção adquire um sen- forma desmercantilizante (BIN-
tido mais amplo. É a invasão, GEL; FALERO, 2008. p. 4), obje-
16 tomada e ocupação de um tivando neutralizar a resistência
política por meio da instrumen- propriadas e o capital internacio-
talização do sistema punitivo.1 nal. Conforme explicita HARVEY,
a construção dessas pactuações
regionais é impulsionada pelo
II - A ofensiva da acumulação
poder estatal, mediador dos con-
financeira flitos entre as classes, bem como
intraclasses, com vistas à garan-
No âmbito da reprodução sistê- tia dos processos de reprodução
mica do capitalismo, surge a ne- da dinâmica do capital (HARVEY,
cessidade de sua expansão ter- 2005. p. 84). Assim, DÖRRE en-
ritorial, derivada, sinteticamente fatiza que o Estado se constitui
da impossibilidade de repetição como parceiro essencial dos ca-
dos processos de extração de pitalistas no processo da Land-
mais-valor em seu lugar de pro- nahme:
dução. Nas palavras de GONÇAL-
VES, ao explicitar o modelo pre- O Estado atuou continua-
conizado por DÖRRE: mente como parceiro indis-
pensável para o nascimento
A necessidade permanen- do novo modo de produção.
te de superar as fronteiras Ele garantiu que a formação
da acumulação leva o capi- do mercado se realizasse
talismo a produzir espaços sob as condições de assime-
não-capitalistas, que ele, trias estruturais de poder. A
posteriormente, expropria- expansão externa do modo
rá. Com isso, o autor indica de produção capitalista ba-
que “em princípio, a cadeia seou-se no fato de que o
de expropriação capitalis- capitalismo, desde seu nas-
ta do espaço é infinita” (Id: cimento até a constituição
42). A partir dessa conside- de um sistema internacio-
ração, Dörre (2012: 36 e 41) nal interconectado acima e
formula um teorema do de- além dos Estado-Nações, foi
senvolvimento capitalista. impulsionado politicamente
Trata-se da acumulação do e marcado por assimetrias
capital pela expropriação de poder. (...) Violência ex-
de espaços não-capitalistas terna à economia seria, por-
existentes ou produzidos tanto, empregada apenas
ativamente. Dessa tese, o como exceção: em situações
autor deduz que o capitalis- normais, os trabalhadores
mo funciona com base em podiam ser abandonados ao
uma “Dialética Dentro-Fo- curso das “leis naturais da
ra”, segundo a qual os limi- produção”. A “coerção silen-
tes de sua capacidade inter- ciosa das relações econômi-
na de acumulação exigem cas” selou “a dominação dos
a expropriação de um Fora. capitalistas sobre os traba-
(GONÇALVES; 2017; pp.1028- lhadores”. (DÖRRE; 2015;.p.
1082. p. 21-22) 536-603. p.21)

Será, portanto, exatamente a A acumulação adquire as carac-


conquista de novos territórios terísticas específicas advindas da
que permitirá a instituição de um hegemonia propulsora do capi-
novo ciclo de acumulação. Neste talismo neoliberal, caracteriza-
processo, os aparatos estatais se do por PATNAIK como “a fase do
apresentarão como instituições capitalismo em que as restrições
mediadoras entre as alianças re- aos fluxos globais de commodi-
gionais de classe das zonas ex- ties e capitais, incluindo capi- 17
tais na forma financeira, foram mercado, criminalização da
consideravelmente removidas” pobreza e dos movimentos
(PATNAIK, 2017), resultando na de resistência. Tem-se, as-
“hegemonia do capital financeiro sim, um modelo de direito
internacional, com a qual os gran- que explicitamente pres-
des capitais em particular obtêm creve a expropriação, a ocu-
a integração de países, e os quais pação de domínios comuns
asseguram que um conjunto co- e a colonização de diferen-
mum de políticas neoliberais são tes formas de espaço e de
prosseguidas por todos os países modos de vida, relações e
do globo” (PATNAIK, 2017). subjetividades existentes.
É nesse sentido que SAAD FILHO (GONÇALVES; 2017; pp.1028-
definirá a financeirização como 1082. p. 27)
uma característica estrutural
da acumulação e da reprodução Certo é, portanto, que a expan-
social sob o neoliberalismo, de são da lógica capitalista aos mais
forma a sustentar a transnacio- diversos espaços não ocorre sem
nalização da produção, facili- conflitos. No caso do Rio de Ja-
tando a concentração de renda neiro, a remoção de parte da Vila
e apoiando a hegemonia política Autódromo, a tentativa de remo-
do projeto neoliberal por meio de ção da Favela Metrô-Mangueira
ameaças contínuas de fuga de ca- e da Aldeia Maracanã são alguns
pital (SAAD FILHO; 2011; p. 18), ar- dos exemplos traumáticos que
ticulando um “poder de maneira caracterizam a ofensiva estatal e
abstrata e anônima, e, frequen- sua parceria estratégica no âm-
temente, aparecendo como uma bito de reprodução da Landnah-
restrição objetiva”, transferindo, me, objetivando destruir as rela-
portanto, “as normas compatíveis ções ali vigentes. Nestes casos, a
com o mercado (financeiro) para
“No caso do Rio áreas antes inacessíveis à racio-
expressão Landnahme pode ser
efetivamente traduzida como a
de Janeiro, a nalidade do lucro privado” (DOR- tomada de terra, uma vez que o
remoção de parte RE; 2015; pp. 40/44/46). processo, em linhas gerais, cor-
da Vila Autódromo, Assim, “o neoliberalismo não tor- respondeu à valorização do solo
na o Estado nem suas instituições no entorno destas regiões, de-
a tentativa de particulares (como os tribunais e rivada, principalmente, dos di-
remoção da Favela as funções policiais) irrelevantes versos investimentos públicos e
(...), mas, ao contrário, com o ob- privados nas zonas situadas no
Metrô-Mangueira e jetivo de torná-lo mais funcio- contexto dos megaeventos.
da Aldeia Maracanã nal aos seus próprios interesses, Concomitantemente a esta valo-
são alguns produz uma reconfiguração radi- rização, não foram poucas as ten-
cal das instituições e das práticas
dos exemplos estatais” (GONÇALVES; 2014; pp.
tativas de remoção das moradias
populares nas áreas que se en-
traumáticos que 301-341). GONÇALVES concluirá, contravam próximas às principais
caracterizam a portanto, que arenas esportivas, em uma ofen-
ofensiva estatal siva do capital sobre as relações
A reprodução sócio-jurídica de propriedade ali vigentes. Em
e sua parceria da expropriação capitalista suma, o objetivo seria incorporar
estratégica...” implica desvalorização dos estas áreas à nova lógica de mer-
direitos sociais, desapro- cado, de forma a representar um
priação de terras coletivas, Novo Mundo, uma nova terra de
ampliação e forte proteção oportunidades para o desenvol-
dos direitos de propriedade, vimento daquele “fora não-capi-
incentivos jurídicos à priva- talista”.
tização, arranjos institucio- É, portanto, justamente no âm-
18 nais facilitadores do livre- bito do processo da Landnahme
que se situa a emergência de uma ram, gradualmente um caráter
série de movimentos sociais que suprapartidário. A repressão po-
eclodiram durante os anos que licial, contudo, foi realizada de
antecederam os megaeventos forma brutal, contando com pri-
ocorridos na cidade do Rio de Ja- sões arbitrárias e ilegais de mani-
2
neiro. festantes, fazendo crer que “o ob-
jetivo maior ensejado pelas forças
policiais era infligir sofrimento
III - A reação social
aos manifestantes, servindo ao
objetivo pedagógico de conven-
Na medida em que as interven- cê-los a não aderir aos próximos
ções econômicas derivadas da protestos. (SOUZA; 2015; p. 11)
lógica da expropriação geraram Táticas reativas e combativas
“expulsão da população pobre, como a black block entraram em
apropriação de áreas públicas, cena, momento a partir do qual a
eliminação do comércio local, contraofensiva do governo cres-
apagamento da memória do ter- ceu em tamanho e em brutali-
ritório, desindustrialização, pre- dade. As demandas inicialmente
carização, desemprego em massa dispersas (“Não é só pelos vinte
e pobreza” (GONÇALVES; 2017; centavos”) tomaram a forma de
pp.1028-1082. p.42), tornando, oposição aos megaeventos es-
assim, “os projetos de reestrutu- portivos e aos “preparativos” que
ração destas zonas abertamente seriam realizados, principalmen-
antissociais, e portanto, passíveis te, na cidade do Rio de Janeiro. Os
de serem alvos de protestos e ou- patrocinadores dos megaeventos,
tras formas de resistência social” preocupados com a lucratividade
(GONÇALVES; 2017; pp.1028-1082. de seus contratos milionários,
p.42), uma série de movimentos já externalizavam preocupação
sociais que se opunham a esta ló- “Tais movimentos,
com este panorama.3
gica ganharam especial força. Tais movimentos, portanto, pas-
portanto, passam
Nas palavras de TAIGUARA, sam a representar uma ameaça a representar
à persistência da acumulação fi- uma ameaça
os protestos parecem repre- nanceira na medida em que pro-
curam reverter a tomada de es- à persistência
sentar a explosão em catarse
de todo acúmulo de indigna- paços não capitalistas pela lógica da acumulação
ção da sociedade brasileira de mercado, promovendo a des- financeira na
diante do esgotamento do mercantilização deste modelo.
modelo de democracia re-
medida em
presentativa liberal, em um IV - O contra-ataque que procuram
quadro histórico de corrup- reverter a tomada
ção endêmica, precarização
de políticas públicas de saú- Com a preocupação ensejada de espaços não
de e educação, relação pro- pela reação social à Landnahme, capitalistas pela
míscua entre Estado e gran- em um contexto de viabilização
dos megaeventos no Rio de Ja- lógica de mercado,
des corporações do capital e
imensa demanda represada neiro, surge a pressão, por parte promovendo a
por participação popular nas de mecanismos financeiros inter- desmercantilização
decisões fundamentais do nacionais associados à difusão do
neoliberalismo, pela adoção de deste modelo.”
Estado. (SOUZA; 2015; p. 10)
marcos regulatórios e atuações
institucionais capazes de garantir
Sua principal forma de atuação se um ambiente lucrativo e estável,
deu por meio de protestos cen- no qual a lógica da acumulação
trados na questão das tarifas de financeira possa se reproduzir de
transporte urbano, que assumi- maneira segura e livre. 19
Portanto, o aparato estatal em- da Copa do Mundo de Futebol, 23
preende uma série de manobras (vinte e três) ativistas de destaque
destinadas a “assegurar um salto foram presos temporariamente,
na concentração de capitais e re- acusados de associação crimino-
duzir as reivindicações populares sa (por pertencerem a grupos as-
a uma gestão de conflitos negoci- sociados à FIP, ainda que alguns
áveis” (FONTES; 2010; p. 320). deles nem mesmo pertencessem
Ainda que a repressão policial a qualquer movimento organi-
tenha se dado de forma irrestri- zado). A operação, armada sob a
ta no âmbito dos protestos, foi justificativa do “resguardo da or-
absolutamente notável o dire- dem pública”, foi condenada por
cionamento das agências penais diversas entidades historicamen-
contra os movimentos que de- te comprometidas com a defesa
senvolveram estratégias mais ou das liberdades individuais.5
menos organizadas de resistên- O pretexto oficial, na palavra da
cia à violência policial, e, princi- delegada condutora do caso, se-
palmente, cujas pautas residiam ria investigar pessoas que “se
na superação do capitalismo e se aproveitaram do movimento po-
colocavam além do sistema par- pular e se organizaram para co-
tidário tradicional - exemplo dos meter diversos crimes (...), tendo
movimentos sociais independen- como principais alvos as sedes
tes unidos no Rio de Janeiro sob dos órgãos públicos, patrimônios
a égide da Frente Independente públicos, agentes de segurança
Popular (FIP). pública, agências bancárias e es-
Congregando tanto organizações tabelecimentos comerciais6 ”.
comunistas como anarquistas e Com a alegada justificativa, foi au-
uma diversidade de sujeitos polí- torizada a quebra do sigilo telefô-
ticos, com o objetivo de “unificar nico destes ativistas - dentre os
os movimentos, coletivos, orga- quais se incluíam advogados am-
nizações e indivíduos que têm es- parados pelo sigilo profissional -
tado desde o primeiro momento e, ainda, foi infiltrado um policial
na luta, defendendo o caminho da da Força Nacional no movimento,
4
independência e combatividade ”, que, pertencente à Policia Militar
a Frente declarava, no Manifes- do Distrito Federal, veio ao Rio de
to do seu primeiro encontro, em Janeiro com a missão de monito-
2013, seu comprometimento com rar as manifestações.
o processo revolucionário, além Para tal, infiltrou-se em diversos
da descrença nas possibilidades grupos sem autorização judi-
de mudança eleitoral. cial específica. O mais espanto-
Na medida em que estes movi- so foi ter se apresentado como
mentos canalizavam sua revolta “cidadão comum” ao se dirigir,
para a superação estrutural do de forma “voluntária”, à Delega-
modelo capitalista e a deslegiti- cia de Repressão aos Crimes de
mação do sistema político-parti- Informática, para expor todas as
dário sob uma ótica que promove informações coletadas, que cons-
a desmercantilização do processo tituiriam nas principais provas
mercantilizante, não surpreende contra os ativistas (ainda que ma-
que tenham sido alvos preferen- nifestamente ilícitas), servindo,
ciais dos processos de criminali- ainda, de fundamento para sua
zação secundária. prisão processual e, posterior-
O enredo do chamado proces- mente, sua condenação. Quando
so dos “23 presos políticos” não questionado pela defesa dos acu-
deixa dúvida quanto ao caráter sados, o militar admitiu que se
estritamente político da repres- dirigiu à delegacia por ordem de
20 são criminal: na véspera da Final um superior hierárquico.7
Ainda, o caráter político do Rela- a máscara do Anonymous
tório Policial causa espanto, re- e posts e curtidas no Face-
tratado pelos próprios veículos book para apontar os “vân-
midiáticos hegemônicos: “cursos dalos”. Como acontecia na
que Sininho é acusada de ter fei- ditadura, os suspeitos estão
to em Cuba, por exemplo – são por toda parte, sejam advo-
dadas como verdadeiras. (...) O gados, jornalistas, professo-
relatório perde muito tempo es- res ou estudantes. (VIGNA,
miuçando siglas de movimentos e 2015)
a convocação de protestos pelas
redes sociais.8 ”
Por outro lado, não tardaram as
Portanto, além da referida pri- organizações associadas aos mo-
são, dezenas de ativistas viram nopólios midiáticos em conferir
seus nomes citados no bojo de legitimidade popular às prisões,
inquéritos policiais, sentindo-se enfatizando um suposto caráter
intimidados quanto à sua parti- violento por parte dos ativistas e
cipação em protestos - momento conferindo interpretações bas-
em que a resistência começou a tante criativas às conversas in-
se ver minimizada, pela consta- terceptadas - infiltrando, inclu-
tação do absoluto temor peran- sive, jornalistas nas reuniões dos
te as agências repressivas e da citados movimentos.9
percepção de complacência do
O drama culminaria com a con-
poder judiciário. Nas palavras de
denação, quatro anos depois, a
VIGNA, ao descrever o inquérito:
penas que vão até sete anos de
prisão a despeito da ilegalidade
Uma parte significativa re- das provas e mesmo do pedido de
produz perfis e mensagens absolvição do Ministério Público
de páginas do Facebook em perante alguns dos acusados –
que a polícia busca qualquer em um processo que já desvela-
palavra que possa com- va seu caráter político desde seu
provar que o suspeito era nascedouro.
“violento”. Entre as “pro- O absurdo é coroado com juízos
vas” recolhidas nas casas valorativos quanto à personalida-
dos suspeitos estão livros, de de alguns acusados baseados
folhetos com palavras de em seus posicionamento político
ordem como “Não vai ter – uma das condenadas, teria, su-
Copa”, “Fifa go home”, exem- postamente, uma “personalidade
plares do jornal de esquer- distorcida, voltada ao desrespeito
da Nova Democracia, roupas aos Poderes constituídos, o que,
pretas etc.(...) no tocante ao Executivo, pode
ser constatado, por exemplo,
Quando se analisa, porém, o pelo enfrentamento aos policiais
inquérito policial que levou militares nas passeatas.10 ”
à prisão de Igor, não há como É possível perceber, portanto a
não lembrar a ditadura mili- eficiência da estratégia empre-
tar. Se naqueles tempos os gada pelas forças hegemônicas,
“terroristas” eram identifi- bem como a brutalidade do ins-
cados pela repressão a par- trumento empregado. A atuação,
tir de estereótipos como a pautada na instrumentalização
roupa vermelha, a barba, os dos agentes do sistema penal,
livros “subversivos”, hoje a acabou por minar os movimentos
polícia e a Justiça do Rio de contestatórios e, por conseguin-
Janeiro se baseiam em “in- te, garantiu que os megaeventos
dícios” como a roupa preta, transpassem sem turbulências. O
21
que essa brutalidade fetichizada e protagonizado por juízes que
sob a ótica da violência jurídica acreditam atuar como órgãos de
explicita, em verdade, é o projeto segurança pública.11
de expropriação empreendido no A repressão, marcada pela bru-
Rio de Janeiro. talidade, orquestrada contra tais
movimentos - que clamam pela
V - Conclusão representatividade política, pela
desaceleração da tomada de es-
paço da lógica de mercado, en-
Ao longo do presente artigo, foi fim, contra os movimentos que
possível perceber que a ofensi- refutam a violência sistêmica -
va da Landnahme no contexto avança a passos largos. Nas pa-
dos megaeventos teve um ca- lavras de NILO BATISTA, “se o
ráter abertamente antissocial, direito penal não cai do céu, mas
ensejando uma diversidade de é elaborado por homens, qual a
movimentos contestatórios que posição dos homens que o edi-
convergiam em sua oposição e à tam nessa guerra? Não prorrom-
forma como se davam os prepa- perá ela apesar do direito penal?
rativos dos megaeventos. Evitada a guerra, quem ganha e
No período que precedeu a reali- quem perde com essa ‘paz’ que o
zação dos megaeventos, a instru- Direito Penal assegurou?’ (BATIS-
mentalização das agências puni- TA, 2002, p.20)
tivas para repressões de caráter
abertamente antidemocrático
apenas parece ter sido possível Notas
em virtude da necessidade advin-
da dos grandes grupos empresa-
1. Este artigo é fruto das reflexões
riais, associados a estes grandes
ensejadas no âmbito de outro
eventos, de criar um ambien-
artigo dos autores, onde as pre-
te “seguro” para seus contratos missas teóricas deste movimen-
bilionários. Neste contexto, a to foram tratadas de forma mais
atuação das agências punitivas, exaustiva: DUEK, Natan Aguilar;
fetichizada sob a égide da dog- MARTINS, Luccas Cardoso Real.
mática jurídico-criminalizatória, Acumulação Financeira e Crimi-
escancaram seu principal objeti- nalização da Resistência Social:
vo: possibilitar a neutralização de a ofensiva da Landnahme e a re-
eventuais reações sociais à ofen- pressão no contexto dos Megae-
ventos in: Anais do Seminário Di-
siva da Landnahme.
reito e Revolução. Revista Direito
Dentro deste panorama, situa-se e Práxis, 2017. p. 133-150.
a instrumentalização das agên- 2. Nas palavras de TAIGUARA, “den-
cias repressivas, as quais tiveram tre o vasto rol, foram observadas
seu modus operandi investigativo prisões por crimes de dano, seja
formado no contexto da ditadura ao patrimônio privado (art. 163
empresarial-militar, caracteriza- CP) ou público (art. 163, § único,
do pela “caça aos subversivos” e III, CP) - sem qualquer prova -,
formação de quadrilha (art. 288
pelo desprezo à legalidade demo-
CP) - mesmo entre pessoas que
crática. sequer se conheciam -, corrup-
Este processo pôde ser coroado ção de menores (art. 244-B do
por um sistema judiciário que ECA), tentativa de lesão corporal
“naturaliza o afastamento de di- (art. 129 cc art. 14, II CP), desa-
reitos e garantias fundamentais cato (art. 331 CP), resistência (art.
em nome do “combate à crimina- 329 CP), incitação ao crime (art.
lidade” (CASARA, 2016), ampara- 286 CP), apologia ao crime (art.
287 CP), dentre outros. (SOUZA;
do pela seletividade penal e pelo
2015; p. 11)
22 desprezo às garantias individuais 3. Patrocinadores da copa temem
fazer promoções na rua por pro- nal de Justiça do Estado do Rio
testos. Uol. Disponível em <ht- de Janeiro afirmaram acreditar
tps://rodrigomattos.blogosfera. que atuavam como órgãos de se-
uol.com.br/2014/01/03/patro- gurança pública, e, portanto, em
cinadores-da-copa-temem-fa- atividade parcial típica do estado-
zer-promocoes-na-rua-por- -administração, podendo ser en-
-protestos/> contrada em: CASARA, Rubens.
4. Manifesto do I Encontro da FI- Mitologia Processual Penal. Rio
P-RJ. Blog da Frente Indepen- de Janeiro: Saraiva, 2015.
dente Popular – RJ. Disponível
em <https://frenteindependen-
t e p o p u l a r.w o r d p r e s s . c o m/
manifesto-do-i-encontro-da- Referências
fip-rj-viva-o-i-encontro-da-
frente-independente-popular-
fip-rj/> BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao
5. Neste âmbito, é possível men- Direito Penal brasileiro. 8a ed. Rio de
cionar as ONGs Anistia Interna- Janeiro: Revan, 2002.
cional e Justiça Global, além da BINGEL, Breno. FALERO, Alfredo.
OAB-RJ, e dos partidos políticos, Redes Transnacionais de Movimen-
como PT, PSOL e PCB, além dos tos Sociais na América Latina e o
próprios movimentos sociais Desafio de uma Nova Construção
perseguidos e dezenas de veícu- Socioterritorial. Disponível em <
los midiáticos alternativos. http://www.scielo.br/pdf/ccrh/
6. Os detalhes da Investigação que v21n53/a06v21n53.pdf>
levou 23 ativistas à cadeia. Dis- CASARA, Rubens. Mitologia Proces-
ponível em <http://epoca.globo. sual Penal. Rio de Janeiro: Saraiva,
com/tempo/noticia/2014/07/ 2015.
os-bdetalhes-da-investigacaob- CASARA, Rubens. Realidade e Ideo-
que-levou-23-ativistas-cadeia. logia no Sistema de Justiça Criminal.
html> Justificando. 2016. Disponível em
7. VIANA, Natália. Como infiltrado <http://justificando.cartacapital.
da Força Nacional vira principal com.br/2016/01/30/realidade-e-i-
testemunha. Jornal GGN. Dispo- deologia-no-sistema-de-justica-
nível em <https://jornalggn.com. criminal/>
br/noticia/como-infiltrado-da- DÖRRE, Klaus. A Nova Landnahme.
forca-nacional-vira-principal- Dinâmicas e limites do capitalismo
testemunha-por-natalia-viana> financeiro. Rev. Direito Práx. [online].
8. Os detalhes da Investigação que Rio de Janeiro, Vol. 06, N.12, 2015
levou 23 ativistas à cadeia. Dis- FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital
ponível em <http://epoca.globo. imperialismo: teoria e história. 2. ed.
com/tempo/noticia/2014/07/ Rio de Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ,
os-bdetalhes-da-investigacaob- 2010.
que-levou-23-ativistas-cadeia. GONÇALVES, Guilherme Leite. Acu-
html mulação primitiva, expropriação e
9. A estratégia é revelada na re- violência jurídica: expandindo as
portagem “Após reunião, Frente fronteiras da sociologia crítica do di-
Indepente Popular decide partir reito. Rev. Direito Práx. [online]. 2017,
para ataque para se defender da vol.8, n.2
Polícia”. Jornal O Globo. Dispo- HARVEY, David. A produção capita-
nível em <https://oglobo.globo. lista do espaço. São Paulo, Annablu-
com/rio/apos-reuniao-fren- me, 2005. Coleção Geografia e Adja-
te-independente-popular-deci- cências
de-partir-para-ataque-para-se- PATNAIK, Prabhat. O Capitalismo
defender-da-policia-13357560> neoliberal e a sua crise. 2017. Dis-
10. Sentença prolatada no proces- ponível em http://resistir.info/pat-
so nº 0229018-26.2013.8.19.0001 naik/patnaik_24out17.html
(TJRJ). SAAD FILHO, Alfredo. Crise no neo-
11. Em pesquisa realizada pelo Juiz liberalismo ou crise do neoliberalis-
de Direito Rubens Casara em mo? In: Crítica e Sociedade: revista
2011, 80% dos juízes do Tribu- de cultura política. v.1, n.3, Edição 23
Especial Dossiê: A crise atual do ca-
pitalismo, dez. 2011
SOUZA, Taiguara Libano Soares e.
Estado Policial e Criminalização dos
Movimentos Sociais: Notas Sobre a
Inconstitucionalidade do Decreto
44.302 do Governo do Estado do Rio
de Janeiro. R. EMERJ, Rio de Janeiro,
v. 18, n. 67, p. 185-205, jan-fev. 2015.
VIGNA, Anne. Um preso político
no Brasil Democrático. Revista Fó-
rum. Disponível em <https://www.
revistaforum.com.br/2015/05/05/
um-preso-politico-no-brasil-demo-
cratico/>

24
Guilherme de Jesus
As jornadas de junho de 2013 e France
a outra resposta do Congresso Pesquisador do Centro de Jus-
tiça e Sociedade da FGV Direi-
to Rio. Mestre em Direito pela
Nacional UERJ e Mestre em História,
Política e Bens Culturais pelo
CPDOC/FGV. Sua dissertação
tratou das origens da Lei An-
titerrorismo, quando também
analisou experiências de cri-
Resumo minalização de movimentos
sociais em processos legisla-
A resposta do Congresso às jornadas de junho de 2013 que recebeu tivos.
mais atenção foi a chamada “agenda positiva”, por meio da qual
buscou-se responder a alguns dos anseios manifestados nas ruas.
Pretende-se, aqui, trazer um enfoque para uma “agenda negativa”
que também emergiu no rescaldo das jornadas. Trata-se de um
conjunto de propostas, apresentadas por parlamentares diversos,
as quais pretendiam impor uma gama de restrições ao direito de
manifestação e criminalizar diferentes condutas relacionadas a
movimentos sociais e reivindicatórios. Para além de mapear estas
propostas, busca-se sinalizar um padrão de comportamento que
se baseia numa reação imediata e exagerada, por parte da classe
política brasileira, a momentos de ebulição social, o qual poderá
se repetir em momentos futuros.

chamada “cura gay”.


1 - Introdução Entre os resultados duradou-
ros desse momento, sem dúvida,
2
As jornadas de junho de 2013 destacam-se a Lei Anticorrupção
produziram resultados palpáveis (Lei nº 12.846 de 2013) e a Lei de
e quase que imediatos em termos Organizações Criminosas3 (Lei nº
de produção legislativa. O Con- 12.850 de 2013). Em ambos os ca-
gresso Nacional, respondendo às sos, tratavam-se de projetos que
manifestações, deu andamento à vinham tendo tramitação lenta no
chamada “agenda positiva” que Congresso, mas que, em virtude
incluía medidas como destina- da pressão social para combater
ção de recursos para educação e a corrupção, foram rapidamente
saúde, o fim do voto secreto para aprovados pelo Congresso e san-
perda de mandato, a desonera- cionados pela então Presidente,
ção de impostos sobre transpor- Dilma Rousseff.
tes coletivos, entre outras. Mui- Acompanhando esta “agenda
tas destas propostas acabaram positiva”, entretanto, veio uma
não sendo efetivamente imple- agenda negativa que simboliza-
mentadas,1 enquanto parte desta va a recalcitrância de importante
agenda incluía a solução de pro- segmento do Congresso em re-
blemas autocriados, como o ar- lação às jornadas de junho. Esta
quivamento de medidas ampla- era composta por um conjunto
mente criticadas nas ruas como de propostas, apresentadas nos
a PEC 37, que limitaria os pode- meses e anos que se seguiram, as
res de investigação do Ministério quais tratam de diferentes aspec-
Público, e o projeto que previa a tos de manifestações públicas, 25
pretendendo restringir, de dife- como criminosas, subversivas ou
rentes formas, o exercício deste terroristas.4
direito e criminalizar condutas Se a criminalização primária se
associadas. Importante notar, refere à construção dos tipos
neste contexto, que a Constitui- penais – tema sobre o qual este
ção Federal brasileira garante, em estudo se debruçará –, a crimina-
seu art. 5º, o direito à livre mani- lização secundária trata da atri-
festação: buição do status de criminoso aos
indivíduos. Essa atribuição ocor-
Art. 5, XVI - todos podem re tanto no sistema penal for-
reunir-se pacificamente, mal, mas também no sistema de
sem armas, em locais aber- controle informal onde os meios
tos ao público, independen- de comunicação atuam de forma
temente de autorização, intensa. No plano formal, foram
desde que não frustrem ou- múltiplos os esforços do aparato
tra reunião anteriormente de segurança pública – polícias,
convocada para o mesmo Ministérios Públicos e Judiciário
local, sendo apenas exigido – para enquadrar manifestantes
prévio aviso à autoridade na Lei de Segurança Nacional e
competente; na própria Lei de Organizações
Criminosas.5 No total, foram 2608
pessoas presas, nos 696 protes-
Este esforço de criminalização de 6
tos monitorados pela Artigo 19.
manifestantes e movimentos so-
Já no plano informal, também
ciais certamente não é inédito ou
exerceram um papel importante
circunscrito às jornadas de junho
veículos de imprensa brasileiros,
de 2013. O Brasil tem um longo
ao atribuírem a manifestantes,
histórico de uso do aparato es-
especialmente aos black blocs, o
tatal para reprimir movimentos
rótulo de organizações crimino-
sociais, rastreável mesmo ao pe-
sas.7
ríodo anterior à sua independên-
cia. Os esforços de criminalizar Busca-se, assim, mapear a res-
os movimentos que reivindicam posta do Congresso Nacional –
a reforma agrária no campo, por nesta que chamamos de “agenda
exemplo, são notórios. A diferen- negativa” – com o objetivo não
“Se a criminalização ça deste momento histórico es- só de expô-la, mas também para
primária se refere pecífico é foco em manifestações compreendê-la e identificar ca-
racterísticas comuns. Assim, o
à construção dos realizadas nas cidades e o fato de
trabalho está organizado da se-
ser uma reação temporalmente
tipos penais – tema concentrada – ainda que difu- guinte forma: inicialmente são
sobre o qual este sa entre diversos parlamentares mapeadas as proposições legis-
– em resposta a um conjunto de lativas apresentadas no período
estudo se debruçará imediatamente após as jornadas
eventos.
–, a criminalização A criminalização se refere ao uso
de junho de 2013 – no segundo
secundária trata da da lei para frustrar e deslegitimar
semestre daquele ano; posterior-
mente se evidencia a continuida-
atribuição do status organizações sócio-políticas, por
de deste movimento nos anos se-
meio de (i) criação de leis espe-
de criminoso aos ciais; (ii) uso dos tribunais para
guintes, assim como a reação de
parte da sociedade civil; por fim,
indivíduos.” resolver questões políticas; (iii)
são apresentadas algumas breves
aprisionamento de atores polí-
conclusões.
ticos e (iv) deslegitimação des-
sas organizações pela lei ou pela
argumentação jurídica – quando
2 - A resposta do Congresso
elementos do aparato estatal uti-
lizam discursos para estabele- Nacional
26 cer determinadas organizações
Foram mapeadas, inicialmente, tituir causa de aumento de pena
10 proposições legislativas, apre- ao tipo penal lesão corporal, para
sentadas no segundo semestre de aumentar em 50% a pena quando
2013, as quais fazem referência o crime fosse cometido em tu-
expressa ou implícita às jornadas multo e contra agentes de segu-
de junho, como motivadoras. De rança pública. Alteraria também a
diferentes formas, estas proposi- legislação penal, para incluir nos
ções buscavam estabelecer res- tipos de constrangimento ilegal
trições a protestos e manifesta- e associação criminosa condutas
ções públicas. praticadas em manifestações pú-
Neste contexto, a referência ao blicas. Por fim, incluía a prática
“vandalismo” foi uma das prin- do vandalismo no rol de condutas
cipais formas de se criminalizar praticáveis (e puníveis, portanto)
protestantes. O PLS 508/2013, por organizações criminosas, na
do Senador Armando Monteiro Lei 12.850, de 2013.
(PTB-PE) pretendia criminali- Já o PL 6307/2013, do ex-Depu-
zar o vandalismo, definido como tado Eduardo Cunha (MDB-RJ),
“promover ou participar de atos pretendia criar novo tipo penal –
coletivos de destruição, dano ou “dano ao patrimônio qualificado
incêndio em imóveis públicos ou pela influência de multidão em
particulares, equipamentos ur- tumulto” – com pena prevista de
banos, instalações de meios de reclusão de oito a 12 anos. A tí-
transporte de passageiros, veí- tulo de comparação, se nota que
culos e monumentos, mediante a pena prevista para o crime de
violência ou ameaça, por qual- lesão corporal seguida de morte é
quer motivo ou a qualquer título”. quatro a 12 anos de reclusão (art.
A pena prevista para este crime 129, §3º CP). Afirmava o então de-
seria reclusão de quatro a 12 anos putado, na justificativa do referi-
e multa. do projeto, que “as manifestações
Sob a justificativa de que a po- ocorridas recentemente, que
pulação se encontrava em estado deveriam representar a ordem
de completo repúdio aos atos de constitucional, o Estado demo-
violência e destruição causados crático e o exercício da cidada-
por manifestantes, o Senador Ar- nia, trouxeram atos de vandalis-
mando Monteiro sinalizava ainda mo e a presença de “baderneiros”
a insuficiência do ordenamen- que atentaram contra o patrimô-
to jurídico brasileiro: o crime de nio público e privado”.
dano não se mostrava suficiente, De forma semelhante, o PL
vez que demandaria perícia para 6277/2013 do Deputado Jair Bol-
a individualização da conduta e sonaro (PP-RJ) pretendia criar
comprovação de sua autoria. Por novas qualificações para o crime
esse motivo,8 propunha que tam- de dano. Se fosse praticado du-
bém deveriam ser considerados rante o desenvolvimento de ma-
vândalos, para os propósitos da nifestações públicas de qualquer
lei penal, aqueles que estivessem natureza, a pena de detenção se-
meramente presentes naqueles ria aumentada para dois a quatro
atos coletivos, portando “qual- anos; se fosse realizado com uso
quer objeto que possa causar de meios que dificultasse a iden-
destruição ou lesão”, e aqueles tificação do agente, de três a cin-
que organizassem ou divulgas- co anos.
sem os atos públicos. Entre as proposições, destacam-
Outro projeto apresentado no se diversas que tinham como ob-
Senado Federal, o PLS 451/2013, jetivo proibir justamente o uso de
de autoria do Senador Vital do máscaras ou outros elementos
Rego (MDB-PB), pretendia ins- que dificultassem a identifica- 27
ção de protestantes. Trata-se de Lima (PSD-MT), pretendia regu-
preocupação oriunda da dissemi- lar o exercício do direito à reali-
nação da técnica dos black blocs zação de reuniões públicas. Além
que utilizam, durante protestos, de proibir o uso de máscaras,
vestimentas e máscaras pretas autorizava, ainda, a intervenção
para esconder sua identidade. O dos órgãos de segurança pública
PL 5964/2013, apresentado pelo em manifestações para defender
Deputado Rogério Peninha Men- o patrimônio público e privado,
donça (MDB-SC), proibia a “uti- as pessoas e o direito de reunião
lização de objeto ou substância de outros grupos. Exigia também
que, por dissimulação, dificulte que manifestações com mais de 1
a identificação do usuário em lo- mil participantes fossem, neces-
cal público”. Sinaliza, claramente, sariamente, realizadas em espa-
que eram os protestos os motiva- ços abertos.
dores daquela proposta já que “os
eventos recentes de manifesta-
ções por todo o país trouxe [sic] 3 - “Agenda negativa” contínua e a
à baila situação que necessita ser reação da Sociedade Civil
disciplinada pelo ordenamento
jurídico”.
Seguindo esse período de pico na
Foram apresentadas outras pro- apresentação de propostas com
postas com objeto similar. O PL esta temática, os anos seguin-
6461/2013, do Deputado Junji Abe tes viram novas proposições do
(PSD-SP), pretende tornar con- tipo sendo apresentadas. Com
travenção penal “participar de frequência, estas propostas po-
manifestações públicas portan- dem ser rastreadas diretamente
do ou usando máscaras, capuzes como reação a eventos que acon-
ou instrumentos similares que teciam nesse contexto das mani-
dificulte ou impeçam a identifi- festações públicas.9 Por exemplo,
cação”, prevendo pena de prisão seguindo a morte de Santiago
de 15 dias a seis meses, além de Andrade, atingido por um rojão
multa. Nesse mesmo sentido, o durante protestos no Rio de Ja-
PL 6614/2013, do Deputado Cos- neiro, foram apresentadas duas
ta Ferreira (PSC-MA), quem afir- propostas – o PL 7101/2014, do
mava que “uma boa parte desses Deputado Sandro Mabel (PMDB-
confrontos [entre polícia e ma- GO) e o PL 8251/2014, do De-
nifestantes] têm sido provados putado Laercio Oliveira (SD-SE)
por pessoas que cobrem o rosto – criminalizando, especificamen-
com a intenção de ocultar a sua te, o porte de fogos de artifício
identidade”, e o PL 6198/2013, do em manifestações e protestos
Deputado Jorge Tadeu Mudalen públicos. Já o PL 8194/2017, do
(Dem-SP). Deputado Heuler Cruvinel (PSD-
Com este mesmo espírito, o PL GO), criava tipo penal referente à
6347/2013 do Deputado Carlos queima de ônibus.
Sampaio (PSDB-SP) prevê uma O Direito Penal é, nessas instân-
causa de aumento de pena ao cias, o principal instrumento a
tipo penal dano (art. 163, Código que recorrem os parlamentares.
Penal), determinando que a pena O PL 1600/2015, do Deputado
aumentaria de um sexto a um Laerte Bessa (PR-DF), por exem-
terço quando o autor estivesse plo, pretendia criar tipo penal –
fazendo uso de máscara que tor- invasão ou ocupação de reparti-
nasse impossível a sua identifica- ção pública –, punível com pena
ção. de até quatro anos de detenção.
Indo além, o PL 6532/2013, apre- Já o Deputado Willian Woo (PV-
28 sentado pela Deputada Eliene -SP), por meio do PL 3943/2015,
pretendia criminalizar a obstru- ao estabelecerem regras para o
ção da circulação pessoas e ani- exercício do direito de manifes-
mais em razão de participação tação, condicionando-o a um
em manifestação não comunica- aviso prévio às autoridades, com
da previamente às autoridades antecedência de 24 a 48 horas,
locais – pena de um a dois anos indo além da previsão genérica
de detenção. Outros projetos ti- da Constituição. É o caso do PL
nham como objetivo criminalizar 876/2015, do Deputado Gilber-
a obstrução de estradas e rodo- to Nascimento (PSC-SP) e do PL
vias mais especificamente, como 4657/2016, do Deputado Jerôni-
o PL 8770/2017, do Deputado mo Goergen (PL 4657/2016).
Eduardo Cury (PSDB-SP), e o PL Os esforços para se proibir o uso
6532/2016, do Deputado Nivaldo de máscaras em manifestações
Albuquerque (PRP-AL). público também continuaram
Mesmo quando pretendendo in- nos anos seguintes, com o PL
troduzir simples normas adminis- 7134/2014, do Deputado Edinho
trativas, legisladores recorrem ao Bez (MDB-SC), o PL 7158/2014,
Direito Penal, desafiando, inclu- do Deputado Inocêncio Olivei-
sive, a melhor técnica legislativa. ra (PR-PE), e o PL 7157/2014, do
Um exemplo é o PL 6654/2016, Deputado Onyz Lorenzoni (Dem-
apresentado pelo Dep. Franklin -RS). Mais surpreendente: esse
Lima (PP-MG) que prevê: movimento alcançou, com maior
sucesso, as assembleias legisla-
tivas. No Rio de Janeiro, um dos
Art. 4º A realização de mani-
epicentros das jornadas de junho,
festações, protestos ou atos
foi sancionada a Lei Estadual do
em locais públicos devem 10
Rio de Janeiro nº 6.528/201310,
ser comunicadas previa-
a qual impunha restrições à ma-
mente a autoridade policial
nifestação pública, exigindo, por
e de trânsito, em um prazo
exemplo, prévio aviso à autori-
mínimo de 48 horas; a fim de
dade policial para o exercício do
evitar o conflito com outras
direito à reunião pública. Regula-
reuniões previamente agen-
mentava, ainda, a intervenção das
dadas. Pena – detenção, de
polícias para proteger o patrimô-
um a três anos.
nio público e privado e proibia,
§ 1ª as manifestações só po- expressamente, a utilização de
derão acontecer se forem máscaras ou quaisquer artifícios
autorizadas pelas autori- que dificultassem a identificação
dades citadas no art. 4º ou dos cidadãos participantes de
equivalentes. manifestações.
Em São Paulo, foi aprovada e san-
Não de identifica, tampouco, cionada a Lei nº 15.552/2014, a
11

preocupação com a eventu- qual proibia o uso de máscaras ou


al redundância das normas que outros instrumentos que dificul-
se pretende criar em relação ao tassem a identificação de mani-
ordenamento já em vigor. Por festantes. Exigia também a prévia
exemplo, o PL 7188/2014, do De- comunicação de manifestações e
putado Junji Abe (PSD-SP), pre- reuniões públicas às Polícias Civil
tende punir o porte de armas e e Militar, além de proibir o porte
artefatos explosivos com reclu- de diversos objetos que pudes-
são de dois a quatro anos, algo sem ser utilizados para lesionar
que já é previsto no Estatuto do pessoas ou danificar o patrimô-
Desarmamento. nio público ou particular, como
Diversas propostas seguem tam- tacos, bastões e pedras.
bém a linha do PL 6532/2013, A sociedade civil organizada re- 29
agiu de duas formas, principal- do-se princípios comezinhos do
mente: (i) pelo exercício de advo- Direito Penal, como a taxativida-
13
cacy e lobby perante o Congresso de e a culpabilidade” . Nesse mes-
Nacional, por meio de pareceres mo sentido, a Rede Justiça Crimi-
técnicos em relação a algumas nal afirmou que o projeto violaria
destas propostas e buscando os princípios de liberdade de ex-
mobilização social em oposição pressão e de reunião e que:
a elas; e (ii) pelo questionamento
jurídico de normas consideradas
incompatíveis com a Constitui- O PLS propõe uma definição
ção Federal (litigância estratégi- excessivamente ampla do
ca) ou da aplicação de normas já termo “vandalismo”, favo-
existentes de maneira considera- recendo a subjetividade de
da constrangedora ao exercício interpretação. Essa possi-
do direito de manifestação e li- bilidade viola, claramente, o
berdade de expressão. princípio da segurança jurí-
Liderando estes esforços estive- dica e a exigência de previ-
ram organizações como a Ordem sibilidade da lei penal. Dá-se
dos Advogados do Brasil, o Ins- ao operador do direito ina-
tituto Brasileiro de Ciências Cri- ceitável margem de discri-
minais, a Artigo 19 e as organiza- cionariedade no momento
ções-membro da Rede de Justiça da aplicação da norma (Rede
Criminal – Centro de Estudos de Justiça Criminal, 2014).
Segurança e Cidadania, Justiça
Global, Conectas Direitos Huma- Mais recentemente, a Artigo
nos, Instituto de Defensores de 19 se manifestou contra o PL
Direitos Humanos, Instituto de 1572/2007 – um projeto apresen-
Defesa do Direito de Defesa, Ins- tado antes das manifestações de
tituto Sou da Paz, Instituto Terra, 2013, mas que avançou no Con-
Trabalho e Cidadania e o Gabine- gresso como parte dessa ‘agenda
te de Assessoria Jurídica às Orga- negativa’. Este projeto pretende
nizações Populares. Articula-se aumentar a pena de diversos dos
como uma defesa em duas fren- crimes contra a incolumidade
tes: primeiro no bojo do processo pública, incluindo o de incêndio
legislativo e, em caso de insufici- e de atentado contra meios de
ência desta, perante o Judiciário. transporte.14
No Congresso, por exemplo, o Se voltando para a litigância es-
PL 5964/2013 foi alvo de reação tratégica, a oposição às leis esta-
pela OAB, que afirmou: “a propo- duais (e, por extensão, às proposi-
situra da referida norma implica ções no Congresso) que proíbem
em rotundo equívoco, associado o uso de máscaras em protes-
à péssima técnica legislativa, im- tos no Judiciário foi imediata. O
plicando em norma que objetiva Partido da República e a OAB-RJ
cercear o exercício das garan- protocolaram Representação da
tias fundamentais esculpidas na Inconstitucionalidade contra a lei
Constituição Federal cidadã”.12 fluminense, argumentando que
Instituições da sociedade civil ela violava o direito de reunião,
também se manifestaram con- a liberdade de pensamento e o
trariamente ao PLS 508/2013. A direito à privacidade. Argumen-
Ordem dos Advogados do Brasil tavam também que a ALERJ não
afirmou que se tratava de “res- tinha competência para legislar
posta demagógica à sociedade, sobre a matéria, apenas o Con-
com forte viés intimidatório, va- gresso Nacional.15 O Tribunal de
lendo-se do Direito Penal como Justiça do Rio de Janeiro conside-
30 instrumento de coerção, violan- rou a lei constitucional, mas já foi
apresentado recurso para que o çada pelo Congresso Nacional.
Supremo Tribunal Federal julgue
a questão (ARE 905.149). Tendo
4 - Breves conclusões
sido aceita a repercussão geral da
questão, a decisão do STF, ainda
16
pendente, valerá para todo o país. O direito de manifestação e a li-
Ainda que não baseada em uma berdade de expressão são basila-
nova legislação, foi também ques- res na proteção e promoção dos
tionada a aplicação de uma mul- demais direitos. Por esta razão,
ta, por fracasso em conferir aviso garanti-los torna-se um impera-
prévio, a manifestantes que ocu- tivo. Se, no rescaldo de períodos
param uma rodovia entre Alagoas de grande comoção nacional ou
e Sergipe. Nesse caso em especí- mesmo de episódios de protestos
fico, a Artigo 19, a Conectas e o mais intensos, ainda que locali-
IBCCRIM ingressaram como ami- zados, o Congresso Nacional tem
ci curiae, no Recurso Extraordi- atuado para limitar ou, de alguma
nário nº 806.339, ao qual também forma, constranger estas garan-
foi atribuída repercussão geral, tias, mais atenção tem que ser
com objetivo de defender uma conferida a tais esforços.
intepretação restritiva de even- Acompanhando a chamada
tuais condicionantes para exer- “agenda positiva”, o que se no-
cício do direito à manifestação, tou foi a emergência de uma
17
previsto na Constituição Federal. “agenda negativa” que concer-
Argumenta a Artigo 19 que: nia, principalmente, a imposição
de restrições diversas ao direi-
to de manifestação. Usava, para
a garantia do direito de
isso, instrumentos diversos, mas,
protesto como um fator
principalmente, o Direito Penal.
essencial para a expressão
O mapeamento realizado neste
de opiniões dissonantes e
trabalho fortalece a percepção de
reivindicações em uma so-
que o Congresso Nacional, com
ciedade verdadeiramen-
frequência, reage de forma im-
te democrática. Tal defesa,
pulsiva e punitivista às demandas
baseada nos padrões inter-
populares.
nacionais de direitos hu-
manos, é incompatível com Para além de uma análise das
exigências burocratizantes atividades do poder legislativo,
para o exercício do direi- este trabalho sinaliza importante
to de reunião. A necessida- tendência a ser observada com
de de formalização do aviso especial atenção em momentos “O direito de
prévio e encaminhamento imediatamente após grandes mo- manifestação
a autoridades específicas, vimentos de manifestação nacio-
nal. Acompanhando ações e ini- e a liberdade
nesse sentido, é excessiva
e pode ser substituída pela ciativas que enfrentam ou dizem de expressão
divulgação dos eventos pela enfrentar os problemas efetiva- são basilares
internet, medida mais ade- mente sinalizados por protes-
quada às novas dinâmicas tantes, as quais nem sempre são na proteção e
sociais.18 sequer implementadas ou pro- promoção dos
duzem os resultados esperados,
vem uma pauta que busca res-
demais direitos.”
O relato destas iniciativas de re- tringir o espaço para manifesta-
sistência não pretendeu ser, em ções públicas.
absoluto, exaustivo. Intentou-se, Nesse cenário, é importante afir-
tão somente, evidenciar algumas mar-se e destacar a excepciona-
das estratégias empregadas em lidade das medidas que preten-
resposta à agenda negativa avan- dem-se estabelecer. A grande 31
maioria das condutas que os pro- 6. ARTIGO 19. Aviso Prévio no STF.
jetos mencionados pretendiam São Paulo, 29 nov. 2017. Dispo-
criminalizar já podem, de dife- nível em: <http://artigo19.org/
rentes formas, ser enquadradas centro/caso/aviso-previo-no-
-stf/>. Acesso em 10 jul. 2018.
nos tipos penais já em vigor. O
7. BUDÓ, M. N.; GINDRI, E. T.; LOU-
esforço que se realiza tem como REIRO, C.; LEÃO, I. P. Manifestan-
objetivo não apenas aumentar as tes ou criminosos? A legitimação
penas, como também, simboli- discursiva da tática Black Bloc
camente, restringir esse espaço como organização criminosa no
de exercício da liberdade de ex- jornalismo de revista. Universi-
pressão e do direito de manifes- tas JUS, v. 27, n. 2, 2016, p. 67-85.
tação. Não se trata de combater 8. Afirma, na justificativa do PLS
a impunidade, mas sim instituir 508/2013, “Portanto, há de se
uma política de repressão às ma- convir que, no tumulto formado
por dezenas ou centenas de vân-
nifestações e aos protestos. Uma
dalos e com a rápida e sucessiva
política de repressão, em último depredação de diversos imóveis,
nível, à oposição. equipamentos urbanos e veícu-
los, seria praticamente impos-
sível que a autoridade policial
Notas: tivesse condições de coletar as
provas necessárias à caracteri-
zação e comprovação indispen-
sáveis à prisão em flagrante. Daí
1. G1. Como ficou a “agenda posi-
porque, a cada ato coletivo de
tiva”. Brasília, 29 ago. 2013. Dis-
vandalismo, dezenas de vândalos
ponível em: <http://g1.globo.
são presos e conduzidos à dele-
com/politica/noticia/2013/08/
gacia policial e poucas horas de-
como-ficou-agenda-positiva.
pois são libertados em razão da
html>. Acesso em 8 jul. 2018.
impossibilidade de instauração
2. CAMPOS, P. T. Comentários à Lei
do inquérito policial”.
nº 12.846/2013 – Lei Anticorrup-
9. É do legislativo que surgem a
ção. Revista Digital de Direito
maioria das proposições apre-
Administrativo¸v. 2, n. 1, 2015, p.
sentadas em momentos de co-
161.
moção pública. PAIVA, L. G. M. A
3. BORGES, R. O Brasil apren-
Fábrica de Penas: Racionalidade
de (e ensina) a delatar. El País.
legislativa e a lei dos crimes he-
São Paulo, 10 jul. 2016. Dispo-
diondos. Rio de Janeiro: Revan,
nível em: <https://brasil.elpais.
2009, p. 42.
com/brasil/2016/07/05/poli-
10. Disponível em: <http://go-
tica/1467728957_782588.html>.
v-rj.jusbrasil.com.br/legisla-
Acesso em 8 jul. 2018.
c a o/ 1 0 3 6 0 4 9/ l e i - 6 5 2 8 -1 3 > .
4. ATILES-OSORIA, J. M. The cri-
Acesso em 01 jun. 2018.
minalization of Social-Environ-
11. Disponível em: <https://www.
mental Struggles in Puerto Rico.
l e g i s w e b . c o m . b r/ l e g i s l a -
Onati Socio-Legal Studies, v. 4, n.
cao/?id=274260>. Acesso em 9
1, 2014, p. 85-103.
jun. 2018.
5. JUSTIÇA GLOBAL. Processar
12. Ofício n. 345/2014-ASL, do Con-
manifestantes com Lei de Se-
selho Federal da Ordem dos Ad-
gurança Nacional e Lei de Or-
vogados do Brasil. Disponível em:
ganização Criminosa é uma
<http://www.senado.leg.br/ati-
violência contra a democra-
vidade/rotinas/materia/getP-
cia brasileira. Rio de Janei-
DF.asp?t=154826&tp=1>. Acesso
ro, 13 out. 2013. Disponível em:
em 01 jun. 2018.
<http://w w w.g lobal.org.br/
13. Ofício n. 345/2014-ASL, do Con-
blog/processar-manifestantes-
selho Federal da Ordem dos Ad-
com-lei-de-seguranca-nacional-
vogados do Brasil. Disponível em:
-e-lei-de-organizacao-crimino-
<http://www.senado.leg.br/ati-
sa-e-uma-violencia-contra-a-
vidade/rotinas/materia/getP-
democracia-brasileira/>. Acesso
32 DF.asp?t=154826&tp=1>. Acesso
em 9 jul. 2018.
em 01 jan. 2017.
14. ARTIGO 19. Criminalização de
protestos volta ao debate na
Câmara dos Deputados. Dispo-
nível em: <http://artigo19.org/
blog/2018/07/04/criminaliza-
cao-de-protestos-volta-ao-de-
bate-na-camara-dos-deputa-
dos/>. Acesso em 10 jun. 2018.
15. 15 • O GLOBO. Lei contra másca-
ras no Rio é inconstitucional, diz
OAB-RJ. Rio de Janeiro, 10 out.
2013. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/rio/lei-con-
tra-mascaras-no-rio-inconsti-
tucional-diz-oab-rj-9906961>.
Acesso em 9 jun. 2018.
16. JOTA. Discussão sobre proibir
máscaras em manifestações
pode receber repercussão ge-
ral. Brasília, 6 jun. 2016. Disponí-
vel em: <https://www.jota.info/
justica/discussao-sobre-proi-
bir-mascaras-em-manifestacoes-
-pode-receber-repercussao-ge-
ral-06082016>. Acesso em 9 jul.
2018.
17. Art. 5, XVI da Constituição: “to-
dos podem reunir-se pacifica-
mente, sem armas, em locais
abertos ao público, independen-
temente de autorização, desde
que não frustrem outra reunião
convocada para o mesmo local,
sendo apenas exigido prévio-a-
viso à autoridade competente”.
18. ARTIGO 19. Aviso Prévio no STF.
São Paulo, 29 nov. 2017. Dispo-
nível em: <http://artigo19.org/
centro/caso/aviso-previo-no-
-stf/>. Acesso em 10 jul. 2018.

