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Apresentação à Edição

Brasileira

A presentar este livro do Dr. Otto F. Kernberg ao público


especializado brasileiro é uma dupla satisfação. Primeiro,
porque, devido a uma estratégia editorial inusitada da Editora
Artes Médicas, esta edição vem a público bem antes de sua
publicação em língua inglesa, visto que Love Rdations: Normality and
Pathology está programado para ser publicado pela Yale University
Press somente no final do próximo semestre, o que faz desta edição
brasileira a primeira publicação em nível mundial deste livro.
Segundo, porque seu lançamento, neste momento, vindo a servir
como base para a discussão do Tema Oficial da XVII Jornada Sul-
Riograndense de Psiquiatria Dinâmica, promovida pelo Centro de
Estudos Luís Guedes, do Departamento de Psiquiatria e Medicina
Legal da UFRGS, confirma a amizade e o vínculo afetivo
significativos que ligam os Drs. Otto e Paulina Kernberg à
psiquiatria e à psicanálise do Rio Grande do Sul.
Otto F. Kernberg é, sem dúvida, atualmente um dos mais
distinguidos personagens da cena psicanalítica internacional, tendo
se destacado com importantes contribuições nas áreas da
contratransferência, da teoria das relações de objeto e da descrição,
compreensão e tratamento das organizações de personalidade
narcisistas e fronteiriças (borderliné).
A amplitude e, ao mesmo tempo, a profundidade e a erudição
dos seus interesses levaram o Dr. Kernberg a também pesquisar a
aplicação da psicanálise a várias áreas afins de interface, como a
psicoterapia de orientação analítica, a psiquiatria dinâmica (incluindo
tratamentos hospitalares) e a dinâmica de grupos e instituições (o
que lhe conferiu, entre diversas outras distinções já recebidas, o
Presidential Awardfor Leadership in Psychiatry ofthe National Association
ofHealth Care Systems, de 1993, nos Estados Unidos).
vn

Predestinado e estimulado talvez por uma peculiaridade


biográfica (nasceu em Viena, na Europa, emigrou jovem para a
América do Sul, Chile, onde se graduou como médico, psiquiatra e
psicanalista; transferiu-se após para os Estados Unidos, onde
desenvolveu e consolidou a maior parte de sua carreira psicanalíti-
ca), um dos aspectos mais importantes das contribuições do Dr.
Kernberg foi o de trazer o trabalho de psicanalistas europeus e
latino-americanos para conviver com a psicanálise norte-americana
e o movimento inverso: apresentar e salientar, aos psicanalistas
europeus e latinos, as principais contribuições da psicanálise ameri-
cana, especificamente da psicologia do ego, e de suas variações.
Esta talvez seja a marca mais distintiva de sua produção
científica, incluindo o presente livro: a de avançar ideias, formular
conceitos, propor hipóteses, que tendem a integrar, por um lado,
contribuições de duas das mais fortes correntes do pensamento
psicanalítico atual, como o são a psicologia do ego e a teoria das
relações de objeto, e, de outro, não desconhecer e nem descartar
aspectos de vários outros enfoques que tensionam, enriquecem e de
certa forma conflagram o cenário psicanalítico contemporâneo.
Nos vários capítulos deste livro, o leitor poderá apreciar a
convivência crítica da psicologia dos impulsos instintivos e do
conflito libidinal-agressivo do Freud clássico, com teóricos
americanos não menos clássicos como M. Mahler, E. Jacobson ou R.
Stoller, lado a lado com autores fundamentais das relações de objeto
anglo-saxões, como Fairbairn, M. Klein, H. Resenfeld, W. Bion, D.
Meltzer - ou franceses como J. McDougall, J. Chasseguet-Smirgel, B.
Grunberger, J. Laplanche, A. Green, entre outros.
Tais aportes americanos e europeus integram e são
integrados pelas personalíssimas contribuições do próprio
Kernberg, que esboça neste livro uma original teoria dos afetos
para dar suporte básico aos desenvolvimentos teórico-clínicos, não
menos originais, que constituem a essência desta sua mais recente
obra, isto é, as conceptualizações que Kernberg faz da função e
evolução da excitação sexual, do desejo erótico e do amor sexual
maduro, nas suas variantes normais e patológicas.
A passagem desses fenómenos sexuais-eróticos do universo
intrapsíquico, individual e da primeira interação mãe-bebê para a
constituição do casal adulto, bem como a dinâmica da interação dos
casais entre si, com outros casais e com o que Kernberg denomina
as pressões do convencionalismo dos grandes grupos são outros dos
momentos mais instigantes deste texto, que se expõem à reflexão
do leitor interessado e que provavelmente farão da leitura do mesmo
uma experiência certamente criativa e enriquecedora.

Sidnei S. Schestatsky Gramado, novembro de 1994.


Agradecimentos

F oi o Dr. John D. Sutherland, antigo diretor-médico da


Clínica Tavistock, em Londres, e por muitos anos o
consultor-sênior da Fundação Menninger, quem primeiro dirigiu a
minha atenção ao trabalho de Henry Dicks. A aplicação da teoria das
relações objetais de Fairbairn ao estudo dos conflitos conjugais,
realizada por Dicks, proporcionou-me uma estrutura referencial
que se tornou essencial quando comecei a desenredar as complexas
interações que os pacientes com organização de personalidade
borderline mantinham com seus amantes e parceiros conjugais. O
trabalho dos drs. Michel Fain e Denise Braunschweig sobre a
dinâmica de grupo, no qual as tensões eróticas são acionadas nos
primeiros anos de vida e por toda a idade adulta, iniciou meu
contato com as contribuições francesas ao estudo psicanalítico das
relações amorosas normais e patológicas. No curso de dois períodos
sabáticos em Paris, quando comecei a desenvolver os estudos
incluídos neste livro, tive o privilégio de consultar importantes
psicanalistas interessados no estudo das relações amorosas normais e
patológicas, incluindo os Drs. Didier Anzieu, Denise Braunschweig,
Janine Chasseguet-Smirgel, Christian David, Michel Fain, Pierre
Fedida, André Green, Bela Grunberger, Joyce McDougall e François
Roustang. Os drs. Serge Lebovici e Daniel Widlocher ajudaram
muito a esclarecer minhas ideias sobre a teoria do afeto; mais tarde,
os drs. Rainer Krause, de Saarbrucken, e Ulrich Moser, de Zurique,
auxiliaram a esclarecer ainda mais a patologia da comunicação
afetiva nas relações íntimas.
Também tive o privilégio de contar, entre meus maiores
amigos, com alguns dos mais importantes colaboradores ao estudo
psicanalítico das relações amorosas nos Estados Unidos: os drs.
Martin Bergman, Ethel Person e Robert Stoller. Ethel Person ajudou-
me a reconhecer as importantes contribuições que ela e o Dr. Lionel
Ovesey fizeram sobre a identidade de género nuclear e a patologia
sexual; Martin

ix
x Agradecimentos

Bergman auxiliou-me a obter uma perspectiva histórica da natureza


das relações amorosas e sua expressão na arte; e Robert Stoller
encorajou-me a continuar a análise da íntima relação entre o
erotismo e a agressão, da qual ele foi tão brilhantemente o pioneiro.
Os drs. Leon Altman, Jacob Arlow, Martha Kirkpatrick e John
Munder Ross proporcionaram-me úteis oposições às minhas ideias e
o estímulo de suas próprias contribuições nesta área.
Como sempre, um grupo de amigos próximos e colegas na
comunidade psi-canalítica ajudou-me imensamente com suas
reflexões e críticas, mas sempre encorajadoras e estimulantes, ao
meu trabalho: os drs. Maria Bergman, Harolc Blum, Arnold
Cooper, William Frosch, William Grossman, Donald Kaplan, Paulina
Kernberg, Robert Michels, Gilbert Rose, Joseph e Anne-Marie
Sandler e Ernst e GertrudeTicho.
Também, como sempre, sou profundamente grato à Srta.
Louise Traitt e à Srta. Becky Whipple por seu trabalho alegre e
paciente nas muitas etapas que conduziram, desde os primeiros
rascunhos, à versão final. A firme preocupação da Srta. Whipple
com os pequenos detalhes deste original foi essencial à sua produ-
ção. A Sra. Rosalind Kennedy, minha assistente-administrativa,
continuou a proporcionar o cuidado, organização e coordenação
totais do trabalho em meu escritório, o que permitiu a emergência
deste rascunho em meio a muitas tarefas e prazcí conflitantes.
Este é o terceiro livro que escrevi com a estreita colaboração de
minha editora de muitos anos, a Sra. Natalie Altman, e a editora-
sênior da Yale University Press, l Sra. Gladys Topkis. Sua revisão
competente e sempre encorajadora, habilmente l crítica, foi, mais
uma vez, uma experiência esclarecedora.
Sou profundamente grato a todos os amigos e colegas que
mencionei, e aos meus pacientes e alunos, que me proporcionaram
maisinsight em um número relativamente limitado de anos do que
eu esperaria adquirir na minha vida inteira, i Eles também me
ensinaram a aceitar os limites de meu entendimento desta vasta i e
complexa área da experiência humana.

Também sou grato aos editores originais pela permissão de


reimprimir material nos capítulos abaixo listados. Deve-se enfatizar
que este material foi amplamente reformulado e modificado.

Capítulo 2: Adaptado de "New Perspectives in Psychoanalytic


Affect Theory". Em: Emotion: Theory, Research and Experience, ed. R.
Plutchik e H. Kellerman. NOVÍ Iorque: Academic Press, 11-130,1989.
Publicado com a permissão da Academicl Press, e de
"Sadomasochism, Sexual Excitement and Perversion". Journal
o/the| American Psychoanalytic Association. 39:333-362,1991. Publicado
com a permissão c Journal ofthe American Psychoanalytic Association.

Capítulo 3: Adaptado de "Mature Love: Prerequisites and


Characteristics".,| Journal ofthe American Psychoanalytic Association.
22:743-768,1974, e de "Boundaries j
Agradecimentos xi
and Structure in Love Relations" .Journal ofthe American Psychoanalytic
Association. 25: 81-114,1977. Publicado com a permissão dojournal
ofthe American Psychoanalytic Association.

Capítulo 4: Adaptado de "Sadomasochism, Sexual


Excitement and Perversion" .Journal ofthe American Psychoanalytic
Association. 39:333-362,1991, e de "Boundaries and Structure in Love
Relations". Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 25:81-
114,1977. Publicado com a permissão do Journal ofthe American
Psychoanalytic Association.
Capítulo 5: Adaptado de "Barriers to Falling and Remaining in
Love" .Journal ofthe American Psychoanalytic Association. 22:486-
511,1974. Publicado com a permissão do Journal ofthe American
Psychoanalytic Association.

Capítulo 6: Adaptado de "Agression and Love in the


Relationship of the Couple". Journal ofthe American Psychoanalytic
Association. 39:4-70,1991. Publicado com a permissão dojournal ofthe
American Psychoanalytic Association.

Capítulo 7: Adaptado de "The Couple's Constructive and


Destructive Superego Functions". Journal ofthe American
Psychoanalytic Association. 41:653-677, 1993. Publicado com a
permissão dojournal ofthe Psychoanalytic Association.

Capítulo 8: Adaptado de "Love in the Analytic Setting". Aceito


para publicação. Journal ofthe American Psychoanalytic Association.
Publicado com a permissão do Journal ofthe Psychoanalytic Association.
Capítulo 11: Adaptado de
"TheTemptationsofConventionality".íntemfltional Review of
Psychoanalysis. 16: 191-205, 1989. Publicado com a permissão de
The International Review of Psychoanalysis e de "The Erotic Element in
Mass Psychology and in Art". Bulletin ofthe Menninger Clinic. Vol.
58, Número l, Inverno de 1994. Publicado com a permissão doEulletin
ofthe Menninger Clinic.

Capítulo 12:" Adolescent Sexuality in the Light of Group


Processes."
The Psychoanalytic Quarterly. Vol. 49,1:27-47,1980, e de "Love, the
Couple and
the Group: A PsychoanalyticFrame".Tfe Psychoanalytic Quarterly. Vol.
49,1:78-108,
1980. Publicado com a permissão doPsychoanalytic Quarterly.
Prefácio

í alguns anos, quando meus escritos sobre


H pacientes com organização de ersonalidade
borderline enfatizavam a importância da agressão
em sua sicodinâmica, um colega e bom amigo disse-me, meio
brincando: "Por que você não escreve sobre o amor — todo
mundo tem a impressão de que você se preocupa apenas com a
agressão!" Prometi a ele que faria isso quando as respostas a
algumas das intrigantes perguntas nessa área estivessem mais
claras para mim. O presente trabalho é o resultado das
minhas reflexões sobre aquelas questões, embora eu deva
admitir que de modo algum tenha encontrado as respostas a
todas as perguntas. Mas acredito que avancei suficientemente
em minhas ideias para partilhá-las, e espero que, assim
fazendo, contribua para que outros venham a iluminar o que
ainda está obscuro.
A psicologia e a patologia das relações amorosas
começaram a chamar a minha atenção quando percebi que era
quase impossível predizer o destino de uma relação amorosa,
ou de um casamento, com base na psicopatologia individual do
paciente. Às vezes, diferentes tipos e graus de psicopatologia nos
parceiros pareciam resultar numa combinação confortável para
o casal; outras vezes, estas diferenças tornavam-se a fonte das
incompatibilidades. As perguntas "O que mantém os casais
juntos? O que destrói seu relacionamento?" me perseguiam, e
foram o ímpeto para que eu estudasse a dinâmica presente nos
relacionamentos íntimos dos casais.
Ao longo dos séculos, o assunto do amor recebeu muita
atenção por parte dos poetas e filósofos. Em épocas mais
recentes, ele foi estudado por sociólogos e psicólogos. Mas, com
raras exceções, encontramos surpreendentemente pouco sobre o
amor na literatura psicanalítica.

xiii
xiv Prefácio

Repetidamente, em minhas tentativas de estudar a natureza


do amor, me obrigado a confrontar a relação do erótico com a
sexualidade. Descobri que, e contraste com os abundantes estudos
sobre a resposta sexual de uma perspectr biológica, muito pouco
fora escrito sobre ela como uma experiência subjetiva. LOJ me
descobri lidando com fantasias inconscientes e suas raízes na
sexualidade: f antil—em resumo, de volta a Freud. Clinicamente,
também descobri que era p meio da mútua identificação projetiva
que os casais reencenavam "cenários" pá sados (experiências e/ou
fantasias inconscientes) em seu relacionamento, e qu« "perseguição"
mútua, fantasiada e real (derivada da projeção de aspectos inf ar; do
superego), assim como o estabelecimento de um ego ideal
conjunto, influe ciavam poderosamente a vida de um casal.
Minha base de dados foram pacientes tratados por psicanálise e
psicoterap psicanalítica, a avaliação e o tratamento de casais com
conflito conjugal, e partic larmente os estudos de seguimento, a
longo prazo, de casais através da "janela"; psicanálise e da
psicoterapia psicanalítica de pacientes individuais.
Logo descobri que era impossível estudar as vicissitudes do
amor sem tai bem estudar as vicissitudes da agressão,
independentemente de o foco ser o rtí cionamento do casal ou o
indivíduo. Os aspectos agressivos do relacionamer, erótico do
casal emergiram como uma importante característica de todas as rd
coes sexuais íntimas, uma área em que o trabalho pioneiro de
Robert Stoller p: porcionou um esclarecimento significativo. Mas
achei que os aspectos agressiv da ambivalência universal das
relações objetais íntimas eram igualmente impe tantes, assim como
os componentes agressivos das pressões do superego, desenc deados
na vida íntima de um casal. A teoria psicanalítica das relações
objet; facilitou o estudo da dinâmica ligando os conflitos
intrapsíquicos e as relacõ interpessoais, as mútuas influências entre
o casal e seu grupo social circundar; assim como a interação do
amor e da agressão em todos esses campos.
Assim, apesar da melhor das intenções, as evidências
indiscutíveis me oh garam a focar, nitidamente, também a agressão
neste tratado sobre o amor. Ma justamente por isso, o
reconhecimento da maneira complexa pela qual o amor e agressão
se fundem e interagem na vida do casal também destaca os
mecanisrn pelos quais o amor pode integrar e neutralizar a agressão,
e, em muitas circunstá cias, triunfar sobre ela.
Sumário

Apresentação à Edição Brasileira................................................... vii

SidneiS. Schestatsky

Agradecimentos .............................................................................. ix

Prefácio .................................................................................... xiii

Capítulo l Determinantes e Constituintes da Experiência Sexual 3

Capítulo 2 Excitação Sexual e Desejo Erótico ......................... 17

Capítulo 3 Do Desejo Erótico ao Amor Sexual Maduro ........... 33

Capítulo 4 Amor Sexual Maduro, Édipo e o Casal .................. 48

Capítulo 5 Experiência Sexual e Psicopatologia ...................... 63

Capítulo 6 Agressão, Amor e o Casal .................................... 79

Capítulo 7 Funções Superegóicas Construtivas e Destrutivas do


Casal... 94
Capítulo 8 O Amor no Setting Analítico 109

Capítulo 9 Patologia Masoquista e Relações Amorosas.......................................... 122

Capítulo 10 Narcisismo e Relações Amorosas ......................................................... 137

Capítulo 11 Sexualidade da Latência, Processos de Grupo e


Convencionalidade ..................................................................................................... 156

Capítulo 12 Desafio Externo do Casal: Processos Grupais


Adolescentes e Adultos .............................................................................................. 171

Referências Bibliográficas.......................................................................................... 185


C a p í t u l o l

Determinantes e Constituintes
da Experiência Sexual

Q£ Jue o sexo e o amor estão estreitamente associados é uma afirmação quase ndiscutível. Portanto,
não deve causar surpresa que um livro sobre o amor :omece com uma discussão sobre as raízes
biológicas e psicológicas da ex-.a sexual, as quais estão intimamente relacionadas. Já que os
aspectos biológicos constituem a matriz em que os aspectos psicológicos podem se desenvol-
ver, comecemos explorando esses fatores biológicos.

As Raízes Biológicas da Experiência e do Comportamento Sexual

Ao investigarmos o desenvolvimento das características sexuais humanas, observamos que,


conforme avançamos na escala biológica do reino animal (particularmente quando comparamos
mamíferos inferiores com os primatas e os seres humanos), as interações psicossociais entre o
bebé e seu cuidador desempenham um papel cada vez mais significativo na determinação do
comportamento sexual, associadas a uma relativa diminuição no controle por fatores genéticos e
hormonais. Minhas principais fontes para o resumo que se segue são o trabalho pioneiro de
Money e Ehrhardt (1972), e os subsequentes avanços obtidos, talvez mais bem resumidos por
Kolodny e colaboradores (1979), Bancroft (1989) e McConaghy (1993).
Nos primeiros estágios de seu desenvolvimento, o embrião mamífero tem o potencial para ser
homem ou mulher. Gônadas indiferenciadas se transformam em testículos ou ovários, dependendo
do código genético representado pelas diferentes características do padrão cromossômico 46, XY
para os homens e XX para as mulheres. Gônadas primitivas no ser humano podem ser detectadas
desde aproximadamente a sexta semana de gestação, quando, sob a influência genética, são
4 Otto F. Kernberg

segregados hormônios testiculares nos homens: o hormônio inibidor dos dutos de Muller (MIH),
que possui um efeito desfeminizador na estrutura dos genitais internos femininos, e a
testosterona, que promove o crescimento dos órgãos masculinos internos e externos,
particularmente os dutos bilaterais de Wolff. Se estiver presente um código genético feminino, a
diferenciação ovariana começa na décima segunda semana gestacional.
A diferenciação sempre ocorre na direção feminina, independentemente da programação
genética, a menos que esteja presente um nível adequado de testosterona. Em outras
palavras, mesmo que o código genético seja masculino, uma quantidade inadequada de
testosterona resultará no desenvolvimento de características sexuais femininas. O princípio da
feminização tem prioridade em relação à masculinização. Durante a diferenciação feminina
normal, o primitivo sistema de dutos de Muller se transforma em útero, trompas de Falópio e no
terço interno da vagina. Nos homens, o sistema de dutos de Muller regride, e o sistema de dutos
de Wolff se desenvolve, transformando-se nos vasos deferentes, vesículas seminais e dutos
ejaculatórios.
Embora os precursores internos dos órgãos sexuais masculinos e femininos estejam ambos
presentes para desenvolvimento potencial, os precursores dos genitais externos são de um
único tipo, podendo se transformar ou em órgãos sexuais externos masculinos ou em femininos.
Sem a presença de níveis adequados de andrógenos (testosterona e di-hidrotestosterona) durante
o período crítico de diferenciação, começando na oitava semana gestacional, irão desenvolver-se
um clitóris, vulva e vagina. Mas com a presença de níveis adequados de estimulação andrógena,
formar-se-á o pênis, incluindo suas glândulas e o saco escrotal, e os testículos irão desenvolver-
se como órgãos intra-abdominais, que normalmente migram para sua posição escrotal durante o
oitavo ou nono mês de gestação.
Sob a influência dos hormônios fetais circulantes, ocorre um desenvolvimento dimórfico de
certas áreas do cérebro após a diferenciação dos genitais internos e externos. O cérebro é
ambitípico e, nele, o desenvolvimento das características femininas também prevalece, a menos
que haja um nível adequado de andrógenos circulantes. As funções hipotalâmicas e pituitárias
específicas que serão diferenciadas no sentido do funcionamento cíclico nas mulheres, e não-
cíclico nos homens, são determinadas por esta diferenciação. A diferenciação masculino/feminino
do cérebro ocorre somente no terceiro trimestre, após ter ocorrido a diferenciação dos órgãos
externos, e possivelmente continua seu desenvolvimento durante o primeiro trimestre pós-natal.
Nos mamíferos não-primatas, a diferenciação hormonal pré-natal do cérebro predetermina o
subsequente comportamento de acasalamento. Nos primatas, entretanto, a comunicação e
aprendizagem social inicial são extremamente importantes na determinação do comportamento
sexual, de modo que o controle do comportamento concreto de acasalamento é determinado
amplamente pelas primeiras interações sociais.
As características sexuais secundárias—a distribuição da gordura corporal e pêlos, mudança
na voz, desenvolvimento dos seios e um significativo crescimento
Psicopatologia das Relações Amorosas 5

dos genitais —, que emergem durante a puberdade, são desencadeadas por fatores do sistema
nervoso central e controladas por um significativo aumento de andrógenos e estrógenos
circulantes, como o são as funções femininas específicas da menstruação, gestação e lactação.
Os desequilíbrios hormonais podem alterar as características sexuais secundárias,
provocando, na falta de andrógenos, a ginecomastia nos homens e, no caso de andrógenos
excessivos, o hirsutismo, engrossamento da voz e hipertrofia clitoridiana nas mulheres. Mas as
influências das alterações dos níveis hormonais no desejo e no comportamento sexual são muito
menos claras.
Exatamente como o sistema nervoso central afeta o início da puberdade também não está
claro ainda; a redução na sensibilidade do hipotálamo ao feedback negativo foi considerada um
dos mecanismos envolvidos (Bancroft, 1989). Nos homens, a disponibilidade inadequada de
andrógenos circulantes reduz a intensidade do desejo sexual; mas quando os andrógenos
circulantes estão em níveis normais, ou acima do normal, o desejo e o comportamento sexual são
notavelmente independentes dessas flutuações. A castração pré-puberal nos meninos que não
recebem reposição de testosterona leva à apatia sexual. A testosterona exógena durante a
adolescência, nos homens com fracasso primário de androgenização, restaura o desejo e o
comportamento sexual normal. A resposta à terapia de reposição com testosterona nos anos
posteriores, todavia, quando a apatia tornou-se estabelecida, é menos satisfatória: aqui,
sequências críticas no tempo parecem desempenhar um papel. Da mesma forma, embora estudos
em mulheres indiquem um desejo sexual aumentado imediatamente antes e depois do fluxo
menstrual, a dependência do desejo sexual determinada pelas flutuações hormonais é insignificante
quando comparada aos estímulos psicossociais. De fato, McConaghy (1993) julga que o desejo
sexual feminino é mais influenciado por fatores psicossociais do que o masculino.
Nos primatas e em formas inferiores de mamíferos, o interesse sexual, assim como o
comportamento sexual, é fortemente controlado pelos hormônios. Nos roedores, o comportamento
de acasalamento é determinado apenas pelo estado hormonal, e uma injeção pós-natal
inicial de hormônios pode influenciar crucialmente tal comportamento. A castração pós-
puberal leva a um decréscimo gradual da ereção e do interesse sexual, um decréscimo que
progride por semanas ou anos; a administração de testosterona reverte imediatamente esta
indiferença. Injeções de andrógenos em mulheres na pós-menopausa aumentam seu desejo
sexual, sem modificar de maneira nenhuma sua orientação sexual.
Em resumo, no ser humano os andrógenos parecem influenciar a intensidade do desejo sexual
tanto nos homens quanto nas mulheres, mas no contexto de uma clara predominância dos
determinantes psicossociais na excitação sexual. Embora nos mamíferos inferiores, como os
roedores, o comportamento sexual seja controlado amplamente pelos hormônios, os primatas
apresentam certa modificação desse controle pelos estímulos psicossociais. Os macacos Rhesus são
estimulados pelo odor de um hormônio vaginal segregado pela fêmea na época da ovulação; as
6 Ofío F. Kernberg

macacas Rhesus ficam muito interessadas em acasalar-se na época da ovulação, mas também se
interessam em outros momentos; aqui, novamente, os níveis de andrógenos influenciam a
intensidade do comportamento sexual apresentado pelas fêmeas. A injeção de testosterona na área
pré-ótica dos ratos machos desperta neles um comportamento maternal e de acasalamento, mas
sua copulação com as fêmeas persiste. A testosterona parece liberar o comportamento maternal,
uma capacidade que o macho contém em seu cérebro e o que fala a favor do controle do sistema
nervoso central sobre diversos aspectos do comportamento sexual. Este achado biológico sugere
que o potencial para comportamentos sexuais habitualmente característicos de um género, ou
característicos de mais de um género, também existem no outro género.
A intensidade da excitação sexual, a atenção centrada nos estímulos sexuais, as respostas
fisiológicas de excitação sexual caracterizadas pelo fluxo sanguíneo aumentado, tumescência e
lubrificação dos órgãos sexuais, estão todas sob influência hormonal.

