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achiamé • SOC1 i

Leiía Mícc°lis&HerbertDaniel

JACARÉS &
LOBISOMENS
dois ensaios sobre a homossexualidade

Se é possível o ato de alegrar se para uma entidade, e


deve ser, pois a alegria das pessoas que a sustentam é, no
fim e ao cabo, seu sentido, então o Socii está contente. 0
Socii se alegra seriamente ao participar da presente edição
de Jacarés & Lobisomens, de Herbert Daniel e Leila Mícco-
lis.
A alegria, aliás, é coisa muito da séria. Buscamos nos
definir como "companheiros de ciência e de afeto", porque
a ciência e o conhecimento não precisam estar contra o afe­
to. Ao contrário, o afeto e o carinho, sempre com as marcas
da diferença e da desobediência, necessitam do conhecimen­
to para conscientemente recusar a culpa, para decididamen­
te enfrentar o medo.
A luta homossexual pelo direito à sua diferença e à
sua desobediência, neste livro desenvolvida com humor, fa­
tos, estilo e coragem, necessita do conhecimento para fazer
a defesa do desejo, se colocando assim ao lado das demais
lutas pelo direito às demais diferenças e desobediências.
Um passo político muito grande é dado, nos parece,
quando da luta abstrata pela abstrata "igualdade" caminha­
mos à luta concreta pelas concretas diferenças, para que o
ser diferente não mais implique ser superior, ou, ser infe­
rior, mas implique, justamente, o ser — original, único, e
*
especial para si mesmo e para alguém, ou alguéns.

Gustavo Bernardo
JACARÉS & LOBISOMENS

Como enfrentar a questão


do homossexualismo sem cair
na apologia vulgar ou na con­
denação emocional? Trata-se
de um enfrentamento cultural,
com suas variantes sociais, po­
líticas, psicológicas etc. Os Au­
tores de Jacarés & Lobisomens
— Herbert Daniel e Leila Míc-
colis — entendem que a luta
pelo prazer é uma luta políti­
ca. Nós também a entende­
mos: uma luta fundada no po­
lítico 24 horas por dia, sem
que, com isso, estejamos fa­
zendo qualquer trocadilho de
ordem numérica.
E se o tivéssemos, tudo
bem! Afinal, este é um livro
sério que se permite ser alegre
o tempo todo (queiram nos
perdoar, mas o novo trocadi­
lho, de ordem semântica, des­
pontou de forma irresistível).
A coragem intelectual e huma­
na dos Autores é modelar: as­
sim como para ser bicha no
Brasil (ou na América Latina)
é preciso ser muito macho, pra
ser lésbica é preciso ser muito
mulher. É preciso ter muito
culhão, é preciso ter muito
peito...
Mas este é um livro sério —
entendam como quiserem en­
tender o que significa serieda­
de para nós. Os entendidos no
assunto que se manifestem: es­
te é um livro aberto à Diferen­
ça. A luta. Ao prazer. À neces­
sidade da opção sexual. Ao so­
nho e ao devaneio:com muito
tato, com muita dor.
Leila Míccolis
Herbert Daniel

JACARÉS
E
LOBISOMENS
dois ensaios sobre a homossexualidade

achiamé
Rio de Janeiro
1983

cawrí- Wrote »
Rui-S PregilteFIte Psf»8' 1J?
Ceniiü - euritiba - hk
JACARÉS E LOBISOMENS
dois ensaios sobre a homossexualidade

Copyright © 1983 by Herbert Daniel e Leila Míccolis

Esta obra foi editada em regime de co-edição com o SOCII -


Pesquisadores Associados em Ciências Sociais — RJ
Direitos reservados desta edição a
Edições Achiamé Ltda.

Ê vedada a reprodução total ou parcial desta obra


sem a prévia autorização da Editora.

Capa
Cláudio Mesquita

Revisão
Maria Cristina Britto

Composição
Linotipia Cordeiro

Edições Achiamé Ltda.


Rua da Lapa, 180 sobreloja
Tel.: 222-0222
20021 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Editor
Robson Achiamé Fernandes

Coordenação Editorial
Marcos Medeiros
Moacy Cirne

Assistente Editorial
Maria Cristina Britto

Gerente Comercial
Jaques Jonis Netto
X

“Mulher com mulher dá jacaré,


homem com homem, lobisomem”
(dito popular)
\

SUMARIO

Intróito ou Pro-nomes Pessoais 9


Os anjos do Sexo 13
Grafias Bio-De/Gradáveis ou/A ou/Sa 19
Crômica 29
Notas Marginais 45
Sexão da Revolução 56
Prazer Gênero de Primeira Necessidade 69
Eram as Lésbicas Marcianas? 73
Diário de Bardo 79
O Movimento Homossexual Brasileiro Organizado
Esse Quase Desconhecido 96
Conclusão 110
Anexo 114
A Síndrome do Preconceito 121
Introito ou Pro-Nomes Pessoais

Somos, Leila e Daniel, dois em intersecção nas paralelas


de nossas vidas e trabalho. Ambos somos baixinhos, teimosos,
falantes, equilibristas de palavras, vaidosos e mútuo-admira-
dores (pra quem não desconfia, é fabuloso amar o camarada
de ofício). Também somos. O que justifica nossos presentes
ensaios; como tem justificado, pela vida, pseudónimos, adjeti­
vos e epítetos que nunca chegaram a nos transmutar em ja­
caré ou lobisomem. Somos corpos e (como cada corpo) sexos
diferentes, que nos explicitamos a urgencia de derrotar as ma­
neiras usuais das corporificações do conformismo.
Temos sabido, com o sentido conhecer da pele e da má­
goa, a opressão — que intuímos compartilhar com tantos que
ainda se calam. Temos buscado a disposição de abrir portáis
onde ninguém sofra, nem venha a sofrer, as consequências da
tragédia ou holocausto de um sexo triste.
Não queremos definir, como programa, um sexo geral e
“alegre” — guei é só um frió despropósito. Não queremos pro­
jetos, não apresentamos propostas “partidarias”. Apenas nos
dispomos, expondo-nos aqui nestes escritos, a experimentar
todas as partilhas viáveis e necessárias para as partidas para
a democracia (não há democracia cantada no coro dos cas­
trados). Afinal, basta-nos uma definição nada definitiva: de­
finitivo é só o transitorio.
Indispostos com os comportamentos socialmente regi­
mentais, nunca tivemos a mínima intenção de sermos bem-

9
comportados: nem na cama, nem na mesa, nem no gesto, nem
na língua, nem no olho; enfim, em nenhum dos lugares ou
órgãos sexuais convencionais edificados e edificantes. Estes
nossos textos são retratos daquela indisposição e de usos e
abusos, espécie de convite a vir-a-ser.
Falamos de um sexo novo — ou melhor, de ‘novos sexos’
— sem estatutos. Novos porque é a sexualidade renovada co­
tidianamente de cada um. O plural se explica pela diversi­
dade não só de atitudes, gostos, escolhas, mas principalmente
de histórias. Cada um de nós é a sua história, nesta praça de
desejos cruzados que é o corpo que nós construímos e que
temos que aprender com a intencionalidade do poeta que forja
um verso surpreendente. O plural é a pessoalidade que nos
iguala na diferenciação absoluta. Sendo todas pessoas, nossa
gramática de libertação impõe que sempre falemos de nós
mesmas — machos e fêmeas — no feminino plural. Desres­
peitamos uma regra sintática que impõe o masculino no cole­
tivo misto, porque desrespeitamos a dominação de um sexo
perdido, de uma humanidade ferozmente macha.
Falamos de nós mesmas nos nossos dois ensaios. De.
nossa vida, imaginação, práticas, sonhos, teorias e outras di­
mensões. Falamos dos nossos próprios sexos. “Nossos”? Pro­
nome possessivo que não indica nem posse, nem propriedade.
Nosso pronome é próprio e substantivo — designação que re­
pudia adjetivos que classificam práticas do corpo de cada
qual: meu-teu-seu — o que pode ser lido assim: mete-o-seu,
como palavra-des-ordem apelando ao exercício da atividade e
do ativismo erótico. A passividade, atribuída às vítimas, é o
arquétipo que estigmatiza o oprimido. Não há passividade se­
xual; há os que exigem “passivas” para engrossarem a voz ne­
gativa da possessividade.
A multiplicidade de sexos, que escrevendo aqui procu­
ramos desvendar, serve para derrubar fábulas de um bipartida-
rismo sexual que confunde sexualidade e genitalidade. Os se­
xos são os que temos: pessoal e intransferivelmente.
Jacarés e Lobisomens é um trabalho a dois sobre o tema
das homossexualidades. Não é um “estudo”, nem um depoi­

10
mento: é uma fala própria da sexualidade. E a FALA não é
o feminino do FALO, símbolo monotonamente de um só gê­
nero, portanto solitário e totalitário. A fala é democrática —
múltipla e conflitiva — portanto solidária e libertária.
Ambos os textos têm mais do que uma divisão, mais ou
menos folclórica, da “questão” homossexual. Não se trata
apenas de deixar falar uma bicha e uma lésbica para compa­
rar as acrobacias das espécies e, ao fim do número, atirar
amendoins compensatórios. Interessamo-nos, esforçamo-nos,
divertimo-nos produzindo um discurso distante do academicis­
mo. Só caga regra quem se entulha com manuais indigestos,
quem come com gula e sem prazer. Procuramos apenas VER.
“Ver, meu bem, é coisa de se aproximar, sesionando” — é
um verso que um de nós escreveu há anos. Ver — não só
a opressão, mas as invenções dos oprimidos. Ver — não só a
defesa dos direitos, mas as razões do direito do oprimido ao
ataque. A partir de ver, não concluímos nenhum prever ou
prover preceitos. Racionalizar o desejo, irracional por exce­
lência, não é só incoerência: é fascismo. Fugimos aqui de toda
tentação de criar um novo catecismo sexual que venha a subs­
tituir o calendário da genitalidade canônica.
Garimpamos, nos veios deste desterrado de “jacarés e lo­
bisomens”, atrás da preciosidade da sinceridade. Oh, não se
exige coragem para expor a(s) própria(s) homossexualida-
de(s)l É preciso só um pouco de paciência e ironia (espera­
mos ter tido). Escrevemos sobre nossa vida e opções sexuais,
escola e escolhas, com o mesmo orgulho que nos leva a contar
encantos que nos dão prazer (escrever ou trepar, por exem­
plos). Coragem é preciso ter para escapar da facilidade da jus­
tificação e do apelo humilhante à uma vaga “compreensão”
ou piedade. Ninguém precisa pedir desculpa pela própria se­
xualidade; precisa fundamentalmente livrar-se de uma culpa­
bilidade imobilizadora. Coragem mesmo é preciso para amar a
vida com todo o seu cortejo de disparidades.
Nossa esperança é contribuir, com umas poucas idéias
aqui jogadas, para que, quando o mundo disser “não pode”, a
gente aprenda a responder “eu quero”.

11
Herbert Daniel

OS ANJOS
DO
SEXO
L

para Liszt, que “não é”,


mas que teve:
a dignidade de dispersar nas ruas do Rio
alguns anjos —
dos nexos.
Invocação ao leitor, ou
cantada inicial:

Você sabe o que é ter um amor/


meu senhor?. ../
E por ele quase morrer?
(Lupicínio Rodrigues)
1. Onde o autor revela seu caminho e descaminho no terre­
no baldio em questão:

GRAFIAS BIO — DE/GRADÁVEIS


ou/A
ou/SA
Volto ao jardim/
na certeza que devo chorar/(...)
Devias vir/
para ver os meus olhos tristonhos/
e quem sabe sonhavas meus sonhos/
por fim. . . /

(Cartola)

Era carnaval e 1982, o que não é contraditório. O car­


naval já ocorrera em anos outros mais tenebrosos ou insegu­
ros, sem por isto deixar de ser festejo, exaltação, desafogo e
tantos mais lugaies-comuns para este vale-tudo da carne.
Voltando de um exílio de sete anos (pelo menos), vim
constatar a festa carioca: despenquei na Cinelándia. Ver e
crer, visitar. Visitar apenas: não tenho talento para folião
(condição que não me imuniza da curiosidade, nem de um
leve ressentimento de não poder farrear assim com hora mar­
cada). Sou dos que observam, torto e fora do calendário; não
sirvo para Natal, reino de Momo, sete de setembro, ou ban­
deiras e bandeirolas. Admiro e me afasto. Mas já passei da
fase das justificativas acusatórias do fenômeno: comércio, hi­
pocrisia, etc. Reconheço hoje o que é minha pura incapacidade
sentimental de me perder na ingenuidade das datas. Cada um
tem o corpo que tem, com seu séquito de disparidades. Assim, •
fantasiado de cotidiano, fui ver os que se vestiam com as ade-

19
quações do dia. Disfarces catárticos? Não: pulsões concretiza­
das em pano, brilhos e confeitos, realidade momentânea duma
permissividade rara, só válida por poucos dias.
Grande sucesso fazia na Avenida Rio Branco a corpu­
lenta Marilyn, formidável travesti, vestido elegantemente com
um resplandescente rabo-de-peixe verde carregado de vidrilhos
e pingentes. Ser de fábula, não era uma mera pretensão de
fantasiar-se de mulher e tentar reproduzir a imagem simboliza­
da. Era uma caricatura dúbia da fêmea.
Marilyn não era a única bicha na avenida: de jeito ne­
nhum; seria uma das mais engraçadas e com seu número atraía
um grupo importante que a seguia, provocando. E a cada
deixa do público, el£l retrucava sem levar troco. Um grande
ator certamente, afiado na improvisação, com alguns recursos
cênicos formidáveis.
— Êi, Maria, gritou um senhor munido de máquina fo­
tográfica.
— Maria, não, cavalheiro: Ma-ri-lyn! (silabava: mé-ri-
line.)
— Vira-pra cá, preu tirar uma foto.
— Pra capa de Manchete? Eu sabia que ainda seria reve­
lação de beleza-82. Peraí, deixa eu retocar a maquiagem...
Estou bem?
Para acertar a caiação do rosto, Marilyn mirava-se no
anel exagerado que trazia no anular, um enorme pedaço de
espelho. Fazia caras e bocas para a improvisada penteadeira
de mão.
— Tira uma foto dela com as crianças, aconselhou a
mulher do fotógrafo.
Marilyn posou com os dois menininhos fantasiados de
pirata.
— Aii, deu um berro histérico, ai, ai, ui!
__ ??
— É o flashe, minha filha. Sempre me assusta. Sou
muito sensível e tímida.

1 el&: grafia variável de ele/ela ou ele-a, para uma biografia


variante e/ou.

20
Uma senhora, acompanhada do filhinho de dez anos,
curtindo a cena, provocou:
— Você tá linda. Mas precisa se depilar.
Marilyn além de grande, o que um redator apressado
chamaria de “pessoa de compleição robusta”, tinha grossos
pêlos nas costas, nos braços, nas axilas.
— Depilar já era, queridoca. Libere-se dos preconceitos,
aconselhou o travesti, caricatura não só delas, mas daquehw
liberadas.
— Debaixo do braço fica feio, argumentou a senhora.
— Ah, é que eu sou européia! Já não usam mais tirar
os pêlos. Tá na época de transar os pêlos, minha filha. Curtir
o próprio corpinho.
— Fica feio, revidou a plácida dona-de-casa, ciente e in­
consciente dos hábitos das pequenas mutilações a serviço dos
machos.
— Feio nada! Fica é safado, analisou Marilyn. Essas eu­
ropéias, meu bem, são todas umas porcas espertalhonas. São
cheias de mumunha. Na .hora da coisa levantam os braços.
Assim, ó! Endoidam a rapaziada.
Gritou e levantou os braços, mostrando a pornocabeleira
do sovaco:
— É um tesão, né, garotão?
O rapaz interpelado riu e agarrou-se na cintura da bicha:
— Vão dançar, vão. ..
— Viu? Já pintou tarado. Não disse? Faça como eu, su­
geriu à mãe depilada. Esses homens querem mesmo é sem-
vergonhice. Aproveite, filhota.
O espetáculo continuava. Aquela não era a única bicha
na Avenida, mas das mais talentosas.
— Ator de um personagem só, comentou Cláudio, que
me acompanhava.
— O texto é bom, a mise-en-scène perfeita. Mas o que
deu trabalho para preparar a peça, hein? Imagino o que ele
não teve de fazer, como laboratório e como ensaio, a vida in­
teira, para chegar a isso, comentei.
Muitas e outras bichices passeavam ali, inclusive Cláudio,
Paulo e eu, bem serinhos, vejtidinhos de despistados. Eu, o

21
mais enrustido de todos, de macacão — embora um macacão
meio avançadinho, de pano azul brilhante. Paulo (meu namo­
rado), com seu corpo de ginasta macho, estava mais ou me­
nos lembrando um capoeirista, com peito nu e calça branca de
cetim. Cláudio (meu companheiro-cônjuge), mais bandeira,
de calção branco, semi-transparente. Como eu, ele não via o
carnaval há muitos anos, e emputeceu:
— Amanhã não venho assim. Tô vestido como uma bi­
cha enrustida: o pior tipo. Amanhã desbundo, pó. Venho na
minha. Nada disso de querer disfarçar na fantasia.
Cláudio não gosta de travestir-se, mas usa suas roupas
como estandartes. No seu corpo, tradicionalmente, pendurou
decorações “quais bandeiras agitadas”, como na canção, fa­
zendo seu “estranho festival”. Seu estilo é vestir-se de doura­
do no palco das perdidas ilusões. Para se mostrar belo, como
de fato é. E ser desejado, o que para ele é fácil. E tão mais
fácil quanto necessário. Quanto mais bonito é um, mais exibe
e impõe a suprema precisão de fazer que todos reconheçam o
seu próprio desejo. Cláudio, desde que o conheci há 11 anos,
sempre foi uma das pessoas mais conscientes dos signos do
vestuário. Seu discurso de hábitos e costumes sempre foi um
manifesto e mais do que uma proposta: uma prática do pró­
prio erótico. Às vezes, invejo. Mas para mim o caso é outro.
Feinho, tenho que elaborar outra linguagem, que já sei
que enfeites não são modos de expressão uniformes. A cada
um segundo suas necessidades, para cada um segundo suas
capacitações físicas. Corpos e corpo. O meu é este. Como vai?
Mal, obrigado. Com isto me arranjo e desarranjo. Aprendo
e desaprendo. Evoluo nas avenidas possíveis, provocando meus
ritmos.
No carne-vale-hoje do tríduo de muitos dias do espetá­
culo pagão, começo falando do corpo de carne, suas lingua­
gens, e do aprendizado dessa pele, osso, fantasias e canais. Pri­
meiro tema.
No passeio público, na descontração de aceitar tudo como
gozo, me deu uma vontade de falar com aquela gente que
aplaudia rindo o espetáculo de Marilyn. Digamos que eu tives­

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se coragem de falar àquela senhora que raspava os pentelhos
axilares:
— Minha senhora, se Marilyn fosse seu filho, como é que
a senhora reagiría?
Pergunto para os pais que me lêem, o que vale a mesma
coisa. Para meus pais, não perguntei nada, mas respondí com
algumas dúvidas que os entristeceram, sem que as minhas res­
postas aliviassem ou tranqüilizassem. Não se amputa o sonho
de um de reproduzir no descendente a imagem linda que se
fez para si, e não foi, mas projetou como hipótese no herdeiro.
Soube de pais que dizem:
— Se meu filho fosse bicha, eu matava.
Não precisa, meu senhor. Digo-vos, em verdade, que isso
que chamais ser bicha é uma morte provisória, um ensina­
mento do inútil, uma transição para o estéril. Complicado?
Não. Só quero dizer: ninguém é bicha, meu senhor, aprende a
ser. E pode aprender de muitas formas, tanto quanto o senhor
aprendeu a ser provável carrasco-de-viado. Ninguém nasce as­
sim. Isso tudo, vítima ou carrasco, é papel aprendido, que não
vem de geração: se assim NÃO se nasce, assim se pode morrer.
Outro tema: que não haja mortos ou feridos, mas a vida
sem guilhotinas, sem amputações educacionais; nem mesmo
giletes depiladoras. Certamente não falarei dos pêlos, pouco
me preocuparei com a raspagem. Quero insistir na navalha,
cisei de tantas estatuarias que nos pesam com formidáveis ale­
gorias de carros carnavalescos que empurramos achando que
estamos sambando.
Pois então, Marilyn decorou — deve ter sido barra — o
seu papel. Outros homossexuais também, que os há de múl­
tiplas variedades. Falar de bicha é como falar do bicho, mera
generalização, que inclui o invisível protozoário, o veado, o
viado e mais humanos.
Mais perguntas faria na Avenida, aos mil variantes:
— Você, rapaz, que disse, como escutei bem, que aquele
cu da bicha semi-nua era um dos mais quentes da cidade, que
homossexual você é? E por quê? E por que aquele nojo atra­
vessado de ver naquele corpo, tão bonito, apenas um buraco
escatológico, um cu com merda, e não um poço de pessoa

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onde teu gozo podia ter oásis para os teus anais de medos
oblíquos?
O carnaval é uma anistia parcial e utilitária — como a
da ditadura, em 79: dá direito a liberações restritas, a diver­
sões genéricas. Liberação com limites: libertar-se do quê? E
o quê? Apenas o riso? Claro, uma forma do gozo. E a dor?
Outro gozo? Onde esta se libera senão na intimidade que não
tem limite de hora?
Bicha é coisa menos grave até a terça-feira gorda.
É, eu não fui anistiado, não. Meu exílio terminou por
prescrição das minhas penas. Quer dizer, um dos exílios polí­
ticos. Bicha, porém, ainda não teve anistia. Problemas políti­
cos. Pra quando a irrestrição?
Duvido do samba de arquibancada, da coreografia de
luxo, dos direitos concedidos. Continuo minhas questões:
Direito à homossexualidade? E o que são tais direitos? O
que afinal é isto: homossexualidade? É explicável? E como?
Além dos dias de festa, no deslocamento da segregação,
encontramos os atores de um só papel, o seu: os tantos vários
homens-sexuais e as tantas variantes sexuais hetero-gêneras. E
esse papel, como foi aprendido, decorado e condecorado? Será
intuído ou instilado?
E é o quê, a repressão? Ela se dirige contra quem? Con­
tra a imagem do des-viado? Mas quem é “homossexual”?
Contra “minorias”? Que aritmética determina tais percenta-
gens de massacrados? Que absurda contabilidade inventou as
partições entre majoritários e outros diminuídos?
Neste ensaio, tentativa e erros, tentarei algumas respos­
tas. Segundo minhas vivências, , naturalmente. Aqui trabalharei
como numa espécie de não-depoimento.
Posso tentar clareza, quando a tiver, mas sem claridade,
que por aqui, no tereno baldio da perversão, academia de pe­
numbras, as luzes são névoas.

♦ ♦ *

Logo que retornei ao Brasil publiquei um livro onde falo


dos meus anos de clandestinidade até 1974 (meu exílio brasi­
leiro), da vivência no asilo europeu e do desterro geral do

24
homossexual. Aí teve gente que me disse: “você foi corajoso
de contar aquilo tudo”. Coragem? Não vejo nenhuma. Talvez
lucidez e alívio. Mas nesta nossa terra pra se ser bicha é pre­
ciso tener cojones. É preciso ser macho pra caralho, para não
ser machista!
Uma amiga me escreveu, de Minas. Contava que amara
o meu livro, mas que, em geral, “os homens não gosta'ram da
parte em que se falava da homossexualidade”. Reli a frase.
Normalmente tenho dificuldades com o vocabulário que me
coloca fora da explicitação sexual. Mas é corrente dividir o
mundo em homens, mulheres e homossexuais. Ser não sendo?
Eu? Mulher, nem mesmo imitação, sou ou posso parecer ser
(me falta substância). Com-po(a)rto-me masculino, perfeita e
infelizmente.
Minha querida Sheila me avisa, reclamando: “não se
meta a compreender as mulheres. Você não é.” Mas não quero
“compreender”, não. Quero compartilhar, por puro amor e por
carência. Como homem, preciso delas, para aprender e desa­
prender o sexo do opressor: mesmo o da fêmea opressora.
(A Leila, neste mesmo livro que dividimos, rima meu nome
duma maneira com que eu gostaria de solucionar a vida. Leila,
meu tesão, quem me dera um dia merecer seus versos lindos.)
O mais divertido é que muita gente disse que eu “con­
fessava” minha homossexualidade (ou meu pecado?). Aconte­
ce que consegui passar seis anos fugindo da polícia e nunca
fui preso, nem torturado, para ser obrigado a cçjnfessar. Nem
mesmo depor. Não seria agora que. . . Enfim, o que procuro?
Diálogo (palavra que na tradução, com graça grega, seria a
dialética).
Anos a fio, carregando a pecha de terrível “terrorista”,
um pânico me assombrou: que “descobrissem” que eu ERA!
Vivi um quase pesadelo, pensando que os jornais, que certa
vez me classificaram de “braço direito de Lamarca”, poderiam
estampar esta manchete assustadora: “Guerrilheiro Bicha”.
Ou: “O terrorista era um tremendo invertido”... Na época
a gente imaginava que essas coisas eram ofensivas e “taras
sexuais” eram reservas (i)morais da Pátria da direita. À es­
querda éramos abstratos, voláteis, imunes; o corpo-militante

25
era o corpo de um anjo exterminador de sexo exterminado.
Não é por outra razão que eu — e todos! — silenciava. Bicha
admissível, só a caladinha.
Hoje, pelo avesso, uns e outros equivocados usam o lin­
guajar da extorsão da intimidade: querem que o homossexual
“confesse” ou “deponha”. O que querem esses hetero-inves-
tigadores (Aein/erogadores)?
Procuro atualmente expor(me), em primeira pessoa, mas
excêntrica. Não esse sujeito indiviso e central do discurso, uma
satisfeita consciência teórica, mas um dúbio autor que deixa
escapar as manifestações do seu desejo, tentando ordenar suas
duplicidades excéntricas. Falo de eu, como quem inventa com
intencionalidade, para poder sustentar o diálogo com outras in­
tencionalidades (as de vocês). Se organizo minhas idéias, no
decorrer do meu desejo, nem por isto quero lhes transmitir
uma espécie de auto-análise, pois não estou num divã-livro,
duma psicanálise mal entendida. Minha postura não é a do
dizer psicanalista, orelha do falar alheio, nem a das livres-
associações estruturantes do analisando, boca-do-céu nublado
do desejo que terá sido.2
Se me permito coser idéias sobre a sexualidade, não é que
creia que uma experiência que tive — em política e em sexua­
lidade, como guerrilheiro e bicha — me dê títulos e direitos,
mas porque esta experiência me impõe agora a busca do pra­
zer de escrever esclarecendo, opção e vocação que me escolhi.
Não me meteria jamais a falar de uma igualdade generalizan­
te de seres qualificados com seus seccionados gostos, perversos
ou pervertidos. Muito menos impingiría (puro engano ideoló­
gico do egocentrismo) minha confissão, como se fosse válida
por sê-la: confessional e sincera, “verdade” apenas por carre­
gar-se da ilusão da honestidade. Nem todos podem ou sabem
falar compreensivelmente da sua própria experiência, por mais

2 Há um caminho de versos que começa em boca-do-cíu- varia


em boca de setas (ferindo), bocado setas, boca-seta, bo-seta, buceta,
linda palavra que é a trilha da nossa inicial viagem, céu (da boca que
seremos). A buceta é muito mais elogio do que uma coisa do caralho.
Ê a parte mais feliz e delicada de um medo do abismo vertical donde
emergimos.

26
rica seja ela. É preciso exercitar-se muito, para tornar a vivên­
cia uma escritura vital, aprender duramente a modelar as ob­
servações numa visão pelo menos Original. Todos vêem, mas
rever revivendo o objeto é função do ofício do escritor. É
uma bobagem, que se tornou mania demagógica, pensar que
todo “depoimento” é válido por transmitir veracidade (ou in­
clusive verossimilhanças). Na maior parte das vezes o teste­
munho transfere tão-so-mente uma similitude verdadeira, sim­
ples consciência atual do que ficou desse resto, rest-o/ho,
visão de um participio (onde pretensamente se participou).
Depor não exige apenas a boa-vontade desse vago eu-conscien-
te, mito fundador da individualidade e duma insinuante filoso­
fia do totalitarismo (com seu culto e personalidade). Depor
exige o artesanato de organizar nas brechas do discurso cons­
ciente as expressões incoerentes do inconsciente, instância mó­
vel onde o passado não o é, mas uma re-escritura sempre pre­
sente pontuando o passado, dando constante significação ao
que terá sido. Perfeito, o passado nunca o é, senão per-feito,
perfazendo-se a cada instante. Nada aconteceu; terá acontecido
segundo os parâmetros dados pelo presentemente.
Viver são revivências.
Aqui não faço um estudo“especializado”, nem de “espe­
cialista” (não sou nenhum técnico em viadologia, bichótica ou
pederastografia). A ciência “especialista” da sexualidade é ex­
clusivamente uma estruturação do mito moderno do Corpo:
toda cátedra despeja do seu alto uma tecnologia de constitui­
ção corporal que só serve para nos vestir com preconceitos,
altos conceitos do que deveríamos ser. Muito menos do que
proibir excessos do Corpo, a Ciência força um molejo, um
jogo, uma linguagem padrão, com afirmações e as necessárias
e decorrentes negações. A Ciência não mente, nem distorce:
simplesmente é o poder de construir o objeto do seu estudo.
Todo saber é um dos modos do fazer.

