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HISTÓRIAS INÉDITAS DA LITERATURA BRASILEIRA

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Autor: Sérgio Barcellos Ximenes.

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O Rancho do Pai Tomé, o folhetim escravocrata proibido por incitar os negros à


rebelião

Resumo

Tema: O Rancho do Pai Tomé ou a Escravatura no Brasil, folhetim do maranhense


João Clímaco Lobato (1829-1897) inspirado no romance A Cabana do Pai Tomás, da
estadunidense Harriet Beecher Stowe (1852); o folhetim foi proibido pelo chefe de
polícia de São Luís após o segundo episódio, porque o personagem central da história
incentivava uma rebelião dos negros contra o fazendeiro opressor.

Publicação: periódico Porto Livre (São Luís, MA), em 17 e 25 de julho 1862,


números 48 e 49.

Objetivo do autor: criar uma réplica à história do famoso romance, mostrando o


"outro lado" da questão, ou seja, a suposta perversidade dos escravos.

Evento inspirador da trama: o assassinato de um fazendeiro escravocrata, o


capitão Bruno Meirelles, pelo escravo Mateus, ocorrido em 1850 ou 1851 no Maranhão.

Importância histórica do folhetim: o primeiro texto da ficção brasileira em que um


escravo enuncia um discurso de inconformismo e rebeldia contra a sua condição e
planeja liderar uma vingança coletiva contra seus opressores.

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Apresentação

Equívocos de interpretação ou mudanças de compreensão ao longo do tempo são


comuns na história da arte.

Ao escrever o clássico Dom Quixote de la Mancha (1605), o espanhol Miguel de


Cervantes pretendia satirizar os leitores de romances de cavalaria, mas atualmente o
personagem central da obra, o próprio Dom Quixote, amante daqueles romances, é
objeto de simpatia e símbolo da luta pelos sonhos impossíveis mas valiosos.

Ao compor a música Geni e o Zepelim (1979), Chico Buarque de Hollanda pretendia


criticar em sua letra a hipocrisia da sociedade em relação às prostitutas, mas o
lançamento coincidiu com a primeira tentativa de liberação do topless em praias do
nosso país. Resultado: o estribilho desbocado serviu para banhistas agredirem mulheres
e travestis que ousavam questionar os limites da moral da época.

Matéria sobre um desfile no Rio de Janeiro.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 17/2/1980, número 313, página 6, primeira e
segunda colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/2274

Matéria sobre agressão a banhista no Rio de Janeiro.


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro, RJ), 12/2/1980, número 9289, página 1,
primeira, segunda e terceira colunas.

http://memoria.bn.br/DocReader/154083_04/473

Matéria sobre o desfile de carnaval em São Paulo.

O Cruzeiro (Rio de Janeiro, RJ), 15/3/1980, número 14, página 10, última coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/003581/202511

Matéria sobre agressão a praticante do topless em Recife.

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 21/2/1981, número 317, página 14, primeira
coluna.

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/20857

Outra música, Aquele Abraço (1969), enganou durante anos os torcedores do


Flamengo, que pensavam estar sendo homenageados por seu "colega" compositor.
Gilberto Gil revelou, depois, que se trata de um abraço irônico por vir de torcedor do
Fluminense.
https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/podcast-gilberto-gil-diz-torcer-para-
seis-times-e-explica-aquele-abraco-para-a-torcida-do-flamengo.ghtml

Em 2020, nova surpresa quanto a outra música do mesmo compositor: a inspiração


para Super-Homem, a Canção, não foi o feminismo, e sim Super-Homem, o Filme, que
Caetano Veloso havia assistido e logo depois contado em detalhes a Gil. A história pode
ser conferida aqui:

https://twitter.com/gilbertogil/status/1277749332133978112

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O Rancho do Pai Tomé: um folhetim incompreendido

O primeiro romancista maranhense, João Clímaco Lobato (1829-1897), escreveu o


folhetim O Rancho do Pai Tomé ou a Escravatura no Brasil (1862) em resposta ao
romance A Cabana do Pai Tomás (1852), da estadunidense Harriet Beecher Stowe
(1811-1896).

