Você está na página 1de 15

SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA PEDAGÓGICA DE

PROFESSORXS DE GEOGRAFIA: BREVES REFLEXÕES

Célia Regina Batista dos Santos1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir sobre os saberes formais e
experienciais que podem/devem ser mobilizados pelo professor de Geografia durante o
exercício da prática profissional docente. Em específico, a referida reflexão pretendeu
atribuir maior ênfase ao conjunto de saberes necessários ao ensino de uma determinada
disciplina, o que resultou na identificação e classificação dos saberes docentes
necessários/mobilizados no ensino da Geografia tomando por base referências teóricas
produzidas nas últimas décadas, tanto no âmbito da Geografia Escolar, quanto no
âmbito da formação e aprendizagem docente; na experiência como professora de
Metodologia e Prática de Ensino em Geografia numa Instituição de Ensino Superior da
Bahia; e nas reflexões oriundas de uma pesquisa de doutorado.

Palavras-chave: Geografia Escolar; Formação Docente; Saberes da/na Docência.

1. Introdução
Ser professor não é uma atividade que qualquer leigo pode realizar. A docência
requer estar pautado em princípios teórico-práticos e num instrumental conceitual que
guie o trabalho docente. Os saberes elaborados sobre a docência e na docência vêm
sendo objeto de estudo de vários pesquisadores e os resultados indicam que estes
saberes têm a sua origem, tanto na experiência prática dos professores, quanto nas
discussões e estudos realizados nas universidades. Cada autor faz referência aos vários
tipos de saberes mobilizados pelos professores durante o ensino de uma determinada
disciplina.
Esse conjunto de saberes dá configuração à identidade profissional docente,
entendida nesse trabalho como um processo de construção do sujeito historicamente
situado, a partir da significação que a sociedade atribui à essa profissão, da revisão
constante dos seus significados sociais, da revisão das tradições (SANTOS, 2007). Esse
processo de construção da identidade docente não pode ser atribuído apenas à formação

1
Professora Titular do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Pesquisadora do EDUGEO – Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação Geográfica. Email:
celiaregina@uefs.br
acadêmica, pois tem início na formação pré-profissional e prossegue durante a vida
profissional, após o término da licenciatura.
Assim, aprendemos a ser professor durante a nossa história de vida pré-
profissional: observando nossos professores, pelos dos meios de comunicação,
brincando com nossos colegas, pela da família, da sociedade etc.. Ou seja, através
dessas relações construímos idéias sobre o que é ser professor e como ensinar uma
determinada disciplina (PIMENTA, 1999 e 2004; TARDIF, 2002).
Por sua vez, a história de vida acadêmica contribui para a elaboração de saberes
teórico-práticos sobre a área específica onde pretendemos atuar, saberes didático-
pedagógicos (relacionados ao como ensinar), saberes de outras áreas e saberes da
prática profissional através dos quais construímos referenciais sobre o ser professor.
Esse processo formativo formal realizado nas Instituições de Ensino Superior contribui
para a construção da identidade através da reafirmação das práticas consagradas
culturalmente e que permanecem significativas, da análise sistemática das práticas à luz
das teorias existentes e da construção de novas teorias (PIMENTA, 1999 e 2004).
Ao nos inserirmos no mercado de trabalho, durante a história de vida
profissional são elaborados saberes da experiência através do confronto entre as teorias
estudadas e as especificidades de cada situação vivenciada pelo professor, no
enfrentamento dos desafios e dilemas da profissão. É na atividade escolar cotidiana que
nós, professores aprendemos, realmente, a profissão docente.
Em síntese, coaduno com as reflexões de que a identidade profissional do
professor é constituída por um conjunto de saberes gerais e específicos elaborados
no/para o exercício da prática docente nas mais variadas áreas do conhecimento.
Nessa perspectiva, o presente artigo é um esforço no sentido de sistematizar
ideias consideradas centrais, a partir da pergunta: quais os saberes necessários à
docência de professores de geografia? Para o desenvolvimento da argumentação sobre
os saberes necessário à docencia me apoio em referências teóricas produzidas nas
últimas décadas, tanto no âmbito da Geografia Escolar, quanto no âmbito da formação
e aprendizagem docente; na experiência como professora de Metodologia e Prática
de Ensino em Geografia numa Instituição de Ensino Superior da Bahia; e nas reflexões
oriundas de minha pesquisa de doutorado (SANTOS, 2007). Estou ciente de que outras
discussões sobre os saberes da docência, igualmente relevantes, poderiam ter sido
contempladas neste trabalho, porém, é preciso fazer escolhas. E as minhas escolhas se
traduzem neste trabalho.
2. Saber e saber ensinar: dois pressupostos importantes na configuração da
identidade docente
Como ensinar algo que não se sabe? O domínio do conhecimento específico é
um dos aspectos fundamentais para dar segurança ao professor, pois é difícil ensinar
aquilo que não se sabe. Lastória (2003, p. 68) corrobora com esse entendimento:

A literatura da área tem apontado para a importância dos conteúdos


nos processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional
docente. Há uma valorização em torno dos conteúdos das diferentes
áreas do ensino2 (específicos) devido ao fato de que eles precisam
estar bem definidos na mente dos professores para que estes possam
realizar uma mediação crítica do currículo para os alunos. Para que os
professores consigam ensinar às diversas populações de alunos, os
conhecimentos das áreas específicas do conteúdo precisam ser bem
compreendidos.

A minha pesquisa de doutorado (SANTOS, 2007) com professoras de Geografia


em Feira de Santana (BA) indicou que existem saberes que norteiam o desenvolvimento
satisfatório da atividade de ensino e um deles é dominar o conhecimento específico. O
professor precisa ter uma sólida formação sobre os pressupostos teóricos e
metodológicos que norteiam a área de conhecimento a ser ensinada e, principalmente,
saber articulá-los ao currículo escolar. A idéia é que quando o docente não possui
conhecimentos adequados sobre a estrutura da disciplina que está ensinando, pode
explicar erroneamente e/ou mecanicamente o conteúdo, dificultando o seu entendimento
pelos alunos.
Entende-se que a compreensão que o professor elabora sobre a ciência específica
e sobre os objetivos dessa área de conhecimento no âmbito escolar pode influenciar na
seleção, organização, abordagem didática e até na relação que estabelece com os alunos.
Em síntese, dominar o conteúdo específico é fundamental, se partirmos do pressuposto
de que a atividade docente não é realizada no vazio, mas pautada num conteúdo
específico que configura a identidade profissional do professor.

2
Grifos do autor.
Por outro lado, é igualmente importante salientar que saber o conteúdo por si só
não garante um bom ensino e uma aprendizagem significativa. É necessário que o
professor pense pedagogicamente o conteúdo para transformá-lo em algo compreensível
para os alunos, levando em consideração as especificidades do ensino de uma
determinada disciplina, o contexto sócio-ambiental onde a escola está situada, a cultura
da escola, as características dos alunos (idade, série, nível social, contexto cultural,
interesses etc.), os objetivos do ensino, o currículo, o projeto pedagógico da escola (se
existir). Além de dominar o conteúdo específico, é importante que o professor se
aproprie de um conjunto de saberes, de origem e natureza diversas, que possam nortear
o planejamento e a execução de suas aulas.
Esses saberes elaborados sobre a docência e na docência vêm sendo objeto de
estudo de vários pesquisadores1, porém para fins de reflexão sobre o conjunto de saberes
que norteiam a prática docente dos professores de Geografia, utilizarei as idéias de
Shulman (1986, 1987), Marcelo Garcia (1992) e Mizukami et al (2003), a partir da
seguinte classificação: Saberes da Ciência Geográfica Acadêmica; Saberes Didático-
Pedagógicos; Saberes da Ciência Geográfica Escolar; Saberes da Geografia Escolar
Cotidiana.