33
Fransérgio Goulart
Historiador e coordenação
Baixada Fluminense, Mexicanização
executiva da Iniciativa Direito
à Memória e Justiça Racial/
e Racismo
Baixada Fluminense RJ.

Resumo:

O artigo apresenta uma reflexão e apontamentos sobre a Milita-


rização e a Violência Letal Estatal no Território da Baixada, colo-
cando a centralidade dessa análise no Escravagismo e o Racismo.
A partir dessa questão central, escrevemos sobre a similaridade
com o México e sua dinâmica de Violência Letal Estatal das últimas
décadas, criando a hipótese do que vivenciamos hoje na Baixada
Fluminense, um processo de Mexicanização.

Tanto o Brasil como México se ciedade local. As redes de rela-


construíram como Nações Es- cionamentos faziam que homens
tados, a partir do Escravagis- livres protegessem os quilombos
mo, que é parte da construção da Baixada da ação das forças po-
do atual sistema de dominação liciais. Talvez aí esteja o segredo
que conhecemos como o Racis- de sua longa sobrevivência.
mo. Reforço a ideia de que o ra-
Atualmente, o Governo do Esta-
cismo precisa ser entendido e
do do RJ considera que a Baixada
compreendido como um sistema
possui 13 municípios: Duque de
de dominação e manutenção de
Caxias, Nova Iguaçu, São João de
privilégios de uma supremacia
Meriti, Nilópolis, Belford Roxo,
branca.
Queimados, Mesquita, Magé,
Nesse contexto, a Região cha- Guapimirim, Paracambi, Japeri,
mada Baixada Fluminense foi se Itaguaí e Seropédica. Queremos
construindo a partir do escra- apontar com esse artigo a refle-
vagismo, mas também das resis- xão de que estamos vivenciando
tências. Na Baixada Fluminense um processo de Mexicanização
existiu um dos Quilombos mais da violência na Baixada.
insurgentes, duradouros e pouco Vale lembrar que a Baixada Flu-
lembrados da história, o Quilom- minense tem um marco de um
bo de Iguaçu ou Hidra de Iguaçu, modelo de violência que são as
pois situava entre os rios Iguaçu e Chacinas, iniciada na região
2
com
Sarapuí. Esse nome apareceu em os Esquadrões da Morte que fo-
carta do Ministro da Justiça, de ram gestados no início da dita-
1878, para a polícia da província dura civil-militar de 1964, que
do Rio de Janeiro pedindo que se vem funcionando a partir da ar-
reprimissem os quilombos da re- ticulação de três poderes, que se
gião de Iguaçu para lhes pôr fim, reconfiguram sistematicamente:
impedindo que se reproduzisse o aparato policial que compõem
como a hidra de Lerna. A primei- os grupos e que assassina; o fi-
ra menção ao quilombo é de 1808. nanciamento por grupos econô-
O Quilombo de Iguaçu mantinha micos; e o suporte de políticos
1
34 intercâmbio comercial com a so- (agentes não policiais do Estado,
como legisladores, gestores pú- parecida com o México. Nos pa-
blicos e integrantes do judiciário) rece que a implantação do Pro-
que garantem o funcionamen- grama de UPP (Unidade de Polí-
to do grupo e se valem dos seus cia Pacificadora) na cidade do Rio
serviços. Desde 2005, ano da de Janeiro gerou a migração de
Chacina da Baixada, ocorreram grupos varejistas do comércio de
mais de uma centena de Chaci- drogas, potencializando as dis-
nas, muitas delas nunca noticia- putas territoriais e esse fenôme-
das pela grande mídia. Sabemos no que estamos denominando de
dessas informações por articu- Mexicanização da Baixada Flu-
lações e grupos de Mães e Fa- minense.3 São várias as similari-
miliares Vítimas da Violência do dades que hoje são identificadas
Estado na Baixada Fluminense, no modo como o fenômeno da
que são espaços que acolhem fa- violência se manifesta no México
miliares vítimas dessas chacinas e na Baixada: decapitações, mas-
e de outras violências realizadas sacres em presídios, atuação de
por forças policiais. Além das milícias, homicídios de candida-
chacinas, também vivenciamos e tos a cargos eletivos, chacinas e
escutamos que esses grupos uti- desaparecimentos forçados. Essa
lizam sistematicamente a técnica marca que já é conhecida dos
de desaparecimentos de corpos. mexicanos há, pelo menos, uma
década e também podemos dizer
É nesse contexto que uma nova
da Baixada, vem se configurando
dinâmica organizativa se adicio-
como um projeto político de gru-
na, potencializando a violência,
pos privilegiados de suprema-
que é a parceria dos grupos de
cia branca economicamente que
milícias, do Estado (forças poli-
estão nos espaços de poderes
ciais) com determinadas facções
institucionais do executivo, do
do comércio de drogas, que são
legislativo e do judiciário . Cada
traduzidas em altíssimas taxas de
dia mais pessoas ligadas a esses
homicídios e mortes decorrentes
grupos são candidatos a cargos
de oposição à intervenção poli-
eletivos em processos eleitorais,
cial. Quando comparada à capital
o que também resulta em mais
do Estado, possuímos em média
homicídios, porque esse projeto
o dobro da taxa da capital. Assim,
político, ainda está em disputa
enquanto na cidade do Rio a taxa
pela diversidade desses grupos.
de letalidade violenta (homicí-
Desde 2015, 14 candidatos e po-
dios dolosos, mortes decorrentes
líticos foram mortos, segundo a
de intervenção à oposição poli-
Polícia Civil, seis desses crimes
cial, latrocínio e lesão corporal
foram causados por disputa entre
seguida de morte) está em torno
milicianos. Outros dois por gru-
e 40 para cada 100 mil habitan-
pos de extermínio, que o delega-
tes, na Baixada Fluminense são
do Giniton Lages, titular da Dele-
cerca de 80 mortes para cada 100
gacia de Homicídios da Baixada,
mil habitantes, segundo dados do
não considera milícias. Quatro
Instituto de Segurança Pública.
mortes foram ações de trafican-
De acordo com o Atlas da Violên-
tes. Só dois dos casos não teriam
cia 2018 municípios como Quei-
nenhuma ligação com a atuação
mados e Japeri apresentam taxas
política das vítimas. Na última
de 134,9 e 95,5, respectivamente,
campanha eleitoral no México,
inserindo a Baixada Fluminense
tivemos o processo marcado por
no rol de um dos territórios mais
diversos casos de violência e ho-
violentados do Brasil.
micídios. Segundo especialistas,
Na esteira do crescimento avas- esta foi a campanha mais violen-
salador dessa violência, a Baixada ta já registrada no país. Segundo
Fluminense fica a cada dia mais, dados do Instituto Nacional Elei-
35
toral (INE), até o dia 20 de junho a fundação desses Estados e lo-
de 2018, 122 candidatos e pré- cais, na lógica do sistema racista
-candidatos foram assassinados. que vem se configurando nas for-
mas de perpetuação do racismo,
A Baixada Fluminense Fluminen-
que são traduzidas nos números
se começa a experimentar essa
de quem são os corpos matáveis
Mexicanização de forma mais 5
e descartáveis: o do negro e po-
disseminada, onde o próprio
bre nas comunidades da Baixada
ESTADO RACISTA em nome de
e de indígenas nas comunidades
grupos econômicos hegemôni-
do México. Aqui vale salientar
cos é acionista e faz parte desse
que, na atual fase do capitalismo
processo. Nesse processo de Me-
de acumulação por espoliação,6 a
xicanização, gestores públicos,
necropolítica impera.
legisladores e juristas em gran-
de parte e a grande mídia forta- As semelhanças não param: no
lecem e constrói no imaginário México, como na Baixada Flumi-
da sociedade, que será com mais nense, desaparecimentos força-
militarização que resolveremos dos fazem parte dessa história.
a questão. Podemos materializar No ano 2014, no estado de Guer-
essa militarização com dados da rero, o desaparecimento de 43
secretaria de Fazenda do Estado estudantes da escola rural do ma-
do Rio de Janeiro, que nos dizem gistério de Ayotzinapa também
que nos últimos 10 anos, o orça- causou indignação na sociedade
mento da segurança pública do mexicana, no Brasil e no mundo.
Rio de Janeiro, atualmente sob Os principais suspeitos são polí-
intervenção federal militar,4 cres- ticos e militares da região. Mais
ceu 136%. Os volumes de recur- recentemente, surgiu outro caso
sos saltaram de R$ 5,2 bilhões de de desaparecimento forçado que
reais em 2008, para R$ 12, 2 bi- provocou comoção. Três estu-
“A Baixada lhões de reais em 2017. Isso fez a dantes de cinema da Universida-
violência diminuir? Esse processo de de Meios Audiovisuais de Gua-
Fluminense também se assemelha ao México. dalajara foram mortos e tiveram
Fluminense começa O orçamento do Estado mexica- seus corpos dissolvidos em ácido
a experimentar no em segurança pública prati- sulfúrico, segundo a promotoria
camente dobrou em uma década. do estado de Jalisco, no México.
essa Mexicanização Passou de 5 bilhões de dólares, Desta vez, as investigações apon-
de forma mais em 2006, para 9,8 bilhões de dó- tam para membros do cartel Ja-
lares em 2017, segundo o relató- lisco Nova Geração. Cartéis esses
disseminada, rio Orçamento Público Federal como os grupos armados da Bai-
onde o próprio para a Função da Segurança Pú- xada (milícia, tráfico e forças po-
ESTADO RACISTA blica, produzido pela Câmara de liciais) fazem parte, dialogam ou
Deputados do país. Porém para possuem negócios com o Estado,
em nome de o Instituto para Economia e Paz além de ocupar, como já descrito,
grupos econômicos do México, o montante aplicado cargos de poder.
hegemônicos em segurança pública foi de 29
Na Baixada Fluminense, além dos
bilhões de dólares, somente em
é acionista e 2017.
partidos políticos, outros atores
têm peso decisivo, entre eles es-
faz parte desse Em ambos os processos de mi- tão os grupos armados da Baixa-
processo.” litarização, a maior parte do da (milícia, tráfico e polícias), os
orçamento foi para financiar a meios de comunicação, os em-
compra de armas mais letais e presários e diferentes organiza-
a política de confronto com o ções. Não há dúvidas de que os
discurso hipócrita de guerra às grupos que estabelecem poder
drogas. Nas Comunidades do nos territórios das comunidades
México e da Baixada Fluminense da Baixada também intervém nas
36 podemos mais uma vez retornar campanhas eleitorais, financian-
do, promovendo ou censurando
candidatos, assim como gerando
violência.
Ao povo da Baixada Fluminense,
caberá a difícil tarefa de driblar
todas essas interferências e ele-
ger pessoas que possam trazer
uma perspectiva de seguran-
ça pública menos letal ou como
a experiência dos Zapatistas no
México, pensar algo maior, se
Aquilombando e começando a
pensar em um projeto político
autônomo que tenha como prin-
cípios a autogestão, o fim do ra-
cismo, dos privilégios de uma
elite, do machismo e de todas as
formas de opressão.

Notas:

1. OMES, F. S. Histórias de Qui-


lombolas. Cia das Letras, 2006.
2. ALVES.J.C.S. Dos Barões ao Ex-
termínio: uma história da violên-
cia na Baixada Fluminense. Ed.
Antônio Gramsci.2003.
3. Miagusko, EDSON. Esperando
a UPP: Circulação, violência e
mercado político na Baixada Flu-
minense. Julho. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 2015.
4. Texto escrito na vigência da in-
tervenção federal militar na se-
gurança pública do estado do Rio
de Janeiro, decretada em 16 de
fevereiro de 2018 (N. do E.)
5. MBEMBE, Achille. Necropolítica. “Aqui vale salientar
Editora N-1, 2018.
6. HARVEY, David. O novo imperi-
que, na atual fase
alismo. São Paulo: Loyola, 2004. do capitalismo
de acumulação
por espoliação,
a necropolítica
impera.”

37
Frank Andrew Davies
Doutor em Ciências Sociais
Cidade sob armas:
(PPCIS-UERJ), pesquisador e
Professor da UFPE tráfico, milícia e Exército no
Thais Lemos Duarte
Doutora em Ciências Sociais
Rio de Janeiro dos megaeventos
(PPCIS-UERJ), pesquisadora de
Pós-Doutorado em Sociologia
da UFMG
Resumo:

A proposta desse artigo é apresentar e analisar três formas de ges-


tão armada dos territórios do Rio de Janeiro, impostas pelo tráfi-
co de drogas, pela milícia e pelo Exército. Apesar das diferenças
entre si, tais atores são considerados centrais à segurança pública
no contexto de megaeventos, o qual marcou a cidade nas últimas
décadas. Estatais ou não, os regimes de poder desenvolvidos por
estes agentes armados são verdadeiros obstáculos à vida carioca,
principalmente, às ações cotidianas dos mais pobres. Os três apre-
sentam elementos comuns, como o autoritarismo no controle de
mercados, a regulação da circulação de corpos e territórios e o re-
forço às visões depreciativas sobre essa população, em especial os
jovens negros. Sob as armas, são atravessadas as fronteiras do legal
e ilegal para a perpetuação de suas atividades ao longo do espaço e
do tempo.

o domínio imposto pelo Exérci-


to, pelas milícias e pelo tráfico de
1 - Apresentação drogas, pontuando suas caracte-
rísticas de ação e seus efeitos à
Na década em que o Rio de Ja- cidade. Nesse sentido, pretende-
neiro se tornou sede de grandes se caracterizar as modalidades
eventos (2007-2016),1 o campo da de gestão dos pobres, articula-
segurança pública produziu for- das pelo mote da segurança e o
mas próprias de governar a ci- exercício e controle da violência
dade.2 Indo além de discursos e urbana.
agências oficiais, propõe-se nes- Não é possível tratar esses agen-
te artigo apresentar, comparar ciamentos de modo homogêneo,
e analisar três formas de gestão até mesmo porque carregam pe-
armada dos territórios da cidade, culiaridades, formas de ação e,
operadas no curso da realização sobretudo, garantias de legitimi-
dessas cerimônias. Conciliando dades totalmente distintas. Ao
agenciamentos estatais e não-es- menos aos olhos do Estado e de
tatais, destacam-se os regimes certos grupos sociais, o tráfico e
violentos que marcam os espa- a milícias seriam grupos crimi-
ços de pobreza e que por vezes nosos, ao passo que o Exército
são desviados dos olhares mais agiria, ainda que em um plano
atentos à ordem institucional, formal, “dentro da lei”. Por outro
centralizados nas forças policiais lado, em comum, atuam sob o
e em “novos programas” como punho de armas, tangenciando a
“solução” ao aumento da crimi- linha tênue entre práticas legais e
38 nalidade.3 Será abordado, então, ilegais e reforçando sua legitimi-
dade sob certos territórios à for- ao exercício da venda de drogas
ça, na busca pelo acesso e con- (Barbosa, 2005). As facções pas-
quista de mercados diferenciados saram a dominar favelas cariocas
(Telles, 2013). que apresentam uma posição ge-
ográfica para defesa quase ideal,
impondo dificuldades para incur-
2 - Vida sob cerco: tráfico de
sões policiais (Lessing, 2008).
drogas carioca
Uma terceira fase se estende da
década de 1990 aos dias atuais.
Se não reificado, o tráfico de dro- Com o advento da “guerra con-
gas é algo que atravessa a con- tra as drogas”, aumentou-se a
junção de fluxos, como o de dro- demanda pelo combate ao tráfi-
gas, de armas, de homens e de co e à criminalidade de um modo
dinheiro. Obviamente, o tráfico geral, ainda que isso implique
comporta algum grau de insti- no emprego de práticas policiais
tucionalização. Basta entrar em arbitrárias (Misse, 2011). Conse-
uma favela do Rio de Janeiro para quentemente, houve um cresci-
se notar isto. Por outro lado, o mento da violência, com especial
tráfico designa simultaneamente destaque aos homicídios, em que
efeitos, movimentos, aconteci- as principais vítimas são jovens
mentos, algo que se passa ou que negros.
se passa entre (Barbosa, 2001). Houve também a diversifica-
Não há, pois, uma organização ção das dinâmicas do tráfico de
hierárquica rígida nas facções ca- drogas, sendo comuns trocas de
riocas, já que estas são como blo- lideranças, assim como foram
cos territoriais, inexistindo uma modificados os padrões de socia-
posição segmentar. bilidade entre traficantes e mo-
As principais organizações crimi- radores. As distintas facções pas-
nosas do tráfico surgiram nas pri- saram a disputar territórios para
sões. A despeito de controvérsias estender seus domínios sobre a
e incertezas, a principal delas, venda de drogas e, ainda, preci-
o Comando Vermelho (CV), foi saram defendê-los da polícia que,
instituída a partir da convivên- sabendo localizá-los, começaram
cia entre presos comuns e os ti- a cobrar o “arrego” (Grillo, 2008).
dos “políticos”, durante o período Iniciou-se uma corrida arma-
da Ditadura Civil-Militar, em um mentista pela posse de instru-
cárcere da Ilha Grande (Lourenço mentos mais eficientes e letais,
& Dias, 2015). Inicialmente, o CV capazes de garantir, seja a manu-
não tinha vinculação ao tráfico de tenção do controle dos pontos de
drogas, pois em sua origem bus- venda de drogas, seja sua expan-
cou contemplar um componente são para outras favelas. Formou-
micropolítico, a partir da criação se, então, um tráfico de armas de
de códigos de conduta na cadeia guerra, como fuzis AK-47, AR-15,
e do estabelecimento da solida- metralhadoras de uso reservado
riedade entre os presos (Barbosa, das Forças Armadas, granadas,
2013). armas antiaéreas, bazucas etc.
Entre 1983 e 1987, ocorreu uma (Misse, 2011).
cisão no CV, sendo estabeleci- Não à toa, pesquisas apontam que
das novas facções. Esse quadro moradores de favela vivem “sob
se instaurou pela intensificação cerco”. Os tiroteios, produtos
da repressão aos assaltantes de das disputas por territórios en-
banco, bem como pela chegada tre facções criminais, bem como
ao Rio de Janeiro de uma grande confrontos entre traficantes e
quantidade de cocaína e pela re- policiais produzem uma tempo-
lativa tranquilidade relacionada ralidade de antecipação (Caval- 39
canti, 2008). Há uma expectativa atores públicos, como o então
de que sempre poderá ocorrer prefeito do Rio de Janeiro em
um próximo tiroteio. Adicional- 2006, identificavam as milícias
mente, o tráfico impõe um rígido como um “mal menor” frente ao
código de conduta aos moradores tráfico de drogas, reduzindo-as a
4
de favelas. Os que desvirtuam as “autodefesas comunitárias”. Pre-
ditas “leis da comunidade” podem ponderava no discurso oficial que
sofrer sanções severas, como ras- a ação das milícias era em alguma
pagens de cabelo, no caso de mu- medida positivas, sendo os trafi-
lheres, senão, a morte. Entretan- cantes os inimigos “número um”
to, não são raras narrativas sobre da segurança pública.
a “bondade” de traficantes, os No entanto, em maio de 2008, o
quais chegam a fornecer bens e fenômeno atingiu um importante
serviços essenciais aos morado- ponto de inflexão a partir da tor-
res de áreas onde exercem seus tura de jornalistas do O Dia, em
domínios, como remédios, gás de uma favela na Zona Oeste carioca.
cozinha, alimentos etc. Se até então pairava alguma dúvi-
da sobre a natureza das milícias, a
3 - Do elogio ao sapatinho: as partir deste episódio tais grupos
milícias cariocas foram incorporados publicamen-
te ao rol do crime organizado ca-
rioca (Cano & Duarte, 2012). Não
Há poucos anos, a expressão à toa, foi implantada no período
“milícias” não era comum ao re- uma Comissão Parlamentar de
pertório sobre a criminalidade Inquérito na Assembleia Legis-
carioca, tendo o termo come- lativa do Rio de Janeiro sobre as
çado a aparecer em matérias de Milícias, presidida pelo Deputado
jornais a partir de 2006. À época, Marcelo Freixo. Ainda, o Tribunal
5
as milícias eram grupos armados de Justiça, a Polícia Civil e o Mi-
6
irregulares com domínio sobre nistério Público desenvolveram
territórios e populações; realiza- ações de inteligência para deter e
vam coação contra moradores e condenar milicianos.
comerciantes; agiam motivadas O efeito dessas incisivas foi dei-
pelo lucro individual, monopoli- xar as milícias no “sapatinho”
zando, por exemplo, a venda de (Cano & Duarte, 2012), tornan-
gás, de TV a Cabo e o transpor- do-as mais discretas. A mudança
te alternativo em comunidades; em seu perfil de atuação visou,
propagavam um discurso de le- sobretudo, dificultar investiga-
gitimação relativo à libertação ao ções e prisões dos seus mem-
tráfico de drogas e à instauração bros, tornando-os menos visíveis
de uma ordem protetora; conta- ao sistema de justiça criminal.
vam com a participação de agen- Contudo, o perfil mais baixo das
tes do Estado, como policiais e milícias não tornou suas ativida-
agentes prisionais. Estariam tam- des menos intimidatórias. Den-
bém ligadas a um projeto político tre as características já citadas,
que incluiria funcionários de alto mesmo com a repressão estatal,
escalão da Secretaria de Segu- as milícias mantiveram o domí-
rança (Cano & Iotty, 2009). nio sobre territórios e a coação
As milícias seriam uma espécie contra moradores. A violência
de câncer, constituindo células letal continuou extremamente
de um corpo social que, ao invés comum e, inclusive, há indícios
de protegê-lo, seriam dedicadas de que as milícias estariam ma-
a ameaçá-lo (Cano & Iotty, 2009). tando menos, pois recorreriam
Entretanto, ainda que carregas- ao desaparecimento de pessoas
40 sem tais características, certos (Cano & Duarte, 2012). Então, se
inicialmente eram identificadas Por sua vez, as corporações in-
como um câncer, as milícias pas- tegraram a segurança urbana ca-
saram a ser vistas como um ví- rioca para assegurar as eleições
rus, com forte capacidade adap- de 2006, os Jogos Pan-america-
tativa. nos de 2007 e as eleições de 2012.
Atualmente, há muitas especu- Além de suas atividades em ce-
lações na imprensa em torno do nários urbanos, o recurso à “ga-
assunto, sobretudo, após a morte rantia da lei e da ordem” já foi ex-
da vereadora Marielle Franco, em pedido em resposta às rebeliões
que há fortes sinais de ter sido de em estabelecimentos prisionais
autoria de milicianos.7 Matérias de (Duarte; Davies, 2017). Conforme
jornais apontam que as milícias Agamben (2004), a “garantia da
deixaram de atuar “no sapatinho” lei e da ordem” pode ser consi-
desde o fim dos grandes eventos derada uma medida “de exceção”,
na cidade, estendendo seus do- comum aos governos das demo-
mínios a municípios da Baixada cracias ocidentais. A possibilida-
Fluminense. Há relatos também de de suspender normas e direi-
de que os milicianos passaram tos fortalece de modo arbitrário o
deliberadamente a se envolver poder constituído, sob a alegação
com a venda de drogas, concor- de crise e contextos de guerra.
rendo com as atividades do trá- Para os diferentes torneios es-
8
fico. portivos cariocas, o Exército
ocupou e fez o controle da cir-
culação de pessoas em favelas,
4 - Lei, ordem e além: o Exército na bairros pobres e vias de acesso da
“cidade olímpica” cidade, bem como participou das
entradas e ocupações de locali-
dades de grande extensão, con-
A gestão do Exército sobre a ci- sideradas “complexos”. Na gestão
dade se relaciona de modo es- desses espaços, o Exército atuou
treito ao papel constitucional das em alguma medida de modo dis-
Forças Armadas na “garantia da tinto à polícia militar, o que não
lei e da ordem”. Essa prerrogati- significa dizer que os militares
va jurídica, licenciada aos chefes deixaram de reproduzir uma vi-
do poder executivo, legitimou a são estereotipada sobre morado-
inscrição de guarnições da defe- res de favelas, especialmente, os
sa nacional no combate ao tráfico jovens e negros (Gonçalves, 2014; “A possibilidade
e, mais precisamente, na ocupa- Savell, 2016).
ção territorial dos espaços de
de suspender
Adicionalmente, as operações
pobreza da cidade. No sentido militares rechearam o orçamen- normas e direitos
simbólico, as incursões policiais to do Exército. Nos dezoito me- fortalece de modo
e militares foram aplicadas e jus- ses em que ocupou o Alemão e a
tificadas pelo que se identifica Penha, a força recebeu um inves-
arbitrário o poder
como “metáfora da guerra”, isto timento de R$ 333 milhões, su- constituído, sob a
é, uma representação particular perando em 22% o gasto em 2011 alegação de crise
sobre a cidade e seus moradores, com seu reaparelhamento. Esse
com efeito indexador sobre os valor excedeu em 61,6% o total
e contextos de
pobres ora enquanto criminosos, investido em missões de paz re- guerra.”
9
ora cúmplices de suas iniciativas alizadas pelo Brasil. Já na Maré,
(Leite, 2000). por onde esteve durante quinze
A primeira operação das Forças meses entre 2014 e 2015, a opera-
Armadas na cidade em período ção custou R$599,6 milhões.10 Fa-
recente ocorreu em 1992 duran- zendo dos territórios de pobreza
te o encontro de líderes globais seu campo de batalha, os grupos
sobre o meio ambiente (Rio-92). militares da esfera estatal pude- 41
ram alcançar maiores rendimen- o próprio Estado gere as medidas
tos financeiros. punitivas ao crime, cujo foco aca-
O Exército impactou a gestão da ba sendo a vida de jovens, pobres
cidade não apenas pelo dito com- e negros, cotidianamente exter-
bate ao crime, mas também atra- minados em favelas e periferias.
vés de políticas de incentivo ao Estatais ou não, os regimes de
esporte. Estas foram delineadas poder desenvolvidos por agentes
em âmbito federal, visando à pro- armados se revelam verdadei-
dução de uma “região olímpica” ros obstáculos à vida na cidade.
para os Jogos de 2016, em curso A despeito das idiossincrasias, é
desde os Jogos Pan-americanos possível apontar três elementos
de 2007 (Davies, 2017). Contudo, comuns entre eles: a regulação
construída em terreno da maior da circulação dos corpos sobre
guarnição militar da América La- territórios e o direito à vida des-
tina, a “região olímpica de Deo- sa população, o autoritarismo no
doro” foi destinada ao uso quase controle de mercados legais e
exclusivo do Exército. Apesar de ilegais, e o reforço às visões de-
o discurso oficial justificar esses preciativas sobre a condição de
investimentos para a “integra- pobreza, atada às representações
ção de jovens e das comunidades do crime. As armas da cidade têm
carentes” (COB, 2009, v. 1, p. 20), suas miras apontadas para gru-
o legado na realidade foi outro. pos específicos, a passo em que
Comandantes do Exército tive- são celebradas as realizações do
ram seu poderio local fortalecido, “sonho olímpico”.
aumentando as barreiras de uso
e circulação por parte da popula-
ção “civil”, que tampouco conse- Notas:
guiu reivindicar demandas e uti-
lizar estes novos equipamentos.
1. É possível relacionar as candida-
turas à sede de diferentes tor-
“Estes atores são 5 - Reflexões finais neios como um projeto único de
cidade articulado por um grupo
retroalimentados de empresários e representan-
pelo modo como No Rio de Janeiro dos megae- tes do poder executivo local, em
momento posterior incluindo
o próprio Estado ventos, a regulação do crime também agentes da esfera fe-
por meio de armas tem coexis-
gere as medidas tido por meio de arranjos situa-
deral. A primeira realização que
inaugura essa década são os Jo-
punitivas ao cionais entre variadas agências, gos Pan-americanos de 2007, re-
crime, cujo foco ajustadas aos espaços e as suas alizados no Rio de Janeiro, onde
configurações de governo e mer- também acontece em 2011 a edi-
acaba sendo a cados locais. Sob esse espectro, ção dos Jogos Mundiais Milita-
vida de jovens, ao invés de produzir “paz”, a ges- res, a conferência internacional
tão da segurança pública carioca sobre meio ambiente Rio+20 em
pobres e negros, 2012, a Copa das Confederações
deu forma a distintos governos
cotidianamente de “guerra”. Por um lado, no âm-
em 2013, a edição brasileira da
Copa de Futebol masculino da
exterminados em bito estatal e “legítimo”, as for- FIFA em 2014 e, por fim, os Jogos
ças armadas se inscreveram de
favelas e periferias.” maneira progressiva no controle
Olímpicos e Paralímpicos do COI
em 2016.
do espaço urbano e da vida. Por 2. Utiliza-se o conceito de governo
outro, houve um considerável in- em referência às práticas e téc-
cremento da ação de grupos cri- nicas que estruturam o campo de
minais, como os ligados ao tráfico ação dos outros, e que se consti-
e às milícias. Estes atores são re- tuem como formas de conduzir
e orientar condutas. Parto de
42 troalimentados pelo modo como
uma leitura inspirada nas ideias
do filósofo Michel Foucault, em lo.estadao.com.br/noticias/
especial nas suas análises sobre geral,exercito-no-rio-acao-
o fenômeno do Estado moderno. no-alemao-custa-r-333-mi-
Na medida em que organizam as -imp-,887718>. Acesso em: 01
ações, os governos são um exer- out. 2016.
cício de poder relacionado às 10. Disponível em: <http://bra-
instituições políticas, sem, con- s i l . e s t a d a o . c o m . b r/ b l o g s/
tudo, se limitar a essa possibili- e s t a d a o - r i o/n a - m a r e - o c u -
dade. pacao-militar-custou-o-dobro-
3. A reflexão sobre outras formas dos-gastos-sociais-nos ultimos-
de governo desloca do centro da seis-anos/>. Acesso em: 01 out.
discussão uma ação muito deba- 2016.
tida no campo da segurança pú-
blica no escopo dos megaeven-
tos: o programa de pacificação Referências
de favelas. Longe de desconsi-
derar a importância da compre-
ensão da iniciativa e o acúmulo AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exce-
de pesquisas produzido sobre o ção. São Paulo: Boitempo, 2004.
tema, o texto trata de uma vi- BARBOSA, Antônio Rafael. Prender
são mais ampliada da realidade, e Dar Fuga: Biopolítica, Sistema Pe-
alinhada a debates mais recen- nitenciário e Tráfico de Drogas no
tes que orbitam a regulação da Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mu-
“questão social” (Cf. Miagusko; seu Nacional do Rio de Janeiro, 2005.
Jardim; Côrtes, 2018). (Tese de Doutorado).
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nho-solta-diz-que-milicia-mal- Tempo Social. Revista de Sociologia
menor-que-trafico-5008565. da USP. V. 25. N. 1. 2013.
Acesso em 06/08/2018. _________, Antônio Rafael. As
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velas da Maré, eleita Vereado- Justiça Global (org.) Segurança, Trá-
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de Janeiro pelo Partido PSOL de Janeiro: Fundação Heinrich Böll,
com 46.502 votos, com vistas 2008.
a cumprir o mandato entre os _____, Ignacio. DUARTE, Thais Le-
anos de 2017 e 2020. No dia 14 mos. No sapatinho: a evolução das
de março de 2018 foi assassina- milícias no Rio de Janeiro (2008-
da em um atentado a um carro 2011). Rio de Janeiro: Fundação Hein-
em que era passageira. No total, rich Böll, 2012.
treze tiros atingiram o veículo, CAVALCANTI, Mariana. Tiroteios,
matando também o motorista legibilidade e espaço urbano: Notas
Anderson Pedro Gomes. Dispo- etnográficas de uma favela cario-
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11/07/2018. LEIRO. Dossiê de candidatura do Rio
8. Disponível em: https://theinter- de Janeiro à sede dos Jogos Olímpi-
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Jul.–Dez. 2013.

44
Jogo de memória na Central: Adriana Fernandes

ocupações de moradia,
Antropóloga e pesquisadora
do Distúrbio (UERJ/UFRRJ/
CNPq); em 2013 defendeu a
destruição, reaparições tese Escuta ocupação: arte do
contornamento, viração e pre-
cariedade no Rio de Janeiro
(PPCIS/UERJ).

Resumo:

A Central do Brasil tem sido um espaço de disputas e de resistên-


cias na cidade do Rio de Janeiro. Recorrentemente novas políticas
urbanas buscam remover a população pobre e mais precarizada
que reside e trabalha na região. Através de três ocupações de mo-
radia, o texto se propõe a mostrar o teor dessas disputas, os dife-
rentes sujeitos e projetos envolvidos, assim como a originalidade
das ocupações em termos de moralidades e como espaço antisse-
gregacionista e heterotópico.

individualização da água não se-


Ponto de partida riam para eles: Isso tudo quando
ficar pronto não vai ser pra gen-
te não.1 As tentativas dessa mes-
1. Ocupação Chiquinha Gon- ma moradora para conseguir um
zaga: iniciada em 2004 pela apartamento no Minha Casa Mi-
Frente de Luta Popular (FLP) nha Vida (célebre programa de
e a Central de Movimento habitação popular instituído nos
Popular (CMP) num prédio governos Lula e Dilma Rousseff)
abandonado pertencente ao era significativo de um imaginá-
INCRA. Em 2013, a ocupação rio construído na última década:
obteve na justiça o direito à a chance de obter a posse de um
concessão por uso especial apartamento ou casa para si ou
do imóvel, por 99 anos, o para alguém de sua família, mes-
que lhe rendeu a reputação mo que distante do Centro, onde
de uma ocupação de suces- morava atualmente e por onde se
so, uma ocupação que deu virava com bicos, faxinas e ser-
certo. Depois disso, porém, viços relacionados ao cuidado
acontecimentos usurpa- (como cuidadora e babá). Ela e
tórios envolvendo polícia, uma outra moradora da ocupa-
tráfico e políticas urbanas ção desejavam muito obter uma
(seus agentes e interesses) vaga nos apartamentos do Minha
têm desafiado moradores, Casa Minha vida do prédio da Frei
movimentos de moradia e Caneca (situado em um bairro
instituições do Estado en- contíguo à Central e onde fun-
volvidos na garantia por ha- cionou, entre 1850-2010, o pre-
bitação popular. sídio homônimo). Os cadastros,
todavia, foram para outro perfil
Em junho 2018 uma moradora de moradores. Restava um golpe
da ocupação comentava que as de sorte e insistir em acionar al-
novas obras do prédio visando a guma relação mais próxima com 45
agentes (governamentais ou não) tão, num dia em que a cabeça ha-
responsáveis por novos cadastros via esquentado, sair em disparada
para tentar um cadastro noutro ao ITERJ (órgão responsável pelo
prédio, mesmo que distantes dali. imóvel) para deixar com o Institu-
Na Central desde a instalação to o alto montante reservado ao
da UPP da Providência, em 2010, pagamento (uma responsabilida-
o tráfico tomou as ruas abaixo, de mensal que podemos conside-
ganhando influência também na rar de ordem sísifica). O clima da
ocupação. Aos poucos, os garo- reunião é tenso, ao mesmo tem-
tos ligados ao Comando Verme- po um grupo de moradores anda
lho, que ficavam na Providência e esperançoso com a possibilidade
no entorno até à Central, expul- que lhe restou: retomar as obras
saram moradores da Chiquinha propostas pelo ITERJ como par-
Gonzaga, interessados em tomar te do processo de requalificação
seus apartamentos. O cotidiano do imóvel. O dinheiro que era de
com tiroteios nas ruas cruzando um Fundo federal ficou “perdido”
o edifício, e as disputas que che- na CEHAB, a Companhia estadu-
gavam pelas ruas e se instalavam al de habitação do Rio de Janeiro.
nos espaços internos da ocupa- A perspectiva de obras reanima
ção situada no número 110, da esse grupo e atemoriza aqueles
Barão de São Felix, alimentaram, que temem pelo aumento das
desse modo, a vontade enorme taxas e pela impossibilidade de
em muitos moradores de arru- continuar a habitá-lo.
mar um novo lugar para viver. To-
davia, a Defensora do Estado que Central do Brasil: transformações
acompanha o caso desde o início e continuidades
da invasão do imóvel do INCRA,
numa reunião sobre o destino da
ocupação em 2018, foi taxativa: O entorno da Central - apesar de
Não há qualquer chance no Minha tudo o que foi colocado abaixo
Casa Minha vida e ainda, são cer- desde os megaeventos Copa do
ca de 300 pessoas numa fila e sem Mundo de futebol e Olimpíada -
perspectiva de apartamento, além insiste como um convalescente
disso, o aluguel social está atra- que se desloca com dificuldades,
sando todo o mês, assim, a chan- a ferida, porém, continua aberta.
ce de receber algum dinheiro pelo O teleférico trambolhão parou de
apartamento não existe porque funcionar, o restaurante Garoti-
não há mais esse tipo de recurso. nho está fechado, o hotel popular
Como ela era de confiança, aquilo permanece. Camelôs se espre-
caiu como um balde de água gela- mem na calçada até o terminal
da no coletivo que tentava se re- de ônibus Américo Fontenelle,
organizar para retomar o prédio. putas na rua Senador Pompeu,
O ITERJ (Instituto de Terras e imigrantes (asiáticos, africanos,
Habitação do Estado) e o NUTH latino-americanos, haitianos) pi-
(Núcleo de Terras e Habitação), pocam pelo comércio e nas ruas.
da Defensoria Pública, são os dois A Barão de São Felix tornou-se
órgãos que têm dado apoio a tal uma via oprimida por coletivos
iniciativa. A moradora que cui- que não dão descanso, mas os sa-
da da cobrança da conta de água lões de corte de cabelo de estilo
do prédio, e que a polícia tentou afro, com originais e sofisticados
acusá-la de envolvimento com o cortes, seus anúncios coloridos
tráfico, decidiu entregar a função. parecem inabaláveis. Garotos
Como ninguém quis ficar respon- olheiros do tráfico postam-se
sável pela cobrança dos mais de mais discretamente no entorno
46 50 apartamentos, ela resolveu en- desde que uma viatura do 5º BPM
se instalou em frente ao prédio políticos, da cidade e também de
da ocupação e que notícias foram resistência das populações mais
veiculadas em reportagens na pobres e precarizadas. O conte-
grande mídia. údo imagético libertário, de re-
Seguindo mais lentamente, per- sistência, de perigo e ameaça à
sigo o seguinte jogo de memória: normalidade burguesa e ordem
onde estaria o Cabeça de Porco familiar que a envolve é um des-
que ficava no nº154, no mesmo vio que ressurge na história em
quarteirão da Chiquinha, os in- muitos momentos, tal como um
surretos da Revolta da Vacina que campo de força a contrapelo.
por ali circularam e realizaram Desde o Cabeça de Porco que
quebra-quebras em 1904, se con- mencionei, até as putas que jo-
trapondo a ordem republicana, e garam pedras na polícia fugindo
os soldados paupérrimos que fo- da Praça Tiradentes até a Central
ram na guerra de Canudos e não nos meses de Revolta da Vacina,
receberam as benesses prometi- assim como a manifestação de
das (casa e terreno na Providên- moradores da Providência por-
cia) e dali invadiram áreas para que o Exército que estava no mor-
2
morar no mesmo morro. Invasão ro tinha entregue três garotos ao
sobre invasão, trapaças e espolia- tráfico do morro da Mineira, em
ção, séculos a fio: não é assim a troca de dinheiro, a Estação e
história das cidades no capitalis- seu entorno de casas espremidas
mo? entre a avenida signo da moder-
Mas nessa região que concentra nização do país, a Av. Presidente
e por onde passa e acontece tan- Vargas, e o limite formado por
ta coisa, há também um controle uma face do morro, um rochedo
das ruas e dos transeuntes que de corte vertical que de tão reto
funciona muito bem. Da mesma e preciso se torna vertiginoso, e
forma, é igualmente incrível que toma o horizonte de quem chega
perdure por ali um costume de na Central.
cidades pequenas, que é o das No circuito dos deslocamentos
pessoas de permanecerem na entre restaurante e hotel popu-
soleira entre a rua e a loja (ou no lares, hospedarias de baixo custo,
imóvel que seja), de se postarem camas em quartos coletivos, cô-
nas janelas, ou de vigiarem pelas modos de favor, ou pagando um
arestas tudo o que acontece ou valor menor, alguns dias na rua, “Essa região da
pode vir a acontecer. Para quem pagando pelo banho na rodo- Central é uma
é morador, ou vive por ali, esse viária ou em algum hotel, estão
controle meticuloso é parte da incluídas também as ocupações das regiões mais
rotina diária e uma forma de pro- de moradia. Os ventos “estão in-
3
vigorosas, em
teção de si e de seus próximos. vadindo por lá” são parte desse termos políticos, da
Estamos no outono, quase inver- circuito da precariedade e fun-
no. Camelôs de usados preen- cionam como uma forma de es- cidade e também
chem as calçadas com sapatos e capar de situações que envolvem de resistência
ameaças as mais diversas e para
roupas para frio. Em 2018 tudo na
evitar se tornar um zumbi.
das populações
Central tem um ar de ruína ou de
quase ruína, além da intensa fu- As remoções da Providência to- mais pobres e
maça expelida pelo trânsito que maram uma parte do morro, me- precarizadas.”
agora percorre algumas poucas nor do que fora propalado pelos
ruas, depois que as obras do VLT agentes do Estado e graças a vá-
fecharam o fluxo em outras vias. rias ações de movimentos de mo-
Mas as ruínas, ou as quase ruí- radores, assistência do NUTH/
nas, não são qualquer coisa. Essa Defensoria do Estado, além do
região da Central é uma das re- apoio da relatora para moradia da
giões mais vigorosas, em termos ONU, Raquel Rolnik (que cumpria 47
mandado nesse período). Esses indiretamente pelos megaeven-
atores foram decisivos para que tos. Não como algo confessional
alguns protocolos acordados in- ou que endossa a vitimização dos
ternacionalmente a respeito de interlocutores. Mas para fazer da
remoções fossem cumpridos ou transmissão disso como se esti-
que ao menos as pressões nesse véssemos num revezamento, e
sentido ganhassem visibilidade assim poder continuar. Uma nor-
e legitimidade (embora muitas malidade que acompanha o lugar,
remoções ilegais tenham acon- mas que também é resultado da
tecido). O pânico e o terror que insistência de permanência de
permearam o cotidiano dos mo- ambulantes, putas, imigrantes,
radores não são quantificáveis. negros, trabalhadores da viração.
Mortes e doenças geradas por Assim como doença e vida não são
todo esse clima de incerteza es- contrários, como pontuou a an-
tão ainda para ser verbalizados, tropóloga Veena Das (2017) sobre
registrados em pesquisas e inven- as periferias na Índia, e formam
tariados na conta dos megaeven- um contínuo igualmente na exis-
tos. O silenciamento que acom- tência das periferias brasileiras
panha esses processos de terror - ou seja, as pessoas mais pobres
e a “normalidade” que marcam o convivem com suas doenças e es-
cotidiano da cidade é um traço tas compõem a própria existên-
importante do que Paulo Arantes cia - é plausível pensar que entre
qualificou em O que resta da di- os pobres da Central, destruição,
tadura, de exceção à brasileira. ruína e recomeço (o reabitar a
Por isso a importância de mencio- destruição) encontram-se vincu-
nar aqui essas passagens. Tam- lados entre si. Assim, as políticas
bém os textos que escrevemos públicas e as estratégias dos mo-
podem ser inscrições, vestígios vimentos e redes engajadas na
das dores, doenças, sofrimentos diminuição da desigualdade e na
que perduram e mortes silencia- ampliação de direitos não podem
das de quem foi afetado direta ou desconsiderar essa textura.

Incêndio e o bota-abaixo do Camelódromo

48 Dia seguinte ao incêndio do Camelódromo I


A velocidade e a forma impassível movidas 24h após o incêndio. Tal
com que os camelôs se colocaram rapidez por parte dos agentes es-
sobre os entulhos do incêndio do tatais e o projeto revelado numa
Camelódromo foi algo impressio- coletiva à imprensa e estampado
nante e me parece também par- nos jornais na manhã seguinte às
te da exceção à brasileira - seja labaredas que destruíram o local,
pela normalidade do absurdo (as objetivando sua transformação
centenas de pessoas que perde- num megaespaço de comércio,
ram seu modo de se manter dia- endossou a desconfiança de que
riamente), seja pelo seu caráter o curto circuito tinha sido propo-
de resistência ou como forma de sital.
habitar a destruição.

