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cresc1men o popu ac ,

combinado com o acelerado


processo de urbanização,
ocorridos nó Brasil, no pós-
Segu nda Guerra Mundial,
transformaram a questão do
planejamento urbano em
imperativo para a formulação
das políticas públicas e para a
gestão das cidades. Entre 1950
e 2007, a população brasileira
aumentou de 52 para 183
milhões de habitantes, e o grau
de urbanização de 36% para
83%. Nesse último ano, o
número de cidades com
população superior a 50 mil
habitantes era de 445, das quais
214 com população superior a
100 mil habitantes. Além do PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL:
crescimento das cidades, várias
delas se aglomeraram e se TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS
metropolizaram. Em 2007
havia vinte aglomerações
urbanas com população
superior a um milhão de
habitantes, com destaque para
as mega metrópoles de São
Paulo e Rio de Janeiro. Esses
indicadores, conjugados com a
má distribuição da renda, com
as deficiências de infra-
estrutura e de serviços urbanos
(saneamento, transportes etc.)
e com a má condição de grande
parcela das habitações
demonstram e confirmam a
gravidade da problemática
urbana brasileira e a
impreiv,; dível necessidade de
planejamento e ação
consistentes e profundas.
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Coleção Estado da Arte

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PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL:
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Geraldo Magela Costa )
Jupira Gomes de Mendonça )
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Belo Horizonte - 2008

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.)
Editora e/ARTE Sumário
Editor
Fernando Pedro da Silva

Conselho editorial
Eliana Regina de Freitas Outra
João Diniz
Prefádo 9
Ligia Maria Leite Pereira
Lucia Gouvêa Pimentel
Maria Auxiliadora de Faria
Marília Andrés Ribeiro Introdução 15
Marília Novais da Mata Machado
Otávio Soares Dulci
PARTE 1 - Trajetória e perspectivas
Revisão
Alexandre Vasconce!!os de Melo Do urbanismo à política urbana: notas sobre a experi-
ência brasileira 31
Capa e projeto gráfico Roberto Luís de Melo Monte-M6r
Poliana Perazzoli
Prática e ensino em planejamento (urbano) no Brasil: da
"velha" compreensividade multidisciplinar à abordagem
~'odos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste
hvro, através de quaisquer meios, sem prévia autorliação por escrito.
transdisciplinar 66
Geraldo Magela Costa
Direitos reservados desta edição.

Editora C/Arte
Av. Guaraparl, 464
A trajetória da temática ambiental no planejamento
Cep 31560-300 - Belo Horizonte/MG urbano no Brasil: o encontro de racionalidades distintas 80
PABX: (31) 3491-2001
com.arte@comartevirtual.com.br
Heloisa Soares de Moura Costa

Cooperação inter-organizacional e resiliência das institui-


C&37p Costa, Geraldo Magela
· Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas/ Organizado
ções: notas sobre a intersetorialidade na gestão das
res: Geral do Magela Costa, Jupira Gomes de Mendonça. [Editor: Fernando Pedro da políticas públicas
Silva) - Belo Horizonte: C/Arte, 2008
304p.:15,S x 22,5 cm :il. - (Coleção Estado da Arte)
Carlos Aurélio Pimenta de Faria/ Carlos Alberto de Vasconcelos 94
ISBN: 978-85-7654-067-0 Rocha / Cristina Almeida Cunha Filgueiras

l. Urbanismo. 2. Planejamento Urbano. 3. Polltica Urbana. 4. Urbanização. 5.


Legislação Urbanfstica. 6. Pol!tica Habitacional. !.Mendonça, Juplra Gomes de, (Org.) !!.
Siiva, Fernando Pedro da. III Título. 1\1. Coleção.

Ed. 21 CDD: 307.760981


Trajetória e perspectivas da gestão das metrópoles 102 Produção imobiliária e regulação urbana em Belo
Horizonte (1997-2002) 228
Rosa Moura
Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mol

PARTE 2 - Avanços e limites


Legislação urbanística e estruturação do espaço em
Belo Horizonte: um estudo do Bairro Buritis
Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas 248
questões para reflexão Letícia Maria Resende Epaminondas
123
Edésio Fernandes
Trajetória da formulação e implantação da Política
Habitacional de Belo Horizonte na gestão da Frente
Reforma urbana: desafios para o planejamento como
BH Popular (1993-1996)
práxis transformadora 136 270
Mônica Cadaval Bedê
Orlando Alves dos Santos Junior

Plano Diretor, gestão urbana e participação: Sobre os Autores 301


algumas reflexões
156
Ralfo Edmundo da Silva Matos

Política de desenvolvimento urbano no Estatuto da


Cidade: em que realmente avançamos com o modelo
de planejamento regulado pela Lei n.10.257, de 10 de
julho de 2001?
Marinella Machado Araújo 169

Govemança local e regulação urbana no contexto


metropolitano: reflexões a partir do caso belo-
horizontino
Jupira Gomes de Mendonça 182

PARTE 3 -Avallaç'õesde uma experiência: o caso de Belo Horizonte

Planejamento urbano de Belo Horizonte: reflexões sobre


um momento limiar
Jeanne Marie Ferreira Freitas 208
Prefácio

Se a realidade social implica em formas e relações, se ela não


pode ser concebida de maneira homóloga ao objeto isolado,
sensível ou técn ico, ela não subsiste sem ligações, sem se ape-
gar aos objetos, às coisas.
Henri Lefebvre - O direito à cidade

Este livro apóia, com fortes subsídios, a reflexão dos desafios enfrentados
pelo planejamento urbano comprometido com o alcance de um futuro mais jus-
to. Entre estes desafios, encontra-se a articulação da análise crítica do ~paço à
experiência urbana do presente. Hoje, heranças institucionais, práticas profissionais
e investimentos disciplinares no estudo da urbanização recebem impactos oriundos
da transformação das funções urbanas; da reorganização da administração pública;
de mudanças no arcabouço normativo da participação política; de novas necessida-
des coletivas; da reestruturação produtiva e, ainda, de tendências à involução metro-
politana decorrentes da reconfiguração do território e do esgarçamento ào tecido
urbano. Estes processos inauguram um período instável, no qual podem acontecer
efetivas conquistas sociais e, simultaneamente, perdas institucionais irrever.;íveis, in-
cluindo as relacionadas à memória do planejamento urbano.
Enfrentar estas circunstâncias, preservando a temática do planejamento no cen-
tro da reflexão do urbano, constitui-se numa árdua tarefa, que, sem dúvida, foi plena-
mente cumprida, com rigor e criatividade, pelos a utores da coletânea Planejamento
urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Alguns dos obstáculos enfrentados
na execução desta tarefa decorrem do fato de que a área do planejamento urbano re-
cebe atualmente estímulos contraditórios e fragmentados, que incluem desde uma in-
tensa atualização técnica - que aumenta a capacidade de intervenção dos governos e
atores sociais na cena urbana - até a difusão de diretrizes que fragilizam o debate em
tomo das relações entre urbanização, e desenvolvimento social e econômico. É nesse
sentido que valorizar o planejamento urbano significa resistir à tentação pelo imediato,
pela eficácia apenas instrumental e pelo senso comum informado.
Numa outra face dos desafios enfrentados por este livro, encontra-se a de-
sestabilização do campo dG>s estudos urbanos, que atinge seus fundamentos teóricos
e nexos com a ação política. Observa-se, no conjunto de textos ora publicados, que
as fronteiras deste campo têm sido pressionadas pelos rumos tomados na institucio-
l
10 · Ana Dara Torres Ribeiro PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS ' 11 l
nalização da questão urbana; pela busca de compatibilidade entre atendimento de
l
mudanças culturais e espaciais traz o risco de que seja adiado o debate das finalida-
necessidades coletivas e preservação ambiental e, ainda, pela reorganização dos in-
teresses dominantes, com destaque para o capital imobiliário. Além disso, arenas
políticas transescalares, envolvendo a escala mundial, influenciam, cada vez mais, os
estudos urbanos, exigindo a identificação das diferentes racionalidades que dispu-
des do planejamento e, em conseqüência, dos valores que as sustentam. Para que
este diálogo aconteça, é necessário inscrever o planejamento urbano num patamar
reflexivo que supere o pragmatismo e o predomínio do pensamento operacional. Por
esta razão, é tão relevante que a ciência, a política e a técnica tenham sido tratadas,
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tam, atualmente, o devir da urbanização brasileira. de forma transversal, nos três planos analíticos da coletânea. )
As grandes entradas temáticas que constroem a arquitetura deste livro de- Com estes fios condutores, evita-se que o planejamento urbano seja reser- )
monstram que seus organizadores tratam a instabilidade e a complexidade da vado aos especialistas e atores bem posicionados nas arenas em que são decidi- )
área do planejamento urbano por meio dos nexos entre urbanização e transformação dos os investimentos públicos. Para que esta reserva não aconteça, como de-
da esfera política. Corretamente, estas entradas (planos analíticos) garantem que a monstra este livro, é necessário um verdadeiro empenho na socialização de )
reflexão do planejamento urbano usufrua tanto da análise de experiências pretéritas saberes especializados, especialmente nas instâncias criadas pela (e para a) parti- )
quanto do acompanhamento das novas condições político-juódicas das interven- cipação social. Afinal, deve~se repetir, sempre, que planejamento é poder. Como
ções urbanas. Este livro ainda inova, ao permitir que estes dois ângulos de obser-
)
propôs Max Weber, poder é poder de dispor, o que inclui dispor de espaço, infor- .
vação da trajetória do planejamento urbano - teórico e prático - sejam integrados mação, funcionários, amenidades, recursos financeiros e prestígio. O planeja- )
à observação de um contexto particular, a metrópole de Belo Horizonte, o que mento disponibiliza recursos que são indispensáveis à vida urbana e, em sua )
possibilita a interpretação da força do lugar e de sua capacidade prepositiva na plenitude técnica, define posições sociais diretamente relacionadas ao usufruto
redefinição, em curso, dos sentidos do planejamento. De fato, a reflexão do plane- (ou não) dos acúmulos de investimentos historicamente concentrados na rede )
jamento no campo dos estudos urbanos exige o diálogo, em diversas escalas, entre urbana do país. Como negar a sua relevância? )
sujeitos posicionados em diferentes pontos e momentos das arenas nas quais têm
sido decididos os conteúdos social e técnico da questão urbana.
Dominar este instrumento significa propiciar ou impedir o acesso à terra ur- )
bana e aos serviços coletivos; estimular ou rejeitar práticas sociais; reconhecer ou re-
Esse diálogo, que precisa ser intensificado, pressupõe, como ensina Pierre )
cusar valores culturais; abrigar ou negar experiências coletivas; reduzir ou ampliar os
Bourdieu, o encontro (e confronto) entre diferentes posições de sujeito e, portan- custos sociais envolvidos nas diferentes formas de apropriação do espaço urbano. }
to, entre o que é permitido ver e compreender sobre a evolução urbana, a partir Este instrumento estabelece a ordem urbana, o que exige o desvendamento de suas )
destas posições. Dessa maneira, esta coletânea deve ser compreendida como um implicações sociais. É o cumprimento desta obrigação que faz com que a análise
convite ao diálogo entre visões da experiência urbana construídas pela univerai- do planejamento realizada no campo dos estudos urbanos incorpore e ultrapasse }
dade, por atores políticos da reforma urbana e, ainda, pelos planejadores. A im- os seus conteúdos técnicos, impedindo a consolidação de consensos. )
portância deste convite decorre da qualidade dos estudos que expressam estas
diferentes visões da experiência urbana. Mas também decorre da experiência,
Constitui uma singularidade deste livro a sua origem numa iniciativa con- )
junta de coordenadores de linhas de pesquisa dedicadas a diferentes ângulos de
por uma parte significativa dos autores destes estudos, de diversas posições de
observação do fenômeno urbano. Esta conjugação enriquece a análise de uma
)
sujeito nas arenas do planejamento urbano. Esta experiência, política e acadêmi-
conjuntura em que é transformada a moldura institucional e legal do planejamento )
ca, faz com que o livro apresente um indubitável valor coletivo, que advém da
urbano, e a administração pública assume novos deveres. Esta conjugação tam- )
tessitura, na história recente do país, de compromissos com a defesa de uma
bém permite a apresentação de um relevante conjunto de "âncoras" temáticas para
apropriação realmente democrática do espaço urbano. )
a análise do planejamento urbano. Estas "âncoras" oferecem uma navegação se-
Ao leitor, encontra-se aberta a possibilidade de estabelecer o seu próprio gura em diferentes· abordagens das relações entre: sociedade e espaço (ambiente,· )
percurso na leitura do fenômeno urba_no construída por esta coletânea. Um percur- natureza); políticas setoriais e po!rticas urbanas; instrumentos jµrídicos e administra-
)

,
so a ser iniciado, talvez, pela busca de respostas para suas preocupações mais ção pública; espaço herdado e projeto urbano. Estas "âncoras" são ainclà mais
imediatas, ou, numa outra perspectiva, por textos que permitam interrogar a sua valiosas num período que impõe a ruptura de fronteiras disciplinares e entre políti- J
prática profissional e política. Independentemente da escolha realizada, o conheci- cas setoriais e, acima de tudo, das barreiras sociais que amplificam a pobreza urbana.
mento obtido resistirá à perda da esperança numa vida urbana melhor. Esta esperan- /
Interroga-se: até que ponto os instrumentos juódicos hoje disponíveis possibilitam a
ça encontra sustento na vitalidade da área do planejamento urbano e, sobretudo, nas democratização do espaço metropolitano? Como estão sendo concretizados os ide- j
forças sociais e~volvidas nas reivindicações coletivas. Entretanto, a velocidade das

'
ários da reforma urbana nas metrópoles brasileiras? Como a participação social
)
"f 12 · Ana Clara Torres Ribeiro
Pi.ANllJAMl!NTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÔRlh, hVANÇOS li PERSPECITVhS • 13

f interfere na formação do planejador urbano? Estas e outras perguntas emergem


uma oportunidade para que mais vozes, reivindicações e anseios coletivos se fa-
5. çam presentes nas arenas do planejamento e no campo dos estudos urbanos, em
~ das "âncoras" temáticas que sustentam a coletânea.
apoio ao direito à cidade. Como perder esta oportunidade?
f Ao contrário da pseudo-neutralidade do planejamento urbano, os autores
{ desta obra reconhecem o seu caráter estratégico e a sua presença em projetos, por
vezes antagônicos, para a vida urbana. É nesta direção que ·â ênfase nas metrópo-
Ana Clara Torres Ribeiro
( les, apoiada pelo estudo do planejamento em Belo Horizonte, conduz ao reconhe-
f cimento de avanços na luta pela reforma urbana, ao mesmo tempo em que identi-
fica os seus limites. Há mudança, sim, mas também cristalização de desigualdades
f sociais na escala metropolitana. Com este diagnóstico, que concretiza resultados
( alcançados noutros planos analíticos da obra, pode-se afinnar que a democratiza-
{ ção do espaço exige a continuação da luta pela reforma urbana e esforços teóricos
dirigidos à compreensão do fenômeno urbano. Nesta direção, a coletânea Planeja-
( mento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas sistematiza, para o leitor,
( elementos da herança institucional e técnica do planejamento urbano e as corren-
( tes de pensamento que orientam a formulação da questão urbana.

{ A coletânea de textos aqui reunidos é de grande interesse para pesquisado-


res do campo dos estudos urbanos, analistas da questão social, profissionais do
{ planejamento, militantes da reforma urbana e todos que se encontram comprome-
{ tidos com a conquista de uma vida urbana mais igualitária e fraterna. Espaços
concebidos e praticados; lutas vitoriosas e em gestação; exemplos a serem seguidos
( e negados delineiam o mapa político, científico e técnico do planejamento urbano.
{ Na concepção deste mapa, encontram-se incluídos: questionamentos de modelos
de cidade; exames da gênese de conceitos; análises transescalares da urbanização;
{
tipologias das novas experiências de planejamento; avaliações de instrumentos.
{ Com o uso deste mapa, compreende-se a transformação, na atual conjuntura, de
{ condicionantes, objetivos e atores do planejamento urbano. Esta transformação,
expressiva da redemocratização da sociedade brasileira, traz as marcas das lutas
{ e conflitos sociais, de novas culturas políticas e representações do espaço urbano,
{ da defesa de modos de vida e da experiência popular.
i. Como a leitura deste livro permite dizer, é necessário valorizar estas marcas
(conquistas) - que são jurídicas, políticas, técnicas e éticas-, apoiando as formas
í socialmente justas de apropriação do espaço e descobrindo, na área do planeja-
{ mento urbano, caminhos para a redução das desigualdades sociais e a superação
{ dos mecanismos que Lúcio Kowarick reuniu no conceito de espoliação urbana.
&ta descoberta exige a desnaturalização da vida urbana e a politização da sua di-
í mensão territorial. Realmente, trata-se da defesa da função social da propriedade,
t da superação da leitura instrumental do direito, do combate à segregação socioes-
pacial, do desvendamento de novos conceitos que atualizem a luta pela reforma
t urbana. A (des)ordem urbana dominante reproduz-se excluindo e aumentando a
{ violência no cotidiano. Uma outra ordem possível, desejada e projetada, encontra-
se latente no conjunto dos artigos. Esta coletânea surge, por conseguinte, como
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Introdução '
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Este livro é resultado de um seminário realizado em abril de 2006, em Belo


Horizontes, a partir de uma iniciativa conjunta de professores/pesquisadores que
vinham desenvolvendo projetos de pesquisas sobre o planejamento urbano. 1 Qua-
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)
tro temas orientaram a realização do seminário, com base nos conteúdos e objeti-
vos dos projetos de pesquisa então em desenvolvimento. O primeiro tema procu-
)
rou discutir o conceito, os enfoques e as metodologias de planejamento urbano )
(teoria, ensino e prática). Os primeiros questionamentos sobre o tema referem-se )
ao fato de que estudos publicados sobre o planejamento urbano no Brasil passam,
em geral muito rapidamente, pela crítica ao planejamento compreensivo praticado )
durante o regime militar, identificando a sua natureza autoritária e a sua ineficácia, )
sem questionar, no entanto, qual o significado e a importância da metodologia de
planejamento compreensivo na análise urbana, ou se aquele momento de elabo-
)
ração de "planos de desenvolvimento local integrado" constituiu de fato uma expe- )
riência de planejamento urbano. Esta última questão remete à necessidade de se }
discutir, inicialmente, o próprio conceito de planejamento em geral e do planeja-
mento urbano em particular. Além disso, o resgate histórico-crítico de experiências }
e metodologias de planejamento urbano é central quando se pretende discutir a )
realidade e as perspectivas do planejamento urbano no Brasil.
)
Considerou-se importante discutir também a relação entre ensino e prática,
assunto sobre o qual se pode dizer que praticamente inexistem. estudos. Vale
)
lembrar que não há, como em alguns outros países, cursos de graduação em )
planejamento urbano no Brasil e são ainda muito poucos os cursos de pós-gra-
)
duação que em sua denominação explicitam o planejamento urbano e/ou regio-
)
1
São os seguintes os projetos de pesquisas: a) Políticas públicas, planejamento e gestão urbanos no )
ambiente metropolitano: estudos sobre a RMBH; Planejamento e gestão urbano-ambiental: análises
e avaliações de resultados - ambos com apoio financeiro do CNPq e coordenados pelo Prof. Geraldo )
Magela Costa do Pr~a de Pós-graduação em Geografia da UFMG; b) Novas periferias: política e
regulação urbano-ambiental na produção do espaço metropolitano - com apoio financeiro do CNPq )
e coordenado pela Profa. Heloisa Soares de Moura Costa, também do Programa de Pós-graduação
em Geografaa da UFMG; c) Planejamento urbano pós-Constituição Federal de 1988: velhà tradição
}
ou nova trajetória? - com apoio financeiro do CNPq; Dinâmicas socioterritoriais e planejamento ur-
bano na Região Central de Minas Gerais- com apolo financeiro da FAPEMIG - ambos coordenados ~
pela Profa. Jupira Gomes de Mendonça do Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
da EAUFMG; e d) Participação popular no processo legislativo mineiro: estudo de caso sobre as
comissões parlamentares de participação popular e de assuntos municipais e regionalização - com
''
,
apoio financeiro da PUC Minas - coordenado pela Profa. Marinella Machado de Araújo do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.
J
16 ·Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça PLANEJAM ENTO URIJANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS· 17

nal. Uma pergunta básica, portanto, seria: O que é o ensino de planejamento se no planejamento estratégico, com suas análises ligeiras e viesadas, em detrimen-
urbano neste país? Os cursos de pós-graduação na área, em geral situados nos to da análise compreensiva e da reflexão sobre as cidades e aglomerações urbanas,
campos das ciências sociais aplicadas, ciências humanas e ciências sociais, tendem a qual, em princípio, deveria estar na base dos processos de administração pública,
a enfatizar a análise crítica do planejamento e do(s) objeto(s) de sua aplicação e especialmente do planejamento urbano. Associa-se a isso, a proposta neoliberal do
m~nos o ensino de metodologias e práticas de planejamento urbano. "Estado mínimd' bem como a chamada "quebra das barreiras espaciais" nos pro-
cessos de produção e reprodução do capital em escala global, levando ao que
Uma das primeiras experiências de curso de pós-graduação em planeja-
David ·Harvey denominou "empresariamento urbano", para o qual o plam;jamento
mento urbano e regional no Brasil (IPPUR/UFRJ) surgiu na primeira metade dos
anos 1970, no auge da tentativa de aplicação da metodologia do planejamento e a gestão estratégicos são considerados imprescindíveis.
urbano compreensivo/integrado. Desde então, qual o caminho tomado pelos cur- Finalmente, o lugar que o planejamento urbano ocupa na administração
sos de planejamento urbano ou de áreas afins que o incluem? Pode-se ter como pública é também uma questão importante a ser pensada na relação entre planeja-
hipótese que a maioria deles mantém a orientação da análise crítica. Além disso, a mento e gestão. Dependendo da sua forma de inserção nas estruturas administrati-
complexidade crescente das cidades e das aglomerações urbanas no mundo ca- vas, o planejamento urbano pode, na prática, adquirir feições e conteúdos diversos:
pitalista, associada a novos enfoques teóricos e à prática observada de um "novo" ser apenas uma atividade de revisão formal de planos diretores e legislações urba-
tipo de planejamento urbano, contribuiu para que o ensino nos cursos de pós- nísticas; ser confundido com plano de governo, estratégico ou não; ou ainàa estar
graduação adotasse visões transdisciplinares, incorporando de forma mais explí- sujeito a uma espécie de pragmatismo, se estiver, por exemplo, sendo elaborado
cita as dimensões histórica, ambiental, espacial e política na análise da produção somente em função de decisões imediatistas e de caráter fragmentado.
do espaço urbano. Estaríamos talvez diante de uma "nova compreensividade" . A relação entre planejamento (integrado) e políticas setoriais urbanas consti-
Diante disso, como vem se redefinindo a relação entre teoria e prática do plane- tuiu o terceiro tema abordado no seminário. É comum em estudos sobre o plane-
jamento urbano? Este, pela sua natureza, exigiria certa dosagem de racionalida- jamento urbano e a administração pública a menção aos conflitos entre a necessi-
de? Como associar a necessária análise crítica e a práxis urbana autônoma com dade da integração, inerente ao planejamento, e a autonomia do planejamento e
a ação do Estado, na busca da racionalidade e de respostas urgentes para os da implementação de políticas públicas setoriais. Há ainda estudos que enfatizam
problemas sociais urbanos? É possível a convergência entre o ensino e a prática o papel central da política habitacional no contexto da questão urbana no Brasil, o
do planejamento urbano neste novo contexto? que levaria a uma primeira indagação: O que diferencia uma política habitacional
O segundo tema do seminário diz respeito à relação entre planejamento, de outras políticas setoriais urbanas (saneamento básico, transportes etc.)? O olhar
plano diretor, legislação urbanística e gestão urbana. As figuras do Plano Diretor a partir da habitação permitiria uma leitura dos processos socioespaciais urbanos
e da legislação urbanística assumiram um papel marcante na administração urba- através do habitar? ~ém disso, novas institucionalidades, novas territorialidades e
na a partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade, de 2001. novas escalas das políticas setoriais na atualidade levam à necessidade de repensar
No entanto, parece que há muito a ser explorado no que diz respeito à relação a sua relação com o planejamento urbano. Algumas áreas adquiriram uma abran-
entre esses instrumentos jurídico-urbanísticos e o planejamento urbano. Esta é gência tal que caminham para uma aparente autonomia, inclusive em termos de
uma questão importante neste momento em que os municípios com população regulação. Esse é o caso do saneamento ambiental e da gestão de recursos hídricos
urbana acima de 20 mil habitantes e todos aqueles integrantes de regiões metropo- de forma geral, que, além de possuírem estatuto próprio, redesenham a discussão
litanas e aglomerações urbanas, entre outros, vêm, por determinação de legislação de sua relação com o planejamento urbano e regional. A regulação ambiental de
federal, elaborando seus planos diretores Em paralelo, o termo gestão vem sendo forma mais ampla vem experimentando uma desejável ainda que difícil articula-
empregado de forma generalizada para caracterizar a administração pública. Por ção com a regulação urbanística. Mais recentemente, também outras áreas vêm
um lado, quando adjetivada de democrática, a gestão representa, na teoria e na tendo maior proximidade com o planejamento urbano, a exemplo da cultura, do
prática, os avanços sociopolíticos que têm marcado algumas experiências de admi- patrimônio histórico e do turismo.
nistração urbana no Brasil. No entanto, observa-se que os conceitos de gestão, Algumas das questões que hoje se colocam podem ser sintetizadas nas se-
assim como o de governança, são a inda termos de significado amplo, impreciso e, guintes perguntas: Quais seriam as novas mediações entre planejamento urbano e
como têm mostrado alguns estudos, muitas vezes carregados da ideologia contida políticas setoriais? Poder-se-ia falar em articulação (conciliação?) de diversos "plane-
em determinações e metodologias promulgadas pelas agências internacionais de jamentos urbanos" e, ainda, em planejamento interescalar? Qual a relevância da
financiamento, especialmente o Banco Mundial. Isso tem resultado em maior ênfa- conciliação ou da articulação? ·
18 · Geraldo Magela Costa I Jupira Gomes de Mendonça PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECTIVAS • 19 .,
)

')
Finalmente, o quarto tema abordado no seminário refere-se à questão do politanos em tomo de questões específicas é positiva no sentido de se aiar uma
planejamento metropolitano e do planejamento local no ambiente metropolitano. "consciência metropolitana"? Como garantir a participação popular na elaboração l
Várias das questões até aqui colocadas aplicam-se também ao planejamento me- e implementação de planos diretores metropolitanos? Que garantias os municípios )
tropolitano. Existe, no entanto, uma questão específica que incorpora, além do metropolitanos periféricos teriam de que seus interesses seriam considerados?
planejamento, o processo de metropolização e o próprio conceito de metrópole. Os textos que compõem as três partes deste livro certamente não dão conta
l
São aspectos que merecem reflexão, antes de se abordar particularmente o pla- de responder a todas as questões até aqui formuladas. Mas, orientados pelas hipó- )
nejamento de uma região metropolitana institucionalmente delimitada e suas teses associadas a essas questões, trazem importantes reflexões para o avanço do )
relações com o planejamento dos municípios que a compõem. conhecimento sobre o planejamento de base territorial, tanto em termos teóricos
Questões importantes surgem quando se discute a gestão metropolitana. quanto na forma de contribuições para se pensar a prática do planejamento.
)
No centro desta discussão está a autonomia m1,micipal, redefinida e reforçada A primeira parte do livro, "Trajetória e perspectivas", avalia criticamente a
)
com a Constituição Federal de 1988. Assim, cabe pensar o desenrolar histórico trajetória e as perspectivas do planejamento urbano e metropolitano, trazendo )
dos vários aspectos da questão metropolitana no Brasil, especialmente a partir do ainda reflexões sobre o ensino de planejamento urbano no país.
início dos anos 1970, quando nove regiões metropolitanas foram institucionaliza- )
O texto de autoria de Roberto Luís de Melo Monte-Mór, "Do urbanismo à ·
das por medida do governo federal. Há certamente vários estudos dessa nature- )
za. Alguns deles fazem avaliações positivas das análises socioespaciais das regiões política urbana: notas sobre a experiência brasileira", resgata criticamente o nas-
metropolitanas instituídas, ao contrário da avaliação negativa acerca das tentati- cimento e as experiências de planejamento urbano no Brasil, além de conter uma )
vas de implementação dos "planos de desenvolvimento locais integrados". Não descrição fiel dos acontecimentos do período correspondente ao regime militar. )
obstante, a institucionalização político-jurídica das regiões metropolitanas ainda Vale ressaltar que esse texto foi originalmente escrito em 1980, ou seja, nos
momentos finais da gestão tecnocrática e centralizada que marcou aquele perí- )
permanece um desafio. Sem o status de unidades federadas, as regiões metropo-
litanas continuam a sentir os efeitos da ausência de autonomia poütico-adminis- odo e da emergência de uma crise econômica e financeira de alcance internacio- )
trativa. Espremidas entre competências de âmbito federal, estadual e municipal, nal; em grande parte responsável pela significativa redução das intervenções do )
falta-lhes identidade pol(tico-administrativa. Nesse sentido, é importante realizar Estado em termos de poüticas públicas e de planejamento, inclusive o urbano/
uma releitura da questão metropolitana, sobretudo em razão dos rumos tomados metropolitano. Textos mais recentes que procuram analisar aquela experiência )
pela autonomia municipal, que conduziram à necessidade de redefinição tanto de planejamento do período militar têm também contribuição importante em )
do planejamento e da gestão metropolitanos quarito dos marcos regulatórios de termos de resgate histórico. No entanto, muitas vezes não aprofundam na críti-
ca às experiências anteriores aos anos 1990. Além disso, apresentam também )
políticas setoriais urbanas/metropolitanas.
lacunas, sobretudo no que se refere às avaliações sobre a natureza das mudan- )
Assim como no caso do planejamento urbano municipal, aqui também é ças observada$ ao longo daquele período.
importante uma análise sobre o lugar do planejamento nas propostas de gestão .)
metropolitana. Tomemos o caso da legislação recém-aprovada que dispõe sobre O texto de Geraldo Magela Costa, "Prática e ensino em planejamento (ur-
bano) no Brasil: da 'velha' compreensividade multidisciplinar à abordagem
)
a instituição e a gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte: por um lado,
ela representa tentativa de conferir maior capacidade de· gestão à RMBH, ao transdisciplinar", traz o conceito, a teoria, os enfoques e as metodologias de )
atribuir à "agência de desenvolvimento metropolitand' a responsabilidade pela ela- planejamento urbano em termos tanto do ensino quanto da prática, além da }
boração do plano metropolitano de desenvolvimento integrado. Por outro, o fato de relação entre elas. Em um primeiro momento, o autor procura avaliar a nature-
za do planejamento urbano que se praticava no período do regime militar. A )
planejamento e planos metropolitanos estarem, na estrutura de gestão proposta, su-
jeitos às funções de uma "agência de desenvolvimentd' pode eventualmente resultar essência da compreensividade, inerente ao chamado "planejamento para 0 de- )
em ausência de autonomia do planejamento enquanto instância de análise e reflexão senvolvimento local integrado" nos termos da metodologia do SERFHAU é ava-
liada, procurando-se identificar a sua intencionalidade e discutir a sua pertlnên-
J
sobre a realidade metropolitana. Isto porque uma "agência de desenvolvimentd'
podeiia estar mais comprometida com estratégias de desenvolvimento econômico cia enquanto abordagem mais conveniente ao regime tecnocrático e ;;
do que com os problemas socioespaciais e ambientais metropolitanos. centralizado dos anos 1960 e 1970. O autor procura mostrar que a abordagem j
compreensiva na análise para o planejamento não é necessariamente sinônimo
Outras questões relevantes merecem análises e reflexões, as quais podem ser
de planejamento tecnocrático e autoritário. Ainda com base no conceito de j
sintetizadas nas seguintes perguntas: A criação de consórcios de municípios metro-
1
)
20 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 21

planejamento, desenvolve argumentos para concluir que é inapropriado identi- Cristina Almeida Cunha Filgueiras discutem as dificuldades e os desafios para a
ficar as experiências de elaboração de planos locais integrados e a política ur- intersetorialidade , entendida como ação concertada das agências governamen-
bana nacional do período com planejamento enquanto um processo. tais. Os autores consideram que, embora as iniciativas de modernização do Esta-
Quanto ao ensino, o autor procura refletir em torno da seguinte questão: O do, no Brasil e na América Latina, em geral, tenham colocado as questões da
que significa formar um planejador urbano no Brasil? E ainda: Como se relacio- cooperação e do fomento à ação concertada como estratégicas, a resistência à
nam ensino e prática do planejamento urbano no Brasil? No caso dos cursos de inovação é muito grande. Buscam, então, identificar processos responsáveis pela
pós-graduação, dentro das chamadas ciências sociais aplicadas, ciências humanas fragmentação do planejamento e da gestão no setor público, entre os quais se
e ciências sociais, dada a natureza das áreas do conhecimento nas quais estão destacam a ampliação do leque de atribuições governamentais, os processos de
academicamente inseridos e também o status de pós-graduação, explora-se no fi- descentralização, devolução e/ou privatização e o aumento da complexidade e
nal do texto, tendo como referência a experiência do Programa de Pós-graduação do caráter técnico das questões pertinentes às políticas públicas. Em contraposi-
em Geografia da UFMG, a hipótese de que o ensino enfatiza essencialmente as ção a esses processos, a lguns fatores têm pressionado no sentido de romper com
a nálises críticas e transdisciplinares dos temas associados ao planejamento e aos o padrão fragmentado de planejamento e gestão. Problemas fiscais, demandas
processos de urbanização e de metropolização. crescentes por eficiência, transparência e accountabi/ity e o caráter multidimen-
sional dos problemas sociais estão entre os principais. Finalmente, são levantadas as
Heloisa Soares de Moura Costa, no texto "A trajetória da temática ambien-
dificuldades e barreiras para a coordenação e a cooperação entre as diversas agên-
tal no planejamento urbano no Brasil: o encontro de racionalidades distintas",
cias públicas, sejam de ordem organizacional, sejam de ordem legal e técnica, além
discute a trajetória da temática ambiental em sua articulação com o planejamen-
de fatores políticos. Ao fim e ao cabo, parece surpreendente, concluem os autores, a
to urbano desde os ~os 1980. Partindo da premissa de que há uma tendência
dificuldade, perceptível em parte não desprezível da bibliografia brasileira recente, de
de convergência de olhares no exercício do planejamento e da gestão, o texto
superação da perspectiva usual, acentuadamente normativa, em direção a um tra-
resgata o percurso da temática ambiental, que, de política setorial, vem se transfor-
tame nto analítico do problema mais consistente e informado.
mando em amplo campo de lutas e intervenções, incorporando a temática urbana,
com importantes desdobramentos na constituição da agenda das políticas públicas. O texto de Rosa Moura, "Trajetória e perspectivas da gestão das metrópo-
A autora argumenta que tal convergência, do ponto de vista da concepção dos les", encerra a primeira parte do livro, trazendo reflexões sobre a trajetória e as
instrumentos da regulação pública, não significa necessariamente a construção de perspectivas da gestão das metrópoles no Brasil. O texto inicia-se com uma dis-
consensos em torno do objeto da política e das formas de produção e apropriação cussão sobre o conceito de metrópole, aglomeração e região metropolitana, bus-
do espaço urbano, mas sim pressupõe um conjunto de procedimentos e instâncias cando contrapor e diferenciar o fenômeno metropolitano e as unidades metropo-
participativas de explicitação e negociação dos conflitos que podem potencializar litanas institucionalizadas. Conclui a primeira parte do texto com o resgate
ou engessar o exercício da política. sintético da trajetória da criação das regiões metropolitanas no Brasil. Em uma
segunda parte, a autora realiza um exercício de análise dos indicadores que reve-
Em termos conceituais, a autora discute como as matrizes de pensamento
lam os espaços metropolitanos, consubstanciados em uma hierarquia dos espa-
urbanístico e ambiental incorporam princípios e lógicas distintas que se incorpo-
ços urbanos brasileiros, distinguindo os metropolitanos dos não-metropolitanos e
ram às respectivas políticas, já que se originam de áreas do conhecimento e de
procurando relacionar as categorias decorrentes da classificação dos espaços
trajetórias epistemológicas distintas, embora compartilhem a mesma experiência
analisados às etapas do processo de institucionalização.
de reconstrução social do Estado e da política das últimas décadas, que incorpo-
ram nos discursos e instrumentos, princípios básicos como justiça social, partici- Por fim, é apresentada uma breve leitura dos instrumentos disponíveis
pação ou mesmo sustentabilidade. O texto constitui, portanto, um esforço de para o planejamento e gestão metropolitana quanto às suas possibilidades e limi-
explicitar e compreender estas lógicas e princípios simultaneamente convergentes tações, destacando os aspectos institucionais, financeiros e políticos. A autora
e conflitantes embutidos no uso e operacionalização dos instrumentos comumen- reflete sobre os conflitos que permeiam essas possibilidades e limitações, alegan-
te utilizados nas políticas urbanas e a mbientais. do sua difícil solução em vista de suas origens estruturais. Rosa Moura sugere a
necessidade de revalorização do papel do Estado na definição das estratégias de
No texto seguinte, "Cooperação inter-organizacional e resiliência das insti-
intervenção e nas negociações com os demais agentes produtores do espaço
tuições: notas sobre a intersetorialidade na gestão das políticas públicas", os au-
metropolitano e identifica a situação paradoxal da sociedade brasileira quanto ao
tores Carlos Aurélio Pimenta de Faria, Carlos Alberto de Vasconcelos Rocha e
tema em discussão: a relevância social e econômica das metrópoles fre nte ao
22 · Geraldo Magela Costa/]upira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO BRASii.: TRAJ~•ÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 23

frógil interesse político, seja à luz das insuficientes e inadequadas políticas públi- Afirmando que a aprovação do Estatuto da Cidade e a criação do Ministé-
cas, da transformação da cidade no locus da acumulação patrimonial, e na ausên- rio das Cidades consolidaram e fortaleceram o papel dos municípios no planeja-
cia de mecanismos de cooperação entre esferas de gouernos, seja na identidade mento e na gestão das cidades, o autor identifica e reflete sobre as possíveis
ainda em construção, na percepção [pouco] clara da dimensão metropolitana, ou na transformações que resultariam das práticas de ocupação dos espaços públicos de
embrionária consciência metropolitana, que se configuram na inexistência de pressão participação democrática no processo de elaboração e revisão dos Planos Diretores
popular para a criação e implementação de programas e políticas pertinentes, rele- Participativos nos termos da campanha nacional iniciada em 2004. Buscando
gando o tema a uma posição secundária na ordem de prioridades do gouemo. identificar novas e velhas práticas, o autor argumenta, mesmo reconhecendo seus
limites, que a ocupação dos espaços públicos de participação tem produzido trans-
A segunda parte do livro, "Avanços e limites", foca essencialmente nos avan-
formações tanto no que se refere à concepção do planejamento quanto na cultura
ços e limites do planejamento urbano no Brasil, a partir de uma avaliação crítica da
de participação democrática. A crença neste tipo de possibilidade é enfatizada nas
natureza do planejamento e da gestão urbanos em momentos mais recentes, com
conclusões, quando o autor escreve: se olharmos as experiências de planejamento
ênfase na reflexão sobre o papel dos planos diretores, das leis de parcelamento,
urbano em curso, incluindo aí os processos de elaboração dos planos diretores,
ocupação e uso do solo e outros instrumentos urbanísticos ou jurídicos.
poderemos concluir que estamos diante de grandes desafios na perspectiua da
Nessa parte nos é inicialmente apresentado o texto de Edésio Fernandes, construção de nouos paradigmas de planejamento. No entanto, diríamos, mais ·
"Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas questões para reflexão". O uma uez inspirados em Lefebure, que é preciso uer, nessas experiências de parti-
autor avalia criticamente a ordem jurídica associada ao planejamento urbano no cipação e na diuersidade de práticas urbanas empreendidas pelos diferentes
Brasil. São enfatizados os descompassas entre institutos e instituições jurídicas e agentes sociais, aprendizados que conformam a práxis que poderá gerar uma
as políticas públicas urbanas, bem como os processos socioeconômicos, objeto noua utopia do direito à cidade, capaz de desenuoluer nouos processos de reapro-
da regulação. O autor conclui que é necessário rever institutos e instituições den- priação, pelos seres humanos, do espaço e da sua temporalidade.
tro de um processo de reforma do Direito, condição essencial para o avanço da
Ralfo Edmundo da Silva Matos, no texto "Plano Diretor, gestão urbana e
reforma urbana no Brasil. O texto de Edésio Fernandes é muito oportuno neste
participação: algumas reflexões", procura discutir as dificuldades atuais existentes
momento em que institutos jurídicos, a exemplo dos planos diretores, passam a
na realização de planos diretores e nas práticas de gestão urbana, mesmo tendo
ser obrigatórios para os municípios brasileiros com vinte mil ou mais habitantes,
sido instauradas bases jurídicas, urbanísticas e financeiras mais sólidas desde a
além de todos os municípios que compõem regiões metropolitanas. Sem despre-
Constituição de 1988 e posterior aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001 (Lei
zar os avanços até então alcançados, especialmente por meio do Estatuto da Ci-
nº 10.257). Leva-se em conta o pressuposto da informação de qualidade que, em
dade, o autor sugere, no entanto: se não há como se fazer reforma urbana sem
princípio, deveria conferir poder aos habitantes e politizar o processo de planeja-
ser atraués do Direito, é crucial entender que não h6 como fazer reforma urbana
mento. Alguns dos avanços da Lei nº 10.257 são sublinhados, em especial suas
sem reforma do Direito, sendo que os dois processos têm que caminhar juntos - o
diretrizes e os chamados "direitos difusos", assim como o aspecto ' físico territorial"
que pressupõe adotar uma uisão crítica do Direito que compreenda a lei como um
confrontado com a premissa da gestão democrática por meio da participação da
problema do conhecimento e da ação sociopolítica.
população na formulação, execução e acompanhamento dos planos e projetos. O
Dando continuidade à avaliação crítica dos avanços e limites dos processos de Plano Diretor estaria legitimando o Estatuto da Cidade por se apoiar nas funções
planejamento e de gestão urbanos desde a Constituição de 1988, Orlando Alves dos sociais da propriedade e da cidade, na igualdade e justiça social, na participação
Santos Júnior reflete, no texto "Reforma Urbana: desafios para o planejamento popular e no desenvolvimento sustentável. Contudo, são várias as dificuldades que
como práxis transformadora", sobre os desafios inerentes a tais processos e às pos- se interpõem na elaboração desses planos, já que a cidade é palco de oportunida-
sibilidades de uma reforma urbana a partir das experiências de governança demo- des, mas também espaço de conflitos. A questão da democracia nos planos direto-
crática enquanto práxis transformadora. A análise está focada essencialmente nos res e no processo de planejamento territorial é complexa, requer a persevera~ça na
processos observados a partir dos anos 1990, quando emerge um novo regime de atuação dos atores e continuará um desafio por muito tempo. Alguns dos principais
atuação pública, descentralizada, caracterizada por novas formas de interação entre problemas associados a tal desafio são discutidos, a exemplo dos que se reportam
o poder público e a sociedade, por meio de canais e mecanismos de participação especificamente às três agentes sociais que participam do processo de planejamen-
social, principalmente associados a Conselhos de Gestão. to e gestão, a saber, a equipe técnica, o Poder Executiuo e a população. O autor
sugere, nas conclusões, que as características e formas de interação desses três
24 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS ' 25

agentes interferem diretamente no resultado final do plano, podendo legitimá-lo, A autora conclui pela necessidade de se avançar no sentido de construir
desfigurá-lo ou desqualificá-lo completamente. uma noção coletiva do território metropolitano e de sua organização socioespa-
O texto de autoria de Marinella Machado Araújo, "Política de desenvolvi- cial, e construir uma governança metropolitana orientada para o cumprimento da
mento urbano no Estatuto da Cidade: em que realmente avançamos com o mo- função social da propriedade e do território.
delo de planejamento regulado pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 ?", A terceira parte do livro, intitulada "Avaliações de uma experiência: o caso
apresenta uma análise técnico-jurídica dos impactos do Estatuto da Cidade sobre o de Belo Horizonte", traz reflexões sobre uma experiência de 15 anos e que é
processo de planejamento urbano no Brasil. A autora se pergunta se o Estatuto da ainda muito pouco divulgada na literatura sobre o planejamento urbano no perí-
Cidade introduziu um novo modelo de planejamento na ordem jurídica brasileira, odo mais recente. Processos de gestão democrática e de utilização de instn.1men-
na medida em que estabelece uma nova concepção estruturada nos preceitos da tos, atualmente consolidados no Estatuto da Cidade, vêm sendo implementados
participação popular e do desenvolvimento sustentável. Conclui que o Estatuto nesse município desde 1993. Os textos apresentados nessa parte discutem os
introduz um novo modo de planejamento urbano, porém não representa uma rup- avanços, os limites e os desafios dessa experiência.
tura, pois suas inovações se vinculam à metodologia do planejamento urbano e O primeiro texto, de autoria de Jeanne Marie Ferreira Freitas, " Plan~jamen­
não aos seus objetivos e à sua essência. Finalmente, afirma que a efetividade do to urbano de Belo Horizonte: reflexões sobre um momento limiar", utiliza o caso
planejamento urbano brasileiro está diretamente condicionada ao aumento da ca- de Belo Horizonte para avaliar a experiência de planejamento urbano acumula-
pacidade administrativa dos municípios e à consolidação da articulação interinsti- da na década de 1990 e início de 2000 nos grandes centros urbanos.
tucional (de órgãos públicos) e intersetorial (de políticas públicas).
A partir de uma rápida história da legislação urbanística desde a inauguração
O último texto d~ segunda parte, de autoria de Jupira Gomes de Mendonça, da capital, a autora resgata um primeiro momento da evolução do planejamento de
"Govemança local e regulação urbana no contexto metropolitano: reflexões a partir Belo Horizonte, calcado em fortes princípios de racionalidade, técnica e funcionalida-
do caso belo-horizontino", apresenta uma reflexão sobre os resultados de avanços de, em que a concepção de uma ordem funcional é subjacente às propostas formu-
decorrentes da aplicação dos princípios da Constituição Federal de 1988 e do ladas. O segundo momento culmina no período pós-1988, caractenu:ndo umu nova
Estatuto da Cidade, no contexto metropolitano. fase do planejamento urbano no país e também em Belo Horizonte. Enfase é dada a
A tese é a de que o caráter municipalista da Constituição tem significado um terceiro momento, após 1995, quando foram efetuados esforços no sentido de,
que os planos diretores constituem, com raras exceções, ações isoladas dos muni- primeiramente, compreender a cidade em seu dinamismo próprio e, em seguida,
cípios, com resultados que·, se no plano local, muitas vezes representam importantes extrair dessa compreensão as possibilidades de sua transformação. Segundo a
avanços, no plano metropolitano podem configurar um panorama diferente. Para autora, foi um momento em que emergiram discussões inovadoras.
isso, a autora utiliza o caso de Belo Horizonte e analisa os resultados da legislação Finalmente, a autora introduz uma discussão, que tem como objetivo veri-
urbanística e os mecanismos de gestão democrática,aplicados nesse município nos ficar se as tendências identificadas nesse momento de inflexão na evolução do
anos 1990, em face do contexto metropolitano. A nova legislação urbanística e o planejamento urbano de Belo Horizonte podem ser inseridas num quadro de
Orçamento Participativo promoveram, respectivamente, uma inversão na lógica discussões teóricas mais amplo, que, mesmo extrapolando o âmbito específico do
de distribuição dos potenciais construtivos e de localização das obras públicas, o planejamento, seja capaz de contextualizá-las em processos gerais de transforma-
que propiciou importante expansão do mercado empresarial de imóveis residen- ção tanto do próprio espaço urbano, quanto da sua abordagem analítica.
ciais, com uma tipologia típica de segmentos de média e baixa renda, resultando
Em seguida, o texto de Daniela Abritta Cota e Natália Aguiar Mol, "Produ-
em relativa democratização do acesso à moradia.
ção imobiliária e regulação urbana em Belo Horizonte (1997-2002)", discute as
No entanto, a análise do contexto metropolitano leva também à hipótese relações entre legislação urbanística e dinâmica de produção empresarial de mo-
de que um impacto importante da nova ação pública, qual seja, o encarecimento radias. Partem do pressuposto de que, como um instrumento de planejamento, a
dos preços dos terrenos no núcleo metropolitano, promoveu mudanças nas con- legislação urbanística apresenta duas finalidades principais: reduzir conflitos entre
dições para o assentamento residencial. Os municípios com maior crescimento os diversos agentes que atuam no espaço urbano e atuar como instrumento de
populacional nas duas últimas décadas situam-se entre aqueles com mais baixo controle, seja da especulação, seja da atuação daqueles que constroem a cidade.
nível de saneamento, mostrando a consolidação da histórica "periferização da Reconhecendo que a regulação da produção imobiliária, via legislação urbanís-
pobreza" na Região Metropolitana de Belo Horizonte. tica (zoneamento e padrões de edificabilidade), vinha, até recentemente, refor-
26 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJt•ÓRIA, AVANÇOS E rERSrecnvAS • 27

çando a lógica do mercado e o processo de segregação territorial, as autoras Finalmente, o último texto dessa parte, "Trajetória da formulação e implan-
discutem as possibilidades de as novas legislações urbanísticas, que tomam for- tação da Política Habitacional de Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular
ma no país a partir da Constituição Federal de 1988, contribuírem para o cum- (1993-1996)'', de Mônica Cadaval Bedê, aborda a trajetória de concepção e
primento da função social da propriedade urbana e da cidade, usando para isto implantação da política habitacional em Belo Horizonte no período entre 1993
o caso do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de e1996, a qual se encontra ainda hoje em vigor no município, relacionando-a com
Belo Horizonte, ambos em vigor desde 1996. os processos políticos e as idéias que influenciaram a formulação das políticas
As autoras concluem que, por um lado, a legislação urbanística tem contri- locais no Brasil. O trabalho apresenta uma descrição bastante minuciosa dos
buído para a melhoria do acesso da população à moradia, em especial de segmen- principais aspectos e dimensões dessa política, tais como: a estrutura institucional
tos àe média a baixa renda, através do incentivo ao adensamento em novas frentes de gestão, incluindo as instâncias e processos participativos; os conceitos, princí-
de ocupação no território municipal, levando uma parcela dos empreendedores pios, diretrizes e critérios gerais; a legislação específica; a concepção e resultados
imobiliários a explorar esses nichos de mercado. Por outro, no entanto, nas regiões dos programas, projetos e ações, tanto aqueles voltados para intervenções em fa-
mais centrais da cidade, a LPOUS tem-se mostrado pouco eficaz para intervir na velas quanto outros orientados para a produção de novas moradias de interesse
histórica atuação do setor imobiliário. social. Segundo a autora, a trajetória da política municipal de habitação naquele
período foi marcada, de um lado, por realizações no campo da formulação, do
Letícia Maria Resende Epaminondas, no texto "Legislação urbanística e estru- planejamento e da construção de modelos metodológicos e, de outro, por /imita-
turação do espaço em Belo Horizonte: um estudo do Bairro Buritis", discute a rela- ções de recursos, que comprometeram em parte os seus resultados quantitativos e
ção entre legislação urbanística e a produção do espaço urbano a partir da análise determinaram uma série de estratégias que buscavam contornar esse problema.
histórica do processo de parcelamento e ocupação de um bairro belo-horizontino.
A autora conclui que a diversidade e abrangência de ações na experiência
A autora considera que a legislação urbanística pode ser identificada como analisada tiveram impacto positivo sobre o quadro das necessidades habitacio-
uma das faces expostas do planejamento urbano, em que são explicitados os nais do município. Considera ainda que essas experiências, permeadas pela par-
objetivos e as intenções que emergiram de uma dada conjuntura, consistindo ticipação popular, constituem hoje importante referência para a construção de
num importante instrumento para a compreensão dos paradigmas técnicos ado-
novos modelos e alternativas para a ação governamental na área da moradia .
taàos e do contexto socioeconômico de sua proposição. Por meio da análise da
legislação urbanística e do estudo de caso do bairro Buritis, a autora procura Os organizadores desta coletânea esperam que o conjunto de trabalhos aqui
entender como o planejamento urbano se insere no processo de estruturação do publicados possa contribuir tanto para o avanço no conhecimento empírico e teórico
espaço em Belo Horizonte. sobre o planejamento urbano, quanto para o diálogo com outros pesquisadores e
profissionais envolvidos com a temática, no processo de consolidação do exercício
Algumas características desse bairro - uma extensão da Zona Sul (região
da política no planejamento e na gestão democrática das cidades.
de alta renda da cidade), um processo de ocupação intensa, uma associação de
moradores atuante, bem como as formas como as legislações urbanística e am-
biental tiveram papel particularmente relevante nos processos de parcelamento e Geraldo Mage/a Costa
ocupação do solo - foram consideradas pela autora como um objeto apropriado
Jupira Gomes de Mendonça
para estudo de caso, em vista dos objetivos da pesquisa.
Pelo estudo desenvolvido, percebeu-se que a legislação urbanística, por si
só, não garante a predominância dos interesses coletivos sobre os privados, dada
a tradição do liberalismo jurídico clássico que faz com que o direito de proprieda-
de seja o princípio hegemônico. Entretanto, a autora identifica alguns conflitos,
inerentes aos processos de produção dos espaços urbanos, que podem induzir
ações inovadoras e contribuir para o desenvolvimento socioespacial. Tais ações,
se não foram suficientes para modificar substancialmente as relações entre os
agentes sociais diretamente implicados nos processos de parcelamento/ocupação
do solo do bairro, foram capazes de alterar efetivamente o design do bairro.
PARTE 1 - Trajetória e perspectivas
Do urbanismo à política urbana: notas
sobre a experiência brasileira
Roberto Luís de Melo Monte-Mór

Apresentação

Este texto, escrito ao final dos anos 1970 como introdução a uma tese de
mestrado (à época, não se chamava "dissertação"), não constituiu um objetivo
em si mesmo, mas buscava apenas criar um quadro teórico e histórico de referên-
cia da evolução do planejamento urbano no Brasil para informar a análise crítica
de duas experiências de planejamento no Território Federal de Rondônia. 1 A
primeira experiência, em 1973-74, foi a coordenação das pesquisas de campo e
da proposta de estrutura urbana do Plano de Desenvolvimento de Vila Rondônia
(hoje, Ji-Paraná ), contratado pela Sudeco - Superintendência de Desenvolvimen-
to do Centro-Oeste e pelo Governo do Território Federal de Rondônia junto à
Fundação João Pinheiro, em Belo Horizonte, e desenvolvido segundo bases teó-
rico-metodológicas propostas pelo Sistema Nacional de Planejamento Local lnte-
grado. 2 A segunda, em 1976-1977, trata-se de um trabalho contratado ao autor
diretamente pelo Governo do Território de Rondônia; pela Sudeco; e pela CNPU
- Comissão Nacional de Política Urbana, para coordenar o Programa de Desen-
volvimento Urbano para o Território Federal de Rondônia.
Em 198 1, atendendo a objetivos didáticos, esta Apresentação foi publica-
da internamente como Texto para Discussão, no Cedeplar - Centro de Desen-
volvimento e Planejamento Regional, da Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal de Minas Gerais. O texto busca ressaltar as ideologias
subjacentes às "teorias" ou correntes predominantes de planejamento urbano
no Brasil no período entre 1950 e 1980 e sua apropriação pelo Estado na con-
dução da problemática urbana, entendida, e ntão, como uma "política deriva-
da" das grandes questões político-econômicas nacionais.
O estudo parte do "urbanismo racionalista" , característico da primeira
metade do sécuto·XX e fortalecido no Brasil nos anos 1950, para, por meio da
análise da proposta de "política habitacional" e de "planejamento local int~gra-

1 Mestrado em Planejamento Urbano e Local (1972-73), no Programa de Engenharia da Produção

da COPPE - Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia, Universidade Federal


do Rio de J aneiro; ver Monte-Mór, 1980.
2 O PD-Vila Rondônia seguiu o marco metodológico do planejamento compreensivo do SNPLVSer-

fhau, mas incorporou aspectos particulares da fronteira amazônica em formação, estendendo-se em


considerações políticas e fazendo propostas estruturantes para o espaço urbano-regional.
32 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór P LANEJAMENTO URBANO NO Bl!ASIL'. TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 33

do" delineada no início dos anos 1960 e redefinida no primeiro governo militar, indústria fordista implantada com o "milagre brasileiro" exigiram que as condi-
chegar à discussão da "política urbana" implantada na segunda fase dos gover- ções de produção urbano-industriais fossem estendidas a todo o território nacional
nos militares. Tenta mostrar, face aos grandes paradigmas adotados no país, para integrar e expandir o mercado de consumo de bens duráveis. Juntamente
suas relações com as linhas centrais do "modelo brasileiro" e explicitar os mo- com esse processo de extensão do tecido urbano-industrial, estenderam-se ser-
dos de pensar as cidades e o desenvolvimento urbano, discutindo seus resulta- viços públicos básicos, legislação e benefícios trabalhistas, a malha de serviços
dos e implicações espaciais. bancários e financeiros, enfim, um conjunto de infra-estruturas e serviços que
levaram consigo o germe da política e da cidadania para além das cidades ao
Este texto está, assim, restrito a esse período de planejamento urbano-regio-
"urbano" como um todo, virtualmente a todo o espaço social brasileiro (Monte-
nal no Brasil, quando o sistema de planejamento local montado no Ministério do
Mór, 2005). Os rumos do novo planejamento urbano no país, ainda em gestação,
Interior, tendo por base o sistema Serfhau/BNH, disseminou-se por metrópoles e
cidades médias que integravam a rede urbana principal do país. Enquanto outros estão para ser melhor traçados e analisados em profundidade.
países discutiam formas de participação popular no planejamento,3 no Brasil adi-
tadura militar impedia a participação política efetiva até mesmo nos níveis dos As origens: o "urbanismo científico" e suas principais influências no Brasil
poderes locais constituídos. Em 1979, o início da abertura política no Brasil, segui-
do da anistia, deu início ao processo de redemocratização que culminou no movi- Foi a partir do questionamento da cidade industrial e da própria sociedade
mento das Diretas Já e na eleição indireta de um governo civil. Em que pesem os capitalista moderna que surgiu, face ao contexto tecnológico e cultural dos países
acontecimentos dramáticos da morte do presidente eleito e a tomada de posse de desenvolvidos, uma nova área de estudos e pesquisas - o urbanismo.4 Tendo sua
um vice-presidente representante das forças conservadoras do país, a mobilização origem conceituai nos estudos realizados por historiadores, economistas e políti-
popular iniciada nos anos 1970 levou o país ao Movimento pela Constituinte e à cos do século XIX, foi através dos arquitetos que o urbanismo se especializou
conseqüente promulgação da 'Constituição Cidadã', em 1988. como matéria de estudo específico no século seguinte. Entretanto, se os conceitos
Novo marco institucional e sociopolítico se instaurou com a nova Constituição, que o geraram provinham de teóricos que desenvolviam uma análise crítica glo- ·
particularmente no tocante ao planejamento urbano e regional e aos instrumentos balda sociedade, enfocando a cidade como um elemento integrado e decorrente
nela criados. Ainda que perdurasse o conservadorismo governamental nos anos do processo sócio-econômico-político então vivido, para os "urbanistas", que os
seguintes, conceitos como o 'sentido social da propriedade' e a criação de inúme- sucederam, tornou-se uma matéria despolitizada, quase um elemento físico-
ros mecanismos ligados à participação popular presentes no novo estatuto político espacial a ser tratado segundo uma visão formal-estética. A tradição da atu-
do país criaram as bases para um novo processo de planejamento mais democrá- ação dos arquitetos como grupo profissional ligado à classe dominante, à
tico e afastado das práticas tecnocráticas do período militar. qual prestavam seus serviços na organização formal do espaço, segundo um
Entretanto, diante da crise do Estado iniciada nos anos 1980 e de sua rede- sistema de valores culturais, que, na sociedade hierarquizada, ratificam a
finição no contexto neoliberal implantado no país nos anos 1990, o ensino, as dominação ideológica (Benévolo, 1976), determina, talvez, o enfoque sim-
pesquisas e mesmo a prática do planejamento urbano e regional perderam espa- plista com que tentam tratar a cidade no novo contexto urbano-industrial. A
ço e expressão no contexto brasileiro, tendo sido retomados apenas recentemente, particularização do seu enfoque profissional parece impedir o entendimento do
com a criação e posterior fortalecimento e redefinição do Ministério das Cidades. novo modo de produção que rege a organização da sociedade e, conseqüente-
Entrementes, o processo de politização do espaço de vida urbana fortaleceu-se mente, do espaço social. A tentativa de organizar este espaço segundo uma do-
internamente aos grandes aglomerados e logo se estendeu para muito além das minância ideológica está presente em todas as propostas apresentadas.
cidades até suas áreas rurais imediatas, daí aos espaços regionais a partir dos ei- Diversas correntes se formaram sob diferentes enfoques, mas sempre par-
xos rodoviários e dos sistemas de serviços sociais e de comunicações e, eventu- tindo do princípio de que a industrialização gerou uma desordem social e urbana,
almente, ao espaço nacional. As necessidades colocadas pelo crescimento da à qual deveria ser imposta, ou aposta, uma nova ordenação espacial. Tendo em
vista a necessidade de "ordenar o espaço" , surgiram modelos diversos, dos quais

3 John Friedmann (1987) discorre longamente sobre as várias correntes de planejamento nos dois últimos
séculos no Ocidente e aponta para as novas formas de organização política e de participação popular que • "Urbanismo... esse neologismo corresponde ao surgimento de uma realidade nova: pelos fins do
informam o planejamento contemporâneo; José Luís Coraggio discute, em vários trabalhos, a agenda século XIX, a expansão da sociedade industrial dá origem a urna disciplina que se diferencia das artes
urbana e regional para a América Latina (Coraggio, 1990, 1991; Coraggio et ai., 1989). urbanas anteriores por seu caráter reflexivo e critico e por sua pretensão científica" (Choay, 1979).
34 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór P LAN EJAMENTO URBANO NO 13RASJL: TRAJloíÓlllA, AVANÇOS E l'ERSr ECllVAS . 35

nos deteremos apenas naquela corrente denominada "progressista ou racionalis- novos projetos incorporam os conceitos modernos de racionalidade espacial, hie-
ta", à qual pertencem nomes como Le Corbusier, Gropius, Garnier e Rietveld, rarquização de espaços habitacionais, cinturões verdes de proteção ambiental,
entre outros,5 e que exerceu grande influência sobre o urbanismo brasileiro. zoneamento etc. Nesses casos, sendo o planejamento urbano encarado como um
Tem sido freqüente a apropriação, por parte dos países periféricos, das so- projeto acabado, ou seja, como uma obra a ser construída e edificada em sua
luções geradas no bojo do desenvolvimento capitalista dos países de centro. À totalidade, o "dono" da cidade tomava a si a função de implementação, sendo os
medida que as forças modernas do capitalismo penetram os espaços econômicos recursos mobilizados para a implantação desse "urbanismo de luxo" conseguidos
subdesenvolvidos, vão sendo buscadas, na experiência do mundo desenvolvido, com facilidade proporcional à dimensão político-econômico do projeto em ques-
as abordagens existentes para os problemas gerados. O urbanismo no Brasil não tão. Nas cidades particulares de apoio à atividade mono-industrial, as próprias
foge à regra. O desenvolvimento do capitalismo industrial brasileiro, iniciado no empresas se encarregavam da construção.6
período de substituição de importações e aguçado nas três últimas décadas, criou Além desses casos, onde a importância política e econômica justificava um
os chamados "problemas urbanos" e, com eles, a necessidade de buscar soluções cuidado especial com a organiiação do espaço, o urbanismo foi aplicado, também,
nas propostas elaboradas nos países desenvolvidos. Assim, as diversas tendências no nível micro, para atender às novas exigências sociourbanas.7 Assim, foram cons-
e correntes, surgidas no centro do sistema capitalista, vão sendo incorporadas "tar- truídas vilas operárias e áreas industriais nas periferias das cidades grandes, assim
diamente" pela periferia. No caso das cidades, à medida que as "mazelas" geradas como bairros-jardim e subúrbios distantes exigidos pela classe alta e permitidos pelo
pela concentração populacional e industrial vão surgindo no processo de expan- desenvolvimento dos transportes urbanos.8 Nesse quadro de transformação das cida-
são do capitalismo, vão sendo importadas, também, as "soluções". Interessa-nos des, as propostas urbanísticas se multiplicaram, segundo as diversas correntes estran-
analisar este processo de apropriação ou de importação de soluções para os velhos geiras, desde o modelo barroco, nos meios mais conservadores, até tentativas de ci-
problemas novos e suas implicações sobre o planejamento urbano brasileiro. dades-jardim e núcleos industriais modernos. É nesse contexto que o modelo
A experiência brasileira de planos urbanos remonta ao final do século XIX. progressista/racionalista se impôs como a principal influência no movimento urbanís-
Algumas cidades novas como Belo Horizonte, na virada do século XIX para o tico brasileiro, tendo seu coroamento com a construção de Brasília.
século XX, e Goiânia, na década de 1930, foram construídas a partir de desenhos Esta corrente de pensamento, apoiada no conceito-chave do modernismo,
urbanos influenciados pelos padrões culturais do período barroco. A característica ou "l'ésprit nouveau" (Merlin, 1972) da era industrial, concentra o interesse dos
do traçado é o "tabuleiro de xadrez", cortado por largas avenidas e amplos espaços urbanistas na técnica moderna e na estética, redefinida far.;e aos novos conceitos.
abertos, onde se localizam os edifícios monumentais de estilo neoclássico, tão ao A cidade industrial é considerada anacrônica e defasada, devendo, assim, passar
gosto da época. A área urbanizada se estende em baixa densidade, sem espaços por transformações estruturais fundamentais, de forma a se coadunar com a efi-
verdes - à exceção do grande parque urbano obrigatório. Este padrão atinge toda cácia exigida pela sociedade moderna. O urbanista da escola racionalista/pro-
e qualquer expansão urbana daquele período; todavia, as novas cidades planeja- gressista está "bem mais preocupado em representar urna visão arquitetural da
das são o seu exemplo mais significativo. cidade grande contemporânea do que em fazer a análise aprofundada de seu
O planejamento do núcleo urbano também se fez presente no caso de al- complexo organismo" (Ostrowsky, 1968).
guns projetos governamentais que ganham importância estratégica especial, A partir do grande questionamento da cidade industrial do século XlX,
principalmente, a partir do esforço de industrialização iniciado nos anos 1930. enquanto outros urbanistas propunham a negação da cidade grande e a volta
Desta feita, o urbanismo se volta para a cidade industrial, e as correntes de pen-
samento surgidas no início do século XX nos países desenvolvidos já exercem
uma influência substantiva sobre os arquitetos e engenheiros no Brasil. Assim, os 6 Volta Redonda, da Compa nhia Siderúrgica Nacional, Acesita, da Aços Especiais ltabira; lpatinga, da
Usinas Siderúrgicas Minas Gerais, são os exemplos mais marcantes, havendo também diversos casos
de cidades particulares contíguas a pequenos centros já existentes ou parcelas da cidade sob controle
direto de uma empresa. Em todos os casos, acabam surgindo "cidades públicas" junto a "cidades
5 Françoise Choay desenvolve amplos estudos sobre o assunto, delimita ndo dois períodos: o pré-ur- particulares". A este respeito, vide Costa (1979).
banismo do século XIX e o urbanismo propriamente dito, levado à frente pelos arquitetos no século 1 É importante ressaltar que não nos referimos às melhorias técnicas de serviços e infra-estrutura
XX. Em a mbos os casos, distingue correntes de pensamento, sendo as correntes "culturalista", forta- urbana tratadas setorialmente, fechadas em si mesmas, por não considerá-las como um esforço de
lecida na Inglaterra com as cidades-jardim e a "progressista ou racionalista", com ma ior influência na "planejamento" urbano.
França, Alemanha e Países Baixos, as mais significativas. Choay analisa, também. o ''naturalismo" e e Yujnovsky ressalta o apoio do governo a estes bairros das classes dominantes, acompanhados sem-
o "anti-urbanismo" americano, além de outras correntes que enfatizam visões tecnicistas, humanistas pre por grandes inversões em infra-estrutura, transportes e facilidades recreacionais, tais como clubes,
e orgar.icistas da cidade (Choay, 1979). hipódromos etc. (Yujnovsky, 1971).
36 ·Roberto Luís de Melo Montc-Mór P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E P ERSl'êCIWAS • 37

aos valores culturais pré-industriais,9 os progressistas defendiam o progresso in- tão fundamentais na estrutura urbana que quase implicavam na destruição do
dustrial e a eficiência capitalista. Enquanto aqueles proclamavam os males da espaço urbano até então existente. De fato, to rnava-se difícil compatibilizar as
cidade grande e a necessidade do convívio que só a pequena comunidade pode- propostas às cidades reais. Desagregando o conceito clássico de cidade-aglome-
ria permitir, estes se propunham a vestir a cidade grande com uma roupagem ração, através da fragmentação e especialização funcional de "porções" do espa-
moderna que lhe permitisse melhor se inserir na era industrial. Assim, se para ço, e impondo uma predefinição integral de uma nova ordem específica e rígida,
alguns a negação da cidade industrial gera uma nostálgica busca da unidade da definida a partir de uma exaustiva análise funcional, o urbanismo progressista
cidade comunitária, espaço de convivência harmônica e símbolo da libertação impõe autoritariamente um espaço urbano acabado que visa permitir um rendi-
da burguesia, os progressistas sonham com uma nova cidade grande, atual e mento máximo no desempenho das funções urbanas.
moderna, harmô nica e eficiente, onde o solo, o ar, a luz e a água devem ser A Carta de Atenas, famosa declaração de princípios dessa corrente urba-
igualmente distribuídos entre todos (Ramon, 1974). O principal ponto comum nística, define quatro funções urbanas fundamentais sobre as quais estruturar o
entre as duas correntes que se opõem, aliado à visão da "desordem" e à busca espaço-habitação, recreio, trabalho e circulação - tratando cada uma na suti. especia-
do "modelo", é a incapacidade de reconhecer na cidade o espaço precípuo da lização isolada, "até as últimas conseqüências". 13 No nível da macroestruturação ur-
luta de classes. Enquanto a lguns atribuíam à cidade grande ou à forma da cidade bana , Le Corbusier propõe uma cidade "centro de decisões e negócios", onde habi-
a raiz de todos os males da sociedade, outros partiam para a utopia social como ta a classe dirigente que detém o poder, e cidades-jardim periféricas para a população
a imagem à qual aporiam as suas propostas urbanísticas. Os modelos são variados, trabalhadora. Com os devidos "cinturões verdes" de proteção, separando as diversas
desde o historicismo culturalista ao tecnicismo isento de compromissos políticos do partes da cidade, propunha a localização das indústrias na extrema periferia.
progressismo/racionalismo. 10 Para este, o caráter universal e purista atribuído à forma
e a aceitação de um Romem-tipo universal permite uma padronização do urbanismo Classifiquemos três classes de população: os que habitam o centro da
em todo o mundo. Assim, os planos para uma cidade latino-americana, européia o u cidade; os trabalhadores cuja vida se desenvolve por metades no cen-
africana poderiam ser iguais, visto que as necessidades básicas dos homens são as tro e nas cidades-jardim, e as massas operárias, que dividem sua jor-
mesmas, e se regem pelos princípios fundamentais de estética e eficácia. 11 O urbanis- nada de trabalho entre as fábricas dos subúrbios e as cidades-jardim.
mo passa a ser a busca de uma lógica racional-arquitetônico em contraposição às (Le Corbusier, 1966)
estruturas urbanas espontâneas ou "naturais". Ao indivíduo-tipo, atemporal e a-his-
tórico, corresponde uma ordem-tipo, para o progresso, A cidade é vista como um
Dentre as diretrizes fundamentais do racionalismo, alguns elementos con-
instrumento de trabalho, gerando-se, assim, a especialização de porções do espaço
ceituais permanecem como referência para o planejamento de cidades ou do
urbano, visando maior eficácia e riqueza formal. Segundo Le Corbusier, a geometria
espaço, como um todo, ao nosso contexto. A habitação, compreendida como célula
é o ponto de encontro entre o belo e o verdadeiro. 12
principal de estruturação urbana, assumiria significativa importância e papel crescen-
Diante da negação da cidade como até então existia e da marcante simpli- te, em razão da necessidade da burguesia de se isolar da invasão urbana pelo prole-
ficação funciona l do conjunto, exigida pelas bases da teoria progressista , era natu- tariado industrial. Do ponto de vista do capitalismo, significa o necessário fortaleci-
ral que o planejamento urbano se prendesse, principalmente, à criação de cidades mento da propriedade privada em detrimento dos espaços comunitários defendidos
novas. Entretanto, foram feitas propostas de intervenção sobre grandes cidades pelos culturalistas - as praças, os pontos de encontro, os espaços públicos para o
(inclusive para o Rio de Janeiro e São Paulo, por Le Corbusier), porém, sempre congraçamento. Na cidade racionalista, o objetivo principal é tomar agradável o es-
desconsiderando o capital social básico já implantado e propondo transformações paço habitacional, restringindo-se o convívio social no nível das unidades de vizi-
nhança. Evidentemente, esta é uma maneira de reduzir os conflitos sociais gerados
9
Neste grupo se situam os chamados "culturalistas": W. Morris, Camilo Sitte, Ebenezer Howard,
Unwin e Parker, entre outros.
'º "Muito cuidei para não sair do terreno técnico. Sou arquiteto e não me obrigarão a fazer política.
Que cada qual, em diversos campos, com a mais rigorosa especialização, leve sua solução às últimas
conseqüências". São palavras de Le Corbusler para se defender previamente das a cusações que 13 A Carta de Atenas. publicada em 1943 por Le Corbusier, aborda outros pontos importantes, quais
vinha sofrendo (Le Corbusier, 1966). sejam: a incorporação do enfoque da cidade face ao seu território de Influência ("cidade e reglllo"),
11
Choay transcreve a afirmação de Le Corbusler: "Todos os homens têm o mesmo organismo, as defendendo a necessidade da integração da visão urbano-regional e dedica parte especial à preser-
mesmas funções. Todos os homens têm as mesmas necessidades" (Choay, 1979). vação do patrimô nio histórico. Na cidade moderna, proposta pelos progressistas, há que se tl'llta.r
12
"O homem anda reto ... O asno faz ziguezagues. O asno traçou todas as cidades do continente" (Le també m com cuidado os exemplos arquitetônico-urbanísticos de um período histórico já ultrapassado
Corbusier, 1966). (Congresso ... , 1964, p . 13 ).
PLANEJAMENTO URllANO NO 131\ASlL: T RAJETÓRIA , AVANÇOS E l'ERSl'ECTI VAS ' 39
38 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór

pela iuta de classe no interior do espaço urbano, levando ao extremo na proposição eia e preocupação atinge não apenas o projeto vencedor de Lúcio Costa, mas o
macroestrutural de Le Corbusier citada anteriormente. 14 próprio júri do concurso, que nada menciona sobre a questão. Ao contrário, o júri
se prende a considerações essencialmente ligadas ao "expressionismo da função
Da mesma forma, as diversas funções urbanas são tratadas isoladamente, governamental... expressão arquitetônica própria da cidade q ue sintetizam bem
de modo a evitar qualquer conflito funcional que possa prejudicar a eficiência da a escala de valores empregada no julgamento" (Andrade, 1972).
cidade. O conceito de zoneamento rígido, onde a cada espaço especializado
corresponde uma concentração funcional, é o principal instrumento de política Embora duramente criticadas nas últimas décadas pelos que as interpretam
urba na, transformando a cidade em setores justapostos: setor bancário, setor como uma camisa-de-força imposta ao organismo social, 18 as premissas do pensa-
recreacional, setor comercial etc. A circulação, altamente desenvolvida e bus- mento racionalista dos progressistas influíram decisivamente sobre os urbanistas
cando, também, evitar conflitos entre os diversos modos de transporte, atua como brasileiros. Se esta influência, até meados do século XX, se restringia às elites egressas
elemento de interligação, sem, contudo, interpenetrar os espaços funcionais. A da aristocracia rural, que tinham acesso direto aos ensinamentos das metrópoles
rua e o anacronismo principal da cidade devem ser substituídos pela via, novo européias, com a emergência da arquitetura moderna brasileira, aliada ao processo
elemento cuja função se restringe à circulação. de urbanização acentuado no pós-guerra, ela se difunde entre os "círculos de inte-
ressados". Brasília vem a ser o coroamento de uma corrente que já se fortalecia
como sendo a vanguarda do pensamento arquitetônico-urbanístico no país.
Brasília, o apogeu do urbanismo racionalista De fato, o modelo racionalista respondia, melhor que qualquer outro, às
demandas do momento histórico que vivia o país. No momento em que a racio-
Quando se realizou, na década de 1930, o 4° CIAM - Congresso Interna- nalidade do planejamento, resultante da influência das missões americanas e dos
cional de Arquitetura Moderna, os postulados progressistas/nacionalistas foram organismos internacionais, atingia o aparelho do Governo, e em que se estruturava
reunidos na Carta de Atenas; no Brasil já se tinha conhecimento de suas premis- uma "nova burocracia" (Cardoso, 1975) com um papel mediador entre o sistema
sas antes mesmo que Le Corbusier a publicasse, na década seguinte. 15 A partir de político clientelístico tradicional e a mobilização direta das massas, principalmente no
então, o pensamento corbusiano, ligado a todo o movimento moderno de artes nível urbano, os conceitos de ordem e progresso do positivismo, implícitos no racio-
e arquitetura no Brasil, ganhou força entre os nossos profissionais, influenciando nalismo europeu, casavam perfeitamente com as diretrizes políticas vigentes no país.
o planejamento de novas cidades ou partes de cidades. 16 Em todos os casos, su- O Plano de Metas de Kubitschek estabelecia as bases da ruRtura com o planejamen-
bestimava-se a dinâmica própria da cidade e o espaço urbano não era visto to e modernização restritos às "ilhas de racionalidade" (Cardoso, 1975), coexistindo
como resultante da projeção de diversas estruturas e atividades socioeconômicas com a administração rotineira do sistema político tradicional. Estruturava-se, na ver-
nele desenvolvidas. Ao contrário, a cidade e o espaço urbano ganhavam um dade, nova concepção de governo central, na qual a abertura para o exterior, a inte-
significado simbólico muito maior, adquirindo força e qualidade ambiental em gração nacional para construir um País forte e moderno, o desenvolvimentismo e o
sua própria lógica formal, quase independente da estrutura socioeconômica que crescimento econômico, exigiam decisivo apoio popular.
a suportava. O projeto de Brasília, refletindo esta ausência de correspondência
Nesse momento, em que a ideologia do "desenvolvimento" ganhava força
ou mesmo preocupação de ajustamento entre as estruturas socioeconômicas fun-
damentais da população e o sistema espacial proposto, ilustra com brilhantismo crescente entre nós, fruto da expansão do imperialismo do pós-guerra, as propo-
essas posições fundamentais da escola progressista. 17 Para Andrade, essa ausên- sições racionalistas vindas dos "países adiantados" respondiam com vantagens

1 lB Entre as criticas mais conhecidas, pode-se citar Jane Jacobs, Cristopher Alexander, Pierre Francastel
• P'ara Le Corbusier, "a cidade é um utensílio de trabalhd' e "elas (as cidades atuais) não são dignas
da época: elas não são mais dignas de nós" (Le Corbusier, 1969). e H. Wasser. Este úlümo diz que "o urbanismo funcional mata a alma", enquanto Francastel critica
15 Elaborada na Grécia, em 1933, a Carta de Atenas só foi publicada em 1942, mas o movimento duramente Le Corbusier, ao dizer: "o universo de Le Corbusier é o universo concentracionário. É,
dos e.rquitetos "progressistas" contou, desde seus primórdios, com a participação de representante na melhor das hipóteses, o gueto. (... ) Pessoa alguma tem o direito de fazer a felicidade do vizinho à
brasileiro: Lúcio Costa, além de Gregori Warchavchik. · força ...". (Ostrowsky, 1968) e (Choay, 1979). Também no Brasil surgiram fortes críticas a Brasília, e
16 JA em 1934, um concurso estabelecido pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira permitiu a a análise dos demais projetos apresentados no concurso para construção da Capital Fede.ral mostra
Lúdo Costa expor, ainda como complementação aos projetos arquitetônicos, os conceitos básicos da que urbanistas brasileiros sofriam também influência da escola culturalista européia e do modelo
escola progressista, que viriam a tomar forma definitiva em Brasília (Costa, 1962). humanístico desenvolvido por Patrick Geddes no início do século XX. A equipe de M.M.M. Robe rto,
17
Frnnçoise Choay afirma: "... mesmo Brasília, construída segundo as regras mais estrilas do urba· classificada em 3º lugar no concurso com uma proposta de inspiração culturalista, definida a partir da
nismo progressista, é o grandioso manifesto de certa vanguarda, mas de forma alguma a resposta a idéia de pequenas cidades justapostas que se multiplicariam segundo a necessidade - a comunidade-
probl2mas sociais e· econômicos específicos" (Choay, 1979). tipo - critica "a monume ntalidade do século XIX" identificada no "esboço vencedor".
P u.NEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 41
40 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór

às necessidades político-ideológicas do P-dís.19 Era necessário criar grandes sím- prefiram habitar cidades-satélites onde o "desejo de fazer uma cidade" pede ser sa-
22
bolos de "integração" nacional, a fim de evidenciar a nova era em que o Pa ís tisfeito, sendo este "desejo" uma necessidade vital do cidadão.
entrava. Vivia-se um clima de futuro, de modernidade, de identificação por parte Entretanto, apesar da rigidez das propostas progressistas e do ca:áter de
da população com o Estado Nacional, que surgia disposto a tomar as rédeas do ruptura com uma ordem espacial tradicional estabelecida, que caractenza essa
País e conduzi-lo à condição de potência industrial moderna. Pedia-se uma cida- corrente de pensamento, o próprio Lúcio Costa admite o autoritarismo implícito
de com um novo espírito para uma nova era - o "espírito novo" racionalista? em sua proposta, desse modo, afastando-se um pouco dos pensamentos originais
"Que cidade? A cidade dos negócios, centro de negócios-modelo! A capital do do mestre Le Corbusier:
capitalismo. A cidade da burocracia dirigente, das classes médias servidoras do
sistema ... " (Ramon, 1974). O urbanista deve limitar-se ã criar condição para que o desenvclvimento
regional e urbano se processe organicamente e a guiá-lo, para que o
Cidade-instrumento, o modelo progressista é também cidade-espetáculo. crescimento natural ocorra no melhor sentido, de acordo com as neces-
(Choay, 1979) sidades de vida e as circunstâncias. Mas, no caso de Brasília, teria sido
falso adotar esse critério programático, porque, tendo de ser estruturada
E Brasília nasce como tal, um monumento aos seus criadores, ao "destino" em prazo exíguo, a ordenação da cidade se impunha como única solu-
do País, à entrada efetiva, pelas mãos do Estado, do capitalismo industrial inter- ção. Teve de nascer como Minerva, já pronta... Em condições normais,
nacional que integrará o espaço nacional, expressão da nova ordem buscada ela é o exemplo de como não se deve fazer uma cidade. (Costa, 1962)
pela burguesia emergente brasile ira, a trelada ou não ao capital externo. De
qualquer modo, síTbolo do progresso e modernidade nacionais, e afirmação Apesar das afirmações de Costa, que a testam a sua contemporaneidade de
inquestionável de um Estado de importância crescente na vida nacional. 2º pensamento, não há como não reconhecer que a implantação de Brasília seguiu
Por outro lado, era necessário construir em tempo recorde esta cidade-monu- muito de perto os ditames do urbanismo progressista, q ue percebe a cidade como
mento. A rápida implementação era de tal importância, dado o sentido político que um projeto acabado ou, na melhor das hipóteses, como um modelo a ser apri-
envolvia a obra, que a compreensão do fato de que a cidade deveria poder tornar-se morado. Este é o pensamento geral da época, como ressalta Choay (1979):
irreversível em curto espaço de tempo d eu a Lúcio Costa condições de concorrer
com vantagem sobre os demais projetos.2 1 Tal condição exigia, de fato, um projeto Contudo, e este é o ponto importante, todos esses pensadores imaginam a
acabado, a ser implantado autoritariamente, mas buscando a identificação da popu- cidade do futuro em termos de modelo. Em todos os casos, a cidade, ao
lação com o "castelo do rei". (Benévolo, 1976). Entretanto, imensas críticas foram invés de ser pensada como processo ou problema, é sempre coloc:ada como
feitas ao processo de implementação de Brasília, ressaltando sua rigidez e a ausência uma coisa, um objeto reprodutível. É extraída da temporal idade concreta e
de participação da população. Essa marginalização da população no processo de toma-se, no sentido etimológico, utópica, quer dizer, de lugar nenhl!ITl.
formação da cidade, segundo Wilheim (1969), faz com que parcelas da população
Ao atribuir uma supervalorização à capacidade de transformação ec;trutural do
espaço programado, os urbanistas progressistas concebiam estruturas urbanas apoia-.
das em estruturas socioeconômicas inexistentes ou utópicas, fazendo com que, ob-
viamente, o espaço resultante, muitas vezes, guardasse pouco das intenções iniciais
19
Furtado mostra como a ideologia do "progresso" evolui para a ideologia do "desenvo lvimento"', a
partir da internacionalização da economia capitalista. Se a primeira funcionava como uma "superi-
deologia", capaz de aglutinar gregos e troianos, a segunda, dado o modelo implícito que carrega em
si, serve ape nas às necessidades de expansão do sistema capitalista mundial (Furtado, 1978). 22 Apesar de ressallar a importância do autoritarismo na implantação de Bras~ia, c:am~ílad~ pela mobi-
20 Bahia afirma que "a construção de Brasília - uma cidade-capital - , propositadamente projetada lização ideológica do populismo, a análise de Wilheim nos parece uma excess1Va s1mph~caçao, talvez de
para não ser uma cidade industrial, tem certo simbolismo polftico - o da a firmação da cidade caráter enfático. Na realidade, a estrutura socioeconômlca da população trabalhadora migrante impun~a
burocrática represent11tlva do Estado-n11çâo sobre a cidade Industrial e sobre os grandes centros seu afastamento do plano-piloto, buscando, numa área Informal, soluções men~ onerosas. AJ.!m do maJS,
metropolitanos" (Bahia, 1978) . apesar do monopólio da terra, o Estado Impôs restrições ao uso do espaço (leis para uso do solo e das
21 Andrade ress11lta em seu tr11balho: "Na an61lse de seu relatório percebe-se que ele se ocupa, princi- edlílcações) que Impediam que a populaçllo levantasse nll os seus barracos, dem~nstrando daramente 11
palmente, dos dois fato res que eram os mais importantes para o proprietário do empreendimento: o necessidade de expulsar da cidade os trabalhadores que, com sua pobreza, podenam empaner o monu-
car6ter monumental e a possibilidade de ter uma obra irrevers(vel ao fim do mandato do Sr. Kubits- mento símbolo do desenvolvimento do Pais. Tal radoclnlo pode se aplicar melhor, talvez, às populações
chek" (Andrade, 1972). ricas q~e buscam nas áreas contíguas a Brasília a sua chance de "criar" sua casa e sua cidade.
42 · Roberto Lu(s d e Melo Monte-Mór
P u.NEJMtENTO URBANO NO B~1L: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSl'EcnvAS. 43

de :;ua concepção,23 pois, como afirma Yujnowsky (1971), "o sistema físico planejado Foram produzidos, no período de 1939 a 1945, dez "planos diretores" (Seminá-
não pode alterar a estrutura socioeconômica básica vigente". E, de fato, ao analisar rio... , 1971), os quais evidenciavam a preocupação em incluir novos aspectos no
o resultado de Brasília, observa-se a pertinência de diversas das colocações críticas planejamento das cidades. Em 1947, surgiu o Curso de Urbanismo da Escola de
que lhe são feitas, não enquanto qualidade ambiental, expressiva e urbanística, mas Belas Artes de Porto Alegre, que vem reforçar essa atividade. Com este movimento,
enquanto solução dos problemas socioeconômicos que a sociedade brasileira apre- advém uma mensagem renovadora do urbanismo, expressa através dos "planos
senta. A "camisa-de-força", imposta pelo projeto original, assumida pelo governo diretores" .24 Apesar de restritos à área físico-urbanística, devem ser ressaltadas as
local e ratificada pelo controle estrito do uso do solo, fez com que se formassem cida- suas preocupações com o processo de planejamento, a assistência permanente e as
des na periferia de Brasília, compatíveis com os níveis de reprodução da população medidas visando à implantação gradual e efetiva dos trabalhos. Ao zoneamento
brasileira. Nesse sentido, Brasília é uma caricatura, no subdesenvolvimento, do citado rígido do urbanismo progressista opõem a idéia de zoneamento por tolerância ou
modelo progressista original, proposto por Le Corbusier (Le Corbusier, 1966), onde expulsão das diversas funções urbanas. Tentam promover a expansão do tecido
se define um "centro de negócios", que é, também, o espaço residencial da classe urbano de forma "ordenada", induzida por investimentos viários ou equipamen-
dominante, e cidades-jardim periféricas onde vivem os trabalhadores. '1\penas" o tos de função principal. Incorporam ao desenho urbanístico a técnica engenheirís-
modelo corbusiano pretendia "sol, luz, água e terra para todos" (Ramon, 1974) e tica dos serviços e infra-estrutura urbanos. Apesar de incorporados pelos arquitetos
tampouco se pode dizer que as cidades-satélites sejam cidades-jardim. Assim, em sua nas suas preocupações com a forma das cidades, os "planos diretores" valorizam,
macroestrutura, Brasília não difere das cidades brasileiras geradas no capitalismo in- principalmente, o caráter funcional e a técnica urbanística, dando assim destaque à
dustrial recente, onde, a par de uma área central onde se concentram o capital e as atuação dos engenheiros como profissionais ligados ao problema urbano. A cidade
classes dominantes, a cidade se estende em uma periferia destituída de infra-estrutu- passa a ser vista principalmente como um problema técnico, resultante da somató-
ra e serviços, ou seja, "marginal" à acumulação de capital fixo, refletindo, no nível ria dos sistemas de produção dos serviços e infra-estrutura requeridos e, conse-
urbano, o que se observa no nível nacional e regional. Obviamente, a organização qüentemente, afeitos ao processo da administração urbana. É neste sentido que
espacial é apenas parte da estrutura social que integra, podendo minimizar ou aguçar representa uma ruptura com o modelo anterior, por incorporar, assim, a idéia de
suas contradições, mas nunca resolvê-las.
processo contínuo de planejamento, inserido no contexto político-administrativo
como atividade normativa perene, onde o plano representava uma sistematização
O planejamento urbano: um novo enfoque a médio prazo dos objetivos a serem atingidos a partir de ações de curto prazo.
Assim, o problema urbano se deslocava da pré-con~epção ideológico-formal
O rápido processo de urbanização trazia consigo problemas urbanos "me- do espaço, segundo uma análise funcional do organismo ou instrumento "cidade",
nores, quotidianos". As cidades brasileiras começavam a demandar ações go- para uma visão da aglomeração urbana centrada na idéia de resolução técnica dos
vernamenta is, visando soluções técnicas e políticas para os problemas sociais e serviços de consumo coletivo que o Estado era crescentemente chamado a assu-
econômicos que se avolumavam. A necessidade de atuação do governo no mir, aliada à tentativa de "ordenação" do espaço em expansão pela localização de
nível das cidades, não apenas nos casos "de luxo", mas, principalmente, quan- investimentos indutores e legislação apropriada ao controle social.
do a livre-iniciativa não conseguia resolver os problemas, já era princípio am- Além da experiência gaúcha, mais restrita ao aspecto urbanístico, merece
plamente aceito a partir da noção keynesiana de distinção entre serviços de destaque o movimento liderado pelo Padre Lebret, que, ainda nos anos 1940,
caráter social e de caráter individual. Usando estes conceitos, o urba nismo ex- representou uma versão brasileira do movimento francês "Economia e Humanis-
trapola os limites urbanos, atingindo a região ou a "planificação espacial". Ou, mo" (Seminário... , 1971). Esse grupo desenvolveu uma série de estudos e planos
visto de outro ângulo, o paradigma do planejamento, difundido no âmbito nacio- para várias cidades importantes (São Paulo, Belo Horizonte e Recife, entre o u-
nal e regional, ganhava também a cidade. A "visão compreensiva" da cidade tras), introduzindo técnicas de pesquisa e análise até então inexistentes no plane-
logc se desenvolve também no Brasil.
jamento urbano brasileiro e incorporando a visão dos cientistas socia is do.fenô-
Os primeiros estudos nessa linha foram elaborados pela seção de urbanis- meno urbano. Em continuação a essa experiência , o Centro de Pesquisa e Estudos
mo da Secretaria de Governo do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de 1935. Urbanísticos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CEPEU) ,