Saberes que norteiam a Características Fonte


prática dos professores

Saberes da Ciência Geográfica Conhecimento sintático: teorias, Formação inicial /


Acadêmica (conteúdo específico) conceitos, paradigmas. continuada
Conhecimento substantivo:
método de investigação
Saberes didático-pedagógicos Teorias educacionais e Formação inicial /
gerais e específicos. pedagógicas continuada
Saberes da Ciência Geográfica Proposições teóricas e Formação inicial /
Escolar metodológicas sobre o ensino e a continuada; Bibliografia
aprendizagem da Geografia especializada; Livro
didático; Parâmetros
Curriculares.
Saberes cotidianos sobre o Ideias, ilustrações, exemplos, Pratica profissional
ensino da Geografia Escolar explicações, formas de docente
representar o conteúdo para
fazê-lo compreensível aos
outros.

1
A exemplo de CAR E KEMMIS (1988); PACHECO E FLORES (1999); SHULMAN (1986, 1987);
MARCELO GARCIA (1992); TARDIF (2000; 2003); MIZUKAMI et al (2002; 2003); SANTOS (2007);
BRAGA (2006).
2.1 Saberes da Ciência Geográfica Acadêmica
Saberes do conteúdo específico inclui diferentes componentes denominados de
diferentes formas por diferentes autores. Destes componentes, são mais representativos
o conhecimento sintático e o substantivo3. De acordo com Shulman (1986, 1987) e
Marcelo Garcia (1992) o conhecimento substantivo inclui os marcos teórico-conceituais
de explicação, os paradigmas e tendências que norteiam as indagações numa disciplina
e dão sentido aos dados: a constituição como área de conhecimento e disciplina escolar,
as tendências teóricas (Tradicional, Histórico-Crítica, Humanista), os principais
conceitos e categorias de análise, os procedimentos de investigação e análise, entre
outros.
Por sua vez, o conhecimento sintático do conteúdo completa o anterior e tem
relação com o domínio, por parte do professor, dos paradigmas de investigação
assumidos como válidos pela comunidade de investigadores de uma determinada área
de conhecimento num momento determinado. Assim, no caso das Ciências será o
método científico, na Literatura, a análise literária, na Arte, a estética e crítica artística,
na Geografia o método hipotético-dedutivo, dialético, fenomenológico. Cada um desses
métodos envolve uma concepção de mundo, de sociedade, de natureza, de produção do
conhecimento. Esses conhecimentos são importantes por que norteiam o que os
professores vão ensinar e sob qual perspectiva. A ausência de domínio desses
conhecimentos, pelo professor, pode afetar tanto o nível de seu discurso na classe,
quanto o tipo de pergunta que fazem aos alunos, a forma como criticam e utilizam livros
de texto, o envolvimento e participação dos alunos nas aulas e atividades, entre outros
aspectos.
Enfim, há uma relação entre a atividade de ensinar uma disciplina, a Geografia, e
as tendências científicas para o seu ensino, podendo-se afirmar que o professor que
ensina Geografia o faz a partir do que entende ser Geografia: seus pressupostos,
métodos, categorias de análise. Chevallard (1995 apud BRAGA, 2007) defende a
importância da posição do conhecimento científico como referência do conhecimento
escolar, pois a legitimação desse último requer fidelidade, coerência e correspondência
ao primeiro.