Dia seguinte ao incêndio do camelódromo II

Eu tateava meu jogo de memória, Na era dos megaempreendimen-


procurando onde ficavam as bar- tos, as figuras de Eike Baptista,
racas de açaí, a confusão de sons antes de sua derrocada, ou ainda
saídos das máquinas de jukebox de Xuxa Meneghel, apresenta-
e os encontros furtivos no sol de dora de tv, ou de Donald Trump,
dezembro, buscava pela lembran- antes de se tornar presidente dos
ça como se estruturavam as dife- EUA, eram sempre acionadas por
rentes seções no camelódromo, a moradores para justificar o im-
multidão enquanto isso se deslo- perativo de que teriam que se
cava, sem pestanejar, e irrefreável deslocar da região portuária o
(era hora do rush), em busca do mais breve. Ou ainda, os acionis-
desvio menos esburacado para tas coreanos e chineses que es-
chegar ao terminal de ônibus vi- tariam interessados em comprar
zinho à estação de trens, os dois terrenos e o patrimônio ocioso.
ligam a cidade a áreas periféricas Mas quando revitalizar abrange
e metropolitanas. Não havia co- os pobres, isto significa que eles
mentários, nem ninguém parava precisam ser transferidos para as
para ver o que havia restado. Os periferias das cidades modernas,
camelôs espremidos na calçada resultando rentabilidade para
vendiam suas mercadorias, a rua construtoras que levantam pré-
em frente fora liberada ao fluxo. dios em ritmo instantâneo e com
Atrás deles as demolições pro- material não-durável. Além dos 49
agentes que chegam na mesma a naturalização das parcerias
velocidade: a disseminação das público-privadas, sem qualquer
milícias também nos conjuntos consulta aos habitantes locais.
do Minha Casa minha vida é um Aliás, a ideia de espaço públi-
dado relevante na cartografia co ou de interesse público passa
subjetiva, política e social da ci- a ressoar quase como um hie-
dade após os megaeventos. róglifo egípcio, ruína que será
Um morador dos tempos de pes- brevemente soterrada por cons-
quisa da outra ocupação me diz truções passíveis de falir, encer-
que prefere ficar na rua em que rar suas portas ou vir abaixo a
o tráfico toma conta do que ficar qualquer momento: hotéis Inn,
noutra que periga ter ações da Museu MAR, edifícios corporati-
Guarda Municipal e perder tudo. vos e inabitados, camadas de um
Esse saber/fazer circulatório é capitalismo que aumenta a velo-
parte do cotidiano dos trabalha- cidade do desmanche, destruição
dores que habitam tanto a Cen- (e soterramentos) para urdir no-
tral, como em outros espaços de vos empreendimentos na cadeia
uma cidade cada vez mais milita- incessante de reprodução do
rizada (espaços sobre o controle capital. A máquina da expropria-
de grupos locais, mas ligados, de ção de corpos e da riqueza dos
diferentes formas, a atores e a habitantes do lugar funcionando
negócios graúdos e translocais). de forma mais intensa e eficaz.
Nesse conjunto, reconhecer os Nos termos de Giorgio Agamben:
agentes responsáveis pela admi- “(…) uma situação de apocalipse
nistração do dia-a-dia das ruas latente: onde nada mais pare-
é uma expertise fundamental da ce estar em conflito, mas onde a
subsistência material e para ob- destruição não deixa de fazer es-
“Esse saber/fazer ter alguma proteção num coti- tragos nos corpos e nos espíritos
diano marcado por uma exceção de cada um (…)” (cit. por Didi-Hu-
circulatório é parte que é ordinária e constituinte. berman, 2011, p.75).
do cotidiano dos Resta-nos, portanto, entender Mas “se nada mais parece estar
trabalhadores que como esse regime é exercido, em conflito”, conforme vaticinou
tanto para mapear as zonas de
habitam tanto a respiro, as resistências, quanto
o filósofo italiano para o tempo
atual, podemos mencionar, toda-
Central, como em para engrossar os possíveis mo- via, a observação provocadora de
outros espaços de dos conflagadores a esse ordena- outro filósofo, Walter Benjamin,
mento dominante. de que no meio desse “campo
uma cidade cada vez
Nessa cartografia da cidade após de força atravessado de tensões
mais militarizada os megaeventos instalou-se tam- e de explosões destrutivas, [en-
(espaços sobre o bém com mais força um imagi- contra-se] o minúsculo e frágil
nário da política informado por corpo humano” (Benjamin, 1987,
controle de grupos um tipo de modernização, com p.198). Esse “minúsculo e frágil
locais, mas ligados, signos e enunciados relativos a corpo humano” o que nos diz de
de diferentes ações de caráter empreendedor, uma outra ocupação legendária
os espaços públicos administra- na região portuária, a Zumbi dos
formas, a atores e a dos por modelos empresariais, Palmares?
negócios graúdos e
translocais)” 4
Zumbi dos Palmares, o rochedo vertiginoso
E era Eike Baptista, a aparição am- sentados e pensionistas da Estiva)
bivalente daqueles meses e dias talvez fosse mesmo transformado
da Zumbi dos Palmares. O prédio em um hotel de luxo, a seu lado,
originalmente, na década de 40, o outro prédio talvez se tornas-
50 sede do IAPE (Instituto de Apo- se um suntuoso shopping center.
Parte de trás do prédio da Zumbi dos Palmares

Tudo ali se modificaria, não havia tuados na zona oeste da cidade,


jeito de ficar - eram esses os enun- cerca de 45 km do Centro). Um
ciados repetidos pela maioria dos cadastro foi administrado por
moradores. Vistas como próximas uma moradora do prédio ligada a
aos militantes que queriam que a uma Assembleia de Deus que se
ocupação permanecesse, Patri- tornou uma liderança importante
cia [Birman, professora da UERJ, na organização do esvaziamento
minha orientadora, que também da ocupação e que tinha como
fez campo ali] e eu éramos vistas preocupação garantir que eles, os
com desconfiança, na verdade moradores, não tivessem que sair
tentávamos entender o que mo- com uma mão na frente e a outra
via o desejo de sair do Centro e atrás.
ir para bairros ermos, de escassos A Zumbi dos Palmares foi uma
equipamentos urbanos, poucas ocupação habitada por mulheres
chances para conseguir bicos e que tinham pago prisão, e também
rendas em trabalhos que o pes- por mulheres que exerciam tra- “Tudo ali se
soal realizava como botar isopor balho sexual na circunvizinhança modificaria, não
em shows ou outros espetáculos, do prédio, além da população que
entregar folheto na rua, freelas sempre esteve presente nas ocu-
havia jeito de
em eventos de sindicato, ou algo pações do Centro, de forma geral, ficar - eram esses
nesse sentido, eventual, mas por
um valor considerado por eles
a maior parte era de trabalhado- os enunciados
res da informalidade urbana, mas
bom.
5
alguns tinham carteira assinada repetidos pela
Um grupo forte do movimento ou eram empregados por contra- maioria dos
que queria permanecer se tor- to (terceirizados): peões de obra, moradores”
nou objeto de perseguição dos ambulantes, camelôs, homens e
que desejavam sair e negociar as mulheres sanduíche, entregado-
propostas: cheque de vinte mil, res de panfletos, também mo-
aluguel social por seis meses e toristas de ônibus, cobradores,
renovável por mais seis, ou casa pedreiros e eletricistas de pouca
ou apartamento em Cosmos ou formação, cozinheiros em res-
em Senador Camará (bairros si- taurantes de preços módicos, 51
Reunião no salão com representantes do ITERJ e governo do Estado

faxineiros, trabalhadores da área ocupação que estava no caminho


de limpeza, cuidadoras de idoso, das obras do Porto Maravilha,
babás, e um morador que ganha- provocaram muitas brigas e dis-
va a vida fazendo embaixadinhas cussões. As célebres e inesque-
num sinal de trânsito. cíveis assembleias do coletivo da
O dia da mudança chegou, na Zumbi não eram mais as mesmas.
verdade, a bem dizer, foram se- Os problemas e conflitos relacio-
manas. Uma boa parte quis o nados à convivência não interes-
cheque e partiu para outras regi- savam mais.
ões da cidade ou mesmo para ou- Agora, no tempo da urgência, as
tras regiões do Estado (Baixada assembleias eram perpassadas de
ou Região dos Lagos), outra par- embates catárticos em torno das
te entrou no cadastro do Minha propostas aventadas pela prefei-
Casa Minha vida, se transferindo tura e governo, do futuro incer-
para a zona oeste, uma parte me- to, ou de atitudes que poderiam
nor resolveu pelo aluguel social botar tudo a perder - como dis-
na região. Obras durante cerca se um morador enquanto discu-
de dois anos tomaram a Av. Ve- tia com outro do grupo que não
nezuela, entre outras ruas, cau- queria sair (o grupo de morado-
sando inúmeros transtornos aos res-militantes). Uma sensação,
moradores, além do esvaziamen- porém, estava presente numa
to da região. Eram tempos de tra- boa parte dos moradores que
tores e retroescavadeiras. Tempo também via nas obras do Porto
de rumores, desditos, de sonhos, a possibilidade de obter um bom
de muitas ameaças e de intran- imóvel, mesmo que em regiões
quilidade. Agentes da governa- menos favoráveis à vida na vira-
mentalidade e o tempo sem fim ção: as notícias desencontradas
da transição [assim que alguns não parariam de chegar e de se
moradores chamaram o esvazia- contrapor, dia após dia, e as má-
mento do prédio] foram de muita quinas que revolviam o chão não
52 tensão. A vida da viração e numa descansariam até o prédio ser
completamente esvaziado. E foi túnel a impressão era ser tragada
isso o que finalmente se deu. por um halo para um lugar escu-
Mas nem todos se contentaram ro de muita poeira, barulho e de
com as alternativas apresentadas intenso tráfego de ônibus para as
pelos agentes governamentais. mais diferentes regiões distantes
Flora foi uma delas. Durante o da cidade. Faróis cegavam os que
esvaziamento do prédio ela, jun- ali passavam. Buracos com po-
to com outros moradores, foi até ças mal cheirosas, à espreita de
o Piranhão (como é conhecida a pedestres desavisados. Cheiros
sede da prefeitura) para receber e luzes num caminho curto, mas
o cheque indenizatório de 20 mil tenso, vira e mexe havia notícias
reais. Após observar o valor lar- sobre assaltos. E então chegáva-
gou a fazer escândalo - como mos ao bairro da Gamboa, perdi-
outros contaram depois - na en- do no tempo, com casario antigo,
trada do Piranhão. Aos brados, ruas que não se encontram, em
reclamou que aquele montante quarteirões que podem confundir
não daria nem para pagar as com- transeuntes com seus arruamen-
pras para o filho no mercadinho tos irregulares e desencontrados.
do bairro e, em seguida, rasgou O mote que justificou a ocupa-
o cheque indenizatório. Alguém ção era que o movimento negro
da prefeitura tentou remediar a desejava transformá-la em um
situação, mas Flora estava inde- Quilombo cultural e ali abrir es-
movível. Um grupo de moradores paço para um futuro museu das
fez contato com um irmão para religiões de matriz afro-brasilei-
que ele fosse na prefeitura para ras. Nas primeiras noites eram
recuperar o cheque referente ao recorrentes comentários de que
apartamento. O “rei está nu” tal- barulhos de correntes podiam ser
vez seja essa uma das mensagens escutados num espaço anexo ao
que podemos ler do gesto irascí- prédio de onde se dormia. Uma
vel de Flora. cozinha coletiva foi instalada.
Um grupo de anarquistas ligado à
Machado de Assis, ocupação Flor do asfalto, a ocu-
pação dos punks, chegou para
o prisma negro6 dar apoio na cozinha, fornecen-
do legumes obtidos na CADEG,
A ocupação Machado de Assis a Central de Abastecimento do
aconteceu em 2008, numa área Estado da Guanabara. A notícia
onde funcionou uma fábrica da de que a ocupação possuía mui-
Confeitaria Colombo, depois se to mais espaço do que se supu-
tornando, até 2006, proprieda- nha funcionou como um rastilho
de da Unilever, quando foi desa- de pólvora na região. Dia após
propriada para fins de habitação dia uma procissão de pessoas
social, dentro do programa de contando histórias de infortúnio
moradia Novas Alternativas, no as mais variadas buscavam uma
governo César Maia. Como tal vaga na nova invasão.
fim não aconteceu um grupo de A ideia de enfatizar a Machado de
moradores e de ativistas ligados Assis como uma ocupação afro-
à Zumbi, à Chiquinha e de ativis- -brasileira continha sua marca
tas ligados ao movimento negro e de originalidade, ao mesmo tem-
independentes resolveu ocupar o po não deixava de ser oportuna.
imóvel na rua da Gamboa, nº 111. Ao tentar se vincular à cena de
A melhor opção para chegar à memória africana e de escravi-
Machado de Assis era atraves- dão na cidade, a Machado de As-
sar o túnel João Ricardo, atrás sis procurava se somar a marcos
da Central do Brasil. Ao cruzar o que já eram ou começavam a ser 53
referência nesse circuito e que xo de onde se ouviam barulhos
estavam localizados próximos ao de correntes permanecera sem
prédio como o Quilombo da Pe- ser ocupado) e o enorme terreno
dra do Sal, o Cemitério dos Pre- nomeado de Nárnia, tornaram a
tos Novos, e depois, o maior sítio ocupação incontrolável.
arqueológico de cultura mate- Em 2012 a Machado de Assis foi
rial relacionado à escravidão no definitivamente lacrada, uma
mundo, o sítio do Valongo. Como moça que tinha uma lojinha de
mote propulsor dessa filiação, a balas ao lado do prédio ouviu di-
ocupação se propunha a receber zer que Xuxa, a apresentadora de
peças apreendidas em terreiros tv, comprara toda aquela área.
da Providência e do morro de Dioneia, moradora desde as pri-
São Carlos, entre outros, desde a meiras semanas da Machado, por
década de 30, e que ficaram reti- sua vez, havia pego a indenização
das no Museu da Polícia. Durante de 5 mil reais e foi categórica em
anos se tentou sem sucesso dar dizer não quando lhe perguntei
outro destino a esse importante se usaria o dinheiro para obter
patrimônio, que no Museu atraía uma nova moradia. Nesta época,
despachos e oferendas ritualísti- ela estava ficando em um barraco
cas.7 cedido na parte de cima do mor-
No meio do prisma negro, porém, ro da Mangueira. Durante o dia
surgiram tratores e retroescava- saia com os filhos para comer no
deiras que ganharam ganas após Garotinho, da Central. Era ali que
os anúncios da Copa do Mundo contatava seus conhecidos e fica-
e das obras do Porto Maravilha. va sabendo se alguma nova ocu-
Por outra parte (e sempre os in- pação estaria por acontecer. Por
cêndios), dois casarões invadidos, onde andará Dionéia? E sua filha
na mesma região, pegaram fogo Larissa, na época com cinco anos,
no início de 2009, suscitando a como estará agora? O restauran-
transferência de um contingente te popular não funciona mais, fa-
de pessoas desconhecidas para rejamos pistas.
a ocupação. Na queixa de uma
moradora que participou desde
os preparativos: Não está mais Notas:
dando, a gente nem sabe quem
mora mais aqui! O comentário
1. Frases e expressões em itálico
não explicitava o motivo da des-
foram transcritas do campo.
qualificação dos novos invasores 2. Sobre esses acontecimentos re-
da Machado de Assis: eram qua- meto a Myriam Lopes (2000) e
lificados de zumbis (usuários de Walnice N. Galvão (2002).
drogas vistos como não confiá- 3. A expressão foi usada por Eliane
veis). Alves e Vera Telles (2006, p.327)
Rumores de que novas tentativas para o contexto de São Paulo.
de invasão ao terreno da ocupa- 4. 4 O termo originalmente é de
Georges Bataille e é parte das re-
ção por agentes que se diziam
flexões desenvolvidas por Eliane
de movimento de cultura e mo- Robert de Moraes (2014) sobre a
vimento negro e que desejavam obra de Hilda Hilst.
interferir nos projetos que eram 5. O papel de moradoras de orien-
propalados por ativistas, novos tação pentecostal na negociação
moradores que se diziam ligados com os agentes do Estado para a
ao tráfico que havia se capilariza- obtenção de apartamentos e ca-
do em esticas também no asfalto, sas na zona oeste foi desenvolvi-
e levas de invasores que ocupa- do por Patricia Birman (2015).
vam aos poucos os vários espaços 6. Prisma negro foi mencionado por
Eliane Robert de Moraes (2014)
54 do prédio principal (mas o ane-
citando a novela de Hilda Hilst,
Com meus olhos de cão: “Como de Canudos. São Paulo, Fundação
se você, conhecendo cada canto Perseu Abramo, 2002.
de sua própria casa descobrisse LOPES, Myriam Bahia. O Rio em
no vestíbulo, por exemplo, por Movimento: quadros médicos e(m)
onde você passara muitas vezes, história 1890-1920. Rio de Janeiro,
(...), descobrisse um rochedo de Ed. Fiocruz, 2000.
faces espelhadas, um prisma ne- MAGGIE, Yvonne; CONTINS, Marcia;
gro”. MONTE-MÓR, Patrícia. Arte ou ma-
7. Sobre isso ver Maggie, Contins e gia negra? Uma análise das relações
Monte-Mor (1979). entre a arte dos cultos afro-bra-
sileiros e o Estado. Rio de Janeiro,
CNDA/ Funarte, 1979. Mimeo.
MORAES, Eliane Robert. Abertura In:
Bibliografia Colóquio sobre Hilda Hilst - Ter sido,
estar sendo. Programa de Pós-Grad-
uação em Literatura Brasileira, Uni-
ALVES, Eliane; TELLES, Vera. Ter- versidade de São Paulo, 2014. Dis-
ritórios em disputa: a produção do ponível em: https://www.youtube.
espaço em ato. In: TELLES, Vera; com/watch?v=l59KSKHREFA
CABANES, Robert (orgs.). Nas tramas
da cidade. Trajetórias urbanas e seus
territórios. São Paulo, Humanitas,
2006.
ARANTES, Paulo. 1964, o ano que não
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LES, Edson. O que resta da ditadura:
a exceção brasileira. São Paulo, Ed.
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considerações sobre a obra de Niko-
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1. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
BIRMAN, Patricia. Ocupações: ter-
ritórios em disputa, gêneros e a
construção de espaços comuns In:
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dos viventes: ordens e resistências.
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Etnografias contemporâneas. Ano
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em http://www.unsam.edu.ar/ojs/
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DIDI-HUBERMAN, Georges. A “de-
struição da experiência”: apocalipse,
luto da infância. Entre destruição e
redenção In Sobrevivência dos va-
ga-lumes. Belo Horizonte, Ed. UFMG,
2011.
FERNANDES, Adriana. Escuta ocu-
pação: arte do contornamento, vi-
ração e precariedade no Rio de Ja-
neiro. Tese de doutorado. Programa
de Pós-Graduação em Ciências Soci-
ais da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ), 2013.
GALVÃO, Walnice Nogueira. O
Império de Belo Monte, Vida e morte 55
Ivie Soares Garrido
mulher cisgênero lésbica, é na-
Jogos Olímpicos Rio 2016:
tural de Niterói, mas viveu na
cidade do Rio por 30 de seus
memorial da ausência.
31 anos. Estudou Química na
UFRJ, mas optou por deixar a Narrativa em duas vozes da
cidade para finalizar sua for-
mação em Química na UNESP,
em Bauru (SP), para onde se
calamidade olímpica
mudou junto com sua esposa.

Viviane Suzano Resumo:


Martinhão
mulher cisgênero lésbica, é
graduada, mestre e doutoran- Essa escrita é um ensaio narrativo, em duas vozes, de duas mo-
da em psicologia; ativista do radoras (uma paulistana e uma niteroiense) da cidade do Rio de
movimento de luta à epidemia Janeiro que, enquanto estudantes e ativistas locais, travaram co-
de HIV/AIDS e do movimen- tidianamente os enfrentamentos do caos da cidade, antes e pós-
to LGBT. Mudou-se para o Rio -olimpíadas, e seus impactos diretos nas vidas de todas/os as/os
de Janeiro em 2013, onde fez
munícipes. Através de fatos reais e cruéis vividos proximamente,
mestrado na Uerj e trabalhou
em organizações de defesa dos relatamos as vergonhas relacionadas a esse megaevento, quanto
direitos humanos das pessoas aos investimentos tirados de dos cofres públicos, à dívida finan-
que vivem com HIV e AIDS. ceira, colocando esse fato em paralelo à lógica e dinâmica locais
e precedentes, quanto aos usos do dinheiro público e aos reais
compromissos com a população local.

Em de julho de 2018, fez dois anos época pela investigação policial


da morte do Diego. Soube da no- foi de crime de ódio, vinculado à
tícia à uma hora da madrugada negritude, regionalidade e sexua-
da segunda-feira, 04 de julho de lidade do Diego, bem expressadas
2016. Naquele instante, voltar por ele.
para o alojamento estudantil da Naquela mesma semana Diego
UFRJ, na Ilha do Fundão, de BRT, relatara, na sua página do Face-
àquela hora da noite, na cidade book, que tinha presenciado um
do Rio de Janeiro, era um risco. ato de violência contra um jovem,
Naquele momento, o assassinato cometido por seguranças da obra
de Diego Vieira Machado, meu da quadra de rugby,2 que estava
amigo próximo de longa data, já sendo construída nas instalações
1
era notícia nacional. Lembro que da Escola de Educação Física e
o encontrei na manhã do sábado, Desportos (EEFD), para uso da
dia 02 de julho, antes de ele sair delegação da Austrália, que ali
pra caminhar. Nos encontramos treinaria e se hospedaria para sua
na saída do aló (jamento), fu- participação nos Jogos Olímpicos
mamos um cigarro, ele me falou Rio 2016. Para a recepção da de-
de sua avó, e nos despedimos. legação, foram tomadas medidas
Na noite desse dia seu corpo foi de segurança: cercaram toda a
encontrado, atrás do prédio da EEFD, vigília intensa pela Guarda
Faculdade de Educação Física, Nacional, aumento da polícia mi-
boiando na beira da baia de Gua- litar, dentre outras mudanças no
nabara, onde fica a ilha do Fun- campus que acompanharam a di-
dão, cidade universitária da UFRJ, nâmica dos jogos olímpicos.
à aproximadamente 100 metros A morte do Diego representou
da residência estudantil, nossa para nós o auge de um grande
56 morada. A suspeita declarada na problema de segurança, exclusão
e descaso que acontecia na UFRJ Crivella, do PRB, atualmente em
aos seus muitos alunos. Nós ali vi- exercício). Já havia um histórico
víamos, cotidianamente, o medo de políticas públicas para segu-
pela ausência de segurança. No rança “optado” pelos administra-
entanto, foi nesse local onde, um dores e gestores locais.
mês depois, todo um sistema de
A Olimpíada mobilizou, sim, mais
segurança foi implementado, só
gastos para maior militarização.
que não para os moradores do
Mas os gastos exorbitantes não
Rio de Janeiro, mas sim exclusi-
foram só esses. Para receber os
vamente para a realização dos Jo-
Jogos, a cidade precisou reali-
gos.
zar diversas obras, muitas delas
Esse é um de muitos exemplos ainda na planta quando o país se
das contradições, absurdos e candidatou para sediar o even-
transtornos que aconteceram na to, algumas reformas em está-
cidade, em todos os pontos que dios, revitalizações de partes da
receberam diversas implemen- cidade, e, inclusive, novas obras
tações e alterações para a reali- para transporte, tudo em virtude
zação dos Jogos Olímpicos. Os apenas do evento, mobilizando
investimentos em segurança para muitos investimentos.
6
Embora
a realização do evento também muito tenha sido dito por parte
significaram repressão e exclusão de políticos e interessados afins,
para uma parcela considerável da no sentido de que essas obras
população local. A presença mais seriam um retorno para a popu-
intensa do exército na cidade, o lação local, não foi o que viven-
aumento do contingente da po- ciamos. Boa parte dessas obras
lícia militar, a implementação de estão, hoje em dia, em desuso;
operações policiais municipais em outros casos, como o do Ma-
especializadas (como, por exem- racanã, o estádio vem sofrendo
3
plo, o “Lapa Presente”) e a própria depredações pela negligência
atuação da guarda nacional cor- da falta de manutenção, ficando
roboraram com esse quadro. abandonado e à mercê de saques.7
Esse militarismo e incremento Já nos transportes, os problemas
da força militar já representavam seguem essa mesma dinâmica. O
o aumento da violência local.4 A caso dos transportes BRT (Bus
presença do exército já era no- Rapid Transit), VLT (veículo leve
tável. Recordo que quando mudei sobre trilho), e as obras de exten- “Os investimentos
para o Rio, no começo de 2013, são da linha 4 do metrô (Barra – em segurança para
já via os jipes do exército transi- Ipanema) apresentam as mesmas
tando pela Avenida Brasil, e eles calamidades. O BRT, por exem- a realização do
invadiam as favelas e comunida- plo, linha de ônibus articulados, evento também
des em virtude da guerra contra de proposta de corredor exclu-
o tráfico, que só gerava (e ainda sivo, tinha como proposta inicial
significaram
gera) chacina e exclusões da par- ligar o aeroporto internacional repressão e
cela marginalizada da população. Antonio Carlos Jobim (Galeão) à exclusão para
Esse procedimento precede os região da Barra da Tijuca (bairro
megaeventos, inclusive fez par- da zona oeste da cidade), especi-
uma parcela
te da gestão política dos últi- ficamente onde seriam realizadas considerável da
mos governadores que passaram a maior parte dos Jogos. Embora população local.”
pelo estado (Sergio Cabral, do esse novo transporte tenha ser-
PMDB, antecessor de Luiz Fer- vido para a locomoção da popu-
nando Pezão,5 do mesmo partido, lação, logo vimos seu sucatea-
em exercício até 2018) e também mento: falta de manutenção, falta
dos prefeitos da cidade do Rio de de funcionários, grande atraso na
Janeiro (Eduardo Paes, também sua chegada e saída, quando não
do PMDB, antecessor de Marcelo a falta de veículos nos horários 57
previstos de funcionamento, de- propósito desse transporte leva-
predação das estações, nenhuma ram a nada além de mais trânsito
segurança, dentre outros. Além para o trabalhador, que precisa ir
do fato de que, em virtude de sua ao centro onde se concentra boa
implementação, muitas linhas de parte dos trabalhos da popula-
ônibus da cidade foram cancela- ção local, e que não usufrui desse
das. A promessa para os jogos era serviço. A mobilidade urbana foi
a realização, a partir do zero, das significativamente comprometi-
obras de três linhas: a principal, da.9 Hoje quando o vemos passan-
a cima citada, a Transoeste, que do, normalmente está vazio, sem
ligaria a Barra da tijuca ao bair- usuários, e os poucos que o usam
ro de Santa Cruz, na zona oeste, em sua maioria são turistas.
a Transbrasil, que ligaria o bairro Para a realização dessas megao-
de Deodoro até o centro da cida- bras forma investidos bilhões de
de, pela Avenida Brasil, que deve- dinheiro proveniente do governo
riam se concretizar até o começo do estado, do governo federal,
das olimpíadas. Esta ultima até os do banco nacional, e de poucas
dias atuais continua não só inaca- empresas privadas. Essas últimas
bada como as obras estão todas então foram o palco de diversas
paradas8e a avenida onde se reali- jogadas políticas corruptas de
zavam permanece um caos cons- desvio de grande verba para os
tante de trânsito e resto de obras. políticos envolvidos. O caso, por
Hoje parte dos viadutos, que in- exemplo, da construtora Ode-
clusive desafiam as leis da física, brecht é escandaloso, e inclusive
são abrigo para vários moradores culminou com o encarceramento
de rua, que antes dessas obras já do ex-governador Sergio Cabral.
haviam sido removidos dessa re- Mas os processos investigativos
gião. e sentenças ainda seguem sem
O transporte VLT não fica atrás, outros condenados ou soluções
pois sua proposta em absoluto para retorno desse dinheiro aos
não atinge a população da cida- cofres públicos e à população.10
de, pois seu único objetivo foi o Mas o estado e o município já ti-
turismo. Seu trajeto, que liga a nham problemas no seu históri-
rodoviária ao aeroporto Santos co. A três dias do inicio dos jogos
Dumont, na verdade liga nada a o estado do rio decretou “estado
coisa alguma, passando por lu- de calamidade pública”, pelas al-
11
gar qualquer. Todos os proces- tas dívidas do Estado. A partir
sos de obras que observamos ao desse momento vários funcioná-
longo dos anos só revelaram seu rios do estado tiveram seus sa-
grande despropósito. Com pou- lários cortados, atrasados, sem
cos vagões, pouca capacidade de promessa de recebimento. Meu
lotação e demora nas partidas e pai foi um caso, de muitos, de
chegadas, esse transporte causou aposentados que passavam a so-
grande caos no centro da cidade. frer essa angustia; vi conhecidos
Ao longo de sua construção as ficarem sem qualquer rendimen-
ruas do centro foram alteradas to mensal e serem despejados de
inúmeras vezes, ruas principais suas casas, se endividarem, não
de trajeto de carros e transpor- terem dinheiro nem para o bási-
tes públicos foram interditadas co, mas ainda assim muitos iam
e finalmente ocupadas pelo VLT. trabalhar, como forma de resis-
Mesmo depois de começado o tência e também de não se verem
evento parte de sua linha não es- mais prejudicados, sendo alvo de
tava pronta, e parte de suas obras retaliações e exoneração de seus
ficaram paradas por um bom cargos; vários serviços públicos
58 tempo. Todo o transtorno e des- foram sucateados, largados, ne-
gligenciados, hospitais ameaça- do glamour carioca, para além
ram fecharem suas portas (como dessa região a cidade fica largada
o hospital universitário da UERJ, às traças. Há uma forte exclusão
Pedro Ernesto), e uma das maio- das demais pessoas e acentuada
res universidade do estado e do violência nas demais regiões, mas
país, a UERJ, declarou falência to- na zona sul a segurança segue as
tal e fechamento de suas portas.12 conveniências para os turistas e
Durante o tempo que lá estudei vi de seus abastados moradores. Sa-
o prédio ficar abandonado, sem bíamos de um movimento na ci-
funcionários, sem limpeza, sem dade de afastar dessa região pes-
vigilância, com casos inclusive de soas de outras zonas da cidade e
tentativas de agressão, estupro e de outras classes sociais. Recordo
assaltos à mão armada por pesso- de uma linha de muitas linhas de
as que entravam livremente, uma ônibus que saiam da zona norte
vez que a UERJ estava largada. da cidade e se dirigiam para zona
Mas, segundo o governo na épo- sul que foram repentinamente al-
ca, nada tinha a ver com os gastos teradas, de modo que seu itine-
dos jogos e nem influenciaria em rário não mais seguia para a zona
qualquer prejuízo para sua rea- sul. Quem quisesse ir à região
lização. Enfim, o Rio continuava precisaria pegar dois transpor-
um grande caos, em grande dí- tes, o que significava pagar mais
vida, mas os Jogos Olímpicos Rio e demorar mais para chegar. Em
2016 continuavam lindos. virtude dessa perspectiva turísti-
A realização dos jogos, para a ci- ca excludente e segregacionista,
dade e para o estado, de acordo toda a cidade ficava em detri-
com o governo e demais inte- mento em favor da zona sul, e de-
ressados, seria um grande in- mais investimentos como saúde,
cremento turístico, meio aliás de segurança (devida), saneamento
forte de giro da economia local. básico e afins faltavam em de-
Todas as promessas de melhorias masia, aliás faltam até hoje. Essa
e de entrada de renda no Rio de mesma perspectiva usurpadora
Janeiro foram grandes mentiras, se utilizava de slogans chamati-
mas quem pagou fomos todos vos e simpáticos da cidade, como
nós.13 Aliás, ainda estamos pagan- um lugar de todos, para todos,
do. que agregava e recebia com satis-
Além do foco nas regiões da cida- fação a multiplicidade, e claro, os
de de interesse para a realização turístas. No entanto, nem mesmo
dos Jogos e transporte dos seus na zona sul, e que dirá das de-
interessados, já havia na cidade mais regiões, esse slogan se fazia
um foco de investimento em cer- verdade. A violência na cidade é
ta zona de importância local. De tremenda, e os grupos menos fa-
fato, o turismo na cidade sempre vorecidos e mais excluídos, como
teve forte investimento em seus negros, classes baixas, população
cartões postais: o cristo reden- LGBT, mulheres, favelados, den-
tor, o morro do pão de açúcar, tre outros, eram seus alvos mais
as praias e bairros de Ipanema e certeiros. Um exemplo forte era
Copacabana, dentre outros lo- o slogan “Rio de Janeiro, cidade
cais turísticos localizados em sua friendly14, como um chamariz para
maioria na zona sul da cidade. Tal turistas LGBT, mas no entanto os
alvo de lucro e interesse especu- altos índices de agressões, perse-
lativo do turismo e das grandes guições e crimes de ódios decla-
imobiliárias já contribuíam para rados contra a população LGBT
um esquadrinhamento desigual do Rio de Janeiro, a qual nos in-
do espaço urbano e da popula- cluímos, eram e ainda são alar-
ção como um todo. Ali é o alvo mantes.15
59
A população da cidade moradora como lugares de expressão ar-
das favelas e comunidades tam- tística, ainda assim não são des-
bém sempre vivenciou intensa providas de violência e conflitos
exclusão e invisibilidade. No go- específicos que assolam as fave-
verno do então governador Ser- las, mas mais uma vez esses casos
gio Cabral, sua proposta de “paci- seguem invisibilizados pela mídia
ficação” das favelas levou à brutal e em favor dos grandes interesses
e, literalmente, mortífera entrada imobiliários e turísticos, renega-
e ocupação da polícia em uma dos pelo estado e prefeitura e por
unidade de operação chamada parcelas da população.
UPP (unidade de polícia pacifica- Diante dessa realidade que vi-
dora).16 Muitos de nós já relatáva- venciamos nos questionamos
mos e víamos helicópteros da po- como que a cidade do Rio conse-
lícia e exército atirando com fuzis guiu vencer as candidaturas para
de cima das favelas nas casas dos sediar as olimpíadas. De acor-
moradores. A desculpa é sempre do com veículos midiáticos e do
a guerra contra o tráfico, mas das próprio site do Comitê Olímpico
vidas e dos corpos que ali mes- Internacional (COI) o Brasil era o
mo ficam jogados nas ruas, quase país pior cotado dentre os demais
ninguém de fora dessa realidade países para sediar os jogos, pois
faz ideia, e claro os governos e não tinha estrutura pronta para
governadores não querem saber receber os jogos, seu projeto de
dessas vidas perdidas e não con- cidade olímpica estava todo no
tabilizadas pelas . papel. Como o Brasil foi eleito?
Nos precedentes e durante os Algumas denúncias internacio-
jogos mais medidas foram reali- nais levantaram a possibilidade
zadas em relação às favelas. Mais de compra de votos de membros
exército, remoções, ações inci- desse comitê, além de outros es-
sivas de sua invisibilização. Um cândalos nacionais vinculados a
exemplo contundente dessa últi- esse fato.17
ma foi uma serie de grandes pla- Mas a pergunta mais fundamen-
cas colocadas na extensão da li- tal que levantamos é o que resta
nha vermelha – avenida expressa de/para nós, munícipes, após os
que liga a baixada fluminense ao megaeventos? Nos recordamos
centro da cidade do Rio de Janei- e conversamos de como gostá-
ro – que passa pelo Complexo da vamos das olimpíadas, de assistir
Maré, como forma de esconder a as aberturas e encerramentos, de
favela para os megaeventos. Ela acompanhar os jogos, o ranking
foi implementada para os jogos de medalhas, e inclusive, nas épo-
Panamericanos de 2007, e para cas de maior prática esportiva,
as olimpíadas essas placas rece- pensar nas olimpíadas como um
beram decoração especial, com desejo de vida no futuro. Depois
desenhos tematizados para os dos jogos olímpicos na cidade
jogos. A favela, que já sofria uma do Rio, esse deslumbre anterior
invisibilização real e simbólica na perdeu-se, o sentido desfez-se, e
cidade, para os megaeventos foi só sobrou o desencanto e o des-
mais escondida. Para a realiza- gosto, de ver e viver o que de fato
ção dos eventos as mazelas que já essa realidade significou, pelo
estavam instaladas e instauradas menos para e na cidade do Rio de
na cidade foram apenas mascara- Janeiro. Quando os jogos aconte-
das, e ainda mais recrudescidas. ceram na nossa cidade só o que
As favelas que existem na zona vivenciamos foi o ódio.
sul, como a Santa Marta e Vidi- Então qual é a nossa conclusão?
gal, que vem sendo incorporadas Bom, hoje não moramos mais lá.
60 aos roteiros turísticos e tomadas Toda a violência, exclusão, opres-
são de que fomos vítimas, assim nos foi tão distante. A ausência, de
como o foram conhecidos e pró- vida, de recursos, de dignidade,
ximos, nos levou a um único ca- de direitos, e demais, nos foi sua
minho: irmos embora. Nosso ami- maior marca. Foi na falta, no vazio,
go Diego não teve a mesma sorte. que os megaeventos nos resigni-
Seu assassinato ainda não foi so- ficaram. Vivenciamos uma maior
lucionado e nenhum criminoso foi exclusão, fomos (mais) persegui-
sentenciado, quiçá punido. Mas dos, e enquanto excluídos fomos
aqui, mais do que a penalização de (mais) criminalizados. Para nós a
indivíduos em atos de violência, solução foi nos (re)movermos da
a maior violência que considera- cidade, que não nos deu outra al-
mos é a que vem da negligência ternativa. Para quem ainda vive na
e arbitrariedade do estado e go- cidade do Rio de Janeiro o caos se-
verno com seus (não) compromis- gue e a vida não tem outros cami-
sos com a população e com o uso nhos possíveis. Sem mais muitas
que (não) fez do nosso dinheiro conclusões e com muitas tristezas
público. A palavra que queremos finalizamos nossa narrativa com a
mesmo usar aqui é corrupção. Do memória presente de um amigo
saldo negativo de milhões de re- querido, ausente em nossas vidas,
ais o que aproveitamos? Nada. O por ser alvo dessa realidade social
que vivenciamos? Transtornos, cruel vivenciada na cidade do Rio
violências, descaso, exploração de Janeiro e que, como muitas/os,
e uma infindável lista de palavras foi esquecido em sua realidade,
que expressam nosso desespero. em seus diretos, negado enquanto
Para nós, que sempre gostáva- cidadão e renegado quanto a sua
mos das olimpíadas e avimos ser (in)justiça. Injustiça de todas e to-
realizada perto de nós, ela nunca dos nós.

Diego Vieira Machado18

61
minado/.
Notas: 13. h t t p s : //e s p o r t e s . e s t a d a o .
c o m . b r/ n o t i c i a s/ j o g o s - o -
limpicos,jogos-olimpicos-
do-rio-2016-reg istram-pre-
1. http://g1.globo.com/rio-de- juizo-milionario,70001785324
j a n e i r o/ n o t i c i a / 2 0 1 6/ 0 7/ https://www.brasildefato.com.
aluno-da-ufrj-e-encontrado- br/2016/08/12/obras-olimpicas-
morto-dentro-do-campus-do- -resultaram-em-desperdicio-
fundao-rio.html de-dinheiro-publico-diz-espe-
2. http://g1.globo.com/rio-de- cialista/.
j a n e i r o/ n o t i c i a / 2 0 1 6/ 0 7/ 14. Palavra que significa amigá-
ele-comprou-uma-briga-afir- vel, receptivo para com pessoas
ma-irmao-de-estudante-mor- LGBT.
to-na-ufrj.html 15. h t t p s : // o d i a . i g . c o m .
3. h t t p : // r j . g o v . b r/ w e b / s e - b r/ _ c o n t e u d o/ r i o - d e - j a -
gov/exibeconteudo?article- n e i ro/ 2 0 1 7- 02-2 2/g u i a -
-id=1899271 de-turismo-apresenta-a- vi-
4. http://redesdamare.org.br/ sitantes-o-rio-gay-friendly.
b l o g /p u b l i c a c o e s/p u b l i c a - html ; https://g1.globo.com/
cao-ocupacao-da-mare-pe- r j /r i o - d e - j a n e i r o/n o t i c i a/
lo-exercito-brasileiro/ ; http:// rio-registra-no-1o-trimestre-
w w w . j b . c o m . b r/ r i o / n o t i - de-2018-mais-denuncias-de-a-
cias/2018/03/14/complexo-da- gressoes-contra-lgbt-do-que-
-mare-teme-volta-do-exercito/ -em-todo-2017.ghtml.
5. https://epoca.globo.com/tem- 16. Monteiro; Cosentino, op. cit.; ht-
po/expresso/noticia/2015/07/ tps://www.cartacapital.com.br/
com-upps-em-crise-pezao-se- revista/858/espremidos-entre-
compromete-dar-mais-r-4-bi- dois-senhores-6954.html .
lhoes-para-policia-militar.html. 17. Monteiro; Cosentino, op. cit.
6. Monteiro, Poliana; Cosentino, 18. Foto IV, fonte: arquivo pessoal.
Renato. Projeto, orçamento e
(des)legados olímpicos. Rio de
Janeiro: Fundação Heinrich Böll,
2017. Disponível em: https://
br.boell.org/sites/default/files/
boll_olimpiada_01_09_17.pdf
7. Monteiro; Cosentino, op. cit.
8. h t t p s : // g 1 . g l o b o . c o m / r j /
r i o - d e - j a n e i ro/n o t i c i a/
obras-do-corredor-brt-trans-
brasil-estao-suspensas-por-fal-
ta-de-pagamento-diz-sindicato.
ghtml.
9. http://www.jb.com.br/rio/noti-
cias/2015/05/19/obras-do-vlt-
continuam-paradas-e-causam-
transtornos-para-a-populacao/
https://oglobo.globo.com/rio/
obra-do-ultimo-trecho-do-vlt-
-esta-parada-na-avenida-mare-
chal-floriano-22602482.
10. Monteiro; Cosentino, op. cit.
11. http://g1.globo.com/rio-de-
j a n e i r o/n o t i c i a / 2 0 1 6/ 0 6/
governo-do-rj-decreta-esta-
do-de-calamidade-publica-de-
vido-crise.html.
12. http://justificando.cartacapital.
com.br/2017/08/09/uerj-fecha-
62 -as-portas-por-tempo-indeter-
Mate(,) a cultura local: Giovanni Diniz Machado
da Silva
impedimentos na Copa de 2014 Especializando em Antropo-
logia Cultural pela Pontifícia
Universidade Católica do Pa-
raná (PUC-PR); Bacharel em
Relações Internacionais pelo
Centro Universitário Curitiba
(UNICURITIBA); Graduando
em Direito pela Universidade
Resumo: Federal do Paraná (UFPR) e
Membro do Núcleo de Estudos
Filosóficos (NEFIL-UFPR) e do
O presente ensaio reflete acerca dos impactos dos megaeventos Grupo de Estudo em Direito
sobre a realidade cultural local, observando-os concretamente Autoral e Industrial (GEDAI-U-
FPR)
a partir do vivenciado pelos vendedores ambulantes de mate na
cidade do Rio de Janeiro em face das restrições impostas a sua
atividade comercial durante a realização da Copa do Mundo da
FIFA em 2014.

Eles não aparecem na canção de equivocadamente por segregar


Tom Jobim, tampouco nos car- as mercadorias que eram permi-
tões postais do Rio de Janeiro, tidas e as que eram proibidas de
mas quem já foi à Ipanema ou a se comercializar por ambulantes.
qualquer outra praia da capital, Na ocasião, o mate foi o primeiro
com certeza, já os viu e sabe que item censurado pela listagem da
é praticamente impossível disso- prefeitura, que o reprimiu junto e
ciá-los da paisagem carioca. sem distinção de produtos como
Eles, os vendedores ambulantes armas, munição e explosivos.
de mate, apesar de hoje pode-
A justificativa, então, para impe-
rem comercializar normalmente
dir a venda da bebida pelos am-
sua bebida na orla e serem re-
bulantes baseava-se em alegados
conhecidos como personagens
“problemas sanitários”. Funda-
típicos da Cidade Maravilhosa,
mento, porém, que pouco con-
nem sempre dispuseram da anu-
venceu os cariocas, que obser- “Na ocasião, o mate
ência estatal para trabalhar à bei-
varam que a mesma ordem que foi o primeiro
ra-mar. Sendo alvo de resistência
por parte das autoridades locais,
vetava o mate, permitia a venda item censurado
ambulante de diversos alimen-
enfrentaram uma grave política
tos perecíveis, tais quais, algo- pela listagem da
proibicionista que não apenas os
desamparavam, como também os
dão doce, amendoim, milho ver- prefeitura, que o
de, churros, sanduíches, cachorro
marginalizavam quando sua ati-
quente, chope, cerveja e etc.
reprimiu junto e
vidade tornou-se expressamente sem distinção de
vedada. Além disso, a censura ao mate
Vedação como, por exemplo, a gerou ali ampla repercussão ne- produtos como
determinada em 2009 pela a Se- gativa, por ter prejudicado de armas, munição e
imediato a renda dos então ven-
cretaria Especial da Ordem Pú-
dedores, que tornaram-se ilegais
explosivos.”
blica (SEOP) do município do Rio,
quando – motivada por uma ini- e que, caso tentassem clandesti-
ciativa consideravelmente pro- namente exercer sua profissão,
gressista de regulamentar a ati- tinham seus galões e refresco
vidade comercial ambulante da apreendidos pela força policial.
cidade, cadastrando os trabalha- Insatisfeitos com a descabida res-
dores – “errou a mão” e decidiu trição, assim, os ambulantes con- 63
juntamente aos habituais consu- tentes para assegurar à FIFA
midores de mate mobilizaram-se e às pessoas por ela indica-
peticionando a revogação da or- das a autorização para, com
dem, que, pela pressão pública, exclusividade, divulgar suas
foi cancelada logo em seguida, marcas, distribuir, vender,
nos primeiros dias (de verão) de dar publicidade ou realizar
2010. propaganda de produtos e
Mais tarde, em março de 2012, serviços, bem como outras
outra boa notícia, que represen- atividades promocionais ou
tou uma verdadeira conquista: de comércio de rua, nos Lo-
por reconhecimento do decreto cais Oficiais de Competição,
nº 35.179, os vendedores ambu- nas suas imediações e prin-
lantes de mate – junto aos de li- cipais vias de acesso.
monada e de biscoito de polvilho § 1o Os limites das áreas
– tornaram-se Patrimônio Cultu- de exclusividade relacio-
ral Carioca! nadas aos Locais Oficiais
Em anúncio à publicação do ato, de Competição serão tem-
o prefeito da cidade justificou pestivamente estabelecidos
sua decreto “É uma homenagem pela autoridade compe-
pra gente não perder essas carac- tente, considerados os re-
terísticas do Rio, essas marcas tão querimentos da FIFA ou de
importantes da nossa cidade”. terceiros por ela indicados,
Bom momento e homenagem atendidos os requisitos des-
que indicavam que aquele tipo ta Lei e observado o perí-
de proibição imposta em 2009 metro máximo de 2 km (dois
nunca mais se repetiria. Mas foi o quilômetros) ao redor dos
oposto que aconteceu. referidos Locais Oficiais de
Competição.
Apenas três meses após a venda
ambulante do mate ser reconhe-
cida como patrimônio cultural do
Com tal regra, ainda que tem-
Rio de Janeiro, uma nova legisla-
porária – pois com validade tão
ção foi elaborada – dessa vez de
somente à época do evento –, o
âmbito federal e de forma menos
tratamento aos ambulantes de
explícita – restringindo a ativida-
mate retrocederam a uma con-
de.
dição marginalizada semelhante
Trata-se da Lei Geral da Copa (Lei a que se tinha com as proibições
“Bom momento e nº 12.663 de 05 de junho de 2012), de 2009. Isto é, impedidos de
homenagem que que, para garantir a exclusividade vender sua bebida nas áreas de
comercial e direitos autorais da
indicavam que FIFA (Federação Internacional de
maior movimento e sob o risco
de terem seus galões e refrescos
aquele tipo de Futebol) e de seus Patrocinado- apreendidos, já que os trabalha-
proibição imposta res Oficiais durante o megaeven- dores em tese competiam com a
to, blindou as vendas ambulantes
em 2009 nunca aos torcedores num raio de até
exclusividade do ramo de bebidas
da empresa patrocinadora ofi-
mais se repetiria. 02 km (dois quilômetros) do está- cial, a Coca-Cola, que por sua vez
Mas foi o oposto dio e dos locais de realização da vendia o refresco por R$8,00, o
FIFA Fan Fest, conforme normati- dobro do preço comumente pra-
que aconteceu.” zava seu artigo 11: ticado pelos ambulantes.
Assim, nota-se que a promessa
Art. 11. A União colaborará dos megaeventos em aquecer a
com os Estados, o Distrito economia nacional até pôde ter
Federal e os Municípios que sido diretamente cumprida ao
sediarão os Eventos e com as seleto grupo empresarial que se
64 demais autoridades compe- beneficiou das lucrativas parce-
rias e concessões público-priva- monada e biscoito de polvilho nas
das; mas trouxe, por outro lado, a praias cariocas, (...)”.
violação de direitos e prejuízo de Afronta, portanto, ao incentivo
renda para considerável parce- e à preservação ao Patrimônio
la da comunidade local. Cenário Cultural da cidade do Rio de Ja-
este que retrata precisamente a neiro, provocada pela interfe-
dimensão excludente dos fenô- rência ‘predatória’ de grandes
menos da Globalização, ou seja, companhias transnacionais, que
um processo que, em maior ou imprimem sua vontade sobre os
menor grau, afeta a todos, mas valores de uma nação, ilustrando
de modos diferentes: inclusiva ou o que o sociólogo polonês Zyg-
marginalmente. munt Bauman – em análise aos
Tão grave quanto os efeitos da aspectos da Globalização – notou
Lei da Copa em terem cerceados como um abalo da soberania dos
a atuação da atividade ambulante Estados:
do mate, foi o fato de que esses
dispositivos legais encomenda-
dos pela FIFA atropelaram a cul- (...) os mercados financeiros
tura carioca e, por consequência, globais “impõem suas leis e
a brasileira. preceitos ao planeta. A ‘glo-
balização’ nada mais é que a
Atropelaram, uma vez que o De-
extensão totalitária de sua
creto nº 35.179/2012, anterior à
lógica a todos os aspectos
legislação do Megaevento, havia
da vida.” Os Estados não têm
estabelecido a atividade de venda
recursos suficientes nem
ambulante de mate como um Pa-
liberdade de manobra para
trimônio Cultural e, assim sendo,
suportar a pressão — pela
deveria este valer-se da proteção
simples razão de que “al-
inerente a tal status, consoante
guns minutos bastam para
aos artigos 215 e 216 da Consti-
que empresas e até Estados
tuição da República (CRFB). Nes-
entrem em colapso” (...) No
se quadro, não seria errônea a
cabaré da globalização, o Es-
interpretação de que a Lei Geral
tado passa por um strip-te-
da Copa, materialmente, se apre-
ase e no final do espetáculo
sentou como inconstitucional ao
é deixado apenas com as ne-
reduzir o direito de proteção ao
cessidades básicas: seu po-
patrimônio cultural local.
der de repressão. Com sua
Em exame raso, poderia se aven- base material destruída, sua
tar que a Lei da Copa não feriria o soberania e independência
Patrimônio Cultural, já que1 a FIFA anuladas, sua classe políti-
também vendia mate dentro da ca apagada, a nação-estado
sua praça oficial. Contudo, deve- torna-se um mero serviço
se observar que o decreto do Rio de segurança para as me-
definia como patrimônio cultural ga-empresas... Os novos se-
não o produto ‘mate’ em si, mas nhores do mundo não têm
o típico, cultural e tradicional la- necessidade de governar
bor humano do carioca vendedor diretamente. Os governos
ambulante sobre aquele mate, nacionais são encarregados
que era configurado como bem da tarefa de administrar os
imaterial a ser (e que, durante a negócios em nome deles. (...)
realização do Megaevento, falhou
ser) protegido. Tanto é, que não
de modo distinto, o decreto firma Nesse escopo e em observação
“Art. 1º Fica declarado Patrimônio ao presente caso, pode-se ler que
Cultural Carioca a atividade de o “strip-tease” brasileiro, desnu-
vendedor ambulante de mate, li- dou (e violou) – com os impedi- 65
mentos da Lei Geral da Copa – as 18DECRETO35179Atividadede-
garantias à proteção do Patrimô- VendedorAmbulantedeMateLimona-
nio Cultural local – simbolizado daeBiscoitodePolvilho.pdf>
pelos vendedores ambulantes de RIO DE JANEIRO. Ordem Pública:
mate –, em nome dos interesses Cadastramento de Ambulantes na
das grandes corporações, como é Cidade. 2009. Disponível em <http://
www0.rio.rj.gov.br/pcrj/destaques/
o caso da FIFA que é uma asso-
ordem_publica_ambulantes.htm>
ciação suíça de Direito Privado e
seus patrocinadores oficiais, em- TV BRASIL. Vendedores de Mate:
Repórter Rio (05/03/2012). 2012.
presas transnacionais.
Disponível em: <https://www.you-
tube.com/watch?v=b1P2eN4qt0o>

Notas:

1. Outro argumento que se poderia


guindar no sentido de que a Lei
da Copa não feriria o patrimônio
local é que o decreto reconhecia
como patrimônio os vendedores
de mate na praia e, assim sendo,
não colidiria com as restrições
rezadas pela FIFA. Vale salientar,
no entanto, que a FIFA Fun Fest
carioca ocorreu nas areias de
Copacabana, área onde a organi-
zação do megaevento demandou
exclusividade comercial.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as


consequências humanas; tradução
Marcus Penchel. — RJ: Jorge Zahar
Ed., 1999 Tradução de: Globalization:
the human consequences.
BRASIL. Lei nº 12.663 de 05 de junho
de 2012. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/
L12663.htm
O GLOBO. Ambulantes comemoram
liberação da venda de mate da galão
nas praias. 2010. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/rio/
ambulantes-comemoram-liberacao-
da-venda-de-mate-da-galao-nas-
-praias-3071629>
RIO DE JANEIRO. Decreto nº
35.179. 2012. Disponível em:
<ht tp://w w w.rio.rj.gov.br/dls-
66 tatic/10112/4368015/4108330/
No meio do caminho: José Rodrigues de
Alvarenga Filho
o antigo Elevado da Perimetral Doutor e mestre em Psicolo-
gia pela Universidade Federal
e os meninos que atiram pedras Fluminense (UFF). Professor
Adjunto do Departamento de
Psicologia da Universidade Fe-
deral de São João del Rei (UFSJ)

Resumo:

Este ensaio, produzido em setembro de 2012, é um fragmento re-


tirado de nossa tese de doutorado, escrita entre 2011 a 2015. Na
mesma, utilizando a cartografia como perspectiva metodológica
e o ensaio como política narrativa, levantamos questões sobre a
produção do Rio de Janeiro como uma cidade olímpica, por um
lado, e, por outro, sobre a produção social de vidas descartáveis.
Os meninos que atiravam pedras no alto do antigo Alto da Perime-
tral, falam de uma cidade em ebulição e de processos de criminali-
zação, repressão e extermínio das vidas que não cabem no projeto
higienista e fascista da sociedade brasileira.

No meio do caminho tinha várias tural Branco do Brasil (CCBB). Os


pedras e alguns meninos. Meni- caminhos têm pedras e as pedras
nos feitos de pedras? Funcioná- também falam. O que elas têm
rios da Prefeitura coordenam a tentado nos dizer? Pedras ana-
reversão de faixa da Av. Rodri- lisadoras. Escrever é como que-
gues Alves sentido Ponte e Aveni- brar pedras, diz Clarice Lispector
da Brasil. São feitos como pedras (1998). Há faíscas e fagulhas no ar.
para ficarem parados, ou quase. Tinha um garoto no meio do ca-
Orientam o trânsito na costu- minho. O garoto anda cambale-
meira desorientação das políticas ante rente a grade da passarela
públicas de mobilidade urbana. interditada sob o Elevado da Pe-
Ônibus e carros passando ve- rimetral, na agora valorizada Re-
lozes como pedras atiradas por gião Portuária do Rio de Janeiro.
estilingues. Buzinas ensurdece- Abaixa-se com lerdeza e volta tra-
doras, canos de descargas, irrita- zendo em suas mãos uma peque-
ção. Pessoas com pressa corren- na pedra cinza. Nós o observa-
do para a Rodoviária Novo Rio. No mos de dentro do ônibus ao lado
meio do caminho havia frases es- da Rodoviária Novo Rio. Caminha
critas com tinta spray branca em em frente. Parece não ter pressa.
altura duvidosa e arriscada. Fra- Também não temos pressa. Nada
ses anônimas, mas não tão anôni- “Tinha um garoto
abala o pequeno percurso de seu
mas assim: com um estranho tipo corpo magro e negro. Olha para no meio do
de assinatura em seu redor. Há um lado, como se procurasse a caminho.”
tantas coisas no meio do caminho garantia de que ninguém o esteja
e tantos caminhos nos meios das vendo. Nós o vemos, mas ele não
palavras: “Mas nada vai conseguir nos encontra refletido na retina
mudar o que ficou”, diz a letra da de seus olhos escuros. Afinal, ga-
Legião Urbana (“Por enquanto”) rotos como ele são supostamente
escrita no suporte superior da invisíveis para nós. Pelo menos,
Perimetral, altura do Centro Cul- quando nos é conveniente fingir 67
que não o vemos; que não sabe- as normas acadêmicas, pois este
mos de sua produção histórica é um espaço que eles não conhe-
enquanto “menino de rua”, “pive- cem. Nós acadêmicos, entretan-
te”, “trombadinha”; enquanto pe- to, gostamos de imaginar que co-
rigo iminente. De fato, olhamos nhecemos o mundo de meninos
para garotos como aquele e ve- como aqueles, isto é, de dentro de
mos uma ameaça e não uma pro- nossas salas com ar condiciona-
messa (GALEANO, 2013). Ele olha do nada escapa de nosso olhar de
para a direita, depois para a es- especialista. Conhecemos aque-
querda. De repente, como quem les meninos sujos e pobres que
já tomou uma irrefutável decisão, jogam pedras nos carros que pas-
morde os lábios finos e joga com sam na Avenida Rodrigues Alves?
raiva a pequena pedra que trazia Adoramos nossas enormes pilhas
entre os dedos magros. Viro a ca- de conhecimento erudito. Aque-
beça para olhar melhor e tentar les meninos não são eruditos, não
seguir com dificuldade o desti- falam francês, não escutam Bach,
no da pedra lançada. É uma de- não estudam Foucault. Eles não
claração de guerra? O estampido são do tipo “cult”. Eles também
inconsequente de uma revolução não são “objetos de estudo”. São
surda? O prelúdio de uma estra- apenas meninos tentando sobre-
nha melodia? Uma experimenta- viver em nossa cidade olímpica.
ção artística? Um agenciamento Ou melhor – quer dizer, pior –,
coletivo de enunciação? Era só são como a nordestina “Maca-
um menino com uma pedra no béia”: “um parafuso dispensável”
meio do caminho. Uma faísca que (LISPECTOR, 1998, p. 29) Quando
ascende e logo se apaga. Depois ouvimos o governo afirmar que
da ação, ele ainda olha o desfe- a cidade será limpa para os me-
cho desta. Nada parece aconte- gaeventos, garotos como estes
cer e tudo acontece ao mesmo que serão expulsos de seus lares
tempo. Os carros continuam pas- improvisados e jogados, feito lixo,
sando velozmente pela Av. Rodri- resto de gente, na Zona Oeste, na
gues Alves. Nada os abala em seu Baixada Fluminense, ou, em outro
destino previsível, em seu veículo lugar qualquer menos nobre e va-
confortável e refrigerado. O ga- lorizado. O governo tenta driblar
roto pega outra pedra e continua, a miséria chutando-a para bem
com raiva, tentando acertar os longe dos espaços valorizados
carros que passam, mas que pa- para o capital; para muito longe
“De repente, como recem sequer sentir a existência das milionárias obras construídas
quem já tomou uma daquele menino. Carros feitos de com dinheiro público. Diante de
pedra, talvez. Atrás do primeiro uma cidade que se quer olímpica
irrefutável decisão, garoto, outros repetem o ato das e, perigosamente, limpa e higie-
morde os lábios pedras. Seria uma brincadeira? nizada vemos pulular alardeadas
finos e joga com Garotos gostam de brincar com políticas públicas de repressão,
pedras. Há tantas pedras no meio controle e extermínio dos pobres.
raiva a pequena do caminho. Há tantos garotos no Estes tentam driblar as balas e os
pedra que trazia meio das pedras. Meu ônibus se- funcionários da Prefeitura.
entre os dedos gue pela Av. Rodrigues Alves en- “Nunca me esquecerei que no
garrafada. No meio do caminho meio do caminho tinha uma pe-
magros.” tinha um monte de carros. dra” e, também, um menino jo-
“Nunca me esquecerei desse gando pedras. Sobre a parte
acontecimento/na vida de mi- interditada da passarela da Pe-
nhas retinas tão fatigadas” (AN- rimetral, uma dezena de pesso-
DRADE, 2013). Os meninos na as vive. Todos negros, magros e
passarela embaixo do Elevado da miseráveis. Um amontoado de
68 Perimetral vivem a driblar. Não corpos “desbotados” (BAPTIS-
TA,2013). Quanto mais se fala (ou, mes, anormais ou delinquentes.
foge) deles, mas eles parecem Ou melhor, nos incomodamos
desaparecer. Aquarela da miséria com eles. Algo neles nos tencio-
tupiniquim carioca que insisti- na; faz ligar um sinal de advertên-
mos em preferir não encarar de cia; um arrepio de medo que vem
frente. A qualquer hora do dia a alimentar um perigoso clamor
andam de um lado para o outro punitivo. A sociedade os pari to-
da passarela com uma pequena dos os dias em escala industrial.
garrafa de cola rente ao nariz. Todos eles, definitivamente, não
Vivem entorpecidos, parece. E nos interessam. As fabricadas
como não se deixar entorpecer “histórias oficiais” tomam as pá-
numa realidade tão dura e cruel ginas dos jornais de grande cir-
como esta? Eles se entorpecem culação e silenciam sobre a vida
com cola barata de sapateiro. Ve- dos garotos que jogam pedras.
neno para suportar a “sentença Estes aparecerão, na “melhor”
de vida”. Temos medo dos garo- das hipóteses, nas sangrentas
tos entorpecidos perambulando páginas policiais. Quando eles
na rua entre nós; tão perigosa- morrem, como Macabéia, não
mente soltos, sem nada a perder, há choro nem vela. Muito menos
sem controles, sem amarras. Uma fita amarela. Os garotos feitos de
idosa no Largo do Machado, ao se pedra também choram. Também
referir a política de recolhimen- tem medo. No meio do caminho
to compulsório, nos disse: “pelo há uma pedra, alguns meninos e
menos estão fazendo alguma coi- o projeto do Porto Maravilha. No
sa”. Uma psicóloga, num cursinho meio do caminho há sempre algo
preparatório para o concurso do que escapa; uma pedra que se
Departamento Geral de Ações solta; um sussurro que quase não
Socioeducativas (DEGASE), dis- se ouve; uma efêmera faísca. Uma
se que viu no Programa da Cidi- flor-menino – travessa, brinca-
nha Campos que o recolhimento lhona, resistente, desconcertan-
“é bom sim”. Nós, classe média, te – nasce todos os dias entre as
nos entorpecemos com as dro- pedras. Como diz Carlos Drum-
gas da lucrativa indústria farma- mond de Andrade (2012, p. 14):
cêutica. Nos deixamos prender
em receituários de psiquiatras e
“Uma flor nasceu na rua! (...)
em síndromes produzidas. Pre-
sos estamos nas malhas do medo Uma flor ainda desbotada
cotidianamente fabricado. Entor- Ilude a polícia, rompe o asfalto.
pecidos pelo noticiário da gran-
de mídia. As pedras jogadas pelos Façam completo silêncio, parali-
garotos sequer arranham os car- sem os negócios, “Nunca me
ros que passam velozmente pela Garanto que uma flor nasceu”. esquecerei que no
Av. Rodrigues Alves. Jogam com
“Sua cor não se percebe. meio do caminho
raiva, com aparente ódio. Eles
cairão junto com os alicerces de Suas pétalas não se abrem.
tinha uma pedra”
cimento da Perimetral. Em 2016,
Seu nome não está nos livros.
e, também, um
nem o cimento, nem os meninos menino jogando
das pedras estarão por ali para É feia. Mas é realmente uma flor”.
contar história. Haverá outras pedras...”
pedras, outros meninos, outros
No meio do caminho tinha um
caminhos. Algo sempre escapa.
menino com uma pedra. Tinha um
Haverá faíscas no ar.
menino com uma pedra no meio
A “história” dos ninguéns dificil- do caminho. Jamais esquecerei
mente aparece. Não nos impor- que no meio do caminho tinha
tamos com os fabricados infa- uma pedra, um menino, faíscas e 69
uma flor resistente. Uma cigar-
ra canta na nascente primavera
que se engraça. Canta enquanto
escrevo e penso no menino no
meio do caminho com a pedra
nas mãos. Será que ele escuta a
cigarra? No meio do caminho ti-
nha um menino. Levo comigo as
faíscas daquele encontro.