• ♦ *

Entre as muitas opções que fiz na vida, situo a minha


qualificação de bicha, gosto que tenho e curto, jeito que fui

27
desenvolvendo. Opção? Não se creia que trato de uma escolha
entre gostos ou saídas. Opção envolve necessidade, vontade e
desejo.
Diz velho refrão: gosto não se discute. Claro que não!
Gosto se INCUTE, assim como o sabor da pimenta brava ou
da carne podre (“faisandée”, para ficar na elegância do menu
civilizado). Agora: gosto imposto não é deposto. Fica e forma.
Para que não permaneça como pura imposição é preciso tra­
balhá-lo para fins adequados à coexistência, para que todo
gosto por qualquer gosto seja gostar do gosto alheio, amar o
amargo sem dissabores, liberar o paladar de todos para todas
as frutas do real.
E no entanto o primeiro passo da sensibilidade, que
aprendemos nas escolas, é discutir o gesto alheio, limitá-lo.
Somos forçados a admitir a igualdade de diferenciações, nunca
a reconhecer a diferenciação em sua totalidade. Ensinadinhos,
viciadinhos, aprendemos a diferenciar, de tal forma que mui­
tos “diferentes” fazem entre si uma uniformidade cercada,
bem murada. O mundo se divide em diferentes que — pura
ironia — são iguais entre si. Divida para vencer, é a guerra
que ensina. Raças, tipos, classes, espécies, ramos, cada qual
faz parte de um buraco de diferentes-similares, vive nas nebli­
nas da ignorância da sua total e absoluta desigualdade indivi­
dual. Assim se constituem “minorias”, “guetos”, “submun­
dos”, “subculturas”. E cada um desses abismos é uma escola-
de-sombra, uma escolha da sombra, onde se apagam os con­
tornos, onde se exclui a plena possibilidade de desempenhar
suas capacidades próprias, de tomar consciência das pessoais
necessidades. Sem potencialidades, sem vontade, os povoado-
res de cada sombra servem de produtores para a única neces­
sidade que dá lucro, e uniformiza na claridão da cegueira: a
fome e a liberdade de ter fome. Aquela fome que nenhum
alimento sacia, pois é a antropofagia da violentação do poder.
Fome política e politizada. Uma fome-noite onde todos
os gostos são pardos, desgostos. Fome vinda da indiferença:
a fome da Morte — pura indiferença.

28
2. Onde unia piada revela a multiplicidade do sexual:

CRÓMICA
As coisas estão no mundo/
só que eu preciso aprender. . . /

(Paulinho da Viola)

Quem me dera poder aprender a desenhar tão significati­


vamente, com cores tão primarias, quanto as criancinhas. Con­
tinuo preto e branco, como minhas roupas sem elegância. Al­
guém diría que escolho cores mortas, que visto ilustrações en-
rustidas, porque ainda não assumi o que sou. Mas cromatis­
mos e vestes são formas de muitas pulsões, e o sexo é uma pai­
sagem de forças cegas e-videntes. Os hábitos que cobrem meu
jeito são jeitos dos hábitos que adquiri e não* mais perderei.
Ou perderei, se isto pintar. Não desbundo em panos e pendões
de bandeirinhas. Lábaro que ostento, e as estrelas de uma
noite, meu sexo sem sol (multicor), mas divertido.
Escrevo em bancos públicos, vendo passar o mundo e
seus modos. Escrevo crómicas, naturalmente. Crómica, a ser
registrado em dicionário, tem anedota e colorido^ Piada.
Piada já fui — <e sou. De “bicha”, essa afronta ao mito
fundamental que acalentamos, mito que reza que o humano
se reparte em dois sexos biológicos, lógicos e inequívocos.
O humor, como a poesia, são poderosas formas de “apre­
ensão do real”, e que, entretanto, são pouco consideradas en­
quanto valor de método, na nossa civilização adoradora do
totem exclusivista — e totalitário — da (cons) ciência. Para
evitar as armadilhas da análise que parte sempre da dualidade
do sexo, contarei uma piadinha manjada:
Debaixo da Ponte, uma Bicha se fazia enrabar por seu
Macho. Passando naqueles ermos, um Respeitável Cidadão,
honesto e labutador, escandaliza-se com a cena pública de bai­
xos instintos. Invectiva, com fortes palavras, a Bicha e seu

29
Comedor, em termos formais e censuradores. Como única rea­
ção a Bicha, tranquilamente, diz ao seu Metedor:
— Tira, Jorge. (A pronuncia da Bicha, para ser real­
mente engraçada, deve ser afetada, palatizando muito, chian­
do ferinamente. Ela diz: “thira, Chorxe”.)
Jorge tira e a Bicha ataca de maiéutica socrática:
— Escuta, Cidadão: esta ponte é sua?
O Cidadão Respeitável, surpreso, reage prontamente. Diz
“não” e acrescenta um moralista discurso sobre o decoro pú­
blico, os bons costumes, a Ordem e a Lei. A Bicha retoma,
impávido colosso:
— Escuta, Cidadão: este pau é seu?
— Claro que não, esbraveja o Respeitável Cidadão, le­
vando púdico e trêmulo as mãos sobre o púbis ligeiramente
posto em dúvida, acrescentando uma catilinária sobre a Pro­
priedade, a Moral, A Família, a Pátria e outras potestades.
O que não altera a Bicha, que avança:
— Escuta, Cidadão: este cu é seu?
— Não, grita apoplético o Respeitável Cidadão, colocan­
do as mãos nas costas, protegendo o seu, e grunhindo ape­
nas, falto agora de outros argumentos.
— Então bota, Chorxe.
E continuam a trepada.
Nessa pequena cena mitológica já não encontramos com a
sexualidade encarada sob sua forma dupla, senão como recur­
so último — que produz a disparidade excessiva da cena, fa­
zendo daí nascer um ex-sexo, traduzido em forma de impulso
ao riso. Aqui temos quatro aspectos fundamentais do proble­
ma: 1) a Bicha; 2) Chorxe; 3) O Respeitável Cidadão; 4) A
Ponte.
Serão, como veremos, os aspectos da “relação sexual” —
não apenas dual, mas facetada em múltiplas questões. Consi­
deremos cada uma dessas arestas da nossa pequena fábula.

+ A BICHA

Para usar uma língua “fácil e chão” (como a queriam os


cronistas quinhentistas, descrevendo com agucidade as opu­

30
lências das exóticas terras brasílicas) diz-se bicha, louca ou
viado, para os machos; e sapatão, fanchona ou lésbica, para
as fêmeas. Ninguém tem dúvida, empregando esses ou outros
sinônimos do farto vocabulário do sexual, da exatidão do que
nomeia. Ao nomeado, porém, as certezas não chegam tão ra­
pidamente. Quem É? É é o quê? E como é ser? (Para o desig­
nado a aprendizagem será longa.)
Os termos registrados em dicionários, chulos, eufêmicos
ou científicos, qualificam, com extrema simplicidade sempre,
às vezes com alto valor cromático, um aspecto da sexualida­
de, isto é, das “relações sexuais”. Mas a complicação começa
quando se tenta explicar o que são as relações entre os sexos.
Pra começo de papo: quantos e quais são os sexos que entram
em “relação”?
A linguagem corrente, ou seja, a ideologia corrente, parte
do princípio de uma dualidade fundamental, dois “sexos” pri­
mitivos que travam feroz combate na arena do social. “Macho
e fêmea os criou”, diz o antigo livro, firmando uma rigorosa
polarização que, logo, logo, se complica. As fronteiras dessa
duplicidade básica não são precisas e o que acontece nessa
terra-de-ninguém intersexual é o tema geral da maioria das
conversações familiares. Ê a evidência mais simples qúe Ho­
mem e Mulher são papéis sociais que se aprendem, às vezes
com alguma dificuldade. Ser homem ou mulher não é apenas
ter um sexo, mas adquirir as confusas ornamentações distinti­
vas de cada sexo. A questão ficaria reduzida a uma tarefa prá­
tica: como se produz um homem ou uma mulher? O que de­
termina essa produção? A resposta mais simples, e que funda
todas as confusões posteriores, diz que há uma diferenciação
mínima da espécie, garantia mesma da procriação. Fundamos
assim, como ponto de partida para toda nomenclatura, a exis­
tência de um “corpo”, conceito muito fundamental para ser
discutido em sua realidade. O axioma (corpo) facilita a estru­
turação de todas as explicações matemáticas do sexual, a pro­
dução dos teoremas com que organizamos nossa ciência da
sexualidade.
Mas a explicação encontra uma barreira imediata. Ao
reduzirmos a questão ao animal biológico que se procria, des-

31
mentimos a informação mais imediata que nos fornece nosso
cotidiano: o homem é um animal, sim, mas o conhecido “zoon
politikoon” (animal social), como bem o definiu Aristóteles. O
corpo humano não é mero objeto de uma zoologia; o seu de­
senvolvimento não se passa mais segundo as leis de uma “His­
tória Natural”. A natureza do humano é já a sua História.
Social.
Qualquer “teoria” da sexualidade que parta da existência
de uma bipartição entre sexos, que estabelecem entre si “re­
lações”, comete um engano primário: a admissão dessa polari­
dade, exclusivamente biológica; uma “lógica biológica”, ou
seja, uma fantástica e suposta “natureza” determinando a rea­
lidade do social. A hipótese de uma repartição mínima do hu­
mano entre dois eixos não nos leva senão a becos sem saída.
Isso evidencia-se, por exemplo, quando as “perversões” de­
vem ser analisadas.
“O termo genérico ‘perversões’ serve para designar o con­
junto de manifestações sexuais que não servem à função de
reprodução”, ensina uma definição de J. M. Palmier, em Sur
Marcuse. (Palmier fala de reprodução para designar o que
prefiro denominar “procriação”). A definição de “perversão”
é sempre apresentada assim, rápida e rasteira. O dicionário é
taxativo: “qualquer anomalia do comportamento sexual” (Au­
rélio). Naturalmente, sendo qualquer “comportamento se­
xual” humano uma normal anomalia, enfiamos, dentro da ge­
neralidade “perversão”, toda sexualidade que não seja estrita­
mente genital, heterossexual, monogâmica e procriativa.
Qualquer ser humano que pisou ou, se a sorte deixar, pi­
sará este vale de lágrimas é exímio praticante de uma qual­
quer perversão. O sexo normativo é meramente o texto da lei.
Na prática, o papai-mamãe-no-escuro é mero disfarce neuróti­
co, exercício de angustiados. A humanidade vira, segundo os
parâmetros da sexuàlidade dual, um esmagado sanduíche de
carne entre a perversão e a angústia.
A Bicha, ou o Viado (a não se confundir jamais com
“veado”, mera espécie em vias de extinção), torna-se, segundo
nossa piada, um substantivo. Não se trata da qualidade sexual

32
de um ente, mas de uma entidade nacional, autónoma, pública
e notoria.
A Bicha é, no fundo, uma Imitação. Uma Imitação da
Fêmea. A definição da “bicha” parte duma localização preci­
sa do individuo no “ato sexual”, considerado como “relação
entre dois sexos”. Ora, como se trata de um individuo mascu­
lino que executa um papel feminino, o deslocamento da fun­
ção é a origem do riso. É muito gozado um homem que ocu­
pa um lugar da mulher. O caso inverso é menos engraçado, o
que faz do lesbianismo menos rico em piadas. Por qué? Por­
que quando uma mulher imita um homem, ocupa o seu lugar,
isto é, quando possa ser insinuada a ausência do macho, a
coisa torna-se muito mais grave e cheia de ameaças. Menos
engraçada, a mulher-macha é um disparate coberto de peri­
gos. E não faz rir. Daí que o lesbianismo é muito mais utili­
zado como recurso erótico (para os machos), manipulando
com certas fantasias primitivas.
.A Bicha, no seu estereotipo, como Imitação Acabada da
Fêmea, vai deslizar para ocupar uma ausência nítida na piada:
a ausência (recusa) da Mulher. Evidentemente o Respeitável
Cidadão não tem sexo. Tanto poderia ser Macho como Fêmea
(a estória poderia ser contada com uma beata, que acabasse
de sair da missa). Como veremos, a característica do Respei­
tável Cidadão é a sua “indiferenciação”. Mas, beata ou buro­
crata, tanto faz. A ausência continua.
Dessa forma nossa história nos fornece uma classificação
definitiva da Bicha, muito mais precisa do que toda termino­
logia aparentemente científica (como, por exemplo, “homosse­
xual”), que usa sempre os recursos dos limites entre dois se­
xos, falando de sexos iguais e diferentes. . . A Bicha é, então,
Ausência da Fêmea, presença da ausência. Inversamente, tam­
bém (como presença de um macho imitando a Ausente), a
ausência da presença do Macho. Não se “localizando” no sexo
— tal como é convencionalmente definido — a bicha é um fe­
nômeno (risível): sua presença indica apenas o Prazer como
função do ato sexual (reparem: digo função e não objetivo).
Puro Gozo — a partir da ausência do sexual conformado e
ordenado —, a Bicha é portanto o rigor extremo da Perversão.

33
A Bicha, sem nome na piada, chamar-se-ia, por exemplo,
Marilyn Aparecida, nome de guerra. De guerra sim, com suas
oatalhas perdidas. Mas o nome de origem, de antes, poderia
ser, por exemplo, João José Pedro de Oliveira e Silva e Cruz
e Souza e. ..
Entre um nome e outro há toda urna Historia, ou um ro­
teiro, que parte de um corpo (masculino, no caso) predeter­
minado e chega a um sexo ensinado, que passa a ser admitido
expressamente como opção no novo nome de Bicha. Se aqui
o nome é a associação de um dos mitos de Corpo favoritos do
século (La Monroe) e uma designação da Santa Padroeira,
tudo é so para mostrar certas regras do ensino e formação: a
ação constituidora da moralidade da época enquanto poder de
organização da sexualidade individual (ou Poder, apenas).
Até aqui, então, acentuamos algumas características da
Bicha. Recapitulemos, acrescentando:
a. Bicha é uma definição que parte do inexplicável in­
cómodo dum “deslocamento” no espaço da sexualidade dual.
O que significa uma dificuldade de ocupação regular do corpo
(o corpo mitológico que aprendemos). Resultado lógico: o
corpo (real) da Bicha é um organismo intermediario numa
localização (sexo) intermediária. A nova área precisa ser re­
gistrada, mapeada, ordenada, legislada. Tudo começa como
se se tratasse da descoberta de um novo mundo; logo, natu­
ralmente, da necessidade de encontrar novas toponimias. Difí­
cil tarefa, o descobrimento da novidade permite enganos: pen-
sa-se primeiro numa Ilha, a seguir numa Terra, depois num
Continente. Os adjetivos patronímicos serão também engana­
dores: diz-se “índios”, quando se planejam índias Orientais.
Diz-se bicha, viado, homófilo, homossexual etc., quando se
planeja uma imitação da ausente.
No caso do “homossexualismo feminino” a questão será
diferente, já que ideologicamente o “macho” nunca pode estar
alísente. Não se esqueça que a ideologia que gera a mitologia
é a dominante, isto é, machista, exclusivista, possessiva, falo-
crática. O que vai complicar a relação da lésbica: um estereó­
tipo menos definido, de sexualidade mais difusa. Aliás, toda
sexualidade feminina é estabelecida como uma nebulosa: é

34
concebida como passividade pura, de tal forma que passa sem­
pre por “receptiva”, raramente por “doadora”, nunca como
OPÇÃO voluntaria. Assim o lesbianismo é uma espécie de
substituição, não de imitação: é uma perversão onde o objeto
ausente — no caso, o macho — é substituido sem ser real­
mente imitado. Seu lugar vago não é vazio. De urna forma ge-
ral a sexualidade feminina, quando se torna ativa, na busca
exata do gozo — qualquer que seja ele —, é entendida —
pela ideologia dominante — como nova perversão. A mulher,
no estereotipo fundamental, não goza, nem deve gozar. Só
goza quando se torna um tipo qualquer de perversão: a prosti­
tuta, a piranha, a de “furor uterino”, a lésbica, ou — mutatis
mutandis — a Bicha.
b. A Bicha é um aprendizado de um novo Nome. Não
apenas um adjetivo ao nome original, mas um substantivo
substituto constituidor. Esse aprendizado é também a adoção
de um discurso normalmente autojustificativo. Note-se que na
nossa Cena Mitológica apenas dois elementos falam e não são
os elementos que participam na relação dita sexual. O discurso
da Bicha é definitivo e absolutamente primordial — é a linha
condutora de toda a trama. Discurso justificativo, sim, aparen­
temente contestador, mas na sua própria essência moralista e
irrespondível. A dificuldade não é descobrir a ação de repres­
são do discurso do Respeitável Cidadão, mas a ação forma-
dora do discurso da própria Bicha. Não é proveitoso analisar
apenas o discurso oficial sobre as Bichas, mas criticar o dis­
curso oficiante das próprias bichas, isto é, o que nesse discur­
so é transferência da ação do Poder.
Falar •sobre a homossexualidade implica urna postura es­
pecífica: ou se fala de um ponto de vista exterior (“científi­
co”), ou se fala de dentro, isto é, como a homossexualidade
fala. Neste segundo caso, pode-se gerar uma ideologia cheia
de falseamentos, defensiva, explicativa etc. Tal ideologia é
apenas a contrapartida da ideologia dominante. Por isso é im­
portante uma crítica — exatamente o contrário do depoimen­
to, ou de um auto de defesa. Pelas características mesmas da
sexualidade, o único discurso capaz de escapar das tramóias

35
do Poder é uma análise autocrítica: falar da própria sexuali­
dade (homo/hetero. . .?) sem alheamentos ou alienação.
Um lugar comum do liberalismo (até mesmo avançado)
recorre ao eufemismo de postular que sexo é um comporta­
mento entre duas pessoas. “O que duas pessoas fazem na ca­
ma é problema delas”, afirma-se com a mesma leviandade com
que se supõe que a liberdade de um termina onde começa a
liberdade do outro. O liberalismo, engano clássico da cons­
ciência, supõe o social como contrato entre indivíduos. Mas o
que existe (socialmente) são pessoas, conjunto de complexas
relações que forma o participante de uma época historicamen­
te dada. O que se passa na cama do meu vizinho me interessa
tanto quanto o que se passa na minha. Devemos exigir saber
como se passam as trepadas do próximo, pois são trepadas
onde estou, como contemporâneo. Exijo o meu direito de co­
nhecer o que se passa na cama ao lado, tanto quanto seu(s)
ocupante(s) interfere(m) por sincronia na minha cama. Vi­
vemos uma orgia — pura — e trepamos em grupo. O acordo
social não passa por indivíduos celulares, mas como jogo de
necessidades e capacidades coletivas. Não exijo (nem posso)
poder de interferência, mas simplesmente a posse no patrimô­
nio comum dos corpos contemporâneos.

+ CHORXE

Jorge, cavaleiro com sua lança de enfrentar dragões, é


um silente centauro sem cavalo. Em silêncio permanece atrás
do seu mastro, meramente figurativo.
Aparentemente sem maiores dificuldades, sua existência
é a própria normalidade. Chamou-se Jorge, Jorge chamar-se-á,
exceto em pequenos instantes debaixo da Ponte, quando se
transfigura passageiramente em Chorxe. Jorge servira, quem
sabe, o exército; talvez seja noivo; talvez coma a Bicha para
ganhar uns trocados ou, sabe-se lá, para “quebrar um galho”,
enquanto seu lobo (buceta) não vem.
Mas no silêncio de Jorge é que vamos encontrar as maio­
res dificuldades. Naturalmente, segundo definição normativa,

36
Jorge é um "homossexual”3 já que mantém relações com uma
pessoa do “seu mesmo sexo” (sic)! Ora, mas já vimos que o
sexo de Marilyn Aparecida é um outro, impreciso. A relação
Chorxe x Bicha, tecnicamente, é completamente “heterosse­
xual”: são sexos muito diversos que estão em liça. Neste caso,
a heterossexualidade é uma pura perversão, a perversão de
Chorxe. Então, qual é o sexo de Chorxe, esse macho impuro?
Chorxe goza. Qualquer que seja a razão que o move,
goza debaixo da Ponte, tanto quanto Marilyn Aparecida ou o
Respeitável Cidadão. Como classificá-lo, homossexual que do
heterossexual guarda apenas a assim denominada “atividade”?
Ativo, no entanto, não toma iniciativa. Ê levado, seduzido,
bota e Jira como um pistón mecânico, sem ruídos, sem atritos.
Como é possível que Chorxe seja “ativo” diante da capacida­
de de ataque e falação da Bicha-Comandante? Claro, a Bicha
é totalmente o Cu-mandante. Mas Jorge é o Falo-Rei, o Cara-
lho-Governador.
Naturalmente fala-se do gozo anal como forma variante
do Prazer. Como se sabe, a Bicha especializa-se nesta peculia­
ridade do rabo como órgão sexual, mas não deixa de ter seu
pau. Garante-nos o folclore, em outras tantas historietas, que
ocorre freqüentemente a volta do cipó de aroeira doendo no
lombo de quem mandou dar. Um dos pavores (ou prazeres?)
de Jorge, é, transfigurado em Chorxe, que depois de ir tenha
que vir: “obrigado, não; pode ir descendo as calcinhas” —
pode dizer a elefantina Marilyn ao formiguinho Chorxe. Bicha
sim, mas nunca se sabe. Quem tem, tem medo. Quer dizer: no
fundo quer. E se come é porque enfrenta claramente a hipóte­
se de dar. O sonho básico de todo “ativo” é a passividade,
que pressupõe como sua.
Chorxe participa calado da cena porque não tem graça
e não faria rir. Jorge é um caso sério, ou seja, aquilo que se
chama no jargão familiar de “uma pessoa com problemas ho­

3 A palavra “homossexual” deveria neste texto vir sempre entre


aspas. Para facilitar vamos escrevê-la, como fizemos até aqui, sem
aspas. Leia-se, entretanto, sempre, com as marcas que carrega origi­
nalmente a palavra.

37
mossexuais”. (Cláudio de vez em quando glosa: “eu sou um
homossexual com problemas de pessoa”. . .) Jorge tem, no
fundo, horror às bichas (ou será: horror à sua própria sexua­
lidade hetero-gênea?). Come com nojo, para matar uma fome
escatológica e ingrata. Mas sua fome, “problema”, não o deixa
escapar de enfiar-se, como tantos miseráveis, debaixo da Ponte.
Para designar a questão de relações entre “mesmos se­
xos”, a linguagem esbarra em pantanais imperdoáveis. Daí co­
meçam a pulular os adjetivos. Tantos quantos, e todos impró­
prios. A maioria, para o caso masculino, ofensas graves: cha­
ma-se o indigitado de mulher (depreciativamente no diminuti­
vo) ou lhe é atribuída alguma característica feminina especí­
fica. Por exemplo: mariquinhas, florzinha, invertido, travesti,
paneleiro etc. . . (Vivemos num mundo onde os homens
amam tanto o Homem que ser mulher — ou imitá-la — passa
por ofensa). Há o termo “louca”, que explicita bem o absur­
do do deslocamento esquizofrênico do corpo (o louco é ofen­
sivo, no nosso mundo racional, sem lucidez). Há adjetivos
mais cultos, que permanecem na mesmíssima balbúrdia. O que
caracteriza todos, com algumas variantes, é o fundar-se no pre­
conceito de uma bissexualidade primitiva. Há confusões e ge­
neralizações: por exemplo, o termo “pederasta”, que falaria de
uma atração pelas crianças e aborda sem querer a questão
complexa das relações entre diferenças sexuais e diferenças de
geração (diferenças primárias em todo grupamento humano).
Mas os cruzamentos entre “pederastía” (atração sexual pelas
crianças) e “homossexualidade” (relação entre indivíduos de
semelhante constituição biológica) são bem mais ramificadas
do que ousa sonhar a vã filosofia da bipartição sexual.
Acaba-se, normalmente e normativamente, firmando uma
nomenclatura frágil, de uso abusivo, que inventa uma espécie
de qualidade “substantiva” dessa “coisa” fantástica que nunca
se explicita ou resume: a homossexualidade, travestida numa
essência determinante do sujeito. Diz-se mesmo “homossexua-
lismo”, que aparenta o substantivado a uma espécie de reli­
gião, filosofia, seita ou partido. No qual se encontram células
bastardas com ismos mais absurdos ainda, como “bissexualis-
mo”, pura mistificação desexplicativa, partição do partido.

38
Por que falai em bissexos. ;enãc como forma de referen­
dar um mito desgastado, isto é, como mera veiculaçâo da ideo­
logia dominante? Por que insistir no esquema de dois sexos
genéticos?
Chorxe, aquela pessoa com “problemas homossexuais”,
seria um bissexual, porque teria atração por homens e mulhe­
res. A evolução do Mito quer que agora os corpos não sejam
separados mecanicamente em sexos distintos e oposáveis. Con­
tinuam oposáveis, distintos, mas internalizados.
Quer a lenda, contada por Ovídio, que o lindo filho de
Hermes e Afrodite ao mergulhar na fonte onde habitava uma
apaixonada ninfa, que o rapaz repudia, saia das águas marca­
do pela maldição da recusada. Ela pede aos deuses que ele
passe a ter os dois sexos simultaneamente, para vingar-se do
desprezo do moço aos seus avanços. Aquele que fora possante
corpo emerge da fonte fraco e ferido. Torna-se o temível Her-
mafrodita, divindade apavorante, dotada de poderes mágicos.
Como na metamorfose do infeliz banhista, o novo corpo que
nos inventamos atualmente, depois do mergulho no que deno­
minamos Modernidade, possui em si os dois sexos, em luta e
contradição perenes. A tal ponto que fala-se mesmo (a mo­
dernidade é científica) em proporções e percentagens. Fenô­
meno considerado real, o “bissexualismo” é comensurável: al­
guns são 50% hetero, outros são preferencialmente homo
(98%? 77%? A linguagem popular taxaria em 24%) etc.
De qualquer forma, resta intocado o paupérrimo e inex-
tinguível sexo dual, vale dizer: biologicamente fundado. Só
que agora como problema individual.
Donde surge a teoria (e a prática) do dualismo? Exata­
mente da noção do Corpo enquanto coisa, órgão ou organis­
mo. Duvidamos de tudo, menos da existência “concreta” e in­
dividual desse objeto corporal, “natural”, biológico. O corpo
é preconcebido como unidade física real do ser humano, to­
talidade compreendida em si, decorrente de uma evolução fi­
siológica (o corpo nasce, cresce, procria, envelhece e morre,
num processo biológico, naturalista). Existe, a partir dessa fun­
dação unitária do corpo, uma duplicidade fundamental resol-

39
vida diferentemente segundo varias visões de mundo: o ser
humano enquanto sujeito histórico é “habitado”, ou seja, é
um objeto físico “ocupado” pelo que é propriamente históri­
co e humano. Assim, o humano é dividido em objeto e sujeito:
corpo e alma, soma e psique, carne e consciencia, necessidade
e vontade etc. Não pára aí a dualidade, e as dificuldades que
dela decorrem.
Segundo essa concepção da corporalidade naturalista, o
físico é a localização estática de diferenças. Todos os corpos
são diferentes — é uma evidência empírica. Mas as diferenças
são vistas, coisificadas, como decorrência da natureza animal
e orgânica daquela constituição que se denomina “corpo”. As
diferenças fundamentais — variáveis invariantes — são deter­
minadas culturalmente, o que é o modo próprio de cada socie­
dade ver os corpos que precisa.
Ora, esse seria um corpo mecânico, puramente procria-
tivo. No momento da procriação o corpo (que nunca é unida­
de, nem identidade) é macho OU fêmea. Mas o que caracte­
riza a humanidade é que ela produz e reproduz socialmente. Se
a procriação e suas conseqüências estabelecem uma divisão en­
tre macho X fêmea, e entre pais X filhos, isto não basta para
a perpetuação histórica do humano. Ao produzir, já o corpo
não apenas produz objetos para as suas necessidades, mas pro­
duz também suas necessidades, isto é, produz o seu próprio
corpo e sua própria sociedade. PRODUZ E REPRODUZ. No
momento da produção, na criação dos objetos que inventa (e
não apenas procura) o corpo é: Nem macho Nem fêmea. Quem
planta, colhe, fabrica, modela, organiza, distribui não é um ma­
cho ou uma fêmea: não é nem uma coisa nem outra, é um
humano total, indiferenciado. Na reprodução, ao garantir a
continuidade das relações sociais de produção, o corpo é ma­
cho E fêmea, pois na criação de novos corpos existem divisões
(“sexuais”) de função. Certamente, com o aparecimento da di­
visão social do trabalho cria-se o papel social do Homem e o
da Mulher. Papéis que são regulados de acordo com a época
histórica, assim como os papéis sociais de adultos e criança,
velho e jovem.

40
Enfim, o corpo não é apenas um conjunto orgânico de
diferenças dadas, mas um ESPAÇO onde ocorrem diferencia­
ções. O corpo humano é uma . das dimensões da História e
como tal deve ser entendido como: a) um espaço social (nun­
ca unitário, sempre conjunto de relações sociais); b) um pro­
cesso de evolução histórica (nunca “natural”, sempre social),
um processo de diferenciação (e não “diferença” predetermi­
nada).
O sexual não é uma coisa, nem órgão, nem diferença. É
um processo de criação-ação dos sexos (ou do sexo de cada
um). A sexualidade não é uma qualidade, mas uma ação per­
manente de qualificação, uma constante diferenciação. Entre
macho/fêmea não há, no humano, uma desigualdade ou dife­
rença, mas o que nasce desse conflito é a sexualidade comple­
xa que individualiza cada um.
O erótico — o corpo socialmente existente — é uma cena
também trágica, porque estabelece a finitude. O sexo — que
em muitas lendas da tradição greco-romana surge como ferida
e limite — é uma partilha, uma forma que permite ligar (re­
lacionar) na medida em que divide (SEXIONA).
Antes dos ismos partidários que dividem singelamente
nossas partilhas multiformes, situemos o ensaio com sua or­
questra enorme e nem sempre sinfônica (concordante), numa
vereda sem nome que busca apenas a decisiva harmonia de
existir no Espaço que nos é dado. Isto é, o espaço (incorre­
tamente entendido eomo interno e finito) do próprio corpo, e
o espaço (absurdamente suposto externo e infinito) do Uni­
verso. O decisivo é a harmonia de conquistar esses espaços, não
espalhando uma cega dominação destrutiva — como nossa ci­
vilização vem fazendo —, mas equilibrando as capacidades de
ocupação desses campos.
Jorge, em resumo, no seu suspeito calar, é a incapacidade
de verbalizar a desarmonia onde subsiste, mero caralho desin­
formado, corpo sem meios (ambientes) no ambiente da Ponte.
Entre Jorge e Chorxe há o mesmo roteiro que guiou ao batis­
mo de Marilyn Aparecida no terreno baldio em questão.