3
Tradução livre.
2.2 Saberes da Ciência Geográfica Escolar
Cada disciplina possui questões teórico-metodológicas e didático-pedagógicas
que atende às especificidades de seu objeto de estudo. As várias discussões voltadas
para o ensino da Geografia escolar, nas últimas décadas, sinalizam que o ensino dessa
disciplina requer muito mais que o simples domínio do conteúdo científico. É
necessário traduzi-lo pedagogicamente, recontextualizá-lo de acordo com as
necessidades e interesses da clientela para o qual se destina sem perder de vista os
objetivos maiores dessa disciplina que é o de proporcionar o desenvolvimento de
raciocínios mais amplos sobre a realidade espacial, uma compreensão crítica do mundo
e, conseqüentemente, uma inserção mais consciente do aluno na sua realidade.
Cavalcante (2005), por exemplo, sugere que os objetivos da geografia escolar
sejam voltados para proporcionar aos indivíduos a elaboração de uma consciência da
espacialidade das coisas, das pessoas, dos fenômenos que elas vivenciam diretamente
ou não. Segundo essa autora, essa educação geográfica tem por finalidade formar
cidadãos pensantes e críticos.
No meu ponto de vista, essa consciência espacial é importante de ser
“construída” no processo de ensino, pois como salienta Carlos (1996) os sujeitos se
apropriam do espaço desenvolvendo uma prática espacial - usando, transitando,
vivendo, produzindo, trabalhando, se divertindo - e construindo no lugar e com o lugar
suas relações. São esses atos corriqueiros que permitem a criação de sentidos e de
identidade entre as pessoas e os lugares de uma localidade específica. Essa autora
salienta ainda a natureza social da identidade e do sentimento de pertencer que liga as
pessoas aos lugares; e que estes lugares adquirem importância justamente pela história
ali vivida.
Além do mais, outra questão que deve ser superada através do ensino da
Geografia escolar diz respeito à forma alienada com a qual os indivíduos se relacionam
com o espaço de vivência. Essa falta de consciência sobre o espaço ao seu redor é
decorrente, segundo Lacoste (1983) de uma espécie de miopia espacial, um
sonambulismo que impede uma atitude mais reflexiva com relação a esse espaço.
Segundo esse autor, se os sonâmbulos se deslocam sem saber por que num lugar que
eles conhecem, nós não sabemos onde estamos nos diversos locais onde temos algo a
fazer (p. 49). Essa espécie de sonambulismo resulta, segundo esse autor, num
sentimento de incapacidade, pelos indivíduos, de avaliar as estratégias de produção e/ou
reorganização espacial impostas tanto pelo poder público, como pela iniciativa privada
(a exemplo de indústrias, shopping centers, imobiliárias, projetos agrícolas, etc.)4.
A finalidade do ensino de Geografia até agora apresentada orienta a estruturação
dos conteúdos e o modo de encaminhá-los nas atividades de sala de aula para propostas
pedagógicas de cunho construtivistas e sócio-interacionistas, que consideram o ensino
como processo de construção de conhecimentos e o aluno como sujeito ativo nesse
processo. Nessas propostas percebe-se uma ênfase nas atividades que procuram superar
uma visão de ensino reprodutor de conhecimento, ressaltando a preocupação na
condução das pessoas a pensarem por conta própria e permitir a construção de novas
compreensões sobre o mundo. Quanto aos alunos, são sujeitos do processo e, portanto,
procura-se trabalhar com a geografia do cotidiano, com os saberes, imagens e
representações sociais dos alunos, na perspectiva de contrapor o conhecimento
científico e o cotidiano.
Muito embora, no âmbito da teoria existam várias hipóteses sobre o que, como e
por que ensinar a Geografia, elas não dão respostas a todas as situações de ensino. Elas
são proposições e como tal não devem ser entendidas como “modelos fechados” ou
verdades absolutas, mas como norteadoras de novas possibilidades, portanto podem ser
reelaboradas conforme as especificidades, no que se refere aos limites, possibilidades,
necessidades e problemas de cada contexto escolar, grupo de alunos, série, professor
etc.
2.3 Saberes Didático-Pedagógicos Gerais e Específicos
Devido às especificidades de cada situação didática, o professor além de saber e
saber fazer deve entender o que faz e porque faz, e um dos pressupostos para tal
compreensão é a apreensão de teorias educacionais e pedagógicas que sirvam de
subsídios para tal reflexão: filosofia da educação, aprendizagem e desenvolvimento
humano, políticas e gestão educacional, princípios gerais do ensino, técnicas didáticas,
planejamento de ensino, políticas inclusivas, currículo, cultura social e influências do
contexto no ensino, história da educação, aspectos legais da educação etc.