Referências

ANDRADE, C. No meio do caminho.


Disponível em: < http://www.jor-
naldepoesia.jor.br/drumm2.html>
Acesso em abril de 2013.
____________ A flor e a náusea.
ANDRADE, C. A rosa do povo. São
Paulo: Cia. das letras, 2012.
BAPTISTA, L. A. A fábula do garoto
que quanto mais falava sumia sem
deixar vestígios: cidade, cotidiano e
poder. Disponível em: <http://www.
slab.uff.br/images/Aqruivos/tex-
tos_sti/Luis%20Antonio%20Baptis-
ta/texto94.pdf> Acesso em abril de
2013.
GALEANO, E. Entrevista com Eduar-
do Galeano. Disponível em: http://
w w w.pragmatismopolitico.com.
br/2012/07/entrevista-com-eduar-
do-galeano-sobre-rumos-do-plane-
ta.html> Acesso em abril de 2013.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio
de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

70
O “neodesenvolvimentismo”, as Alexandre Magalhães
Mestre e Doutor em
Olimpíadas e as remoções de Sociologia no IESP-UERJ, Pós-
doutorando em Antropologia
1

favelas no Rio de Janeiro Social no Museu Nacional/


UFRJ, e apoiador das lutas
contra as remoções e a
violência policial

Resumo:

Esse texto busca refletir sobre as interrelações entre o chamado


“neodesenvolvimentismo”, a preparação para os Jogos Olímpicos
e o processo de remoção de favelas levado a cabo no Rio de Ja-
neiro entre 2009 e 2016, buscando enfatizar os efeitos perversos
dessa combinação sobre a vida dos moradores destas localidades,
apontando brevemente para algumas linhas de fuga possíveis.

cotidiana. Nestas breves consi-


Introdução derações, penso, sobretudo, nas
transformações urbanas que al-
teraram o espaço físico e simbó-
Minha intenção nesse artigo é lico da cidade do Rio de Janeiro e,
apresentar uma breve análise da mais especificamente, a posição
conjuntura recente que não re- das favelas, tendo em conta os
produza a exaustiva e cansati- processos de remoção que signi-
va narrativa pautada apenas nos ficaram o deslocamento forçado
grandes “players” da política na- de aproximadamente 22 mil fa-
cional, notadamente os da insti- mílias entre 2009 e 2016.
tucionalidade ancorada na Praça
dos Três Poderes.
Para evitar uma avaliação centra- O “neodesenvolvimentismo”, as
da apenas nestes atores e insti- Olimpíadas e as remoções de
tuições, imaginei em traçar algu- favelas
mas linhas de continuidade entre
planos políticos muito diferentes
tendo em vista não os jogos de “Eu sou o patinho feio da lagoa.
cena dos de cima, mas, funda- E eles querem deixar isso aqui
mentalmente, os jogos de poder bonito para os novos moradores
efetivos que traçam as linhas de que virão”
força que atravessam a socieda-
de de ponta a ponta produzindo “Parece que estamos num pós-
os mais diversos efeitos (e, claro, guerra”
as linhas de fuga, as resistências
“Nós não somos invasores desta
possíveis também).
terra. Invasores são esses prédios,
É possível compreender diferen- é o Parque Olímpico2 ”
tes arranjos políticos nacionais
a partir de escalas locais, tendo
em vista as consequências con- Estas três frases, ditas por mora-
cretas que aqueles produzem em dores da Vila Autódromo (favela
dimensões infinitesimais da vida da Zona Oeste), resumem mui- 71
to bem parte da experiência dos delas forçada a ir para regiões nas
habitantes de favelas da cidade franjas da cidade.5
do Rio de Janeiro em conjuntura Todo o processo se constituiu a
recente. Elas apontam para uma partir do agenciamento de inú-
configuração que se constitui a meros mecanismos que não so-
partir das intervenções urbanas mente significaram a violação
que alteraram de maneira pro- de direitos destas pessoas, mas
funda e decisiva a organização do também produziram efeitos os
espaço da urbe carioca. Mais do mais nefastos em seu cotidiano,
que isso, expressam uma trans- que talvez as marque para o res-
formação que, ao invés de pro- to de suas vidas. Foram situações
mover o acesso à cidade, criou de violência física e simbólica,
cada vez mais bloqueios ao in- que vão desde a pressão cotidia-
tensificar o histórico processo de na para abandonar suas moradias
segregação socioespacial. E tudo com a ameaça de que, caso não
isso justificado pela realização o fizessem, seriam lançados à
dos Jogos Olímpicos de 2016, tal- própria sorte, até agressões pro-
vez, a nível local, um dos maiores movidas pela hoje militarizada
suportes para o que se passou a Guarda Municipal. Os primeiros
chamar nos últimos anos no Bra- a serem removidos receberam
sil de “neodesenvolvimentismo3 ”. indenizações tão irrisórias (algo
Isto é, as Olimpíadas seriam, por como 3500 reais) que os obri-
um lado, o coroamento do então garam a reconstruir suas vidas
processo de crescimento econô- em condições muito precárias.
mico do país e, por outro, a re- Foram lançados a própria sorte
denção do Rio de Janeiro quanto em áreas distantes (na periferia
ao seu recente passado de “aban- da periferia), com infraestrutura
dono”, como não cansaram de precária e, se já não fosse sufi-
dizer seus gestores naquele mo- ciente, submetidos a diferentes
mento. facetas de grupos criminosos, de
Contudo, como se observa em traficantes a paramilitares.6 Dife-
outros tantos projetos de “de- rentemente do discurso oficial,
senvolvimento” país afora, esta elas não melhoraram de vida, mas
intervenção que alterou de ma- pioraram.7 E muito.
“Mais do que isso, neira decisiva os fluxos e usos Não bastasse tudo isso, para
expressam uma de áreas inteiras da cidade não aqueles que resistiam, toda sorte
poderia deixar de apresentar sua de investida era promovida pelos
transformação faceta mais perversa. No caso do aparatos estatais, tudo em nome
que, ao invés de Rio de Janeiro, entre outras tan- do “progresso” e do “desenvol-
promover o acesso tas ações estatais nesse sentido, vimento”. Veja-se, por exemplo,
observou-se o intenso desloca- os sucessivos cortes no forneci-
à cidade, criou cada mento populacional provocado mento de serviços básicos como
vez mais bloqueios pelo programa de remoção de eletricidade, água e telefonia. Ou
ao intensificar o favelas elaborado e conduzido ainda a prática comum de “dei-
pela prefeitura da cidade, com o xar/fazer morrer” ao tornar a
histórico processo apoio material do governo fede- vida local inviável através das de-
de segregação ral através do conhecido Minha molições e suas sobras que, ao
socioespacial.” Casa, Minha Vida.4 Ainda que o permanecerem no terreno, tor-
acesso aos números oficiais seja nam-se inúmeros obstáculos que
dificultado pelas autoridades pú- levam ao limite as forças destes
blicas, a estimativa delas próprias indivíduos. Um cenário de extre-
é de que, aproximadamente, 22 mo sufocamento e asfixia.
mil famílias (quase 90 mil pesso-
as) foram retiradas de seus locais As remoções, a Lava Jato e a
72 de moradia e parte considerável cidade rifada
Há um tempo, indagaram-me sas privadas que, por sua vez, se
acerca da relação entre esses transformaram em grandes con-
processos de remoção, os inte- tribuidoras de campanha dos po-
resses econômicos envolvidos e líticos que promovem a remoção.
o financiamento de campanha. Para fechar com chave de ouro,
Alguns dias depois, tal configura- estas empresas são as mesmas
ção apareceria de forma explíci- que estão envolvidas no escânda-
ta. Uma grande emissora de TV, lo mencionado acima.
ligada a um dos líderes religio- Ainda que se possa (e deva) criti-
sos e políticos com cada vez mais car os interesses políticos espe-
proeminência no cenário políti- cíficos (afinal, o grupo midiático
co, produziu uma longa série de em questão conseguiu eleger o
reportagens em que denunciava novo prefeito da cidade em 2016)
a “lama” na qual o Rio de Janei- que motivaram a veiculação des-
ro havia sido lançado por certos ta reportagem, é interessante
políticos que governavam o esta- notar como ela apresenta, ainda
do e a capital há quase uma dé- que limitadamente, uma injunção
cada. Em uma dessas matérias é política que há anos vem, literal-
sugerido que a remoção da Vila mente, rifando a cidade do Rio de
Autódromo - para a construção Janeiro a interesses econômicos,
do Parque Olímpico – foi realiza- nacionais e internacionais. Nem
da para beneficiar as empreitei- que para isso seja necessário pas-
ras envolvidas no escândalo de sar, literalmente, por cima de vá-
desvios de recursos da Petrobrás, rias vidas.
que passou a conhecimento pú-
O que aos poucos vem sendo re-
blico através da chamada opera-
velado sobre os fios que conectam
ção “Lava Jato8”.
políticos e empresários, e como
Tal como alguns críticos ligados eles se materializam na vida con-
a movimentos sociais e grupos creta das cidades, aponta para
acadêmicos já haviam alertado três dimensões distintas, porém
há alguns anos, nessa matéria interconectadas, cujos efeitos se
afirma-se que a prefeitura prati- fazem sentir no cotidiano de cada
camente entregou gratuitamen- cidadão da cidade do Rio de Ja- “Primeiro,
te9 grandes extensões de terra às neiro.10 Primeiro, expressam uma
empreiteiras e incorporadoras, confluência sem igual de dife-
expressam uma
terras essas onde está localiza- rentes forças políticas e econô- confluência sem
da a Vila Autódromo. No caso do
Parque Olímpico, que será em
micas num arranjo de poder que igual de diferentes
organiza uma imensa máquina
grande parte desmontado após que, para manter a chamada “go- forças políticas e
os Jogos (o que não se efetivou vernabilidade”, não se furta a uti- econômicas num
até hoje), esse repasse represen-
ta nada menos que um milhão de
lizar de grandiosos esquemas de arranjo de poder
corrupção e de violência institu-
metros quadrados que poderão, cional. Segundo, como desdobra- que organiza uma
daqui a alguns anos, serem utili- mento dessa configuração, não imensa máquina
zados para a construção de pré- haveria uma oposição entre pri-
dios comerciais e habitacionais que, para manter
vado e público, duas dimensões
de classe média alta e alta. que se interpenetram de uma tal a chamada
A mesma matéria sugere ainda maneira a ponto de produzir uma “governabilidade”...”
uma associação direta entre re- simbiose que nos obriga a rever
moção e contribuição de cam- toda a grade de categorias que
panhas eleitorais. Faz isso ao utilizávamos até hoje, desafiando
afirmar que a prefeitura utiliza não somente pesquisadores, mas
dinheiro público para realizar a principalmente todo cidadão que
retirada dos moradores de uma busca construir outra sociedade,
área que será entregue a empre- outra cidade. Por fim, é possí- 72
vel perceber como as remoções abertas, lançar-se por entre elas,
se inserem num grande esque- ampliá-las e tensioná-las ao limi-
ma mafioso cuja continuidade te até que produzam a transfor-
só pode ser possível às custas do mação como um todo deste mo-
silenciamento das críticas e críti- delo segregacionista, desigual e
cos, ou pelo menos num grande violento.
esforço nesse sentido.11
Quando em 2013 milhares de
pessoas foram às ruas, um dos Referências
mais importantes questionamen-
tos que se observou foi, em parte,
justamente contra esse gigan-
tesco esquema de expropriação 1. Este texto é uma versão modifi-
cada e atualizada do artigo “Uma
dos bens comuns da cidade. Até
análise de conjuntura desde bai-
aquele momento, poucos ousa- xo: o que conecta as remoções
vam criticar um modelo de cida- de favelas, o neodesenvolvimen-
de que parecia ter levado à re- tismo e a operação ´Lava-Jato`”,
denção os seus moradores. Ainda publicado no Relatório do Ob-
que, à sombra dos megaeventos, servatório dos Países de Língua
tal modelo tivesse se constituído Oficial Portuguesa, v. 1, p. 5, 2015.
a partir de um consenso impos- 2. As duas últimas frases foram
to de cima para baixo, no qual a ditas no contexto da visita de
participação não passava de si- integrantes da ONU na Vila Au-
mulacros muito bem conduzidos, tódromo no dia 11 de dezem-
onde não se furtava em fazer uso bro de 2015. Ver: http://tv.r7.
com/record-play/rio-de-janei-
da força para garanti-lo, ao passo
ro/balanco-geral-rj/videos/
que áreas e instituições inteiras onu-visita-vila-autodromo-pa-
eram entregues a mãos privadas. ra-apurar-violacoes-de-direi-
O que se seguiu a este questio- tos-de-moradores-que-resis-
namento, como já é de conhe- tem-a-remocao-11122015
cimento geral, foi uma intensa 3. Sobre os significados e consequ-
repressão. Os poderes constitu- ências do “neodesenvolvimen-
ídos, ao invés de se abrirem, fe- tismo”, ver interessante matéria
charam-se ainda mais. Aposta- do jornal Brasil de Fato “Os pre-
ram na repressão generalizada. ços do neodesenvolvimentis-
mo” (www.brasildefato.com.br/
Afinal, os megaeventos, como um
node/13072).
dos últimos suspiros do “neode-
4. Sobre este processo, ver Maga-
senvolvimentismo”, precisavam
lhães, Alexandre. “Transforma-
ser realizados e os que ganham
“O que se com ele precisavam de garantias
ções no ´problema favela` e re-
atualização da remoção no Rio
seguiu a este de que não perderiam. de Janeiro”. Tese de Doutorado.
questionamento, Mas algo sobreviveu dessa heca- IESP-UERJ, 2013. Ver também o
dossiê “Megaeventos e Violações
tombe. Em 2015, em pleno débâ-
como já é de cle deste modelo (chamado aos dos Direitos Humanos no Rio de
conhecimento quatro cantos de “crise”), em to- Janeiro - 2015”, do Comitê Popu-
lar da Copa e Olimpíadas (aces-
geral, foi uma dos os níveis federativos, esse ar-
sível aqui: http://issuu.com/
ranjo político-econômico perdeu
intensa repressão.” parte de seus suportes (especial-
mantelli/docs/dossiecomite-
rio2015_issuu_01).
mente o material, afinal, a “crise”
5. Segundo a própria prefeitura, en-
cortou as fontes de dinheiro) e tre 2009 e o inicio de 2014, 20,3
suas entranhas podres passaram mil famílias foram removidas.
a conhecimento da população. Dessas, 9,3 mil estão em imóveis
Cabe agora a todos que buscam do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil
e lutam por uma cidade justa e recebem aluguel social e 6 mil
74 igual aproveitar essas fissuras foram indenizadas. Cf. “Mais de
20 mil famílias foram removidas der o tipo de engrenagem polí-
nos últimos quatro anos no Rio”, tico-institucional, mas também
Agência Brasil, 16 maio 2014. As econômico, capaz de usar a força
regiões de “saída” foram as Zo- quando as coisas parecem fugir
nas Sul, Zona Norte/subúrbio e ao controle. Tenho em mente,
Baixada de Jacarepaguá (bairros sobretudo, o processo de “res-
da Barra da Tijuca, Jacarepaguá tauração” pós-manifestações de
e Recreio dos Bandeirantes). A 2013, quando todo um aparato
região de “chegada” se concen- estatal de repressão foi acionado
trou basicamente na Zona Oeste, para “manter a ordem” e garantir
onde justamente foi construída a os negócios. No caso do Rio de
maioria dos conjuntos habitacio- Janeiro isso ficou evidenciado
nais neste ultimo período. no “processo dos 23”, em que um
6. Absolutamente todos os con- conjunto de vinte e três militan-
juntos habitacionais construí- tes foram condenados por terem
dos pela prefeitura nos últimos supostamente estimulado o uso
anos foram invadidos por gru- da violência naqueles protestos.
pos de criminosos. Ver: “Todos A nível nacional, observa-se o
os condomínios do Minha Casa, recrudescimento nesta questão
Minha Vida no Rio são alvos do a partir da chamada “lei antiter-
crime organizado” (http://extra. rorismo”, proposta que envolveu
globo.com/casos-de-policia/ o então governo federal e políti-
todos-os-condominios-do-mi- cos da oposição num amplo es-
nha-casa-minha-vida-no-rio- forço de criminalização das lutas
sao-alvos-do-crime-organiza- sociais.
do-15663214.html).
7. Ver, por exemplo, “Minha Casa,
Minha vida reproduz injustiça
social, conclui pesquisa”: http://
www.bbc.com/portuguese/no-
ticias/2015/10/151020_minha_
casa_minha_vida_pesquisa_
tg?ocid=socialflow_facebook
8. Ver: “Comunidade do RJ é des-
truída para dar lugar a obras
de empreiteiras da Lava Jato”,
http://noticias.r7.com/jornal-
da-record/videos/comunidade-
do-rj-e-destruida-para-dar-lu-
gar-a-obras-de-empreiteiras-da-
-lava-jato-24112015
9. Apesar do valor médio do metro
quadrado na região do Parque
Olímpico ser de mais de 5 mil re-
ais, a prefeitura repassou às em-
presas pela bagatela de 720 reais.
10. Em 2014, o jornal APublica pu-
blicou uma interessante repor-
tagem na qual aborda a ação
das empreiteiras nas obras para
a Copa do Mundo e os Jogos
Olímpicos, onde se visualiza a
formação de cartéis, superfatu-
ramento, favorecimentos e arti-
culações duvidosas com o poder
público. Ver: “Um jogo para pou-
cos” (http://www.brasildefato.
com.br/node/29038).
11. Quando falo em “esquema ma-
fioso”, busco, sobretudo, apreen- 75
Betina Sarue O legado Olímpico como laboratório
Candidata a doutora pelo pro-
grama de pós-graduação em
ciência política da Universida-
de política urbana:
de de São Paulo e mestre em
ciência política pelo mesmo
a economia política do projeto
departamento. É pesquisadora
do Centro de Estudos da Me- Porto Maravilha
trópole e bolsista pelo progra-
ma de excelência acadêmica da
CAPES.
Resumo:

O artigo explora a economia política do megaprojeto do Porto Ma-


ravilha no Rio de Janeiro em um contexto de preparação da cidade
para receber os Jogos Olímpicos de 2016. Aborda a relação entre
atores privados e públicos em um modelo de governança urbana
que estabelece relações insuladas, nas quais movimentações polí-
ticas são encaradas como riscos ao projeto, e com baixos incen-
tivos ao investimento social a partir de um arranjo orçamentário
dependente de flutuações do mercado, com um investimento pú-
blico de alto risco e baixa sustentabilidade. O artigo explora ainda
a concepção de modelos de governança inovadores como labora-
tórios de política urbana a partir da realização de megaeventos, e
traz uma comparação com o modelo de “governança contratual”
estabelecido pelo projeto olímpico de Londres.

o circuito de valorização, que


Introdução compreende a atratividade do
empreendimento para os princi-
pais atores empresariais envolvi-
O projeto Porto Maravilha no dos; e os arranjos institucionais
Rio de Janeiro e estabelecer re- que influenciam essas condições.
lações entre o modelo de finan- Apresenta, por fim, uma compa-
ciamento adotado na política ração com o arranjo britânico de-
desse grande projeto urbano, e o senvolvido para a realização dos
aprofundamento de um modelo Jogos Olímpicos de 2012 em Lon-
de desenvolvimento excludente, dres, argumentando que existem
que deixa de incluir ações pro- diversas semelhanças no modelo
positivas em resposta às deman- de governança contratual adota-
das locais da região, tais como do em ambos os países, a partir
acesso a infraestrutura urbana de um processo de aprendizado
básica e habitação social. Nes- de política pública que vai além
se sentido, é abordada a relação do trânsito de ideias e avança
entre atores privados e públicos também modelos de governança
na construção de um arranjo de e gestão do território.
parceria público-privada com
diversos aspectos inovadores ao Grandes projetos urbanos e
contexto nacional, e que devem megaeventos
ser compreendidos à luz de seus
impactos à participação social
e ao acesso a políticas públicas. Os grandes projetos urbanos são
Considera também as condições uma realidade no mundo, e re-
de investimento que se colocam centemente também no Brasil.
76 e o compartilhamento de riscos; Tratam de um tipo específico de
política urbana devido às suas vitalização de regiões portuárias
características inovadoras nas ao redor do mundo, contribuin-
relações entre capital privado e do com o mood da revitalização,
governo, através das parcerias e conformando uma comunidade
público-privadas que determi- de especialistas com referências
nam novos arranjos institucio- de projetos internacionais.
nais e financeiros. A atuação do No entanto, podemos dizer que
Estado está nessa visão centrada se a ideia de grande projeto ur-
tanto na viabilização de aportes bano atrelada ao Jogos veio do
financeiros, como no papel de “modelo Barcelona” no âmbito do
flexibilização de leis e regulações, planejamento urbano, em termos
determinando um espaço desre- de arranjo de governança urbana
gulado ou com regulações pró- o Porto Maravilha é diretamente
prias (Vainer, 2012). influenciado pelo arranjo britâ-
Alguns exemplos de intervenções nico, experimentado em Londres
que marcam o início dessa nova com a realização dos Jogos Olím-
forma de planejamento urbano picos de 2012.
são La Défense, em Paris, a área
portuária de Baltimore, em Nova
York, as Docklands de Londres, Megaeventos como laboratórios
ou as intervenções na cidade de modelos de governança urbana
de Barcelona, cujos consulto-
res possuem um papel relevante
na exportação dessa concepção O debate sobre os novos arranjos
para a América Latina e para o institucionais pautados a partir
Brasil, em especial para o Rio de do modelo londrino passa pelo
Janeiro. Essa gama de exemplos conceito de capitalismo regulató-
mostra que os grandes projetos rio (Levi-Faur, 2005), que denota
urbanos podem ou não estar vin- um processo de delegação ao se-
culados a megaeventos. No Rio a tor privado da implementação de
ideia de atrelar a revitalização de políticas públicas, sendo que o
sua zona portuária à realização Estado se restringiria às funções
de Jogos Olímpicos vem desde de regulação, na contramão do
os anos 1990 (Sarue, 2015). Em senso comum sobre processos de
1992 é criada a primeira delimi- liberalização que preveem uma
tação de uma Área Especial de redução do Estado em termos de
Interesse Urbanístico da Zona espaço de intervenção. A partir
Portuária, através de decreto da desse marco, Raco (2014) des-
prefeitura,1 no mesmo ano em que creve o processo de revitalização
são realizados os Jogos Olímpi- realizado no contexto dos Jogos “É a chegada ao
cos de Barcelona, que começam Olímpicos de Londres como um
a influenciar o modelo carioca modelo de governança contratu- Rio de Janeiro
com a chegada ao Rio de Janei- al, que compreende em especial, de uma ideia:
ro de um grupo de consultores a mitigação de riscos políticos
revitalizar sua área
catalães para participar da rea- dados pela organização de movi-
lização do plano estratégico da mentos de resistência ao projeto, portuária a partir
cidade, por solicitação do então descritos na literatura específica. da realização dos
prefeito Cesar Maia. (PMDB/PFL, No caso londrino o papel da polí-
1993 a 1996). É a chegada ao Rio tica é restringido a partir de uma
Jogos Olímpicos.”
de Janeiro de uma ideia: revitali- estrutura de “entrega de projeto”
zar sua área portuária a partir da que concentra processos decisó-
realização dos Jogos Olímpicos. rios em arenas superiores onde
Além dos catalães, uma série de decisões são fixadas como parte
seminários internacionais apre- de processos contratuais. O pro-
sentam casos de projetos de re- cesso de insulamento, portanto, 77
não apenas distancia o cidadão pulação. Veremos a seguir como
das decisões, como restringe a parte dessas condições são re-
sua atuação a partir de contra- produzidas pelo arranjo instituí-
tos que fixam planos e projetos do no projeto Porto Maravilha, e
a serem entregues a partir do em sua formulação e implemen-
melhor arranjo técnico e distan- tação associada aos Jogos Olím-
tes do debate político. Levi-Faur picos no Rio.
(2005) chama esse processo de
“custo de liberdade”, referindo-
se ao custo gerado pela transfe- As etapas de formulação da
rência de processos decisórios a política
termos técnicos e contratuais, no
marco do capitalismo regulató- A revitalização da zona portuária
rio. No caso dos Jogos Olímpicos, vem sendo alvo de projetos e de-
valendo para Londres e também bates desde pelo menos os anos
para o Porto Maravilha no Rio 1980 e ao longo das décadas de
de Janeiro, as questões políticas 1990 e 2000 diversos episódios
são mitigadas sendo localizadas marcam a delineação da política
como um evento ou um momento de revitalização, com diferentes
de quando houveram discussões níveis de centralidade da articu-
sobre a participação da cidade na lação local, da participação ou
concorrência para receber os Jo- indução do governo federal, e da
gos. Em ambos os casos as deci- articulação junto ao setor priva-
sões sobre investimentos são pré- do. Embora não cabe aqui reto-
-estabelecidas contratualmente, mar essa trajetória - que é ana-
deixando pouco espaço para o lisada por mim em Sarue (2015) -,
debate localizado. destaco a participação do setor
A governança contratual tem ain- privado nesse processo, que pas-
da um impacto significativo do sa a ser institucionalizada a par-
ponto de vista da capacidade re- tir da Manifestação de Interesse
gulatória do Estado. No caso do Público3 emitida por decreto da
Rio de Janeiro fica evidente que Prefeitura do Rio em 2006. Nesse
há um enfraquecimento da capa- momento, um grupo de trabalho
cidade de controle público sobre municipal foi criado para anali-
o resultado final da política, seja sar a única proposta de mode-
“Paralelamente, porque as decisões passam a ser lagem financeira para o projeto,
insuladas da própria prefeitu- apresentada pelo consórcio Rio
o modelo torna ra, seja pelo estabelecimento de Vila e Mar, formado inicialmente
mais difícil a relações nas quais as empresas pelas empresas Odebrecht, OAS,
identificação do passam a ser sócias de seus en- Carioca Engenharia e Andrade
tes reguladores. Esse modelo é Gutierrez, sendo que esta última
locus do poder bastante similar ao adotado no deixou de participar do consórcio
e da tomada de Reino Unido,2 como explicita- logo após a sua formação. Ao lon-
decisões, reduzindo do por Raco (2014), que delegou go do processo, representantes
toda a implementação do projeto das próprias empresas participa-
as possibilidades de olímpico a um consórcio privado vam das reuniões do GT relatório
responsividade da (CLM), a partir de uma parceria final foi publicado no Diário Ofi-
público-privada com a agência cial do Município em outubro de
população.” criada para coordenar os investi- 2007. Ainda que o setor privado
mentos públicos do megaevento empresarial tenha tido espaço na
(ODA). Paralelamente, o modelo formulação da política, a consul-
torna mais difícil a identificação ta à sociedade e aos moradores
do locus do poder e da tomada de através de mecanismos de parti-
decisões, reduzindo as possibili- cipação social é bastante baixa, e
78 dades de responsividade da po- as decisões se dão em espaços in-
ternos tanto da prefeitura como do plano de legado da cidade.
do governo federal, nos quais são
notavelmente ausentes proces-
O modelo atual e suas implicações
sos de consulta. Por fim, embora
o projeto tenha sido criado me-
para a governança urbana
diante aprovação de legislação
específica na Câmara Municipal O modelo implementado no
do Rio de Janeiro, a sua tramita- Porto Maravilha é centrado em
ção em caráter de urgência com três instrumentos. O primeiro
justificativa atrelada à realização é a criação da Operação Urba-
dos Jogos Olímpicos contribuiu na Consorciada (OUC) da Região
para que o processo de aprova- Portuária, que autoriza a emissão
ção se desse em apenas quatro de 4 milhões de metros quadra-
meses. dos de solos virtuais, chamados
Embora a proposta do proje- de CEPAC. Os Certificados de Po-
to fosse anterior à aprovação do tencial Adicional de Construção
Rio como cidade sede dos Jogos são comercializados pela Comis-
5
a conquista do megaevento foi são de Valores Mobiliários (CVM)
central para impulsionar a sua re- e garantem aos investidores in-
alização e angariar investimentos, corporadores o direito de cons-
alterando o plano de candidatura truir empreendimentos à cima
original da cidade. Os argumen- do padrão edilício definido para
tos a favor da instalação de equi- a região, e o recurso arrecadado
pamentos olímpicos na região pela sua comercialização repre-
portuária foram pautados pelo senta a principal fonte de finan-
discurso de abertura de novas ciamento do projeto.
fronteiras para o mercado imo- O segundo instrumento central
biliário a princípio sem o empre- para a operação do Porto Mara-
endimento de recursos do muni- vilha é a parceria público-privada
cípio. A Associação de Dirigentes (PPP) à qual esses recursos estão
de Empresas do Mercado Imobi- atrelados. A PPP do Porto Mara-
liário (ADEMI) publica na época vilha foi firmada entre a CDURP
estudo mostrando uma saturação e o Consórcio Porto Novo, com-
do mercado imobiliário na região posto pelas mesmas empresas do “Ainda que a
da Barra da Tijuca e uma deman- Consórcio Rio e Mar que partici- construção desses
da de mercado na região portu- param da formulação da política,
ária que poderia absorver as re-
equipamentos
e tem valor inicial global de R$
sidências produzidas e deixadas 7,609 bilhões e duração de quinze tenha mais adiante
como “herança” após a realização anos, renováveis por mais quin- sido transferida
do megaevento esportivo.4 Em ze. O Consórcio se torna assim
2010 foi anunciada a incorpora- responsável pelas obras de revi-
para a região do
ção da região no Projeto Olímpi- talização na região e, através de Parque Olímpico,
co da cidade e os investimentos uma concessão administrativa, o Porto Maravilha
para construção de no mínimo 7 pelo conjunto dos serviços urba-
mil unidades habitacionais, além nos deste território (saneamento, se manteve como
da Vila de Árbitros (cerca de 1200 coleta de lixo, iluminação, gestão principal ação do
residências), parte da Vila de Mí- do tráfego, entre outros). A cria- plano de legado da
dia, e do centro de credencia- ção da CDURP, como vimos, uma
mento de staff e voluntários e de empresa mista controlada pela cidade.”
distribuição de uniformes. Ainda Prefeitura, porém isolada da ad-
que a construção desses equipa- ministração direta produziu uma
mentos tenha mais adiante sido redução de riscos aos investido-
transferida para a região do Par- res privados. A parceria público-
que Olímpico, o Porto Maravilha -privada de infraestrutura e con-
se manteve como principal ação cessão administrativa de serviços 79
urbanos contribui, por sua vez, canismo responde a um desafio
com a produção de localização anterior do projeto, no qual se
para valorização imobiliária junto previa o adiantamento dos inves-
a outros investimentos na região, timentos a fim de que a venda de
como a modernização da matriz terrenos da União ao mercado
de mobilidade, os equipamentos fosse posterior ao processo de
culturais, em especial o Museu de valorização, de forma que o Esta-
Arte do Rio e o Museu do Ama- do capturasse para si a mais-valia
nhã, o projeto Morar Carioca, e fundiária produzida. Cabe ressal-
um pacote de incentivos fiscais e tar, no entanto, que a CEF, que
tributários, fechando um ciclo de arrematou o total de Cepacs por
investimento e retorno imobiliá- cerca de R$ 3,5 milhões se com-
rio. prometeu, nessa operação, a fi-
Por fim, o terceiro pilar funda- nanciar, ao longo de quinze anos,
mental para compreender o ar- o valor total da PPP – cerca de R$
ranjo está na criação de fundos 8 milhões, de modo que para que
de investimento imobiliário. Di- o FGTS possa recuperar o recur-
ferente das demais OUCs, o total so investido e lucrar com a opera-
de CEPACs emitidos foi arrema- ção, é necessário que o fundo de
tado pelo Caixa Econômica Fe- investimento consiga rentabilizar
deral (CEF) em um único leilão, suas operações a partir da valori-
através de investimento de re- zação dos terrenos e dos Cepacs
6
cursos do FGTS, em decisão que para pagar a PPP e então arreca-
atualmente é alvo de investiga- dar para o FGTS. Ou seja, trata-se
ção pela operação Lava-Jato, na de uma operação na qual o finan-
qual o ex-presidente da Câmara ciador público e os investidores
dos Deputados Eduardo Cunha é privados têm o objetivo comum
acusado de receber propinas das de promover a valorização fundi-
empresas do Consórcio Vila e Mar ária dos terrenos. Em muitos ca-
em troca da participação do ban- sos, quando são negociadas per-
co no financiamento da política. mutas, a CEF e as empreiteiras
Com essa operação foram cria- se tornam de fato sócias, em um
dos dois fundos de investimen- negócio, no qual ambas as partes
to imobiliário (FIIs), um da CEF e ganham com a valorização fundi-
outro da Cdurp, como forma de ária.
transferência de recursos entre Esse modelo de financiamento
as instituições. A CEF, através de tem implicações em termos de
seu FII, passou a ser detentora do resultados de políticas sociais
total de CEPACs, e a negociá-los atrelados ao projeto. Ou seja,
diretamente com o mercado, sem apesar de o Estado ser o grande
a necessidade de leilões e sem o financiador da política, ao vincu-
pré-estabelecimento de lotes re- lar o recurso à valorização fundi-
sidenciais ou comerciais. Passa, ária a sua capacidade de atrelar o
com isso, a ter controle sobre o investimento à produção de polí-
processo de especulação sobre ticas sociais se reduz.
os usos dos empreendimentos na Embora não seja o objetivo aqui
região. Ao mesmo tempo, adqui- abordar a implementação do ar-
riu o direito prioritário de compra ranjo é necessário destacar que
dos terrenos correspondentes ao existe nessa operação um proble-
uso de 60% dos CEPACs através ma evidente de fluxo de caixa as-
de uma operação denominada sociado ao timing de valorização
Prêmio por Opção de Compra.7 dos terrenos e que se tornou um
Ou seja, se retornarmos ao pro- problema real quando em julho
cesso histórico de formulação da de 2017 a concessionária Porto
80 política, veremos que esse me- Novo suspende pela primeira vez
os serviços na zona portuária do dor, cuja participação está atrela-
Rio devido a falta de pagamento, da aos investimentos no fundo de
uma vez que o Fundo de Investi- investimento imobiliário; e ain-
mento Imobiliário não teve renta- da um quarto se considerarmos
bilidade suficiente para transferir a implantação do VLT Carioca, o
os recursos à Cdurp para paga- setor de serviços de mobilidade.
mento da PPP. Ou seja, apenas Embora três setores estejam en-
um ano depois dos Jogos Olímpi- volvidos, não se trata necessaria-
cos fica evidente um importante mente de empresas diferentes:

Figura 1 Arranjo Institucional

Valor pelo qual o FIIPM adquire, em leilão de


lote único, o total de CEPAC da AEIU. Na CEF é administradora do FIIRP,
PMRJ / operação o FIIRP se compromete a oferecer controlado pela Cdurp.
SECPAR ao FIIPM prioridade de compra nos terrenos CEF é gestora do FIIPM com a
correspondentes ao uso de 60% dos CEPAC, consultoria imobiliária da Hines e
e a oferecer ao mercado o correspondente a investimento exclusivo do FGTS.
15%.

CDURP Ativos: CEPACS


Ativos: 3,5 bilhões de reais
+ terrenos FGTS
R$ 3,5 BI do FGTS.
Expectativa de retorno ao
investidor (FGTS): 6,5%
a.a. + IPCA
CEF CEF
FIIRP FIIPM

FIIPM oferece ao mercado


terrenos e CEPAC através de
R$ 8 BI negócios à vista, permutas
(físicas e financeiras) e
participação em SPE

Paga o consórcio PORTO NOVO


as contrapartidas da PPP que Valor total da operação (PPP +
Negocia diretamente com o
envolvem construção e serviços CDURP + 3% para investimento
mercado - setor imobiliário e
de infraestrutura urbana, em em patrimônio cultural) que o
incorporador.
modelo de concessão FIIPM se compromete a pagar ao
administrativa longo de 15 anos

CEF Caixa Econômica Federal


FIIRP Fundo de Investimento Imobiliário da Região Portuária
FIIPM Fundo de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha
CDURP Companhia de Desenvolvimento da Região Portuária
CEPAC Certificado de Potencial Adicional de Construção
AEIU Área Especial de Interesse Urbanístico – corresponde à área total da Operação Urbana Consorciada

Fonte: Sarue, 2015

gargalo do modelo, que transfere as mesmas empresas que parti-


serviços básicos de infraestrutura cipam do consórcio Porto Novo,
urbana – tradicionalmente pagos vencedor da PPP, além de atua-
pelo tesouro municipal – a um rem no setor de construção de
processo de arrecadação que tem infraestrutura e de provisão dos
fluxo flutuante, e é dependente da principais serviços urbanos, atu-
conjuntura econômica da cidade e am também no setor imobiliário e
do país e de seus impactos sobre o incorporador, e são responsáveis,
mercado imobiliário carioca. ainda, pela política de reurbani-
Em relação aos atores privados zação de favela a partir do Con-
envolvidos, é importante desta- sórcio Rio Faz, vencedor da licita-
car que são centrais ao projeto ção do programa Morar Carioca
empresas que atuam em ao me- na Providência.8
nos três setores da revitalização,
a saber: i) setor da construção ci-
vil; ii) setor de serviços urbanos, Considerações finais
iii) setor imobiliário e incorpora- 81
Esse artigo buscou evidenciar unbound: London’s politics and
a forma como o arranjo institu- the 2012 Olympic Games. Inter-
cional da política proposta pelo national Journal of Urban and
grande projeto urbano do Porto Regional Research, v. 38, n. 5, p.
1609-1624, 2014.
Maravilha se estrutura a partir
de um modelo de parceria públi- 3. Rio de Janeiro, decreto n.26.886
de 9/8/2006.
co-privada com impactos diretos
sobre o orçamento público mu- 4. Disponível em http://www.ade-
nicipal, bem como sobre o prin- mi.org.br/article.php3?id_arti-
cle=36946
cipal fundo de financiamento de
políticas infraestrutura e habi- 5. As implicações desse modelo são
analisadas por mim em Sarue
tação nas cidades, o FGTS. Além
(2016)
disso, define uma governança in-
6. A Caixa Econômica Federal é o
sulada, de caráter fechado e bai-
agente operador do FGTS, res-
xa participação social, apesar de
ponsável pelos recolhimentos
estabelecer espaços de diálogo e pela gestão administrativa e
institucionalizados junto ao setor operacional dos processos.
privado e a investidores, eviden- 7. O Prêmio por Opção de Compra
ciando o papel central assumido (POC) é o mecanismo que esta-
por um grupo de empresas tanto belece a prioridade na compra
na formulação como na imple- dos terrenos prioritários (cor-
mentação da política, que reduz respondentes a 60% do uso de
riscos ao mercado e produz um CEPAC) que serão negociados
modelo de financiamento com entre as autarquias da União e a
riscos ao investimento público. Prefeitura do Rio, compensando
Com isso, implementa uma po- a diferença entre o valor do Ce-
pac no leilão (545 reais) e o valor
lítica que ainda que conte com
que o FIIPM pagou efetivamen-
grandes volumes de recursos te. Trata-se de um instrumento
públicos concentrados em um fundamental para compreender
território urbano, oferece baixa a relação estabelecida para a
responsividade, e escassos in- participação do financiador fe-
vestimentos em políticas sociais deral na operação.
e habitacionais, e nesse sentido, 8. Além dessas, outras empresas do
deve ser analisado à luz da cri- setor imobiliário de porte nacio-
se econômica vigente. Constitui, nal e internacional, e as empre-
nesse sentido, um laboratório re- sas terceirizadas para serviços
levante para análise de políticas específicos dentro do arranjo da
mais amplas, e que se propõe a PPP são importantes para a aná-
lise. Um exemplo é a composição
experimentar modelos e arranjos
do Consórcio VLT Carioca, que
de serviços urbanos que devem além da Odebrecht Transport,
influenciar a política mais ampla, conta ainda com a Invepar - que
no restante da cidade. é também concessionária do
MetrôRio, controladora da ou-
torga para opção de compra da
Notas: Concessionária Rio Barra S.A.,
responsável também pelas obras
de Linha 4 do metro, e adminis-
tradora da Metrobarra S.A. para
1. Apresentados no Relatório Bási-
fornecimento de material e sis-
co da Área de Especial Interesse
temas -, junto com o Grupo CCR
Urbanístico da Zona Portuária
- que tem entre seus fundadores
do Rio de Janeiro, produzido pela
a Camargo Correa e a Andra-
Superintendência de Planos Lo-
de Gutierrez -, e ainda a Riopar
cais da Secretaria Municipal Ur-
que fornece também o sistema
banismo
de bilhetes únicos pré-carrega-
2. Ver também ALLEN, John; CO- dos para pagamento eletrôni-
82 CHRANE, Allan. The urban co de transporte (Bilhete Único
Rio), de mídia dentro de trens, e munitariodoporto.files.wordpress.
participa das empresas CCR Bar- com/2011/12/relatc3b3rio-morro-
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84
O medo como legado Veronica Freitas
Socióloga formada pela UFRJ,
dos grandes eventos atualmente cursando douto-
rado na Universidade de São
Paulo no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia
(PPGS-USP). Último trabalho
como assessora da Vereadora
Marielle Franco, assassinada
no contexto genocida que im-
Resumo: pera no Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro foi palco de uma sequência de grandes eventos


entre 2007 e 2016, processo desenvolvido pelo pacto da coaliza-
ção de poder do país, especificamente entre o Partido dos Tra-
balhadores e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
O período foi acompanhado por profundas mudanças da gestão
urbana da cidade, envolvendo um recrudescimento dos instru-
mentos de punição e violência estatal. Além da intensa arbitra-
riedade policial e crescente militarização, ocorreu a criação de
legislações nacionais que permitem a incidência estatal sobre os
repertórios de ação dos movimentos sociais. É o caso da Lei An-
titerror (Lei nº 13.260/2016) e da Lei de Organizações Criminosas
(Lei nº 12.850/2013). Por meio de revisão bibliográfica, informa-
ções veiculadas nos meios de comunicação e análise legislativa,
o presente artigo vem contribuir com a leitura dessas aberturas
institucionais dos mecanismos de repressão dos últimos anos,
em especial sobre a ação política.

nas instituições de privação de


Introdução liberdade, sobre trabalhadores
informais e sobre a população em
situação de rua, pode ser obser-
O Rio de Janeiro foi palco de uma vada no período a criação de ins-
sequência de grandes eventos trumentos de ampliação do Es-
entre 2007 e 2016, permeados tado Penal sobre os movimentos
por um pacto de poder entre o sociais.
Partido dos Trabalhadores (PT),
em âmbito federal, e o Partido do Violência de Estado: o preço dos
Movimento Democrático Brasi- megaeventos
leiro (PMDB), na gestão local. O
processo foi acompanhado por
profundas intervenções urbanas Desde 2007, a cidade do Rio de
na cidade, envolvendo um recru- Janeiro sediou uma sequência de
descimento dos instrumentos de grandes eventos. O anúncio da
punição e violência estatal. realização dos Jogos Pan-Ameri-
Nesse bojo, este artigo vem con- canos ocorreu antes da conquis-
tribuir com a análise das abertu- ta do Governo Federal pelo PT,
ras institucionais dos mecanis- em 2002. No entanto, a iniciati-
mos de repressão dos últimos va foi incorporada pelas gestões
anos, em especial sobre a ação seguintes, sendo a execução dos
política. Além do uso despropor- Jogos em 2007 e todos os grandes
cional de violência estatal nas eventos posteriores realizados
sob a aliança PT-PMDB:
85
áreas populares, nos protestos,
EVENTO DATA PODER MUNICIPAL PODER ESTADUAL PODER FEDERAL
Anúncio dos Jogos 24/08/02 Cesar Maia (DEM) Benedita da Silva (PT) Fernando Henrique
Pan-Americanos Cardoso (PSDB)

Jogos Pan-Americanos 07/2007 Cesar Maia (DEM) Cabral (PMDB) Lula (PT)

Anúncio da
30/10/07 Cesar Maia (DEM) Cabral (PMDB) Lula (PT)
Copa do Mundo

Anúncio das Eduardo Paes


Olimpíadas
02/10/09 Cabral (PMDB) Lula (PT)
(PMDB)

6/2012 Eduardo Paes


Rio + 20 Cabral (PMDB) Dilma Rousseff (PT)
(PMDB)

Jornada Mundial da Juventude 7/2013 Eduardo Paes Cabral (PMDB) Dilma Rousseff (PT)
(PMDB)

Copa do Mundo 6-7/2014 Eduardo Paes Pezão (PMDB) Dilma Rousseff (PT)
(PMDB)

Jogos Olímpicos 8/2016 Eduardo Paes Pezão (PMDB) Dilma Rousseff (PT)
(PMDB)
Tabela realizada a partir dos dados da imprensa (O Globo)

