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GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: DEMANDAS DE UM

TEMPO PRESENTE

Caroline Jaques Cubas39

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”

Simone de Beauvoir

“Organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero”. Essa foi


a alternativa C da amplamente debatida questão 1 da prova de Ciências Humanas e suas
Tecnologias no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2015. A referida questão,
em relação a qual pudemos observar as mais diversas reações, dizia respeito a máxima
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, de autoria de Simone de Beauvoir, citada
textualmente no enunciado. As intensas reações à presença dessa questão no exame
puderam ser percebidas no dia mesmo de sua realização, quando observamos o que se
comentava em diferentes redes sociais. Posicionamentos de entusiasmo e alegria, pela
visibilidade nacional possibilitada ao movimento feminista, dividiram espaço com críticas
e reprovações ao caráter supostamente “indevido” da questão. Dentre as manifestações de
agrado, podemos citar a veiculação de inúmeras fotos da questão, ilustradas com corações
e exclamações. Os incontáveis compartilhamentos vinham comumente acompanhados
por legendas entusiasmadas como: “eu vivi para ver um dia o Exame Nacional do Ensino
Médio, Enem, perguntar sobre Simone de Beauvoir e o feminismo <3” e “Sabe por que
é certo militar? Porque teve questão sobre feminismo e cultura patriarcal no Enem”.40 De
maneira diametralmente contrária, o desagravo também se fez presente. Nesse sentido,
reproduzimos abaixo a postagem de um promotor que ganhou grande repercussão devido
ao teor inusitado de sua assertiva:

Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam


jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga (sic) francesa que
não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida
pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã
e se depila.41

39 - Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Departamento
de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

40 - Disponível em http://g1.globo.com/educacao/enem/2015/noticia/2015/10/questao-sobre-feminismo-
no-enem-2015-e-lembrada-nas-redes-sociais.html. Acessado em 02/12/2015.

41 - Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/sorocaba-jundiai/noticia/2015/10/promotor-causa-
A conotação irônica e equivocada, demonstra, além de desconhecimentos em
diferentes instâncias por parte de seu autor, a evidente instabilidade que marcou o ano
de 2015 (e não seria incorreto incluir aqui o primeiro quartel de 2016) de forma bastante
peculiar no que diz respeito aos projetos sociais e políticas públicas, dentre as quais
incluímos aquelas direcionadas à educação. Elegemos como acontecimento representativo
as discussões sobre a presença da questão sobre Simone de Beauvoir e o feminismo no
Exame Nacional do Ensino Médio de 2015, porém devemos referenciar igualmente os
intermináveis debates a respeito da incongruente “ideologia de gênero”, os projetos para
a exclusão do termo gênero de Planos Estaduais e Municipais de Educação e, igualmente,
a ausência praticamente absoluta à referências sobre gênero do texto preliminar da Base
Nacional Comum Curricular, submetida a leitura e discussão pública em fins de 2015.

Afirmar que a educação pode ser considerada um campo profícuo de disputas políticas
não é certamente uma novidade. Tais disputas são evidentes quando direcionamos nosso
olhar às especificidades da história do ensino de História em suas inúmeras imbricações. Ao
tratar das relações entre a composição de currículos de História e políticas públicas, Katia
Abud chama atenção para o caráter intervencionista que currículos e programas podem
apresentar. (Cf. ABUD, 2002, p. 28.) Sua argumentação apresenta uma leitura sintética,
porém eficaz, da trajetória da História como disciplina escolar no Brasil. Reflexão similar
é apresentada por Thais Nivia de Lima e Fonseca, que ressalta os diferentes momentos em
que a disciplina escolar História foi colocada (ao menos em sua forma prescrita) a serviço
de projetos de estado e/ou nação – a partir do século XIX. (Cf. FONSECA, 2011.)

Vale aqui ressaltar o processo de institucionalização da História escolar e sua


diferenciação da chamada ciência histórica, na medida em que são campos absolutamente
próximos, porém distintos. Essa diferenciação pode ser pensada a partir de Reinhardt
Koselleck quando, ao tratar da configuração do moderno conceito de História, apresenta o
percurso do termo e da atribuição de um estatuto de cientificidade ao mesmo. Desnaturaliza,
dessa forma, do seu caráter imanente. (Cf. KOSELLECK, 2013.) Se através de Koselleck
temos acesso a polissemia do termo História, as suas potencialidades e riscos enquanto
prática narrativa, é Jörn Rüsen que nos apresenta, através de um estudo do caso alemão,
o processo de dissociação da ciência histórica e de sua função didática. (Cf. Rüsen, 2006.)
Para o autor, a percepção padrão (e que podemos também constatar no Brasil) a respeito
da didática da História (que a trata como uma ferramenta ou abordagem formalizada
para ensinar História em escolas e que faria não mais que a mediação entre a História
como disciplina acadêmica e a História escolar) é, segundo suas palavras, extremamente
enganosa. Isto porque tal percepção, ancorada no século XIX, oblitera justamente as
potencialidades dos usos da História na vida prática. Lembramos, segundo Rüsen, que
“[...] da antiguidade até as últimas décadas do século XIX [...] a escrita da história era
orientada pela moral e pelos problemas práticos da vida, e não pelos problemas teóricos
ou empíricos da cognição metódica”. (Rüsen, 2006, p. 08.) Em fins do século XVIII
e princípios do XIX assistimos ao processo de institucionalização da História como

polemica-ao-dizer-que-mulher-nasce-baranga-francesa.html. Acesso em: 02 Dez. 2015.