4
Considera o referido autor que esses conhecem muito bem os espaços e, conscientes dessa miopia que
acomete os cidadãos comuns, não hesitam em praticar “acordos” e de apresentar planos dos trabalhos,
pois as objeções são raras e fáceis de iludir. A maioria das pessoas não percebe até que ponto foram
enganadas, a não ser após o término dos trabalhos, quando as modificações se tornam irreversíveis.
No âmbito desses conhecimentos, os conhecimentos referentes à gestão de sala
aula são importantes para o desenvolvimento do trabalho do professor em sala de aula.
Além de saber o conteúdo e as diferentes formas (procedimentos, técnicas, recursos)
para ensinar determinada disciplina, é importante que os professores também
desenvolvam habilidades para conquistar o interesse das crianças, envolve-los nas
propostas didáticas, fazer com que sejam cooperativos e que façam as tarefas, além de
manter a disciplina na sala de aula.
Outro tipo de conhecimento também importante no processo de planejamento e
desenvolvimento das aulas é o curricular. O professor precisa ter clareza sobre o que é
o currículo escolar, sobre como ele se concretiza, qual é o currículo explícito, qual a
função da Geografia enquanto componente curricular, pois como salientam Pacheco e
Flores (1999, p.21):

No processo de desenvolvimento do currículo há um conjunto de


conhecimentos em relação aos quais, implícita ou explicitamente, está
associada uma habilidade curricular que inclui tarefas específicas
(elaboração e utilização de materiais didácticos, programação e
planificação didáctica, etc.) e conhecimentos prévios dos programas,
das orientações metodológicas e dos materiais curriculares (livros de
texto, manuais).

Shulman (1986) sugere a analogia: os professores precisam dominar o


conhecimento curricular para poder ensinar aos seus alunos, da mesma forma que um
médico tem necessidade de conhecer os remédios disponíveis para poder receitar. Nas
palavras desse autor, o currículo seria, portanto, equivalente à farmacopéia, ou seja, é
dele que o (...) professor retira suas ferramentas de ensino que apresentam ou
exemplificam específicos conteúdos ou avaliam a adequação dos avanços estudantis
(1986, p. 10; tradução livre).
Também é importante ressaltar a importância do conhecimento do contexto. É
necessário conhecer a clientela, respeitando a diversidade cultural e sócio-econômica
dos sujeitos envolvidos: Quem são os alunos? Qual o contexto físico e social em que a
escola está? Qual o contexto físico e social no qual os alunos vivem? Como são os
alunos? Como vivem? Do que gostam? Onde vão? Por onde circulam? Que Geografia
constroem? Que Geografia aprendem? Como podem aprender Geografia na escola?
Que significados têm para eles a Geografia que estudam? Saber lidar com as
diferenças entre os alunos, quanto a diversos aspectos, destacando-se classe social,
gênero, raça, etnia, cultura, sexualidade, religião, idade, linguagem, origem geográfica,
cognitiva.
Em suma, no processo de elaboração dos saberes docentes, a instrumentação
teórica fornece ao professor subsídios para compreender o seu próprio pensamento e a
refletir de modo crítico sobre a sua prática e também aprimorar o seu modo de agir, seu
saber fazer (LIBÂNEO, 2002). Entretanto, essa teoria só começa a ter sentido quando,
no exercício do fazer docente, o professor aprende, entre outras coisas, a pensar
pedagogicamente o conteúdo da disciplina, as situações de aula, o contexto de seus
alunos, discussão que veremos a seguir.