Ao longo desse período ocorre- entregues 27 projetos de legado,


ram relevantes mudanças locais parte dos quais sem relação com
com a justificativa dos megae- as Olimpíadas, que serviram ape-
ventos. Destaca-se a intensa re- nas como “desculpa” para a cons-
lação estatal com a especulação trução desses empreendimentos”
imobiliária e com as empreiteiras (BRASIL, Relatório 2015 da CCAI,
na execução das obras. Segundo p. 16). Paes teria afirmado que es-
relatório do Comitê Popular Rio timava os gastos com os grandes
Copa e Olimpíadas, para a prepa- eventos em R$ 38,67 bilhões, dos
ração dos dois grandes eventos quais 57% de origem privada:
foram removidas cerca de 16.700
pessoas.1 A violação do direito à
Ele observou que os gran-
moradia em larga escala repre-
des eventos não podem ser
sentou uma expressiva forma de
pensados como meros even-
imposição violenta do Estado so-
tos esportivos, porque des-
bre a população.
se modo não seria útil rea-
Igualmente relevante foi o grande lizá-los. Tratam-se, em sua
aporte de recursos públicos na visão, de movimentações
preparação dos eventos, em as- geopolíticas, que fazem com
sociação duvidosa com emprei- que os países que os rea-
teiras. É o caso das reformas do lizam possam passar uma
Maracanã, primeiro para o Pan- imagem diferente do senso
-Americano e logo depois para comum. (BRASIL, Relatório
a Copa do Mundo, totalizando 2015 da CCAI, p. 54)
mais de R$ 1 bilhão investidos.2 No
mesmo sentido ocorreram novas
formas de apropriação privada A intensificação do aparato penal
dos bens comuns, como a criação e repressivo acompanhou o ritmo
de um território sob Parceria Pú- acelerado das mudanças. Afinal,
blico Privada, o Porto Maravilha, em uma sociedade com uma his-
como um “Projeto Olímpico”. tória de forte desigualdade social,
O Prefeito Eduardo Paes, gestor marcada pelo racismo institucio-
durante a maioria dos grandes nal, tamanha concentração de in-
eventos, fez declarações a res- tervenções urbanas às custas de
peito da utilidade dos mesmos recursos públicos, impactando
para legitimar medidas visadas grandes contingentes populacio-
pelo poder público e seus aliados. nais, necessita da sua imposição
Segundo relatório da Comissão pela força. Esse fator convive com
Mista de Controle das Ativida- a mencionada visão dos grandes
des de Inteligência (CCAI), o re- eventos como uma “oportunida-
presentante em audiência sobre de política” (TARROW, 1999) para
a realização dos grandes even- a viabilização de medidas visadas
86 tos “observou que estão sendo pela coalizão de poder.
Os Jogos Pan-Americanos foram XX Rosa Luxemburgo já sinaliza-
marcados pela violência policial. va como a militarização constitui
Naquele ano houve a invasão do um fator indispensável do capita-
Complexo do Alemão e às véspe- lismo:
ras do evento ocorreu uma ope-
ração na qual a polícia registrou
Mas isso adquire outra fei-
19 mortes e 13 pessoas feridas.3 O
ção do ponto de vista da
ano de 2007 foi o de maior ocor-
classe capitalista. Hoje, para
rência de autos de resistência da
ela, o militarismo tornou-se
história do estado, totalizando
indispensável de três ma-
1.330 mortos pela polícia, segun-
neiras: em primeiro lugar,
do dados do Instituto de Segu-
como meio de luta para os
rança Pública do Rio de Janeiro.
interesses concorrentes
Os anos seguintes foram de in-
“nacionais” contra outros
tensa violência estatal e sofistica-
grupos nacionais; em segun-
ção da repressão, como a milita-
do, como o tipo de investi-
rização do cotidiano por meio das
mento mais importante tan-
Unidades de Polícia Pacificadora
to para o capital financeiro
(UPPs) concentradas nas áreas
quanto industrial; e, em ter-
valorizadas da cidade. Com início
ceiro, como instrumento de
em dezembro de 2008, houve a
dominação interna de classe
criação de 38 UPPs até 2014, em
diante da população traba-
264 territórios.4 Em paralelo, nas
lhadora - todos esses sendo
regiões periféricas predomina-
interesses que, em si, nada
ram as milícias, com anuência de
têm em comum com o de-
parlamentares e gestores. Nesse
senvolvimento da economia
contexto, a hipermilitarização do
mundial capitalista. (...) O
Rio de Janeiro se aprofundou.
militarismo também trans-
Para a preparação dos eventos, formou-se de motor do de-
ocorreram também treinamentos senvolvimento capitalista
específicos da polícia, com a in- em uma doença capitalista.
tensificação do aparato punitivo (LUXEMBURGO, 2011, p. 34)
em consonância com uma lógi-
ca global de militarização e con-
trole. É o caso da participação
do BOPE em outubro de 2012 no O controle da ação política
Urban Shield, treinamento criado
nos Estados Unidos após os aten-
tados do 11 de setembro de 2001,
5
O legado da violência estatal está
além de intercâmbios com a polí- marcado nos corpos e na memó-
cia francesa.6 ria de milhares de pessoas no Rio
de Janeiro. Além disso, é possível
Essa internacionalização de me- verificar a sua força para a am-
canismos punitivos, cuja Lei An- pliação da ação punitiva em es-
titerror é também fruto, se insere cala nacional. Se a arbitrariedade
na lógica internacional do poder das forças da ordem já é uma re-
bélico e da repressão como um alidade secular para a população
dos motores do capitalismo. Em negra e pobre do país, agravada
um contexto historicamente de- pelo hiperencarceramento dos
sigual como o Rio de Janeiro, as últimos anos e os assassinatos
consequências de ampliação dos pela polícia, destaca-se a criação
órgãos de repressão apresentam de leis que incidem sobre os re-
um caráter explosivo, com o as- pertórios de ação dos movimen-
sassinato sistemático da popula- tos sociais.
ção negra da cidade. Vale desta-
A criação de novas legislações 87
car que desde o início do século
foi justificada pela realização dos como contra pessoas em situação
grandes eventos no Brasil, como de rua e trabalhadores informais.
também, no caso da Lei Antiter- Além da repressão direta às mobi-
ror, perpassou a necessidade da lizações em 2013, com amplo uso
repressão declarada pelos de- dos armamentos menos letais,
tentores do poder durante os o parâmetro do tratamento pe-
grandes protestos de 2013. Os nal contra manifestantes se ele-
dois processos, afinal, não estão vou nos momentos posteriores
desconectados. Além da questão à eclosão dos grandes protestos.
das passagens, muitas das pau- É o caso da Lei de Organizações
tas ecoadas em 2013 relaciona- Criminosas, Lei nº 12.850/2013,
vam-se com os grandes eventos, publicada no dia 02 de agosto de
acompanhadas por uma crescen- 2013 e imediatamente associada
te adesão popular em solidarie- às mobilizações. Assim, na ocupa-
dade aos manifestantes diante da ção da Câmara Municipal do Rio
repressão. Por sua vez, a violência de Janeiro, em outubro de 2013,
policial nos protestos se vinculou cerca de 190 manifestantes foram
à disseminação dos armamentos detidos, 84 presos e 70 indiciados
menos letais, que compuseram o pela referida legislação (RIBAS;
processo de “preparação” para os OLIVEIRA; HAMDAN, 2017).
jogos esportivos.
De iniciativa da Senadora Serys
Em dezembro de 2008 foi vota- Slhessarenko (PT), apresentada
do o Projeto de Lei (PL) nº 1957, como PL em 2006, a Lei de Or-
do Deputado Estadual Paulo ganizações Criminosas se reve-
Melo (PMDB), tornando-se lei em lou como uma atualização dos
2009, com propósito de definir “o mecanismos de controle, inclu-
conceito de armamento não-le- sive no que tange a “colaboração
tal e o seu uso no estado do Rio premiada”, a “ação controlada” e a
de Janeiro”. O projeto, proposto “infiltração de agentes”. Cada um
entre a realização dos Jogos Pan- desses pontos são capítulos da
-Americanos e a Copa do Mundo, legislação, com a previsão de in-
previa que essas armas seriam filtração de agentes pelo prazo de
destinadas a eventos esportivos e até seis meses, com eventuais re-
eventos musicais ou artísticos de novações desde que comprovada
grande aglomeração (Art. 1º, I e II, sua necessidade (§ 3o, art. 10, Lei
PL nº 1957/2008). nº 12.850/13).
Nos anos seguintes ocorreu a na- Cabe assinalar que a proposta su-
cionalização do tema. Por meio primia a infiltração de agentes,
da Portaria Interministerial nº considerando “inconcebível que
4226, de 2010, a União indicava o Estado-Administração, regido
que cada agente de segurança que é pelos princípios da legalida-
deveria portar pelo menos duas de e da moralidade (art. 37, caput,
armas “não letais”, ficando a re- da CF), admita e determine que
gulação do uso a cargo dos go- seus membros (agentes policiais)
vernos estaduais, especificamen- pratiquem, como co-autores ou
te das Polícias Militares. Em 2014 partícipes, atos criminosos” (jus-
é publicada a Lei nº 13.060, com tificativa do PLS 150/2006, p. 13).
objetivo de “disciplinar o uso dos No debate parlamentar, entre-
instrumentos de menor potencial tanto, o tema aparece como um
ofensivo pelos agentes de segu- dos elementos fundamentais da
rança pública”. Na prática esses proposta, restando o texto com
armamentos seriam dissemina- essas previsões.
dos como instrumento da “inter-
A lei foi aprovada no ano dos
locução” entre os representantes
grandes protestos e utilizada
88 estatais e manifestantes, bem
contra manifestantes em 2013.
Foi também utilizada em julho ca, é importante alertar que nos
de 2016, em Porto Alegre, con- últimos anos imputações de ter-
tra estudantes secundaristas, um rorismo são encontradas inter-
jornalista e um cineasta diante de nacionalmente para enquadrar a
uma ocupação da Secretaria da ação de diferentes movimentos
Fazenda no Rio Grande do Sul por sociais, é o caso dos Mapuches no
melhorias na educação; e em 5 de Chile (JALIFF, 2013) e dos ecoter-
agosto de 2016, pelo Ministério roristas nos Estados Unidos (TE-
Público de Goiás para a prisão de RWINDT, 2012).
quatro integrantes do Movimen- A Lei Antiterror, de número
to dos Trabalhadores Rurais Sem 13.260/2016, foi proposta pelo
Terra (MST).7 Além do enquadra- governo de Dilma Rousseff em
mento penal, os mecanismos de 2015. É importante destacar que
controle apresentam um teor re- em 2013 estava em debate o PLS
pressivo com relação ao cotidiano nº 499/2013, cuja tramitação,
dos movimentos sociais. Afinal, além do argumento da Copa do
se uma ocupação de escola ou o Mundo e dos Jogos Olímpicos, foi
MST podem ser compreendidos relacionada com a suposta neces-
enquanto “organizações crimi- sidade de repressão da “violência”
nosas”, a Lei nº 12.850/13 permite na ação política. Nesse sentido,
aos agentes estatais a vigilância o relator do PLS nº 499/2013, o
ostensiva sobre ativistas, com Senador Romero Jucá (PMDB), no
uso de interceptação de comuni- dia 14 de junho de 2013, afirmava
cações e infiltração de agentes. 8
a respeito da iniciativa:
Por sua vez, a Lei Antiterror foi
aprovada passando por discus-
Nossa ideia não é inserir
sões legislativas que, de um lado,
nessa legislação os movi-
vinculavam a necessidade de sua
mentos sociais. Entendemos
adoção diante dos grandes even-
que protestos, greves, movi-
tos esportivos, e, de outro, pela
mentações, paralisações são
necessidade de reprimir os “ex-
algo que fazem parte da de-
cessos” nas manifestações, de-
mocracia. Agora, temos que
bate pautado ao longo de 2013. A
ter uma legislação que se-
pressão internacional e interna
pare o que é movimento so-
pela sua aprovação foi intensa,
cial e reivindicação, do que é
fato associado com a necessida-
violência, sequestro, roubo,
de da Lei Antiterror para sediar
atentado, explosão e morte.
as Olimpíadas no país (FREITAS,
2017).
Ressalta-se que o debate jurídico O mesmo Senador, no dia da
sobre o terrorismo começou no morte do cinegrafista Santiago
século XIX em países europeus Andrade, atingido por um rojão
e na ditadura de Vargas no Bra- em uma manifestação no Rio de
sil. Desde então, houve diversos Janeiro, colocou o projeto para
ciclos de renovação do rótulo do ser votado com urgência.9
terrorista, sendo o atual um ciclo A tipificação do terrorismo, além
sob hegemonia norte-americana da reedição de um novo “inimigo
a partir dos atentados do 11 de se- social”, se destaca pelo incremen-
tembro de 2001 (FREITAS, 2017). to punitivo. A Lei nº 13.260/2016
Ao longo de mais de um sécu- prevê prisão de 12 a 30 anos para
lo de legislações que abordam o atos “quando cometidos com a
terrorismo, o sentido sistemático finalidade de provocar terror
é o de crime político. Apesar do social ou generalizado, expon-
caso atual visar a ação de grupos do a perigo pessoa, patrimônio,
religiosos, que é também políti- a paz pública ou a incolumida- 89
de pública” (art. 2º, caput, Lei nº do antiterrorismo consolidaram
13.260/2016). Essa pena é maior historicamente possibilidades de
do que a previsão para estupro ação penal sobre movimentos so-
ou homicídio e se baseia em uma ciais, diminuindo o espaço para a
definição de caráter arbitrário, expressão das demandas popula-
deixando a cargo do operador ju- res. A Lei nº 13.260/2016 permite,
rídico a definição do que seria o dessa forma, a possibilidade de
“terror social”. enquadrar ativistas como crimi-
A intensa punitividade se apre- nosos e lhes impor penas maiores
senta como um fenômeno con- do que crimes contra a vida no
temporâneo do capitalismo, país.
processo que Waquant (2001) Entre os artigos que definem o
denomina como “penalidades que é considerado terrorismo,
neoliberais”, mas se agrava ten- ressalta-se um conjunto de ações
do em vista o contexto nacional que compõem o repertório de
de séculos de escravidão e dois ação dos movimentos sociais:
processos ditatoriais ao longo da
recente república. O uso há mais
Art. 2º - § 1o São atos de ter-
de um século de Legislações An-
rorismo:
titerror, renovado pelo ciclo ini-
ciado em 2001, coloca-se como I - usar ou ameaçar usar,
mais uma janela para o aumento transportar, guardar, portar
da repressão estatal. ou trazer consigo explosi-
vos, gases tóxicos, venenos,
Nesse sentido, Fragoso (1981)
conteúdos biológicos, quí-
ao analisar o uso do terrorismo
micos, nucleares ou outros
historicamente afirma que os
meios capazes de causar da-
governos violam repetidamen-
nos ou promover destruição
te a Constituição, “com incrimi-
em massa; (...)
nações vagas e indeterminadas
(definindo a conduta delituosa, IV - sabotar o funciona-
inclusive, através da expressão mento ou apoderar-se, com
“ato de terrorismo”) e restringin- violência, grave ameaça a
do, além de todo limite tolerável pessoa ou servindo-se de
o direito de defesa, e a liberdade mecanismos cibernéticos,
individual” (FRAGOSO, 1981, p. do controle total ou parcial,
126). A possibilidade de interven- ainda que de modo tempo-
ção nas formas de ação política se rário, de meio de comuni-
apresenta de modo generalizado cação ou de transporte, de
na utilização do terrorismo. Della portos, aeroportos, estações
Porta (1995) ressalta a manipula- ferroviárias ou rodoviárias,
ção da categoria diante de ações hospitais, casas de saúde,
violentas de movimentos sociais escolas, estádios esporti-
na década de 1960 e 1970 em pa- vos, instalações públicas ou
íses europeus, especialmente locais onde funcionem ser-
Itália e Alemanha, uma vez que viços públicos essenciais,
“identificados como “terroristas” instalações de geração ou
ou “simpatizantes do terrorismo”, transmissão de energia, ins-
os ativistas radicais tornaram-se talações militares, instala-
bodes expiatórios. Tanto o gover- ções de exploração, refino e
no como a oposição parlamentar processamento de petróleo
definiram a maioria dos protes- e gás e instituições bancá-
tos como “desordem” perigosa” rias e sua rede de atendi-
(DELLA PORTA, 1995, p. 70). mento (Lei nº 13.260/2016).
No mesmo sentido, Baratta
90 (2002) afirma que as experiências A referida legislação ainda não
foi utilizada contra movimentos nacional, e especificamente ca-
sociais, no entanto, permite aos rioca, de intensa desigualdade e
operadores do direito a sua uti- violência contra os mais pobres
lização e já é manipulada como aprofundou a hipermilitarização
elemento discursivo pelos agen- da cidade.
tes policiais (FREITAS, 2017). Além Os jogos acabaram, bem como o
disso, já suscitou outras tentati- pacto de poder que tornou esse
va de ampliar a possibilidade de período possível. Após longos
ação estatal sobre a ação política. anos de aliança, o PMDB rompeu
É o caso do PL nº 9604/2018, do com o PT e apostou no impea-
Dep. Federal Jerônimo Goersen chment presidencial, mudando
(Partido Progressista), com ob- até de nome para melhorar sua
jetivo de aprovar a ocupação de aparência, retirando o “Partido”
imóveis urbanos ou rurais como da sigla. Nesse bojo, na mesma
terrorismo, repertório utiliza- velocidade em que as páginas
do por atores como o MST e o policiais eram preenchidas por
MTST. A iniciativa viria em alte- nomes da gestão carioca e flumi-
ração ao artigo 2º, § 2º, da Lei nº nense, a crise econômica e social
13.260/2016, que dispunha sobre se estabeleceu. Ao mesmo tempo
a exceção da lei antiterror para configurou-se um quadro em que
movimentos sociais. Ressalta-se após tantos investimentos em se-
que esse parágrafo foi apresenta- gurança a cidade vive com uma
do pela Presidência da República massa de profissionais da repres-
no sentido de resguardar a ação são estatal, com o seu aparato
política, deixando a cargo do bélico de última geração. Isso em
operador do direito, afinal, clas- um ambiente de crescimento do
sificar o que seriam ações vistas desemprego e da miséria inten-
como “legítimas” dos movimen- sifica um clima de medo entre a
tos sociais. população.
Após os tempos maquiados ilus-
trados nos jornais, com os gran-
Conclusão diosos Jogos Olímpicos como
encerramento, a crise está esta-
belecida. O governo, entre outras
A intensificação do aparato puni- dificuldades, foi decretado como
tivo no Rio de Janeiro revela uma incapaz de gerir a segurança pú-
concepção de gestão de violência blica, que se encontra sob In-
contra a maioria da população tervenção Federal pelo governo
para garantir privilégios e a cir- federal golpista desde fevereiro
culação de mercadorias. De outro de 2018. Nesse contexto, Mariel-
lado, também pode ser interpre- le Franco foi uma das vítimas da
tada como um descontrole com violência que permeia o cotidia-
relação às consequências sociais no da cidade, em março de 2018.
das políticas implementadas nes- Executada como milhares de vi-
sa lógica elitista de governo. das negras, que são ceifadas no
Os grandes eventos, afinal, se decorrer dessa lógica mortal de
mostraram como oportunidades poder.
para os gestores, no sentido de
criar justificativas para adoção de
políticas em disputa. Esse pro- Notas:
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CAOS E LUTAS: Bárbara Dias

O LEGADO DOS MEGAEVENTOS Fotoguerrilha

NA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO PELO COLETIVO
FOTOGUERRILHA
Nos meses que antecederam as DAE pudesse ser privatizada.
Olimpíadas Rio 2016, uma sé- No calor dessas lutas, nodo nós
rie de demandas sociais estavam do coletivo Fotoguerrilha estive-
sendo exigidas nas ruas da “cida- mos de perto documentando às
de olímpica”. O ano começou com lutas, desde a greve às ocupações
uma forte greve dos trabalhado- estudantis. Documentamos tam-
res da Educação Estadual e Ocu- bém os atos contra as Olimpía-
pações estudantis secundaristas, das, e as Batalhas da Alerj. Nossa
que questionavam o Governo proposta é em um ensaio coleti-
prioridade para a educação que vo, mostrar imagens dessa luta
encontrava (e encontra-se) suca- da população do Rio de Janeiro,
teada, e sem reajuste de salários contrária a esse megaevento e de
dos professores há anos, em de- como ele catalisou lutas nos anos
trimento dos fartos investimen- de 2016 e início de 2017.
tos nas obras Olímpicas.
Apesar de acreditarmos que to-
Era o prelúdio do Rio de Caos e das as fotos possuem uma histó-
lutas que ira suceder após os jo- ria que traspassa uma linearidade
gos, passado o grande evento, o cronológica, preferimos separar
Estado do Rio de Janeiro alegan- por temas as nossos registros fo-
do evitar a falência completa, tográficos, da seguinte forma:
impôs medidas de austeridade a
população, principalmente aos
servidores Estaduais, que reagi-
ram com grandes atos realizados 1. Tema 1: Greve da rede Esta-
em frente a Assembleia Legislati- dual 2016 e Ocupações estu-
va do Rio de Janeiro, que ficaram dantis;
conhecidas como “Batalhas da 2. Tema 2: atos contra as Olim-
Alerj”. Apesar da aguerrida luta, píadas;
nada foi capaz de impedir um 3. Tema 3: Batalhas dos servido-
aumento na taxa previdenciária res estaduais na Alerj e atos
de 11% para 14% e a votação dos contra a privatização da CE-
deputados autorizando que a CE- DAE.

SOBRE O COLETIVO FOTOGUERRILHA


Começou como um coletivo em meados de 2014, durante as coberturas
das manifestações contra a Copa do Mundo e contra o aumento da tarifa
em São Paulo. Na época, o coletivo terminou e se converteu em uma
revista fotográfica, mas com o passar do tempo surgiu novamente a von-
tade de voltar com a coletividade só que em um formato mais profissional
e abrangente dentro do fotojornalismo e da fotografia autoral, até que em
2016, surge o Coletivo Autônomo Fotoguerrilha através de uma fusão do
Lab Megafonia junto ao coletivo de Professores Midiativistas no Rio de
Janeiro. Hoje, o coletivo se instaurou como mídia independente e ativista
autônoma na cobertura de temas relacionados às lutas sociais e direitos
humanos no Rio de Janeiro. 93
TEMA 1:

GREVE DA REDE ESTADUAL 2016 E OCUPAÇÕES ESTUDANTIS

Fotos: Bárbara Dias

Professora grevista protesta na porta da Secretaria de Estado de Educação pedindo reajuste


salarial, com salários congelados por dois anos, os profissionais da educação fizeram uma
grande greve no ano de 2016, que durou 4 meses.

94
Estudante secundarista em ato pela educação, protesta pedindo o boicote as olimpíadas.
Em 2016, os estudantes iniciaram uma onda de ocupações, pedindo melhores condições nas
escolas em apoio a greve dos professores.

95
Fotos: Kaue Pallone

Professores fazem cordão na linha de frente de manifestação da greve na educação (2016) no


centro do Rio de Janeiro.

96
Estudante secundarista segura cartolina com mensagem sobre a greve em frente à ALERJ

97
Fotos: Wagner Maia

Policiais agridem manifestantes na greve dos professores da rede estadual do estado do Rio de
Janeiro, próximo ao Palácio da Guanabara em Laranjeiras.

98
Ocupação dos estudantes na Secretaria de Estado de Educação(SEEDUC-RJ). Numa visita do
secretário de educação Vagner Victer a ocupação, ele é hostilizado por estudantes.

99
TEMA 2:

ATOS CONTRA AS OLIMPÍADAS

Fotos: Bárbara Dias

Após uma grande manifestação contra as Olimpíadas da Exclusão, manifestantes queimam


uma bandeira do Brasil na praça Afonso Pena na Tijuca. Após essa ação o batalhão de choque
dispersou violentamente os manifestantes com bombas de gás.

100
Homem protesta silenciosamente contra um cordão feito por policiais no estádio do
Maracanã, que impediu a população de se aproximar da festa de abertura nas Olimpíadas Rio
2016.

101
Fotos: Kaue Pallone

Manifestante segura mensagens contra as Olimpíadas em ato na Tijuca na abertura dos jogos.

102
Contra as Olimpíadas - Ato na Cinelândia contra as Olimpíadas no dia 17 de agosto.

103
Fotos: Wagner Maia

Ato dos estudantes contra as Olimpíadas de 2016 e excessivos gastos públicos para o evento.
Manifestantes estudantes protestam no bairro do Méier na Zona Norte do Rio.

104
Ato dos estudantes contra as Olimpíadas de 2016 e excessivos gastos com o evento no bairro
do Méier, após forte repressão, estudantes são presos e levados a Cidade da Polícia.

105
TEMA 3:

BATALHAS DOS SERVIDORES NA ALERJ E ATOS CONTRA A


PRIVATIZAÇÃO DA CEDAE

Fotos: Bárbara Dias

Após as Olimpíadas, durante a batalha da Alerj, quando os servidores estaduais lutaram contra
as medidas de austeridade do Governo Pezão, houve forte repressão contra os manifestantes,
com Batalhão de Choque, caveirão lançando jatos de água, bombas e tiros de bala de borracha
contra a população. Restou a resistência popular, na foto um homem revida uma bomba de
gás, lançando-a de volta contra a polícia.

106
Em fevereiro de 2017 passadas os jogos Olímpicos de 2016, o Rio de Janeiro afundando na crise
econômica, pede ajuda ao Governo Federal, que como contrapartida ao plano de recuperação
financeira do Estado exige como garantia a privatização da CEDAE. Enquanto a Alerj votava a
pauta, milhares de pessoas foram as ruas e impuseram uma forte resistência popular e foram
fortemente reprimidos pela polícia.

107
Fotos: Kaue Pallone

Manifestante enfrenta a tropa de choque durante ato de servidores públicos na ALERJ.

108
Bomba da PM explodindo em barricada durante ato dos servidores na ALERJ em 2016.

109
Fotos: Wagner Maia

Manifestações contra a Venda da CEDAE e do considerado ajuste fiscal do Governo Pezão


“Pacote de Maldade”. Manifestantes, Black Blocks protestam contra a polícia.

110
Manifestações contra a Venda da CEDAE e do considerado ajuste fiscal do Governo pezão
“Pacote de maldade”. Policiais são revidados por sua própria bomba, depois da mesma falhar
contra os manifestantes. Comandante da tropa é atingido no rosto.

111
Poliana Gonçalves
Monteiro
O urbanismo olímpico na cidade
Arquiteta e Urbanista (UFJF);
Mestra em Planejamento Ur-
patriarcal:
bano e Regional (IPPUR/UFRJ);
Pesquisadora do Laboratório
Moradia, Remoções e Violência
GPDU (EAU/UFF). Tem expe-
riência em Assessoria Técnica contra a Mulher no Rio de Janeiro
em comunidades ameaçadas
por remoção e Pesquisa e Ex-
tensão na áreas de Planeja-
mento Urbano, Habitação So- Resumo:
cial e Urbanização de Favelas
com foco nas Lutas protagoni- O patriarcado é o regime de dominação-exploração das mulheres
zadas por Mulheres. O presen- pelos homens e atravessa toda a sociedade, inclusive a produção
te artigo foi escrito em 2018, do espaço. Não há, em uma sociedade injusta, espaço cuja ocupa-
com insumos da minha disser- ção, distribuição e significação não seja desigual. A reflexão aqui
tação de mestrado defendida pretendida busca evidenciar o padrão territorial desigual no qual a
no IPPUR em 2015. violência contra a mulher se materializa, como essa seletividade é
estruturada e estruturante pelo/do regime de exploração-domina-
ção patriarcal e capitalista, e como o Urbanismo Olímpico empre-
endido sob a justificativa dos megaeventos esportivos intensificou
esse processo. Com esse objetivo, será destacado como a segrega-
ção urbana e a periferização da moradia confronta as mulheres na
Cidade Patriarcal, assim como as políticas públicas concebidas e
executadas sob a premissa do Machismo Institucional, que vulne-
rabilizam as mulheres e potencializam a violência de gênero.

“O processo de
segregação urbana Não é possível apreender a Com esse objetivo, será destaca-
verdadeira natureza da agressão do como a segregação urbana e
e periferização da sexual sem situá-la em seu a periferização da moradia con-
moradia confronta contexto sociopolítico mais fronta as mulheres na Cidade Pa-
as mulheres de amplo. Angela Davis, 2017. triarcal. Assim como as políticas
públicas concebidas e executa-
forma mais aguda, O patriarcado é o regime de do- das sob a premissa do Machismo
não somente minação-exploração das mulhe- Institucional que vulnerabilizam
as mulheres e potencializam a
pela ausência de res pelos homens, expressão do
violência de gênero, utilizando o
poder que autentica “uma estru-
infraestrutura tura de poder baseada tanto na cruzamento das informações so-
urbana básica e ideologia quanto na violência1 ”. bre a ocorrência de estupros na
cidade do Rio de Janeiro, a locali-
serviços essenciais, Não há, em uma sociedade injus-
zação dos conjuntos do Programa
ta, espaço cuja ocupação, distri-
como creches, buição e significação não seja de- Minha Casa Minha (PMCMV) e as
escolas, hospitais sigual. A reflexão aqui pretendida remoções empreendidas na ges-
busca evidenciar o padrão terri- tão de Eduardo Paes.
e transporte, torial desigual no qual a violência
mas também pela contra a mulher se materializa na
violência urbana.” cidade do Rio de Janeiro, como
A CIDADE PATRIARCAL
essa seletividade é estruturada e
estruturante pelo/do regime de
exploração-dominação patriarcal
e capitalista, e como o Urbanismo O processo de segregação urbana
Olímpico empreendido sob a jus- e periferização da moradia con-
tificativa dos megaeventos espor- fronta as mulheres de forma mais
112 tivos intensificou esse processo. aguda, não somente pela ausência
de infraestrutura urbana básica elemento do complexo regime de
e serviços essenciais, como cre- dominação-exploração.3
ches, escolas, hospitais e trans- A noção de “direito à cidade” tem
porte, mas também pela violência centralizado a crítica contempo-
urbana. A produção de habitação rânea à desigualdade de acesso à
de interesse social no marco do estrutura urbana, mas via de re-
Programa Minha Casa Minha Vida gra adota como base de sua críti-
(PMCMV), cuja inclinação merca- ca um sujeito abstrato, sem sexo,
dológica transferiu a prerrogativa sem cor e sem classe. Nesse sen-
da definição do projeto e da lo- tido, visto a complexidade que
calização dos empreendimentos envolve as desigualdades, qual
para a iniciativa privada, resultou seria o paradigma de efetivação
no deslocamento de significativo do direito à cidade para as mu-
contingente populacional para lheres?
regiões periféricas do Rio de Ja-
neiro. A remoção sistemática de
moradores de favelas e comuni-
dades informais no Rio de Janei- O MACHISMO INSTITUCIONAL DO
ro, devido à preparação da cidade URBANISMO OLÍMPICO
para sediar os megaeventos es-
portivos é outro fator relevante.
As remoções promovidas pela
As demandas para ampliar o
Prefeitura nesse período totali-
acesso das mulheres à cidade
zam 20.299 famílias.2
são dissimuladas pelo direcio-
A remoção implica na descone- namento da questão de gênero
xão com as antigas localidades e para o domínio do privado, ou
na ruptura dos laços de solida- para questões simplificadas e in-
riedade que possibilitavam o tra- dividualizadas. A complexidade
balho feminino diante da inefici- que envolve a definição das dire-
ência e escassez de instituições trizes de uma política pública se
públicas dedicadas ao cuidado relaciona com os múltiplos ob-
e ensino infantil. A insuficiência jetivos e interesses pretendidos.
dos serviços públicos dificulta o Assim, o caráter mercadológico
atendimento médico cotidiano assumido pelo PMCMV limita
e a manutenção das crianças na seu potencial de prover o “di-
escola, que são condicionantes reito à cidade 4 ”. Para além disso,
para o recebimento do Progra- um dado foi completamente in- “Nesse
ma Bolsa Família. Além disso, a visibilizado e desconsiderado na
localização periférica posiciona definição da lógica de localização sentido, visto a
as mulheres em localidades onde da política de habitação social: a complexidade
as oportunidades de trabalho são violência contra a mulher. A Pre- que envolve as
mais escassas e precarizadas, feitura do Rio de Janeiro por meio
reforçando a posição da mulher do Decreto nº 36.960/2013 defi- desigualdades, qual
enquanto exército industrial de niu a localização e as condições seria o paradigma
reserva. A mobilidade focada ex- adequadas para implantação dos
clusivamente no transporte pen-
de efetivação do
empreendimentos. A Área de Pla-
dular casa-trabalho dificulta o
5
nejamento 5 (AP5), localizada no direito à cidade
deslocamento no entorno da re- extremo oeste da cidade, foi con- para as mulheres?”
sidência. O medo das ruas pode vencionada como prioritária para
implicar na reclusão ao ambiente a implantação de conjuntos habi-
privado e não geração de renda tacionais. Nesse contexto, dos 96
autônoma. A violência contra a conjuntos habitacionais do PM-
mulher, portanto tem relação di- CMV,6 49% foram construídos na
reta com todas as estruturas de AP5, destes 53% são destinados à
poder existentes, sendo mais um habitação social. 113
CONJUNTOS DO PMCMV POR ÁREA DE PLANEJAMENTO E FAIXA DE RENDA
Área de 6 – 10
Zona 0 – 3 SM 3 – 6 SM
Planejamento SM

AP1 Centro --- 25,0% 50,0%

AP2 Sul --- --- ---

AP3 Norte 48,0% 8,8% 44,0%

AP4 Oeste 10,0% --- 75,0%

AP5 Oeste 53,0% 25,0% 17,0%


Fonte: MONTEIRO, 2015.

A evidente inadequação da loca- se concentram na Zona Oeste


ção massiva de habitação de in- (composta pela AP4 e AP5).10 Os
teresse social na Zona Oeste, em piores índices se concentram em
especial na AP5, se relaciona com 10 Circunscrições, que compre-
os índices de expansão urbana endem 48 dos 160 bairros da ci-
desordenada e descontínua, com dade, e juntos acumulam 55,5%
a insuficiência de infraestrutura das ocorrências de estupro da
e serviços, além do baixo Índice cidade. As 32ª, 35ª e 36ª CISPs,
7
de Desenvolvimento Social (IDS) compostas por bairros da Zona
dos bairros da região. Os dados Oeste do Rio de Janeiro, são as
sobre violência contra a mulher localidades que apresentam mais
produzidos pelo Instituto de Se- ocorrências do crime de estupro
gurança Pública8 (ISP), por outro em valores absolutos e figuram
“Em 2016, uma lado, evidenciam que violência, entre as CISPs com as taxas de
carência e vulnerabilidade ca- violência mais altas.11
mulher foi minham juntas. A pesquisa das O PMCMV implantou 37 empre-
estuprada na ocorrências de estupro na cida- endimentos para a faixa de renda
de do Rio de Janeiro, utilizando
Zona Oeste do as Circunscrições Integradas de
que compreende a habitação de
interesse social (HIS), 73% dos
Rio de Janeiro Segurança Pública (CISP)9 como conjuntos habitacionais foram
a cada 15 horas, unidades territoriais, contem- construídos nas áreas onde a
plou o período entre 2009 a violência contra a mulher é mais
dessas ocorrências 2016. Em 2009 começa a ser im- expressiva (valores absolutos),
48,3% ocorreram plementado o PMCMV e o Rio 77% das 30.211 unidades habi-
nos bairros onde de Janeiro é escolhido como ci- tacionais (U.H.) para habitação
dade-sede dos Jogos Olímpicos. de interesse social construídas
mais conjuntos Em 2016 se encerra o ciclo dos a partir de 2009 estão localiza-
habitacionais megaeventos com o Estado do das nas 3 CISPs (32ª, 35ª e 36ª)
foram construídos.” Rio de Janeiro decretando estado onde a violência contra a mulher
de calamidade pública, a suspen- é mais alarmante. Em 2016, uma
são do PMCMV e a consumação mulher foi estuprada na Zona
do golpe midiático-parlamentar Oeste do Rio de Janeiro a cada 15
no Brasil. horas, dessas ocorrências 48,3%
Nesse período foram contabili- ocorreram nos bairros onde mais
zados 4.023 ocorrências de es- conjuntos habitacionais foram
114 tupro, destas 57,9% dos casos construídos.
CONJUNTOS HABITACIONAIS DO PMCMV IMPLANTADOS POR CISP

CISP Nº Empreendi- Nº Unidades Porcentagem


mentos Habitacionais

6º 1 990 3,28%

17ª 1 496 1,64%

21ª 1 200 0,66%

31ª 1 240 0,79%

32ª 4 4620 15,29%


34ª 1 1182 3,92%

35ª 10 3967 13,13%

36ª 13 14216 47,06%


39ª 2 1820 6,02%

40ª 1 2240 7,42%

44ª 2 240 0,79%

TOTAL 37 30211

Fonte: elaborado pela autora.

Os espaços de constrangimen- de suas mediações sociais.14 O PM-


to, como a rua em determinados CMV resultou no aumento po-
locais e horários, ou espaços de pulacional em pelo menos 70 mil
confinamento, como as residên- pessoas na região. A 15conexão do
cias em periferias distantes, são Poder Público com a expansão do
a materialização das diferenças domínio das milícias não atenua
de acesso à cidade de homens e as graves consequências da au-
mulheres.12 O zoneamento urbano sência do Estado Democrático de
inerente ao planejamento urba- Direito como fator agravante da
16
no racionalista reafirma a divisão violência. Em entrevista, morador
sexual do trabalho ao fragmentar de conjunto habitacional no bair-
a cidade em áreas direcionadas a ro Paciência, afirmou que “todo
usos específicos. lugar tem um dono, cada um deve
ficar no seu quadrado e andar na
linha”. Essa afirmação mais do
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER COMO que uma percepção da realidade,
POLÍTICA DE CONTROLE se materializa de forma profunda
como estratégia de sobrevivên-
O patriarcado se baseia no con- cia. Nesses espaços portanto, o
trole e no medo, assim, a violên- pessoal não é político e como em
cia contra a mulher deriva de uma “briga de marido e mulher não se
organização social que privilegia mete a colher” a violência contra
o masculino.13 A compreensão de a mulher encontra terreno livre
como a violência sexual é viven- para se alastrar. Afinal, quem viria
ciada pelas mulheres na esfera prestar socorro? A polícia? A mi-
individual demanda a percepção lícia? Alguém?
115
MORADIA, REMOÇÕES E VOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Fonte: elaborado pela autora.

A progressiva ampliação das Por outro lado, embora o aumen-


ocorrências de estupro na Zona to das ocorrências não signifi-
Oeste e na Zona Norte até 2013 que necessariamente o aumento
pode ser influenciada pela di- da violência, a concentração de
minuição da subnotificação dos ocorrências de estupro na Zona
crimes, motivada pela ampliação Oeste e a curva ascendente dos
da rede especializada de aten- casos nessa região sugerem que
dimento à mulher, pelas campa- as grandes transformações pro-
nhas de conscientização do en- movidas sob a premissa do Ur-
frentamento à violência e pela banismo Olímpico podem ter in-
visibilização do debate feminista. fluenciado nesse índice.

116
As ocorrências de estupro regis- O centro da cidade, por seu pa-
tradas demonstram um padrão drão de uso e ocupação diferen-
territorial diferenciado nas ca- ciado, é a região onde mais foram
racterísticas dos crimes. A aná- notificados casos de estupro em
lise da cor das vítimas evidencia locais públicos. Na Zona Oeste,
o padrão de periferização racista por outro lado, a ocorrência de
da produção do espaço capita- estupros em transporte público
lista e patriarcal, pois enquanto representa 43,1% dos casos da ci-
na Zona Sul 39% das vítimas de dade, sendo que 42% dos crimes
estupro são mulheres negras ou ocorreram dentro de vans do
pardas, esse percentual atinge transporte alternativo. É impor-
57% na Zona Oeste. A segrega- tante lembrar que a circulação de
ção territorial também determi- vans foi proibida na Zona Sul pela
na especificidades em relação Prefeitura, ainda na gestão de
ao local do crime. Na Zona Oeste Eduardo Paes, após a repercussão
da cidade, o estupro é um crime do caso de uma turista americana
majoritariamente domiciliar, re- brutalmente estuprada dentro de
presentando 72% dos casos, en- uma van em 2013. No restante da
quanto no Centro, a ocorrência cidade as vans continuaram a cir-
desse tipo de crime em espaços cular apenas com a restrição ao
públicos representa a maioria dos uso de película nos vidros.17
casos cuja notificação informa o Mas na mesma Zona Oeste que
local de ocorrência. O sombrio apresenta graves índices de vio-
padrão de vitimização do estu- lência contra a mulher, re-exis-
pro que atinge mais crianças e tem coletivas feminista potentes.
adolescentes se verifica na Zona Mulheres que sustentam seu per-
Oeste, representando 58% dos tencimento na luta, que produ-
casos, enquanto na Zona Sul e zem cidade e sentidos. Mas ou-
principalmente no Centro, esse tra cidade com outros sentidos,
padrão não se evidencia. Por fim, regida por outra ética, fundada
o padrão da autoria dos crimes na soberania alimentar, na eco-
também é diferenciado. Na Zona nomia feminista comunitária, na
Oeste em 37,3% dos casos havia luta pela moradia popular e na
relação íntima ou familiar entre valorização de práticas e sabe-
a vítima e o autor do crime, en- res ancestrais.18 O sujeito coletivo
quanto no Centro, apenas em “mulheres” e suas estratégias que
20,5% esse tipo de relação foi re- estabeleceram uma nova ética
latada. política baseada no cuidado e nas
“Mas na mesma
CARACTERÍSTICA DOS ESTUPROS POR ZONA
Zona Oeste que
Zona* Cor* Local* Idade*
apresenta graves
Branco Negro Pardo Residên- Local Vul- Ado- Adul-
cia Público nerável les- to índices de violência
cente
contra a mulher,
Oeste 38% 12% 45% 72% 19% 52% 16% 24% re-existem
Norte 43% 13% 39% 66% 24% 50% 15% 30% coletivas feminista
Cen- 49% 13% 34% 42% 45% 31% 10% 53% potentes.”
tro
Sul 57% 11% 28% 55% 32% 37% 12% 44%

*A identificação de cor, local e idade não ocorre em todos os casos


notificados, por esse motivo o percentual não totaliza 100%.

Fonte: elaborado pela autora.


117
relações cotidianas, consolida- nas uma estimativa dos crimes
ram uma estratégia não somente ocorridos, reconhecidamente
de resistência mas de combate subestimada, devido dentre ou-
aos avanços nas constantes ten- tros fatores, à subnotificação dos
crimes. Assim, os dados oficiais
tativas de retirada de direitos.19 O
de refletem o processo social
processo de segregação espacial de notificação de crimes e não o
legitimado pelos megaeventos, universo dos crimes realmente
não foi interrompido. O Plano cometidos em determinado local
Estratégico do prefeito Marcelo (KAHN, 2005).
Crivella (2017-2020) coloca sob 11. A Comissão Econômica para a
ameaça de remoção mais de 14 América Latina e Caribe (CEPAL)
mil famílias com o argumento recomenda que a produção de
do risco geotécnico. Assim, cos- estatísticas de gênero seja pa-
turando novos sentidos e cons- dronizada com indicadores por
truindo cidade cotidianamente taxas. A distância temporal do
na Barrinha, em Araçatiba, em Rio Censo 2010, assim como as gran-
des transformação urbanas, im-
das Pedras,20 em Vargem Grande,
possibilitaram o cálculo das pro-
na Vila Autódromo, as mulheres jeções para a população feminina
seguem em luta. por CISP, o que permitiria o cál-
culo da taxa para todo o período.
No cálculo das taxas específicas
Notas: por 10 mil mulheres para o crime
estupro analisados para o ano de
2010, agregando as informações
de população por bairro do Cen-
1. SAFFIOTI, 2011, p.59. so, a Zona Oeste apresenta taxa
de 4,09, a Zona Sul taxa de 2,23,
2. FAULHABER; AZEVEDO, 2015. a Zona Norte figura com taxa de
3. DAVIS, 2017. 2,71, enquanto a Zona Centro se
4. MONTEIRO, 2015 destaca com taxa de 5,35. Esse
5. As Áreas de Planejamento são resultado, entretanto é influen-
uma divisão setorial definida ciado pela grande importância
pela Prefeitura do Rio de Janeiro da população flutuante e reduzi-
com fins administrativos. da população residente no Cen-
tro.
6. Conjuntos com Habite-se até fe-
vereiro de 2014, segundo dados 12. SILVA, 2007.
divulgados pela Secretaria Muni- 13. SAFFIOTI, 2011
cipal de Urbanismo (SMU). 14. DAVIS, 2017.
7. O IDS foi inspirado no Índice de 15. Considerando apenas 3 mora-
Desenvolvimento Humano (IDH), dores por U.H. e somente os
incluindo outras dimensões que empreendimentos destinados à
caracterizam o aspecto urbano. HIS. O contingente populacional
Para mais informações ver: CA- deslocado para a região deve ser
VALLIERI; LOPES, 2008. muito superior considerando os
8. As informações disponibiliza- empreendimentos do PMCMV
das pelo ISP têm como fonte o para as demais faixas de renda.
banco de dados dos registros de 16. O morador optou por não se
ocorrência (RO) das Delegacias identificar. Ver: MONTEIRO,
de Polícia do Estado do Rio de 2015.
Janeiro. 17. Ver: http://g1.globo.com/rio-
9. As CISPs agregam bairros e/ou de-janeiro/noticia/2013/04/
parte de bairros e caracterizam apos-crimes-de-estupro-prefei-
a menor instância de apuração to-do-rio-proibe-uso-de-peli-
dos indicadores de criminalida- cula-em-vans.html
de. Ver: http://www.isp.rj.gov. 18. Para ver esse trabalho poten-
br/Conteudo.asp?ident=38 te e inspirador acessar: https://
118 10. Os registros policiais são ape- www.militiva.org.br/
19. MONTEIRO; MEDEIROS; NAS- em 14 maio 2018]
CIUTTI, 2017. RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar:
20. Comunidades ameaçadas pela a utopia da cidade disciplinar – Brasil
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tão de Marcelo Crivella. e Terra, 1985.
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triarcado, violência. 1. ed., 2. reimp.
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PINTO, Andréia Soares; MORAES,
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neiro: Instituto de Segurança Públi-
ca, 2015. [http://www.isp.rj.gov.br/
Conteudo.asp?ident=107 – Acesso 119
Ana Carolina Brandão
Vazquez
Planejamento estratégico e
Assistente Social. Doutoranda
em Serviço Social pela Univer-
política de segurança pública:
sidade Federal do Rio de Janei-
ro. Atuou profissionalmente o Rio de Janeiro dos
megaeventos
nas esferas do terceiro setor e 1
iniciativa privada executando
programas do governo federal.
Pesquisadora nas áreas de se-
gurança pública, estudos femi-
Resumo:
nistas e direito à cidade.

As intervenções urbanas iniciadas na cidade a partir de 2009, em


grande medida legitimadas pela vinda de grandes eventos esporti-
vos para a cidade, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olím-
picos de 2016, reorganizaram o espaço urbano de maneira intensa
e singular, conjugando não apenas obras vultuosas e realocamento
de comunidades inteiras. Se não é novidade a valorização do es-
paço segundo os ciclos do capital, bem como do uso do aparelho
repressivo do Estado para dar prosseguimento ao ordenamento
urbano (seja na expulsão dos moradores das áreas a serem valori-
zadas, seja na contenção de resistências desta população), na atua-
lidade a atuação da polícia se potencializa, não apenas pela repres-
são, mas na sua funcionalidade na valorização e especulação deste
espaço. Nesse sentido, a política de pacificação funciona como um
mecanismo importante no reordenamento urbano e na valorização
e especulação do espaço citadino interessante ao capital.

Desde o anúncio do Rio de Ja- tos acontece em decorrência dos


neiro como cidade-sede da Copa jogos em si, ou se, antes, a vinda
do Mundo de 2014 e dos Jogos dos jogos para o Rio de Janeiro é
Olímpicos de 2016, há a intensi- uma consequência da maturação
ficação de intervenções urbanas de um projeto de cidade que vem
promovidas pela Prefeitura (em sendo gestado desde a década
parceria com a iniciativa privada) de 1990. O que uma análise mais
nos espaços da cidade. Apesar de atenta parece demonstrar é que
justificar-se na necessidade de o processo de reestruturação ur-
adequar a cidade para a recepção bana ocorrido mais intensamen-
desses grandes eventos esporti- te a partir de 2009, na gestão do
vos, este reordenamento urbano prefeito Eduardo Paes, passa ao
não se apresenta como uma no- largo de caracterizar-se como
vidade; ao contrário, está em cur- um processo surgido para ade-
so desde, pelo menos, o início da quar a metrópole à recepção de
década de 1990, a partir da gestão grandes eventos esportivos, mas,
do prefeito César Maia, inspira- sobretudo, trata-se de um proje-
do no “modelo Barcelona”,2 como to calcado na desapropriação de
ficou conhecido o conjunto de espaços urbanos centrais com o
transformações urbanísticas rea- fim de criar novos fluxos de acu-
lizadas na capital catalã por con- mulação do capital, introduzin-
ta dos Jogos Olímpicos de 1992. do uma política urbana orienta-
Seguindo o rastro das análises de da pela lógica neoliberal. Deste
Vainer (2000), nos perguntamos modo, mais do que o motivo das
se, de fato, a preparação da cida- intervenções urbanas vivencia-
120 de para receber estes megaeven- das no Rio de Janeiro, os megae-
ventos caracterizam-se como a urbano segundo as necessidades
possibilidade de realização de um das relações de produção capita-
projeto de cidade que há muito listas.
vem sendo pensado. Em consonância com as agências
O processo de mundialização do multilaterais, o Plano Estratégico
capital vivenciado na atualidade da cidade do Rio de Janeiro (PE-
caracteriza-se como um “novo CRJ) segue a premissa da busca
conjunto de relações internacio- pelo desenvolvimento econômico
nais e internas, que ‘formam um e social articulado aos processos
sistema’ e que modelam a vida de globalização e mundialização,
social, não apenas no plano eco- com vistas a transformar a cidade
nômico, mas em todas as suas numa cidade-empresa. Para tal,
dimensões” (CHESNAIS, 1996, p. é necessário que exista uma ad-
14), reconfigurando o capitalismo ministração eficiente, que possa
mundial e os “mecanismos que “diagnosticar” (no sentido mais
comandam seu desempenho e funcionalista do termo) quais são
sua regulação” (Idem, p.13). Des- os pontos fracos e fortes da cida-
ta forma pressupõe uma nova de, a fim de resolver os primeiros
configuração do espaço urbano e potencializar os segundos, mi-
produzindo transformações que nimizando os “riscos” de se in-
interferem diretamente na re- vestir na cidade.
organização da metrópole como As premissas que conformam o
lócus privilegiado de reprodução PECRJ se coadunam com as di-
do capital orientando um novo retrizes lançadas pelas agências
processo de urbanização. Entre- multilaterais, como o Banco Mun-
tanto, ao mesmo tempo em que dial (BIRD), o Banco Interameri-
potencializa a extensão do capi- cano de Desenvolvimento (BID) e
tal às esferas espaciais em escala a Organização para Cooperação “Em consonância
exponencial, não elimina as con- de Desenvolvimento Econômico
com as agências
tradições socioespaciais. Assim, (OCDE), criando conceitos técni-
a mundialização do capital, sob a cos que “esvaziam a participação multilaterais, o
hegemonia do capital financeiro, e a discussão pública e planejam Plano Estratégico
se concretiza na cidade a partir o espaço urbano ferindo direitos da cidade do Rio
do investimento no setor imobi- em nome do progresso, sobre-
liário. pondo o interesse privado ao pú-
de Janeiro (PECRJ)
blico” (FALHAUBER e AZEVEDO, segue a premissa
Cabe, ainda, enfatizarmos o pa-
pel fundamental do Estado como
2015, p.22). da busca pelo
instância necessária à criação das Há, portanto, uma subordinação desenvolvimento
condições propícias a realização da política à gestão empresarial, econômico e
do reparcelamento e valorização com vistas a converter a cidade
em uma mercadoria vendável, a social articulado
do solo segundo as demandas do
capital. O Estado tem, assim, ca- fim de agradar um “mercado ex- aos processos de
ráter decisivo no que concerne tremamente competitivo, onde globalização e
outras cidades também estão à
ao estabelecimento de um novo
venda” (VAINER, 2000, p.78). É
mundialização, com
padrão na cidade do Rio de Janei-
ro, realizado através de uma se- preciso, assim, articular o plano vistas a transformar
quência de intervenções urbanís- local, onde figuram as cidades, a cidade numa
ticas, o que incentiva o processo ao plano mundial, possibilitando cidade-empresa.”
de segregação de segmentos da a realização da reprodução social
classe trabalhadora. Nesse senti- de acordo com a reprodução do
do, o Plano Estratégico da cidade capital.
do Rio de Janeiro torna-se fonte Sob a influência do menciona-
fundamental para entendermos do “modelo Barcelona”, o I PE-
de que forma o Estado facilita e CRJ projetou um modelo de ci-
garante a remodelação do espaço dade que orientaria suas ações 121
interventivas no espaço urbano de imóveis “irregulares”, a cons-
de acordo com os interesses das trução de “eco limites” com o in-
grandes corporações internacio- tuito de impedir o crescimento
nais. Essa tendência permanece das favelas, etc. Segundo o prefei-
nos Planos posteriores, expres- to, essas intervenções no espaço
sando um padrão de gestão urba- urbano aconteceriam em prol de
na em consonância com a lógica um “restabelecimento da autori-
neoliberal. Esta forma de gerir a dade municipal e de um cuidado
3
cidade, contudo, se traz grandes com a cidade”. Sob este discurso
ganhos ao capital internacional, começa a se erigir as condições
interfere de forma nociva nas re- para obtenção de um consenso
lações sociais e cotidianas esta- em torno deste projeto de cidade,
belecidas pelos seus habitantes, esvaziando seu sentido político e
em que pese, principalmente, a enaltecendo a importância da co-
parcela empobrecida dessa po- esão e solidariedade entre os di-
pulação. Contraditoriamente, ferentes segmentos da população
através do slogan da diversidade carioca em prol do “bem-estar”
cultural, do respeito às diferen- da cidade,4 a fim de torná-la um
ças locais e do desenvolvimento pólo de desenvolvimento, trazen-
sustentável, o novo modelo de do o progresso e benefícios para
cidade proposto nos planos es- seus habitantes. A necessidade
tratégicos “implica um processo do consenso torna-se, portan-
de homogeneização e estabeleci- to, condição indispensável para
mento de padrões ideais de com- a instauração do modelo de ci-
portamento e modos de habitar dade competitiva. “Sem consen-
a cidade” (CUNHA, 2013, p. 328). so não há qualquer possibilidade
Deste modo, o processo homo- de estratégias vitoriosas. O plano
geneizador imposto por esse mo- estratégico supõe, exige, depen-
delo de gestão “eficiente” tende a de que a cidade esteja unificada,
promover processos de “gentrifi- toda, sem brechas, em torno do
cação e transformação de bairros projeto” (VAINER, 2000, p.91).
populares, muitas vezes identi- Todavia, se para mobilizar a po-
ficados como bairros problemá- pulação em torno do projeto de
ticos e indesejáveis, em espaços cidade-empresa que se pretende
enobrecidos e, consequentemen- instaurar é preciso esvaziá-la do
te, inacessíveis à sua população seu sentido político; a elaboração
de origem” (CUNHA, 2013, p. 328). dos planos estratégicos ao longo
“A partir do O processo homogeneizador dos anos está calcada na cons-
sentimento e identificado nos planos estraté- trução de um projeto político e
consciência de gicos, não só para a cidade do Rio ideológico de cidade, tendo como
de Janeiro, mas como mecanismo ponto nevrálgico dois elementos
crise urbana, fundamental para a construção fundamentais: “uma consciência
pretende-se gerar de uma cidade competitiva ao de crise e o patriotismo da cida-
redor do mundo, pode ser clara- de” (VAINER, 2000, p.92). A ob-
uma comoção mente flagrado desde o início da tenção do consenso, portanto, se
social em torno gestão de Eduardo Paes, iniciada dá através do fomento da ideia de
da necessidade de em 2009. Comandada pela Secre- “crise” urbana.
taria de Ordem Pública, a “Ope- À semelhança do que ocorreu em
superá-la” ração Choque de Ordem” com- Barcelona houve na cidade do Rio
binava ações como a repressão de Janeiro a construção de uma
ao trabalho informal de camelôs, consciência de crise pelo poder
recolhimento da população em público, na gestão do prefeito
situação de rua, internação com- Eduardo Paes, em torno da qual
pulsória de usuários de drogas, se fundamentaram as políticas
122 em especial o crack, demolição de intervenção no espaço urba-
no com vistas a sua superação. habitam em áreas interessantes
De acordo com os consultores ao capital, o que impulsionou um
catalães, a receita do sucesso de processo de remoção de mora-
Barcelona, importada para ou- dias sem precedentes na história
tras cidades, inclusive para o Rio da cidade,5 um dos períodos mais
de Janeiro, “teve como ponto de violentos e anti-democráticos da
partida uma aguda e generaliza- história das remoções no Rio de
da consciência de crise” (VAINER, Janeiro. Em estimativa feita por
2000, p.92). Faulhaber e Azevedo (2015), cerca
A partir do sentimento e cons- de 20.299 famílias (aproximada-
ciência de crise urbana, preten- mente 67.000 pessoas) foram re-
de-se gerar uma comoção social movidas de maneira compulsória
em torno da necessidade de su- do seu local de origem.
perá-la. Deste modo, a popula- Entendemos que a articulação
ção citadina é chamada a abdicar com a segurança pública torna-se
dos seus interesses particulares fundamental na efetivação des-
em prol de um objetivo maior: o se projeto de cidade globalizada
desenvolvimento econômico e e competitiva, afinal, uma cidade
social da cidade. O patriotismo segura é uma cidade vendável.
de cidade (VAINER, 2000) ganha Não por acaso, a primeira Unida-
destaque nas condições que ge- de de Polícia Pacificadora (UPP)
ram “uma trégua e paz sociais” foi implantada no morro Santa
(idem), estabelecendo o consenso Marta em dezembro de 2008, em
e legitimando um projeto coeso total sintonia com o discurso de
e unitário que elevará a cidade a resgate da ordem para melhoria
um nível superior. da cidade. A segurança, nestes
O que verificamos com a ascen- termos, aparece como mais um
são de Eduardo Paes à prefeitura produto a ser vendido no mer-
da cidade do Rio de Janeiro são cado internacional que, ao lado
todos esses fatores unificados de outras intervenções no espa-
em torno da figura de um líder ço urbano, transformam a cidade “A segurança,
carismático que aparece sem as- numa mercadoria competitiva. nestes termos,
pirações políticas, mas única e Deste modo, o projeto de “paci- aparece como
exclusivamente como um cida- ficação” encarnado no modelo
dão comprometido que se atri- das UPPs articula as três esferas
mais um produto
buiu a tarefa de unificar a cidade. de governo, uma vez que vêm a ser vendido
Assim, a cooperação de todos os
cidadãos se faz fundamental, ge-
dar conta de um projeto conce- no mercado
bido em conjunto com todas es-
rando um sentimento de coletivi- sas gestões. No âmbito federal, internacional que,
dade, pertencimento e confiança aparece como um desdobramen- ao lado de outras
na construção de uma cidade do
futuro. É nesse caldo de interes-
to de uma política de seguran- intervenções no
ça voltada para a prevenção do
ses que a iniciativa privada apa- crime e do resgate da cidadania, espaço urbano,
rece como mais um parceiro na atuando numa perspectiva dos transformam
edificação desta cidade modelo, direitos humanos, inserida num
o que, entre outras coisas, permi- a cidade numa
projeto mais amplo através do
te que se estabeleça uma parce- Programa Nacional de Segurança mercadoria
ria público-privada no reordena- Pública com Cidadania (PRONAS- competitiva.”
mento urbano da cidade. CI). Na esfera estadual, as UPPs
Como já citado, o discurso da cri- aparecem como uma solução do
se urbana vem legitimar ações de governo no combate ao narco-
remodelamento da cidade que tráfico, sob o discurso da reto-
impacta de maneira irreversível a mada de territórios e restabele-
vida de milhares de cidadãos ca- cimento da ordem. No que tange
riocas, em especial àqueles que à esfera municipal, esta política 123
de segurança vem ao encontro as UPPs emergirem num contex-
do projeto de superação da crise to de reordenamento urbano vi-
urbana, a qual a segurança figura sando um novo modelo de cidade
como um dos problemas princi- e gestão do território. Assim, a
pais a serem solucionados. Desta política de segurança atua como
maneira, a política de segurança mais um mecanismo na confor-
pública adotada em todos os âm- mação da ordem burguesa, em
bitos governamentais converge especial no que tange ao controle
para atuar no controle, vigilância, e valorização dos espaços antes
encarceramento e segregação segregados, atuando na constru-
dos segmentos mais pauperiza- ção de uma cidade-mercadoria
dos da classe trabalhadora, além que dificulta e, no limite, elimina
de ser um elemento de valoriza- o direito à cidade aos segmen-
ção do capital na medida em que tos mais pauperizados da clas-
sua entrada nas favelas cariocas se trabalhadora. Cabe, contudo,
facilita a venda de taxas e servi- enfatizar que essas intervenções
ços, abrindo um novo nicho de oriundas do processo de “pacifi-
mercado. Além disso, se coaduna cação”, tanto no contexto de po-
com o ideal de cidade olímpica licização do cotidiano nas favelas
por trás do reordenamento urba- cariocas, quanto na contribuição
no impulsionado pelo poder pú- para um projeto de cidade com-
blico. petitiva internacionalmente, e
Sob este registro podemos per- por isso excludente, formam um
ceber a que interesses servem as par dialético: um não funciona
UPPs: à construção de um mo- sem o outro (ou não funciona da
delo de cidade-mercadoria que forma esperada).
pretende atender às exigências Destarte, a “pacificação”, bem
do mercado internacional sob as como a falácia da consolidação
diretrizes ditadas pelas agências da cidadania através da segu-
multilaterais. Não podemos ne- rança pública se coadunam com
gligenciar a influência que o con- o discurso de superação da crise
junto dos eventos esportivos teve urbana que assola a cidade des-
na consolidação desta política de há muito, justificando medidas
de segurança. Articulam-se, as- de exceção com vistas a garantir
sim, as políticas de planejamento a ordem e o progresso.
urbano e de segurança pública, Nesse sentido, pensar a política
num discurso que pretende alçar de “pacificação” significa pensar
a cidade a um nível de competi- necessariamente a atuação do
ção no mercado mundial. Estado tanto no controle e gestão
Podemos apontar, assim, dois ní- da pobreza, quanto no seu papel
tidos vieses por onde operam as de facilitador num processo de
Unidades de Polícia Pacificado- planejamento urbano que pri-
ra. Por um lado, na militarização ma pela prevalência do mercado
da vida, atuando de forma inci- em detrimento das necessidades
siva no cotidiano de milhares de de uso dos habitantes da cidade.
famílias que residem em favelas Assim, entrelaçam-se elementos
“pacificadas” que passam a ter conservadores oriundos da nos-
controlados seus direitos de ir e sa cultura política, baseada num
vir, ao lazer, a inviolabilidade do colonialismo e num capitalismo
lar etc. Um controle ostensivo e dependente e periférico, com
sistemático das classes subalter- elementos que se pretendem
nas, onde, inclusive as políticas modernizantes como é o caso do
sociais passam a ser viabilizadas reordenamento urbano feito na
e/ou implementadas através da cidade do Rio de Janeiro, sob o
124 polícia militar. Por outro, vemos pretexto dos megaeventos, a fim
de elevar a cidade a um patamar (1961-1965) caracterizaram-se
de competitividade que a des- por um intenso processo de re-
taque no cenário mundial. Não modelamento urbano represen-
obstante, a política de “pacifica- tado, prioritariamente, por uma
enérgica política de remoções.
ção” alia estes dois elementos, o
Segundo estudo de Faulhaber
moderno e o arcaico, optando e Azevedo (2015), cada governo
por uma solução pelo alto, sem foi responsável pela remoção de
atingir as causas estruturais do 20.000 e 30.000 pessoas, res-
problema da violência urbana. pectivamente.