disciplina científica. Nesse processo, as funções sociais da História foram aos poucos
cedendo espaço às preocupações metodológicas de uma pesquisa racional e verificável, que
auxiliariam a obtenção de um almejado estatuto de cientificidade. As preocupações com a
aprendizagem da História foram, gradualmente, assumidas pela pedagogia. Sendo assim,
ressaltamos que a dissociação entre conhecimento científico/acadêmico e conhecimento
escolar – especialmente se entendido como mero instrumento de mediação42 – deve ser
compreendida em sua historicidade.

No que diz respeito às particularidades do caso brasileiro, a institucionalização da


História como disciplina escolar pode ser pensada como parte de um ideário político de
construção e legitimação de um projeto de nação. Projeto esse encabeçado por iniciativas
como a inauguração do IHGB, em 1838, e do Colégio Pedro II, em 1839. Segundo Fonseca,
a definição de uma identidade nacional era central para o projeto da construção da nação
brasileira. A educação figuraria, portanto, como seu sustentáculo. Não é ocasional que
o IHGB tenha assumido a missão de elaborar uma história nacional, a qual deveria ser
difundida justamente através do ensino de História. A escolha do plano de Von Martius,
sobre a mistura das três raças e o processo de branqueamento como caminho para
a civilização, foi sucedida pela produção e tentativa de disseminação dessa narrativa
nacional. A escola seria, portanto, o espaço profícuo para o cumprimento dessa meta.

Do IHGB ela passaria diretamente às salas de aulas por meio dos


programas curriculares e dos manuais didáticos, em geral escritos
pelos próprios sócios do Instituto. [...] É nesse quadro, portanto, que se
inscreve a constituição da História como disciplina escolar no Brasil.
(FONSECA, 2011, p. 46.)

A função moralizante, ordenadora e nacionalista atribuída à História escolar não se


restringiu ao século XIX. Nas décadas de 30 e 40 do século XX, sob o governo de Getúlio
Vargas, a escola e o ensino de História ocuparam novamente papel central no projeto
de conformação de unidade nacional. Ainda que de maneiras bastante distintas, tanto
a reforma Francisco Campos, de 1931, quanto a Reforma Gustavo Capanema, de 1942,
delegavam à História o papel de formação política e patriótica.43 Durante os anos 1960 e
1970, em plena ditadura militar, ocorreu um novo interesse pelo ensino de História, dessa
vez, porém, no sentido de desmobilização e controle ideológico. A disciplina Estudos
Sociais, resultado da associação da Geografia e da História, deveria promover um ensino
diretivo e não crítico, através do qual “[...] a ordem social, livre de conflitos, seria fator

42 - É importante ressaltar que nossa concepção de disciplina escolar está pautada em Dominique Julia
(2002) e é aqui compreendida como um conjunto de conhecimentos com características e organização
própria, com objetivos e métodos próprios, concernentes ao conteúdo com o qual dialoga.

43 - No que diz respeito às reformas supracitadas, entre as distinções existentes é importante ponderar que
em 1931 a Reforma Francisco Campos centralizou a definição de programas e instruções no Ministério da
Educação e da Saúde Pública, retirando, dessa maneira, a autonomia das escolas. O ensino de História do
Brasil foi subsumido pela História da civilização. A Reforma Gustavo Capanema, em 1942, restabeleceu a
autonomia da disciplina História do Brasil.
de progresso e as desigualdades seriam legitimadas como fatos universais e naturais”.
(FONSECA, 2011, p. 58.)

É evidente que as passagens ressaltadas acima são insuficientes para apresentar as


particularidades atribuídas ao ensino de História no Brasil ao longo de uma trajetória de
quase 200 anos. Por outro lado, salta aos olhos a estreita relação entre a História como
disciplina escolar e alguns projetos e proposições políticas que se efetivariam por meio
dela. É essa proximidade que nos remete novamente à presença de Simone de Beauvoir
na prova de Ciências Humanas e suas Tecnologias (grande área que abarca, entre outras, a
História) do ENEM de outubro de 2015.