A. Fatores Psicossociais

A discussão precedente abrange aquilo que é quase inequivocamente aceito como biológico;
passaremos agora a áreas mais controversas, e a áreas ainda longe de ser bem entendidas, em que os
determinantes biológicos e psicológicos se sobrepõem ou interagem entre si. Uma dessas áreas
centrais é a que envolve a identidade de género nuclear e a identidade de papel de género. No ser
humano, a identidade de género nuclear (Stoller, 1975) — isto é, o sentimento do indivíduo de ser ou
homem ou mulher—é determinado pelo género atribuído a ele por seus cuidadores durante os
primeiros dois a quatro anos de vida, e não por suas características biológicas. Money
(1980,1986,1988; Money e Ehrhardt, 1972) e Stoller (1985) ofereceram evidências convincentes a
este respeito. Da mesma forma, a identidade de papel de género—isto é, a identificação do
indivíduo com certos comportamentos típicos em homens ou em mulheres numa dada sociedade
— é também fortemente influenciada por f afores psicossociais. Além disso, a exploração
psicanalítica revela que a seleção do objeto sexual — o alvo do desejo sexual—também é fortemente
influenciada pelas experiências psicossociais iniciais.
No que segue, examino evidências importantes referentes às raízes desses constituintes da
experiência sexual humana. Em resumo, elas são:

— Identidade de género nuclear: se a pessoa se considera homem ou mu


lher.
— Identidade de papel de género: as atitudes psicológicas e os comporta
mentos interpessoais específicos — padrões gerais de interação social,
assim como padrões específicos referentes às interações sexuais — que
Psicopatologia das Relações Amorosas 7

são característicos ou dos homens ou das mulheres, e portanto os diferenciam.


A seleção de um objeto sexual, quer heterossexual quer homossexual, quer centrada numa ampla
variedade de interações sexuais com o objeto sexual, quer restrita a uma determinada parte da
anatomia humana, não-humana ou objeto inanimado.
A intensidade do desejo sexual, expressada pela dominância de fantasias sexuais, estado de alerta
aos estímulos sexuais, desejos de se engajar em comportamentos sexuais e excitação fisiológica dos
órgãos genitais.

B. Identidade de Género Nuclear

Money e Ehrhardt (1972) oferecem evidências de que os pais, em circunstâncias comuns,


mesmo que acreditem estar tratando um bebé do sexo masculino ou um bebé do sexo feminino
exatamente da mesma maneira, apresentam diferenças determinadas pelo género no seu
comportamento em relação ao bebé. Embora existam diferenças homem/mulher baseadas na
história hormonal pré-natal, estas diferenças não predeterminam automaticamente a diferenciação
pós-natal homem/ mulher: a patologia hormonal f eminizadora nos homens ou a patologia
hormonal masculinizante nas mulheres, exceto em condições de um grau extremo de anor-
malidade hormonal, podem influenciar mais a identidade de papel de género do que a identidade
de género nuclear.
Andrógenos em excesso, no período pré-natal da menina, podem ser responsáveis, por
exemplo, por molecagens mais características de meninos e maior gasto de energia em recreação e
agressão. Uma inadequada estimulação androgênica pré-natal nos meninos pode provocar uma
certa passividade e não-agressividade, mas não influencia a identidade de género nuclear.
Além disso, as crianças hermafroditas que são criadas sem nenhuma ambiguidade como
meninos ou meninas irão desenvolver uma sólida identidade como homens ou mulheres em con-
sonância com as práticas de sua educação, independentemente de sua dotação genética,
produção hormonal e inclusive—até certo ponto—da aparência externa do seu desenvolvimento
genital (Meyer, 1980; Money e Ehrhardt, 1972).
Stoller (1975), Person e Ovesey (1983,1984) exploraram o relacionamento entre a patologia
inicial na interação entre a criança e os pais e a consolidação da identidade de género nuclear. O
estudo do transexualismo — isto é, o estabelecimento de uma identidade de género nuclear
contrária à biológica em indivíduos com um género biológico claramente definido—não mostrou
que ele está relacionado a anormalidades genéticas, hormonais ou genitais físicas. Embora a
pesquisa sobre sutis variáveis biológicas, particularmente nas transexuais mulheres, levante a
possibilidade de algumas influências hormonais, a evidência esmagadora é a favor de uma severa
patologia nas primeiras interações psicossociais.
Em relação a isso, a investigação psicanalítica com crianças com identidade sexual anormal,
assim como a história de transexuais adultos, proporciona informações sobre os padrões
significativos primeiramente descritos por Stoller (1975). Estes incluem, para os transexuais homens
(homens biológicos que sentem ter uma identidade nuclear de mulher), uma mãe com fortes
componentes bissexuais de personalidade, mantendo-se distante de um marido passivo ou não-
disponível, e que engolfa seu filho como se este lhe provasse, simbolicamente, a identidade
sexual complementar que lhe faltasse. Esta simbiose idílica com a mãe que implicitamente elimina
a masculinidade do menino, levando-o, simultaneamente, a uma excessiva identificação com a mãe
e à rejeição do papel masculino sentido como inaceitável para a mãe e inadequadamente
modelado pelo pai. Nas transexuais mulheres, o comportamento rechaçante da mãe em relação à
filhinha e a ausência de um pai disponível impulsionam a menina, que não se sente reforçada
enquanto menininha, a tornar-se um homem substituto, para com isto aliviar o sentimento de
solidão e depressão da mãe. Este comportamento masculino é encorajado pela mãe, cujo
desespero se alivia, e conduz a uma melhor solidariedade familiar.
O comportamento inicial dos pais, particularmente o da mãe, que influencia a identidade de
género nuclear e o funcionamento sexual em geral não é exclusivo dos seres humanos. O trabalho
clássico de Harlow e Harlow (1965) com primatas demonstrou que um apego adequado através
de um contato seguro, fisicamente próximo entre o bebé e a mãe, é essencial para o
desenvolvimento de uma resposta sexual normal nos macacos adultos: a ausência de uma
maternagem normal e, secundariamente, de interação com grupos de iguais em fases
desenvolvimentais críticas perturba a capacidade de resposta sexual na idade adulta. Esses
macacos permaneceram também desajustados em outras interações sociais.
Embora Freud (1905,1933) propusesse umabissexualidade psicológica para ambos os
géneros, ele postulou também que a mais primitiva identidade genital, tanto para os meninos
quanto para as meninas era masculina. Propôs que as meninas — primeiro fixadas no clitóris como
uma fonte de prazer paralela ao pênis do homem—mudavam de sua identidade genital primária (e
orientação homossexual implícita) da mãe para o pai, numa orientação edípica positiva, como
uma expressão do desapontamento por não ter um pênis, por sua ansiedade de castração e pelo
desejo simbólico de repor o pênis através de um filho do pai. Stoller (1975, 1985), entretanto,
sugeriu que, dado o intenso apego e relacionamento simbiótico com a mãe, a identificação
primitiva tanto dos bebés do sexo masculino quanto do feminino seria feminina, com uma
mudança gradual (como parte da separação-individuação) no bebé do sexo masculino, de uma
identidade feminina para uma identidade masculina. Mas Person e Ovesey (1983,1984), com base
em estudos de pacientes com orientação homossexual, travestismo e transexualismo, postularam
uma identidade de género original que é tanto masculina ou feminina desde o princípio.
Acredito que essa opinião concorda com os estudos da identidade de género nuclear nos
hermafroditas, realizados por Mayer (1988), Money e Ehrhardt (1972),
Psicopatologia das Relações Amorosas 9

assim como com as observações das interações entre as mães e os bebés de ambos os sexos desde o
início da vida, e com as observações psicanalíticas de crianças normaise de crianças com
transtornos sexuais, particularmente quando esses estudos psicanalíticos levam em consideração as
orientações sexuais conscientes e inconscientes dos pais (Galenson, 1980; Stoller, 1985).
Braunschweig e Fain (1971,1975), em concordância com a hipótese de Freud de uma
bissexualidade original em ambos os géneros, argumentam persuasivamente em favor de uma
bissexualidade psicológica derivada da identificação inconsciente do bebé com ambos os pais,
uma identificação bissexual inconsciente que é controlada pela natureza da interação mãe/bebé,
dentro da qual a identidade de género nuclear é estabelecida. Money e Ehrhardt (1972) afirmam
que não importa "se o pai faz o jantar e a mãe dirige o trator", isto é, os papéis de género
socialmente definidos que são executados pelos pais são irrelevantes, na medida em que sua
identidade de género como homem ou mulher esteja solidamente diferenciada.
A atribuição e a adoção de uma identidade de género nuclear determina, na prática, o
reforço de papéis de género que são socialmente considerados masculinos ou femininos. Na
medida em que haja uma identificação inconsciente com ambos os pais, portanto uma
bissexualidade inconsciente, o que é um achado universal na investigação psicanalítica, isto
também implica na identificação inconsciente com papéis socialmente atribuídos a um ou outro
género, fazendo com que existam fortes tendências para a ocorrência de atitudes e padrões de
comportamento bissexuais, assim como para que uma orientação bissexual seja um potencial
humano universal. Provavelmente a forte ênfase social e cultural na identidade de género nuclear
("Você deve ser ou um garotinho ou uma garotinha") é reforçada ou codeterminada pela
necessidade intrapsíquica de integrar e consolidar uma identidade pessoal em geral, de modo
que a identidade de género nuclear cimenta a formação da identidade básica do ego; nuclear;
Lichtenstein (1961) sugeriu há muitos anos que a identidade sexual pode constituir a base da
identidade do ego. Clinicamente, nós descobrimos que uma falta de integração da identidade
(a síndrome de difusão de identidade) coexiste regularmente com problemas de identidade de
género e, conforme Ovesey e Person (1973, 1976) enfatizaram, os transexuais normalmente
também apresentam severas distorções em outras áreas da sua identidade.

C. Identidade de Papel de Género

Em seu clássico estudo das diferenças de género, Maccoby e Jacklin (1974) concluíram, com
base no exame de uma enorme quantidade de dados, que existiam crenças totalmente infundadas
sobre essas diferenças de género; outras crenças acabaram bastante estabelecidas, e outras
ainda se encontravam abertas a questionamentos ou eram ambíguas. Crenças infundadas sobre
diferenças de gê-
10 Otto F. Kernberg

nero incluem a suposição de que as meninas são mais "sociais" do que os meninos, mais
"sugestionáveis", têm menor auto-estima, carecem de motivação para maiores realizações, são
melhores em aprendizagem mecânica e tarefas repetitivas simples, ao passo que os meninos são
melhores em tarefas que requerem um processamento cognitivo mais elevado e a inibição de
respostas anteriormente aprendidas; que os meninos são mais "analíticos", que as meninas são
mais afeta-das pela hereditariedade, os meninos pelo ambiente, que elas são "auditivas" e eles,
"visuais".
Por outro lado, diferenças de género que estão bem estabelecidas incluem o seguinte: que
as meninas possuem uma capacidade verbal maior do que a dos meninos, que eles as superam
em capacidade visual-espacial e em capacidade matemática, e que os homens são mais
agressivos. Permanecem em aberto as questões referentes a diferenças em sensibilidade tátil, medo,
timidez e ansiedade; nível de atividade, competitividade, dominância, obediência,
disponibilidade, e capacidades em relação a comportamento "maternal".
Quais das diferenças psicológicas são geneticamente determinadas, quais são socialmente
determinadas por agentes socializadores e quais espontaneamente aprendidas através da
imitação? Maccoby e Jacklin argumentam, e há muitas evidências para apoiá-los, que os fatores
biológicos estão claramente implicados nas diferenças de género referentes à agressão e
capacidade visualespacial. Existem evidências de maior agressividade masculina tanto nos seres
humanos quanto nos primatas subumanos; isso parece ser universal em todas as culturas, e as
evidências sugerem que os níveis de agressão são responsivos aos hormônios sexuais. É
provável que a predisposição masculina para a agressão se estenda a outros comportamentos, tais
como dominância, competitividade e nível de atividade, mas as evidências não são decisivas.
Maccoby e Jacklin também concluem que uma característica geneticamente controlada pode
assumir a forma de uma maior predisposição para apresentar um determinado tipo de
comportamento. Isto inclui comportamentos aprendidos, embora não se limite apenas a eles.
Friedman e Downey (1993) revisaram as evidências sobre a influência da patologia
hormonal pré-natal virilizadora nas meninas, em relação ao comportamento sexual pós-natal.
Examinaram os achados de um estudo sobre meninas com hiperplasia congénita da suprarenal, e
sobre meninas cujas mães ingeriram, durante a gravidez, drogas com atividade de esteróides
sexuais. Essas crianças foram criadas como meninas, mas, embora sua identidade de género
nuclear fosse feminina, a pergunta era até que ponto a dominância dos hormônios masculinos
pré-natais influenciaria esta identidade de género e a identidade de papel de género durante a
infância e adolescência.
Embora tenha sido encontrada uma modesta associação de andrógenos pré-natais
excessivos e uma maior prevalência de homossexualidade, mais significativo foi o achado de que,
independentemente das circunstâncias de educação, as meninas com hiperplasia congénita da
supra-renal apresentavam um comportamento mais "moleque", interessavam-se menos por
brincar combonecas ebebês e
Psicopatologia das Relações Amorosas 11

por adornos, e tendiam a preferir brinquedos como carrinhos e armas, mais do que os sujeitos-
controle. Elas tinham uma maior preferência por meninos como companheiros de brincadeiras, e
apresentavam maior gasto de energia e mais atividade violenta nas brincadeiras. Os achados
sugerem que o comportamento de papel de género na infância é influenciado por f atores
hormonais pré-natais. Friedman (comunicação pessoal) concorda com Maccoby e Jacklin (1974) que
a vasta maioria dos traços que diferenciam os meninos das meninas são, muito provavelmente,
determinados pela cultura.
Richard Green (1976) estudou a criação de meninos efeminados: descobriu que os fatores
dominantes que codeterminavam o desenvolvimento de comportamentos efeminados eram a
indiferença dos pais em relação ao comportamento feminino do filho ou o encorajamento desse
comportamento; também ocorria das crianças serem vestidas de mulher pela mãe ou por uma
mulher funcionando como tal, superproteção materna, ausência ou rejeição do pai, a beleza física
da criança ou a ausência de companheiros de brincadeiras do sexo masculino. O aspecto comum
crucial parecia ser a incapacidade dos pais ou do ambiente de desencorajar o comportamento
feminino da criança. Os resultados para esses meninos efeminados, no seguimento, foi uma alta
porcentagem de bissexualidade e homossexualidade, atingindo 75% no seguimento de 2/3 da
amostra original (Green, 1987).
Comportamentos característicos do outro género — moleque nas meninas, efeminado nos
meninos — estão frequente, mas não necessariamente, vinculados a uma escolha de objeto
homossexual. De fato, poderíamos considerar a identidade de papel de género relacionada tão
estreitamente à identidade de género nuclear quanto à escolha de objeto: uma orientação sexual
dirigida para o próprio género da pessoa pode influenciar a adoção de papéis socialmente
identificados com o outro género. E, ao contrário, uma aculturação predominantemente em
direção a papéis de género que coincidem com os do outro género poderia predispor à ho-
mossexualidade. O que nos leva ao próximo elemento constituinte, ou seja, à escolha de objeto.

D. A Escolha do Objeto Dominante

Money (1980) e Perper (1985) empregaram o termo modelos organizadores do


comportamento humano ao referir-se ao objeto da excitação sexual do indivíduo. Perper acredita
que esses modelos não estão codificados, mas derivam-se de processos desenvolvimentais,
incluindo a regulação genética do desenvolvimento neural e a posterior construção
neurofisiológica da imagem do outro desejado. Money chama demapas do amor o
desenvolvimento dos objetos sexuais que seleci-onamos; ele os vê como derivados dos
esquemas implantados no cérebro e complementados pelo input ambiental antes dos 8 anos de
idade. Não podemos deixar de notar que a linguagem desses distinguidos pesquisadores do
primitivo desenvolvimento sexual humano permanece num nível muito geral quando estão
12 Otto F. Kernberg

discutindo a natureza da escolha do objeto sexual. Um achado impressivo de qualquer revisão da


literatura é que, em contraste com a extensiva pesquisa sobre a identidade de papel de género
e a identidade de género nuclear, muito pouca pesquisa, se é que alguma, foi feita sobre as
experiências sexuais das crianças.
Por trás dessa carência na pesquisa atual e em conhecimentos bem documentados está, eu
acredito, a persistência do tabu contra o reconhecimento da existência da sexualidade infantil que
Freud tão ousadamente desafiou. Esse tabu está vinculado às proibições ao comportamento
sexual infantil em nossa cultura. A antropologia cultural (Endleman, 1989) oferece evidências
de que, quando essas proibições culturais não estão presentes, as crianças espontaneamente se
engajam em variados comportamentos sexuais. Galenson e Roiphe (1974), observando crianças
num contexto naturalista de um berçário, descobriu que os meninos começam a brincar com seus
genitais por volta do sexto ou sétimo mês, as meninas no décimo ou décimo primeiro mês e que a
masturbação está estabelecida por volta dos 15 ou 16 meses, para ambos os géneros. As crianças
da classe trabalhadora apresentam uma probabilidade duas vezes maior de se masturbar do que
as de classe média, sugerindo que a estrutura de classe e a cultura influenciam o comportamento
sexual.
Fisher (1989) relatou como a capacidade das crianças de pensar logicamente sobre seus
genitais está dramaticamente atrasada comparada com o nível geral de sua lógica, como as meninas
tendem a ignorar seu clitóris e mistificar a natureza da vagina, e como os pais inconscientemente
repetem com seus filhos suas próprias experiências de supressão sexual na infância. Também há
evidências de apreciável ignorância em relação a questões sexuais durante toda a adolescência.
Money e Ehrhardt (1972) e Bancroft (1989) referem que há um medo universal de investigar a
sexualidade infantil. No entanto, com a atual e crescente preocupação pública com o abuso sexual
das crianças, Bancroft sugere (página 152) que seja concebível "que a necessidade de um melhor
entendimento da sexualidade infantil venha a ser mais amplamente reconhecida, e que as
pesquisas neste aspecto da infância possam tornar-se mais fáceis de executar no futuro". Mesmo a
psicanálise, até recentemente, não havia ainda descartado o conceito dos "anos de latência"
como uma fase durante a qual haveria muito pouco interesse e atividade sexual. Há atualmente
uma consciência crescente entre os analistas infantis de que os assim chamados anos de latência
não sejam tão caracterizados por uma redução do interesse ou atividade sexual, mas sim por um
maior controle e supressão internalizados do comportamento sexual (Paulina Kernberg,
comunicação pesso-ai).
As evidências, parece-me, apontam esmagadoramente para os fatores psicológicos, ou
melhor, psicossociais, como determinantes na constituição da identidade de género nuclear, para as
influências psicossociais como tendo um papel significativo, se não exclusivo, na identidade de
papel de género, embora sejam menos claras as evidências de que tais fatores influenciem
decisivamente a escolha do
Psicopatologia das Relações Amorosas 13

objeto sexual. A vida sexual dos primatas nos fala da importância da aprendizagem inicial, do conta
to mãe-bebê, e das relações com os iguais no desenvolvimento do comportamento sexual e do papel
relativo decrescente dos hormônios na determinação da escolha do objeto sexual, em comparação
com os mamíferos não-primatas. No bebé humano, como vimos, estes processos evoluem ainda
mais.
Meyer (1980) sugeriu que, assim como o bebé e a criança pequena se identificam
inconscientemente com o genitor do mesmo género ao estabelecer as identidades de género nuclear e
de papel de género, ele ou ela também se identificam com o interesse sexual deste genitor pelo outro.
Money e Ehrhardt (1972) também enfatizam que as regras do comportamento masculino/feminino são
aprendidas, e enfatizam a identificação da criança com aspectos recíprocos e complementares do
relacionamento dos homens e mulheres. A notável evidência clínica do mútuo comportamento
sedutor entre a criança e os seus pais é frequentemente ignorada nos estudos académicos da
identidade de género e do papel de género, talvez em virtude do persistente tabu cultural contra a
sexualidade infantil.
Duas contribuições específicas das observações e teoria psicanalítica são relevantes nessas
questões. A primeira é uma teoria psicanalítica das relações objetais que permite a incorporação dos
processos de identificação e da complementaridade dos papéis em um modelo único de
desenvolvimento. Á segunda, a teoria de Freud do complexo de Édipo, discuto posteriormente em outro
contexto. Aqui me refiro a trabalhos anteriores, em que propus que a formação da identidade origina-
se do primitivo relacionamento entre o bebé e a mãe, particularmente quando as experiências do bebé
envolvem intenso afeto, quer prazeroso, quer doloroso.
Os traços de memória que se estabelecem sob essas condições afetivas deixam o esquema
nuclear da representação doselfdo bebé interagindo com a representação de objeto da mãe, sob o
impacto ou de um afeto prazeroso ou de um afeto desagradável. Em consequência, formam-se duas
séries paralelas, e originalmente separadas, de representações doselfe do objeto e suas correspondentes
disposições afetivas positiva e negativa. Essas representações, respectivamente "totalmente boas" e
"totalmente más" do se//e do objeto, finalmente se integram em numa representação do self to tal e
em uma representação total de outras pessoas significativas, um processo que constitui a integração
normal da identidade. Em escritos anteriores (Kernberg, 1976,1980,1992) também enfatizei minha
convicção de que a identidade é constituída por identificações feitas a partir da relação com um
objeto, e não com o próprio objeto. Esta suposição implica uma identificação com o self e o outro
interagindo entre si, e uma internalização dos papéis recíprocos dessa interação. O estabelecimento da
identidade de género nuclear — isto é, de um conceito integrado de self que define a identificação da
pessoa com um género ou outro—não pode ser visto separado do estabelecimento de um conceito
integrado e correspondente de um outro que inclua um relacionamento com este outro como objeto
sexual desejado. Este vínculo entre identidade de género nuclear e a escolha do objeto sexualmente
desejado explica, ao mesmo tempo, a intrínseca
14 Otto F. Kernberg

bissexualidade do desenvolvimento humano: nós nos identificamos tanto com o nosso próprio self
quanto com nosso objeto de desejo.
Na medida em que a criança do sexo masculino, por exemplo, experiência a si mesma como um
filho homem amado por sua mãe, ela se identifica com o papel de filho homem ao mesmo tempo que
com o papel de mãe mulher, e adquire a capacidade, em relacionamentos posteriores, de atualizar
sua representação dosei/ enquanto projeta a representação da mãe em outra mulher, ou de
representar — em certas circunstâncias — o papel da mãe, enquanto projeta sua representação do self
em outro homem. A dominância da representação do self como filho homem, como uma parte da
identidade do ego, assegurará a dominância de uma orientação heterossexual (incluindo a busca
inconsciente da mãe em todas as outras mulheres). A dominância da identificação com a
representação da mãe pode determinar um tipo de homossexualidade nos homens (Freud, 1914).
Na garotinha, na medida ení que seu primeiro relacionamento com a mãe cimenta sua
identidade de género nuclear, ao identificar-se tanto com seu próprio papel quanto com o papel da
mãe na sua interação, seu desejo posterior de substituir o pai como objeto amoroso da mãe, assim como
sua escolha positiva do pai na relação edípica, consolidam sua identificação inconsciente também com
o pai. Ela portanto também estabelece uma identificação bissexual inconsciente. A identificação com
um relacionamento, e não com uma pessoa, e a construção de predisposições recíprocos de ambos os
papéis na mente inconsciente, sugerem que a bissexualidade é psicologicamente determinada, e
expressa na capacidade de se adquirir, ao mesmo tempo, tanto uma identidade de género nuclear
quanto um interesse sexual pela pessoa do mesmo ou do outro género. Isto também facilita a
integração dos papéis de género do outro género com o nosso próprio, e a identificação com papéis de
género socialmente transmitidos, correspondentes ao nosso próprio género e ao outro.
Esta visão do início da sexualidade sugere que o conceito de Freud (1933) de uma bissexualidade
original estava correto, assim como seu questionamento do aparente vínculo entre a sexualidade e
as diferenças estruturais biológicas dos géneros conhecidas em sua época. Em outras palavras, nós
ainda não temos provas de que haja uma conexão direta entre a predisposição anatómica dimórfica
para a bissexualidade e a bissexualidade psíquica derivada das primitivas experiências da criança.