41
+ RESPEITÁVEL CIDADÃO

Personagem patética, contribuinte do imposto de renda,


esteio da Moral, cavaleiro da repressão sexual, a triste figura
sem nome vira uma generalidade assexuada: Respeitável.
O Cidadão, como ficou dito, não se caracteriza pelo sexo,
mas pela idade veneranda do ancião. Por responsável, é velho,
e como tal, dentro dos parâmetros do Mito, fora dos merca­
dos do sexo. Nele só penetra como empecilho, como pura inér­
cia conservadora.
O Respeitável Cidadão caracteriza-se principalmente pela
indiferenciaçüo sexual. É o símbolo exato desta classificação
jurídica do indivíduo que o toma como capaz de responder —
sem Prazer — ao formulário, marcando com um desalfabetiza-
do A' o quadrinho correspondente a masculino ou feminino. Ou
seja, o responsável opressor vive a indiferença sexual como
garantia da sua função de policial da ética.
Sua postura não corresponde exatamente a uma atividade,
mas a uma imobilidade de represa, paredão que resiste grave­
mente, por reação, à força da água ágil.
Nossa cena mostra por um lado sua iniciativa, sua dispo­
sição reacionária, sua tarefa de ordenador e pedagogo, mas
não mostra diretamente o outro lado da coisa. Um dique fun­
ciona, mas é construído. Vitima, mas é também vítima. O re-
pressor é basicamente reprimido. O Cidadão Respeitável, até
ser batizado como tal, seguiu sua trilha, a -terceira rota ao ter­
reno baldio sob a Ponte. Como os outros, foi modelado, mo­
delou-se, para se meter debaixo da Ponte.
Sua aprendizagem, e dura, é a formação dolorosa da vi-
venciação da indiferença. É Macho ou Fêmea. Para ele não
existem alternativas para “macho e fêmea”, “nem macho nem
fêmea”. Não faz história. Virou objéto.
Sabe-se muito bem que em política “a questão central é
a questão do poder”. Mas fala-se pouco do poder da questão:
macho ou fêmea? E aqui as coisas se desarranjam. Politica­
mente. O poder político não é apenas pura negação — repres­
são. Na sua multiplicidade de formas, o poder age como poder
afirmativo, cbnformativo. Antes de reprimir, o poder imprime

42
um modelo ao corpo. No campo da sexualidade a ação do
poder caracteriza-se por impor permanentes opções — e esta­
belecer respostas — impostas — conformadas. Isto é, modelos
aceitos ou tolerados.
A adequação aos modelos preestabelecidos sofrida pelo
Respeitável Cidadão não é absolutamente uma diferenciação,
é um conformismo na indiferença sexual. Entre a indiferença
sexual e a indiferença política existem sutis relações. De um
modo geral, toda opção sexual é uma opção diante do poder
político. O que torna complexa a ação de repressão do Res­
peitável Cidadão. Aqui, na piada, a repressão é apresentada
como um incompreensível monólogo ao qual se antepõe o dis­
curso da Bicha. Mas ambos os monólogos se nutrem e se sus­
tentam. O que os unifica? O quarto elemento da fábula: a
Ponte.
Curiosamente tanto o corpo da Bicha, quanto o do Res­
peitável Cidadão são moldes esquemáticos e ao mesmo tempo
formas de deslocamento, corpos alheios, alienados.
Antes de tudo não se pode abandonar o significado do
Corpo enquanto espaço real da vida. Tratar o corpo como
mera acontecência historicista, seria o mesmo historicismo que
abandonaria o espaço geográfico e que faz, às vezes, voltar a
uma ecologia abstrata que lida com uma contradição falsa:
humanidade x natureza, esquecendo-se, de um lado, a própria
natureza da humanidade (sua história “natural”) e, por outro
lado, a história da natureza enquanto objeto humanizável.
Mais uma vez retornamos à conquista do espaço. Um dos
sonhos mais freqüentes da nossa civilização é a colonização do
mundo das estrelas, um espraiamento pelas galáxias. Como
todos os sonhos, esse aí mdica uma realidade indecifrável, mas
inegável. De fato, é preciso sair à conquista desses sóis, mas
sem esquecer que muitos mais são os que habitam os próprios
sonhos, esse componente do espaço dito interno, inconvenien­
temente. Há um espaço a colonizar, harmónicamente, e se cha­
ma Corpo, tanto quanto a Terra que nos cabe.
O Respeitável Cidadão perdeu seu corpo, tornado estáti­
ca indiferença política, conservadorismo fatal. Em outras pa­
lavras, conhece a morte — indiferença — como reconheci­

43
mento do outro. Perdeu também a Terra, que não mais povoa,
onde simplesmente transita, deixando seu lixo, como a podri­
dão do seu cadáver ambulante.

4- A PONTE

Elemento que finge ser cenário, mas que é principalmente


o local que dá sentido à cena. Esconderijo ou gueto, a Ponte
é a geografia do sexual, ali onde ocorre o Prazer. Portanto, a
Ponte é exatamente o ponto no infinito onde todas as parale­
las sendas se encontram, lugar onde está em jogo a sexuali­
dade de todos os personagens que vieram buscando o autor. E
o autor é o cenário, a Ponte. Lugar onde se concentram os
famintos e desabrigados, gueto de carências.
Afinal, a Ponte, em sua impessoal globalidade, é a ques­
tão sexual propriamente dita. Ao discutir o sexo como “rela­
ção” interpessoal, esquecido o local histórico onde se desen­
volvem as relações, reais, não se faz mais do que discutir o
sexo dos anjos — abstratos animais de asas, sem vôo. É pre­
ciso — e daí nos meter embaixo da Ponte — expor os anjos
do sexo.
São anjos que nos seguem, guardas protetores, desde a in­
fância. Naquele momento em que a sexualidade tem como ca­
racterística o que se classifica, desde Freud, com a terminolo­
gia técnica de “perversão polimórfica”, sexo múltiplo e infi­
nito. A grande complicação, na discussão sobre a sexualidade,
é que nos restringimos exclusivamente a diagnosticar diferen­
ças sexuais, como se fosse possível esquecer ou isolar qualquer
uma de todas as diferenciações humanas.
Isso explica que as “soluções” para a “liberação” sexual
proponham “assumir” certas qualidades sexuais que seriam
“inerentes”: assumam-se as perversões, como forma de contes­
tação; assuma-se a “parte feminina”; assuma-se um sexo pa­
drão saudável que atingirá o Celestial Orgasmo. E etc. e
etc. e etc.
Nisso tudo o sexo é um bicho escondido no fundo de
cada um, animal filogenético que deve ser solto. . . Puro engo­
do, decorrente do monótono dualismo sexual.

44
Nada a assumir, tudo a construir. E construir o sexo de
cada um significa inventar a criança de cada um, ou seja, a
criança-sexo de cada um. Mas não a criança “real” que fomos,
nem a criança-ilusão que memorizamos. É preciso gerar, hoje,
em cada um, a criança que poderiamos ter sido. Processo de
gestação: devemos nos engravidar, todos, produzir um filho.
Que filho? O nosso próprio sexo polimórfico, doce e perverso.
Não há esquema ou um modelo. Poxa, sexo não é vestimenta
pret-à-porter! Há um plano, um projeto. Sejamos um útero
PRO/ENITOR de nós mesmos, eduquemos nossa harmonia in­
dividual.
Tudo isso, enquanto opção, ação e programa é uma ativi­
dade política. Estritamente política, sem partido, sem biparti-
darismo sexual.
O que resta a aprender é que O SEXO É A CONTINUA­
ÇÃO DA POLÍTICA POR OUTROS MEIOS.

3. Onde aparecem anotações centralmente sobre o que é a


normatividade do sexual:

NOTAS MARGINAIS
Não reclama/
contra o temporal.../
Não reclama/
pois a chuva só levou a sua cama/
i
(Adoniran Barbosa)

Poder-se-ia escrever, como já é um hábito comum, uma


história da homossexualidade4 que começasse numa infância
feliz, ingênua e pagã da humanidade, de “sexo natural”, onde
os homossexuais tinham relativa liberdade. Esta pacífica ma­
nhã resvalaria no crepúsculo medieval, sob o manto judaico-

4 Não se esqueça de aspar os termos transitórios.

45
cristão (“com varão não te deitarás, abominável é”, escrevia
Moisés, que só escrevia para os homens.)
Sob a espada dos severos anjos de Sodoma, conheceram
a fogueira inquisitorial sodomitas e bruxas zoófilas, cabras e
bodes.
O capitalismo não viría melhorar a vida de bichos e bi­
chas. Pelo contrário. De sujeito do direito canônico à questão
médico-legal, o crime, que encontrara a sua asserção na fé,
passa a ter sua verificação na ciência. A fé não depõe as suas
armas e a ciência vem ombreá-la no mesmo combate. A psi­
quiatria revalida a moral, a razão ilumina a revelação bíblica.
Do segredo do consultório partia a fundamentação da Lei e a
justificação da ação policial.
Juntos, médicos, padre, juiz e policial concertavam uma
repressão sem tréguas, que impunha a ordem sexual burguesa,
racional, autoritária. O homossexual é dissecado, pesado e me­
dido, sistematizado num conjunto de perversões. A sexualida­
de era modelada, estátua familiar sagrada, com o cisei da tera­
pêutica e o martelo da justiça.
A repressão aumenta, aperfeiçoa-se, numa história que
vai da medicina à política. Como o resto da sexualidade, a
homossexualidade, a partir de uma época relativamente recen­
te, torna-se cuidado da revolução. E a repressão toma novas
formas, nas promessas de paraísos sociais do gozo perfeito,
onde o homossexualismo se extirpa (se se considera que é um
vício da decadência) ou terá direitos à cidadania, como mino­
ria social, “integrada*’, “aceita”.
Nossa história esbarra numa enorme dificuldade: saber
do que estamos falando, além da descrição da repressão. O
que é o objeto dessa repressão? Que “homossexualidade” é
essa? Uma entidade própria da sexualidade, que atravessaria
as épocas, como qualidade inata de certos indivíduos? O que
mudaria seriam apenas as formas da repressão e daí as “ma­
nifestações” dessa entidade material?
Ressalta ¡mediatamente nesta perseguição histórica que a
repressão se dirige diferentemente a objetos diferentes.
A não ser que se suponha uma homossexualidade supra-
histórica, que não se “revelaria” em sua “verdade própria” por

46
causa das formas da respressão, não encontraríamos um “fio
explicativo” na nossa história acima. Hipótese facilmente des­
cartável.
Primeiro, porque considerar que a homossexualidade (ou
a sexualidade em geral) tenha uma “verdade” especial que a
consciência só revela no avanço da ciência é inventar upta
“verdade física” (corporal), acima da história, escondida nas
trevas da ignorância, esperando as luzes do saber.
Segundo, porque não é a maior ou menor repressão que
define o aparecimento e desenvolvimento da “minoria homos­
sexual”. Sociedades onde não há repressão ao homossexualis-
mo, como é o caso da Grécia clássica ou de certas sociedades
“primitivas”, deveriam ver o aparecimento de uma ou várias
organizações sociais homossexuais. E isto não acontece. Em­
bora não haja interdições neste sentido, não se diferencia um
comportamento específico e/ou exclusivamente homossexual,
mas o desejo e o ato homossexual aparecem “dissolvidos” e
integrados no conjunto da sexualidade. Há diferenças sexuais
nítidas e estruturas sociais próprias, separando homens e mu­
lheres, mas nenhuma evidência de regulamentação de “mino­
rias”. Para outras qualidades, como as diferenças de idade,
existem sempre organizações ou estruturas sociais que as regu­
lamentam e integram. Por que não os homossexuais, se fossem
uma diferença sexual? A tolerância às minorias faria dissolver
a diferença? Neste caso, evidencia-se que a homossexualidade
não é uma qualificação de certos indivíduos (como o é a di­
ferença de idade). Não sendo um comportamento sexual que
caracterize alguns indivíduos, é, em certas sociedades, uma va­
riante socialmente definida dos seres humanos.
Esta é uma primeira hipótese a ser guardada: a homosse­
xualidade não pode ser considerada como uma “diferença se­
xual” (uma qualidade sexual), mas é fundamentalmente uma
diferença social, uma variante do comportamento sexual, esta­
belecida como critério para definir uma categoria social (o
homossexual).

* * *

47
Mas, ainda assim, outras dificuldades permanecem na
nossa história da repressão. Como explicar que é sob o capi­
talismo, exatamente, que a “diferença sexual” se cristaliza, fa­
zendo emergir uma “minoria” onde a homossexualidade vai
erigir-se num estatuto?
Seria a repressão mais eficaz, mais violenta, noutras so­
ciedades? Os fatos dizem que não. Sob o capitalismo a repres­
são não só é mais estendida, como mais específica e instru­
mentalizada. E isto nos mostra uma curiosa contradição. A
violenta e implacável perseguição não apenas se mostra abso­
lutamente inútil, como resulta em objetivos opostos. Especia­
lista em genocídios, em violentações ecológicas monstruosas,
o capitalismo não consegue esmagar o desejo homossexual. E
ainda: não consegue impedir a constituição de uma categoria
social organizada. Pior, o homossexual deixa de ser uma das
formas do desejo, para ser um grupamento a ser preservado.
Essa “contradição” nos obriga a levantar outra hipótese.
A repressão não aparece e se desenvolve para oprimir uma
casta. A ação do poder consiste exatamente em definir uma
raça. Isto é, postula os direitos a serem reinvindicados pela mi­
noria, na medida em que inventa, determina, institucionaliza
um setor homo-gêneo. A criação do grupo ou gueto não de­
corre de diferenças preexistentes nos indivíduos, que o poder
regula e controla. No caso dos homossexuais é a própria cria­
ção da diferença que é a esfera de ação própria do poder.

* ♦ ♦

A terminologia técnica — homossexual, homossexualis-


mo, homossexualidade — constitui-se de ambigüidades. As pa­
lavras foram postas em curso pela psiquiatria nos meados do
século XIX, junto a outras (homofilia, inversão, hermafrodi­
tismo psíquico, etc.). Nunca se encontrou, porém, um termo
que não levantasse objeções. Muitas designações, para indicar
alguma coisa que permanecia obscura. Sempre sobram pala­
vras, quando estão ausentes as idéias, Marx já acentuou.
A terminologia caracteriza, principalmente, um ato sexual.
O ato não nos informa diretamente a estrutura de um “desejo

48
homossexual”. Entretanto, quando se diz “homossexualidade”
— seja: certa “composição” da sexualidade — definimos o de­
sejo a partir do ato ou relação sexual. As imprecisões são fla­
grantes:
a) O objeto do desejo não é sempre o objeto da reali­
zação do ato. Por exemplo, tanto masturbação, como zoofilia,
ou homossexualidade podem ser variantes ou substitutos de um
ato genital e “heterossexual”. No caso da masturbação obriga­
tória do adolescente, da zoofilia do tropeiro com a sua mula,
do homossexualismo nas prisões existe uma substituição do
objeto erótico ausente. Mas nem sempre é a substituição que
leva ao ato.
b) Ao definir a homossexualidade como relação sexual
entre indivíduos do “mesmo sexo”, estabelece-se, de fato, uma
definição extremamente precária do sexo (considerado igual à
zona erógena, genitalidade). É evidente que na relação genital
heterossexual pode-se encontrar a impulsão que leva o indiví­
duo a buscar seu HOMOSSEXO no parceiro (por exemplo, o
homem que busca na mulher um outro “homem" enquanto pa­
pel a ser desempenhado na relação).
c) Pode ser perigosamente mecânico definir o desejo a
partir do objeto, ou da forma de realização do ato. Isto pode
levar a fazer do desejo uma espécie de interpretação psíquica
da necessidade. E confundir a satisfação, da necessidade com a
satisfação do desejo. Assim como a água satisfaz a sede, o ato
homossexual satisfaria a homossexualidade. Como se pode en­
contrar as explicações fisiológicas da sede, encontra-se a razão
fisiológica (médica) da homossexualidade.

* * *

Aceitando a homossexualidade corno qualidade das “rela­


ções sexuais entre dois indivíduos do mesmo sexo”, podemos
generalizar de forma ampla, concluindo naturalmente que todas
as relações “entre indivíduos do mesmo sexo são homosse­
xuais”, em maior ou má.or grau. Como explicação, isto não
nos leva muito longe. A não ser concluir que todas as rela­

49
ções entre os indivíduos têm um nítido conteúdo sexual. O que
é apenas uma passável banalidade.
O desejo homossexual, o desejo que tem por objeto um
indivíduo de mesma conformação corporal, é uma presença
constante na sexualidade. Se caracterizarmos a sexualidade co­
mo um processo, a homossexualidade corresponde a momen­
tos desse processo, mas não é nem o específico, nem um modo
dele.
O desejo homossexual (tanto quanto o desejo heterosse­
xual) não caracteriza nem o conjunto do desejo, nem uma
“entidade” do desejo. Nem caracteriza uma estrutura do indi­
víduo, nenhuma qualidade imánente dessa pessoa.
Se falarmos agora da forma como é vivido sob a civili­
zação capitalista5 vemos um desejo homossexual ser transfor­
mado num modo da sexualidade.

* * ♦

Pode-se dizer que “ser homossexual” é uma opção. Tanto


quanto ser “heterossexual” ou “bissexual”.
Como compreender essa opção homossexual?
Uma opção é um ato de vontade: “ser homossexual” é
um ato de vontade. O que não significa que um homossexual
tenha “escolhas” entre desejar ou não. Neste ato de vontade
homossexual não há nada de “livre arbítrio”, de vontade nas­
cida duma consciência.
Primeiro, essa “vontade” é determinada por uma história
pessoal, um desenvolvimento particular do indivíduo. A ho­
mossexualidade resulta do jogo de forças que o próprio indi­
víduo não controla, que não dependem da sua consciência, nem
da sua vontade consciente — que entra nesta história como
uma das forças em jogo, mas não a força determinante. Da
mesma forma como, noutros, se apresenta a heterossexualidade.
Será sempre um ato de vontade que fará o indivíduo viver
de diversas maneiras o seu desejo. Sua consciência se desen­
volve segundo opções sucessivas que lhe serão apresentadas.

5 Esta expressão inclui os países capitalistas e os “socialismos


realmente existentes”.

50
Cada um soluciona de forma própria as questões da sua
sexualidade. O desejo homossexual não se apresenta como
coisa, objeto exterior ao indivíduo e à sua historia pessoal: ele
é criado e desenvolvido num jogo de conflitos que inventam,
que postulam e estimulam esse desejo. Esta é a esfera de ação
do poder.
Não é uma ação linear. Como movimento contraditório,
apresenta rupturas, brechas, instantes. Pode ser contraposta
pela ação duma consciencia (política). O indivíduo não é me­
ramente um joguete nas mãos do poder: o que lhe permite es­
capar de um jogo cegó (um destino) onde a historia se escre­
ve fora e acima do individuo.
O desejo homossexual apresenta, para cada um, um
enigma: na sua historia pessoal ele será resolvido segundo op­
ções mais ou menos conscientes. Estas opções envolvem uma
definição diante dos mecanismos do poder: são, de fato, opções
políticas.
Durante a vida inteira a sexualidade imporá opções polí­
ticas ao indivíduo. Opções que podem levá-lo a viver de forma
mais ou menos conflituosa os vários instantes da sexualidade.
Entre o desejo (campo das ações — repressivas, mas não
só — do poder) e a vontade (campo de opções — conscientes,
mas não só) há todo um mecanismo político que caracteriza o
que se chamará homossexualidade. UM PROBLEMA POLÍ­
TICO, portanto.
Nesta política (da perversão em geral) vive-se um labi­
rinto. Escapar da dialética própria do poder é uma questão
não só política, mas de política revolucionária. Porque entre
as inúmeras opções possíveis não se exclui, de forma nenhu­
ma, opções reacionárias, sob formas de rebeldías marginali-
zantes.
Ser homossexual não se limita aos campos do poder. Ins­
creve-se também no querer. Isto nos leva a uma abordagem
simples, porém globalizante: a homossexualidade é uma forma
de viver o desejo em geral.
t
* * *

51
A homossexualidade não se fecha numa definição, nem
mesmo pode ser reconhecida como objeto definível. É simples­
mente uma forma de viver a sexualidade.
Portanto, só há uma “definição” possível: homossexual é
quem se define como tal. Inevitavelmente só esta autodefinição
poderá englobar todas as questões que levanta a homossexuali­
dade: o fato de estar inscrita numa história pessoal, que impli­
ca a própria idealização do indivíduo de si mesmo, por um
lado, e as tensões sociais que estão presentes, por outro lado.
Só este critério permite situar as complexas relações políticas
envolvidas entre o desejo e a vontade homossexual. Só as$im
se especifica e se determina a opção.
Por ser um critério autocentrado, nem por isto é um cri­
tério subjetivo. Porque a homossexualidade, enquanto desejo
e vontade, é objetiva, isto é, real. É exatamente a autodefini­
ção que expressa esta realidade, permitindo determinar os con­
flitos da sexualidade, as adequações da opção no quadro des­
ses conflitos, etc., sem querer descrever um “modelo”, uma
“coisa-homossexualidade”, contra a qual se chocaria a vontade
(moral) individual.
Daí que não interessa nenhuma “explicação” e nem nunca
poderá haver uma “explicação” para a homossexualidade. Sim­
plesmente não é possível “explicá-la”. É preciso vivê-la.

Constatando que a homossexualidade “não é explicável”,


estamos afirmando que qualquer “teorizaçâo” sobre a sexuali­
dade é uma forma de vivê-la. Sempre será muito mais do que
uma ‘análise’: será uma postura.
O que é então o preconceito? Será fundamentalmente
uma forma conflituosa de viver a própria homossexualidade.
Esta forma conflituosa não apresenta apenas problemas
individuais. Ela corresponde, em sua essência, a uma posição
política profundamente reacionária: uma aceitação da sexuali­
dade burguesa que implica uma aceitação (ou supervaloriza-
ção) do caráter repressivo e autoritário característico. Quando
este preconceito toma a forma de um discurso “de esquerda”,

52
apresenta-se como uma veiculação do totalitarismo, usando a
terminologia da revolução para esvaziar todas as revoluções.

* * *

O mais importante é que a questão seja apresentada- de tal


forma que todos, todos nós, nos víssemos diante da nossa pró­
pria (homo) sexualidade, dos nossos preconceitos. Em primeiro
lugar, sexo não é discussão abstrata, mas uma discussão políti­
ca, pois implica uma certa visão de nós mesmos e do mundo.
Em segundo lugar, o contra-preconceito, como forma de viver
a própria homossexualidade, torna-se mais agressivo quanto
maior é o medo do próprio sexo. Em terceiro lugar, além do
preconceito e do contra-preconceito, há o preconceito de ter
preconceito: o que faz com que a maioria das pessoas, que ima­
ginam terem superado os preconceitos, acredite que saiba tudo
sobre a homossexualidade e tenda a “aceitar” o homossexual
(alheio).
Para mim, justificar, aceitar, explicar, recusar ou abomi­
nar a homossexualidade é o problema de quem justifica, acei­
ta, recusa, abomina, etc. São atitudes, no fundo, idênticas, pois
se toma uma posição em relação a alguma coisa — a homosse­
xualidade — exterior a si mesmo. Qualquer dessas posturas
diante da homossexualidade faz do homossexual um ente dife­
rente, uma pessoa à parte no grupo humano, faz dos homosse­
xuais uma “minoria”.

♦ ♦ ♦

Ora, a questão é certamente esta: a repressão ao homos-


scxualismo, sob o capitalismo, consiste em fazer dos homos­
sexuais uma minoria dentio da sociedade, um grupo fechado
dentro de um gueto. Explico melhor isto:
4- a homossexualidade, enquanto “pulsão homossexual”,
certa pulsão que dirige o desejo sexual para alguém suposta­
mente do mesmo sexo, existe em todos os seres humanos in-
distintamente, em todas as épocas históricas, em todos os mo­
mentos da vida sexual de uma pessoa;

53
+ cada sociedade trata diferentemente as varias pulsóes
sexuais, levando de urna forma ou de outra à constituição de
uma sexualidade considerada “normal” (padrão), reprimindo
ou “adaptando” as outras pulsões sexuais da forma mais con­
veniente àquele meio social;
4- a homossexualidade numa dada sociedade pode ou
não ser reprimida, isto é, combatida, proibida, punida. Ou
adaptada, “aceita”, integrada, etc. Várias sociedades não-capi-
talistas estigmatizaram violentamente a homossexualidade.
(Jean de Léry, escritor francês que visitou os tupinambás no
século XVI, diz que quando os índios brigavam “insultavam-
se de ‘tivira’, que quer dizer sodomita".') O que caracteriza a
moderna repressão não é a perseguição ou punição do ato ho­
mossexual; o que a caracteriza é a tendência de fazer do
homossexual uma pessoa completa, um “outro sexo”, interme­
diário entre o masculino e o feminino;
+ a minoria homossexual é uma invenção capitalista. In­
venção porque nunca houvera, em qualquer sociedade repres-
sora, um grupo social que se distinguisse por esta peculiarida­
de do comportamento. O homossexual — uma pessoa que se
define enquanto certo padrão social específico — nunca exis­
tiu. Noutras sociedades, existia sodomía, atos “contra-natura”,
atos sexuais variantes, atitudes diversas de pessoas que não
tinham nenhuma “especialização sexual”, que poderiam (ou
não) ser punidas, segundo as normas morais vigentes. A re­
pressão não se dirigia a um grupo, nem a alguns seres espe­
ciais, mas duma forma generalizada condenava um ato pos­
sível de ser realizado por todos, indistintamente;
+ a minoria é invenção própria do capitalismo, na re­
pressão que ele exerce sobre a sexualidade de todos. O capi­
talismo é mais sofisticado, é claro. Não reprime um ato. Força
o responsável pelo ato a se tornar um ator completo. Já não
é mais um mero criminoso, mas uma entidade completa, um
ser humano diferente de todos os outros, que tem uma fisio­
logía, uma psicologia e uma realidade humana diferente do
normal. Assim, ao querer que o homossexual seja esse “dife­
rente”, forja, através do complexo mecanismo social de mo-

54
delação sexual, o “homossexual” enquanto uma diferença so­
cial, uma verdadeira subcultura;
4- a “maioria normal” é aquela que consegue abafar o
seu desejo homossexual, que consegue, de um modo qualquer,
realizar suas pulsões homossexuais sublimando-as, recalcan­
do-as, ou fazendo délas o que chamamos “preconceito”: o ódio
contra o homossexual — que acredita que é alguma coisa fora
dc si mesmo, diferente de si mesmo. O ódio contra o homos­
sexual “que existe externamente” origina-se do ódio contra
certos aspectos da própria sexualidade;
-}- o capitalismo não inventa a pulsão homossexual, mas
torna o que é característica de todos em característica de um
grupo, através duma repressão que violenta todos nós, indis­
tintamente. Assim, a violência contra todos se localiza sob a
forma da repressão contra um grupo — minoritário — de
"anormais”.

♦ * *

A repressão sexual que todos sofremos obriga aqueles que


pretendem, por várias razões, realizar atos homossexuais, a se
tornarem “especiais”, a se tornarem “completamente” homos­
sexuais, uma minoria de diferentes.
A diferença homossexual não preexiste à opressão, mas
<5 que esta faz é exatamente criar, cristalizar essa diferença. A
repressão que atinge tutti quanti é incorporada em alguns que
são isolados, como “exemplo” para os outros.
A existência da “minoria homossexual” não é apenas a
forma da repressão, mas o próprio conteúdo da repressão. Não
é por serem oprimidos que os homossexuais se tornam uma
minoria. Eles se tornam homossexuais por serem inventados,
moldados, enquanto minoria.

♦ * ♦

É preciso entender que a ação do poder político é mais


profunda e mais unificada do que a simples repressão pela
recusa e negação duma “sexualidade padrão”. Antes da re­

55
pressão (negação), é preciso falar da ação de modelação do
poder, da forma como socialmente somos obrigados a cumprir
certos papéis, servindo nós mesmos de instrumentos do poder.
Não se pode dizer que isso seja uma questão politicamente
secundária. A liberdade — inclusive a liberdade sexual — não
é nunca uma questão “menor”. E nunca poderemos falar ver­
dadeiramente em liberdade enquanto não soubermos de todas
as pedras dos muros onde estamos aprisionados.