São vários os conhecimentos que poderiam ser mobilizados para responder


acertadamente a questão. É inegável, todavia, que os vestibulandos que conhecessem
Simone de Beauvoir, ou mesmo tivessem noções básicas a respeito das reivindicações do
movimento feminista, partilhavam de alguma vantagem. Certamente o engajamento ou
mesmo a empatia com as reivindicações feministas poderiam ser construídas através de
diferentes espaços e referências. Livros, jornais, músicas, família, amigos e redes sociais
podem também configurar espaços de formação e acesso a diferentes referenciais sobre o
passado. A presença da questão em um exame nacional do ensino médio, porém, sugere
que a temática seria incontornável durante o processo de formação escolar. De fato, quando
observamos os Parâmetros Curriculares Nacionais, um dos temas transversais prescritos
é “gênero e sexualidade”, sendo gênero definido como “[...] conjunto de representações
sociais e culturais construídas a partir da diferença biológica dos sexos. [...] no conceito de
gênero toma-se o desenvolvimento das noções de ‘feminino’ e ‘masculino’ como construção
social”. (PCN/Temas Transversais, 1998.) Além disso, para a área de Ciências Humanas e
suas Tecnologias, no item “o que e como estudar História?”, encontramos a referência textual
às “[...] problemáticas e anseios individuais, de classe, de gêneros, de grupos sociais, locais,
regionais, nacionais e mundiais” como elementos incorporados ao conceito de cidadania,
o qual é caro não apenas a História, mas perpassa todas as disciplinas. (PCN/História,
1998, p. 24.) Perante a referência aos PCNs, a comoção ou revolta em relação a presença da
questão poderiam ser consideradas desmedidas se não fossem os debates político-sociais
inflamados a respeito das questões de gênero que marcaram o ano de 2015. Tais debates
tiveram por estopim a publicação de uma cartilha anônima alertando pais e responsáveis
a respeito de uma tal ideologia de gênero que estaria em circulação nas escolas do país.

Não nos propomos aqui a realizar uma genealogia do que viria a ser a desacertada
ideologia de gênero. Uma breve busca na internet, porém, coloca-nos em contato com
espaços curiosos, como o sítio virtual da Arquidiocese de Goiânia, onde encontramos
algumas sinalizações de como a noção é apresentada. O texto anônimo chamado “O que é
Ideologia de Gênero?”44 estabelece como marco das discussões o ano de 2013, quando da
proposta (não aprovada) de inclusão da palavra gênero no Plano Nacional de Educação.

44 - Disponível em: <http://www.catedralgo.com.br/index.php/midias/noticias/244-o-que-e-ideologia-de-


genero>. Acesso em 24 Mar. 2016.
Segue atribuindo o conceito a um grupo de sociólogos reunidos em uma conferência da
ONU em Pequim, no ano de 1995, e elenca os alertas reproduzidos a seguir:

A igualdade entre homem e mulher é um dos maiores direitos da pessoa


humana. Na Ideologia de Gênero, porém, não se trata de igualdade de
diretos, mas do próprio nivelamento de qualquer diferença, inclusive a
diferença biológica entre homem e mulher. Infelizmente, a maioria das
pessoas, os pais principalmente, desconhecem o que significa o conceito
“gênero”, a ideologia que está por detrás dele e as consequências que
podem produzir na educação das crianças e dos adolescentes – confusão
nas crianças, uso comum dos banheiros, promiscuidade, gravidez na
adolescência, perda da autoridade paterna sobre a educação sexual
dos filhos, impedimento do ensino da moral cristã mesmo nas escolas
confessionais, etc. (Anônimo)

Ao considerarmos a datação apresentada e a atribuição do conceito a um grupo de


sociólogos, a primeira assertiva a realizar diz respeito ao total desconhecimento em relação
aos estudos de gênero e ao protagonismo das mulheres nesse campo específico. Cabe aqui
pontuar que, conforme Joana Maria Pedro, o uso da palavra gênero advém de movimentos
sociais de mulheres feministas, gays e lésbicas. “Tem uma trajetória que acompanha a
luta por direitos civis, direitos humanos, enfim, igualdade e respeito”. (PEDRO, 2005, p.
78.) Tal trajetória remete, de maneira geral, ao final do século XIX, com movimentos que
reivindicavam direitos políticos – como o direito ao voto – e, de forma mais específica, aos
anos 1960, com a chamada segunda onda do movimento feminista, com as reflexões sociais
e acadêmicas sobre as categorias mulher e mulheres e, finalmente, com emergência da
percepção de gênero como “a organização social da diferença sexual”, tal qual descrito por
Joan Scott. (SCOTT, 1994, p. 13.) Voltando à citação, ressaltamos ainda que a apropriação
feita do termo ideologia é bastante vulgar, associando-o às possibilidades consideradas
temerárias ou falaciosas.