Notas: Referências:

1. Este artigo faz parte da disser- AZEVEDO, Lena; FALHAUBER, Lu-


tação de mestrado defendida no cas. SMH 2016: remoções no Rio de
ano de 2016 para obtenção do tí- Janeiro Olímpico. 1a. Edição. Rio de
tulo de Mestre no Programa de Janeiro: Mórula, 2015.
Pós-Graduação em Serviço So-
CHESNAIS, François. Mundialização
cial da Universidade Federal do
do Capital. São Paulo, Xamã, 1996.
Rio de Janeiro, intitulada “Segu-
rança pública e conformação do CUNHA, Neiva Vieira da. O “modelo
espaço urbano numa perspectiva Barcelona” em questão: megaeven-
dialética: as implicações das Uni- tos e marketing urbano na constru-
dades de Polícia Pacificadora na ção da cidade-olímpica. In: O Social
cidade do Rio de Janeiro”. em Questão - Ano XVI - nº 29 - 2013.
325 – 330.
2. O conjunto de intervenções no
espaço urbano na cidade de Bar- VAINER, Carlos. Pátria, empresa e
celona, em preparação para se- mercadoria: notas sobre a estratégia
diar os Jogos Olímpicos de 1992, discursiva do Planejamento Estra-
tornou-se um “modelo” para os tégico Urbano. In: ARANTES, Otília;
especialistas em planejamento VAINER, Carlos; MARICATO, Ermí-
urbano. Na ânsia de integrar à nia. A cidade do pensamento único:
cidade à esfera da globalização, desmanchando consensos. Petrópo-
este modelo de gestão as sub- lis, Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
mete a uma lógica empresarial a
fim de torná-la competitiva para
o mercado. Sendo assim, as cida-
des disputam entre si pelo inves-
timento de capital, tornando-se
flexíveis às suas exigências em
detrimento do seu uso social por
parte de seus habitantes.
3. Fala do prefeito Eduardo Paes
em entrevista concedida ao RJTV
1ª edição em 6 de abril de 2009.
http://globotv.globo.com/rede-
globo/rjtv-1a-edicao/v/eduar-
do-paes-fala-das-operacoes-
choque-de-ordem/996243/
4. Segundo Vainer (2000), é ne-
cessária a instauração da cida-
de como um sujeito coletivo, no
imaginário social, para assim
criar as bases necessárias para a
obtenção do consenso.
5. As administrações municipais
de Francisco Pereira Passos
(1902-1906) e Carlos Lacerda
125
Fábio do Nascimento Repressão e expropriação na era
Simas
Assistente social. Professor dos megaeventos no Rio de Janeiro
da Escola de Serviço Social da
UFF. Doutorando e mestre em
Serviço Social na UERJ. Diretor
e Coordenador da Comissão de
Direitos Humanos do CRESS/
RJ. Perito na CIDH/OEA- Caso
Vladimir Herzog vs. Brasil.

João Rafael da Conceição Resumo:


Assistente social. Mestrando
em Serviço Social/PUC-Rio. O presente trabalho objetiva fazer uma breve análise sobre os me-
Especialista em Gestão Urbana gaeventos realizados no Rio de Janeiro e seus impactos no acirra-
e Saúde/Fiocruz. mento das práticas repressivas, em especial no encarceramento
como forma de inibir e conter as contradições inerentes a cer-
tames de tamanha magnitude cujo objetivo central é atender os
interesses de grandes grupos econômicos.

zida como que um mantra era de


Introdução que os jogos deixariam um gran-
de legado para o país anfitrião so-
bretudo na economia, infraestru-
O presente ensaio debate a con- tura e política pública. “O legado
tradição do chamado “legado” vai para além dos equipamentos
dos megaeventos realizados no esportivos e das melhorias que a
Rio de Janeiro com o acirramen- cidade receberá (...). O maior de
to das práticas repressivas com todos os benefícios é autoestima”,1
destaque para o encarceramen- proferiu entusiasticamente o ex-
to. Para tanto, problematiza-se governador Sérgio Cabral Filho
sinteticamente o significado só- após a escolha do Rio de Janei-
“A palavra legado cio-histórico da chamada “era ro como cidade-sede dos Jogos
dos megaeventos” e posterior- Olímpicos de 2016, acompanhado
usada indiscri- mente se estabelece conexões de Eduardo Paes, prefeito do Rio
minadamente era do mesmo, tanto em sua fase de à época e o ex-presidente Lula
que na ocasião fez questão de
utilizada com mais preparação quanto nas suas rea-
agradecer o presidente da Câma-
lizações, com o aumento da vio-
ênfase quando sur- lência institucional com enfoque ra dos Deputados Michel Temer
gia algum questio- no aprisionamento. pela aprovação do Ato Olímpico,
conjunto de garantias governa-
namento quanto ao mentais para execução dos jogos.
custo econômico Do Legado fez-se a espoliação/
A palavra legado usada indiscri-
expropriação...
e social, servin- minadamente era utilizada com
mais ênfase quando surgia algum
do como até então questionamento quanto ao cus-
A instigante chamada da Justiça
eficaz ferramenta Global para esta publicação já nos to econômico e social, servindo
ideológica.” provoca de imediato à reflexão como até então eficaz ferramen-
crítica sobre o real significado ta ideológica. Mas sabemos que
dos megaeventos desta década nem só de consenso se susten-
para as condições de vida da po- tam as formas de dominação e
pulação do Rio de Janeiro. Antes e em terras tão prenhe de contra-
durante a realização de tais even- dições como a nossa, a coerção
tos, a resposta governamental e seguiu sua tônica neste processo,
126 midiática amplamente reprodu- tanto na remoção de pessoas e
favelas quanto no acirramento da na expressas sobretudo na re-
repressão policial e penitenciária pressão policial, no incremento
além da violência praticada con- do encarceramento de jovens e
tra os manifestantes- sempre ao adulto, da violência nas manifes-
lado e atendendo prioritariamen- tações, além das remoções e gen-
te os interesses do grande capital trificação.
internacional, promotor e maior Neste contexto quando se abor-
beneficiário dos megaeventos. da o caráter da espoliação, re-
Vale destacar que, de acordo com mete-se a tese de Harvey (2014)
Proni (2014), a caracterização de acerca dos contornos violentos
megaeventos envolve: eventos da expansão da capital na fase
internacionais transmitidos para hodierna delimitada pelo autor
todos os continentes de curta sob o domínio do novo imperia-
duração mas com grandes perí- lismo. De acordo com o pensador
odos de preparação; necessidade britânico, a acumulação por es-
de infraestrutura própria envol- poliação seria marcada pela ex-
vendo grandes somatórios de re- pulsão de populações, escravidão
cursos financeiros e legitimação contemporânea, privatização de
de uma ideia de legado que pu- recursos naturais e indústrias na-
desse justificar os elevados gas- cionais que reatualiza sob novas
tos públicos e violações de direi- bases o processo de expropria-
tos que o mesmo proporciona. A ção descrito por Marx (1982) no
categorização de megaeventos se capítulo de O Capital sobre acu-
sustentou a partir de fins da dé- mulação primitiva onde ocorre
cada de 1970 com a expansão da o processo violento e secular de
FIFA/Adidas a partir da Copa do separação do trabalhador de seus
Mundo de Futebol (OURIQUES, meios de produção.
2014), atendendo também a ne- No entanto, concordamos com a
cessidade de expansão imperia- problematização de Fontes (2010)
lista de alguns dos maiores gru- que defende a definição de ex-
pos econômicos em um contexto propriação como mais precisa no
de gestação de crise do capitalis- quadro atual de violações, quan-
mo, favorecido também pelo de- do ao analisar o uso do conceito
senvolvimento tecnológico dos espoliação de Harvey (2014), o
meios de comunicação que atin- mesmo o define como um fenô-
gem milhões de consumidores. meno atualizado e modificado da
Outro elemento importante é o acumulação primitiva e não cate-
significado do esporte como ele- goriza estas violações como um
mento catalizador de identidade processo permanente de expro-
cultural e nacional capturados priação, que é um traço inerente
por estes grupos econômicos.2 ao capitalismo e não somente um
No caso brasileiro, o endure- renascimento modificado, como
cimento da repressão do Estado propunha o pensador britânico.
em eventos internacionais é bem Desse modo, entendemos como
conhecido, desde o recolhimento expropriação contemporânea o
de crianças em situação de rua processo de imposição de uma
para a ECO 92 até a “Chacina do lógica de supressão de meios de
Pan” na favela da Vila Cruzeiro vida – seja pela expulsão direta
nos meses de preparação dos Jo- ou pela retirada de direitos – para
gos Pan-Americanos de 2007. No atender o caráter de expansão
caso dos dois megaeventos bra- do mercado capitalista, onde os
sileiros, as práticas de repressão impactos dos megaeventos são
seguiram seu turno atendendo mais visíveis, como nas remoções
inclusive a necessidade do tama- de populações faveladas – como
nho que este evento proporcio- ficou notório o caso da Vila Au- 127
tódromo. Podemos caracterizar como “recolhimento” de pessoas
assim as obras dos jogos desem- em situação de rua, utilizando-
penhadas por grandes empreitei- se da força na maioria das vezes
ras, na crescente transformação para as faraônicas – muitas hoje
do espaço da cidade em merca- sem utilidade – obras dos jogos.
doria, sob a manta da gentrifica- No âmbito da segurança pública,
ção e aplicação e endurecimento o projeto das UPPs acompanhado
penal através de legislações san- de forte apelo midiático se des-
grentas a quem possa resistir ou tacou como modelo mesmo que
criar obstáculos à sua lógica des- a Polícia Militar do Rio de Janeiro
trutiva. mantivesse práticas cotidianas de
Passado cerca de dois anos após violações de direitos nas favelas
o encerramento dos Jogos Olím- onde as unidades estavam inseri-
picos de 2016, nossa geografia das, além da manutenção da po-
política de expropriação deixa lítica caveirão e do crescimento
o legado de uma grave crise so- das milícias.
cioeconômica, com 13 milhões Na etapa seguinte, a legitimação
de desempregados e uma agenda social em torno dos jogos e seus
regressiva que se acentuou com prometidos legados começaram a
o golpe parlamentar de 2016 cuja entrar em crise que tem seu pon-
tríade ofensiva foi a (contra) re- to culminante as manifestações
forma trabalhista, a limitação de conhecidas como Jornadas de
investimentos em políticas so- Junho de 2013. A partir da insa-
ciais na PEC 55 (PEC da “morte”) tisfação popular em torno do au-
e a reforma de previdência. No mento das passagens de ônibus,
caso do Rio de Janeiro, a princi- o caos da mobilidade urbana e o
pal sede dos megaeventos foi o encarecimento da vida, uma série
estado mais atingido com a crise de protestos tomou conta do país
desencadeada, tendo sido decre- justamente no período de realiza-
tado estado de calamidade públi- ção da Copa das Confederações/
ca, o ex-governador Cabral e al- FIFA. Os protestos se intensifica-
gumas outras autoridades como ram a partir de então e o foco do
o ex-presidente do Comitê Olím- legado dos megaeventos orbitou
pico Brasileiro (COB) presos por em todos os atos. A repressão
envolvimento em um sistema de policial se intensificou com farto
corrupção que também envolveu repertório de utilização de ar-
os megaeventos, situação que se mas letais e armas menos letais e
agravou com a decretação de in- a realização reiterada de prisões
tervenção militar federal. arbitrárias,3 como também as téc-
“Os jogos olímpicos Podemos sintetizar a era dos me- nicas de coerção foram se sofis-
gaeventos e o processo de expro- ticando.4
de 2016 se realizam priação que o acompanhou em A última fase dos megaeventos,
em meio a um três etapas: i) da preparação às como sugere sua própria caracte-
cenário de golpe jornadas de junho (2009-2013); ii) rização, apresenta de forma mais
das Manifestações à Copa (2013- escancarada o simulacro da pro-
e uma acelerada 2014); iii) crise, golpe e perverso messa de legado. Após a posse da
guinada de retirada legado. A primeira etapa corres- presidenta reeleita Dilma Roussef
de direitos” ponde a toda dinâmica de prepa- e eclosão de crise socioeconômi-
ração para os jogos cujas expro- ca (e sua não adesão imediata à
priações foram acompanhadas de agenda de direitos sociais), ocor-
produção de consenso que legi- rem a construção de um cenário
timasse tais ações. Suas princi- conspiratório que inclui manifes-
pais ações foram as remoções de tações de rua capitaneadas pela
populações pobres, tanto das ex- mídia corporativa e burguesia na-
128 pulsões de moradores de favelas cional que resulta no golpe parla-
mentar de 2016. Paradoxalmente, chheimer (2004 Apud OLIVEI-
pouco antes de sua deposição a RA, 2016), a pena e os crimes são
presidenta promulga a Lei Anti- construções sociais, cuja expli-
terrorismo (Lei13260/2016) que cação se fundamentam em um
potencializa a criminalização das olhar materialista a partir da sua
manifestações populares. Nesse capacidade e necessidade econô-
período, ficou escancarada ainda mica. Este fenômeno recebe con-
mais a relação estruturante entre tornos particulares na sociedade
corrupção e megaeventos, desde brasileira, em especial no Rio de
a prisão de políticos e empre- Janeiro, quando compreendido
sários ligados aos megaeventos no período dos megaeventos.
com destaque para o ex-gover- Entre 2005 e 2016, a população
nador, até no âmbito internacio- carcerária no Brasil cresceu em
nal com a renúncia do presidente 201,08% (MINISTÉRIO DA JUSTI-
da FIFA. ÇA, 2017). No Rio de Janeiro, por
Os jogos olímpicos de 2016 se re- sua vez, a porcentagem segue
alizam em meio a um cenário de paralela a nacional, em 206,61%
golpe e uma acelerada guinada (BRAGA e JOFFILY, 2017). A popu-
de retirada de direitos. As mani- lação carcerária saltou de 24608,
festações deste período não con- em 2005, para 51613, em 2017.
seguem apresentar a magnitude Estes dados demonstram que o
dos anos anteriores; assiste-se Estado fluminense aplicou a car-
ao crescimento da extrema di- tilha repressora com êxito, sendo
reita e suas pautas reacionárias um dos Estados com os maiores
e os aparelhos de repressão do índices do país. Os dados de evo-
Estado atuando em pleno vapor lução no sistema penitenciário do
no viés da criminalização: o Rio Rio de Janeiro comprovam que os
de Janeiro apresenta entre 2015 maiores crescimentos da popu-
e 2016 seu maior crescimento de lação prisional se deram entre “Os dados de evolu-
população carcerária que se tem 2012 e 2013 (preparação), 2013 e
notícia, com um aumento de 10 2014 (Copa do Mundo) e a explo- ção no sistema pe-
mil pessoas. são nos números de presos entre
5
nitenciário do Rio
2015 e 2016 (Jogos Olímpicos). de Janeiro compro-
Sobre o sistema socioeducativo, a
apreensão de dezenas de adoles- vam que os maiores
Legado e seletividade centes antes da Copa e suas au- crescimentos da
diências só terem ocorrido após
o evento é notória a relação desta
população prisio-
violação com os jogos (MEPCT, nal se deram entre
A seletividade do legado é inten-
sificada quando se apreende a re-
2014). 2012 e 2013 (prepa-
alidade da superpopulação relati- As condições da execução penal ração), 2013 e 2014
va, que no Brasil tem cor e CEP no Rio de Janeiro são assustado-
muito bem delimitados: são jo- ras. O Estado do Rio de Janeiro (Copa do Mundo) e
vens, pobres, negros e residentes sistematicamente subnotifica a explosão nos nú-
dados e omite e/ou presta infor-
da periferia e favelas. A esta par-
mações penitenciárias inconsis-
meros de presos
cela da população coube a mais
brusca expropriação e repressão, tentes: informação incorreta do entre 2015 e 2016
a marginalização territorial e a quantitativo de servidores e da (Jogos Olímpicos)”
culpabilização pela própria con- distribuição de crimes tentados/
dição de vida. consumados; e omissão do nú-
mero de visitas familiares reali-
O aprisionamento é a expres-
zadas, de atendimentos médicos
são categórica da forma punitiva
realizados (internos ou externos
adotada pelo capital sobre esta
em relação a unidade prisional),
parcela da classe trabalhadora.
de mortalidade intencional e de 129
Na perspectiva de Rusche e Kir-
Fonte: DEPEN/MJ. Gráfico: elaboração própria

pessoas trabalhando são alguns tamar imprescinde de violações


exemplos da caótica situação em de direitos humanos e formas de
relação as informações peniten- violência institucional, tratadas
ciárias (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, como “mal necessário” em que
2014). O tempo total da pena, o as omissões e subnotificações de
quantitativo de presos envolvidos informações são partes de um
em atividades de ensino e remu- complexo fazer política que ten-
neração das pessoas privadas de de, em tempos neoliberais, arre-
liberdade envolvida em ativida- gimentar motivos privatizantes.
des laborais foram omitidas, pelo Veja-se a preocupação estatal em
Estado do Rio de Janeiro, em 2016 ocultar, também, uma realidade
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017). desumana, degradante e cruel.
Em termos de subnotificação, Igualmente, marca o mesmo perí-
os relatórios do Mecanismo de odo o controle territorial armado
Prevenção e Combate a Tortura de uma população (ainda) não en-
(MPCT) revelam uma superlo- carcerada (OLIVEIRA, 2016), que
tação subnotificada. Consta no não consta nos dados de apri-
relatório de 2016 que no sentido sionamento. Esta prática para-
de influir sobre a taxa de ocupa- digmática serve como poucas ao
ção as direções das unidades pri- ciclo econômico proposto pelos
sionais passaram a contabilizar megaeventos: a cidade-mercado-
os colchões no chão como vaga. ria. Ela se pretende, a partir das
Embora não se possa afirmar se instalações de Unidades de Polí-
tratar de uma orientação polí- cias Pacificadoras, um duplo mo-
tica, tanto menos possa deixar vimento: (i) o aparente, combater
de cogitá-la, sobretudo após a o comércio varejista de drogas
Resolução 5/2016 do Conselho em territórios táticos para a rea-
Nacional de Política Criminal e lização dos megaeventos, supos-
Penitenciária que determina à di- tamente retomando o controle
reção da unidade o cumprimento da área ao Estado e possibilitan-
de “alerta eletrônico” quando a do um sentimento de segurança
unidade prisional atingir o índice aos turistas; (ii) o essencial, uma
de 137,5% de ocupação (MEPCT, contínua aplicação da política
2016). Tendo este índice por re- penal, em detrimento de políticas
ferência, ao menos, 28 unidades sociais, em regiões delimitadas e
prisionais no Rio de Janeiro ne- tratadas como áreas intensamen-
cessitam elaborar um plano de te policiadas e policiáveis para
redução de contingente carcerá- extermínio e intimidação dos po-
rio. bres e negros (OLIVEIRA, 2016).
Não restam dúvidas: a viabilidade A atuação policial, longe de ex-
130 do aprisionamento no atual pa- pressar meramente condutas in-
dividuais, exprime a forma como ção de cinco anos do morador
o Estado lida com a população de rua Rafael Braga pelo mesmo
historicamente “clientela pre- portando produto de limpeza
ferencial” da repressão estatal: demonstrando o caráter arbitrá-
rio e racista do sistema de justiça
“checkpoints, revistas aleatórias e
criminal fluminense.
invasões a domicílios […]; assas-
4. Podemos citar como “sofistica-
sinatos, agressões e torturas per-
ção” da repressão autoritária: a
petrados por policiais são coti- utilização de armas menos le-
dianos” (OLIVEIRA, 2016, p. 260). tais como gás lacrimogênio com
Os megaeventos seguiram assim maior poder de alcance; as pri-
seu perverso legado bem afinado sões de 19 manifestantes às vés-
à dinâmica do capital: superlu- peras da final da Copa do Mundo
cros aos grandes grupos econô- sob o argumento que havia “sé-
micos protagonistas e sua teias rios indícios a realização de atos
de extrema violência”, o que nun-
de corrupção e do lado de cá do
ca fora comprovado e o cerco de
trabalho expropriação, desem- manifestantes em uma praça no
prego em massa com retiradas dia da final da copa.
de direitos e a repressão violenta 5. Os dados de 2007 a 2011 se re-
do sistema de justiça criminal em ferem a estatísticas do mês de
que seu alvo predileto são pobres dezembro. Os anos seguintes se
e negros. referem ao mês de junho com
exceções de 2013 (dez) e 2015
(mar).

Notas:
Referências:

1. “Governo Cabral vibra com vi- BRAGA, Airton; JOFFILY, Tiago. Ain-
tória do Rio para sediar Olim- da a Política Criminal com Derra-
píadas.” Jornal do Brasil, mamento de Sangue (Florianópolis,
02/10/2009. Disponível em: Editora Empório do Direito, 2017).
http://www.jb.com.br/rio/noti- Disponível em: http://emporiodo-
cias/2009/10/02/governo-de- direito.com.br/leitura/ainda-a-po-
cabral-vibra-com-vitoria-do-rio- litica-criminal-com-derramamen-
-para-sediar-olimpiadas/ to-de-sangue-1508246089
2. Importante destacar que os FONTES, Virgínia. O Brasil e o cap-
grandes patrocinadores des- ital-imperialismo: teoria e história.
tes eventos são as expressivas Rio de Janeiro: Fiocruz/Editora
marcas do imperialismo como UFRJ, 2010.
Adidas, Nike, McDonald’s, Sam- HARVEY, David. O novo imperialis-
sung, Coca-Cola, Visa, Samsung, mo. 8ª ed. São Paulo: Editora Loyola.
Hyundai, P &G dentre outros.
JENNINGS, Andrew. “A máfia dos
Jennings (2014) observa como
esportes e o capitalismo global”. In:
exemplo que a empresa esta-
JENINGS, ROLNIK, LASSANCE et
dunidense Coca-Cola tinha sua
al (ORGs). Brasil em jogo: o que fica
imagem vinculada à exploração
da copa e das olimpíadas. São Paulo:
capitalista e acrescentaria à obe-
Boitempo/Carta Maior, 2014.
sidade; com o patrocinadora de
megaeventos esportivos se asso- MARX, Karl. “A chamada acumulação
cia a prática esportiva e ao hero- primitiva” In: O Capital: crítica da
ísmo dos recordistas. Economia Política. Livro 1, volume 2.
7ª ed. São Paulo: DIFEL, 1982
3. As prisões detenções em massa
de manifestantes sem funda- MEPCT - Mecanismo Estadual de
mentação se tornaram práticas Prevenção e Combate à Tortura do
corriqueiras dos atos cujo maior Rio de Janeiro. Megaeventos, re-
símbolo foi a prisão e condena- pressão e privação de liberdade no
Rio de Janeiro. Relatório Temático. 131
Rio de Janeiro: ALERJ, 2014.
_____________________.
Relatório Anual do Mecanismo Es-
tadual De Prevenção E Combate À
Tortura Do Rio De Janeiro. Rio de
Janeiro, 2016. Disponível em https://
drive.google.com/file/d/0ByIg-
DzCTzaAEMUVRSWs5SHZtaUk/
view
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Depar-
tamento Penitenciário Nacional.
Levantamento Nacional de Infor-
mações Penitenciárias – INFOPEN
– junho de 2014. Disponível em
http://www.justica.gov.br/noticias/
mj-divulgara-novo-relatorio-do-in-
fopen-nesta-terca-feira/relato-
rio-depen-versao-web.pdf, acesso
em 01/12/2017.
______. Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias –
INFOPEN. Brasília: DEPEN, 2017.
OLIVEIRA, Pedro Rocha de. Par-
adigmas de política penal e senti-
do econômico da população: das
punições corporais às UPPs. In: Re-
vista Em Pauta. Revista da Faculdade
de Serviço Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. 1o Semes-
tre de 2016. N. 37, V. 14, p. 243 – 269
OURIQUES, Nildo. “Acumulação de
capital e futebol na América Latina”.
In: CAPELA & TAVARES (orgs.) Me-
gaeventos esportivos: suas conse-
quências, impactos e legados para
América Latina. Florianópolis: Edito-
ra Insular, 2014.
PRONI, Marcelo. “Megaeventos e
acumulação de capital”. In: CAPE-
LA & TAVARES (orgs.) Megaeven-
tos esportivos: suas consequências,
impactos e legados para América
Latina. Florianópolis: Editora Insular,
2014.

132
Restos da política pública para Luan Carpes Barros
1 Cassal
população LGBT no Rio de Janeiro Doutorando em Psicologia
pela Universidade Federal
Fluminense (Bolsista CAPES),
servidor licenciado da Rede
Municipal de Educação de Ita-
boraí – RJ, militante do movi-
mento LGBT.

Resumo:

O presente texto propõe colocar em análise as relações entre o


funcionamento do Programa Rio Sem Homofobia, realizado pelo
Governo do Estado do Rio de Janeiro na última década, com um
projeto político centrado em consumo turístico, realização de me-
gaeventos e repressão militar, além de discutir alguns efeitos da
crise na gestão e garantia de direitos para população LGBT.

Em 21 de junho de 2010, um ado- uma favela com tanques blinda-


lescente de 14 anos foi sequestra- dos. Será que esses eventos são
do, torturado e morto na cidade isolados? Que projeto de cidade
de São Gonçalo (RJ), após defen- anuncia-se nessas notícias?
der amigos gays em uma briga Em 2010, em paralelo às violên-
em uma festa próximo de casa.2 cias o Rio de Janeiro recebia volu-
A idade do garoto e a crueldade mosos investimentos para a reali-
do crime foram divulgados em zação de megaeventos turísticos,
diversos noticiários locais e na- num 7 projeto de ampliação do
cionais. No mesmo ano, o Estado lucro do capital financeiro e es-
do Rio de Janeiro concentrou 23 peculativo, em um processo lide-
dos 260 assassinatos de pessoas rado pelo então Partido do Movi-
LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, mento Democrático Brasileiro
Travestis e Transexuais] do Brasil, 8
– PMDB, que ocupa o governo do “Militares alvejam
conforme levantamento do Gru-
po Gay da Bahia.3
Estado desde 2007. Em articula- um jovem gay,
ção com movimentos e militantes
Pouco depois, em 14 de novem- LGBT fluminenses,9 esse governo militares invadem
bro, um jovem gay cisgênero4 foi implementou uma política esta- uma favela com
baleado em um parque público, tal especializada para a atenção tanques blindados.
horas após o encerramento da à população LGBT, com foco no
15ª Parada do Orgulho LGBT do enfrentamento à violência e dis- Será que esses
Rio de Janeiro, na Praia de Copa- criminação, bem como a oferta eventos são
cabana. Os disparos foram efe- de serviços, campanhas educati-
tuados por militares em serviço, vas e intervenções nos aparelhos
isolados? Que
acompanhados de gritos como públicos. projeto de cidade
anuncia-se nessas
5
“viado tem que morrer”. A (en-
tão chamada) homofobia ganhou Entre o início da elabora-
cobertura da mídia por alguns
notícias?”
ção do Programa Rio Sem
dias; pelo menos, até uma imen- Homofobia (RSH), em 2007,
sa invasão militar no Comple- e a implementação do pri-
xo de Favelas do Alemão, no Rio meiro Centro de Cidadania
de Janeiro acompanhada ao vivo e do Disque LGBT, em 2010,
pela imprensa.6 Militares alvejam observamos, no âmbito do
um jovem gay, militares invadem poder executivo do estado 133
do Rio de Janeiro, […] um pacitações de servidoras e servi-
esforço crescente de im- dores públicos federais, estaduais
plantação, expansão e qua- e municipais; monitoramento de
lificação de ações e serviços crimes de violência contra LGBT;
voltados para lésbicas, gays, intervenções específicas no sis-
bissexuais, travestis e tran- tema prisional, no Sistema Único
sexuais. Trata-se da criação de Saúde e nas redes de educação
de um abrangente e ambi- para garantia das especificidades
cioso dispositivo de prote- da população LGBT. Também or-
ção contra a discriminação ganizou três Conferências de Po-
e a violência por preconceito líticas Públicas para População
motivado por orientação se- LGBT, participou da articulação
xual e identidade de gênero das anuais Paradas do Orgulho,
que atua em distintas fren- e ainda diversas premiações, ma-
tes (CARRARA et al, 2017, p. nifestações, seminários e eventos
11-12, grifos no original) públicos sobre diversidade sexu-
al e de gênero. Atuou também na
promoção de direitos com ceri-
O edifício da Central do Brasil
mônias coletivas de união estável
ganhou, em 2010, uma gigantesca
e casamento; mutirões para reti-
bandeira do arco-íris nas janelas
ficação de nome; e, ainda, articu-
do sétimo andar, a recém-refor-
lação para promulgação de leis de
mada sede do Programa e o pri-
enfrentamento à discriminação
meiro Centro de Cidadania LGBT
em estabelecimentos comerciais
do Estado.10 As janelas exibem
e garantia de uso de nome social,
também o telefone de contato do
dentre outros. Em acordo com
Disque Cidadania LGBT, com fun-
o Plano Nacional (BRASIL, 2009,
cionamento 24 horas, sete dias
p.17), o Programa apostou em es-
por semana. O auditório do local
tratégias de comunicação, atra-
conta com um painel em home-
vés de assessorias contratadas
nagem ao adolescente assassi-
especificamente para tal finalida-
nado. No mesmo ano, o então
de.12 A estratégia estatal de gran-
“Diante das governador Sérgio Cabral conse-
des eventos, visibilidade massiva
situações guiu uma estrondosa reeleição ao
e altos custos no Rio de Janeiro,
governo do Estado, com apoio de
de violência parte do movimento LGBT flumi-
também marcava a execução da
13
política LGBT.
LGBTfóbica em nense.11
Na principal campanha lançada
espaços turísticos, Com estruturação e garantia de
em 2011, como uma resposta aos
verba, o RSH desenvolveu uma
esse Governo série de ações estratégicas: ca- crimes de ampla divulgação, o
fabricou uma
fábula de cidade
idealizada, a
garantir segurança
combinada com
beleza e isolamento,
sem misturas.”

Imagens 1, 2 e 3 – Cartazes do Programa Rio Sem Homofobia para


14
134 campanha de 2011.
lema escolhido foi ‘Um lugar ma- de seus moradores. A Central do
ravilhoso como o Rio não combi- Brasil recebeu uma ‘Unidade de
na com homofobia. Respeite lés- Ordem Pública’ para reorganiza-
bicas, gays, bissexuais, travestis ção do espaço. Em todos esses sí-
e transexuais’. As peças apresen- tios, a ordem implicou repressão
tam: um casal de homens abraça- ao comércio informal, às pessoas
dos (a indicar gays cisgênero) nos em situação de rua, à prostitui-
arcos da Lapa; um casal de mu- ção nas avenidas. Mais ainda, o
lheres abraçadas (a indicar lésbi- Complexo do Alemão seguiu com
cas cisgêneras) na Praia de Copa- invasão militar durante todo ano
cabana, com o Pão de Açúcar ao de 2011. A cidade apresentada
fundo; um grupo de mulheres (al- nos cartazes é radicalizada pela
gumas, militantes conhecidas do política pública, na tentativa de
movimento de travestis e transe- garantir o funcionamento espe-
xuais) a caminhar com o edifício rado para os grandes eventos tu-
da Central do Brasil ao lado. As rísticos. “A solidariedade, que de-
pessoas aparecem a sorrir à luz veria ser a base dos movimentos
de um dia ensolarado e de céu sociais, acabou sobrando apenas
azul, com ruas limpas e desertas. para as situações em que o ini-
Em todas elas, os logotipos do migo externo comum (a homo-
Governo do Estado, bem como a fobia) exige algum tipo de união
logo e a explicação do Programa circunstancial” (TREVISAN, 2010,
RSH. p. 51). Há um jogo em torno dos
A campanha foi concomitante cartões-postais da Cidade Mara-
a um esforço para que o Rio de vilhosa: para que sejam acessíveis
Janeiro fosse reconhecida como à população LGBT ou, mais exa-
capital do turismo gay da Améri- tamente, a uma parte dela.
ca Latina,15 na expectativa que esse Quem são, de fato, os cidadãos
público tivesse alto poder aquisi- LGBT desejados pelo Rio de Ja-
tivo e grande índice de despesas neiro dos megaeventos? Prosti-
16
com serviços turísticos. Assim, a tuição, situação de rua, trabalho
aposta do RSH para interferir na informal, migrações, não seriam
proteção da população LGBT em questões para a população LGBT?
geral funcionou em paralelo a um A prevenção contra a violência e
esforço para garantia do turismo o esperado sucesso do turismo
seguro, cordial e especializado estaria no impedimento, pelo
para gays – em especial, duran- próprio poder público, de que as
te os megaeventos, nas áreas de pessoas habitem e circulem?
17
circulação dos consumidores. Montou-se, assim, uma política
Diante das situações de violência pública que enfrenta a violência
LGBTfóbica em espaços turísti- sexual e de gênero baseada em
cos, esse Governo fabricou uma volumosos investimentos para
fábula de cidade idealizada, a ga- terceirização (por exemplo, da “Quem são, de fato,
rantir segurança combinada com comunicação) e contratação tem- os cidadãos LGBT
beleza e isolamento, sem mistu- porária (de todos os técnicos dos
ras. Centros de Cidadania e gestores
desejados pelo
A Lapa passou por diversas re- do Programa RSH). Um Programa Rio de Janeiro dos
formas nas ruas e em casarões; de alto custo para atendimento, megaeventos?”
grande parte dos pequenos bote- que tenha como efeito secun-
cos foram substituídos por bares dário o aumento da arrecadação
e restaurantes sofisticados, liga- turística, enquanto o Rio de Ja-
dos a corporações. Copacabana neiro torna-se uma das cidades
teve o valor dos aluguéis multi- de maior custo de vida no mun-
plicados, o que levou à habitação do e palco de diversas operações
precária, irregular ou migração militares marcadas por violações 135
de direitos e violências por parte insustentável; mais exatamente,
dos atores estatais.18 A população “[…] no momento atual, [a pio-
LGBT ganha visibilidade através neira política LGBT] encontra-se
do RSH, mas precisará de capaci- seriamente ameaçado dada a cri-
dade de consumo para poder, de se econômica e política por que
fato, manter-se nas áreas turísti- passa o estado do Rio de Janeiro”
cas dessa nova cidade, e usufruir (CARRARA et al, 2017, p. 25, gri-
suas políticas públicas. fos nossos). Sob o emblema da
Nas eleições para o Governo do crise, repetida a todo momento
Estado de 2014, o candidato do pela gestão que agora chega ao
PMDB (e então vice-governador, final de mandato, o Governo do
Luiz Fernando Pezão) firmou um Estado do Rio de Janeiro atrasa
compromisso de ampliação do salários de servidores e pensio-
Programa RSH e recebeu, mais nistas de todo poder executivo.
uma vez, sustentação de setores Em 2016, os Centros de Cidada-
LGBT próximos à gestão Cabral,
19
nia foram fechados, com a de-
20
especialmente no segundo turno. missão de técnicos e gestores
Defendia-se a continuidade do pelo novo Secretário da pasta,
Programa Rio Sem Homofobia, com a justificativa de redução de
21
mesmo que ao custo de políticas gastos. O Secretário foi exonera-
repressivas de segurança condu- do em poucos meses, por conta
zidas pelas forças militares, e ex- de posicionamentos e discursos
cludentes de cidadania marcada públicos de caráter preconcei-
22
pelo consumo. tuoso com a população LGBT. O
secretário seguinte afirmou que o
objetivo do seu trabalho para as
Nossa história nos aponta Olimpíadas de 2016 seria prevenir
não para o fim desses atos, crimes contra os direitos huma-
mas para a reedição e aper- nos.23 Enquanto isso, os funcioná-
feiçoamento dessas mórbi- rios seguiam com salários atra-
das estratégias. […] as praias sados, e diversas comunidades
do Rio de Janeiro, são espa- da cidade passavam por invasões
ços que estilhaçam os espe- militares durante os Jogos. No
lhos de uma burguesia que início de 2017, o Superintendente
se deseja ver asséptica, se- responsável pelo Programa desde
gura e feliz. São espaços que sua criação foi repentinamente
estilhaçam uma ética que se 24
exonerado. Quais crimes, quais
diz universal, mas que ne- direitos?
cessita da ação da polícia e
A Secretaria de Estado de Assis-
das grades dos condomínios
tência Social e Direitos Humanos
fechados para o seu bom
foi extinta; o RSH passou a fazer
funcionamento (BAPTISTA,
parte da Secretaria de Estado de
1999, p.47).
Direitos Humanos, Políticas para
as Mulheres e Idosos, e a assistên-
Os direitos para população LGBT cia social gerida pela Secretaria
foram feitos temática específica de Estado de Ciência, Tecnologia,
em políticas já existentes de edu- Inovação e Desenvolvimento So-
cação, saúde, segurança, cultura, cial. A reformulação e extinção de
assistência, através do Programa pastas, bem como a suspensão e
RSH, além do atendimento em redução de políticas públicas, fa-
serviços especializados. A polí- lam de um modo de fazer gestão
tica de alto custo e visibilidade com corte tanto de gastos quan-
massiva, construída em paralelo à to de oferta de atendimentos. No
expansão de investimentos para que diz respeito às políticas para
136 os grandes eventos, mostrou-se população LGBT, com o corte de
investimentos públicos e a Emen- dissidências sexuais e de gênero
da Constitucional 95/2016, “[…] como modos de viver legítimos.
é improvável que novas políticas O que está em jogo é apontar que
LGBT surjam e caso surjam serão o mesmo Estado que oferece –
apenas simbólicas, com recursos provisoriamente – espaços e po-
precário, impossível de funcio- líticas específicas, o faz de forma
narem adequadamente. Algumas precária, instável, jogando com
políticas que demandam poucos a manutenção de uma lógica de
recursos podem continuar a exis- consumo e a interrupção confor-
tir, mas ainda mais precarizadas” me conveniência.
(COACCI, 2016, p. 02).
Por fim, é fundamental recupe-
Mais do que desmonte, trata-se rar o que diversos grupos e mo-
de uma afirmação, na qual con- vimentos sociais já indicavam, ao
tinua-se a escolher as popula- longo da última década: a insufi-
ções que são excluídas da política ciência, omissão ou mesmo viola-
pública. O que acontece é uma ção praticada pelo poder público
exacerbação da vulnerabilidade contra população LGBT, articula-
a qual a população LGBT, espe- da com questões de classe, gêne-
cialmente periférica, já é exposta. ro, raça, etnia, origem geográfica,
Atualmente, os quatro Centros pertencimento religioso, capa-
de Cidadania e o Disque Cida- cidades corporais. No Estado do
dania LGBT funcionam de forma Rio de Janeiro, especificamente,
precária, com pagamentos espo- a última década cursos pré-ves-
rádicos aos profissionais, repeti- tibulares dirigidos para a popu-
das interrupções, com apoio de lação LGBT para reinserção no
voluntários a atuarem como téc- ambiente escolar e acadêmico,
28

nicos e, de fato, consegue man- espaços de acolhimento e convi-


ter-se abertos graças ao esforço25 vência para população LGBT em
e pressão dos movimentos LGBT. situação de rua por conta de vio-
Em 2018, foi inaugurado um novo lência e discriminação,29 organiza-
Centro de Cidadania em Volta ções que oferecem atendimento
Redonda, para atendimento ao e enfrentam a violência (inclusive
Sul Fluminense, mas através de militar) contra população LGBT
convênio com a prefeitura local, nas favelas,30 dentre outros. As-
o que difere dos outros equipa- sim, esses atores e atrizes sociais,
26
mentos. Além disso, a Prefeitura grupos e movimentos indicam
de São Gonçalo iniciou a imple- a possibilidade de intervenções
mentação de um Centro de Re- que não sejam, necessariamente,
ferência Especializado na Pro- centradas no Estado. Mais ainda,
“Mais do que
desmonte, trata-se
27
moção da Cidadania LGBTI. Há, denunciam a ausência e as viola-
portanto, o anúncio de uma re-
tomada dos serviços especializa-
ções do poder público, não só no de uma afirmação,
atendimento à população LGBT
dos, mas de caráter diferente em como também na oferta de políti- na qual continua-
termos de amplitude e visibilida- cas, como de acesso, permanên- se a escolher as
de das situações anteriores. cia e progressão escolar, ou de populações que
A reivindicação de equipamentos acolhimento e convivência para
e políticas voltadas para a po- situações vulneráveis, de ocupa- são excluídas da
pulação LGBT é de importância ção e circulação nas cidades, e política pública.”
estratégica para atendimento a ainda o efeito mortal das ações
casos de violência LGBTfóbica, de repressão e extermínio. Evi-
acolhimento de demandas que denciam, assim, o avesso da po-
foram silenciadas ou censura- lítica que foi estabelecida duran-
das em outros serviços, indu- te a gestão PMDB no Estado – o
ção e disseminação de práticas projeto de cidadania para popu-
especializadas e afirmação das lação LGBT esteve, se não vincu- 137
lado, no mínimo associado a um 10. Entre 2010 e 2012, foram inau-
modo de vivência da cidade como gurados quatro Centros de Re-
consumidores, onde não cabem ferência do RSH: Capital (Cen-
todas e todos: mortos e excluí- tral do Brasil); Leste Fluminense
(Niterói); Região Serrana (Nova
dos são o legado desse governo.
Friburgo); Baixada Fluminense
E, finalmente, apontam para uma (Duque de Caxias).
compreensão de direitos LGBT
11. Vale destacar que, em 2008,
que seja ampliada, articulada com Sérgio Cabral ingressou, como
diferentes movimentos e, em es- governador, com a Arguição de
pecial, pensada com relação aos Descumprimento de Preceito
territórios e os diversos atraves- Federal nº 132. Tal ação foi julga-
samentos de suas populações. da pelo Supremo Tribunal Fede-
ral em 2011, em conjunto com a
Ação Direta de Inconstitucionali-
dade 4277, e garantiu a equipara-
Notas:
ção das relações entre parceiros
do mesmo gênero com as uniões
estáveis de casais heterossexu-
1. Agradeço ao Prof. Dr. Thiago ais. Cf <https://bit.ly/1NJ1pCp>.
Coacci pelos valiosos questiona- 12. Nascimento (apud CARRARA et
mentos para este artigo. al, 2017, p. 248) explica que o RSH
2. Cf <https://bit.ly/2Bgv8qN > é o único Programa do Estado
3. Cf <https://bit.ly/2KWPPI0> que, naquele momento, contava
com uma Assessoria de Comuni-
4. “São conceituadas como ‘cisgê- cação própria para produção de
neros’ as pessoas cuja identidade materiais de acordo com as ne-
de gênero está de acordo com o cessidades e demandas da popu-
que socialmente se estabeleceu lação LGBT.
como o padrão para o seu sexo
biológico” (JESUS, 2012, s/p). 13. De acordo com Nascimento
(apud CARRARA et al, 2017, p.
5. Cf <https://glo.bo/2wctzV0> 224), o orçamento do RSH che-
6. Cf <https://glo.bo/2PiVyLM>. gou a R$ 3,3 milhões em 2011.
7. Principalmente os Jogos Pan-a- 14. Cf <https://bit.ly/2BheHL0>
mericanos – 2007, a Jornada 15. Cf < https://bit.ly/2wbjA2n>
Mundial da Juventude – 2013, di-
versas partidas da Copa do Mun- 16. Cf <https://glo.bo/2Mk0e6h>
do de Futebol – 2014, os Jogos 17. Vale destacar que o Plano Nacio-
Olímpicos e Paralímpicos – 2016, nal LGBT (BRASIL, 2009, p.16) já
em uma cidade já conhecida por trazia como diretriz a “Adoção de
alguns eventos turísticos anuais medidas que promovam o Brasil
de grande porte, como o Carna- como um destino acolhedor para
val, o Réveillon e a Parada do Or- turistas LGBT e difusão de infor-
gulho LGBT. mações que promovam o respei-
8. Atualmente, o partido modificou to à diversidade cultural, orien-
seu nome para MDB – Movimen- tação sexual e identidade de
to Democrático Brasileiro, num gênero”. Esse modo de produção
aparente truque eleitoral em que da política fluminense não é uma
modifica a nomenclatura sem situação excepcional, mas que
modificar os quadros partidá- funciona de forma especialmen-
rios, o projeto político e os mo- te exacerbada no Rio de Janeiro.
dos de gestão. Cf <https://bit. 18. Cf <https://bit.ly/2MsU7eX>
ly/2w4f2L2> 19. O Partido dos Trabalhadores
9. “Com frequência, lideranças ho- (PT), que chefiou a SEASDH du-
mossexuais se tornaram funcio- rante a implementação e execu-
nários/as de governos e partidos, ção do RSH, rompeu com o go-
neste último caso funcionando verno do PMDB no início de 2014
como correias de transmissão para disputar uma candidatura
partidária” (TREVISAN, 2010, p. própria ao governo do Estado. Cf
138 51) <https://bit.ly/2vQJARe>
20. Durante a gestão PMDB, a SE-
ASDH não realizou concursos
públicos, apenas processos sele-
tivos para contratação temporá-
ria de pessoal. Se, nessa gestão,
mesmo os servidores concursa-
dos passaram por meses de atra-
so de pagamentos, vale destacar
que seu vínculo profissional foi
garantido, o que possibilitou lu-
tas pela garantia dos vencimen-
tos através de ações judiciais,
manifestações públicas, ocupa-
ções da universidade, etc.
21. Cf <https://bit.ly/2MAiAiq>
22. Cf <https://glo.bo/2Pg0AbV>
23. Cf <https://bit.ly/2bceNFY>
24. Cf <https://bit.ly/2MR8oza>
25. Cf <https://glo.bo/2Bpb0Dg>
26. Cf <https://bit.ly/2HhqwyU>
27. Cf <https://bit.ly/2Mq09NB>
28. Cf <https://glo.bo/2wa3Z3e>
29. Cf <https://bit.ly/2nHMaVd>
30. Cf <https://bit.ly/2MvbH1R>

Referências:

BAPTISTA, L. A. S. Cidade dos Sábios.