23 24 Os "planos d iretores" surgiram nos Estados Unidos, no início do século XX, diante dos problemas
S€gundo Andrade (1972), essa atitude utopista reflete um idealismo característico do arquiteto, que
que a urbanização acelerada impunha, mormente no tocante a oferta de serviços de consumo coleti-
tenta resolver pela desenho urbano ou a rquitetônico os problemas estruturais da sociedade.
vo e a expansão física das cidades.
44 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór !'v.NEJMIENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 45

27
através d e um grupo de arquitetos e engenheiros, desenvolveu conceitos básicos riais, numa tentativa de ação integrada para o controle estatal do espaço u rbano.
para a participação comunitária nos planos urbanísticos. O grupo do CEPEU Nesse seminário, tentou-se estabelecer as bases para a ação governamental, elabo-
aliou à influência francesa os conceitos mais recentes da experiência inglesa e rando a proposta de lei que criaria a SUPURB (Superintendência de Urbanização),
norte-americana. Entretanto, os trabalhos se caracterizavam, principalmente, por organismo nacional encarregado de promover e ordenar o desenvolvimento urbano
a~plos d iagnósticos, resultando em estudos sobre o urbano que ainda não con- no País. Tal lei não foi aprovada, e a semente lançada veio frutificar em situação
seguiam mobilizar os governos para uma ação efetiva. Já se observava uma bastante diversa do que havia sido pensado.
ampliação significativa do planejamento urbano, no tocante às áreas de enfoque Até 1964, 0 planejamento do espaço urbano continuaria sendo encarado pelo
aos problemas urbanos, embora predominasse, incontestavelmente, a prioridade governo federal como "artigo de luxo" , reservado aos grandes projetos políticos,
dos aspectos físicos. A fundamentação do planejamento integrado interseto rial, onde 0 caráter nobre do empreendimento exigia um toque artístico e uma funciona-
que caracterizou os anos 1960 e se impõe ainda hoje, efetivou nos trabalhos re- lidade técnica compatíveis com a grandeza da obra. A partir de então, com a ruptura
alizados em 1960 em São José dos Campos e na Região do Recife, quando à do pacto social populista, a ação do Estado modificar-se-ia radicalmente, culminan-
equipe de arquitetos e engenheiros foram incorporados soció logos e economistas do na institucionalização do planejamento urbano, como veremos a seguir.
para a análise de áreas de sua especialidade. 25
Embora não houvesse logrado resultados concretos, no início da década
O planejamento local integrado para o desenvolvimento -
de 1960, já estava esboçada a conscientização, e os "círculos de interessados", da
necessidade de que o planejamento do desenvolvimento urbano fosse assumido uma política equivocada?
como uma tarefa fundamental do governo num país em intenso processo de in-
dustrialização e, congeqüentemente, de urbanização. Uma pesquisa realizada em Apesar das citadas colocações feitas em 1963, não se verificou, no primeiro
1958 pelo IBAM- Instituto Brasileiro de Adm inistração Municipal- mostrava que governo militar, a institucionalização do planejamento urbano a partir do enfo-
11,6% dos municípios brasileiros possuíam algum tipo de organismo responsável que da questão urbana em sua totalidade. O problema urbano permaneceu cen-
pelo aspecto urbano ou urbanístico. (Seminário... , 1971) Ainda que em muitos trado na habitação e só gradativamente foram incorporados os aspectos ligados
casos de caráter pouco expressivo, sem órgãos efetivos de controle do espaço à infra -estrutura urbana e ao próprio planejamento urbano e metropolitano.
urbano, buscava-se mostrar que a preocupação com o planejamento urbano já Aqui. novamente, se percebe a pertinência da perspectiva progressista que, ao se
havia atingido os municípios de forma significativa. Entretanto, fo ra da esfera apoiar no indivíduo-tipo (em oposição à comunidade-tipo). centra seus estudos
mun icipal, o problema do desenvolvimento urbano continuava restrito aos pro- e interesses no "habitat", no espaço individual, na propriedade privada. E não
poderia ser d e outro modo, no momento em que o regime autoritário instalado
fissionais ligados à área, principalmente os arquitetos (que discutiam amplamen-
te o assunto nos seus encontros profissionais) e os engenheiros, com participação dava uma forte guinada para a direita no processo de implantação efetiva do
crescente dos economistas, sociólogos, geógrafos e outros profissionais que vi- capitalismo industrial no País.
28
nham se interessando pela questão urbana. No âmbito do governo federal e dos Em 1964, o País já se aproximava da sua "maioridade urbana" e o cres-
estados, em sua maioria, o problema urbano continuava restrito aos aspectos cimento metropolitano era inegável e intenso em todas as suas dimensões - da
habitacionais. Em 1963, realizou-se, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, um concentração industrial às favelas. O urbanismo não poderia continuar a ser um
"Seminário de Habitação e Reforma Urbana", com a mpla divulgação, na tenta- privilégio reservado aos espaços nobres. As cidades brasileiras e, principalmente,
tiva de oferecer subsídios para uma atuação estatal efetiva no setor. Os participantes as metrópoles passaram a se apresentar como focos de problemas e surgiu a neces-
discutiam, então, em tomo do conceito de "reforma urbana" ,26 detendo-se na neces- sidade de instrumentos de controle social e econômico, pois, ao mesmo tempo, as
sidade de regulações do uso do solo urbano, das construções e investimentos seto- aglomerações urbanas se tornavam atores principais no modelo político-econômi-
co que se intentava implantar. Desta feita, o autoritarismo foi gradativamente assu-
mido, em oposição ao paternalismo que escondia a manipulação do período pol
25
Nessa época, proliferavam as discussões sobre o papel de cada profissional no planejamento urba-
no "interdlsciplinar". A este respeito, ver a discussão de Wilheim (1969).
•• O conceito de "reforma urbana", já amplamente difundido nos países de centro no sentido de 'Z7 Cintra coloca: "no ambiente polarizado daqueles dias, muitos estavam propensos a r.onsiderar
reforma espacial de llreas deterioradas, ganha novo significado no mundo periférico a partir da as alterações revoluclon6rias como o único remédio realmente efiCllZ para os males do poís, nllo se
experiência desenvolvida na Cuba pós-revo lucionária, principalmente nas transformaç ões estru- excluindo a questão habitacional e os problemas urbanos a ela relacionado_s" (Cintra, l 9i8).
turais desenvolvidas em Havana. 2t1 Em 1960, a população urbana do país representava 45,08% da populaçao total.
46 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS " 47
.,
~

l
pulista, onde conviviam os objetivos progressistas da "nova burocracia" - que via
como necessária "a mobilização de novas camadas da população a partir do
Estado" (Cardoso, 1975) - e as elites econômicas que ainda suportavam o tradi-
cional sistema político clientelístico "irracional". 29 Nesse contexto, as cidades
deral de governo. Os recursos financeiros seriam provenientes do FGTS - Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço, aiado pela Lei nº 5.107 de 13 de setembro de
1966. No mesmo ano, o decreto nº 59.917, de 30 de dezembro, instituiu o SNPU
- Sistema Nacional de Planejamento Local Integrado, e criou o APU\N - Fundo
,
l

deixavam de ser encaradas apenas como problemas de técnica de engenharia de Financiamento de Planos de Desenvolvimento Local Integrado, com recursos l
e de embelezamento arquitetônico. Sociólogos, economistas, cientistas políti- do FGTS nomeando o SERFHAU - Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, l
cos, enfim, os cientistas sociais, descobriam a cidade como foro de estudo da seu gesto; e órgão coordenador central do sistema (Seminário... , 1971). Em janeiro )
sociedade capitalista industrial que se consolidava no país. de 1967, o Decreto-lei nº 200 criou o Ministério do Interior, ao qual foram vincula-
dos o SERFHAU e o BNH, sendo reafirmadas suas funções. }
Por outro lado, o governo militar se instalava, em meio à crise econômica
e social que se esboçara no país a partir da segunda metade da década de 1950. Embora tais medidas in~titucionais caminhassem no sentido de maior inte- )
As tensões sociopolíticas, iniciadas com a ruptura do pacto social populista, fo- gração da atuação do Estado face aos problemas urbanos - no sentido de uma )
ram agravadas pelo processo de contenção salarial e conseqüente concentração política urbana nacional -, na verdade, observou-se verdadeira dicotomia nas
ações governamentais. Com efeito, embora o Plano Decenal, elaborado em
)
de renda, medidas utilizadas pelo novo governo de forma a aumentar a capaci-
dade de investimento da classe empresarial. Para obter garantia de efetivação de 1967, procurasse estabelecer as diretrizes principais dessa política, o BNH e ~ )
sua política econômica, era necessário "formular projetos capazes de conservar o SERFHAU tomariam caminhos diversos em suas ações quanto ao desenvolvi- )
apoio das massas populares, compensando-as psicologicamente pelas pressões mento urbano. Para a compreensão desta colocação, recordemos, ainda que ra-
às quais vinham sendo submetidas pela política de contenção salarial. Para tanto, pidamente, o discurso do Plano Decenal quanto à política urbana. )
nada melhor do que a casa própria". (Bolaffi, 1975)30 O Plano Decenal assumiu a importância de traçar uma política urbana para )
Se, por um lado, o ideal da casa própria já tinha sido incorporado à popu- o país, renomeando o SERFHAU como "organismo central do Sistema Nacional }
lação brasileira, por outro, a comprovada correlação entre casa própria e atitudes de Planejamento Local Integrado" e dedicando um tomo ao desenvolvimento
}
conservadoras, observada no Brasil,31 servia plenamente aos interesses do novo regional e urbano:
governo. Paralelamente, a expansão da construção civil viria gerar emprego exa- }
tamente nas áreas onde o desemprego ou subemprego apresentavam um quadro Da mesma forma que os investimentos industriais, agrícolas, etc, são
racionalizados através da elaboração de projetos, toma-se necessário
)
social mais grave: as cidades maiores, onde a concentração de migrantes não-
qualificados crescia, aumentando a marginalização e as tensões sociais. elaborar planos de desenvolvimento local para a racionalização dos )
investimentos que se destinarão a urbanização (Brasil, 1967b). )
O BNH - Banco Nacional da Habitação - surgiu nesse contexto e, com a sua
criação, foram rapidamente dados os passos iniciais para a institucionalização do .)
Abordando o assunto de forma quase didática, o Plano desenvolveu con-
planejamento urbano no Brasil, através de mecanismos assumidos pela esfera fe-
siderações sobre custos de urbanização, densidades urbanas, zonas periféricas )
"pseudo-urbanas" e outros conceitos analíticos intra-urbanos. Levantou, tam- }
29 Aqui já se esboçava a dicotomia técnico/política tão difundida no Brasil nos últimos quinze anos.
bém, o problema da rede urbana, considerada "inadequada" ao desenvolvimento
nacional, ressaltando os problemas da concentração excessiva em São Paulo e Rio )
Aliás, a partir do regime militar, com o afastamento do poder de parte das elites políticas e da to-
talidade da população, esta tecnoaacia embrionária ganhou força crescente na sua aliança com os e a necessidade de ação preventiva nas demais metrópoles. Preconizou urna Polí- )
militares e com a burguesia nacional e estrangeira na promoção do desenvolvimento. Furtado afirma
tica Nacional Urbana. como instrumento para alterar a esbutura de urbanização do
que o autoritarismo e a doutrina da "segurança nacional" são corolários da "ideologia do desenvol- )
vimento". trazidos no bojo da expansão do capitalismo internacional, quando este atinge ·os países país, citando, como ~emplos, experiências nos países de centro: a desmetropoliza-
periféricos não-industrializados. (Furtado, 1978) ção da Inglaterra na década de 1950, com base na política de empregos; os casos )
30 A este respeito, nada mais claro do que a famosa carta da Deputada Sandra Cavalcanti ao Presiden-
da França e dos Estados Unidos. Definiu dois outros níveis de atuação estatal no
te Cast2lo Branco, ao apresentar a proposta de criação do BNH: "... aqui vai o trabalho sobre o qual ~
estivemos conversando. Estava destinado à campanha presidenciaJ do Carlos, mas nós achamos que planejamento urbano: os padrões intra-urbanos de organização do espaço e retor-
a Reuolução uai necessitar de agir uigorosamente junto às massas. Elas estão órfãs e magoadas, de nou, com um anglicismo - "administração local" -, à velha bandeira do IBAM, de .1
modo que vamos ter de nos esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos
problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica modernização das administrações municipais. Chamou a atenção para a necessi- j
sobre as suas feridas dvicas". (o grifo é do Presidente Castelo Branco). Citada em Souza (1974). dade de estudos de base para a formulação de uma política urbana nacional, a j
31 Pesquisa feita por Uoyd A. Free, em 1960, citada por Bolaffi (1975).
partir de visões local, micro e macrorregional. Propôs o estabelecimento de regiões-
j
48 · Roberto Lu.ís de Melo Monte-Mór
PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, 1'VANÇOS E PERSPECTIV"5 . 49

programa e a definição de pólos de desenvolvimento para efetiva implantação do urbano, veio não apenas aumentar os desequilíbrios regionais e acelerar o cresci-
SNPU, preocupando-se com instrumentos de ação, com a descentralização do mento das cidades grandes, mas, também, contribuir para o agravamento dos
Sistema pelo envolvimento dos Estados, formação de recursos humanos para o problemas intra-urbanos decorrentes da rápida urbanização marginal brasileira.
setor, participação efetiva da população e a instalação do processo de análise e A distribuição de investimentos provenientes da poupança compulsória (FGTS) e
avaliação do planejamento. (Brasil, 1967b) Em suma, o Plano Decenal abordou os as linhas de crédito de incentivo à construção, desenvolvidas pelos agentes finan-
pontos principais, ainda hoje discutidos, de uma política urbana e propôs que o ceiros do BNH, que manipulam os recursos da poupança voluntária (SBPE), não
SERFHAU, como organismo principal do SNPLI, fosse apoiado por organismos de obedeceram a qualquer macropolítica de aplicação, seja de racionalidade urba-
pesquisa, como o Conselho Nacional de Geografia - CNG e o EPEA, hoje IPEA na, seja de cunho sociopolítico, regendo-se apenas pelos critérios de rentabilida-
- Instituto de Planejamento Econômico e Social.
de econômica exigidos pelo Banco. Como resultado, não apenas o problema
Entretanto, é grande a separação entre o discurso do Plano Decenal e a habitacional não foi solucionado onde era mais crítico - a habitação popular,
atuação efetiva do governo federal. Na verdade, o Plano Decenal foi rapidamente pois se descobriu que a população pobre brasileira não tem renda para ter casas
abandonado em sua visão compreensiva e em suas proposições de descentraliza- - como tampouco foram equacionados os problemas urbanos trazidos à iuz qua-
ção e crescimento equilibrado, quando o Ministro Delfim Neto assumiu a Pasta da se como decorrência da política habitacional. Na verdade, ao contrário, a atua-
Fazenda, optando claramente pelo modelo centralizador de incentivo ao "capitalis- ção do BNH veio apenas agravar dois problemas fundamentais das grandes ci-
mo selvagem" que caracterizou o "milagre brasileiro". E, assim, o BNH, em sua dades brasileiras: a supervalorização da terra urbana (e imóveis), gerando (e
atuação efetiva, colocar-se-ia frontalmente contrário às diretrizes da política for- sendo gerada pela) especulação imobiliária, e o seu corolário, o processo de ex-
mal expressa no Plano Decenal, e cada vez mais afinado com a estratégia de pansão periférica das cidades, de densidade rarefeita e "marginal" GO processo
crescimento econôffiico proposta pelo Governo. urbanizador. Enquanto as companhias habitacionais (COHABs), utilizando os
O modelo de desenvolvimento econômico adotado após 1964 continha, recursos do FGTS, implantam seus conjuntos na periferia urbana mais distante,
implicitamente, uma opção de concentração urbana, na medida em que se onde a terra é mais barata, contribuindo desta forma para o esgarçamento do teci-
apoiava no processo de intensificação da industrialização e nos mercados urba- do urbano, o estímulo à construção privada das classes médias e altas, po!;Sibilitado
nos, de maior elasticidade, face aos produtos principais da crescente indústria de pelos recursos do SBPÇ, promove o adensamento da área central e favorece o
bens duráveis. Os objetivos principais perseguidos pelo governo encontravam processo de especulação imobiliária,33 transformando o imóvel (e o próprio solo
nas cidades grandes o meio propício à sua consecução, na medida em que estas urbano) em mercadoria a ser comercializada no mercado segundo a lógica de ma-
permitiam maior rentabilidade ao capital investido, pelas condições de econo- ximização do lucro. Nesse contexto, acentuam-se a seletividade e a especialização
mias externas que oferecem mercado e mão-de-obra semi-especializada, e se funcional do espaço, decorrentes da distribuição diferencial do capital fixo no espa-
prestavam mais à estratégia de concentração de renda, através de poupança e ço urbano: as áreas centrais da cidade se apresentam "superequipadas", enquanto
compressão salarial, para gerar novos investimentos. Por outro lado, a chamada a periferia carece dos requisitos mínimos que a vida urbana exige. Ao adensamen-
indústria da construção, como foi ressaltado, é amplamente propícia ao processo to do capital fixo na área central das metrópoles se opõe o esgarçamento espacial
de geração de empregos urbanos, sendo, por isso mesmo, reconhecida como um da área periférica "marginal" ao sistema. Os dois espaços se complementam. 34
mecanismo eficaz de controle de conflitos sociais. Enquanto isso, "apoiado técnica, institucional e financeiramente", (Brasil, 1967a)
0 SERFHAU atuava ao nível local, definindo, em primeira etapa, as cidades de
Entretanto, tal política só poderia agravar o processo migratório campo-ci- população superior a 50 mil habitantes como objeto de seus trabalhos, à exceção
dade, já intenso na década de 1950, na medida em que concentrava os investi- das cidades da Amazônia, onde esse critério se reduzia para 25 mil habitantes.
mentos governamentais nos principais centros urbanos. Esta concentração ocorre Com base nesta delimitação do universo de trabalho, no período 1967/69 o SER-
não apenas em relação ao sistema urbano, privilegiando as grandes cidades, mas, FHAU financiou a elaboração de 18 estudos urbanos, incluindo estudos prelimina-
também, no tocante à distribuição regional. 32 Por outro lado, a concentração de
investimentos, tanto no nível macrorregional quanto internamente ao sistema
33 Neste trabalho quando nos referimos à "especulação imobiliária", queremos dizer da retenção
32 de terra improdu;iva (no caso urbano, desocupada), com o objetivo de auferir maior renda futura
A análise das aplicações do BNH mostra que 58,63% dos investímentos do Banco, de 1968 até a partir da sua valorização, esta provocada pela agregação de capital ao seu en~orno. Ainda que
setembro de 1973, se concentraram na Região Sudeste, 15,89% na Região Nordeste, 10,72% na empreendimentos imobiliários possam conter em si um processo de especulação, nao se confundem
Região Sul, 4,53% no Centro-Oeste e 3,14% na Região Norte. Dados trabalhados a partir da tabela necessariamente com a atividade especulativa. . . . .
(Ili. 4) apresentada em Francisconi e Souza (1976). 34 A respeito da estruturação do espaço metropolitano no Brasil a partir de uma perspect1v.a da locali-
zação relativa do capital e do poder de acesso às áreas urba nizadas, ver Santos e Bronstem (1978). 1
50 · RouP.rto Luís de Melo Monte-Mór P LANEJAMENTO UllUANO NO B11ASIL: THAJETÓlllA, AVANÇOS E l' EIL5PECTIVAS . 51

res, pr~jetos setoriais - distritos industriais e cadastros técnicos municipais - e planos Quadro 1: Brasil - Número de Documentos financiados pelo FIPLAN
de desenvolvimento urbano. (Seminário... , 1971) . . at6 10/09/73 por regiões
'
Documentos em Total
Entretanto, ao trabalho do SERFHAU faltava uma diretriz macroespacial no Regiões Documento• concluldoa elaborar;ão
nível nacional que definisse áreas e abrangência de atuação segundo características TR
Rei.
PUProJ. Subto!Jll TR
Rei.
PUProJ.
Prol. Prel.
comuns a grupos homogêneos de municípios. Em junho de 1969, o Ministério do
Interior baixou a portaria nº 214, criando o PAC- Programa de Ação Concentrada Norte 9
35 2 46 - - - 46

que, apoiando-se em estudos de base do IBGE,35 definia 457 centros urbanos 10 68 15 93 6 25 3 127
Nordeste
como prioritários para a ação do governo no campo do planejamento urbano e
também os níveis de abrangência e profundidade dos estudos a serem elabora- Centro-Oeste
2 34 7 43 - - 3 46

dos, segundo diferentes tamanhos de cidades.36 O PAC respondia à crescente


41 11 35 87 4 - 14 105
discussão, no âmbito da tecnocracia, sobre a necessidade de uma política de Sudeste

desenvolvimento urbano no país, que, já afirmada no Plano Decenal, tinha sido 11 - 1 12 13 - 8 33


Sul
retomada no Programa Estratégico de Desenvolvimento - PED 68/70. Este, no
148 60 281 23 25 28 357
capítulo sobre Desenvolvimento Regional e Urbano, ressaltou o sentido nacional Total
73

e regional da política urbana:


Fonle: SERFHAU. ti: Franclscorl e Souza (1976).

A formulação de uma política de desenvolvimento urbano deve ser


elaborada através de uma ótica regional: as cidades nascem e se desen-
volvem em função dos potenciais econômicos, estratégicos, etc., de A distribuição regional por trabalhos elaborados sugere um grande privilégio
uma dada região (Brasil, 1967a). ao Nordeste e dir-se-ia que, ali, os problemas urbanos eram maiores. Entretanto, esta
aparente distorção se deve, apenas, ao fato de terem sido elaborados inúmeros
Paralelamente, insistia na "desintegração" encontrada nos planos urbanís- relatórios preliminares e termos de referência através da SUDENE e do Projeto
ticos até então elaborados, preconizando o "planejamento urbano integrado", Rondon. Ao se observar a distribuição regional, segundo o tipo de documento
ótica que orientaria toda a atuação do SERFHAU na implantação do SNPLI. elaborado, verifica-se que no Sudeste se concentram 623 dos PAVPDU e 533
Entretanto, se o SNPLI nasceu desta forma abrangente, enquanto formula- dos Cr$ 18,62 milhões emprestados pelo FIPLAN aos municípios.
ção de objetivos e metodologias, a atuação do SERFHAU se restringiu ao plane- No contexto político-econômico descrito, o planejamento integrado para o
jamento intra-urbano de cidades médias e pequenas, predominantemente. Dos desenvolvimento socioeconômico é mera figura de retórica e a promoção do de-
237 municípios onde atuou até 1973, 683 tinham população inferior a 50 mil senvolvimento municipal se submete inteiramente às necessidades de crescimento
habitantes, 283, entre 50 e 250 mil habitantes e 43, superior a 250 mil. Ao se econômico do país. Assim, outro não poderia ser o resultado do SNPU, pois, como
considerar as sedes municipais (população urbana), estes percentuais passam vimos, a política do SERFHAU se mostrava distante dos reais objetivos nacionais e
para 80%, 163 e 43, respectivamente. 37 Por outro lado, a grande maioria dos conflitante com o planejamento econômico federal. Partindo da perspectiva do
trabalhos feitos - 633 - são relatórios preliminares para municípios pequenos, "desenvolvimento local integrado", o planejamento urbano promovido pelo SER-
corno se observa no Quadro 1. FRAU se baseava no município enquanto entidade autônoma, capaz de decidir
sobre seus problemas urbanos. O caráter "integrado" dos planos, abrangendo a
visão físico-territorial, social, econômica e administrativa, se por um lado abria
~ Em 1968, o IBGE havia definido microrregiões homogêneas para todo o país. uma nova dimensão à tentativa de organização do espaço urbano, por outro,
36 Segundo a metodologia do PAC, os Rela tórios Preliminares {RP) se dirigiam aos municípios peque- desconhecia a centralidade crescente observada no país a partir de 1964. Esva-
nos, enquanto os Termos de Referência {TR) constituíam diagnósticos e indicações preliminares que
antecediam iou não) e justificavam a elaboração de planos, que podiam ser Planos de Ação Imediata ziado politicamente pelo autoritarismo vigente, destituído de diversas de suas
{PAI) para municípios de até 50 mil habitantes, e Planos de Desenvolvimento Local Integrado {POLI), funções "de peculiar interesse" e enfraquecido financeiramente pela reforma tri-
para os municípios maiores.
37
Informações estatísticas agregadas do estudo de Fonseca (1973). compiladas por Francisconi e
butária, que o atrelava a uma condição de dependência dos níveis estadual e
Souza (1976). Para uma avaliação mais exte nsa da atuação do SERFHAU, ver, além dos dois estudos federal, o município sofreu as conseqüências do anti-federalismo que ele mesmo
acima citados, a discussão de Barat (1979) sobre planejamento de centros urbanos de porte médio. havia apoiado no período pré-64. (Bahia, 1978). O SNPLI parecia pretender
52 ·Roberto Luís de Melo Monte-Mór P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJITÔRIA, AVANÇOS E PERSPEr.ilVAS • 53

montar um sistema de planejamento urbano de baixo para cima. Entretanto, município é maior. Na última faixa (acima de 20 mil habitantes urba-
todo o resto do sistema político-econômico se caracterizava por uma postura nos), a predominância da atuação mais técnica é bastante sensível,
autocrática e, assim, enquanto o SERFHAU incentivava, promovia e financiava dado que 703 dos dirigentes locais consideram ser esse tipo de atua-
a organização administrativa e o planejamento municipal, o sistema político-eco- ção a melhor forma de assegurar o sucesso do seu govemo. 39
_nômico do país se pautava por intensa centralidade de decisão. Na nova visão
os objetivos municipais deviam se curvar aos objetivos do "desenvolvimento na~ Quanto à "qualidade técnica" do planejamento desenvolvido pelo SER-
cional". Por outro lado, os objetivos nacionais não estava·rn claramente definidos FHAU, pouco há a dizer. Coerente com a política do BNH e com a perspectiva
em seu desmembramento no âmbito municipal. Dessa forma, as estratégias de anti-populista e empresarial do governo, o SERFHAU também se apoiou na em-
desenvolvimento local continuavam sendo enfocadas a partir do ponto de vista presa privada. Desta feita, não nas construtoras, mas nas consultoras. O financia-
municipal, assumindo-se que as diretrizes de planejamento, no nível global, de- mento era dado ao município para que contratasse uma empresa consultora para
vessem ser elaboradas a partir da agregação dos planos municipais (Tolosa, elaborar seu plano de desenvolvimento. A metodologia geral era definida pelo
1_972). Entretanto, como tal postura não encontrava ressonância no conjunto do SERFHAU, obedecendo à idéia do planejamento "compreensivo". Não se trata-
sistema, o SERFHAU estava fadado a ser engolido, corno de fato o foi, transfor- va mais de projetar cidades, mas de definir "imagens-objetivo" a serem atingidas
mando-se numa carteira do BNH. a partir das diversas ações "integradas". Buscava-se a fusão "interdisciplinar" das
_ . A falta de coordenação das ações diversas no nível local, espelhada na várias visões da problemática urbana de forma a promover o desenvolvimento
nao-1rnplantação dos planos serfhalinos, apenas evidencia a fragilidade do sis- equilibrado. Os estudos e diagnósticos analisavam os diversos aspectos da cidade
tema montado. Na verdade, o SNPLI transformou-se, apenas, num promotor e propunham ações nos principais "setores" de atuação do Estado: físico-territo-
de documentos "técnicos" que tinha, em última instância, o papel de modern i- rial, econômico, social e institucional-administrativo.40 O pressuposto positivista
zador das burocracias municipais.38 A elaboração dos planos gerou uma expec- disciplinar foi transposto à leitura analítica do fenômeno urbano e, nesta perspec-
tativa de investimentos incapaz de ser atendida pelos governos locais ou mesmo tiva, no nível formal, o SNPLI era coerente com as grandes diretrizes do sistema
e~ta~uais e federal. Por outro lado, as prefeituras já sabiam que, sem 0 apoio de planejamento brasileiro, também "compreensivo". Como resultado "técnico",
tecmco, nada conseguiriam junto aos organismos estaduais e federais. Era pre- pouco se pode dizer. Sem dúvida, agregou experiências, ampliou o conhecimen-
ciso que se tivesse o plano feito para conseguir recursos, ainda que parcos. Aqui to, e muitos dos planos apresentaram diagnósticos, alternativas de ação, proposi-
se define um papel para a "nova burocracia" no nível municipal: fazer a "pon- ções e projetos específicos pertinentes e bem elaborados. Muito se avançou no
te" entre as necessidades do município e os recursos centralizados. A adaptação conhecimento dos problemas das cidades e em sua sistematização. As críiicas ao
dos municípios à nova situação é expressa na pesquisa do IBAM sobre o prefeito seu caráter normativo e à sua suposta universalidade de propostas para todo o
brasileiro, realizada em 1975, onde se mostra que: país, bem como à ênfase excessiva nos aspectos urbanísticos, enfim, todas esta-
riam contidas no problema fundamental de sua postura conflitante com a política
Os prefeitos que se identificavam com o tipo de atuação mais política econômica nacional, visto que os planos eram, em sua grande maioria, nntimortos.
são maioria entre os municípios mais rurais (57.1 3), enquanto entre os Montou-se todo um discurso de planejamento urbano voltado para o fortalecimen-
medianamente urbanizados esta percentagem desce para 41,13 e daí to da célula mínima autônoma da nação -o município - quando os instrumentos
para 29, 73 nos mais urbanizados. Seguindo tendência contrária, os de política eram cada vez mais centralizados e autoritários. De fato, entretanto,
prefeitos que defenderam um tipo de atuação técnico-administrativa pretendeu-se o desenvolvimento integrado local atrelado aos grandes objetivos
são mais numerosos naquelas faixas em que a população urbana do nacionais. Mas tudo isso foi exposto de forma nebulosa, pois a sua apresentação
clara desmontaria o sistema enquanto tal.
Fonseca (1973). no trabalho citado, ao tentar avaliar a atuação do SER-
~· Em seu trabalho sobre a avaliação da a tuação do SERFHAU, Fonseca (1973) conclui que os pro-
Je~os ~~su!tantes dos planos elaborados foram pouco significativos. Ou seja, o que denomina "efeito FHAU, conclui pela "maior responsabilidade" dos "atores executores" (municí-
micro !01 pequeno, surgindo resultados no nível do "efeito macro'', o que define como sendo a pios e empresas consultoras), refletindo a falta de apoio e definição nos escalões
form_a~ao de uma mentalidade de planejamento urbano. Com a "nova burocracia" atingindo 0 nível
municipal, mesmo que os recursos para implantação dos projetos fossem negados, e as ações seto-
riais !sol.adas dos dlver~os níveis de governo se perpetuassem, parle dos objetivos do planejamento 39 Transcrição de Bahia ( 1978).
era~ allngid~.s : ª.sua _incorpora~~. como preocupação permanente no processo de administração 40 A análise do urbano passou da perspectiva funcional intra-sistêmlca espacial do "progressl<;mo"- habi-
municipal. A racionalidade técnica chegava ao falido município brasileiro. tação. lazer, trabalho e circulação - para a ótica disciplinar - economia, sociologia, engenharia etc.
54 ·Roberto Lufs de Melo Monte-Mór P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: Tl\J\JCTÓRIJ\, AVANÇOS E PERSPECTIVAS ' 55

superiores - "atores definidores e controladores", quais sejam, o governo federal, uma política espacial nacional. Talvez por insistir em atuar contra a corr~nt~
as superintendências regionais e os estados. Há, aqui, um risco de se identificar centralizadora, poder-se-ia dizer que o SERFHAU apenas camuflou os pnnc1-
na "maior responsabilidade" dos executores a razão do fracasso da experiência. pais problemas urbanos do país. Ao se dirigir ao município, quando a decisão
De fato, tal colocação parece refletir uma postura tecnocrata que se fortalecia no de investimentos era cada vez mais centralizada; ao trabalhar principalmente
âmbito federal e estadual, onde o município aparece como ineficiente, desatuali- com centros pequenos e médios, quando o capital e os grandes movimentos
zado e administrativamente incompetente. Nesse quadro, a citada pesquisa do migratórios se dirigiam para as metrópoles; ao se preocupar quase que apenas
IBAM vem apenas confirmar os pressupostos dessa tecnocracia emergente, que com a feitura dos planos, quando os problemas urgentes exigiam investimentos
defende a "racionalidade técnica" em oposição ao exercício político. Diante do imediatos e objetivos; ao não conseguir a liderança real da intervenção do Es-
novo contexto apolítico e autoritário pós-1964, as esvaziadas prefeituras munici- tado no espaço urbano, ficando à margem dos grandes investimentos feitos
pais apareciam como desatualizadas, e tal argumentação já havia se prestado à pelo BNH nas cidades brasileiras, o SERFHAU veio decretando seu suicídio
justificativa da própria reforma tributária. (Bahia, 1978). As consultoras - os ou- como organismo central da política urbana brasileira.
tros "executores" - são assumidas como tecnicamente limitadas e irrealistas em Entretanto, o problema urbano já havia sido teoricamente incorporado às
suas proposições, além de pautarem-se por um interesse principalmente lucrativo. grandes preocupações nacionais. Quando foi apresentado, ao final de 1970, o
Na verdade, todas estas colocações parecem apenas servir à justificativa de maior Programa de Metas e Bases para a Ação do Governo, preparado às pressas para
centralização e ao fortalecimento da burocracia federal e estadual. Os planos locais substituir o PED, incluía um capítulo sobre o desenvolvimento regional e urbano,
refletiam, apenas, as contradições do sistema montado, que oferecia serviços mui- relacionando os projetos prioritários do setor. (Brasil, 1970) Todavia, apesar de
tas vezes não solicitados a um consumidor que dependia crescentemente das ins- definir diretrizes para o Sudeste, Nordeste e Amazônia, propor o desenvolvimen-
tâncias superiores para poder utilizá-los da forma como se pretendia. Atribuir a
to das principais áreas metropolitanas do país, preconizar a integração de progra-
causa dos fracassos à predominância dos aspectos físico-territoriais, ou à insuficiên- mas setoriais dos planos de urbanização e propor o revigoramento do nível de
cia àa análise "integrada" ou, mesmo, à incompetência técnica dos municípios, é ·
decisão municipal, tendo como principal instrumento o PAC, ao propor projetos
escamotear o problema real. Pelo contrário, não se pode negar que um dos ga- prioritários, limita-se ao enfoque setorial e pontual, abrangendo a área de eletri-
nhm; principais do período serfhalino se prende ao maior conhecimento sistema-
ficação, centrais de abastecimento, aeroportos etc, sem a preocupação de uma
tizado dos problemas urbanos brasileiros e ao avanço metodológico no tratamen-
integração no nível do conjunto urbano. De fato, a única ,medida efetiva no âm-
to teórico desses problemas. Assim, também, foi significativo o avanço dos
bito local contida no plano se prende à fixação de normas de aplicação do Fundo
municípios no sentido de conseguirem maior controle administrativo e indepen- de Participação dos Municípios (FPM) como instrumento de controle para inte-
dência financeira relativa, através do aumento de suas receitas próprias pela atu-
gração vertical dos objetivos do governo federal. Ou seja, já nesse período se
alização e implantação dos famosos cadastros técnicos municipais. Entretanto,
evidenciava a nova ótica centralizadora do governo, e o problema urbano, até
são apenas ganhos secundários, uma vez que somente representam a maximiza-
então tratado como matéria integrada horizontalmente, no nível das cidades, é
ção possível diante da grande fragilidade da comunidade municipal no contexto
deslocado para uma perspectiva de tratamento setorial e isolado de aspectos
nacional. Ou seja, a questão da inviabilidade do esforço do SERFHAU não se ·
principais, segundo uma hierarquia de prioridades integradas verticalmente.
situa no plano técnico, ainda que possa ter interessado a alguns setores da tecno-
cracia tentar situar aí um dos pontos-chave do problema. Na verdade, a disfun- Com o 1PND - Plano Nacional de Desenvolvimento - , o aspecto espacial,
ção do SERFHAU e a inoperância dos "atores executores" refletiam, apenas, as regional ou urbano, começou a ser visto como elemento integrante das diretrizes
contradições políticas do sistema montado, que precisava então ser redefinido econômicas das estratégias de desenvolvimento nacional. Diferentemente dos
face ao novo contexto político-econômico do país. três planos que o antecederam, o 1 PND não dedica parte especial ao desenvol-
vimento urbano e regional. Entretanto, ao explicitar o modelo econômico a ser
adotado e, em seguida, a estratégia de desenvolvimento, os aspectos espaciais
Política urbana nacional - um novo paradigma regionais aparecem como elementos integrantes fundamentais. Na parte seguin-
te, quando da "execução da estratégia" , ao considerar os fatores de expansão -
Como vimos, já em 1967 o Plano Decenal apresentava as bases de uma emprego e recursos humanos - , as considerações sobre o processo urbano e de
política urbana nacional. Entretanto, a atuação do SERFHAU, ao se restringir metropolização contêm a tônica do raciocínio desenvolvido em torno da "conso-
ao planejamentp local, pouco avançou no sentido de formular diretrizes para lidaçã o do Centro-Sul", sendo exposto como ação fundamental :
56 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS " 57

Instituir as primeiras regiões metropolitanas do país, principalmente governo federal para assumir parte das responsabilidades de gestão urbana,
para o Grande Rio e a Grande São Paulo, como mecanismo coor- criou-se o espaço para a definição da nova política de planejamento urbano,
denador de atuação dos Governos Federal, Estadual e Municipal, desta feita não mais sob a capa da cooperação técnica com os municípios na
nos programas conjuntos, observadas as respectivas áreas de com- solução de seus problemas específicos. Assumia-se, finalmente, que a importân-
petência (Brasil, 1971). cia econômica das áreas urbanas transcendia os interesses municipais. Aqui, cabe
um parêntese para recompor, rapidamente, o processo recente de transformação
De fato, apesar da não-definição de metas sob o títúlo de desenvolvimento do papel das cidades e da atuação do Estado face à questão.
urbano, o enfoque estava consolidado dentro da própria estratégia econômica de Na verdade, o processo de urbanização e industrialização, iniciado com o
desenvolvimento, porém, distanciando-se, cada vez mais, da perspectiva que
período da substituição de importações e acelerado nos anos 1950, é retomado
orientava a criação do SNPLI. Diante do modelo centralizador e verticalizador, com força redobrada a partir dos governos militares, modificando substancial-
agora claramente explicitado, a política serfhalina tornava-se anacrônica e confli- mente o enfoque do problema urbano. Cada vez mais, a cidade se tornn o palco
tante mesmo ao discurso do planejamento.
da produção. A tradicional relação de dominação da cidade pelo campo obser-
Por outro lado, em 1973, quando o "milagre brasileiro" apresentava sinais vada no Brasil vem se rompendo à medida que o lócus da produção se desloca
de degeneração e quando o processo político começava a se reestruturar de for- para o espaço urbano. O PIB nacional passou a ser gerado em sua grande maio-
ma reivindicatória e avessa ao governo militar, os problemas da marginalidade ria nas áreas urbanas e assim as cidades brasileiras não são mais apenas o espaço
social crescente e des~conomias de aglomeração nas grandes metrópoles come- de vivência de uma classe dominante e de seus servidores imediatos. Agora, a
çavam também a se agravar. A discussão da metropolização ganhava vulto no cidade é, também, uma "unidade de produção" da maior importância, e é preci-
país, e com ela a petspectiva de solução de um dos problemas fundamentais a ela so que se cuide de sua administração e eficiência enquanto espaço produtivo.
relacionados: a sua institucionalização, vista como condição sine qua non para Diante do novo quadro, há que se redefinir a atuação do Estado diante do
qualquer ação de planejamento. Problema não de todo resolvido, a criação das problema. Ao Estado liberal, preocupado com o simbolismo do espaço urbano,
regiões metropolitanas41 levantava, também, discussões ferrenhas sobre sua auto- onde se concentra a classe dominante e que ratifica sua dominação ideológica, se
nomia, formação institucional, recursos etc. Tratava-se de criar uma nova instância apõe o Estado burguês moderno, preocupado em atender às crescentes demandas
de poder, no nível microrregional, que feria diretamente a autonomia dos municí- que a concentração populacional para a produção vem gerando. A preconcepção
pios, já tão enfraquecida. Uma discussão extensa, que foge ao nosso escopo e que racionalista de espaços adequados à nova realidade burocrata-industrial, impor-
esconde questões muito mais importantes. A esse respeito, Bahia (1978) coloca tada dos países de centro, pôde servir às demandas imediatas do capitalismo nas
a questão com extrema propriedade: ·
suas formas mais avançadas, mas se mostrou incapaz de responder às necessidades
de organização dos espaços gerados pela movimentação difusa de uma população
Só a redemocratização do país poderá colocar em bases corretas a que se situa aparentemente à margem do processo em curso. E as metrópoles subde-
questão dos órgãos executivos da região metropolitana, os quais redu- senvolvidas não constituem apenas o espaço onde se aglomeram os setores de pon-
ziriam sensivelmente as autonomias dos municípios componentes. Tal ta da economia; elas são, também, o espaço onde se concentram setores periféricos
redução de autonomia só seria concebível e aceitável no regime demo- ao processo produtivo. Assim, ao lado do pleno desenvolvimento industrial das
crático, porque este asseguraria, aos conselhos deliberativos, poderes e forças modernas do capitalismo mundial, observa-se cada vez mais intensamente,
atribuições políticas, enquanto os órgãos executivos teriam de início, nas metrópoles brasileiras, a crescente participação "informal" de camadas mar-
provavelmente, caráter gerencial.42
ginais ou periféricas ao sistema central, e, por isso mesmo, condição de seu for-
talecimento e expansão. Em outras palavras, as cidades grandes no Brasil, diante
A busca de solução para o problema metropolitano serviu também a outros do modelo de crescimento econômico experimentado, são cada vez mais "centros
objetivos. Ao se atentar para a efetiva fragilidade dos municípios e chamar-se o de riqueza e focos de pobreza" (Brasil, 1974).
Nesse contexto, se aguçam as contradições da ação do Estado. Seu papel,
41
Apesar de previstas na Constituição de 1967, as regiões metropolitanas só foram Institucionalizadas como fornecedor de serviços de consumo coletivo, deveria se ampliar considera-
em 1973, pela Lei Complementar nº 14.
42 velmente, assim como sua tentativa de controle sobre os conflitos sociais crescentes,
Entretanto, até hoje o que existe de fato, no nível metropolitano, são organismos de planejamento in-
teiramente "tecnocratizados" e polarizados pelo governo federal , sem qualquer expressão comunitária. face à distribuição desigual das benesses do desenvolvimento urbano-inclustrlal. En-
58 · Roberto Luls de Melo Monte-Mór Pv.NEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TKA)ETÔ IUA, AVANÇOS E l'ERSl'ECTIVAS • 59

tretanto, de fato, o espaço social urbano é cada vez menos uma totalidade para a ções de 1974. Fazer planos para os frágeis municípios pequenos e médios
açáo estatal e apenas os setores mais prementes, face às necessidades da acumu- enquanto se investia maciçamente em grandes obras viárias nas regiões centrais
lação, vão ganhando importância, com conseqüente desintegração da atuação das áreas metropolitanas já não atendia às necessidades do sistema econômico e
do Estado como mediador dos interesses conflitantes. político. Não se tratava mais de fazer planos para o desenvolvimento municipal
isolado, na maioria inexeqüível pelas diversas razões expostas. O novo objetivo
Paralelamente, a importância crescente das cidades no contexto econômi-
era coordenar os investimentos federais e estaduais cada vez mais significativos
co nacional determinou, no nível do planejamento urbano, a entrada maciça em
nos municípios, seja através de intervenções diretas ou de empresas de serviços
cena de novos profissionais, que viam a cidade sob uma nova ótica. Não se trata
altamente centralizadas e com políticas próprias, ou mesmo através das transfe-
mais de "simplesmente" organizar o espaço segundo uma racionalidade totali-
rências de receitas fiscais, com aplicações previamente determinadas. O SER-
zante, que expressa valores socioculturais, mas de buscar soluções imediatas para
FHAU, já definitivamente falido, transformou-se numa simples carteira do BNH.
os problemas que a nova organização socioespacial para a produção trouxe con-
Por outro lado, todo o sistema de planejamento nacional se reformulava, dando
sigo, principalmente, conflitos sociais e deseconomias de aglomeração. A "nova
origem à Secretaria de Planejamento da Presidência da República, velho sonho
burocracia", que vai tentar promover esta racionalidade, é a nova assessoria que
dos planejadores desde a tentativa de Celso Furtado, inviabilizada no período jan-
subsfüui definitivamente os artistas e bacharéis na ratificação do Estado burguês,
guista do Plano Trienal. Nesse quadro de transformações, fortalece-se a idéia de
fortalecido com a maturação do capitalismo industrial, do qual é importante acio-
criação de um organismo federal forte que assumisse a tarefa que o SERFHAU não
nista.Trata-se de operar a cidade de forma rentável para o capital, e esta é a nova
tarefa àos planejadores urbanos, com a qual parecem não querer se conformar. conseguiu levar adiante: a definição e efetiva coordenação de uma política urbana
nacional. E coordenar a política de investimentos urbanos é tarefa hercúlea, visto
Até 1974, o Ministério do Interior abrigava a política urbana e habitacional que envolve organismos setoriais muito fortalecidos nos últimos anos, que têm
sendo que o IPEA, organismo do Ministério do Planejamento, deveria prestar-Ih~ políticas próprias, que respondem à nova visão dos serviços públicos assumida
assessoria, como era previsto no SNPU. Entretanto, os enfoques do Interior e do pela tecnocracia que ascendeu juntamente com os militares. Em oposição ao
Planejamento face ao problema urbano não pareciam se coadunar. Enquanto o assistencialismo clientelista do populismo, estes serviços vão se pautar por uma
SEP.FHAU se pautava por domínio relativo dos planejadores espaciais, arquitetos perspectiva empresarial de lucratividade, onde a seletividade da alocação dos
e engenheiros, o Ministério do Planejamento era, sem dúvida alguma, o reduto recursos não obedece mais a critérios políticos, mas sim à necessidade de retorno
dos economistas, preocupados principalmente com a eficácia econômica do de- imediato do capital investido. E, sem dúvida, no novo contêxto não há lugar para
sempenho das cidades enquanto suporte à produção.43 a preocupação local. Cada vez mais, a cidade é uma preocupação que transcen-
Cabe salientar que, nesse período, uma significativa leva de tecnocratas de os interesses da comunidade municipal e ganha as esferas do interesse de se-
voltava de cursos de pós-graduação nos Estados Unidos onde, a par das grandes gurança e desenvolvimento nacionais.
discussões sobre os problemas metropolitanos, desenvolviam-se estudos sobre a
rede de cidades, tentando estabelecer correlações entre o desenvolvimento eco- A cidade, uma vez convertida em unidade concentrada de produção de
nômico de um país e a distribuição freqüência! dos tamanhos de cidades. Na bens e de serviços no setor secundário, terciário e quaternário, asseme-
França, por outro lado, difundia-se a preocupação com uma política de urbaniza- lha-se a uma grande empresa fabril governada, como esta, à maneira
ção nacional, através da criação de cidades novas e "metrópoles de equilíbrio" militar hierarquizada, de rala autonomia. Nada mais parecido com uma
que pudessem contrabalançar a extrema primazia de Paris. comunidade militar do que uma empresa produtiva (Bahia, 1978).
No Brasil, a economia já não ia tão bem. As altíssimas taxas de crescimen-
to do PIB vinhãm decrescendo e a insatisfação social vinha aumentando, princi- E cada vez mais as esferas superiores, federal e estadual, assumem partes
palmente nos grandes centros, o que foi evidenciado, sem contestação, nas elei- maiores no tocante à administração urbana. Nesse sentido, o planejamento urba-
no acompanha, com atraso, em sua transformação evolutiva o fortalecimento ·d o
poder federal e a centralidade crescente das decisões. Ao abdicar do caráter inte-
Tol?sa, em 1972, ao falar sobre uma política naciona l de desenvolvimento urbano, salienta que o
4.'.I
gral do espaço social urbano, em função da maximização setorial, o planejamento
planeiamento urbano no país havia se restringido a dois aspectos: tamanho absoluto das cidades e está apenas se coadunando com o planejamento econômico global, onde também
padrões intra-urbanos de organização espacial. Segundo o autor, dois outros aspectos fundamentais
as dimensões loca is e regionais, apesar dos discursos dos planos, foram, durante
não eram mencionados, quais sejam, a distribuição de freqüências de tamanhos de cidades e a distri-
buição espacial de cidades em um sistema urbano nacional. os últimos anos, crescentemente esquecidas em função do macroobjetivo nacio-
60 · Roberto Luís de Melo Monte-Mór
PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 61

na] de acelerar a acumulação do capital nos setores mais modernos. O discurso buscar um organismo federal que assuma a tutela das regiões metropolitanas, ain-
do planejamento busca a integração socioeconômica e administrativa à dimen- da sem lugar efetivo no sistema político-financeiro do país, e criar um organismo
são espacial, enquanto as ações efetivas e os investimentos significativos são cada que possa assumir a coordenação da política nacional (Minas Gerais, 1978). A
vez mais pontuais e setorizados.
Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) 44 foi a
. Nesse quadro, o próximo passo lógico é a tentativa de uma definição ma- solução institucional encontrada a partir das alternativas sugeridas. Pensada como
croeconômica espacial para o país. A necessidade de aumentar a oferta de servi- uma comissão interministerial, surgiu, na verdade, bem mais frágil do que se pre-
ços urbanos passa a ser incompatível com a redução dos conflitos sociais nas ci- tendia "não sendo um Conselho de Ministros" (Cintra, 1978). Tampouco r.asceu
dades, senão através de um autoritarismo crescente e marginalização cada vez fortalecida financeira e institucionalmente, capaz de coordenar os fortes organis-
maior de amplas parcelas da população que não têm renda para constituir deman- mos setoriais que atuam nas cidades. Mas, sem dúvida, sua íntima ligação com a
da por tais serviços. Assim, a política de serviços imediatos prestados à população Secretaria de Planejamento da Presidência da República lhe conferiu maior poder
das grandes cidade_s se mostra inócua para resolver os grandes problemas urbanos de barganha. Por outro lado, a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento
e metropolitanos. E preciso que se repense a forma de atuação do Estado, tendo Urbano (FNDU), deu-lhe maior capacidade de manipulação. Mesmo que os recur-
corno foco principal o problema da crescente concentração, metropolitana, e, de sos do Fundo fossem pouco substantivos, face à capacidade de inversão dos orga-
quebra, englobar a nova discussão da reorganização espacial dos recursos para o nismos setoriais, e ínfimos diante dos recursos administrados pelo BNH, seu caráter
desenvolvimento urbano no país, buscando, assim, a reorganização espacial da não-rentável, a fundo perdido, lhe confere uma capacidade de multiplicação, que a
rede de cidades em sua importância funcional. CNPU soube utilizar em seu programa principal: o Programa Nacional de Cidades de
É nesse sentido que o li PND marcou uma ruptura com o processo anterior Porte Médio. Entretanto, propunha-se um objetivo muito maior: a coordenação das
de enfoque do probler'ha urbano. Partiu-se para uma tentativa de definição macro- ações estatais no espaço urbano. Esse objetivo parece de difícil consecução, e essa
espacial de política urbana nacional, onde não mais se pretende montar um siste- tarefa cabe agora ao CNDU - Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, or-
ma a partir da ótica municipal, de baixo para cima, mas onde as grandes definições ganismo criado em maio de 1979, no Ministério do Interior, para suceder à CNPU.
de investimento e planejamento serão tomadas autoritariamente, de cima para Seu sucesso dependerá, a nosso ver, muito mais dos rumos que a política assumir no
baixo, como de resto todo o sistema econômico e político montado no país. país do que do discurso tecnocrata. E, evidentemente, apenas a partir do reconheci-
mento dos conflitos de interesses fundamentais, expressos no nível urbano, poder-se-
Quanto à concepção de uma política urbana a nível nacional, Tolosa (1978) á caminhar no sentido da definição de uma política urbana nacional.
fala de um "notável avanço" no tratamento dos problemas urbanos brasileiros.
De fato, a centralização de poderes e a proliferação de instrumentos de atuação
estatal nos níveis federal e estadual, como seus desmembramentos, exigiam uma Algumas considerações finais
concepção racional mais abrangente da distribuição espacial dos recursos, se-
gundo os objetivos de "desenvolvimento nacional". E isso ainda não havia sido Como vimos, a evolução do planejamento urbano no Brasil se pauta por
feito, apesar de muitas vezes discursado. Francisconi e Souza (1976. ) apontam contínuas apropriações de abordagens conceituais e soluções propostas para o
algumas conseqüências do que consideram a "ausência de uma política de or- tratamento dos problemas urbanos gerados nos países de centro, no bojo do
ganização do território, coerentemente definida, que possa ser integrada nos processo de expansão do capitalismo industrial maduro. Tais soluções e formas
mecanismos financeiros e institucionais", quais sejam: a atomização, a casuali- de encarar o problema são resultantes de organizações sociais onde as diferenças
dade e o desordenamento das inversões federais e estaduais, orçamentárias e, de classe são menos marcadas, onde a distribuição de renda apresenta menores
principalmente, dos fundos financeiros recém-criados no nível intra-urbano distorções e, o que é talvez mais fundamental, onde o alto grau de participação
orientados primordialmente para os grandes centros; a desarticulação entre o~ dos diversos grupos sociais nas decisões políticas impõe uma permeabilidade
estudos e análises nas "faixas pioneiras" e os investimentos e decisões de apli- muito maior do planejamento face aos diversos interesses em conflito. A ausência
cação de recursos; e, finalmente, o tratamento idêntico dado às diversas regiões dessa prática política no Brasil, cujo agravamento recente se deu concomitante-
metropolitanas, de características tão dispares entre si. mente com a institucionalização do planejamento urbano no nível nacional, con-
É a partir desses elementos que se intenta montar uma "política urbana na- tribuiu grandemente para fazer com que este se tornasse um discurso vazio que,
cional", partindo de onde sempre se parte no planejamento brasileiro - da criação
de um novo organismo. No caso, tenta-se resolver duas coisas ao mesmo tempo: 44 A CNPU foi criada pelo Decreto nº 74.156, de 06/06n4.
62 · Roberto Luís de Me.lo Monte-Mór P LANEJAMENTO UIWANO NO B RASIL: TltAJ ETÓ IOA, AVANÇOS E l'El\Sl'ECTIVAS ' 63

cada vez mais, se distancia das políticas efetivas levadas a cabo pelo poder público. dos investimentos para a produção. Enquanto no nível do discurso permanece a
Estas políticas públicas, crescentemente centralizadas no governo federal e esvazia- "inter-disciplinariedade", agora definida como integração causal socioeconômica
das nas demais esferas de poder, deslocam o eixo dos "problemas urbanos" do seu e administrativa à dimensão espacial (Francisconi; Souza, 1976), as ações efeti-
sentido sociopolítico comunitário para a ótica dos problemas econômicos do de- vas são cada vez mais setorizadas e pontuais. De fato, nesse contexto, o tratamen-
senvolvimento nacional. Ao distanciamento maior das políticas urbanas dos pro- to integrado do espaço urbano não é mais possível na ótica do planejamento
blemas das cidades, tal como estes se refletem na população como um todo, e à urbano. A integração possível é aquela definida pela política urbana de fato, a
ausência da participação popular, direta ou indiretamente, do processo de decisão partir da lógica do capital - qual seja, a concentração dos investimentos nos cen-
dos investimentos urbanos, os planejadores procuram responder com proposi- tros - em suas diversas escalas - expressando espacialmente a seletividade da
ções próprias que buscam incorporar os valores e as necessidades que interpreta- distribuição dos recursos e benefícios gerados no corpo social. 45
ram ou atribuíram à população em sua leitura da realidade onde se propõem Quanto à atuação coordenada do poder público sobre o espaço urbano,
intervir. Entretanto, como permaneceram à margem desta população, por sua vez expressa através do planejamento urbano ou da política urbana, parece estar ainda
marginalizada do processo decisório, crescentemente centralizado, também os muito longe de se constituir numa prática efetiva. Por enquanto, parece só poder li-
seus planos permanecem à margem das efetivas intervenções no espaço urbano. mitar-se ao discurso tecnocrata, incapaz que é de se constituir em política de fato
Em tais condições, o discurso do planejamento tende a se tornar inócuo: perme- pelas contradições que carrega em si, expressas na oferta seletiva de serviços de con-
ado da ideologia de justiça social, choca-se com as reais diretrizes político-econô- sumo coletivo segundo as exigências da acumulação, por um lado, e na tentativa de
micas dos grupos dominantes, que o governo, em última instância, representa; redução dos conflitos sociais provocados'por esta oferta seletiva, de outro. Ou seja,
por outro lado, gerado num modelo autoritário e tecnocrata, não é passível de se as cidades são cada vez mais "centros de riqueza e focos de pobreza", até hoje tem
ser apropriado politicamente pela população, cujos interesses teoricamente cabido ao planejamento urbano discursar sobre a redução da pobreza para dar legi-
procura defender. Esvaziado na sua dimensão política, o planejamento urbano timidade à promoção da riqueza - para os selecionados. A participação política cres-
ficou reduzido a um exercício técnico comprometido com os interesses do "de- cente, hoje observada no país, certamente terá algo a dizer a este respeito, e ao rede-
senvolvimento nacional" ou se constituiu numa luta ideológica dentro do apa- finir o papel do Estado face à sociedade estará redefinido o planejamento urbano e
relho burocrático estatal, expresso através de alianças intra-tecnocracia com o criando as bases para uma real política urbana nacional.
objetivo de atingir ou influenciar, através dos assessores mais graduados, as gran-
des diretrizes político-econômicas nacionais. Diante desse quadro, o avanço re-
presentado pela incorporação, no nível do enfoque teórico do planejamento ur- Referências
bano e da sua organização institucional, da preocupação com o sistema de ANDRADE, Rodrigo E Une étude de /'evolution du projet "Brasília". Les facteurs qui ont in-
cidades no sentido de definir diretrizes macroespaciais para o país, vem, também, fluencé sa dynamique. (Tese de Mestrado). Bélgica, Louvain, 1972. 109p.
encobrir as contradições crescentes em que ele se envolveu no nível da discussão BAHIA, Luiz A. A cidade política: mudanças e perspectivas. Revista de Administração
Pública, Rio de Janeiro, 12(2): 33-50, abr./jun. 1978.
interna às cidades, onde os conflitos de interesses se manifestam mais claramente.
Não é por acaso que, a partir da preocupação com a organização macroespacial BARAT, Josef. Introdução aos problemas urbanos brasileiros: teoria, análise e formulação
de política. Rio de Janeiro: Campus, 1979. 249p.
do espaço nacional, a organização do espaço intra-urbano foi esquecida, explici-
tando o deslocamento de fato da preocupação com o bem-estar social, que se situ- BENÉVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva, 1976.
ava na base dos problemas das cidades, para a ótica da eficiência econômica. BOLAFFI, Gabriel. Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema. Comunicação
apresentada no Simpósio de Habitação da XXVll Reunião Anual da Sociedade Brasileira para
Procura-se, agora, definir as "unidades de produção" mais importantes onde inves-
o Progresso da Ciência. São Paulo, 1975. 34p. Mimeografado.
tir. Assim, se por um lado o enfoque macroespacial representou um avanço na
BRASIL. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica. Diretrizes de Governo
sistematização dos problemas urbanos no país, por outro, significou o abandono da - programa estratégico de desenvolvimento. Brasília, 1967a. 165p.
comunidade e o encobrimento do autoritarismo e centralização crescentes exigidos
pela ideologia do desenvolvimento (Furtado, 1978) .
No âmbito do espaço urbano, este deslocamento do ponto de visão repre- 45 Neste aspecto, Brasília é uma perfeita ilustração do que foi dito: se o modelo desenvolvimentista
político-populista a nterior produziu o Plano-piloto - símbolo da modernidade e discurso arquitetôni-
senta um deslocamento na problemática, quando o espaço inter e intra-urbano
co sobre a esperança de justiça social no país-. o modelo desenvolvimentista económico-autoritário
deixa de ser assumido enquanto processo social de vivências, passando a ser li- reforçou aquela Brasília dicotomizada em cidades satélites, símbolo da marginalização da população
mitado pela visão economicista à simples organização resultante da maximização brasileira do espaço urbano institucionalizado.
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TR/\JETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 65
64 · Roberto Luís de Melo Monle-Mór

MONTE-MÓR, Roberto Luís de M. A questão urbana e o planejamento ur~ano-re~i?~al


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P LANEJAMENTO URBANO NO B MSIL: l"ll/IJH lllA, AV/INÇOS E l'ERSl'E(."nV/15 • 67

(re)democratização do país, quando novos princípios de planejamento e gestão


Prática e ensino em planejamento urbanos foram discutidos e incorporados à Constituição de 1988. Um desses
(urbano) no Brasil: da ;;velha" novos princípios é a gestão participativa das cidades, praticada através de conse-
lhos consultivos e/ou deliberativos, orçamentos participativos, entre outras fo:-
compreensividade multidisciplinar à mas possíveis. A análise e o planejamento compree~sivo ?.assaram a ser n~gh­
genciados. Planejamento compreensivo passa a ser 1de~ti:1cado com ~ regir:'e
abordagem transdisciplinar 1 militar, centralizado e autoritário. O neoliberalismo e a prati~ de certo plane~a­
Geraldo Magela Costa mento estratégico" também contribuíram para este esquecimento do planeja-
mento enquanto um processo de longo prazo, compreensivo e contínuo.
Concomitantemente a análise urbana e o ensino em planejamento come-
çaram a mudar com a intr~dução da abordagem transd'.sci~linar, q~e sig~ificava
Introdução considerar além das abordagens socioeconômica e terntonal, as d1mensoes po-
lítica esp~cial e ambiental na análise urbana, e ainda a perspectiva histórica,
Qual o significado de planejamento urbano? Qual o significado de planeja- esqu~cida durante um longo período de análise urbana de inspiração marxista/
mento urbano no Brasil? Existe planejamento urbano no Brasil? Que tipo de estruturalista. Entende-se que esse tipo de abordagem significa uma nova for-
ensino para o planejamento existe no Brasil? Há correspondência entre prática de ma de compreensividade, diferente daquela anterior, que se baseava na agre-
planejamento e ensino em planejamento no Brasil? Estas são algumas das ques- gação de visões disciplinares. No final do texto procurar-se-á ident'.ficar e refle-
tões que se pretende focar e discutir neste texto. Elas serão analisadas em uma tir sobre a forma como o Programa de Pós-graduação em Geografia de UFMG
perspectiva histórica, começando nos anos 1970, quando a primeira experiência (Universidade Federal de Minas Gerais) vem incorporando este tipo de aborda-
institucionalizada de planejamento urbano tem início no Brasil, baseada na me- gem de ensino em seus currículos.
todologia de planejamento compreensivo do SERFHAU. Tal experiência durou
Finalmente, procurar-se-á refletir sobre a hipótese de aproximação ou não
até o fim dos anos 1970. De fato, embora muitos planos tenham sido elaborados, da abordagem transdisciplinar acadêmica com a experiência da gestão e do pla-
não se pode dizer que o processo teve sucesso no que concerne à sua implemen-
nejamento urbano participativo, na forma em que vêm s~ndo praticada em con-
tação. O fato de a experiência de elaboração de planos ter sido institucionalizada
textos locais politicamente progressistas.
pelo governo central motivou a criação em 1971, de um dos primeiros cursos de
pós-graduação em planejamento urbano e local no Brasil (PUL e depois PUR)
dentro de um programa de pós-graduação em engenharia - COPPE/UFRJ.2 O O nascimento do planejamento urbano institucionalizado
curso deveria enfatizar a "natureza quantitativa do planejamento". As disciplinas no Brasil: a "velha" compreensividade
de sociologia urbana, economia, história, necessárias devido ao caráter compre-
ensivo e multidisciplinar da metodologia de planejamento urbano e local então Nos anos 1960 assistiu-se ao estabelecimento do chamado "planejamento do
adotada, seriam lecionadas por professores vindos de outras áreas da Universida- desenvolvimento local integradd' no Brasil. Tratava-se em parte de uma resposta do
de. Conflitos relacionados à incompatibilidade entre a análise crítica e a proposta governo militar à idéia progressista de reforma urbana que foi pensada e proposta
de uma abordagem quantitativa/racionalista resultaram em crise e a conseqüente por organizações da sociedade civil3 no início dos anos 1960, pouco antes do golpe
redefinição e realocação do PUR na estrutura da Universidade. A revisão de am- militar em 1964. Desse momento até fins dos anos 1970, questões urbanas torna-
bas as experiências mencionadas - prática e educação em planejamento urbano ram-se alvo de políticas governamentais, por meio tanto da elaboração de planos
- constituirá a primeira parte do texto. locais integrados quanto da provisão das condições gerais de produção e reprodução
Durante a maior parte dos anos 1980, a idéia de planejamento em geral e coletivas, estas últimas na forma de políticas setoriais - saneamento, transportes; ha-
de planejamento urbano em particular foi abandonada. Foi um momento de bitação, entre outras. As primeiras - elaboração de planos locais - tiveram seu auge
no período de meados dos anos 1960 ao início dos anos 1970, e as últimas, desse
1
Este texto é parte integrante dos resultados de pesquisa financiada pelo CNPq, por meio de Bolsa
de P~odutividade em Pesquisa.
2
Antes dele já existia o PROPUR/UFRGS, criado em 1970. 3 Especialmente o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB).
68 · Geraldo Magela Cos ta P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPEC ffvAS . 69

momento ao final dessa mesma década. Não é intenção aqui escrever sobre a histó- De fato, compreensividade sempre esteve presente na mente daqueles que
ria dessas experiências, 4 mas identificar e analisar a(s) metodologia(s) que orienta- lidam com a idéia de planejamento: pesquisadores, acadêmicos, estudantes de
vam tais experiências de planejamento urbano no Brasil. pós-graduação, além de parte dos praticantes do planejamento urbano. ~o en-
Até os anos 1960, algumas cidades brasileiras tinham seus planos diretores tanto, a natureza da compreensividade muda de acordo com a sucessao de
elaborados com base na metodologia do urbanismo progressista-racionalista. eventos e processos sociais e suas expressões espaciais, bem como com a abor-
Tais planos valorizavam "principalmente o caráter funcional e a técnica urbanís- dagem teórica dada à análise urbana. Assim, compre:~sivid~d~ ~aseada e~
tica, dando assim destaque à atuação dos engenheiros como profissionais ligados uma abordagem multidisciplinar, uma agregação de anahses d1sc1plmares, sena
ao problema urbano. A cidade passa a ser vista principalmente como um problema supostamente apropriada para lidar com a "questão urbana" no primeiro mo-
técnico ..." (Monte-Mór, 1980, p. 25). Algumas iniciativas no sentido de dar um mento do planejamento urbano no Brasil. Racionalidade era a abordagem pre-
caráter mais compreensivo à análise urbana, especialmente por meio da contri- dominante do planejamento urbano daquele momento quando o controle do
buição de cientistas sociais, ocorreram nesse mesmo período, resultado da per- Estado estava nas mãos dos militares e uma tecnocracia a eles associada. Acredi-
cepção das limitações do urbanismo, até então praticado, diante da complexida- tava-se que este método abrangente, técnico e dedutivo de análi~e urba~a, resul-
de das questões urbanas. 5 No entanto, a abordagem multidisciplinar e taria na seleção racional de objetivos e prioridades, capazes de mfluen~1a~em as ·
supostamente integrada na análise urbana só tem início de fato a partir de 1964, decisões políticas. É razoável supor que tal crença dos planejadores s1gmficava
quando institucionaliza-se o processo de elaboração de planos locais, com base também uma reação à forma burocrática-autoritária que marcava as tomadas de
na metodologia de planejamento compreensivo adaptada pelo Serviço Federal decisões na administração pública durante o regime militar.
de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). Trata-se de um "modelo compreensivo, Em termos político-institucionais era um momento ambíguo. De um lado,
racional de tomada.de decisões para orientar a intervenção estatal", que "emer- tanto a orientação metodológica quanto os recursos estavam centralizados ~m
giu como paradigma teórico dominante nos anos 1950s e 1960s" (Beauregard, instituições do governo central, comandadas por profissionais (técnicos) bem tn·
1997, p. 217). De um total de quase·cinco mil municípios brasileiros, somente tencionados no que diz respeito às possibilidades do planejamento urbano em
281 foram objeto de planos locais integrados no período de meados dos anos contribuir para mudanças socioespaciais significativas. De outro, a execução e a
1960 a 1973, 68% deles com menos de 50 mil habitantes. Outros 76 estavam em implementação dos planos urbanos deveriam ser de responsabilid~de dos g~ver­
elaboração naquele ano, totalizando 357 "planos de desenvolvimento local inte- nos locais, os quais tinham reduzida autonomia política e financ~tra no penodo
grado". A grande maioria desses planos, no entanto, não foi posta em prática, do regime militar. Elaborados por firmas privadas ou consultores independentes,
permanecendo em estado de inércia nas prateleiras das prefeituras. as análises urbanas para o planejamento resultavam na maioria das vezes em
Em termos metodológicos a idéia era, portanto, a da compreensividade na bons diagnósticos dentro de cada setor ou disciplina, mas não se constituíam em
abordagem das questões urbanas. Naquele período, "as cidades deixavam de ser análises realmente integradas, como seria de se esperar como resultado da meto-
encaradas apenas como problemas de técnica de engenharia e embelezamento dologia compreensiva de planejamento.
arquitetônico. Sociólogos, economistas, cientistas políticos, enfim, os cientistas Um outro aspecto, talvez mais importante, deste processo de elaboração ~e
sociais, descobriram a cidade como foro de estudo da sociedade capitalista in- planos locais integrados, refere-se à dimensão política das decisõ:S qua~to as
dustrial que se consolidava no país" (Monte-Mór, 1980, p. 30). Em outras pala- políticas governamentais relacionadas à elaboração dos planos e a adoçao de
vras, Monte-Mór (1980, p. 40) diz que a análise urbana para o planejamento ações planejadas. Na verdade, o processo revelou-se essenc~alment~ ~~se~te de
passou de uma "perspectiva funcional intra-sistêmica especial do 'progressismo' política, dada a crença dos coordenadores centrais quanto as poss1b1hdad~. da
- habitação, lazer, trabalho e circulação - para a ótica disciplinar - economia, racionalidade técnica em orientar decisões que deveriam ser de natureza pohtica.
sociologia, engenharia etc.". Ou seja, ao invés da elaboração de planos e programas urbanos para a ação plane-
jada estarem baseadas em decisões políticas dos agentes sociais locais, pr~cura~-se,
invertendo 0 processo, deduzir técnica e racionalmente, com base em diagnósticos
Tais experiências já foram exaustivamente analisadas em várias publicações sobre o planejamento compreensivos, os objetivos que deveriam orientar o processo de planejament~. ~
4

urbano no Brasil. Ver, por exemplo, texto de Roberto Luís de Melo Monte-Mór, nesta coletânea, além
de Cardoso (1997), Bernardes (1986 ). Maricato (1997), Villaça (1998), entre outros. aspecto da questão certamente também contribuiu para o insucesso da expenênCJa
s Um exemplo disso foram os trabalhos desenvolvidos pela SAGMACS (Sociedade para a Análise de planejamento local integrado do período do SERFHAU.
Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos Complexos Sociais), incluindo-se entre eles um diagnóstico
interdisciplinar de Belo Horizonte nos anos 1950 / 1960, visando à elaboração de um plano diretor.
70 · Geraldo Magela Costa
PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECTIVAS , 71

Resumindo, o que é importante reter para os objetivos deste texto é que plane- Nasceu de uma idéia nossa em contato como Serfhau, de que havi~
jamento urbano ou local enquanto um processo não existiu no período de 1964 a lugar para um programa de planejamento urbano de cunho quanti-
1973, apesar da intenção institucionalizada. O mesmo pode ser dito em relação ao tativo, voltado para a engenharia de planejamento. Tanto qu~ , toda
período de 1974 a 1979, quando uma efetiva política urbana foi posta em prática no vez que nós Ingressávamos em áreas llmítrofes da engenhari.a, em
Brasil, no nível nacional. Seus objetivos, no entanto, estavam ligados à estratégia de que tanto pode ser considerada engenharia qu ~ nto _eco_nomia, ou
modernização conservadora da economia, que teve sua versão mais bem planejada qualquer outra chamada de apoio à engenharia, nos tmhamos. 0
no período do governo Geisel e do li Plano Nacional de Desenvolvimento (Becker, cuidado de fazer isso, procurando dar um cunho de engenharia.
1991). Assim, política urbana naquele período foi, de fato, um programa estratégico Pois nos interessava desenvolver planejamento urbano com ~ uso
para dotar regiões metropolitanas e cidades selecionadas com as condições necessá- de métodos matemáticos e sob o ponto de vista de engenharia de
rias de produção como suporte ao crescimento econômico. planejamento. Enquanto que as áreas de sociologia u.rbana, econo-
Deve-se reconhecer, no entanto, que as regiões metropolitanas, criadas em mia, história que eram necessárias ao curso de planeJ~mento urb~­
1973/74, constituíram exceção no que diz respeito à análise para o planejamento. A no seriam dadas por conferencistas vindos de outras areas da Unt-
maioria delas experimentou um efetivo processo de análise compreensiva para o ve;sidade. Não seriam professores da Coppe. Os professores da
planejamento. Exceção para o curto período de 1975 a 1979; entretanto, quando Coppe seriam os de caráter matemático. Estes seriam considerados
boas analises foram realizadas,6 as instituições de planejamento metropolitano não docentes da Coppe no PUR, os outros seriam chamados conferen-
contaram com a autonomia financeira e político-administrativa necessária à consoli- cistas ... (Alberto Luiz Coimbra, depoimento) (Nunes et ai., 1982).
dação do planejamento enquanto um processo contínuo. Desde os anos 1980 as
nove instituições metropolitanas criadas, devido tanto à crise do Estado quanto a De um lado, tais orientações mostram que apesar do enfoque di~ciplinar
outras razões, estão em processo de decadência, tendo como conseqüência a inter- compreensivo acima mencio nado, educação em planejame nto ~ ra vasta c~m
rupção e perda da continuidade na análise para o planejamento metropolitano. fo rte viés matemático. De outro, muitos professores eram pesquisadores e in-
A institucionalização pelo governo central daquela suposta experiência de telectuais que haviam descoberto a cidade como lócus para o estudo da s~:
planejamento levou à criação, em 1971, do primeiro curso de planejamento local ciedade capitalista industrial que estava se consolidando no pa ís, con f~r~ e Jª
no Brasil. Em sua origem, o curso foi financeiramente viabilizado por meio de um dito acima, 0 que, em última instância, significava lid~r com contrad1çoes e
convênio entre a Coordenação de Programas de Pós-graduação em Engenharia conflitos, impossíveis de serem compreendidos por meio de. modelos ma_te-
(COPPE) da Universidade Federal do Rio de J aneiro (UFRJ) e o Ministério do máticos. Uma crise resultante, em parte, deste processo dominou as r~laço~s
Interior, este último responsável pela política urbana durante a maior parte do entre a COPPE e 0 PUR até 1976, quando a maioria dos professores foi ~emi­
7
regime militar. O curso, denominado inicialmente PUL (Planejamento Urbano e tida. Posteriormente o PUR foi reestruturado, assumindo a forma de. unidade
Local) e, em seguida, PUR (Planejamento Urbano e Regio nal) nasceu, portanto, universitária com identidade própria, denominado Instituto de Pesquisa e Pla-
dentro da área de conhecimento da engenharia. A COPPE havia sido criada em nejame nto Urbano e Regional (IPPUR), sendo hoje, prov~~elmente, º. progra-
1965 para ser "um centro de formação técnica e profissional de alto nível, que ma de pós-graduação mais consolidado na á rea de anaftse e planejamento
pudesse dotar o país de uma capacidade tecnológica própria, e não, simplesmen- urbano e regional do Brasil.
te, mais uma escola de engenheiros para as demandas de rotina do mercado de
trabalho existente" (Nunes et ai., 1982). De acordo com um ex-diretor da CO- Da tentativa de criar um processo de planejamento
PPE, o PUR deveria ser um programa de planejamento urbano de caráter quan- urbano à ênfase na gestão urbana
titativo. Em suas próprias palavras, o PUR:

Os anos 1980 podem ser caracterizados como um período de .cri-~e econômi-


ca, política e de capacidade financeira do Estado. ~esse contexto, a 1de1a de plane-
6
No ca5o da Região Metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, um estudo para o plano de jamento em geral e planejamento urbano em particular, para o lon~o e mesmo ?
desenvolvimento integrado econômico e social, realizado em 1975 (Plambel, 1975), foi básico para médio prazo, foi abandonada. Por outro lado, foi um momento de m~ensos ~ov1-
a elaboração da primeira lei de uso e ocupação do solo da cidade de Belo Horizonte e de outras
cidades metropolitanas a ela conurbadas. mentos sociais relacionados à questão urbana - liderados por intelectua1S, movimen-
7
Vaie lembrar que não existe no Brasil curso de graduação em planejamento urba no. tos populares e outras organizações da chamada sociedade civil -, especialmente
72 · Geraldo Magela Costa PLANEJAMENTO URBANO NO B RAS IL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPEL,lVAS • 73

aqueles que_tinham como objetivo a proposição de uma reforma urbana, por meio jamento em geral e do planejamento urbano em particular - foi a identificação do
da construçao de um novo sistema legal de regulação do parcelamento do uso e planejamento como integrante das formas de tomada de decisões política e adminis-
da ocupação da terra urbana, bem como da criação de formas instituci~nalizadas trativamente centralizada e autoritária que marcaram o período do regime militar.
de participação nos processos de decisão pública. Tais movimentos lograram apre- Por outro lado, tem sido observada a prioridade para aqueles aspectos relacio-
sentar uma emenda popular no processo constituinte de 1988.
nados à criação de formas participativas de administração urbana, a exemplo de con-
A Constituição de 1988, como já foi suficientemente mencionado, dedica selhos consultivos e deliberativos e de orçamentos participativos, buscando, com isso,
~m capítulo à Política Urbana, especificando, em dois artigos, seus p rincípios e ampliar o alcance político e social da democracia representativa por meio da chamada
instrumentos. O Plano Diretor foi considerado o "instrumento básico" a ser ela- democracia direta. Existem várias análises evidenciando avanços no processo de con-
borado pelos governos locais como condição para a adoção de instrumentos solidação democrática na escala local devidos a essas novas formas de administração.
supostamente capazes de contribuir para promover a função social da terra urba- Ou seja, o caráter participativo de algumas administrações locais está consolidando e
na e da cidade, princípio básico do texto constitucional sobre a política urbana. institucionalizando um tipo de prática política, em alguns casos ainda embrionária, de
Is_to posto, penso que a lgumas dúvidas emergem: a) Qual a natureza do plano tomada de decisão nas e para as cidades. No entanto, tanto em sua forma embrionária
diretor proposto? Como este plano relaciona-se com o planejamento urbano? quanto já em consolidação, não há dúvidas de que tal forma de tomada de decisão não
. P~de-se dizer que os conceitos de planejamento urbano e de plano diretor prescinde de um conhecimento sistematizado e permanente sobre as cidades. Ou seja,
ainda nao estão bem definidos, resultando, por exemplo, em uma grande varieda- tanto para decisões socializadas quanto para outras formas de decisão governamental,
de de interpretações sobre o que é um Plano Diretor nos textos das Leis Orgânicas é essencial um certo tipo de análise urbana compreensiva e continuada que, no entan-
que se seguiram à_ Constituição de 1988. Algumas dessas leis, a exemplo da de to, não se trata daquela "velha" compreensividade, uma vez que, em primeiro lugar,
Belo Horizonte, contêm uma completa prescrição da composição e estrutura de um esta era muito mais identificada com uma falsa integração de abordagens disciplinares,
~lano diretor, mais bem identificada com a velha concepção de planos compreen- conforme já foi dito acima, do que com um conhecimento aprofundado do complexo
sivos. Ou seja, uma compreensividade que engloba todas as ações do aparato go- espaço urbano. Em segundo lugar, e certamente mais importante, é necessário evitar a
vernamental municipal, fazendo com que os planos diretores se assemelhem mais autonomia da racionalidade técnica que foi responsável por uma certa inversão de
a planos de g?verno do que a um instrumento de política urbana. Tais prescrições valores nas tentativas de se aplicar a metodologia do planejamento compreensivo no
podem tambem levar a reducionismos, especialmente quando os planos diretores passado. Ou seja, o estabelecimento de objetivos e prioridades era derivado de uma
são elaborados por consultores que não teriam vivência e conhecimento de todas análise técnico-racional disciplinar e supostamente integrada, sem considerar os atores
as mobilizações, discussões e proposições responsáveis pela inclusão dos princípios sociais da cena política local. Não era portanto considerada a natureza política do pla-
~ dos instrumentos de reforma urbana no texto constitucional e legislações poste- nejamento urbano, que deveria estar explícita ou implicitamente presente no estabele-
riores. Nestes casos, a elaboração de planos diretores pode se tornar uma atividade cimento de objetivos e prioridades.
au_t~mática e desconectada tanto de uma nova práxis urbana, quanto dos avanços O abandono do planejamento enquanto um processo que tem como base
teoncos sobre a produção e reprodução do espaço urbano. a análise contínua e compreensiva da produção e reprodução do espaço urbano
Uma outra conseqüência das imprecisões conceituais refere-se à inexistência não se deve somente ao q ue foi acima mencionado. Foi também resultado da
de fronte iras claras entre planejamento, plano diretor , plano de governo, instrumen- ideologia do Estado mínimo, parte do receituário do neoliberalismo. Some-se a
to de política urbana, legislação urbana etc. Entendo que o Plano Diretor deveria ser isso, a quebra das barreiras espaciais nestes tempos de globalização ela econo-
essencialmente um instrumento para o planejamento urbano, que congregaria os mia, resultado tanto da seqüência histórica de revoluções nos meios de transpor-
estudos básicos necessárias à formulação e implementação da legislação urbana tes e de comunicações, quanto das mudanças relacionadas a um processo de
especialmente aquela que regula e controla o parcelamento, a ocupação e o uso d~ reestruturação e flexibilização da produção (Harvey, 1995). Com isso, observa-se
~olo urbano.ª O que é importante, então, é o planejamento, que deve incluir, além da o crescimento da competição entre os governos locais pela atração de investi-
implementação e revisão do plano diretor , o permanente e relativamente autônomo mentos altamente móveis e flexíveis , bem como de fluxos financeiros e de con-
processo de análise urbana. Isto tem sido uma espécie de "elo perdido" na adminis- sumo. O objetivo é a inserção das localidades em uma economia globalizada
tração urbana no Brasil. Uma das razões para isso - ou seja, o abandono do plane- por meio daquilo que Harvey (1996) denomina "empreendedorismo urbano".
O instrumento para isso tem sido o planejamento estratégico, em que a partici-
8
pação que é levada em consideração é somente aquela dos agentes sociais eco-
Inclui também nesta legislação aquela que institui o próprio plano diretor.
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 75
74 · Geraldo Magela Costa

nomicamente mais privilegiados.9 Não há dúvidas de que este fato tem sido tam- análise compreensiva e contínua de um complexo espaço urbano em rápida transfor-
bém um forte oponente à reinserção do planejamento urbano no Brasil, com as mação. Além disso, o lugar que as atividades de planejamento o~u~am na estrutura
características acima mencionadas. administrativa municipal é um indicador de sua natureza e relevanc1a. Dependendo
da forma de inserção naquela estrutura, o planejamento urbano pod~rá se ide~~ficar,
Sobre a questão aqui discutida, Souza (2003, p . 31) escreve:
por exemplo, em uma ou mais das seguintes alternativas: ser uma simples ~tiv1dade
de revisão do Plano Diretor ; ser, de fato, um plano de governo; ser submetido a um
O enfraquecimento do planejamento se faz acompanhar pela popularização
tipo de pragmatismo caso ele esteja inserido em um órgão que tome decisões e pro-
do termo gestão (nos países de língua inglesa, management), o que é muito
mova ações de natureza imediata (curto prazo) e/ou fragmentada.
sintomático: como a gestão significa a rigor, a administração dos recursos e
problemas aqui e agora, operando, portanto, no curto e no médio prazos, o
hiperprivilegiamento da idéia de gestão em detrimento de um planejamento Do enfoque multidisciplinar ao transdisciplinar no ensino dos
consistente representa o triunfo do imediatismo e da miopia dos ideólogos curso de análise urbana para o planejamento e a gestão
ultraconservadores do "mercado livre" (destaques no original).
Informações empíricas sobre os programas de pós-graduação filiad.os à AN~R
Em síntese, pode-se dizer que a busca tanto de formas mais democráticas são um bom ponto de partida para a discussão do movimento sugendo no titulo
desta seção. De um total de 47 programas filiados/assoc~ados à ANPUR, ~9 m~ntêm
11
de administração pública quanto da inserção competitiva das localidades em
uma economia globalizada tem levado, mesmo que por caminhos diferentes, as cursos e atividades de pesquisas relacionadas a questoes urbanas e regionais. O
administrações municipais a negligenciar o planejamento enquanto um processo endereço eletrônico da ANPUR informa que estes 39 programas de pós-graduação
e que incorpore a análise técnica, compreensiva e contínua, além da participação cobrem uma ampla variedade de abordagens disciplinares (Quadro 1).
política de todos os agentes sociais no estabelecimento de objetivos e priorida-
des. Quanto às ações urgentes e de curto prazo mencionadas por Souza (2003), Considerando-se o conjunto
Quadro 1
deve-se ter o cuidado para não condená-las como essencialmente negativas. O de programas filiados à ANPUR
AbmrgOnciD disclp~nar do5 39 progm.mns do pósiJmduaçâo fl~odos
histórico acúmulo de carências socioespaciais nas cidades e metrópoles brasilei- como representativo da área de co- ~ ANP UR

ras exige a urgência nas ações das administrações públicas para saná-las. No nhecimento do planejamento urba- Número do
Disciplinas• ocorrências
entanto, isso não está em oposição ou impede a existência de um processo con- no e regional, observa-se que o seu
sistente de análise de longo prazo para o planejamento urbano. ensino e pesquisa são tratados de Planejamento 4
forma predominante por meio dos
O negligenciamento do planejamento enquanto um processo não deveria enfoques do urbanismo, das ciências Administração Pública 2
estar ocorrendo naquelas administrações municipais onde partidos políticos pro- sociais, da economia e da geografia. Ciências Sociais 9
gressistas estão no poder. Observa-se em tais administrações que novas formas Algumas dessas informações podem
de udministração estão sob a responsabilidade de militantes de movimentos so- não ser totalmente precisas, uma vez Demografia 2
ciais que se mobilizaram pelo projeto da reforma urbana nos anos 1980.10 que não foram baseadas em uma Economia 8
Por um lado, este fato contribuiu para superar uma velha discussão sobre a pesquisa diretas junto aos vários cur-
separação entre as dimensões política e técnica do planejamento urbano. Ou seja, 3
sos. Pode-se dizer, por exemplo, que Engenharia

aqueles que hoje são responsáveis pela elaboração e/ou coordenação de planos di- a maior parte dos cursos de geogra- 7
Geografia
retores também participam do processo político de estabelecimento de objetivos e fia incorporam disciplinas relaciona-
prioridades. De outro, aqueles militantes estão também comprometidos com a solu- das à economia, às ciências sociais e Urbanismo 10

ção ele velhos e persistentes problemas urbanos que requerem urgência, o que signi- mesmo ao urbanismo. Por sua vez, 1
Direito
fica a necessidade de adoção de novas formas de gestão de curto prazo. Com isso, os cursos de urbanismo podem even-
fases importantes do processo de planejamento são "esquecidas", especialmente a tualmente estar incorporando o en- História 1

foque geográfico à análise urbana. Forto: DisponNol cm: http://<www.Drc>ll".org.br.>. Acosso cm. ago.
2006. Dados trabalhados pok> m.tor.
9 Para uma análise afüca do planejamento estratégico em geral e no Brasil em especial, ver Vainer (2000).
'º Mais recentemente ºisto tem ocorrido também no nível federal, especialmente com a criação do 11 Os oito restantes são centros de pesquisa apenas.
Ministério das Cidades.
76 · Geraldo Magela Costa P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓJUA, AVANÇOS E PERSJ'F.cnVAS . 77

Curiosamente, são apenas quatro os programas que explicitamente estariam incor- da "economia política da urbanizaçãd' (Castells, 1972; Harvey, 1981; Lojkine, 1981;
porando o planejamento (urbano e regional). No entanto, dada a natureza do ob- entre outros), que apresenta um viés economicista, especialmente pela ênfase na cida-
jeto do planejamento - o espaço socialmente produzido - é evidente a necessidade de enquanto ambiente construído somente, destituído de história, de política e de con-
do enfoque transdisciplinar na sua análise. flitos culturais e ambientais (Costa; Costa, 2005).
Este movimento, na direção da abordagem transdisciplinar do espaço social- Concluindo, pode-se dizer, de um lado, que o Programa de Pós-graduação em
mente produzido, tem sido observado no Programa de Pós-graduação em Geografia Geografia e possivelmente muitos dos outros programas filiados à ANPUR vêm con-
da Universidade Federal de Minas Gerais. iz Este Programa é estruturado em duas solidando o enfoque transdiciplinar como uma nova forma de compreensividade na
áreas de concentração: análise ambiental e organização do espaço. Os estudos urba- análise do espaço urbano. É como se o objeto - o espaço urbano socialmente produ-
nos estão essencialmente contidos na área de organização do espaço. Além dos zido - exigisse a abordagem transdiciplinar. É válido dizer que isso também significa
cursos relacionados a especificidades da Geografia, como teoria e epistemologia da considerar o cenário de cidades e aglomerações urbanas sustentáveis em termos
Geografia, os estudos urbanos e regionais são tratados nos seguintes cursos: ambientais e políticos, uma vez que esses enfoques têm sido centrais tanto para a
análise teórica quanto para a identificação de possíveis práticas para a mudança so-
cial. Para ser socialmente eficaz, no entanto, tal abordagem deveria ser adotadã pelos
• População, espaço e meio ambiente
órgãos de planejamento urbano, na forma de uma análise urbana contínua, abran-
• Processos espaciais
gente e integrada. Há evidências de que isso não vem ocorrendo nas administrações
• Dinâmica demográfica municipais brasileiras. Uma das razões para isso, como já foi mencionado anterior-
• Território, região e redes urbanas mente neste texto, é a urgência que vem caracterizando as intervenções urbãnas no
• Organizaçãl:'> do espaço urbano (Teoria urbana) país, justificada tanto pelo grande e crescente passivo socioespacial das cidades bra-
• Urbanização, política e cidadania sileiras, quanto pela busca de inserção das localidades em uma economia globalizada
e ílexível, por meio de ações estratégicas imediatistas e do uso de marketing.
• Planejamento e gestão urbano-ambiental.
Se for considerado como importante o resgate do planejamento urbano enquan-
to um processo contínuo, especialmente no que diz respeito às análises que permitem um
Existem ainda os chamados "tópicos especiais" que permitem o desenvolvimen- conhecimento aprofundado e abrangente do espaço urbano, há que se refletir sobre
to de outros temas emergentes e relevantes na área dos estudos urbanos e regionais. como isso deveria ser feito. A forma não poderia certamente ser de natureza témico-ra-
Focando em diferentes teorias, tais cursos incorporam o enfoque transdisciplinar cionalista e nem repetir a estrutura centralizada, de cima para baixo, que caracterizou
por meio do pensamento ambiental, economia política do espaço (teoria da produção experiências anteriores de planejamento urbano e metropolitano. Portanto, tal planeja-
do espaço), ecologia política, estudos culturais pós-estruturalistas e a teoria crítica em mento, para ser legítimo, deve ser socialmente construído, a partir dos vários agentes so-
geral. Importante ter em mente que este tipo de enfoque introduz dimensões teóricas ciais , que, no caso de Belo Horizonte, por exemplo, são responsáveis por uma fonna de
.relevantes para a análise urbana e regional tais como política, história, espaço e, mais tomada de decisões de natureza participativa. Não há dúvidas, no entanto, de que se
recentemente, a teoria (o pensamento) ambiental. A idéia de "dimensão teórica" difere trata de um grande desafio, uma vez que, apesar de participativa, a gestão urbana ainda
do enfoque disciplinar, uma vez que ela deve ser vista como parte integrante e de forma carrega a herança setorial que marcou o planejamento urbano no Brasil desde o seu
indissociável da abordagem transdisciplinar. Com isso, pode-se dizer que o Programa nascimento, 13 além das já exaustivamente mencionadas ações de curto prazo.
de Pós-graduação em Geografia não forma planejador no estrito sentido do termo, o
que incorporaria a metodologia e o fazer planejamento. A análise do espaço socialmen-
te produzido - urbano, regional, nacional - estaria, com algumas exceções, mais iden-
tificada com os princípios da teoria crítica, voltados para uma busca de possibilidades
de emancipação social, justificada pela natureza socialmente perversa dos chamados 13 E ainda continua marcando. Observe-se, por exemplo, que o Ministério das Cidades foi es-
truturado seguindo a tradicional divisão setorial na forma de secretarias: habitação, saneamento
problemas urbanos e regionais da formação social brasileira (Costa, 2004). Além disso, ambiental, transportes e mobilidade. É verdade que há também uma Secretaria de Programas Ur-
a adoção da abordagem transdisciplinar resulta também de uma reação à abordagem banos que, dada a sua função de monitorar planos diretores e outros programas urbanos com base
na legislação federal pertinente, tem necessariamente que adotar uma abordagem integrada dos
diversos processos urbanos das cidades. Não há dúvidas, no entanto, que a força da abordagem
12
Desde 1989 minhas atividades de ensino e pesquisa são desenvolvidas neste Programa. setorial é significa tiva e marcante.
P LANEJAMENTO URUANO NO B RASii. : THAJITTÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 79
78 · Geraldo Magela Costa