No que diz respeito aos riscos descritos, eles são elencados na cartilha que se
apresenta (de forma anônima, novamente) com o objetivo de explicar às famílias o que
seria a ideologia de gênero.45 Já na capa, encontramos uma chamada bastante apelativa
que indica a tônica da abordagem: “Conheça esta ideologia e entenda o perigo que você
e seus filhos estão correndo”. Sua ilustração é igualmente sugestiva quando observamos
o modelo de família exemplar: Pai, mãe, filho, filha, gato e cachorro. Todos brancos.
Interessante notar, nesse sentido, que animais domésticos têm espaço nessa conformação
familiar. Casais homossexuais, não. Ao longo da cartilha, cuja circulação ganha força
em junho de 2015, encontramos a proposição de esclarecimentos sobre a ideologia de
gênero claramente respaldada, tanto por um conservadorismo extremo quanto pelo

45- A cartilha anônima “Você já ouviu falar sobre a ‘ideologia de gênero’?” é facilmente encontrada na
internet. Em junho de 2015 foi disponibilizada em sítios eletrônicos de inúmeras igrejas e arquidioceses
católicas. Para a elaboração destas reflexões, utilizamos o link encontrado em: https://igrejansn.files.
wordpress.com/2015/07/cartilha-ideologia-de-genero.pdf. Acesso em: 15 Mar. 2016.
desconhecimento daquilo que é efetivamente possibilitado pelos estudos de gênero. É
nítida a apropriação de sentenças caras aos movimentos feministas, como logo na abertura:
“A ‘Ideologia de Gênero’ afirma que ninguém nasce homem ou mulher [...]”, fazendo
referência velada à Simone de Beauvoir. A sequência do texto, porém, apresenta conceitos
simplificados e utilizados de forma irresponsável, na medida em que são esvaziados de
seus múltiplos sentidos e tornados evidências monolíticas de uma falsa verdade: citamos
gênero, identidade, representação e personalidade.

Tal esvaziamento, vale dizer, vem acompanhado de uma estratégia narrativa que
demoniza o outro, transformando em “outro” todos e todas que agem ou se manifestam
de modo a divergir do que é preconizado pela cartilha. Busca-se, ao longo do texto, a
construção de uma polarização entre nós e eles, certos e errados. Por exemplo:

Quer dizer que essas pessoas acham que “ser homem” e “ser mulher”
são papéis que cada um representa como quiser? Exatamente. Para
eles, não existe “homem” ou “mulher”, é cada um que deve inventar sua
própria personalidade, como quiser. (ANÔNIMO, 2015. Grifos nossos.)
Acontecerá que todas as nossas crianças deverão aprender que não
são meninos ou meninas, e que precisam inventar um gênero para si
mesmas. (ANÔNIMO, 2015. Grifo nosso.)

A cartilha conclama, finalmente, à ação em nome da família e das crianças. A ação


sugerida é justamente a pressão política. Pressão exercida sobre vereadores e deputados
para que eles interferissem na aprovação de Planos Estaduais e Municipais de Educação
que, ocasionalmente, fizessem referência a questão de gênero.

Ainda que existisse uma iniciativa a respeito da inserção das discussões de gênero
nos planos de educação, tal iniciativa estava alinhada às proposições de uma educação
para a diversidade, presentes já nos PCNs, e que buscava tão somente a construção de
um projeto de educação em prol da igualdade de direitos e cidadania, princípios caros
à uma sociedade verdadeiramente democrática. Os riscos apontados pela cartilha, além
de desconsiderarem a existência de um campo de estudos sério e comprometido, são
enganosos e tendenciosos. Esses enganos, certamente, geraram reações. Referendamos
aqui o minucioso trabalho da professora Jimena Furlani, ao destrinchar os equívocos e
apresentar detalhadamente a imperativa necessidade dos estudos de gêneros na sociedade
contemporânea.46

Paralelo a uma série de esforços no sentido de apontar as contestáveis afirmações

46 - O trabalho publicado por Jimena Furlani em junho de 2015 foi amplamente compartilhado nas redes
sociais e disponibilizado em sítios de centros de estudos e laboratórios dedicados aos estudos de gênero. É
importante pontuar que, na versão atualizada de janeiro de 2016, Furlani constata que a autoria da cartilha
pode ser atribuída a Felipe Nery, presidente do Observatório Interamericano de Biopolítica, que a assume
no vídeo intitulado “Ideologia de Gênero e o Plano Municipal de Educação”, publicado no youtube em 18
de abril de 2015.
da cartilha, ao longo do segundo semestre de 2015, observamos a não inclusão da noção
de gênero em inúmeros planos de educação aprovados em nível estadual e municipal. No
dia 25 de junho de 2015, a Folha de São Paulo publicou uma reportagem denominada
“Por pressão, planos de educação de 8 Estados excluem ‘ideologia de gênero’”. (BRITTO;
REIS, 2015.) A reportagem, ao adotar a expressão “ideologia de gênero” em seu título,
mostra-nos a eficácia discursiva da proposição e contribui, em certa medida (e mesmo
que de maneira não intencional), para sua disseminação. Em termos de conteúdo, trata
da retirada das referências a identidade de gênero, diversidade e orientação sexual dos
Planos Estaduais de Educação em oito estados, os quais estabeleceram diretrizes para o
ensino nos próximos dez anos, conforme o Plano Nacional de Educação. A retirada teria
consolidado-se por pressão das bancadas religiosas, com o respaldo de igrejas católicas
e evangélicas. Além desse resultado, por nós considerado um verdadeiro retrocesso, é
necessário lembrar que no mesmo ano de 2015 tramitaram no Congresso uma série de
projetos de lei buscando vetar do vocabulário escolar os termos gênero e orientação sexual.