2.4 Saberes cotidianos sobre o ensino da Geografia Escolar


Como visto anteriormente, o ensino de uma determinada disciplina requer que o
saber científico de referencia seja submetido a uma transformação pedagógica que o
habilite a ser ensinado.
Segundo Braga (2007), esse processo de transformação passa por alguns agentes.
O primeiro é o governo, que tem o poder de decisão sobre o sistema educativo
expressos através de um conjunto de orientações, Parâmetros Curriculares Nacional
(PCN), que são diretrizes de/para (o) ensino. O segundo agente, que pode ser ou não
representante / divulgador das orientações dos PCN, é o livro didático. São eles, na
verdade, os mais habituais agentes responsáveis por apresentar o saber a ser ensinado a
professores e alunos da disciplina Geografia. Por fim, o saber geográfico científico, já
traduzido, reelaborado pelos currículos oficiais e pelos autores dos livros didáticos,
passa pela interpretação dos docentes, nos momentos em que planejam e desenvolvem
suas aulas. Nos próximos itens darei atenção a esse terceiro agente: o professor.
Esse novo conhecimento elaborado na prática vem sendo denominado por vários
pesquisadores como conhecimento pedagógico do conteúdo específico e é, em última
instância, o que o professor enuncia efetivamente em cada aula, o que manifesta
quando constrói seu texto para ensinar, as frases que pronuncia, os exemplos que
propõe, os documentos que analisa e utiliza, as formas mais úteis para representar as
idéias, as analogias, ilustrações, exemplos, explicações e demonstrações mais
poderosas; ou seja, as formas de representar e formular o conteúdo para fazê-lo
compreensível aos outros. Também inclui a compreensão sobre o que facilita ou
dificulta a aprendizagem de temas concretos e sobre as idéias que os estudantes de
diferentes idades trazem consigo.
Para Mizukami et al (2003), a compreensão do conhecimento pedagógico do
conteúdo requer que consideremos o que denominam de imagens de aulas com as quais
os professores operam. Esclarecem que a imagem da aula está relacionada ao conceito
de planejamento do professor e integra: o conhecimento dos estudantes e de como eles
provavelmente reagiriam à aula, a predição do comportamento dos alunos, os possíveis
problemas de compreensão dos estudantes e de como os professores lidariam com os
mesmos.
Esse conhecimento inclui uma compreensão do que significa ensinar um tópico
particular, assim como conhecimento dos princípios e técnicas requeridas para tal.
Influenciado tanto pelo conteúdo específico da disciplina quanto pelo conhecimento
pedagógico, o conhecimento de conteúdo pedagógico emerge e cresce quando os
professores transformam seu conhecimento de conteúdo específico tendo em vista os
propósitos de ensino.
Shulman (1986, 1987) explicita que o conhecimento pedagógico do conteúdo é
elaborado a partir do processo de raciocínio pedagógico desenvolvido pelos professores
ao pensarem pedagogicamente sobre o conteúdo da disciplina. O processo de raciocínio
pedagógico é entendido como uma técnica de raciocínio e ação, através da qual os
conhecimentos profissionais são construídos e abrange seis aspectos comuns ao ato de
ensinar: compreensão, transformação (envolvendo interpretação, representação,
adaptação e consideração de casos específicos), instrução, avaliação, reflexão e nova
compreensão. Esse autor salienta, ainda, a importância desse tipo de raciocínio para o
ensino bem-sucedido; ou seja, usa-se o raciocínio pedagógico dos professores como
uma via em direção à compreensão da base de conhecimento do ensino. No seu
entender, a transformação do conhecimento de conteúdo específico da área está no
centro do ensino nas escolas.
No caso da Geografia, a transformação do conteúdo em algo ensinável requer
considerar questões específicas que devem fazer parte da base de conhecimentos do
professor, conforme destaquei anteriormente. Inicialmente, é necessário que ele
estabeleça os objetivos que pretende atingir com o ensino da Geografia, e para isso
precisa ter compreensão sobre qual a contribuição dos conteúdos geográficos para a
formação geral das pessoas. Só a partir do delineamento desses objetivos o professor
terá clareza para selecionar e organizar os conteúdos que serão trabalhados em sala de
aula.
Em síntese, é o professor que ensina Geografia quem dá vida, de fato, ao
conhecimento escolar geográfico, no momento da prática, pois é através da experiência
concreta que aprendem a pensar pedagogicamente o conteúdo da disciplina,
transformando-o em algo didaticamente entendível por seus alunos.