E. Intensidade do Desejo Sexual

Como vimos, os mecanismos biológicos do interesse sexual, excitação sexual e intercurso sexual,
incluindo o orgasmo, são relativamente bem conhecidos. É o estímulo que evoca a resposta sexual,
embora a qualidade subjetiva assumida pela excitação ainda seja uma questão em aberto. Igualmente,
nós ainda carecemos de
Psicopatologia das Relações Amorosas 15

um consenso em relação a como medir os fatores quantitativos da intensidade da excitação. Um outro


problema é o estudo comparativo da excitação masculina e feminina; novamente, embora seus
concomitantes fisiológicos sejam bem conhecidos, suas semelhanças e diferenças psicológicas
permanecem controvertidas.
Resumindo o que examinei anteriormente, um nível adequado de andrógenos circulantes parece
ser pré-requisito para a capacidade humana de resposta sexual, influenciando o desejo sexual tanto
nos homens quanto nas mulheres; mas em níveis hormonais normal e acima do normal, o desejo e o
comportamento sexuais são notavelmente independentes destas flutuações hormonais.
Nos seres humanos, o fator dominante que determina a intensidade do desejo sexual é cognitivo
— a consciência do interesse sexual refletido em fantasias sexuais, lembranças e a atenção aos
estímulos sexuais. Mas experiência não é puramente "cognitiva", pois ela contém também um forte
elemento afetivo. De fato, a experiência sexual é acima de tudo uma experiência afetivo-cognitiva.
Fisiologicamente, a memória afetiva está relacionada ao sistema límbico, que é o substrato
neural da sexualidade, assim como de outras funções apetitivas (Maclean, 1976). Estudos de
animais demostraram que áreas límbicas selecionadas determinam a ereção e a ejaculação, e a existência
tanto de mecanismos de excitação como de inibição que afetam a resposta periférica da ereção.
Comportamentos de cópula em macacos Rhesus do sexo masculino foram induzidos por estimulação
elétrica do hipotálamo lateral e do núcleo dorsomedial do hipotálamo, levando a sequências de coito e
ejaculação enquanto os macacos tinham liberdade para movimentar-se.
De acordo com Bancroft (1989), a excitação sexual humana é uma resposta global que inclui
fantasias, memórias e desejos sexuais específicos, assim como uma maior percepção e busca de
estímulos externos ref orçadores, que são relativamente específicos da orientação sexual do indivíduo. A
excitação sexual, de acordo com Bancroft, inclui o sistema límbico sob a influência desse estado
cognitivo-afetivo, que estimula o centro medular e os centros de controle neural periférico, que
determinam a tumescência, lubrificação e sensibilidade local aumentada dos órgãos genitais,
proporcionando umfeedback central da percepção dessa ativação genital. O que, por minha parte,
sugiro é que a excitação sexual é também um afeto específico, que preenche todas as características de
outras estruturas afetivas, e que constitui o "bloco construtor" central do impulso sexual ou libidinal,
como um sistema motivacional global.
A terminologia nesta área talvez precise de um certo esclarecimento. Biologi-camente, a resposta
sexual pode ser dividida em interesse sexual, excitação sexual e orgasmo. Entretanto, já que o
interesse sexual pode ocorrer sem a ativação das respostas genitais específicas, e são possíveis estas
respostas genitais com um limitado ou mínimo interesse sexual, parece preferível empregar o
termointeresse sexual para nos referirmos a uma percepção ampla do estímulo sexual, pelo pensar a
respeito, estar interessado e responder a ele.Excitaçãogenital refere-se ao desenvol-
16 Otto F. Kernberg

vimento de uma resposta genital plena: a tumescência vascular conduzindo à ere-ção no homem e aos
correspondentes processos eréteis e lubrificação vaginal na mulher, com turgescência secundária dos
seios e ereção dos mamilos.
Excitação sexual parece um termo apropriado para a resposta total, incluindo os aspectos
cognitivos específicos e a experiência subjetiva de interesse sexual, excitação genital, orgasmo e os
correspondentes aspectos neurovegetativos e de expressões faciais (parte do que Freud chamou de
processo de descarga) desse afeto. Considero a excitação sexual, por sua vez, como sendo o afeto
básico de um fenómeno psicológico mais complexo, a saber, o desejo erótico, em que a excitação sexual
está vinculada a um relacionamento emocional com um objeto específico. Examinemos entre a
natureza da excitação sexual e sua elaboração até o desejo erótico.
C a p í t u l o 2

Excitação Sexual e Desejo Erótico

Q i afetos são, em termos filogenéticos, relativamente recentes, característi-os dos


mamíferos, com a função biológica básica de comunicação entre o »ebê e quem o cuida,
além da comunicação geral entre indivíduos, a serviço dos instintos básicos (Krause, 1990). Se
alimentar-se, lutar ou fugir e acasalar-se são organizações instintivas básicas, os correspondentes
estados afetivos podem ser considerados como componentes seus, que adquirem papéis
hierarquicamente superiores conforme ascendemos na escada evolutiva, particularmente nos primatas, e,
é claro, nos seres humanos.
A excitação sexual ocupa um lugar muito especial entre os afetos. Parece óbvio que ela tem
raízes em funções biológicas e em estruturas que servem ao instinto básico da reprodução no reino
animal e que ela ocupa, igualmente, uma posição central na experiência psicológica humana. Mas a
excitação sexual não se desenvolve tão cedo e não é tão uniforme em suas manifestações quanto os
afetos primitivos como a raiva, alegria, tristeza, surpresa ou nojo. Em seus constituintes cognitivos e
subjetivos, ela se assemelha aos afetos mais complexos como orgulho, vergonha, culpa ou desprezo.
A psicanálise, assim como a observação de bebés psicanaliticamente inspirada, nos forneceu
abundante evidência de que a excitação sexual se origina no contexto das experiências prazerosas dos
primeiros relacionamentos intrafamiliares, especialmente os do bebê-cuidadores, culminando na
centralidade madura das sensações genitais da puberdade e adolescência. A difusa sensibilidade da
pele envolvida no comportamento de apego inicial, as qualidades sexualmente excitan-

17
18 Otto F. Kernberg

tes daquilo que Freud descreveu como as zonas erotogênicas,


osimprints* cognitivos e os desenvolvimentos da fantasia inconsciente
vinculados a uma ativação afetiva prazerosa desde quando bebé, e daí
em diante culminam na experiência cognitivo-afetiva específica de
excitação sexual.
O foco específico, consciente e inconsciente, da escolha de
objeto sexual do indivíduo transforma a excitação sexual no desejo
erótico. O desejo erótico inclui um desejo de relacionamento sexual
com um determinado objeto. A excitação sexual, entretanto, não
deixa de ter objeto. Como acontece com outros afetos, ela existe em
relação a um objeto, mas aqui o objeto é um "objeto parcial"
primitivo, inconscientemente refletindo as experiências fusionais da
simbiose e os desejos de fusão da fase mais primitiva da separação-
individuação.
Em suas origens, no primeiro e segundo anos de vida, a
excitação sexual é difusa e vinculada à estimulação das zonas
erógenas. Em contraste, o afeto do desejo erótico é mais elaborado,
e a natureza específica da relação de objeto é cognitivamente mais
diferenciada.
O desejo erótico é caracterizado pela excitação sexual
vinculada ao objeto edípico; o desejo é de uma fusão simbiótica com
o objeto edípico no contexto da fusão sexual. Em circunstâncias
normais, a excitação sexual no indivíduo maduro é ativada no
contexto do desejo erótico, de modo que a distinção feita por mim
entre estes dois afetos pode parecer forçada ou artificial. Mas em
circunstâncias patológicas, tais como em patologias narcísicas
graves, o desmantelamento do mundo interno das relações objetais
pode levar à incapacidade de desejo erótico, com uma excitação
sexual que se expressa como manifestação aleatória, difusa, não-
seletiva e perpetuamente insatisfeita, ou, inclusive, com a ausência da
capacidade de experienciar qualquer excitação sexual que seja.
O amor sexual maduro, conforme discutiremos nos capítulos
seguintes, expande o desejo erótico para um relacionamento com uma
pessoa específica, em que a ativação de relacionamentos
inconscientes do passado e as expectativas conscientes de uma vida
futura como casal se combinam com a ativação de um ideal do ego
conjunto. O amor sexual maduro implica num comprometimento
na esfera dos' sistemas sexual, emocional e de valores.
As definições propostas imediatamente levantam certas
perguntas: se a excitação sexual e o desejo erótico se desenvolvem
no contexto do relacionamento primitivo entre o bebé e o seu
cuidador e da situação edípica em desenvolvimento, eles são
secundários ao desenvolvimento dessas relações objetais? As
disposições biológicas são "recrutadas", por assim dizer, a serviço do
mundo em desenvolvimento das relações objetais internalizadas e
reais? Ou é a gradual maturação do aparelho biológico que permite o
desenvolvimento da excitação sexual, quem irá organizar as relações
objetais primitivas e mais maduras. Aqui, entramos no território
controverso da teoria psicanalítica que se refere aos
relacionamentos entre

* Respostas comportamentais adquiridas cedo na vida, não reversíveis, e


normalmente liberadas por certos estímulos ou situações desencadeadoras. (N. do
T.)
Psicopatologia das Relações Amorosas 19

instintos biológicos, impulsos psicológicos e relações objetais internalizadas. Será necessário


explorar essas questões antes de retornarmos às estruturas cognitivas particulares envolvidas no
desejo erótico — as primitivas estruturas de fantasia que transformam a excitação sexual no
desejo erótico.

Instintos, Impulsos, Afetos e Relações Objetais

Conforme Holder (1970) salientou, Freud diferenciou claramente os impulsos dos instintos.
Ele via os impulsos como motivadores psicológicos do comportamento humano, constantes em
vez de intermitentes. Por outro lado, concebia os instintos como biológicos, herdados e
intermitentes, no sentido de terem de ser ativados por fatores fisiológicos e/ou ambientais. A
libido é um impulso, a fome é um instinto.
Laplanche e Pontalis (1973) enfatizam adequadamente como Freud sempre se referiu aos
instintos como padrões de comportamento intermitentes, herdados, que variam um pouco de um
membro da espécie para outro. É impressionante ver quão estreitamente o conceito de instinto de
Freud se assemelha à moderna teoria do instinto na biologia, conforme representada, por
exemplo, por Lorenz (1963), Tinbergen (1951) e Wilson (1975). Esses investigadores
consideram os instintos como organizações hierárquicas de padrões perceptivos,
comportamentais e comunicativos biologicamente determinados, liberados por fatores
ambientais que ativam mecanismos inatos. Este sistema biológico-ambiental é considerado
epigenético. Conforme Lorenz e Tinbergen ilustraram em sua pesquisa com animais, a
organização do vínculo maturacional e desenvolvimental de padrões de comportamento inatos
distintos, em um determinado indivíduo, é muito determinada pela natureza da estimulação
ambiental. Os instintos, nesta visão, são sistemas biológicos motivadores hierarquicamente
organizados. Normalmente classificados na linha dos comportamentos alimentares, de luta ou
fuga, ou de acasalar-se (e talvez ao longo de outras dimensões parecidas), eles representam a
integração entre as disposições inatas e os processos de aprendizagem determinados pelo
ambiente.
Embora Freud reconhecesse as fontes biológicas básicas dos impulsos, repetidamente
enfatizou a falta de informações disponíveis referentes aos processos que transformariam essas
predisposições biológicas em motivação psíquica. Seu conceito de libido ou de impulso sexual era
o de uma organização hierarquicamente pré-ordenada a integrava impulsos sexuais "parciais"
desenvolvimentalmente mais primitivos. A teoria dual dos impulsos, da sexualidade e agressão
(1920) representa sua concepção final dos impulsos como a fonte fundamental do conflito
psíquico inconsciente e da formação das estruturas psíquicas. Freud descreveu as fontes
biológicas dos impulsos sexuais de acordo com a excitabilidade das zonas erotogênicas, mas não
descreveu as fontes biológicas tão concretas assim para a agressão. Em contraste com as fontes
fixas da libido, caracterizou os objetivos e
20 Otto F. Kernberg

objetos tanto dos impulsos sexuais quanto dos agressivos como


mutáveis durante todo o desenvolvimento psíquico: a continuidade
desenvolvimental das motivações sexuais e agressivas poderia assim
ser reconhecida numa ampla variedade de desenvolvimentos
psíquicos complexos.
Freud propôs (1915a,b) que os impulsos se manifestavam por
meio de representações psíquicas, ou ideias — que configurariam a
expressão cognitiva do impulso — e de um afeto. Quanto aos
afetos, Freud modificou sua definição deles pelo menos duas vezes
(Rapaport, 1953). Originalmente (1894) considerou os afetos como
equivalentes aos impulsos; mais tarde (1915a,b), concebeu-os como
produtos da descarga dos impulsos (particularmente seus aspectos
prazerosos ou dolorosos, psicomotores e neurovegetativos).Estes
processos de descarga podem atingir a consciência, mas não sofrem
repressão; somente a representação mental do impulso é reprimida,
juntamente com a memória ou com a disposição para a ativação do
afeto correspondente. Finalmente (1926), Freud descreveu os afetos
como disposições inatas do ego (no que se refere a seus limiares
de ativação e canais de expressão e enfatizou suas funções
sinalizadoras.
Se os afetos e as emoções (isto é, afetos cognitivamente
elaborados) são estruturas complexas, incluindo experiências
subjetivas de dor ou prazer associadas com ingredientes cognitivos
e expressivo-comunicativos específicos e padrões de descarga
neurovegetativa, e se eles estão presentes — como os
pesquisadores de bebés descobriram (Emde, 1987; Emde e
colaboradores, 1978; Izard, 1978; Stern, 1985) — desde as
primeiras semanas e meses de vida, serão então os afetos as
principais forças motivacionais do desenvolvimento psíquico? Se eles
incluem tanto componentes cognitivos quanto afetivos, o que resta no
conceito mais amplo de impulso que não está contido no conceito de
afeto? Freud concluiu que os impulsos estão presentes desde o
nascimento, mas também concluiu que eles amadurecem e se
desenvolvem. Poderíamos argumentar que a maturação e o
desenvolvimento dos afetos são expressões dos impulsos
subjacentes, mas se todas as funções e manifestações dos impulsos
podem ser incluídas nas funções e manifestações dos afetos em
desenvolvimento, seria difícil sustentar um conceito de impulsos
independentes subjacentes à organização dos afetos. De fato, a
transformação dos afetos por todo o desenvolvimento, sua integração
com relações objetais internalizadas, sua total e progressiva dicotomia
em afetos prazerosos, constituindo a série libidinal, e dolorosos,
constituindo a série agressiva, tudo aponta para a riqueza e complexi-
dade de seus elementos cognitivos e afetivos.
Vejo, portanto, os afetos como estruturas instintivas
(Kernberg, 1992), de natureza psicofisiológica biologicamente
dadas, desenvolvimentalmente ativadas e incluindo componentes
psíquicos. Acredito que é este aspecto psíquico que se organiza para
constituir os impulsos agressivos e libidinais descritos por Freud. Os
impulsos sexuais parciais, em minha opinião, são integrações mais
limitadas, restritas, de estados afetivos correspondentes, ao passo que
a libido como um impulso é o resultado da integração
hierarquicamente supra-ordenadora desses estados afetivos—isto
é, a integração de todos os estados afetivos eroticamente centrados.
Psicopatologia das Relações Amorosas 21

Consequentemente, em contraste com a visão


psicanalítica ainda bastante prevalente dos afetos simplesmente como
produtos de descarga, eu os considero como sendo as estruturas —
ponte entre os instintos biológicos e os impulsos psíquicos. Acredito
também que o desenvolvimento afetivo está baseado em relações
objetais afetivamente investidas, que constituem uma memória
afetiva. Emde, Izard e Stern apontam para a função central das
relações objetais na ativação dos afetos. Esta associação apoia minha
proposição de que os estados afetivos mais iniciais, fixados na
memória, incluem essas relações de objeto.
Penso que a ativação de diferentes estados
afetivos em direção ao mesmo objeto ocorre sob a influência de
uma variedade de tarefas desenvolvimentais e padrões de
comportamento instintivo biologicamente ativados. A resultante
variedade de estados afetivos dirigidos ao mesmo objeto pode
proporcionar uma explicação económica de como os afetos são
ligados e transformados em séries motivacionais supra-
ordenadoras que se tornou mais tarde o impulso sexual ou
agressivo. Por exemplo, as estimulações orais prazerosas durante a
amamentação e as estimulações anais prazerosas durante o
treinamento esfincteriano, podem resultar numa condensação de
interações prazerosas do bebé com a mãe, que ligams esses
desenvolvimentos oral e anal. E a reação raivosa às frustrações
durante o período oral e as lutas de poder características doperíodo
anal podem ligar estados afetivos agressivos consoantes, resultando
assim no impulso agressivo. Além disso, o intenso investimento
afetivo positivo do bebé na mãe durante o estágio de prática da fase
de separação-individuação (Mahler e colaboradores, 1975) pode
ligar-se com um anseio investido sexualmente em relação a ela,
derivado da ativação das sensações genitais no estágio edípico do
desenvolvimento.
Mas se consideramos os afetos como os
principais "blocos construtores" psicobiológicos dos impulsos, e
como os primeiros sistemas motivacionais, ainda teremos de explicar
como eles se organizam em sistemas hierarquicamente supra-
ordenádores. Por que não dizer que os principais afetos em si mesmos
é que são os sistemas motivacionais fundamentais? Uma vez que
acredito que os afetos sofrem uma multiplicidade de transformações
e combinações secundárias durante o desenvolvimento, uma teoria
da motivação baseada apenas nos afetos e não nos dois impulsos
básicos seria muito complicada e clinicamente insatisfatória.
Também acredito que a integração inconsciente das
experiências mais primitivas, afetivamente determinadas, requer
a assunção de uma organização motivacional de nível mais elevado
do que a representada pelos estados afetivos per se. Precisamos supor
um sistema motivacional que faça justiça à complexa integração
de todos os desenvolvimentos afetivos em relação aos objetos
parentais.
Da mesma forma, um esforço para substituir
tanto a teoria do impulso quanto a do afetopor uma teoria do apego ou
das relações objetais, que rejeita o conceito de impulso, conduz à
redução da complexidade da vida intrapsíquica, enfatizando somente
os elementos positivos ou libidinais do apego e negligenciando a
organização inconsciente da agressão. Embora em teoria isso não
tenha que ser necessariamente assim, na prática os teóricos das
relações objetais que rejeitaram a teoria
22 Otto F. Kernberg

do impulso, em minha opinião, também negligenciaram


seriamente os aspectos motivacionais da agressão.
Por essas razões, penso que não devemos substituir uma
teoria do impulso por uma teoria do afeto ou por uma teoria das
relações objetais da motivação. Em resumo, parece bastante razoável
e preferível considerar os afetos como os blocos construtores dos
impulsos. Os afetos são portanto o vínculo entre componentes
instintivos biologicamente determinados, por um lado, e a organização
intrapsíquica dos impulsos, por outro. A correspondência das
séries dos estados afetivos recompensadores e aversivos com as
linhas duais da libido e da agressão faz sentido tanto clínica quanto
teoricamente.
Este conceito dos afetos como blocos construtores dos impulsos
resolve, acredito eu, alguns problemas persistentes na teoria
psicanalítica dos impulsos. Pensar nos afetos deste modo nos leva a
ampliar o conceito das zonas erógenas como a "fonte" da libido para
uma consideração geral a respeito de todas as funções psico-
logicamente ativadas, e zonas corporais envolvidas, nas interações
afetivamente investidas do bebé e da criança com a mãe. Essas
funções incluem também a mudança das preocupações com as
funções corporais para as preocupações com funções sociais e
desempenho de papéis. O conceito proposto por mim também oferece
os vínculos que faltam, na teoria psicanalítica, entre as "fontes" das
interações mãe-bebê agressivamente investidas, e a função "zonal"
da rejeição agressiva da ingestão oral, do controle anal, das brigas
físicas diretas pelo poder ligadas aos ataques de raiva da criança,
etc. As relações objetais com investimento afetivo são o que
energiza as "zonas" fisiológicas.
A ativação psicofisiológica sequencial da tristeza, raiva e medo
primitivos — e mais tarde da depressão e culpa — determina a
correspondente série de investimentos agressivos nosd/e no objeto.
Tais investimentos são reativados nos conflitos inconscientes
relativos à agressão, que se expressam na transferência. A
internalização direta das disposições afetivas libidinais e agressivas
como parte das representações do self e do objeto (em termos
técnicos, "relações objetais internalizadas") integradas nas estruturas
do ego e superego representa, na minha formulação, os
investimentos libidinais e agressivos dessas estruturas.
O id, de acordo com este conceito da relação entre impulsos e
afetos, consiste em relações objetais internalizadas, reprimidas,
intensamente agressivas ou sexualizadas. A condensação e o
deslocamento característicos dos processos mentais do id refletem o
vínculo entre as representações dose//e do objeto afetivamente
relacionadas e as correspondentes séries agressivas, libidinais e,
mais tarde, combinadas.
Este conceito de impulsos também nos permite fazer justiça aoinput,
biologicamente determinado, das novas experiências afetivas
durante toda a vida. Essas experiências incluem a ativação da
excitação sexual durante a adolescência, quando os estados afetivos
eroticamente excitantes são integrados com a excitação genital e com
emoções e fantasias eroticamente carregadas derivadas do estágio
edípico do desenvolvimento. Em outras palavras, a intensificação
dos impulsos (tanto
Psicopatologia das Relações Amorosas 23

libidinais quanto agressivos) em vários estágios do ciclo da vida é


determinada pela incorporação de estados afetivos
psicofisiologicamente ativados aos sistemas aferi vos preexistentes
hierarquicamente organizados.
Falando de modo mais geral, em minha opinião, uma vez que a
organização dos impulsos como os sistemas motivacionais
hierarquicamente supra-ordenados esteja consolidada, qualquer
ativação específica de impulsos no contexto do conflito intrapsíquico é
representada pela ativação de estados afetivos correspondentes. O
estado afetivo inclui uma relação objetal internalizada, basicamente
uma determinada representação do self relacionada a uma
determinada representação do objeto, sob o impacto de um
determinado afeto. A relação de papéis recíprocos entre self e
objeto, moldada pelo afeto correspondente é normalmente
expressada como um fantasia ou um desejo. Fantasias inconscientes
consistem nessas unidades de representação ao self, de representação
do objeto e de um afeto que os vincula. Os afetos, em resumo, são
também os sinais ou representantes dos impulsos — como Freud
(1926) havia sugerido, assim como seus blocos construtores.
Freud (1905) descreveu a libido como um impulso,
originando-se da estimulação das zonas erógenas, caracterizado por
um determinado objetivo, pressão à descarga e objeto. Conforme
afirmei, acredito que a libido se origina de esta-Z.OB afetivos
primitivos, incluindo um estado de elação que se encontra no relacio-
namento inicial mãe-bebê e característico da experiência e fantasia
simbióticas. As experiências cotidianas afetuosas e geralmente
prazerosas com a mãe, e os estados de tranquilidade, são também
integrados a estes anseios libidinais.
A excitação sexual é uma afeto posterior e mais diferenciado;
ela entra como um componente crucial do impulso libidínal, mas sua
origem como um afeto reside na integração de experiências
eroticamente matizadas, que resultam da estimulação das várias
zonas erógenas. Na verdade, na medida em que a excitação sexual
como um afeto envolve todo o campo da experiência psíquica, ela
não está limitada à estimulação de uma ou outra das zonas erógenas,
mas se expressa como sensações prazerosas no corpo todo.
Assim como a libido, ou o impulso sexual, resulta da
integração de estados afetivos positivos ou gratificantes, também o
impulso agressivo resulta da integração de uma multiplicidade de
experiências afetivas negativas ou aversivas—raiva, nojo ou ódio. A
raiva, na verdade, pode ser considerada como o afeto central da
agressão. As características e o desenvolvimento primitivos da raiva
foram extensivamente documentados pelos pesquisadores de bebés;
em torno das reações de raiva se agrupa a complexa formação
afetiva da agressão, como um impulso. A r-esquisa de bebés
documenta a função primordial da raiva como a tentativa de
eliminar a fonte de dor ou irritação. Nas fantasias inconscientes que
se desenvolvem em torno das reações de raiva, a raiva vem a
significar tanto a ativação do relacionamento do objeto "totalmente
mau" quanto o desejo de eliminá-lo e restaurar o "totalmente bom",
representado pelas relações objetais que se desenvolveram s A o
impacto de estados afetivos positivos, libidinais. Mas a
psicopatologia da agressão não se limita à intensidade e frequência
dos ataques de raiva: o afeto que
24 Otfo F. Kernberg

vem a constituir a agressão como um impulso é o complexo e


elaborado afeto do ódio, que se constitui como uma raiva estável,
estruturada e dirigida para um objeto.
A agressão também entra na experiência sexual. Veremos que o
ato de penetrar e ser penetrado incorpora a agressão a serviço do
amor, utilizando o potencial erotogênico da experiência da dor como
um contribuinte crucial para a fusão gra-tificante com o outro, na
excitação sexual e no orgasmo. Esta capacidade normal de transformar
a dor em excitação erótica fracassa quando uma severa agressão
domina o relacionamento mãe-bebê, e é provavelmente uma ponte
crucial para a excitação erótica provocada ao induzirmos sofrimento
nos outros.
Acredito que esta formulação dos relacionamentos entre
impulso e afetos faz justiça à teoria dual dos impulsos de Freud, e ao
mesmo tempo vincula harmoniosamente a teoria psicanalítica com a
teoria contemporânea dos instintos na biologia, e com as
observações do desenvolvimento do bebé e na primeira infância.
Se a excitação sexual é o afeto básico, em torno do qual se
agrupa a constelação de afetos que, juntos, constituem a libido como
um impulso, o desejo erótico, isto é, a excitação sexual dirigida a um
objeto particular, liga a excitação sexual ao mundo das relações
objetais internalizadas,no contexto da estruturação edípica da
realidade psíquica. O desejo erótico, na verdade, contribui para a
integração das relações objetais parciais em relações objetais totais,
isto é, representações cindidas ou dissociadas àoselfe do objeto, em
representações totais ou globais dos mesmos. Este desenvolvimento
aprofunda a natureza da experiência sexual, um processo que,
eventualmente, culminará no amor sexual maduro.