A sintética apresentação desse embate, bastante midiatizado no segundo semestre


de 2015, auxilia-nos a dimensionar a importância e, ao mesmo tempo, compreender as
reações diametralmente opostas a respeito da presença de Simone de Beauvoir na prova
do ENEM, em outubro de 2015. Diante dessas ensurdecedoras demandas, cabe-nos
questionar qual o lugar do ensino de História na construção deste nosso tempo presente
e, especialmente, em que medida ele pode ser considerado locus privilegiado para uma
abordagem responsável acerca das questões de gênero.

GÊNERO: UMA HISTÓRIA PRESENTE

Fazer defeitos nas memórias. É a partir das palavras de Manoel de Barros que
Durval Muniz de Albuquerque Júnior propõe sentidos e objetivos para a escrita e o ensino
de História. Para o autor, a História, através de suas articulações éticas e políticas, deve nos
“[...] ensinar a conviver com a diversidade, a respeitar a alteridade e a diferença, que é a
condição exata do mundo em que vivemos”. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 33.) Ao
apresentar o presente como diferença, a História deve, segundo Albuquerque Junior, não
tecer louros ao passado, mas possibilitar a construção responsável de um presente através
da crítica, da reflexão e da contestação às memórias cristalizadas e monumentalizadas.

Esse passado tão presente, desafio cotidiano daqueles e daquelas que se dedicam ao
exercício docente da história, é constituído por relações de poder, por relações sociais dentre
as quais situamos as de gênero. É importante destacar, destarte, que o conceito de gênero
não pode ser compreendido de forma uníssona. A amplitude dos debates acadêmicos
possibilita-nos, talvez, uma certeza: que ele é tão plástico quanto necessário. Para Guacira
Lopes Louro, é “[...] indispensável admitir que até mesmo as teorias e as práticas feministas
– com suas críticas aos discursos sobre gênero e suas propostas de desconstrução – estão
construindo gênero”. (LOURO, 1997, p. 35.) Isso implica assumir que os debates acerca da
insuficiência de categorias advindas do próprio movimento feminista (como as categorias
mulher e mulheres) devem ser considerados quando buscamos operacionalizar o conceito
de gênero em nossa prática cotidiana e reflexão.

Existe um número relativamente expressivo de trabalhos que se dedicam a pensar as


relações entre gênero e educação, especialmente no sentido de demarcar como as práticas
e os espaços escolares atuam/atuaram no sentido de reafirmar percepções dicotômicas e
naturalizadas a respeito de predicados atribuídos ao masculino e ao feminino. Ao tratar da
escolarização dos corpos, Guacira Lopes Louro afirma que é necessário reconhecer que as
imposições e proibições do espaço escolar têm efeitos de verdade e atuam na constituição
de parte significativa das histórias pessoais. (Cf. LOURO, 2007, p. 21.) As reflexões sobre
gênero e as especificidades do ensino de História, porém, são ainda escassas. Aquelas
dedicadas a tal empreitada tratam, comumente, da indispensável tarefa de denunciar
o silêncio e a ausência das mulheres na narrativa histórica e, especialmente, nos livros
didáticos. Consideramos que a problematização dos recursos didáticos e a utilização de
fontes seja um caminho possível para a desconstrução de estereótipos e binarismos, tal
qual indicado por Jaqueline Zarbato. (2015) Para a autora, a investigação dos materiais
utilizados na prática docente possibilita problematizar, nas aulas de História, as diferentes
abordagens sobre a “[...] relação entre homem e mulher, sobre as vivências e histórias de
homossexuais, de transexuais, enfim, fundamentar discussões para além dos elementos de
heteronormatividade”. (ZARBATO, 2015, p. 55.)

Nosso interesse, porém, é anterior e, talvez, menos pragmático. Antes de


problematizar de que maneiras o ensino de História reproduz silenciamentos e binarismos,
cremos fundamental pensar em que medida nós, enquanto sujeitos, somos construídos
pela história formalizada através do ensino. Em que medida a existência de uma história
oficial escolarizada e sexista afasta-nos da possibilidade de percebermos nossa própria
historicidade?

Somos sujeitos históricos. Somos formados por múltiplas referências de um passado


próximo e distante. Somos a presentificação do passado. Somos a possibilidade de futuro
daqueles que nos antecederam. Mais que um exercício retórico, essas sentenças brincam
com uma dimensão absolutamente cara ao conhecimento histórico: o tempo. O tempo
nos atravessa e nos marca. Ainda que impalpável, sentimos, cedo ou tarde, seu inexorável
peso. Esse tempo implacável (que limita ou estende, à revelia, nossas possibilidades e
experiências) não evidencia um outro tempo, que igualmente nos conforma, ainda que
de maneira sorrateira. Suas marcas não são materializadas em rugas, cores ou dores, mas
incidem igualmente sobre nossas crenças, certezas, escolhas e ações.

