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Apresentação de Raúl Antelo a Um acontecimento na vida do pintor-viajante, de César

Aira1

A narrativa de César Aira pratica uma estética do abandono. É uma obra em


miniatura que se derrama, como efeito potlatch, através de infinitos títulos. Dela se
poderia dizer (como Aira disse em relação a Max Beerbohm) que é uma obra frívola,
contrária à sociedade, à transcendência e ao compromisso ideológico, traços que a
empurram em direção ao anacronismo.
Na estética do abandono, aquilo de que se toma distância é a vida tal como era
concebida. A literatura de Aira torna-se assim instrumento privilegiado de negação: ela
vê a vida como algo já vivido mas, longe de propor um retorno do mesmo – a vivência
do déjà vécu –, o abandono se traduz em êxtase, reverso exato, certamente suplementar,
da melancolia modernista. O abandono consiste, pois, em poder não-saber acerca de um
presente que sempre chega tarde demais, embora não se disponha de outro tempo, a não
ser este (já póstumo), para a experiência. Em poucas palavras, contra a hierarquia
estruturada do alto modernismo, Aira lança mão de uma forma fluida ideorrítmica, a do
informe contemporâneo.
Contudo, Aira não abandona por pobreza, mas por deliberada vocação de
ausência. Sabe que na origem da literatura está a literatura. Assim, Um acontecimento
na vida do pintor-viajante recua ao passado para nele descobrir nossa maneira de
imaginar a história. (É a tese de Flora Süssekind a respeito da paisagem brasileira no
Oitocentos, calcada sobre imagens dos viajantes e que instaura uma representação tão
poderosa quanto cindida, a de que o Brasil não é longe daqui.) A ficção de Aira não
pratica, entretanto, a alegoria. Desdenha toda permanência estrutural que garanta a
determinabilidade do sentido ou aponte, em última análise, a um valor central e
definitivo, incapaz de ser alterado sem abalar todo o sistema. Na narrativa de Aira, a
não-simultaneidade do simultâneo funciona como um procedimento de atraso ou
diferença, como uma alternância de ritmos narrativos que postulam a reversibilidade das
forças plurais da narrativa. Em Um acontecimento na vida do pintor-viajante, Aira
procede, à maneira de Duchamp ou de Oswald de Andrade, a partir de um ready-made,
uma história já contada, a do pintor Rugendas, que lhe serve para desconstruir um lugar-
comum, o de que Rugendas, um alter-ego de Humboldt, só teria produzido documentos,

1
AIRA, C. Um acontecimento na vida do pintor-viajante. Tradução de Paulo Andrade
Lemos. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
quando, a rigor, ele prepara o impressionismo. Rugendas é o semblante do artista
celibatário. Sua paixão, a de um G.H. do absoluto pampeano, que já não se debate no
movimento pendular entre o local e o cosmopolita, mas postula a diferença de uma
singularidade irredutível.

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