4. Onde uma apreciação literária faz aparecer casualmente


uma didática dos amestradores:

SEXÃO DA REVOLUÇÃO

O sol há de brilhar mais uma vez/


O amor há de voltar aos corações.
(Nelson Cavaquinho)


Continuo achando Trotski genial. (O que não tem muito
a ver com o assunto. Ou tem, e não deixo transparecer.) Sem­
pre achei o Leon um tipo magistral. Um escritor antes de tudo.
Foi um estilo (tanto quanto o de Marx e o da Rosa) que
me fez preferi-lo a outros teóricos marxistas. Quem é que
agüenta ler o Camarada Stalin? O Camarada Stalin repete,
porque é didático.
Para o Camarada Stalin a repetição é didática.
A didática é repetitiva porque repetindo muito uma ver­
dade, se ela não é, vira.
A repetição didática é importante porque cria verdades
proletárias.
A verdade proletária é repetitiva para ser didática.
A verdade proletária é didática por ser repetitiva.
A verdade proletáriaé didática por ser verdade.
A verdade proletária é didática por ser proletária.

56
A repetição é a verdade do Camarada Stalin, que se re­
petia para ver se aprendia que era Camarada, já que Stalin
ele era e contra isso já não podia fazer mais nada.
Enfim, sempre admirei a sublime elevação literária de
Trotski, que nem por isso lhe evitou o machado, parte da di­
dática stalinista que se repetiu tanto, e na cabeça de tantas
verdades, que até hoje nos confunde a escritura e o que dela
se seguiría.
Enquanto o marxismo arranja novos mestres, digo ames-
tradores, sossega-leões e desliga-senão-explode, estão caindo de
moda as velhas igrejas e irmandades. Marx — a não se con­
fundir com a família de Groucho, Chico e Harpo — sofreu
líbalos na sua integridade. Mas sei que ainda terão os que hão
de rir com ele. Não dele, como faz o “socialismo real”, que o
tornou uma piada: o obscuro irmão Marx, o outro: o Grande
Irmão (e isso muito antes do 1984 previsto por Orwell). Eu,
liein? Não estou reivindicando nenhum marxismo. Não tenho
autoridade, nem padrinho. Nem os quero.
Se falo do meu apreço por Marx, o Karl, e do humor, o
seu, é que ele foi parte grande da piada da minha vida e no
seu circo espero ainda encontrar um picadeiro. Sem bicho
amestrado.
Sem bicha amestrada também, como as que conheci durante
os anos em que trabalhei numa sauna noturna especializada
em pegação para entendidos, que não compreendiam muito.
Deixei o trabalho quando a barra pesou demais. Estava inca­
paz de observar e aprender, como fizera inicialmente.
Depois, a angústia notívaga, o tempo que não passava,
aquela gente procurando o que nunca vai encontrar. Nada é
mais aflitivo e contagiante do que a constante procura homos­
sexual — ou sexual, simplesmente —, já que a caça e o caça­
dor são meros resultados do espelho e este é invisível.
Havia uma coisa a mais no meu trabalho. No início foi
bem compensador. Aprendí coisas que precisava sacar. Corpo
e corpos. Trabalho manual, pra começo de conversa, remune­
rado com os massacres dos empregos da mão que obra. Dis­
tanciamento do trabalho intelectual, que fora o único que fi­
zera até então na minha vida. Em resumo: a experiência do

57
que poderiamos chamar mediocridade, uma forma de cons­
ciência do mundo que pode apavorar, mas que permite que a
consciência não se perca no seu encantamento de força autô­
noma.
Procurei e resisti, num emprego assim, por várias razões,
mas teve uma muito evidente: o medo que tinha de “ser ho­
mossexual” no meio da gente que conheci, como você conhe­
ce. Uma vez alguém me disse que Cláudio e eu éramos “bem
aceitos” porque não éramos exatamente um casal de homos­
sexuais.
— Vocês são um casal, tout court, foi o que disse.
Verdade. Só que meu medo, ou minha angústia, era que
as pessoas que me sabiam homossexual (revelação como um
texto sagrado, coisa a ser descoberta ou denunciada), passa­
vam a me pensar um “homossexual tout court". Pois então,
eu não sabia o que era homossexual, tanto quanto as pessoas
que aceitam ou recusam os assim (bem-mal) ditos. Pensei que
procurando no gueto, entre eles, elas, as bichas, eu pudesse
adquirir discernimento. Porque em primeiro lugar sempre soube
que minha diferença (pessoalidade), o meu modo de ser em
toda a. minha peculiaridade, não decorria disso, duma distin­
ção que parecia uma cicatriz ou um carimbo. Parecia-me — e
hoje sei melhor — que os homossexuais eram um grupo assim
como um estoque de latas de sardinhas. Parecem todas iguais,
afinal são embalagens e com os mesmos rótulos, formatos e
preços. Mas no ver de mais perto o que se aprende é que latas
iguais a latas, sardinhas iguais a sardinhas, em cada conserva
os peixinhos são outros. Não há a mesma sardinha em todas
as latas: nem a lata faz a sardinha, nem a sardinha faz a lata.
Há produtores atrás disso tudo. E na produção é que a dife­
rença se torna diferenciável.
Puxa, e eu perdí amigos. Que eu amava, sabe, que eu
respeitava, que eu queria, mas que começaram, obliquamente,
sem resumir, sem mesmo estampar, a distanciar-se e que, cla­
ramente ou não, quando eu aparecia, abriam uma questão que
me esmagava, uma interrogação não-formulada, mas que dei­
xavam transparecer no não-dito:
— Aceito ou não aceito a homossexualidade dele?

58
Alguns foram se afastando, lentamente. Outros, aprovei­
tando as ocorrências do existir e seus desencontros, não se
aproximaram mais. “A gente se vê um dia desses”, fórmula
prática.
Oh, não, ninguém me expulsou, ninguém nem mesmo dei­
xou de me tratar com cerimônia e até respeito. (Afinal, como
você me conhece, passo melhor por um enrustido, com “pro­
blemas homossexuais”, e não pareço ameaçar as instituições
com os desrespeitos formais de uma perversão que instituiu,
por sua parte, óbvias éticas do escândalo). Muitos me “aceita­
ram”, quiseram mesmo deixar claro que me aceitavam e me
repetiam o tempo todo: “vocês, os homossexuais. .como se
eu fosse um substantivo coletivo, uma cáfila. Ou um cardu­
me, já que falava em sardinhas. Prefiro, porém, os camelos, já
que o deserto é mais de acordo com o nome próprio da im-
propriedade de ser medido no grupo de outros, os alternantes.
Que não, nenhuma excomunhão, não apagaram a minha
vela no subterrâneo do vaticano da esquerda. O processo de
exclusão foi lento, imperceptível, gentil formação de um casu­
lo onde me imobilizaram na doçura de fios de seda que cha­
mavam “aceitação”.
De todos os meus velhos de guerra foram poucos os que
mio obedeceram tais regras. Claro, com as mulheres quase
sempre o caso foi diferente. Com novos amigos, a coisa se
passa diversamente. Estava falando dos daquela época, daque­
las guerras, daquelas memórias.
Pois fui procurar o trabalho que procurei em Paris, para
uma espécie de pesquisa de campo no descampado da putaña.
In cm Portugal, tinha começado uma carreira de questiona­
mento, mas sem exposição pública. Bicha, sim, assumida do­
mésticamente, numa espécie de semiclandestinidade. Por ali eu
rm jornalista, escrevia a sério, vivia entre intelectuais, discutia
política e todos nós comparávamos revoluções. Nesse meio,
mito, o homossexualismo é outra coisa. Fica pra lá das fron-
iciuis da política, e a gente é toda evoluída, ninguém vai fazer
tempestade em copo d’água por causa da viadagem (domésti­
ca ) de um ou outro enrustido, o assunto está classificado na
pasta de “evoluções necessárias dos costumes”. “Eles, os ho-

59
tnossexuais...” — e estamos com a consciência limpa de
mais uma mazela universal. Além do quê, eu nem bem era um
exilado: encontrara asilo na comovente agitação de bailarico de
família que seguiría Abril. Estava ainda numa fase de explo­
ração de Portugal e sua pequena grande gente, navegava no
exotismo dos destroços duma eternidade de 48 anos, estava
apenas me instalando, me ajeitando, buscando um espaço para
plantar raiz, porque então, naquela travessia, o Brasil e suas
clandestinidades era do lado dè lá, de antes, e eu queria, de
toda severidade, abrir uma brecha e virar português. E tanto
que — com Cláudio — buscámos acções, deitámos ilusões nas
chávenas do café morno, que começámos a esquecer, e vínha­
mos, com deleite, nos orgasmos (gozar diz-se “vir-se”, indi­
cação de que era preciso chegar a qualquer sítio).
Em Portugal, o que havia de diferente dos meus tempos
brasílicos é que, quando queria, eu ia paquerar no parque que
começa no final da Avenida da Liberdade. (Não. Em Portu­
gal “engata-se”, como na França a gente “draga”, de draguer,
que os brasileiros homossexuais adotaram. Dragar é uma boa.
E fala, com saber, de fundo e lodo.)
Na França, o pulo do gato. Radical. Desta vez quis saber
da homossexualidade não apenas como visitante. Muito menos
como assumido, que não via nada a assumir e a dúvida era
exatamente desvendar que quê havia a assumir. Assunção, co­
mo a da Virgem? Ótimo: a Virgem, segundo os analistas, é a
representação do Fálus, a imagem do pipiu que deixa de ser
pintinho repousando sua moleza no ninho das entrecoxas, para
levantar a crista vermelha. O falo é o Grande Ereto, e o que
o xixi promete, o pênis fá-lo. Mais não falo, que todos os tro­
cadilhos são armadilhas. Em Paris, meu projeto foi simples­
mente retraçar essa ascensão.
Foi, hoje vejo, um processo de isolamento. Sem querer,
vou te dizer. Não queria me afastar muito, mas meu jeito, meu
modo canhoto de temer o viver, me fez acabar assim, escre­
vendo por correio, já que não tinha muito mais com quem
dialogar.

60
/Escrever é uma vontade de se fazer amar — anoto na
margem do caderno da memória, para eventuais desenvolvi­
mentos posteriores./
Quer dizer, praticar amores.
Que amores? Como a literatura é uma forma de nomear
o inominável, acaba vindo a ser o amor que ousa dizer os no­
mes. Porque estou, desta cidade de Sodoma, experimentando
escrever um romance de amor, como todos. Sabe aquela su­
blime asneira do Wilde? Daquele amor que não ousa dizer seu
nome? Pois parece que o nome sodomia, em desuso, serve para
o «mor do qual pretendo ainda retraçar meu roteiro. Não ousa
nomear? Mas, com que então! Conheço seiscentos e trinta e
oito nomes para ele, entre os quais, alguns, tantos, entulham
os recantos judiciários, médicos, políticos e mais cantos e en­
cantos, a torto e a direito.
Do Direito, contra o qual o meu escudo fez o que pôde,
picciso: já que afinal a perversão só o é, se bem legislada. E
•»uns decorrências, se são anais, são também anais jurídicos.
(P preciso explorar até os limites da vulgaridade, tanto no
sexo, quanto na língua escrita. Trocadilho serve de estilingue.)
E o poeta Aragon foi quem disse:
“Je traine après moi trop d’echecs et de mécomptes
J’ai la méchanceté d’un homme qui se noie
Toute 1’amertume de la mer me remonte
II me faut me prouver toujours je ne sais quoi
Et tant pis que j’écrase et tant pis que je broie
II me faut prendre ma revanche sur ia honte.”6
Minha vergonha tem um nome e — como a cáfila e seu
deserto — a vergonha é também um substantivo coletivo. Si-
mmimamente o termo ditadura diz um pouco: mas é um si-
hmiar que retoma a significação integral. Silenciar — ato de

6 “Comigo carrego muitas decepções e derrotas


Possuo a malvadez de um homem que se afoga
Toda a amargura do mar sobe por mim
Preciso sempre me provar não sei o quê
E tanto faz que esmague e tanto faz que triture
Devo tirar minha desforra sobre a vergonha”

61
quem fez calar. Silenciar — desespero ou cumplicidade de
quem murchou. Todos os silencios: ninguém escapa desta, que
a vergonha, a gigantesca e nacional, foi grão a grão secando
a terra. Cada um de nós, os de então, diferentemente mas
cumplicemente, depositamos uní calar, nem que seja porque só
gritavamos a palavra liberdade com restrições, ou que faláva-
mos da fome como quem analisa estômagos. Tudo que não foi
dito e que permitiu o silêncio.

♦ ♦ ♦

Ao nos aproximarmos de Sodoma, repara-se que tem a


mesma forma cercada de outras isolações e que por todo canto
reina a fome. A praga dos famintos, dos sem pão, a mesma
dos que têm uma víscera. Sodoma fala também da fome, da
FOME. Pois não é num estômago um num sexo que qualquer
fome assedia um humano. Há corpos, mas também há sonhos.
E a miséria não são os miseráveis. A miséria é aceitar,
com comiseração, o miserável. A miséria é UM miserável.
Qualquer um.
Permita-me expor, linearmente, a questão da fome:
— A fome é o resultado de um sistema econômico-social
historicamente determinado. A resposta à ela é uma revolu­
ção: a transformação das relações sociais, a transformação da
forma como os seres humanos se organizam para satisfazerem
suas necessidades.
— A nutrição é uma necessidade humana: enquanto
houver humanidade haverá necessidade de comer. Mas o fa­
minto é decorrência de certas relações sociais. A fome é mais
que necessidade: é um fenômeno histórico e político.
— Supõe-se, abstratamente, que a origem da fome é o
estômago. Portanto, a solução da relação entre necessidade e
seu objeto é dar alimento ao corpo esfomeado. A solução da
fome é a caridade?
— A caridade faz do indivíduo um corpo abstrato, obje­
to orgânico chafurdando na necessidade de objetos “exte­
riores”. O estômago é um órgão individual, analisa a ca­
ridade, portanto a fome é um problema fundamentalmente in­

62
dividual. A epidemia da miséria é a fome associada de desnu­
tridos, conclui tal análise.
— A caridade defende os direitos do esfaimado: defende
o seu direito de possuir um aparelho digestivo e enchê-lo pe-
liodicamente. Nesta proteção aos famélicos, os “caridosos” de­
fendem apenas o direito do corpo a continuar faminto.
— Que fome é a fome? Serão as panelas vazias de mui­
tos que tornam as misérias o problema central duma maioria
massacrada?
— Não há feijão que encha a panela do corpo. Só há
uma saciedade possível à fome: e este pão se chama liberdade.
A caridade propõe: dai de comer a quem padece de fome. A
i evolução dispõe: ao faminto, a liberdade. Porque a fome é
tintes de tudo a opressão do esfaimado.
— A caridade é a fome da fome: alimenta-se da opres­
são do esfomeado. Vive da fome, que é preciso ser fome, para
que ela seja caridade. Por isto, a ajuda caritativa, a proteção
di is infelizes, a orientação dos desgraçados, é sutil, manhosa,
eloquente. Usa argumentos complexos. Diz-se paternal, mestre
c guia da satisfação da necessidade. Torna-se, aos poucos e
impcrceptivelmente, didática: ensina e conforma. Amestra o
necessitado que se domestica dentro da necessidade de ser ne­
cessidade pura. A didática dos amestradores usa os métodos
mnis cruéis: o outro lado da fome.
— Lições do corpo da didática dos amestradores: se há
um órgão da fome, que funda uma maioria inconsciente, há
outros órgãos no corpo que inventam minorias oprimidas. Seja
este órgão a pele e sua cor, seja o sexo e seu negrores.
■— É fácil confundir a necessidade da alimentação com
u complexa dialética da fome.
— Já acusaram muitos que falam dos problemas das
uiNim chamadas “minorias” de escamotearem a questão cen-
iiul que seria a dos explorados e oprimidos. O argumento é
luho c simplesmente: fascista. Não por proibir o que se diz,
iiiiijí por impor uma forma de dizer, baseado em postulados
que não aceitam críticas.
— A didática dos amestradores é exatamente este fascis­
mo primário que nos ensina a ser famintos ou minorias. Ê pre­

63
ciso começar por derrubar tais princípios, ancorados no corpo
mágico cheio de órgãos, progressos e ordens. É preciso impor
o corpo enquanto espaço de muitas histórias que se encontram
nessa praça do Prazer. Só é possível falar da necessidade,
qualquer uma, como sintaxe do discurso erótico que é o corpo.
— O caminho da didática dos amestradores vai da fome
ao corpo, inventando este como conseqüência daquela. Ou,
também, do corpo à fome, segundo variante. Só há uma alter­
nativa que evita este ensinamento dos totalitarismos: a que
denuncia o corpo façrjinto como um aprendizado do corpo da
fome, inventando fomes no corpo. Desaprender tal corpo e
tais fomes é uma escolha, exercício de vontade política, que
nega uma escola, imposição de opções limitadas. A vontade
não decorre do jogo das necessidades, muito menos de impo­
sições do desejo. A vontade, que lida com opções determina­
das, deve — no caminho da liberdade — saber distinguir as
determinações das opções, antes de ser escolha inconsciente.

* ♦ ♦

E aí já atingíramos a oitava década do vigésimo, desde


que a Virgem praticara pelos ermos da Galiléia e concebera
do Espírito Santo, posteriormente ingenuamente representado
por branca pombinha, numa época em que o amor aos ani­
mais ainda não se chamava zoofilia.7 Naqueles tempos, a psi­
quiatria não ameaçava ninguém. A tarefa ficava para os dou­
tores da Lei e os vendilhões do Templo, que transavam numa
boa com centuriões, dando para César o que era obrigatório
dar.
Nossos tempos são menos ricos em poesia nas fábulas e
milagres. Racionais, matamos divindades interventoras. A in­
tervenção virou vigilância e classificações. Perversões, aqui es­
tamos nós: zoófilos, masturbadores, voyeurs, fetichistas, sado-
masoquistas, narcisistas, uranistas, copófilos, coprofágicos, ge-
rontófilos. . . Todos os objetos supostos e intermediários do

7 Não há nenhuma intenção blasfema na frase acima. Pelo con­


trário. É preciso ler com inocência, caros censores.

64
desejo fazem do amor uma transgressão. Não se ame crianças,
velhos, bichos, coisa, rosto ou resto. O amor organizou-se,
organicista e genital. Só a exclusiva adoração à parcela fisio­
lógica da genitalia merece a confirmação tranquila e tranqui­
lizante.
Mas a regra do jogo não é tão simples, embora sirva como
guia taxonómico dividindo o reino humano em minerais, ve­
getais e animais: minerais, as montanhas do -natural, parindo
mios esgotados; vegetais, a natureza verde e imatura de crian­
ças, mulheres e velhos (salvem-se primeiro estes, os incompe­
tentes); animais, todos os que, contra-natura, pervertem a mi-
ucralidade espontânea da natureza (inventada) do ser procria-
tivo e genital. Às regras do jogo são mais trabalhosas e fazem
dn perversão, enquanto Lei e Ordem, o discurso negativo da
normalidade; forma de ser, não sendo; garantia, por contra­
posição, do bom senso comum (“o bom senso é a coiSa mais
bem repartida do mundo”, insinuava Descartes).
Por que diabos, pode-se perguntar pertinentemente, come­
cei a falar dos corredores mais transversos dos subúrbios da
sexualidade? Minha experiência “pessoal e política” (descul­
pem o pleonasmo) é um indício, mas ainda não rima, nem
«oluciona. Minha preocupação virava-se para a luta pela de­
mocracia. Era preciso entendê-la como crítica e autocrítica,
gemí e irrestrito refazer de visões políticas.
Os temas abandonados ou tratados “secundariamente”,
luis como a sexualidade, o feminismo, as “relações pessoais”,
lis drogas, os marginais, o racismo, a ecologia e tudo isso,
que foram preocupações mundiais desde que os movimentos
'evolucionarlos começaram a tomar amplitude, e chegaram às
explosões de 68, estão, no meu entender, no centro da crise
que batizamos de “perplexidade”. Aqueles sujeitos de discus­
ión ultrapassam de longe vagas preocupações teóricas, morais,
especulativas, pois estão no coração mesmo da Política, isto é,
ilu praxis revolucionaria, pois são expressões concretas das for­
mas do exercício do poder.
l-ui chamado a dar minha opinião no debate sobre a ho­
mossexualidade por ser membro da estirpe. E meti minha colher
torta na sopa, por recusar ser especie de uma raça, ruim ou

65
boa. Por princípio recusava-me a falar como “homossexual”,
pois seria fazer uma exposição de um aprendizado que fazia
questão de desaprender. Quero falar como político, ensina­
mento que procuro, para conservar a lucidez. Em resumo,
falar de sexo e de mais a mais8 temas vários, para mim é dis­
cutir a prática da Democracia.
Naturalmente intitulei o capítulo anterior de “Notas mar­
ginais” porque trata fundamentalmente de assuntos margina­
lizados, que eu não mais quero marginalizáveis. Era uma for­
ma de meter todos debaixo da Ponte. Uma ponte liga margens,
enquanto corre um rio. Os marginais só podem se meter numa
delas quando estão embaixo. Minha opção me mete na mar­
gem esquerda, mas aprendí que a margem direita é muito mais
freqüentada, por mais ampla e confortável.
“Falar como um homossexual” ou “deixar a homossexua­
lidade falar de si mesma” é, a priori, justo, mas esconde ara­
pucas perigosas. É evidente que, num longo processo de insti­
tucionalização da perversão, o poder impôs um discurso per-
feitamente estruturado, homossexual, que possui algumas di­
retrizes inabaláveis. A “defesa” da homossexualidade, com sua
pungente desesperação, é inaugurada na mesma época em que
a ciência esquematiza as perversões. Inicialmente culto, os ele­
mentos do discurso tornar-se-ão aos poucos vulgarizados e po­
pulares. Durante anos ouvi, no gueto, as mesmas exposições,
apresentadas sem elegância, nem sofisticação: religião popula-
resca de dogmas fúteis. As relações entre “compreensão cien­
tífica”, “aceitação” e “defesa” são muito semelhantes às teo­
rias racistas, com suas inversões compreensivas, para só lem­
brar o caso do negro, sem falar ainda nas mulheres. Estudar,
compreender, educar, ajudar e proteger e curar e salvar: eis
o caminho de toda teoria racista ou de todo discurso da
opressão. A “minoria” ou o “desviante” são, antes de tudo,
menos do que seres humanos. Sílvio Romero expressa com
rara felicidade: “o negro não é só uma máquina econômica;

8 De mais a mais; de mais, amais; demais há mais; demais


amais: de-mais a-mais.

66
ele c antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto
da ciência”.
Objeto e objetivo, as perversões também serão. Mas na
sua ignorância (aprendida) tecerão uma teoria, uma resposta.
I' por aí só encontrarão a justificativa do injustificável. O ca­
minho passa por uma desativação de toda opressão, uma prá­
tica que condena o papel de objeto, para se tornar ação de um
sujeito histórico inovador.

* * *

Vocês já conhecem aquela cantilena: “aqui não temos


espaço para desenvolver melhor. . .” etc. Ê isto aí para o nú­
mero de páginas que tenho. Só espero ter sido o suficiente­
mente inexplicado, para que nenhuma fórmula venha substi­
tuir as bulas que medicalizam nossa sexualidade.
Só para terminar, nesta sexão, uma palavra sobre a Es­
querda, esta gente à qual pertenço. Para a esquerda, a questão
du homossexualidade não deve ser a de um grupo que possa
ser contado como força política organizada (e isolável) na
luta pelo socialismo (libertário, democrático e ecológico —
como define bem o Liszt Vieira). O problema, no seu fundo
mesmo, é compreender a ação do poder, para melhor comba­
tê-lo. A homossexualidade — enquanto objeto da repressão
é uma questão inerente à discussão do sujeito revolucioná-
iío, que não é (já se provou) aquela classe operária abstrata,
assexuada, bem-comportada, higiênica e sanitária.
Ao falar da sexualidade, enquanto homossexual, não se
faz uma tentativa de introduzir um discurso homossexual na
esquerda, mas UMA CRÍTICA AO DISCURSO HOMOSSE­
XUAL QUE A ESQUERDA TEM.
E ela tem um. Muito afiado. Seja o silêncio, seja a com­
preensão do tipo “tirar o corpo fora”.
Numa revolução não se tira o corpo fora. A revolução é
Pura Tesão. O resto é silêncio e uma vida que se leva morren­
do até uma morte-susto que não se vive.

67
A chamada democracia liberal tem a perniciosa mania de
parar na porta da fábrica. Nenhuma democracia pode parar
aí, e nem na beirada da cama proibida.
Deixemos que os anjos do sexo ganhem as ruas da Terra,
que queremos como toda, como nua.

68
Leila Miccolis

PRAZER, GENERO DE
PRIMEIRA NECESSIDADE
AOS QUE LUTAM —

“quem sabe faz a hora


não espera acontecer”

Geraldo Vandré
ERAM AS LÉSBICAS MARCIANAS?
“Não se persegue um grupo,
modela-se uma raça”

(Herbert Daniel)

Uma vez me perguntaram, numa entrevista: “o que é


ser lésbica?”, e eu respondí, sem pestanejar: “deve ser um ser
estranho, tipo marciano. Eu nunca vi uma”. Com isso, que­
ria questionar a divisão da mulher em lésbica e não-iésbica.
Queria dizer que não existe uma raça à parte, que as pessoas
são pessoas, e homossexuais ou heterossexuais são os atos que
praticam, não elas em si. Um “ser lésbico” ou um “ser hete­
rossexual” deve ser coisa de um outro mundo, e por mais que
se pareça conosco e fale a mesma língua, será um alienígena.
Para a concepção clássica, greco-romana, o que valia era
o eros (em priscas eras, era o eros...), ou seja, o impulso
sexual do sujeito, sem se importar com o objeto para o qual
este impulso se dirigia (homens, mulheres, crianças, animais).
Reduzir Safo a uma “lesbiana” é, além de má-fé, um anacro­
nismo, porque não havia esta divisão na época. Safo nasceu
no começo do século 6 a.C,, teve uma educação intelectual
primorosa, aos dezesseis anos já participava de uma conspira­
ção contra o tirano Pitacos, o que lhe valeu o exílio, casou-se,
teve uma filha, enviuvou, com vinte e seis anos fundou uma
escola para jovens mulheres, foi considerada a “Décima Musa”
por Platão, morreu aos cinquenta e cinco anos, e atualmente
é conhecida não por sua intensa atuação sócio-política, mas
upenas como “iésbica”. . .
Maria Carneiro da Cunha escreveu sobre ela: “sua casa
de educação era baseada nos mesmos princípios de todas as
associações culturais da Antiguidade grega, como, por exem-

73
pio, a academia de Platão. Algumas pequenas se dedicaram ao
longo do tempo a questionar sobre a natureza do amor, mas é
indiscutível que ele estava ligado a um culto de beleza física
que sempre teve, para os gregos, um valor quase religioso.
(...) Esta total liberdade de Safo, que nunca limitou o objeto
de seus amores, paradoxahnente a tornaria hoje difícil de ser
enquadrada em alguns movimentos lésbicos radicais atuais (os
de escolha mão única). Na verdade, ninguém encarnou ou can­
tou melhor as potencialidades multiformes do Eros, irredutí­
veis a qualquer classificação ou enquadramento”.
Este exemplo é bem característico da filosofia da época.
Só no Cristianismo é que o conceito se inverteu, passando a
ter o objeto do desejo mais importância do que a pessoa que
o ama. Onde o grego via só erotismo (o impulso), o cristão
avaliava o valor moral do ser amado. Para a Igreja, esta santa
falocrata, o esperma é o bem supremo, e criminoso é quem o
desperdiça (por isso até a masturbação é condenável). Nos
Contos de Canterbury, filme de Pasolini, na cena em que o
homem pratica sodomía com um rapaz, nota-se que ele, o
“ativo”, é o queimado, enquanto seu parceiro nada sofre. É ele
o único culpado por ter, inutilmente, esbanjado um líquido tão
precioso quanto o petróleo para o mundo moderno. . .
Enquanto a prática dos atos homossexuais masculinos foi
condenada em quase todo o Ocidente cristão, o lesbianismo
quase não era mencionado na lei, simplesmente por ser caso
de menor gravidade, não estando em jogo a seiva da vida. . .
Sumariamente ignoraram-no... Assim, no século passado, na
época da reforma do Código Civil na Inglaterra, ao permane­
cer a pederastía como crime, perguntaram à puritaníssima rai­
nha Vitória sobre o homossexualismo feminino, e ela se limi­
tou a responder: “isso não existe”. Para o vitorianismo, a mu­
lher era tão assexuada, que^seria impossível pensar que ela pu­
desse querer praticar um ato sexual com outra mulher, pois
fazê-lo apenas com um homem já era obrigação por demais
penosa.
A palavra homossexualidade foi usada pela primeira vez
em 1869, por Benkert, médico húngaro, numa obra em defe­
sa dos direitos homossexuais; em 1862, o alemão K. Ulrichs

74
escrevia um livro em prol do “uranismo” como o terceiro sexo.
Finalmente, em 1897, outro alemão, M. Hirschfeld criou a pri­
meira organização científica a apoiar os direitos dos homos­
sexuais. Note-se que, na Alemanha, a pederastía enquanto
crime era punida com grande severidade; se passasse à cate­
goria de doença, possibilitaria a compreensão. Naquela época,
portanto, tinha um significado histórico importante a inclusão
do homossexualismo na categoria de distúrbios, era um modo
de defender a vida de seus adeptos. Esta noção porém, que no
século XIX se constituiu num avanço para as práticas homos­
sexuais, hoje em dia não tem outra função senão a repressora.
O Código Civil Napoleónico (1804) foi o primeiro, no
Ocidente, a descriminalizar os homossexuais. Por influência da
França, o primeiro Código Civil Brasileiro, após a Indepen­
dência, também segue esta orientação, ficando, portanto, um
século na frente de muitos países, inclusive de alguns estados
norte-americanos, onde a sodomía é um ilícito, condenável à
morte ainda hoje em dia no Irã.
A esta altura vocês pensarão: mas se ela não acredita em
homossexualismo, como vai explicar a necessidade de um mo­
vimento homossexual? Se este não existe, como haver então
um movimento organizado para a liberação dele? Simples:
embora negando esta divisão culturalmente inventada — ho-
messexuais/heterossexuais — justifica-se o movimento porque,
se u sociedade crê nesta divisão e discrimina os primeiros, eles
têm direito a se organizarem e lutarem contra os preconceitos
¡ilé mesmo provindos desta divisão.
Mais um detalhe: na época em que o movimento apare­
ceu, não havia outro campo para questionamentos sexuais. Se
<* lema está na “moda” atualmente, não estava naquela épo­
ca . Desde 1964, quando no Brasil se instalou o golpe militar
iam o seu enorme aparelho repressivo, as pessoas, impedidas
de falarem diretamente sobre política, contornavam esta difi­
culdade, discutindo-a através de outras formas, e nada mais
justo que elas dissessem respeito ao corpo, a vítima de tortil­
las, espancamentos, maus-tratos e violências.
Na década de 70, os movimentos feministas tendiam a ver
o sexo mais como uma característica biológica, em cima da