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P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 81

A trajetória da temática ambiental amplo que incorpora progressivamente a temática urbana, com importantes desdo-
bramentos na constituição da agenda de nossa política urbana.
no planejamento urbano no Brasil: o Se parece haver uma convergência de olhares do ponto de vista da concep-
encontro de racionalidades distintas ção dos instrumentos da regulação pública, isto não significa que haja necessaria-
mente uma tendência à construção de um consenso, ou a eliminação dos conflitos
Heloisa Soares de Moura Costa sociais formados por interesses diferenciados e antagônicos em torno do objeto da
política, ou seja, em torno das formas de produção e apropriação do espaço urba-
no. Pelo contrário, como se argumentará mais adiante, a regulação atual pressupõe
Introdução
um conjunto de procedimentos e instâncias participativas de explicitação e nego-
ciação dos conflitos (Acselrad, 2004). Nesse sentido, caberá avaliar, à luz da expe-
Tem havido um significativo avanço nos últimos anos no que se refere à
riência acumulada, em que medida e em quais circunstâncias a institucionalização
criação e implementação de instrumentos de planejamento urbano e ambiental nas da participação potencializa ou engessa o exercício da política.
áreas urbanas. A experiência recente sugere também haver ganhos significativos na
adoção, no planejamento urbano, de instrumentos originalmente concebidos na Cabe ressaltar que tal campo se formou por agregação de elementos 01iundos
esfera da gestão ambiental, a exemplo da exigência de licenciamento ambiental de múltiplas áreas do conhecimento, desde aqueles concebidos a partir dos mesmos
para implantação de atividades potencialmente impactantes ou poluidoras. A arti- marcos conceituais que formatam os estudos urbanos brasileiros, até aqueles vindos
culação mais estreita entre as preocupações de caráter urbanístico e as ambientais de matrizes teóricas mais puramente ecológicas e biocêntricas, nos quais a urbaniza-
foi assumida nacionalmente pelo Estatuto da Cidade ao introduzir a figura do EIV, ção é muitas vezes vista como negativa, como elemento gerador de poluição e dis-
Estudo de Impacto de Vizinhança, que, embora não substitua os EIA-RIMA, toma ruptor de um suposto equilíbrio natural identificado com áreas intocadas.
emprestado destes a já consolidada, embora discutível, noção de mensuração e Vindos de áreas do conhecimento e de trajetórias epistemológicas distin-
avaliação de impacto. Antes mesmo da consolidação deste marco legal, muitas tas, as matrizes de pensamento urbano/urbanístico e ambiental incorporam prin-
administrações locais já vinham buscando uma convergência de olhares nesta di- cípios e conceitos distintos, que se materializam em lógicas diferenciadas que são
reção. Exemplos variados e ainda por serem mais bem avaliados podem ser encon- então incorporadas às respectivas políticas (Costa, 2000). Ao mesmo tempo,
trados na atual safra de planos diretores elaborados até finais de 2006, que incor- compartilhando a mesma experiência de reconstrução social do Estado e das
poram critérios de preservação e de valoração ambientais aos usuais enfoques de políticas públicas que caracteriza nosso passado recente, principalmente no perí-
ordenamento territorial. 1 Na mesma linha a aprovação no Congresso Nacional de odo de propostas à Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e anos seguintes,
um novo marco regulatório para o saneamento, ao final de 2006, concebendo o ambas as políticas incorporaram, em seus discursos e instrumentos, princípios
saneamento ambiental como direito social, logo um dever do Estado, veio se somar básicos como justiça social, participação ou mesmo sustentabilidade.
à lenta, porém progressiva, construção de uma política urbana pautada por valores Este texto se constitui, portanto, num esforço de explicitar e compreender
sustentáveis, o que nesse contexto significa, no mínimo, ser orientada por critérios estas lógicas e princípios simultaneamente convergentes e conflitantes embutidos :
de participação política e equidade socioambientaL
no uso e operacionalização dos instrumentos comumente utilizados nas políticas
Nessa perspectiva, entende-se a trajetória da temática ambienta/ em sua articu- urbanas e ambientais. Finalmente, cabe advertir que não se pretende inventariar a
lação com o planejamento urbano nas últimas três décadas como marcada pela cres- constituição recente do campo socioambiental, ou de recuperar o percurso da eco-
cente ampliação do escopo e autonomização da área, transformando-se conceitual- logia política ou do socioambientalismo brasileiro, por mais oportuna que tal tarefa
mente de política setorial em amplo campo de lutas e intervenções. Assim, parece seja, mas apenas resgatar a parte dessa trajetória que interfere na e compartilha
haver tanto uma tendência de convergência de olhares, particularmente no exercício momentos de transformação com a trajetória do planejamento e da política urbana
do planejamento e da gestão urbano-ambiental, como exemplificado brevemente no Brasil. Trata-se, portanto, de um olhar a partir do planejamento urbano.
acima, quanto uma tendência de estabelecimento de um campo socioambiental mais

1
Ver, a título de exemplo, o Banco de Experiências de Planos Diretores Participativos, organizado pelo
Ministério das Cidades (www.cidades.gov.br).
82 · Heloisa Soares de Moura Costa P LANEJMIENTO URBANO NO B RASIL: TitAJETÓIUA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS ' 83

Visão "Integrada" e visão "setorial" - um antigo debate Nos primeiros planos dos anos 1970, a temática ambiental, tal qual a conce-
bemos hoje, era abordada por diferentes especialistas, em momentos e formatos
Um aspecto considerado como pano de fundo a balizar estas reflexões diz bem definidos do produto final que era em geral o plano, mais do que o processo
respeito ao caráter totalizante ou integrador da política urbana, caráter este também de planejamento. O olhar do geógrafo comparecia, juntamente com o do historiador
presente no campo ambiental, ainda que neste último caso englobe outras contribui- na caracterização geral do município ou região, elemento importante para realização
ções disciplinares e inserções em outras áreas (ecologia, biologia etc.). A busca pela do diagnóstico. Características do quadro natural eram descritas com vistas a se reco-
totalidade não é nova e o debate por ela ensejado acompanha a epistemologia da nhecer os condicionantes da ocupação territorial, bem como potencialidades de de-
ciência há muito tempo. No caso em discussão, acompanha também a trajetória do senvolvimento econômico e do futuro ordenamento espacial a ser proposto. Naque-
planejamento e da política urbana praticamente desde seu nascedouro. Assim, as la perspectiva, o ambiente natural comparece mais como um conjunto de atributos
primeiras sistematizações sobre o planejamento ainda no início da década de 1970, dados do processo de produção do espaço do que como um elemento em tomo do
como a metodologia de planejamento local disseminada pelo então Serviço Federal qual se configurassem conflitos quanto à apropriação ou controle destes bens ou
de Habitação e Urbanismo -SERFHAU, instituíam a figura do plano diretor "integra- recursos. Nesse sentido pode-se dizer que havia, ainda, uma despolitização da aná-
dd' em suas múltiplas denominações: POLI - Plano de Desenvolvimento Local Inte- lise, das práticas e representações do ambiente natural.
grudo, Plano Diretor Integrado, Plano de Desenvolvimento Urbano, entre outros. A temática ambiental é mais claramente reconhecida naqueles planos, nas
Tais planos, com sua origem na chamada visão do planejamento compre- análises e propostas associadas às áreas de saneamento e "meio ambiente". Estas,
ensivo (comprehensive planning) tributário do modernismo funcionalista, apesar juntamente com as áreas de transportes e, eventualmente, habitação, constituíam
do discurso da integração e de ser fruto de equipes de profissionais de formações as chamadas políticas setoriais. O setor de saneamento compreendia essencialmen-
múltiplas, acabou muitas vezes por consolidar olhares parcelados e parcelares te a provisão dos serviços de água e esgotos, e, de maneira mais acanhada, a rede
sobre a realidade, hipoteticamente sintetizados em amplos diagnósticos, sofisti- de drenagem de águas pluviais e serviços de coleta e disposição final do lixo. Já a
cados prognósticos (posteriormente rebatizados de "cenários" ) e um abrangen- área de "meio ambiente", nos planos, usualmente envolvia dois aspectos princi-
te elenco de propostas que encontravam sua expressão territorial síntese nas pais: de um lado, questões ligadas à poluição, sobretudo do ar, e de localização de
diretrizes de uso, ocupação e parcelamento do solo e legislações que se se- equipamentos coletivos que requerem o atendimento de condições ambientais es-
guiam. Aquele foi um momento da constituição das. idéias e das práticas do peciais, como matadouros, cemitérios, depósitos de lixo etc;. De outro, abrigava a
planejamento urbano brasileiro por demais conhecido e devidamente criticado representação mais comum do ambiente: a identificação e proteção de "áreas ver-
e problematizado. 2 Entretanto, é importante ressaltar que enquanto referência de des" e de preservação, como parques e áreas de lazer em geral.
formação dos profissionais da área, em seus aspectos técnicos e conceituais, esta No que se refere às "políticas setoriais", as análises se estruturavam em
matriz ainda exerce influência significativa. Enquanto processo político e de for- torno da ambigüidade entre perseguir a eficiências ou os bons resultados para
mulação de políticas, entretanto, há que reconhecer um esforço sistemático e cada setor (saneamento, transportes etc.) e a equidade no atendimento das dife-
consistente de construção de uma matriz alternativa para a política urbana, nas rentes faixas de renda/classes sociais. A preocupação com a integração ou a arti-
diferentes escalas espaciais, pautada pela lógica da inclusão e da participação culação efetiva com a política urbana era muitas vezes secundarizada,4 até porque
ampla da sociedade, resultando, portanto, em novas institucionalidades, como é esta última era também indefinida e padecendo de diretrizes conceituais e políticas
também fartamente documentado na literatura da área. 3 claras. O caso do saneamento básico, entendido como abastecimento domiciliar de
água e coleta de esgotos domésticos, é sintomático, uma vez que grande parte das
análises era condicionada a uma avaliação no nível local da implementação da
2 A crítica ao planejamento funcionalista é documentada por uma farta literatura nacional e interna- política federal concebida e decidida a partir do modelo centralizado do PLANASA
cional.Registre-se desde o pione irismo de traba lhos como os de Bernardes (1986) e o texto de Mcm- - Plano Nacional de Saneamento-, do Sistema Financeiro do Saneamento e das
te-Mór, nesta coletâ nea, ao conjunto de críticas mais a tuais aqui exemplificadas pelo debate proposto
por Maricato (2000) e pelo esforço de s istematização empreendido por Souza (2003), entre outros. companhias estaduais. O papel das administrações municipais, no trato das
No nível internacional ver a coletâ nea organizada por Ca mpbell e Fa instein (1 996). questões ambientais, era então ainda bastante frágil e colocado em segundo
3 Há uma expressiva bibliografia abrangendo relatos, a ná lises e críticas de experiências e processos

representativos deste esforço, dispersa na forma de dissertações e teses, a rtigos em revistas da área e
trabalhos apresentados em eventos. A título de amostra vale mencionar os a nais bienais dos Encontros 4 Ver, por exemplo, o estudo de Costa (1984) sobre a política nacional de saneamento, que busca ar-
Nacionais da ANPUR; bem como o conjunto de informações veiculadas pelas redes de divulgação de ticular a análise dos dilemas internos de uma políUca concebida setoria lmente, com as a mbigüidades
experiências criadas pelo Ministério das Cidades desde 2004. relativas à sua compreensão como parte de uma política urbana.
P LANEJAM El'fTO URBANO N O B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E r ERSr EcnVAS • 85
84 · Heloisa Soares de Moura Costa

plano. Algumas das mais candentes questões ambientais urbanas atuais, asso- ção fundiária e direito de permanência de populações de baix"a renda, habitando
ciadas às formas precárias de apropriação do espaço, como ocupações de áreas áreas de proteção ambiental, e as necessidades coletivas de preservação de re-
de mananciais e encostas, fundos de vale, entre outras, dificilmente apareciam cursos naturais de uso coletivo, como mananciais, seria um exemplo clássico do
como alvo de políticas públicas visando à melhoria das condições socioambien- embate entre racionalidades diferenciadas.
tais. Ao contrário, estas formas são vistas mais como problema social do que Em síntese, pode-se dizer que, vista a partir da trajetória do planejamento
ambiental, como inadequações do processo de urbanização face ao modelo ur- urbano, a questão ambiental emerge de uma (ou algumas) política setorial para
banístico hegemônico e portanto alvo de uma política habitacional cujo discurso uma dimensão cada vez mais abrangente das políticas públicas e da produção do
ainda tributário do higienismo é calcado na "erradicação" de assentamentos pre- conhecimento em termos mais amplos. Ela recoloca o debate da interdisciplina-
cários e no binômio reassentamento em conjuntos habitacionais periféricos e ridade em novos patamares, redefine também a noção de reprodução social e,
valorização fundiária das áreas originalmente ocupadas, cujas nefastas conse- por meio de alguns de seus procedimentos, como as audiências públicas, contri-
qüências são também bastante conhecidas. bui para o debate público das políticas. Discute-se a seguir alguns pressupostos
Ao longo das últimas décadas as políticas setoriais originadas na matriz do que dão origem às políticas e seus instrumentos, buscando-se avaliar convergên-
planejamento compreensivo e disciplinar se transformam significativamente, percor- cias e algumas incongruências.
rendo uma trajetória de constituição de um amplo campo de interesses, com agentes
bem definidos, movimentos sociais articulados a cada uma das políticas e lutas e Quais lógicas orientam as atuais políticas urbanas
debates focados em temáticas bem definidas. Aqui novamente o saneamento é um e ambientais? Um embate de racionalidades?
exemplo emblemático, uma vez que engendrou um processo de metamorfose no
qual houve expressit>a ampliação do campo, passando a definir-se como "sanea- Como já mencionado, as trajetórias do planejamento ambiental e do pla-
mento ambiental", internalizando parte expressiva dos debates trazidos pela ecolo-
nejamento urbano se fÓrmaram a partir de matrizes de pensamentos diferentes,
gia política e pelo socioambientalismo. Simultaneamente configurado como parte
com percursos temporais e políticos distintos. A regulação urbanística acompanha
da política nacional de desenvolvimento urbano5 e mantendo ainda de forma clara
0 processo de modernização do espaço urbano, necessário ao estabelecimento das
suas origens como política setorial, o campo do saneamento ambiental questiona o condições gerais de produção capitalista em sua fase industrial, enquanto o debate
modelo hegemônico de gestão e busca construir alternativas ao mesmo. ambiental emerge exatamente do questionamento dos rumos tomados por esta
De forma mais geral pode-se entender a configuração do Ministério das modernidade, no bojo de um conjunto de movimentos sociais e culturais que mar-
Cidades, criado em 2003 e estruturado em quatro grandes secretarias - Habita- caram os anos 1960 e 1970.6 No momento atual, argumentamos que a regulação
ção, Saneamento ambiental, Mobilidade, Transporte e trânsito, e Políticas Urba- ambiental oscila entre manter-se fiel às origens do movimento ambientalista, de
nas-, como a síntese possível de campos que se formaram em torno de políticas contestação à visão instrumental da natureza típica do modo de produção hege-
setoriais, particularmente as três primeiras secretarias mencionadas, envolvendo mônico, e fornecer o arcabouço regulatório para o estabelecimento das novas
setores técnicos, movimentos sociais, áreas acadêmicas e de pesquisa. Nesse sen- condições gerais de produção da fase atual do capitalismo, dita ecológica
tido, a política urbana definida no nível federal no âmbito do Ministério das Cida- (O'Connor, 1988) ou sustentável (Escobar, 1996) , na qual a apropriação mais
des representa um permanente embate entre tendências "integradoras" e seto- ampla da natureza e sua inserção no processo de acumulação como mercadoria
riais, entre a complexidade do todo e a autonomia das partes. é uma condição central (Harvey, 1996). 7
O emergente debate ambiental, ao atravessar tal processo, embora se cons- Caberá à práxis política, à articulação e embate entre sociedade e Estado
titua institucionalmente paralelo a ele, abrigado em secretarias e Ministério do transformar a natureza do papel regulatório do Estado, garantindo, portanto. não
Meio Ambiente, vem complicar ainda mais o debate em torno da política e da apenas as condições gerais de produção, mas as bases da reprodução social mais
práxis urbana, já que este último encontra mais expressão em algumas políticas ampla, incluindo-se aí a extensão dos direitos e deveres associados a uma cidada-
setoriais, transformando-as, a exemplo do saneamento, do que em outras, por
exemplo, a de habitação. O tradicional conflito entre as demandas por regulariza-
6 Cabe lembrar que a regulação urbanística também foi precedida, em meados do século XIX, por
movimentos sociais que demandavam melhoria das condições de salubridade urbana e de trabalho.
• Ver o Caderno Saneamento do Ministério das Cidades para um resgate desta ampliação do campo Ver, por exemplo, Benévolo (1981).
1 Esta articulação entre a ecologia polruca e alguns aspectos da economia po!ruca da urbanização
conceituai e constituição da noção de saneamento ambiental.
encontra-se mais desenvolvido e m trabalho anterior (Costa, 2006).
86 · Heloisa Soares de Moura Costa P u.NEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TIUIJETÓKIA, AVANÇOS E l'EKSPEClWAS • 87

nia plena. É dentro desta perspectiva que se inscreve, por exemplo, a política urba- públicos, por meio de instrumentos tributários, incentivos ou penalidades fiscais,
na brasileira que se estrutura a partir de meados dos anos 1980, pressionando os as mais-valias apropriadas privadamente, sob a forma de valorização fundiária/
mecanismos de regulação no sentido da maior participação da sociedade e maior Imobiliária, geradas pelo investimento público. Nesta perspectiva o terreno vazio
igualdade de ac~o à cidade, privilegiando, pois, a lógica da inclusão social nas é considerado não produtivo, favorecendo processos especulativos e aumentan-
políticas urbanas. E também dentro de tal perspectiva que procuramos entender e do os ônus coletivos. A associação entre uso produtivo do espaço e o capital
discutir a crescente incorporação de mecanismos e instrumentos concebidos para a imobiliário é em geral aceita como virtuosa, ou pelo menos desejável, na medida
gestão ambiental no planejamento urbano atual. Nossa hipótese é que se trata de em que desencoraja a manutenção de vazios urbanos, prática que colabora para
um ganho inegável no sentido da modernização ecológica do Estado na regulação a extensão do tecido urbano, a ociosidade dos investimentos públicos e os custos
do urbano, mas que traz consigo as ambigüidades inerentes aos objetivos e lógicas da urbanização. Esta lógica, presente na matriz da reforma urbana, repousa na
que fundamentam a regulação ambiental. Para tanto, é preciso apontar algumas racionalidade da justiça social, justificando-se a partir dela. Por outro lado, uma
das lógic.as que orientam as políticas urbanas na atualidade. racionalidade ambiental aponta para o uso social dos vazios urbanos, ou mesmo
para outros usos produtivos diferentes da edificação.

A lógica do ordenamento do território: o desejo É curioso observar que o debate internacional sobre a sustentabilidade ur-
da ordem ou a ordem como planejamento bana trouxe novamente para o debate brasileiro a questão da forma urbana, um
tema caro aos estudos de urbanismo e desenho urbano, mas secundarizado no
Trata-se de uma lógica herdada da visão funcionalista, que associa o pla- debate sobre a produção do espaço, seja pela sua pouca permeabilidade às ques-
nejamento a uma determinada ordem, que corresponde usualmente a um dese- tões de natureza social e política, seja pela prevalência de praticamente um mo-
nho urbano regular - de cunho modernista, culturalista de vanguarda, orgânico, delo único determinado pelas condições de acumulação do capital imobiliário,
expeiimental etc. - e a um processo também regular e legal de produção - acesso ou até mesmo pelas reduzidas proporções, no conjunto da urbanização brasileira,
à terra, projeto, construção, comercialização. Tudo o que foge a tal situação seria ocupada pela urbanização formal, fruto de um desenho urbano mais adequado.
"desordenado", irregular e/ou ilegal, assumindo, portanto, uma conotação nega- Assim, surgiu a discussão em tomo do modelo das cidades compactas, que asso-
tiva. Não cabe aqui problematizar em torno desta lógica, uma vez que há mais de ciam a idéia de sustentabilidade à existência, ou não, de um determinado padrão de
quatro décadas de crítica consistente a ela, seja enfatizando o papel coercitivo e urbanização que privilegia a adoção de maior densidade construtiva, demográfica e
controlador do planejamento, desde Jacobs (2000) e Lefebvre (1999) a autores de acessibilidade a comércio, serviços, cultura e lazer, além dê uma diminuição nos
mais atuais, assim como há um importante resgate da informalidade urbana gastos com energia, sistema viário e transportes. Tal padrão mais concentrado espa-
como processo cada vez mais presente nas cidades (Davis, 2006). Na experiência cialmente aparece como resposta a décadas de políticas de desconcentração urbana
brasileira esta é uma lógica superada naquilo que se refere à formulação das e industrial, em voga como modelo virtuoso de planejamento desde o pós-guer-
políticas públicas urbanas, ainda que alguns planos diretores recentes teimem em ra, principalmente na Europa, agora colocado em xeque pela racionalidade am-
rezar por tal cartilha. Apesar de toda a experiência acumulada, observa-se ainda, biental emergente. Naturalmente a transposição da proposta para a urbanização
fora da área do planejamento urbano (e também dentro dela) , uma crença no brasileira é problemática e guarda pouca relação com nossas tentativas de des-
papel redentor do planejamento em si, e não no resultado das políticas construí- concentração. Aparentemente temos uma versão perversa das cidades compac-
das a partir do embate de forças sociais a elas relacionadas. tas, expressa pelo crescente adensamento de favelas e periferias, sem perspecti-
vas de benefícios ambientais visíveis.

A lógica do retorno do investimento público


Racionalidades que orientam a política ambiental
Uma segunda lógica é aquela que busca o retorno do investimento público
como mecanismo promotor de justiça socioespacial. Essa é a lógica que em gran- Se olharmos pelo lado da política ambiental, podemos pensar em outras lógicas
de parte orientou toda a trajetória do movimento pela reforma urbana, que inspira que orientam os instrumentos de tal política em sua interface com as políticas urbanas.
grande parte dos instrumentos urbanísticos, planos diretores, e demais propostas.
Tendo como referência o uso produtivo do espaço, ela visa o retorno aos cofres
88 · Heloisa Soares de Moura Costa P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: lRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECDVAS · 89

A lógica da preservação ção. A situação mais geral abrange não apenas as áreas próximas à água, mas todo
A noção de preservação é originária da ecologia radical (Devall; Ses- o conjunto de áreas impróprias para urbanização, como encostas, mangues, áreas de
sions, 1985) e está associada à idéia de que qualquer atividade humana é risco em geral. Aqui, entende-se que a preservação obedece a uma dupla lógica, a
completamente incompatível com a atividade de preservação. Sua trajetória proteção dos recursos ambientais em si e proteção das populações frente ao risco.
se reporta à noção de wilderness (espaços selvagens, intocados) e às lutas Entretanto, na maioria das vezes prevalece a lógica da necessidade (Abramo, 2003),
pela criação de parques nacionais, principalmente nos Estados Unidos, e à segundo a qual as necessidades imediatas de habitação se sobrepõem ao risco, ca-
necessidade de preservar, de proteger partes do território, da apropriação de- racterizando claras situação de vulnerabilidade social e injustiça ambiental.
vastadora do capitalismo urbano-industrial que caracterizou o crescimento Já a noção de uso sustentável pressupõe o planejamento, seja no formato
econômico de aproximadamente um século atrás. Nas últimas décadas esta- plano de manejo, no formato zoneamento ecológico-econômico ou outro instru-
beleceu-se uma distinção mais clara entre as noções de preservação e de mento. Sua correspondência com o planejamento urbano é imediata, asseme-
conservação, estando a primeira mais associada à manutenção dos ambientes lhando-se a várias práticas de zoneamento urbanístico, seja no estabelecimento
naturais da forma menos transformada possível, enquanto a segunda noção das clássicas zonas de proteção ambiental, seja nos zoneamentos contemporâne-
concebe algum nível de atividade econômica desde que sob controle. As duas os visando à regularizaç~o fundiária e a urbanização de interesse social, como é
categorias existentes na legislação brasileira, materializadas no Sistema Na- o caso das ZEIS - Zonas de Especial Interesse Social.
cional de Unidades de Conservação - SNUC - , correspondem a estas duas
posturas: unidades de proteção integral ou de uso sustentável. 8 Embora não
seja nosso objetivo neste texto, cabe registrar que já há uma significativa lite- A lógica da valoração econômica da natureza
ratura sobre os cõnflitos que se estabelecem entre a criação de unidades de Observa-se uma tendência crescente de atribuição de valor de troca a bens
conservação de proteção integral e os movimentos de resistência de popula- ambientais aos quais usualmente eram atribuídos apenas valores de uso. A lingua-
ções tradicionais ou não, moradoras no interior destas unidades. A luta pela gem expressa esta distinção: recursos naturais expressam a utilidade da natureza
terra, seja em termos de garantir direitos de permanência, seja em torno de para os processos produtivos, em geral mercantis. Bens naturais expressam valo-
valores e direitos de indenização, estão na base dos conflitos. 9 res de uso, individuais ou coletivos. A economia, enquanto disciplina, entende a
Nas áreas urbanas, conflito equivalente se estabelece nas chamadas Áreas casa/oikos, a natureza, como um conjunto de recursos naturais destinados essen-
de Preservação Permanente, em especial aquelas às margens dos cursos d' água, cialmente a satisfazer as necessidades humanas por meio da organização dos
nas quais qualquer ocupação ou atividade é proibida pela legislação.10 Assim, há processos produtivos. Esta racionalidade se contrapõe à da ecologia, que busca
desde incompatibilidade entre a regulação existente e o processo de constituição de compreendê-la e mantê-la. Já a economia ecológica pressupõe que a melhor
inúmeras áreas urbanas que se desenvolveram em torno dos cursos d'água, até a forma de preservação da natureza é o estabelecimento de uma racionalidade
ocupação irregular de áreas inundáveis e de proteção dos mananciais por famílias de econômica para a utilização da natureza, dos recursos naturais. Esta racionalidade
baixa renda excluídas dos mecanismos formais de acesso à terra urbana e à habita- se expressa na forma de atribuição de valor econômico, por vezes monetário, ao
uso, apropriação, deterioração ou desgaste dos bens ambientais. Tal racionalidade
8
se expressa em várias propostas hoje internalizadas pela regulação ambiental: o prin-
As unidades de proteção integral têm como objetivo básico preservar a natureza, sendo permitido
o uso indireto dos recursos naturais, quais sejam, "aqueles que não envolvem consumo, coleta, dano
cípio poluidor - pagador, o princípio do ressarcimento, muitas vezes materializado na
ou destruição dos recursos naturais" (Lei nº 9.985, de 18 de Julho de 2000, Art. 2°). São unidades de forma de medidas compensatórias, a cobrança pelo uso dos recursos - da água, por
proteção integral as categorias Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento exemplo - , o estabelecimento de cotas de poluição a serem comercializadas num
Natural, Refúgio da Vida Silvestre. As unidades de uso sustentável visam à "exploração do ambiente
de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mercado internacional, entre tantas medidas em vigor ou em discussão.
mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economi- Em que pese a efetividade de várias das medidas, a serem mais bem avalia-
camente viável" (Idem, Art. 2°). São consideradas de uso sustentável as categorias Area de Proteção
Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de das pela literatura específica, cabe ressaltar que o princípio que as sustenta é a
Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável, Reserva Particular do Patrimônio Natural. inexorável inserção da natureza no mundo da mercadoria. Bens coletivos meta-
9
Ver Dlegues (2000) para uma discussão mais geral e Camargos (2006) para análise de um exemplo morfoseados em recursos apropriados por aqueles que pagam passam a ter o direi-
concreto.
'º Ver em particular o Código Florestal de 1965 e todo o debate em torno da revisão da Lei Federal to de uso e, eventualmente, de deterioração dos mesmos. Em outras palavras, a
6766n9 e legislação posterior, consubstanciado no Projeto de Lei 3057 de 2000 e seus substitutivos atribuição de valor econômico se transforma em direito de apropriação, muitas
em discussão no Congresso Nacional (www.cidades.gov.br)
P LANEJAMENTO URBANO NO BltASIL: 111.AJITTÓRIA, AVANÇOS B PliRSPECTlVAS . 91
90 · Heloisa Soares de Moura Costa

vezes em detrimento de usos tradicionais coletivos ou não. Se tudo está reduzido a se a lógica da produção do espaço urbano; foi pensada para um uso mais restrito,
um preço, trata-se então de discuti-lo? Esta lógica, transformada em política públi- relativo à localização e funcionamento de atividades econômicas pontuais.' a
ca, requer necessariamente mecanismos eficientes de controle social. É interessante exemplo de uma fábrica. Os instrumentos foram concebidos para avaliar os im-
observar que tais princípios foram rapidamente incorporados à política urbana e à pactos no entorno imediato. Há, portanto, necessidade de adequação para ava-
regulação urbanística, na forma de operações interligadas, medidas compensató- liação de impactos de alcance metropolitano ou regional que dê conta da com-
rias diversas, medidas mitigadoras, entre outras. Suas conseqüências em termos de plexidade do processo de produção do espaço. O caso do licenciamento de
reprodução de valores merecem também estudos mais aprofundados. atividades de parcelamento do solo é um interessante exemplo, por um lado da
inadequação do instrumento à natureza do empreendimento. O que seria a ope-
ração de um loteamento? Seria a mudança das famílias e transformação do lote-
Licenciamento ambiental e planejamento urbano amento em bairro? É a forma como se constrói? Como se faz uma renovação de
Um dos instrumentos da gestão ambiental que guarda atualmente mais licença de operação? Os processos urbanos requerem conhecer a dinâmica da
estreita interface com as políticas urbanas é o licenciamento ambiental. A lógica produção do espaço, saber quem são os agentes, e quais são os interesses em
estruturante do processo deveria ser a lógica do planejamento, da visão de longo jogo, e não se esgotam na realização do produto, ou seja, na venda e retorno da
11
prazo. O processo pressupõe o estudo das condições nas quais se torna adequado mercadoria à forma de capital a ser investido em outro empreendimento. Por
um determinado empreendimento, uma intervenção, incluindo-se aí a chamada outro lado, ao propiciar mecanismos de participação no processo, via audiências
opção zero, ou seja, de não realização do empreendimento. A etapa seguinte, o li- públicas, a incorporação do licenciamento às políticas urbanas vem possibilitan-
cenciamento propriamente dito, pressupõe que, uma vez decidido que o empreen- do uma discussão mais ampla da expansão urbana do que as tradicionais formas
dimento irá acontecer, sejam estabelecidas através de estudos técnicos, as condi- de aprovação de projetos de parcelamento propiciadas pela antiga legislação
ções necessárias e as circunstâncias para que ele se realize. A concessão de licenças urbanística. Vem ainda propiciando um interessante exercício de percepção das
em etapas - prévia, de instalação e de operação - aponta para a possibilidade de diferentes racionalidades associadas às políticas urbana e ambiental.
controle social do processo. Na prática, muitos destes princípios vêm se perdendo
e o licenciamento vem se transformando num conjunto de procedimentos buro-
cráticos a atravancar a implantação dos empreendimentos. A politização do pro- Referências
ABRAMO, P. (Org.). A cidade da informalidade; o desafio das cid~des latino-americanas.
cesso vem também permitindo que populações afetadas e movimentos sociais
Rio de Janeiro: Livraria Sette Letras/ FAPERJ, 2003.
em geral se organizem para participar das etapas dos licenciamentos, dando ex-
ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos conflitos ambienta is. ln:_. (Org.) .
pressão política aos conflitos sociais estruturados em torno da implantação dos Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.
empreendimentos e, idealmente, lutando para maximizar seus ganhos e reverter
ARAÚJO, R. P. Z; COSTA, H. S. M. Conflitos e gestão ambiental no le!filório municipal de
alguns dos impactos. A lógica do licenciamento e da reparação acaba por legiti- Belo Horizonte. ln: XII ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇAO NACIONAL DE
mar o falso direito do empreendedor como direito adquirido, uma vez que o que PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 2007,
passa a estar em jogo é como compensar, ressarcir, mitigar. Cabe sempre questio- Belém. Anais.... Belém: ANPUR, 2007 (Disponível em CD-ROM).
nar se o que está sendo perdido é compensável. Qual o preço de vidas perdidas, BENÉVOLO, L. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Martins Fontes, 1981.
cidades inundadas, ou outras perdas imateriais. BERNARDES, L.. Política urbana: uma análise da experiência brasileira. Análise e Con-
A atual legislação urbanística vem progressivamente incorporando esses juntura, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, v. 1, n. 1, p . 83-118, 1986.
princípios presentes e já internalizados do campo ambiental. Os EIVs - Estudos CAMARGOS, R. M. F. Muitos olhares sob a Mata Escura: o delineamento atual de uma
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de Impacto de Vizinhança-, os estudos de impacto urbano, o licenciamento am-
Horizonte: C/Arte, 2006. p. 217 -236.
biental de atividades de grande porte, inclusive novos loteamentos, são alguns
CAMPBELL, S; FAINSTEIN, S. S. lntroduction: lhe structure and debates of planning
exemplos que já incorporam a idéia da inevitabilidade do impacto e de alternati- theory. ln: CAMPBELL, S; FAINSTEIN, S . S. (Ed.). Readings in planning theory. Malden
vas para minimizá-lo ou compensá-lo. Às vezes, os licenciamentos adquirem, eles e Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
próprios, valor de troca.
Finalmente, cabe observar que a matriz conceituai dos RIMAs e do licencia-
mento ambiental foi concebida fora de um arcabouço conceituai que incorporas-
11 Ver por exemplo Laschefski e Costa (2006); Costa e Pe ixoto, (2005) ; e Araújo e Costa (2007) .
PLANEJAMENTO UllOJ\NO NO B1w;1L: 11\AJETÓRIA, AVANÇOS E PEllSPEL,,VAS • 93
92 · Heloisa Soares de Moura Costa

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P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRA)b, ÔlllA, AVANÇOS U l'ERSPEcnVAS. 95

América Latina durante os anos noventa", afirma que aquela foi a década "do
Cooperação inter-organizacional e surgimento de novos ministérios sociais de caráter geral ou coordenadores" (p. 20).
resiliência das instituições: notas Na verdade, tem sido ensaiada na região uma variedade de formas de coordena-
ção no âmbito das políticas sociais, nos distintos níveis de governo, que "vão desde
sobre a intersetorialidade na reformas na institucionalidade até inovações na gestão social" (p. 21). Se a criação
do Ministério do Desenvolvimento Humano na Bolívia pode ser pensada como
gestão das políticas públicas 1 paradigmática, têm proliferado as Secretarias de Desenvolvimento Social e distin-
Carlos Aurélio Pimenta de Faria tas instâncias dedicadas à busca de cooperação entre as agências governamentais.
Carlos Alberto de Vasconcelos Rocha No âmbito mais programático, tem se tornado corrente a formulação de políticas e
Cristina Almeida Cunha Filgueiras programas sociais que demandam ação concertada entre distintas agências públi-
cas, sem contar aqui, é claro, a ênfase que tem sido dada às parcerias entre Estado,
organizações da sociedade civil e entidades do mercado.2
A ênfase que nos últimos anos tem sido dada pelos gestores e pelos analis- Neste ensaio temos o objetivo de explicitar, de forma breve e em suas linhas
tas de políticas públicas às relações intergovernamentais, ao papel das redes e à principais: (a) os processos que levaram à fragmentação do planejamento e da gestão
intersetorialidade, espelha, em ampla medida, algumas das principais mudanças no setor público; (b) os fatores que têm gerado a pressão para o rompimento deste
que têm sido operadas nos padrões tradicionais de produção das políticas públi- padrão inercial; e (c) as dificuldades e barreiras à cooperação entre as agências públi-
cas, mudanças essas associadas à consolidação de novas formas de governança. cas, dentre elas destacando-se o que aqui denominamos "resiliência institucional".
Nesse contexto de emergência de novos atores, de uma certa fragilização do
Estado, de valorização da sociedade civil na gestão pública e de complexifica- Cabe explicarmos, antes de qualquer outra coisa, o termo "resiliência insti-
ção dos processos sociais, torna-se central a questão da cooperação inter-orga- tucional". O Dicionário Aurélio dá a seguinte definição de "resiliência": "proprie-
nizacional. Se ainda são incipientes no Brasil os esforços mais sistemáticos no dade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida
sentido da investigação dos condicionantes, dos indutores, do impacto e do quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica". Em nossa apro-
potencial disruptivo das relações inter-governamentais e da atuação das redes priação desse termo para a apreciação do comportamento das burocracias públi-
de políticas públicas, a preocupação com a chamada intersetorialidade, enten- cas, estaremos enfatizando as características internas às orgé\[lizações que servem
dida aqui como ação concertada das agências governamentais, rompendo a como obstáculo à assimilação da mudança (qual seja, a introdução de um modo
tradicional perspectiva fragmentada e setorializada do planejamento e da im- intersetorial de produção de políticas públicas).
plementação das políticas no país, parece constituir uma lacuna ainda mais Preliminarmente, é importante recordarmos que, já em seu clássico trabalho
significativa na agenda de pesquisa dos analistas de políticas públicas. Os raros sobre a implementação de políticas públicas, Pressman e Wildavsky (1973) afirma-
trabalhos que têm se dedicado à questão parecem ainda em larga medida restri- vam que "nenhuma frase expressa melhor a freqüente reclamação sobre a burocracia
tos à esfera da prescrição, sendo, via de regra, contaminados por um normativis- federal (dos EUA) do que 'falta de coordenação'. Nenhuma sugestão de reforma é
mo que lhes impossibilita um tratamento mais sistemático dos constrangimentos mais comum do que 'o que precisamos é de mais coordenação'" (p. 133). Guy Peters
políticos, legais, institucionais e burocráticos à ação concertada/cooperativa. (1998), por seu turno, assevera que o "Santo Graal da administração, qual seja, co-
Parece valer aqui a imagem da coruja de Minerva, posto que as iniciativas ordenação e 'horizontalidade', é uma procura eterna dos gestores públicos" (p. 295).
de modernização do Estado no Brasil, assim como na América Latina de uma Harold Seidman consegue ser ainda mais provocativo ao sugerir que:
maneira geral, têm privilegiado, particularmente na seara das políticas sociais, a
criação de uma nova institucionalidade, na ·qual a questão da cooperação, do A busca de coordenação é, em muitos aspectos, o equivalente do
fomento à ação concertada, ocupa um papel considerado estratégico. Eduardo século XX da procura da Pedra Filosofal na Idade Média. Se conse-
Amadeo (2003) , por exemplo, mapeando a "evolução das políticas sociais na guíssemos a fórmula correta para a coordenação, poderíamos recon-

1 E!.te trabalho é parte de uma investigação mais abrangente, cujo primeiro resultado foi o artigo "lnter- 2 No caso dos Estados Unidos, conforme O'Toole Jr. (1997), "o gasto federal dire to em programas

seto1ialidade e resiliência instituáonal na gestão da política social: as recentes reformas administrativas da operados por uma única agência equivale a apenas uma peque na parcela do enorme orçamento
Prefeiti ira Municipal de Belo Horizonte", apresentado no XXIX Encontro Anua l da ANPOCS, realizado em nacional" {p . 46).
Caxambu, MG, em outubro de 2005, e publicado em Pensar BH-Política Social. n. 15, p . 5-7, 2006.
96 · Carlos Aurélio P. Faria / Carlos Alberto V. Rocha / Cristina A. C. Filgueiras PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇO S E PERSPE:::llVAS • 97

ciliar o irreconciliável, harmonizar interesses em competição e com- Estado são "transversais" ou "cross cutting", não se encaixando
pletamente divergentes, superar irracionalidades nas nossas estruturas com perfeição nos organogramas da máquina pública. Isso vale
governamentais e fazer complicadas opções relativas às políticas pú- tanto para questões mais "recentes" , como meio ambiente, direitos
blicas das quais ninguém iria discordar (Harold Seidman, 1970 apud humanos e novas tecnologias, quanto no que concerne às políticas
Jennings Jr.; Krane, 1994, p. 341). sociais, as quais, sob pressão das múltiplas agendas internacionais
e de novas demandas internas, passam a ter que contemplar "no-
Fica claro assim, por essa via, que a preocupação com a coordenação e vos" grupos de beneficiários, como os migrantes, as mulheres e as
com a cooperação interorganizacional não pode ser considerada um fenômeno minorias, os quais demandam serviços de várias agências públicas
recente. Diga-se, de passagem, que o tratamento "novidadeiro" , muitâs vezes (Peters, 1998, p. 295-296);
dispensado às redes e às parcerias, freqüentemente obscurece o fato de que o
elemento novo parece ser, essencialmente, a intensidade de tais articulações e a va-
riedade dos atores envolvidos. Como sugerido por Guy Peters (1998), desde o tempo Como se sabe, as diretrizes de reforma do Estado têm muitas
em que as estruturas governamentais começaram a se diferenciar, com a criação de vezes se espelhado no funcionamento das organizações do mercado
uma variedade de ministérios e departamentos, muitos têm afirmado que uma agên- e/ou buscado a ampliação da participação dos cidadãos ou "clientes".
cia desconhece o trabalho realizado pelas outras e que os seus programas são contra- . "A participação dos clientes é usada como uma maneira de se garantir
ditórios, redundantes ou ambos (p. 295). Como é bem sabido, processos de distinta que o governo 'atenda o freguês', ao passo que maximizar o envolvi-
natureza são responsáveis pela fragmentação do planejamento e da gestão no setor mento dos servidores públicos nas suas próprias organizações incre-
público. Dentre el(lS, talvez sejam os seguintes aqueles que mais diretamente têm menta a qualidade dos serviços produzidos. Esse foco nos dientes e
obstaculizado a capacidade de coordenação das agências estatais: nos servidores no interior de uma única organização toma menos pro-
vável a coordenação" (Peters, 1998, p. 296).
O fato de os governos terem progressivamente ampliado o le-
que de suas atribuições, a despeito das pressões em sentido contrá- No que diz respeito aos fatores que têm gerado a pressão para o rompi-
rio, as quais se avolumaram e se intensificaram nas duas últimas mento do padrão inercial de planejamento e gestão, via de regra fragmentado,
décadas. Essa ampliação faz com que aumentem as probabilidades alguns deles já mencionados acima, parece possível sermos igualmente sintéticos,
de qualquer política ou programa gerar impactos significativos so- elencando os seguintes:
bre outras políticas e/ou programas;
Os recorrentes problemas fiscais com os quais têm se deparado os
governos, os quais, somados às crescentes demandas por eficiência,
Os processos de descentralização, devolução e/ou privatização, transparência e accountability, fazem com que a coordenação/coopera-
aos quais se deve somar a criação de múltiplas agências (regulado- ção seja percebida como uma forma aparentemente simples de se elimi-
ras ou prestadoras de serviços), às quais é atribuído um poder de nar a redundância e a inconsistência dos programas governamentais;
atuação ma is ou menos autônomo, o que tem ampliado a fragmen-
tação e, simultaneamente, tomado imperativas a coordenação e a
cooperação (e não apenas entre as agências governamentais); Ainda que a visão prevalecente destaque a tendência das organiza-
ções em geral e das burocracias públicas muito particularmente de pre-
servar ou de buscar a ampliação de suas próprias prerrogativas, de sua
Se as atribuições estatais foram enormemente ampliadas nas autonomia e de seus orçamentos, alguns outros fatores parecem ope-
últimas décadas, parece igualmente evidente o aumento da com- rar no sentido do fomento à cooperação e à coordenação, tais como:
plexidade e do caráter técnico de parte significativa dos assuntos e a definição do papel do técnico/profissional e a ênfase dada aos bene-
questões com as quais o Estado se vê compelido a lidar, o que tam- ficiários/clientes, os quais sentiriam em primeiro lugar o impacto po-
bém teria reforçado a tendência à fragmentação. Por outro lado, sitivo de tal mudança no comportamento das organizações e de seus
cada vez um número maior de desafios e problemas colocados ao profissionais (Peters, 1998, p. 305);
98 · Carlos Aurélio P. Faria / Carlos Alberto V. Rocha / Cristinn A. C. Filgueiras P LANE)hMENTO URBANO NO B MSIL: TRhJETÓRlh, hVh NC:OS E f'ERSl'ECTI VAS · 99

Cabe também ressaltarmos, por fim , o reconhecimento de que a principalmente) sendo eles outras organizações governamentais. Dito de outra for-
complexificação dos processos sociais tornou obsoletas e ultrapassa- ma, para que esta "hegemonia" seja preservada sobre o território, sobre uma clien-
das determinadas concepções que informavam o planejamento go- tela, sobre uma questão ou problema ou sobre uma dada forma de atuação, o
vernamental. Um bom exemplo talvez seja o consenso cada vez mais comportamento esperado é a competição, não a cooperação.
perceptível acerca da compreensão da pobreza como um fenômeno Diga-se aqui, de passagem, que a resiliência institucional, entendida como
multidimensional, a demandar, para sua superação, uma gama va- o comportamento reativo às pressões por mudança (no caso por maior coopera-
riada de ações, por parte do Estado e da própria sociedade. ção/coordenação/intersetorialidade), ou, dito de outra maneira, como resistência
às inovações na gestão, é um fenômeno derivado de combinações específicas de
Contudo, são diversificadas as dificuldades e barreiras à coordenação/coo- determinadas barreiras organizacionais, legais/técnicas e aquelas relativas à "po-
peração entre as agências públicas. Jennings Jr. e Krane (1994) sugerem a possi- lítica interna" das organizações envolvidas.
bilidade de se categorizar tais barreiras da seguinte maneira: haveria empecilhos
organizacionais, legais/técnicos e políticos. As barreiras de ordem organizacional As barreiras políticas externas, por sua vez, são também de várias ordens:
estariam relacionadas às distintas missões, orientações profissionais, estruturas e podem ser oriundas de grupos de pressão que desejam proteger os seus interes-
processos das agências públicas. As várias missões e orientações profissionais ses na produção da política pública; podem estar relacionadas a estruturas e
incidem sobre a definição dos objetivos e das prioridades das organizações, po- processos do legislativo que têm incidência sobre a fragmentação das agências e
dendo levar a divergências acerca da maneira mais adequada de se atingir os fins das políticas ou programas, sendo também possível que o legislativo faça valer o
propostos, o que, obviamente, pode dificultar a ação coordenada entre diferentes seu interesse em privilegiar programas de maior visibilidade ou do interesse de
agências. Há também a possibilidade de que as organizações possam ignorar ou alguns de seus atores mais relevantes. Ademais, é crucial o apoio das lideranças
desconfiar do modo de operação e das finalidades das outras agências. No que do Executivo às diretrizes de coordenação.
diz respeito às estruturas e aos processos, obstáculos à cooperação podem ser Tendo sido inventariadas, a inda que de maneira tão sucinta, as dificulda-
derivados da limitação das conexões inter-organizacionais, que é cristalizada por des e barreiras à cooperação/coordenação inter-organizacional, cabe destacar
distintas estruturas e processos e pela eventual necessidade de que a aprovação que, dada a expansão e complexificação das próprias agências governamentais,
de vários níveis da organização seja requerida e/ou pela existência de uma diver- parte significativa dos empecilhos arrolados acima aplica-se também às dificulda-
sidade de "pontos de veto". Ademais, a abrangência geográfica da provisão de des de se produzir ação concertada no âmbito mais restrito de agências singula-
serviços pode variar, podendo também haver incompatibilidade nos procedi- res. Dito de outra forma, tais fatores podem incidir também sobre a possibilidade
mentos e nos sistemas de incentivo. de coordenação intra-organizacional.
No tocante às barreiras legais e técnicas à coordenação, elas podem se Por fim, devemos recordar que, dado o número e a diversidade dessas
originar da própria circunscrição, definida pela legislação pertinente, para a atu- barreiras e empecilhos, não deveriam nos surpreender a recorrência, a intensida-
ação da agência, assim como de regulamentos internos emanados dos escalões de e a relativa antiguidade do clamor pela cooperação, coordenação ou interse-
mais elevados das organizações e da capacidade tecnológica e da experiência torialidade. O que parece sim surpreendente é a dificuldade, perceptível em par-
acumulada das agências. Destacam-se aqui as restrições legais à utilização dos te não desprezível da bibliografia brasileira recente, de superação da perspectiva
recursos financeiros e técnicos das distintas organizações e a possibilidade de usual, acentuadamente normativa, em direção a um tratamento analítico do pro-
conflito entre as regulamentações dos vários níveis de governo. blema mais consistente e informado. Essa situação é, certamente, resultado tam-
Também como destacado por Jennings Jr. e Krane (1994) , as barreiras polí- bém do número ainda pequeno de investigações acadêmicas e de avaliações das
ticas à coordenação/cooperação podem estar lastreadas tanto no ambiente político políticas e programas sociais implementados no país. Tal inflexão, no sentido da
externo aos programas quanto na "política" interna da própria burocracia. No que valorização da pesquisa empírica, parece-nos necessária até para que as prescri-
diz respeito às disputas intraburocráticas e à política da burocracia, o conhecido ções tenham efeito além da retórica.
termo "proteção do território" (turf protection) parece conseguir sintetizar com pre-
cisão um comportamento já amplamente estudado. A idéia expressa é que cada Referências
organização tem a sua área de atuação definida, hegemonia essa que vai lutar para AMADEO, Eduardo. Euolución de las políticas sociales en America Latina durante los no-
preservar (ou ampliar) , procurando excluir competidores potenciais, mesmo (ou venta. Proyecto Desafíos de Políticas Sociales en America Latina. BID/ Fundación Chile
XXI. Jul. 2003.
100 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes d e Mendonça PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJIITÓRl/I, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 101

JENNINGS Jr., Edward T.; KRANE, Dale. Coordination and welfare: lhe question for lhe
philosopher's stone. Pub/ic Administration Review, v. 54, n. 4, jul./ago. 1994.
O'TOOLE Jr.; l.AURENCE, J. Treating networks seriously: practical and research-based
agendas in public administralion. Public Administration Review, v. 57, n. 1, jan./fev. 1997.
PETERS, B. Guy. Managing horizontal governmenl: lhe politics of co-ordination. Pub/ic
Administration, v. 76, p. 295-311 , Verão, 1998.
PRESSMAN, J . L ; WILDAVSKY, A. /mplementation. Berkeley: University of California
Press, 1973.
•ros F• l'ERSl'ECTIVAS • 103
Pu.NEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVAN..,

social e ecológico (Faria, 1991), a metropolização configura o expressivo adensa-


Trajetória e perspectivas da .
menta populacional ' · pela .aça-o concentradora
em alguns "pontos" d o tern'tono . . da
gestão das metrópoles dinâmica da economia, da produção técnica e do conhec1men~o, e da diversida-
de do trabalho, em todas as suas formas. Pode ser compreendida ~orno um mo-
Rosa Moura menta de maior complexidade. · ão·, um fenomeno
do processo d e urbamzaç , . . que _se
refere muito mais · aos modos de v1'da e d e prod uçao- que à propna d1mensao
Então a metrópole brasileira transformou-se num Estado de territorial das metrópoles (Ascher, 1995).
Exceção. (Oliveira, 2006, p. 52) Esses pontos do território, centrados nas cidades principais, log~ se tomaram
grandes "manchas" em movimento, cada vez mais concentradoras, artic~ando m~­
Pensar a metrópole remete imediatamente à grandeza. Seja da possibilidade nicípios de suas proximidades em aglomerações. Em 1970, as aglomeraçoes de Sao
da acumulação do capital, do conhecimento, da tecnologia, seja da magnitude dos Paulo e do Rio de Janeiro detinham, respectivamente, 8,73 e 7,43 do total da po-
problemas sociais e ambientais, crescentes em seu interior. Embora distintas e dis- pulação brasileira. Outras aglomerações polarizadas por algumas :idades qu~ .de-
persas, as metrópoles, em qualquer geografia, representam um campo de forças, sempenhavam a função de capitais de estados - Belém, Belo Honzo~te, Cuntiba,
de possibilidades, ao mesmo tempo, um suceder de conflitos. Fortaleza, Porto Alegre, Recife e Salvador, naquela década institucionalizadas como
"regiões metropolitanas" - , concentravam 9,173. Passados 30 anos, essas mesmas
Compreender a metrópole exige, assim, reconhecer que a metropolização
aglomerações agregavam 133 do total da população brasileira, em 2000, enquanto
possui componentes complexos, que distinguem, no processo de urbanização,
a de São Paulo detinha 10,53 e a do Rio de Janeiro, 6,33.
o fato metropolitano da simples configuração de grandes cidades. E que cada
metrópole resulta de uma herança de relações que marcam seu cotidiano e Esse comportamento demonstrava que o fenômeno da metropolização se
orientam seu porvir. ampliava, sabidamente não mais restrito apenas a essas uni~ade~ apontadas,
sem contudo romper 0 hiato em relação às metrópoles nac1ona1s. Apontava
também a su;remacia de São Paulo, em relação ao conjunto, e a r~lativa perda
Para historiar o percurso da metropolização e acenar perspectivas para a
gestão de seus resultados materializados espacialmente, dois aspectos são funda-
de posição do Rio de Janeiro, em função da ascensão de outras unidades.
mentais: a clareza conceituai do que é uma metrópole - e uma região metropoli-
tana - e o que motivou, em diferentes épocas, a inserção desses espaços na o processo de expansão física das aglomerações, em áreas contínuas_ de
agenda do Estado brasileiro. E aqui, importa contrapor o fenômeno metropolita- ocupação que agregam municípios vizinhos num mesmo complexo de re.laçoes,
no às regiões institucionalizadas. foi configurando densas regiões urbanizadas, não só no entorno dessas cidades.
Outros centros urbanos também configuraram aglomerações, distintas na natu~e­
Colocando o foco nas unidades efetivamente entendidas como metropoli-
za e no tamanho, entretanto, similares no que concerne à lógica da aglomeraçao,
tanas, é necessário considerar sua diversidade, para então rumar na direção de
à dinâmica de expansão e aos resultados socioespaciais de seu crescimento.
uma breve leitura dos instrumentos disponíveis para o planejamento e gestão,
suas possibilidades e limitações. Esse processo combina, por um lado, os elevados padrões de crescimento
populacional em municípios periféricos que, mesmo com redu~o nas taxas de
Essa é a abordagem pretendida por este trabalho, que tomará por referen-
crescimento na última década, demonstram seu papel de sustentaculos da expan-
cial, entre outros, os estudos realizados no âmbito do Observatório das Metrópo-
são física das cidades principais; por outro, a crescente e densa concentração de
les para o Ministério das Cidades, entre 2004 e 2005, e para a Câmara dos De-
opções informais de moradia, nos pólos, associadas às populações de ~aixa ren-
putados, como subsídio ao Seminário Internacional Desafio da Gestão das
da. Da mesma forma em que nas áreas centrais esses enclaves sobrevivem das
Regiões Metropolitanas em Países Federados em 2004.
sobras do elevado dinamismo econômico, verificam-se, imiscuídos nas periferias,
processos de diversificação socioeconômica, desencadeados pela sinergia das
Urbanização e metropolização atividades do conjunto.
Enquanto as periferias contam uma história da presença ~o mercad? i~o?i­
Fruto do processo de urbanização, que no Brasil foi marcadamente célere, liário e do valor da terra como indutores da ocupação, caractenzadas maJontana-
extenso e profundo, no que se refere a mudanças do ponto de vista demográfico, mente pela extrema pobreza e carências diversas, os enclaves socialmente pobres
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJIITÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 105
104 ·Rosa Moura

processo secular de internacionalização. Desse mc>do, essas metrópo-


dos centros revelam a busca por localizações que desonerem o custo da distância
les funcionam e evoluem segundo parâmetros globais. Mas elas têm
a despeito do risco pela ilegalidade da posse ou pela vulnerabilidade ambiental'.
especificidades, que se devem à história do país onde se encontram e
Nos dois casos, salientam a ausência de políticas compatíveis com a expressividade
e com a qualidade da urbanização metropolitana, apontando na direção da massi- à sua própria história local. (Santos, 1990, p. 9)
va presença de políticas de "exceçãd', como aponta Oliveira (2006).'
Agregando outros elementos, sempre orientados na diversificação, qualifi-
No fechar do século XX, conforme mencionado em Moura et ai. (2005), o
cação e abrangência física do poder desses espaços, as metrópoles concreti-
padrão de urbanização brasileiro confirma, e até exacerba, tendências ensaiadas
zam-se por uma extensão e uma densificação das grandes cidades (Ascher,
no início da década de 1990. Santos (1993, p. 83) referia-se à tendência de ace-
1995), como lugar privilegiado e objeto de operação do denominado processo
leração do fenômeno da urbanização e discutia a questão relativa à "desm~tropo­
de globalização, ou seja, dos mercados globais (Souza, 1999), funcionando e
lizaçãd', em pauta no início dessa década, mostrando que, longe de representar
evoluindo segundo parâmetros globais, mas guardando especificidades que se
uma reprodução do fenômeno da "desurbanização", encontrado em países do devem à história do país onde se encontram e à sua própria história local (Santos,
Primeiro Mundo, aqui o que "se está verificando é a expansão da metropolização
1990}, diferenciando-se pela variedade de bens e serviços que oferecem e pelo 1
e, paralelamente, a chegada de novas aglomerações", cuja principal característica
mercado de trabalho diversificado (Veltz, 1996).
é o desvanecimento da fronteira entre os municípios.
Pode-se incorporar à noção de metrópole características atribuídas às cida-
Faria (1991, p. 118) previa "uma rede urbana densa e variada de aglome-
des globais, como os lugares centrais onde se efetivam ações de mercados e
rações", focada em "duas dezenas de centros de grande porte". A realidade bra- outras operações globalmente integradas, ao concentrarem perícia e conheci-
sile~ra foi além e c~nsolidou um conjunto de 49 aglomerações urbanas, sendo
mento, serviços avançados e telecomunicações necessárias à implementação e
mais de uma dezena polarizadas por metrópoles (IPEA, 2002; Observatório das ao gerenciamento das operações econômicas globais, bem como ao acolhi- 1

Metrópoles, 2005). '1


mento de matrizes e escritórios de empresas, sobretudo das transnacionais
(Sassen, 1998), bancos e agências de serviços avançados de gerenciamento e de
Uma necessária dareza conceituai consultoria legal, e de profissionais qualificados (Cohen, 1981), e por serem irra-
diadoras do progresso tecnológico, como meios de inovações (Sassen, 1998). il
Para situar a metropolização no século que inicia, é imprescindível a clareza Assim, a metrópole corresponderia à cidade principal de uma região, aos 1
quanto a alguns conceitos, a começar pelo de metrópole e aglomeração urbana. nós de comando e coordenação de uma rede urbana que não só se destacam ~
Vale-se, para tanto, da pesquisa do Observatório das Metrópoles (2005), que faz pelo tamanho populacional e econômico, como também pelo desempenho de ·l
j
um percurso sobre literatura específica, destacando a compreensão contemporâ- funções complexas e diversificadas, por uma multifuncionalidade, e que estabe-
nea do fenômeno. lecem relações econômicas com várias outras aglomerações e com o mundo.
Santos (1965, p. 44) entendia metrópole como o "organismo urbano onde Essa compreensão salienta o conteúdo que peculiariza as metrópoles e as
existe uma complexidade de funções capazes de atender a todas as formas de distingue das grandes cidades. No entanto, a dimensão da morfologia urbana assu-
necessidade da população urbana nacional ou regional". Anos depois, enfatizava mida pela aglomeração metropolitana em pouco se difere, salvo pela extensão, da
sua importância na inserçãÓ nacional nas relações com o mundo. configuração que se generaliza nos centros principais das redes de cidades: a aglo-
meração urbana. Essa morfologia pode ser entendida como uma mancha de ocu-
As metrópoles contemporâneas são os maiores objetos culturais ja- pação contínua, ou mesmo descontínua, diretamente polarizada por um centro,
mais construídos pelo homem. Nas últimas décadas - não importa que pode ou não ser uma metrópole. Em seu interior potencializa-se a geração de
onde se situem -, elas trabalham em compasso com o ritmo do mun- valor, as maiores densidades de população e atividades, e realizam-se as maiores
do, na medida em que a realldade da globalização se Impõe sobre o intensidades de fluxos econômicos e populacionais, relativamente à região em que
se localizam. As aglomerações envolvem munidpios, ou parte deles, fortemente
1 ~llveira (2006, p. 521, argume~ta que algumas tendências mundiais Madqulrem, na cidade periférica,
Integrados à mesma dinâmica, cada qual cumprindo papéis espedficos.
~ensões trágicas. O Informal é a não-mereadoria do trabalho eomo exceção do emprego; o muti-
rao é a não-mercadoria da moradia como exceção dela mesma e do desemprego; a bolsa-famfila é o
não salário como exceção da informalização; as polft!cas focadas são a exceção da universalização".
106 · Rosa Moura PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TKAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 107

Dessa abordagem, dois aspectos merecem destaque: a complexidade do lhos, o deliberativo e o consultivo. Embora definidas mediante critérios técnicos,
que se pode denominar metrópole e a dinâmica comum implícita no fato urbano as RMs criadas foram alvo de críticas quanto à seleção das áreas, como se eviden-
configurador de uma aglomeração. ciou no caso de Belém e Curitiba, cuja dinâmica metropolitana na época podia
ser considerada de baixa intensidade.
As metrópoles na agenda brasileira A segunda etapa teve início com a Constituição Federal de 1988, que facul-
tou aos estados federados a competência de institucionalizar suas unidades regio-
Complexidade e dinâmica comum fizeram parte do discurso de governan- nais (artigo 25, parágrafo 3°).- Findava, assim, um modelo considerado autoritá-
tes e legisladores que se voltaram para a institucionalização de regiões metropo- rio e centralista - que criou regiões sobre as quais os estados federados não
litanas no Brasil (RMs), mesmo sem terem demonstrado compreender, de fato, o tinham autonomia para intervenção - , e se abriram possibilidades de inserção
significado de uma metrópole e os limites da extensão do aglomerado resultante das regiões metropolitanas em processos estaduais de planejamento regional.
do seu fenômeno urbano. Tanto que "região metropolitana" passou a correspon- Além de RMs, a nova Carta admitiu outras categorias de organização regional,
der a uma porção definida institucionalmente, independentemente de ser ou não como as "aglomerações urbanas" e as "microrregiões". Mantendo e adequando
polarizada por uma metrópole. os objetivos da etapa anterior, as unidades criadas deveriam integrar a organiza-
ção, o planejamento e a execução de "funções públicas de interesse comum".
Conforme Davidovich (2004), as nove RMs2 institucionalizadas pelas leis
federais 14 e 20173 - representativas de uma primeira etapa no processo de ins- A absorção legal do termo região metropolitana e a materialização pelos
titucionalização - foram concebidas no âmbito de um projeto de desenvolvimen- estados da faculdade constitucional de forma indiscriminada esvaziou de conteú-
to nacional. Estabelecidas tecnicamente, tiveram seus recortes definidos a partir do o conceito consagrado, na sua correspondência ao fato metropolitano.
da idéia de pólos de desenvolvimento, em seminário realizado em Recife, em Desde então, outras 20 RMs3 foram institucionalizadas por legislações esta-
1966, numa iniciativa do Escritório de Pesquisa Econômica Avançada, que pre- duais, com finalidade, composição e limites determinados nas respectivas leis. Na
cedeu o atual Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). maioria dos casos, essas unidades consideraram áreas que se consolidaram como
espaços de crescimento e ocupação contínuos nas últimas décadas, polarizados por
(... ) esse importante evento integrou-se, decerto, no debate a respeito outras capitais de estados ou centros regionais. Algumas das leis estaduais, além de
das grandes aglomerações urbanas que se desenvolviam no âmbito um recorte principal, tido como metropolitano, regulamentam áreas limítrofes como
mundial e que constituiu um eixo do congresso promovido pelas Na- passíveis de relativa interação com esse conjunto. É o caso de "área de expansão
ções Unidas, em Estocolmo, na Suécia, em 1961. metropolitana", nas legislações do Estado de Santa Catarina; "colar metropolita-
no", nas do Estado de Minas Gerais; e "região de desenvolvimento integrado" , na
A criação dessas entidades constituiu uma estratégia do regime de Goiás. Apenas o Estado do Rio Grande do Sul instituiu aglomerações urbanas.
autoritário, como suporte a uma geopolítica de integração do
Foram criadas ainda três regiões integradas de desenvolvimento (RJDE):
território nacional e de desenvolvimento econômico, com res-
Distrito Federal e entorno, institucionalizada em 1998, incorporando municípios
paldo de uma sociedade dominantemente urbana. Partia-se da
dos estados de Goiás e de Minas Gerais, além do DF, Teresinaffimon e Petrolina/
premissa de que o conjunto hierarquizado de cidades, funcio-
Juazeiro, respectivamente nas divisas dos estados de Piauí/Maranhão e Pernam-
nalmente interdependentes, representava um recurso básico
buco/Bahia. Sua institucionalização é de competência da União por envolver
para atender à realização de metas comuns e a princípios de
municípios de mais de uma unidade federativa.4
equilíbrio do sistema. (Davidovich, 2004, p. 198)
No âmbito da implementação de políticas de cunho metropolitano, essas
fases tiveram correspondência a períodos nos quais a União, primeiramente, cen-
A legislação que as instituiu dispôs como objetivo a realização de serviços tralizou a regulação e o financiamento e, posteriormente, descentralizou recursos
comuns de interesse metropolitano, de modo a constituir unidades de planeja-
mento, organizando-as sob um arcabouço-padrão estruturado em dois canse-
3
Aracaju, Baixada Santista, Campinas, Carbonífera Catarinense, Florianópolis, Foz do Itajaí, Goiâ-
nia, Imperatriz, João Pessoa, Londrina, Macapá, Maceió, Maringá, Natal, Norte/Nordeste Catarinen-
2
Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. se, São Luís, Tubarão, Vale do Aço, Vale do ltajaí e Vitória.
•As RIDES estão previstas nos artigos da Constituição Federal: 21, inciso IX; 43; e 48, inciso IV.
108 · Rosa Moura P LANEJAM ENTO UHDANO NO 8 HASIL: TR/l)~TÓlllA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 109

e competências à esfera municipal, porém mantendo a competência da ação regio- politanos, em consonância ao entendimento conceituai anteriormente apontado,
nal nas mãos dos estados federados. Na primeira fase, a União dispunha recursos, identificou 15 unidades em território nacional passíveis de serem assim conside-
particularmente, para as áreas de saneamento, sistema viário e transportes urba- radas.5 Entre essas, situa-se Manaus, caso singular em que o fenômeno restringe-
nos, cabendo aos estados a responsabilidade formal pelas políticas, em detrimento se aos domínios de um único município.
dos municípios. Promulgada a Constituição de 1988, o chamado "neolocalismo" A identificação das unidades efetivamente metropolitanas se fez com ba5e no
fez prevalecer retórica municipalista, porém, sem a conquista da eficácia pretendi- pressuposto de que a natureza dessas aglomerações está associada a níveis eleva- lo

da na proposição ou implementação de políticas. dos de concentração de população e atividades, particularmente as de maior com- ,i
Azevedo e Guia (2004) identificam uma terceira fase , que se inicia nos plexidade, ao exercício da centralidade que transcende a região, medido por fluxos
anos 1990 e inaugura um processo de associações supramunicipais, assim como que se dirigem à metrópole e à oferta de bens e serviços mais raros e avançados,
formação de redes nacionais e agências de vocação urbana. Davidovich (2004) característicos da "nova economia". Portanto, os indicadores selecionados para
agrega a essa idéia às perspectivas de articulações das metrópoles em redes inter- esta definição procuraram espelhar tais condições.6 Esse exercício, que classificou
nacionais, atendendo a interesses contemporâneos do grande capital, particular- as unidades em seis categorias considerou o desempenho do conjunto da unidade
mente o financeiro. como um todo e não apenas o da cidade principal, como se deu em outras impor-
Referindo-se a prenúncios da retomada do tema metropolitano no Brasil, Da- tantes classificações disponíveis e comparáveis (IPEA, 2002).
vidovich (2004) considera que a "volta" das metrópoles não se restringiu à agenda Entre as unidades analisadas, a RM de São Paulo apresentou resultados
dos países desenvolvidos, mas passou a compor a agenda de política urbana do mais expressivos em todos os indicadores, colocando-se isoladamente na catego-
Banco Mundial, que passa a focalizar a metrópole "como motor do crescimento eco- ria 1 da classificação. Dos indicadores considerados, destaca-se sua participação
nômico, não mais estigmatizada como uma expressão de patologia urbana" (p. 201). entre os mais representativos da condição de metrópole: embora com 10,5% do
Tal retomada deveria apoiar debates e medidas atinentes à dinâmica de produção do total da população do país estimada para 2004 (IBGE), seus municípios concen-
espaço, que se particulariza no aumento do número de concentrações urbanas, travam 39% do movimento das operações bancárias e financeiras (Ministério da
"acarretando desafios novos para a gestão" (Davidovich, 2004, p. 201 ). Fazenda, 2003), 29,6% dos empregos em atividades consideradas de ponta na
economia (Ministério do Trabalho e Emprego, 2002) e 178 (ou 35,6%) das 500
maiores empresas do país, segundo a revista Exame, 2004 (Gráfico 1). Chama a
Impropriedade conceituai e heterogeneidade entre RMs atenção, no caso da análise fatorial, a enorme distância que separa as RMs de
São Paulo e do Rio de Janeiro, com diferença entre elas representando mais da
Diferentes legislações criaram unidades regionais também bastante distin- metade da amplitude da escala (Observatório das Metrópoles, 2005).
tas e, até certo ponto, incomparáveis, mas que reproduzem um padrão de ocu-
pação similar, que se particulariza por transcender limites político-administrati-
vos, descrevendo manchas contínuas assentadas sobre municípios autônomos.
A delimitação dessas unidades não expressa contornos conexos ao fato urbano
das espacialidades de aglomeração sobre as quais incidem e nem sequer con-
fere aderência à precisão conceituai que identificaria a unidade metropolitana,
a partir do padrão funcional, diante das demais categorias disponíveis na lei para
classificação das unidades regionais.
Ferindo o conceito, a adoção genérica da denominação "região metropoli-
tana" leva a supor que o legislador, sob pressão de lideranças municipais, tenha
acreditado que a pré-definição desse formato induziria um processo de metropo- s Considerou um ~iverso de 37 unidades, selecionadas a partir dos espaços urbanos identificados
lização. Ou que a institucionalidade viabilizaria que um conjunto de municípios por Castello Branco (2003). Cada unidade passou a abarcar em seus limites os município5 das áreas
oficialmente instituídas enquanto RMs ou RIDEs.
viesse alçar o status metropolitano. 6 A pesquisa restringiu-se a indicadores disponíveis para todo o território nacional, segundo os ,mes-

A pesquisa do Observatório das Metrópoles (2005) , operacionalizando mos critérios de coleta. Diante da impossibilidade de obter todas as Informações para um unlco
período de referência, foi adotada a Informação mais recente (2000 a 2004). O tratamento das Infor-
indicadores que expressam condições consideradas próprias de perfis metro- mações para as classificações deu-se por análise fatorial e somatórias ponderadas.
110 · Rosa Moura
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSl'ECllVAS · 111

Gráfico 1. - Participação dos indicadores por categoria de unidades Horizonte tem o terceiro maior volume populacional entre as RMs brasileiras, supe-
metropohtanas no total do Brasil
rando os 5,3 milhões de habitantes (as demais da categoria possuem entre 3 e 4
milhões); a RIDE do Distrito Federal e entorno, centrada em Brasília, realizava o ter-
--, ceiro maior movimento de operações bancárias e financeiras entre todas as unida-
População
Estimada (2004)
_I des, representando uma vez e meia a movimentação subseqüente, realizada pela RM
de Belo Horizonte; esta RM tinha o mais elevado número de empregos em atividades
de ponta (92,7 mil), seguida pela RM de Porto Alegre (81 mil); situação que se inver-
Empregos te quanto ao número de empresas entre as 500 maiores do Brasil, estando 31 em
Atividade Ponta •São Paulo (cat.1) Porto Alegre e 21 em Belo Horizonte.
(2002) •Rio de Janeiro (cal. 2)
Manaus e as RMs de Campinas, Vitória, Goiânia, Belém e Florianópolis
• Categoria 3 (7 un.)
Categoria 4 (6 un.)
foram incluídas na categoria 4, sendo que a RM de Campinas apresenta valores
BR demais município s compatíveis aos do conjunto anterior, diferenciando-se das unidades daquele
Mov. Bancário
Financeiro (2003) agrupamento e colocando-se em posição inferior nos índices, por não exercer a
função de capital político-administrativa. Juntas, respondiam por 6% da popula-
ção, 4,5% das operações bancárias e financeiras, 8,6% dos empregos em ativida-
des de ponta e 57 das empresas entre as 500 maiores do Brasil. A RM de Campi-
Empresas entre as nas, a mais populosa, com mais de 2 5 milhões de habitantes, realizava duas vezes
500 maiores (2004)
e meia mais que o total das operações bancárias e financeiras da unidade seguinte,
a RM de Vitória, e detinha quase o dobro do número de empregos em atividades
0% 20% 40%
de ponta que Manaus, na segunda posição do conjunto (respectivamente, 75,7
60% 80% 100%
mil e 38,8 mil) ; ambas ficam muito próximas no que se refere à localização das
empresas, Manaus com 18 e Campinas com 17 das maiores do Brasil. Exceto
Fonte: IBGE, BC, Reuista Exame, Observatório das Metrópoles, 2005 . Manaus, que é uma metrópole que não configura aglomeração com outros mu-
nicípios, e Belém, institucionalizada enquanto RM já nos anos 1970; as demais
unidades desta categoria são regiões metropolitanas criadas mais recentemente,
por legislações estaduais.
A RM do Rio.de Janeiro também se colocou isoladamente na categoria 2 , Essas quatro categorias encerram o conjunto de 15 unidades que se distin-
co~ a segunda maior pontuação em todos os indicadores. Em seus municípios, guem por configurar perfil metropolitano. Outras duas categorias enquadram as
e~hm~~a-se ~ pres~nça ~e 6,2% da população do Brasil, 9,5% das operações demais RMs institucionalizadas, assim como capitais de estados e suas aglomera-
bancarias e financeiras e igual proporção para empregos em atividades de pon- ções no entorno.
ta, e ~O- das 500 m~iores empresas do país. Enfatiza-se o elevado desnível entre
a posiçao ~esta unidade e a de São Paulo, bem como em relação às unidades
da categoria subseqüente. Limites formais e diferenças internas nas unidades
. Set~ RMs. in~uíram-se na categoria 3, por apresentarem, com grande freqüên-
cia, os ~a10~es md1cadores do conjunto restante. São regiões metropolitanas criadas Afrontando o espaço aglomerado, a delimitação oficial das RMs em muito
pela leg1slaçao federal nos anos 1970, além da RI.DE d o Dº1str·t Fi d 1 difere da espacialidade resultante do fato urbano da aglomeração, sendo este quase
1 o e era e entorno.
Subagru~am-se nesta categoria as RMs de Belo Horizonte e Porto Alegre, e a RIDE sempre menor que o limite legal constituído. Buscando identificar os municípios mais
de Brasíha, com ~elativo distanciamento das RMs de Curitiba, Salvador, Recife e afetos à dinâmica da aglomeração, a mesma pesquisa do Observatório das Metrópo-
Fo~eza. N~ con1un!º· a categoria respondia por 14,3% da população estimada, les (2005) analisou indicadores de crescimento da população, densidade demográfica
21 ro ~ª. movimentaçao das operações bancárias e financeiras, 19,7% dos empregos distrital, fluxos de deslocamentos pendulares, características ocupacionais da popula-
em atividades de ponta e 102 das 500 maiores empresas do país. A RM de Belo ção (IBGE, 2000), assim como geração do PIB (2003), por espelharem a dinâmica da
112 · Rosa Moura f't.ANE)AMENTO URllANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 113

urbanização/metropolização. Além desses, como funções imprescindíveis à articulação Gráfico 2 - Distribuição dos municípios, população, PIB e pobres
da unidade com os circuitos nacionais e internacionais de produção e circulação, Segundo níveis de integração à dinâmica Metropolitana
considerou a presença de portos e aeroportos, muitas vezes situados em municípios
do entorno dos pólos, como que numa extensão física desses.
Nº Pobres (2000)
Mesmo quando todo o conjunto de municípios incorporados à unidade
regional está articulado à dinâmica da aglomeração, há diferenças entre eles que
podem ser captadas por esses indicadores, que dão pistas quanto ao papel que
PIB (2003)
cada um assume. Considerando o conjunto de municípios que compõem as RMs
•Pólos
institucionalizadas, RIDEs e aglomerações urbanas no entorno de capitais de es- •Muito Afia
tados, incluídas nas seis categorias de classes, a pesquisa aponta, além do pólo, População Estimada • Alia
cinco níveis de integração à dinâmica das respectivas aglomerações. (2004) r- Média
<J Baixü
Entre os municípios, incluindo os pólos das unidades, apenas 39,2% podem
o Muito Baixa
ser considerado com elevada integração à dinâmica das respectivas aglomerações Movimento Pendular
(níveis alto e muito alto). Outros 20,8% apresentam nível médio de integração. Com (2000)

níveis baixo e muito baixo estão os demais 40% dos municípios.


Quanto mais elevado o nível de integração, maior é a densidade demográ- % Municípios
fica distrital e a taxa.de crescimento populacional entre 1991-2000, e mais volta-
do a atividades urbanas é o perfil das categorias ocupacionais.
0% 20% 40% 60% 80% 100%
Os pólos concentravam 57% tanto da população estimada para 2004,
quanto do PIB do conjunto; ao mesmo tempo, abrigavam 48% dos pobres, num
total de 7, 7 milhões de pessoas com rendimento domiciliar mensal per capita infe- Fonte: !BGE, Observatório das Metrópoles
rior a l/2 salário-mínimo em 2000 (Gráfico 2). Os municípios com níveis de integra-
ção alto e muito alto, num total de 148, respondiam por pouco mais de 34% do
PIB e da população, e por 39% dos pobres (ou 6,3 milhões de pessoas) - propor-
ção relativamente superior aos demais indicadores, que a verificada nos pólos. Em proporções inferiores, mas comportamento similar, os municípios com ní-
vel médio de integração possuíam 5,3% da população do conjunto, geravam 63 do
PIB e abrigavam 7% dos pobres. A participação dos demais municípios (188), com
níveis baixo e muito baixo de integração, no total da população e do PIB, é bem
pouco expressiva, porém complementar à dinâmica do aglomerado. Não deve ser
menosprezada a presença de mais de 1 milhão de pobres distribuídos entre eles.
A informação mais reveladora de uma dinâmica mais intensa entre os mu-
nicípios é o movimento pendular. Em 2000, no conjunto analisado, 4,9 milhões
de pessoas deixavam o município de residência para estudo ou trabalho em outro
município. Delas, 80% partiam de municípios com níveis de integração considera-
dos alto e muito alto. Arrisca-se dizer que esse movimento sugere trocas entre os
municípios desses níveis e, principalmente, desses com os pólos, como confirmam
matrizes origem-destino elaboradas para algumas unidades da federação. Partia dos
pólos um número também expressivo de pessoas, 559 milhões, perfazendo 11,4%
do dotai do movimento no conjunto, indicando que os entornas vêm demonstrando
importância na realização de atividades, e que se processa um sistema denso de
114 · Rosa Moura P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: l"RAJETÓIUA, AVANÇOS E l'~RSPEClWAS · 115

trocas no núcleo principal das aglomerações. Os pouco mais de 8% restantes do efeitos desse conflito, nem sempre passíveis de serem solucionados por alternativas
movimento deixavam municípios de níveis médio, baixo e muito baixo de integra- de gestão que desconsiderem as origens estruturais dos problemas.
ção, sinalizando participação incipiente na dinâmica da aglomeração.
Evidentemente, boas práticas de governança podem minimizar a perversi-
Diante dessa heterogeneidade e diversidade de comportamentos entre mu- dade de seus efeitos. Tais práticas esbarram na problemática da escala espacial
nicípios inseridos numa mesma unidade, com níveis tão distintos de integração à da realização dos processos recentes, que não se inserem na compreensão de
dinámica da aglomeração, ainda é difícil avaliar se aqueles identificados como ordens consagradas. Desde a interligação dos espaços por um universo de rela-
com níveis baixo e muito baixo de integração resultam em presença positiva ou ções em redes, até o desempenho simultâneo de funções locais, regionais, na-
negativa para o município ou para o conjunto. Pode-se antecipar que, dada a cionais e globais, o exercício da gestão deve, antes de tudo, considerar uma
inexistência de projetos efetivos de gestão das unidades, essa presença é indiferen- dimensão transescalar nas abordagens analíticas e na construção de estratégias
te. No momento em que houver preocupação quanto à organização de práticas políticas (Swyngedouw, 1997; Ribeiro; Dias, 2001; Vainer, 2002; Brandão,
para consolidar um processo conjunto de gestão, esse amplo espectro de municí- 2003). Coerente a esse entendimento, Brandão (2006) recomenda:
pios vai merecer um cuidado especial, já que cada recorte tem possibilidades, ca-
pacidades e necessidades distintas. É preciso analisar as determinações dos problemas metropolitanos,
Por ora, mesmo que as RMs ou RIDEs ainda não tenham efetivado proces- diagnosticar sua escala específica e explicitar os conflitos de interesse
sos articulados de gestão que respondam aos objetivos das disposições constitucio- postos neste contexto e construir coletivamente a contratualização das
nais, o simples fato de sua institucionalização ter provocado o debate, dando maior políticas públicas. Esses contratos devem articular horizontalmente os
visibilidade aos complexos espaços aglomerados, já indica alguma possibilidade agentes políticos de determinada escala. Tratar de forma criativa esca-
de mudança, ao menos no plano do reconhecimento da problemática. las, níveis e esferas, lançando mão de variados instrumentos, politizando
as relações, construindo cidadania e buscando combater as coalizões
conservadoras, através de uma contra-hegemonia pelo desenvolvimen-
Gestão: insucessos e perspectivas to. Vencer as competências superpostas, rediscutir atribuições, evitar a
dispersão da autoridade, estar equipado para reagir, isto é, ter capaci-
Heterogêneas, poderosas, desiguais, o fato comum é que a todas as aglo- dade de resposta e impugnação às forças polític~s que querem a pere-
merações consideradas, independentemente de serem metropolitanas, se postula nização do sub-desenvolvimento. (p. 5-6)
o desafio do planejamento e gestão. Desafio inadiável para que se viabilize o lado
positivo de um inerente potencial contido, que pode se arremeter na direção de Seguramente, aí está sintetizada a essência das limitações e possibilida-
externalidades negativas. des de sucesso da gestão metropolitana, reforçando a crença de que existem
Reflexo do modo de produção e sob efeitos de suas lógicas, os aglomerados meios de superá-las. No próprio interior dessas espacialidades, em seu imenso
metropolitanos representam para a economia, em concordância com Brandão potencial, encontram-se recursos para viabilizar o êxito das políticas públicas.
(2006), mais que um peculiar arranjo regional da estrutura de produção, com enor- Dependeriam, por suposto, da revalorização do papel do Estado na definição
me diversidade de elos de cadeias produtivas, de distribuição e consumo. São, de das estratégias de intervenção e nas negociações com os demais agentes pro-
fato, "o campo da diversificação produtiva e da diferenciação social" (p. 2) , repre- dutores do espaço metropolitano.
sentando "força social produtiva e capacidade multiplicadora e aceleradora de Das dificuldades centrais, a intervenção em uma "porção territorial dentro
dinamismos econômicos" (p. 3). Capaz de acelerar fluxos e agilizar o ritmo da da qual se distinguem várias jurisdições político-territoriais, contíguas e superpos-
acumulação de capital, a dinâmica metropolitana é "marcada pelo constante tas entre si, Estados e municípios" (Grau, 1978, p . 127) parece ser a mais reco-
alargamento, sofisticação e aprofundamento da divisão social do trabalho em nhecida. Essa observação de Grau remonta à primeira fase de institucionalização de
determinada porção territorial" (p. 3). RMs, tendo apenas se agudizado com a intensificação das relações emanadas dos
Esses espaços privilegiados da reprodução social, ao mesmo tempo, são espa- espaços aglomerados. No início dos anos 1980, numa leitura crítica às leis 14n3 e
ços conflituosos, que atraem grandes massas populacionais, mas carecem da capaci- 20n4, Grau (1983) apontava aspectos que necessitavam reparos, tecia severas criti-
dade ele geração de postos de trabalho suficientes para sua absorção nos circuitos cas à inadequação e inviabilidade operacional das soluções adotadas pelas leis e
modernos da economia. Muito do que se vive da "crise" metropolitana resulta dos encaminhava à reforma constitucional a compatibilização do estabelecimento das
116 · Rosa Moura P t.ANEJAME1'ff0 URO/\NO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIV/\S · 117

r:_giões metropolitanas ao princípio da autonomia municipal, assim como a presta- decisões. Estratégias que se inviabilizam na ausência de uma política nacional
çao dos serviços de interesse comum apenas em regimes de associação intermunici- metropolitana, apoiada em fontes permanentes de recursos. Mais que isso, sobre-
p~ e a indispensável instituição de um poder normativo metropolitano, definidor de vivem aos trances, face à adiada necessidade de uma repactuação da Federação
disposições referidas ao desenvolvimento e à prestação de serviços comuns. em torno da questão metropolitana.
A crítica permanece recorrente, embora o momento para incorporação das Ribeiro (2004, p . 12) argumenta que os governos vêm se
sugestões já esteja u ltrapassado. Tanto para as RMs instituídas nos anos 1970
quanto para as pós-1988, permanecem entraves para a consolidação de modelo~ eximindo do papel de ator público capaz de incentivar ações coopera-
operacionais capazes de responder às necessidades da gestão compartilhada. tivas. Tal papel teria importante impacto na construção de uma estraté-
Dentre eles, o fato de que as unidades regionais são reconhecidamente espaços gia de desenvolvimento metropolitano, uma vez que poderia induzir
de expressão econômica e social, porém não de direito, pois não circunscrevem ao estabelecimento de mecanismos de concertamento e negociação
territórios aptos a normatizar, decidir, ou exercer o poder - apenas uma estrutura entre os atores econômicos, sociais e públicos. Para tanto, seria impe-
meramente administrativa. Situam-se num hiato entre a autonomia do município rioso superar a concepção localista de políticas públicas inerentes aos
- reforçada na Constituição de 1988 - e a competência da União quanto à gestão modelos de planejamento hoje em moda na sociedade brasileira, tais
para o desenvolvimento. como o plano estratégico. Ao mesmo tempo, o quadro de fragmenta-
ção institucional também resulta da ineficiência de políticas federais
Pactos social e territorial, obrigatórios e urgentes, esbarram na fragilidade
do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de hegemo- de incentivos seletivos à cooperação metropolitana.
nias, de disputas pol~tico-partidárias e da forte presença dos interesses corporativos
n~es arranjos espaciais, que prejudicam a tomada de decisões de âmbito regional. Cabe, assim , enfrentar a situação paradoxal da sociedade brasileira: a rele-
A dispersão de agências e estruturas setoriais responsáveis pelo planejamento e exe- vância social e econômica das metrópoles frente ao frágil interesse político, seja à
cução das funções públicas de interesse comum, a fragmentação governamental e a luz das insuficientes e inadequadas políticas públicas, da transformação da cida-
superposição de leis e decretos também têm dificultado, senão inviabilizado, eficácia de no /ocus da acumulação patrimonial, e na ausência de mecanismos de coope-
no planejamento e gestão. Ademais, a descentralização em curso, especialmente no ração entre esferas de governos, seja na identidade ainda em construção, na
que_ se refere às políticas sociais, desconsidera o âmbito regional, reforçando visão percepção clara da dimensão metropolitana, ou na embrionária consciência me-
estritamente local. Soluções adotadas isoladamente por municípios são muitas tropolitana, que se configuram na inexistência de pressão popular para a criação
vezes impróprias às exigências extra-municipais. e implementação de programas e políticas pertinentes, relegando o tema a uma
posição secundária na ordem de prioridades do governo.
A ênfase localista, como se a escala local tivesse poderes ilimitados (Vainer,
2002; Brandão, 2003) , negligenciando as questões estruturais do país e região e Reconhecer, assumir e gerir democraticamente a metrópole, como um es-
subestimando os limites colocados à regulação local, não só estimula essas práticas paço complexo e singular. Esse é o desafio, aparentemente intangível, dado o
co'.110 transfere alternativas locais e discursos ao âmbito dos espaços urbano-regio- quadro de segregação, violência, segmentação, caos e agressão ambiental, usual-
nais, numa reprodução indevida à densidade de relações destes. Verificam-se a mente realçado como representativo dos espaços metropolitanos, sobrepondo-se
incorporação da retórica e a definição de medidas comuns ao planejamento estra- à potencialidade criadora, inovativa e política subjacente aos mesmos.
~égic? de cidad,;s. simplesmente reproduzidos para o ambiente das aglomerações,
msendas nos planos metropolitanos", sem qualquer menção, até mesmo, a Referências
compatibilizá-lo com os Planos Diretores Municipais. ASCHER, François. Métapolis ou /'auenir des uil/es. Paris: Odile Jacob, 1995.
Outra ênfase recai nos movimentos "recentralizadores", organizados na AZEVEDO, Sérgio de; GUIA, Virgínia R. dos M. Os dilemas institucionais da gestão metro-
tentativa de contemplar as limitações do poder municipal em responder a ques- politana no Brasil. ln: RIBEIRO, L.C.Q. (Org.) . Metrópoles. Entre a coesão e a fragmenta-
tões que ultrapassam os limites político-administrativos dos municípios (Rolnik; ção, a cooperação e o conflito. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo; Rio de Ja-
neiro, FASE - Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional, Observatório
Somekh, 2000). No entanto, iniciativas dessa ordem são enfraquecidas senão das Metrópoles, 2004.
orientadas por estratégias regionais de desenvolvimento, que articulem a ação
BRANDÃO, Carlos Antonio. O modo trans-escalar de análise e de intervenção pública:
dos organismos institucionais e os recursos necessários à implementação das suas notas para um manifesto anti-localista. ln: X ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR.
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• OS U l'URSl'ECTIVAS .
P LANEJAME.,'TO URBANO NO B RASIL: Ttv.JhTÓRIA, /\V/\NÇ . .
119
118 · Rosa Moura

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PARTE 2 - Avanços e Limites
Reforma urbana e reforma jurídica no
Brasil: duas questões para reflexão
Edésio Fernandes

Introdução

Este texto discute a necessidade de uma avaliação crítica mais articulada,


no contexto dos estudos urbanos, acerca da ordem jurídica que dá suporte ao
planejamento urbano no Brasil. Em seguida a uma breve reflexão sobre os des-
compassas existentes entre diversos institutos e instituições jurídicas, por um lado,
e as políticas públicas e processos socioeconómicos por ele regulados, por outro,
duas questões principais serão discutidas, vale dizer, a natureza do instituto jurí-
dico "plano urbanístico" e os problemas da instituição jurídica "Municípios".
Como conclusão, será argumentado que a revisão de tais institutos e instituições
é crucial para que a reforma do Direito, que por sua vez é condição essencial para
a reforma urbana, possa avançar no país.

