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Simone de Beauvoir
39 - Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Departamento
de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
40 - Disponível em http://g1.globo.com/educacao/enem/2015/noticia/2015/10/questao-sobre-feminismo-
no-enem-2015-e-lembrada-nas-redes-sociais.html. Acessado em 02/12/2015.
41 - Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/10/promotor-causa-
A conotação irônica e equivocada, demonstra, além de desconhecimentos em
diferentes instâncias por parte de seu autor, a evidente instabilidade que marcou o ano
de 2015 (e não seria incorreto incluir aqui o primeiro quartel de 2016) de forma bastante
peculiar no que diz respeito aos projetos sociais e políticas públicas, dentre as quais
incluímos aquelas direcionadas à educação. Elegemos como acontecimento representativo
as discussões sobre a presença da questão sobre Simone de Beauvoir e o feminismo no
Exame Nacional do Ensino Médio de 2015, porém devemos referenciar igualmente os
intermináveis debates a respeito da incongruente “ideologia de gênero”, os projetos para
a exclusão do termo gênero de Planos Estaduais e Municipais de Educação e, igualmente,
a ausência praticamente absoluta à referências sobre gênero do texto preliminar da Base
Nacional Comum Curricular, submetida a leitura e discussão pública em fins de 2015.
Afirmar que a educação pode ser considerada um campo profícuo de disputas políticas
não é certamente uma novidade. Tais disputas são evidentes quando direcionamos nosso
olhar às especificidades da história do ensino de História em suas inúmeras imbricações. Ao
tratar das relações entre a composição de currículos de História e políticas públicas, Katia
Abud chama atenção para o caráter intervencionista que currículos e programas podem
apresentar. (Cf. ABUD, 2002, p. 28.) Sua argumentação apresenta uma leitura sintética,
porém eficaz, da trajetória da História como disciplina escolar no Brasil. Reflexão similar
é apresentada por Thais Nivia de Lima e Fonseca, que ressalta os diferentes momentos em
que a disciplina escolar História foi colocada (ao menos em sua forma prescrita) a serviço
de projetos de estado e/ou nação – a partir do século XIX. (Cf. FONSECA, 2011.)
42 - É importante ressaltar que nossa concepção de disciplina escolar está pautada em Dominique Julia
(2002) e é aqui compreendida como um conjunto de conhecimentos com características e organização
própria, com objetivos e métodos próprios, concernentes ao conteúdo com o qual dialoga.
43 - No que diz respeito às reformas supracitadas, entre as distinções existentes é importante ponderar que
em 1931 a Reforma Francisco Campos centralizou a definição de programas e instruções no Ministério da
Educação e da Saúde Pública, retirando, dessa maneira, a autonomia das escolas. O ensino de História do
Brasil foi subsumido pela História da civilização. A Reforma Gustavo Capanema, em 1942, restabeleceu a
autonomia da disciplina História do Brasil.
de progresso e as desigualdades seriam legitimadas como fatos universais e naturais”.
(FONSECA, 2011, p. 58.)
Não nos propomos aqui a realizar uma genealogia do que viria a ser a desacertada
ideologia de gênero. Uma breve busca na internet, porém, coloca-nos em contato com
espaços curiosos, como o sítio virtual da Arquidiocese de Goiânia, onde encontramos
algumas sinalizações de como a noção é apresentada. O texto anônimo chamado “O que é
Ideologia de Gênero?”44 estabelece como marco das discussões o ano de 2013, quando da
proposta (não aprovada) de inclusão da palavra gênero no Plano Nacional de Educação.
No que diz respeito aos riscos descritos, eles são elencados na cartilha que se
apresenta (de forma anônima, novamente) com o objetivo de explicar às famílias o que
seria a ideologia de gênero.45 Já na capa, encontramos uma chamada bastante apelativa
que indica a tônica da abordagem: “Conheça esta ideologia e entenda o perigo que você
e seus filhos estão correndo”. Sua ilustração é igualmente sugestiva quando observamos
o modelo de família exemplar: Pai, mãe, filho, filha, gato e cachorro. Todos brancos.