75
qual se davam as reproduções da mão-de-obra e do poder
masculino. A grande inovação do movimento homossexual foi
questionar esse biologismo reprodutor, mostrando aspectos da
sexualidade diretamente ligados ao prazer. Até 79 só se podia
debater sexualidade com este enfoque, repito, através do MH
(movimento homossexual). Este era o único espaço aberto, a
única brecha transformada em tribuna livre para se denunciar
a manipulação político-econômica do corpo. E como a luta
partidária, naquele tempo, parecia esvaziada por anos de re­
pressão política, por palavras de ordens abstratas e porque as­
sistimos ao desmoronamento de nossos projetos democráticos,
o MH surgiu como uma nova opção política, na época real­
mente inovadora.
Uma pessoa condicionada a ser reprimida em seu prazer,
desde a infância, será muito mais facilmente reprimida duran­
te toda a sua vida. Isso com as mulheres ainda é mais visível,
porque elas foram educadas para renunciar ao seu prazer, em
prol dos filhos, do marido, dos outros. E educação, do latim
“e-ducare”, significa “dirigir para”. De “duca” vem duque: o
que comanda. Mussolini era chamado de “il ducce”. Ou seja,
a raiz da palavra educação tem sempre uma conotação autori­
tária. Inevitável. Mas, dependendo da estrutura da sociedade,
esta autoridade será exercida de modo mais ou menos castrador.
Para uma educação machista e patriarcal é necessário incutir
nas crianças papéis diferenciados, segundo os sexos delas.
Margaret Mead, em seu livro Sexo e Temperamento (Ed.
Perspectiva, São Paulo, 1979), ilustra muito bem o assunto,
ao notar que como certos traços humanos foram socialmente
designados para um único sexo, quando eles se encontram no
sexo oposto, são tidos como “antinaturais” e significam de-
sajustamento. “Às vezes, uma simples identificação com base
no interesse ou na habilidade se traduzirá em termos de sexo
e a mãe lamentará: ‘Maria está sempre trabalhando com os
instrumentos de desenho de Jorge. Ela não tem interesses nor­
mais de menina. Jorge diz que é uma pena que ela não tenha
nascido menino’. A partir deste comentário, será muito fácil
Maria chegar à mesma conclusão. A criança censurada em sua
escolha e acusada de ter as emoções do sexo oposto poderá

76
com o tempo adotar muito do comportamento socialmente
limitado àquele sexo”.
Nas sociedades destituídas de uma rígida dicotomia se­
xual, as crianças são poupadas deste tipo de confusão muito
habitual na sociedade ocidental. Naquelas, ao apresentar tra­
ços de comportamentos indesejados, diz-se: “não aja desta
íorma, as pessoas não fazem isso”; nós já dizemos: “não se
comporte como uma menina”, ou “isso é coisa de menino”.
Assim, incute-se uma eterna dúvida sobre o real sexo da crian­
ça, e isto fica muito patente nos comportamentos dos chama­
dos machões, onde é constante a necessidade de afirmação,
para si próprios e para os outros, de que são realmente ho­
mens, frisando: “com H maiúsculo”. . .
Wilhelm Reich também comentava que a energia sexual
leprimida poderia ser canalizada para fins que o poder consti­
tuído considerasse úteis: a reprodução da mão-de-obra do tra­
balho, e, às vezes, em determinadas épocas, até de serventia
para a guerra. Já se sabia, portanto, há longos anos, que con­
ceitos como traição, monogamia, virgindade, taras, homosse-
xualismo são culturais, e portanto apreendidos, manipulados,
dirigidos (através da educação, inclusive); mas foi no movi­
mento homossexual que se vivenciou a discussão desses concei­
tos através de uma prática de vida. ’
Também basicamente cultural, a luta do MH não era
(nem é) para só abolir leis repressivas, nem para integrar
<>s “coitados” na sociedade ou criar leis antidiscriminatórias;
seu objetivo principal é a transformação da mentalidade da
sociedade como um todo, para que haja mais prazer em tudo
o que se faz, para que se respeite as diferenças de comporta­
mento, sem que por isso a pessoa seja discriminada como
doente, anormal, tarada, pecadora. A luta não é — como er-
icmeamente se supõe — em prol dos “direitos homossexuais”
mas da liberdade humana, porque não adianta apenas a mu­
dança de um regime político — como em Cuba — onde os
homossexuais continuam perseguidos e oprimidos, e as mulhe-
ics tratadas como “companheiras do homem” (palavras de um
discurso de Fidel). Este aparente reconhecimento do seu va­

77
lor só serve para secundarizá-la e oprimi-la, transformando-a
cm satélite do astro de primeira grandeza.
Esta demagogia ideológica aparece em todos os sistemas
políticos, seja qual for a época histórica. Se vocês querem uma
prova, tentem adivinhar de quem é este trecho “primoroso”:
“A mulher é por natureza e destino companheira do homem.
Mas ambos são, por isso, não apenas companheiros da vida,
mas também camaradas de trabalho. (...) O trabalho honra
a mulher tanto quanto o homem. Mas a criança enobrece a
mãe”. Acertou quem disse Adolf Hitler, no manifesto para a
eleição presidencial de 1932. Este era o seu “Programa” e con­
tinua sendo o da maioria dos dirigentes políticos.
Tradicionalmente sempre foram as forças da direita (re­
presentadas pela Igreja, aristocracia, burguesia, poder consti­
tuído, etc.) que mais se posicionaram contra a liberdade sexual;
mas, a partir da Revolução Francesa, e mais recentemente em
meados do século XIX, com as revoltas proletárias européias
e a constituição da esquerda, esta, mesmo criticando a direita
em vários aspectos, herdou dela seu rígido moralismo sexual.
Engels condenava as “repugnantes práticas da pederastía” en­
tre os gregos e os “feios vícios antinaturais dos germanos”
(veja-se A Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado, Ed. Vitória). Esta esquerda ortodoxa considerava
como prioritária a luta político-social, e as reivindicações es­
pecíficas como “menores” e até desmobilizantes em relação à
luta principal. No Brasil, só no final dos anos 70 é que seg­
mentos significativos da esquerda passaram a compreender que
sexo não era apenas algo privado — feito entre duas pes­
soas e quatro paredes — mas também um instrumento de ma­
nipulação do sistema.
Aposto como muitos (como muitos? além do cacófano,
um duplo sentido?) vão dizer: “esse palavrório todo é só para
defender o bissexualismo. No fundo, ela o justifica porque não
assume o que é, e não o faz por medo”. Se não creio em
homo ou hetero, não acredito em bi, mais uma classificação
inútil. Quanto ao argumento de um pseudo não-posicionamen-
to por “medo” — tantas vezes sugerido pelos mais ingênuos
— me parece que é sempre usado mais como provocação

78
agressiva do que como uma expressão da realidade. “Assumir”
(esta expressão tomou quase uma conotação heróica) rótulos,
só para provar coragem, me faz lembrar os métodos primiti­
vos de iniciação sexual indígena, onde meninos e meninas
passavam por verdadeiras torturas para mostrarem o seu
valor. . .
Para mim, todas essas palavras — puta, lésbica, bicha,
sapatão, fancha, pitomba, viado, corno, racha, bofe, foda, ca­
baço, caralho, saco, porra — só podem ser minadas por um
comportamento libertário esvaziando seu sentido pejorativo e
até ofensivo. Enquanto elas forem apenas usadas maquinal­
mente, sem uma ação coerente que as desmitifique, cada vez
mais estarão reproduzindo estereótipos, e, daqui a pouco, as­
sim como se fala numa “linguagem feminina”, vai começar a
se induzir a uma linguagem “homossexual” — embora o gueto
já fabrique vocábulos em profusão — e aí o separatismo esta­
rá consolidado. Resgatar palavras apenas pela repetição delas
me parece ingenuidade ou utopia. Num país capitalista e con-
sumista como o nosso, as únicas coisas que se resgatam são
as notas promissórias. . . assim mesmo quando se tem dinheiro.

DIÁRIO DE BARDO
(Poemas, Notas, Recados, Trechos, Monólogos e Diálogos)

“Se falo em primeira pessoa é


para escapar da política da abstrata
pessoa ausente do discurso”

(Herbert Daniel)

Todos temos más-turbações e maus antecedentes. Tam­


bém eu. Dos últimos, fiz um livro com este título. Das
más-turbações, tornei-as boas, aos onze anos, mais ou menos,
quando eu queria ser freira e me autoflagelava (pelo menos eu
achava que era um flagelo) docemente, apertando meu sexo.
Num livro de Guy de Larigaudie soube o nome deste ato, pe­

79
cado, coisa feia que podia me levar à loucura. E eu, que só
fazia isso para melhor servir a Deus, fiquei muito confusa.
Ainda bem que Kinsey, com seu relatório, logo me resolveu
o conflito. Foi a primeira vez em que optei pelo prazer, em
detrimento da culpa.
♦ ♦ *

Nasci no Rio, de sete meses, um quilo e pouco, cabia


numa caixa pequenina de sapato, e o médico disse pra minha
màe: “isso não se cria”. Contra todos os prognósticos e vati­
cinios, virei gente. Mãe queria um menino — sofre menos, ela
justificava, pai também (embora ele negue), pois explicava
aos amigos: “é menina, mas muito inteligente”. Meu nome,
raro em 1947, veio de uma ópera chamada O Pescador de Pé­
rolas, e uma vez me disseram que, em árabe, significava “rai­
nha da noite”.
Tenho l,30m de altura. Se esse tamanho causa vários
problemas, também tem uma semivantagem (nem sempre é
boa como se verá): quem me olha uma única vez não me es­
quece jamais. Sou, portanto, o tipo típico da mulher inesque­
cível. Filha única, nada de mimos. Minha família, por parte
de mãe, é Barata Ribeiro, daí muitas vezes eu me assinar Leila
Barata. Era uma família de políticos revolucionários, grandes
nomes, conviví com minha mãe falando da galeria de heróis
baianos. Suas mulheres não entraram na História, foram todas
anônimas, mas agüentaram sempre barras violentíssimas, en­
quanto os homens tentavam transformar o mundo lá de fora.
Sei que delas herdei a resistência. Eram mulheres fortes, sem
nem saberem.

* • *

Entrei para a Faculdade de Direito (ex-Nacional, atual


CFRJ) no começo de 64, portanto num período em que a lei
era a do mais forte — a Ditadura — e a Justiça andava mes­
mo de olhos fechados — não por ser imparcial, mas cega. Em
abril houve o golpe, peguei a intensa mobilização do CACO
(quando havia dois partidos: o da ALA e o da REFORMA)

80
e a sua extinção (em 66, pela Lei Suplicy, embora resistisse
exatamente até 69, quando saí; em 78 voltou a funcionar, com
eleições livres). No terceiro ano de curso minhas ilusões des­
moronaram, esperanças também, passei a não ver mais senti­
do naquela teoria, o que eu estudava ali não servia para o mo­
mento político que víamos, vivíamos e convivíamos.
Já sabíamos, de antemão, que a Constituição (de 46) e o
Código de Processo Civil (de 39) — os estudados — seriam
alterados; o Código Civil servia apenas para proteger a família
e a propriedade; o Administrativo soava burocrático, organi­
zativo dos órgãos do poder; o Comercial, de 1850, era do
tempo em que a mulher precisaria do consentimento do mari­
do até para assinar cheques, se estes existissem na época...;
o Código Penal se tornava uma piada de mau-gosto, frente aos
bárbaros e impunes crimes praticados contra o indivíduo (isso
sem falar nas figuras jurídicas do habeas corpus e do manda­
do de segurança, letras mortas naquele momento), e o Inter­
nacional, totalmente impotente e incapaz de solucionar os
conflitos explodidos entre os países. Não poderia exercer a
Medicina Legal, que eu gostava, ela era apenas um comple­
mento do Direito Criminal, ramo que não me atraía. Sobrava
o Direito do Trabalho, o único que ainda tinha um mínimo
dc dignidade e eficácia. Como resolví acabar o curso de qual­
quer maneira, me agarrei nele, como tábua de salvação. Mas
só tomei consciência da escolha malfeita por uma frase de
Heleno Fragoso, advogado que até hoje admiro pela coragem,
mas que na época me parecia insuportável como professor. Ele
dizia que quando alguém gostava muito de sua profissão, lia
assuntos relacionados a ela, nas horas vagas. Eu lia muito. ..
vivia com livros de psicologia e de literatura na mão. .. Minha
área era outra.
Nunca acreditei em amor eterno — sumiu logo, na ter­
ceira vez, o primeiro homem por quem me apaixonei. Ro­
mantizar também é uma forma de mistificar. E não confundir
afetividade com romantismo, aquela posição alienante, mano-
brismo que leva à idealização de um amor abstrato, fantasioso,
"perfeito”, irreal, inatingível. Talvez por isso, quando no final
dc 76 larguei a advocacia para sobreviver das minhas escritas

81
(eu era advogada trabalhista de um sindicato de trabalhado­
res. . não me adaptei às novas atividades: escrever fotono-
velas românticas. É que, nelas, a fórmula moralista do bem
contra o mal sempre me soou tão antipática quanto perniciosa
(a pobre mocinha no fim levava sempre a melhor, mesmo
quando derrotada, pois se agarrava em consolos — no caso,
entender só como conselhos — que a sustentavam e a faziam
superar os tolos momentos de crise).
Affonso Romano de Sant’Anna escreveu uma vez um ex­
celente artigo, cujo título ainda me lembro: “A História de
um povo também é a história de seus bandidos”, mostrando
que nem sempre bandido é bandido e mocinho é mocinho, essa
divisão dependia muito das testemunhas oculares e de quem
fosse o escrivão de plantão na delegacia da História. Até Cris­
to fora julgado como marginal. . . Como os editores não iriam
aplaudir, sequer admitir esta linha dialética nas histórias de
amor, verdadeiras tramas sado-masoquistas (incrível como in­
cutem o sado-masoquismo na cabeça da gente da forma mais
imperceptível possível), preferi me mudar, só de bagagens,
sem armas, para as chamadas “revistas de sacanagem”, aque­
las que, vira e mexe, são apreendidas pelo Curador e contra
as quais as Senhoras de Santana veemente protestam indig­
nadas.
Nelas há moralismo, óbvio, mas sempre de forma mais
flagrante: um super-homem capaz de gozar mil vezes por
noite, e uma mulher-maravilha, também perfeita. Esta fórmu­
la me parece ridícula até para a criança mais retardada. Nes­
tas “imoralidades” não há maniqueísmos nem mensagens su­
bliminares de que “querer é poder”. . . Ah, se fosse. Estas
mentiras piedosas fazem mais mal do que toda a pornografia
(?) do mundo.
Bob Fosse, naquele belíssimo filme Lenny, já punha na
boca (será que essa expressão é pornográfica?) do seu per­
sonagem principal o fato dele preferir que sua filha lesse uma
revistinha de sacanagem do que a Bíblia, um livro cheio de
matança. O máximo que estas publicações fazem é propiciar
um gozo solitário (ou solidário?). Nunca tentam dizer que as

82

L
pessoas neguem seus desejos ou renunciem a eles, em nome
de comportamentos comportados.
Falei em ato solitário e me veio uma frase de efeito, da­
quelas que a gente diz só pra causar impacto, mas que logo
se questiona, rapidinho: mulher só faz suruba em siririca. . .
Não é bem isso: que las hay las hay, mas não são comuns,
devido ao condicionamento que tiveram para PERTENCER
a uma única pessoa (de preferência um homem, lógico). Uma
vez escreví um poeminha assim: “Eu só posso ser de um ho­
mem / ou então de uma mulher. / Mais que isso a vó se
queixa, / a mãe não deixa, / o pai não quer. . A mudança
de parceira (o) é vista mais como imaturidade, “medo de se
comprometer”, do que como opção.
O grupo feminista Costela de Adão, de Porto Alegre,
lançou, em 1980, livrinhos mimeografados chamados “Escri­
tos sobre feminismo”. Este trecho está no segundo número, e
fala de relação monogâmica: “Somos, pois, educados para
aceitar (e procurar) um relacionamento afetivo exclusivista,
como se o casal fosse uma entidade afetivamente completa,
por isso podendo separar-se do resto do mundo. Acredita-se
tão seriamente numa complementaridade total entre duas pes­
soas, que o mito da ‘alma gêmea’ passa a ser uma coisa na
qual todo mundo (consciente ou inconscientemente) acredita
c sai a procurar a sua. Assim, a solução para as crises dos ca-
suis modernos, casados ou não, vai ser sempre a separação
c a busca da formação de um novo par monogâmico. Ou seja,
já que nos dias que correm o par monogâmico eterno será
difícil de ser suportado, a forma encontrada pelo sistema foi
conduzir os indivíduos mais rebeldes, não a procurar formas
alternativas de relacionamento, mas a passar a vida a casar-se
c descasar-se (vide o divórcio, para os que gostam das for­
malidades jurídicas, desde que, no espaço de tempo em que
estiverem juntos, seja mantida a exclusividade). (...) O ca­
samento monogâmico, onde se configura a divisão entre a vida
do casal e a vida ‘lá fora’, é o reflexo da fragmentação do
homem: trabalho/lazer; amor/sexo; prazer/sofrimento; racio-
nulismo/afetividade; sanidade/loucura, e assim por diante. Da
lorma compartimentada como é ensinado a ver o mundo, só

83
pode resultar um homem que não detém o controle sobre sua
própria existencia: urna vez perdendo a visão de unidade,
perde também a consciencia de seu papel transformador nesta
realidade”.
Textos como estes, assim como algumas letras de músi­
ca, me deram força em determinados momentos críticos de
minha vida; mostraram que eu não estava sozinha, remando
contra a maré, e que havia todo um pensamento articulado
com o que eu estava passando e vivendo.

* * *

Exatamente por isso — digo sinceramente — aceitei a


tarefa de fazer este livro, só porque era contigo, Herbert. So­
zinha ou com outro, não me animaria. Por quê? Simplesmen­
te me apaixonei pela Passagem para o Próximo Sonho, por
toda aquela emoção descontrolada em meio aos cadáveres dos
amigos e dos sonhos. Você coloca tudo exatamente como me
pareceu ter sido, como eu vivi. Tem uma passagem (sem tro­
cadilho) em que você diz: “Não há pior desterro do que aque­
le que se vive no meio duma gente que jala uma língua que
parece ser a nossa". Tem também aquela: “o pavor nem sem­
pre é dramático ou teatral". E mais: "A participação demo­
crática não é enganosa “liberdade de opinião’ sobre a ação dos
outros. Reclamação opiniática não é protesto". “O gueto é um
serviço de utilidade pública”. "Nunca é difícil brandir um au­
tor contra ele mesmo, basta selecionar frases mais ou menos
isoladas do contexto” (ui...). “Muitos nunca conseguiram
compreender que a convivência nos aparelhos, sem espaço in­
dividual possível, sem concessão à intimidade era um verdadei­
ro problema político”. “O mais importante eram as idéias que
tirávamos daquelas idéias".
Pois é, Herbert, depois do teu livro, fervilhei, e cá estou,
aqui me tens, expondo algumas das idéias que tu me de-fla-
graste. Fiquei pensando nos nossos ativismos urbanos, tão di­
ferentes, tão próximos. . . Militante não me considero, porque
militante é quem milita e eu não vejo o MH como milícias,
com hostes, falanges, guerras e estratégias, muito menos poder:

84
o MH não quer conquistá-lo, mas justamente questioná-lo. Eu
me sinto mais como uma participante entusiasta, sem outras
definições mais pretensiosas. O importante pra mim — e sei
que pra você também — é intervir, é atuar.
Quando te disse, Herbert, que em 68 eu queria ser guer­
rilheira, mas não fui (lembra que meu tamanho me torna ines­
quecível? . . .), falaste que eu teria chances de viver por qua­
renta e oito horas na clandestinidade. . . Mas já vivi mais do
que isso, muito mais, nossa geração é de clã-destinos (até na
poesia sou marginal...), de exilados (do sexo e do país).
Isso nos moldou tão parecidos: clandestinos de nós mesmos.
A meu modo também guerrilhei. Qual será teu nome verda­
deiro, Daniel? E o meu nome de guerra, qual será?
Naquela vez em que notaste que muitos homens gozam
como mulher, me lembrei de um filme, muito bem roteirizado
por João Silvério Trevisan, A mulher que inventou o amor,
em que ela também questiona as formas de prazer feminino
e masculino (gemidos, excitações, etc.) e aí saquei algo que
me impressionou: mudada a acentuação tônica para oxítona,
Herbert rima com mulher. . . não é bonito?

♦ » *

O preconceito é uma arma de poder e do poder. “Mas


nem sempre o autoritarismo veste uniformes militares e encar­
cera os indivíduos em plena luz do dia. Ele pode ser sutil,
invisível; estar incorporado em cada indivíduo, mesmo nas
sociedades de aparência a mais democrática” (Guido Mante-
ga, Sexo & Poder, Ed. Brasiliense). Por pensar assim, presto
atenção ao que chamam de “cultura popular” e que nada mais
é do que uma cultura incutida no oprimido. Provérbios, frases
e ditos, em sua aparência inofensiva, cristalizam e servem de
esteio aos alicerces mor(t)ais de uma sociedade. Só um exem­
plo: “Mulher de amigo meu pra mim é homem”: 1) só se
respeita a mulher, porque é do amigo; 2) o amigo fique segu­
ro, porque um homem só gosta de mulher a menos que seja
efeminado; 3) a fidelidade é grande virtude a se preservar, e
depende do homem, porque, afinal, todas estão loucas pra

85
dar; 4) a amizade está acima do sexo, amigos são amigos,
coisa muito mais séria e duradoura do que amores passageiros.
Agora pergunto: não deveriamos erotizar nossas amiza­
des? Ao longo de minha vida percebi que dificilmente olhamos
para os amigos ou amigas com olhar mais sexualizado, conti­
nuamos a criar compartimentos estanques, amigo é uma coisa,
amor outro departamento. Por quê? Porque assim resguarda­
mos estas pessoas queridas do perigo de possíveis decepções e
desgastes. Se o sexo, este tempestuoso elemento, pode amea­
çar um sentimento “seguro”, eliminemos o primeiro. E em
nome de um comodismo individual, criamos lemas pseudo-
liberais que tornam nossa covardia um sentimento “nobre”,
“digno”, “respeitoso”, “honroso”. . .
Numa sociedade competitiva, acostumamos a separar as
coisas e os sentimentos, uns em detrimento dos outros. Sem­
pre tentei não cair nesta ideologia dicotômica. Quando eu falo
sobre o corpo, não pretendo supervalorizá-lo em detrimento
das potencialidades ditas “psicológicas”. Ao contrário, o pro­
pósito é dar à sexualidade uma conotação mais ampla, aca­
bando com essa história de dividir o ser humano em espírito
e matéria, numa famigerada tradição que vem de Platão e se
perpetua no Cristianismo via Santo Agostinho, aquele mesmo
que dizia que “nascemos entre as fezes e a urina” e conside­
rava o corpo a “prisão da alma”. . . Quanto mais se acabar
com desigualdades, mais acabaremos com marginalizações, e,
portanto, com discriminações.
♦ ♦ ♦

Em 1978, eu organizei, pela Ed. Vertente, uma antologia


de poesia com dez mulheres. Quis suscitar muita polêmica, e
consegui, a partir do título: Mulheres da Vida. Alguns, numa
leitura simplista e pobre, apenas o viam como sinônimo de
prostitutas. No entanto, eu estava tentando reapropriar vários
significados de uma expressão manipulada contra as mulheres
que apenas estavam na vida, que viviam. Todo o clima do
livro era o de desmitificar aquela “lírica feminina” estagnada
no tempo e no espaço, alienada da realidade social e violenta
do país.

86
Se eu fosse contar todas as histórias preconceituosas que
o livro gerou, escrevería um romance. Incomodou porque foi
mostrada uma poesia político-sexual, num tom diferente da
época em que a mulher só tinha como “direito” o de parir.
Foi uma façanha uma coletânea com este objetivo. Num dos
poemas, eu dizia: “Não sou comportada / puta e lésbica / e o
que mais me der na telha / sou a sequência / do que o primei­
ro gesto desencadeia”. Choveu protestos, eu estava usando a
linguagem repressora (e volta o problema da linguagem).
Presos a palavras isoladas, não captavam a idéia: o peso dos
rótulos, que precisam ser sacudidos para que sejam transcen­
didos, desencadeando uma reação (s)em cadeia, como a pró­
pria poesia propunha. ..
Réca Poletti (SP), humorada e irônica, criticava toda
uma hipocrisia social em “Confissão”: “A mulher / do próxi­
mo / esteve aqui / Desejei / enfiar meus dentes / em sua
pele / morder sua carne / chupar seus ossos / Depois ela foi
embora / eu me arrependí / por sentir / essas coisas / esca­
brosas / e juro / que lavo a boca / e não sinto mais / se ela
parar de vir / dormir aqui em casa”. E Ana Maria Pedreira
Franco de Castro, da BA, escrevia: “eles tentaram transfor­
mar-me num ser menos seguro / eles tentaram eu te assegu­
ro / eles tentaram / minha mãe meu tio minha professora meu
cachorro / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram / e
até o grande ditador e o diretor da faculdade / eles tentaram
eu te asseguro / eles tentaram / e o meu primeiro namorado
e a mãe do cara que amei / eles tentaram eu te asseguro /
eles tentaram / e os meus amigos mais diletos e o meu filó­
sofo mais lido / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram '/
e às vezes minha própria imagem e o padre que ouvi na
infância / eles tentaram eu te asseguro / eles tentaram / dia
veio que me inteirei de suas intenções / assim como eles se
inteiraram das minhas”.
Acho que todas — ou quase todas — falavamos na pri­
meira pessoa do singular, mas que na verdade era do plural
(o plural emotivo). Arte pra mim é isso mesmo: aproveita­
mento de situações concretas, mas de um jeito que as extra­
pole. O individual coletivo. A meu ver, este também foi o

87
grande avanço dos movimentos homossexuais: falar em pri­
meira pessoa, jogar nas reuniões a vivência particular como
um dado político, quando então boiavam claramente as for­
mas de repressão, a partir da família. Substituindo as palavras
de ordem e os velhos chavões, surgia o eu, que está em todos
nós, o eu plural, nosso emocional exposto não como uma ses­
são terapêutica (quem falou em doentes ou cura?), mas po­
lítica, e patética. E poética. Não se falava de repressão como
uma palavra vaga que passava ao longe, mas da nossa pró­
pria, a que dormia e acordava conosco, na nossa cama. Fo­
ram dias importantíssimos de descoberta, estávamos diante de
uma revolução sem armas, e que no entanto era tão perigosa
quànto as explosões nucleares, ou os arsenais de munições.

* * ♦

Esta parte está parecendo mais uma avalanche do que


um capítulo. Mas é difícil prender palavras nesta primeira
oportunidade que tenho para soltá-las, para falar de saldos,
saltos, vivências, datas, danos. Quem já escreveu um diário
sabe que não se pode exigir dele um tom bem-comportado
como o de um dicionário, que mesmo focalizando assuntos
tabus, como o do Palavrão e Termos Afins, de Mário Souto
Maior (Ed. Guararapes, de Recife, 1980), torna-se “científi­
co” e respeitoso, um verdadeiro compêndio, visando mais o
folclore regionalista do que o palavrão (im) propriamente dito.
Não aparece nenhuma terminologia do gueto homossexual do
Rio e de SP. Cheguei até a pensar em mandar uma relação,
com o intuito de preencher a lacuna. Mas desisti, destoaria
muito, parecería “sacanagem”. . . O problema dos teóricos é
que eles se baseiam quase que exclusivamente nos grandes
mestres da língua (pátria, naturalmente) para as suas pesqui­
sas. . . e aí saem palavrões. . . eruditos.
Outra constatação: enquanto é possível (embora difícil)
se fazer um dossiê, mesmo que pobre, de violências cometidas
contra homens com práticas homossexuais (veja-se o levanta­
mento realizado por Luís Carlos Machado, no seu livro: Des­
cansa em Paz, Oscar Wilde, Ed. Codecri, 1982), praticamente

88
impossível é se fazer isso com relação à mulheres com vivên­
cias homossexuais. Ê como se inexistissem. Naturalmente não
estou levando em consideração os jornais da grande imprensa,
repletos de manchetes diárias explorando o assunto através de
crimes, violências e versões sensacionalistas, pois estas fontes
não são nada confiáveis. Embora todos saibam que são inú­
meros os casos de mulheres com vivência homossexual agre­
didas e violentadas de todas as formas, poucos são os que vêm
à luz do conhecimento público, inclusive por medo das pró­
prias vítimas. Por isso, só pude me ater a três casos, compro-
vadamente verídicos, dos quais, indiretamente, participei de
dois: o de Marisa Nunes, participante do GALF, de SP, e o
de Ninuccia Bianchi, que me concedeu uma entrevista para o
jornal Lampião (trabalhei nele enquanto foi possível, durante
três anos, do n? 0 ao 31).
Marisa Nunes, com 19 anos, num sábado, 25/11/79, às
dez e meia da noite, estava andando pela rua quando um ho­
mem a abordou, pediu seus documentos e não os devolveu
com a alegação de que uma moça com o seu tipo físico assal­
tara dois rapazes, e que a polícia (mostrou-lhe uma carteira
de longe) estava detendo todas as que correspondiam à des­
crição. Bateu no bolso dizendo que estava armado, e que a
levaria para o 4*? Distrito, próximo dali. Foram a pé. No
meio do caminho, ele a agarrou, enfiou-a por uma entrada de
casa valendo-se de força, e a estuprou. Depois lhe devolveu
a identidade, perguntando: “Quantas vezes você gozou?”. Com
raiva e nojo ela respondeu: “Umas dez”. Como prova de ter
estado lá, deixou um modess atrás do divã.
Conseguiu que a polícia fosse ao local, arrombasse a por­
ta, constatasse o absorvente, levasse à delegacia o estupra­
dor, Clodomir da Silva Pereira, 37 anos, casado, auxiliar de
química num bairro da alta classe média paulista (Moema).
Lá ele reclamou: estava dormindo muito bem (a luz foi apa­
gada quando a polícia chegou) e apareceram aqueles guardas
que arrombaram sua casa e o acusaram de estupro só porque
uma prostituta resolveu se vingar por ter recebido metade dos
mil cruzeiros que pedira. O delegado procurou os quinhentos
cruzeiros e não encontrou.