Em que pese o progresso da compreensão interdisciplinar sobre a questão
urbana no Brasil, uma importante dimensão que ainda precisa ser desenvolvida
diz respeito à necessidade de problematização da lei: é fundamental que se en-
tenda que a discussão sobre o Direito é tanto um problema do conhecimento
acadêmico, quanto um problema da ação sociopolítica, e como tal, condição
necessária para o aprimoramento das políticas públicas urbanas e para o avanço
da mobilização social. Em especial, o conhecimento acadêmico, crítico e apro-
fundado, acerca da ordem jurídico-urbanística é essencial para dar subsídios às
propostas de reforma legislativa.
Nesse sentido, da perspectiva acadêmica, esforços mais consistentes têm
de ser feitos com vistas a aproximar os estudos urbanos dos estudos jurídicos.
Tradicionalmente, os estudos jurídicos não têm tratado das questões da cidade
de maneira adequada, o que se reflete no próprio currículo obsoleto das Facul-
dades de Direito. De qualquer forma, já há uma tradição incipiente de estudos
jurídicos sobre a cidade, que bebe cada vez mais na fonte dos estudos urbanos.1
Contudo, o outro lado dessa rua de mão dupla não está sendo devidamente
ocupado, no sentido de que a tradição de estudos urbanos no Brasil, embora

1
Uma tradição de estudos jurídicos tem surgido principalmente a partir das contribuições de um
grupo de juristas e não-juristas comprometidos com o ideário da reforma urbana, membros do IBDU
- Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e que têm se encontrado nos Congressos Brasileiros de
Direito Urbanístico promovidos desde 2000; eu mesmo tenho organizado publicações com diversas
dessas contribuições; veja Alfonsin e Fernandes (2004); Fernandes (l 998a; l 998b; 2001 ); Fernandes
e Alfonsin (2003a; 2003b; 2006); e Fernandes e Rugani (2002) .
124 · Edésio Fernandes P U.NEJAMENTO URllANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTTVAS • 125

muito mais consolidada e mais rica, ainda não está dialogando de maneira siste- que os utilizam: dentre muitos outros exemplos possíveis, a idéia do "tombamen-
mática com essa tradição incipiente de estudos jurídicos sobre a cidade. 2 to" enquanto instituto jurídico por excelência para a promoção da proteção do
patrimônio cultural também requer uma reflexão crítica; "área de preservação
Um deslocamento conceituai é fundamental para que essa aproximação en-
permanente" e o objetivo de preservação ambiental; "terreno de marinha" e os
tre estudos urbanos e jurídicos se dê: é preciso ir além da visão instrumental que
objetivos de gerenciamento costeiro e/ou segurança nacional; "patrimônio públi-
tradicionalmente se tem do Direito, isto é, da visão dominante da lei meramente
co" e os objetivos das políticas urbanas de reconhecimento de direitos sociais de
como "instrumento técnicd' e fonte de resolução de conflitos e problemas, quando
moradia em terras públicas etc.
na verdade a ordem jurídica tem sido um dos principais fatores que têm determi-
nado muitos dos problemas urbanos, sociais e ambientais que as políticas públicas Da mesma forma , levando em conta a importância de se pensar o Direito
tentam enfrentar - começando com o fenômeno da ilegalidade urbana. Compre- não de maneira isolada, mas sempre no contexto das possibilidades concretas de
ender a própria produção da lei como um processo sociopolítico central é essencial, gestão urbana, também é verdade que com freqüência as instituições jurídicas não
o que significa sobretudo ver a lei como uma arena de conflitos e negociações onde correspondem à natureza efetiva dos processos econômicos e político-sociais que
pode se dar a construção de uma nova ordem jurídico-urbanística caracterizada pretendem regular. Dentre vários exemplos, merece destaque o da instituição jurídica
especialmente pela redefinição dos direitos de propriedade imobiliária urbana. De dos "Municípios", e o conseqüente conceito da autonomia municipal, quando a rea-
fato, da perspectiva do Direito essa é sem dúvida a principal discussão: como con- lidade da urbanização no Brasil é essencialmente metropolitana. Se já há aí um
ceber uma ordem jurídico-urbanística que dê um novo conteúdo e uma nova problema de escala, uma distância enorme no tratamento jurídico da realidade urba-
natureza aos direitos de propriedade imobiliária nas cidades.3 na, se essa discussão for estendida para a questão ambiental, então, a escala se toma
outra - no mínimo a da microbacia - , agravando ainda mais o descompasso entre
Nesse sentid~>, é imperativo compreender que qualquer reforma urbana no
essa categoria jurídica e as realidades que elas pretendem tratar.
Brasil só se fará pela via do Direito. Para tanto, é necessário ir além da posição
tradicional que opõe "direitos" a "valores" - éticos, religiosos, sociopolíticos e/ou Tais descompassos geram distorções de todo tipo, limitando o alcõ.r.ce ou
econômicos - , para construir um verdadeiro discurso de direitos. Condições básicas mesmo inviabilizando as políticas públicas, e acabam por serem determinantes
para isso já existem na ordem jurídica em vigor, resta criar uma doutrina e uma juris- do padrão histórico da urbanização brasileira - segregador, excludente, degrada-
prudência consistentes que dêem suporte à construção desse discurso de direitos. dor do meio ambiente e sobretudo cada vez mais ilegal.

Contudo, em que pesem os muitos avanços já verificados na ordem jurídico- Se não há como se fazer reforma urbana sem ser através do Direito, é cru-
urbanística, sobretudo com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 , os desafios cial entender que não há como fazer reforma urbana sem reforma do Direito,
a serem superados ainda são de várias ordens nesse esforço de aproximação entre sendo que os dois.processos tem de caminhar juntos - o que pressupõe adotar
estudos urbanos e estudos jurídicos, bem como entre leis urbanísticas e políticas pú- uma visão crítica do _Direito que compreenda a lei como um problema do conhe-
blicas urbanas, sendo que dois deles merecem especial atenção. cimento e da ação sociopolítica.

O primeiro desafio é a necessidade de se promover uma maior aproximação


entre os institutos jurídicos e os objetivos dedarados das políticas públicas e das ações Como avança~?
sociais que visam a materializá-los; o segundo é aproximar as instituições jurídicas São várias as portas de entrada para essa discussão sobre a reforma do Direito,
dos processos econômicos e político-sociais existentes que elas visam regular. mas há duas questões específicas, ainda que inter-relacionadas, que revelam com um
Nesse contexto, conforme será discutido a seguir, a idéia do "plano urbanís- vigor especial os principais dilemas, tensões e conflitos que estão em jogo.
tico" como sendo o instituto jurídico que viabilizaria políticas públicas de inclusão A primeira é a da natureza do instituto jurídico do "plano urbanístico" - ou
socioespacial, merece uma discussão profunda. Há também um descompasso "plano diretor" - face à natureza dos direitos de propriedade imobiliária na cidade,
enorme entre diversos outros institutos jurídicos e os objetivos das políticas públicas tais como reconhecidos pela ordem jurídica em vigor; a segunda diz respeito à dinâ-
mica do pacto federativo em vigor no Brasil em face das realidades e necessidades da
2
organização territorial do país. Essas são duas questões centrais que refletem proble-
Para uma discussão desse ponto, veja Fernandes (2006a); dentre os estudos urbanos que têm sis-
tematicamente dialogado com as questões jurídicas, merecem destaque as publicações de Marlcato mas jurídicos-históricos existentes desde o começo do processo de urbanização na
(1996; 2001) e Rolnik (1997) ; veja também Fernandes e Valença (2005) . década de 1930, e que ainda não foram devidamente solucionados - levando por
3 Para uma discussão acerca dos avanços e limites da nova ordem jurídico-urbanística veja Fernandes
(2006b). . '
conseguinte a uma série de distorções crônicas nas políticas urbanas.
126 · Edésio Fernandes P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TllAJ~-rÓRl/I, /IVl\NÇOS H l'ERSl'ECTIV/IS . 127

De fato, um aspecto fundamental a ser considerado para o avanço das políticas da propriedade privada, a competência jurídica para ação seria tão-somente da
urbanas no Brasil diz respeito à necessidade de uma maior compreensão da tensa União, no exercício da sua competêncla para legislar sobre Direito Civil. Muitos
relação entre, por um lado, a natureza jurídica dos direitos de propriedade imobiliária foram os questionamentos doutrinários e judlclals das primeiras leis municipais
e, por outro, a definição dos limites da intervenção do poder públíco no domínio da de zoneamento, uso, ocupação e parcelamento do solo.
propriedade - e do mercado imobiliário - através das atividades e políticas de plane- Nesse contexto jurídico ainda hostil, essa tradição incipiente de planejamen-
jamento e da legislação urbanística. Há várias décadas tem se verificado um embate to urbano que vai se desenvolver em algumas poucas cidades, e que tem sido
entre dois paradigmas jurídicos distintos: o paradigma ainda hegemônico do legalis- descrita na literatura como funcionalista, envolvia um tipo de planejamento regula-
mo liberal, baseado no ideário do Código Civil e na concepção individualista, mer- tório, excessivamente compreensivo, e sobretudo se dava dentro da alçada do po-
cantilista e patrimonialista da propriedade, e uma tentativa de ruptura dessa visão der discricionário do poder público. Essa primeira geração de planos urbanísticos
civilista tradicional através da afirmação do princípio constitucional, da ordem do também foi acusada de tecnocrática, no sentido de que tendia a afirmar padrões
direito público, da função socioambiental da propriedade e da cidade.4 técnicos ideais de organização territorial sem levar em conta a dinâmica das forcas
Da mesma forma, existe um outro embate tradicional no Brasil quanto à em jogo; com muita freqüência, esses padrões também implícita ou explicitamente
competência jurídica para intervenção no domínio da propriedade privada, qual- eram "anti-mercado", ou então meramente reativos às dinâmicas dos mercados
quer que seja o escopo dessa intervenção: quem é que pode agir nesse campo, imobiliários, sem que fossem embasados em uma devida compreensão de como se
formulando políticas e programas e aprovando leis? O reconhecimento do lugar dá sua apropriação pelos mercados formais e informais, e nem de como as leis
central do Município na formulação das políticas urbanas é uma realidade recen- urbanísticas impactam na fc;irrnação de preços de terrenos e construções.
te na história da política urbana no Brasil, mas, se hoje já há um certo consenso De fato, um aspecto crucial e irônico nesta discussão diz respeito ao fato de
quanto a isso, ainda há uma série de questionamentos a serem enfrentados. que, a despeito da resistência jurídica conservadora de base civilista, ou por isso
mesmo, essa primeira geração de planos territoriais urbanos no Brasil se recusou
a enfrentar de frente a questão do direito de propriedade imobiliária: tentava-se
O Plano Urbanístico e a questão da propriedade privada
fazer planejamento urbano sem pretender interferir significativamente na estrutu-
ra fundiária. A base jurídica para tanto era a noção, do Direito Administrativo, de
De modo geral, pode-se dizer que até a década de 1980, na prevalência do
que "função social da propriedade" {princípio repetido em to,das as Constituições
paradigma civilista do legalismo liberal e da noção da propriedade individualista, o
Federais desde 1934) se reduz às "limitações" e/ou "restrições" administrativas
lugar do planejamento urbano no contexto das políticas públicas era muito restrito.
do poder público ao uso da propriedade - e como tal externas ao direito, cujo
Em que pese a existência de planos urbanísticos importantes em algumas cidades
conteúdo de aproveitamento econômico seria determinado pelos interesses do
como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro desde o século XIX, somente a
particular - e no exercício do poder de polícia próprio da administração pública.
partir da década de 1950 e sobretudo da década de 1960 as principais cidades bra-
Assim, o planejamento urbano nessa tradição brasileira promoveu uma ampla e
sileiras começaram a adotar uma tradição mais sistemática de planejamento urbano:
generosa outorga gratuita de usos, taxas de ocupação e direitos de construir aos
para além das tradicionais leis de perímetros e de códigos de obras e posturas, surgi-
proprietários de imóveis sem previsão de qualquer forma de recuperação para as
ram as primeiras experiências de leis municipais de zoneamento, uso, ocupação e
comunidades ou para o poder público dos valores fundiários gerados, determi-
parcelamento do solo. Contudo, no contexto nacional a noção de planejamento ur-
nando assim todo um processo de alta valorização imobiliária e especulação.
bano ainda hoje é marginal: antes da recente mobilização no sentido da aprovação
de planos diretores municipais por determinação do Estatuto da Cidade, pouquíssi- O plano urbanístico acabou por determinar o lugar dos pobres na cidade,
mos Municípios brasileiros tinham leis urbanísticas próprias. que é cada vez mais o lugar não regulado, o lugar em que o mercado não pode
agir, correspondendo cada vez mais às áreas de preservação ambiental, às áreas
É importante destacar que, além da forte resistência decorrente do para-
públicas e às áreas totalmente inadequadas à presença humana. Não havendo
digma civilista hegemônico, parte da dificuldade inicial na implementação do
qualquer tentativa de enfrentamento do cerne da questão da propriedade imobi-
planejamento urbano municipal residia na interpretação então dominante no
liária e da estrutura fundiária, o plano urbanístico acabava sendo apropriado
sentido de que, como os planos e as leis urbanísticas incidem sobre o domínio
pelas forças do mercado e servindo como mais um processo poderoso de gera-
ção de novas formas de acumulação de capital nas cidades.
4
Para uma análise desse embate de paradigmas jurídicos, veja Ferna ndes (2002a).
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECnVAS • 129
128 · Edésio Fernandes

Tratava-se assim de uma tradição de planejamento elitista, com pouquíssi- Além disso, e por isso mesmo, indo além da noção original do plano urba-
ma consideração das realidades socioeconômicas de acesso ao solo urbano, for- nfstico como elemento da ação discricionária do poder público, a nova ordem
mação de preços de imóveis e produção da moradia na cidade; burocrática, no jurídico-urbanística impôs a obrigatoriedade de formulação e aprovação d~ ~fa­
sentido de que aiava um cipoal de exigências, procedimentos e licenças de todo no Diretor, que inclusive corresponde a um direito coletivo à ordem ~bamstic:_a,
tipo, sem levar em conta a própria capacidade de ação dos Municípios e as con- um interesse difuso que pode ser pleiteado perante os tribunais atraves da açao
dições efetivas de cumprimento, monitoramento, fiscalização e repressão das leis; civil pública e outros procedimentos judiciais.
e sobretudo autoritária, já que envolvia pouca participação dos diversos setores Muitas outras mudanças foram introduzidas recentemente, sendo que há
envolvidos e afetados na elaboração dos planos, e sem previsão de formas de todo um novo rol de direitos coletivos especialmente à preservação ambiental e
participação na execução dos planos aprovados. De fato, mesmo nos poucos à moradia nas cidades; a separação entre o direito de construir e o direito de
casos em que havia participação dos diferentes setores sociais na formulação do propriedade; o princípio da recuperação das mais-valias urbanísticas gerad~
planejamento, uma vez aprovada a lei do plano, a execução ficava tão-somente pelo investimento público, seja por obras e serviços, seja por mudanças nas leis
a cargo da administração pública, como se se tratasse de uma instancia mera- urbanísticas; o princípio da gestão democrática das cidades, dentre outros. ~a
mente técnica, sem previsão de processos de controle social. proposta paradigmática é fundamentalmente outra em relação àquela concepçao
Essa combinação entre critérios técnicos urbanísticos idealizados; um rol que embasou a primeira geração de planejamento urbano no Brasil.
excessivo de exigências e obrigações impostas aos promotores imobiliários e ou- Mas, em que medida que essas novas questões e os novos princípios têm
tros agentes sociais; procedimentos complexos, demorados e custosos para as sido realmente materializados nas políticas públicas que caracterizam essa segun-
próprias administrações municipais, seja pelo tempo exigido ou pelos recursos da geração do planejamento urbano brasileiro? Embora seja ainda cedo para se
envolvidos; falta de flexibilidade, por exemplo, para a urbanização progressiva fazer avaliações definitivas, já que o processo de elaboração dos planos diretores
das áreas, ou na construção dos equipamentos; o tipo de garantias exigidas; além municipais está em pleno andamento, tendo acompanhado diversos desses proces-
da falta de processos de controle social efetivos, fizeram com que, longe de pro- sos por todo 0 território nacional, vou me permitir afirmar que, ainda que sejam
mover as proclamadas inclusão socioespacial, eficiência econômica, preservação muitos os avanços, há, contudo, uma série de problemas fundamentais que não
ambiental e racionalidade administrativa, o plano urbanístico no Brasil, e isso é estão sendo enfrentados pela segunda geração de planos urbanísticos.
bem uma regra até a década de 1980, na verdade contribuiu para agravar os Há avanços inegáveis quanto à questão da gestão democrática, que tem
processos de exclusão social, segregação territorial, degradação ambiental e so- aumentado de maneira significativa, ainda que se deva dizer que a qualidade
bretudo para estimular processos de desenvolvimento urbano informal. política dos processos de participação varia muito pelo país, naturalmente refle-
O outro paradigma que se opõe a essa visão inicial do plano urbanístico foi tindo a heterogeneidade de situações existentes. De qualquer forma, há avanços
introduzido na ordem jurídica pela Constituição Federal de 1988 e posteriormen- enormes em relação aos planos anteriores, inclusive com a anulação judicial de
te consolidado pelo Estatuto da Cidade de 2001, mas deve-se ressaltar que esse planos diretores em cuja formulação não houve participação popular efetiva.
novo marco conceituai ainda não foi devidamente compreendido pelos urbanis- Há avanços consideráveis também no sentido de se afirmar o caráter com-
tas e mesmo pelos juristas: na nova ordem jurídica; o plano urbanístico não é pulsório do planejamento urbano e a idéia do urbanismo como função pública.
tão-somente um instrumento técnico de ordenamento territorial, já que é o plano A Campanha dos Planos Diretores Participativos do Ministério das Cidades e do
urbanístico - o plano diretor - que define o que é o direito de propriedade imo- Conselho Nacional das Cidades muito contribuiu para materializar a obrigatorie-
biliária na ordem jurídica brasileira. dade legal de elaboração dessa lei-marco do ordenamento territorial: de acordo
Na nova ordem jurídico-urbanística, o direito de propriedade é um direito com o Ministério das Cidades, dos 1.681 municípios legalmente obrigados a
vazio, cujo conteúdo vai ser dado pelo plano urbanístico. Essa importância jurídi- aprovar planos diretores, no começo de 2007 planos haviam sido aprovados em
ca central do Plano Diretor como elemento constitutivo do próprio direito de 657 municípios e estavam em andamento em outros 850, sendo que em apenas
propriedade - agora não mais uma questão do Direito Privado, mas do Direito 60 municípios o processo não tinha começado.
Público - ainda não foi plenamente compreendida. 5 Há avanços, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento da impor-
tância de o planejamento enfrentar a questão da moradia social e outros interesses
5Para uma análise da importância central dos planos diretores na nova ordem constitucional, veja sociais, bem como as questões da preservação ambiental e do patrimônio cultural.
Fernandes (1998a; 1998b).
130 · Edésio Fernandes
P LANEJl\MENTO URBANO NO BJ(ASJL: l llAJETÓK ll\, 1WANÇOS E l'EKSrECTJVAS ' 131

Por ".xemplo, cerca de 25% dos municípios que aprovaram planos recentemente de se interferir diretamente na dinâmica do mercado de terras. Repensar a relação
introduziram a categoria das ZEIS-Zonas Especiais de Interesse Social.
do planejamento urbano com o mercado é crucial, partindo da identificação dos
Contudo, ainda há problemas sérios. De modo geral, os novos planos dire- conflitos existentes - sobretudo dos conflitos fundiários -, para que as leis urba-
tores têm o mesmo caráter excessivamente complexo e burocrático dos anteriores nísticas e planos diretores "peguem". A verdade é que a lei somente "pega"
- na verdade, em muitos casos as exigências e listas de critérios técnicos e proce- quanto tem uma "pega" nos processos econômicos e sociopolíticos, o que requer
dimentos administrativos de todo tipo aumentaram a inda mais. que o planejamento urbano assuma um papel mais pró-ativo e indutivo dos mer-
Além disso, uma dimensão crucial não está sendo tratada nessa nova gera- cados de terras.
ção de planos urbanísticos no Brasil: a natureza do plano urbanístico não está É nesse contexto que cabe um comentário rápido acerca da necessidade de
sendo profundamente alterada em relação à tradição vigente - como era de se se qualificar o argumento recorrente de que, como muitos planos diretores não têm
esperar à luz dos princípios do Estatuto da Cidade. A relação do planejamento "pegado" ou não têm cumprido seus objetivos, a solução então seria a desregula-
urbano com o mercado continua sendo muito mal tratada. Talvez se possa dizer ção e a flexibilização de critérios e procedimentos. Na minha opinião, os urbanistas
que existe uma polarização entre duas categorias de planos diretores, aqueles que deveriam discutir menos os instrumentos jurídicos-urbanísticos e a própria a tivida-
expressam uma "agenda de esquerda", isto é, que expressam com mais clareza a de de regulação urbanística em si, para colocar mais ênfase nas políticas urbanas e
necessidade de reconhecimento de direitos sociais, e aqueles que expressam ou- processos de controle social da gestão urbana. Em outras palavras, ao invés de
tras vertentes de planejamento territorial, especialmente a chamada "agenda ne- reforçar a visão tradicional que busca regular tudo na escala 1:1 e assim determinar
oliberal", através das propostas de do planejamento estratégico e de criação de o que "pode aqui, não pode ali", trata-se de criar, a partir de uma definição clara
novas formas de geração de renda e riqueza nas cidades. Contudo, qualquer que de princípios urbanísticos, ambientais e técnicos, novos processos mais dinâmicos,
seja o tipo de planejamento urbano que esteja sendo adotado, mais "politizado" ílexíveis e participativos de aferição e determinação - nos casos concretos - das
ou mais "empresarial", a verdade é que a questão crucial de renovação das fon- possibilidades de materialização desses princípios gerais.
tes do financiamento do desenvolvimento urbano não está sendo devidamente
Isso não significa abrir mão da idéia da regulação urbanística, mas sim
tratada pelos planos diretores, que continuam tendo na tributação municipal a
afirmar a idéia de que é preciso regular diferentemente processos diferentes, na
forma principal de geração de recursos para as políticas públicas municigais.
medida da capacidade de ação das administrações municipais e no contexto de
A outorga gratuita de valores imobiliários continua sendo a regra desses uma ordem pública submetida a processos efetivos de contrai~ social.
novos planos diretores, quer dizer, de modo gera l não há uma tentativa consisten-
Isso também significa colocar mais ênfase na necessidade de se regular o
te de intervenção direta na produção de valores fundiários e na formação de preços
que precisa ser regulado, regulando ainda ma is certos processos do que se faz
de terrenos, e as diversas possibilidades legais de recuperação do investimento
hoje, sobretudo no que diz respeito à questão da democratização do acesso ao
público não têm sido devidamente exercidas. Alguns poucos Municípios têm usa-
lotes com serviços. Não há como deixar essa questão fundamental apenas para
do, por exemplo, a transferência do direito de construção, outros Municípios usam
as forças de mercado, quando - e isso é uma verdade histórica de diversos países
outorgas onerosas de direitos de construção (embora não de uso), mas de modo
- não há como tratar da questão da crise habitacional e do déficit de moradia
geral esses Municípios têm usado esses instrumentos do Estatuto da Cidade tão-
tão-somente com os direitos de propriedade. Não há país no mundo que tenha
somente para fins de arrecadação de recursos ou então para fins de intervenções
enfrentado essa questão sem recorrer a todo um leque de a lternativas jurídicas,
pontuais que não correspondem a um projeto de cidade, a uma visão articulada e
inclusive a discussão do aluguel social. Não há como tratar disso somente com a
a uma política ampla para a cidade, e sobretudo o fazem sem critérios jurídicos
lógica da propriedade e, sobretudo, da propriedade individual.
claros, com o que a legalidade dessas novas estratégias de gestão urbana já está
sendo questionada. De fato, essas formas de gestão público-privadas e os proces- Esse talvez seja o maior desafio da segunda geração de planos urbanísticos
sos de envolvimento do setor privado na gestão urbana têm sido cada vez mais no Brasil - desafio esse que até o momento não começou a ser enfrentado.
questionados judicialmente pela falta de critérios jurídicos adequados.
A impossibilidade de se romper com a natureza de planejamento tradicio- Os problemas do pacto territorial
na l acaba, na verdade, por provocar processos renovados de segregação,
gentrificação e de "expulsão pelo mercado" , exatamente pela incapacidade A segunda questão colocada anteriormente diz respeito ao descompasso
frequentemente existente entre as instituições jurídicas e os processos socioeco-
132 · Edésio Fernandes P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS' 133

nômicos que elas regulam, e um claro exemplo é o da relação entre o pacto tradicional com a falta total de compromisso jurídico-político que hoje tem carac-
1

territorial institucionalizado pela ordem jurídica em vigor e as necessidades terizado as administrações públicas em todas as esferas governamentais.
concretas da organização territorial. De fato, uma ampla revisão do pacto federa- Por fim, a revisão do pacto federativo tem que instaurar uma ordem metropo-
tivo é crucial na medida em que a ordem urbano-territorial criada ao longo de litana no Brasil. Não há como mais manter um sistema de organização constitucional
décadas de urbanização rápida no Brasil não está plena e adequadamente reco- baseado numa repartição de poderes jurídico-políticos entre três níveis fed€rativos
nhecida pela ordem constitucional do país: a ordem jurídico-institucional não quando a realidade da urbanização é cada vez mais metropolitana. Já são 27 as re-
"cai como uma luva" na ordem da realidade construída no território brasileiro. giões metropolitanas reconhecidas, sendo que o processo deve ser agravado ~om ~s
Ainda que hoje já exista um consenso no sentido de que os Municípios de- novas tendências do processo de urbanização, que mostram que processos m1grato-
6
vem ter um lugar central na formulação de políticas territoriais e de políticas urba- rios se dirigem cada vez mais no sentido das cidades de porte médio.
nas, esta discussão precisa ser devidamente qualificada. São várias as dimensões Já há uma série de pistas que indicam como essas questões da gestão urbana
de uma reforma jurídica que devem ser consideradas para que essa aproximação e da re-organização federativa podem ser enfrentadas, a começar pelo forte processo
entre instituições jurídicas e processos socioeconômicos possa acontecer. de associativismo municipal, inclu?ive entre Municípios de Estados diferentes. Essas
Uma primeira dimensão de tal reforma seria a revisão do princípio da "iso- são respostas políticas importantes, mas deve-se dizer que não são respostas jurídicas
nomia formal" dos Municípios, que permite que realidades completamente distin- sólidas, quer dizer, são respostas totalmente legítimas, mas ainda não são respostas
tas e situações profundamente heterogêneas sejam tratadas com o mesmo aparato plenamente válidas da perspectiva jurídica, tendo que ser validadas em leis munici-
jurídico - o que certamente é um equívoco profundo. Enquanto não houver uma pais para terem eficácia jurídica plena. A recente lei dos consórcios públicos avançou
proposta de classificação dos Municípios em função de certas condições - como, no sentido de reconhecer como pessoas de Direito Público algumas dessas novas
por exemplo, o profeto de lei de reforma da Lei Federal nº 6. 766 propõe, trabalhan- formas de organização intermunicipal. Há vários outros esforços promissores de arti-
do com os conceitos de "Município com gestão plena" e "Município sem gestão culação federativa, liderados pela União ou pelos Estados.7
plena" e distribuindo poderes, competências e obrigações de acordo - o tra- Contudo, o reconhecimento dessa enorme lacuna acerca da questão me-
tamento jurídico igual de situações desiguais continuará a gerar distorções tropolitana tem ampliado o debate sobre o tema, sobre o qual há um interesse
profundas e a limitar o alcance das políticas urbanas. renovado. Na gestão das áreas metropolitanas a inda não se encontrou o equilí-
Uma outra dimensão a ser considerada é a necessidade de se recuperar o lugar brio entre a legalidade e a legitimidade das propostas: por um lado, há algumas
dos Estados-membros e da própria União na organização do território através de soluções são mais legítimas, no sentido de corresponderem mais às demandas de
políticas fundiárias, urbanas e habitacionais. Com a Constituição Federal de 1988, o participação dos Municípios ou as formas de representação da sociedade, porém
pêndulo do equilíbrio federativo se voltou excessivamente para o lado do municipa- 0 aparato metropolitano não é juridicamente sólido, por não corresponder às
lismo. Ao invés de reforçar idéias tradicionais de divisões rígidas de competências exigências da Constituição Federal de 1988; por outro, há soluções, sobretudo as
entre os entes federativos, esse processo de revisão do pacto federativo deveria apos- soluções estaduais, que talvez tenham uma dimensão jurídica mais formalmente
tar mais na criação de mecanismos efetivos de trocas e nas relações intergoverna- adequada, mas que carecem de legitimidade no que diz respeito à participação
mentais, no lugar dos Estados-membros para tratar da questão regional, bem como dos Municípios e à representação da sociedade.
no lugar da União para organizar um sistema nacional articulado de cidades. Também nesse contexto a discussão crítica acerca das instituições jurídicas
Uma outra dimensão importante é afirmar a noção jurídica da "responsabi- é fundamental para o avanço das políticas públicas.
lidade territorial" da administração pública, em todas as esferas governamentais,
mas especialmente na esfera municipal. A exemplo da noção de "responsabilidade
fiscal", é preciso que se compreenda que, talvez mais até do que a responsabilidade
com o dinheiro público, a responsabilidade da administração pública para com o
solo é enorme, perante as presentes e futuras gerações. Trata-se de recurso natural 6 Para uma discussão sobre a natureza das Regiões Metropolitanas no contexto do pacto federativo
brasileiro, veja Fernandes (2006b) . .
não-renovável, e como tal crucial para a implantação de políticas urbanas, am- 1 Um exemplo desse esforço de articulação Intergovernamental é o Programa t:iac~onal de Apolo à
bientais e sociais. Não há mais como tratar da questão do solo com a displicência Regularização Fundiária Sustentável do Ministério das Cidades; para uma avahaçao do Programa,
veja Fernandes (2004) .
• 'Ó • " ÇOS E l'ERSl'ECrlVAS '
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TIV\J EI RI,\, AV~'
135
134 · Edésio Fernandes

· te· Fundação João


Condusão FERNANDES, Edésio (Org.). Direito e gouernança. Be 1o H onzon ·
Pinheiro, 2002b. . .
FERNANDES, Edésio. Princípios, bases e desafios de um Pr~g~ama Nac~~~ A~~~~i~
Se a reforma do Direito é condição da reforma urbana, nesse processo já
se pode reconhecer um avanço maior na aproximação entre as instituições jurídi-
Regularização Fundiária Sustentável. ln: ALFONSlN, Betania; FERN • . t \'
(Org.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Honzon e:
cas e os processos sociopolíticos aqui mencionados, do que entre o instituto jurí- 1
Fórum, 2004.
dico ào plano diretor e as políticas públicas de planejamento. FERNANDES, Edésio. Direito e gestão na construção da cidade democráti~a no Brasi~. ln:
.1
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As cidades do cidade. Belo Horizonte: Editora
No que diz respeito a como aproximar as instituições jurídicas dos proces-
UFMG/IEAT, 2006a.
sos sociopolíticos e econômicos, mesmo reconhecendo todos os problemas exis-
FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil.. l~: FE~AND~,
tentes, já há caminhos promissores, e pelo menos a questão está sendo ampla- Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos bras1le1ros e internacio-
mente colocada e debatida. A gestão democrática das cidades, as parcerias nais. Belo Horizonte: Dei Rey, 2006b.
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tivo: com todas as suas limitações, pelo menos já há pistas de como proceder paço urbano. Belo Horizonte: Dei Rey, 2003a. .
para fazer avançar a reforma jurídica. FERNANDES Edésio· ALFONSIN, Betânia (Org.). Memórias dei IX Semin6rio Jnternoc10-
no/ Derecho ~ Espaci~ Urbano. Quito: Programa de Gestión Urbana I lRGLUS. 2003b.
Contudo, no que diz respeito à aproximação entre o instituto jurídico do Plano
(Colección Cuadernos de Trabajo nº 101)
Diretor e os objetivos das políticas públicas de planejamento e promoção de integração
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos brasileiros
socicespacial, um esforço ainda maior tem de ser feito, de tal forma que a materializa-
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FERNANDES, Edésio; RUGANl, Jurema (Org.). Cidade, memória e legislação. Belo Ho-
função socioambiental da propriedade e da cidade, se tome uma realidade.
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• Falar de direito à cidade tão-somente da perspectiva do discurso tradicional de FERNANDES, Edésio; VALENÇA. Márcio (Org.). Brasil urbano. Rio de Janeiro: Maudad, 2005.
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de como um discurso de direitos, e crucial para que esse discurso tenha consistência violência. São Paulo: Hucitec, 1996.
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direitos de propriedade imobiliária. Nesse processo, a renovação do instituto jurídico São Paulo. São Paulo: Studio NobeVFAPESP, 1997.
do plano diretor tem um papel determinante. É fundamental reconhecer a nova na-
tureza, o conteúdo e os limites da concepção desses direitos à luz dos princípios da
nova ordem jurídico-urbanística consolidada pelo Estatuto da Cidade, tarefa essa
que, na minha avaliação, os planos diretores continuam se furtando a enfrentar.

Referências
ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (Org.). Direito à moradia e segurança da pos-
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FERNANDES, Edésio. Direito e urbanização no Brasil. ln:_. (Org.). Direito Urbanístico.
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FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Dei Rey, 1998b.
FERNANDES, Edésio (Org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizon-
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FERNANDES, Edésio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas
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Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos. 2002a.
P LANEJAMENTO URAANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECIWAS · 137

ideologia neoliberal são bastante conhecidos no que se refere ao agravamento


Reforma urbana: desafios para o das desigualdades nas cidades, à massificação da pobreza, à insegurança genera-
planejamento como práxis lizada e à exclusão crescente (Boron, 2000).
No Brasil, o final das décadas de 1980 e 1990 representou uma verdadeira
transformadora guinada contra-reformista. Com o início do governo Collor de Mello (1989), pas-
Orlando Alves dos Santos Junior sando pelos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, uma agenda de re-
formas econômicas estruturais de caráter neoliberal começou a ser implementa-
da, com a adoção de políticas de liberalização econômica e a privatização de
Quando olhamos as experiências recentes de planejamento e gestão empresas estatais. Como resultado do modelo de desenvolvimento adotado, o
das cidades, sobretudo aquelas desenvolvidas a partir da década de 1990 Brasil chegou ao ano 2000 como um país marcado pela contradição, que. como
podemos reconhecer novas e velhas práticas. À primeira vista, parece possí~
sabemos, tem raízes históricas. De um lado, um país com vigoroso dinamismo
vel afirmar que se desenvolve no Brasil uma nova cultura vinculada tanto à
econômico; de outro, ostenta um dos maiores índices de desigualdades sociais e
dimensão dos direitos sociais inscritos na Constituição de 1988 como à parti- de concentração de renda, com os 10% dos mais ricos detendo quase metade da
cipação de uma pluralidade de atores sociais com presença na cena pública.
riqueza produzida no país (Dupas, 1999; Mantega, 1998, 1999).
Desde a década de 1990, tanto o papel exercido pelo poder público como a
atuação dos novos atores sociais vêm reconfigurando as formas e os proces- Não restam dúvidas .d e que as cidades brasileiras expressam os efeitos do
sos de tomada de decisões, através de canais e mecanismos de participação modelo de desenvolvimento perverso e desigual que foi adotado pelo país nas
social, principalm~nte por meio dos conselhos de gestão, das conferências em últimas décadas, caracterizando-se por profundas desigualdades nos padrões
torno das políticas setoriais e dos processos de orçamento participativo. No de qualidade de vida, cidadania e inclusão social. Com efeito, fazemos um
que concerne à gestão urbana, a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001 , diagnóstico sobre os problemas sociais nas cidades que indica a existência de
e a criação do Ministério das Cidades, consolidaram e fortaleceram o papel uma crise urbana, onde a dinâmica de produção e gestão das cidades, iundada
dos municípios no planejamento e na gestão das cidades. Em 2004 teve iní- na desigualdade e na segregação socioespacial, é produtora de graves problemas
cio a Campanha Nacional dos Planos Diretores Participativos, 1 visando enga- sociais. As condições de vida nas grandes cidades, principalmente nas metrópo-
jar a sociedade no processo de revisão e elaboração dos planos municipais, les, têm se deteriorado. De espaço de mobilidade social e lugar de acesso à diver-
tal como previsto no Estatuto da Cidade. Reconhecendo avanços e limites sidade cultural, melhores oportunidades de emprego e qualidade de vida, elas
das novas experiências de planejamento e gestão das cidades, argumentamos têm se tornado pólos econômicos marcados pela fragmentação, dualização, .,!
que a ocupação dos espaços públicos de participação tem produzido trans- violência, poluição e degradação ambiental.
formações, muitas vezes moleculares, tanto no que se refere à concepção e às Nesse cenário, os direitos sociais, econômicos e políticos, que foram con-
práticas de planejamento como na própria cultura de participação democrá- quistados através das lutas históricas dos trabalhadores, estão em risco de serem
tica. No entanto, dois modelos de planejamento parecem estar em disputa, perdidos pela hegemonia do pensamento neoliberal. Sob o ponto de vista da dinâ-
deixando em aberto os rumos das cidades brasileiras. mica urbana, o resultado é a negação do direito à cidade expressa na irregularidade
fundiária, no déficit habitacional e na habitação inadequada, na precariedade e
deficiência do saneamento ambiental, na baixa mobilidade e qualidade do trans-
Crise urbana e a política nacional de desenvolvimento urbano porte coletivo e na degradação ambiental. Paralelamente, as camadas mais ricas
continuam acumulando cada vez mais e podem usufruir um padrão de consumo
Nas últimas duas décadas do século XX, a questão urbana e os processos semelhante ao dos países desenvolvidos, enquanto processos de exclusão social •I
de exclusão social se constituíram em problemas centrais para se pensar o futuro atingem parte significativa da população e favorecem as atividades ilegais de sobre- t'

da humanidade. Os efeitos perversos do redesenho do papel do Estado e das f


vivência. É no contexto dessa contradição, expressa na segregação urbana, que
macro-políticas econômicas preconizadas pelo Consenso de Washington e sua explode a violência e cresce o poder do crime organizado na cidade.
As raCzes desse processo estáo ligadas à modernização excludente do Bra-
1
A campanha dos planos diretores foi uma Iniciativa do Ministério da Cidade, com apolo e a partici- sil. Como afirma Maricato (1996), "é com o início da República que se afirma o
pação do Conselho Nacional das Cidades. urbanismo modernista segregador" (p. 38). Mas é a partir de 1950, com a inten-
PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, ;.VAN OS E PERSPECTIVAS • 139
138 ·Orlando Alves dos Santos Junior

sificação do processo de industrialização, que vamos verificar as mudanças mais bana, vinculada ao Ministério do Planejamento; de 1999 a 2002, da Secretaria
profundas no padrão de urbanização brasileira, em um processo que combina Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à Presidência da República.
um gigantesco processo migratório do campo para as cidades, metropolização, Assim, podemos dizer que a criação do Ministério das Cidades, em 2003,
expar.sao da classe média e assalariamento da mão-de-obra. De fato, "o aparato representou uma resposta a um vazio institucional, de ausência de uma política
legal urbano, fundiário e imobiliário, que se desenvolveu na segunda metade do nacional de desenvolvimento urbano consistente, capaz de construir um novo pro-
século XX, forneceu base para o início do mercado imobiliário fundado em rela- jeto de cidades sustentáveis e democráticas. Por isso, a criação desse Ministério, a
ções capitalistas e também para a exclusão territorial." (p. 38). nosso ver, expressou o reconhecimento por parte do governo federal da questão
Nos anos mais recentes, sobretudo a partir da década de 1990, podemos urbana como uma questão nacional a ser enfrentada por macro políticas públicas.
verificar mudanças no padrão de urbanização brasileira, em grande parte decor- De fato, grande parte da competência em matéria de política urbana está hoje
rentes das transformações no capitalismo internacional e das formas de inserção descentralizada, principalmente depois da aprovação do Estatuto da Cidade, que
do Brasil no processo de globalização, tal como tem indicado a literatura nacional consolidou e fortaleceu o papel dos municípios no planejamento e na gestão das
e internacional (Ribeiro, 2004). De um lado, o aprofundamento da periferização cidades. No entanto, os problemas urbanos - envolvendo a questão habitacional,
das grandes metrópoles, com o aumento populacional nos municípios da frontei- o saneamento ambiental, a mobilidade e os transportes - têm dimensões que ne-
ra metropolitana e expansão das favelas e loteamentos irregulares; de outro, o cessitam de tratamento nacional, seja pela sua importância ou pela sua amplitude,
aparecimento de núcleos de classe média e condomínios fechados na periferia, nos quais o governo federal continua tendo um papel relevante. Em especial no
tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo. que se refere às metrópoles, percebe-se a importância de uma intervenção nacio-
nal, tanto na definição de diretrizes como no desenvolvimento de planos e projetos,
A questão é que o modelo de produção e gestão das cidades brasileiras
de forma a impulsionar políticas cooperadas e integradas que respondam à com-
adotado nos últimos anos foi resultado da combinação de processos de inserção
seletiva de regiões e áreas competitivas e dinâmicas integradas aos circuitos inter- plexidade da problemática urbana-metropolitana no país.
nacionais de capitais, concentração territorial em áreas metropolitanas, segrega- Analisando em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que tanto a criação
ção urbana e exclusão socioeconômica, produzindo uma nova ordem socioespa- do Ministério das Cidades, como a implantação do Conselho das Cidades, am-
cial, na qual a cidade aparece como a expressão de uma estrutura social bos em 2003 , e a realização das conferências nacionais das cidades, em 2003 e
dualizada entre ricos e pobres, entre cidadãos e não-cidadãos. 2005, são conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira que, desde
os anos 1980, vêm construindo um diagnóstico em torno da produção e gestão
Parece claro que os paradigmas hegemônicos do urbanismo e do planeja-
das cidades e propondo uma agenda centrada (a) na institucionalização da
mento urbano adotados revelaram grandes limites e não conseguiram dar respos-
gestão democrática das cidades; (b) na municipalização da política urbana; (c)
: tas satisfatórias aos problemas contemporâneos das grandes cidades.
na regulação pública do solo urbano com base no princípio da função social da
Ao mesmo tempo, em termos institucionais, a política urbana nunca foi propriedade imobiliária; e (d) na inversão de prioridade no tocante à política de
assumida como uma política de Estado. Os sucessivos governos nunca tiveram investimentos urbanos (Santos Junior, 1995).
um projeto estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articula-
Em relação ao movimento social pela reforma urbana, vale destacar a
da, as intervenções no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do
importância do Fórum Nacional de Reforma Urbana - FNRU. O Fórum é uma
saneamento ambiental, e da mobilidade e do transporte público. Sempre de for-
coalizão de organizações que reúne movimentos populares, organizações não-
ma fragmentada e subordinada à lógica de favorecimento que caracterizava a
governamentais, associações de classe, e instituições acadêmicas e de pesquisa
relação intergovernamental, as políticas urbanas foram de responsabilidade de
em torno da defesa da reforma urbana, da gestão democrática e da promoção do
diferentes órgãos federais. Tomando como referência a política de habitação, vale
direito à cidade.2 Como principal expressão do movimento nacional pela reforma
a pena registrar que, de 1985 a 2002, a política de habitação foi de responsabili-
dade de diferentes Ministérios: de 1985 a 1987, do Ministério do Desenvolvimento
Urbano e Meio Ambiente; de 1987 a 1988, do Ministério da Habitação, Urbanismo 2 A coordenação do Fórum é composta pelas seguintes instituições: FASE - Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional, MNLM - Movimento Nacional de Luta por Moradia, UNMP - União
e Meio Ambiente; de 1988 a 1990, do Ministério do Bem-Estar Social; de 1990 a Nacional por Moradia Popular, CMP - Central de Movimentos Populares, CONAM - Confederação
1995, do Ministério da Ação Social; de 1995 a 1999, da Secretaria de Política Ur- Nacional de Associações de Moradores, FENAE - Federação Nacional das Associações de Emprega-
dos da Caixa Econômica, FISENGE - Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros, FNA
- Federação Nacional de Arquitetos, Instituto Polis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em
Políticas Sociais, IBAM - Instituto Brasileiro de Administração Municipal, !BASE - Instituto Brasile iro
140 ·Orlando Alves dos Sa ntos Junior P u.NEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 141

urbana, o FNRU foi protagonista em fatos importantes da história urbana do 1990.3 Em geral, predominaram paradigmas conservadores, e poucos planos direto-
nosso país: (i) na elaboração da emenda constitucional de iniciativa popular em res saíram do papel, conseguindo regular as relações sociais e econômicas que, de
torno do capítulo de política urbana durante a Constituinte de 1987-1988; (ii) na fato, intervêm sobre a dinâmica de produção e gestão das cidades.
discussão e aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001 , que regulamentou os Com a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001 , foi dado um novo im-
instrumentos que definem a função social da cidade e da propriedade; (iii) na pulso aos processos de elaboração dos planos diretores, tendo em vista que a apli-
elaboração do Projeto de Lei de Iniciativa Popular que criou o Fundo Nacional cação, pelos municípios, de diversos instrumentos previstos nele, depende da apro-
de Habitação de Interesse Social, que reuniu 1 milhão de assinaturas e foi sancio- vação do Plano Diretor, que, segundo determina o próprio Estatuto, deve definir a
nado pelo governo Lula, em 2005, depois de mais de 10 anos de tramitação; e função social das diferentes áreas do município, seja ela urbana ou rural, privada
(iv) na criação do Ministério das Cidades, em 2003. ou pública, tornando obrigatória sua elaboração ou revisão, até outubro de 2006,
Na perspectiva da agenda da reforma urbana, a realização das conferências em cerca de 1.700 municípios brasileiros com população acima de 20 mil habitan-
nacionais, bem como a implantação e o funcionamento do Conselho das Cidades, tes ou integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas.4
deveria criar uma nova dinâmica para a gestão das políticas urbanas, com a parti- Assim, em abril de 2004, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos,
cipação do poder público e dos movimentos populares, organizações nâo-governa- vinculada ao Ministério das Cidades, lançou o Programa de Fortalecimento da
rnentais, segmentos profissionais e empresariais. Dessa forma, podemos considerar Gestão Urbana visando apoiar os municípios na implementação dos instrumen-
bastante significativo os temas das duas Conferências Nacionais das Cidades. A tos do Estatuto da Cidade e na elaboração dos planos diretores. 5 Em setembro de
primeira realizada em 2003, teve corno terna "Cidade para todos" e corno lema 2004 o Conselho Nacional das Cidades, por meio da Resolução nº 15, decide
"Construindo urna política democrática e integrada para as ·cidades"; a segunda, realizar uma campanha nacional de sensibilização e mobilização em torno do
em 2005, adotou o·lerna "Reforma urbana: cidades para todos" e o tema "Cons- tema. De fato, na perspectiva dos setores identificados com a plataforma da refor-
truindo uma política nacional de desenvolvimento urbano". Além disso, também ma urbana - com presença significativa no interior do Conselho das Cidades6 - o
em 2005, o Ministério das Cidades, com a adesão e o apoio do Conselho das Ci- Plano Diretor deveria expressar um pacto socioterritorial entre os diferentes interes-
dades, lançou a campanha Plano Diretor Participativo. ses presentes nas cidades. Dessa forma , em maio de 2005, foi lançada a cam-
É importante registrar que a elaboração de planos diretores como instru- panha "Plano Diretor Participativo: cidade de todos", tendo corno eixos: (i) a
mento de planejamento do uso do solo urbano não é recente, mas aparece na promoção da inclusão territorial, de forma a assegurar que os melhores lugares
história do urbanismo brasileiro desde a década de 1930, quando foi elaborado da cidade possam ser compartilhados pelos pobres; (ii) a posse segura e inequí-
:1
o Plano Agache, no Rio de Janeiro. No entanto, com a promulgação da Consti- voca da moradia, com o acesso à terra urbanizada para todos e; (iii) a gestão
tuição de 1988, a abrangência dos planos diretores foi ampliada e seu sentido democrá tica da cidade, com a instituição da participação de quem vive e constrói ·I
alterado, estando agora vinculados à definição da função social da cidade e da a cidade nas decisões e na implementação do Plano. 7
propriedade, previstas no artigo 182 da Carta Magna da nação. Nesse processo,
pode-se perceber uma clara tentativa por parte de planejadores, urbanistas e do
movimento social de desenvolver uma nova concepção de planejamento politizado
da cidade, re-significando o sentido dos planos diretores, a partir de novas diretrizes,
3 São diversos os estudos de caso avaliando os planos diretores sob a perspectiva da reforma urbana.
princípios e instrumentos voltados para a promoção do direito à cidade e para a sua
Ver, entre outros, Pontual (1 994); Santos Junior (1995); Villaça (2005); e Polli (2006).
gestão democrática (Ribeiro; Cardoso, 2003). Apesar disso, e mesmo na ausência de • Para uma análise dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, ver Ministério das Cidades
balanços mais conclusivos, os estudos disponíveis permitem afirmar que poucas fo- (2005); e Ribeiro e Cardoso (2003).
5 Em 2004, o programa contou com recursos da ordem de R$ 54 milhões no apoio aos municípios
ram as experiências inovadoras em termos do planejamento das cidades na década
para a elaboração dos planos diretores, a lém de desenvolver atividades de capacitação e sensibili-
zação.
6 Entre 2004-2006, as organizações ligadas ao Fórum Nacional de Reforma Urbana tinham, juntas,

de Análises Sociais e Econômicas, ANTP - Associação Nacional de Transportes Públicos, COHRE 26 representa ntes entre os 71 membros titulares do Conselho das Cidades, com presença em diferen-
Américas - Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos, AGB - Associação dos Geógrafos Bra- tes segmentos sociais: movimentos populares, associações profissionais, organizações não-governa-
sileiros, FENEA - Federaç!o Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, CAAP mentais e entidades acadêmicas, o que garantiu um enorme peso para suas posições.
7 Boletim 17 da Campanha Plano Diretor Participativo, maio de 2006, Ministério das Cld11des. Os
- Centro de Assessoria à Autogestllo Popular, ABEA-Assoclaç6o Brasileira de Ensino de Arquitetura
e Urbanismo, Fundação Bento Rubião - Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Observatório das resultados do levanta mento foram obtidos através de pesquisa encomendada pelo Ministério, que
Metrópoles IPPUR/UFRJ/FASE. ActionAid Brasil e Habitat para Humanidade Brasil. entrevistou integrantes das prefeituras, câmaras de ve readores e da sociedade civil.
P l.ANEJAMENTO UllUANO NO B RASIL: TKAJETÔ lllA, AVANÇOS E PEllSl'ECllVAS. 143
142 ·Orlando Alves dos Santos Junior

Avanços e limites dos planos diretores um poderoso instrumento para a solução dos nossos problemas urbanos" e de que,
em grande medida, "se tais problemas persistem é porque nossas cidades não têm
conseguido ter e aplicar esse miraculoso Plano Diretor" (p. 10).
A campanha Plano Diretor Participativo se estruturou através de uma coor-
denação nacional, composta de instituições integra ntes do Conselho das Cida- Villaça não desconsidera a concepção ampla do Plano Diretor expressa no
des, e de núcleos estadua is, integrados pelo poder público e organizações sociais Estatuto da Cidade, mas constata que desde que este instrumento surgiu, há mais de
diversas. Conforme balanço realizado pelo próprio Ministério das Cidades, em sete décadas, ''não se tem notícia de uma cidade brasileira, uma administração mu-
maio de 2006, o saldo da campanha era surpreendente: com 26 núcleos estadu- nicipal sequer, que tenha sido minimamente pautada, mesmo que por poucos anos,
ais constituídos, 88% dos 1.684 municípios com obrigatoriedade estavam elabo- por um Plano Diretor com um nível de abrangência, ambições e objetivos que ultra:
rando ou já tinham concluído a elaboração e/ou revisão dos seus planos diretores. passem significativamente os do zoneamentd' (p. 17). O autor argumenta que e
Precisãmente, 242 municípios (14%) já haviam concluído seus planos, 1.245 "impressionante como um instrumento que praticamente nunca existiu na prática,
(74%) estavam em processo de elaboração e apenas 198 municípios (12%) ain- possa ter adquirido tamanho prestígio por parte da elite do país" (p. 10).
da não tinham iniciado a elaboração ou revisão dos seus planos. Ressaltando que sua análise está voltada para as cidades grandes e médias,
Considerando a data do balanço, a campanha tinha conseguido realizar, e que o contexto dos municípios inseridos em áreas metropolitanas é diferente
até maio de 2006, cerca de 250 oficinas em quase 1.600 municípios, reunindo por possuírem uma população mais homogênea, Villaça sustenta sua análise no
cerca de 10 mil pessoas, em um processo de mobilização em torno da elabo- que denomina ilusões do Plano Diretor, desdobrando-se nos seguintes pontos: (i)
ração dos pla nos diretores sem precedentes na história do país. Nesse sentido, a ilusão do plano de obras, na medida em que as intervenções do poder público
parece possível afirmar que houve um significativo avanço na disseminação previstas no Plano Diretor são facultativas e a falsa obrigatoriedade transmitida
de uma nova concepção de planejamento urbano. Não obstante os avanços contribui para desacreditar o plano e alimentar a falsa crença de que "no Brasil
expressos nesses indicadores, a avaliação quanto ao caráter participativo des- há leis que pegam, e leis que não pegam" (p. 45); (ii) a ilusão do zoneamento,
ses processos indica que temos que ser mais cautelosos nas conclusões quanto tendo em vista que "a verdade que o zoneamento procura ocultar é que sua fina-
à disseminação de novas práticas de planejamento. Os dados da mesma pes- lidade é (sempre foi) proteger o meio ambiente e os valores imobiliários de inte-
quisa mostra m que apenas 24% dos processos, isto é , 362 planos, foram ou resses (econômico ou de moradia) da minoria mais rica, contra processos que o
estão sendo participativos, enquanto que em 64% dos municípios (951), os degradem" (p. 47) ; e (iii) a ilusão da participação popular, jél que os processos de
procedimentos de elaboração do plano diretor não incorporaram procedimen- elaboração dos planos diretores não levam em consideração "a abismal diferença
tos participativos, na opinião dos próprios participantes, ou seja, dos gestores e de atuação e poder político" entre a classe dominante, que "sempre participou
representantes da sociedade civil entrevistados. Há ainda 11 % de situações seja dos planos diretores seja dos planos e leis de zoneamento", e a grande maio-
(174 pla nos), onde gestores e representantes da sociedade civil divergiram ria da população, que pouco comparece ao processo, em razão de não ver seus
quanto ao caráter participativo ou não do processo. problemas incluídos na pauta dos debates. Ou seja, "quem nunca participou fo-
ram - e continuam sendo - as classes dominadas, ou seja, a maioria" (p. 51).
Além disso, a incorporação de procedimentos participativos não garante que
os planos diretores, assim elaborados, sejam posteriormente implementados. De fato, Villaça (2005) divide as proposta do Plano Diretor em duas categorias, as
tendo em vista a experiência do planejamento urbano no Brasil, são ainda incertas ações cuja execução são de responsabilidade da Prefeitura, envolvendo obras,
as po$Sibilidades de desenvolvimento de novos processos de planejamento impulsio- serviços e medidas administrativas, e as normas que devem ser obedecidas pelo
nados pelos planos diretores, conforme determina o Estatuto da Cidade. setor privado e pelos particulares em geral, onde se situa o controle do uso do
solo e, principalmente, o zoneamento. O problema, segundo o autor, é que as
Aliás, as decepções dos atores envolvidos e os fracassos na tentativa de imple-
primeiras não têm efetividade, já que não são impositivas, cabendo ao prefeito
mentar planos diretores capazes de solucionar os graves problemas urbanos e instau-
decidir se vai executá-las ou não. Já as segundas, elas são leis, e, portanto, devem
rar novas práticas de planejamento nas cidades brasileiras têm levado alguns autores
ser obedecidas por todos. A questão, como sugere Villaça, é que estas últimas,
a questionar a validade desse instrumento na perspectiva da reforma urbana. Dentre
que são de fato efetivas, "dizem respeito aos problemas e interesses de uma pe-
estes, vale destacar Flávio Vtllaça (2005), que defende que "o planejamento urbano
quena minoria da população e uma minúscula parcela da cidade" (p. 91).
no Brasil, representado pelo Plano Diretor, está a exigir uma revisão radical, ou seja,
pela raiz. Todos os seus pressupostos precisam ser questionados" (p. 92). Na visão do
autor, a "sociedade está encharcada da idéia generalizada de que o Plano Diretor é
144 ·Orlando Alves dos Santos Junior P l.J\NEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TR/IJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS· 145

E o autor constata, tomando como referência o processo do município de Não obstante considerarmos pertinentes os questionamentos de Flávio
São Paulo, que, de fato, sob o manto do Plano Diretor "foram abordadas quase Villaça, mas ainda não estamos convencidos de que sobra "pouco ou nada de
que exclusivamente questões de zoneamento, e dentre estas, quase que exclusi- interesse público nos planos diretores" e consideramos possível avançar na trans-
vamente questões referentes a bairros da população de mais alta renda" , e que formação desse instrumento na perspectiva da reforma urbana, para o que é
"a imprensa, tanto quanto a população em geral, ignorou tudo aquilo que o Pla- necessário refletir sobre o alcance desse instrumento na construção de pactos
no Diretor diz a respeito de obras" (p. 90). De fato, a pouca mobilização e a socioterritoriais de promoção do direito à cidade. Nessa direção, mesmo conside-
abstenção da maioria da população, as classes populares, em torno do processo rando os limites deste ensaio, gostaríamos de refletir sobre duas questões: (i) as
de discussão e elaboração do Plano Diretor são interpretadas pelo fato desse possibilidades de o Plano Diretor impulsionar políticas de inclusão territorial, so-
instrumento "nada ter a dizer a elas" (p. 91). bretudo em torno da posse segura e do direito à moradia; e (ii) as possibilidades
Assim, Villaça conclui que "o apelo aos planos é uma farsa que, de um de o Plano Diretor desenvolver processos de gestão democrática da cidade.
lado, contribui para desacreditá-los e desmoralizá-los, e, de outro, e contraditoria-
mente, ajuda a sustentação de uma imagem de salvação tecnocrática. Esse apelo Planos diretores e a inclusão socioterritorial
contribui também para mostrar que os planos não são elaborados para ser leva-
dos a sério. São cortinas de fumaça para tentar ocultar o fracasso da classe domi-
O Plano Diretor, segundo a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da
nante em resolver os problemas urbanos. Os planos são uma clara manifestação
Cidade é "o instrumento básico, fundamental para o planejamento urbano, com
da força da ideologia da tecnocracia que ainda perdura entre nós" (p. 20-21).
o qual todos os demais instrumentos da política urbana devem guardar estreita
Nessa linha de análise, a ilusão do Plano Diretor decorreria "do abismo que se-
relação e harmonizar-se com seus princípios, diretrizes e normas", podendo ser
para o seu discurso.da prática de nossa administração municipal e da desigualda-
considerado, portanto, "a matriz do desenvolvimento urbano do município"
de que caracteriza nossa realidade política e econômica" (p. 90). O autor termina
(Lacerda et ai., 2005). Nesse sentido, é evidente que a concepção de Plano
argumentando que, no fim de tudo, no Plano Diretor, sobra "pouco ou nada que
Diretor vigente no Estatuto da Cidade representa uma ruptura com as antigas
seja do interesse público. Nada que seja do interesse da maioria da população.
concepções urbanísticas, centradas na ordenação físico-territorial das cidades, ten-
Nada que oriente o futuro ou o destino da maior parte da cidade!" (p. 91).
do como principal instrumento as leis de uso de solo e zoneamento, que, historica-
Consideramos a análise de Villaça uma provocação teórica e política de mente, serviram aos interesses das classes dominantes e contribuíram para a cons-
grande relevância, exigindo uma reflexão profunda sobre as estratégias propostas trução de uma dinâmica contraditória entre a cidade legal e a cidade real (Maricato,
pelos intelectuais, técnicos e lideranças sociais vinculados ao campo da reforma 1996). Nesse sentido, e tomando como referência as formulações de Lefebvre
urbana. Cremos, inicialmente, que é necessário reconhecer que a nova concep- (1999), poderíamos inclusive dizer que o urbanismo, enquanto ideologia, esteve
ção de planejamento urbano ainda não se traduziu em metodologias e instrumen- historicamente a serviço da dissimulação das contradições urbanas, contribuindo
tos de um planejamento politizado, e os avanços, quando existentes, ainda são para a produção da cidade desigual e segregada que caracteriza nossa sociedade.
fortemente dependentes da existência de um corpo técnico no interior das adminis-
A partir da segunda metade da década de 1980, impulsionada por idéias
trações comprometido com sua proposta. Para além da discussão da cidade que
que vinham sendo debatidas desde os anos 1960, começa a organizar-se o mo-
temos e da cidade que queremos, 8 há uma lacuna na perspectiva da identificação
vimento nacional de reforma urbana, com uma agenda centrada no fortaleci-
dos interesses sociais e econômicos na produção e gestão das cidades e na avalia-
mento da regulação pública do solo urbano condizente com os princípios da
ção sobre as possibilidades de construção de pactos socioterritoriais que, efetiva-
função social da propriedade, na gestão democrática da cidade e na inversão de
mente, regulem as relações entre os atores que intervêm na cidade.
prioridades no tocante à política de investimentos urbanos de forma a favorecer
as necessidades sociais das camadas menos favorecidas (Santos Junior, 1995),
movimento este que deu origem ao Fórum Nacional de Reforma Urbana, cujas
8
bases sociais envolvem intelectuais ligados à temática urbana, engenheiros, urba-
Grande parte das metodologias populares de discussão dos planos diretores incorporou dinâmicas
baseadas nesse modelo, onde a discussão previa um primeiro momento, destinado a elaboração de nistas, advogados, educadores, ativistas do movimento sanitarista, estudantes e
um dlngnóstlco populnr da cidade, A Cldnde que Temos, e um segundo, destinado ao levantamen- lideranças dos movimentos dos Sem-Teto e das associações de bairro, com pre-
to de propostas, A Cidade que Queremos. Mesmo reconhecendo os avanços que esta metodologia
proporcionou, vinculados à ampliação da discussão na direção dos segmentos populares, cremos
sença nas diferentes regiões do país. Nesse sentido, podemos dizer que esse mo-
que é necessário reíletir sobre seus limites.
146 · Orlando Alves dos Santos Junior PLANEJAMENTO Ul\UANO NO BRASIL: THAJETÓ RIA, AVANÇOS E PEl\SPECTIVAS • 147

vimento urbano deu origem a um novo sujeito coletivo, mais plural e heterogê- parcela das lideranças que se envolvem nos espaços institucionais, seja através da
neo que a maioria das organizações sociais até então existentes. sua atuação nos conselhos setoriais, seja na discussão da legislação urbana e dos
A questão é reconhecer que nesse processo que combinou lutas sociais e planos diretores, também está inserida nas lutas cotidianas, nas ocupações de ter-
reflexões conceituais desenvolveu um novo paradigma, ou mais precisamente, as ras urbanas e prédios vazios, nas manifestações públicas pelo acesso aos serviços
bases de um novo paradigma, que podemos denominar da cidade-direito, ligado de saneamento ambiental e pelo barateamento do transporte público, nas ações de
ao campo da reforma urbana, que tem se caracterizado pela construção de diag- pressão pela melhoria dos serviços de saúde e educação, por lazer e cultura.
nósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégias Nesse sentido, como sugere Costa (1999), concordamos que a discussão,
para um projeto alternativo de cidades. com base em Lefebvre, sobre a dialética entre valor de troca e valor de uso do
No campo institucional, a proposta da reforma urbana se materializou nos espaço, permite avanços significativos na análise dos processos socioespaciais
artigos 182 e 183 da Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, mas também (Costa, 1999, p. 14) e na elaboração de novas estratégias de construção do direi-
em muitas constituições estaduais, leis orgânicas municipais e planos diretores, e to à cidade. Para Lefebvre (1993), esta dialética se expressa no confronto entre o
tantas outras leis e projetos urbanos no âmbito estadual e local, resultando em espaço abstrato, resultado dos processos de transformação do espaço em merca-
avanços, muitos deles pontuais, no acesso ao direito à cidade. No âmbito fede- doria, e o espaço social, produzido no processo de apropriação da cidade pelos
ral , esses avanços podem ser mais facilmente demonstrados com a criação do diversos grupos na sua cotidianidade.
1 Ministério das Cidades e a institucionalização do Conselho das Cidades, resul- Nessa direção, devemos avançar, seguindo a formulação de Lefebvre
tando, entre outras conquistas, na elaboração de novas políticas no campo da (1999), na compreensão das dimensões do fenômeno urbano. O autor indica três
habitnção, do saneamento ambiental e da mobilidade e transporte público dimensões, que seriam propriedades essenciais do fenômeno urbano. Primeiro,
(Santos Junior, 2005). No âmbito estadual e local , apesar da quase inexistência "a projeção das relações sociais no solo", envolvendo "as mais abstratas, as
de balanços mais gerais, se tomarmos como referência a política regularização oriundas da mercadoria e do mercado, dos contratos ou quase-contratos entre os
fundiária e de habitação, é inegável que há novidades em termos dos instrumen- agentes à escala global". Segundo, o espaço urbano como "lugar e terreno onde as
tos utilizados e dos resultados alcançados, que, com todas as suas debilidades, estratégias se confrontam", incluindo as instituições, organizações e agentes urbanos.
não pode ser desprezado.9 Além disso, é preciso considerar a construção de no- E por fim, a "prática urbana", que se refere à realidade concreta, e que não podem
vos espaços institucionais, notadamente em torno dos conselhos setoriais, que se ser reduzidas "às ideologias e instituições globais, concernentes.ao espaço e sua or-
configuram como esferas públicas ampliadas com potencial de gerar novos pa- ganização, nem as atividades particularmente denominadas 'urbanísticas"' {p. 85).
drões de interação entre o poder público e a sociedade, na direção do que vem sem O que nos interessa nessa formulação é chamar a atenção para a necessida-
denominado de governança democrática pela literatura (Santo Junior; Ribeiro; de de análise mais complexas da dinâmica socioespacial, que levem em considera-
Azevedo, 2004). E, por fim, cremos que não podemos deixar de registrar que no ção a interação entre esses diferentes aspectos, as práticas institucionais, a dinâmica
âmbito internacional inicia-se um processo de discussão em torno da Carta Mun- econômica, a intervenção dos agentes e as cotidianidades. Nesse sentido, a luta
dial pelo Direito à Cidade, de iniciativa do Fórum Nacional de Reforma Urbana, institucional não deveria ser analisada separadamente da luta social, e aparentes
mas que hoje conta com a adesão de muitas outras redes internacionais, principal- fracassos nas conquistas institucionais nem sempre significam recuos na construção
mente na América Latina, propondo que o direito à cidade seja reconhecido, de práticas renovadas no âmbito social. Como afirma Costa (1999, p. 16) "trata-se
pelo sistema das Nações Unidas, como um direito coletivo difuso. 10 de uma perspectiva de análise socioespacial que leva em conta, além dos princípios
Mas os avanços institucionais são apenas uma das dimensões desse proces- da economia política, aspectos importantes das contribuições relacionadas ao estu-
so, que envolve contradições e lutas cotidianas. De fato, é possível afirmar que do do cotidiano, de identidade, de comunidade etc...".
Concretizando, poderíamos supor, por exemplo, que a participação em
9
processos de elaboração dos planos diretores pode trazer resultados positivos
Para uma avaliação da política habitacional, consultar Cardoso e Ribeiro (2000); pa ra a política de
regul1:1rização fundiária, consultar o banco de experiências no site do Instituto Polis (www.polis.org.br). para a compreensão da dinâmica da cidade e para a elaboração de um projeto
'º A Carta Mundial pelo Direito à Cidade começou a ser discutida no 1 Fórum Social Mundial (2001), na mais global de reforma urbana para as organizações sociais nele envolvidas, tra-
cidade d2 Fbrto Alegre, como um instrumento dirigido a contribuir com as lutas urbanas e com o processo zendo conseqüências para as estratégias de luta que serão acionadas, mesmo
de reco!'lhecimento no sistema internacional dos direitos humanos do direito à cidade. Nela, o direito à
cidade se define como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da que naqueles processos que não apresentam avanços na perspectiva urbanística.
justiça socjal, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado.
148 ·Orlando Alves dos Santos Junior PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇO S E PERSPECTIVAS · 149

O que não implica que não devamos rever as estratégias de atuação nos espaços !acionados à cultura sociopolítica, na qual incidem outros elementos da história
institucionais, em razão dos bloqueios estruturais observados em sua dinâmica. política do país, que explicariam a existência de um híbrido institucional, como
De fato, os limites observados no processo de elaboração dos planos dire- denomina Wanderley Guilherme dos Santos (1993), ou o contexto da cidadania
tores são diversos e complexos. A construção de um pacto socioterritorial, tal na encruzilhada, como prefere José Murilo de Carvalho (2001) . Nesse sentido,
como formulado na concepção da reforma urbana, implica em identificar os talvez possamos entender melhor a alta abstenção dos segmentos populares do
processos sociais e econômicos de produção do espaço urbano e os agentes processo de discussão dos planos diretores se conseguirmos estabelecer uma re-
individuais e coletivos que atuam nesses processos, segundo seus interesses e lação entre a dinâmica de participação sociopolítica e os processos de exclusão
valores, com suas identidades e antagonismos. Antes de tudo, é necessário le- socioterritorial, que impedem a constituição da nossa cidadania.
var em consideração as desigualdades sociais e de poder que intervêm sobre a Isso não implica, no entanto, que não seja necessário uma reflexão sobre a
manutenção e reprodução dos processos de hierarquização e segregação das ci- agenda de discussão e os instrumentos que têm sido propostos na elaboração dos
dades, o que torna a implementação dessa concepção um desafio ainda maior. planos diretores. Cremos que ainda prevalece uma cultura urbanística tecnocráti-
Além disso, podemos identificar limites decorrentes da ausência de instrumentos de ca que, de fato, impede inovações na perspectiva de incorporar novos instrumen-
gestão democrática no âmbito dos municípios, na maior parte ainda administrados tos e políticas no plano. Aqui, cabe mais uma vez uma referência a Lefebvre
por coalizações políticas conservadoras, e das estruturas administrativas munici- (2001, p.113), que propõe uma estratégia urbana baseada em dois pontos: (i) um
pais, que, em grande parte, possuem quadros técnicos em número reduzido e não programa de reforma urbana, formulado com base no conhecimento da realidade,
suficientemente qualificado para desempenhar as novas tarefas requeridas pelo produzido pela ciência da cidade, e sustentado por forças sociais e políticas, que .
planejamento urbano politizado (Lacerda et ai. , 2005). assumem o papel de sujeitos dessa proposta; e (ii) projetos urbanísticos, "compre- ·
Há ainda dÕis aspectos que consideramos importantes: o primeiro relacio- endendo 'modelos', formas de espaço e de tempo urbanos, sem se preocupar com
nado à incorporação das demandas populares na agenda de discussão e o se- seu caráter atualmente realizável", resultado do imaginário coletivo e da práxis, que
gundo, à baixa participação das classes populares no processo de elaboração dos "se investe na apropriação do tempo, do espaço, da vida filosófica, do desejo", e
planos diretores municipais. que não exclui "proposições referentes ao estilo de vida, ao modo de viver na cida-
de, ao desenvolvimento urbano em relação a esse plano".
As organizações populares têm participado do processo de elaboração dos
planos diretores, o que pode ser evidenciado pela composição da coordenação na- Em suma, queremos argumentar que os interesses das classes populares
cional da campanha, no âmbito federal, como também pela análise das organizações não podem ser reduzidos às demandas pontuais, ao acesso à habitação, à urba-
que integram os núcleos estaduais da mesma e que participaram das atividades de nização, aos serviços de saneamento ambiental, ao transporte público de qua-
capacitação que foram promovidas. No entanto, isso não implica em dizer que essas lidade, apesar de dever incluí-los, mas envolve um novo projeto de cidades. E
organizações, das quais os Sem-Teto são uma das expressões mais relevantes, este- nesse ponto, é preciso considerar que a construção de princípios, diretrizes e
jam atuando nesse processo em detrimento de outras formas de luta, tais como as paradigmas que possam orientar e organizar as lutas sociais, ainda que setorial-
ocupações de imóveis vazios, atos públicos etc. Ao contrário, temos fortes razões, mente, não deve ser desprezada. Aliás, é pela práxis, que envolve lutas e con-
tomando em conta o monitoramento dos conflitos urbanos realizado pelo Fórum tradições vividas no cotidiano e nos espaços institucionais que muitas pessoas
Nacional de Reforma Urbana, que essas manifestações têm aumentado em todo começam a desenvolver sua consciência social.
país. Tal fato é um indício de que essas organizações não estariam tomando parte do
processo, enganadas pela "ilusão do plano diretor", mas que, pelo menos suas prin- Planos diretores e a gestão democrática das cidades
cipais lideranças, percebem que esse é um espaço que deve ser ocupado.
No entanto, é concreto que os processos de discussão dos planos diretores A reflexão em torno da segregação socioespacial e de seus efeitos sobre a
não conseguem mobilizar as maiorias, as classes populares, apesar de ser neces- condição de autonomia dos agentes sociais e o exercício efetivo da cidadania
sário contextualizar essa generalização, tendo em vista a diversidade regional do pode contribuir para discussão sobre os planos diretores e a gestão democrática
país e as diferenças de contexto social. Tal fato, somente em parte, pode ser ex- das cidades e iluminar algumas estratégias, tendo como referência a agenda da
plicado pela agenda de discussão, que não contempla as demandas concretas reforma urbana.
dos segmentos populares, já que é necessário incorporar na análise aspectos re-
P LANEJAMENTO URBANO NO D RASIL: íRAJl! IÚR IA, AVANÇOS E PEllSPECTIVAS' 151
150 ·Orlando Alves dos Santos Junior

Em primeiro lugar, cremos que é necessário refletir sobre as transformações cais. A cidade não é mais tratada como totalidade, e a noção de cidadania
da dinâmica urbana de ordenação espaço-temporal e de seus impactos sobre a perde sua conexão com a idéia de universalidade. Por isso mesmo, surge um
divisão social da cidade (Ribeiro; Santos Junior, 2005). Desde os célebres traba- novo vocabulário que expressa a nova representação privada da relação entre
lhos de David Harvey (1980) sobre a cidade e ajustiça social, entendemos que a governo e população que se está construindo: clientela, parceria, consumido
dinâmica urbana não apenas reflete a estrutura social de uma dada sociedade, etc. A questão é avaliar até que ponto essa concepção tem influenciado no
como também se constitui em um mecanismo específico de reprodução das desi- desenho e na implementação da atual política urbana e discutir seus efeitos
gualdades e das oportunidades de participação na distribuição da riqueza gerada sobre o quadro de destituição das camadas populares e a repartição do espaço
na sociedade. O que permite afirmar que a chamada estrutura urbana expressa, político brasileiro entre hipercidadãos e subcidadãos.
com efeito, as desigualdades existentes em uma cidade, no que se refere ao acesso Além disso, a literatura recente fornece muitos elementos que nos permi-
aos recursos materializados no espaço urbano, em razão da localização residencial tem supor que os lugares de moradia das classes populares empobrecidas passam
e da distribuição desigual dos equipamentos, dos serviços urbanos, da renda mo- a exercer um papel de desagregação social, pois estão destituídos das condições
netária e do bem-estar social. As transformações sociais, políticas e econômicas necessárias à inserção na dinâmica econômica e, ao mesmo tempo, têm destruído
contemporâneas, decorrentes do processo identificado como globalização, nos a sociabilidade e os processos de construção das identidades no lugar de moradia,
levam a constatar a existência de fortes indícios de partição socioterritorial da necessários à constituição de comunidades de interesses, resultando em obstáculos à
cidadania, o que pode estar reforçando tendências de dualização e fragmentação formação de ações coletivas em um contexto de crescente fragmentação social (Cas-
já presentes historicamente na sociedade brasileira. A nosso ver, tais tendências tel, 1998; Wacquant, 2001; Ribeiro, 2004). Mesmo admitindo que os impactos do
requerem o aprofundamento do estudo sobre o processo de acumulação capita- processo de globalização sejam diferenciados não só entre os países, mas também no
lista - com os efeitos da combinação da reprodução expandida do capital e da interior desses, podemos admitir que todas as cidades estão hoje submetidas a ten-
acumulação por espoliação, conforme formulado por David Harvey (2004) - na dências destruturadoras que atingem mais fortemente os bairros periféricos das me-
produção do espaço urbano contemporâneo, e que por essas razões fogem ao trópoles, já marcados por contextos de fortes desigualdades sociais. Tais tendências
objetivo deste texto e portanto não serão desenvolvidas nele. decorreriam do fato da segregação socioespacial, resultante das transformações eco-
lima segunda reflexão importante está relacionada às esferas públicas de nômicas e políticas em curso, tornar vulnerável não somente os indivíduos, mas o
regulação da relação entre o poder público e a sociedade, à dinâmica de parti- próprio tecido associativo, expresso nas redes de solidariedade e de filiação social no
cipação social e aos modelos de planejamento urba no. De uma mane ira es- âmbito dos locais de moradia das classes populares. •
quemática, parece possível afirmar que estamos diante da disputa entre dois O outro paradigma que denominamos da cidade-direito na verdade está
paradigmas de política urba na, que, com base no que vem sendo discutido na em construção, tanto no seu aspecto teórico como na práxis sociopolítica . Em
literatura, denominamos preliminarmente de paradigma da cidade-mercado gestação em um largo conjunto de experiências, sobretudo nas novas administra-
versus o paradigma da cidade-direito de intervenção pública , com seus dife- ções municipais, mas também em algumas políticas de caráter estadual e nacio-
rentes impactos sobre a dinâmica das cidades. nal, este paradigma afirma o papel central do poder público no planejamento
No paradigma da cidade-mercado, onde se situam as estratégias de empre- urbano e o seu compromisso com o enfrentamento dos mecanismos de produção
sariamento urbano, city marketing, e certos modelos de planejamento estratégico de desigualdades e exclusão decorrentes da vigência da dinâmica do mercado no
(Harvey, 1996; Vainer, 2000; Sánchez, 2001). a política urbana é transformada uso e ocupação do solo urbano e do controle do poder político pelos históricos
em relações de mercado, no qual ganha quem tem maior poder para impor os interesses patrimonialistas. No entanto, ainda é difícil traduzir essa concepção em
lucros e os custos da ação do poder público. Nessa concepção, a participação um discurso estruturado, talvez pela conjuntura de forte hegemonia das idéias
estaria fundada no reconhecimento dos agentes como clientes-consumidores, neoliberais que, mesmo negadas, têm influenciado fortemente a recente produ-
portado1es de interesses privados, impedindo a construção de uma esfera pública ção intelectual brasileira. Não obstante, tal fato não nega a importante produção
que seja a expressão do interesse coletivo. No plano do planejamento, este pa- de diversos intelectuais, empenhados na construção de outros referenciais teóri-
radigma busca sua legitimação através de estratégias discursivas fundadas nos cos e práticos capazes de rivalizar com o diagnóstico e as soluções propostos pelo
modelos de planejamento estratégico, em experiências bem-sucedidas e na re- modelo da cidade-mercado de política urbana.
ferência de cidades-modelos, difundidas pela ação de atores hegemônicos que A disputa entre esses diferentes modelos atravessa o processo de elaboração
articulam agências multilaterais, capitais financeiros, governos nacionais e lo- dos planos diretores. Na perspectiva da reforma urbana, o desafio está ligado à cons-
152 ·Orlando Alves dos Santos Junior PLANEJAMENTO URIJANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 153

trução de esferas públicas democráticas, que contribuam para tomar substantiva a fenômeno urbano prisioneiro da análise fragmentária, subordinado aos conceitos
dinâmica democrática, intervindo "fortemente nos 'padrões de sociabilidade' através urbanísticos da sociedade industrial.
de investimentos para a criação de espaços públicos em que as classes se apresentem No plano sociopolítico, a estratégia está centrada no reconhecimento polí-
e se identifiquem" e também "realizando políticas culturais que busquem dissolver a tico institucional da problemática urbana e na elaboração de um programa de
separação da cidade fragmentada" (Genro, 1999, p. 17, grifos no original). promoção do direito à cidade, atualizando a agenda da reforma urbana de forma
Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração que essa disputa não que esta responda aos desafios decorrentes das transformações sociais e econô-
incide somente no plano local, mas atravessa todos os espaços institucionais e micas contemporâneas. Tais estratégias encontram sua síntese no que denomina-
níveis de planejamento, envolvendo os âmbitos supralocais, metropolitanos, re- mos de planejamento urbano como práxis transformadora.
gionais, e o nacional. Nesse sentido, os avanços identificados na perspectiva da Se olharmos as experiências de planejamento urbano em curso, incluindo
construção de uma política nacional de desenvolvimento urbano jogam um pa- aí os processos de elaboração dos planos diretores, poderemos concluir que
pel decisivo nos rumos das cidades brasileiras. Além disso, é preciso considerar os estamos diante de grandes desafios na perspectiva da construção de novos
desafios relacionados à dinâmica metropolitana, ainda pouco considerados nas paradigmas de planejamento. No entanto, diríamos, mais uma vez inspirados
análises sobre a dinâmica urbana . em Lefebvre, que é preciso ver nessas experiências de participação e na diversi-
Em todas essas esferas, os pequenos aprendizados produzidos no processo dade de práticas urbanas empreendidas pelos diferentes agentes sociais aprendi-
de participação, seja por meio da incorporação de demandas específicas dos zados que conformam a práxis que poderá gerar uma nova utopia do direito à
grupos populares na lógica e na ação do poder público, seja por meio dos coníli- cidade, capaz de desenvolver novos processos de reapropriação, pelos seres hu-
tos experimentados com os outros grupos de interesse na definição da política manos, do espaço e da sua temporalidade.
urbana, teriam o potencial de fortalecer a atuação dos atores locais, através do
alargamento da compreensão do fenômeno urbano e da discussão de novos
projetos e estratégias de intervenção sobre as cidades. Nesse sentido, podemos
falar do desafio de desenvolver uma nova pedagogia emancipatória de planeja- Referências
mento das cidades, que incorpore esses elementos. BORON, Atilio A. Tras e/ Búho de Minerua: mercado contra democracia en el capitalismo de ;
fin de siglo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000.
Diríamos, referenciando-nos em Lefebvre (1999), que a reflexão sobre o fenô-
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo cien-
meno urbano deve definir uma dupla estratégia, articulada e inseparável: a estratégia
tífico. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
do conhecimento e a estratégia sociopolítica. No âmbito do conhecimento, essa es-
CARDOSO, A. L.; RIBEIRO, L. C. Q. (Org.). A municipalização das políticas habitacionais
tratégia implica em uma crítica radical dos modelos urbanísticos tradicionais e de suas - uma avaliação da experiência recente (1993-1996). Rio de Janeiro: Observatório-
contradições, e o desenvolvimento de uma ciência do fenômeno urbano. IPPUR/UFRJ-FASE, 2000.
Nessa perspectiva, inspirando-nos em Bourdieu (2004), diríamos que é CARVAUiO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
preciso esperar da análise acadêmica em tomo da dinâmica urbana revelações CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis:
radicais. As análises comprometidas com esse ideário têm por desafio colocar em Vozes, 1998.
perspectiva os discursos e as visões perspectivas dos agentes, desvelando o sen- COSTA, Geraldo Magela. Teorias socioespaciais: diante de um impasse? Trabalho apresentado
tido de suas práticas e interesses e os conflitos sociais e políticos daí decorrentes, no Vlll Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento
na busca pela legitimação e universalização de suas posições particulares. Isso Urbano e Regional - ANPUR. Porto Alegre, maio de 1999. Mimeografado.
implica, de um lado, no desvelamento dos .mecanismos de articulação das desi- DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e o futuro
do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
gualdades sociais e os processos de diferenciação, segmentação e segregação
urbana como elementos estruturadores da dinâmica socioespacial vinculada ao GENRO, Tarso. Um debate estratégico. ln: MAGALHÃES, Inês; BARRETO, Luiz; TRE-
VAS, Vicente (Org.) . Gouerno e cidadania: balanço e reflexões sobre o modo pelista de
processo de reestruturação socioprodutiva e de globalização capitalista; e, de ou- governar. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999.
tro, que as análises da dimensão territorial das políticas públicas devem romper
HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
as barreiras e os bloqueios que impedem que o fenômeno urbano seja reconhe-
cido, ou seja, utilizando os termos propostos por Lefebvre (1999), que mantêm o HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração
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154 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça PLANEJAMENTO URBANO NO 8RAS1~: TKAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECTIVAS · 155

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PLANEJAMENTO UHDANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSl'ECTIVAS • 157

suposto de que informação de qualidade confere poder aos habitantes e politiza


Plano Diretor, gestão urbana e o processo de planejamento.
participação: algumas reflexões O Estatuto permite o exercício de inovações no planejamento urbano, em-
Ralfo Edmundo da Silva Matos bora parte dessas inovações possa produzir resultados diferentes do esperado,
por força de persisten!es heranças tecnocráticas ou de tipos renovados de populis-
mo governamental. E evidente que o Estatuto pode esconder insuficiências só
elucidadas com o tempo, já que a força dos poderosos e a pobreza dos pobres
A possibilidade de se instaurar novas práticas de planejamento e gestão podem aumentar, não obstante a premissa da negociação, dos consórcios e par-
urbana no Brasil, em bases jurídicas, urbanísticas e financeiras mais sólidas, vem cerias supraclassistas, figuras de gestão menos radicais que as idealizadas no passa-
se tornando mais factível desde a Constituição de 1988 e posterior à aprovação do - quando a polaridade ideológica direita versus esquerda era mais evidente.
do Estatuto da Cidade em 2001. Uma crítica que se faz ao Estatuto, do ponto de vista socioespacial, é que 1
Apesar de uma trajetória de "altos" e "baixos", o planejamento urbano ao concentrar-se enfaticamente no espaço urbano deixa de fora a maior parte da
vinha assumindo crescente importâ ncia no Brasil há muito tempo. A Constituição área física dos municípios. Muitas áreas externas aos perímetros urbanos são ló-
de 1988 e a exigência de planos diretores para os municípios com mais de 20.000 cus de expansão da urbanização e de diversas formas de assentamentos e insta-
habitantes vieram reforçar essa importância, disseminando certa expectativa po- lações que interferem diretamente na cidade legal. É também nas áreas rurais que
sitiva com respeito à idéia de planejar e gerir cidades. A aprovação do Estatuto ocorrem, até os dias de hoje, boa parte dos conflitos fundiários do país, vários
da Cidade (Lei n'!lü. 257 de 10 de julho de 2001) ampliou essa expectativa em deles opondo protagonistas tão polarizados ideologicamente quanto aqueles do
face dos possíveis impactos que essa lei pode produzir na gestão urbana, uma vez início dos anos 1960, quando a questão da terra era muito mais aguda.
que, se o processo de planejamento incorpora a participação da população - por Entretanto, ainda assim parece inegável que a Lei nº 10. 257 introduz avan-
meio de eventos e fóruns deliberativos - mais tarde, na fase de discussão orça- ços jurídicos e urbanísticos importantes que regulamentam, redefinem ou detalham
mentária, seleção e execução de projetos, as comunidades locais, mais experien- instrumentos tais como: o imposto sobre a propriedade predial e territorial; a desa-
tes, estarão preparadas para dar continuidade ao processo participativo. propriação e tombamento de imóveis; a concessão de uso especial para fins de
O Estatuto da Cidade coroa um longo período de experiências, críticas e moradia; o parcelamento ou edificação compulsórios, o usucapião especial e con-
sugestões relacionadas ao planejamento urbano no Brasil, além de procurar dar tribuição de melhoria, o direito de superfície, o direito de preempção; e outorga
suporte às administrações municipais ao favorecer a flexibilização de ações no onerosa do direito de construir e de alteração de uso; a transferência do direito de
trato com a coisa pública, quando preserva o interesse social, mas introduz a construir; as operações urbanas consorciadas; a regularização fundiária; a assistên-
política como a chave das negociações no palco dos conflitos que são intrínsecos cia técnica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos, as
aos processos espaciais. unidades de conservação e zonas especiais de interesse social etc. 2

Parte dos conteúdos que informam a Lei nº 10. 257 e os manuais disponi- Algumas de suas diretrizes3 fazem parte dos chamados "direitos àifusos",
bilizados pelo Ministério das Cidades baseiam-se no princípio da liberdade de difíceis de aplicar, mas necessários ao exercício da democracia e expansão dos
expressão, fundamento das democracias modernas, 1 mas que só se consubstan- direitos civis. Assim , a "garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido
cia mediante o acesso dos munícipes a informações seletivas (que dizem respeito como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento a mbiental, à infra-es-
especificamente à sua condição de vida na sua cidade). Com isso, subjaz o pres- trutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, e ao lazer, para
as presentes e futuras gerações" , soa não-pragmático e pode parecer inatingível

