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O Rancho Do Pai Tomé, o Folhetim Escravocrata Censurado Por Instigar Os Escravos À Rebelião (1862)
O Rancho Do Pai Tomé, o Folhetim Escravocrata Censurado Por Instigar Os Escravos À Rebelião (1862)
https://1drv.ms/u/s!Aj6kOBkyV630khcEvKdfnFl6K5aP?e=hcoacK
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Resumo
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Apresentação
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 17/2/1980, número 313, página 6, primeira e
segunda colunas.
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/2274
http://memoria.bn.br/DocReader/154083_04/473
O Cruzeiro (Rio de Janeiro, RJ), 15/3/1980, número 14, página 10, última coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/003581/202511
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, RJ), 21/2/1981, número 317, página 14, primeira
coluna.
http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/20857
https://twitter.com/gilbertogil/status/1277749332133978112
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Para Clímaco, Harriet "só nos mostrou os bons sentimentos dos negros e escravos;
apresenta-os dotados daquela inteligência que a experiência tem mostrado faltar na
maior parte deles [...]".
Dizia Tomé, entre outras falas indignadas, para escândalo da mãe: "A África outrora
viu em seu território homem algum dessa cor baça e pálida? Não... E hoje? África
geme... porque esses brancos são maus".
No primeiro deles lê-se o aviso da fuga de uma escrava da viúva de Bruno Meirelles,
em junho de 1851.
Correio d'Anúncios (São Luís, MA), 23/6/1851, número 43, página 4, primeira
coluna
http://memoria.bn.br/DocReader/823562/129
http://memoria.bn.br/DocReader/707635/448
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Foi, não o negamos, a leitura do romance chamado A Cabana do Pai Tomás, por
Miss Harriet Stowe, que nos inspirou a composição do presente romance, que, pela
mesma razão com que a autora do citado romance lhe deu semelhante denominação,
intitulamos este nosso O Rancho do Pai Tomé, título este, ou tratamento que
ordinariamente damos aos negros de avançada idade.
Miss Stowe lançou mão e bem aproveitou todas aquelas circunstâncias que podem
despertar e despertam esse sentimento quando adormecido. Foi feliz na sua empresa; o
seu romance é um dos bons. Porém ela só nos mostrou os bons sentimentos dos negros e
escravos; apresenta-os dotados daquela inteligência que a experiência tem mostrado
faltar na maior parte deles (falo quanto ao Brasil), e na generalidade mostrou o belo da
medalha, que com tão belas e frescas cores ela pintou. Vamos pois nesse imperfeito
trabalho mostrar o verso dessa mesma medalha. E conquanto não caracterizemos com o
cunho da verdade todos os fatos narrados, muitos deles serão a fiel comemoração de
sucessos [fatos] que entre nós têm tido lugar.
J. C. Lobato.
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Porto Livre (São Luís, MA), 17/7/1862, número 48, página 1, seção de folhetim.
http://memoria.bn.br/docreader/749516/86
A cena que motivou a proibição centrava-se na proposta de Pai Tomé, aceita por
outros escravos, de sublevar os negros contra o senhor da fazenda — a primeira cena
dessa natureza na história da nossa literatura de ficção.
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DECLARAÇÃO
Não sabemos como julgar-se de uma obra qualquer, sem a ter lido, ou julgá-la apenas
por uma cena, que se acha suspensa! Como no caso vertente, e que por nossa dignidade
e satisfação ao público hoje apenas podemos dar o fim dela.
Eis uma censura prévia! A mesma antiga Mesa de Consciência e Ordens [tribunal
atuante no Brasil, de 1808 a 1828], acreditamos, não embargaria que esse romance
corresse.
Como sabe qualquer leitor de ficção, nela jamais se deve contar com a imutabilidade
das situações. "Espere surpresas" é a mensagem oculta de todas as histórias bem
construídas.
Não adiantou: após o segundo episódio, o folhetim saiu do Porto Livre para entrar na
História. Não se tem notícia de publicação do romance em livro impresso.
"Se todos os negros pensassem como eu e tu, deixaríamos de ser uma classe vil e
desprezível, oprimida sempre. Um dia surgiria para a nossa remissão, para nos
elevarmos a plano superior, que também nos compete, para dizermos a esses
brancos: 'Alto! Cesse o azorrague! Cesse a escravidão! Como vós, somos homens
livres e dotados dos mesmos sentimentos que vós outros'. Então... Oh! Então
cessarão as lágrimas... os brancos, acovardados pelo número, nos abrirão seus
braços... nos darão lugar em suas mesas, e parte em suas camas... Nossos filhos
cessarão de ser o joguete dos seus... mas se tornarão seus irmãos..."