89
Ela oficializou a queixa, assinou-a em numerosas vias,
foi fazer a perícia médico-legal, e quando voltou encontrou
sua bolsa revirada e a acusação do delegado: os papéis acha­
dos eram pornográficos (ela pertencia ao grupo Lésbico-Fe-
minista e as meninas, naquela época, andavam cheias de pan­
fletos sobre o movimento) e ela portanto devia ser mesmo
prostituta. Assim se descaracterizava a violência sexual. . . O
acusado saiu rápido da delegacia, ela ficou até cinco da ma­
nhã jurando inocência... De vítima passara a ré.
Um mês depois do ocorrido, uma de suas advogadas, Dr?
Solange Gibran, descobriu não ter havido representação pela
delegacia; conseqüentemente, o inquérito não fora instaurado,
apesar da vítima e do acusado terem comparecido na mesma
noite do estupro. Os papéis de sua bolsa continuavam con­
fiscados e serviam, segundo o delegado, para lançarem a sus­
peita da prostituição. O crime (apenas punido com pena de
três a oito anos) tinha virado somente escândalo de uma
“profissional” tipicamente fodida e mal paga. . . Dois anos e
meio se passaram e o processo ainda não tem sentença.
O outro caso foi o de Ninuccia Bianchi — preconceituo-
samente conhecido como o de “Nino, o italianinho”. Ninuccia
foi acusada da morte de Vânia, sua ex-companheira com quem
não mais vivia, e julgada pelo 4? Tribunal do Júri, no Rio.
Nenhuma prova havia nos autos que justificasse sua indicia-
ção, a não ser o fato de sua opção sexual diversa da maioria,
constatada pela descoberta de cartas amorosas entre as duas.
Baseando-Se apenas em suspeitas, a acusação tentou incriminá-
la por homicídio.
Durou três anos o processo. Em 26 de junho de 80, por
5x2 votos, ela foi inocentada, depois de ter sido humilhada
pela imprensa machista e sensacionalista, responsável por uma
verdadeira devassa em sua vida, inclusive publicando as cartas
que não tinham nenhuma vinculaçâo com a morte de Vânia.
Apesar do final jurídico feliz, muito tempo mais tarde ela ain­
da se queixava de desemprego: mesmo absolvida, sua fama de
“homossexual” continuava a persegui-la. Palavras dela: “O
banco dos réus é uma experiência amarga, pois ali começa a
expiação ante o público de um fato muitas vezes não prati­

90
cado por quem nele se senta”. O público. . . esta hidra de
tnilhares de cabeças (e nem sempre “em cada cabeça uma sen­
tença”, há pré-julgamentos consensuais...), este “ser” que
aplaude, vaia, e pode condenar uma pessoa ao exílio em sua
terra, até quando não é criminosa.
Do terceiro caso só tive conhecimento através do livro
autobiográfico intitulado A Queda para o Alto, publicado
postumamente pela Ed. Vozes (3? ed., 1982). Sua autora, San­
dra Mara Herzer, conhecida como Anderson Bigode (Big),
nascida em 10 de junho de 1962, em Rolândia, Paraná, ati-
rou-se do Viaduto 23 de Maio, em SP, a 9 de agosto de 1980,
vindo a falecer na manhã do dia seguinte. O tema principal
do livro é sua vivência nas diversas unidades da FEBEM
(Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) de SP, contan­
do as atrocidades, barbaridades, violências e sadismos contra as
menores; sua situação era das piores, principalmente por sua
postura masculinizada, parte da crise de identidade sexual ori­
ginada por uma série de pressões emocionais acumuladas ao
longo de sua curta vida.
Não quero dizer com isso que a (des) orientação sexual
se deve exclusivamente à sua passagem pela FEBEM (inclu­
sive porque acho a pesquisa da origem da “homossexualidade”
igual à pesquisa da “heterossexualidade”. . .), mas é inegável
que a agonia que finalizou com seu suicídio tem muito a ver
com as repressões (inclusive sexuais) que ela sofreu na infân­
cia e adolescência, tornando-a uma mulher em perpétuo con­
flito consigo mesma, com seu próprio corpo e com o mundo,
chegando ao máximo da inadaptação com sua saída da
FEBEM.
O texto que se segue é do livro de Sandra Mara, e em­
bora se refira a prostitutas e homossexuais serve bem para
mostrar seu senso de compromisso social: “O caso é que a
sociedade incrimina tanto homens como mulheres, e, como é
cega, ainda não conseguiu perceber que a culpa não cabe a
mais ninguém a não ser a ela própria. Se eu tivesse meio de
comunicar-me com todas essas pessoas, teria muito a dizer.
Pena que a sociedade jamais admitiría culpa ou incompreen-

91
sâo, mas infelizmente, minha cara sociedade, aí estão os frutos
que por terrível fraqueza um dia foram semeados”.
Esse meu verso é pra Sandra Mara, embora ela não possa
mais ouvi-lo:

Te chamar de menor
é piada.
De todas, foste a maior
abandonada.

* ♦ ♦

Em 1980, conhecí Fernando Batinga, quando reunia ma­


terial para um livro. Ele fora mais outro exilado, como tantos
— o golpe militar transformou “exilado”, de participio passa­
do, num substantivo comum. . — saído do Brasil em 70, per­
maneceu no Chile até a queda de Allende, depois foi preso
num campo de concentração, escapou de lá graças ao Gover­
no da Alemanha Federal, e finalmente viajou para a Europa
(Alemanha, França, Portugal, Itália e Espanha).
Pareceu-me incrível que um homem com esta vivência
político-partidária tivesse interesse em parar para pensar e es­
crever sobre sexualidade feminina. Mas teve. Segundo Fer­
nando, a idéia nasceu em Paris (1978) quando ele, conver­
sando com várias amigas suas, se espantou com os papéis e
significados que uma mulher pode exercer na vida da outra.
De minha parte, fiquei curiosa por ler a visão de um homem
sobre o assunto e paguei pra ver: comprei o livro —• A Outra
Banda da Mulher — quando ele saiu em 1981 pela Codecri,
e confirmei minhas suspeitas sobre o autor: uma pessoa capaz
de fazer um livro emocionante. Sem cair na armadilha de um
teoricismo dissertativo, preferiu deixar que as oito entrevista­
das falassem em primeira pessoa, mostrando suas incoerências,
dúvidas, rancores, incertezas, medos. Acho que quanto mais
se luta mais se aguçam as contradições, e o livro de Batinga
é justamente valioso por mostrar que, em matéria de sexo, “nós
ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”, já
diria Belchior...

92
No final do livro, Batinga tem um capítulo intitulado
“Shere Hite e o Lesbianismo Político”: “Elas propõem a sua
transformação (do mundo) material e cultural? Pelo contra­
rio: acertando parcialmente na identificação do componente
machista, resvalam, no entanto, pelo escapismo oportunista
e sectário, que tanto combatem nos machos, apontando a re­
lação homossexual como a alternativa única. O ‘inimigo’ para
Kelly/Hite não é o tipo de sociedade vigente em seu país,
mas sim o macho, ou seja, o outro pólo da relação humana
fundamental. Para elas, as mulheres provavelmente estão livres
das forças destrutivas da sociedade; (...) não veem que
'opressão machista’ pode ser também assimilada pelas mulhe­
res e que transformar os machos em diabos e as fêmeas em
santas é um maniqueísmo cômodo”.
É. A relação entre mulheres/mulheres ou homens/ho-
inens não é fácil, como também não são fáceis as de homens/
mulheres. Nenhuma relação é fácil, em suma, justamente por
ser uma relação entre duas pessoas distintas, com seus mun­
dos, fantasias, esperanças, projetos, alegrias, sofrimentos. No
entanto, o que mais aparece são mitos generalizadores: o do
homem gozar mais rápido do que a mulher e ter prazer mais
centralizado; o das “lésbicas” serem mais possessivas do que
us “bichas”; o de que o caso entre elas é mais harmonioso e
duradouro do que o entre eles; o do orgasmo simultâneo como
sendo o mais maduro e “perfeito”; as fábulas do maravilhoso
amor entre duas mulheres, a maior facilidade de “ser lésbica”
do que “bicha”, porque mulheres podem se dar as mãos na
rua e até andarem de braço dado, ou porque as famílias per­
mitem que as meninas durmam com as amiguinhas, sendo isso
proibido aos meninos, etc. A esse respeito, convém lembrar que
estas pseudo-facilidades ilusórias só são permitidas a quem as
usa “sem maldade”, “inocentemente”, sem dupla intenção. ..
As “lésbicas” não se dão a mão com tanta simplicidade, pois
já têm na cabeça o sentimento de culpa a cerceá-las e coibi-
las; qualquer gesto só propicia uma determinada prática sexual
quando é feito intencional e conscientemente. Eu acho.

93
* • •

A partir de quando me conscientizei dos prazeres (tam­


bém sexuais) da vida, nunca quis ser homem. Não que ser mu­
lher implique num mar de rosas, em absoluto, mas, pelo menos,
está em nós a capacidade de questionar todo este estado de
coisas; para os homens, embora ruim, o mundo é deles, e a
opressão passa menos despercebida. Não há muito mais a
conquistar, eles são o referencial de tudo, o centro do universo.
Lá vou eu com mais um de meus poemas, o “Referencial”,
que está num livro ainda inédito chamado Mercado de Escra-
vas: “Solteira de aceso facho / precisa logo de macho; / se
é nervosinha a casada / só pode ser mal trepada; / viúva cheia
de enfado / tem saudades do finado; / puta metida a valente /
quer cafetão que a esquente. / Mulher não vive sem homem. /
A prova mais certa disto / é que até as castas freiras / são as
esposas de Cristo. / Tal regra é tão extremista / que não con­
tém exceção: / quem sai dela é feminista, / fria, velha ou sa-
patão. .
Seja qual for a preferência sexual, homens e mulheres
custam a perceber que a repressão sexual é parte da social.
Quando se cultua, por exemplo, sentimentos de posse, tratan-
do-se pessoas como se fossem propriedades privadas, na ver­
dade está se incentivando essas últimas; ao se alimentar senti­
mentos exclusivistas, como o ciúme, inconscientemente se
apóia uma economia de monopólios. . . Ao se mitificar o ser
amado como único e diferente de todos os demais, está se re­
produzindo a competição, privilegiando uns em detrimento de
outros. A sexualidade, que passa por ser um assunto estrita­
mente individual, é, no fundo, um microcosmos da ideologia
dominante. Resta-nos detectar o grau de manipulação e tentar
não repetir os mesmos vícios sócio-econômicos na nossa vida
amorosa, no corpo-a-corpo. . .
. Pessoalmente, concluí quç o amor não é um bolo do qual
se tire um pedaço, desfalcando o restante. Sensações —
amor, prazer, sexo — não são coisas que se quebram sem
conserto, de forma irremediável. Quanto mais se ama, lucida­
mente, mais se acrescenta, e não há obrigatoriedade de se

94
querer a uma única pessoa de cada vez (ai meu sangue gre­
go. . Lógico que na prática isto é complicadíssimo de ser
articulado. Mas dá pra tentar. Sei porque vivo assim.
♦ ♦ ♦

E não me perguntem os motivos, as causas que levaram


alguma mulher a “escolher” outra, porque são tão variadas e
diversas como as que podem impulsionar alguém a preferir o
sexo oposto. Falei em escolha, mas não sei se ela efetivamente
existe. As pressões são tantas e tais que somos levados a ter
uma escolha, não a escolher (somos levados a não sermos le­
vados . . .). Outro dia, ouvi uma artista opinar que achava er­
rada a atitude de determinadas cantoras ao fazerem proselitis­
mo, apologia do homossexualismo. Isto era indução. Concor­
do. Só que sequer mencionou as milhares de induções diárias
a uma prática heterossexual, presentes desde o primeiro vagido.
Na “heterossexualidade” qualquer um está seguro, defi­
nido, defendido, resguardado, protegido, certo de estar no ca­
minho certo, o da maioria. Sair dele é procurar atalhos, tal­
vez perigosos, tendo certeza de contar sempre com o repúdio,
o estigma e intolerância sociais. Diante desta desproporção de
forças pode-se realmetne falar em opção sexual?
A prática homossexual deveria ser um abrir de fronteiras,
inclusive para um maior autoconhecimento. Mas nem sempre é.
Há fortes misoginias e misantropias, sexismos de todas as es­
pécies, porque qualquer relação de poder (ativo/passivo, do-
minante/dominado, forte/fraco) gera mais ódio e rancor do
que amor e afeto. Quando em vários Congressos eu falava da
posição das mães e das desquitadas no MH, a reação era sem­
pre a de espanto: na verdade, nem as mais “liberadas” pensa­
vam na prática homossexual como uma escolha, em vez de fa­
talidade ou estigma. “Lésbicas só são lésbicas”, uma vez lésbi­
ca, lésbica até morrer. Esta estereotipia serve menos para di­
ferençar quem é quem, do que para tranquilizar quem não é
quem. Só que às vezes as coisas são mais complexas, e aí sur­
preendem, assustam, ameaçam. Uma “lésbica”, com filho, po­
de ser “confundida” com uma mulher “normal”. Por isso uma

95
grávida chegou a me dizer possessa: “não tenho nada a ver
com a luta homossexual, acho mesmo a das. prostitutas ‘mais
justa’.. . Corno se as fontes repressoras de ambas não vies­
sem da mesma origem machista, preconceituosa, moralista.
Enquanto a indústria do orgasmo fabrica gozos a ataca-
do(s), de todos os tamanhos — inclusive descartáveis — a
gente se propõe a achar o prazer individualizado, porque ge-
neralizá-lo é igualá-lo, uniformizá-lo, massificá-lo, massacrá-lo
e faz parte da política de padronização do que é “certo” e “er­
rado”, perseguindo-se o que sair fora dos esquemas e cânones
convencionais. Nenhuma mulher deveria ser criada para cria­
da, nem apenas para reproduzir. Sacanagem não é o que faze­
mos na cama. É o que fazem conosco. Por tudo isso, fico com
o meu “Ponto de Vista”: “Eu não tenho vergonha / de dizer
palavrões / de sentir secreções / (vaginais ou anais). / As
mentiras usuais / que nos fodem sutilmente / são muito mais
imorais, / são muito'mais indecentes.”

0 MOVIMENTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO


ORGANIZADO — ESSE
QUASE DESCONHECIDO
‘“Quem cala consente’. .. Como
se o silêncio não fosse a imposição de
um discurso”
(Herbert Daniel)

Foi mencionada, na primeira parte, a dificuldade de se


começar a criar um espaço para se falar de sexo, como fonte
de prazer e ao mesmo tempo reivindicação de luta. Relem­
brando, a luta político-partidária não encampava as específicas.
A esquerda tradicional, inclusive, via os exilados que voltavam
com outros tipos de propostas políticas (através da sexualida­
de), como desbundados (isso em pleno 78/79), o que equiva­
lia a demonstrar todo o descrédito sentido por quaisquer ou­
tros meios de luta. Para eles, na austeridade e sisudez estaria

96
o encaminhamento correto de seus projetos, que fatalmente se­
riam “desvirtuados”, se saíssem destes severos padrões...
Já em 1976, João Silvério Trevisan tentava, em São
Paulo, formar um núcleo com pessoas de prática homossexual^
sem conseguir. No Rio, desde meados de 77 também se tenta­
va, inutilmente. O que deu muita força e praticamente apoio
para se começar o movimento, foi o jornal Lampião, cujo pri­
meiro número saiu em abril de 78, e que, no início, serviu
realmente como porta-voz de vários grupos estigmatizados. O
Lampião foi o primeiro a tratar questões sexuais com enfoque
político. Daí a sua importância.
Antes dele houve vários “jornais gays", a partir de 1961
(Snob foi o primeiro). Uma vez entrevistei estes pioneiros,
Anuar Farah e Agildo Guimarães, conseguindo um levanta­
mento das • vinte e sete publicações em circulação na época.
Foi fundada inclusive a ABIG — ASSOCIAÇÃO BRASILEI­
RA DE IMPRENSA GAY, aglutinando todos esses “nanicos”
brasileiros. Seu primeiro presidente foi Anuar, que nos conta:
“A ABIG foi feita para lutar, porque nós todos tínhamos um
ideal, queríamos mostrar que éramos pessoas normais, que fa­
zíamos o que todas as outras faziam, sem diferenças”.
Todas aquelas publicações lidavam com o material dispo­
nível na época: fatos, fofocas, piadas, notícias de festas, reu­
niões em que se juntavam pessoas que se sentiam marginalizadas
pela sua opção sexual. Como em geral tratavam de amenida­
des, eram encaradas como “coisa de bichinhas”, e em meio a
muitas dificuldades, inclusive financeiras, acabaram. Só dezes­
sete anos depois é que renasceu a “imprensa gay”, desta vez
maior, profissional, falando de prazer enquanto meta a ser al­
cançada. A importância do Lampião para o movimento ho­
mossexual daquele tempo fica constatada quando se observa
que logo no mês seguinte ao de seu lançamento, portanto em
maio/78, surgiu o primeiro grupo homossexual organizado no
Brasil: o SOMOS/SP, homônimo ao da revista do primeiro
guipo homossexual da América Latina, a FILHA — FRENTE
Dli LIBERTAÇÃO HOMOSSEXUAL DA ARGENTINA, já
naquele ano massacrada pela repressão estatal.
Entre seus fundadores, se destacavam dois escritores: o
mesmo Trevisan e Glauco Mattoso, que desde 77 fazia o Jor­
nal Dobrabil, com a sua deliciosa gaÁeria aXegria — notem
que o “1” é escrito como o lambda grego, em muitos países o
símbolo do MH, além de uma série de brincadeiras com a pa­
lavra gay, alegria em inglés. Segundo depoimento da época,
não houve a priori nenhum plano organizado sobre o funcio­
namento do grupo, a única coisa que tinham em mente era se
encontrar fora dos locais do chamado gueto. A partir destas
conversas iniciais, começou um processo de conscientização de
como era inédita e necessária a experiencia deles.
Durante muitos meses o SOMOS não teve preocupação
de divulgação externa. Suas atividades consistiam, basicamen­
te, em papos e reflexões. Neste período buscavam alcançar
uma identidade enquanto grupo, a partir da vivência homos­
sexual, elemento comum a todos. “A coisa não foi fácil. Ti­
vemos uma existência quase clandestina e muito conturbada.
Imaginem um bando de pessoas frequentemente com proble­
mas básicos de aceitação pessoal, tentando encontrar o ponto
comum para iniciar um diálogo sobre si mesmas. Tudo bastan­
te dilacerado, de um lado. Muita dúvida porque tudo era no­
vo. E uma extrema oscilação de gente entrando e saindo. Mui­
tos vinham para espiar. Se decepcionavam. De fato, não tínha­
mos nenhuma fórmula para mudar o mundo. Eles iam embora.
Pelos motivos mais diversos. Só não diziam que era por medo,
insegurança — coisa que todo mundo lá dentro sentia”.
Quase no final de 78, foi atingida uma nova fase, mais
pública e formalizada: houve uma reunião ampla no Teatro
da Praça, para a qual anteriormente foram distribuídos panfle­
tos mimeografados, e após o debate da USP (fev./79) o
grupo se tornou amplamente conhecido, ganhando seus con­
tornos definitivos. Um dos problemas mais sérios era a ausên­
cia de mulheres. As poucas que no decorrer de 79 se orga­
nizaram no SOMOS passaram então, dentro dele, a formar o
LF — LÉSBICO-FEMINISTA —, por acharem que seus
problemas eram específicos, isto é, a maioria masculina ten­
dia a discutir assuntos masculinos, em detrimento dos femi­
ninos. A esta altura, já havia em São Paulo mais dois grupos:

98
o LIBERTOS (de Guarulhos, em abril) e o EROS (de SP, em
maio).
No Rio, a primeira experiencia a ser concretizada foi o
GAAG — GRUPO DE ATUAÇÃO E AFIRMAÇÃO GAY,
criado em 1/7/79. Pontos interessantes a salientar: sua com­
posição era mista, mas a maioria era de mulheres, inclusive na
coordenação; seu âmbito de atuação foi basicamente a Baixa­
da Fluminense (região famosa por seu alto índice de crimina­
lidade, pobreza e descaso governamental), com seus compo­
nentes morando em Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João
de Meriti; e sua cyrta vida, pois não chegou aos primeiros me­
ses de 1980, nada mais se ouvindo a seu respeito.
Motivados pelos frequentes artigos publicados no jornal
Lampião sobre os primeiros grupos paulistas, alguns cariocas
passaram a fazer contato com os mesmos, ou através de car­
tas, ou mesmo indo a SP participar de reuniões, até que em
setembro de 1979, com cerca de cinquenta pessoas, e entre
elas lá estava eu, é formado um agrupamento no Rio, poste­
riormente chamado de SOMOS/RJ — em sinal de união com
o seu homônimo, seguindo uma estrutura semelhante: reuniões
de recepção para os novos membros; de reflexão, em que se
desenvolvia a consciência individual face à repressão social; e
subgrupos de atividades.
O primeiro racha do MH brasileiro se deu no Rio, em
dezembro, nas vésperas da prévia do P Encontro de Grupos
Homossexuais Organizados (EGHO). Possível motivo: o
SOMOS/RJ, desde o seu início, devido ao grande número de
participantes, teve necessidade de se dividir em dois subgru­
pos: um na Zona Norte, o outro na Zona Sul, o que acarre­
tou experiências diferentes e práticas até certo ponto confli­
tantes, visto que, enquanto na Zona Norte se privilegiava a re­
flexão pessoal — o que significava a fala (difícil e até dolo­
rosa) em primeira pessoa, ao expor as experiências vivencia-
das —, na Zona Sul a ênfase era dada a discussões metodo­
lógicas sobre as melhores formas de organização, não impli­
cando, portanto, um envolvimento individual tão forte quanto

99
o necessário numa prática reflexiva. Talvez por isso permitiu-
se, na Zona Sul, a presença de uma antropóloga sem vivência
homossexual, a qual declaradamente estava ali apenas para co­
lher material para a sua tese de mestrado.
Enquanto a referida pesquisadora freqüentou apenas as
reuniões do subgrupo que a aceitava não houve problema, já
que eles tinham independência na sua organização interna;
mas quando ela compareceu à reunião geral (em 9 de dezem­
bro de 1979), com direito a voto e a deliberações, houve tan­
tos protestos que, três dias após, as pessoas dissidentes, incon­
formadas, resolveram formar o AUÊ — GRUPO PELA LI­
VRE OPÇÃO SEXUAL, nome dado quase de brincadeira
(auê) pela confusão, movimentação e agito criados em torno
do fato.
Não ia nisso nenhuma intransigência nem atitude discri­
minatória ou contrária às pessoas de vivência heterossexual;
tratava-se apenas de que não se via sentido em questionar a
repressão às práticas homossexuais com pessoas que não so-
friam na pele este tipo de problema. Nesta briga, fiquei com o
AUÊ, que fechava mais com minha ideologia. Trecho do pri­
meiro manifesto: “acreditamos que a liberdade sexual seja es­
sencial para uma sociedade mais justa e democrática, sendo
portanto parte integrante de uma liberdade mais ampla, social.
Tudo o que prejudicar a liberdade sexual afeta necessariamen­
te a liberdade em geral, e vice-versa, sendo a existência de am­
bas inter-relacionadas e interdependentes. Não nos propomos
à mera integração na sociedade atual, pois a vemos profunda­
mente injusta e marginalizadora. Desejamos mudanças em vá­
rios níveis, desde a social até a das nossas individualidades.
Acreditamos assim poder contribuir para uma luta coerente
pelo prazer, direito (e por que também não dever) de toda
pessoa”.
Uma das características que diferia o AUÊ dos outros
grupos brasileiros estava em que ele foi o primeiro a não acei­
tar uma “identidade” homossexual, aprofundando a discussão
e a crítica à falsa dicotomía que divide os seres em dois. Gen­
te deveria poder apresentar quaisquer tipos de comportamento,

100
sem que com isso fosse posta em dúvida sua identidade sexual
masculina para os homens ou feminina para as mulheres. Pas­
sou-se então a usar a palavra homossexual apenas como adje­
tivo de comportamento e jamais como classificação de pessoas.
Em 15 de dezembro é realizada, no Rio, a primeira reu­
nião preparatória para o EGHO, contando (além do SOMOS/
SP, EROS, LIBERTOS, GAAG, SOMOS/RJ e AUÊ) com a
participação de dois outros grupos, formados ao longo do ano
de 79 — de setembro a dezembro: o BEIJO LIVRE, de Bra­
sília e o SOMOS/SOROCABA. Ficou marcado para abril (Se­
mana Santa), em São Paulo, o grande encontro.
Em 79 três fatos importantes a ressaltar, sendo o primei­
ro, internacional: o 12? Congresso da Anistia Internacional
(reunido em Louvain, Bélgica) configurou como “prisioneiras
de consciência” as vítimas de opressão sexual (ou seja, quem
fosse aprisionado, detido ou restringido fisicamente, de qual­
quer modo, pelo sexo); assim, como preso político, se adqui­
ria o direito a asilo. Com relação a isso, convém se lembrar
que a Suécia já era um dos poucos países cuja legislação pre­
via a concessão de asilo por razões de discriminação à opção
sexual. Essa lei, porém, jamais fora aplicada a estrangeiros.
Coube a uma mulher brasileira, Maria Josenilda Felix Duarte,
inaugurá-la, quando, num processo que durou dois anos, in­
clusive com documentos comprobatórios de que a prática ho­
mossexual no Brasil pode ser considerada atentatória à moral
e aos bons costumes, ela obteve o asilo, em 28-7-81.
Josenilda conta que até na luta armada, numa organiza­
ção maoísta, ela foi discriminada por suas práticas homosse­
xuais. “Aí minha cabeça pirou, o pânico político misturou-se
ao sexual”. Em 74 foi para Portugal, onde constatou que a
Revolução dos Cravos não abalara certos preconceitos. Sem­
pre considerada presona non grata por onde passasse, em
79 ela entrou comjj processo na Suécia. “Meu pedido de asilo
não foi só para defender meu direito homossexual, mas para
defender todo um grupo social”. Realmente, criado o prece­
dente, outros casos poderão nele se basear, para atingirem
igual objetivo.