Aspectos Clínicos e Genéticos do Desejo Erótico

Quais são as características clínicas do desejo erótico conforme se tornam manifestas no


curso da exploração psicanalítica?
Em primeiro lugar, ele é uma busca de prazer sempre orientada para uma outra pessoa,
um objeto a ser penetrado ou invadido, ou que se é por ele penetrado ou invadido. E um anseio de
proximidade, fusão e entrelaçamento que implica em cruzar poderosamente uma barreira e
tornar-se um com o objeto escolhido. As fantasias sexuais conscientes ou inconscientes referem-
se à invasão, penetração ou apropriação, incluindo relações entre protuberâncias e cavidades do
corpo: pênis, mamilo, língua, dedo e fezes no lado que penetra ou invade; e vagina, boca e ânus
no lado receptivo ou que acolhe. A gratificação erótica prometida pela estimulação rítmica dessas
partes do corpo diminui ou desaparece quando o ato sexual não serve à função inconsciente
mais ampla de fusão com um objeto. "Continente" e "conteúdo" não devem ser confundidos
com feminino e masculino, passivo e ati-vo; o desejo erótico inclui fantasias de incorporação ativa
e ser passivamente penetrado, juntamente com a penetração ativa e ser passivamente incorporado.
Sugeri que abissexualidade psicológica, no sentido da identificação tanto com oself quan-
Psicopatologia das Relações Amorosas 25

to com o objeto enquanto em interação sexual específica, é universal para homens e mulheres.
Poderíamos dizer que a bissexualidade é, antes de tudo, uma função da identificação com ambos
os participantes da relação sexual, ou com todos os três ("o terceiro excluído"), na triangulação da
experiência sexual.
Uma segunda característica do desejo erótico é a identificação com a excitação sexual e o
orgasmo do parceiro, de modo a usufruir duas experiências complementares de fusão. O primeiro
elemento aqui é o prazer derivado do desejo do outro, o amor expressado na resposta do outro
ao desejo sexual dose//, e a experiência associada de fusão no êxtase. Juntamente com isso existe
o sentimento de tornar-se ambos os géneros ao mesmo tempo, de superar temporariamente aquela
barreira normalmente impenetrável que separa os géneros, com um sentimento de completude e
satisfação pelo aspecto penetrante e acolhedor, penetrado e acolhido, da invasão sexual. Nesta
conexão, um deslocamento simbólico de todas as partes "penetrantes" da anatomia de ambos os
parceiros, e de todas as aberturas "acolhedoras" ou "penetráveis" do outro, assinala a condensação
do erotismo de todas as zonas, uma regressão esperada na excitação sexual à "confusão zonal"
(Meltzer, 1973), e à consequente confluência, na atividade ou contato sexual, de fantasias e
experiências refletindo toda a superfície corporal de ambos os participantes. Nesta identificação
com o outro existe uma gratificação do desejo de fusão, de anseios homossexuais e também de
rivalidade edípica porque, por implicação, todos os outros relacionamentos desaparecem no
relacionamento único e fusionado do par sexual. Pelo mesma razão, identificar-se
inconscientemente com ambos os géneros elimina a necessidade de invejar o outro género, e, ao
continuar sendo ele mesmo e também a outra pessoa, existe um sentimento de transcendência
intersubjetiva.
Uma terceira característica do desejo erótico é um sentimento de transgressão, de superar as
proibições envolvidas em todos os encontros sexuais, uma proibição derivada da estruturação
edípica da vida sexual. Este sentimento assume muitas formas; a mais simples e mais universal
é a transgressão contra os limites sociais habituais que protegem a intimidade das superfícies
corporais e a intimidade da excitação sexual, da sua exibição pública. Stendhal (1822) salientou
primeiro que o próprio ato de despir-se repele as noções sociais de vergonha, e permite que os
amantes se defrontem um com o outro sem esta vergonha; vestir-se após o encontro sexual é um
retorno à vergonha convencional. A moralidade convencional (Kernberg, 1987) tende a suprimir
ou regular aqueles aspectos do encontro sexual mais diretamente relacionados aos objetivos infantis
polimorfos, e são esses objeti-vos, prototipicamente estruturados nas perversões sexuais, que
expressam mais diretamente a excitação sexual, a intimidade erótica e a transgressão das
convenções sociais.
Basicamente, a transgressão inclui violar as proibições edípicas, constituindo-se assim um
desafio ao rival edípico e um triunfo sobre ele. Mas a transgressão também inclui uma transgressão
contra o próprio objeto sexual, experienciado ao mesmo tempo como sedutoramente provocador e
indispensável. O desejo erótico inclui um sentimento de que o objeto está tanto se oferecendo
como se retraindo, e
26 Otto F. Kernberg

que a penetração sexual ou engolfamento do objeto é uma violação das fronteiras deste último.
Neste sentido, a transgressão envolve também uma agressão contra o objeto, uma agressão que é
excitante em sua gratificação prazerosa e reverberando com a capacidade de experienciar prazer na
dor, e a projeção dessa capacidade no objeto. A agressão também é prazerosa porque está sendo
contida por um relacionamento amoroso. Assim nós temos a incorporação da agressão ao amor
e a garantia da segurança em face da ambivalência inevitável.
O aspecto de êxtase e agressão no esforço para perder as fronteiras do self representa um
aspecto complexo do desejo erótico. Bataille (1957) propôs, num contexto diferente, que as
experiências mais intensas de transcendência ocorrem sob o "signo" do amor e sob o "signo" da
agressão. Ele sugere que uma das características mais dramáticas do funcionamento humano é
que o rompimento das fronteiras entre o self e os outros ocorre em momentos da mais profunda
regressão no êxtase amoroso, e em condições de extrema dor. A intimidade que se desenvolve
entre o torturador e o torturado, e seus dramáticos efeitos sobre a experiência psíquica de ambos,
provavelmente se origina na normalmente dissociada ou reprimida consciência mais primitiva das
relações de fusão "totalmente más" entre oself e o objeto, que constitui a contraparte do objeto
dissociado "inteiramente bom" no estágio simbiótico do desenvolvimento.
O desejo erótico transforma a excitação genital e o orgasmo numa experiência de fusão com o
outro, que proporciona um sentimento fundamental de realização, de transcender os limites do
self. Esta fusão também facilita, na experiência do orgasmo, um sentimento de unidade com os
aspectos biológicos da experiência pessoal. Pela mesma razão, no entanto, ser o objeto da dor
induzida pelo outro, e identificar-se com o objeto agressivo e sentir-se também como sua vítima,
cria um sentimento de união na dor que reforça a fusão no amor. Induzir dor no outro e
identificar-se com o prazer erótico do outro na dor é o sadismo erótico, a contraparte do masoquismo
erótico. O desejo erótico, com relação a isso, também inclui um elemento de rendição, de se
aceitar escravizado ao outro, ou inversamente de ser o senhor do destino do outro. A extensão em
que essa fusão agressiva será contida pelo amor é, de modo importante, mediada pelo superego, o
guardião do amor que contém a agressão. Em resumo, tanto no prazer quanto na dor existe a
busca de uma intensa experiência afetiva, que temporariamente apaga as fronteiras do self, uma
experiência que pode dar à vida um significado fundamental, uma transcendência que
vincula o comprometimento sexual com o êxtase religioso e a experiência de liberdade além dos
limites da existência cotidiana.
A idealização do corpo do outro ou dos objetos que simbolicamente represen-
tam esse corpo é um aspecto essencial do desejo erótico. Lussier (1982) e Chasseguet-Smirgel
(1985b) salientaram a função central da idealização, respectivamente, no fetichismo e na
perversão em geral. Esta idealização é uma defesa e representa a negação da regressão anal na
perversão, e a negação da ansiedade de castração. Concordo com eles quanto à importante
função da idealização como um mecanismo na patologia; mas também acredito (1988b) que a
idealização da anatomia do
Psicopatologia das Relações Amorosas 27

parceiro sexual e da superfície de seu corpo, seja um aspecto crucial da integração normal dos
anseios ternos e eróticos tanto nas relações heterossexuais quanto homossexuais. Esta
idealização erótica é semelhante aos processos de idealização normal no amor romântico descrito
por Chasseguet-Smirgel (1985a): a projeção do ideal de ego no objeto amado com um simultâneo
aumento na própria auto-estima. No amor sexual maduro a replicação do ideal de ego na forma
do objeto amado idealizado, cria um sentimento de harmonia com o mundo e a realização do
sistema de valores e dos ideais estéticos da pessoa: a moralidade e a beleza são realizadas na
relação amorosa.
Meltzer e Williams (1988) propuseram a existência de um "conflito estético" mais inicial,
vinculado à atitude do bebé em relação ao corpo da mãe. O amor do bebé pela mãe, eles dizem, é
expressado na idealização da superfície do corpo da mãe, e, pela introjeção do amor da mãe que
se expressa na idealização que ela também faz do corpo do bebé, há uma identificação com ela
nesta auto-idealização. Essa idealização daria origem ao mais antigo senso de valor estético e de
beleza. Ao contrário da superfície do corpo, Meltzer e Williams vêem a agressão dissociada
dirigida à mãe, como dirigida principalmente para o interior do seu corpo; e, por projeção, o bebé
vivência então o interior do corpo da mãe como muito perigoso. De acordo com isto, o desejo e a
fantasia de invadir com violência o corpo da mãe são uma expressão da agressão e da inveja de
sua beleza exterior, assim como da sua capacidade de dar vida e amor. A idealização das
superfícies corporais da mãe, por outro lado, seria uma defesa contra a perigosa agressão que
estaria, à espreita, sob aquela superfície. A contribuição de Chasseguet-Smirgel (1986) aos
aspectos arcaicos do complexo de Edipo (a destruição fantasiada do interior do corpo da mãe, d
o pênis do pai e dos bebés do pai; e a transformação do interior da mãe numa cavidade infinita e
sem limites) é um importante esclarecimento da natureza da agressão e dos medos primitivos
dirigidos ao corpo da mãe.
Para esses autores, a origem da idealização que os homens fazem do corpo das mulheres
pode ser rastreada até a idealização da superfície do corpo da mãe e à excitação evocada pela
superfície do corpo dela; da mesma forma, as origens dos medos inconscientes vinculados à
vagina e ao interior do corpo das mulheres podem ser traçados até às primeiras relações do bebé
com sua mãe.
Igualmente, nos homens, a idealização de partes do corpo de parceiros homossexuais pede
regularmente ser ancorado na idealização do corpo da mãe. A idealização de partes do corpo do
homem por parte das mulheres é originalmente bem menos proeminente; esta capacidade, no
entanto, vem a se desenvolver no contexto de .uma relação sexual gratificante com um homem,
que inconscientemente possa representar o pai edípico que reafirma a beleza e valor do corpo da
mulher, e que assim libera sexualidade genital feminina de sua inibição inicial infantil. Em
ambos os géneros, a integração dos elementos ternos e eróticos das relações objetais também
proporciona mais profundidade e complexidade à idealização das superfícies do corpo.
28 Oito F. Kernberg

O corpo da pessoa amada se torna uma geografia de significados pessoais, de modo que
as primitivas relações fantasiadas perverso-polimorfas, com os objetos parentais, são
também condensadas com a relação admiradora e invasiva com as partes do corpo do
amante. O desejo erótico está enraizado no prazer de reencarnar fantasias e atividades
inconscientes perverso-polimorfas, incluindo a ativacão simbólica da primitiva relação objetal
do bebé com a mãe, e, depois, da criança pequena com ambos os pais. Tudo isso é
expressado nos componentes perversos dos jogos e do intercurso sexual—na felação,
cunilíngua, penetração anal e nos jogos sexuais exibicionistas, voyeuristas e sádicos. Aqui, é
central o vínculo entre a relação inicial com a mãe em ambos os géneros, e o prazer com a
interpenetração das superfícies, protuberâncias e cavidades corporais. Os cuidados físicos
que a mãe presta ao bebé ativam a consciência erótica de suas próprias superfícies corporais,
e, por projeção, a consciência erótica das superfícies corporais da mãe. O amor recebido
na forma de estimulação erótica das superfícies corporais se torna o estímulo para o desejo
erótico como um veículo para a expressão de amor e gratidão.
A mulher que ama um homem ficará eroticamente excitada por aspectos da geografia
de seu corpo, e, caracteristicamente, se esse amor termina, sua idealização e interesse pelo
corpo dele se extinguirão. Por seu lado, os homens narcisistas que dão a impressão de
perder, rapidamente, o interesse por aspectos previamente idealizados do corpo de uma
mulher, serão capazes de reativar esse interesse se e quando, em consequência do tratamento
psicanalítico, a deterioração inconsciente das relações objetais internalizadas (tipicamente
relacionadas à profunda inveja das mulheres) puder ser resolvida. Estou sugerindo que, em
ambos os géneros, e apesar das dessemelhanças relacionadas às diferentes histórias de seu
desenvolvimento sexual, a idealização das superfícies corporais, um aspecto central do desejo
erótico, é uma função da disponibilidade das primitivas relações objetais
internalizadas. E a história pessoal de uma relação amorosa fica simbolicamente inscrita
em aspectos da anatomia do objeto amado.
A falta de ativacão ou a extinção do erotismo da superfície corporal determina uma
inibição sexual primária, quando uma intensa agressão e uma paralela falta de
estimulação prazerosa da superfície corporal se combinam de maneira a interferir com o
desenvolvimento dos primeiros processos de idealização como parte da estimulação
erótica. Essa inibição é ilustrada no caso de uma mulher cujo intenso amor transferencial
estava associado ao desejo de que eu a matasse. A repressão secundária da excitação
sexual, vinculada ao funcionamento posterior do superego e posteriores proibições
edípicas, é muito menos severa e tem um prognóstico muito melhor no tratamento.
O desejo de provocar e ser provocado é outro aspecto central no desejo erótico. Este
desejo não pode ser completamente separado da excitação decorrente do superar uma
barreira de algo proibido, e portanto é vivenciado como pecaminoso ou amoral. O objeto
sexual é sempre, aufond, um objeto edípico proibido, e o ato sexual uma repetição e
superação simbólica da cena primária. Mas aqui estou enfatizando o objeto retraindo-se e
provocando, numa combinação de promessa e
Psicopatologta das Relações Amorosas 29

retraimento, de sedução e frustração. Um corpo nu pode ser sexualmente estimu-


lante, mas um corpo parcialmente escondido é muito mais. Há boas razões pelas
quais à nudez completa no final de umshow de strip tease, segue-se a rápida saída da
dançarina.
A provocação sexual costuma estar tipicamente, embora não exclusivamen-
te, vinculada à provocação exibicionista, e ilustra a íntima relação entre exibicionismo
e sadismo: o desejo de excitar e frustrar o outro significativo. Pela mesma razão, o
voyeurismo é a resposta mais simples à provocação exibicionista, e constitui uma
penetração sádica sobre o objeto que se retrai. Como nas outras perversões, é carac-
terístico que o exibicionismo sejaum desvio sexual típico dos homens, ao passo que
o comportamento exibicionista esteja muito mais frequentemente entrelaçado como
estilo de caráter das mulheres. As interpretações psicanalíticas do exibicionismo
feminino como uma reação formativa à inveja do pênis devem ser aperfeiçoadas
para incorporar o recente reconhecimento do passo que a garotinha dá ao mudar
sua escolha de objeto da mãe para o pai: o exibicionismo pode ser um apelo, à
distância, para sua própria afirmação sexual. O amor e a aceitação por parte do pai
de sua filha pequena em sua genitalidade vaginal reconfirmam sua identidade
feminina e auto-aceitação (Paulina Kernberg, comunicação pessoal).
A experiência da sexualidade feminina como sendo ao mesmo tempo
exibicionista e evasiva — isto é, provocadora — é um poderoso estímulo para o
desejo erótico noshomens. E a experiência de ser provocado também provoca agres-
são, um motivo para o impulso agressivo de invadir o corpo da mulher, uma fonte
dos aspectos voyeuristas da relação sexual que contêm o desejo de dominar, expor,
e de encontrar e superar barreiras de verdadeira e falsa vergonha na mulher ama-
da. Superar a vergonha não é o mesmo que humilhação; o desejo de humilhar
normalmente inclui uma terceira parte, uma testemunha da humilhação, e implica
num grau maior de agressão, que ameaça a capacidade de uma relação objetal
sexual exclusiva.
O impulso voy eurista de observar um casal em intercurso sexual—a expres-
são simbólica de um desejo de interromper violentamente a cena primária—é uma
condensação do desejo de penetrar na privacidade e no segredo do casal edípico e
de vingar-se da mãe provocadora. O voyeurismo é um importante componente da
excitação sexual no sentido de que toda a intimidade sexual implica num elemento
de privacidade e segredo e, como tal, numa identificação com o casal edípico e num
potencial triunfo sobre ele. O frequente sintoma de muitos casais que não conse-
guem usufruir o sexo em sua própria casa, na proximidade dos filhos, mas somente
num outro lugar isolado, ilustra a inibição desse aspecto da intimidade sexual.
O que nos leva a mais um aspecto do desejo erótico, a saber, a oscilação entre
o desejo de segredo, intimidade e exclusividade,por um lado, e o desejo de escapar
da intimidade sexual, de uma descontinuidade radical (André Green, comunica-
ção pessoal), por outro. Contrariamente à crença popular de que é apenas a mulher
quem deseja manter intimidade e exclusividade, e o homem quem quer se afastar
após a gratificação sexual, as evidências clínicas mostram tanto homens se quei-
30 Otto F. Kernberg

xando de anseios dependentes frustrados por sua percepção da dedicação af etuosa


da esposa a seus bebés e crianças pequenas, quanto mulheres que se queixam da
incapacidade dos maridos de se manter sexualmente interessados nelas.
Embora seja verdade que existam diferentes tipos de descontinuidade sexual
nos homens e nas mulheres, o próprio fato da existência de descontinuidades no
envolvimento sexual, e de repetidas rupturas mesmo num relacionamento amoro-
so continuado, são importantes contrapartidas do segredo, intimidade e aspectos
fusionais do desejo e comportamento eróticos. De fato, a perda desta
descontinuidade, a ocorrência de uma relação sexual que se funde com a vida
cotidiana e a substitui, pode criar uma acumulação de elementos agressivos de
experiências fusionais que acabam ameaçando todo o relacionamento. O filme ja-
ponês "In the Realm ofthe Senses", de Nagisa Oshima, ilustra a gradual deterioração,
até uma agressão desenfreada, do relacionamento de dois amantes cujo encontro
sexual se torna totalmente autoconsumidor, eliminando o relacionamento com o
mundo externo.
O desejo erótico e o amor sexual absorvem e expressam todos os aspectos da
ambivalência comum das relações objetais íntimas. A intensidade dos aspectos
af etuosos, ternos, perverso-polimorfos—particularmente sadomasoquistas—da
relação sexual reflete a expressão desta ambivalência e constitui o cimento básico
para as relações amorosas. Mas, de maneira mais específica, esta ambivalência é
ilustrada pelo que descrevo como a triangulação direta e inversa das relações sexu-
ais (veja Capítulo 6), essencialmente, as fantasias inconscientes e conscientes que
acompanham o desejo erótico e o intercurso sexual. O desejo de ser o objeto amo-
roso único, preferido, triunfante e exclusivo do próprio parceiro sexual, com a
concretização dos triunfos contra o rival edípico vividos em cada encontro sexual,
é a contraparte daquele outro desejo, o de estar envolvido com dois parceiros sexu-
ais do sexo oposto, numa vingança contra o genitor edípico frustrante, provocador
e evasivo. Essas dinâmicas edípicas são o outro lado dos seus precursores primiti-
vos, em que a profunda ambivalência em relação à mãe e à eliminação do pai
primitivo provocam a ameaça de uma fusão agressiva com a destruição do objeto
amado e a ameaçadora negativa do mundo idílico de fusão extática com a mãe
primitiva idealizada (A. Green, 1993).
Durante toda a discussão desses componentes do desejo erótico eu me
referi a algumas de suas raízes genéticas. Braunshweig e Eain (1971,1975)
oferecem uma ideia atraente em relação às características do desejo erótico em
termos do desenvolvimento da relação do bebé e da criança pequena com a mãe.
Resumindo brevemente essas ideias: o relacionamento inicial dos bebés de ambos
os géneros com a mãe determina a capacidade posterior da criança de excitação
sexual e desejo erótico. Os cuidados que a mãe presta e sua expressão de prazer na
estimulação física da superfície corporal dobebê do sexo masculino enquanto
comunica seu amor por ele desenvolvem o desejo erótico dobebê; obebê se
identifica com a mãe sob aquela estimulação e também se identifica com ela ao se
sentir abandonado quando a mãe o deixa para voltar ao pai como uma mulher
sexual. Os bebés percebem que a
Psicopatoíogia das Relações Amorosas 31

atitude da mãe não é a mesma na presença do pai e na sua ausência (Paulina


Kernberg, comunicação pessoal).
Braunschweig e Fain atribuem um papel crucial ao afastamento psicológico
da mãe em relação ao bebé. É nesse momento que o bebé se identifica com a mãe
frustrante (ainda que também estimulante), com sua estimulação erótica e com o
casal sexual, isto é, o pai como objeto da mãe. Esta identificação do bebé com ambos
os pais proporciona a estrutura básica para uma bissexualidade psíquica, e conso-
lida a situação triangular na fantasia inconsciente da criança.
O reconhecimento pelo bebé masculino de sua frustração e da censura implí-
cita de seu desejo erótico pela mãe transformaria a sua estimulação erótica em
fantasias e atividades masturbatórias, incluindo o desejo de substituir o pai e, na
fantasia simbólica primitiva, de tornar-se o pênis do pai e o objeto de desejo da
mãe.
Na menina pequena, a rejeição sutil e inconsciente que a mãe faz da excitação
sexual, que ela experiência livremente em relação ao menino, inibe gradualmente
a consciência direta, por parte da menina de sua genitalidade vaginal original;
ficaria, então, gradualmente menos consciente de seus próprios impulsos genitais
ao mesmo tempo em que seria menos diretamente frustrada pela descontinuidade
na relação com a mãe, A identificação com o erotismo da mãe tomaria formas mais
sutis, derivadas da tolerância da mãe, e de seu estímulo à identificação de sua filha
com ela em outras áreas. Com um tácito entendimento da natureza "subterrânea"
de sua própria genitalidade, a identificação cada vez maior da menina com sua
mãe também reforçaria seu anseio pelo pai, e sua identificação com ambos os mem-
bros do casal edípico.
A mudança de objeto da menina, da mãe para o pai, determinaria sua capa-
cidade de desenvolver uma relação objetal profunda com o pai amado e admirado
mas distante, e a secreta esperança de eventualmente ser aceita por ele e assim ficar
livre para expressar sua sexualidade genital. Este desenvolvimento estimula a ca-
pacidade da menina de comprometer-se emocionalmente com um relacionamento
objetal, o que determina desde o início uma capacidade maior na mulher do que no
homem para um compromisso desse tipo em sua vida sexual, desde o início.
A explicação reside no exercício precoce da confiança, no voltar-se da menina
da mãe para o pai, no amor dele e em sua afirmação da feminilidade dela "à distân-
cia", na capacidade dela de transferir suas necessidades de dependência para um
objeto fisicamente menos disponível do que a mãe, e também pela mesma mudan-
ça de objeto, no escape dos conflitos e ambivalência pré-edípicos em relação à mãe.
Nos homens, cuja continuidade do relacionamento com a mãe se prolonga para os
outros objetos femininos constituindo uma potencial perpetuação dos conflitos
pré-edípicos e edípicos com a mãe, há uma dificuldade maior para lidar com a
ambivalência em relação às mulheres e um desenvolvimento mais lento em sua
capacidade de integrar necessidades genitais com necessidades de ternura. As
mulheres, em contraste, tendem a desenvolver sua capacidade posterior para uma
relação genital completa, no contexto da capacidade anterior para o relacionamen-
32 Otto F. Kernberg

to amoroso profundo com um homem. Em resumo, os homens e as mulheres de-


senvolvem, em ordem oposta, suas capacidades para uma satisfação sexual plena
e uma relação objetal profunda.
A teoria de Braunschweig e Fain, parece-me, proporciona uma nova aborda-
gem psicanalítica às observações da masturbação genital precoce em ambos os
géneros (Galenson & Roiphe, 1977) e às consistentes observações clínicas na psica-
nálise de mulheres, referentes aos aspectos eróticos das reações das mães aos seus
bebés. As implicações da teoria para o nosso entendimento do desejo erótico pare-
cem evidentes: o relacionamento entre o desejo erótico e o desejo de fusão como
expressão dos anseios simbióticos pela mãe (Bergmann, 1971); a busca do objeto
provocador e a qualidade vingativa dos elementos agressivos da excitação
sexual; a qualidade perversa polimorfa do desejo erótico como expressão de sua
origem nos primeiros estágios desenvolvimentais; os diferentes
desenvolvimentos nas atitudes masculinas e femininas referentes aos aspectos
genitais e ternos do erotismo; a conexão entre a sexualização da dor e a busca de
fusão na dor, e os aspectos agressivos do desejo erótico; a bissexualidade psíquica;
os conflitos inconscientes em relação a um "terceiro excluído"; e a
descontinuidade referente às relações sexuais.
C a p í t u l o 3

Do Desejo Erótico ao Amor


Sexual Maduro

hegamos agora ao mais complexo estágio das transformações


C desenvolvimentais que, partindo da excitação sexual como um afeto básico, leva ao desejo
erótico por uma outra pessoa e culmina, finalmente, no amor sexual maduro. Os poetas e
filósofos descreveram os pré-requisitos e componentes do amor maduro melhor do
que uma dissecção psicanalítica poderia alcançar. No entanto, o desejo de
compreender melhor as limitações para se obter a capacidade de amar maduramente
justificaria, a tentativa de se realizar tal dissecção.
Em essência, proponho que o amor sexual maduro é uma disposição emocio-
nal complexa que integra: 1) a excitação sexual transformada em desejo erótico por
uma outra pessoa; 2) ternura, que se origina da integração das representações do
selfe do objeto investidas de libido e agressão (com uma predominância do amor
em relação à agressão) e a tolerância da ambivalência normal que caracteriza todas
as relações humanas; 3) uma identificação com o outro, que inclui tanto uma iden-
tificação genital recíproca quanto uma profunda empatia com a identidade de gé-
nero do outro, 4) uma forma madura de idealização, juntamente com um profundo
comprometimento com o outro e com o relacionamento e 5) o caráter apaixonado
da relação amorosa, em todos os três aspectos: o relacionamento sexual, o relacio-
namento objetal e o investimento do superego no casal.