Se, conforme aponta Albuquerque Júnior, devemos pensar a história a partir de


suas articulações éticas e políticas, isso significa que mesmo quando tratamos da História
como disciplina escolar, não devemos esquecer que esta advém de uma conformação
generificada. Aquilo que estudamos (ou lecionamos) sob a alcunha de “história” é
resultado de escolhas, embates, acordos e intenções. Pensar as relações entre gênero e
ensino de História não pode se limitar a escolha de um ou outro conteúdo. A memória
primeira que devemos fazer defeituosa, que devemos desestabilizar, é a mesma que
legitima nosso campo de atuação. Devemos inquirir e desnaturalizar os procedimentos que
determinam o que é ou não histórico. Não se trata, apenas, de demonstrar que as mulheres
participaram deste ou daquele evento, que apesar de ocuparem lugar secundário, ou não;
aparecerem nos materiais didáticos, que sua presença pode ser percebida em fontes e que
suas possibilidades de ação, muitas vezes, restringiam-se aos espaços privados. Ainda que
tais abordagens sejam de fundamental importância, devemos também questionar, por
exemplo, a preponderância de eventos públicos e de processos políticos na narrativa da
História escolar. Eventos e processos esses, vale ressaltar, que visibilizam seus partícipes
oficiais, comumente, homens. Que ressaltam predicados historicamente atribuídos ao
masculino (a uma concepção heteronormativa de masculino).

Nesse sentido, é possível constatar um certo descompasso entre o entendimento


acerca do passado que se constrói em âmbito acadêmico e a História escolar. Não falamos
aqui em termos de avanço ou retrocesso (até porque se tratam de campos distintos,
formados por saberes e objetivos distintos), mas ressaltamos que os debates teóricos e
as múltiplas possibilidades metodológicas que desassossegaram a ciência histórica no
século XX, não surtiram o mesmo efeito sobre a História escolar. Apesar de assumirmos
a multiplicidade da/na História, a existência de dissonâncias e a impossibilidade de
apreensão de um passado verdadeiro e único, ao pensarmos a História escolar, nos
encontramos ainda bastante arraigados aos eventos que parecem incontornáveis. Não
se trataria, apenas, de procurar a participação das mulheres na “Revolução Mexicana”
(mero exemplo), mas de entender o processo que determina quais eventos e sujeitos são
significativos (porque e para quem) naquilo que convencionou-se chamar “Revolução
Mexicana”. Simultaneamente, não podemos perder de vista o fato de que eleger “Revolução
Mexicana” como evento importante para a compreensão do passado, traz consigo uma
trajetória possível que ofusca várias outras. Reafirmamos, portanto, a importância dos
debates acerca dos Planos Estaduais e Municipais de Educação e da presença de Simone
de Beauvoir em uma questão de vestibular. Dentre as inúmeras formas possíveis para se
falar a respeito de movimentos sociais, eleger o feminismo possibilita a construção de
uma narrativa que não restringe as mulheres aos espaços privados. Além da fundamental
questão acerca da visibilidade das mulheres (e de outras vivências de gênero igualmente)
em processos até então considerados essencialmente masculinos, trata-se de fazer irromper
passados que possibilitem a percepção de diferentes protagonismos.

O passado nos atinge por diferentes caminhos. Helenice Rocha, respaldada pelas
reflexões de Jörn Rüsen, apresenta-nos a proposição de uma cultura histórica fortemente
amparada na memória social. (ROCHA, 2014, p. 38.) Essa cultura, por sua vez, apresenta-
se em dimensões políticas, estéticas e cognitivas. É nessa última que situamos a História
científica e a História escolar (distintas, porém profundamente imbricadas, conforme dito
anteriormente). Ainda que possamos compartilhar diferentes referenciais sobre o passado,
afinal ele pode nos tocar através de jornais, novelas, histórias familiares, retratos, jogos,
crenças religiosas, entre outros, é na escola que temos acesso ao passado oficializado. Aos
eventos eleitos como chaves de compreensão para o que somos. Na maioria das vezes,
porém, a História escolar, ainda que traga consigo a afirmação de que todos são sujeitos da
história, não possibilita reconhecimento efetivo destes mesmos sujeitos com o repertório
apresentado a respeito do passado. No que diz respeito as identidades de gênero, tal
afirmação torna-se bastante evidente. Essa ausência de um reconhecimento faz com que
a História escolar torne-se, por vezes, distante e desimportante para os alunos, perdendo
assim seu potencial de orientação e, por que não, transformação.

GÊNERO E ENSINO DE HISTÓRIA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA

Por que afinal estudar algo que não nos diz respeito? Essa pergunta não verbalizada
tornou-se ensurdecedora durante uma experiência organizada e desenvolvida por alunos
do curso de História da UDESC, em atividade vinculada ao Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação a Docência – PIBID, durante o segundo semestre de 2015.47 Os alunos
participantes desse programa deparam-se com desafios e dificuldades concernentes
ao cotidiano docente. Tiveram a possibilidade, dessa maneira, de apurar o olhar e de
experimentar as demandas do ofício antes mesmo da conclusão de seus cursos de
licenciatura. No curso de História, a participação no PIBID amplia os debates sobre o
ensino de História e sobre a responsabilidade do professor na educação histórica de alunas
e alunos. Dentre os desafios cotidianos, citamos a elaboração de atividades sobre temas
diversos, a serem desenvolvidos com turmas de diferentes níveis de escolarização. Os
assuntos são escolhidos coletivamente, procurando sempre adequar-se às necessidades
dos alunos e ao que é trabalhado em sala, pelo professor supervisor, na unidade escolar.