101

k
Os outros dois fatos de destaque ocorreram no campo ju­
rídico: a absolvição do jornalista Celso Curi (em 12 de mar­
ço), pela 14? V. Criminal de São Paulo, com processo desde
1977 por ter sido enquadrado no artigo 17 da Lei da Impren­
sa, por “ofensa à moral e aos bons costumes", através de sua
“Coluna do Meio”, no jornal Ültirna Hora, de SP; e, em ou-
tubro/79, o arquivamento pela 4? V. Federal do inquérito ins­
taurado, desde agosto de 78, para a apuração da participação
ilícita de cada um do Conselho Editorial do Lampião, invo­
cando-se novamente o mesmo artigo, e a mesma Lei 5260/67.
1980 foi um ano de grande movimentação: em 29 de feve­
reiro, surge em Salvador o GGB — GRUPO GAY DA BA­
HIA, que se apresenta como uma “associação de homossexuais
que tem como objetivo refletir e trabalhar em prol da liberda­
de sexual em geral, e, mais especificamente, lutar pela causa
homossexual”. O GGB sempre foi dos mais ativos no Brasil,
em grande parte incentivado por um dos seus fundadores, o
antropólogo Luís Mott. Foi um dos poucos que conseguiu agir
junto às populações carentes, inclusive prestando serviços médi­
cos gratuitos e fazendo levantamento de doenças venéreas com
os travestis do Pelourinho.
Em junho, realizou-se o Encontro, dividido em duas par­
tes: a fechada (EGHO, com participantes apenas do MH e
onde discutiu-se temas que interessavam a estes movimentos) e
a aberta (o EBHO — Encontro Brasileiro de Homossexuais),
no teatro Ruth Escobar, um coroamento de todos os nossos
trabalhos e esforços. Entre os consensos do EGHO estavam:
“entrar em contato com médicos, psicólogos, psiquiatras e in­
teressados, dentro dos grupos e fora deles, para elaborar tra­
balhos sobre homossexualismo, criando discussão dentro do
Congresso Anual da SBPC; criar, em cada grupo, comissão en­
carregada de estudar medidas para viabilizar: 1) a alteração
da Constituição Brasileira no que diz respeito à opção sexual,
incluindo este termo nos direitos individuais do cidadão; 2) a
alteração no Código Internacional de Doenças — OMS —,
seguido pelo INAMPS, do artigo 302.0 que inclui o homosse­
xualismo como desvio mental; elaborar carta, destinada à Asso­
ciação de Psiquiatria e de Psicologia do Brasil, denunciando

102
o tratamento dado aos homossexuais; denunciar junto ao Con­
selho de Psicologia a discriminação feita durante o recruta­
mento e seleção de candidatos a emprego; preservar a autono­
mia do MH, enquanto movimento, sem se afastar a possibili­
dade de uma participação individual de homossexuais em ou­
tras lutas”.
Este último item já previa a terrível tormenta que se aba­
tería em São Paulo, proporcionando o racha do SOMOS, no
famoso 17 de maio. Desde junho de 79 que alguns militantes
da Convergência Socialista (organização política de linha trots-
kista, posteriormente vindo a se integrar ao PT) participavam
do SOMOS/SP, motivando-se depois para organizarem a
FHCS — FRAÇÃO HOMOSSEXUAL DA CONVERGÊN­
CIA SOCIALISTA. Este núcleo, com suas propostas de ativi­
dade política claramente definidas junto ao operariado do
ABC (Grande São Paulo), veio a se chocar com a maioria
dos fundadores do SOMOS, de orientação anarquista, preocu­
pados em discutir mais expressamente a sexualidade.
Estas duas tendências contraditórias entraram em choque
violento a partir do P EGHO, culminando na comemoração
do 1? de maio de 1980, quando uma parte foi participar das
festividades dos operários em São Bernardo do Campo, inclu­
sive com faixas denunciando a discriminação ao trabalhador
homossexual, e a outra parte resolveu fazer um piquenique
no Ibirapuera.
A 17 de maio (80) consolidou-se o racha. O grupo dos
“antigos” considerou-se desligado do SOMOS e formaram um
novo agrupamento que, a 25 de maio, se denominou OU­
TRA COISA — GRUPO DE AÇÃO HOMOSSEXUALIS-
TA, e em cujo primeiro manifesto afirmava: “De repente, de­
cretou-se que as bichas e lésbicas do SOMOS tinham que ser
solidários às lutas dos setores oprimidos da população. Isto
porque, sendo oprimidos, deveriamos apoiar todos os outros
setores que o eram. Assim, esta posição passou a ser um dog­
ma dentro do grupo. Os que dela discordavam eram tidos
como ‘fascistas’, ‘inconseqüentes’. CONSIDERANDO que a
imagem externa do Grupo SOMOS está irreversivelmente asso­
ciada ao grupo Convergência Socialista; que a autonomia do

103
Grupo SOMOS está comprometida pelo caráter da atuação de
elementos filiados a organizações políticas partidarias; que o
Grupo SOMOS foi desviado de sua definição como grupo de
homossexuais interessados em discutir basicamente nossa se­
xualidade e lutar contra a discriminação sexual, passamos a
constituir um novo grupo que se propõe a reafirmar a defini­
ção do grupo homossexual autônomo e interessado prioritaria­
mente na questão homossexual”.
Também como conseqüência deste racha, na mesma reu­
nião de 17 de maio, houve a separação das mulheres do Grupo
Lésbico-Feminista do SOMOS/SP passando a formar o GALF
— GRUPO DE ATUAÇÃO LÉSBICA-FEMINISTA (tudo no
feminino). Diziam elas: “Dada a especificidade da discrimina­
ção que sofremos, enquanto mulheres e homossexuais, consi­
deramos o processo de afirmação somente possível em reuniões
separadas das dos homens. As mulheres não podem descobrir
o que têm em comum a não ser em grupos só de mulheres. Ê
falsa a idéia de que um grupo homossexual precise de lésbi­
cas para levar a questão feminista”. Isto era a reafirmação do
que elas já tinham dito, um mês atrásr no I? EGHO: “O les-
bianismo não se descarta do movimento homossexual, mas tem
especificidades que justificam os grupos exclusivos de mulhe­
res, levando-se em conta a importância da discussão das se­
xualidades específicas. Então, num primeiro momento, a união
é necessária como fator de agrupação, afirmação e organização,
mas depois, também, é preciso que haja grupos separados, sem
que isso signifique a perda do caráter coletivo da luta, já que
o elo comum é o combate contra a opressão discriminatória”.
Em maio ainda, além do OUTRA COISA e do GALF,
surgiram o TERCEIRO ATO, de Belo Horizonte, o AUÊ/
RECIFE e o GATHO, de Olinda. Sobre o primeiro: “Nosso
grupo é o TERCEIRO ATO, está relacionado ao ato de ques­
tionamento, enquanto o primeiro está relacionado ao ato ins­
tintivo e o segundo ao ato condicionado”. Quanto ao AUÊ/
RECIFE, fundado por uma mulher, teve vida efêmera. Dos
três, o GATHO — GRUPO DE ATUAÇÃO HOMOSSE­
XUAL foi o único que vingou, sendo até hoje um dos mais
atuantes. Surgiu como reação à série de assassinatos de homos­

104
sexuais ocorridos naquele mês em Pernambuco, todos eles tra­
tados pela grande imprensa em tom sensacionalista e precon­
ceituoso, sempre acabando por inverter situações, colocando o
assassinado como responsável pelo crime, e o assassino como
uma vítima das circunstâncias.
Nos Estados Unidos, a partir de 28 de junho de 1969, e
durante uma semana inteira, em Greenwich Village, Manhatt-
an, cerca de quatrocentos homossexuais saíram às ruas para
protestar contra a onda de repressão policial e prisões que vi­
nham ocorrendo em lugares gays, cujo clímax tinha se dado
na véspera, numa batida policial ocorrida em Stonewairinn,
bar homossexual localizado na Christoper Street, onde foram
feitos muitos feridos e efetuadas treze prisões. Por isso, 28 de
junho ficou como marco da organização de homossexuais, e
desde aquele ano foi comemorado como o “Dia do Orgulho
Gay”, “Gay Pride”. No Brasil, o 19 EBHO resolveu também
adotar essa comemoração, mas se achou que “orgulho gay”
não tinha muito a ver com o Brasil, e preferiu-se um título
que ressaltasse a necessidade de atuação sócio-política para o
MH: “DIA DA LUTA HOMOSSEXUAL”; a primeira vez
em que foi festejado foi em 1980, tendo os grupos cariocas
apresentado inclusive um dossiê de crimes praticados contra
homossexuais no Brasil. Em sinal de solidariedade com as lu­
tas de outros grupos estigmatizados, convidou-se para dirigir
os debates a militante negra e feminista Lélia Gonzales.
Em julho houve a formação de mais dois grupos: o
GOLS/ABC-SP, dia 12, e o BANDO DE CÁ, no dia 20. O
GOLS — GRUPO OPÇÃO À LIBERDADE SEXUAL tinha
como meta “trabalhar e divulgar no ABC a causa homosse­
xual, procurando não apenas criar novos espaços, como tam­
bém despertar o diálogo, o papo franco e verdadeiro sobre o
assunto, em virtude de ser a região carente de esclarecimen­
tos”. Quanto ao BANDO DE CÁ, surgiu após uma agitação
em Icaraí, realizada por alguns moradores de Niterói e mem­
bros do AUÊ/RIO, interessados na formação deste novo grupo.
Diziam no primeiro manifesto: “Um BANDO significa
multidão, reunião de bandidos, pessoas que habitam determina­
da região e possuem características comuns. Tudo isso vem de

105
encontro ao que somos, mulheres e homens aos bandos, margi­
nalizados e oprimidos em nossa sexualidade, e ao que querem
ser: pessoas, vivendo e convivendo sem diferenciações sexuais,
raciais, sociais, e, portanto, numa sociedade libertária. Ao as­
sumirmos o lado de cá, não pretendemos reafirmar a segrega­
ção de que somos vítimas, mas denunciá-la, ao definirmos a
face da opressão em cada fatia de nossas vidas”. Infelizmente,
este grupo teve curta duração.
A 10 de julho, durante a realização da 32^ Reunião
Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), os grupos AUê e SOMOS/RJ organizaram um gran­
de debate, que contou com a presença de mais de seiscentas
pessoas e a participação de outros grupos: GALF, OUTRA
COISA, SOMOS/SP, grupos feministas e negros do Rio e ma­
nifestos de BEIJO LIVRE, GGB e GATHO. A idéia de se
intervir na SBPC surgiu no I? EGHO, quando, após uma série
de discussões, ficou patente que a ciência, em quase todas as
suas expressões, pelo academicismo e cientificismo com que
trata o assunto, “é uma das maiores responsáveis pela atual
marginalização e opressão sofrida pelos homossexuais” (Lam­
pião, n? 27). O debate teve de ser realizado no hall do nono
andar do campus da UERJ, já que não foi concedida autori­
zação para ser feito nas reuniões oficiais da SBPC.
No entanto, apesar do estrondoso êxito conseguido com a
polêmica gerada em torno do tema “Homossexualismo, Re­
pressão e Ciência”, houve quem o criticasse. Francisco Bitten­
court, um dos redatores do Lampião, no mesmo número, afir­
ma que: “Os homossexuais foram dar vexame num saguão, ce­
dido com o maior desdém pelos promotores do Encontro (e as
bichas dizem que ‘invadiram o Congresso da SBPC’!) para
que os representantes de alguns grupos homossexuais usassem
mais uma vez de seus jargões mais batidos do que os do Par­
tido Comunista. O que o pessoal quer é entrar mesmo para o
PT e colher as migalhas de poder que lhes forem lançadas”.
Com isso começava-se a delinear a campanha contra os
grupos ativistas, realizada pelo jornal Lampião, que em seu
número 29 já não fazia mais menção alguma a respeito do
MH, sequer publicando a anteriormente costumeira seção:

106
“Escolha seu Grupo”. Estes reagiram, comentando com per­
plexidade o gradual afastamento do jornal, numa carta aberta
ao Lampião e assinada pelos AUê/RIO, SOMOS/RJ, BAN­
DO DE CÁ/NITERÓI, GALF, GGB e GOLS/ABC.
O periódico passa então a acusar nominalmente seus
“detratores” e adquire uma linha claramente revanchista e an­
ti-ativista. Esta situação vai perdurar até o último número, o
37, em junho/81. Foi lamentável esta disputa por todos os
motivos: os grupos perderam um espaço importante para a
veiculação de suas idéias; os leitores do jornal se desmotiva­
ram em relação aos grupos; e o jornal desgastou-se junto de
uma de suas bases de sustentação, vindo a implodir por ques-
tiúnculas internas.
A partir do racha do SOMOS/SP, o OUTRA COISA
iniciou um movimento de trabalho junto com os grupos
EROS e LIBERTOS, formando o MHA — MOVIMENTO
HOMOSSEXUAL AUTÔNOMO, em oposição ao “excessivo
engajamento político-partidário” de que acusavam o SOMOS.
Segundo o MHA: “Autonomia significa termos a nossa pró­
pria análise e as rédeas dos nossos destinos como organização
e a prioridade na discussão e defesa da questão homossexual.
Autonomia significa entender, na prática, que somos um mo­
vimento político, mas não partidário. Isso não quer dizer au­
sência de discussões sobre temas relevantes da nossa situação
política-social, mas que não sejamos utilizados em nome de
discursos ‘mais amplos’ ou ‘mais importantes’. Ou em nome
de interesses que não são os nossos”.
Em setembro de 80 aparece o grupo NÓS TAMBÉM —
GRUPO DE ATUAÇÃO HOMOSSEXUAL, em João Pessoa
(PB). Entendendo que as manifestações artísticas eram uma
das melhores formas de superação da dicotomía teoria/práti­
ca, esse grupo a elas deu ênfase, através de filmes super-8, es­
petáculos teatrais, produções de artes plásticas, realizando até
uma série de pichações favoráveis ao Movimento Homossexual,
aproveitando a onda de graffiti que há alguns anos predomina
nas grandes cidades.
Na mesma época surgiram também dois grupos homosse­
xuais exclusivamente de negros; o GRUPO DE NEGROS

107
HOMOSSEXUAIS (de SP), por um ex-integrante do SOMOS
e o ADÊ-DUDU (de Salvador), por um ex-integrante do
GGB. ADÊ-DUDU significaria “homossexual negro”, na lin­
guagem do candomblé. Ambos os grupos se queixavam do
pouco espaço que havia dentro do MH para a discussão do
problema específico do negro, ao mesmo tempo em que não
encontravam dentro do movimento negro um clima para a dis­
cussão de práticas homossexuais.
Resta lembrar ainda a existência de mais três grupos:
COLETIVO ALEGRIA ALEGRIA, TERRA MARIA —
OPÇÃO LÉSBICA (ambos em SP) e DIALOGAY (de Ara­
caju, SE), os três surgidos mais ou menos na mesma época,
final de 80. O primeiro foi organizado em outubro/80 por
ex-mtegrantes do SOMOS e do GALF, e funcionou como nú­
cleo de estudos e debates. O segundo, definiu-se a partir do
nome: “Terra porque é energia, algo que está nascendo da
natureza. Muita força. Maria, um nome comum que engloba
tudo, muita coisa. Um nome que está em toda parte. Opção
lésbica porque é a nossa opção, uma identificação”. Pergun­
tadas se a criação de mais um grupo não enfraquecia o movi­
mento, responderam: “é com a pluralidade que teremos um
confronto de idéias. Não estamos disputando o poder com os
outros, rivalidade, nada disso. Se há divergência é quanto à
metodologia”. DIALOGAY, embora com muitas dificuldades,
sobrevive e ainda continua de pé, inclusive com a publicação
do seu boletim, vendido em bancas de jornais de Aracaju.
O MH, que nos seus áureos tempos (segunda metade de
80) chegou a contar com dezessete grupos pelo país, alguns
deles com centenas de ativistas, a partir de 81 sofre notável
descenso (não só ele como também os grupos de mulheres e
negros), com a extinção dos menores e esvaziamento geral
das atividades. Possíveis causas: briga entre o Lampião e os
grupos, com uma divulgação negativa que desentusiasmava os
possíveis interessados; um certo cansaço dos ativistas, desgas­
tados ao longo do processo e dos conflitos de 80; as condi­
ções gerais da conjuntura sócio-política do país, nos percalços
da “abertura” do governo Figueiredo, junto aos impasses dos

108
diversos partidos de oposição. Como tentativa de sobrevivên­
cia, o AUÊ aliou-se ao SOMOS/RJ passando a funcionarem,
na prática, como um só grupo. Em São Paulo, amainou-se o
clima de hostilidade entre os ativistas, a ponto de comemora­
rem juntos, em maio de 82, os quatro anos do MH brasileiro.
Houve momentos memoráveis naquele ano de 80: as dis­
cussões em faculdades e as moções lidas em vários eventos
significativos da política brasileira. Em 13 de junho, SP, qua­
se mil pessoas em passeata na rua: “homossexuais” e prostitu­
tas protestando contra a violenta repressão (principalmente
aos travestis), exercida pelas forças policiais do delegado Ri-
chetti. Panfletos foram distribuídos, denunciando arbitrarieda­
des, espancamentos, prisões ilegais, humilhações, curras.
Ainda em junho, dias 14 e 15, o 19 Congresso da Mulher
Fluminense, no Rio, onde se conseguiu, pela primeira vez num
encontro heterogêneo deste tipo, moção de solidariedade às
mulheres “homossexuais”, empenhadas na luta contra a vio­
lência e a discriminação (anexo n? 7); fechando o mês, dias
21/22, em SP, o Encontro de Grupos Feministas em Vali-
nhos, da maior importância para clarear rumos e expectativas
comuns dos movimentos feminista e homossexual.
Em 28-8-80, o repúdio aos atentados terroristas, através
de nota entregue ao CBA, e outra aos Sindicatos dos jorna­
lemos e aos jornais incluídos no Listão (anexo n? 2). Em 16
de outubro de 80, outro momento a ser lembrado com emo­
ção foi o do ato público em que grupos feministas e homosse­
xuais se juntaram para protestar contra a onda de assassi­
natos, gigantesca na época (anexo 3). Em 20-11-80, a
comemoração do “Dia da Consciência Negra” e aniversário da
morte de Zumbi, na Cinelândia (anexo n° 4). O MH esteve
presente em momentos importantes da vida brasileira, e se
no fim transcrevo cinco textos, é para demonstrar a vincula-
ção de sua luta com outra mais ampla, que também passa pela
sexual para atingir seus objetivos democráticos.
No ano de 82, já houve alguns marcos significativos, a sa­
ber, maio: em SP, a comemoração dos quatro anos do MH,
com uma semana de debates, filmes e festas no Teat.ro Ruth
Escobar, em promoção conjunta de todos os grupos paulistas;

109
¡unho: no Rio, a comemoração do “Dia da Luta Homosse­
xual”, numa promoção do AUÊ/Rio e SOMOS/RJ, através de
debates no Teatro Ipanema, local lotado (gente em pé por
todos os lados), contando com a participação de Herbert Da­
niel, Eduardo Mascarenhas, Lélia Gonzales, Glauco Mattoso
e show de Lecy Brandão, Bráulio Tavares, GANG, entre ou­
tros; julho-, liderados pelo GGB e NÓS TAMBÉM, o MH par­
ticipa intensamente da 34? Reunião Anual da SBPC, provo­
cando debates, intervindo e denunciando os preconceitos pseu-
damente científicos contra a livre orientação sexual. Vale sa­
lientar também a campanha do abaixo-assinado, com mais de
vinte mil adesões, contra o item 302.0 do CID, adotado pelo
INAMPS. Ainda em julho, em Recife e Olinda, o GATHO
promove um curso sobre homossexualismo, dentro do Encon­
tro Nacional de Estudantes de Medicina, atingindo plenamente
suas intenções de desmascarar a ideologia repressora exercida
por grande parte da classe média.

Conclusão

O MH, em seus quatro anos de bata/Aa, se teve erros e


falhas (esta rima é inevitável...), também alcançou alguns
objetivos importantes: amadureceu seus membros, que já con­
seguem uma participação política sem medo de perder a auto­
nomia do movimento; esclareceu melhor a opinião pública,
através dos órgãos de divulgação e de debates, sobre a prática
homossexual como uma das possíveis orientações sexuais do ser
humano; e influenciou alguns partidos, através de sua atua­
ção, principalmente o PT: enquanto em 79 Lula dava entre­
vista dizendo que desconhecia a existência do homossexualis­
mo entre a classe operária (Lampião, n*? 14), já em 82 a
plataforma eleitoral nacional do PT afirma, em seu item 7:
“SOMOS TODOS IGUAIS: CHEGA DE DISCRIMINA­
ÇÃO: O Brasil que queremos não é apenas o povo comendo,
morando, tendo saúde, se vestindo e se educando. A vida que
almejamos tem que ser baseada sobretudo numa relação pro-

110
fundamente humana e fraternal, igualitaria, entre as pessoas,
sem nenhum tipo de discriminação”.
Neste tópico existe uma sucinta análise dos dramas cru-
ciantes dos diversos grupos estigmatizados, inclusive afirman­
do: “Os homossexuais são humilhados e discriminados, trata­
dos como doentes ou caso de polícia. (...) £ preciso acabar
com todas as formas de discriminação. As minorias, indios e
homossexuais, têm que ser integralmente respeitadas”. Eviden­
temente, uma tão grande transformação não acontece poi
mero acaso, e sem dúvida alguma foi obra também do “duplo
ativismo” de algumas pessoas no PT e no MH. E é importante
que se leve a discussão de sexualidade inclusive para a área
parlamentar, para que se abra cada vez mais tribunas e espa­
ços de intervenção, ensejando também mudanças de leis ana­
crônicas que não atendem mais à realidade social.
Por enquanto, estamos engatinhando em lutas político-
apartidárias. Nosso estágio ainda é o da mobilização da opinião
pública através do grito: berra-se o mais possível até que
nosso clamor desperte a atenção do maior número de pessoas.
Mas não se trata de uma gritaria histérica. £ histórica. Estes
grupos ainda estão na batalha, procure por eles:

AUè/RIO — Caixa Postal n? 25029 — CEP: 20552 — RJ


D1ALOGAY — Caixa Postal n<? 298 — CEP: 49000 —
Aracaju — SE
GALF — Caixa Postal n? 62618 — CEP: 01000 — SP
GATHO — Centro Luiz Freire, R. 27 de Janeiro, 181 —
Carmo — CEP: 53000 — Olinda — PE
GGB — Caixa Postal n.? 2552 — CEP: 40000 — Salvador
— BA
NÓS TAMBÉM — R. Orris Soares, 51 — Castelo Branco —
CEP 58000 — João Pessoa — PB
OUTRA COISA — Caixa Postal n<? 62699 — CEP: 01000
— SP
SOMOS/RIO — Caixa Postal n"? 3356 — CEP; 20100 — RJ
SOMOS/SP — Caixa Postal n? 22196 — CEP: 01000 — SP

♦ » ♦

111
Comecei com uma frase, vou terminar com outra, ouvida
de uma líder de um grupo lésbico-feminista de SP. Falava-se
de aborto e a moça foi categórica: enquanto feminista era a
favor; mas enquanto lésbica o problema não lhe dizia respeito.
Para ela, algumas questões não atingiam as “homossexuais”,
como se elas fossem categoria à parte, e não, simplesmente,
MULHERES.
E é isso o que a repressão faz conosco, até mesmo com
quem tenta questionar este estado de coisas: confunde-nos a
tal ponto que passamos a ter uma vida dupla, bipartida, es-
facelada, dicotomizada, esquizofrênica. E quanto mais se di­
vide, mais se conflitua, mais se quebra uma pessoa em várias
partes para melhor subjugá-la. Escapar desta armadilha deve
ser meta prioritária, chega de fazer das manifestações do pra­
zer (desde o desejo até a vontade de viver) uma mercadoria
de luxo, inacessível ou supérflua. Não há classe no mundo
que precise só de pão para ser feliz. Não queremos uma vida
penosa, apenas com deveres e obrigações, difícil de se supor­
tar, onde sobreviver seja o brinde máximo e todo o restante
pequenos prêmios de consolação... A alegria, a satisfação e
o prazer também são gêneros de primeira necessidade.

FIM

PUBLICAÇÕES DA “IMPRENSA GAY”

DÉCADA DE 60

O Snob
Le Femme
Subúrbio à Noite
Gente Gay
Aliança de Ativistas Homossexuais
Eros
La Saison
O Centauro
O Vic
O Grupo

112
Darling
Gay Press Magazin
28 de Abril
O Centro
Os Felinos
Opinião
O Mito
Le Sophistique
O Galo
Na Bahia:
O Gay
Gay Society
O Tiraninho
Fatos e Fofocas
Baby
Zéfiro
Little Darling
Elio

DÉCADA DE 70

Colunas de Celso Curi, de Glorinha Pereira, de Fernando


Moreno, respectivamente nos jornais: Última Hora (SP),
Jornal de Copacabana (RJ), Diario de Notícias (RJ)

Entender
Journal Gay Internacional
Lampião
Peteco e Rose*****
Boca da Noite
Rádice*****
Jornal Dobrabil*****

DÉCADA DE 80

Macho-Sex*****
AUE/Jornal de Sexualidade*****
Iamuricumá

113
Coverboy
Play Gay
Exclusive Gay
Luta e Prazer*****
Revista Dedo Mingo*****

PUBLICAÇÃO DOS GRUPOS DO MH BRASILEIRO


1979 — Suruba — grupo Somos/SP (antes do racha)
1980 — Boletim do Gatho (PE)
— Corpo — grupo Somos/SP (após o racha)
1981 — Chanacomchana — grupo Galf/SP
— Manga Preta — grupo Beijo Livre/Brasília
— Caderno de Textos, do MHA — SP
— O Bandeirante Destemido (Guia Gay de SP) — gru­
po Outra Coisa-SP
— Boletim, do Dialogay (SE)
— Guia Gay da Bahia — Grupo Ggb — BA
— Boletim, do Ggb — BA
1982 — Boletim, do Auê e Somos/RJ

Obs.: Essas publicações seguidas de asteriscos (♦♦*♦♦)


não são exclusivamente “homossexuais”, embora abram gran­
de espaço para o assunto.

ANEXO N? 1

MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE AO I? CONGRESSO


DA MULHER FLUMINENSE

“Representado no F Congresso da Mulher Fluminense o


AUÊ, grupo pela livre opção sexual, se une às suas irmãs de
opressão em todas as reivindicações específicas de nossos di­
reitos humanos, na luta ampla, geral e irrestrita contra todo
tipo de massacramento responsável pelo esvaziamento de seu
discurso ideológico, ao considerá-las minoria, quando, na ver­
dade, elas são maioria numérica da população e força trans­
formadora desta sociedade discriminatória e antidemorcática”.
Rio, junho/80

114
ANEXO N? 2

CARTA ABERTA AOS SINDICATOS DOS JORNALEIROS


E AOS JORNAIS INCLUÍDOS NO LISTÃO CONTRA
OS ATENTADOS TERRORISTAS

Através da imprensa, o Grupo Aué/Rio — pela livre


opção sexual e de liberação homossexual — tomou conheci­
mento de bombas colocadas em bancas onde são vendidos jor­
nais alternativos, os mais ativos em denúncias às arbitrariedades
diárias.
Estranhamos que a polícia, sempre tão ciosa de sua efi­
ciência quando se trata de ameaças esquerdistas, se mantenha
omissa frente aos fatos que evidenciam um terrorismo de
direita.
Nós que lutamos pela liberdade sexual só a podemos con­
ceber dentro de uma sociedade democrática. Assim, nos solida­
rizamos com os jornaleiros e os jornalistas ameaçados no cum­
primento do seu dever, e condenamos todo e qualquer aten­
tado contra as liberdades humanas.
Rio, julho/80

ANEXO N<? 3

MOÇÃO DE SOLIDARIEDADE LIDA NO ATO


PÚBLICO DE 15-10-80

Nós, do Grupo Auê — pela livre opção sexual e contra


a repressão homossexual, queremos nos solidarizar com todas
as mulheres oprimidas e com todas as pessoas» que sofrem
coação por seus atos homossexuais, a elas nos juntando nesta
manifestação, contra o machismo, contra a violência.
Não queremos a repetição de relações autoritárias entre
dominador e dominado; não queremos a lei inocentando cul­
pados e condenando as vítimas das suas agressões, em nome
de uma hipócrita legítima-defesa da honra; não queremos a
deturpação e o sensacionalismo por parte dos meios de comu­

115
nicação, responsáveis por uma serie de estereótipos sobre as
mulheres e as pessoas consideradas sexualmente desviantes.
Basta de manipular lemas como “liberdade”, “ciúme”, “pai­
xão”, “honra”, “dignidade”, “respeito”, conceitos que sempre
estiveram a serviço do poder e de suas arbitrariedades.
A par de uma transformação político-econômica, quere­
mos uma profunda mudança cultural, permitindo a cada ho­
mem e a cada mulher o direito à sua própria vida, à opção
de seus caminhos, ao prazer, ao exercício pleno de sua sexua­
lidade, ao acesso a meios contraceptivos, se assim o deseja­
rem, mesmo que essa atitude seja contrária aos propósitos lu­
crativos de uma sociedade preocupada tão-somente com seus
próprios interesses e com a manutenção de falsas separações
entre homens e mulheres, entre homossexualidade e heterosse-
xualidade.
O machismo que conduz à violência sobre as mulheres é
o mesmo que permite a repressão diária, desde a prisão até
os assassinatos de todas as pessoas que vivenciam sua homos­
sexualidade, por acharem estas à margem dos padrões consi­
derados legítimos pela sociedade patriarcal. Portanto, a mu­
lher que pratica atos homossexuais tem seu assassinato dupla­
mente justificado, na medida em que não exerce o papel de
reprodução que lhe é historicamente destinado.
Todos esses crimes atentam contra os direitos humanos
e denunciam uma sociedade calcada não só nas disparidades
sociais, mas também nas sexuais e raciais. Cabe a todos nós
a luta pela liberdade em todos os níveis, e por uma sociedade
mais justa e democrática.

ANEXO N? 4

MOÇÃO DE APOIO LIDA NO DIA DA CONSCIÊNCIA


NEGRA, 20-11-80, NA PRAÇA CINELÂNDIA

Quando da comemoração do 20 DE NOVEMBRO, Dia


da Consciência Negra e aniversário da morte de Zumbi, o

116
Grupo Auê pela livre opção sexual, vem prestar sua solidarie­
dade a todos aqueles que são alvos de qualquer forma de
discriminação por pertencerem à raça negra.
O negro tem sido sistematicamente oprimido ao longo da
História do Brasil e o é ainda hoje quando, sob uma falsa
noção de “democracia racial”, se pretende escamotear todo um
aparato repressivo destinado a negar-lhe sua identidade en­
quanto pessoa e a sua importância na construção da socieda­
de brasileira.
Em nome da necessidade de exploração colonial, toda
uma série de estereótipos e preconceitos foram erigidos e re­
definidos até os nossos dias para perpetuar o sistema de do­
minação capitalista, mantendo-se a condição do negro como
mão-de-obra servil: o escravo de ontem é o operário de hoje
enquanto os senhores da Casa Grande se sucedem de pai para
filho reconstruindo sempre o patriarcalismo e seus mecanis­
mos de opressão.
A mulher e o homem negros que vivenciam sua homosse­
xualidade tem sua opressão ainda mais justificada em função
de sua preferência sexual. À violência determinada pela sua
cor numa sociedade racista é acrescida a violência determina­
da por sua opção sexual numa sociedade machista. O negro
que exerce sua homossexualidade não é somente abordado
por policiais, preso, torturado, preterido no trabalho, discri­
minado na escola, no sindicato, no partido por sua negritude,
mas também por ser considerado sexualmente desviante. Este
negro é, portanto, duplamente reprimido ou ainda mais, caso
se trate de uma mulher e seja pobre.
Acreditamos assim que a construção de uma sociedade
realmente capaz de garantir a todos uma verdadeira democra­
cia, numa luta de todos os oprimidos, só pode ser alcançada
através de uma transformação capaz de abolir também o ra­
cismo e o machismo, conceitos e atitudes que algumas vezes
se aproximam e até se confundem. Por isso, nós, que lutamos
pela livre opção sexual e contra a discriminação à homosse­
xualidade, repudiamos toda e qualquer forma de racismo.
CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL, SEXUAL E
À HOMOSSEXUALIDADE!