São Paulo: Summus, 1999, p. 45-49.
BRASIL. Plano Nacional de Promo-
ção da Cidadania e Direitos Humanos
de LGBT. Brasília: Secretaria Especial
de Direitos Humanos da Presidência
da República, 2009.
CARRARA, S.; AGUIÃO, S.; LOPES, P.
V. L.; TOTA, M. Retratos da Política
LGBT no Estado do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: CEPESC, 2017.
COACCI, T. A PEC 55 e as Políticas
LGBT. Disponível em: <https://bit.
ly/2KYFv2b>.
JESUS, J. G. de. Identidade de gênero
e políticas de afirmação identitária.
In: ABEH. Congresso Internacional
de Estudos sobre a Diversidade Se-
xual e de Gênero. Salvador, 2012, s/p.
TREVISAN, J. S. Homocultura &
Política Homossexual no Brasil: do
Passado ao Por-vir. In: COSTA, H.;
BENTO, B.; GARCIA, W.; INÁCIO, E.;
PERES, W. S. (orgs). Retratos do Bra-
sil Homossexual: Fronteiras, subjeti-
vidades e desejos. São Paulo: EdUSP/
Imprensa Oficial, 2010, p. 49-59. 139
Anelise dos Santos
Gutterres
Rumores, remoções e resistências
A autora é antropóloga e atual-
mente desenvolve pesquisas no
na “era dos megaeventos”
campo da antropologia urba-
na e antropologia das práticas
de Estado, tendo como foco
moradia, cidade e práticas de
resistência. Atuou na Ong Fase
desenvolvendo o tema das car-
tografias sociais em contextos Resumo:
de violência institucional. At-
ualmente é pós-doutoranda no Esse artigo traz reflexões que venho desenvolvendo de modo con-
PPGAS/MN-UFRJ. tínuo a partir de minha pesquisa de doutoramento, onde acompa-
nhei o cotidiano de resistências de moradoras ameaçadas de remo-
ção no Morro da Providência, favela localizada na zona portuária,
durante o período de preparação da cidade para os megaeventos.
Descreverei ao longo do texto situações relatadas e vividas durante
esse período e o efeito das obras e empreendimentos vinculados a
esses eventos nos territórios e população periféricas, com foco nas
diferentes técnicas de remoção de moradia e deslocamentos força-
dos que foram utilizadas pelos governos nessa ocasião. O objetivo
é me somar com este trabalho aos diversos colegas que ao longo
desses anos alertaram para a recorrências de ilegalidades – vincu-
ladas aos processos de remoção de moradias, mas não somente –
nas ações realizadas pela prefeitura do Rio de Janeiro em diferentes
regiões da cidade.

tiveram na vida das moradoras e


Introdução moradores com quem dialoguei.
Me junto, portanto, a diferentes
colegas que ao longo desses anos
Esse artigo traz reflexões que ve- alertaram para a recorrências de
nho desenvolvendo de modo con- ilegalidades – vinculadas aos pro-
tínuo1 a partir de minha pesquisa cessos de remoção de moradias,
de doutoramento onde uma parte mas não somente – nas ações
da etnografia2 foi realizada no Rio realizadas pela prefeitura do Rio
de Janeiro entre os anos de 2011 de Janeiro em diferentes regiões
e 2013, principalmente no morro da cidade; seja em trabalhos aca-
da Providência, favela localizada dêmicos (Faulhaber, 2012; Fer-
na zona portuária da cidade. In- nandes, 2013; Magalhães, 2013;
serida no cotidiano de algumas Meireles, 2013); relatórios pro-
moradoras do morro, que neste duzidos por coletivos civis orga-
período se tornaram interlocu- nizados (Comitê Popular Rio da
toras fundamentais da pesquisa, Copa e Olimpíadas, 2011; 2012); ou
pude acompanhar as ameaças de matérias jornalísticas, realizadas
remoção desde suas primeiras por correspondentes de veículos
iniciativas, presenciando a forma de mídia internacional e nacional.
que foram realizadas e como ra- É fundamental ressaltar que o
pidamente elas transformaram a término do Jogos Olímpicos no
vida diária na favela. Nesse artigo Rio de Janeiro em agosto de 2016,
buscarei descrever brevemente encerra o que foi chamado - por
a forma como essas ameaças fo- jornalistas e também por colegas
ram sentidas e o efeito que elas que atuam em movimentos so-
140
ciais, organizações não governa- explicadas parcialmente, e algu-
mentais ou, como eu, produzindo mas inclusive eram omitidas afim
pesquisas através da universida- de tornar mais atraente a opção
de – de “o fim da era dos megae- que mais convinha à Secretaria
3
ventos” na capital fluminense. A de Habitação do Município. Mui-
expressão se refere ao término to raramente essas alternativas
do período, de aproximadamente incluíam a permanência em local
quinze anos, que se iniciou com onde a obra era ou seria realiza-
a escolha e divulgação do Rio de da, ou mesmo na própria casa,
Janeiro como sede de grandes com uma possibilidade de revisão
eventos esportivos. Uma “era” da intervenção planejada para a
que incluiu os Jogos Pan-ame- área. Em meio essa produção de
ricanos, anunciados em 2002 e tensões e desconfianças, algumas
realizados em 2007 no Rio de Ja- famílias não resistiram e acaba-
neiro. A Copa do Mundo, cuja es- ram saindo de suas casas. Ficou
colha do país sede foi divulgada evidente nesses casos que a saída
em 2007, para realização em 2014, também foi impulsionada por ou-
no Rio de Janeiro e em mais 11 ci- tra técnica utilizada pelos agen-
dades brasileiras. E finalmente os tes da prefeitura nesse período
Jogos Olímpicos e Paralímpicos que era a produção de entulhos
realizados entre agosto e setem- em torno das casas que tinham
bro de 2016, também na cidade passado pela “descaracterização”,
do Rio de Janeiro. vizinhas daquelas que por resis-
tência ainda permaneciam ilesas
aos processos de demolição. Os
A produção de urgências e moradores olhavam para esses
vulnerabilidades entulhos em torno de suas casas
e reconheciam que estavam em
um “cenário de guerra”, tal como
No período em que realizei a pes-
já descrevemos em outro escrito
quisa pude observar as incursões
(Gutterres, 2016). Eram famílias
de agentes ligados à secretaria de
que foram ficando desgastadas
habitação nas casas dos mora-
e adoentadas pelo obscurantis-
dores “ameaçados de remoção”.
mo da ação do munícipio, que as “A “urgência da
As “visitas” tinham muitas vezes
o objetivo aterrorizar moradoras
ameaçava, produzia documentos obra” era propalada
falsos para coagi-las a deixar suas
e moradores utilizando o paliati-
moradias, propagava rumores,
com ameaças que
vo assistencial do aluguel social foram sentidas
descaracterizava os becos onde
como política habitacional de
médio prazo. O controle do tem-
viviam, suas casas e as de seus como terror, já
vizinhos. Não é nosso objetivo,
po foi um dos efeitos da gestão da
e nem penso que seja possível, que forçavam as
habitação4 e, nesse período, a uti-
lização do adjetivo “urgência” foi
listar e classificar todas as for- famílias a decidir
mas pelo qual se tentou remover em poucos dias,
comum para enfatizar a necessi-
as pessoas de suas casas nessa
dade de saída das moradoras de
época, já que eram práticas que ou mesmo ali,
suas casas. A “urgência da obra”
era propalada com ameaças que
se reatualizaram e se reinventa- na presença do
ram durante o período. Mas con-
foram sentidas como terror, já
sidero importante ressaltar que
funcionário, o que
que forçavam as famílias a decidir
foi um interim caracterizado por fazer.”
em poucos dias, ou mesmo ali, na
uma dinâmica de tensão e con-
presença do funcionário, o que
flito na propalação de programas
fazer. As opções oferecidas pe-
de urbanização e/ou produção
los funcionários à moradia – que,
de moradias de interesse social
nas palavras dos agentes públicos
por agentes do município do Rio
da prefeitura, eram consideradas
de Janeiro, especialmente na im-
“alternativas” – seriam sempre 141
plementação do Programa Morar
Carioca, do Programa de Ace- como uma categoria em disputa,
leração de Crescimento (PAC) e ao passo que “remoção” seria uma
do Programa Minha Casa, Minha categoria de luta – geralmente
Vida (PMCMV) em localidades empregada pelos movimentos
próximas às áreas utilizadas para sociais ou moradores ligados a
a realização dos megaeventos, ou eles para dar visibilidade às ações
em favelas “pacificadas” escolhi- de esbulho e turbação de posse,
das para receberem obras vultu- promovidas pela prefeitura mu-
osas (em cifras e tamanho), geral- nicipal em moradias de favelas da
mente associadas nos discursos cidade no ínterim destes eventos.
políticos à retomada da cidadania Venho refletindo sobre essas ca-
(e dignidade) nesses locais. Con- tegorias em diálogo com a noção
forme as descrições feitas por de “palavra-ato”, utilizada por
Rachel Barros Oliveira (2016) em Vianna (2014:210) em sua pesqui-
sua pesquisa sobre a política do sa no movimento de mães e fami-
PAC e da UPP na área de Mangui- liares vítimas de violência policial
nhos, no Rio de Janeiro, nota-se no Rio de Janeiro. Conforme a au-
que as regiões que receberam tora, as palavras são usadas para
tais programas foram elegidas narrar articulações “que podem
cuidadosamente em uma rede funcionar como instrumentos de
de articulações conjunturais que acusação, de compreensão, de
envolveram interesses e afetos solidariedade e de luto, recons-
em diferentes níveis de arran- truindo-se social e subjetiva-
jos locais, político-partidários, mente” no processo em que são
empresariais. Tal qual ressalta a construídas. Entendo a expressão
autora, considero que a forma- “remoção”, portanto, como uma
ção dessa rede é um efeito e uma palavra-ato, já que compõe o lé-
condição da execução dessas po- xico dos militantes e ativistas em
líticas como também viemos ob- defesa da moradia, mobilizando
servando em áreas onde o Morar sentidos estratégicos em falas e
Carioca e o PMCMV foram imple- ações públicas.
mentados. Tal como sugerido no
Em uma luta por dignidade – que
trabalho de Machado e Figuei-
foi como compreendi o percurso
redo (1981) nos anos 80 – onde
de minhas interlocutoras frente
ressaltam que a reivindicação da
a essas práticas regulares do Es-
urbanização em determinadas
tado em seus locais de moradia -
áreas, como as das favelas cario-
elas se reuniram em um pequeno
cas, não suprimia as remoções
grupo de 11 pessoas e com apoio
e, ao contrário, poderia ser uti-
de uma rede de militantes e ati-
lizada para justificá-la, vimos os
vistas pelo direito à cidade e a
programas de urbanização pro-
moradia, ingressaram, através da
postos ou executados no perío-
Defensoria Pública do Estado do
do em que estive em campo com
Rio de Janeiro, com uma Ação Ci-
cautela. E a pesquisa mostrou a
vil Pública “contra a forma” como
relevância da previsão dos auto-
a Prefeitura do Rio de Janeiro,
res, já que muitos dos programas
mais especificamente a Secreta-
de urbanização propalados uti-
ria Municipal de Habitação, vinha
lizaram a necessidade e o dese-
conduzindo as obras na região.
jo de urbanização por parte dos
Em pesquisa recente venho ob-
moradores – leia-se, saneamento
servando que a decisão de imbri-
básico, iluminação, arruamento,
car-se em um processo judicial
acessibilidade – para efetivar a
que tem a prefeitura como réu
remoção parcial ou total das mo-
é uma decisão difícil e arriscada
radias em diferentes localidades.
para quem vive em áreas onde se
Por essa razão, é necessário dizer
142 convive com operações policiais
que entendemos a “urbanização”
de ordem; e sucessivas ações tacar o impacto que as obras de
policial-militares não programa- urbanização que justificavam as
das. É uma decisão difícil, porque remoções tiveram em uma “gra-
pode haver represálias, constran- mática inconsciente” das narra-
gimentos, coações, conflitos com doras, que precisou ser reelabo-
vizinhos que não estão descon- rada neste período, se ancorando
tentes com as práticas do Estado “nas imagens de si e de outros”
em sua vida cotidiana e que, por Trabalhando em nossa pesquisa
causa dos processos, também com o “social em termos de histó-
são enquadrados por agentes do rias inacabadas” (Das, 2007:108),
poder público - que frequente- e buscando entender as cadeias
mente utilizam o aparato midiá- de conexão provocadas pelos
tico como sua assessoria de im- rumores como atualizadoras de
prensa - como “aqueles que são certas regiões do passado (Guha
contra o progresso”. E é arriscada apud Das, 2007) notamos que
porque nesta gestão diferenciada eles - os rumores - funciona-
5
- da qual destaca Foucault (2004) ram como “gatilho mobilizador”
tendo em vista a contenção dos entre os moradores com quem
ilegalismos populares ao longo dialogamos nesse período. Por
dos séculos – todos os morado- seu “aspecto enunciativo”, “po-
res ficam ainda mais suscetíveis der performativo de circulação” e
às penalizações, sejam formais “sua capacidade de construir so-
– apreensão de mercadoria de lidariedade coletiva, e o impulso
vendedores ambulantes, deten- quase incontrolável para trans-
ções; sejam ilegais – aumento de miti-lo” consideramos que eles
6
“acertos”, “achaques”, terror psi- podem ter sido responsáveis por
cológico. Os grupos que entram diferentes mobilizações entre as
com a ação são, portanto, uma famílias e sujeitos ameaçados de “Mobilizar-
pequena parcela dos moradores remoção na Providência. Tal qual
e habitantes de áreas que passam já refletimos em outro trabalho “o se, reunir-se,
por conflitos fundiários ou áreas ficar sabendo “por alto”, operava buscar auxílio na
que nos últimos anos vem sendo como um alerta que reverberava
classificadas pelo poder público entre os moradores, os becos e
defensoria pública,
como zonas degradadas, vazias, a vizinhança mais longínqua, ga- “era uma das
áreas com habitação precária e rantindo um estado de suspen- formas de avaliar
que por essa razão são foco de são” (Gutterres, 2016:194) onde
intervenção estatal específica. era preciso avaliar se a ameaça o rumor, retirá-lo
São grupos cuja vulnerabilidade de remoção era concreta, se ti- da zona de sombra,
também está em sua condição de nha saído do plano da condição cruzá-lo com
constante e sucessiva ameaça de de vida ali para o plano da efe-
deslocamento forçado. tivação. Mobilizar-se, reunir- outras informações
se, buscar auxílio na defensoria vindas de distintos
pública, “era uma das formas de lugares e trazidas
avaliar o rumor, retirá-lo da zona
Rumores e resistências de sombra, cruzá-lo com outras por apoiadores
informações vindas de distintos e técnicos
lugares e trazidas por apoiadores
e técnicos integrantes da rede de
integrantes da rede
O ambiente de tensão que rela- resistência” que foi se formando de resistência...”
tamos foi resultado do impacto ao longo do período pesquisa-
da chegada dos megaeventos no do, e da qual também fiz parte. O
cotidiano dos moradores e mo- esforço da resiliência foi notável
radoras do Morro da Providência nesses momentos de “raciona-
– e os efeitos de sua realização lização do rumor”. Um esforço
nos territórios e população peri- e um exercício que geralmente
féricas. Também buscamos des- era expresso nas reuniões, onde
143
as obras e as remoções “eram chegarem acompanhados de um
avaliadas, estudadas, no intuito oficial de justiça para reintegrar
de descobrir se realmente ocor- a posse de imóveis desapropria-
reriam e como ocorreriam”. Foi dos há muitos anos. O controle
na partilha de informações e no do tempo, as visitas, a urgência
apoio mútuo “que se construiu da obra, as alternativas, caracte-
uma luta conjunta, de troca de rizaram a iminência da remoção;
experiências de coação, de amea- uma condição que assustava as
ças, compartilhamento das situa- pessoas, já que ela não tinha nem
ções de terror psicológico vivido” data certa para acontecer e muito
e nesses espaços de partilha que menos vinha acompanhada de in-
foram elaboradas táticas de ação formações precisas. Em nenhum
para enfrentar essas situações. dos casos das remoções e amea-
Dialogando novamente com Ve- ças de remoção que acompanhei
ena Das, entendemos, portanto, durante a pesquisa no Morro da
que o rumor “ocupa uma região Providência – tanto de moradias:
da linguagem com o potencial Rua do Livramento, no Bairro
de nos fazer experimentar even- da Gamboa; Ladeira do Barroso,
tos, não simplesmente apontan- Grota e Escadaria; como de pos-
do para eles como algo externo” tos de trabalho, – os projetos fo-
(2001:108), mas os produzindo no ram apresentados ou discutidos
próprio ato de contar. Pensan- com a população. As fontes de
do nos processos de tradução acesso – às obras e aos projetos
e rotação relativos a esse ato e previstos para a região portuá-
sugeridos pela autora buscamos ria, e nela o Morro da Providên-
durante a pesquisa de doutorado cia – eram indiretas: os editais de
retomar algumas “regiões do pas- licitação pública divulgados pelo
sado” trazidas nas narrativas das portal de compras do município
interlocutoras e que criaram por do Rio de Janeiro; os balanços
intermédio dos rumores “uma do PAC; as placas nos locais das
sensação de continuidade entre obras quando elas existiam; e os
eventos que de outra forma po- documentos apresentados nas
deriam parecer desconectados”. ações civis públicas promovidas
Entre essas regiões rememora- contra a prefeitura por – entre
das, estão as diversas ocupações outras violações - não apresen-
militares vivida pelos moradores tar esses projetos à população.
no início do século XXI, que re- Soma-se a isso o fato de que as
tomam as situações de privação, plantas oficiais do município não
de coação, de perda de direitos, e correspondem a como os espaços
que foi chamada pelos moradores são ocupados, utilizados, elabo-
da Providência e arredores como rados por aqueles que ali vivem.
“época braba”. Termino destacando a relevância
Como tentamos apontar neste da casa como expressão do sen-
texto, a ameaça de remoção dos sível, como parte do projeto de
moradores na região da Provi- vida dos habitantes das cidades,
dência se iniciou através de ru- especialmente, daqueles que vi-
mores sobre as obras, que cor- vem nas favelas. A violência de
riam de casa em casa com as uma remoção – vivenciar o ter-
mais variadas versões; depois ror das ameaças que anteciparam
aconteciam visitas de funcioná- um futuro onde as casas seriam
rios, de sujeitos que se passavam demolidas – foram situações ex-
por funcionários, e de técnicos perimentadas não só pelos mora-
que forneciam as mais diferentes dores da Providência, mas pelos
explicações sobre a sua presen- de diversas outras favelas e vi-
ça ali. Quando não era o caso de las em diferentes locais do país
144
no período de “preparação” das mas estratégias utilizadas pelo
cidades-sede para a realização município-réu a partir das ações
dos megaeventos. Tal como ve- do NUTH.
nho destacando em minha tra- 5. É preciso destacar aqui o traba-
jetória de pesquisa sobre casas, lho de Vera Telles que retoma a
moradias e habitações – a casa é gestão dos ilegalismos presente
na obra de Foucault, para refle-
um processo, é uma bricolagem
tir sobre os diferentes ilegalis-
permanente, uma constante au- mos que costuram as tramas e
toconstrução material-subjetiva. situações contemporâneas dos
É ela que carrega no cotidiano a centros e periferias das cidades.
força da ressignificação do espa- Para ler mais sobre o tema con-
ço, criando lugares, existências e sulte a coletânea organizada por
resistências. Azais, Kessler e Telles (2006).
6. Sobre esta prática de extorsão
de dinheiro, ver o relatório so-
Notas: bre os crimes de maio de 2006
em São Paulo realizado pela Clí-
nica de Direitos Humanos da Fa-
culdade de Direito de Harvard e
1. Para realizar estas pesquisas e
pela Justiça Global (2011); crimes
preparar a divulgação dos seus
pelos quais também reflete Ga-
resultados, recebo uma bolsa de
briel Feltran em sua tese de dou-
estudos do PNPD, CAPES.
torado (2011).
2. Na pesquisa desenvolvida para
tese (Gutterres, 2014), que tam-
bém foi realizada na cidade de
Porto Alegre, acompanhei a Referências:
formação de algumas redes de
contestação às obras dos “me-
gaeventos” no Brasil e as recor-
rências da governamentalidade
na gestão da habitação dos po- AZAÏS, Christian, Gabriel KESSLER,
bres em diferentes localidades e Vera da Silva TELLES (org.). Ilega-
do país durante o período de lismos, cidade e política. Belo Hori-
preparação para tais eventos. A zonte: Editora Fino Traço, 2012.
noção de governamentalidade CDHFDH e JG. “São Paulo sob acha-
de Michel Foucault (2008), por- que: Corrupção, Crime Organizado
tanto, foi imprescindível para re- e Violência institucional em maio de
fletir sobre a existência de uma 2006”. Clínica de Direitos Humanos
mesma forma de atuação dos go- da Faculdade de Direito de Harvard e
vernos - em periferias e favelas Justiça Global. Maio de 2011. Disponí-
das cidades-sede - durante todo vel em: http://hrp.law.harvard.edu/
o período de preparação para a wp-content/uploads/2011/05/full-
realização da Copa do Mundo -with-cover.pdf; acessado em ago.
FIFA no país. de 2018.
3. Ver “Brasil se despede da Olimpí- COMITÊ POPULAR RIO DA COPA E
ada e encerra era dos megaeven- OLIMPÍADAS, 2011, Megaeventos e
tos”, Jornal do Brasil, 22 de agos- Violação dos Direitos Humanos no
to de 2016, disponível em <www. Rio de Janeiro. Dossiê do Comitê Po-
jb.com.br/olimpiada-2016/no- pular da Copa e Olimpíadas do Rio de
ticias/2016/08/22/brasil-se- Janeiro. Disponível em http://www.
despede-da- olimpiada-e-en- apublica.org/wp-content/uplo-
cerra-era-dos-megaeventos/ > ads/2012/09/dossic3aa-megaeven-
(última consulta em outubro de tos-e-violac3a7c3b5es-dos-direitos-
2017). -humanos-no-rio-de-janeiro.pdf;
4. Em outro trabalho refleti sobre a acessado em abr. 2017.
gestão da habitação (Gutterres, COMITÊ POPULAR RIO DA COPA
2017) em áreas de favelas e peri- E OLIMPÍADAS, 2012, Megaeven-
ferias na “era dos megaeventos” tos e Violação dos Direitos Huma-
nos no Rio de Janeiro. Dossiê do 145
propondo uma análise de algu-
Comitê Popular da Copa e Olim- Vozes, 2004.
píadas do Rio de Janeiro, 2ª Ed. FOUCAULT, Michel. O Nascimento
Disponível em <http://www.por- da Biopolítica. São Paulo, Martins
talpopulardacopa.org.br/index. Fontes, 2008.
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Sem Clientes e Sem Capital: Dra. Ana Paula da Silva

O desastre dos megaeventos Dr. Thaddeus Gregory


Blanchette

cariocas para a prostituição na Ana Paula da Silva e Thaddeus


Gregory Blanchette são an-
tropólogios que investigam a
cidade prostituição, tráfico de pesso-
as, e turismo sexual no Rio de
Janeiro desde 2004. São mem-
bros fundadores do Observa-
Resumo: tório da Prostituição da UFRJ
e professores de antropologia
Diferente do esperado, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olím- na UFF e UFRJ (respetivamen-
picos de 2016 foram catastróficas para a venda de sexo na cidade te). Ana Paula é atualmente a
de Rio de Janeiro. Não só não houve um aumento no fluxo de clien- Presidenta do Coletivo Davida,
tes na cidade durante esses eventos, como tudo indica que teve que luta para os direitos tra-
uma queda. Essa foi desastrosa para a prostituição organizada ca- balhistas e humanos das tra-
balhadoras do sexo.
rioca, que contava com um grande aumento no número dos clien-
tes, trazidos pelos eventos, para capitalizar um setor econômico
varrido por crises e a gentrificação criada pelos eventos.

Antes, durante, e depois a Copa todas as informações levantadas


do Mundo e os Jogos Olímpicos, por nossos pesquisadores e asso-
o Observatório da Prostituição ciados, mas uma coisa podemos
(um projeto de pesquisa e ex- dizer com firmeza: a prostituição
tensão da Universidade Fede- não aumentou na Cidade Maravi-
ral do Rio de Janeiro, que reune lha 2014 durante a Copa do Mun-
“Ainda estamos
cientistas sociais, jornalistas, e do e os Jogos Olímpicos de 2016. contabilizando
trabalhadoras sexuais), conduziu Baseado em contagens de clien- todas as
pesquisas etnográficas intensivas
nos principais pontos de prosti-
tes e prostitutas feitos constan- informações
te e sistematicamente nos pon-
tuição do Rio de Janeiro. Entre tos principais da venda do sexo
levantadas
Janeiro de 2013 e Agosto de 2017, no Rio, e também nos relatórios por nossos
nossa equipe totalizou algo em das próprias trabalhadoras do pesquisadores e
torno de 5000 horas de pesqui- sexo, parece que o movimento
sa etnográfica, conduzindo quase comercial do sexo diminuiu 15%
associados, mas
200 entrevistas estruturadas com na Copa do Mundo e entre 0 - 5% uma coisa podemos
trabalhadoras sexuais e incontá- nos Jogos Olímpicos. O principal dizer com firmeza:
veis discussões mais informais motivo para essa queda foi a de-
com milhares de outras. Nossas a prostituição não
sorganização nas rotinas da ci-
equipes estavam nas ruas, bor- dade causada pelos dois eventos. aumentou na Cidade
deis, massagens, termas, cine- Feriados constantes, interdições Maravilha 2014
mas, bares onde o sexo é vendido de vias públicas, e esquemas de
quase todos os dias durante am- durante a Copa do
segurança que (como efeito cola-
bos eventos. Visitamos rotineira- teral) fecharam o acesso a pontos Mundo e os Jogos
mente mais de 80 pontos onde o de prostituição (particularmen- Olímpicos de 2016.”
sexo é comercializado, prestando te os da zona tradicional de Vila
atenção especial nos 20 que as Mimosa) significaram uma queda
pesquisas anteriores tinham re- bruta no número de clientes ca-
velados como os pontos de pros- riocas nativos frequentando as
tituição mais frequentados por áreas mais movimentadas da ci-
turistas estrangeiros. dade onde o sexo é vendido. Es-
Ainda estamos contabilizando ses clientes não foram repostos, 147
em quantidade significativa, por e reaberto imediatamente após
turistas, estrangeiros ou brasilei- sua conclusão. O fechamento do
ros. bar empurrou a prostituição para
Na Copa do Mundo, houve um a praça adjacente, onde centenas
aumento significante na pros- de garotas de programa iriam se
tituição ligada aos 15 principais misturar com vendedores ambu-
pontos de turismo sexual no bair- lantes, moradores de rua, e – é
ro de Copacabana. Todavia, esse claro – a população residente do
aumento não foi suficiente para bairro. Não diminuiu em nada a
equilibrar a grande queda de mo- prostituição ou o turismo sexual,
vimento nos 90 pontos de pros- mas garantiu que isto acontece-
tituição do Centro do Rio e nos ria num espaço de uso misto, fre-
mais ou menos 60 pontos em Vila quentado por famílias e menores
Mimosa. Tanto a Vila quanto o de idade. (Durante os grandes
Centro ficaram quase abandona- eventos, o Balcony cobrava en-
dos em dias de jogo no Maracanã trada e forçava seus frequenta-
ou quando a Seleção Brasileira jo- dores a mostrar carteira de iden-
gava. Isto significava algo em tor- tidade para poder entrar no bar,
no de dois dias de trabalho perdi- evitando assim a frequência de
dos, por semana, para as garotas menores.)
de programa dessas regiões, que Um efeito colateral mais grave
configura a grande maioria das e duradouro da Copa do Mundo
trabalhadoras sexuais do Rio. foi o fechamento da maior con-
Turistas estrangeiros quase não centração de bordeis baratos de
apareceram no Centro e na Vila Niterói, cidade vizinha do Rio, em
Mimosa. No Centro, houve a pre- função de projetos de renovação
sença em alguns bordeis de um urbana naquela cidade ligados
pequeno número de indianos e à Copa e aos Jogos Olímpicos. A
filipinos, trabalhadores oriundos polícia civil mobilizou quase 200
dos navios cruzeiros aportados agentes para ilegalmente expul-
na cidade. Na Vila Mimosa, pre- sar em torno de 190 garotas de
senciamos menos que uma dúzia programa que trabalhavam num
de turistas estrangeiros durante prédio no centro de Niterói. As
todo o evento. Em nenhuma das expulsões eram feitas de forma
duas regiões houve a presença extra-jurídica e envolviam acu-
expressiva de turistas nacionais. sações das mulheres de roubos e
Esse desequilíbrio no mercado estupros cometidos por parte da
sexual causou uma migração in- polícia. O fechamento desse pré-
terna de garotas de programa, dio acabou criando a migração
que saíram da Zona Norte e do forçada dessas trabalhadoras se-
Centro rumo à Copacabana du- xuais para outras áreas da região
rante a segunda metade da Copa. metropolitana, principalmente
Esse bairro, portanto, encheu-se par a Vila Mimosa e para os anéis
de trabalhadoras sexuais, cuja rodoviários em torno de Rio e Ni-
presença espalhou-se pelas cal- terói.
çadas da orla em função da de- Obras de gentrificação feitas em
cisão das autoridades de fechar prole dos mega-eventos, como a
o Balcony Bar, o principal ponto testemunhada em Niterói, aca-
de turismo sexual em Copacaba- bou fechando em torno de 30
na. Os donos do Balcony foram pontos de prostituição na cida-
acusados de exploração sexual de entre 2012 e 2016. Esse efei-
de crianças e adolescentes: acu- to foi ainda potencializado pela
sações que nunca chegaram ao crise econômica geral que co-
tribunal. Balcony, portanto, foi meçou a atingir o Rio de Janeiro
148 fechado no primeiro dia da Copa em 2014 e que teve um enorme
impacto no comércio do sexo. A estádio de futebol de Maracanã.
conclusão das obras dos megae-
Os pontos que demonstraram
ventos, acompanhada pela crise
uma melhoria no fluxo da clien-
nos pagamentos aos servidores
tela durante os Jogos eram, por-
públicos em 2016, significava que
tanto, distribuídos pela cidade e
houve cada vez menos dinheiro
não concentrados em Copacaba-
circulando no mercado de sexo
na. A Barra da Tijuca, em particu-
da cidade. Estimamos que acon-
lar, testemunhou um aumento no
teceu uma queda de mais ou me-
movimento de sexo comerciali-
nos 30% no movimento nos prin-
zado em alguns pontos, pelo fato
cipais pontos de venda do sexo
de que boa parte dos Jogos terem
entre 2014 e 2016. Portanto, não
sido sediados naquele bairro ci-
deve-se achar que a relativa es-
dade. A inclusão do Centro no ro-
tabilidade do mercado sexual du-
teiro turístico da Olimpíada tam-
rante os Jogos Olímpícos foi em
bém significou que essa região
função de um aumento do sexo
não foi “abandonada”, como foi o
comercializado na cidade relativa
caso em 2014. Portanto, os Jogos
a Copa. De fato, houve uma queda
não foram economicamente de-
enorme anterior aos Jogos, cau-
sastrosas para as trabalhadoras
sada pela crise. Essa não foi ali-
sexuais dessa região. Mesmo as-
viada pela Olimpíada.
sim, não houve um aumento geral
Os efeitos dos Jogos na prosti-
no movimento do sexo comercia-
tuição carioca, porém, não fo-
lizado no Rio e muitos pontos, em
ram tão desequilibradas quanto
Copacabana em particular, foram
foi o caso da Copa do Mundo. Eis
menos procurados do que duran-
porque os Jogos desorganizaram
te a Copa do Mundo.
menos a rotina da cidade. Houve
menos feriados e as interdições Na esteira dos megaeventos, a
causadas pelas obras já tinham prostituição no Rio está se re-
acabado. Isto significava que a configurando – mais em função
prostituição no Centro, pelo me- da continuação da crise econô-
nos, não sofria tantos efeitos ne- mica do que por qualquer outra
gativos quanto em 2014. A Vila razão. Ironicamente, o conge-
Mimosa, porém, ainda foi forte- lamento dos preços mobiliários
mente afetada pelas interdições causado pela implosão da bolha
em nome da segurança pública imobiliária carioca, que foi insti-
que aconteceram em torno do gada pelos eventos, tem incen-

149
tivado a volta de alguns bordeis
para o Centro da cidade. Todavia,
a crise ainda continua tão forte
que podemos dizer que estamos
testemunhando as piores condi-
ções econômicas do sexo comer-
cializado nas últimas décadas. No
momento presente, parece que
está acontecendo uma concen-
tração do capital envolvido no
mercado do sexo comercial, com
os donos de bordeis mais bem
capitalizados comprando os que
estão fechando. E isto, na última
análise, pode ser o efeito mais
duradouro dos megaeventos do
Rio sob a prostituição na cidade:
um grande número de pequenos
bordeis mais tradicionais, muitas
vezes comandadas por mulheres,
não conseguiram se capitalizar
com os eventos, conforme espe-
rado. Seu lugar está sendo toma-
do, aparentemente, por venues
mais capitalizados, na tradição
dos gentlemen’s clubs dos Estado
Unidos. Enfim, como em tantas
outras áreas econômica cariocas,
os megaventos parecem ter pri-
vilegiado o grande capital ao cus-
to das pequenas empresas e das
empreendedoras individuais.
Em conclusão, queremos fechar
aqui com as imagens que mais
nos impressionaram durante esse
ciclo de megaeventos no Rio: as
portas fechadas de alguns dos
vários dos puteiros do Centro da
cidade na Copa de 2014:

150
Sonhos sujos e The Brazilian Dream Raphael Soifer
Raphael (Raphi) Soifer é per-
of the American Way of Life former, pesquisador e bagun-
ceiro estadunidense radicado,
desde 2010, no Rio de Janeiro,
onde investiga estéticas de
poder e resistência no espaço
urbano. É integrante/colabo-
rador de alguns coletivos de
arte de rua por aí e doutor em
Planejamento Urbano e Regio-
Resumo: nal pelo IPPUR/UFRJ.

“Sonhos sujos e The Brazilian Dream of the American Way of Life”


se trata de uma pesquisa-relato dos protestos à inauguração do
Museu da Arte do Rio (MAR) em março de 2013. Com foco na rela-
ção entre corpos, território e memória, o texto utiliza a linguagem
de sonhos para explorar a violência da “revitalização” associada aos
megaeventos no Rio de Janeiro e a resistência que surgiu contra
essas reformas. O artigo se baseia em palavras de ordem, trata-
mentos jornalísticos e discursos políticos para destacar a contes-
tação do espaço urbano carioca.
O texto é adaptado do primeiro capítulo de “‘Olha eu aqui de novo!’:
Sonhos, assombramentos e jogos de memória nas ruas do Rio de
Janeiro (com desvios em outras tantas ruas por aí)”, tese de douto-
rado defendida no IPPUR/UFRJ em setembro de 2017.

vivas: bagunçadas, barulhentas,


1 de março de 2013 violentas e vitais. E não consigo
Praça Mauá, Zona Portuária, acreditar que um gigante poderia
Rio de Janeiro cair em um sono perfeito, neutro,
totalmente sossegado. Tendo a
Quero falar de março de 2013 acreditar que, quando se lida com
porque acabamos olhando para qualquer cidade, mas especial-
junho daquele ano como se tives- mente com Rio de Janeiro, não há
se surgido do nada, como se mi- sono neutro para ninguém.
lhões de pessoas fossem se juntar Estou convencido que, enquanto
em “jornadas” por ruas que até a gente sonha com cidades e em
então eram silenciosas e inati- cidades e sobre cidades, as cida-
vas, como se o celebrado “gigante des também sonham; ou seja, nós
adormecido” tivesse acordado de atribuímos e conferimos vontade
um sono tão profundo que che- e subjetividade às próprias cida-
gou a ser uma estupefação que des, atributos esses que acabam
nada tenha chegado antes para sendo refletidos em nossas inte-
incomodá-lo, como se tudo que rações com elas e que fazem com
tenha acontecido desde então que os sonhos das cidades não
tivesse emergido de uma origem sejam inteiramente nossos.
única e fixa. Por isso, vejo o primeiro dia de
março de 2013 como um dia de
Ih! Fudeu! colisões massivas entre vários so-
O povo apareceu! nhos diferentes do Rio de Janeiro.
Não consigo acreditar em ne-
nhuma hipótese de ruas inativas, Ocupe a Mauá
principalmente no Rio de Janeiro, antes que o MAR invada! (BLO-
cujas vias sempre me pareciam CO LIVRE REC!CLATO, panfleto) 151
Aqui é um local de brincadeira, LIVRE REC!CLATO, panfleto)
de desenvolvimento cognitivo. Do lado de dentro do Museu, re-
Convido todos a mergulhar neste presentantes de uma chamada
MAR. (MARINHO apud TARDA- classe artística se encontravam
GÚILA, in O GLOBO, 1/3/13) com representantes de uma cha-
O primeiro dia de março de 2013 mada classe empresarial e uma
foi uma interrupção breve e par- chamada classe política.
cial em que esses sonhos se man- O evento contou com a presença
tiveram sendo sonhados, mesmo da presidente da República Dilma
frente a uma crescente consci- Rousseff; do governador do Es-
ência ou racionalidade desperta- tado, Sérgio Cabral; do prefeito
dora. Foi um momento em que os da cidade, Eduardo Paes; do di-
sonhos se puxavam, se acotove- retor-presidente da Vale, Murilo
lavam, se agitavam, um momen- Ferreira, além de outras autori-
to em que certos sonhos se pe- dades, artistas e formadores
netravam para dentro de certos de opinião. (VALE, 4/3/13)
outros sonhos, enquanto empur- Não cheguei a entrar no MAR na-
ravam outros para fora. Foi um quela noite, não sendo artista da-
dia em que os sonhos tomaram quele naipe e nem muito menos
corpos, em que se instauravam formador de qualquer opinião
distintamente, materialmente, fi- alheia. Ou seja, não cheguei a
sicamente na rua. compartilhar o sonho que se ar-
Esse primeiro dia de março de ticulava lá dentro do MAR, o qual
2013 foi o dia da inauguração, na eu penso como sendo The Brazi-
Praça Mauá, número 5, na Zona lian Dream of the American Way
Portuária, do MAR, of Life: um sonho reformista de
[O] Museu de Arte do Rio, um desenvolvimentismo em que
uma das âncoras culturais do a ORDEM gera o PROGRESSO
Porto Maravilha…um (e vice versa)
espaço dedicado à arte e à em letras maiúsculas e traços ine-
cultura visual. quivocamente verde-e-amarelos;
(PORTO MARAVILHA, um sonho em que governantes e
“Museu de Arte do Rio”) empresárixs se interligam para
De uma maneira necessariamen- todo mundo se apoiar e sair ga-
te simplificada, nhando
(e ganhando bem);
e, portanto, bastante útil,
um sonho em que museus glamo-
poderia se dizer que, nesse dia, rosos não apenas telegrafam uma
aconteceu um encontro muito sofisticação primeiro-mundista
particular entre duas visões, dois como integram uma estratégia
sonhos generalizados da cidade. de melhoramento. Em fim, The
Do lado de fora, protestávamos Brazilian Dream of the American
contra um dito progresso que Way of Life se trata de um sonho
avançava com a força de um so- em que a escala e concretude de
nhado certas conquistas se destacam na
(mas jamais construído) tentativa de fazer sumir a escala
trem-bala, atropelando ou derru- dos problemas sociais mais dis-
bando tudo que estivesse na sua persados por aí.
frente.
Somos contra a Revital- [O] MAR está ciente de
iza$$ão! seu papel não apenas em rela-
ção à arte, à cultura e ao co-
O MAR não tá pra peixe nhecimento, mas também como
152 só pra tubarão! (BLOCO modelo inovador de gestão.
(MAR, Planejamento es- tigadoras e de comunidades es-
tratégico, p. 8) pontâneas.
Enquanto isso, do lado de fora do
MAR, mais algumas cento-e-tan- Nós somos contra o Choque de
tas pessoas se juntavam. Muitos Ordem.1 Nós somos contra ho-
de nós batíamos latas, seguráva- mofobia.
mos cartazes, fazíamos perfor- Não acreditamos em nenhum
mances improvisadas, gritávamos padrão, e não queremos ne-
palavras de ordem e nos chocá- nhuma explicação para legalizar
vamos com a pólicia, com segu- aquilo que a gente quer fazer,
ranças do museu e com quem es- dizer, viver e acreditar.
tivesse chegando na inauguração (COLETIVO COIOTE, vídeo 2012)
pela porta de frente ou saindo
pela porta de trás. Ao mesmo tempo em que Rec!-
clato espalhava sonhos sujos por
Eu estava lá com Bloco Livre Re- aí, também acabava juntando e
c!clato, um conjunto orgulhosa- concentrando a energia de um
mente desorganizado que se jun- sonho mais-ou-menos unificado
tava a cada primeira sexta-feira de ruas irreprimivelmente ativas
do mês para bater em latas, su- e polirrítmicas; isto é, sonhos de
catas e qualquer outro objeto que uma cidade que se articula de
fizesse barulho. Sem direção, sem muitas formas ao mesmo tempo,
ensaios e sem nenhum patrocínio justamente através da união tem-
oficial porária entre objetos e pessoas
tidos, pela lógica de The Brazilian
(a não ser as dezenas de latas de
Dream of the American Way of
óleo usadas que frequentemente
Life, como sendo detritos.
foram guardadas por funcionári-
xs da fábrica de Biscoito Globo, As ruas são suas. Ocupe-as!
na Rua do Senado, e doadas ao Rec!clato condensava e fortalecia
bloco; mas me parece que essas esses sonhos sujos, ou talvez o
foram dadas muito mais em um Bloco em si teria sido um tipo de
instinto de camaradagem de que sonho sujo recorrente
patrocínio).
(cabe enfatizar que um sonho
sujo da cidade
Rec!clato costumava circular pela
não seria a mesma coisa que um
Lapa, se arrastando desde a Pra-
sonho de uma cidade suja).
ça da Cruz Vermelha até chegar
pelo menos nos Arcos, seguindo Depois de dois anos se projetan-
caminhos improvisados decidi- do pela Lapa em protesto à tre-
dos na hora pelas pessoas pre- menda violência da crescente
sentes naquele dia específico. A gentrificação do Rio de Janeiro,
composição do Bloco também Rec!clato foi à Praça Mauá na-
variava de cada mês em mês, e in- quela noite para se juntar ao pro-
cluía qualquer umx que quisesse testo contra o MAR, esse símbolo
chegar junto para tocar: punks, por excelência de The Brazilian
artistas, pessoas em situação de Dream of the American Way of
rua, estudantes, turistas; gen- Life, a concretização de um pro-
te que se identificava com quase cesso de “revitalização” que se diz
todas essas categorias ao mesmo limpadora e que se pôs a higieni-
tempo, ou que não se identificava zar a cidade de uma forma geral.
com nenhuma. Todo mês des-
de o Carnaval de 2011, Rec!clato Me apoiando em muitas defini-
espalhava sonhos ruidosos pelas ções alheias, entendo a gentrifi-
ruas: sonhos sujos de sintonias cação como uma comodificação
inventadas, de dissonâncias ins- de espaços urbanos tradicional- 153
mente tidos como subalternos, ção de 63% para seu governo e
uma ausentação forçada dxs uma aprovação pessoal de 79%.
moradorxs tradicionais Não imagino que teria como se-
(por forças mercadológicos e parar aquela índice de The Brazi-
pela violência física do poder lian Dream of the American Way
público, quase sempre agindo of Life; mesmo se tivesse como,
juntas), essa não era uma separação que a
própria Dilma teve a mínima von-
e um embranquecimento desses
tade de efetuar naquela noite.
espaços, tradicionalmente habi-
tados por pessoas racializadas. O Eu queria cumprimentar o Sérgio
processo de “descobrimento” por Cabral e o Eduardo Paes, e dizer
pessoas tradicionalmente empo- para eles que hoje é um dia, de
deradas (racial, cultural, política fato, especial. Hoje se comemo-
e financeiramente) duplica o ra os 448 anos do Rio de Janeiro.
peso desta exclusão, exoticizan- Queria também dizer para o João
do a marginalização histórica Roberto Marinho e para o Murilo,
dos espaços em si e aprofundan- um das Organizações Globo, e o
do a marginalização individual outro da Vale, sobre a importân-
dxs moradorxs que acabam sen- cia dessa parceria que mostra um
do isoladxs ou deslocadxs. avanço do Brasil, um avanço do
Brasil porque é uma parceria em
Protestávamos contra uma dita que se unem os governos e se
“revitalização” de uma Zona Por- unem também os empresários.
tuária dita “maravilha” que se (ROUSSEFF, 2013)
montava diante e através da des- Por mais hegemônico que possa
truição de centenas de casas e da ser The Brazilian Dream of the
expulsão de milhares de morado- American Way of Life, é claro
res, de uma mega-gentrificação à que existem diversos desvios e
carioca. diversas outras visões dentro de
Protestávamos contra uma dita qualquer sonho. É claro também
“Pacificação” policial que já se que, nesse dia primeiro de mar-
distinguia, durante muito tempo, ço de 2013, vários subsonhos se
por seu caráter violentamente infiltraram tanto nesse sonho hi-
esmagador. gienizador do lado de dentro do
MAR quanto no sonho sujo que se
Protestávamos contra a limitação espalhava pelo lado de fora, inclu-
das ruas da cidade, contra o fun- sive nos subsonhos que permea-
cionalismo que codificava certas ram os dois, interligando um ao
práticas e pessoas como acei- outro. Tinham bastante pessoas
táveis e codificava outras como dentro do MAR que certamente
ameaçadoras. estariam fazendo barulho do lado
Protestávamos, em fim, contra de fora se não tivessem sido con-
um sonho de uma cidade que se vidadas, mas que tinham fome do
mostrava cada vez mais dividida reconhecimento e sede da cham-
e exclusiva. panhe que só se encontrariam lá
Dentro do MAR, do outro lado dentro. Também não duvido que
dxs seguranças, policiais e bar- tinham pessoas do lado de fora
ricadas, The Brazilian Dream of que teriam aceito, muito felizes,
the American Way of Life conti- os canapés e os apertos de mão
nuava a todo vapor; talvez esta- oferecidos do lado de dentro,
ria chegando ao seu auge. A en- convencidas de que a sua própria
tão-presidente Dilma Rousseff presença no museu comprovasse
estava presente, duas semanas que, pelo menos até agora, nada
antes de atingir, numa sondagem seria totalmente perdido, que a
2
154 do IBOPE, uma índice de aprova- colaboração da chamada classe
artística com as chamadas clas- e lembro que alguém do Coletivo
ses política e empresarial até te- Coiote, o grupo de performance
ria como dar certo. mais punk que já conheci, abor-
Aliás, dá para ver essa colabo- dava xs bambambãs que entra-
ração na própria arquitetura do vam e saíam, gritando
museu
Como seu perfume fede!
O MAR está instalado na Praça
Ai, quero comer seu cocô!
Mauá em dois prédios de perfis
Deixa eu comer seu cocô!
heterogêneos e interligados: o
Palacete Dom João VI, tombado e Com a inauguração do MAR, The
eclético, e o edifício vizinho, de Brazilian Dream of the American
estilo modernista – originalmen- Way of Life chegou a um certo
te um terminal rodoviário... ápice, pelo menos na sua versão
(O MAR, site) carioca e contemporânea.
Um dos maiores desafios da equi- O Museu de Arte do Rio – MAR
pe da obra foi unir dois edifícios – marca, sem sombra de dúvida,
tão diferentes. A harmonia entre uma cidade. O Rio de Janeiro tem
os imóveis foi possibilitada pela várias marcas. (ROUSEFF 2013)
cobertura fluida que lembra The Brazilian Dream of the Ame-
ondas do mar, uma das caracte- rican Way of Life fez do museu
rísticas mais marcantes na arqui- uma marca, e impulsionou o posi-
tetura do complexo. (PORTO cionamento da cidade em si como
MARAVILHA, “Museu de Arte do um produto altamente vendível e
Rio”) consumível. Mas a cidade sonha-
Por coincidência ou ironia, foi da por The Brazilian Dream of the
justamente nessa busca pela har- American Way of Life também é
monia entre imóveis que a dis- consumidora feroz que destrói
sonância entre os sonhos do dia certas marcas enquanto compra
primeiro de março de 2013 se fez outras, na tentativa de usar essa
mais perceptível. Aquela tal co- absorção para ostentar seu cará-
bertura fluida acabou tendo um ter cosmopolita e internacional.
efeito acústico bastante distinto A eficácia possibilitada pela des-
de ampliar os sons vindo da rua, truição de casas, pela destruição
fazendo com que, por exemplo, de comportamentos e pela des-
desse para ouvir, até do último truição de corpos também estaria
andar, algumas dezenas de pes- à mostra na vontade de propagar
soas batendo latas em uma a marca da cidade, e o seu poder
sonora manifestação, sem de consumo, através de parcerias
confusão, ao lado de fora. (POR- público-privadas (PPPs) cada vez
TO e TORRES in G1 ) mais grandiosas.
Na real, não lembro da nossa “so- Bloco Livre Rec!clato se pôs a evo-
nora manifestação” como sendo car os espíritos de objetos e pes-
sem confusão, mas confesso que soas descartadxs por The Brazi-
tem muitos detalhes daquela noi- lian Dream of the American Way
te que já esqueci. Não lembro de of Life, na tentativa de incorporar
como a gente se preparou antes, alguns deles, ou, pelo menos, de
nem de exatamente por qual ca- batucar contra um silenciamento
minho andamos para chegar lá no forçado. As latas e sucatas, de-
MAR. jetos da racionalização desse So-
Lembro que ficamos vadiando nho, assumiram um papel central,
por entre as barricadas da entra- contrapondo seu barulho às falas
da do Museu exclusivamente direcionadas da
(na Avenida Rodrigues Alves) cerimônia de inauguração e em-
e as da saída baralhando o jogo de memória
(na Praça Mauá); que girava em torno da centrali- 155
dade daquele museu. Acesso em: 15 de agosto de 2018
Não fomos o único coletivo pre- ____.“Planejamento estratégico”.
sente do lado de fora do MAR http://www.museudeartedorio.org.
naquela noite. Lembro principal- br/sites/default/files/planejamen-
mente do Reage Artista! to_estrategico_mar.pdf Acesso em:
15 de agosto de 2018
(movimento social formado de
PORTO MARAVILHA. “Museu de
gente do chamado setor cultural)
Arte do Rio”. http://portomaravilha.
protestando contra a abertura de com.br/museu_arte Acesso em: 15
um suntuoso museu que se diz de agosto de 2018
ser da cidade frente à generali- PORTO, Henrique e Lívia TORRES.
zada indisponibilidade de espa- “Museu de Arte do Rio é inaugurada”.
ços artísticos públicos no Rio de In G1, 1 de março de 2013.
Janeiro, que naquele momento se http://g1.globo.com/rio-de-janei-
encontravam lacrados, suposta- ro/noticia/2013/03/museu-de-ar-
mente em reação a um incêndio te-do-rio-e-inaugurado.html Acesso
num boate em Santa Maria, Rio em: 15 de agosto de 2018
Grande do Sul, uma medida que, ROUSSEFF, Dilma. “Discurso da Pre-
para muitxs, seria um passo rumo sidenta da República, Dilma Rous-
à privatização. Lembro de ter fi- seff, na cerimônia de inauguração
cado feliz com a junção dos gru- do Museu de Arte do Rio (MAR)”. 1
pos, mas também de ter pensado de março de 2013. http://www.bi-
blioteca.presidencia.gov.br/dis-
que, por mais que ocupassemos
cursos/discursos-da-presidenta/
o mesmo lugar naquela noite, eu
discurso-da-presidenta-da-republi-
estava dentro de um outro sonho, ca-dilma-rousseff-na-cerimonia-de-
um sonho parecido, porém niti- -inauguracao-do-museu-de-arte-
damente mais sujo. do-rio-marAcesso em: 15 de agosto
de 2018
TARDAGÚILA, Cristina. “MAR é
Notas: inaugurado com presença da presi-
dente Dilma Rousseff”. In O GLOBO,
1 de março de 2013. https://oglobo.
1. Iniciativa criada em 2009 pelo
globo.com/rio/mar-inaugurado-
então-prefeito Eduardo Paes “[c]
com-presenca-da-presidente-dilma-
om o objetivo de pôr um fim à
-rousseff-7721240 Acesso em: 15 de
desordem urbana, combater os
agosto de 2018
pequenos delitos nos principais
corredores [e] contribuir decisi- VALE. “Inauguração do MAR, no ani-
vamente para a melhoria da qua- versario de 448 anos do Rio de Janei-
lidade de vida em nossa Cidade”. ro, teve a presença da presidente da
2. Ver CAMPANERUT, Camila. “Dil- república Dilma Rousseff”. In VALE, 4
ma é aprovada por 79% e supera de março de 2013. http://www.vale.
Lula e FHC, diz CNI/Ibope”. 19 de com/brasil/PT/aboutvale/news/
março de 2013. http://noticias. Paginas/novo-museu-de-arte-do-
uol.com.br/politica/ultimas- -rio-tem-patrocinio-da-vale-e-sera-
noticias/2013/03/19/dilma-c- -inaugurado-nesta-sexta-feira.aspx
ni-ibope.htm Acesso em: 15 de Acesso em: 15 de agosto de 2018
agosto de 2018

Referências:

BLOCO LIVRE REC!CLATO. Panfleto


auto-publicado, março de 2013.
MUSEU DA ARTE DO RIO DE JA-
NEIRO. “O MAR”. http://www.mu-
156 seudeartedorio.org.br/pt-br/o-mar
UPP e a cidadania através do Mario Brum
Doutor em História pela UFF e
Pós Doutor em Planejamento Ur-
controle de deveres: bano pelo IPPUR/UFRJ e Bolsista
PNPD- CAPES em Educação em
o caso da eletricidade Periferias Urbanas pela UERJ . Au-
tor do livro Cidade Alta (Ponteio,
2012) e de vários artigos publica-
dos sobre favelas, associativismo,
políticas públicas e violência.

Resumo:

Esse artigo trata de uma das funções que mais se destacaram no


processo de Pacificação que é das Unidades de Polícia Pacificadora
como agentes responsáveis pelo controle do território quanto ao
processo de regularização de serviços nas favelas, particularmente
no caso da eletricidade, em que o programa mostrou uma perma-
nência na atuação do Estado em favelas, que é a da manutenção
da ordem através da cobrança de deveres dos moradores, embora
o discurso oficial fosse da garantia de direitos. Através do depoi-
mento de moradores de várias favelas do Grande Rio, obtivemos
um panorama de como eles vivenciaram o processo de preparação
da cidade para os Grandes Eventos num aspecto cotidiano de suas
vidas.