Para Clímaco, Harriet "só nos mostrou os bons sentimentos dos negros e escravos;
apresenta-os dotados daquela inteligência que a experiência tem mostrado faltar na
maior parte deles [...]".

Em 17 de julho de 1862, o jornal Porto Livre publicou o primeiro episódio de O


Rancho do Pai Tomé. Usando de boa técnica dramática, o autor começou a história do
ponto de vista dos vilões (os escravos) já preparando a rebelião contra o fazendeiro
opressor: "Tomé era um homem mau e um escravo perigoso".

Dizia Tomé, entre outras falas indignadas, para escândalo da mãe: "A África outrora
viu em seu território homem algum dessa cor baça e pálida? Não... E hoje? África
geme... porque esses brancos são maus".

Para construir o enredo da história, Clímaco Lobato se inspirou no assassinato de um


fazendeiro escravocrata, o capitão Bruno Meirelles, ocorrido em 1850 ou 1851. Nos
jornais de São Luís é possível encontrar dois registros sobre o caso.

No primeiro deles lê-se o aviso da fuga de uma escrava da viúva de Bruno Meirelles,
em junho de 1851.
Correio d'Anúncios (São Luís, MA), 23/6/1851, número 43, página 4, primeira
coluna

http://memoria.bn.br/DocReader/823562/129

No segundo registro temos o resultado do julgamento de Matheus, o negro que


vingou seus companheiros ao assassinar Bruno Meirelles: a condenação à morte, em
janeiro de 1855.

O Estandarte (São Luís, MA), 11/1/1855, número 5, página 1, segunda coluna

http://memoria.bn.br/DocReader/707635/448

A publicação do primeiro episódio escandalizou os leitores do periódico, apesar das


explicações iniciais de Clímaco Lobato, nas quais afirmava sua contrariedade com a
representação benévola dos negros escravizados e prometia a vitória final do "bem".

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Duas Palavras ao Leitor

Foi, não o negamos, a leitura do romance chamado A Cabana do Pai Tomás, por
Miss Harriet Stowe, que nos inspirou a composição do presente romance, que, pela
mesma razão com que a autora do citado romance lhe deu semelhante denominação,
intitulamos este nosso O Rancho do Pai Tomé, título este, ou tratamento que
ordinariamente damos aos negros de avançada idade.

Na Cabana do Pai Tomás vemos despertado o nobre e generoso sentimento de


humanidade; em cada uma de suas páginas está derramado todo o amor do próximo, e
todas as lágrimas que sua autora verte sobre a miséria dele, e sua escravidão e a
barbaridade de que é vítima.

Miss Stowe lançou mão e bem aproveitou todas aquelas circunstâncias que podem
despertar e despertam esse sentimento quando adormecido. Foi feliz na sua empresa; o
seu romance é um dos bons. Porém ela só nos mostrou os bons sentimentos dos negros e
escravos; apresenta-os dotados daquela inteligência que a experiência tem mostrado
faltar na maior parte deles (falo quanto ao Brasil), e na generalidade mostrou o belo da
medalha, que com tão belas e frescas cores ela pintou. Vamos pois nesse imperfeito
trabalho mostrar o verso dessa mesma medalha. E conquanto não caracterizemos com o
cunho da verdade todos os fatos narrados, muitos deles serão a fiel comemoração de
sucessos [fatos] que entre nós têm tido lugar.

Combinamos e adaptamos as ideias apregoadas por tão exímia escritora, com


modificações, porém, que apresentaremos neste nosso romance.

Poderíamos chegar ao fim proposto por meio de algum [palavras ilegíveis];


entendemos [palavra ilegível], e romanceando esta nossa réplica (permitida a expressão)
seríamos mais lidos e quiçá melhor compreendidos, que é o que sobremaneira
desejamos.

Perdoem-nos, críticos, o anacronismo que cometemos por amor das belezas do


romance e necessária encadeação de fatos, que isoladamente e em épocas diversas
sucederão.

Vila do Rosário, 1854.