2
1 Aqui convém trazer algumas reflexões que associam participação e democracia, algo que alude ao O Estatuto da Cidade possui três peças chaves que dão respaldo às atividades de planejamento e
antigo conceito politeia, "expressão grega genérica para as formas de associação de homens livres, gestão municipais: o Direito à Cidade e à Moradia, o IPTU progressivo, e a Função Social da Proprie-
as comunidades de cidadãos, definidas por oposição àquelas por natureza despóticas, em que os dade (condicionada por lei federal à existência de Plano Diretor). Todos possuem graus variáveis de
governantes, um ou alguns, governam( ... ) segundo sua próprl11 vontade". Rousseau renova os traços dlílculdades em sua efetiva aplicação.
3
da politeia ao estender a cidadania a todos os homens livres, e ao introduzir a premissa do "exercício Algumas das citações subseqüentes foram retiradas do Gul11 do Estatuto da Cidade disponibilizado
ativo' , participação popular apoiada pela Idéia de poder soberano constituído juridicamente, traço pelo Ministério das Cidades que arrolam as diretrizes e objetivos do Plano Diretor, Instrumentos e
característico do que se pode denominar regime republicano moderno. (Cardoso, 2004, p . 47-50). comentários sobre a aplicação do Estatuto da Cidade (ver website: \Vl.VW.cidades.gov.br.).
158 · Ralfo Edmundo da Silva Matos P LANEJAMENTO Ul\llANO NO BRASIL: 'I llAJ ~TÓl\IA, 1'1VANÇOS E r ERSl'ECflVAS. 159

no médio prazo, mas ampara-se em uma das mais ricas tradições do pensamento aquela que coordena e promove as principais intervenções ordenadoras do cres-
urbanístico, o princípio da utopia. cimento físico dos municípios, estabelece o macrozoneamento, prevê leis comple-
Essas diretrizes, por sua natureza "físico territorial", envolvem custos eco- mentares e, afinal, tenta se livrar do desgaste histórico que envolve a idéia de
nômicos significativos, porquanto são mais fortemente associadas às infra-estrutu- planejamento.
ras urbanas, materialidades, sem as quais não se alcança a meta de sustentabilida- Os planos diretores no Brasil possuem uma longa história geralmente asso-
de das cidades. A diretriz relativa à democratização, contudo, já envolve custos de ciada a equívocos, fracassos e autoritarismo, não obstante a importância dos esfor-
outra natureza. Quando se propõe a "gestão democrática por meio da participação ços de leitura e interpretação de aspectos urbanísticos e relações sociais existentes
da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunida- nas cidades. Os modelos importados que subsidiavam esses planos eram geralmen-
de na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos te inaplicáveis, apoiados em correntes teóricas visionárias, singelas ou demasiado
de desenvolvimento urbano" (grifos nossos), o que está em jogo são os meios e as mecanicistas, distantes da complexidade da realidade e das necessidades dos habi-
formas a serem utilizadas com vistas à capacitação e habilitação da população para tantes, incapazes de enxergar idiossincrasias e características mais peculiares de nos-
sua interação com as linguagens, procedimentos analíticos e proposições que fa- sas cidades. O viés antidemocrático sempre foi evidente, como se os interesses do
zem parte do planejamento. O investimento em educação formal, divulgação de Estado fossem assunto de poucos, incompreensível à população, nos moldes de
material informativo, distribuição de sinopses do plano, mobilização e convocação um "despotismo esclarecido" e/ou de um "elitismo tecnocrático".
periódica da população, é menos dispendioso financeiramente do que no caso da A técnica e os avanços tecnológicos desde fins do século XIX foram deter-
diretriz anterior, mas nem sempre desejável pelas administrações municipais ,uma minantes na construção de correntes do pensamento urbanístico que marcaram
vez que politiza o processo de planejamento e gestão. o planejamento de cidades durante grande parte do século XX, a ponto de eri-
Outra diretriz que cabe destacar, em face de seu caráter político, é a da gir-se em uma espécie de caminho único, internacional, sobre o qual a moder-
"cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da socie- nidade deveria trilhar. Os fracassos, a arrogância dos planejadores e o desgaste
dade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social". Nesse das experiências dos chamados "racionalistas"4 chegaram a tal extremo que , na
caso, os gestores municipais, mais do que a equipe de planejadores, são figuras- atualidade, nutre-se de forte desconfiança para com a tecnicalidade existente
chavc para o estabelecimento de mediações que aproximem os diferentes seg- nos planos, algo que soa absolutamente incompreensível não fosse a história
mentos da sociedade e da administração em fóruns de decisão, nos quais seja do planejamento urbano mundial.
assegurado o chamado interesse social na seleção e negociação de artigos de lei, De toda sorte, desde pelo menos as últimas experiências das New Town
programas, projetos e obras a serem implementadas. inglesas do pós-guerra até os anos 1960, a excessiva idealização contida nos
O Estatuto da Cidade requalifica, fundamenta juridicamente, estabelece ins- planos urbanos cedeu lugar ao pragmatismo da gestão e às exigências de exeqüi-
trumentos e dá consistência técnica aos planos diretores, os quais, por definição, bilidade e reconhecimento dos habitantes. As injunções econômicas, as clivagens
vão aiém da cidade oficial, já que, por serem de abrangência municipal, exigem a funcionais multifacetadas da vida em sociedades urbanas, a atenção para com os ·1
atenção para com uma série de leis e normas atinentes ao meio ambiente, reservas investimentos geradores de emprego, as preocupações com o meio ambiente e as
naturais, áreas de proteção permanente, atividades agropecuárias etc. questões relativas a identidade, cultura, modo de vida e democracia passaram a 1

Ao que tudo indica, o Plano Diretor internaliza todos os avanços da Lei nº fazer parte das novas experiências de planejamento. O plano gradativamente
10. 257, e a reforça por meio de quatro premissas norteadoras: a) a relativa às torna-se uma lei abrangente que deve responder pela diversidade espacial lo-
funções sociais da propriedade e da cidade; b) ada igualdade e da justiça social; cal, exprimir diretrizes mais ou menos flexíveis, capazes de estimular a coesão
c) a da participação popular; d) a do desenvolvimento sustentável. Esta última, social e promover instrumentos que favoreçam a redução das desigualdades e
claramente extrapola a área urbana, porquanto introduz inúmeras implicações de- a difusão de práticas de solidariedade e liberdade. São inúmeras as ações e
rivadas da utilização de recursos naturais e de impactos ambientais resultantes de atitudes passíveis de serem delineadas pelo processo de planejamento, inclusi-
práticas econômicas agrícolas, extrativistas, industriais, nem sempre discerníveis
aos residentes no interior do perímetro urbano.Na atualidade, o Plano Diretor, ba-
lizado pelo Estatuto da Cidade, se apresenta renovado, passa a ser a síntese geral 4Choay (1965) e Benévolo (1981) dissecam em suas obras seminais as correntes do pensamento
da regulação urbana municipal, a lei maior no interior da legislação urbanística, urbanístico, sua gênese, limitações e as conseqüências que deixaram no planejamento de cidades na
modernidade.
f'
d''

160 · Ralfo Edmundo da Silva Matos PlANE)AMENro URBANO NO BRASIL: TRAJIITÔRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 161

ve como modus operandis de conferir legitimidade às proposições e interven- • exposições muito herméticas das equipes de planejadores, o que resulta em
ções corretivas a serem apontadas pelo plano. tecnicismo e distanciamento entre os interlocutores. Com isso pode negligen-
ciar aspectos técnicos centrais para o município, os quais deveriam ser didati-
. camente bem explicitados nas audiências, mas não raro, são omitidos ou se
Difladdades na elaboração de planos diretores ~.

confundem no jogo das disputas entre setores, atores e localidades rivais;

Se a cidade é palco de oportunidades, é também espaço de conflito e ex- • enfrentamento de grupos políticos de situação e oposição orientados
clusão. Com a exclusão e o aumento das desigualdades torna-se anticidade, 16- pela intolerância, animosidade, rivalidades históricas, baixa prática política
cus de cerceamento, interdições, segregação e pobreza. A pergunta sobre qual e ausência de compromisso para com o planejamento;
cidade a maioria dos residentes quer é, portanto, recorrente. Um espaço mais • dificuldade de aceitação das deliberações resultantes das audiências
permeável à criação humana, ao encontro, ao usufruto de todos, aos eventos em por vereadores, supostamente desprestigiados nesses momentos de con-
instalações e equipamentos leves? Ou um espaço mais rígido, menos suscetível a sulta popular;
flexibilidade, que venha consagrar ocupações e usos tradicionais, monumentais, • desinteresse de grande parte da população para com os temas a serem
pesados em termos paisagísticos? Tais oposições, na verdade, dificilmente se sus-
discutidos, mesmo com toda a publicidade dada aos event0s.
tentam na prática, porquanto elementos de mudança acabam por interferir em
proposições mais conservadoras, de um lado, e valores "conservacionistas" in-
fluem nas proposições de mudança mais radicais, por outro. A título de síntese e contribuição para o debate, apresenta-se a seguir um
Esses horizontes podem igualmente comparecer no debate sobre os rumos da conjunto de comentários referidos às dificuldades existentes envolvendo plano e
cidade, em um tempo em que o pressuposto da pluralidade soma-se às noções de re- gestão, sem perder de vista a centralidade de certos atores que, em princípio,
pública e de democracia, o que evoca decisões da maioria, mas respeito às diferenças participam da contratação, supervisão, elaboração, discussão e aprovação de um
no interior das disputas e dos conflitos no espaço. O contencioso, em termos de gesrao plano diretor na atualidade.
pública moderna, não se dissocia da possibilidade da negociação e do seu gerencia-
mento institucional, como uma espécie de construção continuada de consensos - tem- Atores e dificuldades espedflcas
porários ou mais definitivos -, condição sem a qual fica difícil faz.er política nos dias de
hoje. O debate e o confronto de atores e segmentos organi7.ados da sociedade civil,
Inicialmente, é necessário considerar que os planos diretores participativos
quando informados e conscientes das regras preestabelecidas sobre o próprio debate e
exigem leituras da realidade e proposições corretivas nem sempre do agrado de
as decisões em assembléias, podem ser estimulantes e propiciar novos acordos ou mfi-
todos. Daí as perguntas básicas: planejamento para quem? Quem faz e quem
namento de decisões que irão afetar o destino de cidades e regiões.
contrata o plano?
A questão da democracia nos planos diretores e no processo de planeja-
Se, metodologicamente, essas indagações podem exigir a visualização ge-
mento territorial é complexa, desgastante, requer muita paciência dos atores e
nérica de três componentes de análise, ou seja, a população (destinatária do
continuará um desafio por muito tempo. Há problemas de toda ordem, como:
plano), a equipe técnica (responsável pela elaboração do plano), e o executivo
• Desconhecimento de normas e leis municipais e supra-municipais por municipal (o contratante), pode-se arrolar algumas das dificuldades que esse
parte do Executivo, técnicos, formadores de opinião e população; processo de planejamento experimenta em face de possíveis características e singu-
• dificuldades em distinguir as esferas do planejamento e da gestão, o que laridades dessas três instâncias. Dado o imperativo legal do planejamento participa-
causa interferências indevidas (ou omissão do executivo), impressões difu- tivo, a combinação dessas características pode, a prinápio, produzir um conjunto
sas de que os técnicos de planejamento são controlados pelo gestor públi- muito variado de resultados que irão se consubstanciar na lei do plano diretor.
co, ou, em caso contrário, de que o plano nunca seja executado; Seguem-se alguns comentários e cenários esquemáticos sobre possibilida-
• organização deficiente das audiências públicas com atrasos, falas e expo- des que a interação entre a equipe técnica, o Executluo e a população podem
sições demoradas, inserções publicitárias indevidas, precariedade de equi- produzir no resultado final do plano.
pamentos de projeção, o que provoca exaustão e cansaço das platéias;
162 · Ralfo Edmundo da Silva Matos PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS· 163

Equipes técnicas Por tudo isso, não é uma tarefa simples para as equipes técnicas discernir as
As equipes técnicas, mesmo atuando sob o "manto da democracia", podem proposições restritivas daquelas que devam ser flexíveis. O Plano Diretor certamen-
conviver com dilemas antigos que perpassam a prática profissional desse segmento. te deve conter normas regulatórias que imponham restrições à ocupação e uso de
O mais recorrente diz respeito à proximidade entre técnica e tecnocracia. A necessi- diversas áreas dos municípios devido à fragilidade ambiental, riscos socloambien-
dade de conhecimento técnico sofisticado na formulação de diagnósticos e análises tais, aptidão agrícola etc. Outras áreas, entretanto, são suscetíveis de negociação,
urbanas é indiscutível, sobretudo nas áreas de engenharia, arquitetura, geografia, formações de consórcios, parcerias público privada, conforme orientações resultan-
~eolog.i a'. .cartografia, economia, demografia, agronomia, entre outras. A transição da tes das audiências públicas e/ou características dos investimentos requeridos por
1rredutib1hdade da técnica para a arrogância tecnocrata passa por uma linha tênue e eventuais projetos de desenvolvimento econômico existentes.
c:e evidenciou em práticas internacionais impositivas do século XX, geralmente euro-
pocêntricas, etnocêntricas e sob o primado da razão positivista.s
O Executivo
As heranças do período tecnocrático não fora m eliminadas, embora muita
Do lado do Executivo conviria também levantar algumas questões que po-
reflexão, ajustes e mudança comportamental tenham se disseminado nas ativida-
dem implicar o Plano Diretor de diferentes maneiras.
des de planejamento urbano nos últimos decênios. Há, inclusive, situações curio-
sas em que integrantes de equipes técnicas, escaldados por críticas veementes e O Executivo, cujo perfil de representação política é de tipo conservador e
tantas experiências fracassadas, chegam a se esconder nos debates, abdicando-se elitista - mais ou menos como reza certa tradição liberal que se desenvolveu las-
da explicitação técnica integrante das análises e diagnósticos, o que resulta em treada pelo "espírito das leis" da Revolução Francesa - pode ser, esquematica-
omissão, provavelmente em meio à insegurança e receio de ser acusado de tec- mente, classificado de dois modos em termos de práticas de gestão municipal; o
n!ci~ta. Além disso, há também a questão da própria competência da equipe primeiro corresponderia ao que denominamos de gestão conseruadora-controlis-
tecntcél em dar conta das investigações, mensurações e conclusões sobre assuntos ta; o segundo se situaria em outra perspectiva a da gestão modemizadora-contro-
tão diversos que os planos diretores atuais ensejam.6 Afinal, se tantos municípios lista . As diferenças entre uma e outra forma de gestão são evidentes, mas em
são compelidos por força de lei a aprovarem seus planos diretores em tempo re- ambos os casos o exercício da democracia é restrito e, por conseguinte, menor o
corde, se os recursos financeiros disponíveis são escassos, é evidente que nesse grau de liberdade7 individual e comunitária, maior a dominação de um grupo
mercado a qualidade do produto final será muito desigual, não obstante os esfor- sobre os demais. O perfil conservador reporta-se ao Brasil arcaico, no qual o
ços midiáticos do Ministério das Cidades. clientelismo, eventualmente acoplado com o populismo, nu~ca passou de um
arremedo de vida republicana. Não convém minimizar as heranças no plano so-
A insensibilidade política dos técnicos é outro problema que perpassa a ela-
cial e simbólico que essa forma de representação política legou ao país, já que em
boração dos planos. A ilusão de considerar a atividade imune ao debate e à politi-
muitos lugares onde os efeitos das mudanças sociopolíticas e econômicas che-
zação ainda é comum e pode gerar a frustração profissional pela rejeição, nas au-
gam muito lentamente, os residentes encontram-se muito distantes do exercício
diências públicas, de "belas" proposições técnicas, diretrizes e recomendações. A
da cidadania. Neles, há ainda as disputas políticas calcadas na desinformação da
leitura técnica da cidade não se dissocia da leitura política, se feita mediante reco-
população, no ba ixo grau de participação civil e na forte imbricação de famílias
nhecimento dos atores locais, da representatividade das maiorias e minorias e dos
tradicionais e/ou facções de poder local nos assuntos públicos.
arranjos institucionais que conformam a vida dessas comunidades.
Por outro lado, se a gestão é de tipo modemizadora-contro/ista, as prefe-
rências do grupo político instalado no Executivo geralmente orientam-se para o
~o Br?s!I, adicionalme~te, o planej~mento tecnocrático deu continuidade à tradição elitista, oligár-
5
incentivo e proteção aos investimentos em atividades formais capazes de incre-
quica, lip1ca do mandomsmo da socedade letrada que ocupava os principais postos da burocracia mentar receitas, emprego e renda no município. Nesse caso, a preferência por
que_ a recente Proclamação da República exigia, à medida que se procurava avidamente a modemi-
zaçao a todo custo.e o ?rogresso eco~ômico de corte urbano-industrial. A importação de modelos su-
postamente de_ aphcaçao .universal ío1 uma prática recorrente e isenta de críticas por muitas décadas. 7
Aqui poder-se-ia discutir sobre os conceitos de liberdade, seja como ausência de interferência - li-
A p~ópna nov1~ade da c1d~de moderna, associada ao automobilismo e à verticalidade grandiosa, berdade negativa - , ponto-chave das concepções liberais de democracia: liberdade como defesa de
fascmav? ~m tao larga medida os corações e mentes das autoridades e sociedade, que parecia não direitos individuais, inclusive diante da esfera pública; seja sob a perspectiva dos direitos coletivos
haver duvidas sobre o acerto do caminho da modernização urba nística. - liberdade positiva -, algo que teria surgido com os humanistas da renascença italiana, quando
6
Não raro a equipe técnica é_ formada por funcionários e/ou assessores da própria prefe itura, 0 que a e ntendiam como ação dos cidadãos na cena pública ao insistirem na "participação de todos nos
~e resultar em <;_ontammaçao do Plano Diretor pelas idéias do Executivo, com forte dose de auto- negócios da cidade, como a afirmação de uma forma de vida superior", liberdade como valor do
ntansmo nas aud1encias públicas e discutível consistência das proposições sócio-urbanísticas. cidadão e não do individuo. Bignotto (2004) resgata teoricamente tais noções do humanismo cívico
e tenta adaptá-las a situações contemporãneas como a do Brasil.
164 · Ralfo Edmundo da Silva Matos P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E rERSrEcnw.s . 165

grupos econômicos de visibilidade política regional ou nacional passa a ser a A influência desse núcleo nos rumos do planejamento municipal não deve ser negli-
meta do Executivo, mesmo que para tanto se sacrifiquem outras possibilidades genciada, mas a participação da população, notadamente de seus segmentos mais
de interlocução e negociação com grupos políticos locais a favor de compromis- organizados, confere legitimidade às propostas e deliberações e acena para o avanço
sos de desenvolvimento social. Soa mais relevante estabelecer vínculos "orgâni- do processo democrático, mesmo que o elenco de alternativas a ser discutido nas
cos" com estruturas partidárias, lobbies setoriais, ou agentes de intermediação reuniões plenárias seja ainda restrito ou ambicioso, complexo ou singelo, ou pouco
financeira extra-local capazes de fazer o município atrair investimentos e ganhar conhecido pela maioria dos participes.
projeção por meio de "marketing urbano" . O caráter controlista nesse último Em nenhuma das quatro alternativas há experiência consolidada no país,
caso, mesmo que oscile conforme o perfil mais ou menos centralizador do chefe ou institucionalidade e jurisprudência firmada, capaz de facilitar os processos
do Executivo, pode ser ampliado, bem mais do que na forma conseruadora-con- decisórios. Não raro, o que se verifica são ações mais ou menos veladas orienta-
trolista,8 diante dos compromissos que podem advir de cláusulas contratuais,
das para a despolitização das assembléias, por meio de chamadas e convites por
acordos, financiamentos, contrapartidas, enfim, procedimentos usualmente pre- rádio e imprensa sem clareza e profundidade, às vezes exibindo propaganda des-
sentes nos processos de modernização econômica municipal que pressupõem necessária da administração, ou manipulação das audiências por meio de con-
organização, racionalização e, inclusive , "choques de gestão". O Plano Diretor luios com parceiros, correligionários, servidores públicos etc.
efetivamente aprovado nas Câmaras desses municípios dificilmente proporia
uma cidade muito diferente das práticas históricas que tais representações políti-
cas protagonizam, mesmo que o Estatuto da Cidade estimule coisa diferente. A População
Mais contemporaneamente é possível discernir dois outros tipos de gestão nas A população, vista como destinatária do Plano, não é um corpo homogêneo,
administrações municipais, a gestão popular dogmática e a gestão popular inovado- mesmo que incorpore muitas características comuns a todos. Assim sendo, con-
ra. O adjetivo popular se coloca pelo fato de ambas assumirem, de forma direta, a vém, inicialmente, não ignorar sua estrutura demográfica, inserção relativa no ciclo
perspectiva de ação predominantemente voltada para a maioria da população, so- de vida, razão de sexo, diásporas, porque a falta (ou abundância) de homens ou
bretudo as maiorias de pobres e trabalhadores de baixa renda. A primeira é eviden- mulheres, crianças ou adultos, solteiros ou casados, migrantes e nativos, influi dire- 1

temente tão ou mais controlista9 que as formas anteriormente vistas. Geralmente tamente sobre uma série de projetos de desenvolvimento. Planos ou projetos,
prima pela centralização administrativa e postula mudanças profundas nas relações quando desconhecem as grandes mudanças que a população brasileira experi-
econômicas, geralmente enfatizando ação dirigida à reestruturação da posse dos mentou nos últimos 30 anos, tendem a idealizar o crescimento populacional, como
principais ativos municipais, por meio de projetos conduzidos por um partido ou no tempo do "desenvolvimentismo" 1º dos anos 1950. Assim o fazendo, podem in-
grupos organizados cuja lógica de ação ainda é pautada pelo aumento do grau de correr em erros do passado agravados por gastos excessivos (comprometidos com
intervenção governamental, como se a finalidade última fosse por em prática o velho tamanhos populacionais irrealistas) e desperdício de recursos.
jargão marxista-leninista da "revolução dos meios de produçãd'. As populações municipais são heterogêneas e parte de suas diferenciações
A segunda forma de gestão popular, igualmente resultante de grupos políticos implicam conflitos a serem enfrentados pelo planejamento territorial. Em alguns
historicamente de esquerda, prioriza a maioria da população, mas inova quando casos a sua divisão em classes ou frações socioeconômicas é o fator mais relevan-
procura incorporar outros segmentos da população, a exemplo de empresários, artis- te a ser considerado. Em outros contextos as diferenças são de tipo étnico/racial
tas e religiosos, mediante fóruns de debate a partir dos quais são formulados projetos e a centralidade dos conflitos em potencial é específica. Em algumas situações as
de desenvolvimento econômico com forte apelo popular. As habilidades e compe- desigualdades opõem residentes da cidade e do campo, mesmo na atualidade,
tências da equipe que compõe o núcleo do Executivo são fatores preponderantes na quando a urbanização é o referencial dominante nas expectativas dos agentes e
condução das discussões sobre qual cidade vale a pena pactuar consensos mínimos. atores em termos de realização econômica.
De todos os modos a população pode ser mais ou menos dispersa no es-
8
Onde o controle se faz principalmente por relações primárias, de amizade, de compadrio, de favores, paço ou pouco coesa socialmente, e isso afeta o alcance da comunicação entre
em meio a promessas, ameaças, "toma-lá-dá-cá" etc.
9
O caráter controlista é aqui sublinhado como um dos mecanismos mais evidentes nas práticas de
governo e governados. Não raro, a maioria dos habitantes é desinformada sobre
dominação - "estar submetido à vontade e interferência arbitrária de alguém" -, o que configura uma
dara restrição da liberdade. A ausência de dominação, como um dos princípios da liberdade, discrepa
visivelmente da concepção liberal que tem na idéia de Interferência (sem participação popular), um dos 10 Época em que, sob o comando do Estado, investiu-se fortemente nas infra-estruturas de apoio ao

seus pílares. Ver a propósito Bignotto (2004, p.18-30) quando discute as formulações de Phillip Pettit. desenvolvimento industrial, notada mente na chamada era JK (governo de Juscelino Kubitschek entre
1956 e 1961).
PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJh'TÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS ' 167
166 · Ralfo Edmundo da Silva Matos

conteúdos dos planos diretores, por vezes é passiva, manipulada, ou suscetível de sistente, mesmo submetido a forças que podem lhe comprometer o equilíbrio. A inten-
ser arrebanhada por ceitas e religiões, que, na ausência de valores confiáveis da sidade e o "pesd' das diferentes forças políticas e econômicas que interferem no plano
esfera pública, constroem redes de solidariedade entre os fieis por meio de práti- podem desequilibrá-lo irreversivelmente e/ou condená-lo à ineficácia.
cas geralmente apolíticas e não democráticas, fundadas na dicotomia medo e Na ilustração em seqüência, a equipe técnica passará a ser denominada de
esperança (Chaui, 2004). T, o Executivo municipal será E, a população P e o Plano Diretor PD. As figuras
É evidente que, para além das seitas evangélicas e da ausência de lideranças de 1 a 4 resumem parte da idéias tratadas no texto. Para PD manter-se em equi-
da esfera pública, há segmentos sociais tematicamente especializados capazes de líbrio é razoável que as forças de E, T e P sejam proporcionais, como indica a
aprofundar o debate sobre novos direitos, mesmo que pouco expressivos em termos Figura 1. A posição central de P, evidentemente, indica a necessária proximidade
de representação política formal no parlamento. São grupos organizados em defesa de P e PD. Por definição, essa centralidade não deforma PD e, geralmente, não
das chamadas "minorias", dos ambientes ameaçados, das culturas populares, entre compromete os propósitos de PD, se se tem em conta que planos são feitos para
outros, geralmente estruturados em organizações não-governamentais e que contri- as populações municipais.
buem para o processo participativo exigido pelos planos diretores. A Rgura 2 mostra a situação indesejável de o Executivo controlista dese-
Por outro lado, diante da intensidade da urbanização brasileira, da expansão quilibrar o Plano fazendo prevalecer seus interesses. O PD pode se corromper ou
das comunicações e da informação, das marchas e contramarchas do processo de perder legitimidade de acordo com o grau de intervenção e o tipo de gestão em
demor.ratização e das mudanças identitárias em favor da modernização e forma- ação, conservadora ou populista.
ção de uma sociedade de consumo e de direitos civis, torna-se real a presença de A Rgura 3 expõe um resultado também desequilibrado diante do peso de
espaços sociais, a exemplo de bairros, cidades, assentamentos rurais, onde a popu- uma equipe técnica mais ou menos elitista (de grande notoriedade, por exemplo,
lação se reconhece como agente de mudanças, ou mediador imprescindível nos mas autoritária), que fará prevalecer o que os chamados "imperativos técnicos".
momentos de discussão, deliberação e implementação de políticas públicas. Nesses
casos, pode-se falar em território, conforme acepções mais contemporâneas do
termo.11 Instaura-se então aquilo que podemos denominar de "empoderamento
territorial" . Talvez uma forma a se desenvolver rumo a uma resposta um passo Figura 1 Figura 2
adiante da democracia representativa existente, uma espécie de sucedâneo dos
tempos opacos da fragmentação do espaço em favor da política e da cívitas.

Se fosse para conduir...

Se pudéssemos concluir, de forma simples e concisa um assunto que irá se


desdobrar em muitos debates públicos, conviria, pelo menos, reunir as idéias
principais examinadas anteriormente, por meio de um esquema analítico que
facilitasse a compreensão e a visualização dos três elementos que interagem na
elaboração de um plano diretor.
Para isso conviria considerar que o plano, além de ser constitutivo de um sistema
de planejamento, ele em si mesmo pode ser pensado como um objeto em construção,
um meio para se atingir um fim, um móvel que desliza no tempo, uma espécie de em- Por último, a Figura 4 exibe o sistema em equilíbrio, mas com a caixa da
barcação que recebe e abriga diferentes atores-força. O Plano Diretor, no esquema a população requalificada, em decorrência do que denominamos empoderamento
seguir apresentado, pode ser entendido como um produto que tem de se manter con- territorial. A caixa reticulada alude a uma população participativa que faria valer
as identidades territoriais e as articulações supra-espaciais, como as que ocorrem
11
em muitas das redes sociais.
Ver, entrn outros, Souza (1995); Clava! (1999); Dias (1996) ; Badie (1995): Haesbaert (2004);
Storper (1994).
168 · Ralfo Edmundo da Silva Matos

Figura 3 Figura 4 Política de Desenvolvimento Urbano


no Estatuto da Cidade: em que
CJ realmente avançamos com o modelo de
planejamento regulado pela Lei nº 10.257,

~
l1 PD
de 10 de julho de 2001 ?1
Marinella Machado Araújo

Figuras elaboradas por Brenner Rodrigues.


As discussões jurídicas quase sempre se mantiveram distantes da ordena-
ção do espaço urbano. Em 1988, um importante passo foi dado em direção
contrária a essa tendência. Pela primeira vez na história do direito brasileiro um
texto constitucional regula de forma sistematizada a política de desenvolvimento
Referências
urbano. Quase treze a nos depois, outro passo inédito é dado na mesma direção
BADIE, Bertrand. O fim dos territórios; ensaio sobre a desordem internacional e sobre a com a publicação do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001,
utilidade social do respeito.Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
com o objetivo de auxiliar a formulação das políticas locais de desenvolvimento
BENÉVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Editorial Presença/
Martins Fontes, 1981. urbano sustentáveis a partir da fixação de diretrizes e instrumentos gerais e parti-
cipativos de planejamento urbano. Não queremos dizer, com isso, que a ocupa-
BIGNOTIO, N. Problemas atuais da teoria republicana. ln: CARDOSO, S . (Org.). Retorno
ao republicanismo. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2004. ção do solo urbano não tenha sido objeto de previsão legal anterior, mas ressaltar
a importância de ambos os textos para o desenvolvimento sustentável do país e
CARDOSO, S . (Org.). Ret.omo ao republicanismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
a superação das desigualdades socioespaciais que nos acompanham desde o
CHAUI, M. O retorno do teológico-político. ln: CARDOSO, S. (Org.). Retorno ao republi-
canismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
período colonial (Regime de Sesmaria).

CHOAY, Françoise. O urbanismo; utopias e realidades, uma antologia. São Paulo: Pers- Este texto tem por objetivo discutir a importância da Lei nº 10.257, de
pectiva, 1965. 2001 , para o desenvolvimento sustentável das cidades brasileiras. Para sistemati-
CLAVAL, J . 1999. O território na transição da pós-modernidade. GEOgraphia, Ano 1, n. 2, zar a abordagem, partiremos das seguintes questões: (i) O Estatuto da Cidade
Niterói: Pós-Graduação em Geografia. introduz um novo modelo de planejamento urbano na ordem jurídica brasileira?
DIAS, Leila, R. Redes eletrôni~s e novas dinâmicas do território brasileiro. ln: CASTRO, Em caso afirmativo; (ii) quais seriam as características principais desse novo mo-
1. E.; GOMES, PC. C.; CORREA, R. L. (Org.). Brasil; questões atuais da reorganização do delo; e (iii) o que fazer para garantir que esse modelo seja efetivo?
território. Rio de Janeiro: ABDR, 1996.
FILHO, J. G. S. Estatuto da Cidade; Lei n. 10.257/2001. Rio de Janeiro: DP& a Editora,
2001.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização; do "fim dos territórios" à nultiterritoriali-
zação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
SOUZA, M. L. O território: sobre espaço, poder, autonomia e desenvolvimento. ln: CASTRO
et ai. (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
STORPER, M. Territorialização numa economia global: possibilidades de desenvolvimen- 1
Este trabalho resulta da pesquisa "Planejamento urbano pós-Constltulc;ão de 1988: nova trajetória ou
to tecnológico, comercial e regional em economias subdesenvolvidas. ln: LAVINAS, L.; velha tradição?", desenvolvida em parceria com Jupira Mendonça, e contou com financiamento do. Co'.1"
CARLEIAL, L.; NABUCO, M. R. (Org.). Integração, região e regionalismo. Rio de Janeiro: selho Nacional de Pesquisa e Tecnologia - CNPq. Uma primeira versão foi apresentada no XI Sem:nário
Bertrand Brasil, 1994. de Arquitectura Latinoamericana realizado em Oaxtepec, Morellos, México, em setembro de 2005.
170 · Marinella Machado Araújo PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TR/l) lffÓIUA, AVANÇOS E l'ERSPEcnVAS . 171

Considerações Iniciais sobre o planejamento urbano no Brasil Em síntese, a Constituição de 1988 (i) fortaleceu a autonomia municipalª (art.
30, J, II, VIII e IX), sobretudo no que se refere ao papel estratégico do município na
Os anos 1980 são conhecidos no Brasil como anos de crise econômica e garantia real (efetividade) do direito à cidade sustentável e de outros direitos funda-
polftica2 e de transição da ditadura militar para o regime democrático. Com o mentais; (ii) vinculou expressamente a política de desenvolvimento urbano aos prin-
esgotamento do "milagre econômico"3 ocorrido em fins dos anos 1960 e início cípios da função social da cidade e da propriedade (art. 170, III, e art. 182); e (iii)
dos anos 1970 e o crescimento dos movimentos sociais, particularmente os urba- instituiu o planejamento urbano compulsório ao obrigar as cidades com mais de 20
nos, o governo militar implementou a "lenta, gradual e segura" transição política mil habitantes a planejarem seu desenvolvimento urbano (art. 182, § l º).
para o regime democrático. Nesse cenário, o movimento político-social das Diretas Nesse sentido, a Constituição de 1988 representa um marco na história das
Já, em 1984, que reivindicava o direito do povo brasileiro escolher diretamente políticas de desenvolvimento urbano no Brasil. A primeira fase, fortemente estrutura-
seus próprios governantes,4 garantiu não somente que o Congresso Nacional da sob o paradigma do Estado liberal, compreende o período de 1964 a 1988, e se
elegesse o primeiro presidente civil desde 1964, como também que, em 1987, caracterizou por objetivos expressamente econômicos, por forte centralização política
elegesse o Congresso Constituinte que se encarregaria de elaborar a Constituição e administrativa no âmbito federal e ações setoriais de investimento em habitação,
de 1988, posteriormente apelidada Constituição Cidadã. saneamento e transporte.9 A segunda fase, estruturada sob o paradigma do Estado
A Constituição Republicana promulgada em 1988 representou um marco na democrático,1º começa em 1988 e estende-se aos dias atuais. É conhecida pela des-
concretização da democracia no Estado de direito brasileiro5 e significou um grande centralização política e administrativa no nível local da ordenação do espaço ur-
avanço da ordem político-jurídica urbanística, sobretudo no que diz respeito à formu- bano e pelo caráter dialógico 11 da Administração Pública. Essa reformulação da
lação de uma nova política de desenvolvimento urbano. 6 Como resultado várias concepção de organização territorial que privilegia o local em relação ao nacional
questões importantes são introduzidas no debate sobre as bases das políticas de de- gera a formação, ainda em curso, de uma cultura de planejamento que se mani-
senvolvimento urbano no Brasil, sobretudo em seu plano local, e, por conseqüência, festa: (i) na preocupação com a articulação das ações setoriais; (ii) na incorpora-
sobre as bases do planejamento urbano. 7 Entre elas destacam-se: (i) a vinculação da ção da sociedade civil no processo de planejamento urbano; e (iii) na introdução
política urbana a instrumentos de planejamento, especialmente ao plano diretor, que do conceito de cidade sustentáue/12 no processo de planejamento urbano (art. 2°
adquire o status de instrumento básico da política de desenvolvimento urbano (art. e Capítulo da Gestão Democrática da Cidade, Lei nº 10.257, de 2001).
182, § 1º); (ii) a descentralização do planejamento urbano que passa explicitamente Em linhas gerais, as políticas do primeiro período são resultado de uma preo-
a valorizar a cidade, /ócus de manifestação natural do poder local (art. 182 e art. 30, cupação desenuoluimentista com a criação de condições para a expansão industrial
1e VII); e (iii) a inclusão da redução das desigualdades sociais entre os princípios da capitalista no país. Esse período foi caracterizado (i) por importantes movimentos
ordem econômica brasileira (art. 170, III, e art. 182). migratórios, principalmente no sentido campo-cidade, resultado do crescimento das
oportunidades de trabalho na cidade e da expulsão do homem do campo diante do
2 Há autores que a denominam "década perdida", ao menos na perspectiva econômica. predomínio da monocultura e da mecanização das áreas rural. Em decorrência, a
3 Os anos compreendidos entre 1968 e 1974 se caracterizaram por altas taxas de crescimento econô- população urbana cresceu a taxas muito altas e, pela primeira vez, em 1970, superou
mico, mais de 10% ao ano, sendo por isso conhecidos por "milagre econômico" .
• Como se sabe durante o período militar os governantes dos Estados e dos municípios das capitais
eram indicados pelo Governo Federal.
5 O período de vigência da Constituição Republicana de 1946 (1946-1964) é considerado a primeira
a O território brasileiro é organizado para fins políticos e administrativos em unidades físicas com poderes
fase da democracia brasileira em razão de sua preocupação com a regulação dos direitos político- políticos e administrativos autônomos. São elas a União (esfera de poder central), os Estados-membros e
sociais. Já a Constituição Republicana de 1998 é conhecida como a constituição cidadã pelo cará ter os municípios (ambos são esferas de poder local). Em conjunto elas formam a federação brasileira.
partidpálivo que imprimiu a o Estado de direito brasileiro. 9 Antes de 1964 a experiência brasileira de planejamento urbano se restringiu a poucos planos urbanos. Para
6 A expressão política de desenuoluimento urbano é utilizada neste texto para nomear o conjunto
conhecimento mais aprofundado dessa experiência veja texto de Roberto Luís de Melo Monte-Mór nesta
de ações desenvolvidas pelo Poder Público, com ou sem participação popular, em qualquer de suas coletânea, e Bernardes (1986).
instãnc1as governamentais (federal, estadual ou municipal) visando garantir a ordenação do solo ur- 10 Em que pese a Constituição de 1988 também se estruturar sob o modelo liberal caracterizado,
bano, incluindo sua ocupação. A partir de 1988, a elaboração dessa política incorpora dois princípios segundo Vilani (2002), pela representatividade, voto universal e autonomia da vontade, este aparece
essenciais: a sustentabilidade, que vincula o desenvolvimento econômico à responsabilidade pelos em sua forma mais moderada de Estado de bem-social.
danos ambientais dele provenientes e ao direito de acesso por todos à cidade e a participação popular 11 Sobre a teoria do discurso e o agir comunicativo ver Habermas (2004).
em todas as fases do processo de planejamento urbano. 12 O termo sustentáuel é empregado neste texto nos termos da Declaração de Estocolmo de 1972, ou
7
O planejamento urbano é o principal instrumento das políticas urba nas, pois garante que sua elabo- seja, para designar a preocupação que passa a direcionar o desenvolvimento econômico no sentido
ração seja feita de forma racional, ou seja, garantindo que seus objetivos e metas levem em conside- de garantir que este seja promovido de forma racionalmente justa no que diz respeito tanto ao uso
ração a relação entre custo/tempo/benefício das ações a serem realizadas. dos recursos naturais, quanto à necessidade de inclusão social.
172 · Marinella Machado Araújo P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSrEcnVAS. 173

em número a população rural. Em 1980, 75% da população brasileira viviam em estrutura de saneamento e transportes; e (iii) a criação institucional de um órgão
cidades; 13 (ii) observa-se o processo de urbanização, que é contraditoriamente de destinado a formular uma política nacional para o desenvolvimento urbano, a
expansão territorial e de concentração em grandes cidades; e (iii) surge a necessidade Comissão Nacional de Política Urbana e Regiões Metropolitanas - CNPU.
de incorporação à economia de mercado de zonas cada vez maiores de território e Em 1979, essa Comissão foi substituída pelo Conselho Nacional de Desen-
de população, o que produz o aumento do número de cidades e um maior grau de volvimento Urbano - CNDU. Resultam desse período: (i) a criação das regiões
urbanização em todas as regiões do país. 14
metropolitanas em 1973 pela Lei Complementar nº 14, de junho de 1973; (ii) o
Nesse contexto, (i) a preocupação com o desenvolvimento urbano e regio- Programa Nacional de Apoio às Capitais e Cidade Médias, em 1976; e (iii) a
nal; (ii) a superação das desigualdades regionais; e (iii) o papel que desempenham promulgação de legislação reguladora do parcelamento do solo, a Lei n ° 6.766,
as metrópoles e as cidades médias era relevante. As políticas de desenvolvimento de 19 de dezembro de 1979.
urbano, centralizadas no plano federal, apresentam duas vertentes: de um lado, Esse quadro nos permite tirar algumas conclusões preliminares. No plano
as políticas setoriais de saneamento, habitação e transporte, cujas ações, ressalva-
local e intra-urbano, o processo de planejamento estruturou-se de duas formas:
das algumas exceções, não eram integradas; de outro, aquelas em que a dimensão por meio (i) dos planos diretores de desenvolvimento lato sensu que abrangiam
territorial aparecia de modo mais concreto na formulação de uma política nacional
todos os aspectos setoriais das políticas públicas; e (ii) das leis de uso e ocupação
de desenvolvimento urbano sob a forma de integração nacional e, depois, sob as do solo que tratavam de ordenar a expansão urbana. Os primeiros, atos adminis-
propostas de uma rede urbana de apoio ao processo produtivo.15
trativos, não eram aprovados por lei, mas eram estimulados pelo Poder Público
a serem utilizados como instrumentos de captação de recursos públicos centrali-
Breve relato sobre ps planos nacionais de desenvolvimento zados no Governo Federal, apesar de muito poucas vezes serem implementa-
dos. 16 As últimas (leis), existentes geralmente apenas em cidades (municípios)
Em 1972, o Governo Federal formula o I Plano Nacional do Desenvolvi- maiores, se baseavam em matriz de planificação urbana modernista e funciona-
mento - I PND - cujo objetivo de integração nacional era justificado pela neces- lista que contribuiu para ocultar a cidade real e para a formação de um mercado
sidade de criar condições para a incorporação à economia de mercado da capa- imobiliário restritivo e especulativo (Maricato, 2002, p . 124). 17
cidade de produção e da aquisição de poder de consumo, de largas camadas da O período inaugurado pela promulgação da Constituição Republicuna d e
população antes na economia de subsistência. 1988 pode ser sinteticamente caracterizado pela ampliação da autonomia dos "
Para o período de 1974 a 1979 é formulado o II Plano Nacional de Desen- municípios. A partir desse momento, os municípios formalmente passam a inte-
volvimento - II PND -, que enfatizada os objetivos de reduzir as desigualdades grar o pacto federativo e a serem considerados entes competentes para legislar
regionais e consolidar a integração nacional. Nesse plano a dimensão territorial sobre qualquer assunto de interesse local (art. 30, 1). Ao mesmo tempo assumem
toma formas explícitas com (i) a definição de regiões para programas especiais de papel estratégico na formulação das políticas de desenvolvimento urbano locais 18
crescimento; (ii) a destinação de recursos específicos para programas de infra- (art. 182, §1°). Contudo, essa tentativa de legitimar e tornar mais efetiva a atuação
pública por meio das instâncias locais19 não foi acompanhada por um aumento real
da capacidade financeira 20 dos municípios, que permaneceu insuficiente para su-
13
O signifrcado da expressão população urbana está longe de ser objeto de consenso entre as diversas
áreas de conhecimento científico. Por isso, a expressão é empregada no texto com o sentido que lhe
atribui o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, qual seja, o definido pela lei de organi- 16
Denominamos esse tipo de planejamento normatiuo em razão de seu caráter regulador e a auséncia
zação político-administrativa do município. de proposição de estra tégias ou instrumentos de ação concreta sobre o território urbano.
14 17 Contudo, mesmo nos municípios em que se adotavam regras específicas locais de ordenação do
Referimo-nos ao movimento desigual ocorrido no Sudeste e no Sul do país entre outras razões
pela expansão industrial que produziu o crescimento das chamadas áreas metropolitanas ao mesmo espaço urbano (i.e. leis de uso do solo, códigos de obras ou leis de parcelamento do solo), essas regras
tempo em que fez com que crescessem o número de centros urbanos com população entre 50 e 250 conviviam com a cidade ilegal, tolerada pelo Estado em razão da necessidade de manter baixos os
mil habitantes, tendo por conseqüências o aparecimento de novas formas de aglomeração urbana e custos da reprodução da força de trabalho. Em conseqüência, observou-se uma escassez superficial
de pontos de desenvolvimento ao redor de rodovias e áreas urbanas conurbadas. Na parte setentrio- de terra urbana legal e a promoção do aumento do preço do solo.
nal do país o noroeste permaneceu estagnado, enquanto nas novas regiões Norte e Centro-Oeste a 18
No Brasil, de acordo com a Constituição, os municípios são responsáveis pelo planejamento da
população urbana concentrou-se entorno das capitais dos Estados. política de desenvolvimento urbano.
15
As experiências de planejamento setorial Integrado no plano intra-urbano se resumiram a uns 19
Aqui se nota claramente a opção, em matéria de planejamento urbano, pela aplicação do prlncfp lo
poucos planos de cidades de pequeno e m~dio porte promovidos pelo Serviço Federal de Habitação da subsidiariedade.
e Urbanismo - SERFHAU. Contraditoriamente em razão da forte centralização das polrticas, o SER- 20Segundo inforrnações do Fundo de Participação dos Municípios, divulgadas pelo Tesouro Nacional
FHAU teve vida curta (veja-se texto de Roberto Luís de Melo Monte-Mór, neste livro). brasileiro, 60% dos municípios brasileiros dependem de transferências de recursos do Governo Federal.
174 · Marinella Machado Araújo P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: 11V.Jlrl'ÓRIA, AVANÇOS E rERSl'ECTIVAS ' 175

portar suas novas atribuições. Igualmente não foram feitos investimentos na estru- da Cidade complementa a vitória protagonizada pelo Fórum Nacional de Reforma
tura administrativa local a fim de torná-la operacionalmente apta ao desempenho Urbana e iniciada em 1987 com aprovação da Emenda Popular da Reforma Urbana
da tarefa de planejar o desenvolvimento intra-urbano. apresentada ao Congresso Constituinte com cerca de 160 mil assinaturas.25
Em síntese, as transformações ocorridas na esfera administrativa do Estado A redação finalmente aprovada e sancionada de certo modo incorpora a
brasileiro em meados dos anos 19802 1 representaram uma ruptura com a estru- experiência local, pois consagra práticas e instrumentos de política urbana já adota-
tura centralizadora e tecnocrática do período militar. Entretanto, a construção de dos por poucos municípios,26 que, amparados pelas competências constitucionais
um novo paradigma tem sido um processo lento e fragmentado, o que contribui descritas no artigo 30, já os haviam introduzido em sua legislação urbanística. Alguns
para a fragilidade do sistema brasileiro de informação e planejamento. Nesse municípios não aguardaram a publicação da referida lei federal para por em prática
processo a extinção do Banco Nacional de Habitação - BNH, criado em 1964, os princípios democráticos e sociais expressos na Constituição Republicana, tais
pessoa jurídica da administração indireta responsável pelas políticas nacionais de corno a função social da propriedade e a soberania popular. Assim, durante a
habitação e saneamento, constitui um sinal evidente desse quadro. década de 1990, enquanto se discutia e elaborava o Estatuto da Cidade, no âm-
Entre as causas dessas transformações destaca-se a ausência de unidade bito local desenvolvia-se paralelamente um rico processo de renovação no campo
no enfrentamento pelo Poder Público brasileiro da questão urbana, a qual tem da política e planejamento urbano.27 Contudo, a aprovação do Estatuto da Cidade:
sido tratada de forma fragmentada por diferentes órgãos de atuação setorial. por um lado, (i) reforça a constitucionalidade ao mesmo tempo em que amplia a
Em certo sentido, a situação descrita, a qual permaneceu durante os anos 1990, utilização dos instrumentos já utilizados por esses municípios; por outro, (ii) regu-
contribui para reforçar as dificuldades dos governos locais agravadas pela inexis- la a atualização de outros instrumentos que a falta de previsão legal no âmbito
tência de estrutura administrativa federal estável capaz de formular uma política federal impedia de ser constitucionalmente utilizados.
nacional de desenvolvimento urbano e garantir a execução das ações públicas de Passamos então a responder à questão (i) O Estatuto da Cidade introduz
planejamento no âmbito local.22 um novo modelo de planejamento urbano na ordem jurídica brasileira? Em ter-
mos de política urbana, a publicação do Estatuto da Cidade em 2001 estabelece
urna nova concepção de planejamento urbano que se estrutura em dois preceitos
Estatuto da Cidade e planejamento urbano participativo sustentável
fundamentais: (i) participação popular e (ii) desenvolvimento sustentável (art. 2°,
VIII) . O primeiro tem por fundamento o princípio do discurso,de Habermas, se-
O Estatuto da Cidade promoveu a regulamentação do capítulo da política ur-
gundo o qual "são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingi-
bana introduzido pela Constituição Republicana de 1988 e, assim, conferiu suporte
dos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos
jurídico, conceituai e instrumental aos governos municipais comprometidos com o
racionais" (Travessoni, 2007, p. 66). E confere pela primeira vez caráter delibera-
enfrentamento das questões urbanas, de forma a considerar seus impactos sociais e
tivo legal expresso de natureza procedimental em Haberrnas ou contestatário
ambientais, que afetam a vida de 82% dos brasileiros que vivem em cidades.23
consultivo em Pettit às políticas públicas de desenvolvimento urbano brasileiras.
Resultado de um intenso processo de pressões económicas e negociações po- Isto significa que as demandas urbanas, objeto de regulação nos planos diretores
líticas que durou mais de 10 anos,24 dentro e fora do Congresso Nacional, o Estatuto municipais, devem ser definidas por consensa28 entre sociedade civil organizada

21
Entre 1987 e 1992, a competência administrativa federal para a regulação da política urbana foi 181, de 1989, de autoria do Senador Pompeu de Souza, que na Câmara de Deputados recebeu a
alterada três vezes. Em 1985 vinculava-se ao Ministério de Desenvolvime nto Urbano e Meio Ambien- classificação de Projeto de Lei nº 5 .788, de 1990.
te, que foi substituído pelo Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente, criado em 1987. 25 A mobilização que resultou na Emenda Popular da Reforma Urbana é responsável pela introdução
Em 1988 passou a ser tratada pelo Ministério da Habitação e Bem-Estar Social, extinto em 1989. Em do capítulo sobre o desenvolvimento urbano no texto da Constituição Republicana de 1988.
1990 foi çriaclo o Ministério da Ação Social responsável pelas políticas de habitação e de saneamento, 26 É o caso do Plano Diretor de Belo Horizonte de 1996, o qual previu, por exemplo, a transferência
enquanto os assuntos de meio ambiente vinculava m-se diretamente à Presidência da República. do direito de construir, atualmente regulada em â mbito nacional no artigo 35 do Estatuto da Cidade,
22
Em 1995, foi criada a Secretaria de Política Urbana, órgão do -Ministério de Planejamento e em entre os instrumentos de política urbana.
1999, eSSil Secretaria passou a se vincular à Presidê ncia da República e passou a ser denominada Se- -n Para mais detalhes sobre este processo ver Grazia (2002) e Rolnik e Saule Júnior (2001).
cretaria Especial do Desenvolvimento Urbano. Em 2003, a Secretaria Especial do Desenvolvimento :111 Observe-se que o termo consenso não é empregado como sinônimo de unanimidade. Ao con-
Urbano transformou-se em Ministério das Cidades. trário, reconhecemos que a cidade é território de interesses múltiplos e por natureza na maioria das
23
Dados referentes ao Censo 2000 realizado pelo IBGE. vezes divergentes. Contudo, parece-nos que a racionalidade do argumento é uma forma adequada a
24
Na verdade, pode-se dizer que o Estatuto da Cidade teve sua origem no Projeto de Lei nº 775 acomodar esse pluralismo, pois explica as incoerências dos argumentos apresentados pelos diversos
de 1983, de a utoria do Poder Executivo federal. Este projeto inspirou a edição do Projeto de Lei n~ atores sociais, sujeitos de direito.
176 · Marinella Machado Araújo P l.ANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: TR.AJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS. 177

e poder público local. Assim, ao estabelecer a participação popular como requi- dos benefícios e dos encargos da urbanização entre os atores (sujeitos de direitos, ci-
sito de validade do planejamento urbano, o Estatuto da Cidade vincula tanto a dadãos) que produzem e que se apropriam da cidade (art. 2°, VI e IX).
validade formal, como a validade material e a legitimidade da política de de- Essas características que os planos diretores apresentam a partir da pu-
senvolvimento urbano ao processo dialógico de produção da lei plano diretor e blicação da Constituição de 1988, de certa forma consolidadas no Estatuto
da execução dos direitos que dela decorrerem (Habermas, 2004). Tal processo da Cidade, refletem a d imensão democrática do Estado de direito brasileiro
dialógico se manifesta por meio de fóruns participativos das mais diversas na- pós-1988 e expressam as transformações importantes sofridas pelo planeja-
turezas: audiências públicas, conselhos gestores, orçamentos participativos etc. mento urbano em relação a décadas anteriores. Em primeiro lugar seu caráter
que vinculam o processo de produção das regras e princípios norteadores do democrático, decorrência do novo modelo de Estado brasileiro, que incorpora
planejamento urbano de cada cidade brasileira. a cidadania entre seus fundamentos (art. 1º, li da Constituição Republicana).
O segundo preceito estabelece uma vinculação necessária entre planeja- Esse caráter repercute na forma de realização do planejamento urbano e na
mento urbano e redução das desigualdades socioespaciais e proteção ambiental, divisão de responsabilidade entre poder público e sociedade, agora co-aui:ores
que passam a constituir expressamente, também pela primeira vez, seus objeti- e co-executores do planejamento. Em segundo lugar a percepção de que não se
vos. O planejamento urbano funcionalista inspirado nas idéias de Le Corbusier,29 pode produzir desenvolvimento urbano (cidade) a custo da dignidade humana
que desconsiderava a dimensão social e dinâmica das cidades, as quais deveriam (art. 1º, 1, da Constituição Republicana) . Essa percepção leva ao reconhecimento
ser planejadas segundo suas quatro funções-chave (habitação, lazer, trabalho e da habitação como direito fundamental estrutural para o pleno desenvolvimento
circulação), teve como conseqüência a estratificação do solo urbano segundo sustentável das funções da cidade (art. 6° da Constituição Republicana e art. 2°,
classes econômicas que o utilizavam. Isso explica em certa medida o processo de 1, do Estatuto da Cidade) e em certa medida estabelece toda a intervenção pú-
favelização dos centros urbanos brasileiros.30 blica deve ser motivada por razão de equidade, o que justifica a utilização de
instrumentos de política urbana para a captura da mais-valia imobiliária pro-
Pode-se dizer que com o Estatuto da Cidade o planejamento deixa de ser
veniente de ações públicas, como, por exemplo, a realização de obras públir..as e
visto como ato administrativo regulatório burocrático cujo conteúdo se limita a apre-
de instrumentos de compensação de restrições urbanísticas como as limitações
sentar diretrizes gerais e amplas sobre a ordenação do espaço urbano (planejamento
de uso, que concretizam a aplicação do princípio da função social da proprieda-
compreensivo) e passa a ser concebido como processo democrático de construção
de. Em decorrência, o planejamento urbano passa a ter um caráter mais opera-
de cidades sustentáveis. De acordo com esse conceito de planejamento urbano o
conteúdo do plano diretor deve vincular ações públicas efetivas e apresentar garan- cional e predominantemente físico-territorial.
tias de sua exeqüibilidade orçamentária (planejamento operacional). Para tanto, a
elaboração do planejamento urbano que tem nos planos diretores sua expressão Planejamento urbano no Brasil: riscos e desafios para seu avanço
mais geral deve: (i) resultar de ampla discussão com a sociedade civil, a qual deve
participar tanto de sua formulação e execução, quanto do controle de seus efeitos Como vimos, as transformações descritas acima introduzem uma nova
(art. 2o, II, e art. 43, art. 44, art. 45 do Estatuto da Cidade); (ii) identificar no território concepção de planejamento. Ainda assim, isto não é suficiente para que possa-
do município as áreas onde seu conteúdo deve ser aplicado particularmente no que mos falar em ruptura com os modelos de planejamento praticados em décadas
se refere aos demais instrumentos de política urbana previstos no Plano Diretor (art. anteriores, mas sim , em evolução. Sem dúvida, manteve-se inalterada a con-
2°, X); (iii) integrar cidade e campo3 1 (art. 2°, IV); e (iv) promover a distribuição justa cepção geral de planejamento urbano que continua sendo definido como um
instrumento de ordenação do espaço urbano segundo fins de desenvolvimento
29 Sobre funções da cidade, ver Carta de Atenas de 1933 disponível no site do Instituto do Patrimônio econômico e com objetivo de garantir a melhoria das condições de vida nas
Histórico e Artístico Nacional (www.iphan.gov.br).
30 Belo Horizonte, por exemplo, considerada a quarta cidade do país em termos de desenvolvimento cidades brasileiras. Nesse sentido, o objeto do planejamento urbano não se alte-
econômico tem, segundo o órgão municipal responsável pela política habitacional, um quinto de seu rou. Igualmente não houve alterações no sentído geral do termo planejamento, 1
território ocupado por favelas ou aglomerações subnormais. qual seja, atividade tipicamente administrativa por meio da qual são estabeleci-
31 Apesar de o plano diretor ser destinado a promover o desenvolvimento urbano, para que este desen-

volvimento urbano seja sustentável é imprescindível que considere todo o território municipal, pois (i)
os problemas urbanos encontram-se interligados a atividades que não se desenvolvem necessariamente
no espaço urbano. Por definição histórica resultaram, por exemplo, do processo de industrialização que que as relações socioeconômicas que nele se desenvolvem funcionem segundo o princípio da c.ausali-
teve entre outras conseqüências o êxodo rural. (ii) Em um mundo cujas relações econômicas se encon- dade. Por isso, estabelece o Estatuto da Cidade ao tratar da abrangência dos planos diretores que estes
tram globalizadas não é possíve l desconsiderar que todo espaço físico ou não se encontre conectado e considerem o território municipal como um todo e não apenas sua parte urbana. (art. 40, § 2•).
178 · Marinella Machado Araújo P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TltAJCT RIA, AVANÇOS E l'ERSl'ECTIVAS . 179

das diretrizes para se alcançar metas de acordo com as seguintes variáveis: social, para concretizar essas inovações, entre eles, a criação do Conselho Nacional
tempo, custo e benefício. Então o que mudou? das Cidades em 2004 pelo Decreto nº 5.031,35 a realização de audiências públicas
As mudanças no planejamento urbano brasileiro não dizem tanto respeito ao para a elaboração e a aprovação dos projetos de planos diretores.
seu conteúdo,32 mas, sobretudo à sua forma, ou seja, à metodologia de definição das Flnalmente chegamos à questão (íii) o que fazer para garantir que esse mode-
estratégias e diretrizes de ordenação do espaço urbano. Contudo, em termos objeti- lo seja efetivo? Os mecanismos previstos pelo Estatuto da Cidade em si não são sufi-
vos, como se caracteriza essa nova forma de planejamento? Eis a questão (ii) quais cientes para garantir que as desigualdades socioespaciais sejam superadas. Vários
seriam as características principais desse novo modelo? Passemos a respondê-la. são os problemas que devem ser enfrentados pela Administração Pública local para
Podemos identificar algumas mudanças substanciais expressas no Estatuto que a efetividade do planejamento urbano seja alcançada. A baixa capacidade finan-
a Cidade: (i) concepção do planejamento urbano como processo e não ato ceira dos governos municipais, que tem por conseqüência o comprometimento da
adminlstrativo (art. 40, §§ 3° e 4°, art. 42, III); (ii) definição do Plano Diretor autonomia política e administrativa municipais, talvez seja o mais grave, pois reper-
como decorrente de pacto social que impõem responsabilidades também à socie- cute diretamente sobre a capacidade administrativa de esses governos elaborarem e
dade (art. 2°, II, XIII, XVI , art. 4°, § 3°, art. 40, § 4°, art. 43, art. 44, art. 45) ; (iii) executarem os planos que devem ser propostos.36
vinculação expressa do planejamento urbano à capacidade financeira do muni- A efetividade de direitos fundamentais sociais tais como o direito à cidade
cípio expressa no orçamento (art. 2°, X, art. 4°, III, f, art. 40, § 1º); e (iv) ênfase sustentável e os que dela decorrem, direito à moradia, por exemplo, não depende
na articulação e cooperação interinstitucional (art. 2°, III, art. 3°, li, III, V) . apenas (i) da existência de boas leis ou da interpretação concretizadora pelo Po-
O Estatuto da Cidade, amparado pelo Texto Constitucional , por um lado, der Judiciário, mas também de políticas públicas que garantam a realização
impõe que essas diretrizes e estratégias devem resultar de consenso social, que concreta desses direitos. Ainda que consideremos que a efetividade de direitos
devem ser construídas com a participação da sociedade politicamente organiza- fundamentais sociais seja alcançada de forma processual,37 enquanto o Brasil
da.33 Por outro, destaca seu caráter operacional que recupera a base teórica do for um Estado de Direito em que: (i)l0% da população concentre 57% da ren-
planejamento como instrumento de gestão e não apenas como instrumento de da; (ii) 53% dos jovens em idade escolar não estejam estudando; (iii) seis milhões
regulação, isto é, um de diretrizes normativas da ordenação do espaço urbano. de pessoas vivam em áreas precárias; (iv) o Supremo Tribunal Federal demore
em média 14 anos para examinar um recurso extraordinário, não será possível
Para tanto, o Estatuto da Cidade introduz uma nova forma de planejamento: dizer que haja efetividade de direitos fundamentais sociais,,ainda que de um
o planejamento como processo dia/ógico e dinâmico . Esse planejamento tem por conteúdo mínimo dos direitos fundamentais. 38
pressupostos: (i) a necessidade de realização de pacto social resultante de negocia-
ções com representantes de segmentos sociais, econômicos e políticos que atuam Nesse contexto, o planejamento urbano no Brasil, por via de conseqüência,
no cotidiano das cidades; (ii) o compromisso do poder público com a sua efetivida- também apresenta um déficit de efetividade. O desenvolvimento sustentável das
de34 do conteúdo (normas jurídicas regra e normas jurídicas princípios) dos planos cidades brasileiras, o que realmente tornaria concreto o planejamento urbano no
urbanísticos resultantes desse pacto, bem como das leis urbanísticas que os regu- Brasil, ainda depende no mínimo da superação de grandes desafios: o primeiro,
lam, que (iii) impõe o seu constante monitoramento pelo poder público auxiliado segundo nosso entendimento, seria a criação de condições financeiras e adminis-
pela sociedade. O Estatuto da Cidade prevê mecanismos, sobretudo de controle trativas suficientes para consolidar essa nova abordagem de planejamento urba-

35 O Decreto n. 5.790, de 25 de maio de 2006, alterou a composição, estruturação, competências e funcio-


32 Aqui não se nega a importância que a regulação da propriedade privada segundo sua função so- namento do Conselho das Cidades.
cial, nem tampouco a inovação que essa impõe ao conteúdo do direito de propriedade brasileiro se 36 O Governo Federal desde 2005, por intennédio do Ministério das Cidades, tem auxiliado os governos

considernmos o peso que a natureza social democrata do texto constitucional de 1988 confere ao seu municipais na elaboração de seus planos diretores de várias formas, tais como: (i) realização de cursos de
conteúdo. Contudo, não se pode negar que essa seja uma novidade relativa: ou porque o princípio da capacitação para a elaboração de planos diretores; (ii) abertura de crédito para financiamento de planos di-
função sccial da propriedade já constava da Constituição de 1967, ou porque, por natureza, o direito retores municipais que sejam elaborados com a coordenação técnica de profissionais vinrulados à academia
de/à propriedade privada sempre esteve, mesmo no modelo liberal clássico, sujeito a restrições face brasileira; e (üi) fomento à aiação de núcleos gestores nos Estados e muniópios do planejamento urbano.
ao interesse público, i.g. desapropriação, direito de vizinhança, confisco etc. 37 No sentido atribuído por Robert Alexy (1993) em Teoria dos direitos fundamentais, ou seja, con-
33 Essa dimensão legal da validade dos planos urbanísticos, no Brasil constitucionalmente denomi-
quistada não em termos absolutos, mas em termos relativos (mínimo existencial).
nados planos diretores, representa uma conquista ainda em processo de concretização, portanto nã o 38 Em estudo recente divulgado pelo Banco Mundial intitulado Govemance and Matters, o qual se

universalizada na práxis administrativa de nossos municípios. refere aos anos de 1996 a 2006, o Brasil foi considerado um Estado de direito com desempenho
34
Por efetividade entendemos a produção de efeitos (eficácia) lendo em vista os fins que justiçam a inferior ao demonstrado pela Índia e a Botswana. Estudo disponível em http://www. info.worldba nk.
próptia existência da lei. Sobre efetividade ver Hesse (1991) e Canolilho (2007). org/governance/wgi2007/home.htm.
180 · MarineUa Machado Araújo P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJh•ÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 181

no participativo, processual e integrado, que tem sido construída desde o final (iii) A efetividade do planejamento urbano brasileiro está diretamente condiciona-
dos anos 1980. Contudo, para que isso ocorra é necessário uma redistribuição da ao aumento da capacidade administrativa dos municípios e à consolidação da
mais equânime dos recursos financeiros entre as unidades federadas brasileiras, articulação interinstitucional (de órgãos públicos) e intersetorial (de políticas públi-
que contemple em especial os municípios.39 Uma reforma tributária ampla que cas) como pedra angular da eficiência desse planejamento urbano.
desconcentre o poder dos Estados-membros e da União e conferira capacidade
de administrativa (planejamento e gestão) aos municípios. Sabe-se que a descen-
tralização política que caracteriza a autonomia das unidades federadas em uma Referências
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudis Cons-
federação somente se efetiva se acompanhada de capacidade financeira real.
titucionales, 1993.
Por outro lado, entendemos que essa não seria a única medida necessária BERNARDES, Lysia. Política urbana: uma análise da experiência brasileira. Análise &
para a concretização do modelo de planejamento preconizado pelo Estatuto da Conjuntura, Belo Horizonte, 1 (1), p. 83-119, jan./abr.1986.
Cidade. Em verdade, em pouco adiantaria se não viesse acompanhada da CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
construção de uma identidade administrativa federa l. Eis o segundo desafio: a 7. ed. Coimbra: Almedina, 2007.
construção de uma coordenação nacional eficiente, com poderes administrati- GRAZIA, Grazia de. Estatuto da Cidade: uma longa história com vitórias e derrotas. ln: _ _.
vos para articular as políticas públicas locais de modo a garantir sua integração Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras, Porto
com as demandas regiões e nacionais de desenvolvimento, nos termos do arti- Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.
go 3o do Texto Constitucional. Sem dúvida a criação do Ministério das Cidades HABERMAS, J ürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George
em 2003 constituiu importante passo nessa direção. Podemos citar vários exem- Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. 2 . ed. São Paulo: Loyola , 2004.
plos de tentativas de integração das políticas públicas de desenvolvimento ur- HESS E, Konrad. A força normativa da Consitutíçôo. Tradução de Gilmar Mendes. Porto
Alegre: SAFE, 1991.
bano promovidos pelo Ministério: a Campanha Cidade para Todos em 2005; o
Sistema Único de Habitação e o Fundo Nacional de Habitação em 2006. MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. ln: ARANTES et ai.
(Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2002.
Entretanto, a efetividade dessa articulação ainda permanece um desafio PETIT, Philip. Democracia e contestabilidade. ln: MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA,
para o Governo Federal. Primeiro porque depende da articulação de políticas Luiz. Direito e legitimidade . Rio de Janeiro: Landy, 2003. p. 370-384.
setoriais no âmbito dos próprios ministérios. 40 Segundo porque depende da cons- ROLNIK, Raquel; SAULE J R. Nelson (Coord.). Estatuto da Cidade: guia para implemen-
trução de uma política nacional de desenvolvimento urbano que, ao mesmo tempo, tação pelos municípios e cidadãos. Brasil, Brasília: Cãmara dos Deputados, Coordenação
(i) seja elaborada de forma a contemplar as necessidades globais sem desconsiderar de Publicações, 2001.
as demandas locais e (ii) sirva de referência para o planejamento local. TRAVESSONI GOMES, Alexandre. O rigorismo da ética do Direito em Kant. ln: TRAVES-
SONI GOMES, Alexandre; MERLE, Jean-Christophe. A moral e o Direito em Kant: en-
Em síntese, entendemos que (i) o Estatuto da Cidade introduz um novo saios analíticos. Belo Horizonte: Dei Rey, 2007.
modo de planejamento urbano, porém este modelo não rompe com a tradição de
VILANI, Maria Cristina Seixas. Cidadania moderna: fundamentos doutrinários e desdobramen-
planejamento urbano no Brasil, apenas a complementa, pois suas inovações se tos históricos. Cadernos de Ciências Sociais, Belo Horizonte, v. 8, n. 11, p. 47-64, dez. 2002.
vinculam à metodologia do planejamento urbano e não aos objetivos, à essência
do planejamento. (ii) A participação popular no planejamento urbano, sobretudo
na gestão urbana, ao lado da concepção processual e da importância da dimensão
territorial do planejamento urbano, são as principais características desse modelo.

39 A base da arrecadação tributária dos municípios é o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o
ISSQN (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza). Entretanto, a irregularidade fundiária presente em
todo o país impede que esses tributos tenham representação de destaque na receita municipal. Sabe-se
que, segundo o IBGE, 40% a 70% dos municípios brasileiros apresentam algum tipo de irregularidade
fundiária. Por outro lado, os instrumentos de captura de mais-valias urbanas previstos no Estatuto da
Cidade dificilmente são aplicáveis em cidades pequenas. Além disso, a grande parte dos instrumentos que
concretizam a função social da propriedade ainda precisa ser experimentada na prática.
"° O Ministério das Cidades é estruturado de forma setorial, desenvolvendo suas competências por meio
do funcionamento de quatro secretarias: Habitação, Saneamento, Transporte e Programas Urbanos.
P LANEJAMENTO URBANO NO 6 11ASIL: TRAJ ETÓRIA, AVANÇOS E PEJISl'ECTIVAS ' 183

Além disso, é importante também discutir o impacto da aplicação desses


Governança local e regulação urbana instrumentos, tendo em vista o contexto metropolitano. Isto porque o caráter
no contexto metropolitano: reflexões municipalista da Constituição tem significado que os planos diretores constituem,
com raras exceções, ações isoladas dos municípios, com resultados que, se no
a partir do caso belo-horizontino 1 plano local, às vezes apresentam características progressistas, no plano metro-
Jupira Gomes de Mendonça politano podem configurar um panorama diferente. O novo quadro jurídico
não trouxe novidades, no que diz respeito ao planejamento metropolitano. Pelo
contrário, a Constituição delegou aos estados o tratamento da questão, e o
Estatuto da Cidade não avançou no sentido de propor novas formas de gestão
Nos últimos quinze anos, vários estudos brasileiros têm apontado os avan- nesta esfera. Desta forma, processos de democratização de decisões sobre in-
ços no quadro jurídico-institucional do país, na direção de um conjunto de vestimentos urbanos e a criação de instrumentos que visam ampliar o acesso à
normas que visam garantir a democratização do acesso à terra urbanizada nas moradia nas cidades não necessariamente têm contribuído para a geração de
cidades, bem como dos processos decisórios relativos à política urbana, nos uma nova organização do espaço metropolitano, caracterizado, nos países peri-
diversos níveis da Federação.2 Tendo como marco a Constituição Federal de féricos, pela urbanização extensiva e precária, pela segregação socioespacial e
1988, esse conjunto de normas é resultado de lutas travadas por vários tipos de pela concentração dos recursos urbanos nas áreas mais centrais.
associações civis e classistas, no chamado Movimento pela Reforma Urbana,3 Este texto busca contribuir para discutir estas questões, a partir de reflexões
cujo ápice foi a promulgação da Lei nº 10. 257, de 10 de julho de 2001, denomi- sobre o caso belo-horizontino. Belo Horizonte foi uma das primeiras capitais bra-
nada Estatuto da Cidade, referência também para importante legislação posterior, sileiras a aprovar um Plano Diretor orientado pelos princípios da Constituição
relativa à política urbana, incluindo a Lei nº 11. 124, de 16 de junho de 2005, que Federal de 1988 e da Lei Orgânica Municipal de 1990. Simultaneamente, foi
dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. aprovada nova Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo no Município,
Na esteira do processo que resultou nessa legislação, desde os anos 1990 com significativas alterações em relação à legislação anterior, principalmente no
as chamadas administrações municipais democrático-populares iniciaram esfor- que diz respeito ao zoneamento urbano e a parâmetros urbanísticos e de uso do
ços no sentido de elaborar planos diretores. 4 Em vários deles foram incorporados solo.5 Além disso, o Plano Diretor criou o COMPUR - Conselho Municipal de
instrumentos urbanísticos previstos na Constituição de 1988 e no Estatuto da Política Urbana, com atribuições relativas ao monitoramento da implementação
Cidade. Depois de mais de uma década de experiências municipais e após sete das novas normas urbanísticas, e a Conferência Municipal de Política Urbana,
anos de promulgação do Estatuto da Cidade, cabe perguntar em que medida a com objetivos de, a cada quatro anos, avaliar os impactos da legislação urba-
legislação municipal e a ação pública local vêm possibilitando a democratização nística e sugerir alterações, bem como sugerir alteração no cronograma de
do acesso aos recursos urbanos? investimentos prioritários em obras (Art. 82, Lei nº 7. 165/96).
A expansão de potenciais construtivos para fora da área central e sua pe-
1
riferia imediata, abrangendo grandes áreas da cidade, entre outros fatores,
Este texto incorpora reflexões realizadas no âmbito das seguintes pesquisas: "O planejamento urbano
Pós-Cor..slituição de 1988: velha tradição ou nova trajetória?", realizada com o apoio do CNPq; "Obser- contribuiu para a democratização relativa do acesso à moradia para novos
vatóno das Metrópoles: território, coesão social e govemança democrática", apoiada pelo CNPq/Instituto segmentos sociais, na forma da ampliação do mercado empresarial de edifícios
Milênio"; "Dinâmicas socioterritoriais e planejamento urbano na Região Central de Minas Gerais", finan- de apartamentos. Ao mesmo tempo, a legislação possibilitou a concentração do
ciada pela FAPEMIG e "Experiências de gestão metropolitana: possibilidades e desafios", desenvolvida
no Centre for Urban and Community Studies!University of Toronto, com apoio da CAPES. mercado de monopólio na região central (a chamada Zona Sul),6 ao manter po-
2
3
Ver, entre outros, Fundação Prefeito Faria Lima (2001); Fernandes (2001 , 2006); Mattos (2002). tenciais construtivos relativamente altos, além de determinados parâmetros favo-
Atualmente denominado Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU) . Para maiores detalhes sobre
ráveis a esse segmento de mercado. 7
este movimento, ver, entre outros, Ribeiro e Cardoso (1989); Grazia (1990); Santos Jr. (2001).
' Como resultado da exigência do Estatuto da Cidade para elaboração de planos diretores para
várias categorias de municípios (municípios com mais de vinte mil habitantes; integrantes de regiões
5
metropolitanas e aglomerações urbanas; onde o Poder Público municipa l pretenda utilizar os instru- Para mais detalhes sobre as mudanças na legislação urbanística recente de Belo Horizonte, ver, entre
mentos relacionados ao parcela mento e edificação compulsórios; integrantes de áreas de especial de outros, Cota (2002); Torre (2003); Mol (2004). Ver também os textos de Jeanne Marie Ferreira Freitas
interesse turístico e aqueles inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com e de Daniela Abritta Cota e Natá lia Aguiar Mol, ambos nesta coletânea.
6 Ver, entre outros, Mol (2004).
s ignificativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional), nos anos recentes vários municípios
1
brasileiros aprovaram leis instituindo planos diretores. Entre outros exemplos, podemos citar o fato de que vários quarteirões da área cent.ral têm parâ-
184 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTI VAS . 185

No entanto, observado o contexto metropolitano, o plano e a nova lei À medida que esta vantagem se expressa numa opção locacional, materializa-se
não foram capazes de instituir mecanismos para reverter o movimento de a formação de uma renda espacial (Lemos, 1988, p . 295).
periferização da pobreza. A expansão da produção capitalista de moradia no Assim, o capital imobiliário, ao definir a localização de novos empreendi-
pólo metropolitano parece estar associada à contínua expulsão de grupos po- mentos, muitas vezes alterando usos e formas de ocupação do solo e, outras 1
pulacionais de baixa renda para fora da cidade. Como veremos, o crescimento 1
tantas vezes, pressionando por mudanças na legislação urbanística de modo a
populacional é mais alto em municípios que apresentam grande precariedade de
infra-estrutura urbana, e parte deste crescimento é resultado da mobilidade resi-
garantir essas alterações, tem papel importante na estruturação das cidades.9 ·i
Portanto, a democratização do acesso à terra e à moradia e, conseqüentemen- 1
dencial de trabalhadores com origem em Belo Horizonte.
te, à Justiça na apropriação da renda real,10 somente serão possíveis se houver efe-
Desta forma, a aplicação dos instrumentos de política urbana presentes no tivo controle público e social desse processo. Os instrumentos previstos no Estatuto
atual quadro jurídico do país ainda permanece na pauta do debate sobre a go- da Cidade têm o objetivo de garantir esse controle, criando condições para a cons- :l
vernança metropolitana . Somente uma articulação de políticas urbanas no trução de um novo paradigma de planejamento urbano e de ação pública, capaz de 1
â mbito metropolitano dará conta de uma problemática que não está circuns- assegurar o cumprimento da função social da propriedade e da cidade. Cabe então
crita nos limites municipa is. investigar em que medida os avanços no quadro jurídico têm um rebatimento real na ·1
1
condução das políticas urbanas, no nível municipal, instância fortalecida na Consti-
Expansão urbana e govemança tuição de 1988, mas também no nível metropolitano, esfera que engloba um impor-
tante conjunto dos processos de expansão das cidades.
Na medida em.que a distribuição dos recursos urbanos (entendidos como o O Plano Diretor é, segundo a Constituição e o Estatuto da Cidade, o instru-
conjunto das infra-estruturas, equipamentos e atividades de apoio à residência) não mento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Para assegurar
é uniforme por todo o território da cidade,8 estabelece-se uma associação entre a ao Poder Público a capacidade de implementação dessa política, o Estatuto defi-
localização e o preço do solo e da moradia. Ao mesmo tempo, há uma divisão social ne, ainda, um conjunto de instrumentos que possibilitam regular "o uso da pro-
do espaço, seja em função de determinada qualidade natural, seja em função de priedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cida-
uma diferenciação simbólica de prestígio, que também incide sobre o preço da terra dãos, bem como do equilíbrio ambiental".
e do produto imobiliário, gerando um mercado de monopólio, cujo fundamento é Na medida em que, como vimos, parte importante do lucro imobiliário
justamente a não-reprodutibilidade de uma das condições de produção, ou seja, a depende da localização, o processo de expansão da cidade é resultado do jogo
terra enquanto localização na divisão social e simbólica do espaço urbano, além de de interesses entre agentes privados, entre os quais: os proprietários de terra, os
descontinuidade da produção no tempo e no espaço (Ribeiro, 1997, p. 126) incorporadores e os habitantes urbanos, estes divididos em grupos sociais com
A dinâmica imobiliária, diz Lemos (1988), está relacionada à crescente ur- diferentes condições de disputa nesse jogo. A utilização dos instrumentos legais
banização e centralização urbano-espacial e à diferenciação entre os espaços presentes no marco jurídico brasileiro recente pode propiciar a reorganização das
econômicos, resultantes do crescimento e complexificação dos serviços necessá- relações entre o capital imobiliário e a instância pública.
rios à reprodução do modo capitalista de produção. Essa diferenciação implica Nesse contexto, o conceito de governança pode ser útil para pensar essã rela-
que determinados espaços passam a deter vantagens comparativas na produção ção, na medida em que tira o foco do Estado como lugar exclusivo de formulação de
de certos bens, expressas no diferencial do custo de serviços ou de taxa de lucro. políticas públicas e recoloca uma visão ampliada que incorpora os diversos ateres
presentes no processo de planejamento e implementação de políticas urbanas. A
instância pública deve então, no contexto da governança, abranger o conjunto dos
metros especiais, através da sua classificação como Área de Diretriz Especial "Residencial Central", atores participantes dos processos decisórios referentes às políticas em jogo.
destacando-se a impossibilidade de instalação de uso não residencial em edificações verticalizadas
- usos não residenciais só podem ser Instalados, neste caso, em edificações horizontais já existentes.
Na prática, ocorre a reserva de um espaço para a manutenção de um modelo de prédio de aparta-
mentos típico do segmento de mercado de alta renda.
8 Várias são as principais ações estatais com impacto direto na distribuição dos recursos urbanos, des-

tacando-se: a legislação urbanística, as políticas sociais, habitacional e de transportes e a execução de 9 Para melhor entendimento dessa dinâmica, ver, entre outros, Topalov (1978) e Ribeiro (1997).
obras viárias, promotoras de novas e maiores acessibilidades. Neste trabalho, a ênfase está colocada 'º A rendo real é um conceito utilizado por Harvey (1979) para tratar do controle dos recursos urba-
sobre a primeira, qual seja, a legislação urbanística. nos, o qual está em função da acessibilidade e da proximidade da localização.
186 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AV~ÇOS E PERSPEcnVAS • 187 1 ~
Para além da definição dada pelo Banco Mundial no início dos anos 1990,11 a No Brasil, a Constituição Federal de 1988 conferiu aos municípios a condi-
governança tem sido trabalhada na literatura das ciências políticas como uma forma ção de entes federativos e fortaleceu o seu papel na formulação e condução de
de rela~o entre Estado e sociedade civil que resulta na capacidade de implementa- polfticas públicas, em parte seguindo a tendência mundial, mas também como
ção de políticas. Eli Diniz (1999) diferencia governabilidade, enquanto um termo reação ao centralismo autoritário dos governos militares. 14 Ainda que a autono-
utilizado para caracterizar as condições sistêmicas mais gerais do exercício do poder mia dos municípios seja bastante limitada pela sua debilidade financeira, 15 eles
em determinada sociedade, de govemance, que está relacionado à capacidade de têm a responsabilidade sobre várias políticas públicas, destacando-se aqui a polí-
ação do Estado na implementação de políticas públicas e na consecução das metas tica de controle do processo de expansão urbana.
coletivas. Govemance, afirma Diniz (1999) refere-se a três dimensões essenciais: a Do ponto de vista da governança local no Brasil, a constituição de conse-
primeira é a capacidade de comando e direção do Estado, que significa não só assu- lhos municipais e as experiências de orçamentos participativos são exemplos de
mir a direção efetiva do processo de produção de políticas públicas elaborado pelo avanços na incorporação de novos atores nos processos decisórios, em que pese
conjunto da máquina estatal, mas também definir e ordenar prioridades, garantindo a tradição patrimonialista e clientelista ainda presente na cultura política brasilei-
sua continuidade ao longo do tempo (p. 108). 12 A segunda é a capacidade de coor- ra.16 Particularmente no que se refere à política urbana, cabe verificar os resulta-
denação do Estado, que se refere à integração entre as diferentes áreas de governo, dos concretos desses avanços sobre a organização socioespacial. Para desenvol-
de modo que seja garantida a coerência e consistência entre as políticas de governo. ver esta análise, trataremos do caso específico do município de Belo Horizonte e
A terceira dimensão refere-se à capacidade de implementação, qual seja, a capacida- sua inserção no contexto metropolitano.
de de mobilizar os recursos técnicos, institucionais, financeiros e políticos necessários
para a implementação das decisões. É necessário, para isso, considerar a competên-
cia técnica e a excelência do quadro administrativo, assim como as condições de Belo Horizonte: avanços na governança local17
sustentação política das decisões. A natureza eminentemente política da implementa-
ção, conclui a autora, requer, portanto, uma estratégia que mantenha abertos os Com uma população residente em 2000 de 2.232.747 pessoas18 distribuídas
"canais de comunicação com a sociedade e o sistema representativo" (p. 110); ou em uma área de 330 km2, Belo Horizonte vem sendo governada, desde 1993, por
ainda, implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de administração do coalizões políticas de centro-esquerda, que propiciaram várias formas de participação
jogo de interesses (Diniz, 1996, p. 13) e controle social das políticas públicas no nível local, com destaque para o Orçamento
A noção de governança tem sido crescentemente aplicada à instância local Participativo Regional (OPR) e o Orçamento Participativo da Habit.crt;ão (OPH). 19
de governo, na medida em que, no processo de reestruturação produtiva em nível No que diz respeito à política de regulação da expansão urbana, em 1996 foi
mundial, importância crescente tem sido dada às localidades. A literatura interna- aprovado o Plano Diretor do município, conjuntamente com uma nova Lei de Par-
cional aponta como razões desta mudança de enfoque, de um lado, o fato de os celamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS). depois de processos de discussão
governos locais estarem "mais próximos da população" e, portanto, apresentarem
maior accountabi/ity 13 que os governos nacionais e, de outro lado, o fato de que os
governos locais são mais maleáveis nas respostas às necessidades do novo sistema
14 Uma a nálise sobre o "novo federalismo brasileird' pode ser encontrada em Abrucio e Soares (2001).
internacional (Stren, 1993, p. 130). 15 Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, em 2003 a participação deste nível de governo no
conjunto das receitas correntes do Brasil era de 18%. A participação dos Estados era de 29% e a da União
53% (http://www.cnm.org.br/insütucionaVestudos tecnicos.asp, acessado em fevereiro de 2007).
16 Para uma visão crítica dos processos de dem;;cratização na condução de políticas públicas no Bra-

11 Govemance foi definida pelo Banco Mundial, em 1992, como lhe manner in which power is exer- sil, com ênfase na política habitacional, ver Navarro (2003).
17 A palavra govemança vem aqui em itálico para expressar a ainda titubeante tradução da palavra
cised in the management of a country's economic and social resources for development. Naquele
imomento, o enfoque era centrado no Estado, com ênfase na eficiência governamental, boa adminis- govemance, do idioma inglês. Azevedo (1998, p. 15) diz que, "embora Maria Helena Castro [Gover-
tração financeira e accountability. Em 1994, a sociedade civil foi incorporada ao discurso do Banco, nabilidade e Governança: criação de capacidade governativa e o processo decisório no Brasil pós-
mas um escopo mais abrangente do termo govemance tem sido encontrado em grupos de cientistas constituinte. ln: XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 1996] tenha sugerido, como a lternativa
políticos fora daquela instituição (McCarney; Stren, 2003). para a tradução de 'governance' , a expressão 'capacidade governativa' tudo indica que devemos
12
Tradução livre. terminar por institucionalizar mesmo a palavra governança".
13 Diniz (1999) resgata de finição de Guillermo O'Donnel para dizer que o termo accountability expres- 18 IBGE (Censo Demográ fico de 2000). Desde julho de 1997 os limites municipais coincidem com a

sa duas dimensões: a submissão das autoridades à lei e o seu dever de prestar contas de suas decisões delimitação do perímetro urbano, ou seja, toda a população do município é urbana.
19 Para mais detalhes sobre o Orçamento Participativo em Belo Horizonte, ver, entre outros, Somarri-
e a tos com a transparência necessária para que os cidadãos possam avaliar a sua administração
governamental (p. 146 ) - tradução livre. ba e Dulci (1997).
188 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 189

pública que duraram mais de um ano.20 No processo de discussão das propostas conjunto de instrumentos presentes na atual legislação urbanística de Belo Horizonte locali-
elaboradas pela equipe técnica da Prefeitura destaca-se, do ponto de vista da go- zaremos as mais importantes lacunas da atual política urbana no muniápio.
vernança, a comissão instituída para deliberar sobre minuta dos dois projetos de
A política e a legislação resultantes constituem o retrato da governança no
lei, constituída por representantes da sociedade civil organizada, eleitos entre seus
nível local, isto é, representam o resultado da correlação de forças e do jogo de
pares durante a realização de um seminário promovido pela Prefeitura.21 Esta comis-
interesses em relação à estrutura urbana, bem como às reais possibilidades de
são deu origem ao Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR) , mecanismo
implementação de uma política urbana mais agressiva com relação à contenção
instituído pelo Plano Diretor, de grande relevância para o fortalecimento da gover-
de processos especulativos com a terra urbana e à justa distribuição dos custos e
nança local nas questões referentes à política urbana, embora tenha caráter
dos benefícios da urbanização. De modo geral, pode-se dizer que a nova legisla-
deliberativo apenas em nível de recurso, nos processos administrativos de casos
ção urbanística e o Orçamento Participativo promoveram uma inversão na loca-
decorrentes cjo PD e da LPOUS (Artigo 80, Alínea VII) . Além do COMPUR, o
lização das obras públicas e na lógica de distribuição dos potenciais construtivos
Plano Diretor instituiu também a Conferência Municipal de Política Urbana,
em Belo Horizonte. Isto porque, de um lado, a LPOUS ampliou consideravel-
com realização prevista para cada quatro anos. 22 A Conferência deve ser organizada
mente as possibilidades de construção vertical em áreas periféricas ao núcleo
pelo COMPUR, amplamente divulgada, e tem a atribuição de avaliar a implementa-
central e, ainda, de constituição de novas centralidades, na medida em que am-
ção do Plano Diretor e da LPOUS. Alguns institutos legais, como o zoneamento, só
pliou a possibilidade de usos não-residenciais em várias áreas do município. De
podem ser alterados após a realização da Conferência. A 1Conferência Municipal de
outro, o Orçamento Participativo resultou na maior proporção de investimentos
Política Urbana foi realizada em 1999, e suas propostas resultaram em alterações no
em obras públicas nas áreas mais periféricas, além dos investimentos em urbani-
Plano Diretor e na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, através da Lei n.
zação de favelas nas á reas mais centrais24 - 73% dos investimentos aprovados
8.137, de 22 de dez(>Jllbro de 2000. A li Conferência Municipal de Política Urbana
nos Orçamentos Participativos entre 1994 e 2002 foram para obras de intra-es-
foi realizada de outubro de 2001 a agosto de 2002. Suas propostas de alteração das
trutura (a quase totalidade em áreas periféricas) e de urbanização de favelas. 25
leis, entretanto, só foram enviadas ao Legislativo municipal em 2005.
O somatório destes dois fatores propiciou importante expansão do merca-
De modo geral, o Conselho e a Conferência têm se configurado em fóruns de cliscus-
do empresarial de imóveis residenciais: de acordo com os dados do IBGE, con-
são e negociação de parâmetros urbanísticos e de mecanismos de implementação da polí-
siderando os municípios que compunham a RMBH em 1991, entre os anos de
tica urbana no muniápio.23 No COMPUR têm sido discutidos projetos de lei que regula-
1991 e 2000 houve um incremento de 41 % no número de apartamentos em
mentam o Plano Diretor e a LPOUS, previamente ao seu envio para a Câmara Municipal.
Belo Horizonte (Censos Demográficos) , enquanto que o incremento populacio-
Exemplo disso é a regulamentação das l.onas de Especial Interesse Social e de Áreils de
nal foi de 24%.26 Para compreender o significado desses números, podemos ob-
Diretrizes Especiais. No caso das conferências, cabe dizer que os seus resultados têm sido
conservadores em termos de propostas concretas de instrumentos de política urbana. No 24
Os gastos de investimento da PBH em 1999 somaram R$163,97 milhões (Revista Planejar BH, n. 7,
Prefeitura de Belo Horizonte, p. 38, abr. 2000,). O conjunto de obras aprovadas no OPR e no OPH em
1998 totalizou R$21 ,21 milhões. Embora as obras aprovadas não sejam necessariamente executadas
20
Foram dois anos de trabalhos conduzidos pelo Poder Executivo Municipal e um ano de discussão no ano seguinte, pode-se dizer, grosso modo, que os recursos do OP representam cerca de 13% do$ in-
e aprovação no Poder Legislativo. Para detalhes sobre o processo de elaboração e aprovação desta vestimentos da Prefeitura. É importante dizer que as despesas de investimento induem: manutenção de
legislação, ver, entre outros, Torre (2003) e Mo! (2004). Ver, ainda, o site do Banco de Experiências de prédios prõprios, parques e jardins e vias públicas; aquisição, construção e/ou reforrna de equipam2ntos
Planos Diretores Participativos, do Ministério das Cidades http://www.cidades.gov.br/planodiretorpartici- públicos; obras de drenagem; implantação e conservação de vias públicas; operações de sistemas de
pativo/index.php?option=com_content&task=section&id= 12&1temid=8. Acesso em: 5 jan. 2007. transporte e trâ nsito; urbanização de áreas e construção de habitação de interesse social.
21 25
A comissão teve a seguinte composição: 4 representantes do executivo municipal; 4 representantes REVISTA PLANEJAR BH. Prefeitura de Belo Horizonte, n. 10, dezembro de 2000. (http://portal2.
do setor técnico (lAB e CREA, por exemplo); 4 representantes do setor empresarial; 4 representantes pbh.gov. br/pbh/index.html?idConte udoNv3=10008&emConstrucaoNv3 =N&verServicoNv3 = N&id
do setor popular; 4 representantes dos religiosos (agregados posteriormente, a partir de reivindicação Nivel2Nv3= 184). Acesso em: jan. 2007). O mapa apresentado na página 13 da mesma publicação
dos evangélicos, que tinham interesses nas propostas de regulamentação de localização de "templos perrnite visualizar a localização das obras.
e locais de culto", entre outras) e 4 representantes do Poder Legislativo como observadores. Os traba- 26 Sabemos que apartamento não é uma categoria que necessariamente diz respeito às formas capi-

lhos da Comissão estenderam-se de novembro de 1994 a julho de 1995, tendo sido discutidos todos talistas de provisão de moradias. A sua produção pode ser resultado de diferentes formas, variando
os artigos das minutas dos projetos de lei. desde a organização de usuários que compram o terreno e contratam os serviços de projeto e
22
Outros mecanismos inicialmente propostos foram rejeitados na Cãmara Municipal, a exemplo da construção, cujo produto é um valor de uso, até a ação do capital incorporador, que vai articular os
proposta de instituição de comissão de aniillse de empreendimento de impacto, com participação diversos serviços necessários à produção de um valor de troca, a mercadoria-moradia. No entanto,
de representante da comunidade atingida, bem como comissão de acompanhamento de operações a produção desse tipo de moradia exige a mobilização de um montante relativamente grande de
urbanas, também com participação de representante de moradores das áreas afetadas. recursos financeiros, o que dificulta os processos de produção não-mercantil. Desta maneira, a mo-
23
Importante registrar também as Conferências Municipais de Habitação e as comissões regionais de radia-apartamento pode ser tomada como indício de uma forma capitalista de produção, embora
transporte. nem todos os apartamentos se enquadre m nesta situação.
190 · Jupira Gomes de Mendonça P LAN EJAMENTO U llHANO NO 6 1\ASI L: TIV.JETÔ RIA, AVANÇOS E r ERSPECTIVAS • 191

servar, ainda, a evolução da participação do número de apartamentos sobre o executadas importantes obras na região da Pampulha (represa, complexo de edi-
total de moradias na RMBH nas últimas décadas: em 1980, esta relação era de ficações30 e avenida ligando a área ao Centro da cidade), localizada a norte da
13% e, em 1991, de 17% (Mendonça, 2002). No ano de 2000, o Censo Demo- área central de Belo Horizonte. À região metropolitana institucionalizada em
gráfico mostra uma participação igual à de 1991 (também 17%). 27 No entanto, 1973 foram sendo agregados novos municípios a partir da Constituição Estadual
estima-se que na década de 1980 uma parcela significativa dos novos aparta- de 1989, até o ano de 2002, quando a RMBH passou a contar com 34 municí-
mentos tinha sido resultado da implantação de conjuntos habitacionais - cerca pios. Nos anos 1970, o Plambel3 1 havia identificado níveis de integração ao
de 20% (Mendonça, 2002). Como na década de 1990 não houve produção sig- processo metropolitano e delimitado o aglomerado metropolitano, qual seja,
nificativa de conjuntos, pode-se dizer que o incremento de apartamentos naque- aquela porção do território da região metropolitana que configurava uma man-
les anos esteve localizado predominantemente na produção empresarial. cha urbana conurbada, que abrangia seis municípios. 32 Partindo da centralidade
Essa expansão do mercado de incorporação de imóveis residenciais parece representada pelo Centro Metropolitano e pela Cidade Industrial, regiões que,
ter ocorrido através da agregação de novos segmentos, como mostra o trabalho juntas, já naqueles anos concentravam os bens, serviços e "rede de fluxos da re-
de Cota e Mol: 28 há uma expansão territorial da produção de moradias no final gião", o Plambel identificou ainda a intensidade com a qual os diversos lugares
dos anos 1990, com uma tipologia típica de segmentos de média e baixa renda eram "comprometidos" com o processo metropolitano, isto é, se articulavam
(ausência de elevador e de área de lazer e menor número de vagas de gara- com essa região dotada de centralidade, o que permitiu a identificação de ma-
gem). Os dados apontam para a democratização do acesso à moradia. No crounidades espaciais:33 Núcleo Central, Área pericentral, Pa mpulha, Eixo
entanto, estudos sobre a mobilidade residencial na Região Metropolitana de Industrial, Periferias, Franja, Área de Expansão Metropolitana e Área de
Belo Horizonte29 mostram a saída de trabalhadores e grupos de baixa renda Comprometimento Mínimo (Plambel, 1984) . O aglomerado metropolitano
do território da cidade e a expansão de grupos de maior renda pelas áreas correspondia aproximadamente às cinco primeiras macrounidades.
peri-centrais. A observação desse fe nômeno re mete à relatividade do proces- Mais recentemente, trabalho realizado pela Rede Observatório das Metró-
so de democratização do território belo-horizontino e à hipótese de que um poles34 também classificou os municípios da RMBH pelo grau de integração ao
impacto importante da nova ação pública, qual seja, o encarecimento dos pre- processo metropolitano, a partir de metodologia que levou em consideração as
ços dos terrenos no núcleo metropolitano, promova mudanças nas condições densidades demográficas, as taxas de crescimento populacional, o grau de ocu-
para o assentamento residencial. pação dos trabalhadores em atividades preponderantemente.urbanas, os fluxos
Desta análise surgem algumas questões relativas à governança local e à de movimento pendular e a dinâmica econômica local. Dos 33 municípios, além
regulação urbana no contexto metropolitano. Mudanças nos critérios de investi- do pólo, 12 apresentaram alto ou muito alto grau de integração metropolitana;
ment0 público, bem como alterações na legislação urba nística, constituem im- 10 apresentaram grau médio de integração e 11 municípios mostraram-se pouco
portantes fatores explicativos da expansão do tecido urbano belo-horizontino. integrados ao processo metropolita no. Estes últimos, em geral, coincidem com a
Entretanto, a organização socioespacial metropolitana vem mantendo uma macro-unidade de Comprometimento Mínimo definida pelo Plambel quase 30
evolução que, como veremos, é caracterizada por um padrão de crescimento anos antes, e com grande parte das áreas correspondentes às Franjas e à Área de
populacional periférico, crescentemente constituído por grupos de baixa renda Expansão Metropolitana, mostrando que, no período, não houve alterações sig-
assentados em espaços urbanos precários. nificativas no processo de metropolização.
Tomando como base pesquisas realizadas no âmbito do Observatório das Me-
trópoles",35 pode-se destacar como principais características da estruturação socioespa-
A estrutura socioespacial metropolitana recente cial da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) nas duas últimas décadas:

O processo de metropolização em Belo Horizonte começou no final dos 30


Cassino, Casa do Baile e Igreja, todos com projeto de Oscar Niemeyer.
anos 1940, quando foi implantada a Cidade Industrial de Contagem, a oeste, e 31
Órgão de planejamento metropolitano, criado por lei em 1974 e extinto em 1996.
32
Municípios de Belo Horizonte e Contagem mais as áreas conurbadas de Santa Luzia (região de São
Benedito), Sabará (General Carneiro), lbirité (Durval de Barros) e Ribeirão das Neves (Justinópolis).
33
27
Belo Horizonte concentra 84,5% dos apartamentos existentes na RMBH (IBGE, Censo Demo- A identificação dessas unidades espaciais foi feita através de pesquisa de campo e do estudo do
gráfico de 2000). processo histórico de forrnação da RMBH (Plambel, 1984).
28 Ver o trabalho destas autoras nesta coletâ nea e, ainda, Cota (2002). 3' OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES/ FASE/ lPARDES (2004).
29 Ver Mendonça (2002). l i Metrópoles, desigualdades socioespaciais e gouemança urbana (CNPq/PRONEX) e Observatório
192 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URllANO NO B llASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 193

a) Elitização dos espaços centrais e peri-centrais (a chamada Zona expulsão de segmentos de baixa renda para fora do município. Isto tem significado
Sul e sua expansão a noroeste, em direção à região turística e de a consolidação de uma organização socioespacial metropolitana ainda fortemente
alta renda da Pampulha), com crescente concentração, nestas áre- marcada pelo padrão centro-periférico, caracterizado, segundo Caldeira (2000),
as, dos grupos dirigentes e intelectuais,36 bem como do mercado de por: ocupação dispersa, em vez de concentrada; distância física entre as classes
incorporação residencial para segmentos de alta renda; 37 sociais - classes média e alta vivendo nos bairros centrais, legalizados e bem
equipados, enquanto os pobres vivem na periferia precária; aquisição de casa
própria como regra para a maioria dos moradores, ricos e pobres; e, finalmente,
b) permanente mobilidade residencial dos segmentos populares sistema de transporte baseado no uso de ônibus para as classes trabalhadoras e em
(trabalhadores ocupados em atividades pouco ou nada qualifica- automóveis para as classes médias e altas (p. 218).
_das) para fora do território do núcleo metropolitano; A comparação entre a dinâmica demográfica metropolitana e a evolução
das condições de saneamento do conjunto de municípios metropolitanos corro-
c) consolidação dos espaços populares nos municípios periféricos bora essa análise, como veremos a seguir.
a norte de Belo Horizonte, com aumento das taxas de crescimento Do ponto de vista populacional, as maiores taxas de crescimento têm se
populacional dos municípios mais distantes; localizado nos municípios mais distantes da região metropolitana. Comparando
os municípios que constituíam a RMBH em 1991, aqueles que apresentaram as
maiores taxas de crescimento populacional urbano (mais de 5% ao ano) nos
d) expansão de segmentos das classes médias para a região indus- anos 1980 foram , em ordem decrescente, Jbirité (incluindo Sarzedo e Mário
trial contígua a Belo Horizonte, na direção oeste da região metropolita- Campos, emancipados posteriormente), 39 Santa Luzia, Betim, Ribeirão das Ne-
na, promovendo mescla social com segmentos operários, simultanea- ves, Lagoa Santa (incluindo Confins) e Igarapé (incluindo São Joaquim de Bi-
mente à saída de grupos populares destas áreas; cas). Metade destes municípios localiza-se na periferia imediata de Belo Horizon-
te. A outra metade é constituída por Betim, localizado no eixo industrial e
apresentando grande dinamismo econômico após a instalação da Fiat nos anos
e) intensificação do processo de expansão da Zona Sul, ao longo
1970; Igarapé, localizado na expansão do eixo industrial, e Lagoa Santa, muni-
da BR-040 em direção ao Rio de Janeiro (a sul de Belo Horizonte),
cípio com características turísticas. Nos anos 1990, as maiores taxas de cresci-
com o surgimento de uma nova centralidade caracterizada pelo ter-
mento populacional urbano (acima de 5% ao ano) encontram-se em Esmeraldas,
ciário avançado e uma ocupação residencial fragmentada em lote-
Vespasiano, Ribeirão das Neves, Mateus Leme (incluindo Juatuba), Betim, Igara-
amentos fechados (denominados condomínios) nos municípios de
pé (incluindo São Joaquim de Bicas), lbirité (incluindo Sarzedo e Mário Campos)
Nova Lima e, em parte, Brumadinho.38
e Brumadinho.40 Ainda que a metade desses municípios se localize também na
periferia imediata de Belo Horizonte, chama a atenção o fato de que o cresci-
mento populacional metropolitano segue em direção às regiões mais distantes do
Do ponto de vista do pólo metropolitano, ou seja, o município de Belo núcleo central (Figura 1). Em grande medida, este crescimento é decorrente da
Horizonte, as ações públicas anteriormente mencionadas parecem ter resultado mobilidade residencial interna à RMBH. Segundo o Censo Demográfico de 2000,
na expansão das áreas ocupadas pelas classes médias e grupos de alta renda e na somando a população dos municípios da região metropolitana, excetuando Belo
Horizonte, mais da metade das pessoas que não nasceram no município, isto é,
das Metrópoles: território, coesão social e gouernança democrática (CNPq/Instituto Milênio) - ver dos migrantes, eram residentes havia menos de 10 anos, e cerca de 30% tinham
também Mendonça (2002). que constituiu um produto destas pesquisas, especificamente para a Re- chegado nos últimos cinco anos.41 Destes migrantes recentes, quase a metãde
gião Metropolitana de Belo Horizonte. ·
36 As pesquisas mencionadas produziram uma classificação sócio-ocupacional da população ocupada (41,5%) era proveniente de Belo Horizonte.
em cada região metropolitana do país, como uma representação da hierarquia social. Os grupos
dirigentes são constituídos por grandes empregadores e dirigentes públicos e privados; os grupos in- 39
telectuais são constituídos pelos profissionais de nível superior, autônomos ou empregados, Incluindo Dado que vários municípios foram emancipados depois de 1990, eles não puderam ser considera-
professores e servidores públicos estatutários. dos Isoladamente para o cálculo do crescimento demogr6flco.
3 7 Ver Mendonça (2002), particularmente o capítulo 6, e Mol (2004). 4-0 Esmeraldas, Mateus Leme, Igarapé e Brumadinho foram anexados à RMBH em 1989.
41
38 Para detalhamento desta particular forma de ocupação e uso do território metropolitano ver Costa (2006). Em julho de 1995 moravam em município diferente daquele em que residiam em agosto de 2000.
194 · Jupira Gomes d e Mendonça PLANEJAMENT URBANO NO B l\ASIL: Tl<AJ IITÓ(((A, AVANÇOS E l'ERSl'ECrlVAS • 195

Tabela 1 • Região Metropolitana de Belo Horizonte


Oomlclllos com aaneamento adequado

·+·• 1991
% Domlcllloa
2000
'/,
Domlcllloa
Domlcllloa com Domlclllos
com
Total do com sanoamento Total de com
Municlpfo saneamento
domlcllios saneamento adequado domicllios sanoamonto
adequado
adoquado sobro o total adequado
sobre o total
do município do município

Belo Horimnte 502.671 378.522 75.3% 621.753 564.427 90,8%

Betim 38.451 10.534 27.4% 79.019 54.360 68,8%

Bnmadinho 4.559 1.434 31,5% 7.187 3.991 55,5%

Caeté 4.559 1.434 31,5% 7.187 3.991 73,1%

Contagem 107276 58.824 54,8% 143.790 111.699 77,7%

Esmeraldas 5.530 1.024 18,5% 12.144 1.530 12,6%

o blrité 20.703 1.31 4 6,3% 33.929 17.629 52,0%


=
C<I Mário Campos 2.720 450 16,5%
...
..Q

Sarzedo 2.720 450 60,0%


o:i
lblrité/Mário
4.437 2.662 50,5%
CamposlSarzodo
garapé 5.956 1.590 26,7% 6.413 3.341 52,1%
São JoaqLim de Bicas 4.697 1.891 40,3%
lgarapé/S.Joaqulm de
11.109 5.232 47,1%
Bicas

.
·+· Lagoa Santa 11.109 5.232 23,8%

• Comns 1249 28 2,2%

• • DO Lagoa Santa/Confins
2g,03
11.195 2.400 21,4%
Mateus Leme 6.344 1.841 6.540 2.922 44,7%
Juatlila 4.370 1.839 42,1%
Matous Lomo/Juatuba 10.910 4.761 43,6%
Nova Lima 12.007 8.636 71,9% 16.822 14.442 85,9%
Pedro Leopoldo 9.678 4.457 46,1 % 13.985 8.381 59,9%

..
e:o
Raposos
Ribeirão das Neves
3.108
31.420
1.983
4.380
63,8%
13,9%
3.519
62220
2.755
26.563
78,3%
42,7%
1""'I ·E!o Rio Acima 1.556 357 22,9% 1.932 1.344 69,6%
C\ J:
C\ o Sabará 20.383 9.197 45,1% 29.418 21.205 72.1%
1""'I
1 Jl.. Santa Luzia 30.910 13.250 42,9% 46.933 32.964 70,2%
o -o
00 o Vespa siano 12.130 5.743 47,3% 19290 8.055 41,8%
C\
1""'I
.g "ª
"êl
São José da Lapa 3.843 1.367 35,6%
1le OI
o:
Vospaslano/S.Josó da
Li'.! 23.133 g.422 40,7%
e Lapa

a:"
01 TOTAL 826.994 507.883 61 ,4% 1.141.654 891 .678 78,11'.
Fonto: l!GE. Censo Demográfico de 2000 - dados lrabalhados.
196 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECIWAS. 197

A confrontação da dinâmica populacional com a evolução da infra-estrutu- 1996 têm como característica mais relevante o fato de serem favoráveis à expan-
ra dos municípios no mesmo período permite observar que o alto crescimento são do mercado de incorporação residencial, além de reforçarem a concentração
populacional ocorre justamente nos municípios com infra-estrutura mais precária. do mercado de monopólio na área central do município. As lacunas estão relacio-
Para possibilitar essa comparação foi calculado um indicador de saneamento ade- nadas, de um lado, à capacidade de controle e direção, por parte do Poder Público,
quado,42 tendo como parâmetros a existência de canalização de água,43 de rede de desse processo de expansão imobiliária, e, de outro, às condições efetivas de
esgotamento sanitário ou fossa séptica e a coleta direta de lixo (Tabela 1).44 implementação de políticas habitacionais de interesse social no município.
De modo geral, houve melhoria das condições de saneamento na região
metropolitana, seguindo a tendência observada no país. A exceção está para três
As lacunas na atual legislação urbanística de Belo Horizonte
municípios que viram diminuídos os já baixos percentuais de domicílios com sane-
amento adequado: Esmeraldas {passou de 18,5 % de domicílios com saneamento
O Plano Diretor de Belo Horizonte, aprovado pela Lei nº 7.165, de 27 de
adequado, em 1991, para 12,6% em 2000), Lagoa Santa/Confins (de 25,3% para
agosto de 1996, instituiu os seguintes instrumentos de política urbana:
21 ,4%)45 e Vespasiano/São José da Lapa (de 47,3% para 40,7%). Por outro lado,
em 1991, apenas três municípios metropolitanos possuíam mais de 60% dos seus
a) Transferência do Direito de Construir, definida como o direito de
domicílios com saneamento adequado (Belo Horizonte, Nova Lima e Raposos).
alienar ou de exercer em outro local o potencial construtivo previsto na
Em 2000 nove municípios apresentaram esta condição.
Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo que não possa ser
É relevante aqui observar que, à exceção de Betim, os municípios com maior exercido no imóvel de origem (Art. 60);
crescimento populacional nas duas décadas (Rgura 1) situam-se entre aqueles com
mais baixo nível de sàneamento (incluindo os três mencionados conjuntos de muni-
cípios cuja condição piorou), mostrando a consolidação da histórica "periferização b) Operação Urbana, definida como o conjunto integrado de inte1ven-
da pobreza" na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Destaque-se, por outro ções, com prazo determinado, coordenadas pelo Executivo, com a par-
lado, o alto grau de adequação de saneamento do pólo metropolitano (91 % dos ticipação de entidades da iniciativa privada, objetivando viabilizar proje-
domicílios em 2000) e do município de Nova Uma, principal destino da expansão da tos urbanísticos especiais em áreas previamente delimitadas (Art. 65);
Zona Sul de Belo Horizonte (85% dos domicílios em 2000).
Se antes havíamos analisado avanços alcançados no município de Belo c) Convênio Urbanístico de Interesse Social, definido como o acordo
Horizonte, relativamente às melhorias das condições urbanísticas, à expansão do de cooperação firmado entre o Município e a iniciativa privadã, para
acesso ao mercado residencial e à democratização dos processos decisórios, po- execução de programas habitacionais de interesse social (Art. 70);
demos agora, à luz do processo de expansão metropolitana, discutir as limitações
da regulação urbana na capital.
A nosso ver, essas limitações estão relacionadas, em grande medida, às d) Mecanismos de Intervenção Urbana, remetendo para lei específica
lacunas ainda hoje presentes no Plano Diretor e na legislação urbanística. Como a exigência de adequado aproveitamento de solo urbano não edifi-
veremos a seguir, os instrumentos presentes na legislação belo-horizontina desde cado, subutilizado ou não utilizado. O parágrafo único do Artigo 74
define que o IPTU Progressivo [sic] somente poderá ser aplicado nas
áreas definidas em conformidade com o art. 55 [zonas passíveis de
adensamento]. em terrenos que tenham mais de 5.000 m2 {cinco mil
42
Cuja sintaxe foi produzida pelo Obse rvatório das Metrópoles.
43 No que se refere ao abastecimento de água, que aparece com critérios diferentes nos dois Censos
Demográficos, para 1991 foi considerada qualquer forma de abastecimento (rede geral, poço ou nas- metros quadrados), salvo se a lei federal citada no caput [regulamen-
cente ou outra forma) com canalização interna; para 2000 foi considerada existência de canalização tação do Art. 182, §4° da Constituição Federal) fixar outro limite.
em pelo menos um cômodo ou apenas na propriedade ou terreno.
44
Para os municípios emancipados posteriormente a 1991, os dados referentes ao ano 2000 estão apre-
sentados individualmente e para cada conjunto de municípios que foram separados pela emancipação. É importante acrescentar que a Lei nº 7.166 - conhecida como LPOUS - ,
45 Desteca-se que apenas 2,2% dos domicílios do município de Confins (emancipado de Lagoa Santa
que estabelece as normas para parcelamento, uso e ocupação do solo do municí-
em 1995) apresentam nível adequado de saneamento, dada a precariedade do seu sistema de esgota-
mento sanitário - segundo o Censo Demográfico de 2000, apenas 2,2% dos domicílios deste município
pio, aprovada em conjunto com o Piano Diretor, definiu como ZEIS-2 (Zona de
estão ligados a rede ou fossa séptica. Especial Interesse Social-2) regiões não edificadas, subutilizadas ou não utilizadas,
198 · Jupira Gomes de Mendonça PLANEJAMENTO URBANO NO BHASJL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECTJVAS • 199

nas quais há interesse público em promover programas habitacionais de produção • ADE Lagoinha, em função de sua localização estratégica e da importân-
de moradias, ou terrenos urbanizados de interesse social (Art. 12, Alínea II). cia cultural e econômica da região destinada à proteção do patrimônio
Do ponto de vista dos mecanismos que interessa aqui analisar, cumpre cultural e da paisagem urbana; à revitalização de áreas degradadas ou es-
lembrar ainda a criação, pelo Plano Diretor, de Áreas de Diretrizes Especiais tagnadas e ao incremento ao desenvolvimento econômico.
(ADE) , definidas como aquelas que, por suas características específicas, deman-
dam políticas de intervenção e parâmetros urbanísticos e fiscais diferenciados, a
b) Áreas com restrições de uso ou de parâmetros construtivos, a maior parte das
serem estabelecidos em lei, os quais devem ser sobrepostos aos do zoneamento
quais é resultado de mobilizações de moradores ou, no caso da ADE-Residencial
e sobre eles preponderantes, tais como: l) proteção do patrimônio cultural e da
Central, do segmento de incorporação imobiliária:
paisagem urbana; II) proteção de bacias hidrográficas; III) incentivo ou restrição
a usos; IV) revitalização de áreas degradadas ou estagnadas; V) incremento ao • ADEs da Serra, Trevo e Santa Tereza, que têm restrições de gabarito e de
desenvolvimento econômico; VI) implantação de projetos viários (Art.75) . outros parâmetros construtivos;
A LPOUS delimitou 16 tipos de ADE, que podem ser agrupadas em dois • ADEs Estoril, Mangabeiras, Belvedere, São Bento, Santa Lúcia, Pampulha
conjuntos: e Belvedere III, destinadas exclusivamente ao uso residencial unifamiliar.
• ADE Residencial Central, onde somente é permitido o uso não-residencial
em edificações horizontais e nas destinadas a hotéis ou a apart-hotéis.
a) Áreas com diretrizes de planejamento e de intervenção específica:
• Em 2000, a Lei nº 8.137 criou duas novas ADEs, como resultado de
• ADE Bacia da Pampulha, sujeita, em função da preservação ambiental
mobilização de moradores de dois bairros:
da lagoa, a diretrizes especiais de parcelamento, ocupação e uso, de movi-
mentação de terra e de recuperação de áreas erodidas, degradadas ou • Primeiro de Maio, com o objetivo de preservar as características tradicio-
desprovidas de cobertura vegetal; nais de uso e ocupação do bairro, restringindo a altura das edificações em
dois pavimentos;
• ADE do Vale do Arrudas, que, em função de sua localização estratégica
e de suas condições de degradação ou subutilização, demanda projetos de • Buritis, onde, dada a precariedade de articulação viária com o restante
reurbanização; da cidade, houve restrição de parâmetros de ocupação, visando limitar o
adensamento populacional e construtivo.
• ADE Cidade Jardim, área em que deverão ser adotadas políticas especi-
ficas visando à preservação paisagística, cultural e histórica; Analisemos primeiramente os instrumentos de política urbana promulga-
dos pelo Plano Diretor. As Operações Urbanas e o Convênio Urbanístico de Inte-
• ADE Savassi, que, em função de suas características, demanda a adoção
resse Social têm em comum o fato de constituírem instrumentos para viabilizar a
de incentivos e normas especiais visando a sua revitalização;
parceria entre o Poder Público e a iniciativa privada, sendo que, no primeiro
• ADE Hospitalar, que, devido à alta concentração de atividades da área de caso, o fato de cada operação depender de lei específica torna o instrumento
saúde e hospitalares de caráter geral, demanda a adoção de medidas visan- mais transparente e mais permeável ao controle social, na medida em que, em
do inibir a crescente especialização dos usos e a adequá-la aos já existentes; geral, processos legislativos são mais transparentes do que decretos do Executivo.
• ADE de Interesse Ambiental, constituída por áreas nas quais existe inte- Trata-se, entretanto, de instrumento vigoroso para viabilizar investimentos com
flexibilização de regras urbanísticas em áreas de interesse do capital imobiliário. .1
resse público na preservação ambiental, a ser incentivada pela aplicação de
mecanismos compensatórios; O Convênio Urbanístico é um instrumento mais frágil , dado que o interesse
• ADE de Venda Nova, região administrativa localizada a norte de Belo do investidor existirá em situações muito específicas, não tendo sido aplicado
Horizonte, destinada ao desenvolvimento das atividades econômicas liga- nestes dez anos de vigência da lei. Essa fragilidade é reforçada pelo fato de que
das ao setor têxtil e dele complementares, mediante a adoção de políticas não há outros instrumentos que pudessem se somar no estímulo, ou mesmo na
que contemplem a melhoria da acessibilidade, a implantação de incubado- imposição de ocupação de áreas com objetivos de interesse social. Em primeiro
ras de empresas e de equipamentos indutores similares e a regularização lugar, porque poucas foram as áreas delimitadas como ZEIS-2 na LPOUS - as
urbanística e fundiária dos terrenos. poucas existentes são, em geral, em regiões periféricas. Em segundo lugar, porque
200 · Jupira Gomes de Mendonça P LANEJAMENTO URllANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 201

um conjunto de instrumento de grande vitalidade, constituído pelo Parcelamento pos populacionais se mobilizaram nos bairros, antes e depois de aprovada a legisla-
Compulsório, pela Ocupação Compulsória, pelo IPTU Progressivo no Tempo e ção em 1996, para garantir a manutenção de características, sejam paisagísticas ou
pela Desapropriação com Títulos da Dívida Pública, foi tremendamente esvaziado de uso do solo, do seu local de moradia. Há, aqui, uma contradição inerente à gover-
na lei que instituiu o Plano Diretor. Cabe aqui lembrar que a minuta de lei apresen- nança: no jogo de disputa de interesses, no contexto histórico-político brasileiro a!nda
tada pela Prefeitura para discussão pública propunha que estes instrumentos fos- prevalecem os interesses corporativos. Assim, em vários casos, a mobilização ocorreu
sem aplicados em terrenos subutilizados ou não-utilizados nas áreas classificadas em busca da manutenção de privilégios, tais como a suposta tranqüilidade do
como de adensamento preferencial e na ZEIS-2. A lei aprovada não só deixou de uso exclusivamente residencial47 nas áreas de alta renda. É verdade, entretãnto,
definir a aplicação do instrumento, como tornou-o inócuo, na medida em que limi- que este mecanismo foi utilizado também para garantir a permanência de mora-
tou a sua aplicação a terrenos com área superior a 5.000 metros quadrados. 46 dores de baixa renda em locais onde a melhoria da acessibilidade tornou-os
atrativos para o capital imobiliário. Este foi o caso do Bairro Primeiro de Maio,
Por fim a Transferência do Direito de Construir, regulamentada pelo Decre-
tradicionalmente constituído por população operária, que se mobilizou para soli-
to nº 9.616 de 26/06/1998, tem sido utilizada no mercado de incorporação de
citar, no COMPUR e na Conferência de Política Urbana, parâmetros urbanísticos
imóveis para transferir potencial construtivo de imóveis classificados como de
que inviabilizassem a entrada da incorporação residencial no bairro, a partir da
interesse de preservação, em geral imóveis tombados. Embora este instrumento
extensão da linha do trem metropolitano e de obras de drenagem e abertura de
tenha como base o princípio da separação entre a propriedade do terreno e o
novas vias de conexão ao sistema viário principal da cidade.
direito de nele construir, os demais instrumentos decorrentes desse princípio
não estão instituídos na legislação vigente em Belo Horizonte. A minuta de lei que
foi discutida anteriormente ao envio do projeto de lei para a Câmara Municipal Regulação urbana, govemança local e impacto
propunha a concessão onerosa de potencial construtivo na área central e nas zonas metropolitano: considerações finais
de adensamento preferencial. Este instrumento foi, entretanto, rejeitado pela maio-
ria dos vereadores, sob pressão de segmentos do capital imobiliário. O principal Os canais de interlocução e de administração do jogo de interesses entre os
argumento para rejeitar a concessão onerosa era de natureza ideológica e estava diversos grupos sociais avançaram no contexto da política urbana local belo-ho-
relacionado ao fato de que ao capital imobiliário já havia sido concedido, em rizontina. Entretanto, os seus resultados são ainda limitados, se consideradas as
leis anteriores, altos potenciais construtivos. Na medida em que o Plano Diretor possibilidades de redistribuição da renda real, particularmente no contexto me-
e a nova lei de uso e ocupação do solo propunham uma diminuição geral dos tropolitano. Sob essa ótica, os instrumentos aprovados na recente legislação ur-
coeficientes, a concessão onerosa configuraria, segundo os empresários, uma banística municipal têm promovido a expansão do mercado residencial, inclusive
expropriação de potencial construtivo. com a agregação de novos segmentos, mas ainda não deram conta de promover
De modo geral, pode-se dizer que o conjunto de instrumentos urbanísticos o controle da expansão urbana de forma a garantir aos grupos de baixa renda o
instituídos na legislação belo-horizontina tem como principais conseqüências acesso aos recursos urbanos em expansão. O caso do Bairro Primeiro de Maio
abrir para o mercado de incorporação imobiliária as possibilidades de novos in- parece ser a exceção que confirma a regra.
vestimentos e de flexibilização nos parâmetros de uso e ocupação do solo. De O quadro de expansão metropolitana em Belo Horizonte tem, como vi-
fato, não constituem reforço à política de habitação de interesse social. mos, consolidado o modelo centro-periférico de crescimento e a cristalização da
Com relação às Áreas de Diretrizes Especiais (ADE), que efetivamente re- chamada periferização da pobreza. Nesse contexto, cabe corroborar as críticãs ao
gulamentam parâmetros urbanísticos, é relevante registrar que elas são, na quase novo federalismo brasileiro, pós-Constituição de 1988, em que preponderam a
totalidade, resultados da prática de governança local no município, em que gru- fragmentação e a competição intermunicipal. No que diz respeito à política de
regulação urbana, a fragmentação tem resultado na manutenção de um movi-
mento de segregação de grupos de baixa renda em periferias precárias e distantes
46 O argumento utilizado pelos vereadores para rejeitar a aplicação desses instrumentos era de natureza das oportunidades de emprego, renda e facilidades urbanas. Internamente ao
jurídica e tinha apoio em juristas de outras regiões do país, cujo entendimento era de que os instrumen- município de Belo Horizonte, tem havido um avanço na governança local e na
tos instituídos pelo §4° do artigo 182 da Constituição Federal dependiam de regulamentação para serem
aplicados. Contra este argumento, outros juristas entendiam que, na medida em que a Constituição
definia como competência municipal "legislar sobre assuntos de interesse local" e "promover, no que
couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento
47Poderíamos aqui refutar essa visão, a partir da análise de Jacobs (2001) , em que são evidenciados
e da ocupação do solo urbano" (art. 30) a legislação municipal poderia regular esta matéria. os benefícios da multiplicidade de usos nas áreas residenciais.
202 · Jup ira Gomes de Mendonça PLANEJMIEm'O URBANO NO B RASIL: Tll/\j~IÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPECTIVAS ' 203

produção de melhores condições de infra-estrutura e de acessibilidade. No en- DINIZ, Eli. Govemabilidade, govemance e reforma do Estado: considerações sobre o novo pa-
tanto, trata-se de um avanço ainda limitado a resultados conservadores, porque radigma. Reuistci do Serulço Público, Ano 47, v. 120, n. 2, p. 5-2, malo-ago. 1996.
prevalecem, na legislação resultante, mecanismos de suporte à dinâmica imobili- DINIZ, Eli. Gobernabilidad, gobierno local y pobreza em Brasil. ln: RODRÍGUEZ, Alfredo;
ária empresarial, mantendo-se importantes lacunas no que diz respeito ao supor- WINCHESTER, Lucy (Ed.) . Ciudades y gubernablfldad en América Latina. 2. ed. Santia-
go: Ediciones SUR, 1999. p. 99-152. (Colección Estúdios Urbanos)
te à produção de habitação de interesse social. Esse processo promove, ao mes-
mo tempo, a elitização do te rritório municipal, ge rando efe itos perversos para a FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Dei
Rey, 2001.
estruturação socioespacial metropolitana.
FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Hori-
Desta forma, há que se avançar no sentido de construir uma noção coletiva zonte: Dei Rey, 2006.
do território metropolitano e de sua organização socioespacial. Essa construção FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - CEPAM, Centro de Estudos e Pesquisas de Admi-
requer a articulação e a coordenação de processos d e negociação, sob os princí- nistração Municipal. Estatuto da Cidade, coordenado por Mariana Moreira. São Paulo,
pios constitucionais e do Estatuto d a Cidade. Em outras palavras, há que se 2001. 482p.
construir uma governança me tropolitana orientada para o cumprimento da função GRAZIA, Grazia de (Org.). Plano diretor: instrumento de reforma urbana. Rio de J aneiro:
social da propriedade e do território, para a promoção, a justiça e a redistribuição FASE, 1990.
dos benefícios da urbanização. A governança m etropolitana vai significar, aqui, HARVEY, David. Urbanismo y desigualdad social. 3 . ed. México D.F.: Siglo Veintiuno
reforçar a dimensão que Diniz (1999) re lacionou à capacidade de implementação Editores, 1979.
cuja natureza e minentemente política requer canais abertos de comunicação e ne- JACOBS, Jane. Morte e uida de grandes cidades. Tradução de Carlos S . Mendes Rosa.
gociaç.ão com os diferentes grupos sociais e com o sistema representativo, que, no São Paulo: Martins Fontes, 2001. (l° edição no Brasil)
contexto metropolitano, abrange as várias instâncias do Poder Público municipal. LEMOS, Maurício Borges. Espaço e capital: um estudo sobre o dinãmico centro x periferia.
Fundamental, nesse processo, é a licitude das diversas forças presentes na socie- 1988.. Tese (Doutorado em Economia) - Unicamp, Campinas. 678p
dade, cuja participação nos processos decisórios será tanto mais legítima quanto MATTOS, Liana Porlilho de (Coord.). Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte:
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mais representativa dos diversos interesses em jogo.
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P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECToVAS . 205
204 · Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça

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PARTE 3 - Avaliações de uma
experiência: o caso de Belo Horizonte
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 209

Planejamento urbano de Belo Caracterizado tal momento de inflexão, a segunda parte da discussão dedi-
ca-se ao esforço de contextualizá-lo numa reflexão teórica ampliada, através da
Horizonte: reflexões sobre qual se verifica em que medida as modificações introduzidas inserem-se em no-
vas tendências de abordagem do espaço urbano e seus rebatimentos sobre o
um momento limiar 7 planejamento.
Jeanne Marie Ferreira Freitas
A evolução do planejamento urbano de Belo Horizonte: breve histórico

De 1897 a 1988
Inicialmente, tem-se o plano proposto por Aarão Reis, concebido segundo
Introdução
uma perspectiva técnico-funcionalista, inspirado pela racionalidade do urbanis-
mo progressista. A nova capital foi concebida como um todo acabado, onde as
Passados dez anos após a aprovação do primeiro Plano Diretor de Belo
diferentes funções urbanas estariam harmoniosamente organizadas e distribuídas
Horizonte (Lei nº 7.165/96) e da primeira Le i de Parcelamento, Ocupação e Uso
nas zonas urbana, suburbana e rural. Entretanto, logo nas primeiras décadus de
do Solo (Lei nº 7.166/96), concebidos segundo os princípios preconizados pela
sua existência, a dinâmica de produção do espaço urbano contrariou o plano
Constituição Federal de 1988, o momento incita à reflexão. Se tal reflexão pode
inicial, emergindo daí novas formas de uso e ocupação do solo não previstas pelo
servir, por um lado, à auto-avaliação necessária a todo processo de planejamen-
mesmo, em especial a ocupação das zonas suburbana e rural pela população de 1
to, por outro não d~ixa de fornecer subsídios à elaboração dos novos planos menor poder aquisitivo, associada à ação especulativa sobre os terrenos aí loca-
diretores que se tornaram obrigatórios para todos os municípios com população
urbana superior a 20 mil habitantes. Nos anos 1970 e 1980, quando ainda não
lizados, gerando crescentes demandas por serviços públicos de infra-estrutura. ·I
existia esta obrigatoriedade, a quase totalidade dos municípios que se empenha- No período 1897 a 1976, foram implantadas legislações urbanísticas com-
ram em criar legislações urbanísticas próprias praticamente não avançou além da plementares ao plano inicial, dentre elas a fixação de normas de uso e ocupação
simples reprodução adaptada das legislações em vigor nas grandes capitais. Desta do solo e de parâmetros para a construção de edificações através do Código de
feita, porém , espera-se que a experiência já acumulada nos anos 1990 e 2000, Obras (Decreto-lei 84/40). Como contribuição importante desse período, destaca-
em especial aquela associada aos grandes centros urbanos, desestimule definiti- se o trabalho efetuado pela SAGMACS (Sociedade para a Análise Gráfica e Mecano-
vamente a sua mera replicação e fomente as reflexões críticas necessárias ao gráfica Aplicada aos Complexos Sociais), que produziu detalhado diagnóstico de
embasamento das novas propostas que irão surgir. Belo Horizonte na virada das décadas de 1950 / 1960, culminando numa proposta
de plano diretor. Em busca de objetivação e validação, tanto o diagnóstico elaborado
Tendo em vista este objetivo geral, a primeira parte da discussão que se quanto o plano proposto prendiam-se a um excessivo rigor matemático-estatístico,
apresenta a seguir reflete sobre um momento considerado limiar na evolução do
onde, para a proposição de índices, taxas, projeções etc., recorria-se a amostragens,
planejamento urbano de Belo Horizonte, ou seja, o momento em que, sob o es- simulações e previsões. Assim, foram previstas percentagens de distribuição relativa
tímulo do ideal redemocratizante pós-1988, repensar o planejamento urbano
entre os diversos usos urbanos, formas de ocupação dos terrenos, e até o ajustamen-
municipal significava questionar os modelos até então praticados, "contamina- to de parâmetros urbanísticos quando determinadas situações (definidas numericamen-
dos" pela centralizaÇão e pelo autoritarismo típicos da política urbana nacional
te) fossem atingidas. Da mesma forma, dimensionaram-se áreas verdes, distribuições de
praticada no período militar. Trata-se já de uma reflexão histórica, cuja importância usos segundo os tipos de vias, densidades admissíveis, coeficientes e demais parâme-
reaviva-se toda vez que se procura compreender os desdobramentos posteriores a tros. O mais interessante, entretanto, é evidenciar no Plano Diretor formulado uma
partir de tal ponto de inflexão, bem como aferir os seus reais alcances rumo às série de propostas que seriam mais tarde resgatadas (instrumentos urbanísticos do
transformações que se pretendiam alcançar. 1
tipo taxa de ocupação do terreno, índice de utilização e imposto territorial progres- ..
1

sivo, propostas de descentralização urbana através da consolidação de subcentros,


1
e classificação hierárquica do sistema viário, por exemplo). O Plano Diretor elabo-
Grande parte da re flexão aqui apresenta foi objeto de discussão da dissertação de mestrado in-
titulada Perspediuos do planejamento urbano contemporâneo: reflexões a partir do caso de Belo rado não foi, no entanto, aplicado.
Horizonte (Freitas, 1996).
210 · Jeanne Marie Ferreiro Freitas P LANEJAMENTO UROANO NO B RASii.: , l<A)lríÓIUA, AVANÇOS f. 1'61<51'ECTIVAS . 211

Em 1976, aprovou-se a primeira Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo dominante sobre a produção do espaço urbano, detectam-se constantes subversões
Horizonte (Lei nº 2.662/76), vinculada ao processo de planejamento que se ins- relativas ao planejamento oficial, visto que reiteradamente os interesses de outros
taurou no país a partir do Golpe de Estado de 1964, quando o governo federal agentes que atuam no processo de produção desse mesmo espaço foram negligen-
iniciou a construção de uma política urbana nacional centralizada, tecnocrática e ciados. Daí decorrem as contradições entre as chamadas cidade formal e cidade in-
não participativa. A estrutura espacial proposta baseava-se no modelo rádio-con- formal, como se tais expressões revelassem interesses formalmente incluídos pelo
cêntrico, onde as maiores possibilidades de ocupação e diversidade de usos con- planejamento, de um lado, e interesses também formalmente excluídos, por outro.
centravam-se na área central, diminuindo gradativamente tal intensidade à medida Além disso, à medida que se caminha rumo à escala dos microcontextos intra-urba-
que se avançava rumo à periferia. Os principais corredores de transporte permitiam nos, tais contradições parecem exacerbar-se, visto que a concepção desta referida
a concentração de uma maior variedade de comércios e serviços, de acordo com ordem é, antes de tudo, globalizante, generalizadora e homogeneizadora. Como con-
o nível hierárquico que cada um desempenhava na estrutura viária geral. O zo- seqüência, características específicas, particularidades e diferenciações localizadas
neamento funcionalista foi empregado para classificar o espaço urbano segundo não são abordadas pelo planejamento em vigor.
uma predominância de usos desejada (zona residencial, zona comercial, zona Consideradas tais questões, passa-se à análise de um segundo momento
industrial etc.). A fim de atingir tal objetivo, as diferentes atividades foram clas- na evolução do planejamento urbano de Belo Horizonte, que culmina num im-
sificadas, assim como sua localização e forma de implantação passaram a ser portante ponto de inflexão.
controladas. De modo geral, a aprovação da Lei nº 2.662/76 pouco alterou a
dinâmica, seja do mercado imobiliário ou dos demais agentes urbanos, princi-
palmente devido ao fato de ser caracteristicamente muito permissiva. Assim, De 1988 a 1995
embora sua revisão estivesse prevista para ocorrer dentro de cinco anos a partir Com as mudanças políticas ocorridas no Brasil pós-1985 e a posterior pro-
de sua implantação, estabeleceu normas que ganharam grande permanência no mulgação da Constituição Federal de 1988, desencadeou-se um processo de rom-
tempo e forte apoio dos agentes imobiliários. pimento com a política urbana nacional até então em vigor. Ao confiar a política de
Em 1985, aprovou-se a Lei nº 4. 034/85, uma nova Lei de Uso e Ocupa- desenvolvimento urbano ao poder público municipal e definir a obrigatoriedade do
ção do Solo de Belo Horizonte, em vigor até 1996, que apenas introduziu algu- plano diretor para cidades com mais de 20 mil habitantes, a referida Constituição
mas modificações na Lei nº 2. 662/76, não alterando, portanto, sua concepção deu início a uma nova fase de planejamento urbano no país, fortemente calcada
segundo o zoneamento funcionalista adotado anteriormente. Tais modificações na municipalidade. Em sintonia com a Constituição Federal de 1988 e com a nova
restringiam-se à revisão de algumas zonas, a ajustes nas combinações de usos per- Lei Orgânica Municipal de 1990, foi elaborada, em 1990, uma primeira proposta
mitidos, ao detalhamento da listagem de atividades, e à alteração de alguns parâ- de plano diretor para Belo Horizonte, intitulada BH 2010. Apesar da sua não apro-
metros urbanísticos. De modo geral, salvo raras exceções, as a lterações introduzi- vação pela Câmara Municipal, ressaltam-se alguns de seus aspectos.
das tornaram ainda mais permissivas as possibilidades de uso e de ocupação do Como seu próprio nome sugere, verifica-se que um horizonte de 20 anos
solo: diminuíram-se áreas mínimas de lotes exigidas, taxas de ocupação máximas foi tomado como referência, horizonte este questionável diante da velocidade das
admitidas foram aumentadas assim como coeficientes de aproveitamento máxi- relações espaço-temporais estabelecidas no meio urbano. A proposta partia de
mos, além da diminuição de afastamentos mínimos obrigatórios. um extenso diagnóstico de Belo Horizonte e culminava num futuro almejado,
Até aqui, identifica-se um primeiro momento na evolução do planejamento de quando todas as metas seriam atendidas. Havia uma inegável opção pela previ-
Belo Horizonte, calcado em fortes princípios de racionalidade, técnica e funcionalida- são, acompanhada por uma idealização de cidade. Tal opção se fez em detrimento
de. Verifica-se o predomínio de um planejamento rígido, organizado a partir da ide- da incorporação da dinâmica cotidiana do espaço urbano.
alização de uma lógica urbana, como se tal lógica pudesse não apenas ser claramen- Embora a proposta formulada tenha sido objeto de muitas críticas, consti-
te percebida, como também facilmente produzida ou controlada. A concepção de tuiu um marco da retomada do planejamento urbano de Belo Horizonte, a rigor
uma ordem funcional é, portanto, subjacente às propostas formuladas. Tal ordem, interrompido desde 1976. Nesse contexto, enfrentou dificuldades inerentes a um
entretanto, reflete a lógica político-institucional, ligada à necessidade de centralização plano piloto, que abrangiam questões relativas à sistematização de dados e infor-
e controle, à lógica técnica, proveniente da visão dos planejadores urbanos, e à lógi- mações, à adoção de novos referenciais para a reflexão associada ao planejamento
ca dos agentes imobiliários, que tiveram seus interesses respaldados pelas propostas urbano, e à organização técnico-institucional para a condução do processo de ela-
de planejamento. Exatamente por refletir as lógicas parciais dos agentes de atuação boração do plano, uma vez que o poder público municipal até então não tinha se
212 · Jeanne Marie Ferreira Freitas P LAN liJAMENTO UllBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERS PECTIVAS . 213

incumbido de tarefa dessa natureza. Por um lado, os novos planos diretores que co- comprometendo a compreensão dos princípios inicialmente eleitos, que, em sínte-
meçaram a ser elaborados pós-1988 em várias cidades brasileiras encontravam-se se, caracterizam o momento de inflexão que se pretende discutir.
em estágio inicial, sem que ainda tivessem sido consolidadas bases teórico-metodo-
As novas legislações urbanísticas propostas partiam da consideração da di-
lógicas capazes de fundamentar a nova reflexão relativa ao planejamento urbano que
nâmica própria e particular da cidade de Belo Horizonte, incorporando-a em sua
se instaurava no país. Além disso, emergentes questões associadas ao espaço urbano
concepção. Efetivos esforços foram efetuados no sentido de primeiramente com-
evidenciavam-se, exigindo que fossem contempladas por uma nova proposta de
preender a cidade em seu dinamismo peculiar e, em seguida, extrair dessa compre-
plano diretor. Por outro lado, a iminente possibilidade de alteração de regras de atu-
ensão as possibilidades de sua transformação. Dentre os variados estudos que se
ação no espaço urbano via adoção de novos instrumentos urbanísticos ameaçava
realizaram a título de diagnóstico urbano, emergiram discussões inovadoras, tais
romper cristalizadas formas de ação, especialmente de grupos dominantes tais
como: a democratização do espaço urbano orientada por princípios de justiça so-
como os agentes imobiliários, o que levou à explicitação de disputas relativas ao
cial e igualdade; a estruturação do espaço urbano vinculada a uma estratégia de
exercício do poder e ao controle do espaço, transformando a participação no pro-
desenvolvimento econômico (baseada em redirecionamento da base exportadora
cesso de planejamento imprescindível.
e em implantação de uma política de incubadoras); 2 a identificação de centros e
Em síntese, a proposta do Plano Diretor BH 2010 constituiu um produto centralidades; a avaliação dos impactos decorrentes da legislação urbanística até
contraditório. Se por um lado percebe-se o arrefecimento da tônica funcionalista então em vigor; a tentativa de considerar a capacidade de suporte das infra-estru-
que caracterizava a prática anterior de zoneamento, ou vislumbra-se a exigência turas instaladas como fator de restrição ao adensamento populacional; a flexibiliza-
de se agregar novos parâmetros ao planejamento urbano (tais como os instru- ção de usos associada à noção de impactos ambientais como forma de enfrentar a
mentos urbanísticos que haviam sido introduzidos pela Constituição Federal de diversidade urbana· a preocupação ambiental; a tentativa de estabelecer as rela-
1988 e reforçados IJ'!la Lei Orgânica Municipal de 1990) bem como incorporar ções intervolumétricas entre os edifícios a partir da avaliação da carta solar do
preocupações ambientais, por outro, ainda não se havia desvencilhado de anti- município; os incentivos tributários e a modernização dos instrumentos urbanísti-
gos referenciais. Diante da dificuldade de responder a estas questões, o plano cos; dentre outras. Discussões dessa natureza mobilizaram numerosos técnicos e
remete a um futuro modelo idealizado de cidade que deveria ser atingido através demandaram consultorias variadas. Desta feita, as reflexões que embasavam a
de um programa de execução de ações e obras, criteriosamente baseado em formulação dos novos planos diretor~ que se realizavam pós-1988 no país encon-
projeções matemático-estatísticas das demandas e suas formas de atendimento. travam-se mais avançadas, possibilirc;ndo frutíferos intercâmbios.
Tendo em vista o contexto no qual foi concebido, sua relevância encontra-se
Contrariamente ao zoneamento funcionalista, o território municipal foi subme-
muito mais na retomada da discussão relativa ao "novo" planejamento urbano,
tido a um macrozoneamento segundo potenciais de adensamento e demandas de
do que no mérito do conteúdo da proposta em si; aproxima-se mais de uma
preservação ambiental. Superpondo-se ao macrozoneamento, foram propostas Áre-
transição do que apresenta claros elementos sinalizadores de novas tendências.
as de Diretrizes Especiais (ÀDEs), destinadas à proteção do patrimônio histórico-cul-
tural e paisagístico urbano, ao desenvolvimento econômico de algumas atividades
1995: o ponto de inflexão - A nova proposta de Plano Diretor específicas, e ao tratamento diferenciado de áreas consideradas peculiares. Tal
de Belo Horizonte de 1995 procedimento expressava uma tentativa de considerar variáveis tipicamente mais
localizadas e específicas no planejamento geral da cidade.
A partir de 1993, iniciou-se a discussão de nova proposta de plano diretor Quanto ao uso do solo, foi proposta uma grande flexibilidade de usos, possibi-
para Belo Horizonte, em substituição ao Plano BH 2010, que culminou, em 1995, litando uma maior diversidade quanto às alternativas de localização das diferentes
na consolidação de dois produtos básicos: o Projeto de Lei do Plano Diretor e o atividades na malha urbana. As atividades foram classificadas em usos incômodos e
Projeto de Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de Belo Horizonte. Am- usos não incômodos, sendo que as condições para a implantação dos primeiros de-
bos foram submetidos à Câmara Municipal de Belo Horizonte em 1996, decorren- viam considerar aspectos relativos às suas possibilidades de gerar extemalidades am-
do desse processo a aprovação das leis 7. 165/96 (Plano Diretor de Belo Horizonte)
e 7. 166/96 (Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de Belo Horizonte),
que não foram aqui consideradas, em virtude das variadas mutilações que os pro- 2 A polltlca de Incubadoras caracterizava-se por uma tentativa de Induzir a crlaçllo de manchas de

jetos originais sofreram durante a fase de tramitação e negociação: importantes atividades especializadas, espacialmente concentradas em algumas áreas da cidade, facilitando a
comercialização de produtos específicos e , em alguns casos, a produção dos mesmos. A implantação
inovações e avanços concebidos tiveram que ser suprimidos ou reformulados, de incubadoras devia contar com incentivos tributários e parãmetros urbanísticos diferenciado~.
214 · Jeanne Marie Ferreira Freitas PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TKAJETÓRl/I, AVAN OS E l'El<Sl'ECrlVAS. 215

bíentais negativas, ao porte das atividades, às conseqüências vinculadas aos efeitos urbano municipal. Dentre as novas reflexões trazidas em seu bojo, destacam-se:
de concentração espacial, aos tipos de vias e ao potencial de atração de veículos leves o distanciamento relativo à adoção de modelos idealizados, para os quais a
ou pesados. Grande importância foi atribuída às questões ambientais, associando-as estrutura urbana deveria racional, organizada e logicamente caminhar; a incor-
a parâmetros urbanísticos e tomando-as condicionantes para a localização e implan- poração equilibrada de questões ambientais ao planejamento urbano; a flexi-
tação das atividades. A criação dos chamados empreendimentos de impacto (empre- bilização quanto às formas de uso e ocupação do solo; a preocupação em
endimentos passíveis de sobrecarregar a infra-estrutura instalada ou de provocar re- integrar escalas de planejamento diferenciadas (desde as mais globalizantes
percussões ambientais significativas em seu entorno) enfatizava a preocupação de até as mais localizadas); a ampliação da participação no planejamento e ges-
natureza ambiental. Tais empreendimentos deveriam sujeitar-se a licenciamento es- tão urbanos; e por fim , a tentativa de promover efetivamente o planejamento
pecial, mediante a apresentação de Relatório de Impacto Urbano (RIU). local dos diferentes contextos intra-urbanos, considerando-se que suas parti-
cularidades não conseguem ser totalmente atendidas pela escala de planeja-
Do ponto de vista conceituai, tais. propostas normativas foram implicita-
mento municipal. De algum modo, esse conjunto de inovações sinalizam ten-
mente concebidas como um processo dinâmico, devendo inserir-se no âmbito de
dências de transformação, cujas raízes certamente se encontram em reflexões
um sistema municipal de planejamento e gestão urbana, ao mesmo tempo des-
tanto mais genéricas quanto mais profundas que merecem ser explicitadas.
centralizado e integrado, de modo a realizar o ideal democrático de participação.
O Plano Diretor de Belo Horizonte e a Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do
Solo propostos deveriam ser complementados por planos regionais e planos lo- As novas tendências de abordagem do espaço urbano e suas relações com
cais, 3 incorporando ao planejamento geral da cidade, os aspectos particularizados o planejamento urbano
e as demandas localizadas. Para tal, era preciso efetivamente descentralizar e de-
mocratizar as instâncias de planejamento. Sendo assim, foi proposta a criação de A reflexão que aqui se inicia tem o objetivo de verificar se as tendências iden-
Conselhos Regionais de Política Urbana e de Núcleos de Planejamento Urbano tificadas no momento considerado de inflexão na evolução do planejamento urba-
em cada Região Administrativa, que deveriam responsabilizar-se pela elaboração no de Belo Horizonte podem ser inseridas num quadro de discussões teóricas mais
destes planos. Tais medidas associavam-se à busca do aumento da participação amplo, que, mesmo extrapolando o âmbito específico do planejamento, seja capaz
popular, mediante novas formas de envolvimento da população na discussão do de contextualizá-las em processos gerais de transformação tanto do próprio espaço
planejamento urbano em diferentes escalas de abrangência. Buscava-se garantir e urbano, quanto da sua abordagem analítica. Tais discussões apresentam-se de for-
estimular a real participação, compartilhando com as comunidades a responsabili- ma muito abrangente, por vezes, fragmentada, e nem sempre correlacionada à ati-
dade referente às decisões de planejamento, envolvendo tanto os processos de vidade prática de planejamento. De qualquer modo, tentou-se organizá-las através
elaboração e revisão de planos (especialmente de planos regionais e locais), de um esforço em compreender os rebatimentos sobre o planejamento urbano de
quanto a sua aprovação em audiências públicas. um novo entendimento das relações espaço-temporais, da incorporação de preocu-
Por fim , com o intuito de subsidiar a implementação do Plano Diretor de Belo pações ambientais, bem como de aspectos correlacionados aos lugares. 4 Sintetizando
Horizonte, propôs-se a criação de um índice de monitoramento da qualidade de vida bem as discussões teóricas em plena efervescência naquele período, David Harvey,s
urbana capaz de balizar as ações e os investimentos públicos. Tal índice, chamado ao ser questionado sobre as novas tendências e preocupações na investigação espe-
Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU), baseava-se na análise da oferta de cífica do espaço urbano, afirmou que elas giravam em torno de quatro conceitos-
serviços públicos urbanos, tais como infra-estrutura, limpeza, transportes etc., asso- chave -space (espaço), time (tempo), p/ace (lugar) e environment (meio ambiente)
ciada à acessibilidade da população aos mesmos, priorizando a avaliação do grau de - que fornecem um precioso referencial analítico, apesar de não definirem conteú-
justiça quanto à distribuição dos benefícios sociais no espaço da cidade. dos precisamente delimitados em função de suas interfaces.
Em síntese, o Plano Diretor e a Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do
Solo propostos em 1995 para Belo Horizonte caracterizam claramente um pon-
to de inflexão, inaugurando um novo momento na evolução do planejamento
4
Ressalta-se que o contexto da abordagem teórica aqui empreendida remete a um conjunto de refle-
3Os planos regionais deveriam referir-se ao território das Administrações Regionais, cada uma orga- xões características da época em que as transformações relativas à prática de planejamento em Belo
nizada em unidades de planejamento (UP) . Os planos locais, por sua vez, deveriam referir-se a cada Horizonte se evidenciavam, ou seja, reflexões teóricas típicas da primeira metade dos anos 1990.
5
unidade de planejamento, na tentativa de abordar os aspectos mais particularizados e específicos dos Durante a palestra intitulada Tendências no urbanismo pós-moderno, ministrada na Pontifícia Uni-
diferentes lugares urbanos, no intuito de reforçar sua identidade e integração interna. versidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em 24/03/95.
216 · Jeanne Marie Ferreira Freitas P LANEJAMENTO UROANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 217

A abordagem espaço-temporal e suas relações com o planejamento urbano escala do território considerado possuem suas facetas localizadas, só que integra-
das verticalmente com escalas hierarquicamente mais abrangentes. Portanto, a
Dada a ampla possibilidade de abordagem das questões espaciais e tempo- partir de uma dada escala de planejamento, deve-se considerar tanto as facetas
rais, restringe-se aqui à elucidação de alguns aspectos, com o intuito de apontar localizadas dos processos sociais mais abrangentes, quanto os processos sociais
em que medida a sua consideração tem importância para a compreensão das intrinsecamente localizados. Estes últimos seriam aqueles cujas redes de ligações
tendências de transformação do planejamento urbano. estabelecidas fossem restritas à área consideràda. Trata-se, por exemplo, de pro-
Primeiramente, ao se admitir a existência de variadas noções espaço-tempo- cessos associados à vida cotidiana em comunidade, envolvendo questões rela-
rais (biológica, simbólica etc.), não excludentes, porém complementares, o indivíduo cionadas às formas de habitar e coabitar, às relações de vizinhança, à qualidade
passa a ser visto como ser plural: ao mesmo tempo um ser social globalizado, um ser do espaço público compartilhado, aos elos afetivos que ligam as pessoas aos lu-
social territorializado (que estabelece relações à escala local), um ser individualizado gares, aos aspectos culturais particulares, dentre outros.
em sua percepção cotidiana do espaço, e um ser humano com suas capacidades e Henri Lefebvre (1993). por sua vez, vislumbra novas tendências de trans-
limitações biológicas. Seu rebatimento sobre a atividade de planejamento urbano formação como sementes existentes no contexto das relações espaço-temporais
conduz ao rompimento da abordagem homogeneizadora. dominantes, decorrentes de contradições intrínsecas às mesmas. 7 O espaço é,
Harvey, 6 ao se referir ao binômio space-time, enfatizou o grande desafio para ele, um produto específico determinado por cada modo de acumulação e
atual com o qual se depara o planejamento urbano, ou seja, o desafio de lidar de produção (Gottdiener, 1993). A história do espaço mostra que a antiga con-
com uma multiplicidade de processos sociais que definem, cada um, as suas cepção de espaço absoluto - organizado em torno de lugares sagrados, integra-
próprias relações espaço-temporais. Isto significa, por exemplo, que, enquanto as dos com a natureza, místicos, mágicos, simbólicos e posteriormente políticos - foi
relações espaço-tempÕrais de uma comunidade podem levar até muitos anos gradualmente sendo aniquilada pela imposição do espaço abstrato. Este último
para serem construídas, as relações espaço-temporais definidas pelo capital fi- foi estabelecido pela prática espacial que se instalou a partir do modo de produ-
nanceiro constroem-se (e podem desfazer-se) à escala mundial e em questão de ção capitalista, correspondendo ao espaço da acumulação de riqueza e de recur-
segundos. Apesar disso não ser um fenômeno exclusivamente urbano, é exata- sos, de dominação, de violência e de homogeneização.
mente nas cidades onde a convivência de diferentes processos sociais se torna A atividade de planejamento urbano, na condição de prática socioespacial in-
mais intensa. Desta maneira, o binômio espaço-tempo pode se remeter tanto aos serida no espaço abstrato cuja expressão mais comum se revela através do zonea-
processos que ocorrem à escala mundial, quanto aos processos que ocorrem à mento funcionalista, consubstancia-se como instrumento de poder e controle a servi-
escala dos microcontextos intra-urbanos. ço das classes dominantes. Revestida de um discurso não-ideológico, apresenta-se
Por extensão, dada a complexidade de fenômenos sociais que se instauram como uma função exclusivamente técnica, mas desempenha papel específico no
na cidade, o planejamento urbano tem necessariamente que lidar com diferentes processo de produção e reprodução contínua do espaço abstrato. Ainda que se refira
escalas, associadas aos diferentes processos. Entretanto, o que em teoria parece a recortes territoriais diferenciados, os princípios norteadores de sua atuação são os
tratar-se de uma mera questão de integração de escalas de planejamento distin- mesmos: a segregação socioespacial, a organização hierárquica das formas de uso e
tas, enfrenta, por outro lado, questões não facilmente contornadas pela prática. de ocupação do solo, gerando valorizações diferenciadas no espaço urbano, a distri-
Se cada processo social determina a sua própria rede de ligações locais, regionais buição desigual dos serviços e dos espaços públicos qualificados, dentre outros.
ou mundiais, então, cada contexto urbano pode associar-se a uma variada gama Para Lefebvre (1993), a superação do espaço abstrato seria possível caso a
de processos nem sempre reduzíveis aos seus limites físicos. Assim, falar de pla- construção de uma nova concepção espaço-temporal, denominada espaço dife-
nejamento de um bairro, de um município ou de uma região, é, antes de tudo, rencial, fosse desenvolvida, exigindo, necessariamente, um novo conjunto de re-
falar de algo que ultrapassa a questão territorial. O problema a ser enfrentado lações sociais e práticas espaciais, cujo nascimento poderia partir de contradições
torna-se, então: dado um território definido, como descobrir a variedade de pro- inerentes ao próprio sistema capitalista e seu espaço abstrato. Tais contradições
cessos sociais associados a essa escala de intervenção? Ou ainda: dentre todos os representam aberturas para que as transformações realmente ocorram, provo-
processos sociais envolvidos, quais seriam aqueles considerados intrinsecamente
localizados? É preciso reconhecer que mesmo os processos que ultrapassam a
' Embora Lefebvre tenha sido praticamente ignorado pela pesquisa urbana marxista dos anos 1970
(Topalov, 1988), atualmente, a sua obra tem sido resgatada, especialmente por sua contribuição às
6 Ver nota anterior. discussões contemporâneas.
218 · Jeanne Marie Ferreira Freitas PLANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E l'ERSl'IOCIWAS ' 219

cando possíveis rebatimentos sobre o planejamento urbano. Analisemos algumas 4) Lado a lado ao consumo produtivo de espaço, que demanda a cons-
destas contradições. tante criação e recriação de espaços inseridos na lógica de produção e
reprodução capitalista, emerge o consumo não produtivo de espaço, que
demanda a criação de áreas de bem-estar e lazer, por exemplo, refletindo
1) Os desejos humanos (liberdade, segurança etc.) nem sempre podem ser sobre o planejamento urbano.
supridos por produtos, criando novas demandas sobre o espaço urbano, e
exigindo novas respostas do planejamento.
5) O espaço abstrato exerce um poder centralizador, exigindo que o mesmo
seja exercido em todos os níveis, desde o nível global até o nível local, a fim
2) O espaço, ao mesmo tempo em que pode ser tratado como um espaço de manter continuamente a hegemonia do modo de produção capitalista.
global (homogeneizado, sistemicamente organizado e controlado), pode Contraditoriamente, o nível local é o mais adequado à necessária trans-
também ser concebido como um espaço fragmentado (subdividido para formação rumo ao espaço diferencial, coincidindo com o espaço da vida
comercialização, e segregado para dominação e repressão), conferindo a diária e, conseqüentemente, com demandas particularizadas, freqüente-
este espaço dual um caráter estratégico para o exercício do poder. Entre- mente carregadas de valores de uso, podendo transformar-se em efetivo
tanto, o espaço fragmentado é também o espaço da vida cotidiana à esca- desafio ao poder central localizado, por requerer aspectos não contempla-
la dos microcontextos intra-urbanos, onde convivem relações de produção dos pela lucratividade, pelo funcionalismo ou pela homogeneidade pró-
e relações não produtivas. Trata-se, ainda, do espaço compartilhado pelas prios do exercício do poder no espaço abstrato. Ao planejamento urbano
necessidades objetivas e pelos desejos subjetivos, assim como do espaço impõe-se, então, uma nova responsabilidade de gerenciamento das de-
particularizado, diversificado e múltiplo. Enfim, ainda que a fragmentação mandas comunitárias localizadas, levando à concepção de novas formas
estratégica prevaleça sobre as práticas não capitalistas, sua atuação não de gestão que conduzam à real descentralização do poder e efetive a parti-
consegue dissolvê-las. Ao planejamento urbano cabe a consideração da cipação da população em decisões de seu interesse.
existência de processos específicos, particularizados, associados aos micro-
contextos intra-urbanos, superando a prática do zonear:nento funcionalista
e enfrentando aspectos excluídos do espaço abstrato dominante. 6) O espaço abstrato, por ser um espaço racionalizado, organizado funcio-
nalmente e hierarquizado, torna-se mensurável, sendo passível de manipu-
lações quantitativas. Entretanto, ainda que os aspectos não mensuráveis
3) O espaço abstrato é o espaço dos valores de troca. Os valores de terras, sejam desprezados, a sua existência não pode ser negada por revelar valo-
imóveis, objetos etc., são conferidos pelo seu grau de transformação tecno- res de uso, diferentes graus de apropriação e de identidade com o espaço.
lógica e pelo potencial de comercialização que apresentam. Entretanto, ape- Sendo assim, ao planejamento urbano aponta-se a necessidade de consi-
sar da indiscutível supremacia dos valores de troca, os valores de uso não derar aspectos mais qualitativos e, porque não dizer, mais humanísticos.
foram completamente subjugados a ponto de desaparecerem, emergindo
através de diferentes formas de apropriação do espaço, em especial asso-
ciados à experiência da vida cotidiana. Decorrem, portanto, de relações Outras reflexões acerca da globalização da economia, da reestruturação
espaço-temporais distintas daquelas atreladas ao sistema capitalista. Deste capitaJista, da produção flexível e da fragmentação socioespacial, dentre outras,
modo, os valores conferidos às mesmas terras, imóveis e objetos anteriores, somam-se às anteriores, enfatizando a busca de compreensão do espaço urbano
não se traduzem em linguagem econômica, mas provêm de relaçõe~ afetivas, que não despreze nem os aspectos mais propriamente específicos e localizados,
emocionais, culturais ou ligadas à memória, por exemplo. Ao planejamento por um lado, nem os aspectos mais globalizantes, por outro. Preteceille (1994),
urbano impõe-se a necessidade de potencializar a apropriação de diferentes por exemplo, afirma que a globalização não é capaz de ariiquilar as diferenças
espaços, especialmente à escala localizada, contrapondo-se à prática domi- existentes, nem globais, nem locais (até mesmo no que se. refere aos próprios as-
nante de atribuição de valores que exerce sobre terrenos e imóveis. pectos econômicos). Em decorrência da inter-relação entre processos globalizados
(macroeconomia, mercado finaneeiro, transportes, telecomunicações etc.) e proces-
sos locais (comportamento local do mercado de trabalho, contrastes sociais, segrega-
ção espacial etc.), surge uma nova concepção espaço-temporal, representada pela
220 · Jeanne Marie Ferreira Freitas P LANEJAMENTO UHílANO NO B HASIL: Til.AJETÓllJA, AVANÇOS E PEHSPEcnVAS · "1:1.J.

noção de cidade com dupla velocidade, que expressa a coexistência de processos Uma crescente aproximação entre as questões urbanas e ambientais, revela-
que ocorrem ém escalas e ritmos diferenciados. Por outro lado, a chamada crise do da por uma nova noção de meio ambiente urbano, apresenta-se ao planejamento,
Estado, ou crise da economia, revela o processo de reestruturação pelo qual os mes- evidenciando a emergência de uma abordagem mais qualitativa , que tende a con-
mos (Estado e economia) passam, tendo em vista as novas relações de mercado que siderar as características ambientais do meio urbano. Além da preocupação com os
se estabelecem, as novas tecnologias que se criam e os novos ideais liberalistas ou aspectos físicos da cidade ou com as relações econômicas que nela se estabelecem,
neo-liberalistas (Becker, 1991 ; Furtado, 1987; Lipielz, 1984; Ribeiro; Santos Jr., buscam-se meios de incorporação de aspectos qualitativos que sejam capazes de
1994), conduzindo à necessidade dS? repensar o papel desempenhado pelo Estado, revelar facetas não contempladas pelas formas tradicionais de abordagem do espa-
principalmente no que se refere ao seu grau de intervenção nos processos político- ço, desvelando a dinâmica das relações estabelecidas entre os usuários e a cidade.
econômicos e sociais, à prática de planejamento e à gestão territorial. Paralelamen- Em nome desta abordagem qualitativa, utilizam-se antigos conceitos ou novas ter-
te ao desenvolvimento de uma economia flexível, que caminha em busca de uma minologias criadas: nível de vida; qualidade de vida, qualidade urbana; qualidade
produção mais flexível, capaz de se desconcentrar no espaço, inovar-se continua- de vida urbana; qualidade ambiental; qualidade ambiental urbana; qualidade so-
mente e valorizar diferenças, Bertha Becker (1991) aponta a necessidade de trans- cioambiental urbana, dentre outras. As tentativas de caracterização qualitativa do
formação do papel do Estado no sentido da consolidação de um novo Estado espaço urbano têm sido efetuadas através de linhas nem sempre convergentes,
também flexível. Na visão de Harvey (1992), embora as crises, transformações e embora tenham como ponto de partida argumentos semelhantes que giram em
reestruturações que vêm ocorrendo constituam alterações superficiais no regime torno do processo de urbanização acelerada e a conseqüente deterioração social e
capitalista, elas assumem feições de uma mudança cultural generalizada, cujas fa- ambiental. Podem ser reunidas em dois tipos, conforme os objetos de observação
cetas são integradas sob o jargão do pós-modernismo. investigados, os procedimentos teórico-metodológicos adotados e os objetivos al-
Diversas são a~repercussões destas reflexões sobre o planejamento urbano. mejados: propostas de aferição quantitativa, através da adoção de variados indica-
Primeiramente, enfatiza-se, novamente, a necessidade de reconhecer a ocorrência dores, e propostas de avaliação que consideram a percepção dos usuários.
concomitante de processos globalizados e localizados em diferentes escalas de plane- Dentre as tentativas de aferição quantitativa, o Índice de Desenvolvimento
r
jamento, processos estes complementares, que dão origem a complexas formas de Humano (HDI), criado pela ONU, constitui um exemplo genérico, especialmente por 1
interações espaço-temporais. Embora muitos estudos enfatizem a premência de se ter nascido do reconhecimento de que os tradicionais indicadores de desenvolvimento 1
1
pensar e planejar globalmente, constata-se que há uma crescente preocupação com econômico até então empregados não refletiam o grau de desenvolvimento humano 1
os aspectos mais próprios e particularizados dos diversos espaços intra-urbanos. Em
segundo lugar, a crise do Estado leva ao arrefecimento do planejamento central, das
das populações. Quando aplicadas ao espaço urbano, tais tentativas valorizam os as-
pectos passíveis de mensuração, quantificando-os em busca de objetividade. Atravt>.s
i
grandes intervenções urbanísticas e dos projetos de grande escala, conduzindo à do uso da estatística, criam-se modelos de avaliação da qualidade, priorizando ora um 1
descentralização do planejamento e ao fortalecimento da esfera local. Há uma rup- conjunto de parâmetros, ora outro, segundo indicadores e padrões previamente sele-
tura em relação ao ideal urbanístico modernista, centrado no planejamento racional, cionados como os mais representativos das condições da realidade que se pretende
funcionalista e internacional. Em terceiro lugar, no contexto do regime flexível, privi- estudar. No que se refere aos seus rebatimentos sobre o planejamento, observa-se
legiam-se as diferenças, sejam elas referentes aos processos de produção, consumo a crescente utilização de índices de qualidade ambiental, para fins de controle e
ou ao espaço, reconhecendo-se a diversidade e a multiplicidade do espaço urbano, monitoramento do espaço urbano, bem como a adoção de instrumentos no1ma-
o que proporciona novas perspectivas para o planejamento. A quarta questão que se tivos que incorporam preocupações ambientais.
apresenta está relacionada à importância de distinguir variados níveis de associação Por outro lado, as tentativas de aferição qualitativa do meio ambiente urba-
entre os diferentes territórios e os processos globais de reestruturação capitalista. Des- no encontram na percepção ambiental suporte para seu desenvolvimento (Whyte,
ta análise, podem decorrer propostas distintas de planejamento. 1977; Oliveira, 1983). Embora sob abordagens muito variadas, compartilham
como foco central as relações entre os indivíduos (ou grupos) e o meio ambiente.
A abordagem ambiental e suas relações com o planejamento urbano Diante da complexidade urbana, os estudos procuram revelar a realidade em sua
totalidade, considerando variáveis indissociáveis no processo de interação ho-
A exemplo da discussão anterior, busca-se aqui abordar alguns aspectos relativos mem-meio, tais como: a subjetividade, os sistemas de valores, a afetividade, as
à questão ambiental, avaliando em que medida a sua consideração tem importância atitudes e a experiência. Desta forma, o próprio conceito de qualidade assume
para a compreensão das tendências de transformação do planejamento urbano. diferentes significados, pois decorre da natureza das relações estabelecidas entre
PLANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: Tll.AJCTÓIUA, AVANÇOS r; l'rnSl'EC rl VAS . 223
222 · Jeanne Marie Ferreira Freitas

os homens e os lugares, fazendo com que os requisitos básicos associados a uma lizáveis, possuidores de valores de uso apenas. Para Lefebvre (1993), por exemplo, a
boa qualidade do espaço urbano tornem-se mutáveis. A abertura do planeja- natureza não é somente uma fonte de recursos, mas uma fonte de valores de uso, que
mento urbano a esse tipo de abordagem qualitativa implica em novas formas de tem progressivamente sofrido pela dominação tecnológica.
conhecimento da realidade urbana (considerando a percepção individual ou co- Este tipo de abordagem apresenta novos desafios ao planejamento urbano.
letiva), de formulação de propostas (levando em conta os interesses e desejos da Das inter-relações estabelecidas entre as necessidades de desenvolvimento eco-
população envolvida), de definição de escalas de abrangência (associando-as nômico impostas pela dominação capitalista e os aspectos ambientais emergem
aos níveis de participação correlatos) e de gestão urbana (descentralizando o sérios conflitos. Se, por um lado, defende-se o crescimento econômico como sa-
poder de decisão e estimulando a participação). Essa nova postura de planeja- ída para problemas tais como desemprego, deficiência de infra-estrutura, condi-
mento pressupõe a consideração de sujeitos com subjetividade, afetividade, sen- ções precárias de moradia e outros, por outro, o modo predominante pelo qual
timentos e valores, e não apenas sujeitos que se comportam exclusivamente em este crescimento é alcançado gera sérios problemas ambientais, que, por sua vez,
função de relações de classe, de trabalho ou de troca, e cuja participação nos refletem-se sobre a população. Portanto, embora planejamento econômico e pla-
processos decisórios relativos ao espaço urbano passa a ser imprescindível. Nesta nejamento urbano sejam indissociáveis, deve-se atentar para seus conflitos. Além
nova visão, o próprio espaço urbano deixa de ser vislumbrado apenas em sua disso, a histórica falta de internalização nos custos de produção ou consumo das
materialidade física e através de seus valores de troca, assumindo seus valores externalidades ambientais provocadas implica numa divisão social dos custos
simbólicos em função das relações estabelecidas entre o mesmo e os indivíduos ambientais (que se tornam custos sociais), desproporcional à divisão privada dos
ou grupos. O espaço ascende, então, à categoria de lugar. benefícios ou lucros gerados. Isto demanda medidas de planejamento que pro-
A questão ambiental e a busca de uma abordagem mais qualitativa do movam a incorporação dos custos ambientais.
espaço urbano a ela associada não deixam de estar vinculadas às relações es-
paço-temporais estabelecidas pelo sistema capitalista dominante e seus diferen-
A abordagem dos lugares e suas relações com o planejamento urbano
tes processos sociais, fazendo com que também possam ser analisadas sob esta
ótica. Os problemas urbano-ambientais estão associados aos processos sociais
de dominação do espaço, de exploração de sua base física e de transformação Por fim , complementado as discussões anteriores, busca-se aqui abordar
do meio natural ou construído. Ao se estudar as inter-relações entre a urbanização alguns aspectos relativos à abordagem dos lugares, avaliando em que medida a
e os problemas ambientais, emergem reflexões acerca dos processos de produção, sua consideração também tem importância para a compreens2to das tendências
consumo e de troca. Quanto à produção, apesar da sua estreita vinculação com a de transformação do planejamento urbano.
degradação ambiental, os problemas ambientais não se restringem ao espaço ur- Falar sobre lugares é, dentre outras coisas, falar de algo tipicamente quali-
bano, uma vez que grande parte dos processos produtivos que sustentam o modo tativo do espaço, remetendo à compreensão de elementos diversos além da-
de vida urbano localiza-se externamente às cidades, assim como as externalidades queles de caráter funcional, político-econômico ou físico-territorial. Não se ex-
por ele provocadas não se restringem ao território da cidade. Entretanto, tais proces- cluem, a priori, aspectos intrínsecos à natureza humana, tais como: traços
sos possuem suas facetas localizadas, ainda que façam parte de um grande sistema culturais, interações afetivas, formas de apropriação, atribuição de significados,
estruturãdo globalmente. Sendo assim, o equacionamento da questão ambiental representações simbólicas, dentre outros.
exige a sua abordagem em diferentes escalas. Quanto aos padrões de consumo, Apesar da abordagem das questões relativas aos lugares estabelecer corre-
verifica-se que estão diretamente associados à geração de resíduos, podendo lações tanto com os aspectos ambientais, quanto com os aspectos espaço-tem-
transformar-se em forças propulsaras do esgotamento ambiental (Parikb, 1994). porais, sua consideração em separado justifica-se apenas pelo destaque que se
Se, por um lado, o padrão de consumo das classes de baixa renda é insustentá- pretende conferir à mesma. No âmbito da discussão espaço-temporal, por
vel, desde o local onde residem até os locais de trabalho e lazer, por outro, o padrão exemplo, a noção de lugar pode pressupor um conceito estático (Tuan, 1983).
de consumo das classes abastadas também é insustentável pelo nível de desperdício Entretanto, não se pode entender estático como imutabilidade ao longo do tem-
e pela pressão excessiva sobre os bens naturais. Quanto aos processos de troca, um po, visto que tanto os indivíduos quanto os lugares transformam-se continuamen-
dos grandes dilemas que a questão ambiental enfrenta refere-se ao fato de que o te, assim como a própria interação que estabelecem entre si e com outros lugares
meio ambiente engloba tanto produtos comercializáveis e, portanto, possuidores de ou grupos sociais. A compreensão de lugar como processo, ou seja, um ponto
valores de troca e inseridos nas relações de mercado, quanto produtos não comercia- singular de interseção entre uma diversidade de relações sociais e uma localiza-
224 · Jeanne Marie Ferreira Freitas P LANiô)MtENTO URBANO N O B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 2.25

ção determinada, proporciona um contraponto à noção anterior ao conduzir a nível de qualificação do espaço urbano. Por fim, a não exclusão de valores, de re-
um conceito não estático de lugar, " ... um sentido do lugar que é extrovertido, lações simbólicas, de elos afetivos, de sentimentos e emoções, enfim, de toda uma
que inclui uma consciência de suas ligações com o mundo mais amplo, que inte- gama de atributos não mensuráveis do ser humano, proporciona tanto uma visão
gra de forma positiva o global e o local" (Massey, 2000, p . 184). mais propriamente humanística do espaço urbano, quanto uma abordagem mais
De qualquer modo, do ponto de vista perceptivo, a busca de referenciais, integral do próprio homem que produz esse espaço, demandando formas de pla-
sejam eles proporcionados por certo grau de permanência espaço-temporal nejamento igualmente sensíveis a estas questões.
(vinculada à idéia de estático), sejam eles proporcionados pela localização
particularizada de complexas relações sociais (vinculada à idéia de processo),
Conclusão
é demandada pela necessidade humana de se posicionar fisicamente no es-
paço, pela necessidade de representar ou imaginar o espaço e pela necessida-
A institucionalização do planejamento urbano no Brasil nos anos 1960 re-
de de sentir o espaço. Tal busca se dá tanto no campo tangível objetivo, como nos
vela uma gênese revestida de aparência técnica e despolitizada, porém característica
campos mental e afetivo. No campo tangível objetivo, o lugar toma-se referencial
de um poder centralizador e autoritário. Tais aspectos contribuíram para a redução
de territorialidade, funcionalidade, localização, escala e meio visível (espaço onde o
das questões urbanas a relações prioritariamente econômicas, de alto interesse nacio-
homem se insere, desloca e se orienta). No campo mental, o lugar toma-se referencial
nal em função do desenvolvimento urbano-industrial que se processava no país. O
como representação, visto que imagens são construídas através da percepção. Nesse
planejamento urbano tomou, então, feições de política nacional, primando-se pela
sentido, interessa tanto conhecer o modo pelo qual os lugares são percebidos, quan-
abordagem globalizante, que logicamente se afastou da diversidade intra-urbana.
to as maneiras como os mesmos são expressados através da linguagem, do simbolis-
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, fruto de um processo de
mo, da arte e demais formas de representação. No campo afetivo, o lugar toma-se
reabertura política rumo à redemocratização nacional, iniciou-se um movimen-
referencial de sentimentos, emoções e subjetividade (medo, atração, familiaridade,
to de rompimento com os moldes antigos fren te às prementes necessidades de
nostalgia, segurança, prazer, preferências etc.). O estabelecimento destes referen-
descentralização e de atendimento às demandas emergentes, a partir da mobili-
ciais conduz à construção de um conjunto que habilita o homem a interagir com
zação de novos atores urbanos. Conseqüentemente, os antigos paradigmas que
o espaço, considerando variadas facetas de sua própria complexidade. Desta for-
haviam norteado a atividade de planejamento urbano tornaram-se incapazes de
ma, os atributos da realidade objetiva ou mental não se sobrepõem ou subjugam
atender aos requisitos impostos por esta nova realidade, exigindo-se, em decor-
os demais aspectos, especialmente os afetivos.
rência, uma também nova forma de se planejar o espaço urbano.
Em oposição à separação entre sujeito e objeto, prioriza-se a compreensão das
A análise da evolução do planejamento urbano de Belo Horizonte demons-
inter-relações que vinculam os homens aos lugares através da experiência cotidiana
tra que os planos d iretores propostos pós-1988 (em 1990, e, em especial, em
do mundo vivido. Apesar da percepção individual, assim como da experiência vivi-
1995) revelam um processo de transformação na atividade de planejamento, P.vi-
da, ser única e idiossincrática (Lowenthal, 1982), é possível identificar lugares valori-
denciando novas tendências. Tais tendências podem ser vislumbradas a partir da
zados coletivamente, a partir do reconhecimento de traços comuns nas percepções
observação de uma série de mudanças, destacando-se dentre elas: o distanciamen-
individuais. A interação cotidiana com os lugares gera processos de identificação. A
to em relação à prática dÔ zoneamento funcionalista, que se tomara incompatível
criação de identidade coletiva pode se dar por diferentes razões, mas não há dúvidas
com a necessária abordagem da complexidade urbana; a tentativa de enfrenta-
quanto à sua importância, por reforçar as condições de cidadania, ampliar as deman-
mento do dinamismo inerente ao espaço urbano através da busca de normas igual-
das por participação, requalificar os espaços públicos e abrir caminho para a melho-
mente mais flexíveis, seja no que diz respeito ao uso e à ocupação do solo ou à maior
ria da qualidade ambiental (Viviescas, 1988).
variedade de instrumentos urbanísticos; a incorporação de aspectos ambientais ao
A consideração dos lugares apresenta, pois, novas questões ao planejamento planejamento urbano, o que também significava a adoção de uma inovadora abor-
urbano. Esforços devem ser feitos para identificar os lugares valorizados pela popu- dagem econômica; o esboço de preocupações relativas à escala das particularidades
lação em diferentes escalas, associando-os a modalidades de planejamento também intra-urbanas, especialmente através da concepção de formas mais descentraliza-
diferenciadas, conforme as especificidades de cada situação. Cabe ao planejamento das de planejamento; e a busca de ampliação dos meios de participação nas ques-
promover ou intensificar o grau de identidade entre as pessoas e os lugares, fortale- tões associadas ao planejamento urbano.
cendo as formas de participação e o sentimento de cidadania. Além disso, a preo-
cupação com a criação de referenciais de identidade urbana pressupõe um novo
226 · Jt:anne Marie Ferreira Freitas P u.NEJAMENTO URBANO N O B 1v.s1L: 111AJeróR1A, AVANÇOS ~ rEHSl'ECTIVAS · 227

Entretanto, longe de constituírem um movimento de transformação isola- eia do discurso ambiental aliado ao planejamento urbano representa um clamor
do, taio tendências encontram ressonâncias com uma discussão teórica mais em busca de qualificação, que abre perspectivas para ultrapassar tanto a preocu-
ampliada dos processos de transformação do espaço urbano e de suas formas pação com os aspectos físicos do espaço, quanto as próprias abordagens estrita-
de anfilise, permitindo tanto melhor contextualizá-las, quanto melhor compreen- mente econômicas. Isto significa, portanto, ultrapassar a materialidade física e a
dê-las. Nesse sentido é que se procurou evidenciar, em meio às reflexões acerca lógica econômica do espaço, com o intuito de agregar variáveis mais qualitativas
das questões espaço-temporais, ambientais e relativas aos lugares, as suas possí- e propiciar a elaboração de propostas de planejamento que considerem a intera-
veis interfaces com a prática de planejamento urbano. ção que se processa entre os homens e o meio urbano.
A abordagem das questões espaço-temporais evidencia que, no contexto Por fim, ao perceber que a interação constante entre os homens e o espaço
do modo de produção capitalista hegemónico, a atividade de planejamento é designa lugares, ou seja, que a experiência cotidiana do mundo vivido é um processo
exercida como instrumento de controle e de poder, legitimando-o historicamen- que determina relações de preferências, de identidades, de representações, de simbo-
te. Entretanto, o próprio sistema capitalista e seu correspondente espaço abs- lismos e de subjetividade, pode-se conceber um novo papel a ser desenvolvido pelo
trato apresentam contradições inerentes ao seu funcionamento e à sua contí- planejamento urbano, que deve necessariamente ir além das relações de funcionali-
nua reprodução, proporcionando novas perspectivas à concepção e à prática dade e hierarquia, priorizando tanto uma visão mais humanística do espaço urbano
de planejamento urbano. A emergência de demandas indefinidas economica- quanto uma abordagem mais integral dos homens que interagem com o mesmo.
mente por serem estreitamente vinculadas a processos de interação afetiva,
simbólica etc. com o espaço da vida cotidiana, a existência de relações espa-
ciais não-produtivas, bem como de formas de apropriação que geram valores Referências
BECKER, Bertha K. Modernidade e gestão do território no Brasil; da integração nacional à
de uso, os conflitos urbanos associados às resistências impostas pelo nível
integração competitiva. Espaço & Debates, São Paulo, v. 11, n. 32, p. 47-56, 1991.
local ao poder dominante centralizado, e a permanência da diversidade e da
FREITAS, Jeanne M. E Perspectiuas do planejamento urbano contemporâneo: reflexões a
multiplicidade urbanas mesmo diante da ação homogeneizadora imposta partir do caso de Belo Horizonte. 1996. 212f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Insti-
pela lógica repressora capitalista, constituem exemplos de tais contradições. tuto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
Além disso, as próprias discussões acerca da globalização e da reestruturação FURTADO, Celso. Transformações e crise na economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e
capitalista não indicam o aniquilamento da perspectiva local; pelo contrário, Terra, 1987. Cap. 4: A ordem econômica internacional. p. 121-142.
tal perspectiva é reforçada, na medida em que se concebe a coexistência de GOTTDIENER, Mark. A produção social do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 1993.
processos socioespaciais que ocorrem tanto em escalas quanto em velocida- 310p.
des diferenciadas. Variados são os reflexos destas questões sobre o planejamen- HARVEY, David. A condição pós-moderna; uma pesquisa sobre as origens da mudança
to urbano, ao qual cabe enfrentar as desigualdades e injustiças impostas pelo modo cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992. 349p.
de produção e acumulação capitalista, tirando partido de suas contradições inter- LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Blackwell, 1993. 454p.
nas, destacando-se dentre eles: o atendimento de novas demandas sobre o espa- UPIETZ, Alain. As transformações na divisão internacional do trabalho; considerações metodoló-
ço urbano, em especial aquelas associadas à criação e à qualificação dos espaços gicas e esboço de teorização. Espaço & Debates, São Paulo, v. 4, n. 12, p. 66-94, 1984.
de apropriação coletiva, de lazer e de vivência comunitária, a necessidade de LOWENTHAL, David. Geografia, experiência e imaginação; em direção a uma epistemo-
integrar diferentes escalas de planejamento, a consideração de processos so- logia geográfica. ln: CHRlSTOFOLETTI, A. Perspectiuas da geografia. São Paulo: Difel,
ciais particularizados vinculados aos microcontextos intra-urbanos, a contem- 1982. Cap. 6 . p. 103-141.
plação de demandas sociais localizadas através de formas de gestão e de pla- MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. ln: ARANTES, Antônio A. (Org.). O espaço
nejamento urbanos mais descentralizadas e participativas, e a incorporação de da diferença. Campinas: Papirus, 2000. Cap. 8, p. 176-185.
variáveis mais qualitativas e humanísticas. OLIVEIRA, Lívia. A percepção da qualidade ambiental. Rio Claro: Unesp-Rio Claro, 1983.
13p. Mimeografado.
A incorporação ao planejamento urbano da preocupação ambiental, por
PARIKB, Jyoti et ai. Padrões de consumo; a força propulsora do esgotamento ambiental.
: sua vez, questiona o sistema capitalista dominante, evidenciando o esgotamento ln: MAY, P. H.; MOITA, R. S. Valorando a natureza. Rio de J aneiro: Campus, 1994. Cap.1,
dos recursos naturais que sustentam o modo de vida urbano, a exploração e a p.1-10.
degrndação acentuadas, que determinam, em última instância, a expropriação
coletiva, por comprometer a qualidade ambiental presente e futura . A emergên-
228 · Jeanne Marie Ferreira Freitas

PRETE,CEILLE, Edmond. Cidades globais e segmentação social. ln: RIBEIRO, L. C. Q.; SAN-
TOS JUNIOR, O. A. (Org.). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cida- Produção imobiliária e regulação
des brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 65-89.
RIBEIRO, ~uiz César Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves (Org.). Globalízação,
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fragmentaçao e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994. 432p. (1997-2002)
TOPALOV, Christian. Fazer a história da pesquisa urbana; a experiência francesa desde Daniela Abritta Cota
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Natália Aguiar Mo!
TUAN, 'rí-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. 250p.
WHYTE, Anne V. T. Guidelinesfor fie/d studies in enuironmenta/ perception. Paris: UNES-
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VIVIESCAS, Fernando. Identidade municipal e cultura urbana. Espaço & Debates, São
Paulo, n. 24, p. 55-66, 1988.
Introdução