3. Outras dimensões da identidade profissional docente


Outros saberes são igualmente importantes na formação da identidade
profissional docente e servem de base de sustentação para as escolhas, tomada de
decisões, discursos dos professores e envolvem as dimensões: ética, política, pessoal,
social, cognitiva e técnica.
A dimensão política diz respeito às escolhas e comportamentos. No caso da
Geografia, pode-se considerar: qual o meu papel dentro da sociedade? Estou satisfeito
com a forma como as coisas andam? Acho imprescindível que mudanças aconteçam?
Qual o papel da Geografia diante de tudo isso? Manutenção do status qüo? Contribuir
para a transformação? Como a escola e o ensino da Geografia podem contribuir para
essa discussão? Quais conteúdos selecionar? Que atividades planejar para motivar os
alunos para o estudo, desvendar as máscaras sociais e desenvolver o senso crítico dos
mesmos?
Por sua vez, a dimensão ética requer pensarmos o sentido e a finalidade do nosso
trabalho; os valores e princípios que fundamentam nossas ações. Requer desenvolver
um pensamento ético de respeito, compromisso e solidariedade consigo mesmo, com
sua profissão, com seus alunos, com seus colegas, com a sociedade em geral. Discutir e
vivenciar um sentimento ético na docência significa pensar nas responsabilidades
pessoais e sociais que a profissão docente requer, pois a ética é necessária para obter a
solidariedade e responsabilidade conscientes. É contribuir, através de nossas discussões,
para a autotransformação dos educandos e proporcionar uma conscientização do que
significa ser ético e solidário. Solidariedade é um sentimento que é ético para si e para
os outros, que nos torna seres humanos. Morin (2005, p. 74) enfatiza a importância da
solidariedade ao afirmar que:
Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando nos
sentimos solidários e responsáveis. Solidariedade e
responsabilidade não podem advir de exortações piegas nem de
discursos cívicos, mas de um profundo sentimento de filiação
(affiliare, de filius, filho), sentimento matripatriótico que
deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o país, o
continente, o planeta.

As discussões sobre ética e solidariedade são imprescindíveis para a formação


docente e para se pensar no ensino da Geografia, no sentido de refletir as relações
humanas.
É importante ressaltar também as dimensões pessoal, afetiva e social. As duas
primeiras têm relação com nossa forma de ver o mundo, nossos desejos pessoais,
nossos limites e possibilidades. Requer entender que um professor não pensa somente
com a cabeça, mas com a vida, com o que foi e com o que viveu, com aquilo que
acumulou em termos de experiência, de lastro de certezas. Já a dimensão social requer
comprometimento com os problemas que acometem a sociedade, e no nosso caso, que
se manifestam no espaço. Envolve a reflexão sobre o pensamento universal e a realidade
brasileira, que busque soluções para os problemas que a sociedade apresenta,
procurando um equilíbrio entre o conhecimento da realidade brasileira que é nacional,
regional e local, reconhecendo no cotidiano do lugar em que cada um vive, expressões
locais e regionais de uma realidade que é local. Também é importante estar ciente de
que os problemas espaciais são decorrentes de questões sociais (contradições sociais)
que se manifestam no espaço e que precisam ser compreendidas e transformadas em
prol de uma sociedade mais justa. Isso implica interpretar a realidade, fazendo a análise
do espaço enquanto resultado do trabalho do homem em sociedade.
Em síntese, coaduno com as reflexões de que a identidade profissional do
professor é constituída por um conjunto de saberes que extrapolam a atividade de
ensino, tendo em vista que a docência não se reduz à sala de aula; saberes esses
impregnados de elementos sociais, éticos, políticos, culturais, afetivos, emocionais que
fazem parte da complexidade da prática pedagógica.

4. Considerações Finais
O presente trabalho buscou contribuir para a discussão sobre os saberes
necessários ao exercício da docência de professores de geografia. Apontou a
importância do domínio teórico, pelo professor, para que o mesmo sinta-se seguro para
ensinar determinado conteúdo, mas que saber, por si só não é garantia de aprendizagem
pelos alunos: é preciso saber ensinar. Saber ensinar é pedagogizar o conteúdo, torná-lo
compreensível para alunos de necessidades e contextos diferenciados.
Muito embora entenda que a reflexão sobre a prática deva ter início nas
instituições formadoras, parto do entendimento de que a construção de uma identidade
docente ou mudança na prática docente é um dos objetivos da formação, mas não
sinônimo dela, pois como adverte Braga (2005), freqüentar cursos não significa,
necessariamente, transformação da prática.
Toda prática é ancorada em crenças, valores, concepções teórico-filosóficas que
os limites de um curso talvez não sejam capazes de ultrapassar no sentido de trazer
mudanças efetivas para as práticas das professoras. Por outro lado, também compreendo
que a promoção de reflexões e ampliação dos conhecimentos já são uma possibilidade
de contribuior para professores e futuros professores desenvolverem uma prática mais
consciente que lhes possibilite responder com situações novas às situações de incerteza.
Ou pelo menos desenvolver reflexões mais amplas sobre as situações vividas em sala de
aula. Afinal, como salientam Pimenta e Lima (2004), a teoria, além de seu poder
formativo, dota os sujeitos de pontos de vista variados sobre a ação contextualizada. Os
saberes teóricos se articulam aos saberes da ação dos professores e da prática
institucional, ressignificando-os e sendo por eles ressignificados.