Algumas Outras Considerações sobre o Desejo Erótico

No capítulo anterior, me referi à excitação sexual como um afeto vinculado


desde o início à estimulação da pele e das aberturas corporais, concentrando-se
gradualmente em determinadas zonas e orifícios, no contexto das relações objetais
33
34 Otto F. Kernberg
dos estágios pré-edípico e edípico de desenvolvimento. O anseio permanente de
proximidade e estimulação física e de entrelaçamento das superfícies corporais,
está vinculado ao anseio de fusão simbiótica com o objeto parental e, pela mesma
razão, com as mais primitivas formas de identificação.
A satisfação do bebé pelo contato corporal íntimo com a mãe, no contexto de
um relacionamento amoroso gratificante recíproco, e seu amor pela mãe, acompa-
nham o desenvolvimento de um mundo de fantasias primitivas de gratificação de
anseios sexuais polimorfios. O bebé constrói mundo internalizado de fantasias, de
experiências simbióticas excitantes e gratificantes, que eventualmente constituirá
o núcleo dos anseios libidinais no inconsciente dinâmico.
Ao mesmo tempo, o componente agressivo e sadomasoquista da excitação
sexual, que representa a incorporação do afeto agressivo não apenas como parte da
resposta sexual infantil polimorfa per se, mas também como um componente com-
plementar da busca de fusão, penetração e de ser penetrado, também é parte da
resposta erótica no sentido mais amplo do termo. Já me referi à proposição de
Meltzer & Williams (1988) de que a idealização da superfície do corpo da mãe
adquire uma função defensiva contra a projeção fantasiada da agressão para o
interior do corpo da mãe, ao mesmo tempo em que expressa diretamente a integra-
ção do amor pela imagem ideal de mãe com a gratificações sensuais primitivas. A
idealização primitiva da superfície do corpo da mãe conduz, por meio da introjeção
inicial e primitiva identificação com ela, à idealização do próprio corpo do bebé. A
idealização primitiva, característica da predominância dos processos de cisão (que
dissociam dessa idealização as experiências "totalmente más" ou persecutórias),
preserva a disposição sexual em relação ao objeto idealizado e protege a excitação
sexual de ser suplantada pelos impulsos agressivos.
Enquanto as vicissitudes da excitação sexual no contexto do relacionamento
mãe/bebé pré-edípico representam a origem do desejo erótico, tal desejo chega a
seu clímax no estágio edípico do desenvolvimento. Freud propôs (1905) que a psi-
cologia infantil culmina na dominância dos impulsos genitais dirigidos ao genitor
do género oposto, com a simultânea ativação de intensa ambivalência e rivalidade
em relação ao genitor do mesmo género. Os desejos parricidas ou matricidas in-
conscientes, em relação ao genitor do mesmo género são a contrapartida dos dese-
jos incestuosos em relação ao outro genitor e do medo da castração, acompanhados
por fantasias inconscientes de ameaça e de punição. Esta constelação, o complexo
de Edipo positivo, é paralelo ao complexo de Édipo negativo; o amor sexual pelo
genitor do mesmo género e o sentimento de rivalidade e agressão dirigidos ao
outro. Freud considerava do Edipo negativo como uma defesa contra a ansiedade
de castração ativada pelo complexo de Edipo positivo — em outras palavras, uma
submissão homossexual defensiva, um motivo importante, mas não exclusivo, para
o complexo de Édipo negativo, cujas raízes residem nabissexualidade pré-edípica.
Esta teoria, ao proporcionar uma explicação para o intenso apego do paciente
ao analista sentido como um objeto ideal, inacessível e proibido, esclareceu a natu-
Psicopatologia das Relações Amorosas 35

reza do amor transferencial. Mas Freud (1910,1915), impressionado com a intensi-


dade e violência da transferência e de sua relação indiscutível com o apaixonar-se,
também concluiu que a busca inconsciente do objeto edípico é parte de todas as
relações amorosas normais, e constitui a corrente subterrânea dos anseios e da
idealização do objeto amoroso. Todavia, conforme Bergman (1982) salientou, Freud
jamais formulou uma teoria abrangente que diferenciasse claramente o amor
transferencial do amor erótico e do amor normal. O que nos interessa aqui é a
centralidade dos anseios edípicos no conteúdo inconsciente do desejo erótico.

Desejo Erótico e Ternura

A ternura reflete a integração das representações libidinais e agressivas do


selfe do objeto, e a tolerância da ambivalência. Balint (1948) foi o primeiro a enfatizar
a importância da ternura, que, sugeria ele, origina-se na fase pré-genital, e em
relação a que "a demanda que temos por preocupação e gratidão prolongadas e
perpétuas nos força a regredir a, ou inclusive a nunca sair da arcaica forma infantil
de amor terno" (página 114). Em termos da internalização de relacionamentos com
as pessoas significativas e que irão constituir o complexo mundo das relações objetais
internalizadas (e eventualmente determinar a estrutura do ego, superego e id)
existem duas correntes principais influenciando a capacidade de desenvolvimento
do amor sexual maduro. Uma é a tendência regressiva a estabelecer uma fusão com
o objeto amado, na busca da recuperação, pelo menos temporária, da desejada
unidade simbiótica do relacionamento ideal com a mãe. A outra é a tendência
progressiva à consolidação das diferenças: primeiro, entre as representações do
self e do objeto; mais tarde da integração das representações "totalmente boas"
com "totalmente más" do self numa auto-imagem consolidada, e a
correspondente integração das representações "totalmente más" com as
"totalmente boas" dos outros objetos significativos, em concepções integradas das
outras pessoas que incluem uma clara diferenciação de seus papéis sexuais.
A busca de fusão simbiótica já está incluída, como mencionei anteriormente,
na psicodinâmica do desejo erótico; a capacidade de estabelecer um relacionamen-
to íntimo com um objeto diferenciado, integrado ou "total" é o aspecto comple-
mentar da capacidade de desenvolver um relacionamento amoroso maduro. Esta
integração de relações objetais internalizadas "parciais" em "totais" se cristaliza
próximo ao final do estágio de separação-individuação, e assinala o início da cons-
tância de objeto e a iniciação da fase edípica. Este desenvolvimento marca a conclu-
são das fases desenvolvimentais pré-edípicas, e traz o que Winnicott (1955,1963)
descreveu como o pré-requisito para desenvolver-se a capacidade de consideração
pelo outro. Tal desenvolvimento implica a fusão da agressão com o amor nas pri-
meiras relações objetais, reproduzindo, poderíamos dizer, a integração dos anseios
libidinais e agressivos que ocorrem quando a excitação sexual e o desejo erótico
36 Oito F. Kernberg

prevalecem. O sentimento de ternura é uma expressão da capacidade de preocupação em relação


ao objeto amado. A ternura expressa amor pelo outro e é o resultado sublimatório (reparador) de
reações formativas contra a agressão.
A natureza das influências pré- edípicas sobre a capacidade de amor sexual tem sido
assunto de significativa investigação psicanalítica. Bergman (1971), seguindo o esquema
desenvolvimental proposto por Mahler (Mahler e colaboradores, 1975), propôs que a
capacidade de amar pressupõe o desenvolvimento normal da experiência simbiótica e da fase
de separação-individuação. Ele assinala continuidade natural desde a primitiva função
narcisista de estabelecer um relacionamento ideal com o objeto amado, até a posterior
gratificação narcisista no relacionamento edípico primitivo. Bergman (1987) aponta para a
busca, na relação amorosa, do objeto edípico perdido, os desejos de reparar o trauma edípico no
relacionamento com o novo objeto, e a busca de uma fusão, subjacente a este anseio edípico, que
reproduz a busca da fusão simbiótica. Bak (1973), enfatizando a relação entre estar apaixonado
e estar enlutado, vê o estar apaixonado como um estado emocional baseado na separação da
mãe em relação à criança e dirigido à anulação dessa separação e de outras separações e de
futuras perdas de objetos importantes.
Wisdom (1970), revisando alguns dos achados e dilemas básicos na abordagem
psicanalítica ao entendimento do amor e do sexo, sugeriu que a teoria de Melanie Klein da
posição depressiva explicava os componentes fundamentais, embora não todos eles, do amor
adulto. Sugeriu que a idealização do amor surge através da neutralização do aspecto mau do
objeto pela reparação, e não por tratar de manter o objeto idealizado totalmente bom,
dissociando dele o que fosse mau. A este respeito, Wisdom descreveu a diferença entre a
idealização da "posição esquizoparanóide" e a da "posição depressiva" (uma diferença, parece-
me, relacionada à diferença entre a idealização que os pacientes borderline fazem do objeto
amado e aquela que os neuróticos fazem). Enumerou os aspectos do apaixonar-se relacionados
à capacidade de enlutar-se e preocupar-se com o objeto. Josselyn (1971) sugeriu que os pais que
privam os filhos das oportunidades de se enlutar pela perda de objetos amados contribuem
para atrofiar a capacidade de amar.
May (1969) enfatizou a importância do "cuidar do outro" como um pré-re-quisito para
amar de maneira madura. O cuidado, disse ele, "é um estado composto pelo reconhecimento do
outro, alguém igual a nós mesmos pela identificação do nosso se//com a dor ou alegria do
outro; pela culpa, pena e a consciência de que todos comungamos com uma humanidade
comum, da qual todos nos originamos" (página 289). Ele considera "preocupação" e
"compaixão" possíveis termos alternativos. Na verdade, sua descrição do cuidado com o outro
é muito parecida com a descrição que Winnicott (1963) fez da preocupação pelo outro.

Identificação com o Outro

Balint (1948) sugeriu que, além da satisfação genital, uma verdadeira relação amorosa
inclui idealização, ternura e uma forma especial de identificação. Em ré-
Psícopatología das Relações Amorosas 37

lação à última, sugeriu chamá-la de "identificação genital", na qual os "interesses,


desejos, sentimentos, a sensibilidade e as deficiências do parceiro alcancem — ou
se espera que venham alcançar — a mesma importância dos nossos" (página 115).
Em resumo, sugere que o que chamamos de amor genital é uma fusão da satisfação
genital e da ternura pré-genital, e que a identificação genital é a expressão dessa
fusão.
A ideia de Balint foi uma mudança em relação ao foco então dominante na
"primazia genital" em si mesmo como o básico das relações amorosas ideais, apon-
tando para os importantes elementos pré-edípicos que influenciam a identificação
genital e a importância da integração da ternura pré-genital com a satisfação genital.
A evolução do pensamento psicanalítico questionou, então, a "primazia
genital" (definida como a capacidade de intercurso sexual e orgasmo, como não
sendo o equivalente da maturidade sexual ou representando, necessariamente, um
desenvolvimento psicossexual avançado. Lichtenstein (1970) examinou essa ques-
tão e concluiu que as "observações clínicas não confirmam uma clara correlação
entre maturidade emocional (isto é, a capacidade de estabelecer relações objetais
estáveis) e a capacidade de obter uma completa satisfação através do orgasmo
genital (primazia genital)". Por outro lado, sugeriu "que a sexualidade é a maneira
mais primitiva e básica disponível, para a personalidade humana em desenvolvi-
mento experienciar a afirmação da realidade da própria existência". Acrescentou
que "o conceito de primazia genital, no sentido clássico, não pode mais ser manti-
do" (página 317).
Além de enfatizar a relação entre a capacidade de ternura e a de preocupação
pelo objeto, May (1969) coloca a capacidade de "identificação genital" (nos termos
de Balint), isto é, de uma total identificação sem perder a própria identidade na
relação amorosa, numa posição central. Além disso, May enfatiza a presença da
tristeza na relação amorosa (o que relaciona seu pensamento, potencialmente, com
a consolidação das relações objetais totais e a correspondente ativação da preocu-
pação, culpa e reparação). Também sublinha a importância da experiência genital
em si mesma, que proporciona uma mudança na consciência, uma nova união na
qual se desenvolve uma unidade com a natureza.
A identificação genital implica em chegar a um acordo com as identificações
heterossexual e homossexual derivadas dos conflitos pré-edípicos e edípicos. Uma
cuidadosa análise das reações emocionais durante o intercurso sexual, particular-
mente em pacientes que atingiram um estágio de elaboração dos vários níveis de
conflitos pré-genitais e genitais, conforme expressados em seus relacionamentos
sexuais, revela as múltiplas, simultâneas e/ou alternadas identificações, heteros-
sexual e homossexual, pré-genital e genital, ativadas nesse contexto.
Um aspecto dessas reações emocionais é a excitação e a gratificação deriva-
das do orgasmo do perceiro sexual. Isto corresponde à gratificação de outras neces-
sidades, tais como a capacidade de proporcionar gratificação oral ou a reconfirmação
da identificação com a figura edípica do mesmo género, que expressa componentes
heterossexuais. Ao mesmo tempo, a excitação que acompanha o orgasmo do par-
38 Otto F. Kernberg

ceiro também reflete uma identificação inconsciente com o parceiro e, no intercurso


heterossexual, uma expressão sublimada de identificações homossexuais tanto de
fontes pré-genitais quanto genitais. As preliminares sexuais também podem in-
cluir a identificação com os desejos fantasiados ou reais do objeto do outro género,
de modo que as necessidades passivas e ativas, masoquistas e sádicas, voyeuristas
e exibicionistas são expressadas na simultânea reconfirmação da identidade sexual
da pessoa e na identificação experimental com a identidade complementar do par-
ceiro sexual.
Essa identificação simultânea e intensa com o próprio papel sexual e o papel
complementar do objeto durante o orgasmo também representa a capacidade de
adentrar e tornar-se uno com a outra pessoa num sentido psicológico e físico,
reconfirmando assim a capacidade de intimidade emocional que se vincula à ativa-
ção das raízes fundamentalmente biológicas do apego humano. Em contraste com
a primitiva fusão das representações dosei/e do objeto durante a fase simbiótica do
desenvolvimento (Mahler, 1968), a fusão do orgasmo reafirma, se assenta na pró-
pria individualidade da pessoa, particularmente em uma identificação sexual
madura.
Assim, a identificação sexual com os papéis sexuais complementares da pró-
pria pessoa e de seu parceiro implica numa integração sublimada de componentes
de identidade heterossexual e homossexual. Esta função integradora da relação
sexual e do orgasmo é também realizada na polaridade do amor e do ódio, porque
a capacidade de experienciar inteiramente consideração pela pessoa amada (o que
está por trás de um autêntico relacionamento humano profundo) pressupõe a inte-
gração do amor e do ódio, isto é, a tolerância da ambivalência. Parece-me que essa
ambivalência, que é característica de relacionamentos humanos significativos está-
veis, é ativada no intercurso sexual, quando a excitação sexual e a agressiva são
misturadas.
Um relacionamento sexual maduro, acredito, inclui alguns encontros sexuais
em que o parceiro é utilizado como um "puro objeto sexual"; a excitação sexual
pode ser máxima durante a expressão da necessidade de "usar" e/ou "ser usado"
sexualmente pela outra pessoa. A mútua empada e um conluio implícito com essa
expressão sexual são contrapartes da empatia e conluios relacionados com raiva
violenta, ataques e rejeição no relacionamento. A confiança de que todas essas
condições possam ser contidas num relacionamento que seja acima de tudo amoro-
so e que também tem períodos de mútua contemplação tranquila, e compar-
tilhamente da vida interna do par participante, proporciona significado e profun-
didade aos relacionamentos humanos.

Idealização e Amor Sexual Maduro

Balint (1948), expressando sua concordância com Freud (1912), descartou a


idealização "como não sendo absolutamente necessária" para um bom relaciona
Psicopatologia das Relações Amorosas 39

mento amoroso. Ele concordava particularmente com a declaração de Freud de que em muitos casos a
idealização não ajuda, e até atrapalha, o desenvolvimento de uma forma satisfatória de amor.
David (1971) e Chasseguet-Smirgel (1973), entretanto, enfatizaram a importância da idealização na
relação amorosa. Acreditam que o estado de estar apaixonado enriquece o se//, e aumenta o seu investimento
libidinal, porque isto satisfaz um estado ideal do self, e porque a relação do sélf grandioso com o objeto,
nesse ponto, reproduz a relação ideal entre o self e o ideal de ego.
Van der Waals (1965) enfatizou o simultâneo aumento do investimento libidinal objetal e narcisista
no amor normal. Chasseguet-Smirgel sugeriu que no amor maduro, em contraste com o apaixonar-se
temporário no adolescente, existe uma projeção limitada de um ideal de ego menos grandioso no objeto
amado idealizado, e um simultâneo aumento do investimento narcisista (no self) a partir da gratificação
sexual proporcionada pelo objeto amado. Essas observações são, acredito, compatíveis com minha opinião
de que a idealização normal constitui um nível desenvolvimental avançado desse mecanismo, pelo qual a
moralidade do bebé e da criança são transformados em sistemas éticos adultos. A idealização, assim
concebida, é função da relação amorosa madura, estabelecendo a continuidade entre o amor "romântico"
adolescente e o amor maduro. Em condições normais, não é apenas o ideal do ego que é projetado, mas os
ideais que se originam de desenvolvimentos estruturais dentro do superego (incluindo o ideal do ego).
David (1971) enfatiza quão cedo chegam os anseios edípicos nas crianças de ambos os géneros, junto
com a intuição de um relacionamento excitante, gratifican-te e proibido, que une os pais entre si e exclui a
criança, assim como o desejo e a excitação da criança em relação ao conhecimento proibido —
particularmente, o conhecimento sexual—se constituem como pré-requisitos cruciais para a qualidade do
amor sexual. Em ambos os géneros, o anseio, a inveja, o ciúme e a curiosidade finalmente impelem a busca
ativa do objeto edípico idealizado.
Conforme mencionei no Capítulo 2, a fusão íntima da desejada gratificação erótica e fusão simbiótica
também inclui a função sexual da idealização primitiva. Já me referi à proposta de Meltzer e Williams (1988)
de que a idealização da superfície do corpo da mãe adquire uma função defensiva contra a projeção
fantasiada da agressão para o interior do corpo da mãe, enquanto expressa diretamente a integração do
amor pela imagem ideal da mãe com a mais primitiva gratificação sensual. Assim, a idealização primitiva,
caracterizada pela predominância dos processos de cisão, que dissociam essa idealização das experiências
"totalmente más" ou persecutórias, preserva a disposição sexual em relação ao objeto idealizado e protege
a excitação sexual de ser inundada pelos impulsos agressivos.
Mais tarde, a idealização que ocorre no contexto de relações objetais
integradas, ou totais (e a correspondente capacidade de experienciar culpa, preocupação e
tendências reparadoras, quando forem atingidas as relações objetais totais) facilitará a
integração da excitação sexual e do desejo erótico com uma visão idealizada do objeto amado e a
integração do desejo erótico com a ternura. A ternura, como
40 Oito F. Kernberg

vimos, reflete a capacidade para integrar o amor e a agressão no contexto das relações objetais internalizadas, e
inclui um elemento de preocupação pelo objeto amado, que deve ser protegido da perigosa agressão.
Gradualmente, a idealização inicial do corpo da pessoa amada e a posterior idealização do outro como
pessoa total, evoluem para a idealização do sistema de valores do objeto amado — uma idealização
dos valores éticos, culturais e estéticos—um desenvolvimento que irá garantir a capacidade de apaixonar-se
romanticamente.
Essas graduais transformações dos processos de idealização no contexto do desenvolvimento
psicológico também refletem as vicissitudes da passagem pelo estágio edípico do desenvolvimento — as
proibições originais do desejo erótico pelo objeto edípico, que são a razão maior para a aguda clivagem
defensiva entre o desejo erótico e as relações objetais idealizadas. Os processos de idealização em evolução
eventualmente culminam na capacidade de reconfirmar o vínculo entre o desejo erótico e a idealização
romântica da mesma pessoa, e representam, ao mesmo tempo, a integração do superego num nível mais
elevado, vinculado a esta capacidade sofisticada de integrar a ternura com os sentimentos sexuais, o que
reflete a superação do conflito edípico. Ao mesmo tempo, neste estabelecimento de identificações com os
valores do objeto amado, atinge-se a transcendência do inter-relacionamento do casal para um
relacionamento com seu background cultural e social. As experiências do passado, o presente e o futuro
imaginado, são vinculadas através da experiência atual do relacionamento com o objeto amado.