A dinâmica de ocupação do solo urbano reflete o embate de relações entre as


diversas forças que atuam na produção do espaço. Em geral, pouco se tem questio-
nado sobre a eficácia da legislação urbanística no controle do processo de
(re)estruturação do espaço urbano. As normas determinadas em lei são colocadas
em prática objetivando corrigir distorções. No Brasil, tais distorções são consideradas
estruturais e determinadas pelo processo histórico de industrialização / urbanização
concentrada, que promoveu o contexto de exclusão e segregação socioespacial que
ora se observa nas grandes cidades brasileiras. No entanto, novos conflitos podem
emergir, uma vez que são-diferentes os interesses que estâo em jogo nessa produção
do espaço: o do empreendedor, o do poder público, e o do cidadão - que é quem
mais sofre com as conseqüências negativas desse processo.
Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é analisar a eficiência socioespacial
da legislação urbanística enquanto instrumento capaz de redirecionar o crescimen-
to e o desenvolvimento urbanos, principalmente em um contexto de mudanças
que envolvem o planejamento - especialmente no que se refere ao cumprimento
do princípio da "função social da cidade e da propriedade" - segundo o qual o
processo de expansão urbana deve estar assentado no predomínio do interesse
coletivo sobre o privado. Sendo o urbano entendido como o lugar de disputa entre
os diversos agentes que produzem e ocupam a cidade, toma-se necessário com-
preender as formas de uso, ocupação e gestão que se dão neste espaço. Reverter o
padrão de ocupação em prol da redução das desigualdades socioespaciais e da
ampliação da cidadania é um dos objetivos principais das novas legislações urba-
nísticas que tomam forma no Brasil, principalmente a partir da Constituição Fede-
ral de 1988. Por meio da análise do caso específico da cidade de Belo Horizonte,
pretende-se contribuir com reflexões sobre o alcance socíoespacial resultante da
aplicação dessas novas legislações urbanísticas.
230 · Dnniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mel PL.AN!!JAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPEcnVAS • 231

Belo Horizonte e a regulação urbanística mais recente ção da Lei nº 7.166/96. Dessa forma, caracterizaram as iniciativas da adminis-
tração municipal da época as idéias de descentralização, a busca da eficiência
Belo Horizonte, assim como diversas cidades brasileiras, experimentou um político-administrativa, a incorporação de diferentes interesses em jogo nos
processo de expansão socialmente perversa do seu tecido urbano, apesar de con- processos de formulação e de implementação de políticas, inclusive com a
tar com uma regulamentação urbanística específica desde os anos 1970. Isso participação direta da população, para que fossem ampliados os direitos de
significa dizer que os mecanismos que regulam o uso e a ocupação do solo urba- cidadania e reduzidas as desigualdades sociais.
no não têm interferido de maneira eficaz no controle urbano, reforçando o modelo Anteriormente à aprovação da LPOUS e do Plano Diretor, duas outras leis
segregador da urbanização brasileira. de uso e ocupação do solo existiram em Belo Horizonte: uma promulgada em
A partir da Constituição de 1988 e das novas legislações urbanísticas que a 1976 e a outra em 1985. Ambas de caráter essencialmente funcionalista, caracteri-
seguiram, tenta-se promover a distribuição mais justa e equilibrada da população zaram-se por reforçar a tendência de ocupação e expansão do espaço da cidade
no espaço da cidade, sem deixar, entretanto, de provocar reações em setores orientadas essencialmente pela atuação do mercado imobiliário. Como resultado,
historicamente beneficiados pelas desigualdades socioespaciais e que, por muito observavam-se bairros mais nobres excessivamente adensados em contraposi-
tempo, foram definidores da lógica da regulação urbana. ção a outros que, apesar de bem dotados de infra-estrutura e serviços urbanos,
Desde então, os novos planos urbanísticos devem fazer com que a proprie- permaneciam pouco adensados.
dade, incluindo aí a moradia, cumpra uma função social, além de se constituírem Tanto o Plano Diretor quanto a LPOUS, ambos instituídos a partir do
em regra5 que articulem e organizem todos os agentes que constroem a cidade, ideário da reforma urbana, orientaram-se pela busca de igualdade no acesso à
estabelecendo critérios de uso e ocupação do solo que respeitem a heterogeneida- cidade, pela redução das desigualdades socioespaciais, pelo fomento ao desen-
de das formas de produção e de apropriação do espaço. Devem também "prever volvimento econômico sustentado e pelo respeito às condições ambientais.
maior qualidade do meio ambiente urbano, legitimar a cidade ilegal e o planeja- Quanto à estrutura urbana, ambos almejavam a desconcentração urbana e a
mento participativo", para a formulação e implementação de políticas públicas multiplicidade de usos, através do estímulo ao surgimento e fortalecimento de
(Osório, 2001, p. 173). Dessa forma, os novos planos e as novas leis não podem centros fora da área central e à sua articulação, de modo a romper com a proble-
apenãS delimitar padrões ideais, mas estabelecer condições de uso, investimento e mática organização rádio-concêntrica do projeto urbanístico de Belo Horizonte.
formas de ocupação compatíveis com a cidade real: segregada e fragmentada. Trata-se de uma nova lógica em relação às legislações urbanísticas anteriores,
Nesse contexto, busca-se refletir sobre a atual legislação urbanística de Belo especialmente no que se refere aos seus princípios norteadores.
Horizonie (Lei nº 7.166/96), analisando os principais impactos de suas normas Pode-se resumir as principais características da LPOUS do seguinte modo:
na produção imobiliária mais recente, 1 bem como na estruturação socioespacial a) zoneamento atrelado às possibilidades de adensamento de cada porção da
da capital mineira. cidade, considerando como critérios as condições de acessibilidade e a disponi-
Conforme determinado pela Constituição de 1988, o Plano Diretor (PD - Lei bilidade de infra-estrutura, além das condicionantes ambientais; b) flexibilização
nº 7.165/96) e a Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de Belo Horizonte da localização dos usos no território urbano, desde que garantidas boas condições
(LPOUS - Lei nº 7.166/96), ambos aprovados em 1996, têm como princípio a de convivência com o uso residencial (a noção de impacto ambiental foi incorpo-
: busca da função social da propriedade e da cidade. o .antecedente mais imediato rada à LPOUS como uma das formas de controle da implantação das atividades);
do Plano Diretor é a Lei Orgânica do município,2 instrumento que introduziu a c) ocupçção do solo compatível com as infra-estruturas instaladas e de forma am-
administração participativa na gestão municipal. O Plano Diretor reúne dispositivos bientalmente mais equilibrada. Novos parâmetros urbanísticos foram adotados,
para normatizar e estimular o desenvolvimento do município, constituindo impor- tais como a quota de terreno por unidade habitacional (parâmetro que regula o
tante instrumento para definir a ocupação e o uso do espaço, bem como os rumos adensamento populacional), e a taxa de permeabilização (parâmetro que garante
de crescimento da cidade. Ressalta-se que o fato de Belo Horizonte estar vivendo menor impacto sobre a drenagem urbana). Parâmetros tradicionais foram revistos,
um momento de gestão democrática foi importante para o processo de aprova- como a exigência de afastamentos proporcionais à altura das edificações, garan-
tindo melhores condições de ventilação e iluminação, e a supressão da taxa de
1
ocupação em diversas zonas, permitindo maior liberdade quanto à concepção
Considera-se aqui a produção do espaço pelo setor imobiliário na cidade dita "legal".
2
Lei aprovada em 1990 e que teve como relator o então vereador Patrus Ananias. que viria a ser 0
volumétrica das novas edificações.
futuro preieito de Belo Horizonte, eleito em 1992.
P LANEJAMENTO URUANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 233
232 · Danie la Abritta Cota / Natália Aguiar Mol

A proposta de criar instrumentos que contribuíssem para a promoção do


princípio da função social da propriedade e da cidade incluiu, entre os seus objeti-
vos, a separação de parâmetros relativos à ocupação daqueles associados ao uso
do solo urbano, estabelecendo parâmetros urbanísticos de ocupação que conside-
ram as condições de adensamento de cada área. A ênfase dada à ocupação do
solo urbano era uma tentativa de promover a redistribuição socialmente mais justa
da população e de buscar o cumprimento da função social da propriedade. Para
isso, o macrozoneamento da cidade e os parâmetros urbanísticos adotados teriam
importante função no sentido de direcionar a atuação do setor imobiliário, um dos
principais agentes responsáveis pela produção do espaço urbano.
Assim, o macrozoneamento constante da LPOUS determina zonas de acordo
com os seus potenciais de adensamento. As principais zonas criadas que passam a
interferir diretamente na atuação do agente imobiliário são: Zonas de Adensamento
Preferencial (ZAP); Zonas Adensadas (ZA) e Zona Central de Belo Horizonte (ZCBH).3
(ver Figura 1). Isso porque tais zonas permitem maior adensamento (construtivo e
populacional) e, por isso, são interessantes para o setor imobiliário.4 São nessas áreas
que o setor vislumbra a possibilidade de maximização de seus lucros, seja porque são
áreas atrativas do ponto de vista locacional,5 seja porque tais áreas representam a
possibilidade de ganho de sobre-lucro através da renda diferencial.6

3 Além dessas três, existem as Zonas de Proteção (ZP) e as Zonas de Preservação Ambiental (ZPAM);
a Zona de Adensamento Restrito (ZAR); as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e as Zonas
Centrais do Barreiro e de Venda Nova (ZCBA e ZCVN, respectivame nte).
4
Ao longo deste texto os parâmetros atribuídos a essas zonas serão analisados no sentido de compro-
var tal afirmação.
5 As áreas mais centrais (como a ZCBH e ZA) e as menos centrais, porém bem servidas de equi-

pamentos e serviços urbanos (ZAP), sllo aquelas de maior Interesse para aqueles que buscam
acesso à moradia. São áreas alvo da atuação do setor Imobiliário. Porém, este setor se diferencia
quanto aos nichos de mercado, atuando de forma d iferenciada em cada área da cidade. Tratare-
mos disso adiante neste trabalho.
6 Refere-se aqui à re nda diferencial 1, que determina o lucro excedente do empreendedor proveniente
das condições do terreno edificáve l (topografia, potencial construtivo etc.). Ver Cota (2002) sobre a
relação da renda da terra com os agentes que atuam na produção do espaço.
234 · Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mol P l..llNEJAMENTO URBANO NO BIV.SIL: TIV\JC"TÓIUA, AVANÇOS E l'Ell.Sl'ECflVAS . 235

As ZAP são as áreas passíveis de adensamento em decorrência de condições CA aumentado de 1,0 para 1,7, abrindo novas regiões para atuação do mercado
favoráveis, especialmente de infra-estrutura e de topografia. As ZA são áreas nas imobiliário em áreas que eram pouco dinâmicas. Trata-se de áreas que, apesar
quais o adensamento deve ser contido, por apresentarem alta densidade demográfica de apresentarem características físico-funcionais favoráveis e infra-estrutura ins-
e intensa utilização da infra-estrutura urbana. Já a ZCBH é o zoneamento que apresen- talada semelhante às áreas centrais, são consideradas menos "nobres" e, por isso,
ta condições favoráveis de topografia, acessibilidade e infra-estrutura, servindo como não são atraentes para os segmentos de alta renda da população. Favorecem,
centro polarizador e, por isso, o adensamento demográfico e a maior verticalização entretanto, a atuação de outros tipos de empresas imobiliárias, como aquelas
devem ser induzidos nessas áreas. Tais definições foram determinadas pelo Plano Dire- voltadas para os segmentos de renda média a baixa7 da população. Percebe-se,
tor, no capítulo sobre zoneamento. Suas diretrizes foram transformadas em parâmetros portanto, que a Lei nº 7. 166/96 procurou incentivar o adensamento dessas áreas
urbanísticos capazes de promover um maior ou menor adensamento em cada zonea- até então consideradas subutilizadas, ampliando as possibilidades de acesso de
mento e, dessa forma, redirecionar a atuação do setor imobiliário, promovendo uma outros segmentos da sociedade à moradia.8
disbibuiç.ão socioespacial mais equilibrada.
Na última parte deste texto, analisaremos a produção imobiliária nessas
P.s chamadas Zonas Adensadas (ZA) e Zona Central de BH (ZCBH), por serem áreas (ZA, ZCBH e ZAP). verificando se as diretrizes para elas propostas vêm
mais centrais e muito valorizadas, constituem focos históricos de atuação da pro- sendo efetivadas.
dução imobiliária para os segmentos de alta renda da população, reforçados pe-
Em 2000, ocorreu a primeira revisão das leis nº 7. 165/96 (PD) e 7. 166/96
las legislações anteriores através de maiores potenciais construtivos associados à
(LPOUS) - Lei nº 8. 137/00- incluindo correções e ajustes, porém sem alterar os.
maior diversidade de usos. Essa conjugação de fatores reforçava a excessiva con-
princípios norteadores dessas legislações urbanísticas. Pode-se resumir as principais
centração de atividades, a supervalorização dos terrenos e aumentava as desi-
modificações introduzidas do seguinte modo: a) correção de limites entre zonea-
gualdades socioespaciais. Para o caso das ZA, a LPOUS propôs restrições à sua
mentos e criação de novas ADEs (Áreas de Diretrizes Especiais); b ) maior flexibili-
ocupação em função da saturação da infra-estrutura em geraj e do sistema viário
zação relativa ao uso do solo, mediante a definição de medidas mitigadoras ou da
em particular. Em tais zonas, o Coeficiente de Aproveitamento (CA) passou para
exigência de licenciamento ambiental, além da revisão dos grupos de atividades e
1,5 (em geral, o coeficiente era de 3,4, conforme definido nas legislações anterio-
de suas possibilidades de localização em diversas áreas da cidade; c) alteração de
res) , e foi estabelecida a quota de terreno por unidade habitacional de 40 m2/uni-
várias exigências relativas à ocupação do solo, que, em seu conjunto, proporciona-
dade. No entanto, verifica-se que tal restrição atingiu apenas os lotes menores
ram maior permissividade, tais como: redução do pé direito mínimo exigido, au-
que 800 m 2 (e com testada inferior a 20 m) , sendo que em lotes maiores o coefi-
mento da distância vertical máxima sem obrigatoriedade de elevador,9 extinção do
ciente de aproveitamento pode chegar a 2,0. Além disso, foram permitidos afas-
gabarito, desconsideração da casa de máquinas para cálculo da altura das edifica-
tamentos laterais e de fundo menores nessas zonas. Isso nos permite concluir que
ções, ampliação das áreas não computáveis no coeficiente de aproveitamento,
' a restrição pode, de fato, não estar ocorrendo nos moldes pretendidos, levando,
compensações para construções em terrenos sujeitos a recuo de alinhamento e
inclusive, ao agrupamento de lotes, fato que passou a ser comum nessas áreas,
taxa de permeabilização, dentre outras. Os parâmetros relativos à ocupação dos
uma vez que tal ação permite a utilização daqueles parâmetros mais permissivos
zoneamentos analisados neste texto não sofreram alteração na Lei nº 8. 137/00. No
quanto ao adensamento construtivo e populacional, atendendo ao interesse do
entanto, algumas modificações, especialmente as definidas acima no item "c", aca-
setor imobiliário que atua nesta região da cidade.
baram por resultar em um maior adensamento construtivo em tais áreas.
Com relação à ZCBH, a LPOUS propôs um coeficiente de aproveitamento
igual a 3,0 (anteriormente estabelecido entre 3,2 e 4,5) e quota de terreno por
unidade habitacional igual a 20 m2/unidade, além de permitir menores afastamen-
tos laterais e de fundo com relação ao permitido para os demais zoneamentos da
cidade. Tais parâmetros vêm promovendo um adensamento construtivo e popula-
cional na área que parece condizente com as diretrizes previstas.
7 Os empreendimentos voltados para esses segmentos de menor poder aquisitivo têm adotado me-
<Já para as extensas áreas que foram classificadas como Zona de Adensa- didas de redução de custos, tais como: ausência de elevadores, técnicas construtivas alternativas
mento Preferencial (ZAP), a Lei nº 7. 166/96 propôs um estímulo ao adensamento, (alvenaria autoportante, por exemplo), e materiais de baixo custo, dentre outras.
e Não se pode esquecer que, a partir de 1996, foram abertas novas linhas de financiamento habita-
ao estabelecer o CA igual a 1,7 e a quota de terreno por unidade habitacional igual
cional, o que favoreceu a ação das construtoras.
a 25 m2/unidade. Grande parte dessas ZAPs eram antigas zonas que tiveram seu 9 A conjugação dessas duas primeiras permitem a construção de edificações com 5 pavimentos sem
elevador.
236 · Daniela Abritta Cota / Natál.ia Aguiar Mol P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS . 237

Belo Horizonte e o setor imobiliário No caso da produção industrial de apartamentos, o que contribui para a
d
grande variação de preços da moradia são, de fato, o lote e o material empregado. 11
11
A produção do espaço urbano está associada diretamente à ação do setor Isso porque uma habitação produzida em um terreno mais bem localizado e, por
1
imobiliário. Os espaços produzidos segundo esse setor são definidos por uma isso, mais caro, terá um valor maior que outra produzida em um terreno na perife-
estratégia empresarial que objetiva, obviamente, o lucro, e determina uma lógi- ria, em geral mal servida de equipamentos e serviços urbanos. Da mesma formêl, a
ca própria de parâmetros de intervenção, relocando pessoas e influindo no di- moradia que receber um acabamento de alto luxo será mais cara que outra cons-
recionamento dos serviços e da infra-estrutura, segundo as variações do merca- truída com.materiais de menor custo. Ou seja, no preço final da moradia insere-se
do e os limites da legislação. o valor de sua localização e os materiais empregados em sua construção.
Nesta seção, busca-se compreender a lógica de atuação do setor imobiliá- Se o fator "lote" é determinante do preço final da unidade habitaciona.1 ,
rio (responsável pela produção imobiliária, especialmente produtos voltados para seu potencial construtivo ou edificável é também determinante na escolha do
o uso residencial e misto, alvo de nossa análise), ou seja, a forma como ele con- setor imobiliário. Este busca produzir imóveis que o possibilitem obter a má-
trola a produção e a oferta dos produtos e (re)organiza a ocupação do espaço, de xima taxa de lucro, em geral em áreas que permitam construir um grande
modo a obter a máxima taxa de lucro. número de unidades, de modo que o produto final atinja no mercado um
valor compatível com as características da demanda para a qual atua. Nl'!sse
A produção de imóvel para o uso residencial (edifícios exclusivamente
caso, a produção imobiliária aparece estritamente relacionada com os parâ-
residenciais ou de uso misto) ocorre em função de quem pode comprá-lo; nem
metros da legislação urbanística. Parâmetros que possibilitam um maior aden-
sempre em função de quem precisa dele (Costa, 1983). 10 Dentro do grupo da-
samento construtivo e populacional (maior CA e menor quota de terreno por
queles que podem comprá-lo, há uma diferenciação em relação ao tipo de
unidade habitacional) tornam-se mais atrativos para o setor imobiliário. Nes-
consumidor e, conseqüentemente, ao tipo de produto direcionado a esse mer-
se caso, estamos abordando a legislação urbanística não apenas como um
cado. Ou seja, para cada nicho de mercado corresponde um tipo de produto
instrumento de controle da atuação imobiliária, mas também como responsá-
que este mercado pode absorver. Conforme Lucena (1985, p. 27), "os diferen-
vel pela ordenação espacial, uma vez que essa legislação pode propiciêlT no-
tes preços assumidos pelos diversos tipos de habitação mostram que a habita-
vas frentes lucrativas de ocupação do espaço urbano a partir da proposição
ção deve ser composta de um número finito de características que os indivíduos
de parâmetros urba nísticos mais atrativos para a atuação do capital imobiliá-
valorizam diferenciadamente (... )".
rio. Dessa forma , o empreendedor imobiliário vai direcionar seu produto a
Além de o produto habitação apresentar preços diferenciados relacionados um consumidor específico, balizado pelos limites da legislação. Cada empresa
com suas características físicas (tamanho da unidade, tipo de acabamento emprega- procura , assim, investir e m locais onde é viável o seu produto-padrão, tar.to
do etc.), seu preço e sua valorização no mercado (seu potencial de capitalização) em termos de preço quanto em termos de potencial construtivo, direcionando
também irão depender de alguns outros fatores: a forma como ele é produzido, a cada produto a um nicho de mercado específico. Em Belo Horizonte, tal for-
disponibilidade no mercado, e os atributos do terreno no qual o produto habitação ma de atuação tem resultado na criação de empresas diferenciadas em fun-
se insere, isto é, suas características físicas, seu potencial de edificação e seu preço. ção, por exemplo, dos mercados para os segmentos sociais de renda média a
A localização privilegiada, isto é, o acesso fácil à infra-estrutura e aos servi- alta e para aqueles de re nda baixa a média .
ços urbanos, a acessibilidade ao terreno, bem como as características de seu en- Afetado pela limitação dos créditos imobiliários, o mercado de renda média a
torno, influenciam sobre o preço da terra. Conforme afirmam Ribeiro e Cardoso alta voltou-se para os segmentos de renda mais elevada ao longo dos últimos quinze
(1996, p. 234): "A terra terá seu preço regulado pelas condições de competição anos, caracterizando-se pela oferta de apartamentos em locais tradicionais (região
entre os vários capitais e pelas possibilidades de lucratividade propiciadas pelas Centro-Sul) ou atraídos pelos grandes empreendimentos privados, a exemplo do
diversas localizações no espaço urbano." bairro Mangabeiras e Belvedere 1, cuja evolução refere-se à implantação de empre-
endimentos como o Instituto Hilton Rocha e o BH Shopping, respectivamente. Sa-
vassi, Anchieta, Sion, Santa Lúcia, Santo Antônio são as Unidades de Planejamento
10
Não abordaremos neste trabalho o segmento da população de baixa renda, segmento não atendido
pelo mercado Imobiliário e que compõe a maior parcela do déficit habitacional. Para esse segmento,
o sonho da casa própria somente poderá ser realizado através de programas habitacionais subsidia-
dos pelo poder público. No caso deste trabalho, focaremos nossa análise na demanda atendida pelo
mercado imobiliário, isto é. segmento da população com renda acima de três salários mínimos.
238 · Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mal PLANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E l'ERSPEClW AS ' 239

(UP) 11 preferenciais desses empreendimentos, apresentando altos percentuais de no-


vos apartamentos no período 1992-2000 (Figura 2).
Vale salientar que tais áreas foram classificadas como ZA ou ZCBH pela
LPOUS de 1996. A Figura 2 indica uma concentração da produção nessas áreas,
o que, conforme as diretrizes da ZCB, é algo positivo, o mesmo não valendo para
I
a ZA. Isso porque a ZCBH refere-se às áreas definidas pelo Plano Diretor como
as indicadas para um maior adensamento e as ZAs aquelas onde o adensamento
deve ser restringido. Uma análise mais detalhada da produção imobiliária nessas
áreas será feita na próxima parte deste texto.
Em outras UPs, tais como Estoril / Buritis, Cristiano Machado, Castelo, Padre
Eustáquio, a produção de apartamentos no período 1992 a 2000 também se desta-
ca, porém refere-se à oferta direcionada para os segmentos de renda média-baixa.

11 LEGENDA:
UP = Unidade de Planejamento. As Unidades de Planejamento - UPs - propostas pela Secretaria de
Planejamento d e Belo Horizonte, possuíam um tamanho adequado para o estudo, intermediárias entre as D o
administrações regionaís e os bairros populares. Na verdade, são subdivisões das regiões administrativas D 1 a 500
sem serem, necessariamente, agregação de bairros populares. Para sua definição foram considerados os
E 500 a 1.000
Escala 1 : 130000 • 1.000 a 2.000
limites ou barreiras físicas existentes, os processos e características de uso e ocupação e a articulação inter- 1300 7«X> 3000m • 2.000 a 3.000
na. Foran1 criadas com o objetivo principal de constituírem unidades físico-territoriais de referência para a • 3.000 a 7.000
compatibilização das diversas bases de dados existentes e para a produção de indicadores que direcionem
o planejam<!nto urbano e a gestão municipal. Atualmente, Belo Horizonte divide-se e m 80 UPs.
Figura 2 - Belo Horizonte: apartamentos construídos por UP no período de 1992 a 2000
t::r.ntn· DRnnARl"I /?()()()\ _ R,._.., r;,rfnor.'ifica: PBH/CTM 12000l - Dados: Elaboração: Cota, D. A.
P LANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS. 241
240 · Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mo!

O segmento de mercado de renda media a baixa é dominado, em Belo Hori- Produção Imobiliária no período 1997-2002
zonte, por dois tipos de empresas: algumas poucas que conseguiram criar mecanis-
mos próprios de financiamento, dominando um mercado oligopolizado, e aquelas O estudo apresentado nesta seção baseia-se em informações relacionadas d
que controlam o acesso ao crédito associativo (cooperativas habitacionais).12 A partir a projetos aprovados para os usos residencial ou misto no período de 1997 a j 1

de 1997, dois fatores afetaram esse mercado: a liberação de maior volume de crédito 2002, em uma amostragem de 43 bairros oficiais de Belo Horizonte que concen- 1
pela Caixa Econômica Federal e a mudança na legislação urbanística. 13 traram cerca de 70% do total de projetos aprovados no município (Mol, 2004).
A maior disponibilidade de recursos levou à produção de um número ele- Comparando os dados referentes aos projetos aprovados no período de
vado de novas unidades habitacionais, superior à capacidade de absorção do 1997 a 2002 e no período anterior à LPOUS (1993-1996), é possível verificar um
mercado, provocando a retração da produção diante da antecipação de demanda certo "espraiamento" da ocupação na forma de um movimento centrífugo a par-
futura. Diante disso, as empresas tentaram adequar-se a essa nova realidade, redu- tir da área central da cidade (Rgura 3 ). Observa-se que os bairros que tiveram as
zindo preços, inovando no sistema de financiamento das vendas e elevando a sua maiores quantidades de área de construção aprovada no período de 1997 a
participação no financiamento público. Algumas empresas chegaram mesmo a 2002 localizam-se distribuídos por todo o território do município, indicando a
abandonar esse mercado, diversificando os seus produtos. As condiçôes macroe- dispersão espacial de edificações residenciais aprovadas, o que pode ser um in-
conômicas desfavoráveis, que conduzem sistematicamente à redução do poder dício de um aproveitamento mais racional do solo urbano.
aquisitivo da população e ao acirramento das desigualdades socioeconômicas no
1
país, afetaram diretamente esse segmento, apesar da disponibilidade de crédito !
para financiamento habitacional. Em contrapartida, as cooperativas habitacio- '
nais tornaram-se alternativas mais baratas de acesso à terra urbana. B&irroslrcgiõcs com indicadores de: drcu de comtruçio aprovadas superiores
81.inoslregicks com indicadores de ircu de construÇlo aprovadas supe!iorcs L
Do ponto de vista da localização dos empreendimentos, de modo geral, as
a 1% cm relação ao paiodo 1993-1996. (L<i 403.\/85 cm vigor)
Uso Residencial ou misto.
a 1% cm relação ao paiodo 1997-2002. (L<i 7166196 cm vigor)
Uso Rcsidcnci1l ou misto. !1
empresas que atuam nesse setor têm buscado áreas já consolidadas, com infra-
estrutura instalada, porém em situaçôes menos nobres, a exemplo das ZAPs, ins-
tituídas pela LPOUS. Nesse caso, pode-se considerar que o impacto da legislação
pode ser considerado positivo para o segmento, à medida que novas localizações
foram abertas a esse mercado, isto é, extensas zonas tiveram o seu coeficiente de
aproveitamento aumentado através da sua reclassificação como ZAP pela nova
LPOUS, com coeficiente de aproveitamento passando de 1,0 para 1 7. Como
reflexo dessa modificação, a produção habitacional, característica desse segmen-
to, aumentou em várias Unidades de Planejamento (UP) , outrora pouco dinâmi-
cas. Exemplos dessas áreas podem ser vistos na Figura 2 , na qual as UPs como
Estoril / Buritis, Cristiano Machado, Santa Amélia, Castelo, Jardim América, Bar-
roca, Padre Eustáquio e Instituto Agronômico apresentaram significativo número
de novos apartamentos no período de 1992 a 2000.

' --, /
12 Neste último caso, havia um grupo de empresas tradicionais, que sofreram muito com o corte da
! l
__./
liberação de recursos do FGTS já contratados no inicio dos anos 1990, sendo que algumas delas
faliram e as demais dimlnufram seu ritmo, buscando outras alternativas de investimento. Figura 3 - Bairros/Regiões mais significativos em área de construção aprovada nos períodos
13 Estamos nos referindo à mudança ocorrida em 1996 quando da aprovação da LPOUS, significan-

do a abertura de novas frentes de atuação para o setor imobiliário. 1993-1996 e 1997-2002


Fonte: Prodabel (200 1) - Base cartográfica: PBH/SMARU (2002) - Dados; Elaboração: Mo!. Natália A.
242 · Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Ma l P LANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 243

Comparando-se as informações da Figura 3 com aquelas da Figura 4, Observa-se que as regiões que estão inseridas nas Zonas de Adensamento
constata-se um decrésdmo da quantidade de área aprovada na região central Preferendal (ZAP) apresentaram um aumento na média anual de área de cons-
(diminuição do número de projetos aprovados), o que pode significar uma certa trução aprovada após a instituição dos parâmetros da LPOUS, fato este direta-
saturação da área, em contraponto com regiões mais afastadas, que apresenta- mente associado à elevação do Coeficiente de Aproveitamento de 1,0 para 1,7
ram um crescimento no volume de área de construção aprovada. naquelas zonas. (figuras 1 e 4). O tamanho médio da edificação aprovada tam-
bém aumentou, porém continua inferior ao tamanho daqueles aprovados nas
zonas ZA e ZCBH. Percebe-se, portanto, que a atuação do setor imobiliário nas
ZAPs é caracterizada por tipologias de prédios menores (ausência de elevador e
de área de lazer, menor número de vagas de garagem etc.) , apesar do valor rela-
tivamente alto do coeficiente de aproveitamento da zona (1,7). Isso acontece
porque a tipologia adapta-se ao segmento socioeconômico que irá adquirir tais
imóveis - segmento de renda média a baixa da população.
Os bairros inseridos em zoneamento permissivo das áreas centrais (ZCBH
- ver Figura. 1) apresentaram uma diminuição na média anual de projetos apro-
vados em relação ao período anterior, indicando uma possível saturação da área,
apesar das possibilidades de adensamento proporcionadas pela LPOUS. A Figu-
ra 4 mostra o incremento negativo desses índices após a aprovação desta lei (nº
7. 166/96). Entretanto, quando se analisa o porte das edificações aprovadas,
(Figura 5) , a ZCBH permanece como a zona que possui os projetos com maior
área de construção aprovada, o que indica a apropriação integral dos parâmetros
construtivos da LPOUS pelo segmento do setor imobiliário que atende à deman-
da de renda média a alta da população. Observa-se ainda uma diminuição da
área de construção aprovada em relação ao período anterior, uma vez que houve
uma pequena redução no valor do CA. No entanto, trata-se do CA com valor
mais elevado encontrado no município e , por isso, a ZCBH mantém o maior
adensamento construtivo da cidade, proporcionado tanto pelo CA mais permis-
sivo quanto pela área construída não computada no coeficiente (varandas, maior
número de vagas de garagem etc.).

~ Incremento NeoaUvo (·36 a · 100,.,)


D Incremento Neoativo (O a ·35~ )
• I ncremento Positivo (O a lOOIMt)

• I ncremento Positivo (acima 100,,.)

'""'

Figura 4 - Incremento da média anual de área de construção aprovada nos bairros/regiões mais
signifiCátivos nos períodos 1993-1996 e 1997-2002
Fonte: PRODABEL (2001) - Base cartográfica; SMARU (2002)- D ados; Elaboração: Mal, N atália A .
244 ·Daniela Abritta Cota / Na tália Aguiar Mol
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJITÔRIA , AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 245

Já a dinâmica de ocupação dos bairros inseridos em ZA, parece responder à


intenção de contenção do adensamento ao apresentar um incremento negativo na
média anual de área de projetos aprovados após a LPOUS (FlgUra 4). De uma
maneira geral, houve diminuição da produção imobiliária nessa região (redução
do número de projetos aprovados), bem como da área de construção aprovada em
relação ao período anterior, principalmente devido à redução do CA nessa zona.
As informações coletadas, entretanto, mostraram edificações de maior ta-
manho médio, ficando abaixo somente das ZCBH (Rgura 5). Isso porque o s~g­
mento do mercado imobiliário que atua nessas áreas opta por uma tipologia de
unidades de grandes áreas, em geral apartamentos de quatro quartos, adequados
ao segmento de média a alta renda. Trata-se, na verdade, de uma apropriação
:s
e:
preferencial pelo mercado imobiliário de uma exceção definida pela LPOUS
Q) quanto aos parâmetros urbanísticos, conforme consta no art. 45 da desta lei. Tal
E exceção considera que, para lotes com área superior a 800 m2 e testada superior
ca
Q)
e a 20 m, pode-se utilizar o CA = 2,0 e quota de terreno por unidade habitacional
2
:se de 70 m2/um. Tais parâmetros contribuem para manter o adensamento constru-
tivo nesse zoneamento, incentivando, inclusive, a junção de lotes a fim de se
§ obter as condições necessárias que permitam utilizar os parâmetros mais permis-
o
N
sivos. De certa forma , isso contraria as diretrizes do Plano Diretor, que determina
restrição ao adensamento nas ZAs. No entanto, a ocupação observada na área
expressa os parâmetros definidos pela própria LPOUS.
Cf)
:J
oo..
_J Considerações finais

A análise apresentada permite concluir que, apesar da legislação urbanística


em vigor e do seu pretenso objetivo de estimular o adensamento em áreas mais
periféricas, proporcionando novas possibilidades de atuação do capital imobiliário
fora das já saturadas áreas centrais e pericentrais, na prática, a LPOUS tem-se
mostrado pouco eficaz para intervir na histórica tendência do mercado em Belo
Horizonte. A lei tem permitido ao setor imobiliário investir maciçamente nas áreas
voltadas para os segmentos de alta renda (ZA e ZCBH). Embora seja reconhecida
a saturação da região Centro-Sul da cidade, a LPOUS não tem obtido êxito no
controle do seu adensamento. Entretanto, ainda que de modo menos expressivo, a
legislação urbanística tem contribuído para a melhoria do acesso da população à
moradia, em especial de segmentos de renda média a baixa, por meio do incentivo
ao adensamento em novas frentes de ocupação no território municipal (ZAPs, prin-
cipalmente), levando uma parcela dos empreendedores imobiliários a explorares-
ses nichos de mercado. Ou seja, o setor imobiliário foi, em parte, influenciado pela
nova LPOUS, que enfatiza o adensamento na ocupação de partes do espaço urba-
no, em função de certas características das diversas macrozonas da cidade. Além
disso, pode-se dizer que a atual legislação de uso e ocupação do solo, por meio dos
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSl'EcnVAS • 247
246 · Daniela Abritta Cota / Natália Aguiar Mel

MOL, N. A. Bairros/Regiões mais significativos em área de construção aprovada nos p~rí­


parâmetros urbanísticos que propõe, acaba contribuindo para direcionar o tipo de odos 1993-1996 e 1997-2002. Belo Horizonte, 2004. Escala gráfica. Base cartográfica:
produto e o local onde o empreendimento deverá ser implantado conforme a de- PRODABEL; Dados: SMARU (2002) .
manda a ser atendida pelo setor imobiliário: o mercado para os segmentos de MOL, N. A. Incremento da m~dia anual de área de construção aprova~a nos bairros/regi-
renda média a alta opta pelos parâmetros definidos para ZCBH e ZA; o mercado ões mais significativos nos períodos 1993-1996 e 1997-2002. Belo Horizonte, 2004. Esca-
para os segmentos de renda média a baixa opta pelos parâmetros da ZAP. Desta la gráfica. Base cartográfica: PRODABEL; Dados: SMARU (2002).
forma, a legislação urbanística pode ser um fator responsável pela ordenação espa- MOL, N. A. Tamanho médio das edificações aprovadas após a LPOUS (1997-2002). Belo Ho-
cial, uma vez que tem a capacidade de criar condições para implementação de rizonte, 2004. Escala gráfica. Base cartográfica: PRODABEL; Dados: SMARU (2002).
novas frentes lucrativas de ocupação do espaço intra-urbano.

Referências
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pação do Solo - estudos básicos. Belo Horizonte, PBH, 1995.
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BELO HORIZONTE (MG) . Prefeitura. Lei nº 7. 166. 27 ago. 1996. Estabelece normas e
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Belo Horizonte: PBH, 1996.
BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Lei nº 8. 137. 21 dez. 2000. Altera as leis n.os 7.165 e
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COTA, D. A. Legislação urbana e capital imobiliário na produção de moradias em Belo Ho-
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LUCENA, J. M. P. de. O mercado habitacional no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV,
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Material Cartográfico
COTA, D. A. Belo Horizonte: Apartamentos aprovados por UP (1992-2000). Belo Horizonte,
2004. Escã1a gráfica. Base cartográfica: PRODABEL; Dados: PBH/CTM (2000).
MOL, N. A. Quadras de zoneamento ZAP, ZCBH e ZA, respectivamente. Belo Horizonte,
2004. Escala gráfica. Base cartográfica: PRODABEL; Dados: SMARU (2002) .
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 7A9

gozar e dispor do bem - condição que numa sociedade capitalista implica, dentre
Legislação urbanística e estruturação do outras competências, a obtenção de renda4 a partir de seu estatuto de proprieda-
espaço urbano em Belo Horizonte: de privada. De outro, a função social do imóvel, um princípio que relativiza o
primeiro ao tentar garantir o uso do espaço urbano de forma socialmente justa e
um estudo do Bairro Buritis1 ambientalmente equilibrada.
Letícia Maria Resende Epaminondas É partindo, portanto, dessas premissas que se desenvolve o presente artigo,
que busca contribuir para a compreensão da forma como o planejamento urbano,
através da legislação urbanística, se insere no processo de estruturação do espaço
em Belo Horizonte. Para isso, tomou-se como objeto de estudo o processo de par-
Em Belo Horizonte, um dos fatores que contribuíram -contribuem - para a celamento do solo5 do Bairro Buritis, localizado na Região Oeste6 do município.
estruturação de seu espaço foram as sucessivas leis de parcelamento, ocupação e Ao mesmo tempo em que participa e reflete um movimento mais amplo de
uso do solo. Mais do que normas técnicas que participam do processo de singula- estruturação do espaço da cidade, o Bairro Buritis apresenta algumas particularida-
rização e hierarquização de territórios, essas leis representam uma concepção de des que o tornam um rico objeto de estudo. Localiza-se na Região Oeste, mas é
cidade idealizada e acabam por se constituir num forte referencial de civilidade e de considerado uma extensão da Zona Sul de crescimento de Belo Horizonte, tanto no
cidadania - servindo como difusores dos valores dos grupos sociais diretamente
envolvidos em suas formulações (Rolnik, 1997, p. 13). Assim sendo, a legislação
urbanística2 pode ser considerada uma das faces expostas do planejamento urbano 1916) e que explica, em parte, a predominância dos interesses privados na condução do processo de
urbanização no país. Este paradigma trata a questã o da propriedade de forma liberal e individualista
em que são explicitados os objetivos e as intenções que emergiram de uma dada e tem orientado a maioria das decisões judiciais, bem como obstaculizado as tentativas do Estado
conjuntura, consistindo num importante instrumento para a compreensão dos pa- em controlar o uso e a ocupação do solo urbano. Em que pese a promulgação do novo Código Civil
radigmas técnicos adotados e do contexto socioeconômico de sua proposição. Brasileiro em 2002 acreditamos que, na prática, o paradigma po uco se alterou;
2- 0 paradigma relacionado ao Direito Administrativo, que contribui para o reconhecimento do papel
De acordo com Souza (2004, p. 217-219), os instruméntos de controle urbano do Poder Público, especialmente local, no controle de atividades urbanas, particularmente relac?ona-
das às edificações. Este paradigma é orientado pelo princípio do interesse público;
definidos pelas leis urbanísticas, identificados pelo autor como coercitivos, são aque- 3. 0 paradigma da função social da propriedade, de maior alcance social, estabelecido inicialmente pela
les que expressam uma proibição e que estabelecem limites legais para as atividades Constituição Federal de 1934 e reforçado pelo capítulo relativo à política urbana na Constituição de 1988.
dos agentes modeladores dos espaços da cidade. Assim sendo, pode-se dizer que, ao • Uma das principais questões trabalhadas pelos teóricos marxistas quando se debruçam sobre a
estruturação do espaço urbano é aquela relativa à renda da terra. Isto porque reconhecem a n2ces-
criar parâmetros de controle de parcelamento, ocupação e uso do solo, a legislação sidade de se compreender os mecanismos que atuam na formação dos valores praticados e a s~a
passa a participar da contradição inerente ao imóvel urbano, que é aquela existente importância na a locação e localização das atividades urbanas, bem como no processo de segregaçao
entre o seu valor de troca e o seu valor de uso, contradição que se manifesta nos socioespacial. De fato, a forma como é entendida a geração e a apropriação da renda fundiilria é
determinante para o enfoque a ser adotado para a análise da produção do espaço urbano. Neste
processos sociais que atuam na estruturação dos espaços urbanos, especialmente entendimento, acompanhando a formulação teórica da renda da terra, são idenlificadas: re nda abso·
naqueles afetos à dinâmica do mercado imobiliário (Harvey, 1980). luta, renda diferencial e renda de monopólio (Farret, 1985; Singer, 1979).
s Não existe uniformidade no território da cidade, nela estão presentes tanto o parcelamento dito
Seguindo esse entendimento, a aplicação de tais instrumentos expressaria clandestino (que ocorre de forma "espontânea", sem licenciamento prévio e em precárias condições
o conflito existente entre dois princípios intrínsecos aos imóveis urbanos: o direito urbanísticas, sendo as favelas o seu exemplo mais marcante) quanto aquele que segue todos os pa·
râmetros e procedimentos previstos na legislação urbanística (havendo, ainda, uma vasta gama de
de propriedade e a função social da propriedade. 3 De um lado, o direito de usar,
situações intermediárias). Essas realidades, apesar de distintas e às vezes opostas, são complementa·
res e mutuamente explicativas, pois todas participam do processo de produção do espaço urbano em
países periféricos, como é o caso do Brasil. No presente artigo, a ênfase foi dada aos parcelament~s
1
Este artigo está baseado na dissertação de mestrado defendida em 2006 no Progra ma de Pós- projetados e executados conforme a legislação urba nística. Mesmo re_conhecendo que es~ or:içao
Graduação - em Geografia - IGC/UFMG, intitulada A legislação urbanística e a produção do espaço: acaba por se ater a um universo mais restrito, entendemos que, ao anahsar o papel do planeiamento
estudo do Bairro Burítis em Belo Horizonte. urbano e das le is de parcelamento, ocupação e uso do solo na estruturação desses espaços, esta~mos
2 As legislações urbanísticas abrangem um amplo espectro de atuação, Incorporando Códigos de contribuindo, mesmo que indiretamente, para a compreensão dos demais. Pois como bem sahenta
Posturas, Códigos de Obras, Leis de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS), dentre outras Maricato (2001, p . 39): "Legislação urbana detalhista e a bundante, aplicação discriminatória ~3 lel,
normas. No presente artigo, ao utilizarmos esta expressão, legislação urbanística, estaremos nos refe- gigantesca ilegalidade e predação ambiental constituem um círculo que se fecha em si mesmo.
rindo especialmente a LPOUS. • Por Região Oeste entende-se a unidade denominada pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
3 Fernande5 (1998, p . 6-9) ressalta que, no Brasil, o conflito Inerente aos direitos de propriedade tem (PBH) como Regional Administrativa Oeste. Seguindo uma política de gestão descentrallulda, o inu-
sido objeto de três paradigmas jurídicos: nicfpio é dividido em nove á reas administrativas: Barreiro, Ce ntro-Sul, Nordeste, Noroeste, Norte,
1 - o paradigma hegemónico é o proposto pelo Código Civil (o autor se refere ao Código Civil de Oeste, Leste, Pampulha e Venda Nova.
250 · Letícia Maria Resende Epaminondas P LANEJAMENTO URBANO N O B RASIL: Tl\J\JliTÓHIA, AVANÇOS E l'EllSPECTIVAS . 251

LocallzaçAo do Du.lrro Dw1lll e da Áa·ca Central de Ddo HorUontc gendrará um espaço igualmente desigual e hierarquizado e, à medida que esta
estrutura social toma materialidade e permanência na vida cotidiana, ela acaba
por ser "naturalizada". Essa naturalização não apenas contribui para a reprodução
desse modelo de organização espacial como também dificulta a percepção clara
dos agentes e dos processos que concorreram para a produção de um determinado
espaço num dado tempo. Nesse sentido, um dos elementos mais "naturalizados"
da organização física do espaço urbano é o parcelamento do solo. 7

O Bairro Buritis

A área atualmente ocupada pelo Bairro Buritis8 era, até meados da década de
1970, integrante da Zona Rural do município, sendo a Fazenda Tebaídas de proprie-
dade do Sr. Aggeo Pio Sobrinho. Por volta de 1973, esta propriedade começou a ser
desmembrada e alguns terrenos foram vendidos. Entretanto, como o acesso era mui-
to precário, a região permaneceu predominantemente desocupada (Penido et ai.,
1996). A situação começaria a se alterar logo depois, com a promulgação da primei-
ra Lei de Uso Ocupação do Solo (WOS) de Belo Horizonte, Lei nº 2662(76, que
classificou a área como Zona de Expansão Urbana 3 (ZEU3) e com a implantação de
importantes eixos viários que facilitaram a integração do local ao restante da cidade
- especialmente com a Região Centro-Sul, região tradicionalmente mais valorizada
do município que apresentava, então, uma tendência de ocupação mais variada e
uma população de maior poder aquisitivo (Plambel, 1987, p. 208-209).
~ ..........
~ N .. c.tr•o.BelOHart::crtt
O início do parcelamento do solo do Bairro Buritis ocorreu num contexto
c=i un:e oe~Aõnn.sltlbt9 routf:.PROOABfL;aJTnoae
c::J UH. oo ~ Cl.A8QRA.ÇÁO. CRKA K.AGMS De Ol.Mfl:A marcado pela forte correlação entre legislação urbanística e o processo de especia-
DATA.: 19.ou200e
lização dos espaços de Belo Horizonte. A LUOS 2662/76,9 por ser fundamentada

7
A repartição da terra em vias de circulação e em lotes individualizados e comercializáveis pode ser
vista como a materialização, no espaço, da divisão entre as esferas pública e privada da vida urbana.
que se refere à sua inserção no mercado imobiliário quanto no perfil socioeconômi- A forma como as pessoas vive nciam essa divisão e se relacionam com o espaço coletivo também de-
pende de como o solo foi parcelado. A definição prévia, em projeto de parcelamento, da classificação
co de seus moradores. Trata-se de um bairro de ocupação intensa e relativamente viária induz a localização das moradias, das atividades econômicas, dos grandes equipamentos urba-
recente, a partir da década de 1980, que sempre esteve sob a tutela de Leis de nos. Esse projeto define, dentre outros elementos, a distribuição de ruas e quarteirões, alocalização
Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS) - tendo passado por ajustes nos de equipamentos coletivos, a articulação com o restante da cidade. Este fato, aliado às dimensões das
quadras, à existência de barreiras físicas (tais como extensas áreas verdes fechadas, vias interrompi-
parâmetros urbanísticos adotados para seu território em reposta à solicitação de das ou de grandes declividades), acabam por influenciar a diversidade e a simultaneidade dos even-
seus moradores. De modo geral, os projetos de parcelamento do solo tiveram que se tos necessários para a ocorrência - ou não - de um espaço criativo e democrá tico (Jacobs, 2000).
8
adequar não apenas às sucessivas LPOU$, mas também às leis de controle ambien- Nem sempre o limite do bairro oficial coincide com o limite do bairro popular - delimitação feita pela
população que identifica áreas da cidade pelos nomes tradicionalmente adotados, ignorando a nomen-
tal que definiram diferentes parâmetros para a utilização do solo do município. clatura e os limites definidos pela aprovação do projeto de parcelamento junto à PBH. Para a análise
da formação do Bairro Buritis foi considerado somente seu perímetro oficial, por ser o que possibilita
A ênfase ao processo de parcelamento do solo, por sua vez, é justificada
a melhor identificação dos processos de parcelamento. De mesmo modo, não foi considerada uma pe-
pelo seu caráter estruturante no contexto urbano. Segundo Bourdieu (1998), a quena área localizada na porção noroeste do bairro oficial, visto esta não ter passado por um processo
dimensão física do espaço pode ser vista como uma tradução da dimensão social de licenciamento pela LPOUS. Para a elaboração do presente estudo foram consultados expediente
administrativo do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) e processos administrativos da PBH
desse mesmo espaço. Deste modo, uma sociedade desigual e hierarquizada en- relativos a aprovação de projetos de parcelamento e a licenciamento e fiscalização ambientais.
9
Segundo Costa (2003, p.162), na década de 1970 foi adotado pelo governo federal e, por extensão,
252 · Letícia Maria Resende Epaminondas PLANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: ffiAJE'TÓRIA, AVANÇOS E Pl;RS PECTIVAS • 253

em eixos normativos essencialmente funcionalistas, acabava por contribuir para


A primeira etapa do Bairro Buritis
a formação e consolidação de territórios bem demarcados tanto em seus aspectos
físicos quanto em suas características socioeconômicas. As fases iniciais do parcelamento do bairro foram o resultado de uma con-
junção de fatores, dos quais se destacam aqueles decorrentes da atuação do po-
Além disso, a implantação do Anel Rodoviário (BR-262) e da Av. Raja Ga- der público e da própria dinâmica do mercado imobiliário. Da part_e do go~erno
baglia desencadeou a abertura de novas e importantes vias tais como Av. Professor local pode-se identificar duas ações afetas às políticas urbanas qu~ mflue~c1ar~m
Américo Werneck e Av. Barão Homem de Melo, possibilitando uma expressiva sobremaneira a possibilidade de obtenção de uma maior renda d1ferenc1al pe1os
melhoria nos acessos à área do futuro Bairro Buritis. Vale lembrar que: proprietários da gleba: a abertura de eixos viários que a articularam ~s á~eas mais
valorizadas do município e a classificação da mesma como ZEU3, d1rec1onando-
Além da atuação legislativa, em especial de regulamentação urbanísti- a para uma ocupação mais elitizada.
ca, um importante tipo de intervenção no mercado de terrenos é . 1otes com á reas maiores
. 10
O zoneamento definido para o local previa que
aquele exercido através da implantação de infra-estrutura e serviços
acabavam por se destinar a um público diferenciado, capaz de arcar com custos
urbanos. A existência produz valor que é apropriado pelos proprietá-
mais elevados tanto para compra do terreno quanto para execução de tipologias
rios das áreas próximas e sua raridade ou escassez amplia seu impac-
to valorativo. (Pla mbel, 1987, p. 31) mais elaboradas de ocupação. E havia naquele momento uma série de aspectos
conjunturais que justificava esta opção: o aumento de demanda por moradi~s -
na década de 1970 o país tinha a maior parte da população morando em cida-
Seguindo, portanto, a dinâmica apresentada pelo mercado imobiliário, em
des; a emergência e o fortalecimento de uma classe média urbana; e a mai~r
05/11/ 1976, foi aberto na Prefe itura de Belo Horizonte (PBH) o processo de lo-
disponibilidade de financiamento para estes setores - o governo feder~!, via
teamento do Bairro Buritis. O projeto de parcelamento foi desenvolvido seguin-
BNH, priorizava o financiamento de casa própria para as camadas de rendimen-
do o modelo tradicionalmente adotado na cidade - reduzido número de vias,
tos médios da população (Belo Horizonte, 1995) . ·
quarteirões extensos com o máximo de aproveita mento em lotes comercializá-
veis, áreas verdes e de equipamentos coletivos localizados em terrenos de rele- Deste modo o comportamento do mercado imobiliário se coadunou com
vo acide ntado e de menor valor de mercado ou onde o parcelamento não era a legislação urba~ística em dois momentos: de início ao ser incorporado à Lei
legalme nte admitido. A topografia acidentada do local, a configuração dos 2662/76 _ na medida e~ que esta foi baseada num diagnóstico que identificava
quarteirões, a previsão de especialização dos espaços - maior diversidade de um movimento de expansão da mancha urbana, caracterizada por uma tipologia
usos nas vias coletoras e arteria is, usos residenciais nas vias locais-, todos esses mais elaborada de ocupação, em direção à Serra do Curral (porção limítrofe à
fatores concorriam para a reprodução de um espaço economicamente eficiente área do Buritis). E posteriormente, ao inserir o bairro num mercado formal, foca-
para a reprodução do capital imobiliário. do em setores que apresentavam condições financeiras para arcar com os custos
de aquisição dos lotes e que viam os mesmos como alternativa de poupança.
O projeto previa, a inda, a execução do loteamento em duas etapas: a
Cumpre ressaltar que, em 1989, apenas 64 dos 1.135 lotes implantados estavam
primeira correspondendo às porções central, nordeste e sudeste; a segunda
ocupados ou em processo de ocupação (Belo Horizonte, 1992), o que pode ~er
abarcando as porções sul e sudoeste. As obras referentes à impla ntação da 1°
um indicativo de que, naquela ocasião, o bairro se inseria num comportamento
Etapa do Buritis ocorreram entre 1979 e 1985 e as obras da 2° Etapa, autorizadas
mais conservador do mercado imobiliário, direcionado para utilização dos terre-
em 1979, tiveram seu início em 1985 e encontram-se parcialmente executadas.
nos como reserva de valor. 11

pelas outras esferas de poder, um estilo de planejamento compreensivo, cujo foco era o controle
sobre o uso e a ocupação do solo bem como sobre a expansão urbana. Fora m criadas estruturas de 10 No intuito de impedir loteamentos muito distantes e controlar as densidades da ocupação futura, a WOS
planejamento responsáveis pela elaboração de estudos e propostas que Influenciaram decisivamente 266'2/76 definiu um expressivo número de manchas de Zona de Expansão Urbana que podiam ser za11.
a produção e organização dos espaços das grandes cidades brasileiras. No caso de Belo Horizonte, ZEU2, ZEU3 e ZEU4. Dentro desse contexto sobressaiam, por sua extensã~, áreas ~assificadas como ZEU2
foi criado um órgão de planejamento metropolitano denominado Plambel (Superintendência de De- e ZEU3 cujos lotes deveriam apresentar áreas mínimas de 360 m2 e 525 m , ~ente. .
senvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte), sendo instituído, em 1976, o Plano de 11 Durante a década de 1980, o país passou por uma grave crise economica com expressiva dlml-

Uso e Ocupação do Solo da Aglomeração Metropolltam1 (POS). A WOS 2662n6 foi diretamente nuiçtio de oferta de financiamento para a construção civil e altas taxas inflaclon6.rias. Este contexto,
influenciada por este Plano e tinha como principa is eixos normativos: zoneamento funcionalista, aliado a o fato da terra não ser um bem fungível. fazia com que o Imóvel urbano constituísse uma
Modelos de Assentamento, Modelos de Parcelamentos e Categorias de Uso. interessante alternativa de investimento e poupança.
254 · Letícia Maria Resende Epaminondas
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJl!TÔRIA, AV...NÇOS U l'ERSPBCTIVl\S • 255
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O processo de ocupação da I • Etapa do bairro acompanhou as diretrizes racional do solo do bairro - e o comportamento do mercado de imóveis direcio- }
definidas pelas legislações urbanísticas e participou do movimento de "espraia- nado para a obtenção da maior rentabilidade poss(vel.
mento das classes médias pelos espaços centrais e pericentrais de Belo Horizonte"
(Mendonça, 2003, p. 141). Na primeira metade da década de 1990, na vigência da
WOS 4034/85 (Belo Horizonte, 1985a), 12 o bairro passou a ser uma importante
opção de moradia para segmentos de rendas média e média-alta, i3 sendo classifi-
A forma como se deu a ocupação do Burltls trouxe ~ão apenas problemas
de trânsito e de articulação viária como também acarretou uma tipologia bastante
distinta de seu entorno imediato. A vida cotidiana do bairro era afetada pelo pa-
drão de seu parcelamento: extensos quarteirões, vias relativamente estreitas, grandes
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cado como Zona Residencial 4A (ZR4A). A ocupação se consolidava rapidamente, barreiras físicas (configuradas pela topografia acidentada e por extensas án?as ver- )
mas ainda de forma controlada, dadas as características do Modelo de Assenta- des). Do mesmo modo, a ênfase na ligação do bairro com a Região Centro-Sul e o )
mento mais permissivo (MA4A), que imprimia uma tipologia pouco verticalizada predomínio do transporte individual sobre o coletivo sobrecarregavam as poucas
(máximo de quatro pavimentos) e com baixa densidade. avenidas coletoras do bairro. A precariedade de articulação com a Zona Sul (área }
No período de 1993 a 1996, o Buritis foi o bairro com mais área de cons- polarizadora do Buritis) fez com que o bairro se tomasse praticamente auto-suficien- )
trução certificada pela PBH com Baixa e Habite-se, 14 129.617,30 m2, correspon- te em serviços e comércio, potencializando sua atração sobre futuros moradores,
}
dendo a 6,37% de toda a área certificada no município. Em segundo lugar, vinha seduzidos pelo valor relativamente mais baixo dos imóveis. 16
o bairro vizinho, Bairro Estoril, com 4,99%, desse total - dados que evidencia-
}
Se já havia, nos anos iniciais da década de 1990, um interesse do mercado
vam o interesse do mercado imobiliário naquela região (Fabiano, 2005). Estes imobiliário em investir no Buritis, este foi potencializado pela promulgação da Lei }
indicadores ficam mais expressivos quando analisados junto aos dados referen- nº 7166/97, Lei de Parcelamento Ocupação e Uso do Solo (LPOUS), que foi )
tes a projetos arquitetônicos licenciados pela PBH no mesmo período. Pois se a instituída junto ao Plano Diretor de Belo Horizonte, Lei nº 7165/96. 17 Esta LPOUS
concessão de Baixa refere-se às edificações efetivamente executadas, os alvarás classificou a área do bairro, predominantemente, como Zona de Adensamento )
de construção demonstram a intenção de se construir nq, bairro. Nesses anos, Preferencial18 (ZAP). A nova classificação foi definida considerando a infra-estru- )
foram aprovados 240 projetos arquitetônicos para o bairro, correspondendo a tura implantada e a ainda expressiva disponibilidade de terrenos vagos no bairro.
cerca de 4% dos projetos aprovados e a 7,5% de toda a área de construção li-
)
Esse zoneamento significou uma importante frente para a atuação das firmas
cenciada no município. Foram aprovadas para o bairro 1.552 unidades residen- l,
ciais, 15 significando uma relação de 7 ,2 unidades por projeto. Naquele período, a )
ocupação do bairro acompanhava de perto as diretrizes do zoneamento adotado
com o predomínio de edificações multifamiliares verticais. Concorriam para isto 16 Pesquisa de opinião presente em Gomes (2004) identificou que 15% dos moradores do baino entre- )
vistados indicaram como o principal motivo da mudança para o Buriüs o fato de ser um investimento
os parâmetros previstos em lei - considerados como os ideais para a utilização acessível. ESta mesma pesquisa indicou que 75% dos entrevistados vivem em imóvel próprio. )
17 Definidos pela Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte como lnsbumentos de planejamento
wbano, o Plano Diretor e a nova LPOUS foram elaborados com o intuito de se reíorçanmi mutuamen- )
te. A Lei 7165/96, foi marcantemente influenciada pelo processo de discussão da Reforma Urbana que
12 Em março de 1985 foi promulgada uma nova Lei de Uso e Ocupação do Solo para Belo Horizonte, culminou com o cap!tulo da Politica Urbana da Constituição Federal de 1988. Por seu turno, a nova )
Lei 4034185 que classificou a área do Burilis como Zona de Expansão Urbana (ZEU). Esta lei era uma LPOUS - Lei 7166/96 - trazia novidades em relação às WOS anteriores, sua própria denominação
já demonstrava a vontade de se detenninar novas abordagens à regulação urbanística: se antes o uso j
revisão da WOS anterior, não significando uma alteração profunda nas diretrizes previstas e nem
preponderava, agora pretendia-se, ao menos nominalmente, tratar de forma integrada o parcelamento,
nos Impactos desta última na organização espacial do município. A WOS 4034/85 dispunha que
a ocupação e o uso. O tenitório da cidade foi totalmente considerado como área urbana e dividido )
loteamentos localizados em ZEU deveriam ter seu novo zoneamento definido por uma comissão do
Executivo na ocasião de sua aprovação. Desta forma, os zoneamentos da la Etapa do Burilis foram em macro zonas, cuja classificação era balizada por sua fragilidade ambiental e pelas possibilidades de j
definidos pelos Decretos Municipais 5004/85, 5013/85, 5061/85, sendo que a predominância era de adensamento, considerando também as demandas de preservação e proteção ambiental, histórica, cul-
tural, arqueológica ou paisagística. A intenção era redirecionar o processo de adensamento que ocortia

'
Zona Residencial 4A (ZR4A).
13 Em 1991, o Buritis apresentava as tipologias socioespaciais identificadas como Superior e Médio na cidade, estimulando o melhor aproveitamento de áreas subutilizadas e restringindo a ocupação em
Superior (Mendonça, 2003, p.130-131). áreas consideradas saturadas. Alguns avanços em relação às WOS anteriores podem ser identificados: j
14 A certificação de Baixa e Habite-se é concedida pela PBH para as obras em condições de habita- o rompimento com a tradição do zoneamento funcionallsta; a identificação de maao zoneamentos es-
bilidade e executadas conforme as normas urbanfsticas. Este atestado de regularidade deve ser regis- pecíficos para áreas de Interesse ambiental e de interesse social; uma maior ftexibilização na localização }
trado no Cartório de Registros de Imóveis e é, muitas vezes, condição para conclusão de inventários, dos usos e nas tipologias de ocupação. Outro aspecto importante da Lei 7166196 foi a aíação de Áie.as
para liberação de fmanciamentos e hipotecas. de Diretriz.es Especiais que foram definidas como áreas que, por suas peculiaridades, exigem a imple- j
15 Tendo em conta a expressiva predominância do uso residencial no Buritis, daremos maior ênfase mentação de políticas especfficas (permanentes ou não) e que demandam parâmetros urbanísticos
aos dados relativos a este uso. Para uma análise do processo de formação e consolidação do uso não diferenciados que devem ser sobrepostos aos do maao zoneamento e que sobre eles preponderam. }
18 ZAP: áreas passíveis de adensamento, em função da existência de condições favoráveis de Infra-
residencial no bairro, ver Gomes (2004). Os dados referentes aos projetos aprovados/baixados para o j
Bairro Buritis analisados neste artigo têm como fontes: Fabiano (2005) e Belo Horizonte (2006a). estrutura e de topografia (Belo Horizonte, 1996).
J
256 · Letícia Maria Resende Epaminondas
PLANE)11~1 8''TO URBllNO NO B RASIL: TR/\)ETÓ RJll, llVllNÇOS E PERSPECTIVAS • 257

con:trutoras direcionadas aos setores de rendimentos médios, pois apresentava A intensificação21do processo de ocupação trouxe consigo o agravamento dos
parametros legais mais permissivos. problemas de trânsito. Esta situação ensejou um movimento dos moradores, através
_ O n~vo zoneamento acarretou uma brusca alteração no padrão de ocupa- da Associação dos Moradores do Bairro Buritis (ABB), solicitando a alteração do
çao do bairro, acelerando seu processo de verticalização e adensamento. Somen- zoneamento do bairro, no sentido de controlar o seu adensamento. Reconhecendo
te em ~997, primeiro ano de aplicação da LPOUS 7166/96, foram licenciadas os problemas levantados, o Executivo Municipal enviou uma proposta de alteração
9~4 unidades residenciais para o Buritis, um claro indicativo de que havia um de parâmetros urbanísticos para o Conselho Municipal de Políticas Urbanas (COM-
nicho ~o mercado imobiliário que foi favoravelmente contemplado por esta lei. PUR) . Tal proposta foi aprovada e encaminhada para a Câmara dos Vereadores, in-
No .penado compreendido pelos anos de 1997a2000,19 foram aprovados 167 corporada ao projeto de lei de modificação da LPOUS (elaborado com base na Pri-
projetos, totalizando uma área construída de 318.371 ,16 m2 - respectivamente meira Conferência de Política Urbana realizada em 1998). Como resultado desse
2,6% do total de projetos e 7,0% da área total licenciada para Belo Horizonte. processo, foi criada a Área de Diretrizes Especiais do Buritis pela Lei 8137/00:22
Comparando os projetos aprovados nos períodos de 1993-1996 e 1997-2000
per.cebe-se uma importante alteração na tendência de ocupação do bairro. À A ADE do Buritis é a área que, devido à precariedade de articulação viária
aplicação da Lei 7166/96 não implicou o acréscimo no número de projetos apro- da região com o restante da cidade, demanda a adoção de medidas visan-
vados (de fato, houve uma redução de cerca de 30% - de 240 para 167) mas do inibir o crescente adensamento, cujo processo deve ser objeto de con5-
acarretou uma significativa modificação qualitativa dos mesmos. Conside;ando tante monitorização por parte do Executivo. (Belo Horizonte, 2000)
as médias anuais dos períodos tratados nota-se, em 1997-2000, aumentos de:
4 7% n~ nú~e:o de uni~ades residenciais licenciadas; 11 9% na relação de unida- A ADE do Buritis sobrepunha ao zoneamento da LPOUS de 1996 parâme-
des res1denc1a1s por projeto; 40% na área de construção média por projeto. tros diferenciados com o objetivo de controlar o adensamento. Em algumas quadras,
integrantes da 2• Etapa do bairro, passou a ser admitido somente o uso residenciai
. Se nos anos de vigência da LUOS 4034/85 as construções executadas no
bairro se caracterizavam pelo caráter artesanal,20 a partir de 1997 as construções unifamiliar. A promulgação da Lei 8137/00 teve um impacto imediato sobre os pro-
passaram a ser executadas num contexto mais industrializado: jetos de edificações para o Buritis, interrompendo uma série de empreendimentos
destinados a setores de renda média-baixa. E este foi um dos efeitos mais marcantes
O aumento do coeficiente de aproveitamento [... ] nos bairros Buritis e dessa ADE, o retorno a um perfil de moradores mais elitizado.
Castelo, que já tinham um processo construtivo dinâmico, levou para Analisando os dados referentes aos anos de 2001 a 2005, percebe-se que
esses bairros as grandes construtoras, que aí atuaram intensamente. houve uma redução no número de projetos aprovados anualmente para o baino.
Onde até então os pequenos construtores, os profissionais liberais e Comparando com os períodos anteriores nota-se que as médias anuais sofreram re-
grupos de moradores faziam prédios de até 3 pavimentos com aparta- dução não apenas no número de projetos, mas também no número de unidades
mentos de 100 m2, entraram os grandes construtores do segmento de residenciais e na área de construção por projeto. Com relação aos períodos compre-
mercado de classe média baixa, com grandes projetos de pequenas endidos pelos anos de 1997-2000 e 2001-2005, ocorreu uma redução de 563 da
unidades. (Belo Horizonte, 2005) média anual de unidades residenciais aprovadas e uma redução de 173 na área
média dos projetos. De modo semelhante, o peso relativo da área licenciada anual-
mente para o Buritis no total de área licenciada para Belo Horizonte vem apresentan-
do uma tendência de queda, de 9,3% em 1997 para 4,03 em 2003. Esta tendência
1~6, lendo sofrido alterações pelas Leis 8137/00 e
19
A Lei 7166196 enlr?u em vig?r em dezembro de pode ser analisada como o reflexo da criação da ADE do Buritis, mas também como
~7/05. Como a Lei 8137/00 implicou a criação da Area de Diretrizes Especiais (ADE) do Buritis, con-
sideraremos estes dois mome~l?s ~e forma específica, de 1997 a 2000 -vigência dos parâmetros da Lei
71?6196. a partir de 2001 - v1genc1a dos novos parâmetros urbanísticos introduzidos pela Lei 8137/00 A 21
Na década de 1990, a população da Unidnde de Planejamento Buritis!EstoriV Pilar Oeste apresen-
Lei 9037/05 n~o será tra!11da no presente artigo, visto não se referir 110 balJTO em estudo. A tflulo de lnf~r­ tou uma taxa de crescimento anual de 16,11 % a.a. - passando de 4 .519 habitante.s em 1991 para
:ação, esta lei refere-se a regulamentação das ADEs do Trevo, da Pampulha e da Bacia da Pampulha. 17.337 habitanles em 2000. Neste mesmo período, as laxas crescimento d11 Regltlo Oeste e do muni-
Costa (1983, p. 23-26) apresenta e analisa a relação entre as três formas de produção de habita- cípio de Belo Horizonte foram respectivamenle 0,81%a.ae1,16% a.a (Belo Horizonte, 2005).
ção na América Latina: a autoconslrução, a produção artesanal, e a produção Industrial - modelo 22 Em dezembro de 2000, como um dos efeitos da Primeira Conferêncl11 de Polrtlca Urban11 de Belo
hegem~nlco que determina a dinâmica do mercado de moradias. A produção artesanal pode ser Horizonte, foi promulgada a Lei 8137/00. Est11 Lei 11lterava pontualmente o Pl11no Diretor e, man-
exemplificada _pelos pequenos construtores e pelos condomínios que contratam profissionais liberais tendo os eixos normativos da Lei 7166/96, modificava, também de forma bem delimitada, alguns
para a execuçao da obra (obra por administração).
parâmetros de parcelamento, ocupação e uso.
258 · Letícia Maria Resende Epaminondas P LANEJAMENTO URUANO NO 13~1L: TRA) tOÓRIA, AVANÇOS U l'URSl'EC!WAS . 259

resultante do movimento do mercado de imóveis que agrega múltiplos fatores, dos eia de Política Urbana e do COMPUR serem definidos como instâncias de monito-
quais podem ser destacados: a pulverização da atuação das empresas construtoras ramento da LPOUS, tendo por isso um peso na forma como se dá a organização
no tenitório da cidade, especialmente nas áreas classificadas como ZAP; as altas taxas territorial de Belo Horizonte, na prática, a interferência do COMAM é mais efetiva
de juros praticadas no Brasil que dificultam não apenas a atividade produtiva como e mais facilmente percebida pelos cidadãos. Diferentemente do COMPUR que é
também o acesso ao financiamento de moradias; um a inda expressivo estoque de uma instância eminentemente consultiva, o COMAM é deliberativo e ao licenciar a
24
imóveis vagos no Buritis - em 2000, cerca de 20 a 30% dos apartamentos localizados implantação e operação de empreendimentos de grande porte, estes acabam por
na UP Burit:WEstoril encontravam-se vagos (Belo Horizonte, 2000). exercer uma função estruturante no espaço do município, influenciando decisiva-
Cabe notar que, a despeito dos avanços em termos de parâmetros de con- mente não apenas o seu entorno imediato, mas também as relações socioespaciais
trole urbano e ambiental apresentados pela Lei 7166/ 96, o zoneamento definido construídas entre este entorno e o restante da cidade.
para o bairro (ZAP) foi justificado por fatores afetos à disponibilidade de terrenos
e à ociosidade de infra-estrutura. A análise de fatores relacionados à interação
A segunda etapa do Bairro Buritis
com a ocupação pré-existente e à capacidade do bairro em absorver o expressivo
Se o processo de consolidação da ocupação da l ª Etapa do Buritis foi marcado
aumento populacional foi protelada para quando houvesse a revisão da legisla-
pela conjunção do comportamento do mercado imobiliário com os instrumentos de
ção pela la Conferência de Política Urbana, conforme previsto no Plano Dire tor.
regulação urbanística e pela atuação dos moradores junto ao governo local, o processo
Entretanto, quando esta Conferência ocorreu este tema específico não foi tratado.
de parcelamento do solo da 2• Etapa foi caracterizado pela incorporação de novos
Com isso, o fato que gerou a revisão dos parâmetros de controle urbanístico para
parárnetros normativos instituídos pelas leis municipais de controle ambiental.
o bairro foi a solicitação da ABB junto ao Executivo Municipal.
Em 1985, deu-se início à implantação da 2ª Etapa do bairro, conforme
Neste ponto, cabem alguns comentários acerca da atuação dessa associa -
autorizado pela PBH em 1979 (resultado da análise do projeto de parcelamento
ção. Tomando por base o discurso adotado por e la em seLLjornal mensal, Folha
que tratava a totalidade do loteamento). Contudo, tão logo as obras começaram a
Buritis, pode-se identificar uma tendência ao que Castells (1999) denomina de
ser executadas houve uma imediata ação fiscal da Secretaria Municipal do Meio
identidade legitimadora. A atuação da ABB no tocante à qualificação do bairro é
Ambiente (SMMA). Tal ação era referendada pela nova lei ambiental do município,
traduzida por uma constante vigilância que tanto pode estar relacionada à preser-
Lei nº 4253/85 (Belo Horizonte, 1985c),25 e alegava que o projeto de parcelamento
vação das áreas verdes existentes, especialmente o Parque Aggeo Pio Sobrinho,
não respeitava as áreas de proteção permanente legalmente instituídas. A SMMA
quanto às questões afetas ao controle urbano - adensamento, trânsito,23 saturação
questionou as obras de urbanização por invadire m áreas de proteção ambiental, sa-
do bai1TO, incômodos ambientais. Pode-se reconhecer nestas ações indícios do
lientando a necessidade de autorização especial para os serviços de movimentação
que Castells identifica como movimento difusor de preocupações ambientais, no-
de terra e de se re parar os possíveis danos ambientais causados quando da implan-
tada mente presente nos subúrbios elitizados e e m áreas ocupadas pelas camadas
tação da la Etapa do bairro. Ressaltava, também , a necessidade d e se adaptar o
de rendas média e média-alta. Conforme este autor, tal movimento apresenta, de
projeto de parcelamento às limitações impostas pela legislação ambie ntal.
maneira geral, um caráter defensivo e reativo preocupando-se somente com a
preservação da qualidade de seu próprio espaço (não em meu qu intal).
Vale ressaltar que, a despeito da existência de instâncias de participação ins-
tituídas pelo Plano Diretor afetas às políticas urbanas (COMPUR e Conferência de
24 Indústrias, viadutos, shopping-centers, campi universitários, loteamentos, terminais rodoviários,
Política Urbana), a ABB demonstra acompanhar com ma is assiduidade a atuação dentre outros.
do Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM). Este Conselho recebe uma 25 Em dezembro de 1985, entrou em vigor a Lei 4253/85 que dispõe sobre a política de proteção e
conservação do meio a mbie nte e da melhoria da qualidade de vida no município. Essa le i criava o
vigilância contínua dos moradores, especialmente no que se refere ao lice nciamen-
COMAM (Conselho Municipal do Meio Ambiente) e definia as competências da SMMA {criada em
to ambiental de grandes empreendimentos no bairro o u e m suas proximidades. 1983), dentre as quais se destacava a de exercer ação fiscalizadora e o poder de polícia em casos
Esta atuação reflete um entendimento, a nosso ver correto: a despeito da Conferên- de infração das norrnas de proteção ambiental. Definia, também, que as fontes poluidoras, quando
da sua construção, instalação, ampliação e funcionam ento, deveriam submeter-se a licenciamento
prévio, ocasião em que seriam avaliados seus impactos sobre o meio ambiente. Importante pontuar
23 lm~rtante ~otar que o foco dos moradores é no trânsito e não no transporte. São pouco presentes que, inicialmente, os parcelamentos do solo (quando de sua implantação) eram considerados fontes
as re1v1nd1caçoes relacionadas ao transporte coletivo e à integração do bairro com as outras áreas da poluidoras. Estando sujeitos, portanto, a este procedimento. Mas foram retirados por veto do Execu-
cidade por meio deste. As solicitações são mais relacionadas a aberturas de vias, proibição de estaciona- tivo Municipal sob a alegação de que tal controle já seria feito pela aplicação da WOS 4034/85 e da
mento nas vi11S coletoras, num indicativo da preponderância da utilização do transporte individual. Lei 6766n9, lei federa l que regula os loteamentos urbanos (Belo Horizonte, 1985b).
260 · Letícia Maria Resende Epaminondas P LANEJAMENTO URUANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS. 261

Cabe notar que, a despeito de a legislação urbanística ter sido alterada (o Concomitante a esta proposta e como resultado de negociação entre os
projeto de parcelamento inicialmente autorizado incorporava a LUOS 2662/76 e empreendedores e o Executivo Municipal, foram promulgados os Decretos Muni-
o Decreto 54/35, 26 mas posteriormente foram promulgadas a Lei Federal 6766/79 cipais que definiram os zoneamentos do bairro. A idéia era compensar a perda
e a LUOS 4034/85), tal situação não foi argüida pela Secretaria Municipal de de número de lotes (em relação ao primeiro projeto protocolizado em 1976 e que
Obras Civis (SMOC) , órgão responsável pelo licenciamento de parcelamento daria origem à 2° Etapa) , pelo aumento do potencial construtivo dos lotes já e.xis-
do solo e acompanhamento das obras de implantação do mesmo. Isto é expli- tentes e a serem implantados.28
cado pelo fato de que o exame do projeto segundo as regras vigentes na As características dos Lotes Parques, o aumento de área verde e a futura
ocasião da formalização do requerimento de licenciamento é reconhecido implantação de um clube contribuíram para a divulgação de um produto diferen-
como um direito. 27 Deste modo, a adaptação do projeto da 2• Etapa do Buri- ciado no contexto da cidade. O discurso ambiental era incorporado às estratégias
tis foi motivada não pela alteração de parâmetros de controle urbano mas de elitização e valorização do empreendimento, num movimento do mercado
pelos novos parâmetros de preservação instituídos pela legislação ambiental. imobiliário coerente com o comportamento identificado por Costa (2006):
Partia-se, então, do princípio de que qualquer alteração no ambiente existente
acarretava danos e , neste caso, o próprio loteamento era um risco em poten- O uso urbano, porém, aparece mais claramente como conflito quando as
cial, dadas as normas pelas quais havia sido elaborado. Percebe-se, portanto, necessidades de preservação impedem ou dificultam a exploração plena
que, enquanto as LOUS tinham sua aplicação relativizada pelo direito individual do potencial de renda da terra em áreas muito valorizadas. Se este é o
da propriedade privada, o mesmo não ocorria com a lei de cunho ambiental, que caso genérico, queremos argumentar que, no marco conceituai da mo-
teve a capacidade de gerar a adequação do projeto de parcelamento. dernização ecológica do capital imobiliário na expansão urbana, o con-
Instado a promover alterações no projeto desta etapa, o empreendedor flito se desfaz quando a internalização de custos ambientais se transforma
encaminhou uma nova proposta de loteamento para a Secretaria Municipal de em valor ambiental, portanto passível de ser apropriado na forma de
Desenvolvimento Urbano (SMDU) em que diminuía o número de lotes a fim de renda imobiliária diferencial e, especialmente, de monopólio. (p. 118).
respeitar os limites das áreas de preservação ambiental. A proposta para a 2°
Etapa era, em linhas gerais: zoneamento residencial mais permissivo que o ZR4A Tal estratégia podia ser identificada no discurso adotado pelo empreende-
para a grande maioria dos lotes; zoneamento comercial para os lotes com frente dor junto à PBH:
para as avenidas; destinação de um quarteirão para clube recreativo; e a criação
de uma nova tipologia de ocupação para algumas quadras localizadas na porção Tamanho desafio em compatibilização imobiliária e ambiental, ele [sic] é
sudoeste do loteamento, denominada Lote Parque. Os Lotes Parques teriam área uma preocupação legítima tanto dos ambientalistas como nossa também,
mínima de 2.000 m2 , frente mínima de 40 m e parâmetros de ocupação diferen- por termos no verde que ali preservamos, o nosso principal ponto de ven-
ciados, o que significava a criação de um novo Modelo de Assentamento, cuja da. [... ] Tais modificações aumentam - e valorizam ainda mais as áreas
aplicação geraria torres residenciais com cerca de treze pavimentos por lote (a verdes no bairro, permitindo a conservação da maior parte possível das
tipologia residencial predominante na 1° Etapa do bairro era, então, de prédios reservas naturais da região. Foi justamente através desta "valorização do
de apartamentos com, no máximo, quatro andares). verde" que procuramos minimizar as perdas comerciais a que fomos obri-
gados pela PBH, com a redução da quantidade de lotes existentes. [grifos
da autora] (trecho de documento do empreendedor presente às folhas 56
e 57 do processo PBH n.01-059. 392/93-03).
26 Em 1935, pelo Decreto Municipal 54/35, os loteadores passaram a ser obrigados a realizar obras
de urbanização. Entretanto, tal instrumento se mostrou insuficiente para garantir a qualidade dos
loteamentos em Belo Horizonte que continuaram a ser produzidos sem a obediência às normas urba- A despeito de as LOUS terem uma preocupação com o meio ambiente, a
nísticas, configurando os chamados loteamentos clandestinos. Este Decreto foi uma tentativa de atuar questão do uso do solo urbano frente a uma abordagem mais integrada com a
no controle do "[...l processo de loteamento [que] era gerador de grandes fortunas particulares com
transferência dos custos de seus serviços urbanos para o Poder Público" (Plambel, 1987, p. 48).
questão ambiental permanecia em elaboração. Mantinha-se o entendimento de
27
Percebe-se nesta rotina, a necessidade do Executivo municipal de trabalhar de modo simultâneo
com dois preceitos: o direito de propriedade, regido pelo Código Civil e a função social da pro-
priedade urbana, constitucionalmente definida pelos Planos Diretores e pelo Estatuto das Cidades. ,. Nota-se nesse momento uma estreita relação entre os processos referentes às 1• e 2' Etapas do
De um lado, garantir à propriedade urbana o seu potencial de geração de renda, de outro, garantir bairro: a ~egociação entre a PBH e os empreendedores afeta à 2' Etapa acarretou a definição do
condições para o desenvolvimento socioespacial. zoneamento dos lotes da 1• Etapa.
262 · Letícia Maria Resende Epaminondas PLANEJAMENTO URllANO NO BRASIL: TRAIETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • 263
'l
l
uma dicotomia: de um lado a utilização do solo para comercialização e ocupação Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), por danos em '}
(dentro de uma visão de progresso e desenvolvimento urbano), de outro, a ne- área de preservação permanente e degradação de recursos hídrlcos.31 A ação do
cessidade de se manter "lntocada" a maior quantidade de terra possível (Inserida IBAMA foi o lnfclo de uma série de autuações, notificações e embargos que l
numa postura mais preservacionlsta). questionariam, não o projeto em si, mas a forma como o mesmo estava sendo l
implantado. Apesar de todo o discurso ecológico adotado pelo empreendedor,

'
Como resultado do acordo entre os empreendedores e a PBH, foram
aprovadas em 28/12/1988 pelo então prefeito, 29 as plantas de parcelamento as obras eram feitas de modo agressivo, com a supressão de toda a cobertura
arbórea e vegetal, raspagem do solo sem a devida recomposição, com grande }
correspondentes à 2ª Etapa do bairro. Esta aprovação, autorizada por parecer
movimentação de terra gerando assoreamento em cursos d' água e degradação
da Procuradoria Municipal, seguiu o padrão já adotado - aplicação retroativa de
de áreas de preservação. Em todas as ocasiões em que a empresa executara
l
parâmetros urbanísticos, dada a abertura do processo anterior à primeira LOUS.30
Concomitante a este procedimento, foi promulgado, pelo Executivo, o Decreto sofria ação fiscal da SMMA, ela se defendia alegando excesso de chuvas, obras l
6222/88 de 29/12/1988, que definia, basicamente, o Zona Residencial 4 (ZR4) de terceiros, bota-foras clandestinos, mas, especialmente, se respaldava no argu- )
para os lotes residenciais, zoneamento comercial para os lindeiros às principais ave- mento de que possuía alvará de urbanização (concedido conforme a WOS), )
nidas e o modelo de assentamento especial, destinado aos chamados lotes parques estando, portanto, devidamente autorizada a prosseguir a impl~ntação. Tal situa-
ção gerou processos de fJScalizaçáo na SMMA e o ajuizamento de uma Ação Civil )
(classificados como Zona Residencial 48 - ZR4B). Entretanto, este decreto apresen-
tava algumas singularidades: a competência de definir o zoneamento para loteamen- Pública pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP-MG) em desfavor )
tos em ZEU era da Comissão Especial de Zoneamento conforme disposto na WOS dos empreendedores, acarretando novo embargo das obras.
4034/85 e não cabia (como ainda hoje não cabe) a um decreto alterar matéria de lei A sentença resultante desta ação considerou indevida a liberação da apre-
l
- os Modelos de Assentamentos eram definidos pela WOS, portanto, um novo sentação do EINRIMA e condicionou a continuidade das obras ao licenciamento )
modeio somente poderia ser criado após discussão e aprCU1ação no Legislativo do loteamento junto ao COMAM.32 Este procedimento ensejou mais um acordo }
Municipal. Em função desses aspectos, a aprovação do parcelamento foi questio- entre as empresas e a PBH em que ficou definido: o projeto de parcelamento
)
nada pela SMOC em junho de 1989 e como conseqüência de tal procedimento, deveria ser novamente adaptado de modo a minorar os impactos ambientais na
houve o cancelamento da mesma e a revogação do respectivo decreto. região; a empresa executora deveria colaborar com poder público na implanta- )
Neste ínterim, foi levantada a necessidade de elaboração de EIA (Estudo ção do Parque Aggeo Pio Sobrinho (criado em 1990); em contrapartida à dimi- )
de Impacto Ambiental) e RIMA (Relatório de Impacto Ambiental), pois as porções nuição do número de lotes, seriam autorizadas a ocupação de área vizinha ao
parque e a alteração da vinculação da quadra destinada ao clube recreativo que )
sul e sudoeste do bairro eram áreas com nascentes, de solo instável, susceptível a
erosão. Considerando os questionamentos afetos à necessidade de licenciamento poderia com isso ser parcelada e receber nova destinação. )
ambiental do empreendimento, a PBH e os empreendedores acordaram que, O COMAM acatoµ tal acordo por entender que o mesmo atendia aos re- .)
tendo em vista a entrada do projeto em data anterior às WOS e à lei ambiental, quisitos determinados pela Justiça, sendo firmado, em 08/03/1995, um TAC (Ter-
seria autorizado o parcelamento da área a montante do Parque Aggeo Pio Sobri- mo de Ajustamento de Conduta) entre este Conselho e os empreendedores. A
)
nho desde que destinada exclusivamente ao uso unifamiliar (tipologia menos im- assinatura deste termo autorizou a continuidade das obras e a extinção da Ação )
pactante se comparada com o zoneamento proposto anteriormente - ZR4). O Civil Pública aberta pelo MP-MG. Implicava, também, o cumprimento integral do )
acordo incluía, também, a dispensa da apresentação de EWRIMA - considerando Plano de Controle Ambiental (PCA) apresentado e a alteração do projeto de
a proposta de aumento de área verde com a conseqüente diminuição dos lotes J
como forma de minorar os possíveis impactos no meio ambiente. I'
Porém, tão logo as obras de implantação deste novo projeto foram inicia- 31 Este embargo acabou sendo retirado dois meses depois por se entender que a continuidade das )
das, as mesmas foram embargadas - em janeiro de 1993 - pelo IBAMA {[nstituto obras garantiria a recomposição dos danos ambientais e que era compet~nda do munic!plo a fiscali-
zação de implantação de loteamento aprovado. }
:iz A hberação do EINRIMA foi oonsiderada indevida por dois fatores concorrentes: a 2• E.lapa do bairro
29Sr. Sérgio Ferrara, prefeito de Belo Horizonte no período de 01/01/1986 a 31/12/1988. fazia parte de wn loteamento mais amplo-todo o Bairro Buritis, e a substituição de lotes por áreas verdes J
30Tal interpretação da Procuradoria Municipal acompanhava a tradição jurídica brasileira, conforme não alterava a área do loteamento - maior que 100 hectares, sujeito, portanto, a licenciamento ambiental. j
ressalta Fernandes (1998, p. 204): "Certamente, a doutrina jurídica dominante no Brasil ainda pensa (Sentença de 13/12/1993 do Fbder Judiciário do Estado de Minas Gerais prei;ente às folhas 391 a 402 do
a cidade como sendo pouco mais do que uma área limitada, integrada por lotes demarcados de pro- processo 01-0'ZS.245/88-05. Esta sentença contém uma rlc;a disaJssâo a respeito das competências e das j
priedade privada de Indivíduos." interações entre as legislações municipais e federais afetas às polllicas urbana e ambiental.)
J
~
PtANEJAMEl'TTO URU/\NO N O B RASIL: TRllJETÔRI/\, /\V/\NÇOS E PERSPECTIV"S • 265
264 · Letícia Maria Resen d e Epaminon das

ocupação. Pois, trata-se de uma extensa área com 532 lotes ·a provados, c~m
parcelamento. Esta alteração do parcelamento da 2• Etapa do Bairro pode ser,
áreas que variam de 450 m2 a mais de 2.000 m2 (os antigos Lotes Parques/.
sucintamente, descrita:
• A porção sul do bairro, área de grande importância para a preservação de
mananciais e para a conservação do Parque Aggeo Pio Sobrinho, teve uma Considerações finais
expressiva diminuição do número de lotes comercializáveis, de 203 para 127
(redução de 37,4% no número de lotes), e acréscimo da área verde institu- O estudo da ocupação do bairro a partir dos processos de parcelamento do
cional (com a incorporação de novas áreas ao Parque). O fato dos novos solo permitiu a identificação de algumas questões. De início, deve-se reconhecer
lotes terem sido aprovados somente em agosto de 2000 preservou-os de que a análise isolada da aplicação das legislações ur~anísticas não é suficiente P~~
uma ocupação verticalizada. Apesar de todo o processo de discussão envol- compreender a estruturação do espaço urbano, pois neste processo atuam mu.ti-
vendo sua ocupação, a LPOUS 7166/96 classificou estas quadras como ZAP, plas forças que extrapolam o escopo das leis de controle urbano. Um~ das forças
num indicativo da ausência de integração entre os setores administrativos mais atuantes é aquela relacionada ao mercado imobiliário que é movido, por seu
encarregados do planejamento urbano e da aplicação das normas urbanísti- turno, pela captura da renda da terra, pela necessidade de reprodução.d~ padrões
cas. Somente em dezembro de 2000, com a promulgação da Lei 8137/00, preestabelecidos e de criação de novas e constantes demandas (matenats e, espe-
os quarteirões desta área voltaram a ser definidos para o uso exclusivo uni- cialmente, psicológicas). Este mercado não apenas rege o ritmo d~ ?ferta e de
familiar,33 ocupação considerada mais compatível com as limitações tanto criação de novos espaços na cidade, como também influencia dec1s1vamente a
ambientais quanto de controle visual. Este trecho do bairro está inserido, formulação das LPOUS - seja por meio de negociação política, seja represer.tado
desde 2002, na área de proteção do entorno da Serra do Curral devendo, nas instâncias de participação, seja incorporado nos diagnósticos elaborados pelos
por isso, respeitar diretrizes de controle de volumetria definidas pelo Conse- planejadores que subsidiam a proposição de planos e !~is, s:ja no m~n:ento da
lho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte; aplicação dos parâmetros de controle instituídos pelas leg1slaçoes urbamsbcas.
• Porção sudoeste do bairro, área ambientalmente frágil, apresentando talve- E é no momento da aplicação desses parâmetros que se explicita de forma
gues encaixados, sujeitos a processos erosivos. Após a líberação das obras de mais aguda a contradição entre a função social da propriedade urbana e o direito de
urbanização, constatou-se que as mesmas estavam sendo conduzidas de for- propriedade. Pelo estudÕ desenvolvido, percebeu-se que a legislação ~rbanísti~, por
ma agressiva, ocasionando o surgimento de vários focos erosivos com carrea- si só, não garante a predominância dos interesses coletivos sobre os pnvados e isto se
mento de material para áreas de preservação permanente, soterramento de deve, em grande parte, à tradição do liberalismo jurídico clássico que faz com que o
mata ciliar e assoreamento de cursos d ' água. Novamente, houve ação fiscali- direito de propriedade seja o princípio hegemónico (Fernandes, 1998). Entreranto,
zadora por parte da, SMMAS (Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sane- existem alguns conflitos, inerentes aos processos de produção dos esp~ços urb~n?s,
amento, sucessora da SMMA) e o envolvimento do MP-MG. Como o alvará de que podem induzir ações inovadoras e contribuir para o d:Senvolv1men!o soc10-
urbanização referente à implantação deste trecho do loteamento encontrava- espacial.34 No estudo em tela, pode-se destacar duas situaçoes que, se nao_ f~ra~
se vencido desde 2001 , a sua renovação foi condicionada à apresentação de suficientes para modificar substancialmente as relações entre os agentes soc1a1s.~1-
um PRAD (Plano de Recuperação de Áreas Degradadas) e de um projeto retamente implicados nos processos de parcelamento do solo/ocupação do Buntis,
para a implantação de um novo parque no bairro, incorporando áreas ver- foram capazes de alterar efetivamente o design do bairro.
des contíguas, não limítrofes ao Parque Aggeo P. Sobrinho. Ocorria , nova- A primeira situação refere-se à modificação dos parâmetros de ocupação
mente, a interface entre regulação urbanística e controle ambiental - um definidos para 0 bairro através da ADE do Buritis. A promulgação desta ADE
documento fornecido com base na LPUOS ficava condicionado a procedi- implicou uma expressiva muda nça na tendência de ocupação do Buritis, além de
mentos afetos às normas de cunho ambiental. Atualmente, tendo em vista a refletir a preponderância de valores de uso defendidos pelos moradores sobre os
assinatura de um novo TAC junto ao MP-MG, os procedimentos relativos à valores de troca privilegiados pelas firmas construtoras (Harvey, 1980).
renovação do alvará foram autorizados. A finalização das obras de urbaniza-
ção desta área e a conseqüente comercialização dos lotes certamente trarão
alterações na estruturação do bairro, especialmente quando da sua efetiva
34 Entendido como d esenvolvimento urbano e utilizado na ace~ção de. Souza (2004, P· 61): "( ... ]
se está diante de um autêntico processo de desenvolvimento ~0:1oespac1al q~a.ndo se constata uma
33 Conforme disposto no parágrafo l o do artigo 9 1-B da Lei 71 66/96, incluído pela Lei 8137/00. me lhoria da qualidade de uida e um aumento da justiça social [e nfases do onginal].
266 · Letícia Maria Resende Epaminondas P LANEJAMENTO URBANO NO B MSIL: TRAJ~TÓRIA, AVANÇOS E r ERSrEcnVAS • 267