5. Referências Bibliográficas

ALMEIDA, R.D. de. Desenvolvimento de Atlas municipais escolares. Boletim de


Geografia (Maringá), n.2, p. 139-143, 2001.

BRAGA, Maria Cleonice. O ensino da Geografia nas séries iniciais do Ensino


Fundamental: uma análise dos descompassos entre a formação docente e as orientações
das políticas públicas. Terra Livre n. 28. São Paulo: AGB , 2007.

CAZETTA, Valéria e OLIVEIRA, Adriano Rodrigo. El uso de fotografias aéreas


verticales en la enseñanza de la geografía como posibilidad para el estudio del
territorio local. In: Marrón Gaite, M. J. et. all. (org.). La enseñanza

LACOSTE, Yves. A Geografia – Isso serve em primeiro lugar para fazer a guerra, 3ª
ed. Campinas, SP: Papirus, 1993.

LASTÓRIA, A. C. Aprendizagem Profissional da docência: o projeto Atlas. São


Carlos, 2003. Tese (doutorado em Educação) – CECH, UFSCar.

MIZUKAMI, M.G. et al. Escola e aprendizagem da docência. Processos de


investigação e formação. São Carlos: EdUFScar, INEP, COMPED, 2003.

MIZUKAMI, M.G. Formadores de professores, conhecimentos da docência e casos de


ensino. In: MIZUKAMI, M.G.N. e REALI, A.M.M.R (orgs.) Formação de professores:
práticas pedagógicas e escola. São Carlos: EdUFSCar, 2002.

MARCELO GARCIA, Carlos. Como Conocen los Profesores la Matéria que Enseñan.
Algunas Contribuciones de la Investigacion sobre Conocimiento Didáctico del
Contenido. Palestra apresentada no Congresso Las didácticas específicas em la
formación del profesorado, Santiago, 6-10 de julho, 1992.

OLIVEIRA, A.R. A cartografia escolar e as práticas docentes nas séries iniciais do


ensino fundamental. São Carlos, 2003. Dissertação (mestrado em Educação) – CECH,
UFSCar.

PIMENTA, Selma Garrido (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo:
Cortez, 1999.

SHÖN, Donald. Educating the reflective practitioner. New York: Jossey-Bass, 1987.
SHULMAN, L.S. Those who understands: knowledge growth in teaching. Educational
Researcher, v. 17, n. 1. Washington DC, AERA, 1986, p 4-14.

SHULMAN, L.S. Knowledge and teaching: foundations of a new reform. Harvard


Educational Review, v. 57, n. 1. Cambridge, Harvard Garduate School of Education,
1987, p. 1-21.

SPOSITO, Eliseo S. A Vida nas Cidades. São Paulo: Contexto, 1994.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional, 3a ed. Petrópolis: Vozes,


2003.

TARDIF, M. Saberes profissionais de professores e conhecimentos universitários.


Revista Brasileira de Educação. ANPED, n. 13. São Paulo: Bartira Gráfica e Ed. Ltda,
jan/abril 2000.

SANTOS, Célia Regina. Desenvolvimento profissional de professores de Geografia:


contribuições de um grupo de estudos sobre o ensino da localidade. São Carlos, 2007.
Tese (doutorado em Educação) – CECH, UFSCar.

Você também pode gostar