117
CONTRA A VIOLÊNCIA SOBRE HOMENS E MU-,
LHERES NEGROS QUE VI VENCIAM SUA HOMOSSE­
XUALIDADE!
PELA LIVRE OPÇÃO SEXUAL!
Rio, 20-11-80

ANEXO N° 5

CARTA ABERTA AOS CANDIDATOS ÀS


ELEIÇÕES DE 82

Os grupos Auê e Somos/RJ de Liberação Homossexual


vêm trazer a discussão pública uma questão que usualmente
tem sido esquecida pelas forças políticas em nossa sociedade:
a questão homossexual.
Estamos apresentando os seguintes pontos mínimos que
achamos indispensáveis para que possamos viver no Brasil
como pessoas íntegras e no pleno exercício de nossos direitos
humanos.
Esperamos com interesse a sua opinião sobre os pontos
seguintes, pois é nossa intenção divulgar as respostas reco­
lhidas como parte de uma campanha de esclarecimento da
opinião pública nesta atual fase pré-eleitoral.
1 — Apoiar reforma constitucional que, no capítulo dos
direitos individuais, acrescente a proibição de discriminação
pela orientação sexual, além das já existentes por raça, credo
e sexo. Ficaria assim assegurado o direito à livre escolha do
parceiro sexual entre pessoas maiores, sejam ou não do mes­
mo sexo, sem que por isso possam ser discriminadas de algu­
ma forma.
2 — Encaminhar e apoiar projetos de lei que proíbam
a discriminação pela orientação sexual em todos os âmbitos
específicos onde seja necessário, por exemplo, no trabalho,
moradia, etc.
3 — Agir junto aos Ministros da Previdência Social e
da Saúde para que haja supressão do item 302.0 “homosse-
xualismo” do Código Internacional de Doenças, já que a livre
orientação sexual é um direito do indivíduo, que não pode

118
por isso ser considerado criminoso, nem doente, nem imaturo,
nem desviante, nem incluído em qualquer outra categoria dis­
criminatória.
4 — Colaborar para o fim da repressão, prisão e violên­
cia que muitas vezes, ao arrepio da lei, são cometidas até mes­
mo pelas forças policiais contra pessoas de comportamento
qualificado de homossexual. Por exemplo, categorias criminais
ambíguas como atentado ao pudor público ou ato obsceno são
usadas regularmente para reprimir manifestações de afeto en­
tre pessoas do mesmo sexo.
5 — Denunciar a veiculação, nos diversos órgãos de im­
prensa e de comunicação, de mensagens que fortaleçam pre­
conceitos e discriminações contra indivíduos a partir de sua
orientação sexual.
6 — Lutar para que da Lei de Imprensa seja eliminado
o item de “preservação da moral e bons costumes”, usado
para incriminar pessoas e jornais que discutam homossexua-
lismo.
7 — Lutar para que o conceito de legítima defesa se res­
trinja à defesa da vida, e não à defesa da “honra”, pois ba­
seados em tal ambíguo conceito muitos homicídios têm sido
cometidos e permaneceram impunes.
8 — Promover a inclusão nos Programas de Educação
Sexual do direito à livre orientação sexual, incluindo discus­
sões sobre homossexualismo como uma das formas de prefe­
rência sexual.
9 — Reconhecer e apoiar a existência pública dos grupos
organizados de liberação homossexual, entidades que lutam
pelo direito à livre orientação sexual dos indivíduos, sem que
por isso sejam vítimas de preconceitos e violências.
10 — Lutar por uma sociedade mais justa, onde sejam
eliminadas todas as formas de opressão e exploração, incluin­
do aquelas que atualmente são usadas contra os diversos se­
tores oprimidos, tais como as mulheres, negros, índios, pes­
soas de orientação homossexual e todos aqueles que vivem
em condições sub-humanas.

119
ANEXO

A SÍNDROME DO PRECONCEITO
HERBERT DANIEL

Sob o reino de Alexandre VI era tal a licenciosidade na


Terra que chegou aos ouvidos do Senhor o tremendo clamor.
No próprio Céu, reúne-se um urgente Concilio de maiorias
para pôr fim à dissolução dos costumes que começava na pró­
pria família papal, os Bórgias. Entra em cena Deus em pessoa.
E já não é mais aquele: é um velho senil, com graves proble­
mas de saúde, locomovendo-se com dificuldade apoiado em
seus anjos. O celestial Concilio, analisadas as circunstâncias,
pesadas as impotencias do Todo Poderoso, não encontra senão
uma alternativa: convoca o Demônio que, instado pelo Senhor,
inventa a punição máxima para o deboche. Assim nasce na
Terra a sífilis.
Pelo menos essa é a versão dada por Oskar Panizza, um
autor suíço, no “Concilio do Amor”, peça escrita no final do
Século XIX que provocou escândalo e contrariedades ao au­
tor. Naturalmente, ele conheceu a usual panoplia de persegui­
ções e sanções da censura obscurantista. Mesmo depois do
advento dos antibióticos e da conseqüente banalização da ter­
rível doença — tornada apenas mais uma infecção bacteriana
facilmente curável — o tema guarda atualidade e provoca po­
lêmicas.
Sem o talento de Panizza, muitos — jornalistas, médicos
e outros — tentam reescrever a versão contemporânea do
“Concilio do Amor”, acentuando apenas um moralismo vesgo
que justifica punições aos que pecam na carne e na fraqueza
dela. Eis que, senhores e senhoras, entra em cena o AIDS-
SIDA (Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida), a sífilis da
era atômica. Castigo feroz: como nova cena bíblica, o raio
destruidor arruina Sodoma. Pobre Sodoma.

121
Assim, pouco antes do começo desta vacilante década
dos 80, um estranho mal chamou a atenção dos médicos. De
todas as curiosidades, tipo “acredite se quiser”, da novidade
mórbida, uma serviu de brilhante chamariz: quase todos os
atingidos pela entidade patológica recém-descoberta eram ho­
mossexuais. A doença (ou doenças) nasceu nos Estados Uni­
dos, sociedade particularmente fértil na gestação de bizarros
fatos sociológicos. Em poucos meses espraiou-se a calamidade,
com características sensacionalistas de nova peste, como aque­
las que varreram a Idade Média. As informações começam a
circular, de uma forma evidentemente pouco “científica”: o
tom dos relatórios que chegavam aos jornais faziam voltar a
“objetividade médica” aos tempos ancestrais das atrações de
feira. Como naquela época onde os saltimbancos usavam cer­
tos dados “científicos” (o éter, a teratología, etc) para atrair
um público ingênuo que buscava sensações fortes, a imprensa
veiculou (veicula) os fatos e dados da “epidemia” com evi­
dente oportunismo caça-níquel. Afinal, as bichas sempre fize­
ram rir. Nada mais natural do que contar a “última da bicha”,
a piada macabra do câncer, o único câncer alegre, ridente,
sorridente: o horror desmunhecante torna-se o oh-rir. Pura
viadagem.
Se por um lado os fatos assustadores serviam como apó­
logo sem piedade para demonstrar a vingança terrível do Bem
— através do Mal — contra os caídos, por outro lado uma
certa autoproteção mecânica dos ofendidos levava a outra ati­
tude, mais ou menos incoerente: a recusa dos fatos. Muitos,
procurando defender a “comunidade homossexual”, simples­
mente negavam a existência do perigo ou fantasiavam sobre
causas conspirad vas do “câncer” (teria sido a CIA?...)
Entre o sensacionalismo que insuflava o pânico (forma
obscurantista do exercício da liberdade de imprensa nas nossas
sanitárias sociedades democráticas) e o equívoco de supor
ações criminais dos homófobos, a perda de tempo só servia para
desinformar todos e adoecer muitos. Foi assim que o mal se
espraiou nos países desenvolvidos. Foi assim que o mal che­
gou às terras brasileiras, em meados de 1983. Agora, enquanto
escrevo, com uns poucos mortos e alguns feridos, a guerra

122
medra devagarzinho. Os elementos da tragedia já estão a pos­
tos. Primeiro, o pânico: em São Paulo a reação é mais preo­
cupada; no Rio ainda não se acredita na gravidade da situa­
ção. Segundo, a incompetencia ou insuficiencia das instalações
da Saúde Pública. Terceiro, a vigência de um preconceito que
impede que a palavra “homossexual” seja escrita ou pronun­
ciada fora de certos antros específicos — entre os quais as pá­
ginas policiais, os relatórios médicos ou panfletos e livros semi-
clandestinos. As forças do destino, direis?

Pânico e Informação
A primeira vítima registrada da AIDS, no Brasil, foi um
famoso costureiro. Certamente adquiriu o vírus em terras ame­
ricanas. Os outros casos descritos estavam no mesmo caso:
trouxeram dos Estados Unidos a misteriosa doença. Imediata­
mente a imprensa se mobilizou e a homossexualidade — é
claro! — chegou às primeiras páginas, arrastada pela medi­
cina. É difícil pensar que tal questão pudesse romper o silên­
cio pudibundo e preconceituoso dos jornais a não ser por ra­
zões médicas e policiais.
Antes mesmo que o mal tivesse alguma importância epi­
dêmica, o estardalhaço foi tal que a AIDS passou a ser mais
popular que a fome ou as tradicionais doenças infecto-conta-
giosas, que no entanto matam milhares de brasileiros todos os
anos.
A primeira questão é: há razão para tamanha cobertura
de uma questão ainda tão obscura? Por que a imprensa se
preocupou tão intensamente com isso? Por seriedade? E no
entanto essa mesma imprensa deixa de lado questões urgentes
que ameaçam a própria sobrevivência das populações (pode­
mos nos esquecer das catástrofes ecológicas? Da situação eco­
nômica? Da situação da saúde pública no país?). Por que será
que esta síndrome ganhou os privilégios da maior ameaça à
vida saudável dos brasileiros?
Sejamos suficientemente ingênuos para supor que o esfor­
ço jornalístico seja voltado ao serviço da informação pública.

123
Considerando a gravidade real do AIDS, é natural a preocu­
pação e a evidenciação do problema. O que não se justifica é
a geração do pánico — a anti-informação por excelência — e
a leviandade da veiculação de informações contraditórias. Al­
guma coisa vai mal com a invenção de Gutemberg e não é só
o preço do papel e os cochilos dos revisores.
A atitude da imprensa — escrita, falada, televisada —
que saudou o “câncer gay” e pediu passagem para o precon­
ceito teve algumas características marcantes. Os títulos das
matérias usam adjetivos dramáticos e a síndrome ganha epíte­
tos tão coloridos quanto são sugestivas as metáforas para a
descrição dos fatos. O tom passa sutilmente do relatório mé­
dico ao pregão profético, embarcando pelas viagens de ficção
científica. E não se pode esquecer da galhofa. Alguns exem­
plos do noticiário:

“Perigo Cubano” (Zero Hora, Porto Alegre, 28-2-83).

“Mal particular — Hormônios causariam doença entre


homossexuais” (Veja, 14-7-82).

“Síndrome Gay e Evita (Perón)” (Tribuna da Imprensa,


Rio, 9-6-83).

“Bancos de sangue ainda desprevenidos contra Aids”


(Folha de S. Paulo, 9-6-83).

“Pesquisa determinará entre homossexuais quem tem


‘câncer-gay’”. (Jornal do Brasil, 9-6-83).

“Já foram detectados sete casos da doença, no Brasil”.


(Folha de S. Paulo, 12-6-83).

“América aponta 3 vírus como suspeitos de causar càn-


cer-gay”. (Jornal do Brasil, 11-6-83).

“Medo de AIDS em Campinas aumenta procura de mé­


dico” (O Globo, 15-6-83).

124
“Dois casos suspeitos de “câncer-gay” são examinados na
Unicamp”. (Jornal do Brasil, 15-6-83).

“AIDS provoca pânico entre os americanos’’ (O Globo,


16-6-83).

“Médico francês consegue isolar vírus do AIDS” (O


Globo, 21-6-83).

“Médico anuncia vacina contra o câncer-gay” (O Globo,


22-6-83).

“Nem câncer, nem gay — A terrível doença dos anos 80”


(O Dia, 26-6-83) — (A ilustração dessa matéria, que
explicava que a AIDS não é apenas um câncer, nem de
exclusividade dos homossexuais, mostrava um romântico
casal de rapazes caminhando numa idílica paisagem for­
mada pela figura corrosiva de um caranguejo. Se as pala­
vras dizem "nem um, nem outro’’, fica por conta da ima­
gem a informação definitiva: câncer E dos homossexuais.
Sutil.').

“O enigma que mata” (Veja, 15-6-83).

“Peste-gay ataca mais dois em SP” (Luta Democrática,


14-6-83).

“Peste-gay bota toda a bicharada apertadinha” (Folha de


O Povo, 14-6-83).

“Médico não quer sangue de gays” (idem).

São perceptíveis pelo menos dois aspectos:


1) Toda e qualquer informação passa para a letra de forma
sem maior verificação. Hipóteses são apresentadas como fatos.
Suposições passam a ser notícias.
2) A grande questão é a tônica dada à MEDICALIZA-
ÇAO do fenômeno e, por extensão, das homossexualidades.

125
Não penso que tudo seja uma trama sórdida dos jornais.
Pelo contrário. Eles apenas se deixam levar — alguns jorna­
listas inclusive com toda seriedade profissional e bastante ho­
nestidade — por pressupostos ideológicos que não sonham —
ou ousam — criticar.
É claro que todos insistem num apelo, patético e bem in­
tencionado: é preciso advertir “a comunidade gay” (sic) do
perigo que corre. É preciso “mobilizá-la” para “informá-la”,
reivindicam os médicos.
Muito bem, muito bonito. Mas que informações devem
ser transmitidas? As médicas! E no entanto os próprios médi­
cos revelam-se bastante perplexos com o grau de conhecimento
que possuem sobre a AIDS.
Pouco adianta uma “informação médica” neste caso. Os
médicos não têm feito senão transmitir dados estritamente téc­
nicos ou revelar suas próprias perplexidades.
Naturalmente é preciso fazer circular amplamente a infor­
mação. Mas, neste caso, é preciso considerar que: a) além das
informações médicas existem outras, sociais e políticas, abso­
lutamente imprescindíveis para a compreensão da AIDS e de
seus mecanismos epidêmicos; e, b) os “homossexuais” além de
“receberem” informação devem também informar a comunida­
de médica — que parece entender tão pouco da questão — e
também a própria comunidade que produz informação, que
parece tudo desconhecer sobre as condições e circunstâncias
das homossexualidades.
Ê exatamente na garantia desse diálogo, dessa troca de
informações, que se poderá efetivamente criar alguma condi­
ção de um combate eficaz para evitar o espraiamento da AIDS.
Naturalmente isto implica uma postura do corpo médico mais
democrática do que a que assume em relação a outros corpos
sobre os quais se considera com direito de manipulação, como
“competente”, sem aceitar a reciprocidade de intervenção.
A grande questão para a Saúde — e não só para o caso
da AIDS — é evitar a medicalização do fenômeno humano: o
corpo é um espaço político; sua medicalização é uma forma de
seqüestro de direitos democráticos.

126
Parece-me que este é o pressuposto mesmo para uma
abordagem coerente da questão levantada pela AIDS. Ê isto
que a imprensa tem abandonado, prestando um enorme desser­
viço à sociedade. Popularmente — o que evidencia a falência
da informação — o que sobra é: há um câncer, perigoso e
transmissível, que é espalhado pelos homossexuais. Novos le­
prosos que aguardam a instalação de segregados lazaretos. O
horror nunca nos poupará, irmãos.

Saúde e Pública

Numa das cenas mais perfeitas do cinema brasileiro, na


obra-prima de Walter Lima Jr., Inocência, um leproso (ai, as
palavras! Que carga de violência carregam!) aproxima-se a ca­
valo do médico que, horrorizado, comunica que “não recebe
dinheiro” para tratar aquela moléstia. O homem queria se in­
formar, apenas. Faz duas perguntas, num diálogo magistral:
“Cura?” Não, responde o médico. “Pega?” Pega, afirma o
doutor. O homem se afasta, perdidas todas as esperanças e pe­
netra no inferno da sua solidão de banido.
Aí está, em resumo, a atitude do preconceito da medicali-
zação. A grave ameaça que paira sobre nossos corpos — e
em conseqüência sobre nossas consciências — não é uma
doença qualquer, mas a forma social de abordagem desse mal
qualquer. A medicalização é uma forma de indispor o corpo
ao convívio social, eliminando qualquer recurso à solidariedade.
A atitude inversa da medicalização do corpo, ou seja, a
ação coerente de um profissional médico capaz de intervir po­
sitivamente na criação coletiva da Saúde, respondería essas
questões com uma relativização que considera, por um lado, a
própria história social e, por outro, os dados políticos da cha­
mada “saúde pública.”
“Cura?” Ainda não, respondería o médico. Mas a cura
não depende do médico e do seu exclusivo saber. Depende
também do considerado doente e do seu meio social. A doen­
ça não é meramente um fenômeno individual que dependeria
de relações mecânicas entre um agente etiológico e um corpo

127
afetado ou predisposto, inclusive considerando-se aqui a situa­
ção social do desenvolvimento da moléstia. A doença, em si
mesma, é um fenômeno social, determinado e desenvolvido a
partir de certas relações sociais historicamente dadas. A “cura”
nunca é intervenção no individual, mas complexo conjunto de
práticas sociais transformadoras. Que são de responsabilidade
de toda a comunidade sujeita à doença.
“Pega?” Em certas condições a doença se transmite. Com
a ajuda dos sujeitos à transmissão é possível entender essas
condições.
No caso da AIDS as duas perguntas têm sido respondidas
da forma mais simplista — ou seja, “medicalizada”. Trata-se,
segundo todas as evidências, de um mal para o qual não se
conhece remédio, provocando uma altíssima taxa de mortali­
dade. O mecanismo fundamental da síndrome é a perda de de­
fesas imunológicas do corpo, sujeitando-o a infecções que se
instalam e se desenvolvem de forma brutal.
Duas grandes hipóteses existem sobre a origem da síndro­
me. Ou se trata de um vírus já conhecido que estimulado por
certas condições de vida tomar-se-ia patogênico, ou trata-se de
um vírus completamente desconhecido até o dia de hoje. De
qualquer forma, o vírus destruiría o sistema de defesas do or­
ganismo e em conseqüência favorecería o desenvolvimento de
“vírus oportunistas”. O corpo debilitado fica à mercê de todas
as infecções. Dessas, duas têm sido as mais virulentas: uma
pneumonia e um câncer de pele (o Sarcoma de Kaposi).
Quanto às formas de transmissão parece que seguramente
pode-se dar através de transfusão de sangue, de agulhas infec­
cionadas e do contato sexual. Ainda não está muito claro todo
o mecanismo, embora muitos afirmem que o simples contato
não é suficiente para o contágio.
Os conhecimentos sobre a síndrome ainda são bastante
inseguros e rudimentares. O que me interessa aqui, particular­
mente, é a correspondência criada entre a AIDS e a homosse­
xualidade. Tal relação foi estabelecida de uma maneira muitas
vezes fictícia. Homossexuais masculinos formaram o grande
contingente de atingidos inicialmente pela AIDS. O que não

128
é suficiente para estabelecer nem uma relação entre a homos­
sexualidade — como forma que assume certa orientação se­
xual — e a síndrome; e muito menos entre a homossexuali­
dade e a formação de uma “comunidade homossexual”.
Embora se possa classificar um “grupo de risco”, como
diz o jargão técnico, este não se identifica com “os homosse­
xuais”, enquanto comunidade. As lésbicas estão excluídas des­
se grupo, assim também como homossexuais com práticas se­
xuais diferentes das que são características do “grupo de alto
risco”. Naturalmente, os homossexuais afetados tinham um es­
tilo de vida determinado que — ao que dizem — facilita o
advento da síndrome. (Até onde o puritanismo não terá aqui
dirigido a investigação?)
Ora, a forma como a homossexualidade é vivida por este
grupo de homossexuais não é absolutamente uma contingência
de todas as homossexualidades. A decantada promiscuidade
não é inerente à orientação homossexual. Também não é a uti­
lização de drogas, ou outras condições pretensamente facilita­
doras da AIDS. Essas condições são opções individuais (de
homossexuais ou não!), que, como tal, aliás, devem ser res­
peitadas. Além do mais, não é a própria promiscuidade ou a
utilização de drogas que impulsiona ao mal: esta é uma visão
moralista e reacionária que procura associar a doença com
uma punição qualquer de forças divinas.
O esquematismo faz uma salada onde se lê: homossexua­
lidade — promiscuidade e “vida libertina” — uniformização
de um grupo socialmente homogêneo = doença.
A confusão que faz da homossexualidade uma “doença”
é uma forma do preconceito tradicional. Mas não é o essencial
do preconceito. O fundamento dele encontra-se na diferencia­
ção do homossexual como indivíduo classificado e à parte,
não apenas com uma determinada orientação sexual que o
leva a certo tipo de prática sexual. O homossexual torna-se,
segundo o preconceito, um “diferente integral”, uma variante
humana completa, com psicologia própria, ou (quem sabe?)
uma fisiologia e uma anatomia específicas. A partir dessa visão

729
do homossexual como ente diferenciado é possível igualá-lo a
outros “diferentes” formando urna uniforme comunidade “ra­
cial’ , uma “sociedade” dentro da sociedade, urna “subcultura”,
ou um gueto.
O que importa, fundamentalmente, dentro da dinámica
do preconceito, não é que o homossexual seja um doente ou
apenas uma “varíente normal” dentro das diversidades huma­
nas. Ele pode ser até um ser de excepcionais qualidades, pode
ser visto até como ser superior (não mais viado, enviado). O
que importa é que ele seja segregado numa “comunidade” à
parte, e dentro dela formado e conformado.
Por que isto?
Porque isto torna a sexualidade uma questão individual e
exclusivamente uma espécie de tecnologia: envolve apenas as
técnicas de relações sexuais individuais. Assim, esvazia-se a
questão política essencial que caracteriza a sexualidade como
processo de opções determinádas em relação às ações do po­
der político na esfera do corpo.
A formação do gueto diferencia alguns indivíduos “se­
xualmente”, para homogeneizá-los dentro de uma verdadeira
indiferença política. Passam a viver no e pelo próprio gueto.
Ê claro que a questão das homossexualidades, do ponto
de vista político, não interessa apenas à forma como é vivida a
orientação sexual de um dado grupo de pessoas, mas interes­
sa ao conjunto social, pois problematiza a forma como toda a
sociedade resolve a sua própria homossexualidade (ou simples­
mente: sua própria sexualidade).
A medicalização da homossexualidade revela-se como
instrumento coercitivo para formação do corpo, de tal forma
que o condiciona a ser instrumento dócil da opressão política.
Sua eficácia é conceituar e forjar uma verdadeira “comunidade
homossexual” — um gueto.
A resposta a isto passa por uma política de combate ao
preconceito medicalizante que proponha claramente que as
questões de saúde são de responsabilidade da própria comu­
nidade organizada e autônoma.

130
Preconceito
A teorização para o gueto passa por diferentes e comple­
xas fases. A medicina, evoluindo nas suas descobertas e teorias,
tomou inicialmente a homossexualidade como condição pato­
lógica. Aos poucos essa visão foi sendo contestada e vai en­
trando para o museu da opressão humana. Mas, se já não são
mais exatamente uma condição patológica, as homossexualida-
des passam a ser consideradas situações patogênicas: passam
a facilitar o advento de doenças, psiquiátricas ou não. Como
por exemplo, a AIDS.
É mais do que evidente que HOMOSSEXUALIDADE
NÃO DÁ CÂNCER. O que precisa, agora, ser repetido fre-
qüentemente para destruir todo o absurdo desenvolvido por
idéias preconceituosas que já confundem a condição de qual­
quer homossexual como um perigo sanitário.
O grande câncer, destruidor e mortal, segue sendo o pre­
conceito, este sim uma síndrome de perigo infinito, que con­
tinua praticando genocídios estarrecedores. E quando digo o
preconceito quero me referir à complexidade das suas ações e
não apenas aos sentimentos mais ou menos confusos de alguns
“preconceituosos”. Se acentuei o lado formativo do preconcei­
to contra os homossexuais não quero deixar de chamar atenção
para a própria presença do preconceito na forma mesma como
muitas vezes a homossexualidade é vivida pelos próprios ho­
mossexuais.
ê previsível o grande estrago que pode advir da atitude
preconceituosa de recusar a existência da AIDS ou minimizar
seu alcance. Infelizmente, não é, no meio homossexual, infre-
qüente encontrar os que simplesmente se desinteressam do pro­
blema, achando que tudo é mera “manipulação mentirosa” de
“inimigos” dos homossexuais. Antes fosse... A questão é mui­
to mais complexa e exige uma lucidez maior dos homossexuais
para que não venham a ser vitimados; menos pela doença, ape­
nas; mais pelo enraizamento de um preconceito que os tor­
nará inimigos públicos de uma saúde tão pouco pública.

23/
Outra questão, e não de pouca monta, é a discussão en­
viesada sobre a questão da promiscuidade. Reagindo, com
toda razão, ao puritanismo castrador que “condena” a “pro­
miscuidade” e a confunde com a própria vivência de qualquer
homossexualidade, alguns caem candidamente na defesa vaga
da mesma promiscuidade, como se esta fosse uma conquista
ou uma forma de liberdade. Isto demonstra apenas que se caiu
numa armadilha: contra o puritanismo opõe-se um moralismo
ingênuo que é incapaz de ver nas formas da promiscuidade
um modelo imposto pela opressão.
Certamente, a promiscuidade não é só uma questão quan­
titativa em oposição simples e regular à monogamia. Muitas
vezes, a vivência promíscua é uma atitude decorrente da falta
de visão crítica dos modelos comportamentais impostos pela
repressão sexual. E aqui o problema pertence muito mais à
sexualidade masculina como um todo do que a questão pro­
priamente homossexual. A eficácia sexual, apreciada como
qualidade de macheza, é medida quantitativamente, impulsio­
nando o homem a ter uma obsessão pela freqüência de troca
dos (das) parceiros (as) sexuais. Parece-me que a “promiscui­
dade” (compulsiva ou compulsória) não deve ser discutida
apenas em relação aos homossexuais, mas em relação aos ho­
mens e às suas expressões de repressão sexual.
O homossexual masculino não se livra facilmente do ma­
chismo. Pelo contrário, este encontra condições ideais de plena
evolução dentro das instituições do gueto homossexual. A vi­
são crítica disso não tem sido uma preocupação muito grande,
como se fosse uma questão secundária dentro do quadro da
“opressão homossexual”. No entanto, quero crer que essa
opressão tem como fundamento a adoção de modelos falocrá-
ticos de relações humanas que tornam o homossexual mascu­
lino (mas não só...) um oprimido que ainda não ousou dar
o nome à sua opressão.
A chegada da AIDS nas praças de Sodoma obriga-nos,
homossexuais ou não, a uma reflexão em profundidade sobre

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as próprias circunstâncias da vivência da homossexualidade. Só
mesmo uma participação coletiva na politização da questão das
homossexualidades pode permitir uma reflexão mais coerente
e uma ação realmente transformadora, capaz de arrebentar os
portões doentes da opressão.

133
Este livro foi impresso nas oficinas da
Editora Gráfica Serrana Ltda.
Rua Washington Luiz, 281 — Petrópolis, RJ,
com filmes e papel fornecidos pelo editor.
"Temos sabido, com o sen­
tido conhecer da pele e da má­
goa, a opressão — que intui­
mos compartilhar com tantos
que ainda se calam. Temos
buscado a disposição de abrir
portáis onde ninguém sofra,
nem venha a sofrer, as conse-
qüências da tragédia ou holo­
causto de um sexo triste" —
dizem os Autores. 0 que mais
dizer?
Este é um livro onde o dito
supera o nao-dito, onde a linha
avança sobre a entrelinha, on­
de o substantivo é mais impor­
tante do que o adjetivo. Onde
o prazer do texto se confunde
com o texto do prazer: assumi-
damente. Como só os verda­
deiros poetas e pensadores sa­
bem fazê-lo — com garra e dis­
posição. Nesta hora de luta du­
ra e puta, entre mil dificulda­
des políticas, econômicas e so­
ciais, o que dizer a mais?
Recorramos aos próprios
Autores: "Não queremos pro­
jetos, não apresentamos pro­
postas 'partidárias'. Apenas
nos dispomos, expondo-nos
aqui nestes escritos, a experi­
mentar todas as partilhas viá­
veis e necessárias para as parti­
das para a democracia (não
há democracia cantada no co­
ro dos castrados). Afinal, bas­
ta-nos uma definição nada de­
finitiva: definitivo é só o tran­
sitório".
Sem a menor dúvida, este é
um livro sério. Que todos nós
tenhamos uma leitura alegre —
e feliz.

Os Editores

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