Para tristeza do autor maranhense, sua obra abortada, concebida para depreciar os
negros escravizados, foi a primeira a representar a raiva e o pleno anseio de liberdade
desse grupo humano em nosso país. Assim como Maria Firmina dos Reis ousara
pioneiramente dois anos antes, Clímaco Lobato deu voz a um personagem negro
inconformado com a própria situação de cativo. Mas o autor foi além das lamentações e
do sofrimento enunciados pelos escravos do romance Úrsula: deu a seus personagens o
propósito de sublevação contra os opressores brancos.
No Google, a busca desse O Rancho do Pai Tomé, entre aspas, gera apenas um
resultado: a tese (excelente) de doutorado em Letras intitulada A Prosa de Ficção nos
Jornais do Maranhão Oitocentista, trabalho de Antonia Pereira de Souza disponível na
Web desde 2017.
http://www.cchla.ufpb.br/ppgl/wp-content/uploads/2017/04/A-PROSA-DE-
FICÇÃO-NOS-JORNAIS-DO-MARANHÃO-OITOCENTISTA.pdf
O Rancho do Pai Tomé ou a Escravatura no Brasil
Primeiro episódio
Pai Tomé, dotado de uma índole perversa, sempre se mostrou rancoroso contra seu
senhor, apesar da benevolência com que este o tratava. Quase da mesma idade que
aquele, acompanhou-o sempre nos seus brinquedos [brincadeiras] da infância, por isso
Moreira sempre o distinguiu entre os outros seus escravos, tratando-o com
condescendência talvez culpável.
Tomé possuía inteligência em subido grau, o que é raro na pura raça africana, mas só
a empregava no mal. Um rancor fundo e inextinguível que sempre votou aos brancos,
com a idade, longe de enfraquecer, adquiria maior intensidade.
Contudo, Moreira sempre lhe desculpou as faltas, e durante seu longo cativeiro
nunca lhe infligiu o menor castigo.
O sol no ocaso dourava o horizonte com esses raios cuja cor indefinível participava
do ouro, da safira e do fogo. O cume das árvores sempre reverdecidas, em virtude do
ameno clima brasileiro, refletia com cores prismáticas esses reflexos, que espalhados
entre as sombras formavam disformes e extravagantes vultos.
Em um dos ângulos desse imenso quadrado havia uma larga porteira, que dava
comunicação para ele. De forma que, fechada ela, podia se considerar esse palco como
uma praça de guerra bem definida por suas muralhas.
Esse pátio, porém, não era despido de arvoredos, porquanto arruados de frondosos
cajueiros e mangueiras o sombreavam ainda mesmo nas horas em que o sol tocava ao
zênite. O rancho de Pai Tomé era o primeiro, contando da casa de vivenda, na ala
direita.
Uma sineta tangida com força encheu o espaço com esse som vibrante, agudo e fino
que lhe é peculiar.
— Eu venho do seu rancho, e ele me pediu que lhe levasse a sua ração.
— Eita! Bom é que não seja por doença que ele falta à chamada.
Os escravos se dispersaram.
Tomé, assentado no banco junto do fogo, com o rosto descansado nos punhos, com
os olhos fixos na panela, estava embebido em profunda meditação. O seu rosto exprimia
amargo desgosto... e [palavra ilegível] feros [ferozes], e hediondo [palavra ilegível],
seus lábios grossos e encarnados.
Em um canto dessa sala estava uma preta velha, acocorada sobre os calcanhares,
rezando em um rosário de grandes contas de pão. Os cabelos dessa negra, já
embranquecidos, indicavam qual a sua avançada idade. Ela era a decana da Fazenda de
Moreira, e tratada por seus companheiros de Mãe Paula.
Tomé despertou de suas meditações, encarou a velha Paula e lhe falou com voz
áspera e rouquenha.
— Minha mãe, deixe essas rezas. O céu, como dizem os brancos, não foi feito para
os negros; portanto inúteis são rezas, que Deus não ouve. Para agradarmos ao Diabo,
com quem logo ajustaremos contas, mais devemos blasfemar do que rezar.