A criação da ADE pode ser analisada sob duas abordagens. Se por um lado, Referências
não foi possível identificar na atuação da ABB uma prática socioespacial realmente BELO HORIZONTE. Prefeitura. Decreto 54/35. Regulamentação de abertura de rua, lo-
transformadora, especialmente se considerados o seu perfil conservador (não em gradouros públicos e loteamentos. Belo Horizonte: PBH, 1935.
meu quintal), por outro lado, o processo de mudança dos parâmetros de regulação BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei 2662/76. Lei de Uso e Ocupação do Solo. Belo Hori-
urbanística do bairro pode ser considerado pelo seu significado para o planejamen- zonte: PBH, 1976.
to urbano praticado no município. A adequação dos parâmetros urbanísticos às BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei 4034/85. Lei de Uso e Ocupação do Solô. Belo Hori-
especificidades locais foi propiciada pela maior flexibilidade dos instrumentos de zonte: PBH, 1985a.
controle urbanístico instituídos pela Lei 7166/96. É, também, digno de nota o fato BELO HORIZONTE. Prefeitura. Decretos 5004/85, 5013/85, 5061/85. Belo Horizonte:
de os usuários do lugar serem incorporados ao planejamento não apenas e m sua PBH, 1985b.
fase de diagnóstico, mas também nas fases d e proposição/monitoramento. Isto BELD HORIZONTE. Prefeitura. Lei 4253/85. Lei ambiental. Belo Horizonte: PBH, 1985c.
pode ser visto como uma decorrência da d iscussão da Reforma Urbana e da pro- BELO HORIZONTE. Prefeitura. Decreto 6222/88. Belo Horizonte: PBH, 1988.
mulgaçao da Constituição Federal de 1988, como salienta Fernandes (1998 ): BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte. Belo Hori-
zonte: PBH, 1990.
Além de expressar um movimento geral de fortalecimento da democracia BELO HORIZONTE. Prefeitura. Levantamento Aerofotogramétrico do Município de Belo Ho-
representativa clássica, a Constituição de 1988 aceitou a possibilidade da rizonte. Vôo de agosto de 1989. Belo Horizonte: PBH/PRODABEL, 1992. Escala 1: 2.000.
participação direta ativa no plano local no processo de planejamento urba- BELO HORIZONTE. Prefeitura. Plano Diretor de Belo Horizonte: Lei de Uso e Ocupação
no. A sociedade organizada e as organizações não-governamentais po- do Solo - Estudos Básicos. Belo Horizonte: PBH, 1995.
dem agora formular leis sobre certas questões urbanas e submetê-las ao BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei 7165/96. Plano Diretor do Município de Belo Hori-
Legislativo local (p. 221). zonte. Belo Horizonte: PBH, 1996.
BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei 7166/96. Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do
Outra situação diz respeito à necessidade de remodelação da 2ª Etapa do Solo. Belo Horizonte: PBH, 1996a.
loteamento do bairro que implicou o d ecréscimo dos lotes comercializáveis e o BELO HORIZONTE. Prefeitura. Lei 8137/00. Belo Horizonte: PBH, 2000.
expressivo aumento das á reas verdes. Esta modificação foi acarretada p e la apli- BELO HORIZONTE. Prefeitura. Secretaria Municipal de Planejamento. Anuário estatístico
cação das leis de controle ambiental que representaram uma efetiva limitação à de Belo Horizonte 2003. Belo Horizonte: PBH, 2005. Disponível em: <www.pbh.gov.br>
atuação dos empreendedores imobiliários. Em que pese a atual tendência d e acesso em: 6 maio 2005.
instrumentalização da natureza pela reestruturação ecológica do mercado imo- BELO HORIZONTE. Prefeitura. Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Saneamento.
Processos de licenciamento e fiscalização ambiental. 01-059. 392/93-03, 01-035. 353/01-
biliário fazendo com que o meio ambiente seja incorporado como capital nas
39. Belo Horizonte: PBH, 2005a.
relações sociais de produção (Costa, 2006; Escobar, 1996), o fato é que as le-
BELO HORIZONTE. Prefeitura. Secretaria Municipal de Regulação Urbana. Processos de
gislações urba nísticas têm sua capacidade de atuar como reguladora das ações licenciamento e fiscalização de parcelamento do solo. 01-128. 245/88-05, 01-135. 204/03-
dos agentes modeladores potencializada pela aplicação em conjunto com as 65, 01-075. 984/90-10, 01-001. 064/93-61, 01-040. 979/96-00, 01-077. 683/90-95, 01-
legislações ambientais. Uma das possíveis explicações para este reforço é que 051. 321/97-03, 01-062. 436/98-45. Belo Horizonte: PBH, 2006. .
as normas de cunho ambiental, de preservação da natureza, vêm forte mente BELO HORIZONTE. Prefeitura. Secretaria Municipal de Regulação Urbana. Licenciamen-
atreladas a uma idéia de coletividade, que acaba por reforçar o princípio da tos de edificações e parcelamentos do solo. Dados brutos. Belo Horizonte: PBH, 2006a.
função social da propriedade. Não basta, contudo, a existência de leis urbanís- BOURD!EU, Pierre. Efeitos do lugar. ln: _ . A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1998.
ticas e a mbientais pensadas e propostas em conjunto, elas devem ser aplicadas p. 159-166.
de forma integrada. Deste modo, se a intenção é garantir o dese nvolvimento CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 530p.
socioespacial - e nã o há dúvidas quanto ao pote ncial do planejamento urbano COSTA, Heloisa S. M. The production of popular residential land deuelopments in Belo
neste sentido - não se pode ignorar a importância da gestão neste processo. Horizonte, Brazil. (Dissertação de mestrado) . Londres, 1983. 29lp.
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P LANEJAMENl"O URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS. 269
268 · Letícia Maria Resende Epaminondas

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PLAN EJMIENTO URBANO NO B RASii.: THA)ETÓ lllA, AVANÇOS E PEl\SPECTIVAS · 271

tico e institucional, a necessidade de uma reforma urbana permanece, mais do


Trajetória da formulação e que nunca, na pauta da questão urbana brasileira.
implantação da Política Habitacional Contribui para o agravamento dessa situação a insuficiência de políticas
públicas eficazes, pelo menos do ponto de vista da promoção da inclusão, na
de Belo Horizonte na gestão da área urbana e habitacional. As mazelas da questão habitacional urbana não
Frente BH popular (1993-1996) foram consideradas de forma consistente pelos modelos de planejamento urba-
no adotados até hoje, a não ser muito recentemente em a lgumas experiências
Mônica Cadaval Bedê
envolvendo o planejamento participativo. No campo da política habitacional as
diversas configurações que moldam a atuação estatal nessa área4 vêm tendo
como ponto comum o desempenho insatisfatório em relação ao atendimento
das demandas dos segmentos populacionais de mais baixa renda, que, histori-
O problema habitacional urbano no Brasil atinge hoje grandes proporções
camente, constituem a maior parte do déficit habitacional.
e está intimamente relacionado ao processo de degradação física e social das ci-
dades, cuja imagem denuncia cada vez mais explicitamente os resultados do seu Não é clara na Constituição Federal a competência em relação à política
modelo de crescimento: a ocupação descontínua, definida pela prática especula- habitacional, que fica diluída entre as esferas federal, estadual e municipal. Ao
tiva e a produção de espaços com padrões muito diferenciados e desiguais, resul- longo da década de 1990, face à omissão do governo federal, os municípios pas-
tado da lógica excludente que determina a dinâmica urbana. sam a direcionar esforços e recursos para enfrentar o desafio de atender as neces-
sidades habitacionais das famílias de mais baixa renda. Tal esforço é mais visível
Impossibilitadas de solucionar seu problema de moradia no âmbito do mer-
nas administrações municipais progressistas que se instalam a partir de 1989. Essas
cado imobiliário convencional, as famílias de mais baixa renda adotam inúmeras
administrações reuniram técnicos, militantes partidários e lideranças populares
estratégias que resultam na produção de assentamentos ha-bitacionais precários
comprometidos com a luta pela moradia, concentrando-se na tarefa de formular e
como as favelas, os loteamentos clandestinos, os cortiços, os acampamentos
executar políticas municipais de habitação, com base na bagagem adquirida em
oriundos de ocupações organizadas e, até mesmo, os domicílios improvisados no
discussões, mobilizações e algumas experiências da década de 1980.
espaço público das cidades brasileiras. Esses assentamentos, além de irregulares,
costumam concentrar problemas de insalubridade, de risco geológico-geotécnico Este texto trata de um caso emblemático nesse sentido, o da administração
e de dificuldade de acesso viário, funcionando como focos de geração de proces- municipal da Frente BH Popular em Belo Horizonte no período de 1993 a 1996,
sos de degradação ambiental e de violência que afetam não só seus moradores, formada por partidos de esquerda.5 A trajetória da política municipal de habitação
mas a população da cidade como um todo. 1 Outro tipo de necessidade habitacio- nessa gestão foi marcada, de um lado, por realizações no campo da formulação, do
nal é a que se expressa através da demanda pelo acesso a uma unidade habita- planejamento e da construção de modelos metodológicos e, de outro, por limita-
cional por parte de famílias coabitantes, com ônus excessivo em função de alu-
guel, que morem em domicílios improvisados ou cuja moradia apresenta tal nível
ções de recursos que comprometeram em parte os seus resultados quantitativos e
determinaram uma série de estratégias que buscavam contornar esse problema.6 ·'
de degradação que implique em substituição. 2 Para completar esse breve quadro
de uma das dimensões da situação de exclusão em que vive grande parte da
população urbana, ou seja, a dimensão das necessidades habitacionais, chama a
atenção o grande número de domicílios vagos no Brasil, quase equivalente ao
. déficit habitacional.3 Sendo assim, apesar dos avanços ocorridos no campo polí-
'

1
Segundo os dados do Censo Demográfico de 2000, são mais de 10 milhões no Brasil e quase 700 ~ Para citar .seus principais agentes: Institutos de Aposentadoria e Pensão, Fundação da Casa Popular,
mil ern Minas Gerais os domicílios que apresentam carência de infra-estrutura, uma das principais Banco Nacional da Habitação e, por último, a Caixa Econômica Federal.
5 A Frente BH Popular era composta pelos seguintes partidos: Partido dos Trabalhadores - PT, Partido
dimensões do problema (Fundação João Pinheiro, 2002).
2 Socialista Brasileiro - PSB, Partido Comunista do Brasil - PC do B, Partido Comunista Brasileiro-PCB
Essa demanda representa o déficit habitacional urbano que no Brasil, segundo a Fundação João
Pinheiro, é de mais de 5,4 milhões e em Minas Gerais de quase 550 mil unidades habitacionais. e o Partido Verde - PV (Ostos, 2004, p. 83).
3 São quilse 4,6 milhões na área urbana e em Minas Gerais quase 510 mil. 6
Ver Bedê (2005) para uma análise da trajetória da política habitacional em Belo Horizonte no período.
~
'1 i 272 • Mônica Cadaval Bedê l'u.NEIAMENl'O URllANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, /t.V/\NÇOS !! PERSPl!CilVAS • 273

lf Contexto nadonal: processos e ldilas que Influenciaram as poHUcas munici- A partir de meados da década de 1980 uma soma de fatores, principalmente a
{ pais de habitação no BrasD Implementadas p6s-Omstftulção de 1988 retração de investimentos do governo federal em políticas públicas, levou os municí-
pios, de maneira geral, a tomarem iniciativa para resolução de graves problemas so-
f ciais locais sem aguardar a parceria das outras esferas de governo (Nabuco, 1995).
O período de pouco mais de uma década, dos anos 1980 ao início da gestão
f da Frente BH Popular em Belo Horiwnte, foi marcado por um processo de descen- Este parece ter sido o caso da política habitacional que, efetivamente, passou por um
( tralização institucional e (re)democratização do país, que incluiu a aprovação de processo de descentralização e municipalização nesse período,9 gerando um rico e
uma nova Constituição Federal e foi acompanhado por intensá mobilização social diversificadó conjunto de experiências que constituiu uma importante referência para
(
protagonizada, em grande parte, pelos partidos de esquerda pelos movimentos e a construção de novos modelos e alternativas para a ação governamental na área da
f sociais urbanos, entre eles o movimento pela reforma urbana e o movimento por moradia, dificilmente vislumbrados em oulro contexto.

'
moradia. Paralelçmente, consolidou-se no âmbito do Estado brasileiro o projeto ne- Idéias e propostas defendidas por movimentos sociais, que vinham numa
oliberal, resultando na ratração do investimento do governo federal nas políticas pú- trajetória de mobilização crescente desde o final da década de 1970, também
f blicas sociais, entre elas a política habitacional, levando os municípios a assumir de influenciaram fortemente o contexto político-institucional nesse período.
{ forma isolada e desarticulada o enfrentamento do problema local de moradia. Os problemas urbanos que afetam a população das grandes cidades brasi-
{ Algumas dimensões desse contexto, discutidas a seguir, interferiram diratamen- leiras há muitas décadas inspira~m os debates em tomo da idéia da reforma
( te na construção da Política Municipal de Habitação de Belo Horiwnte analisada: o urbana desde os anos 1960. O movimento pela reforma urbana surgiu na década
processo de municipalização; a expressiva ampliação do número de administrações de 1970 em função de uma iniciativa da Igreja Católica, através da Comissão
( municipais progressistas, consolidando um novo modo de governar; a trajetória e as Pastoral da Terra, no sentido de unificar lutas urbanas que haviam surgido por
~ principais idéias do movimento pela reforma urbana e do movimento por moradia, todo o país. Visava basicamente estabelecer a prevalência da função social da
( nesse último com foco no chamado Movimento dos Sem Casa. propriedade e a gestão democrática da cidade, garantindo aos cidadãos o acesso
No Brasil dos anos 1960 e 1970 o governo militar caracteriwu-se pelo centra- à cidade de forma mais igualitária, principalmente por meio do acesso à moradia
{ digna em seu sentido amplo, que considera a habitação inserida no contexto ur-
lismo dos processos decisórios. A mobilização social contra o regime militar, que
{ cresceu ao longo da década de 1980, contrapôs ao centralismo a idéia da descentra- bano, servida por infra-estrutura, equipamentos e serviços urbanos.

( lização, ou municipalismo, acolhida pela Constituição Federal de 1988. No governo Na década seguinte, a crítica ao planejamento autoritário promovido pelo go-
Collor, que trouxe uma combinação entre populismo e neoliberalismo, o municipa- verno militar resultou na ênfase na participação social e na gestão, em detrimento da
( lismo se traduziu principalmente na ênfase às iniciativas econômicas locais e na elaboração de planos e políticas urbanas nacionais e globais (Cardoso, 1997). Nessa
( prática da disputa intermunicipal por investimentos industriais. Paralelamente, linha se estruturou uma Emenda Fbpular apresentada pelo movimento pela reforma
aconteceu outro processo no cenário político-institucional brasileiro, representado urbana à Assembléia Nacional Constituinte, que propunha: o estabelecimento de
( pela proliferação de administrações públicas municipais de caráter democrático e instrumentos para fortalecer a regulação do uso do solo pelo poder público, a adoção
( popular, instaladas principalmente a partir de 1989, a maioria tendo à frente o Parti- de uma política redistributiva de inversão de prioridades relativas a investimento pú-
( do dos Trabalhadores. 7 Já no início da década de 1990 os traços centrais do que à blico, e a criação de mecanismos de participação social nos processos de elaboração
época foi denominado na literatura política "modo petista de governar" estavam e implementação de leis e políticas urbanas (Cardoso, 1997).
f consolidados, entre os quais a promoção da participação popular8 como forma de No final do processo, a nova Constituição incluiu um capitulo dedicado à
( permitir o controle do Estado pela sociedade no espaço local. política urbana, incorporando algumas das propostas defendidas pelo movi.'llento
<{ pela reforma urbana. Apesar dessa significativa conquista diante da omissão das
Constituições anteriores no que diz respeito à questão urbana, os avanços foram

'
-t
(
7 Para se ter uma Idéia do peso dessas administrações no cenário po!fttco e Institucional do pais,

somando-se apenas a população das cidades governadas pelo Partido dos Trabalhadores· PT na
gestão de 1989 a 1992 chega-se a de cerca de 15 milhões de habitantes (Bittar, 1992, p. 9), ou seja,
aproximadamente 10% da população brasileira na ~.
considerados tímidos. Em seguida, o movimento pela reforma urbana voltou-se
para a participação social nos processos de elaboração das constituições estadu-

9 Pesquisa realizada pelo IPPUR/UFRJ (1997) avaliou a atuação da administração municipal nas 50
~ 8 Processos de discussão pública do orçamento municipal e de constituições estaduais, leis cngân!cas muni·
dpals e planos diretores, bem como experiências de implementação de conselhos e conferências Ugados a maiores cidades brasileiras no âmbito da poUHca habltadonal na primeira metade da década de 1980
e considerou significativas a abrangência e a diversidade de ações das poUlieas Implementadas.
~: po!lt!cas setoriais constituem exemplos de lnicialivas de práticas demoaáticas surgidas nesse contexto.
274 · Mónica Cadaval Bedê PLANE)MtENTO URBANO NO B RASIL: TRA)~,ÓKIA, l.V/.NÇOS E l'ERSl'EcnV/.S. 275

ais, das leis orgânicas municipais e dos planos diretores, de forma a ampliar as defender e formular propostas de caráter mais geral , como a estruturação de
conquistas até então realizadas, e na regulamentação do Capítulo da Política um sistema institucional para a habitação de interesse social, como por exem-
Urbana da Constituição Federal, através de lei que seria promulgada em 2001, plo, a produção habitacional autogestionária com utilização do mutlráo. 13 Gra-
conhecida como Estatuto da Cidade.10 dativamente, ao longo desse período, o movimento conseguiu abrir espaços
A partir do processo de elaboração da Emenda Popular, segundo avalia Marica- importantes de negociação junto às esferas do poder público e interferir, dessa
to (1997), a trajetória do movimento pela reforma urbana tenderia a se distanciar das forma, nos rumos da política habitacional no país.
mobilizações de massa. A autora cita como exemplo o fato de um dos mais importantes A proposta de mutirões autogestionários corno alternativa para a produção
acontecimentos na luta pela moradia não ter tido ligação direta com o movimento pela de moradias no âmbito da política habitacional é inspirada numa prática implemen-
reforma urbana, ou seja, o encaminhamento ao Congresso Nacional, em 1991, do tada com sucesso no Uruguai desde a década de 1960, 14 ou seja, o financiamento
projeto de iniciativa popular para criação do sistema nacional de habitação proposto estatal para a produção habitacional concedido diretamente a associações ou coope-
pelo movimento por moradia,11 com mais de 800 mil assinaturas. rativas que representam os futuros moradores. A proposta brasileira fundamenta-se
A modalidade do movimento por moradia responsável pela mobilização principalmente na idéia de que o processo de gerenciamento coletivo do empreendi-
que resultou no projeto de iniciativa popular é a que vem tendo a atuação mais mento habitacional gera um saldo organizativo que estimula as famílias a se envolve-
significatva em termos de abrangência e visibilidade em todo o país desde a rem na luta mais geral por melhores condições de vida mesmo após a finalização do
década de 1980, sendo chamada de Movimento dos Sem Casa, em Belo Hori- processo de produção habitacional, como constatado no caso uruguaio. Entretanto,
zonte, como também de movimento dos sem teto ou de ocupações, em outros também corno no Uruguai, a proposta agrega ao sistema de autogestão a prática do
locais. Constitui-se basicamente de famílias de baixa renda que moram de aluguel, mutirão, como forma de ampliar a redução dos custos dos empreendimentos e de
em imóveis cedidos temporariamente por parentes e amigos ou, ainda, em sistema reforçar o espírito de cooperação necessário à gestão coletiva. O sistema de autoges-
de coabitação, dividindo o mesmo domicílio com outra família. Foi gestado nos tão e a prática do mutirão passam a ser encarados de forma tão vinculada entre si,
anos 1970 - no bojo das Comunidades Eclesiais de Base, do movimento contra a em função dessa proposta do movimento por moradia, que os dois termos, autoges-
carestia, das militâncias sindicais e das mobilizações por indenizações justas, no tão e mutirão, chegam eventualmente a ser tratados como sinônimos. Entretanto,
caso de populações removidas - e eclodiu no início dos anos 1980, nos movi- nem toda experiência que envolve mutirão tem caráter autogestionário, como já
mentos de ocupação e nas lutas urbanas por infra-estrutura e serviços básicos, foi exemplificado anteriormente, e vice-versa, nem todo processo de produção
reivindiCãndo, em ambos os casos, o direito à cidade (Lopes, 2004).12 de moradia em autogestão envolve necessariamente a prática de mutirão.
Ao longo das décadas de 1980 e 1990 o Movimento dos Sem Casa atuou As primeiras experiências brasileiras de mutirões aulogeridos, inspirados na
através de ocupações organizadas, passeatas, caravanas e outros tipos de mani- experiência uruguaia, acontecem na cidade de São Paulo ainda no início dos anos
festações de massa. A partir desse processo de mobilização e da assessoria de 1980 estendendo-se a cidades do interior do estado ao longo dessa década. Em
técnicos comprometidos com sua luta, setores desse movimento passaram a 1988, no bojo da mobilização em tomo da Assembléia Nacional Constituinte, ini-

13
A prática de nominada mutirão, numa alusão ao termo utilizado para mobilizações coletivas entre
'º_De maneir~ g~r~I, Leis Orgânicas e Planos Diretores aprovados no período imediato após a aprova- trabalhadores rurais por ocasião de roçada, colheita ele., significa, no sentido aqui adotado, segundo
çao da Constitu1çao Federal em 1988 incorporaram as propostas do movimento pela reforma urbana o Dicionórlo Houaiss: "serviço sem ônus prestado por membros de uma comunidade, geralmente
con_i destaque para a proposição de instrumentos que asseguram a democra tização do acesso à mo'. visando à construção ou ao melhoramento de imóvel".
radia, a regularização fundiária e a urbanização específica para as áreas ocupadas por população de 1
• A experiê ncia uruguaia inovou em relação aos projetos de mutirão tradicionais. Desde 1968 no
baixa renda (Ribeiro; Cardoso, 1999). Uruguai vigora a Ley Nacional de Vivie ndas, que criou uma política em que o governo central finan-
Ente~de-s~ por movim.en.to por moradia qualquer modalidade de movimento popular urbano que
11
cia e mpreendimentos habitacionais gerenciados pelas famílias beneficiárias, geralmente pertencentes
~e ded1qu<z_il luta pelo ~1re1to de moradia, quer seja no sentido da reversão de a lguma situação de à base de algum sindicato, e re prese ntadas por cooperativas. O governo local doa o terreno, o go-
madeq~açao de moradia, como, por exemplo, no caso dos movimentos de favelas ou de cortiços, ou verno central repassa os recursos financeiros à cooperativa e as famílias entram com a mão de obra
no sentido cio assentamento em nova moradia, como no caso do Movimento dos Sem Casa ou do mutirante e o gerenciamento do e mpreendimento, em siste ma de autogestão, contratando inclusive
movimento de população de rua. Certamente pode haver outras moda lidades, tantas quantas são as os serviços de assessoria técnica. Em vigor há quase quarenta anos, a política tem e nfrentando difi-
dimensões que constituem a luta pelo direito à moradia, mas, apesar das especificidades, as origens culdades inerentes a contextos políticos diferenciados, inclusive uma ditadura militar. Apesar disso,
e os objetivos se entrelaçam. em geral, é muito bem avaliada pelo significativo número de e mpreendimentos fina nciados, pela
12
Nesse wntexlo é criada, em 1980, a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais qualidade construtiva e arquitetônica dos conjuntos reside nciais produzidos e pelo saldo organizativo
- ANAMPOS, que abrigaria a Pró-C~ntral dos Movimentos Populares e a Pró Central Única dos Tra-
balhadores, antecessora da Central Unica dos Trabalhadores - CUT (Lopes, 2004).
gerado não só no âmbito de cada cooperativa como no processo de articulação e ntre elas, resultando
numa federação que vem cumprindo pa pel importante no cenário político do país.
1
276 · Mónica Cadaval Bedê PLANE)•\MENTO URllANO NO BRASIL: mAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPEcnw.s . 277

eia-se uma articulação nacional da luta pela moradia cujo principal eixo con"siste na colhidas em vários estados brasileiros. O conteúdo desse projeto de lei, entretanto,
organização de caravanas a Brasília, estabelecendo, a partir de então, um canal é mais amplo e propõe a instituição de um sistema nacional de habitação voltado
direto de negociação entre o movimento e o poder público federal. Entre as idéias para o atendimento da população de baixa renda, incluindo, além do fundo, um
mais defendidas pelo movimento por moradia está a criação de uma política e de conselho e agentes operadores e promotores. Contemplando a preocupação do
um sistema nacional de habitação, bem como a implantação de programas gover- movimento por moradia em se criar uma política de subsídios que viabilizasse o
namentais que adotem a autogestão e o mutirão. Em 1989 quando o Partido dos acesso de famílias de baixa renda ao financiamento habitacional, o projeto de lei
Trabalhadores - PT ganha a eleição para a Prefeitura de São Paulo, cria um pro- prevê, além de outros recursos de fontes complementares, a destinação de recursos
grama de grande envergadura com o objetivo de financiar empreendimentos em onerosos, como os do FGTS, e o aporte de recursos não onerosos, como os do
autogestão com recursos municipais. Esse programa, o FUNAPS Comunitário, is Orçamento Geral da União, para compor o FNMP (Tijiwa, 1992).
teve bom deser:ipenho e contribuiu positivamente para a difusão e aceitação da Tais processos e idéias interferiram diretamente na construção da Política Muni-
prática autogestionária no país. Já em Minas Gerais a primeira experiência de pro- cipal de Habitação de Belo Horizonte na gestão da Frente BH Popular aqui analisada.
dução habitacional com mutirão e em autogestão aconteceu em lpatinga, de 1989
a 1992, na primeira gestão do Prefeito Chico Ferramenta,16 tendo continuidade Contexto local: atuação do poder público municipal em Belo Horizonte na
nas gestões seguintes. A proposta do movimento de formulação de um programa área da habitação de interesse social até início da década de 1990
federal na linha da produção hábitacional com mutirão e em autogestão foi con- As favelas são partes integrantes de Belo Horizonte desde a época de sua
templada em parte com a criação do PROHAP Comunidade, um programa ope- fundação, em 1897, quando abrigaram principalmente famílias de operários e
rado pela CAIXA que, embora se restrinja a poucos empreendimentos, representa antigos moradores, para os quais não havia sido previsto lugar de moradia no
um marco nessa trajetória (Tijiwa, 1992). processo de planejamento da nova capital. A postura do poder público municipal
Esse processo de mobilização e discussão envolve entidades de atuação se restringiu desde então a tentativas de erradicação, prática que se consolida a
nacional, geralmente relacionadas com o Partido dos Trabalhadores ou com o partir de 1930, fundamentada no discurso da necessidade de obras viárias e de
Partido Comunista do Brasil, com trajetórias independentes entre si, mas man- saneamento de interesse da coletividade. Na década de 1950, num contexto polí-
tendo pontos importantes de convergência. 17 Uma presença importante nessa tico mais favorável, o mo~imento de favelas se organiza com o apoio da Igreja Cató-
trajetória é a Igreja Ca tólica, 18 cujo envolvimento vinha se dando desde a década lica e é criado o Departamento Municipal de Habitação e Bairros Populares, com o
de 1980, pela atuação de padres que trabalhavam diretamente nos processos de objetivo de construir moradias para o reassentamento das famílias moradoras de fa-
mobilização social, mas é em 1992 , com o lema "Onde Moras?" da Campanha velas. O movimento de favelas se intensifica no início da década de 1960, mas é
da Fraternidade, que a Igreja Católica apóia essa luta popular urbana. Assim pelo abafado pelo golpe militar. Durante o período da ditadura, a política de erradicação
menos os setores mais progressistas da Igreja explicitam seu posicionamento ao de favelas é retomada de forma radical, implicando na criação, em 1971, de um ór-
lado dos menos favorecidos na luta por melhores condições de moradia, contra- gão municipal dedicado à realização desse tipo de operação, a Coordenação de
pondo-se à concentração da propriedade rural e urbana. Habitação de Interesse Social - CHISBEL. O sistema utilizado pela CHISBEL era o
da indenização da benfeitoria, cujo valor usualmente só era suficiente para ad-
A partir dessa articulação institui-se o Comitê Nacional Pró Fundo Nacional quirir uma moradia em outra favela (Jacinto, 2004) . No final da década de 1970,
de Moradia Popular, que resulta no primeiro projeto de lei de iniciativa popular do o movimento de favelas se rearticula e o poder público começa a incorporar al-
país propondo a criação do Fundo Nacional de Moradia Popular - FNMP, 19 enca- gumas de suas reivindicações em políticas e programas. Em Minas Gerais, o pre-
minhado ao Congresso em novembro de 1991 com cerca de 830 mil assinaturas cursor dessa nova postura governamental foi o Programa de Desenvolvimento
Comunitário - PRODECOM, programa estadual que atuou de 1979 a 1983, im-
15
Fundo de Atendimento à População Moradora em Habitação Subnormal.
plementando ações numa linha de consolidação urbanística dos assentamentos
16 Quatro gestões consecutivas do Partido dos Trabalhadores - PT no município de lpatinga garanti- favelados a partir de um processo de planejamento participativo envolvendo,
ram continuidade aos projetos habitacionais nesse formato. como interlocutores, as lideranças de favelas (Carvalho, 1997).
17 As principais entidades eram a União Nacional dos Movimentos por Moradia - União, o Movimento

Nacional de Luta pela Moradia - MNLM, a Pró-Central de Movimentos Populares e a Confederação As intervenções do poder público estadual nas favelas de Belo Horizonte
Nacional das Associações de Moradores - CONAM. foram sendo gradativamente substituídas, durante a década de 1980, por pro-
18
Em Belo Horizonte percebe-se claramente a participação de elementos da Igreja Católica junto ao Mo-
vimento dos Sem Casa, atuando no apoio a lideranças ou, em alguns casos, exercendo a liderança. gramas municipais. Este foi o caso do Programa Municipal de Regularização de
19
Projeto de Lei nº 2 .710/92.
278 · Mõnica Cadaval Bedê
1.
Pl.hNEJAMENTO URBANO NO. BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSPECTIVAS • ZJ9
,
J

l
Favelas- PROFAVELA, pioneiro no Brasil, criado em 1983 através de lei muni-
clpal.20 Em 1985, a Lei de Ocupação e Uso do Solo Incorporaria as favelas no
de favelas, constituído por associações de moradores desses assentamentos, vinha
de uma trajetória de lutas no campo Institucional cujo ápice foi a aprovação da
...
lei do PROFAVELA, em 1983. Na época da eleição da Frente BH Popular o
)
zoneamento da cidade, como Setor Especial 4, para o qual foram definidos
parâmetros e critérios específicos visando a regularização urbanística desse tipo movimento de favelas passava por um processo de desmobilização - provo- l
de assentamento. A implementação do PROFAVELA ficou a cargo da Compa-
nhia Urbanizadora de Belo Horizonte - URBEL. Até o início da década de 1990
o trabalho realizado no âmbito desse programa se caracterizou pela ênfase na
regularização de favelas assentadas sobre áreas públicas municipais. Esse processo
cado, em grande parte, pela incorporação de suas principais lideranças aos
quadros da administração municipal - e tinha como sua reivindicação mais
importante junto ao poder público a agilização da implementação do PROFA-
VELA. O Movimento dos Sem Casa, por sua vez, vivia um momento de grande
,
)

}
era realizado normalmente de forma desvinculada do processo de urbanização da mobilização e de relativa autonomia em relação ao poder público, centrando
favela, feito por meio de obras pontuais, em moldes que não consideraram a ex- sua ação na organização de ocupações de terras vazias como forma de forçar l
periência do PRODECOM como referência. a interlocução com a administração municipal, que havia demonstrado uma )
postura extremamente refratária na gestão anterior. A maioria das lideranças )
No que diz respeito a intervenções de produção habitacional por parte do
de ambos os movimentos se envolveu na campanha da Frente BH Popular e
poder público estadual e municipal as experiências são poucas. Aproximadamen- )
depositava muitas expectativas na nova administração.
te no mesmo período do PRODECOM, o governo do estado criou um programa
de produção de moradias, o PROCASA, voltado para o reassentamento de famí- Em Belo Horizonte, pode-se dizer que o Movimento dos Sem Casa ao }
lias desabrigadas em função das chuvas de 1979, que provocaram inundações longo da década de 1980 e inicio da década de 1990 se dividia principalmente )
sem precedentes por todo do estado. Os municípios forneciam o terreno e as entre setores sob a influência conjunta da Igreja Católica e do Partido dos Traba-
lhadores, que privilegiavam o investimento em parcerias institucionais, e do Par-
)
obras eram executadas por empresas sob a supervisão dos técnicos a serviço do
governo estadual. Especificamente em Belo Horizonte o PRQCASA realizou, em tido Comunista do Brasil, que adotava grandes mobilizações e ocupações de )
caráter emergencial, o reassentamento de famOias vitimadas pela enchente do terra como principais estratégias de luta. A vinculação desse movimento local
)
Ribeirão Arrudas. Ainda na década de 1980 foi criado outro programa estadual com o processo de construção de idéias e propostas em curso naquele momento
de produção habitacional denominado Pró-Habitação, cuja atuação se deu prin- no nível nacional deu-se principalmente por ocasião do processo de elaboração }
cipalmente no interior do estado. da nova Constituição e, um pouco mais tarde, na mobilização para a coleta de )
assinaturas do projeto de lei de iniciativa popular para a criação do sistema na-
Ao longo da década de 1980 a atuação das administrações municipais
cional de habitação. 21 )
em Belo Horizonte alternou-se entre dois tipos de postura. O primeiro, de caráter
populista, caracterizou-se pela produção de grandes assentamentos habitacionais No que diz respeito à proposta da produção habitacional em autogestão, a apro- )
em áreas públicas localizadas na periferia da cidade, dotados de infra-estrutura in- priação da idéia pelo movimento local ainda era muito tênue na época. Esse processo )
completa e totalmente irregulares. A distribuição de lotes nesses "conjuntos habi- em Belo Horizonte se deu posteriormente, principalmente através da iniciativa da ad-
ministração da Frente BH Popular e da articulação dos setores sob influência do Partido
..)
tacionais" se deu de forma clientelista e sua ocupação resultou num processo
de "favelização" gradativa. O segundo tipo de postura era de omissão total, dos Trabalhadores e da Igreja Católica com os movimentos de São Paulo e de lpatinga, )
fundamentada no discurso segundo o qual a atuação do poder público na pro- onde já havia experiências desse tipo em implantação (Bedê, 2005). )
dução habitacional de interesse social poderia resultar na indesejável atração O Partido dos Trabalhadores havia despontado como partido de oposição )
de população do interior do estado. de bases políticas populares em Belo Horizonte nas eleições municipais de 1988,
Os movimentos populares ligados à questão da moradia que atuam em quando elegeu a maior bancada partidária da Câmara de Vereadores e ficou em )'
Belo Horizonte podem ser divididos em duas categorias que, com trajetórias dife- segundo lugar na disputa da Prefeitura, perdendo por uma diferença de cerca de )
rentes, mantêm semelhanças e convergências no que diz respeito às suas bases e apenas 2% em relação ao vencedor (Dulci, 1996). Em 1992, Patrus Ananias, do
}
propostas: o movimento de favelas, surgido anteriormente ao período da ditadura
militar, e o Movimento dos Sem Casa, surgido na década de 1980. O movimento 21Nesse t11timo episódio, por incentivo do então Deputado Federal do PT Nilmário Miranda, criou-se
}

Lei nº 3532, de 06 de. Janeiro de 1983, que autoriza o Executivo Municipal a criar o Programa
20
um comitê para coordenar a mobilização para discussão da proposta e coleta de assinaturas, resultan-
do na criação do Fórum Estadual de Moradia Popular - FEMP. Aglutinaram-se em tomo da c.oleta de
assinaturas todas as forças que atuavam politicamente na área e a campanha mineira foi responsável
»
)
Municipal do? Regularização de Favelas - PROFAVEU\. pelo melhor desempenho regional na coleta de assinaturas em todo o país.
j
"\
280 · Mônica Cadaval Bedê PW\N EJAMF.NTO UROANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECllVAS . 281

Partido dos Trabalhadores, foi eleito prefeito de Belo Horizonte pela Frente BH importante destacar que o fato de o movimento ter sido o único' segmento da
Popular após intensa mobilização política. A conjuntura política do Brasil de 1992 sociedade civil a ser envolvido num primeiro momento nesse processo de formu-
favoreceu esse processo em função, dentre outros fatores, do impeachment do lação sinaliza, claramente, uma opção da equipe de governo na URBEL no
Presidente Collor de Mello. Na verdade, esse ambiente político de mobilização sentido de considerá-lo como o principal parceiro político. Da mesma forma,
social vinha acontecendo num processo contínuo desde a época da discussão merece destaque por sua relevância a participação de técnicos consultores com-
das emendas à Constituição Federal de 1988, passando em 1990 pela discus- prometidos com as idéias do programa de governo, tendo, inclusive, em alguns
são da Lei Orgânica do Município, que fez da Câf!lara Municipal de Belo Hori- casos, contribuído para sua elaboração como militantes ou participado de outros
zonte - então composta por uma expressiva bancada de partidos de esquerda governos locais de caráter democrático e popular.
- o espaço central do debate sobre a questão urbana na época, e desaguando A idéia de criação de um sistema institucional de gestão da política habita-
na campanha para eleições municipais em 1992. cional no Município foi inspirada na proposta do sistema nacional de habitação,
Esses foram, de forma geral no campo político-institucional, os principais objeto do já mencionado projeto de lei de iniciativa popular encaminhado ao
antecedentes locais da Política Municipal de Habitação em Belo Horizonte na Congresso pelo movimento por moradia em 1991. Após um processo muito rico
gestão da Frente BH Popular, que se pautou pela transição entre práticas conso- de discussão em que, inclusive, ficaram claras algumas divergências no âmbito
lidadas e experiências inovadoras. da equipe interna da Prefeitura em relação ao assunto,24 o sistema municipal de
habitação ficou assim configurado: o Fundo Municipal de Habitação Popular, que
existia desde 1955 e havia recebido nova regulamentação em 1993,25 reunia to-
Configuração do sistema institucional responsável pela gestão dos os recursos destinados a financiar a implementação de programas, projetos e
da política habitacional no governo da Frente BH Popular ações da Política Municipal de Habitação para população de renda familiar men-
sal de até cinco salários-mínimos; a URBEL, que já existia desde 1983, atuava
A composição dos cargos do governo municipal teve que incorporar repre- como órgão propositor e executor da Política Municipal de Habitação e gestor do
sentantes de todos os partidos que compunham a Frente BH Popular, o que na Fundo Municipal de Habitação Popular; o Conselho Municipal de Habitação,
prática significou alguns ajustes em relação ao originalmente previsto no progra- criado por meio da aprovação de projeto de lei de iniciativa do Executivo em
ma de governo - inspirado basicamente na cartilha petista - no âmbito de cada 1994,26 exercia a curadoria do Fundo Municipal de Habitação Popular e atuava
u.m a das políticas setoriais, em função do grupo partidário que estava no coman- como instância participativa de caráter deliberativo no que diz respeito a ques-
do. No caso da política habitacional, representante do Partido Comunista do tões afetas à Política Municipal de Habitação.
Brasil assumiu a presidência do órgão definido como responsável por sua gestão,
a URBEL, embora numa composição em que a equipe dirigente era integrada
também por técnicos ligados ao Partido dos Trabalhadores. Essa equipe multi- Concepção geral da Política Municipal de Habitação
partidária era quase totalmente constituída de militantes dos movimentos so-
ciais, a começar por sua Presidente, uma reconhecida liderança do movimento A proposta da Política Municipal de Habitação foi inicialmente discutida no
popular. 22 Entretanto, ainda que a origem comum implicasse em convergências âmbito dos fóruns de interlocução com as entidades gerais do movimento, o
importantes, várias negociações foram necessárias ao longo do governo a res- Movimento dos Sem Casa e o de favelas, instituídos pela URBEL, tendo sido
peito de diversos aspectos da política habitacional. posteriormente encaminhada ao Conselho Municipal de Habitação sendo por ele
Ainda em 1993 foi deflagrado um processo de discussão sobre a criação de
um sistema municipal de habitação, que envolveu a equipe da URBEL, consulto- reunia os mk leos do Movime nto dos Sem Casa.
res contratados e representantes do movimento popular de luta pela moradia. 23 É 2• Essas divergências aconteceram, principalmente, pela discordância de membros do governo em
relação à proposta feita originalmente para o conselho, cuja composição era constituída majoritaria-
mente pela representação da sociedade civil. Em função disso, a lei aprovada ficou reduzida à criação
22 A Presidente da URBEL, Dalva Stela Rodrigues de Medeiros, era dirigente da Federação das Asso- do Conselho, que teve a composição modificada, e a intenção inicial de formalizar o sistema m~nl­
ciações de Moradores de Belo Horizonte. cipal de habitação acabou não acontecendo. Entretanto, esse conjunto de elementos que formarm e
23 A participação do movimento por moradia nesse primeiro momento se deu principalmente através sistema - Conselho, Fundo e URBEL - na prática funcionou efetivamente como tal.
de três instâncias: o Fórum ·de Entidades Gerais, que reunia representantes das entidades de caráter 25 O Fundo Municipal de Habitação Popular foi criado pela Lei nº 517/55 e recebeu nova regulamen-

municipal ou estadual que aglutinavam entidades do movimento de favelas e dos sem casa; o Fórum tação pela Lei nº 6.326/93 .
de Vilas e Favelas que reunia as associações de moradores de favelas; o Fórum dos Sem Casa, que 26 O Conselho Municipal de Habitação foi criado pela Lei nº 6.508/94.
282 · Mônica Cadaval Bedê E'u.NEJAMEm"O URBANO NO BRASIL: TIV\JF.TÓRIA, AVANÇOS E Pl!RSPl!Cl'IVAS º 283
,'
aprovada em 1994. De forma pioneira em Belo Horizonte, e talvez no Brasil,
foram definidos conceitos, princípios, diretrizes, prioridades, critérios, linhas de
atuação e insbumentos de uma política habitacional local (ver Quadro 1),27 estru-
assentamento ao universo da política habitacional implementada pela URBEL
deve-se, em grande parte, à pressão exercida pelas lideranças comunitárias sobre
o novo governo, pois atá então somente as favelas eram atendidas pelo órgão.
'J
)

turada de forma articulada, com caráter abrangente, instituída no âmbito de um Os principais traços da estratégia proposta nessa linha de atuação revelam l
sistema institucional de gestão bem definido. a preocupação em mudar uma cultura histórica existente em Belo Horizonte, ou
O primeiro conceito importante apresentado na Política Municipal de Ha- seja, a de intervenções pontuais e desarticuladas nas favelas. Adotado por ges-
l
bitação é justamente o de habitação: "[ ... ] entende-se como habitação a moradia tões municipais anteriores, esse modo de atuar observava critérios inspirados na )
inserida no contexto urbano, provida de infra-estrutura básica, serviços urbanos relação clientelista estabelecida com lideranças comunitárias, resultando numa }
e equipamentos comunitários básicos" (Conselho Municipal de Habitação, 1994). prática irresponsável do ponto de vista do investimento público e ineficaz em re-
)
Nele, o direito à moradia fica vinculado ao direito à cidade, com os benefícios lação à melhoria efetiva das condições de moradia dos assentamentos (Bedê,
que ela pode oferecer e as funções sociais que ela deve cumprir, estabelecendo 2005). Nesse sentido, a proposta do planejamento integrado e participativo das )
uma clara vinculação da Política Municipal de Habitação com o ideário da re- intervenções em assentamentos existentes, implementada anteriormente através )
forma urbana. Quanto às diretrizes, segundo uma publicação da própria UR- do trabalho do PRODECOM, foi resgatada e aperfeiçoada.
BEL: "Todas as diretrizes que compõem esta polftica têm como pano de fundo
)
Outro aspecto contemplado na estratégia proposta para a linha de atuação
a reforma urbana, que introduz os conceitos de moradia digna e direito à cida- em assentamentos existentes é o da graduação de níveis de profundidade de in- )
de" (URBELJPBH, 1996a, p. 8). tervenção, incluindo programas que promovem intervenções de caráter estrutu- )
As ações previstas no âmbito da Política Municipal de Habitação foram ral, que investem na reversão definitiva dos fatores de inadequação existentes
:enquadradas, em sua maioria, em duas grandes linhas de atuação diretamente nesses assentamentos transformando-os em bairros urbanizados e regularizados,
)
relacionadas aos dois principais tipos de problemas de mortl.dia: uma linha de e, paralelamente, intervenções de caráter emergencial, que visam ao atendimen- )
atuação voltada para intervenções em assentamentos habitacionais existentes, to de problemas críticos que exigem resolução imediata, tais como situações de }
objetivando a melhoria das condições de moradia de famílias que apresentam neces- risco iminente e demandas de manutenção. O objetivo dessa estratégia é garantir,
sidades habitacionais decorrentes da inadequação de domio1ios, como por exemplo, num contexto de extrema limitação de recursos, maior flexibilidade e abrangên- )
as que residem em favelas; outra linha de atuação voltada para a produção de novos cia de atuação. Nesse aspecto observa-se claramente, pela similaridade, uma )
assentamentos habitacionais, objetivando ampliar a oferta de moradia especialmente forte influência da experiência com favelas implementada na primeira gestão
para a população de mais baixa renda, que constitui a maior parte do déficit habita- pelista de Santo André, em São Paulo, onde haviam trabalhado técnicos que )
cional. Essa concepção mais abrangente de política habitacional resulta da compre- participavam da gestão da Frente BH Popular. )
ensão de que a complexidade do problema da moradia implica na necessidade de
intervir simultaneamente sobre várias das dimensões que o constituem.
As diretrizes propostas para a linha de atuação referente a novos assenta- J
mentos procuram romper com a prática excludente adotada por gestões munici-
)
O universo de intervenção da linha de atuação referente aos assentamentos pais anteriores que causou impactos de alta magnitude e deixou marcas profundas
existentes Incluiu, num primeiro momento, basicamente dois tipos de assentamen- na cidade, caracterizadas pela produção de grandes loteamentos e conjuntos habi- )
tos habitacionais urbanos: as favelas e os conjuntos habitacionais implantados tacionais irregulares, localizados em áreas não urbanizadas da periferia do Municí- )
pelo poder público, irregulares e com urbanização incompleta, em alguns casos pio, dotados de infra-estrutura incompleta e sem acesso a serviços e equipamentos.
degradados a ponto de parecerem favelas. 28 A incorporação desse último tipo de Por outro lado, a malha de programas e subprogramas proposta, estabelecida em
)
função das etapas do processo de produção habitacional, aliada às opções de for- )
'l1A análise da Política Municipal de Habitação·aprovada pelo Conselho Municipal de Habitação
mas de gestão, permite inúmeros arranjos de tipos de empreendimentos no âmbito )
toma como referancia a própria Resolução nº li, sintetizada nesse quadro, uma vez que seu texto é o dessa linha de atuação e proporciona uma flexibilidade de atendimento desejável,
resultado desse processo Inicial de concepção. dada a diversidade de situações e de demandas habitacionais existentes. Por últi- j

,
28 Não havia informações precisas sobre a existência de cortiços na área central da cidade, mas sabia·
se que niio havia um número significativo que justificasse a aiação de um programa especifico de in-
mo, é importante destacar que a Poütica Municipal de Habitação estabelece que j
tervenção. Por sua vez, os loteamentos irregulares privados vinham sendo há anos objeto de ações de deve ser estimulada a autogestão no processo de produção dos programas habita-
regularização pela então .Secretaria Municipal de Atividades Urbanas, o que, no mínimo, dificultava cionais, acolhendo dessa forma a proposta defendida pelo movimento nacional
a translerência dessa ahibuição para a URBEL, tanto pela questão política interna da administração
como pela precariedade operacional da empresa. por moradia desde o início da década de 1980. )
I
~
~
f' 284 • Mónica Cadaval Bedê PLAN!!JAMENTO URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS B PERSPEcnYAS • 285

@
Somente um programa foi proposto fora das duas linhas de atuação, ou propostas originalmente na resolução do Conselho que criou a Política Municipal
~ seja, o que visa o apoio e assessoramento técnico a iniciativas populares, aten- de Habitação, mas, sem dúvida, se referenciou nela desde o início, adotando a
f dendo tanto demandas referentes a assentamentos existentes quanto a novos lógica de sua formulação. Da mesma forma, o conjunto de diretrizes e ações
apresentado cobria potencialmente desde então, por sua consistência, as nuan-
f 1
assentamentos. Sua inclusão na grade de programas revela a intenção de fortale-
ces de atuação desejáveis. Durante a gestão da Frente BH Popular, os instrumen-
cer e incentivar a autonomia do movimento popular. 29
( tos previstos na concepção geral da Política Municipal de Habitação foram sendo
Foram estabelecidas nesse primeiro momento, através da Resolução no II
4: . do Conselho Municipal de Habitação, orientações gerais para uma política de
detalhados e implementados, de acordo com as orientações gerais aprovadas
pelo Conselho Municipal de Habitação.
f • concessão de financiamentos e de subsídios, ficando seu detalhamento para ser
aprovado posteriormente pelo Conselho Municipal de Habitação. Foram criadas Os recursos públicos municipais investidos na área de habitação amplia-
{ ram-se significativamente em relação às administrações anteriores, como pode
linhas de financiamento regidas por critérios sociais, com concessão de subsídios,
( para os programas a serem implementados com recursos do Fundo Municipal de ser observado na Tabela 1, e passaram a ser destinados a cada ano, de forma
Habitação Popular. sistemática, aos empreendimentos de intervenção em favelas e de produção de
í novas moradias, de acordo com as definições do Orçamento Participativo Regio-
( Além do que fazer, definido através das linhas de atuação e seus progra-
nal e do Orçamento Participativo da Habitação, este último criado especialmente
mas, e a quem atender, definido através dos critérios de atendimento, a Política
t( para atender o Movimento dos Sem Casa. A destinação sistemática de recursos
Municipal de Habitação estabelece com clareza como fazer ao indicar as diretrizes
constituiu uma marca da administração no período analisado e foi fundamental
( metodológicas, que retratam bem o contexto da época e os conceitos que funda-
para a continuidade e consolidação das ações propostas ao longo do processo de
mentaram toda essa proposição. A primeira delas diz respeito à atuação integrada
f e reflete, por um lado, a abrangência do conceito de habitação adotado, cuja apli-
formulação da Política Municipal de Habitação. Por outro lado, o montante de
recursos captados junto às esferas federal e estadual do poder público foi insigni-
f cação na prática implica em grande número de interfaces e articulações institucio-
ficante, correspondendo, no período de 1993 a 2002, respectivamente a 6,6% e
nais e disciplinares, e, por outro, a grande mudança de paradigma em curso, que
f. atinge todas as áreas do conhecimento e contrapõe a integração à compartimen-
1,2% dos investimentos em habitação no Município.
( tação do saber e do fazer. A segunda, que trata da promoção da participação
( popular em todo o processo de formulação e implementação da Política Munici-
pal de Habitação, retrata a ênfase dada pelos movimentos sociais, em especial
( pelo movimento pela reforma urbana, à gestão participativa local como elemento
í transformador da dinâmica e da lógica do crescimento urbano.

~
{ Implementação da Política Municipal de Habitação
no governo da Frente BH Popular
@:'
~ De maneira geral, na prática, a estrutura gerencial e operacional da URBEL
{ não chegou a refletir exatamente a malha de programas, subprogramas e ações

'
29 As administrações de caráter progyessista como a da Frente BH Popular conh'ibuíram para a ins-
titucionalização da prática, muito comum ao longo dos anos 1980, da assessoria t1knlca aos movi-
~· mentos populares, em geral prestada por militantes de esquerda em caráter voluntário. Por meio de
empresas, entidades de ensino e pesquisa e, principalmente, organizações não-governamentais sem
(· fins lucrativos, esses profissionais eram contratados pelas Prefeituras ou diretamente pelas entidades
do movimento popular financiadas pelo poder pllbllco, numa ação antecessora da atual proposta de

'
implantação de serviços públicos de arquitetura e engenharia. Não raramente, além do papel técni-
co, essas organizações exercem também, em certa medida, o papel de mediadoras da relação enll'I!
(' população organizada e Estado.

{ '
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓ RIA, AVANÇOS E PERSPECIWAS ' 287
286 · Mônica Cadaval Bedê

Tabela 1 - Belo Horizonte - Recursos Financeiros Municipais URBEL


1993/1996 (em dólares)

Exercício Custeio Investimento Total


1992 1.633.974 1.928.564 3.972.539

- ---
1993 1.822.363 1.169.088 2.581 .451

- -·-- --
1994 3.437.212 3.695.876 7.133.088

- ---
1995 6.260.392 10.194.974 16.455.367

-
1996(') 5.500.000 15.500.000 21.000.000

--
(") Os valores referem-se à prel<isão de gasto feíta pela URBEL em maío de 1996.

Fonte: URBEUPBH, 1996b.

É significativo o número de mecanismos de democratização da gestão da


Política Municipal de Habitação, criados ao longo do período analisado, incluin-
do o Conselho Municipal de Habitação bem como fóruns, mecanismos de discus-
são pública do orçamento, comissões e processos participativos vinculados aos
programas. Entretanto, esse conjunto de instrumentos não chegava a constituir
um sistema de gestão participativa. Na verdade, a relação entre esses elementos
acabava acontecendo na prática, mas sem o respaldo de critérios e atribuições
claras, gerando algumas situações de sobreposição de agendas e atribuições.
A atuação do Conselho Municipal de Habitação, o principal mecanismo de
participação, foi pautada, de um lado, por uma agenda intensa de discussões
relativas à Política Municipal de Habitação e, de outro, pela fragilidade no exercí-
cio de seu papel de curador do Fundo Municipal de Habitação PoP.ular. Obser-
vou-se, também, certa predominância na pauta de discussão, de temas voltados
para a linha de produção de novas moradias em detrimento de temas ligados à
linha de intervenção em assentamentos existentes. Isto, provavelmente, é um in-
dicativo de que, tanto o espaço do Conselho foi melhor apropriado pelo Movi-
mento dos Sem Casa, quanto que as lideranças do movimento de favelas con-
centraram sua participação nas instâncias regionais que discutiam e fiscalizavam
a aplicação dos recursos do Orçamento Participativo - OP. 30

30 Processo de discussão pública que tem como objetivo democratizar as definições sobre aplicação

de recursos orçamentários municipais. Essa prática foi adotada de mane ira generalizada pelas admi-
nistrações de caráter progressista a partir do final da década de 1980.
288 · Mõnica Cadaval Bedê l'v.NEJAMENl'O URBANO NO BRASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSl'ECilVAS • 289

Baseada nas diretrizes da Política Municipal de Habitação. a política de de assentamentos atingidos por esse problema,32 por um lado, e prever a concep-
concessão de financiamentos e subsídios foi desenvolvida e aprovada em 1996. ção e implementação de obras de estabilização definitiva de encosfas nas áreas de
Suas normas sintonizam-se com os debates h'avados entre o movimento por mo- risco, por outro, o PEAR agraga maior consistência a suas ações e estabelece uma
radia e o poder público, no bojo da discussão do sistema nacional de habitação. ponte com a tipologia de intervenção estrutural.
No entanto, a versão municipal apresenta avanços em termos de alcance social A implantação da outra categoria de intervenção no governo da Frente BH
em relação à formulação nacional, principalmente quando propõe o subsídio à Popular deu-se através do Programa de Intervenção Estrutural, criado e formataA
família baseado na renda per capita familiar para o estabelecimento do valor do a partir do conceito colocado na Resolução no li do Conselho Municipal de
das prestações.31 A implantação dessa política, entretanto, só veio a acontecer Habitação, qual seja:
na gestão municipal seguinte.
Também a articulação da política habitacional com a política urbana não O Programa de Intervenção Estrutural promove transformações profun-
se realizou efetivamente. Em parte isso se deve ao fato de o Plano Diretor de Belo das num determinado núcleo habitacional, consistindo na implantação
Horizonte ter sido aprovado somente no final da gestão (1996), o que impediu de sistema viário, das redes de abastecimento de água, de esgotamento
que a Política Municipal de Habitação se beneficiasse, durante o período aborda- sanitário, de drenagem, de eletrificação, melhorias habitacionais, repar-
do, de dispositivos nele incluídos cuja aplicação poderia favorecer o acesso à celamento do solo e consolidações geotécnicas, além da regularização
moradia, como por exemplo: inshumentos urbanísticos que objetivam o combate fundiária até o nível da titulação (URBEUPBH, 1996a).
à especulação imobiliária, contribuindo indiretamente para o barateamento dos
imóveis residenciais no mercado; inshumentos urbanísticos que visam à transfe- Considerando a complexa realidade física e urbanística das favelas em Belo
rência de renda do mercado imobiliário para o financiamento das intervenções Horizonte, implantar a intervenção estrutural completa num assentamento implica
públicas; zonas de especial interesse social destinadas à implantação de empre- em gasto alto, inviabilizando a sua implantação simultânea em vários assentamen-
endimentos habitacionais de interesse social. tos favelados, 33 com recursos orçamentários municipais. Diante disso, ao longo da
gestão foi se delineando uma estratégia para a implementação dessa tipologia de
intervenção, estabelecida E'JTI função das possibilidades de financiamento, conside-
Unha de atuação referente a assentamentos existentes rando, por um lado, a limitação de recursos municipais, por outro, a incerteza de
captação de recursos externos. Essa estratégia se materializou, naquele momento,
A esh'atégia adotada nessa linha de atuação estabelece urna graduação de ah'avés de duas experiências: em primeiro lugar, ah'avés do Orçamento Participa~
níveis de intervenção, incluindo desde programas de caráter estrutural até outros tiva - OP, que abre a possibilidade de as comunidades conquistarem recursos
de caráter emergencial ou pontual. Nessa última categoria foi implementado um para a implantação progressiva da intervenção, a partir de um plano global; em
único programa na gestão da Frente BH Popular, o Programa Estrutural em Áreas segundo lugar, ah'avés de projeto piloto de implantação do Programa de Inter-
de Risco - PEAR, concebido e criado no início do governo em resposta à grave si- venção Estrutural financiada pelo Programa Alvorada. 34
tuação decorrente das chuvas, que havia resultado em centenas de famílias desabri-
gadas. Sua concepção repmsenta um considerável salto qualitativo ao incrementar o
32 Em 1993 foram avaliadas 124 áreas e identificadas 75.868 famQias em situação de risco, das
atendimento emergencial, o único que vinha sendo realizado até então, mesmo as-
quais 1.264 sob risco iminente e outras 7.647 sob alto risco, concentradas em 45 favelas. Na revisão
sim precariamente, e introduz uma dimensão preventiva. Além desses aspectos, o do levantamento feita em 1995, foram identificadas 5.428 familias em situação de risco iminente e
PEAR inovou também ao incorporar, mais que a participação, a parceria efetiva das outras 9.430 em situação de alto risco, o que significa 14.856 familias, ou aproximadamente 15% da
comunidades e de outros órgãos públicos, ampliando o alcance e a eficácia da população moradora de favelas (URBELJPBH, 1995).
33 Em valores de 2005, o custo da Intervenção Estrutural correspondia a aproximadamente R$15.650,00
ação. Ao construir um diagnóstico da situação de risco abrangendo todo o universo (quinze mil, seiscentos e cinqüenta reais) em média por domlcmo. Considerando-se o número de do-
midlios existentes em favelas e conjuntos habilacionais inegulares e degradados em 2005, 121.679
segundo a URBEL. seriam necessários quase 2 bilhões de mais para urbanizar e ~totalmente
todos os assentamentos desse universo. Segundo informação obHda junto à Prefettura, o valor total
si Estabeleceu-se que as piestações mensais são objeto de subsfdlo apllcado à fmnDla, Intransferível e revistO
periodicamente e que o valor das piestações deve ser calculado em função da renda per capim, limitado a
dos recursos orçamentários municipais de 2005 destinados a Investimento era de R$860.094.670,00
30% da renda familiar, incorporar uma taxa de juros de 33 a 6% e serrezjuslado pelo fndlce de reajuste sala- (oitocentos e sessenta milhões noventa e quatro mil e seiscentos e setenta reais).
34 O Programa Alvorada - Ações Integradas para Melhoria da Qualidade de Vida da RJpulação de
rial. O prazo nWdmo de financiamento~ de dezoito anos e as famlllas s6 começam a pagar após no mínimo
trinta dias da assinatura do oonbato de financiamento. Em caso de desempmgo do titular do financiamento
Baixa Renda • fazia parte de um acordo bilateral Braslllltálla firmado alraWs do Ministério das Relações
Exteriores e consolidado em convênio de cooperação técnico - financeira em fevereiro de 1994. Parti·
o pagamento pode ser temporariamente suspenso (Conselho Municipal de Habitação, 1996).
PLANEJAMENTO URBhNO NO 13RASIL: TRAIETÔRIA, AVhNÇOS E PERSPECTIVAS • 291
290 · Mê>nica Cadaval Bedê

A implantação do Orçamento Participativo contemplou no mínimo três d i- No que diz respeito especificamente à regularização fundiária, em compa-
retrízes centrais, quals sejam, a democratização da gestão pública, o combate à ração ao desempenho de gestões anteriores quando se promovia a tltulação dos
corrupção e à prática clientellsta e a Inversão de prioridades de governo, que no moradores de forma desvinculada da urbanização do assentamento, houve uma
caso de Belo Horizonte se traduziu, por exemplo, na destinação em média de queda de ritmo ocorrida pela adoção da proposta de atuação integrada, com-
mais de 25% dos recursos orçamentários colocados anualmente em discussão pensada, entretanto, pela qualidade e consistência agregadas ao pro~esso. Ou~o
para investimentos em favelas. No que se refere à intervenção nesse tipo de as- avanço importante da gestão da Frente BH Popular nesse campo foi a extensao
sentamento, esse aporte sistemático de recursos se mostrou fundamental como das ações de regularização fundiária às áreas parliculares ocupadas p~r fa~elas,
fator de consolidação e sustentabilidade da política habitacional, especialmente 0
que nunca havia sido feito antes. Isso se dá principalmente pela aphcaçao do
no que se refere à intervenção estrutural. usucapião, atendendo a uma d iretriz da Lei Orgânica do Município no sentido de
utilizar preferencialmente este instrumento sempre que possível.
O cumprimento dos compromissos gerados pela implementação dessa prá-
tica significou um grande impacto para a estrutura operacional da Prefeitura de Segundo documento elaborado pela URBEL (1996b) para subsidiar o 4º
Belo Horizonte, implicando em ajustes gerenciais e operacionais no âmbito dos Seminário de Governo, realizado em maio de 1996, no período entre 1993 e
órgãos mais diretamente envolvidos em sua execução, entre eles a URBEL. A 1996, 115 assentamentos sofreram algum tipo de intervenção de urbanização ou
tendência inicial de pulverização dos recursos em obras pontuais de pequeno regularização fundiária, representando 63,69% do universo total de favelas e
porte foi gradativamente substituída por uma prática da elaboração de planos conjuntos habitacionais existentes. O balanço das ações realizadas através do
para subsidiar as decisões a respeito da aplicação de recursos destinados à favela. PAE (Plano de Atendimento Emergencial35) durante o período também foi signi-
Ou seja, progressivamente, participação e planejamento se tornam práticas con- ficativo: foram executadas 265 obras emergenciais em 67 favelas.
vergentes, e não conflitantes, no novo espaço criado pelo OP.
A oportunidade que o Programa Alvorada propiciou ~o implantar a inter- U nha de atuação referente a novos assentamentos
venção estrutural em todas as suas etapas foi determinante para a consolidação
desta forma de intervenção. A experiência piloto implementada no âmbito desse No que diz respeito à linha de atuação referente a novos assentamentos
programa possibilitou a quebra da resistência à superação de aspectos centrais da houve, também, avanços significativos em relação à prática de gestões anteriores,
prática instalada, entre as quais a desarticulação entre as ações de urbanização e de caracterizada pela produção de grandes assentamentos irregulares e com urbani-
regularização fundiária e a execução de ações pontuais sem o respaldo de um pla- zação incompleta, implantados em áreas periféricas. Efetivamente, cerca de 90%
nejamento global e integrado, que implicavam na consolidação de um padrão ina- dos terrenos adquiridos ao longo da gestão da Frente BH Popular para essa finali-
dequado de condições de moradia e na aplicação irracional de recursos públicos. dade foram pequenas áreas inseridas na malha urbana, atendendo diretriz da
A construção da metodologia proposta pela intervenção estrutural cunhou Política Municipal de Habitação. Como decorrência dessa opção, de forma a
dois principais aspectos: o investimento no planejamento integrado das ações atra- obter um maior adensamento e viabilizar a utilização de terrenos melhor localiza-
vés da elaboração de um pla no de intervenção para cada assentamento, abor- dos, e conseqüentemente mais valorizados, surgiu a necessidade de adotar tipo-
dando simultaneamente aspectos urbanístico-ambientais, jurídico-legais e sócio- logias residenciais multifamiliares - num primeiro momento horizontais e num
econômico-organizativos, e a participação efetiva da comunidade, que passou segundo momento verticais -, prática que representou uma ruptura de diversos
da condição de cliente à de parceira do poder público nas etapas de captação de valores e preconceitos relacionados à escolha preferencial da residência unifami-
recursos, planejamento e execução. Em decorrência da incorporação gradativa liar implantada no lote individual. Por último, tornou-se obrigatória a regulariza-
desses aspectos à realidade da prática, observa-se a elevação do patamar cultural ção dos empreendimentos, por força também de diretriz da Política Municipal de
e técnico de exigência em relação ao nível adequado de urbanização. Habitação, inaugurando procedimentos que até então inexistiam na rotina de tra-
balho da URBEL
Quando se analisa o conjunto de ações implementadas nessa linha, um
cipavam do convênio a Associação de Voluntários para o Serviço Internacional - AVSI, representando o aspecto que chama a atenção é o grande número de reassentamentos realizados,
Ministério das Relações Exteriores da Itália, o governo do Estado de Minas Gerais, as Prefeituras de Belo
Horizonte, Contagem, Santa Luzia, J acuí e Gouveia, a Sociedade Mineira de Cultura e a Pontifícia Uni-
versidade Católica de Minas Gerais. A URBEL era o órgão público gerenciador do Programa Alvorada
e m &lo Horizonte, sendo os recursos provenientes do orçamento municipal e do governo italiano. 35 Constitui um dos instrumentos do Programa Estrutural de Áreas de Risco - PEAR.
292 · Mõnica Cadaval Bedê P1.ANEJAM ENTO URBANO NO B RASIL: TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERS?EcnVAS · 293

que representam mais de 25% das famílias atendidas com novos lotes e unidades residir em outros municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, onde
habitacionais produzidos. Por um lado, nesse caso específico, as ações efetuadas o preço das moradias ainda era compatível com os valores pagos pela UBEL.
podem ser vistas como uma resposta ágil da administração municipal a deman- Isso leva a concluir que a aplicação desse instrumento demanda um estudo
das emergenciais, num contexto em que ainda não estavam estruturadas políticas aprofundado sobre seus impactos de forma a evitar que sua utilização contrarie
e programas que pudessem constituir referências consistentes. Por outro, de manei- princípios da Política Municipal de Habitação.
ra geral, não fica claro até.que ponto os processos geradores de decisões referentes Outra demanda que comprometeu significativamente os investimentos e
a reassentamentos são realmente cercados do rigor necessário, uma vez que esse a capacidade operacional da administração de Patrus Ananias na área da habi-
tipo de ação deve ser adotada somente em casos extremos, já que implica em tação foi constituída por cerca de mil famílias acampadas em barracas de lona
custos sociais, financeiros e operacionais altos. preta, oriundas de antigas ocupações de terra organizadas pelo Movimento dos
A construção de conjuntos habitacionais totalmente destinados a atender Sem Casa ligado ao PC do B, para as quais foram destinados aproximadamen-
as demandas de reassentamento mostrou-se uma alternativa inadequada em alguns te 42% dos lotes e unidades habitacionais produzidos. Apesar de a Frente BH
aspectos. Em geral, concentram famílias oriundas de diversas regiões da cidade, Popular reconhecer a través dessa postura a legitimidade desses movimentos, a
agravando o trauma que a remoção por si só representa, uma vez que desestrutura opção política deu-se no sentido de desestimular a prática de novas ocupações
relações de vizinhança e estratégias de sobrevivência das famílias em seus locais de e priorizar a consolidação de parcerias no âmbito dos programas da Política
origem. Além disso, o tempo de permanência em abrigos ou acampamentos toma-se Municipal de Habitação. Efetivamente, ao longo do governo observou-se uma
longo, pois corresponde ao prazo gasto na produção dos conjuntos. Por último, a retração desse tipo de prática na medida em que a Política Municipal de Habi-
concentração de famílias de baixíssimo nível social, econômico e cultural e a inexpe- tação foi introduzindo outras opções de atendimento e espaços de interlocução
riência para enfrentar a gestão condominial dificultam o período pós-ocupação. No sistemática com as lideranças do movimento por moradia.
caso de grandes conjuntos, ao impacto sobre a vida dos reassentados se soma o im- A forma de gestão denominada co-gestão, prevista na Política Municipal de
pacto sobre a região ou o bairro que os recebe, especialmente no que diz respeito à Habitação, foi experimentada no governo da Frente BH Popular através da cria-
ampliação da demanda por serviços públicos. ção e implementação do Programa de Apoio ao Autoconstrutor, que teve a maior
Como alternativa a essa prática foi criado um programa que adotava um parte do seu aterrdimento voltado justamente para as famílias acampadas. A
procedimento denominado reassentamento monitorado, que consistia no forne- proposta do programa era fina nciar cestas de material de construção e fornecer
cimento de um auxílio financeiro num valor de referência suficiente para a aquisi- assessoramento técnico a famílias integrantes de grupos assentados em lotea-
ção de uma unidade habitacional minimamente adequada, mesmo sendo esse mentos públicos, de forma a garantir uma unidade habitacional minimamente
valor superior ao da moradia de origem da família beneficiada. Nos casos em que adequada. A partir daí cada família teria autonomia para ampliar sua moradia
a moradia de origem valesse mais do que o valor de referência, a indenização paga por etapas, de acordo com sua conveniência . As lideranças ligadas ao PC do B
equivalia ao valor avaliado. O imóvel destinado ao reassentamento tinha que ser se identificavam especialmente com o programa, aparentemente por verem nele
aprovado pela URBEL,36 que monitorava a operação de aquisição e de mudan- uma possibilidade de ampliação da abrangência do atendimento via Política Munici-
ça da família para a nova moradia. A proposta da Prefeitura era que essa fosse pal de Habitação. Entretanto, por ser uma alternativa que inviabilizava a adoção de
uma alternativa complementar à opção da produção de moradias para reassen- tipologias multifamiliares e por dificuldades operacionais encontradas em sua imple-
tamento, de forma a atender no máximo 30% da demanda de reassentamento mentação,37 o Programa de Apoio ao Autoconstrutor, apesar de muito bem avaliado
de cada obra. Por meio dessa a lternativa durante o governo de Patrus Ananias pelos beneficiários, teve vida curta e foi extinto no início da gestão seguinte.
foram viabilizados 224 atendimentos. A maior agilidade obtida nos processos A outra forma de gestão prevista, a prática de produção habitacional auto-
de reassentamento e o a lto nível de satisfação das famílias beneficiadas por gestionária deu-se através do Programa de Produção de Moradias em Autoges-
adquirirem casas de melhor padrão construtivo fizeram com que essa opção
fosse avaliada positivamente. No entanto, a operacionalização do programa
contribuiu para a valorização do imóvel residencial no mercado popular da ci- 37Pode-se citar entre elas: grande número de atendimentos individuais simultâneos; capacidade ope-
dade e, ao final da gestão, aproximadamente 70% das famílias atendidas foram racional muito restrita; morosidade na aquisição de materiais de construção por parte da Prefeitura;
complexidade da operação de estocagem e entrega de materiais; desmobilização das famílias em
função da demora na aquisição e entrega de materiais; insuficiente capacitação dos benefici6rlos
36 Os aspectos avaliados eram segurança, acessibilidade, salubridade, conforto e condição de regularidade. para desenvolver as tarefas referentes à construção; impossibilidade de as famílias contratarem mAo
de obra , em função de suas condições econômicas.
P LANEJAMENTO URBANO NO B RASIL: TRAJElÓRIA, AVANÇOS I! PERSPECTIVAS . 295
294 · Mõnica Cadaval Bedê

tão. Apesar de ter sido criteriosamente desenvolvida, inclusive incorporando diver- Tabela 2 - Belo Horizonte - "Conquistas" do Movimento dos Sem Casa -
sos avanços em relação às experiências existentes, a proposta do programa não foi 1993 a 1996
1 - - Lot;;- - UnldadH
imediatamente incorporada pelo movimento por moradia local e sofreu grande Origem Terrenos•
Urb anlzadoa Habitacionais
resistência internamente à Prefeitura.38 Esse contexto fez com que os técnicos e di-
OP 94 (discutido em 54
rigentes da URBEL que a defendiam tivessem que adotar uma estratégia de mobi- 1993)
lização e sensibilização em torno da proposta, incluindo seminários e cursos, com
Fórum dos Sem Casa
o objetivo de divulgá-la. (discutido em 1994)
- 399

As lideranças aos poucos se apropriaram da proposta, inclusive por influ- -


OP 95 (discutido em
ência dos movimentos de lpatinga e de São Paulo, embora houvesse diferenças 1994)
- 585

de visão entre os setores do movimento por moradia em relação à utilização do


mutirão. 39 Finalmente, foi a pressão política desse movimento que viabilizou a OPH 96 (discutido em - 700 708
1995)
implantação do programa já no início da gestão seguinte.
Uma ação do Governo Patrus que se destaca no âmbito dessa linha de OPH 97 (discutido em - 1.004 533
1996)
atuação por seu ineditismo é o Orçamento Participativo da Habitação - OPH,
destinado a atender exclusivamente a demanda do Movimento dos Sem Casa.
Total 54 2.688 1 .241
Sua criação contribuiu para garantir um mínimo de governabilidade, pois repre-
sentava uma alternativa à prática de ocupações organizadas e atendia ao com-
• Segundo informação fornecida pelo coordenador do OPH na época, os valores rela-
promisso político da administração com o movimento por moradia. Além disso, livos ao OP 94 são de US$250.000,00 (duzentos e cinqüenta mil dólares) destinados
era necessário preservar os recursos do OP, destinados, a priocípio, para obras de à compra de terrenos, não incluindo sua urbanização.
urbanização, a cada ano mais comprometidos com as compras de terrenos para
Fonte: SMHAB/PBH, 2002.
o Movimento dos Sem Casa.

Entre os principais desafios enfrentados pelo OPH estão: a limitação quanti-


tativa de seus resultados, como mostra a Tabela 2; o desequilíbrio entre o número
de lotes urbanizados e o de unidades habitacionais conquistadas; a pulverização
dos benefícios entre os núcleos do Movimento dos Sem Casa, estratégia utilizada
pelas lideranças para ampliar a capitalização política; o controle para evitar a prática
de clientelismo por parte das lideranças, uma vez que os núcleos tinham autonomia
para indicar os beneficiários. Entretanto, apesar dos desafios, o OP.H representa um
importante espaço de exercício democrático e de experimentação técnica, contri-
buindo, ao longo de sua trajetória, para o amadurecimento da administração pú-
blica e do Movimento dos Sem Casa no trato do déficit habitacional.
Segundo documento da URBELjá mencionado (1996b), durante a gestão
da Frente BH Popular 5.307 famílias haviam sido contempladas por alguma ação
da linha de atuação referente a novos assentamentos. Da mesma forma que no
38 As
resistências à idéia da produção habitacional autogestionária no âmbito do governo em geral eram
âmbito da linha de atuação de intervenção em assentamentos existentes, pode-se
fundamentadas por preocupações quanto a seus resultados do ponto de vista técnico e administrativo.
39 Essa prática era defendida sem reservas pelos setores do movimento próximos à Igreja Católica e considerar que os avanços qualitativos observados na linha de atuação referente
ao PT que vislumbravam seu potencial organizativo, mas os setores ligados ao PC do B questionavam aos novos assentamentos equivalem em importância aos bons resultados quanti-
o uso intenso do mutirão por considerá-lo um trabalho adicional que não d everia ser imposto ao
trabalhador na obtenção de sua moradia.
tativos alcançados.
PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: TRJ\)ETÓ RIJI, AVANÇOS E PERSPECTíVJ\S • 297
296 · Mónica Cadaval Bedê

Considerações finais municipal pelos militantes dos diversos partidos políticos · que compunham a
Frente BH Popular. Ainda que sutis, pelo fato de tratar-se de uma aliança delimi-
tada apenas no âmbito da esquerda, elas existiam e constituíam fatores de inter-
A gestão da Frente BH Popular constitui um exemplo, a meu ver, positivo
do processo de descentralização e municipalização da política habitacional no ferência na construção das políticas públicas locais nesse período.
Brasil, ocorrido simultaneamente em função da omissão do governo federal, da A equipe multipartidária que compunha o corpo principal de dirigentes e
iniciativa dos novos governos eleitos ou, ainda, da redefinição institucional promovi- assessores da URBEL era quase totalmente constituída de militantes dos movi-
da pela Constituição de 1988. Assim como aconteceu em vários outros municípios, mentos sociais, alguns oriundos de outras experiências de governos progressistas.
a administração municipal em Belo Horizonte promoveu, a partir desse período, Essa configuração implicou em convergências importantes e mais significativas
uma política habitacional com uma razoável diversidade e abrangência de que as divergências existentes, que foram negociadas e ajustadas ao longo do
ações que tive.r am impacto efetivo sobre o quadro das necessidades habitacio- governo, em relação a diversos aspectos da política habitacional. Destaco aqui a
nais, embora financiadas em grande parte apenas por recursos próprios, refle- importância de estar à frente da URBEL nesse período, uma liderança de consis-
tindo dessa forma a condição de isolamento com que o governo municipal tente militância no movimento popular, efetivamente comprometida com o obje-
enfrentou, nesse período, os problemas locais de moradia. Esse rico conjunto tivo de construir uma política habitacional de interesse social.
de experiências realizadas, permeado pela participação popular, constituiu uma Essa conjuntura político-institucional interna da URBEL determinou alguns
importante referência para a construção de novos modelos e alternativas para a aspectos relevantes da condução do processo. Um deles foi o fato de o movimen-
ação governamental na área da moradia. to por moradia ter sido o único segmento da sociedade civil a ser envolvido
Além da ampliação do montante de recursos municipais investidos, um desde o primeiro momento no processo de formulação da política habitacional,
forte indicador do fortalecimento da política habitacional local foi a estruturação sinalizando, claramente, ser ele o principal parceiro político. Entretanto, o apro-
da URBEL, resultando em ampliação significativa de sua capacidade operacio- fundamento do nível do controle público sobre a gestão da política habitacional
nal, ainda que ainda suportada em grande medida por serviços terceirizados. ficou limitado, principalmente em função do despreparo e da dependência dos
Entretanto, foram lançadas as bases para a consolidação de uma reestruturação representantes populares em relação ao apoio fornecido pela URBEL ao exercí-
mais sólida, através de uma série de medidas realizadas em períodos posteriores, cio da participaçãr>. Por outro lado, apesar do grande número de insiâncias e
como a proposta de reforma administrativa e a realização de um concurso públi- processos participativos instalados por iniciativa da URBEL, essa estrutura não
co para contratação de novos técnicos. funcionava como um sistema articulado, observando-se problemas de sobreposi-
ção de atribuições entre as instâncias. O que ficou, no entanto, foi a inscrição da
A Política Municipal de Habitação foi concebida num contexto muito mar-
intensa interlocução entre poder público e movimento popular no dia-a-dia da
cado pela mobilização social e pelo debate público em torno das idéias e propos-
tas defendidas pelo movimento pela reforma urbana, cujo ápice se deu entre o construção inicial da Política Municipal de Habitação.
fina l da década de 1980 e início da década de 90. Fruto desse ambiente foi con- Outro aspecto a ser destacado foi a participação fundamental de equipes
cebida e inicialmente implementada no bojo da segunda geração de administra- de consultores identificados com os objetivos do programa de governo da Frente
ções municipais progressistas que sucederam a Constituição Federal de 1988. BH Popular, portadores de consistente bagagem técnica e com experiência de
Sua concepção se referenciou, também, em que pese se tratar de um governo participação na formulação e implementação de políticas habitacionais locais em
liderado por uma frente de partidos de esquerda, no denominado "modo petista outras administrações de caráter democrático e popular, destacadamente em
de governar", referência importante dos militantes do Partido dos Trabalhadores municípios paulistas. Essas equipes, através das instituições que as abrigavam,
então envolvidos na administração pública. constituíram-se num dos principais agentes de intercâmbio entre as administra-
ções progressistas, contribuindo para a consolidação de um modo inovador de
Efetivamente, em função de todo esse contexto, a Gestão Patrus Ananias
significou um redirecionamento do modo de governar adotado até então na ca- governar no período após a Constituição de 1988.
pital mineira, constituindo um momento de transição entre velhas e novas cultu- Como mencionado anteriormente, a gestão municipal analisada represen-
ras, entre práticas cristalizadas e propostas inovadoras, entre valores conservado- tou um momento extremamente rico em termos de formulação e implantação do
res e progressistas. A convivência cotidiana desses elementos deu-se em geral de sistema institucional e da política voltados para a habitação de interesse social,
forma negociada, mas eventualmente pontuada por conflitos. Não se pode des- desdobrando-se em políticas específicas, planos, programas e projetos, processos
prezar, também, as diferenças de visão trazidas para o espaço da administração que se desenvolveram de forma intensa, simultânea e estruturada internamente.
298 · Mónica Cadaval Bedê PLANEJAMENTO URBANO N O B RASIL : TRAJETÓRIA, AVANÇOS E PERSl'EcnVAS ' 299

Também em termos quantitativos, apesar da limitação de recursos os resultados NABUCO, Maria Regina. A (des) institucionalização das políticas regionais no Brasil. Foto-
podem ser considerados significativos (Bedê, 2005). cópia. Apresentado no VI Encontro Nacional da ANPUR. Brasília, 1995.
OSTOS, Luciana Moreira Barbosa. As idéias dentro do lugar: Plano Global Específico. As
Em síntese destacam-se os seguintes aspectos que marcaram a gestão da idéias brotadas do lugar: participação e conteúdo. Um estudo a partir da Vila da Paz em
Frente BH Popular no que diz respeito à área habitacional: o caráter de transição; Belo Horizonte - MG. Dissertação (Mestrado em Geografia), Instituto de Geociências,
o enfrentamento de resistências e diferenças de visão internas à administração; a Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2004.
intensa interlocução com o movimento por moradia; o ajuste contínuo das práti- PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE - PBH. Cenas de um Belo Horizonte.
cas implementadas para adequação à limitação de recursos municipais; o isola- 2ª edição. Belo Horizonte: PBH, 1996.
mento institucional e político na relação com outras esferas de governo; grande PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE - PBH. Lei Orgâ nica do Município de
presença e contribuição de consultores externos comprometidos com o projeto Belo Horizonte. Belo Horizonte: PBH, 1996.
político da administração; intensidade no processo de formulação da política ha- PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE - PBH. Plano Municipal de Habitação
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300 · Mônica Cadaval Bedê

COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Habitação, resgate da


cidadania - 1993 / 1996. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 1996. Sobre' os Autores
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZOITTE - URBEL Programa de Apoio ao
Autoconstrutor - Acampamento Floramar. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 1996.
Geraldo Magela Costa (Organizador}
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Programa de Apoio
ao Autoconstrutor. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 1996. PhD em Geografia/Estudos Urbanos pela London School of Economics and Politi-
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Projeto de participa- cal Science, London University. Professor Associado do Departamento de Geografia
ção comunitária - Conjunto Milionários. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 1996. e do Programa de Pós-graduação em Geografia, Instituto de Geociências/UFMG.
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZOITTE - URBEL Plano Estratégico de Inter- Pesquisador do CNPq. Áreas de Interesse: planejamento e gestão urbanos, produção
venção em Vilas e Favelas de Belo Horizonte. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 1999. do espaço urbano e metropolitano, planejamento regional, políticas urbanas.
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Legislação Básica. gemcosta.bhz@terra.com.br
Belo Horizonte: PBH / URBEL, 2000.
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Conjunto Habitacio-
nal Lagoa. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 2000. Jupira Gomes de Mendonça (Organizadora)
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Conjunto Habitacio- Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ. Professora Adjunta da
nal Zilah Spósito - Etapa IV. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 2000.
Escola de Arquitetura da UFMG (Departamento de Urbanismo e Núcleo de Pós-
COMPANHIA URBANIZADORA DE BELO HORIZONTE - URBEL. Demonstrativo de Graduação em Arquitetura e Urbanismo). Pesquisadora do Observatório das Me-
atendimentos realizados pelo PROAS. Belo Horizonte: PBH / URBEL, 2005.
trópoles/Instituto do Milênio-CNPq. Áreas de interesse: política urbana, planeja-
SECRETARIA ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO DA PRESIDÊNCIA DA mento urbano, d inâmica imobiliária.
REPÚBLICA - SEDU. Política Municipal de Habitação - orientações para formulação e
implementação. Brasília: SEDU / PR, 2001. jupira@gmail.com
SECRETARIA MUNICIPAL DE HABITAÇÃO - SMHAB. Relatório físico-financeiro - Con-
juntos habitacionais populares produzidos pela PBH/SMAHB/URBEL no período de 1996
a 2003. Belo Horizonte: SMHAB / PBH 2003. Carlos Alberro de Vasconcelos Rocha
Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor e pesquisador do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. Áreas de interesse: reforma
do Estado, políticas públicas, democracia e federalismo.
carocha@pucminas.br

Carlos Aurélio Pimenta de Faria


Doutor em Ciência Política pelo luperj. Professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. Áreas de interesse: políticas
públicas, administração pública, Estado de bem-estar social e política externa.
carlosf@pucminas.br
302 ·Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes d e Mendonça P LANEJAMENTO URBANO NO B1tASIL: TRA)ETÓIUll, AVANÇOS E PERSPECTIVAS · 303

Cristina Almeida Cunha Filgueiras Letícia Maria Resende Epaminondas


Doutora em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Fran- Engenheira Arquiteta, Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da Uni-
ça. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências So- versidade Federal de Minas Gerais, Arquiteta da Prefeitura Municipal de Belo
ciais e curso de Relações Internacionais, PUC Minas. Áreas de interesse: políticas Horizonte. Áreas de interesse: políticas urbanas, planejamento urbano e gestão
sociais, gestão de políticas públicas, cooperação internacional para o desenvolvi- urbano-ambiental.
mento, pobreza e desigualdade. leticiam@pbh.gov.br
cfilgueiras@pucminas.br

Marinella Machado Araújo


Daniela Abritta Cota Doutora em Direito pela UFMG, Professora e pesquisadora do Programa de Pós-
Mestre em Geografia pela UFMG, doutoranda do Programa de Pós-graduação Graduação em Direito da PUC Minas, Coordenadora do Nujup/OPUR. Área de
em Geografia/UFMG, Arquiteta da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Áreas interesse: direito urbano-ambiental.
de interesse: planejamento urbano, legislação urbanística, dinâmica imobiliária, marinella@pucminas.br
organização e gestão do espaço.
danielaac@uol.com.br
Mônica Cadaval Bedê
Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da UFMG, consultora na
Edésio Fernandes área urbana e habitacional. Áreas de interesse: planejamento urbano e políti-
PhD em Direito, membro da DPU-Associates e do Lincoln Institute of Land Po- ca habitacional.
licy. Áreas de interesse: direito urbanístico e gestão urbana. mcadaval@gmail.com
edesiofernandes@compuserve.com
Natália Aguiar Mo!
Heloisa Soares de Moura Costa Mestre em Geografia pela UFMG, Arquiteta da Prefeitura Municipal de Belo Ho-
Arquiteta Urbanista, Doutora em Demografia pelo Cedeplar/UFMG. Professora rizonte. Áreas de interesse: planejamento urbano, legislação urbanística, dinâmi-
Associada do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-graduação em ca imobiliária, organização e gestão do espaço.
Geografia, Instituto de Geociências/UFMG. Áreas de interesse: políticas urbanas, natymol@hotrnail.com
ambientais e habitacionais, produção do espaço e metropolização.
hsmcosta@ufmg.br
Orlando Alves dos Santos Junior
Sociólogo, Doutor em Planejamento Urbano, Professor do IPPUR/UFRJ. Áreas
Jeanne Marie Ferreira Freitas de interesse: planejamento urbano, gestão democrática, participação social.
Arquiteta, Mestre em Geografia pelo Instituto de Geociências da UFMG, Doutora orlandojul 7@hotmail.com
em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Tratamento da Informação
Espacial da PUC Minas, Coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
PUC Minas, Arquiteta da Gerência de Planejamento do Desenvolvimento Metro- Ralfo Edmundo da Silva Matos
politano da Secretaria Municipal de Planejamento de Belo Horizonte. Áreas de in- Doutor em Demografia e Mestre em Economia Regional e Urbana, Professor
teresse: planejamento urbano e ambiental, geografia urbana, paisagem urbana. Associado do Departamento de Geografia do IGC/UFMG. Áreas de interesse:
arquitet@pucminas.br população, urbanização, estudos regionais, geografia histórica.
ralfo@ufmg.br
304 ·Geraldo Magela Costa / Jupira Gomes de Mendonça

Roberto Luis de Melo Monte-Mór


Arquiteto e Urbanista, Ph.D. em Planejamento Urbano pela Universidade da Ca-
lifórnia, Los Angeles/UCLA, Professor Associado no Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional-Cedeplar da Face (Faculdade de Ciências Econômicas)
e do Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo/NPGAU da Escola
de Arquitetura, ambas da UFMG. Áreas de interesse: teorias urbanas, urbaniza-
ção no Brasil, economia urbano-regional, espaço e meio ambiente.
montemor@cedeplar.ufmg.br.

Rosa Moura
Geógrafa, Pesquisadora do Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos do Instituto
Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), Pesquisadora
do Observatório das Metrópoles/Instituto do Milênio-CNPq. Áreas de interesse:
desenvolvimento regional, gestão urbana e regional.
rosamoura@ipardes.pr.gov.br.

A presente ed lçbo foi composta pela Editora C/Arte em tipologl• Z..pfHumnst BT e Impresso no Gr6flco e Editora O Lutador.
em sistema o ffsct. Inverno de 2008.

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