J. C. Lobato.

______

Porto Livre (São Luís, MA), 17/7/1862, número 48, página 1, seção de folhetim.
http://memoria.bn.br/docreader/749516/86

Em situação não rara na história dos folhetins, as autoridades foram acionadas. O


chefe de polícia "convidou" o autor da história a comparecer à delegacia, onde foi
comunicado sobre a decisão da lei: a história, recém-iniciada, deveria terminar porque
"no dito romance [ele] enxergou doutrinas subversivas" ― apesar, é claro, de serem
raríssimos os escravos leitores de jornais.

A cena que motivou a proibição centrava-se na proposta de Pai Tomé, aceita por
outros escravos, de sublevar os negros contra o senhor da fazenda — a primeira cena
dessa natureza na história da nossa literatura de ficção.

Na semana seguinte, em 25 de julho, O Porto Livre explicou aos leitores que


Clímaco se inspirara no "bárbaro assassinato do infeliz Capitão Bruno Meirelles" por
escravos, e que no final o Bem seria exaltado.

_________

DECLARAÇÃO

Declaramos aos nossos leitores que cessamos a publicação do atual folhetim O


Rancho do Pai Tomé, sendo a isso obrigados por ter o autor, o Ilmo. Sr. Dr. João
Clímaco Lobato, retirado os seus originais, visto como a isso foi obrigado por pedidos
do Exmo. Sr. Dr. Chefe de Polícia, que no dito romance enxergou doutrinas
subversivas! É muito! Medidas subversivas num romance, que é o reverso — o
contrário — do que se lê na Cabana do Tio (sic) Tomás, de Miss Harriet Stowe!... Num
romance que se descreve e profliga [reprova] o bárbaro assassinato do infeliz Capitão
Bruno Meirelles!...

Não sabemos como julgar-se de uma obra qualquer, sem a ter lido, ou julgá-la apenas
por uma cena, que se acha suspensa! Como no caso vertente, e que por nossa dignidade
e satisfação ao público hoje apenas podemos dar o fim dela.

Eis uma censura prévia! A mesma antiga Mesa de Consciência e Ordens [tribunal
atuante no Brasil, de 1808 a 1828], acreditamos, não embargaria que esse romance
corresse.

São mui mal fundados escrúpulos!...

Vemo-nos obrigados a dar esta satisfação ao público e convictos estamos que S.


Excia. em nosso lugar não deixaria de dá-la.
Porto Livre (São Luís, MA), 25/7/1862, número 49, página 4, segunda coluna.
http://memoria.bn.br/docreader/749516/93

Como sabe qualquer leitor de ficção, nela jamais se deve contar com a imutabilidade
das situações. "Espere surpresas" é a mensagem oculta de todas as histórias bem
construídas.

Não adiantou: após o segundo episódio, o folhetim saiu do Porto Livre para entrar na
História. Não se tem notícia de publicação do romance em livro impresso.

E o delegado deve ter se sentido justificado. No segundo episódio continuava o


discurso "subversivo" do Pai Tomé, a sua rebeldia ao estilo "ou vai ou racha". O final de
sua exortação aos companheiros oprimidos lembra Martin Luther King em seu famoso
discurso I Have a Dream (Eu tenho um sonho), ao expor um programa de libertação dos
negros e a inclusão deles na sociedade dos brancos, em situação de igualdade.

"Se todos os negros pensassem como eu e tu, deixaríamos de ser uma classe vil e
desprezível, oprimida sempre. Um dia surgiria para a nossa remissão, para nos
elevarmos a plano superior, que também nos compete, para dizermos a esses
brancos: 'Alto! Cesse o azorrague! Cesse a escravidão! Como vós, somos homens
livres e dotados dos mesmos sentimentos que vós outros'. Então... Oh! Então
cessarão as lágrimas... os brancos, acovardados pelo número, nos abrirão seus
braços... nos darão lugar em suas mesas, e parte em suas camas... Nossos filhos
cessarão de ser o joguete dos seus... mas se tornarão seus irmãos..."

João Clímaco Lobato já era, então, considerado o primeiro romancista maranhense,


graças a seu livro O Diabo, lançado em 1856. Amigo de Maria Firmina dos Reis,
primeira romancista maranhense e brasileira, dedicou-lhe outro romance, A Virgem da
Tapera, lançado também no ano de 1862.