Paula não lhe respondeu, ou porque não o ouviu, ou porque não quis. Tomé, irritado
com o silêncio de sua mãe, se pôs de pé — caminhou para ela e, segurando-a pelos
punhos com tamanha violência que quebrou o fio do rosário, obrigou-a a encará-lo.
—Minha mãe, deixe isso para os brancos... Nós, os negros, nada contamos neste
mundo, e menos ainda na outra vida. Somos filhos de um pai maldito, que nos legou por
herança ódios — martírios e desprezos. O Deus dos brancos e só deles e para eles...
Paula o olhou com placidez — seus olhos despediram faíscas — e respondeu a seu
filho com amargor.
— O Deus dos brancos é também o Deus dos pretos... dos bons pretos... bem
entendido...
— Dos bons pretos?! E quais são os bons — quais os maus? Sim, eu vos entendo,
minha mãe. Os bons pretos são aqueles que entregam as costas ao azorrague sem soltar
uma queixa... e que bebem contentes as lágrimas que o martírio faz nascer... Os bons
são aqueles que se equiparam ao cavalo que consente a sela sem pular — ao boi, que
oferece o pescoço à carga sem mover-se... e corresponde ao aguilhão com um olhar
agradecido... Os bons escravos!... Oh! Os bons escravos!...
— Os bons escravos — proferiu Paula com indignação — são aqueles que com o seu
trabalho pagam ao seu senhor o alimento e cuidados que este lhes presta... que sabem
agradecer àquele que os recompensa e os avalia como merecem...
— Aqueles que, como eu, reconhecem a sua qualidade do homem, que não se
sujeitam ao estado de coisas, e que fazem compreender aos outros — que eles são
homens dotados dos mesmos sentimentos... e que têm uma alma tão bem conformada
como a dos brancos... Os maus escravos são aqueles que, recebendo uma bofetada na
face esquerda, não entregam ainda a direita, mas sim com a destra vingam a afronta, e
com a mão esquerda cobrem a face ultrajada...
— Tomé?!...
Segundo episódio
— Sim, sou um mau escravo... quero sê-lo... porque sou homem... porque tenho uma
alma, que pensa como a dos brancos, que me diz que este mundo é de todos e para
todos, que suas belezas foram outorgadas a todos.... que eu por ser negro não nasci para
ser escravo, instrumento, coisa de um homem como eu... de um malvado...
— Ingrato!? Mas não o sou. O homem, que esmaga a cobra que mais tarde o
morderia, é um ingrato? Oh! A raça branca é uma víbora que nos morde lentamente...
nos despedaça pouco o pouco, até chegar ao coração, para aí derramar o veneno que nos
há de matar. Esse branco, que se diz meu Senhor, se me trata bem é por ser covarde e
temer; ou então é uma fera que dá repouso à vítima para depois devorá-la... E além
disso, é ele o único branco?... Essa raça não se propaga e invade o mundo todo? A
África outrora viu em seu território homem algum dessa cor baça e pálida? Não... E
hoje? África geme... porque esses brancos são maus.
— Tomé! Tomé, tu não és meu filho! Os brancos, esses que tu maldizes, não têm me
sustentado durante toda a minha vida, não me deram a felicidade que eu podia gozar
neste mundo? E hoje não me dão alimento sem que eu lhes pague com o meu trabalho?
E tu, podes queixar-se deles sem remorsos?
— Sim. Remorsos teria eu se fosse um covarde... vil... indigno... um bom escravo,
como dizeis há pouco...
— O diabo! Sim, o diabo, que são os brancos. Eles me tentam a reassumir a minha
dignidade. Quando eu vejo esses negros, meus irmãos, cabisbaixos. descobertos e
silenciosos perante um só homem... Oh! Tenho vontade de ferir um por um... Matá-los,
para não ver tamanha covardia.
A posta do rancho se abriu, e por ela entrou um negro de formas perfeitas, olhar
límpido, contando quando muito vinte e cinco anos de idade, trazendo enfiado no braço
um pequeno cabaz de timbó. Era Antônio.
— Entra, Antônio.
— Dai-me
Antônio estendeu a Tomé a mão que segurava o cabaz, e quando esperava que este o
receberia, uma pancada rápida e violenta atirou o cabaz ao teto, que caiu espalhando por
terra o conteúdo, que era carne e arroz....
— Cala-te, Antônio, pois é por este preço vil e mesquinho que os brancos compram e
exigem a nossa liberdade e a nossa vida. Tu passas os dias curvado sobre a terra, onde
buscas a riqueza para ele, que em recompensa te dá o azorrague e um vil alimento...