Interessante notar, nesse sentido, que animais domésticos têm espaço nessa conformação
familiar. Casais homossexuais, não. Ao longo da cartilha, cuja circulação ganha força
em junho de 2015, encontramos a proposição de esclarecimentos sobre a ideologia de
gênero claramente respaldada, tanto por um conservadorismo extremo quanto pelo
45- A cartilha anônima “Você já ouviu falar sobre a ‘ideologia de gênero’?” é facilmente encontrada na
internet. Em junho de 2015 foi disponibilizada em sítios eletrônicos de inúmeras igrejas e arquidioceses
católicas. Para a elaboração destas reflexões, utilizamos o link encontrado em: https://igrejansn.files.
wordpress.com/2015/07/cartilha-ideologia-de-genero.pdf. Acesso em: 15 Mar. 2016.
desconhecimento daquilo que é efetivamente possibilitado pelos estudos de gênero. É
nítida a apropriação de sentenças caras aos movimentos feministas, como logo na abertura:
“A ‘Ideologia de Gênero’ afirma que ninguém nasce homem ou mulher [...]”, fazendo
referência velada à Simone de Beauvoir. A sequência do texto, porém, apresenta conceitos
simplificados e utilizados de forma irresponsável, na medida em que são esvaziados de
seus múltiplos sentidos e tornados evidências monolíticas de uma falsa verdade: citamos
gênero, identidade, representação e personalidade.
Tal esvaziamento, vale dizer, vem acompanhado de uma estratégia narrativa que
demoniza o outro, transformando em “outro” todos e todas que agem ou se manifestam
de modo a divergir do que é preconizado pela cartilha. Busca-se, ao longo do texto, a
construção de uma polarização entre nós e eles, certos e errados. Por exemplo:
Quer dizer que essas pessoas acham que “ser homem” e “ser mulher”
são papéis que cada um representa como quiser? Exatamente. Para
eles, não existe “homem” ou “mulher”, é cada um que deve inventar sua
própria personalidade, como quiser. (ANÔNIMO, 2015. Grifos nossos.)
Acontecerá que todas as nossas crianças deverão aprender que não
são meninos ou meninas, e que precisam inventar um gênero para si
mesmas. (ANÔNIMO, 2015. Grifo nosso.)
Ainda que existisse uma iniciativa a respeito da inserção das discussões de gênero
nos planos de educação, tal iniciativa estava alinhada às proposições de uma educação
para a diversidade, presentes já nos PCNs, e que buscava tão somente a construção de
um projeto de educação em prol da igualdade de direitos e cidadania, princípios caros
à uma sociedade verdadeiramente democrática. Os riscos apontados pela cartilha, além
de desconsiderarem a existência de um campo de estudos sério e comprometido, são
enganosos e tendenciosos. Esses enganos, certamente, geraram reações. Referendamos
aqui o minucioso trabalho da professora Jimena Furlani, ao destrinchar os equívocos e
apresentar detalhadamente a imperativa necessidade dos estudos de gêneros na sociedade
contemporânea.46
46 - O trabalho publicado por Jimena Furlani em junho de 2015 foi amplamente compartilhado nas redes
sociais e disponibilizado em sítios de centros de estudos e laboratórios dedicados aos estudos de gênero. É
importante pontuar que, na versão atualizada de janeiro de 2016, Furlani constata que a autoria da cartilha
pode ser atribuída a Felipe Nery, presidente do Observatório Interamericano de Biopolítica, que a assume
no vídeo intitulado “Ideologia de Gênero e o Plano Municipal de Educação”, publicado no youtube em 18
de abril de 2015.
da cartilha, ao longo do segundo semestre de 2015, observamos a não inclusão da noção
de gênero em inúmeros planos de educação aprovados em nível estadual e municipal. No
dia 25 de junho de 2015, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem denominada
“Por pressão, planos de educação de 8 Estados excluem ‘ideologia de gênero’”. (BRITTO;
REIS, 2015.) A reportagem, ao adotar a expressão “ideologia de gênero” em seu título,
mostra-nos a eficácia discursiva da proposição e contribui, em certa medida (e mesmo
que de maneira não intencional), para sua disseminação. Em termos de conteúdo, trata
da retirada das referências a identidade de gênero, diversidade e orientação sexual dos
Planos Estaduais de Educação em oito estados, os quais estabeleceram diretrizes para o
ensino nos próximos dez anos, conforme o Plano Nacional de Educação. A retirada teria
consolidado-se por pressão das bancadas religiosas, com o respaldo de igrejas católicas
e evangélicas. Além desse resultado, por nós considerado um verdadeiro retrocesso, é
necessário lembrar que no mesmo ano de 2015 tramitaram no Congresso uma série de
projetos de lei buscando vetar do vocabulário escolar os termos gênero e orientação sexual.
Fazer defeitos nas memórias. É a partir das palavras de Manoel de Barros que
Durval Muniz de Albuquerque Júnior propõe sentidos e objetivos para a escrita e o ensino
de História. Para o autor, a História, através de suas articulações éticas e políticas, deve nos
“[...] ensinar a conviver com a diversidade, a respeitar a alteridade e a diferença, que é a
condição exata do mundo em que vivemos”. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 33.) Ao
apresentar o presente como diferença, a História deve, segundo Albuquerque Junior, não
tecer louros ao passado, mas possibilitar a construção responsável de um presente através
da crítica, da reflexão e da contestação às memórias cristalizadas e monumentalizadas.