Amigos, amigos, valores à parte.

Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista maranhense (e brasileira) tornou-se


conhecida por sua literatura combativa, na qual denunciou a opressão das mulheres
pelos homens, dos pobres pelos ricos, dos nativos pelos conquistadores e dos negros
pelos brancos.

Já Clímaco Lobato, como vimos, não compartilhava a posição de Maria Firmina


quanto à última forma de opressão.

Antes de Clímaco, Nísia Floresta já representara o desespero desses cativos em


Páginas de uma Vida Obscura, e Maria Firmina se tornara o primeiro escritor brasileiro
a dedicar um capítulo inteiro à narrativa de um escravo, nela incluindo, também pela
primeira vez, toda uma história de vida, desde a captura, passando pelo tráfico, venda e
longo cativeiro da escrava Suzana.

Para tristeza do autor maranhense, sua obra abortada, concebida para depreciar os
negros escravizados, foi a primeira a representar a raiva e o pleno anseio de liberdade
desse grupo humano em nosso país. Assim como Maria Firmina dos Reis ousara
pioneiramente dois anos antes, Clímaco Lobato deu voz a um personagem negro
inconformado com a própria situação de cativo. Mas o autor foi além das lamentações e
do sofrimento enunciados pelos escravos do romance Úrsula: deu a seus personagens o
propósito de sublevação contra os opressores brancos.

A arte, assim como a História em geral, é rica em ironias.

No Google, a busca desse O Rancho do Pai Tomé, entre aspas, gera apenas um
resultado: a tese (excelente) de doutorado em Letras intitulada A Prosa de Ficção nos
Jornais do Maranhão Oitocentista, trabalho de Antonia Pereira de Souza disponível na
Web desde 2017.

http://www.cchla.ufpb.br/ppgl/wp-content/uploads/2017/04/A-PROSA-DE-
FICÇÃO-NOS-JORNAIS-DO-MARANHÃO-OITOCENTISTA.pdf
O Rancho do Pai Tomé ou a Escravatura no Brasil

JOÃO CLÍMACO LOBATO

Primeiro episódio

A MÁ OVELHA PERDE O REBANHO TODO.

É no centro da situação de uma fazenda ou estabelecimento rural, bem junto da casa


de vivenda, que estava construído o rancho ou casa do Pai Tomé.

Não entraremos em descrições longas, pois a pequenez de um rancho é geralmente


conhecida. Pai Tomé era o escravo mais antigo da fazenda de Moreira; tinha assumido a
um caráter respeitado pelos outros escravos; livre e isento dos trabalhos, passava a vida
mergulhado na ociosidade — não que sua idade o eximisse de concorrer para o trabalho
da lavoura, pois apesar dos secos cinquenta anos era dotado de uma compleição atlética.
Seus ombros eram largos; braços fortes e musculosos, indicando grande força; o tronco
do corpo, direito e sustentado por duas boas pernas rijas como o ferro e flexíveis como a
cana. Seu rosto, no qual estava estampado o tipo de pura raça africana, era curto, largo e
achatado, bem como as narinas; seus olhos eram grandes e vivazes; cabelos negros,
carapinha.

Pai Tomé, dotado de uma índole perversa, sempre se mostrou rancoroso contra seu
senhor, apesar da benevolência com que este o tratava. Quase da mesma idade que
aquele, acompanhou-o sempre nos seus brinquedos [brincadeiras] da infância, por isso
Moreira sempre o distinguiu entre os outros seus escravos, tratando-o com
condescendência talvez culpável.

Tomé possuía inteligência em subido grau, o que é raro na pura raça africana, mas só
a empregava no mal. Um rancor fundo e inextinguível que sempre votou aos brancos,
com a idade, longe de enfraquecer, adquiria maior intensidade.

Tomé era um homem mau e um escravo perigoso.

Contudo, Moreira sempre lhe desculpou as faltas, e durante seu longo cativeiro
nunca lhe infligiu o menor castigo.