Comprometimento e Paixão
A paixão na esfera do amor sexual é, proponho, um estado emocional que expressa o cruzamento de
fronteiras, no sentido de unir estruturas intrapsíquicas que estão separadas por fronteiras dinâmica ou
conflitualmente determinadas. No que segue, utilizo o termo fronteira significando as fronteiras dosei/, exceto
quando forem feitas referências explícitas ao uso mais amplo do termo como a interface ativa e dinâmica
de sistemas (especialmente sociais) hierarquicamente relacionados.
As fronteiras mais importantes atravessadas na paixão sexual são as do se!/.
O aspecto dinâmico central da paixão sexual e do seu clímax, é a experiência do orgasmo no intercurso;
na experiência do orgasmo, a excitação sexual crescente culmina numa resposta automática, biologicamente
determinada, com um afeto primitivo de êxtase, que requer para ser completamente experienciado, um
abandono temporário das fronteiras dosei/, ou melhor, uma expansão — ou uma invasão — das fronteiras
do se!/até a consciência das raízes biológicas subjetivamente difusas da existência. Já exploramos os
relacionamentos entre os instintosbiológi-cos, afetos e impulsos; aqui, gostaria de enfatizar as funções
essenciais dos afetos como as experiências subjetivas na fronteira (num contexto de sistemas gerais)
Psicopatologia das Relações Amorosas 41

entre os domínios biológico e intrapsíquico, e sua função crucial na organização das relações
objetais internas e das estruturas psíquicas em geral.
Mas se a excitação sexual constitui uma afeto básico que está no núcleo do amor
apaixonado, isto não significa que essa capacidade de amar com paixão fique "limitada" como
parte da experiência orgástica. O desejo da fusão com a mãe e a experiência subjetiva de
fundir-se com ela, que caracteriza o estágio simbiótico do desenvolvimento, infiltra toda busca
de contato corporal e de entrelaçamento das superfícies corporais. Mas a experiência de
êxtase do orgasmo só gradualmente adquire uma função organizadora central; é a fase genital
da sexualidade infantil que recaptura e centraliza, poderíamos assim dizer, aquela excitação
difusa ligada às experiências e fantasias de fusão da fase pré-genital do apego simbiótico.
A experiência clínica demonstra que a qualidade afetiva do orgasmo varia amplamente,
e (particularmente nos pacientes com severa patologia narcisista e significativa deterioração
das relações objetais internalizadas) está muitas vezes dramaticamente reduzida, de modo
que o orgasmo proporciona tanto um sentimento de alívio como também de frustração para
esses pacientes. No amor apaixonado, a experiência orgástica é máxima, e é aqui que podemos
examinar o significado da experiência para o indivíduo e para o casal.
No amor apaixonado, o orgasmo integra, ao mesmo tempo, o simultâneo cruzamento
da fronteira do se//até a consciência do funcionamento biológico que está fora do controle do
self, e o cruzamento das fronteiras numa sofisticada identificação com o objeto amado, mas que
mantém o senso de uma identidade separada. A experiência compartilhada do orgasmo inclui,
além da temporária identificação com o parceiro sexual, a transcendência da experiência
dosd/até a experiência da união fantasiada dos pais edípicos, assim como a transcendência da
repetição da relação edípica até o seu abandono por uma nova relação objetal que reconfirma a
identidade e autonomia separadas da pessoa.
Na paixão sexual, são atravessadas fronteiras dosei/determinadas pelo tempo, e o mundo
passado das relações objetais é transformado em um novo mundo pessoalmente recriado. O
orgasmo como parte da paixão sexual também pode representar simbolicamente a experiência
de morrer, de se manter a autoconsciência ao mesmo tempo em que se é levado à aceitação
passiva de sequências neurovegetativas que incluem a excitação, o êxtase e a descarga. Por
outro lado, a transcendência a partir doseJ/em direção à união apaixonada com a outra pessoa,
e dos valores que ambos defendem, também é um desafio à morte e à natureza transitória
da existência do indivíduo.
Mas a aceitação da experiência de fusão com o outro também replica, inconscientemente, a
penetração forçada do perigoso interior do corpo do outro (do corpo da mãe) — isto é, o
misterioso domínio da agressão primitiva projetada. A fusão é portanto uma perigosa aventura,
que implica na predominância da confiança sobre a desconfiança e o medo, entregando-se o
próprio self ao outro, na busca de uma fusão extática sempre ameaçada pelo desconhecido
(fusão na agressão).
42 Otto F. Kernberg

Da mesma forma, no domínio da ativação das relações objetais internalizadas de estágios


de desenvolvimento pré-edípicos e edípicos, dissolver as barreiras pro-tetoras contra os afetos
primitivos, difusos, ao mesmo tempo em que ainda nos mantemos separados — isto é,
conscientes de nós mesmos — e deixar para trás os objetos edípicos, novamente implica na
aceitação do perigo, não apenas de perder a própria identidade, mas da liberação da agressão
contra esses objetos internos e externos, e sua retaliação.
A paixão sexual, conseqúentemente, implica numa corajosa entrega dose//a uma união
desejada com o outro ideal, diante de perigos inevitáveis. Portanto, a paixão sexual inclui
aceitar os riscos de nos abandonarmos totalmente à relação com o outro, em contraste com
o medo dos perigos de oriundas muitas fontes, que nos ameaçam quando nos fundimos com
um outro ser humano. Ela inclui uma esperança básica em termos de dar e receber amor, e
ser assim reconfirmado quanto à própria bondade, em contraste com a culpa e o medo
referentes ao perigo da própria agressão em relação ao objeto amado. E na paixão sexual
atravessar as fronteiras temporais do self também ocorre no comprometimento com o
futuro, com o objeto amado como um ideal que dá um significado pessoal à vida. Ao
perceber o outro amado como a incorporação não apenas do objeto edípico e pré-edípico
desejado (e do relacionamento ideal com uma outra pessoa), mas também das ideias, valores
e aspirações que fazem com que a vida valha a pena ser vivida, a paixão sexual expressa a
esperança da criação e consolidação de um sentido para o mundo social e cultural.
A paixão sexual é uma questão central no estudo da psicologia e psicopatologia das
relações amorosas, uma questão que parece relacionada, de muitas maneiras, à questão da
estabilidade ou instabilidade das relações amorosas. Frequentemente nos perguntamos se a
paixão sexual é uma característica do apaixonar-se romântico, ou dos estágios iniciais das
relações amorosas, e que seria gradualmente substituída por um relacionamento menos
intenso e mais "afetuoso", ou se ela é um ingrediente básico daquilo que mantém os casais
juntos, uma expressão (assim como uma garantia) das funções criativas ativas do amor
sexual. Será que a paixão sexual, uma condição potencial para a estabilidade do casal, é
também uma fonte potencial de ameaça a ela, de modo que uma relação amorosa criativa
estaria, por consequência, mais ameaçada do que uma relação caracterizada por uma harmo-
nia relativamente tranquila, não-apaixonada e por um sentimento de segurança?
A relação entre o relacionamento afetuoso, numa relação amorosa ou casamento
estável, comparada a um caso amoroso apaixonado tem sido debatida por poetas e filósofos
ao longo dos séculos. Baseado em minha avaliação de pacientes

onamento de casais por muitos anos, acredito que esta dicotomia é uma convenção
supersimplificada. O amor apaixonado também caracteriza alguns casais coi muitos
anos de vida juntos.
Penso que a paixão sexual também não pode ser igualada ao humor de êxtase
característico da adolescência. A consciência sutil, profunda, completa e critica do
Psicopatologia das Relações Amorosas 43

amor por uma outra pessoa, combinada com uma clara consciência do mistério final que separa uma
pessoa de todas as outras e a aceitação dos anseios irrealizáveis, como parte do preço a pagar por um total
comprometimento com a pessoa amada, também refletem a paixão sexual.
A paixão sexual não se limita, embora seja nele tipicamente expressada, ao intercurso sexual com
orgasmo. Pelo contrário: o amor sexual se expande, da intuitiva consciência do intercurso e orgasmo
como sendo seu objetivo final liberador, consumidor e reconfirmador, até o campo mais amplo do
anseio sexual pelo outro, do intenso desejo erótico que se aprofunda pela apreciação dos valores
gerais, humanos, físicos e emocionais, representados pelo outro. Há oscilações normais na intensidade
da relação do casal, e abruptas descontinuidades em seu relacionamento, que explorarei mais tarde.
Mas num relacionamento sexual satisfatório, a paixão sexual é uma estrutura disponível
caracterizando seu relacionamento simultaneamente nos domínios sexual, relacional-objetal, ético e
cultural.
Disse que um aspecto essencial da experiência subjetiva da paixão, em todos os níveis, é o
atravessamento das fronteiras àoself, a fusão com o outro. Esta experiência de fusão deve ser
diferenciada dos fenómenos da fusão regressiva, que obscurecem a diferenciaçãose//"-não-se//i o que é
característico da paixão sexual é a experiência de fusão simultaneamente com a manutenção de uma
identidade separada.
O cruzamento das fronteiras àoself, assim definido, é a base da experiência subjetiva da
transcendência. As identificações psicóticas (Jacobson, 1964), com a dissolução das fronteiras do selfe
do objeto, interferem com a capacidade de paixão. Entretanto, uma vez que a transcendência implica
no perigo de perder-se a si mesmo e de se defrontar com uma agressão ameaçadora, isto faz com que a
paixão se relacione também com o medo da agressão em uma fusão psicótica. E é quando ocorre uma
intensa agressão, associada com uma dissociação entre relações objetais idealizadas e persecutórias, que
se dá nas idealizações primitivas do paciente borderline, é que o amor apaixonado pode subitamente
transformar-se em ódio apaixonado. A falta de integração entre relações de objetos "só bons" e "só
maus", internalizados pode promover alterações súbitas e dramáticas no relacionamento do casal. A
prototípica experiência do amante desprezado, que mata seu rival e o objeto amado que o traiu, e
depois mata a si mesmo, assinala este relacionamento entre amor apaixonado, mecanismos de
dissociação, primitiva idealização e ódio.
Existe uma contradição intrínseca na combinação desses dois aspectos cruciais do amor sexual: de
um lado, as firmes fronteiras doselfe a constante consciência da indissolúvel separação entre os
indivíduos, e de outro, o senso de transcendência e de tornar-se uno com a pessoa amada. A
condição de ser separado resulta na solidão, no anseio e medo pela fragilidade de todas as relações; a
transcendência na união do casal traz o sentimento de unidade com o mundo, de permanência e de
nova criação. A solida o, poderíamos dizer, é umpré-requisitopara a transcendência.
Permanecer dentro das fronteiras doselfe ao mesmo tempo transcendê-
las na identificação com o objeto amado, é uma excitante e estimulante, mas também
44 Otto F. Kernberg

dolorosa condição do amor. O poeta mexicano Octavio Paz (1974) expressou este aspecto do amor com
uma concisão quase avassaladora, declarando que o amor é um ponto de intersecção entre o desejo e
a realidade. O amor, diz ele, revela a realidade ao desejo e cria a transição do objeto erótico para a
pessoa amada. Tal revelação é quase sempre dolorosa, porque a pessoa amada se apresenta, simulta-
neamente, como um corpo que pode ser penetrado e uma consciência que é impenetrável. O amor é a
revelação da liberdade da outra pessoa. À contraditória natureza do amor é de que o desejo quer ser
realizado pela destruição do objeto desejado, enquanto o amor descobre que este objeto é indestrutível e
não pode ser substituído.
Aqui está uma ilustração clínica da maturação da capacidade para experimentar a paixão
sexual, e o desenvolvimento de anseios românticos, num homem muito inibido e obsessivo, fazendo
tratamento psicanalítico. Omito os aspectos dinâmicos e estruturais dessa mudança, de modo a centrar-
me na experiência sub-jetiva de integrar o erotismo, as relações objetais e os sistemas de valores.
Um professor universitário no final da casa dos 30, noivou com uma mulher por quem estava muito
apaixonado logo antes de partir para uma viagem a trabalho à Europa. Na volta, descreveu uma
experiência que tivera ao visitar o Louvre e lá ver, pela primeira vez, esculturas em miniatura da
Mesopotâmia, do terceiro milénio antes da nossa era. Em certo momento teve a estranha sensação de
que uma dessas minúsculas esculturas, o corpo de uma mulher cujos mamilos e umbigo estavam
assinalados por minúsculas pedras preciosas, assemelhava-se ao corpo da mulher que ele amava. Ele
antes vinha pensando na noiva, ansiando por sua presença enquanto caminhava pelos corredores
quase desertos do museu, e na medida em que começou a olhar para a escultura, uma enorme onda de
estimulação erótica o dominou, juntamente com intenso sentimento de proximidade em relação a ela.
Ficou também muito emocionado pelo que considerou a extrema simplicidade e beleza da escultura,
sentindo empatia pelo artista desconhecido que morrera há mais de quatro mil anos. Teve então um
sentimento de humildade, ao mesmo tempo em que de tranquilizadora comunicação com o
passado, e sentiu que lhe fora permitido compartilhar o entendimento do eterno mistério do amor
expressado naquele trabalho de arte. O sentimento de desejo erótico fundiu-se com o sentimento de
unidade, de anseio e de proximidade com a mulher que ele amava, e, através dessa unidade e amor,
ele pode penetrar no mundo transcendente dabele-za. Ao mesmo tempo, teve um forte sentimento
arespeito de sua própria individualidade, juntamente com gratidão por lhe ter sido permitido
compartilhar a experiência desse trabalho de arte, e humildade ao se defrontar com ele.
A paixão sexual reativa e contém toda a sequência dos estados emocionais que garantem ao
indivíduo o sentimento sobre sua própria "bondade", abondade de seus pais, e do mundo inteiro de
objetos, e a esperança de realização do amor mesmo em face da frustração, hostilidade e
ambivalência. A paixão sexual supõe: a capacidade de continuada empatia—mas não fusão—com um
estado primitivo de fusão simbiótica (o "sentimento oceânico" deFreud [1930]); a excitante reunião
Psicopatologia das Relações Amorosas 45

de proximidade com a mãe no estágio de diferenciação se//-objeto; e a gratificação dos anseios edípicos,
no contexto de superação de sentimentos de inferioridade, medo e culpa, referentes ao
funcionamento sexual. A paixão sexual é o núcleo facilitador de um sentimento de unidade com a
pessoa amada, como parte do romantismo da adolescência e, mais tarde, de comprometimentos
maduros com o parceiro amado frente às limitações realistas da vida humana, a inevitabilidade da
doença, decadência, deterioração e morte. E é uma importante fonte de empatia com a pessoa
amada. Conseqúentemente, o cruzamento das fronteiras e a reconfirmação do sentimento básico
de bondade mesmo enfrentando muitos riscos, vinculam a biologia, o mundo emocional e o mundo dos
valores a um sistema único imediato.
O cruzamento das fronteiras do eu na paixão sexual e a integração tanto do amor e da agressão,
como da homossexualidade e da heterossexualidade, no relacionamento no mundo interno com a
pessoa amada, são ilustrados eloquentemente na declaração de amor de Hans Castorp à Clawdia Chauchat,
naMontanha mágica, de Thomas Mann (1924). Rompendo com seu humanista, racional e maduro
"mentor" Settembrini, Castorp declara seu amor à Madame Chauchat (em francês, o que se torna uma
linguagem quase privada e íntima no contexto alemão do livro). Excitado e liberado pela calorosa,
embora levemente irónica, resposta dela, Castorp lhe diz que sempre a amou e alude à sua relação
homossexual anterior com um amigo da juventude que se parecia com ela e a quem uma vez ele
pedira um lápis emprestado, da mesma forma como pedira um à Madame Chauchat mais cedo
naquela noite. Ele diz que o amor não é nada se não for também loucura, algo sem sentido, proibido,
quase uma aventura através do mal. Diz a ela que o corpo, o amor e a morte —- os três — são uma
coisa só. Fala sobre o milagre da vida orgânica e da beleza física, que é composta de vida e matéria
perecível.
Mas atravessar as fronteiras dose//implica na existência de certas condições: como já dito, deve
haver uma consciência de, e uma capacidade para, a empatia com a existência de um campo
psicológico fora das fronteiras dose//; conseqúente-mente, os estados eroticamente matizados de
excitação maníaca e grandiosidade, característicos dos pacientes psicóticos, não podem ser chamados
de paixão sexual; e a destruição inconsciente das representações de objeto assim como dos próprios
objetos externos, tão predominante nas personalidades narcísicas, destrói suas capacidades de
transcendência até uma íntima união com outro ser humano, reduzindo, e eventualmente destruindo,
a capacidade de paixão sexual.
A excitação sexual e o orgasmo também perdem sua função de atravessar fronteiras, na
biologia, quando uma excitação sexual e orgasmo mecânicos e repetitivos se constróem dentro da
experiência dose//, de uma forma dissociada do aprofundamento das relações objetais internalizadas. É
aqui que a excitação sexual se diferencia do desejo erótico e da paixão sexual; basicamente, a
masturbação pode (e normalmente o faz) expressar uma relação objetal — tipicamente, expressam
vários aspectos das relações edípicas a partir da infância em diante. Mas a masturbação como
atividade compulsiva e repetitiva, funcionando defensivamen-
46 Oito F. Kernberg

te contra impulsos sexuais proibidos e outros conflitos inconscientes, no contexto de uma


dissociação regressiva de relações objetais conflitosas, perde sua função transcendente. Estou
sugerindo que não é a gratificação interminável, compulsiva-mente repetitiva dos impulsos
instintivos, o que provoca deterioração na excitação, no prazer e na satisfação deles derivados,
mas sem a perda da função crucial de atravessar as fronteiras self-objetais, função esta que é
garantida pelo investimento normal no mundo das relações objetais. Em outras palavras, é o
mundo das relações de objeto internos e externos que mantém a sexualidade viva, e proporciona
o potencial para uma gratificação duradoura.
A integração das representações doselfe do objeto, amorosas e odiosas, com os afetos, na
transformação de relações objetais parciais em totais (ou constância objetal), é exigência básica
para a capacidade de estabelecer uma relação objetal estável. É necessária para que se entre a
fronteira de uma identidade de ego estável para uma identificação com o objeto amado.
Mas o estabelecimento de relações objetais profundas também libera uma agressão
primitiva no relacionamento, no contexto da recíproca ativação, em ambos os parceiros, de
relações objetais patogênicas, reprimidas ou dissociadas, do período de bebé e da primeira
infância. Quanto mais patológicas e agressivamente determinadas as relações objetais
internalizadas reprimidas ou dissociadas, mais primitivos os correspondentes mecanismos de
defesa; estes, particularmente a identificação projetiva, podem induzir experiências ou reações no
parceiro, que reproduzem representações de objeto ameaçadoras. Representações de objeto
idealizadas e desvalorizadas, enlutadas e lamentadas ou persecutórias, são sobrepostas à
percepção do objeto amado e à interação com ele podendo ameaçar — assim como reforçar — o
relacionamento. À medida que ambos os parceiros vão ficando mais conscientes dos efeitos das
distorções em suas percepções e comportamentos de um em relação ao outro, eles podem
ficar dolorosamente conscientes da mútua agressão existente, sem necessariamente serem
capazes de resolver tais padrões interativos; assim, o cimento inconsciente do relacionamento do
casal também pode colocá-lo em risco. É nesse ponto que a integração e a maturação do
superego, expressadas na transformação das proibições primitivas e sentimentos de culpa
pela agressão em consideração pelo objeto — e pelo self — protegem a relação objetal e a
capacidade para ultrapassar fronteiras rumo ao objeto amado. Assim, superego maduro
estimula o amor e o comprometimento com o objeto amado.
Uma implicação geral da definição de paixão sexual aqui proposta é que ela constituiria um
aspecto permanente das relações amorosas e não apenas uma expressão inicial ou temporária da
idealização "romântica" da adolescência e da idade adulta jovem; que ela teria uma função de
proporcionar intensidade, consolidação e renovação às relações amorosas por toda a vida; e
que ela proporcionaria permanência à excitação sexual, ao vinculá-la à experiência humana total
do casal. Isso nos leva aos aspectos eróticos das relações sexuais estáveis. Penso que a evidência
clínica indica, com clareza, quão intimamente a excitação e a satisfaçãc sexual estão
vinculadas à qualidade do relacionamento total do casal. Embora es
Psicopatologifl das Relações Amorosas 47

tudos estatísticos de grandes populações mostrem um decréscimo na frequência do intercurso


sexual e orgasmo ao longo das décadas, o estudo clínico de casais indica o significativo efeito
da natureza de seu relacionamento sobre a frequência e qualidade do intercurso sexual; a
experiência sexual permanece um aspecto central constante das relações amorosas e da vida
conjugal do começo ao fim. Em circunstâncias ótimas, a intensidade da satisfação sexual tem
uma qualidade renovadora constante, que não depende dos "aspectos mecânicos" da ginástica
sexual, mas da capacidade intuitiva do casal de tecer as necessidades e experiências pessoais
variáveis, na rede complexa dos aspectos heterossexuais e homossexuais, amorosos e agressivos
do relacionamento total, expressado em fantasias inconscientes e conscientes e em seu
reencenamento contínuo nas relações sexuais do casal.
C a p í t u l o 4

Amor Sexual Maduro,


Édipo e o Casal

O Impacto do Género

Em minha discussão anterior da identidade de género nuclear, a controvérsia sobre se


podemos sustentar umabissexualidade psicológica original para ambos os géneros, ou se a
primeira identidade para ambos é ou masculina, conforme Freud (1905), ou feminina,
conforme proposto por Stoller (1975,1985). Expressei minha concordância com Person e
Ovesey (1983,1984), cuja opinião de que os bebés desenvolvem, desde o início, uma
identidade de género nuclear que é ou masculina ou feminina, combina perfeitamente com
os achados dos estudos sobre os hermafroditas e com as observações sobre a primeira
infância. Braunschweig e Fain (1971,1975), apresentando evidências psicanalíticas para
umabissexualidade psicológica original (derivada da identificação inconsciente do bebé e
da criança pequena com ambos os pais), propõem, convincentemente, que este potencial
bissexual inconsciente é gradualmente controlado pela natureza dominante da interação
mãe-bebê, na qual se estabelece uma identidade de género nuclear. Esta ideia concorda com a
opinião de Money e Erhardt (1972), de que a definição parental da identidade de género do
bebé é o organizador essencial dessa identidade, uma visão reforçada pela observação que
Stoller faz da transexualidade.
Desenvolvendo ainda mais as teorias de Braunschweig e Fain, salientei que os
cuidados prestados pela mãe, e sua expressão de satisfação na estimulação física do bebé,
como sendo essenciais para desenvolver o erotismo da superfície corporal do bebé e, mais
tarde, o desejo erótico. Tanto para a menina quanto para o menino, a experiência erótica
inicial com a mãe ativa o potencial para a excitação sexual. Mas, enquanto a implícita
relação erótica "provocadora" da mãe com seu filho continua um aspecto constante da
sexualidade masculina, e contribui para a capa-

48
Psicopatologia das Relações Amorosas 49

cidade normalmente contínua do menino para a excitação genital, a rejeição sutil e


inconsciente que ela faz dessa excitação sexual em relação à sua filha, gradualmente
inibe a consciência desta de sua genitalidade vaginal original. Este tratamento
diferente do menino e da menina no domínio do erótico cimenta poderosamente
suas respectivas identidades de género nucleares, enquanto contribui para a dife-
rença entre a asserção da excitação genital durante toda a infância do menino, em
contraste com a inibição da excitação genital na menina.
Por essa razão, os homens—fixados inconscientemente em seu objeto primá-
rio —têm maiores dificuldades em lidar com a ambivalência em relação às mulhe-
res e teve um desenvolvimento mais lento em sua capacidade de integrar necessi-
dades genitais e de ternura, enquanto as mulheres — inibidas precocemente em
sua consciência genital—são mais lentas para integrar um relacionamento genital
completo no contexto de um relacionamento amoroso.
As observações de Braunschweig e Fain (1971) são extremamente úteis para
explicar diferenças entre homens e mulheres, que podem ser encontradas no amor
sexual maduro. Ao resumir alguns de seus pontos mais importantes, tentarei per-
manecer o mais próximo possível de sua linguagem.
Para o menino, o relacionamento pré-genital com a mãe já envolve uma ori-
entação sexual especial da mãe para com ele, o que estimula sua consciência sexual
e o investimento narcísico de seu pênis. O perigo é que as gratificações pré-genitais
excessivas das necessidades narcísicas do menino, pela mãe, podem criar a fantasia
de que o seu pequeno pênis é inteiramente satisfatório para ela, e assim contribuir
para a sua negação da diferença em relação ao poderoso pênis do pai. Nessas cir-
cunstâncias, mais tarde, nos homens, essa fixação narcísica pode determinar um
tipo de sedução sexual infantil, "de brincadeira", em relação às mulheres, sem a
total identificação com o "poder penetrante" do pênis paterno. Esta fixação irá
interferir com a identidade genital total, e com a internalização adequada da figura
do pai no ideal do ego, estimulando uma repressão da excessiva ansiedade de
castração.
Para esses homens, a competição não-resolvida com o pai, e a negação defen-
siva da ansiedade de castração, são expressadas na satisfação narcísica com rela-
ções infantis dependentes com mulheres que representam imagens da mãe. Esta
constelação, para Braunschweig e Fain e também para Chasseguet-Smirgel (1973,
1974), é uma importante origem da fixação narcísica (eu diria fixação num nível de
narcisismo normal para o bebé) e da falta de resolução normal do complexo de
Édipo nos meninos, e é estimulada por aqueles aspectos do comportamento da
mãe que se rebelam contra a "predominância" do pênis paterno e da "lei paterna"
em geral. A implicação disto é que existe um conluio inconsciente entre os eternos
garotinhos — Don Juans — e as mulheres sedutoras maternais, que utilizam a
rebelião do Don Juan contra a "lei e a ordem" do pai, para expressar sua própria
competitividade e rebelião em relação ao pai.
Braunschweig e Fain afirmam que, normalmente, o periódico afastamento da
mãe em relação ao bebé do sexo masculino (quando ela retorna ao pai como uma
50 Otto F. Kernberg