As incursões dos graduandos nas salas de aula se dão através de observações e da


elaboração de oficinas, que buscam não apenas uma abordagem inovadora do ensino de
História, mas também da construção de um pensamento histórico. Tal proposição não é
facilmente realizável – tanto para os acadêmicos quanto para os professores e orientadores
–, porém incita-nos a buscar estratégias eficazes na elaboração de conhecimentos a respeito
do passado que façam sentido aos alunos nesse tempo presente. Parte-se, ao invés de uma
narrativa histórica acabada, da tentativa de reflexão sobre como determinadas narrativas
são construídas, como são validadas e, igualmente, como são (ou não) incorporadas
durante os anos de escolarização. Para tanto, é imprescindível estarmos atentos às ideias
tácitas dos alunos e alunas a respeito de qualquer temática abordada. Esses serão elementos
constitutivos do processo de aprendizagem em História. Tal processo deve ocorrer também
através da análise de evidências, as quais possibilitam acesso não apenas a versões prontas
do passado, mas impelem a reflexão e ao exercício interpretativo. (Cf. BARCA, 2004.)

Esse foi o desafio assumido por um grupo de estudantes de História que recebeu

47 - O curso de História da UDESC possui atualmente 5 bolsistas vinculados ao programa institucional


de bolsas de apoio a docência (Pibid/Capes/Udesc) que desenvolvem suas atividades em uma Escola
Básica da rede municipal de ensino em Florianópolis sob a orientação das professoras Luciana Rossato e
Caroline Jaques Cubas e supervisão do professor bolsista César Junglubt (Escola Básica Henrique Veras).
A experiência que analisaremos a seguir, porém, ocorreu no segundo semestre de 2015, quando o projeto
contava com 12 bolsistas e também com a supervisão da professora bolsista Renata Mibielli (Escola Estadual
Simão José Hess). A experiência ocorreu em turmas de nono ano do Ensino Médio na Escola Estadual
Simão José Hess.
a tarefa de tratar questões relativas às discussões de gênero e história das mulheres com
alunos do nono ano do ensino fundamental. A atividade, a princípio, tinha por objetivo a
problematização do lugar das mulheres ao longo da chamada “Era Vargas”, estabelecendo
conexões com as percepções dos alunos a respeito do lugar atribuído às mulheres
hodiernamente. A opção de abordagem para a realização desse objetivo foi a incitação
de debates a partir da leitura e discussão de diferentes materiais (compreendidos como
fontes). O acesso às fontes objetivava a reconstrução de narrativas acerca do passado.
Narrativas essas que desejavam-se mais inclusivas, vizibilizando a participação de mulheres
em diferentes espaços de atuação. Dentre os materiais disponibilizados estavam uma
reportagem do Jornal das Moças, de 1939, o código eleitoral de 1932 e imagens diversas de
propagandas de produtos considerados “domésticos”, durante as décadas de 1940 e 1950.

Os alunos demonstraram propriedade ao falar acerca das questões concernentes


a “Era Vargas”, anteriormente trabalhadas em sala pela professora supervisora. Todavia,
apesar dos materiais disponibilizados e dos questionamentos lançados ao ar, um fato
chamou a atenção dos acadêmicos: a maioria dos meninos das turmas parecia isenta do
debate. Cruzavam os braços, desviavam olhares, rabiscavam as carteiras e, quando muito,
riam sardonicamente. Ressaltamos as palavras utilizadas pelos acadêmicos para descrever
suas impressões sobre esse primeiro momento da atividade:

Os meninos em sua maioria ficaram quietos, se manifestaram somente


quando solicitado por nós bolsistas. Notamos um relativo desprezo por
parte dos alunos, havia repulsa em refletir sobre o papel das mulheres e
suas conquistas. As conversas paralelas foram frequentes durante essa
primeira etapa da oficina.48
Na fala dos/as jovens – principalmente das mulheres, é importante
salientar que durante a oficina tivemos a dificuldade de estimular
a participação dos meninos – percebemos que ainda existe um forte
preconceito a respeito do aborto que não seja em caso de estupro.49

A participação dos alunos homens manteve-se tímida ao longo de toda a atividade.


Ao mesmo tempo em que as alunas participaram ativamente das discussões, reconheciam-
se em diferentes situações e contaram causos de suas vidas particulares, incitados pelas
imagens e leituras várias, os alunos ficaram entretidos em seus risos, piadas e conversas
paralelas, com raríssimas exceções.