O sol no ocaso dourava o horizonte com esses raios cuja cor indefinível participava
do ouro, da safira e do fogo. O cume das árvores sempre reverdecidas, em virtude do
ameno clima brasileiro, refletia com cores prismáticas esses reflexos, que espalhados
entre as sombras formavam disformes e extravagantes vultos.

Eram seis e meia horas da tarde.

Os escravos, conduzindo os instrumentos agrários, voltavam das roças e se recolhiam


aos seus ranchos.
A Fazenda ou estabelecimento de lavoura de Moreira era situado, ainda que não
beira rio, contudo em um lugar aprazível e ameno. A vista se perdia em um oceano de
árvores, cujos cimos, uns mais elevados que outros, semelhavam a essas vagas
preguiçosas que lentamente se movem. Eram vagas continuadas, sobrepostas uma a
outras, com movimentos incertos e tardios, entrechocando-se, recuando, avançando-se e
às vezes rapidamente parando uma em frente de outra, como dois esforçados guerreiros
que se aprestam para um combate de morte, porém que antes admiram e calculam as
forças de seu contrário, para depois se arremessarem um contra o outro. Era assim que
representava o cume dessas árvores, embaladas à vontade dos ventos. A casa, edificada
em um plano limitado por todos os lados de matas, era assobradada, alta, airosa e de
simples construção. Do lado esquerdo seguia-se uma longa fileira de ranchos, do direito
outra, e pela frente, fechando esse quadro estavam as casas próprias para o gênero de
lavoura do país [da região].

Em um dos ângulos desse imenso quadrado havia uma larga porteira, que dava
comunicação para ele. De forma que, fechada ela, podia se considerar esse palco como
uma praça de guerra bem definida por suas muralhas.

Esse pátio, porém, não era despido de arvoredos, porquanto arruados de frondosos
cajueiros e mangueiras o sombreavam ainda mesmo nas horas em que o sol tocava ao
zênite. O rancho de Pai Tomé era o primeiro, contando da casa de vivenda, na ala
direita.

Uma sineta tangida com força encheu o espaço com esse som vibrante, agudo e fino
que lhe é peculiar.

Os escravos, acedendo a seu chamamento, se reuniram todos em frente da casa de


vivenda, e aí, da mão do Feitor, recebiam a ração para sua ceia, que constava de arroz
ou milho e carne. O Feitor com minuciosidade indagava de um por um dos escravos, e
os ia chamando por seus nomes e entregando a ração ao que, por ordem, se adiantava.

Depois de concluída a distribuição da ceia, o Feitor perguntou a um negro que lhe


estava próximo.

— Pai Tomé está doente?

— Que eu saiba, não.

— Quem já o viu hoje?

— Eu venho do seu rancho, e ele me pediu que lhe levasse a sua ração.

— Eita! Bom é que não seja por doença que ele falta à chamada.

Os escravos se dispersaram.

Aquele que se encarregou de receber e levar a ração de Tomé se dirigiu para o


rancho deste.
O rancho de Tomé constava de uma casa grande na frente que servia de cozinha, e
duas menores. Uma em que ele dormia, e outra sua mãe, a velha Paula. A primeira sala
só tinha por mobília um grosseiro banco; aí ardia um bom fogo, e uma panela de barro
cheia d'água colocada sobre o fogo em cima de três pedras chiava com o começo da
fervura.

Tomé, assentado no banco junto do fogo, com o rosto descansado nos punhos, com
os olhos fixos na panela, estava embebido em profunda meditação. O seu rosto exprimia
amargo desgosto... e [palavra ilegível] feros [ferozes], e hediondo [palavra ilegível],
seus lábios grossos e encarnados.

Se a sua fisionomia nunca inspirasse simpatia, pelo contrário, neste momento


causava asco e horror. Trajava umas calças de riscado do algodão — camisa alvadia,
cujas mangas arregaçadas até acima dos cotovelos deixavam nus dois braços fortes,
negros e nervudos — uma velha carapuça de baeta vermelha estava posta
desleixadamente na sua cabeça grande e achatada.

Tomé era negro... bem negro... e luzidio...

Em um canto dessa sala estava uma preta velha, acocorada sobre os calcanhares,
rezando em um rosário de grandes contas de pão. Os cabelos dessa negra, já
embranquecidos, indicavam qual a sua avançada idade. Ela era a decana da Fazenda de
Moreira, e tratada por seus companheiros de Mãe Paula.