mulher sexualmente comprometida com ele) frustra o narcisismo do garotinho e o estimula a uma
competitiva identificação com o pai, iniciando ou reforçando, assim, a constelação edípica positiva nos
meninos. Uma consequência disso são os sentimentos aumentados de frustração do menino, por ter sido
sexualmente rejeitado pela mãe, de modo que sua agressão oral — projetada — e dirigida à mãe, é
reforçada pela agressão inicial de derivação edípica. Tal desenvolvimento terá influências cruciais na vida
amorosa dos homens que inconscientemente não mudam seu primeiro objeto sexual — a mãe.
Chasseguet-Smirgel e colaboradores (1970) e Braunschweig e Fain (1971) também enfatizam a
excitabilidade vaginal da garotinha, e sua sexualidade feminina em geral. Com relação a isso, suas
observações são semelhantes às de Horney (1967), Jones (1935) e Klein (1945), e à pesquisa nos Estados
Unidos indicando as ativida-des masturbatórias vaginais precoces das meninas pequenas e a íntima
conexão entre a responsividade erótica clitoridiana e vaginal (Galenson e Roiphe, 1976; Barnett, 1966).
Esses estudos sugerem que existe na menina uma consciência vaginal muito inicial, e que essa consciência
vaginal é inibida e, mais tarde, reprimida.
Os autores franceses enfatizam as evidências indicando que a atitude dos pais, especialmente a da
mãe, é diferente em relação aos bebés do sexo masculino e feminino, e que a indução de papéis pela
interação inicial mãe- bebé têm uma poderosa influência sobre a identidade de género (veja também
Stoller, 1973). De acordo com o grupo francês, a mãe, em contraste com a estimulação precoce que faz da
genitalidade do filho pequeno, não investe particularmente nos genitais da menina, porque a mãe
mantém sua própria vida sexual, sua "sexualidade vaginal", como parte do domínio separado de uma
mulher se relacionando com o pai; mesmo quando a mãe, narcisicamente, investe em sua filhinha, este
narcisismo tem aspectos pré-genitais em vez de genitais (exceto nas mulheres com fortes tendências
homossexuais). O não-investimento da mãe nos genitais femininos de sua filha também é uma resposta às
pressões culturalmente determinadas e inibições compartilhadas quanto aos genitais femininos, e que se
originam da ansiedade de castração masculina.
Blum (1976) enfatiza a importância da rivalidade edípica e dos conflitos acerca da auto-estima como
mulher que a garotinha desperta na mãe: se a mãe desvalorizou-se como mulher, ela irá desvalorizar sua
filha; a auto-estima da mãe irá influenciar fortemente a auto-estima de sua filha. Os conflitos não-
resolvidos da mãe acerca de sua própria genitalidade, e sua admiração pelo pênis de seu garotinho, levarão
sua filha a misturar a inveja do pênis com a rivalidade fraterna. Normalmente a garotinha volta-se para o
pai, não apenas pelo seu desapontamento com a mãe, mas também numa identificação com ela.
Uma implicação geral da linha francesa de pensamento é que a ansiedade de castração não é um
determinante primário da menina pequena voltar-se para o pai, mas uma complicação secundária reforçando a
inibição primária, ou a repressão da genitalidade vaginal, sob a influência da atitude implicitamente de
negação da mãe. A intensidade da ansiedade de castração nas mulheres depende amplamente
Psicopatologia das Relações Amorosas 51

de um deslocamento de três etapas da agressão pré-genital: primeiro projetada na mãe, depois reforçada pela
competitividade edípíca com ela, e finalmente deslocada para o pai. A inveja do pênis nas garotinhas refletiria,
principalmente, o reforço dos conflitos edípicos sob o efeito do deslocamento da agressão pré-genital e da
inveja para o pênis.
Chasseguet-Smirgel (1974), referindo-se às ideias de Horney (1967), sugeriu que a fantasia do
garotinho da existência de uma mãe fálica pode servir como uma tranqúilização não apenas contra (ou
negação da) percepção dos genitais femininos como um produto da castração, mas também contra a
consciência da vagina adulta, que provaria que seus pequenos genitais seriam altamente inadequados
para preenchê-la.
A partir de todos esses desenvolvimentos, ocorrem vários estágios evolutivos que a garotinha e o
garotinho precisam atravessar como parte de seu caminho para identificar-se com a genitalídade adulta. Para
o menino, a identificação com o pai significa que ele superou sua inveja pré-genital das mulheres e a
projeção dessa inveja na forma de medos primitivos das mulheres (Kernberg, 1974a), assim como seus
medos de inadequação relativos aos genitais femininos. Para os autores franceses, o Don Juan está na
metade do caminho entre inibir o impulso sexual para mulheres que representem a mãe edípica, por um
lado, e identificar-se com o pai e o pênis paterno numa relação sexual adulta com uma mulher, por outro
lado: Don Juan, Braunschweig e Fain sugerem, tenta afirmar a genitalidade com a exclusão da
paternidade.
Não creio que a síndrome de Don Juan nos homens tenha uma etiologia única. Da mesma forma que a
promiscuidade nas mulheres (cujas causas podem variar de patologias de caráter severamente narcisistas a
patologias masoquistas ou histéricas relativamente moderadas), a promiscuidade masculina existe num
contínuo. A personalidade narcísica promíscua é um tipo de Don Juan muito mais grave do que o tipo
infantil, dependente, rebelde (mas efeminado), descrito pelos franceses.
Penso que o próximo passo rumo à identificação sexual normal dos meninos com o pai, é a
identificação conflituosa com um homem primitivo, controlador e sádico, que representa o pai fantasiado,
ciumento e restritivo, do período edípico inicial. A superação final do complexo de Édipo nos homens é
caracterizada pela identificação com um pai "generoso" e que não mais opera através de leis repressivas
contra os filhos. A capacidade de desfrutar do crescimento de um filho, sem precisar submetê-lo a ritos
punitivos de iniciação (que refletem uma inveja inconsciente dele), significa que o pai superou
definitivamente suas próprias inibições edípicas. A implicação prática dessas formulações é que uma
importante fonte de instabilidade nas relações amorosas dos homens adultos serve de uma identificação
incompleta dos mesmos com a função paterna, com várias fixações ao longo do caminho.
Para a menina, a falta de uma estimulação direta de seu erotismo genital na relação inicial com a mãe,
e, acima de tudo, os conflitos da mãe acerca do valor de
52 Oito F. Kernberg

seus próprios genitais e funções femininas, resultaria num desenvolvimento


psicossexual inibido, que é então secundariamente reforçado pelo desenvolvimento
da inveja do pênis e pela repressão da competitividade sexual com a mãe edípica.
Entretanto, a depreciação que a mãe faz dos homens e dos genitais de seu filho
pequeno pode alterar radicalmente as percepções e conflitos sexuais dos filhos de
ambos os géneros.
Para os autores franceses, a genitalidade da menininha é privada, em contraste
com a "exibição pública", socialmente reforçada, da genitalidade masculina com o
orgulho dos garotinhos pelo seu pênis. A menina pequena se encontra sozinha, na
esfera do seu desenvolvimento sexual. Sua esperança silenciosa e secreta está em
voltar-se da mãe para o pai, e em seu intuitivo anseio pelo pênis paterno, que, ao
penetrar a vagina, eventualmente recriaria a afirmação da genitalidade vaginal e
da sexualidade feminina em geral. Braunschweig e Fain sugerem que, por ser o
caminho do desenvolvimento sexual feminino mais solitário e mais secreto, ele é
mais corajoso do que o do menino, cuja genitalidade masculina é estimulada por
ambos os pais, por várias razões. Talvez porque a menina precise mudar seu pri-
meiro objeto erótico ao voltar-se da mãe para o pai (e tenha assim de atravessar os
desenvolvimentos pré-genital e genital mais cedo, mais definitiva e solitariamen-
te), a mulher adulta tem potencialmente uma coragem e capacidade maiores para
o comprometimento heterossexual do que o homem adulto.
Num contexto diferente, Altman (1977) salientou que, em contraste com a
mudança de objeto das mulheres, a permanência do primeiro objeto nos homens,
pode ser uma fonte importante da dificuldade geralmente maior que eles têm em
comprometer-se com uma relação amorosa estável. Os homens tenderiam a buscar
eternamente a mãe ideal e seriam mais propensos a reativar medos e conflitos pré-
genitais e genitais em suas relações com as mulheres, o que os predispõe a evitar
comprometimentos profundos. As mulheres, já tendo renunciado ao seu primeiro
objeto, são mais capazes de comprometer-se com um homem que estiver disposto
a estabelecer com elas um pleno relacionamento genital e "paternal". Um fator
adicional e crucial na capacidade das mulheres de comprometer-se, talvez seja sua
preocupação pela estabilidade dos cuidados e pela proteção dos filhos pequenos,
envolvendo aqui determinantes biológicos e psicossociais, especialmente a identi-
ficação com as funções maternas e valores sublimados, do superego, relacionados
(Blum,1976).
Apesar dessas diferenças no desenvolvimento da capacidade para o desejo
erótico e o amor sexual nos homens e nas mulheres, eles ainda têm experiências em
comum que se originam da situação edípica e que se constituem como um
organizador fundamental tanto para cada um individualmente, quanto para todas
as áreas da interação do casal.
Concordo com David (1971) que a qualidade do anseio pelo objeto edípico
inacessível e proibido, que energiza o desenvolvimento sexual, é um componente
crucial da paixão sexual e das relações amorosas. Em relação a isso, a constelação
Psicopatologia das Relações Amorosas 53

edípica pode ser considerada uma característica permanente das relações humanas, e talvez
seja importante enfatizar que as soluções neuróticas para os conflitos edípicos precisam ser
diferenciadas de suas manifestações normais.
Atravessar as fronteiras das proibições sexuais e geracionais poderia ser formulado como
a ativa reconstrução, por parte do indivíduo apaixonado, de sua história passada de relações
edípicas, incluindo as fantasias defensivas e criativas que transformam o reencontro em um
novo encontro com o objeto de amor. Atravessar as fronteiras sociais e sexuais transforma
fantasias inconscientes em experiências subjetivas na realidade; na ativação recíproca de seu
mundo de relações objetais internas, o casal reativa o mito edípico como uma estrutura social
(Arlow, 1974).
Em ambos os géneros, os anseios edípicos, a necessidade de superar as fantasias das
proibições edípicas e satisfazer a curiosidade sobre as misteriosas relações entre os pais,
estimulam a paixão sexual. Como já mencionados, as mulheres provavelmente cruzam mais
cedo a fronteira final da identificação com a mãe edípica, em sua afirmação da sexualidade
feminina, na mudança do objeto erótico da mãe para o pai. Os homens precisam ainda cruzar a
fronteira final da identificação com o pai edípico, na sua capacidade de estabelecer uma relação
sexual com uma mulher amada e executar, neste contexto, as funções da paternidade e
"generosidade". A experiência clínica revela como os homens se sentem movidos pela culpa
quando decidem terminar um relacionamento com uma mulher, ao passo que as mulheres
normalmente se sentem à vontade para deixar o homem saber que elas não mais o amam. Esta
diferença provavelmente reflete a culpa masculina, profundamente estabelecida, pela agressão
dirigida à mãe, tão frequentemente reativada em seus relacionamentos com as mulheres (Edith
Jacobson, comunicação pessoal).
Mas, nas mulheres, a culpa inconsciente decorrente das proibições fantasiadas da mãe
pré-genital e genital contra a genitalidade vaginal requer que haja uma afirmação totalmente
erótica e genital na relação sexual com um homem. A condensação dos precursores
sádicos do superego, relacionados à introjeção de imagens maternas primitivas, pré-edípicas,
com os aspectos posteriores proibitivos da mãe edípica, talvez seja um fator contribuindo
para a grande frequência de inibições genitais nas mulheres. Ela também pode ser um
importante elemento no que é geralmente referido como "masoquismo feminino".
Tem havido um crescente questionamento das suposições psicanalíticas anteriores, referentes a
disposições inatas para o masoquismo nas mulheres, e uma crescente consciência dos vários
fatores psicológicos e sociais que contribuem para suas tendências masoquistas e inibições
sexuais. Person (1974) e Blum (1976) revisaram a literatura pertinente e enfatizaram os
determinantes desenvolvimentais e psicossociais do masoquismo feminino. Blum conclui
que não existe nenhuma evidência de que o ser humano do sexo feminino tenha uma dotação
maior, do que o do sexo masculino, para obter prazer com o sofrimento, e que as primeiras iden-
tificações e relações objetais da menina são de crucial importância na determinação
54 Oito F. Kernberg

de sua identidade sexual posterior, seu papel feminino e atitudes maternas: é mais provável
que, no fim, o masoquismo seja apenas uma solução (gravemente) desadaptada para as
funções femininas.
Stoller (1974) sugeriu que dada a fusão original com a mãe, o senso de feminilidade é
mais firmemente estabelecido nas mulheres do que o senso de masculinidade nos homens.
Nos homens, a fusão original com a mãe — uma mulher — pode deixá-las mais vulneráveis
quanto à sua sexualidade, e mais propensos a desenvolverem perversões.
Descobri que, após a completa análise das fontes pré-genitais e genitais da inveja do
pênis na mulher, e de seu ódio aos próprios genitais, encontramos regularmente uma
capacidade mais precoce para usufruir plenamente o erotismo vaginal e uma afirmação do total
valor de seu corpo, simultaneamente com a capacidade de amar a genitalidade do homem sem
inveja. Não penso que a sexualidade feminina normal implique na necessidade, ou
capacidade, de renunciar ao pênis como o órgão genital mais apreciado, e acho que há boas
evidências de que o medo dos genitais femininos nos homens é não somente secundário à
ansiedade edípica de castração como também tem profundas raízes pré-genitais nos casos mais
severos. Em resumo, superar o medo e a inveja do outro género representa, tanto para os
homens quanto para as mulheres, uma estimulante experiência de superar as proibições
contra a sexualidade como um todo.
De uma perspectiva mais ampla, a descoberta pelo casal da satisfação da genitalidade
plena pode levá-lo a mudanças radicais em não querer mais submeter-se às convenções
culturais predominantes e nem às proibições e superstições ritualizadas, que eregem barreiras
contra a genitalidade madura. Este grau de liberdade sexual (combinado com a superação
final das inibições edípicas) pode refletir o potencial fundamental de satisfação sexual nas
relações amorosas, e reforçar a paixão ao criar um novo mistério de segredos sexuais
compartilhados pelo casal, e liberá-lo das restrições de seu grupo social. De um ponto
de vista desenvolvimental, os elementos de segredo e oposição característicos da paixão
sexual, originam-se da constelação edípica como um organizador básico da sexualidade
humana.
De um ponto de vista sociocultural, penso que a relação do amor sexual com a
convenção social é sempre ambígua, e a "harmonia" do amor com as normas sociais se
deteriora facilmente na convencionalidade e ritualização. Mas, pela mesma razão, a liberdade
sexual do casal no amor não pode ser "exportada" facilmente para as normas sociais, e as
tentativas de "amor sexual livre", com base numa educação maciça e "mudança cultural",
normalmente resultam numa mecanização convencionalizada do sexo. Penso que a
oposição entre o casal e o grupo é inevitável e Braunschweig e Fain (1971) discutiram
cuidadosamente esta questão.
A trágica incapacidade de identificar-se com a função paterna, de modo que todas as
relações amorosas estão destinadas ao fracasso apesar da "primazia genital", e a racionalização
desse fracasso em termos do mito predominante de uma cultura dominada pelo homem, são
dramaticamente ilustradas no livro Lês jeunes filies, de
Psicopatologia das Relações Amorosas 55

Henry de Montherlant (1936). Falando por intermédio de seu jovemherói (ou anti-herói) Pierre
Gostais, Montherlant ressente-se amargamente das pressões derivadas do desejo, que unem os
homens e as mulheres num eterno mal-entendido. Para as mulheres, diz ele (páginas 1010-1012),
o amor começa com a gratificação sexual, ao passo que para os homens, o amor termina com o
sexo; as mulheres são feitas para um homem só, o homem é feito para a vida e para todas
as mulheres. A vaidade é a paixão dominante do homem, enquanto a intensidade de
sentimentos relacionados ao amor por um homem representa a maior fonte de felicidade para as
mulheres. A felicidade das mulheres vem do homem, mas a do homem vem dele mesmo. O
ato sexual é cercado de perigos, proibições, frustrações e uma fisiologia "nojenta".
Seria fácil descartar a descrição que Montherlant faz do esteticamente orientado,
angustiado, orgulhoso, antiquado, cruel e autodestrutivo Gostais, como o produto de uma
ideologia paternalista; mas essa abordagem perderia de vinte nas fontes mais profundas da
intensidade do anseio, do medo e do ódio, em relação às mulheres, que caracterizam essa
racionalização.
A patologia predominante que interfere num relacionamento estável e totalmente
gratificante com um membro do género oposto é representada pelo narcisismo patológico, por um
lado, e pela incapacidade de resolver os conflitos edípicos com uma total identificação genital
com a figura parental do mesmo género, por outro. A patologia narcisista é relativamente
semelhante nos homens e nas mulheres. Nas mulheres, os conflitos edípicos não-resolvidos
apresentam-se mais frequentemente em vários padrões masoquistas, tais como um apego
persistente a homens insatisfatórios e na incapacidade de usufruir plenamente, ou manter um
relacionamento, com um homem que potencialmente poderia ser mais gratificante para
elas. Os homens também se apegam a mulheres frustradoras; mas, culturalmente, eles sempre
foram mais livres para desmanchar esses relacionamentos insatisfatórios. E os
sistemas de valores da mulheres, sua preocupação e senso de responsabilidade pelos filhos,
podem reforçar qualquer tendência masoquista que porventura tenham. Entretanto, não
esquecer que o ideal do ego e as preocupações maternais naturais não devem ser confundidas
com objetivos masoquistas (Blum, 1976) na "mãe comum dedicada".
Nos homens, a patologia predominante das relações amorosas derivadas dos conflitos
edípicos assume a forma do medo e da insegurança frente às mulheres e de reações formativas
contra essa insegurança, na forma de hostilidade reativa e/ ou projetada em relação a elas; isto
se combina, de várias maneiras, com a hostilidade pré-genital e culpa em relação à figura
materna. Os conflitos pré-genitais, especialmente os conflitos acerca da agressão pré-
genital, estão intimamente condensados com os conflitos genitais. Nas mulheres, essa
condensação aparece tipicamente na exacerbação dos conflitos acerca da inveja do pênis; a
inveja oralmente determinada da mãe pré-genital é deslocada para o pai genital idealizado e
seu pênis e para a rivalidade edípica com a mãe. Nos homens, a agressão, inveja e o medo pré-
genitais das mulheres reforçam os medos edípicos e os sentimentos de
56 Otto F. Kernberg

inferioridade em relação a elas: a inveja pré-genital da mãe reíorça a insegurança


edipicamente determinada dos homens em relação às mulheres idealizadas.
A natureza universal da constelação edípica resulta na reemergência dos conflitos
edípicos em vários estágios do relacionamento, de modo que as circunstâncias psicossociais
podem às vezes induzir, e outras vezes proteger, o casal da reativação da expressão neurótica
dos conflitos edípicos. Por exemplo, o dedicado comprometimento de uma mulher aos
interesses de seu marido pode refletir uma expressão adaptativa de seu ideal do ego,
mas também pode compensar adaptativamente tendências masoquistas relacionadas à
culpa inconsciente por tomar o lugar da mãe edípica. Quando o marido deixa de
depender dela, e as relações económicas e sociais do casal não exigem ou justificam mais o
"sacrifício" dela, a culpa inconsciente refletindo conflitos edípicos não-resolvidos talvez não
seja mais compensada; pode desencadear-se uma variedade de conflitos — talvez a
necessidade inconsciente dela de destruir o relacionamento em virtude da culpa, ou da inveja
não-resolvida do pênis, e do concomitante ressentimento pelo sucesso masculino. Ou o fracasso
de umhomemno trabalho pode descompensar suas fontes anteriores de afirmação narcísica
(que o protegiam da insegurança edípica em relação às mulheres e de rivalidades patológicas
com os homens) e provocar uma regressão para a inibição sexual e dependência conflitual
em relação à esposa, reativando ainda mais seus conflitos edípicos e suas soluções
neuróticas.
O desenvolvimento e o sucesso social, cultural e profissional das mulheres em nossa
sociedade podem ameaçar a proteção tradicional, culturalmente sancionada e reforçada dos
homens contra sua insegurança e medos edípicos, e sua inveja das mulheres no sentido mais
amplo; e as mudanças da realidade confronta ambos os participantes com a potencial reativação
da inveja, ciúme e ressentimento consciente e inconsciente, o que aumenta perigosamente os
componentes agressivos da relação amorosa.
Essas dimensões socioculturais dos conflitos inconscientes do casal são sutil mas
dramaticamente ilustrados na série de filmes de Eric Rohmer, "Six Moral Tales", que lidam com o
amor e o casamento, particularmente "My Night With Maude" (Rohmer, 1969;Mellen, 1973).
Jean-Louis, o jovem católico convencional, inteligente, sensível, mas tímido e rígido, não ousa
se envolver com Maude, a divorciada vivaz, profissionalmente ativa, emocionalmente
profunda e complexa. Ele prefere continuar "fiel" à garota católica idealizada, insípida, cheia
de segredos e submissa, que decidira esposar. Ele parece ser um homem comprometido e
consistente, mas, subjacente, há o medo de se comprometer num relacionamento pleno, embora
incerto, com uma mulher que seja sua igual. E Maude, com todo o seu charme, talento e sua
capacidade de realização pessoal, é incapaz de reconhecer que Jean-Louis não lhe dará nada
porque tem medo, e é incapaz de fazer isso; depois de rejeitar o amigo de Jean-Louis,
Vidal, que a ama realmente, ela entra num novo casamento insatisfatório com um outro
homem. A tragédia é a das oportunidades perdidas—contrapartida da potencial felicidade e
realização de uma relação amo-
Psicopatologia das Relações Amorosas 57

rosa, ou casamento estável, em que ambos os parceiros são capazes de transcender os perigos
inconscientemente determinados para as suas relações.

Apaixonando-se e Tornando-se um Casal

A capacidade de apaixonar-se é um pilar básico do relacionamento do casal. Implica na


capacidade de vincular a idealização com o desejo erótico e no potencial para estabelecer um
relacionamento objetal profundo. Um homem e uma mulher que descobrem atração e anseio
um pelo outro, que são capazes de estabelecer um relacionamento sexual completo, que inclua a
intimidade emocional e um senso de realização de seus ideais junto com a pessoa amada, estão
expressando sua capacidade não apenas de ligar inconscientemente o erotismo e a ternura e a
sexualidade e o ideal do ego, como também de colocar a agressão a serviço do amor. Um casal
num relacionamento amoroso pleno desafia a eterna inveja e ressentimento dos que se
sentem excluídos da relação e das agências reguladoras, desconfiadas, da cultura
convencional em que vivem. O romântico mito dos amantes que se encontram numa multidão
hostil, expressa uma realidade inconsciente para ambos os parceiros. Algumas culturas
podem salientar o romantismo (a ênfase nos aspectos emocionais, heróicos e idealizados do
amor), e outras podem rigorosamente negá-lo: mas como uma realidade emocional ele é
revelado na arte e na literatura em todas as épocas históricas (Bergmann, 1987).
Outra dinâmica importante é a desafiadora ruptura que o casal faz com a submissão
aos grupos inconscientemente homossexuais da latência e adolescência inicial (Braunschweig e
Fain, 1971): o homem desafia a desvalorização da sexualidade analmente matizada e a
depreciação defensiva das mulheres, que existem nos grupos masculinos da latência e
adolescência inicial como uma defesa contra profundos anseios de dependência e proibições
edípicas; a mulher supera o medo da agressão masculina, que os grupos femininos sentem
durante a latência e adolescência, e o conluio que tais grupos fazem para negar o anseio de
intimidade sexual com um homem idealizando, defensivamente, homens parcialmente
dessexualizados como um ideal compartilhado pelo grupo.
Um homem e uma mulher podem conhecer-se desde a infância e constituir um casal na
opinião das pessoas que os conhecem; mas podem casar e ainda assim não ser realmente um
casal. Ou podem tornar-se um casal, secretamente, mais cedo ou mais tarde: muitos, se não a
maioria dos casamentos, são vários casamentos, e alguns deles só se consolidam muito
tempo depois de terem deixado de despertar a atenção de seu grupo social.
Se o casal pode incorporar suas fantasias e desejos perversos polimorfos ao seu
relacionamento sexual, descobrir e revelar o núcleo sadomasoquista da excitação sexual em sua
intimidade, seu desafio à cultura convencional pode tornar-se um elemento consciente de seu
prazer. No processo, a plena incorporação de seu
58 Otto F. Kernberg

erotismo corporal pode enriquecer a abertura de cada parceiro à dimensão estética da cultura e
da arte, e à experiência da natureza. O desmantelamento conjunto dos tabus sexuais da infância
pode também cimentar a vida emocional, cultural e social do casal.
Nos pacientes com uma significativa patologia de caráter, a capacidade de apaixonar-se
indica certas conquistas psicológicas: nas personalidades narcisistas, apaixonar-se assinala o
início da capacidade de consideração pelo outro e culpa, e certa esperança de superação da
desvalorização profunda e inconsciente do objeto de amor. Com pacientesborderíine, a
idealização primitiva pode ser o primeiro passo rumo a uma relação amorosa diferente da
relação amor-ódio com os objetos primários. Isso ocorre se, e quando, os mecanismos de
dissociação responsáveis por essa primitiva idealização forem resolvidos, e essa relação
amorosa (ou uma nova relação substituta) for capaz de tolerar e resolver os conflitos pré-
genitais contra os quais a idealização primitiva era uma defesa. Os pacientes neuróticos, e os
pacientes com uma patologia de caráter relativamente moderada, desenvolvem a capacidade
para uma relação amorosa duradoura se e quando o tratamento psi-canalítico ou
psicoterapêutico bem-sucedido resolver os conflitos inconscientes, predominantemente
edípicos.
Estar apaixonado também representa um processo de luto relacionado a crescer e tornar-
se independente, a experiência de deixar para trás os objetos reais da infância. Neste processo
de separação, também existe a reconfirmação das boas relações com objetos internalizados
do passado, conforme o indivíduo se torna confiante na capacidade de dar e receber amor e
gratificação sexual simultaneamente — com um mútuo reforço entre ambos, que estimula o
crescimento — em contraste com o conflito entre amor e sexo na infância.
Chegar a este estágio desenvolvimental permite o desenvolvimento da capacidade de
transformar o apaixonar-se num relacionamento amoroso estável, implicando na capacidade de
ternura, preocupação e idealização mais sofisticada do que a de níveis desenvolvimentais
anteriores, e na capacidade de identificação e emparia com o objeto de amor. Agora a ternura
pode expandir-se para uma satisfação sexual completa, a identificação se aprofunda com a
empatia e identificação sexual completa, e a idealização se torna um comprometimento
maduro com um ideal representado por aquilo que a pessoa amada é ou representa, ou o
que o casal, unido, poderá tornar-se.