Pressupomos que a participação dos alunos em um debate com o título


de História das Mulheres, poderia gerar algum desconforto para os que
opinassem. Pois, tal tema é visto de forma desqualificadora pela rede de
sociabilidades na qual os mesmos estão inseridos dentro da escola. O
silêncio por parte dos alunos, embora tenha nos incomodado durante a

48 - Relatório dos bolsistas EM e GR a respeito da aula ministrada em 2015/02.

49 - Relatório dos bolsistas LC e LS a respeito da aula ministrada em 2015/02.


realização da oficina, pode ser um tanto revelador.50

A observação das reações, das participações e do envolvimento dos alunos durante


a apresentação do tema e de toda a atividade é uma prática, como dito acima, bastante
reveladora. O desinteresse dos alunos, manifestado através de risadas e piadas, merece
uma particular atenção. Ao propor a adoção do modelo de oficinas para as atividades do
PIBID, pautamo-nos nas indicações de Isabel Barca, para quem o professor deve assumir-
se como um investigador social atento ao mundo conceitual dos seus alunos. Apenas dessa
forma o professor poderá, muito mais que qualificar como certo ou errado, contribuir para
a ampliação positiva deste mundo conceitual. (Cf. BARCA, 2004, p. 133.) O desinteresse
dos alunos homens, por uma atividade que trazia no cerne de sua abordagem a descrição/
discussão do envolvimento de mulheres em processos históricos, pode ser compreendido
na medida em que, para eles, aquela atividade dizia respeito apenas às mulheres. Não houve
reconhecimento, por parte dos alunos homens, com o tema em questão, e, dessa maneira,
o estudo tornou-se desinteressante e despropositado. Mostrar através de diferentes
fontes que, apesar dos silêncios nos materiais didáticos, as mulheres também tiveram
papel privilegiado na construção da sociedade contemporânea (ainda que a prática seja
essencial para, entre outras questões, o empoderamento feminino), não foi o bastante para
que os alunos percebessem-se como igualmente perpassados (formadores e formados)
pelas questões de gênero. Apresentar a construção/reprodução do espaço privado como
atribuição natural do feminino – através de propagandas, durante a aula – não provocou
nos alunos a inquietação a respeito da supremacia do masculino no espaço público.

A ideia de ampliação positiva de um campo conceitual, ao qual nos referimos


anteriormente, dialoga com as preleções de Peter Lee, para quem a História pode ser
libertária ao alargar as possibilidades de decisões coerentes e racionais na construção de
um projeto coletivo de futuro. (Cf. LEE, 2011.) Esse alargamento pressupõe muito mais
que um ensino de História pautado em quantidade de informações, mas também o acesso
a elementos constitutivos do pensamento histórico. Elementos esses que emergem da
articulação entre a percepção da historicidade dos conceitos que monopolizamos para
falar a respeito do passado (e do presente), as especificidades da evidência histórica, a
impossibilidade da existência de leis universais e a aprendizagem pela experiência vicária.
Sendo assim, relacionando tais noções às discussões a respeito das relações entre gênero e
ensino de História, pensamos que apenas agregar ao currículo já formatado a informação
de que as mulheres também atuaram de maneira veemente em diferentes processos
históricos, apesar de prática fundamental para a construção de uma sociedade igualitária,
não é suficiente. É preciso reinventar nosso vocabulário e nosso repertório.

Ao entendermos gênero como elemento conformador dos sujeitos históricos, é


necessário demarcar que falamos sobre gênero por meio de conceitos que trazem consigo
sentidos diversos e a partir de lugares generificados. Tratando-se do ensino de História, tais
lugares são tanto a escola (através de seus currículos, práticas e espaços esquadrinhados)

50 - Relatório dos bolsistas EM e GR a respeito da aula ministrada em 2015/02.


quanto a própria História escolar que, através da eleição de determinados conteúdos em
detrimento de outros, oficializa o que é ou não socialmente importante a respeito do
passado.

Como proposição, pensamos em um ensino de História que trate o presente não


como resultado de um único processo (formado pelos eventos comumente abordados nos
currículos escolares), mas como múltipla potência de passados diversos. É preciso abrir
mão do caráter erudito atribuído ao conhecimento histórico e percebê-lo efetivamente
como uma maneira particular de pensar. (Cf. BERGMAN, 1990.) Para tanto, é preciso
trazer a tona passados que relativizem nossas certezas. Passados esses que ampliem nossas
percepções acerca dos diferentes modos de ser, viver e conviver. Cabe-nos, assim, explicitar
que a forma como fora cristalizada a história, ao mesmo tempo em que nega às mulheres
(e não apenas a elas, é importante ressaltar) a possibilidade de reconhecimento com o
passado, impõe aos homens (como espada de dois gumes, pois traz consigo a possibilidade
da glória e da lamúria) a exclusiva responsabilidade pelo presente que temos. Para aquelas
e aqueles que escapam a essa lapidação, não se trata apenas do silenciamento de vozes
passadas, mas do cerceamento das possibilidades de orientação para o futuro.

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