Trajava uma saia de chita grosseira, e um cabeção de variegados pedaços de fazenda


apenas lhe cobria os peitos.

Tomé despertou de suas meditações, encarou a velha Paula e lhe falou com voz
áspera e rouquenha.

— Minha mãe, deixe essas rezas. O céu, como dizem os brancos, não foi feito para
os negros; portanto inúteis são rezas, que Deus não ouve. Para agradarmos ao Diabo,
com quem logo ajustaremos contas, mais devemos blasfemar do que rezar.

Paula não lhe respondeu, ou porque não o ouviu, ou porque não quis. Tomé, irritado
com o silêncio de sua mãe, se pôs de pé — caminhou para ela e, segurando-a pelos
punhos com tamanha violência que quebrou o fio do rosário, obrigou-a a encará-lo.

—Minha mãe, deixe isso para os brancos... Nós, os negros, nada contamos neste
mundo, e menos ainda na outra vida. Somos filhos de um pai maldito, que nos legou por
herança ódios — martírios e desprezos. O Deus dos brancos e só deles e para eles...

Paula o olhou com placidez — seus olhos despediram faíscas — e respondeu a seu
filho com amargor.

— O Deus dos brancos é também o Deus dos pretos... dos bons pretos... bem
entendido...
— Dos bons pretos?! E quais são os bons — quais os maus? Sim, eu vos entendo,
minha mãe. Os bons pretos são aqueles que entregam as costas ao azorrague sem soltar
uma queixa... e que bebem contentes as lágrimas que o martírio faz nascer... Os bons
são aqueles que se equiparam ao cavalo que consente a sela sem pular — ao boi, que
oferece o pescoço à carga sem mover-se... e corresponde ao aguilhão com um olhar
agradecido... Os bons escravos!... Oh! Os bons escravos!...

E soltou uma gargalhada gutural e diabólica.

— Os bons escravos — proferiu Paula com indignação — são aqueles que com o seu
trabalho pagam ao seu senhor o alimento e cuidados que este lhes presta... que sabem
agradecer àquele que os recompensa e os avalia como merecem...

— Aqueles que, como eu, reconhecem a sua qualidade do homem, que não se
sujeitam ao estado de coisas, e que fazem compreender aos outros — que eles são
homens dotados dos mesmos sentimentos... e que têm uma alma tão bem conformada
como a dos brancos... Os maus escravos são aqueles que, recebendo uma bofetada na
face esquerda, não entregam ainda a direita, mas sim com a destra vingam a afronta, e
com a mão esquerda cobrem a face ultrajada...

— Tomé?!...

Segundo episódio

— Sim, sou um mau escravo... quero sê-lo... porque sou homem... porque tenho uma
alma, que pensa como a dos brancos, que me diz que este mundo é de todos e para
todos, que suas belezas foram outorgadas a todos.... que eu por ser negro não nasci para
ser escravo, instrumento, coisa de um homem como eu... de um malvado...

— Ingrato! Ingrato! Ingrato!

Estas palavras, saídas como um grito da alma de Paula, aterraram a Tomé.

— Ingrato!? Mas não o sou. O homem, que esmaga a cobra que mais tarde o
morderia, é um ingrato? Oh! A raça branca é uma víbora que nos morde lentamente...
nos despedaça pouco o pouco, até chegar ao coração, para aí derramar o veneno que nos
há de matar. Esse branco, que se diz meu Senhor, se me trata bem é por ser covarde e
temer; ou então é uma fera que dá repouso à vítima para depois devorá-la... E além
disso, é ele o único branco?... Essa raça não se propaga e invade o mundo todo? A
África outrora viu em seu território homem algum dessa cor baça e pálida? Não... E
hoje? África geme... porque esses brancos são maus.

— Tomé! Tomé, tu não és meu filho! Os brancos, esses que tu maldizes, não têm me
sustentado durante toda a minha vida, não me deram a felicidade que eu podia gozar
neste mundo? E hoje não me dão alimento sem que eu lhes pague com o meu trabalho?
E tu, podes queixar-se deles sem remorsos?
— Sim. Remorsos teria eu se fosse um covarde... vil... indigno... um bom escravo,
como dizeis há pouco...