Esse passado tão presente, desafio cotidiano daqueles e daquelas que se dedicam ao
exercício docente da história, é constituído por relações de poder, por relações sociais dentre
as quais situamos as de gênero. É importante destacar, destarte, que o conceito de gênero
não pode ser compreendido de forma uníssona. A amplitude dos debates acadêmicos
possibilita-nos, talvez, uma certeza: que ele é tão plástico quanto necessário. Para Guacira
Lopes Louro, é “[...] indispensável admitir que até mesmo as teorias e as práticas feministas
– com suas críticas aos discursos sobre gênero e suas propostas de desconstrução – estão
construindo gênero”. (LOURO, 1997, p. 35.) Isso implica assumir que os debates acerca da
insuficiência de categorias advindas do próprio movimento feminista (como as categorias
mulher e mulheres) devem ser considerados quando buscamos operacionalizar o conceito
de gênero em nossa prática cotidiana e reflexão.
O passado nos atinge por diferentes caminhos. Helenice Rocha, respaldada pelas
reflexões de Jörn Rüsen, apresenta-nos a proposição de uma cultura histórica fortemente
amparada na memória social. (ROCHA, 2014, p. 38.) Essa cultura, por sua vez, apresenta-
se em dimensões políticas, estéticas e cognitivas. É nessa última que situamos a História
científica e a História escolar (distintas, porém profundamente imbricadas, conforme dito
anteriormente). Ainda que possamos compartilhar diferentes referenciais sobre o passado,
afinal ele pode nos tocar através de jornais, novelas, histórias familiares, retratos, jogos,
crenças religiosas, entre outros, é na escola que temos acesso ao passado oficializado. Aos
eventos eleitos como chaves de compreensão para o que somos. Na maioria das vezes,
porém, a História escolar, ainda que traga consigo a afirmação de que todos são sujeitos da
história, não possibilita reconhecimento efetivo destes mesmos sujeitos com o repertório
apresentado a respeito do passado. No que diz respeito as identidades de gênero, tal
afirmação torna-se bastante evidente. Essa ausência de um reconhecimento faz com que
a História escolar torne-se, por vezes, distante e desimportante para os alunos, perdendo
assim seu potencial de orientação e, por que não, transformação.
Por que afinal estudar algo que não nos diz respeito? Essa pergunta não verbalizada
tornou-se ensurdecedora durante uma experiência organizada e desenvolvida por alunos
do curso de História da UDESC, em atividade vinculada ao Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação a Docência – PIBID, durante o segundo semestre de 2015.47 Os alunos
participantes desse programa deparam-se com desafios e dificuldades concernentes
ao cotidiano docente. Tiveram a possibilidade, dessa maneira, de apurar o olhar e de
experimentar as demandas do ofício antes mesmo da conclusão de seus cursos de
licenciatura. No curso de História, a participação no PIBID amplia os debates sobre o
ensino de História e sobre a responsabilidade do professor na educação histórica de alunas
e alunos. Dentre os desafios cotidianos, citamos a elaboração de atividades sobre temas
diversos, a serem desenvolvidos com turmas de diferentes níveis de escolarização. Os
assuntos são escolhidos coletivamente, procurando sempre adequar-se às necessidades
dos alunos e ao que é trabalhado em sala, pelo professor supervisor, na unidade escolar.
Esse foi o desafio assumido por um grupo de estudantes de História que recebeu
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABUD, Kátia. Currículos de História e Políticas Públicas: os programas de História do
Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe. (Org.). O saber histórico na sala
de aula. São Paulo: Contexto, 2002.
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o
ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida; et al. Qual o valor da
história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do projecto a avaliação. In: ______. (Org.). Para uma
educação histórica com qualidade: Actas das IV Jornadas Internacionais de Educação
Histórica. Braga: Centro de Estudos e, Educação e Psicologia, Universidade do Minho,
2004.
BRITTO, Patrícia; REIS, Lucas. Por pressão, planos de educação de 8 Estados excluem
“ideologia de gênero”. Folha de São Paulo, SP, 25 Jun. 2015. Disponível em: <www1.folha.
uol.com.br/educacao/2015/06/1647528-por-pressao-planos-de-educacao-de-8-estados-
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FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História e Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.
LEE, Peter. Por que aprender História? Educar em revista, Curitiba, Editora UFPR, n. 42,
Out-Dez 2011.
SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and politics of history. Cadernos Pagu, n. 3, 1994.