— De Deus, Tomé, de Deus, que manda pagar o bem que recebemos dos nossos
semelhantes com o suor de nosso rosto... Aquele que conosco despendeu seu cabedal e
seus cuidados tem direito a uma ilimitada gratidão de nossa parte...
— Seu cabedal e seus cuidados?! E quem lhes dá esse cabedal senão os nossos
braços? Seus cuidados?... Oh! É o extravio e a perda de seus haveres que eles temem, e
não o cuidado de nossas vidas que os aflige. Se eu reparto meu alimento com o meu cão
de caça, não é por ele, mas pelo lucro que me dá. Se os animais de que me alimento
viessem às minhas mãos sem trabalho, por certo que não me incomodaria em alimentar
esse cão, então inútil... Assim pensam os brancos... assim somos nós.
— Tomé, não queiras ser má ovelha do rebanho. Tuas palavras são perigosas... Vê:
Antônio até esse momento tem sido um bom escravo... ama a seus Senhores... porém de
ora em diante...
— Não.... não. Antônio não pode votar ódio a quem ainda não o ofendeu...
— A ele talvez não, mas sim a seus irmãos, aos membros dessa grande família dos
negros a que eu, ele, e vós, minha mãe, pertencemos.
Antônio, cheio de espanto, olhava ora para Paula, ora para Tomé, segundo falava este
ou aquela.
— Sim — disse Paula —, todos pertencemos a essa grande família dos negros, assim
como os brancos pertencem a outra grande família... Se nós devemos esposar o ódio de
nossos irmãos... os brancos devem fazer outro tanto... mas não... Quantas vezes, Tomé,
já fostes castigado pelo mal praticado por Antônio?
— Que crime cometeu Antônio para ser separado de sua mãe e de seus irmãos, que
foram vendidos a outro senhor?
— Sim, sim, eles são nossos tiranos... só querem o nosso mal — exclamou Antônio.
— Oh! Seria belo... porém nunca chegará esse dia... esse dia de prazer...
— Sim, nunca chegará porque o verme jamais deixará de ser verme, e a águia jamais
deixará de ser águia — bradou Paula, como inspirada.
— A águia jamais deixará de ser águia, e o verme sempre será verme. porém este
pode roer, e roerá até derrubar a árvore em que aquela o empoleira. O verme se roja
[arroja] pela terra, a águia fende os ares, porém quando, precipitada do seu trono, se
rojar por terra com o verme, no mesmo plano, será tão forte e tão imponente como
aquele... e então fraternizará...
— Sim — disse Paula — fraternizará para ocultar o seu ódio, para que o verme se
oculte na terra e, confiado na aparente amizade, mais tarde lhe sirva de pasto. Se a águia
fendendo os ares era superior ao verme, deste também não se lembrava, por isso que
buscava outros manjares; porém, rojada com ele por terra, o cobiçará... e o devorará...
Tomé ficou mudo, encarando sua mãe com espanto. A linguagem daquela era
sobremaneira forte, e lhe faltavam argumentos para refutá-la.
Antônio caía de espanto em espanto; sua mente fraca já vacilava em qual dos dois
devia seguir.
— Que importa! — bradou Tomé, com desespero. — Nós não nascemos para sermos
sempre escravos. Sair desta escravidão está em nosso poder... Unamo-nos... trabalhemos
todos para o mesmo fim... que o colosso cairá... e seremos felizes... e livres... livres e
felizes...
— Bravo, Antônio!
— E a mim seguirão muitos. Adão, José, Paulo, Gustavo e Primo andam muito
descontentes.
— Escuta, Antônio, minha mãe já caduca e não pode ser depositária de grandes
segredos. Tu me faltaste em descontentes?
— Sim... sim...
Ainda por algum tempo se entretiveram estes dois negros na combinação de seu
plano, talvez de morte. E a noite já ia adiantada quando Tomé se recolheu ao seu
rancho.
Paula tinha adormecido no mesmo lugar em que a vimos, no começo deste capítulo,
e Tomé não a despertou; até pelo contrário, entrou para o seu quarto sem fazer rumor.
Fontes:
http://memoria.bn.br/DocReader/749516/86
http://memoria.bn.br/DocReader/749516/87
http://memoria.bn.br/DocReader/749516/90
http://memoria.bn.br/DocReader/749516/91