— Tomé... o diabo te tenta... e tu não queres resistir à sua tentação.

— O diabo! Sim, o diabo, que são os brancos. Eles me tentam a reassumir a minha
dignidade. Quando eu vejo esses negros, meus irmãos, cabisbaixos. descobertos e
silenciosos perante um só homem... Oh! Tenho vontade de ferir um por um... Matá-los,
para não ver tamanha covardia.

A posta do rancho se abriu, e por ela entrou um negro de formas perfeitas, olhar
límpido, contando quando muito vinte e cinco anos de idade, trazendo enfiado no braço
um pequeno cabaz de timbó. Era Antônio.

— Boa noite, Pai Tomé.

— Entra, Antônio.

— Aqui vos trago sua ração. O Feitor estranhou sua ausência...

— Oh! E nunca mais me verão... Hei de transpor os batentes daquela porta, ou


então... — E sacudiu a cabeça com intenção, e um riso convulsivo e alegre assomou, e
confrangiu seus lábios grossos.

— Eis aqui a sua ceia...

— Dai-me

Antônio estendeu a Tomé a mão que segurava o cabaz, e quando esperava que este o
receberia, uma pancada rápida e violenta atirou o cabaz ao teto, que caiu espalhando por
terra o conteúdo, que era carne e arroz....

— E sua ceia, Pai Tomé...

— Cala-te, Antônio, pois é por este preço vil e mesquinho que os brancos compram e
exigem a nossa liberdade e a nossa vida. Tu passas os dias curvado sobre a terra, onde
buscas a riqueza para ele, que em recompensa te dá o azorrague e um vil alimento...

— Assim é... é assim, Pai Tomé...

— De onde lhes veio direito de se apoderarem de nossos serviços?... De onde esse


poder de a seu grado dispor do nosso futuro?

— De Deus, Tomé, de Deus, que manda pagar o bem que recebemos dos nossos
semelhantes com o suor de nosso rosto... Aquele que conosco despendeu seu cabedal e
seus cuidados tem direito a uma ilimitada gratidão de nossa parte...

— Seu cabedal e seus cuidados?! E quem lhes dá esse cabedal senão os nossos
braços? Seus cuidados?... Oh! É o extravio e a perda de seus haveres que eles temem, e
não o cuidado de nossas vidas que os aflige. Se eu reparto meu alimento com o meu cão
de caça, não é por ele, mas pelo lucro que me dá. Se os animais de que me alimento
viessem às minhas mãos sem trabalho, por certo que não me incomodaria em alimentar
esse cão, então inútil... Assim pensam os brancos... assim somos nós.

— Tendes razão, Pai Tomé: os brancos só cuidam do produto de nosso trabalho, e


não de nós.

— Tomé, não queiras ser má ovelha do rebanho. Tuas palavras são perigosas... Vê:
Antônio até esse momento tem sido um bom escravo... ama a seus Senhores... porém de
ora em diante...

— É um homem, minha mãe, e aborrece [odeia] aos seus tiranos...

— Não.... não. Antônio não pode votar ódio a quem ainda não o ofendeu...

— A ele talvez não, mas sim a seus irmãos, aos membros dessa grande família dos
negros a que eu, ele, e vós, minha mãe, pertencemos.

Antônio, cheio de espanto, olhava ora para Paula, ora para Tomé, segundo falava este
ou aquela.

— Sim — disse Paula —, todos pertencemos a essa grande família dos negros, assim
como os brancos pertencem a outra grande família... Se nós devemos esposar o ódio de
nossos irmãos... os brancos devem fazer outro tanto... mas não... Quantas vezes, Tomé,
já fostes castigado pelo mal praticado por Antônio?

Esta pergunta simples e de uma lógica irresistível e impugnável atrapalhou a Tomé,


que encarou sua mãe com espanto e medo. Depois, porém, de poucos instantes de
meditação, Tomé readquiriu o seu frio rancor e levantou a cabeça com altivez.