Em 2008, no dia da eleição para dade e informalidade pouco ou


prefeito do Rio de Janeiro, o jor- nada combatidas em gestões an-
nal O Globo, o principal da cida- teriores, ou até mesmo incenti-
de, estampava em sua primeira vadas, e que seriam responsáveis
página uma foto do morro Dois por travarem o desenvolvimento “Com a formalização
Irmãos, ao fundo das praias de da cidade pelo clima de insegu- (serviços, comércio,
Ipanema e Leblon, áreas nobres e rança e desordem urbanas.
turísticas da cidade, destacando
fundiária), as favelas
Articula-se uma nova configura-
a favela do Vidigal com a seguinte ção do Rio de Janeiro como cida- seriam incorporadas
questão: “Quem vai dar um jeito de de projeção global, adotando à ordem urbana,
nisso?”, seguido da legenda: “Fa- como estratégia para lidar com servindo para
velização, trânsito caótico, de- os territórios de pobreza, nota-
sordem urbana e conservação de criação de um
damente as favelas. Dessa confi-
ruas são desafios para novo pre- guração participam autoridades ambiente de
negócios seguro.
1
feito”. dos três níveis de governo (sob os
A manchete do Globo tratou-se mandatos de Lula na presidência De um lado,
da tentativa (a nosso ver, bem su- e de Sergio Cabral no governo do
estado) e setores empresariais,
reprimindo-se o que
cedida) por parte do maior grupo
de comunicação do Brasil – se- que refletem, formulam e execu- é ilegal, do outro,
diado no Rio de Janeiro e com ra- tam um modo de “incorporar à incentivando-se a
mificações em diversas atividades ordem formal” os territórios das aceitação de uma
econômicas – de pautar a gestão favelas através do programa das
Unidades de Polícia Pacificadora, ordem estabelecida.”
do prefeito. A cidade do Rio de
Janeiro, dada suas relevância e as UPPs.
projeção nacional e internacio- Com a formalização (serviços, co-
nal, ocupava posição estratégica mércio, fundiária), as favelas se-
para setores empresariais e polí- riam incorporadas à ordem urba-
ticos. A leitura do Rio de Janeiro na, servindo para criação de um
como território de vasta ilegali- ambiente de negócios seguro. De 157
um lado, reprimindo-se o que é reitos. Na realidade, o que se viu
ilegal, do outro, incentivando-se foi a imposição de altas taxas por
a aceitação de uma ordem esta- serviços que não apresentaram
belecida. melhoras significativas de quali-
Assim, a ideia de retomada das fa- dade, e a impossibilidade de mui-
velas, tão anunciada pelas autori- tos moradores pagarem por eles.
dades e comemorada na impren- O que ajuda a explicar o grau de
sa, era compreendida também a rejeição às UPPs e os questiona-
partir de uma maior controle do mentos às políticas de regulari-
território e do cotidiano dos mo- zação e formalização nas favelas.
radores através de novos regula- Fatima (60), do Alemão, resumiu
mentos urbanos ou da aplicação o signficado das UPPs para a po-
de regulamentos já existentes, pulação das favelas quanto ao
cuja aplicabilidade agora era ga- processo de regularização:
rantida pela UPP. Além disso, o
Estado, em seus três níveis, im- “Em termos de conta de luz,
plementou várias medidas de re- telefone, foi um inferno, de-
gularização de serviços, comér- sarticulou tudo. Porque o
cios e construções. povo tinha luz de graça, água
Realizamos trabalho de campo, de graça... Água continua do
entre 2015 e 2017, em mais de 20 mesmo jeito. Mas a luz, a
favelas no Grande Rio, em que li- Light saiu botando relógio,
deranças comunitárias nos con- relógio que rouba, a gente
taram de que forma moradores ficou sem luz. Tem proces-
de favelas viveram a preparação so na Light, processo na Oi,
para os Grandes Eventos. Uma a gente perdeu telefone. A
dos temas mais recorrentes fo- gente tem antena e depois a
ram as UPP (Unidades de Polícia antena sai e fica a antena da
Pacificadora), no sentido de con- comunidade. Internet entra,
trole que estabeleceram nos ter- internet sai. Isso tudo foi
ritórios da cidade. um pacote goela adentro da
população…”
Quando fomos a campo conver-
sar com os moradores, percebe-
mos que um dos elementos mais Antecedentes:
presentes em suas falas é o fato a retomada do território
de que, para as favelas, um dos
maiores legados dos Grandes A partir do final da primeira dé-
Eventos é que passou a existir um cada do século XXI, fruto da re-
maior controle do território por tomada do crescimento do país, a
parte do Estado. Um controle que ascensão econômica de um largo
ocorre de modo repressivo e en- contingente da população mais
fatizando a ‘cobrança de deveres’. pobre nos anos 2000 e o impul-
Esse controle ocorre por novos so que a Indústria de Petróleo e
regulamentos urbanísticos e sob Gás no Estado do Rio de Janeiro
o policiamento ostensivo das tomou, com a descoberta de im-
UPPs, quando as favelas do Rio portantes jazidas, criaram uma
passaram a viver sob os signos atmosfera de ‘retomada’ da cida-
da regularização e da formaliza- de e do Estado, de superação das
ção, ao menos enquanto as UPPs décadas de crise simbolizadas
mantiveram controle do territó- pelo número de eventos inter-
rio. nacionais em que a cidade é sede
Esse processo não serviu para em curto espaço de tempo: Con-
a construção de uma cidadania ferência Rio+20; V Jogos Mun-
158 nas favelas na ampliação de di- diais Militares, II Jornada Mundial
da Juventude da Igreja Católica; de Janeiro um território fácil
Copa do Mundo de Futebol da e amigável para abrir, regu-
FIFA (uma das cidades sedes); Jo- larizar e manter seu negócio
gos Olímpicos de 2016. Além dos • Desenvolvimento do mer-
mega-eventos que sediará, a re- cado-base da pirâmide, que
gião metropolitana do Rio de Ja- passa pelo amplo reconhe-
neiro tem se tornado destacado cimento dos direitos de pro-
pólo de atração de investimen- priedade e visa transformar
tos nacionais e internacionais. o Rio de Janeiro no território
Essa ‘Década de Ouro’, conforme líder em estratégias empre-
a prefeitura batizou oficialmen- sariais voltadas a esse seg-
te a comemoração do Reveillon mento do mercado.
3

de 2011, tem como um dos seus


principais pressupostos o em-
penho na configuração de todo Esses empresários e pensado-
território urbano, favelas inclusi- res se unem em abril de 2007, no
ve, como um seguro ambiente de seminário “A reinvenção do fu-
negócios. turo das grandes metrópoles e a
Assim o principal escopo na ges- nova agenda de desenvolvimento
tão da pobreza num Rio Global, econômico e social da América
de modo que grandes agentes de Latina”, organizado pela Associa-
mercados tenham pleno acesso, ção Comercial do Rio de Janeiro
passava pela formalização de um (ACRJ), pelo Instituto de Estudos
mercado de consumo crescente do Trabalho e Sociedade (IETS)
como o das favelas, que movi- e Instituto Fernando Henrique
2
menta 12 bilhões por ano. Prova Cardoso.
desse vigoroso mercado é que Na convocação do seminário
desde antes de 2008, ano da ins- encontramos uma descrição do
talação da primeira UPP, bancos quadro das economias latino-
e grandes franquias já estavam americanas e o papel que as ci-
instalados em favelas. É um pro- dades podem desempenhar: não
jeto bem articulado, com pode- tendo sido capazes de completar
rosas organizações da sociedade o ciclo de reformas institucionais
civil ligadas ao empresariado ou iniciado na década passada, não
pensadores de corte neoliberal, conseguem capturar plenamen-
em que suas raízes remontam te as oportunidades propiciadas
a período anterior a escolha do pela extraordinária expansão da
Rio como sede das Olimpíadas de economia mundial nos últimos
2016, feita em outubro de 2009 e anos.” E de que “a agenda refor-
a implantação das UPPs (ocorrida mista está incompleta. Falta-lhe
a partir de dezembro de 2008). um componente importante, que
É possível reconstituir os passos é o da reinvenção do futuro das
dessas formulações através de grandes metrópoles.4
seus protagonistas: Em 2006, a Temos nesse seminário alguns
Federação do Comércio do Esta- componentes importantes na
do do Rio de Janeiro (Fecomér- formulação e execução da im-
cio) elaborou uma proposta de plantação de um ambiente de
desenvolvimento de longo prazo negócios no Rio. O economista
para o Estado do Rio de Janeiro, Andre Urani, falecido em 2011,
em que dois dos sete eixos prio- destacou-se como um principais
ritários eram: formuladores de políticas nesse
sentido. Foi ele um dos elabo-
• Território do incentivo e das radores do plano de desenvol-
sinergias para o empreendo- vimento para o estado feito em
rismo, visando tornar o Rio 2006 pela Fecomércio. 159
Já a ACRJ é uma das organizações Sediar eventos de repercussão
responsáveis pelo funcionamen- internacional seria uma maneira
to regional do Serviço Brasilei- de atrair atenção e investimento e
ro de Apoio às Micro e Pequena impulsionar o setor turístico e de
Empresa (SEBRAE), que se tornou serviços. Para manter a economia
um dos principais implementa- dinâmica e uma retomada viável
dores da política de formalização sustentável, o Rio precisaria criar
e empreendedorismo nas favelas um ‘ambiente seguro de negó-
cariocas na esteira dos Grandes cios’. Para isso, precisaria rever-
Eventos. ter o quadro de desordem urbana
Ainda em 2008, no mês de agos- e a alta informalidade, que criava
to, os temas da informalidade um ambiente de insegurança ju-
e ilegalidade nas favelas foram rídica (falta de leis e regulamen-
tratados na série de reportagens tos claros e adequados ao terri-
“Favela S.A.” do Jornal O Globo, tório da cidade, ou mesmo a falta
principal jornal da cidade e ligado do simples cumprimento desses)
ao mais poderoso grupo de mídia e prejudicava a atração de inves-
no Brasil. Na abertura da série timentos.
encontramos o descrição da situ- Em sintonia com essas formula-
ação: ções e um dos principais agentes
delas, o Globo, principal jornal da
cidade, ligado ao mais poderoso
Os moradores formam uma grupo midiático do país, publicou
massa de potenciais consu- a série ‘Ilegal, e daí’, mostrando o
midores estimada entre 1,3 alto grau de ilegalidade e desor-
milhão e dois milhões de dem urbana no cenário carioca.
pessoas, com renda anual Nesse sentido, as favelas figura-
que pode chegar a algo entre vam como o principal território
R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões. da cidade, ainda que não o único,
Números que, a despeito em que seria necessária uma for-
de divergências estatísti- te ação do Estado de combate à
cas, fazem tinir cifrões nos ilegalidade/informalidade e à de-
olhos de qualquer empre- sordem.
sário. Seja no varejo ou no No fim da série, um editorial do
atacado, no oficial ou no pa- jornal O Globo, com o título “For-
ralelo, a holding Favela S/A malizar a Rocinha é a nova mis-
enriquece poucos, explora são” (O Globo, 11/20/2011), assim
milhares e dá calote no Es- tratou a ocupação policial da Ro-
tado.5 cinha para a instalação da UPP:

Quase um ano mais tarde, em Nesse processo de melhora


abril de 2009, começa a série de espera-se que Rocinha, Vi-
encontros OsteRio, num restau- digal e Chácara do Céu se
rante da Zona Sul carioca pro- integrem mais à cidade for-
movidos pela ACRJ, com apoio do mal, reduzindo a distância
IETS e da Light. Esses encontros entre o morro e o asfalto,
reuniam autoridades, acadêmi- como se dizia antigamente
cos, jornalistas, empresários e (hoje já não há por que exis-
visavam “promover um debate tirem ruas sem pavimen-
aberto e sistemático sobre o fu- tação nas comunidades).
turo do Rio de Janeiro”, produzin- Trata-se de uma mudança
do sistematizações publicadas no cultural importante, pois,
sítio eletrônico do IETS que no junto com o avanço da cri-
fornecem preciosas pistas dessas minalidade, a informalidade
160 formulações e articulações. se tornou o padrão das ativi-
dades econômicas dentro de de medidores nas casas e a regu-
tais comunidades. larização das cobranças mensais.
Em poucos meses, a empresa re-
verteu, em algumas favelas com
UPP, o índice de inadimplência,
Light, UPP e o combate aos ‘gatos’ de 90% para 9%.
Apesar de contarem com um ser-
viço precário, segundo morado-
A Light, foi pioneira na garantia res, houve pouca melhora na qua-
de serviços urbanos para os mo- lidade do fornecimento. Uma das
radores de favelas, no início da reclamações mais presente nas
década de 1980, quando era uma falas dos entrevistados é o alto
empresa estatal do governo fede- valor das contas de luz e a pouca
ral, através do Programa de Nor- transparência da cobrança. Com
malização de Áreas Informais. a implantação de medidores di-
Historicamente, as favelas conta- gitais, os moradores não conse-
vam com uma luz precária e mais guem acompanhar o consumo.
cara, pois chegava aos barracos Parte dessa desinformação sobre
no morro através dos ‘donos do o valor das contas pode ser pelo
relógio’, moradores situados ao fato de que a Light, à margem da
pé do asfalto que tinham reló- Lei (Código de Defesa do Consu-
gio da Light e vendiam a energia midor), cobrou contas atrasadas
através de fios puxados para o vinculando-as ao endereço. De
resto da favela. O Programa além modo que moradores se viram
de baratear e fornecer energia obrigados a pagar contas de ou-
regular aos moradores, foi com- tras pessoas (antigos morado-
preendido por muitas lideranças res) para que pudessem ter luz.
como inovador por ter contrata- Assim, a empresa repassou suas
do mão de obra nas favelas para perdas para pessoas, na maioria
fazerem localmente um diagnós- das vezes, de poucos recursos.
tico e mapeamento que serviu de Renata (35), da Babilônia, nos fa-
suporte para várias ações poste- lou sobre a falta de clareza na co-
riores (Oliveira et alli, 1993). brança das contas:
Em 1996 a empresa foi privatiza-
da, o que gerou um expressivo “A cobrança é uma cobrança
aumento nos custos para os con- indevida! Eles colocaram um
sumidores e o fim da tolerância sistema que eles alegam ser
com a alta inadimplência (equi- um sistema antifurto, mas é
pamentos públicos, passavam um sistema que a gente não
anos sem pagar a conta de luz, tem acesso. E a gente não
por exemplo). Aos moradores de sabe se aquilo que a gente tá
favela restou recorrerem à práti- sendo cobrado é aquilo que
ca dos ‘gatos’. a gente realmente tá consu-
A Light foi uma das maiores mindo. Porque se você pegar
apoiadoras das UPPs, e uma de uma conta de luz de um mo-
suas maiores beneficiárias. A em- rador da rua, você vê uma
presa conseguiu reverter o alto conta de luz sendo paga a
índice de inadimplência que vigo- 100 reais, enquanto aqui em
rava, em parte motivado pelo do- cima tá sendo 400, 500, 600
mínio do território por parte de reais! E você não tem nada
traficantes que impediam a ação na sua casa diferente do que
da empresa em combater os ga- a pessoa tem na rua. E às ve-
tos. Sob as UPPs, a Light promo- zes o pessoal da rua, liga o ar
veu uma intensa ação de forma- condicionado com mais fre-
quência do que a gente que 161
lização da rede, com a instalação
mora aqui. Porque a gente domínio do tráfico, as ligações
pensa assim, se eu ligar o ar clandestinas foram refeitas.
condicionado e minha conta Em conversas informais com al-
vier mais cara, como é que guns funcionários de uma con-
eu vou comer? Eu cheguei, cessionária de energia que atua
eu tive que parcelar minha em outros municípios da região
conta esse mês. Ou eu como metropolitana, que também pro-
ou eu pago! E o que eu opto?” moveu a regularização e formali-
zação da rede elétrica em favelas,
apesar de não contarem com a
Nas palavras de Eliane (52), da
UPP, nos foi passado que a maio-
Vila Cruzeiro:
ria dos moradores desejavam re-
gularizar seu consumo. Até pelo
“Se é uma comunidade ca- fato da conta de luz servir como
rente, vamos melhorar as coi- comprovante de residência e um
sas pra eles, mas colocar um reconhecimento da moradia (o
preço fixo, acessível para eles. que não significa uma alteração
Mas não foi o que aconteceu. em sua cidadania).
A Light ganharia muito mais No entanto, frente à opção de pa-
se fosse assim. Porque as pes- gar uma conta cada vez mais alta,
soas não vão deixar de comer e pouco explicada pela empresa,
pra pagar um preço exorbi- em detrimento de outros custos
tante”. como alimentação, transporte,
etc e a possibilidade de continuar
a ter energia através da da ligação
Embora exista uma lei federal es- irregular, os moradores optaram
tabelecendo uma tarifa social nas pelo ‘gato’. Retornando à fala da
contas de luz (Lei 10.438/02), na liderança da Babilônia, ela expli-
prática ela não existe. Isso inclu- ca:
sive foi uma dificuldade na pes-
quisa de campo, ao procurarmos
saber sobre a quantidade de be- “Não dá pra eu fazer ‘gato’
neficiários da tarifa social. Não porque eu não consigo, né?
conseguimos encontrar informa- Uma coisa que é mais forte
ções claras sobre beneficiários da do que eu... Vontade eu te-
tarifa, de modo que as respostas nho, mas... E tá inviável e eu
eram sempre imprecisas. Não acho que cada dia mais vai
por culpa do entrevistado, mas ficar pior. Agora, com a pri-
da própria dificuldade de saber vatização da Cedae, a gente
quais os critérios para usufruir vai começar a pagar conta.
a tarifa.6 De modo que, aparente- Chapéu Mangueira já paga
mente, ela pouco ou nada existe. conta de água, a gente aqui
O declínio das UPPs nos últimos na Babilônia não. Eles lá
anos acabou por fazer retroceder também já pagam conta de
o processo de formalização. Em- luz, a gente aqui não. A gen-
bora seja quase sempre dito de te ainda está isento de IPTU,
modo não muito claro pelos de- mas as casas estão tendo, é,
poentes, as ligações clandestinas pensando em registrar, co-
de luz voltaram com força. Lide- locando título de posse, al-
ranças apontam como motivo o guma coisa assim, né? Mas
alto custo das contas, que impos- daqui a pouco a gente vai ser
sibilita uma família, num cenário cobrado disso também. E as
de crise econômica e aumento do pessoas que não têm condi-
desemprego, manter o pagamen- ções, não vão ter condições
162 to. Em paralelo, com o retorno do de continuar aqui.”
Com a chegada da UPP, a Li-
Conclusão ght regularizou muita, mui-
ta coisa... até o momento em
que a UPP de fato teve vi-
A Light serviu de exemplo para gência. Ou de fato teve seu
mostrar que, à custa da perda de papel desempenhado.
direitos, muitas vezes à própria
vida, que viveram os moradores No mesmo sentido, Érica (35) ati-
das favelas ‘pacificadas’ sob as vista do Pavão-Pavãozinho, nos
UPPs, houve uma lógica de con- disse que, com o declínio das
trole territorial e lucro por parte UPPs, esse cumprimento dos re-
de grandes agentes. Através do gulamentos já não ocorre mais..
combate aos ‘gatos’ de luz pela
UPP, a companhia obteve altos
lucros em áreas da cidade que A população por algum tem-
anteriormente não conseguia,co- po começou a sentir que po-
mo podemos ver em dois relató- dia seguir a regra que a UPP
rios da companhia aos acionistas: tava fazendo. Hoje eu acho
que tá muito claro! Que a
gente sabe que quem man-
A parceria com o Governo da de novo aqui é o tráfico.
do Estado do Rio de Janeiro, Então é a regra deles—essa
que, por meio das Unida- coisa de fechar quando eles
des de Polícia Pacificadora mandam.
(UPPs), possibilitou a entra-
da da Light em locais onde
antes não era possível pres- Em entrevista já após sua saída
tar um bom serviço. Res- da Secretaria, Beltrame falou dos
peitados e regularizados, os limites das UPPs, sem deixar de
moradores das comunida- apontar um sentido de fracasso,
des cariocas passaram a pa- não declarado, do programa: “A Light serviu
gar pela energia consumida,
impactando o capital finan-
de exemplo para
Vou exemplificar com um
ceiro na medida em que a caso na semana passada. Um mostrar que, à
regularização do consumo policial foi chamado no do- custa da perda de
elevou a arrecadação da Li- mingo às 6 horas da tarde
ght.7
direitos, muitas
para atender à ocorrência
Das 34 comunidades que já de briga numa comunida- vezes à própria
contam com Unidades de de pacificada. Foram ele e vida, que viveram
Polícia Pacificadora (UPP), um companheiro. Era um
a Light está presente em 17 bar sem alvará, sem licença
os moradores das
delas e já concluiu a reforma de vigilância sanitária para favelas ‘pacificadas’
da rede em nove, registran- vender seus produtos, a sob as UPPs, houve
do uma redução média das luz era um gato, a água ou-
perdas de 53,0 p.p. (de 64,1% tro gato, a TV a cabo outro uma lógica de
para 11,1%) e aumento médio gato, na porta do bar uma controle territorial
da adimplência de 88,9 p.p. canaleta com o esgoto a céu e lucro por parte de
(de 9,6% para 98,5%)8 aberto, as mesas do bar ocu-
pando metade da rua. O po- grandes agentes.”
licial chega lá dizendo que
Assim, sentidos do programa das
os vizinhos querem que haja
UPPs foi o de ser garantidor da
“ordem” e acabe a briga. O
ordem ‘legal’, ao menos enquanto
policial é o único ser formal,
tiveram efetivo controle dos ter-
mas fragilizado por todas
ritórios, como nos disse Heitor
essas questões. Eu mesmo
(43), ativista da Mangueirinha: 163
digo para o policial nem ir.
Há dez anos o dono do bar blicou o livro “Trilhas para o Rio:
se comporta do mesmo jeito do reconhecimento da queda à
e já fez um puxadinho para reinvenção do futuro”, onde di-
versas formulações que poste-
a casa da filha. Pode falar
riormente se tornaram políticas
dos defeitos da polícia, mas
efetivas, ou valiosas análises que
o discurso precisa ser ou- guiam essas políticas estão ali
tro. Tem de buscar ordem escritas.
na ocupação do solo, na ur- 4. http://www.iets.org.br/a-rein-
banização das comunida- vencao-do-futurodas-grandes-
des. É preciso derrubar es- metropoles-e-a-nova-agenda-
sas vacas sagradas porque o dedesenvolvimentoeconomi-
poder público não faz o que co-e-social-da-america-latina
deveria fazer. Quanto mais consultado em 20/07/2018
cidadania você dá, de menos 5. “Sem direitos econômicos, fave-
polícia você precisa.9 las movimentam bilhões”. O Glo-
bo, 24/08/2008
6. A família precisaria estar cadas-
Para os moradores ficou a triste
trada em algum programa social
constatação de que a UPP, alar- do governo. E apenas o consumo
deada como uma nova polícia, de 30 kWh no mês tem descon-
não tardou a mostrar a velha face to de 65%. Acima de 100 kWh o
de um Estado com políticas efê- desconto é de apenas 10%, ín-
meras e muitas vezes, a reboque dice que, numa casa com apa-
das pirotecnias eleitoreiras, reve- relhos eletrodomésticos e sob o
lando-se um aparelho estatal que forte calor do Rio de Janeiro, é
mais serviu para cobrar deveres muito difícil não ultrapassar. Ver
do que garantir direitos a ele. http://www.light.com.br/para-
-residencias/Sua-Conta/tarifa-
social.aspx.
7. Light: Relatório de Sustentabili-
Notas: dade 2014 – Light (p. 56)
8. Light: Relatório da Administra-
ção ano 2013 – Light S.A.- 2013
1. Esse artigo é fruto da pesquisa (p. 28)
de Pós Doutorado (PNPD CA- 9. h t t p s : //e p o c a . g l o b o . c o m /
PES) realizada no PPGECC-UERJ tempo/noticia/2016/10/bel-
Grandes Eventos: Oportunida- trame-o-rio-nao-tem-condi-
des, dilemas e desafios para a coes-de-acabar-com-desor-
construção da cidadania de jo- dem-que-deixou-acontecer.
vens de favelas e periferias na html Consultado em 28/07/2018
metrópole do Rio de Janeiro.
Junto a essa pesquisa, atuamos
em parceria com a antropóloga Referências:
estadunidense Janice Perlman
na pesquisa Mega-Events, Public
Policies and The Future Of Rio’s
Favelas: Goals Won and Lost BURGOS, Marcelo PEREIRA, Luiz
in the ‘Game’ over The Right to Fernando Almeida, CAVALCANTI,
the City, pela Tinker Foundation Mariana, BRUM, Mario e AMOROSO,
*EUA) sendo que as entrevistas Mauro. “O Efeito UPP na Percepção
mostradas aqui foram utilizadas dos Moradores das Favelas”, Desi-
para ambas as pesquisas. gualdade & Diversidade – Revista de
Ciências Sociais da PUC-Rio, nº 11.
2. Ver http://www.ebc.com.br/
2011
noticias/brasil/2014/09/mora-
dores-de-favelas-do-rio-movi- DAS, Veena e POOLE, Deborah. An-
mentam-r-123-bilhoes-porano. thropology in the margins of the sta-
Consultado em 25/07/2018. te. Oxford: School of American Rese-
arch Press /James Currey, 2004.
164 3. Ainda em 2008, André Urani pu-
GONÇALVES, Rafael Soares. Favelas
do Rio de Janeiro. História e direito.
Rio de Janeiro: Pallas/PUC-Rio, 2013.
LEITE, Marcia. “Entre a “guerra” e a
“paz”: UPPs e gestão dos territórios
de favela no Rio de Janeiro”, Dilemas
- Revista de Estudos de Conflito e
Controle Social, v. 7, no 4, out-dez
2014.
___________ e Machado da Silva,
Luiz Antonio. “Circulação e frontei-
ras no Rio de Janeiro: a experiência
urbana de jovens moradores de fave-
las em contexto de ‘pacificação’”, in
CUNHA, Neiva Vieira da e FELTRAN,
Gabriel de Santis. Sobre periferias:
novos conflitos no Brasil contempo-
râneo. Rio de Janeiro: FAPERJ/Lam-
parina, 2013.
MACHADO DA SILVA, Luis Antônio.
Fazendo a cidade: trabalho, moradia
e vida local entre as camadas popu-
lares urbanas. Rio de Janeiro: Morula,
2016.
OLIVEIRA, Anazir Maria de et alli.
Favelas e organizações comunitárias.
Petrópolis: Vozes, 1993.

165
Karyne Cristine Maranhão
de Matos
A Vila Autódromo e a violação dos
Mestre em Urbanismo pelo
Programa de Pós-Graduação
direitos à moradia -
em Urbanismo (PROURB/FAU/
UFRJ) - Dissertação: Transfor- aspectos históricos à época pós
mações urbanas, remoções e
resistências em áreas de fave-
la: a Vila Autódromo e os me-
Olimpíadas
gaeventos no Rio de Janeiro.
Graduada em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade Resumo:
Federal Rural do Rio de Janei-
ro (UFRRJ) - Trabalho Final de
Graduação: Centro de Difusão O presente artigo busca discutir teórica e conceitualmente ques-
Cultural no Complexo de Fave- tões que confrontam as demandas pelo ordenamento territorial
las do Alemão. em face das ações político-administrativas de natureza neoliberal,
que apostam no planejamento estratégico urbano na cidade do
Rio de Janeiro, que tem sido implantado arbitrariamente há mais
de uma década, mas que a partir dos megaeventos esse projeto
urbano se revelou mais agressivo e amplio o espaço da exclusão
social. Durante a Copa do Mundo e, posteriormente, com a rea-
lização dos Jogos Olímpicos Rio-2016, a tônica da administração
pública esteve pautada em reforçar os processos de espetacula-
rização urbana, que assegura e privilegia os interesses do capital
privado em detrimento da gestão democrática. Neste contexto,
um caso exemplar é o da favela Vila Autódromo, que foi direta-
mente afetada pela política de remoções de assentamentos pre-
cários imposta pelo atual governo municipal, que desconsidera,
convenientemente, os fundamentos do direito à cidade.

Autódromo, vizinha ao empreen-


A VILA AUTÓDROMO E A VIOLAÇÃO dimento.
DOS DIREITOS À MORADIA - O Rio de Janeiro passou por uma
ASPECTOS HISTÓRICOS À ÉPOCA PÓS série de obras e reformas com
OLIMPÍADAS a justificativa da preparação da
cidade para os grandes eventos
internacionais, contudo as inter-
A violação do direto à moradia em
venções são sempre favoráveis
benefício dos setores hegemôni-
ao potencial imobiliário e turís-
cos da economia revela que a es-
tico de uma localidade específi-
peculação imobiliária, aliada de
ca. O projeto olímpico e a esco-
muitas representações políticas,
lha da concentração espacial das
tem protagonizado os principais
principais instalações esportivas,
conflitos entre a implantação de
majoritariamente, no Centro da
grandes projetos urbanos e suas
cidade e na Barra da Tijuca, em
respectivas desapropriações e
grande parte, reproduziram a ex-
remoções. No caso da cidade do
pectativa da cidade de negócios
Rio de Janeiro, um dos principais
e do turismo. Conforme Orlan-
embates se deu a partir da cons-
do Santos Junior e Mauro Santos
trução do Parque Olímpico, no
(2012):
bairro da Barra da Tijuca, que foi
palco principal das competições
no decorrer dos Jogos Olímpicos No processo de preparação
Rio-2016, e as remoções na Vila dos megaeventos, a gestão
166
pública tem tido um papel um ambiente propício aos inves-
central na criação de um timentos privados, principalmen-
ambiente propício aos in- te aqueles vinculados aos setores
vestimentos, principalmen- do capital imobiliário, das em-
te aqueles vinculados aos preiteiras de obras públicas, das
setores do capital imobi- construtoras, do setor hoteleiro,
liário, das empreiteiras de de transportes, de entretenimen-
obras públicas, das constru- to e de comunicações.
toras, do setor hoteleiro, de Nessa perspectiva, o poder públi-
transportes, de entreteni- co adotou medidas atreladas aos
mento e de comunicações. investimentos desses setores,
(SANTOS JUNIOR; SANTOS, por exemplo, a isenção de impos-
2012: p.295) tos e financiamento com taxas de
juros reduzidas, a transferência
Segundo Glauco Bienenstein e de patrimônio imobiliário, sobre-
Gilmar Mascarenhas (2017), du- tudo através das parcerias públi-
rante o período que se estende co-privadas e operações urba-
de 2009 a 2016, a preparação do nas consorciadas e a remoção de
Rio de Janeiro para sediar os me- comunidades de baixa renda das
gaeventos esportivos seguia seu áreas a serem revitalizadas a par-
curso e a grande mídia ora omi- tir do interesse do setor da cons-
tia, ora minimizava os conflitos trução civil. Como descrevem
sociais gerados pelas transforma- Orlando Santos Junior e Mauro
ções espaciais em consequência Santos (2012):
dos jogos, prestando importante
solidariedade e/ou apoio ao pro- De fato, a existência das
jeto de cidade conduzido pela classes populares em áreas
Prefeitura da Cidade do Rio de de interesse desses agen-
Janeiro e seus demais parceiros tes econômicos se torna um
privados. Orlando Santos Junior obstáculo ao processo de
e Mauro Santos (2012) compre- apropriação desses espaços
endem que a gestão pública teve aos circuitos de valorização
um papel central na criação de do capital vinculados à pro-

A Vila Autódromo não está à venda! - Vila Autódromo


(Fonte: Karyne Maranhão / Ano: 2015) 167
dução e à gestão da cidade. Na prática, “a tendência é que
Efetivamente, tal obstáculo esse processo se constitua numa
tem sido enfrentado pelo verdadeira transferência de pa-
poder público através de trimônio sob a posse das classes
processos de remoção, en- populares para alguns setores do
volvendo reassentamentos capital” (SANTOS JUNIOR; SAN-
das famílias para áreas peri- TOS, 2012: p.295). De acordo com
féricas, compra assistida de Orlando Santos Junior e Mauro
novos imóveis, indenizações Santos (2012):
ou simplesmente despejos.
Na prática, a tendência é O caso do Rio de Janeiro é
que esse processo se consti- bastante ilustrativo desse
tua numa verdadeira trans- processo, não só pelo nú-
ferência de patrimônio sob a mero de famílias despeja-
posse das classes populares das, mas pelos mecanismos
para alguns setores do capi- de despossessão e privação
tal. (SANTOS JUNIOR; SAN- adotados, assim como pe-
TOS, 2012: p.295)

O processo de transferência de patrimônio - Vila Autódromo


(Fonte: Karyne Maranhão / Ano: 2016)

Sendo assim, as remoções fun- los lugares reservados para


damentadas nas justificativas as famílias de baixa renda
superficiais do poder público po- na cidade. Na maioria das
dem ser consideradas processos vezes, os processos de re-
de espoliação urbana (HARVEY, moção têm impossibilitado
2004), onde territórios ocupados a permanência das famí-
como valor de uso por seus mo- lias na mesma localidade
radores são espoliados, ou seja, ou no mesmo bairro, seja
retirados de quem os pertence pela distância da maioria
por meio de fraude ou violência. dos empreendimentos ha-
Após a espoliação, as terras são bitacionais oferecidos para
apropriadas como valor de troca reassentamento das comu-
e integradas ao circuito de va- nidades afetadas, seja pelos
168 lorização imobiliária do capital. valores oferecidos de inde-
nização ou compra assistida, do Paes foi reeleito com grande
que tem por base o valor das margem de votos e novamente
benfeitorias e não seu valor com um financiamento de cam-
de mercado. (SANTOS JU- panha muito superior ao de seus
NIOR; SANTOS, 2012: p.296) adversários. Conforme Lena Aze-

A relação entre o poder público e o poder privado - Vila Autódromo


(Fonte: Karyne Maranhão / Ano: 2016)

Ao analisar as doações de cam- vedo e Lucas Faulhaber (2015),


panha do prefeito Eduardo Paes mais de 60% das doações dire-
(2009-2016) ficou evidente a im- cionadas à sua candidatura e ao
portância dos setores financei- diretório municipal do Partido do
ros, imobiliários, da construção Movimento Democrático Brasi-
civil e industrial para a viabiliza- leiro são originários de empresas
ção das suas duas candidaturas. que atuam no mercado imobiliá-
Na campanha de 2008, Eduardo rio, entre elas a Carvalho Hosken
Paes obteve financiamento muito (responsável pelo Parque Olímpi-
superior ao de seus concorren- co), a OAS (encarregada pelo Por-
tes, arrecadando aproximada- to Maravilha, da TransOlímpica e
mente R$ 11 milhões, tendo como da TransCarioca) e a Cyrela (res-
principais investidores a empresa ponsável pelo Campo de Golfe).
EIT Engenharia Industrial Técni- Ao considerar a valorização de
ca S.A. (R$ 1 milhão), o empresário áreas da cidade em função das
Eike Batista (R$ 500 mil), as em- intervenções olímpicas realiza-
preiteiras OAS S.A. (R$ 350 mil) e das ou incentivadas pelo poder
Carioca Christiani-Nielsen Enge- público, nota-se um processo de
nharia S.A. (R$ 300 mil), o banco expulsão da população de baixa
Itaú (R$ 300 mil), a imobiliária renda, tanto pela política de re-
Rossi (R$ 200 mil), dentre outros moções promovidas pelo poder
(TRIBUNAL SUPERIOR ELEITO- público, quanto pela dinâmica do
RAL apud AZEVEDO; FAULHA- mercado imobiliário que aumen-
BER, 2015). ta progressivamente o custo de
Na campanha de 2012, Eduar- vida nessas áreas da cidade. “A 169
consequência desse processo é a intencionalidade das ações do
a reapropriação daquele espaço poder público e também os prin-
por outros agentes econômicos, cipais favorecidos, no caso, em-
através do mercado imobiliário” preiteiras, proprietários de terras
(CASTRO; NOVAES, 2015: p.79) e, e incorporadores, que ainda que
no caso da Barra da Tijuca e da algumas vezes sejam pessoas fí-
Vila Autódromo, fica explicito o sicas e jurídicas diferentes, mui-
interesse privado na área ocu- tas vezes também são as mesmas.
pada pela favela, principalmente (CASTRO; NOVAES, 2015: p.85)
da empreiteira Carvalho Hosken. A Vila Autódromo, situada na
Sendo assim, o processo de re- Barra da Tijuca e ao lado do an-
moção da população de baixa tigo Autódromo de Jacarepaguá,
renda da Vila Autódromo e, tam- vizinha do principal empreendi-
bém, de outras favelas da cidade, mento olímpico na cidade do Rio
que se consolidou ignorando a de Janeiro, se organizou enquan-
legislação vigente sobre a temá- to comunidade formal a partir da
tica, feriu o direito constitucional criação da Associação de Mora-
à cidade e à moradia digna e bem dores e Pescadores da Vila Au-
localizada. Segundo Demian Cas- tódromo, em 1987. Entretanto, a
tro e Patrícia Novaes (2015): Vila Autódromo teve sua origem
É notório que o investimento pú- como uma comunidade de pes-
blico de diferentes ordens gera cadores, no início da década de
aumento do preço das terras e 1960, época em que a Zona Oeste
dos imóveis, desde os mais bási- do Rio de Janeiro era praticamen-
cos, como asfaltamento, energia te deserta, sem os condomínios
elétrica e redes de saneamento de luxo e os shoppings centers de
básico, até os processos de im- atualmente. A organização jurídi-
plementação de redes transpor- ca da Associação de Moradores
tes e a construção de parques e Pescadores da Vila Autódromo
públicos e de equipamentos es- foi um importante instrumento
portivos. Assim, pensar a loca- de articulação e luta dos mora-
lização dos principais projetos dores que, a partir desse momen-
de restruturação urbana revela to, conquistaram avanços para a

Prefeito Eduardo Paes, especulação imobiliária e juízes corruptos -


170 Vila Autódromo (Fonte: Karyne Maranhão / Ano: 2016)
Vila Autódromo. Em seguida, em tando danos ambientais ao bair-
1989, durante a administração do ro. Nessa época foram removidas
prefeito Marcelo Alencar (1989- a Vila Canal de Marapendi, pró-
1992), famílias foram assentadas xima ao atual Shopping Down-
na Vila Autódromo oriundas da town, e a Vila Parque, ao lado
favela Cardoso Fontes, localizada do atual Centro Comercial Barra
1
próxima ao Hospital Federal Car- Shopping. No caso da Vila Autó-
doso Fontes, no bairro da Fre- dromo, a Prefeitura entrou com
guesia, em Jacarepaguá. ação no Poder Judiciário para re-
Desde a década de 1990, o histó- mover a favela, porém a ação não
rico de pressões e ameaças de re- prosseguiu diante da Titulação de
moção são vivenciados pelos mo- Posse provisória concedida pelo
radores da Vila Autódromo, que então governador Leonel Brizola
habitavam aquela região desde o (1991-1994).
início da década de 1960. Cerca Após a primeira tentativa de re-
de 30 anos após sua fundação, a moção da Vila Autódromo, em
Vila Autódromo enfrentou sua 1992, vale ressaltar cinco mo-
primeira batalha contra as remo- mentos importantes no histórico
ções com a expansão da Barra da do local (AMPVA, 2011):
Tijuca. O crescimento do bairro
foi uma resposta de empreende-
• Em 1994, a antiga Secreta-
dores imobiliários aos altos índi-
ria da Habitação e Assuntos
ces de criminalidade na Zona Sul
Fundiários da Prefeitura da
da cidade e à redemocratização
Cidade do Rio de Janeiro as-
após a queda do regime militar.
sentou legalmente mais de
A região inteira se desenvolveu a
60 famílias relocadas de ou-
partir da década de 1980 na for-
tras regiões da cidade;
ma de diversos de condomínios
privados, exclusivos e excluden- • Também em 1994, o então
tes. governador Leonel Brizo-
la (1991-1994) concedeu aos
A primeira tentativa aconteceu
moradores do núcleo central
em 1992, ano de realização da
da Vila Autódromo a Titula-
ECO-92, Conferência das Nações
ção de Posse provisória das
Unidas sobre o Meio Ambiente e
habitações em resposta às
o Desenvolvimento. Embasado
tentativas de remoção por
pelo discurso ambientalista em
parte do então prefeito Cé-
alta nesse período, o subprefeito
sar Maia (1993-1997), por tra-
da Barra da Tijuca Eduardo Paes
tar-se de construções edifi-
(1992-1996), com a aprovação da
cadas em área pública;
Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, solicitou a remoção da • Em 1997, o Governo do Esta-
mesma sob o argumento de que a do do Rio de Janeiro, repre-
comunidade causara “danos esté- sentado por Marcello Alen-
ticos, visuais e ambientais” (LINS, car (1995-1999), concedeu a
2013: p.07) para a região vizinha Titulação de Posse definitiva
às instalações da ECO-92, rea- a 104 famílias residentes do
lizada no Centro de Convenção núcleo central da área ocu-
Riocentro, a poucos quilômetros pada, através dos Termos
da Vila Autódromo. Administrativos de Conces-
são de Uso Real;
Em 1993, o então prefeito da ci-
dade do Rio de Janeiro César Maia • Em 1998, a Concessão de Uso
(1993-1997), ao assumir a Prefei- Real foi estendida para os
tura pela primeira vez, decretou moradores da faixa margi-
a remoção de grandes favelas na nal da Lagoa de Jacarepaguá,
área da Barra da Tijuca argumen- por noventa e nove anos, por 171
meio da antiga Secretaria da quanto se é possível para qual-
Habitação e Assuntos Fun- quer favela no Rio de Janeiro. De
diários do Estado do Rio de acordo com Theresa Wlliamson
Janeiro, publicado no Diário (2018b):
Oficial de 31 de dezembro de Além de abrir um processo
1998; contra a Prefeitura do Rio,
• Em 2005, foi sancionada a Lei o Núcleo de Terras e Habi-
Complementar nº 74/2005 tação preparou e enviou um
e a Lei Complementar nº documento de oitenta pá-
79/2006, configurando a ginas ao Comitê Olímpico
Vila Autódromo como Área Internacional, descreven-
Especial de Interesse Social2 do as violações de direitos
e, como tal, só deveria cum- humanos e violações legais,
prir a função de habitação de de modo geral, observadas
3
interesse social. na Vila Autódromo. O do-
cumento pretendeu deixar
o Comitê Olímpico Inter-
Com a preparação da cidade para
nacional ciente diretamen-
a realização dos Jogos Pan-Ame-
te e imediatamente sobre
ricanos de 2007, que apresen-
a natureza preocupante do
tou a concentração da maioria
comportamento demons-
dos equipamentos esportivos
trado pela administração do
implantados na região da Bar-
Prefeito Eduardo Paes em
ra da Tijuca e, principalmente,
relação à Vila Autódromo,
na área do antigo Autódromo de
suas ramificações legais e o
Jacarepaguá. Na região da Barra
contexto do que estava em
da Tijuca, o Complexo Esportivo
jogo. A história e a natureza
Cidade dos Esportes foi constru-
da comunidade estavam em
ído na área pertencente ao anti-
risco. No fim de 2010, o Co-
“Com a escolha do go Autódromo de Jacarepaguá, e
mitê Olímpico Internacional
agrupou a Arena Olímpica do Rio,
Brasil para sediar respondeu com um questio-
o Parque Aquático Maria Lenk e o
a Copa do Mundo Velódromo. Durante a implanta-
namento direto ao gover-
nador do Estado do Rio de
de 2014 e do Rio de ção desses equipamentos espor-
Janeiro, Sérgio Cabral, que
Janeiro para sediar tivos, mesmo sob a proteção da
resolveu o problema dissol-
Lei Complementar nº 74/2005, a
das Olimpíadas de Vila Autódromo precisou resistir
vendo o Núcleo de Terras e
2016, ressurgiu a Habitação, transferindo to-
a novas tentativas de remoção.
dos os defensores públicos
ameaça de remoção No início de 2010, membros da do grupo para outras locais
compulsória de Associação de Moradores se en- do estado e temporaria-
contravam semanalmente com
diversas favelas mente fechando o núcleo.
advogados do Núcleo de Terras e (WILLIAMSON, 2018b: s.p.)
cariocas, tão Habitação da Defensoria Pública
presente ao longo do Rio de Janeiro, que represen-
dos preparativos da tavam a comunidade. O Núcleo Com a escolha do Brasil para se-
de Terras e Habitação estava fir- diar a Copa do Mundo de 2014 e
cidade para os Jogos me ao afirmar os direitos da co- do Rio de Janeiro para sediar das
Pan-Americanos de munidade, já que a Vila Autódro- Olimpíadas de 2016, ressurgiu a
2007.” mo era uma das poucas favelas ameaça de remoção compulsória
em que moradores tinham docu- de diversas favelas cariocas, tão
mentação por escrito conceden- presente ao longo dos preparati-
do direito ao uso da terra, além vos da cidade para os Jogos Pan-
da determinação como Área de -Americanos de 2007. Em 2009,
Especial de Interesse Social. Com ano em que a cidade do Rio de
as bases legais à mão, a defesa Janeiro é escolhida como cida-
172 da comunidade estava tão sólida, de-sede dos Jogos Olímpicos, a
Prefeitura anunciou que, visando
a realização das Olimpíadas de Dessa forma, a implementa-
2016, mais de 3.500 famílias de ção do projeto olímpico for-
favelas das Zonas Oeste e Zona taleceu uma visão de cidade
Norte seriam removidas, dentre orientada para os processos
essas, a Vila Autódromo (AMPVA, de acumulação de capital.
2016). Esse processo produziu gra-
Levando em consideração a legis- ves restrições no direito à
lação vigente da região ocupada moradia, especificamente
pela Vila Autódromo, quaisquer através da política de remo-
interferências na área só pode- ções conduzida pela prefei-
riam acontecer no sentido de ga- tura, realizada ao largo das
rantir a permanência e o direito à legislações vigente. Outro
moradia da população residente. grande impacto foram as
Sendo assim, a Prefeitura da Ci- remoções indiretas devi-
dade do Rio de Janeiro possuía do ao aumento dos preços
um discurso oficial de que não ti- dos aluguéis. Em ambos os
nha a intenção de desapropriar a casos o que se percebeu foi
área por completo, alegando que um processo de relocaliza-
as famílias que foram desapro- ção dos pobres na cidade em
priadas ocupavam uma área am- direção às áreas periféricas
bientalmente protegida na mar- e abertura de novas frontei-
gem da Lagoa de Jacarepaguá ou ras para o capital imobiliá-
estavam na rota da construção de rio, seja onde essas pessoas
vias de acesso ao Parque Olímpi- foram realocadas, seja de
co. Porém, após anos de pressão onde elas foram retiradas.
e discussão sobre as desapropria- (CASTRO; NOVAES, 2015:
ções de famílias vizinhas ao futu- p.85)
ro Parque Olímpico, as remoções
começaram em fevereiro de 2014.
4 Diversos foram os métodos uti-
Em 20 de março de 2015, cin-
lizados para dar visibilidade às
quenta e oito casas foram mar-
remoções, entre eles: manifes-
cadas para remoção a partir de
tações, documentação das vio-
um decreto de desapropriação,
lações em dossiês, realização de
e decretos futuros ofereceram a
denúncias, divulgação em veí-
possibilidade de mais casas te-
culos da imprensa internacional
rem o mesmo destino. Foi por
e em mídias alternativas, redes
meio deste decreto que todos os
sociais, entre outros. Em conse-
líderes mais antigos da comuni-
quência da ampla divulgação da
dade foram por fim removidos, e
ação arbitrária do poder público,
porque o decreto estipulava que
notou-se uma atenuação das vio-
os tribunais determinassem o va-
lações de direitos e situações de
lor dos terrenos em questão, suas
violência contra os moradores de
indenizações foram uma fração
áreas atingidas pelas remoções
do que foi dado a moradores que
olímpicas.
aceitaram indenizações anterior-
mente. Assim, aqueles mais com- Contudo, as vitórias, ainda que
prometidos com a comunidade, parciais, reforçam a importância
que lutaram tanto em seu favor dos movimentos de resistência
e que queriam tão profundamen- frente à mercantilização da cida-
te permanecer, foram no final de e da moradia promovida pela
das contas os que receberam as “governança urbana empreende-
piores indenizações. Conforme dorista neoliberal” (CASTRO; NO-
Demian Castro e Patrícia Novaes VAES, 2015: p.86) em benefício
(2015): dos grandes eventos na cidade
173
Remoção com ética - Vila Autódromo
(Fonte: Karyne Maranhão / 2015)

do Rio de Janeiro. Assim sendo, o Plano de Urbanização da Vila


no caso da Vila Autódromo, para Autódromo (2016). Além da cons-
além da luta política pelo direito à trução de 20 novas habitações, o
cidade e à moradia, o movimento referido plano previu a implanta-
de união e resistência simbolizou ção de duas unidades educacio-
a luta pelo direito à permanência, nais municipais, erguidas a partir
através da conquista dos lugares do desmonte da Arena do Futuro,
onde seus habitantes lutaram por após a realização dos Jogos Olím-
décadas. picos. O Coordenador do Núcleo
Do total de 550 famílias que vi- de Terras da Defensoria Pública
viam na Vila Autódromo, apenas do Estado do Rio de Janeiro, João
20 conquistaram o direito de Helvécio de Carvalho, em entre-
permanência depois da urbani- vista para a EBC Agência Brasil,
zação realizada pela Prefeitura da considerou o acordo da Vila Au-
Cidade do Rio de Janeiro. Cerca tódromo uma vitória que marca
de 400 famílias foram realocadas um novo paradigma na relação
em apartamentos no condomí- das comunidades com a prefeitu-
nio Parque Carioca, na Estrada ra. Para João Helvécio de Carva-7
dos Bandeirantes, Zona Oeste lho (2016):
da cidade. Ex-moradores entre-
vistados pela EBC Agência Brasil A expressão quantitativa
reclamam do processo conduzi- pode parecer que foi uma
do pela Prefeitura, dizem que as derrota, mas, pelo contrá-
promessas não foram cumpridas, rio, ela significa que as pes-
que os apartamentos são peque- soas podem resistir. Apesar
nos para o tamanho das famílias, de todo tipo de trauma que
consideram a negociação injus- eles sofreram, o resultado
ta e dizem que sofreram pressão é satisfatório e isso mostra
psicológica para aceitar qualquer5 para outras comunidades,
tipo de acordo. para outras pessoas, que
Apesar do número pequeno de vale a pena quando você tem
famílias resistentes, em março fundamento legal e justo
174 6
de 2016, a Prefeitura apresentou para a sua demanda. Vale a
pena você insistir na defe- Marginal de Proteção da Lagoa
sa daquilo que você esta- de Jacarepaguá e o Projeto de
belece como prioridade, no Alinhamento da Av. Embaixa-
dor Abelardo Bueno. Disponível
caso, a moradia digna em
em: <http://mail.camara.rj.gov.
um ambiente consolidado
br/APL/Legislativos/contlei.
de 40 anos de permanên- nsf/1dd40aed4fced2c5032564f-
cia, com direito previsto na f0062e425/6ac956bdce1be32d-
legislação apontando para a 032577220075c824?OpenDo-
urbanização e a regulariza- cument>. Acesso novembro de
ção fundiária. (CARVALHO, 2017.
2016: s.p. apud NITAHARA, 3. Lei Complementar nª 79 de 30 de
2016b: s.p.) maio de 2006 - Institui o Projeto
de Estruturação Urbana - PEU
dos bairros de Vargem Grande,
A vitória da Vila Autódromo con- Vargem Pequena, Camorim e
tra a arbitrariedade do poder pú- parte dos bairros do Recreio dos
blico em serviço dos megaeventos Bandeirantes, Barra da Tijuca e
aconteceu mesmo contra todas Jacarepaguá, nas XXIV e XVI Re-
as probabilidades e serve como giões Administrativas, integran-
inspiração para outras comuni- tes das Unidades de Planejamen-
dades que enfrentam remoções, to números 46, 47, 40 e 45 e dá
não apenas na cidade do Rio de outras providências. Disponível
em: <http://mail.camara.rj.gov.
Janeiro. Essa vitória também ser-
br/>. Acesso em março de 2016.
viu para fortalecer os protestos
4. Disponível em: <http://www.
contra impactos severos dos Jo-
b b c . c o m/p o r t u g u e s e/n o t i -
gos Olímpicos nas cidades-sede
cias/2015/08/150815_entre-
e mostra que quando as pessoas vista_eduardo_paes_hb_jp>.
são determinadas e organizadas, Acesso em setembro de 2015.
mesmo enfrentando os interes- 5. Disponível em: <http://agen-
ses imobiliários e no contexto de ciabrasil.ebc.com.br/direitos-
um estado de exceção proporcio- -humanos/noticia/2016-06/
nado pelos megaeventos, tudo é ex-moradores-da-vila-autodro-
possível. mo-dizem-que-promessas-nao-
foram>. Acesso em novembro de
2017.
6. Disponível em: <http://agen-
Notas: ciabrasil.ebc.com.br/direitos-
-humanos/noticia/2016-06/
familias-removidas-da-vila-au-
todromo-querem-indenizacao-
1. Disponível em: <https://oglobo. da>. Acesso em novembro de
globo.com/rio/favela-vila-au- 2017.
todromo-tambem-tem-casas- 7. Disponível em: <http://agen-
d e - c l a s s e - m e d i a -2 74 4 5 0 8 > . ciabrasil.ebc.com.br/direitos-
Acesso em novembro de 2017. -humanos/noticia/2016-06/
2. Lei Complementar nª 74 de 14 familias-da-vila-autodromo-co-
de janeiro de 2005 - Modifica memoram-vitoria-da-resisten-
a legislação de trecho da sub- cia-com>. Acesso em novembro
zona A-16-A do Capítulo III do de 2017.
Decreto nº 3.046 de 27 de abril
de 1981. Art. 9°. Fica declara-
da como Área de Especial Inte-
resse Social a área cujos limites
estão descritos no Anexo desta
Lei Complementar - Vila Autó-
dromo. Art.10 Da Área de Espe-
cial Interesse Social excluem-se
edificações que ocupam a Faixa 175
Realização:

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