— Que crime cometeu Antônio para ser separado de sua mãe e de seus irmãos, que
foram vendidos a outro senhor?

— Sim, sim, eles são nossos tiranos... só querem o nosso mal — exclamou Antônio.

— Meu Deus! — murmurou a velha Paula, levantando as mãos para o céu.

— Toca, Antônio — disse Tomé, estendendo a destra que Antônio apertou. — És um


negro... porém um homem, com força e energia bastantes para impor aos outros o
respeito que nos devem. Se todos os negros pensassem como eu e tu, deixaríamos de ser
uma classe vil e desprezível, oprimida sempre. Um dia surgiria para a nossa remissão,
para nos elevarmos a plano superior, que também nos compete, para dizermos a esses
brancos: "Alto! Cesse o azorrague! Cesse a escravidão! Como vós, somos homens livres
e dotados dos mesmos sentimentos que vós outros". Então... Oh! Então cessarão as
lágrimas... os brancos, acovardados pelo número, nos abrirão seus braços... nos darão
lugar em suas mesas, e parte em suas camas... Nossos filhos cessarão de ser o joguete
dos seus... mas se tornarão seus irmãos...

— Oh! Seria belo... porém nunca chegará esse dia... esse dia de prazer...
— Sim, nunca chegará porque o verme jamais deixará de ser verme, e a águia jamais
deixará de ser águia — bradou Paula, como inspirada.

— A águia jamais deixará de ser águia, e o verme sempre será verme. porém este
pode roer, e roerá até derrubar a árvore em que aquela o empoleira. O verme se roja
[arroja] pela terra, a águia fende os ares, porém quando, precipitada do seu trono, se
rojar por terra com o verme, no mesmo plano, será tão forte e tão imponente como
aquele... e então fraternizará...

— Sim — disse Paula — fraternizará para ocultar o seu ódio, para que o verme se
oculte na terra e, confiado na aparente amizade, mais tarde lhe sirva de pasto. Se a águia
fendendo os ares era superior ao verme, deste também não se lembrava, por isso que
buscava outros manjares; porém, rojada com ele por terra, o cobiçará... e o devorará...

Tomé ficou mudo, encarando sua mãe com espanto. A linguagem daquela era
sobremaneira forte, e lhe faltavam argumentos para refutá-la.

Antônio caía de espanto em espanto; sua mente fraca já vacilava em qual dos dois
devia seguir.

— Que importa! — bradou Tomé, com desespero. — Nós não nascemos para sermos
sempre escravos. Sair desta escravidão está em nosso poder... Unamo-nos... trabalhemos
todos para o mesmo fim... que o colosso cairá... e seremos felizes... e livres... livres e
felizes...

— Estou pronto... contai comigo...

— Bravo, Antônio!

— E a mim seguirão muitos. Adão, José, Paulo, Gustavo e Primo andam muito
descontentes.

Tomé saiu para fora de casa, convidando a Antônio para segui-lo...

— Escuta, Antônio, minha mãe já caduca e não pode ser depositária de grandes
segredos. Tu me faltaste em descontentes?

— Sim... sim...

— Bem... No dia designado de antemão por mim.... a hora da meia no [palavra


ilegível] devemos todos nos reunirmos na Lagoa. Para lá os emprazo... a todos que,
como eu, tiverem sentimentos e dignidade de homem.

— Eu os avisarei... Nós nos reuniremos.

Ainda por algum tempo se entretiveram estes dois negros na combinação de seu
plano, talvez de morte. E a noite já ia adiantada quando Tomé se recolheu ao seu
rancho.
Paula tinha adormecido no mesmo lugar em que a vimos, no começo deste capítulo,
e Tomé não a despertou; até pelo contrário, entrou para o seu quarto sem fazer rumor.

Fontes:

Porto Livre, 17 de julho de 1862, número 48, primeira e segunda páginas.

http://memoria.bn.br/DocReader/749516/86

http://memoria.bn.br/DocReader/749516/87

Porto Livre, 25 de julho de 1862, número 49, primeira e segunda páginas.

http://memoria.bn.br/DocReader/749516/90

http://memoria.bn.br/DocReader/749516/91

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