Amor Sexual Maduro e Casal Sexual

Henry Dicks (1967) of ereceu,baseado na pesquisa sobre os conflitos de casais casados, o


que eu considero a estrutura psicanalítica mais abrangente para o estudo das características das
relações amorosas normais e psicopatológicas. Abordou o estudo da capacidade para uma
relação amorosa madura em termos das dimensões de interação estabelecidas num
relacionamento conjugal. Ao examinar casais,
Psicopatologia das Relações Amorosas 59

individual e conjuntamente, a partir de uma perspectiva psicanalítica, ele criou um marco de


referencial que permitiu uma análise das razões para o conflito conjugal crónico e para as
consequências desses conflitos, seja na destruição do casal, seja na manutenção de um equilíbrio
insatisfatório e conflitoso, ou, se possível, na resolução dos conflitos.
Dicks descobriu que havia três áreas maiores em que os casais se relacionavam um com o
outro. Em primeiro lugar, suas expectativas mútuas, conscientes, quanto àquilo que o
relacionamento conjugal deve prover; em segundo lugar, a extensão em que suas expectativas
mútuas permitem a harmonização de suas próprias expectativas culturais e a integração do casal
com seu ambiente cultural; em terceiro lugar, a ativação inconsciente de relações
patogênicas passadas, internalizadas em cada parceiro, e mútua indução de papéis
complementares com essas relações objetais passadas. Dicks descobriu que os casais estabeleciam
uma formação de compromisso entre suas relações objetais inconscientes, que
frequentemente estavam em agudo conflito com seus desejos conscientes e expectativas mútuas.
Esta mútua indução de papéis se dava através da identificação projetiva, e provou ser um
sólido fator na determinação da capacidade do casal de obter gratificações, ou infelicidade. Dicks
enfatizou como os conflitos sexuais entre os parceiros eram o território normal, no qual se
expressavam os conflitos conjugais e as relações objetais inconscientemente ativadas, e mostrou
o agudo contraste entre essas relações objetais ativadas e a idealização mútua inicial do casal.
As vicissitudes descritas por Dicks na ativação da identificação projetiva mútua como parte das
relações objetais do casal, e a influência de seu ideal de ego no relacionamento, influenciaram
significativamente minha opinião sobre o relacionamento do casal. Ele afirmou que
"paradoxalmente ao senso comum, o comprometimento inconsciente — o enrrosamento cúmplice
mútuo dos parceiros—parece mais poderoso e inevitável no tipo de casamento perturbado que
estamos considerando agora, do que na interdependência livre e flexível de "pessoas inteiras"
(página 73).
Creio que as áreas de interação do casal delineadas por Dicks podem ser reformuladas e
ampliadas para no mínimo as seguintes três áreas: 1) suas relações sexuais reais, 2) suas relações
objetais consciente e inconscientemente predominantes, 3) seu estabelecimento de um ideal de
ego conjunto. A capacidade para o amor sexual maduro descrito por mim se desenvolve nessas
três áreas.
O que gostaria de enfatizar é a importância da integração da libido e agressão, do amor e do
ódio (com a predominância do amor sobre o ódio), em todas essas três áreas maiores de interação de
um casal. Em relação a isso, agradeço a Stoller (1979,1985), que deu imensas contribuições ao
entendimento psicanalítico da excitação sexual, da perversão e da natureza do amor. Ele salientou a
presença essencial da agressão como um componente da excitação sexual, chegando, independen-
temente, a conclusões semelhantes às que cheguei ao estudar as experiências sexuais dos pacientes
borderline. Também enfatizou a importância do mistério na excita-
60 Otto F. Kernberg

cão sexual e descreveu fatores anatómicos e fisiológicos que, em interação com desejos e perigos
edípicos, contribuem para as qualidades excitantes e frustrantes que são parte desse mistério. O
mistério tanto induz quanto reflete a fantasia sexual. Stoller enfatizou a função da excitação sexual
na recriação de situações perigosas e potencialmente frustrantes, e na sua superação por meio de
fantasias e ato sexuais específicos. Assim, tanto em termos da capacidade de excitação sexual e
desejo erótico, quanto da integração de relações objetais pré-edípicas e edípicas como parte das
relações amorosas, a integração da libido e agressão, de amor e ódio, emergiram gradualmente
como um aspecto maior na capacidade para as relações amorosas, assim como na patologia
dessas relações.
Os aspectos sadomasoquistas da sexualidade perversa polimorfa proporcionam um ímpeto
importante para o anseio de fusão sexual; e uma excessiva predominância da falta de cuidados
corporais ternos ou de experiências traumáticas, abuso físico ou sexual, podem extinguir a
capacidade de resposta sexual e interferir com a consolidação e desenvolvimento do afeto da
excitação sexual. E, ao contrário, uma repressão excessiva da agressão, ou proibições inconscientes
contra os componentes primitivos e agressivos da sexualidade perversa polimorfa do bebé, podem
inibir significativamente e empobrecer a resposta sexual. Clinicamente, de fato, observei que
algum grau de supressão ou repressão da sexualidade perversa polimorfa infantil era o tipo mais
frequente de inibição sexual que contribui de forma importante para o empobrecimento da vida
amorosa de casais, cujas relações emocionais eram, de outra forma, satisfatórias. Na prática,
descobrimos que os casais podem ter intercurso genital regularmente, com excitação sexual e orgas-
mo, mas com uma crescente monotonia, um vago sentimento de insatisfação e aborrecimento.
Na área da excitação sexual, então, tanto a ausência da integração da agressão quanto um excesso
dela podem inibir a relação amorosa.
O mesmo processo aparece nas relações objetais dominantes do casal. A falta de integração das
relações objetais internalizadas "totalmente boas" e "totalmente más" conduz à primitiva
idealização nas relações amorosas da organização de personalidade borderline; sua qualidade
irrealista leva facilmente ao conflito e à destruição do relacionamento. Uma idealização que não
tolera ambivalência, que é facilmente destruída pela emergência de qualquer agressão no
relacionamento, é por definição uma idealização frágil e insatisfatória, faltando aos parceiros a
capacidade para uma mútua identificação profunda. Mas a integração das relações objetais, que
anuncia a dominância dos conflitos edípicos mais avançados, com sua tolerância à ambivalência,
também significa a emergência da agressão no relacionamento que precisa ser tolerada, e que é
potencialmente perigosa para o relacionamento.
A tolerância da ambivalência facilita a ativação dos cenários inconscientes e da identificação
projetiva de relações objetais patogênicas passadas internalizadas. De modo que a tolerância da
agressão, como parte do relacionamento ambivalente do casal, o enriquece enormemente e
garante a profundidade que foi apontada como parte da "identificação genital" de Balint, ou da
"consideração" de Winnicott.
Psicopatologia das Relações Amorosas 61

Mas uma agressão excessiva ameaça o casal com intoleráveis conflitos e


potencial ruptura do relacionamento.
Indo mais além das relações objetais para a mútua projeção do ideal de ego
do casal, o estabelecimento conjunto da idealização um do outro, assim
como a idealização do relacionamento do casal, não apenas servem a
propósitos defensivos contra uma avaliação mais realista de suas
necessidades e de seu relacionamento, como também leva consigo a
ascendência de funções do superego em geral (e do superego infantil) com seus
remanescentes de proibição contra desejos edípicos e contra a sexualidade infantil.
O desenvolvimento normal das funções do superego protege o casal, acrescenta o
poderoso elemento: um senso de mútua responsabilidade e preocupação,
derivado de sua profundidade emocional. Mas também cria a possibilidade,
quando a agressão predomina no superego, de perseguição mútua e de
supressão da liberdade.
Obviamente, a qualidade e o desenvolvimento de uma relação amorosa
depende da natureza da combinação do par e, por implicação, do processo de
seleção que os aproxima. As mesmas características que implicam na
maturação da capacidade para as relações amorosas, influenciam o processo de
seleção. A capacidade para usufruir livremente o sexo constitui, se disponível
pelo menos para um dos dois, uma primeira situação de teste para a extensão
em que eles poderão chegar juntos à liberdade, riqueza e variedade de seus
encontros sexuais. Uma capacidade de enfrentamento maduro da inibição,
limitação ou rejeição sexual é expressão de uma identificação genital estável, ao
contrário da rejeição raivoza, da desvalorização ou submissão da masoquista à
inibição sexual do parceiro. Naturalmente, a resposta do parceiro sexualmente
inibido a esse desafio tornar-se-á um importante elemento da dinâmica ou
desenvolvimento do casal sexual. Por trás de incompati-bilidades sexuais
iniciais de um casal normalmente existem questões edípicas significativas não-
resolvidas, e a extensão em que o relacionamento do casal pode contribuir
para a sua solução, depende em certo ponto da atitude do mais sadio dos dois.
Mas evitar escolher um parceiro que obviamente colocaria grandes limitações à
expectativa de gratificação sexual, é um aspecto do processo de seleção normal.
O desenvolvimento da capacidade para relações objetais totais ou
integradas implica na obtenção de uma identidade do ego e, ao mesmo tempo,
de relações de objeto profundas, o que facilita a seleção intuitiva de alguém que
corresponda aos desejos e aspirações da pessoa. Sempre haverá
determinantes inconscientes do processo de seleção, mas, em circunstâncias
comuns, a discrepância entre os desejos e medos inconscientes e as
expectativas conscientes, não será tão extrema a ponto de pôr em perigo a
dissolução dos processos de idealização inicial, no relacionamento do casal.
Além disso, a seleção madura da pessoa que amamos e com quem
queremos viver a nossa vida envolve ideais, julgamentos de valor e objetivos
maduros, os quais, além da satisfação das necessidades de amor e intimidade,
dão um significado mais amplo à vida. Poderíamos questionar se o termo
"idealização" ainda se aplica aqui, mas na medida em que a pessoa escolhida
corresponde a um ideal pelo
62 Oito F. Kernberg

qual lutar, há um elemento de transcendência nessa seleção, um compromisso que vem ao natural,
porque é um compromisso com um certo tipo de vida representado por aquilo que a relação com
pessoa pode ser ou poderá vir a ser.
Aqui voltamos à dinâmica básica, segundo a qual a integração da agressão nas áreas da
relação sexual, relação objetal e ideal do ego do casal garante a profundidade e intensidade do
relacionamento, embora também possa ameaçá-lo. O fato de que o equilíbrio entre amor e
agressão é um equilíbrio dinâmico torna essa integração e profundidade potencialmente
instáveis. Um casal não pode tomar seu futuro como certo, mesmo nas melhores circunstâncias;
muito menos quando conflitos significativos não-resolvidos, em um ou ambos os parceiros,
ameaçam o equilíbrio entre amor e agressão. Às vezes, mesmo em condições que parecem auspiciosas
e seguras, novos desenvolvimentos modificam aquele equilíbrio.
O próprio fato de que a condição essencial para uma relação profunda e duradoura entre
duas pessoas seja a capacidade de aprofundar-se no próprio self, assim como no dos outros —
para a empatia e o entendimento, que abrem os profundos caminhos das múltiplas relações não-
faladas entre as pessoas —, cria uma curiosa contrapartida. Na medida em que alguém se torna
mais capaz de amar em profundidade, e mais capaz de apreciar realisticamente outra pessoa, com o
passar dos anos, como parte de sua vida pessoal e social, pode-se também vir a encontrar outras
pessoas que, realisticamente, poderiam servir como um parceiro igualmente satisfatório ou mesmo
melhor. A maturidade emocional, portanto, não é nenhuma garantia de estabilidade sem conflitos
para o casal. Um profundo comprometimento com uma pessoa e os valores e experiências de
uma vida vivida a dois enriquecerão e protegerão a estabilidade do relacionamento. Mas
se o autoconhecimento e a autoconsciência forem profundos, pode ser ativado, de tempos em
tempos, um anseio por outras relações (cujo potencial pode advir de uma avaliação realista), e
sobrevir repetidas renúncias. A renúncia e o anseio, por seu lado, também podem acrescentar
uma dimensão de profundidade à vida do indivíduo e do casal, e o redirecionamento dos anseios,
fantasias e tensões sexuais no relacionamento do casal pode constituir uma dimensão adicional,
obscura e complexa desse relacionamento. Numa análise final, todos os relacionamentos huma-
nos devem terminar, e a ameaça de perda e abandono e, em última análise, da morte, é maior
quanto mais profundo for o amor: a consciência disso também intensifica o amor.
C a p í t u l o 5

Experiência Sexual e
Psicopatologia

N como que segue, ofereço ilustrações clínicas de como uma psicopatologia sig-dficativa interfere
o desenvolvimento de relações amorosas maduras, "ratarei de comparar as consequências
de condições borderline e narcísicas severas e menos severas, assim como de psicopatologia
neurótica, através de casos clínicos típicos.
Em alguns dos casos mais severos de pacientes com organização de personalidade borderline,
particularmente aqueles com tendências autodestrutivas e auto-mutiladoras significativas, ou
pacientes com patologia narcísica, tendências antisociais, e agressão egossintônica, pode prevalecer
uma notável ausência da capacidade de prazer sensual e erotismo de pele. Tanto em pacientes do
sexo masculino quanto feminino, pode haver uma ausência de qualquer válvula de escape sexual,
nenhum prazer na masturbação, nenhum desejo sexual ligado a qualquer objeto, além de uma
incapacidade de chegar à excitação, sem falar em orgasmo, no intercurso sexual. São pacientes
que não manifestam nenhum sentimento de haver estabelecido os mecanismos repressivos vistos
em pacientes mais sadios (normalmente neuróticos), os quais podem apresentar uma inibição da
excitação sexual secundária, baseada na repressão.
Os pacientes que estou descrevendo são incapazes de chegar à excitação sexual, embora
estejam claramente equipados com um aparelho biológico perfeitamente normal. A história de
seu desenvolvimento desde pequenos transmite a impressão de que a ativação prazerosa do
erotismo de pele não foi atingida, ou foi impedida desde o início, no período em que eram bebés.
Experiências extremamente traumáticas, abuso físico e/ou sexual e a chama tiva ausência de um
objeto parental amoroso e preocupado tendem a dominar suas histórias. Frequentemente, a
automutilação — eles puxam a própria pele, cabelo ou superfícies mucosas —

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64 Otto F. Kernberg

lhes dá um tipo de gratificação sensual, mas a dor supera de longe qualquer evi-
dência de prazer erótico. A exploração psicanalítica revela um mundo de fantasias
primitivas, dominado por interações sadomasoquistas, e uma busca de poder como
a única garantia de segurança, como uma alternativa para a submissão total a um
objeto sádico. Esses pacientes têm grandes dificuldades em atingir eventualmente
a capacidade para a satisfação sensual. Paradoxalmente, a psicoterapia psicanalíti-
ca que pode melhorar imensamente suas dificuldades de personalidade, pode tam-
bém contribuir para consolidar ainda mais sua inibição sexual ao introduzir meca-
nismos repressivos. Os terapeutas sexuais, corretamente, consideram que esses
pacientes apresentam um prognóstico extremamente reservado.
A integração das relações objetais internalizadas primitivas, dissociadas, idea-
lizadas e persecutórias desses pacientes como parte e consequência do tratamento
psicoterapêutico, talvez lhes possibilite desenvolver a capacidade de idealização,
de ansiar por uma relação idealizada que possa facilitar a melhora em sua capaci-
dade de investimento e comprometimento emocional. Podem finalmente ser capa-
zes de estabelecer uma relação amorosa comprometida, mas, tipicamente, não
demonstram nenhuma capacidade de amar apaixonadamente.
Uma mulher de vinte e tantos anos estava hospitalizada por severas tendên-
cias automutiladoras, com risco de vida. No passado, ela cortara profundamente
seus braços, apresentava múltiplas cicatrizes desfigurantes, havia-se queimado
com cigarros, e parecia estar viva somente por um milagre após várias tentativas
de suicídio. Interrompera seus estudos universitários no primeiro semestre da fa-
culdade para entrar em um estilo de vida desgarrado, vivendo com homens que
lhe davam drogas ilegais, sem experimentar qualquer desejo ou prazer sexual em
suas relações íntimas. Pelo contrário, sentia-se extremamente receosa de ser explo-
rada pelos homens, e, ao mesmo tempo, tendia ela a explorar os homens financeira
e emocionalmente. Obtinha gratificação sensual somente sendo abraçada, ao dor-
mir com eles à noite, ou sentindo que lhe davam drogas sem fazer qualquer per-
gunta ou exigência além de seus favores sexuais. Apresentava, no entanto, uma
curiosa capacidade de lealdade ao homem com o qual vivia, na medida em que
suas exigências eram satisfeitas e ela se sentia no controle do relacionamento: pas-
sava subitamente a desvalorizá-lo e abandoná-lo somente quando temia estar sen-
do explorada ou tratada injustamente. Sua história incluía abuso físico pela mãe, e
abuso sexual por um padrasto. O sucesso inicial nas séries do primeiro grau, devi-
do à sua elevada inteligência, foi seguido por uma gradual deterioração de seu
funcionamento, em virtude da falta de investimento em seu trabalho nos anos
posteriores. Ela fizera parte de um grupo marginal, um tanto anti-social, mas não
se envolvera em tais atividades além de pequenos roubos em lojas no início da
adolescência, o que deixara de fazer quando achou que era perigoso demais.
Pacientes borderline menos gravemente doentes podem apresentar a capaci-
dade para excitação sexual e desejo erótico, mas sofrem as consequências de sua
patologia de relações objetais internalizadas. Os mecanismos dissociativos da or-
ganização de personatidadeborderline dividem o mundo das relações objetais inter-
Psicopatologia das Relações Amorosas 65

nas e externas em figuras idealizadas e persecutórias. Eles são capazes, conseqúen-


temente, de idealizar relacionamentos com "objetos parciais". Tais relacionamen-
tos, entretanto, são frágeis, e sempre em risco de serem contaminados por aspectos
"totalmente maus" que podem transformar um relacionamento ideal num relacio-
namento persecutório.
As relações amorosas desses pacientes podem apresentar desejo erótico jun-
tamente com a idealização primitiva do objeto amado. O que achamos aqui é o
desenvolvimento de intensos apegos amorosos, com idealização primitiva e de
natureza um pouco mais duradoura do que o envolvimento transitório dos pacien-
tes narcisistas. A contraparte dessas idealizações é a tendência a reações abruptas
e radicais de desapontamento, a transformação do objeto idealizado num objeto
persecutório, e relações desastrosas com objetos previamente idealizados. Tais ca-
sos costumam apresentar as características agressivas mais dramáticas nos proce-
dimentos de divórcio. Talvez o tipo mais frequente desse relacionamento patológi-
co seja o de mulheres com personalidades infantis e organização de personalidade
borderline, que se agarram desesperadamente a homens idealizados de modo tão
irrealista, que normalmente é muito difícil obter qualquer quadro real desses ho-
mens a partir das descrições que a paciente faz deles. Superficialmente, esses
envolvimentos se assemelham aos das mulheres masoquistas bem mais integra-
das, que se submetem a homens idealizados, sádicos, mas a idealização irrealista,
infantil, é muito mais acentuada nestes casos. O seguinte caso, também extraído de
um trabalho anterior (1976), ilustra essa dinâmica.
A paciente era uma jovem obesa, de 18 anos de idade. Habitualmente tomava
uma variedade de drogas, e seu desempenho na escola estava se deteriorando
gradualmente apesar de seu alto QI. Sua rebeldia fizera com que fosse expulsa de
várias escolas, e promovia cenas violentas em casa. No hospital ela dava a impres-
são de ser uma adolescente impulsiva, hiperativa, desgrenhada e suja. Sua explo-
ração rude da maioria das pessoas contrastava agudamente com sua completa
dedicação a um jovem, que ela encontrara num outro hospital, e para quem ela
escrevia diariamente cartas de amor longas e apaixonadas. Ele, por ser terno, res-
pondia apenas ocasionalmente, de maneira inconstante e tinha algumas dificulda-
des, nunca especificadas, com a lei. Apesar dos cuidadosos esforços por parte do
médico da paciente para obter um quadro realista desse homem, ele permaneceu
sempre como uma sombra nebulosa, embora, conforme a paciente, "fosse um ho-
mem perfeito, ideal, amoroso e lindo".
Na psicoterapia, a paciente descreveu ardentemente as intensas experiências
sexuais com seu namorado, seu sentimento de plena realização no relacionamento,
e sua convicção de que se pudesse fugir com ele e viver uma vida isolada do resto
do mundo, seria feliz e normal. A paciente já tivera antes vários terapeutas, e viera
ao nosso hospital "preparada" para lutar contra os esforços da equipe para separá-
la de seu namorado.
Ela conseguia perdoar, ou melhor, racionalizar, a pouca responsividade do
namorado, ao mesmo tempo em que permanecia altamente sensível, muitas vezes
66 Otto F. Kernberg

paranóide, em relação ao desprezo ou negligências das outras pessoas. Somente depois de


ele a ter rejeitado total e obviamente (e após ter conhecido um outro jovem em nosso
hospital, com quem repetiu essa mesma relação), foi que pôde livrar-se do primeiro. Fez
isso tão completamente que, após alguns meses, não conseguia nem mesmo lembrar-se
do rosto dele.
Paradoxalmente, este tipo de "apaixonar-se" tem um prognóstico melhor do que as
efémeras paixões loucas das personalidades narcísicas, embora estas pareçam ser bem mais
"orientadas para a realidade" do que os típicos pacientesborderline.
Há vários aspectos notáveis nas relações amorosas intensas de pacientes com
organização de personalidade borderline. Em primeiro lugar, eles ilustram a plena capacidade
para a excitação genital e o orgasmo vinculada a um apaixonado comprometimento, e
mostrando assim que o desenvolvimento da "primazia genital" necessariamente não
implica em maturidade emocional.
Nesses pacientes, uma certa integração parece ter tomado o lugar da sexualidade
infantil perversa polímorfa e da sexualidade genital, no sentido de que eles parecem capazes
de integrar a agressão com o amor; isto é, de "recrutar" os componentes agressivos e
sadomasoquistas da sexualidade infantil, a serviço da gratificação erótica libidinal. Esta
integração da excitação sexual e do desejo erótico parece ocorrer antes do sujeito ter a
capacidade de integrar suas relações objetais internalizadas, investidas agressiva e
libidinalmente. A dissociação das relações objetais (em relações idealizadas e persecutórias)
persiste,e, pelo contrário, a intensa idealização erótica dos objetos idealizados tem a função
de negar o segmento agressivo das relações objetais internalizadas, e de proteger o
relacionamento idealizado da contaminação com a agressão.
Os pacientesborderline demonstram uma capacidade para um tipo primitivo de
apaixonar-se, caracterizado por uma idealização irrealista do objeto amado, que eles não
conseguem perceber em nenhuma profundidade. Este tipo de idealização difere da
idealização madura, e ilustra os processos desenvolvimentais que o mecanismo de
idealização sofre antes de culminar na idealização normal do apaixonar-se.
Experiências sexuais intensas, que idealizam relações íntimas, podem ser usadas
para negar uma intolerável ambivalência e proteger a dissociação das relações objetais. Este
processo ilustra o que poderia ser chamado de prematura edipicalização de conflitos pré-
edípicos em muitos pacientes com organização de personalidade borderline: casos amorosos
altamente neuróticos, mas intensos, obscurecem a incapacidade subjacente de tolerar a
ambivalência. Clinicamente, em ambos os géneros, a ativação de modos genitais de
interação pode servir como tentativas de escapar das relações assustadoras e frustrantes
centradas nas necessidades orais e de dependência. É como se uma esperança inconsciente
de gratificação, através da atividade sexual e de um relacionamento diferente do frustrante
relacionamento pré-genital com a mãe, estimulasse uma fuga para a sexualização precoce
de todas as relações.
Psicopatologia das Relações Amorosas 67

Muitos pacientes com personalidade narcísica possuem uma capacidade bem-


desenvolvida para a excitação sexual e orgasmo no intercurso sexual, e um amplo espectro
de tendências infantis polimorfas perversas, sem a capacidade para um profundo
investimento num objeto de amor. Muitos desses pacientes jamais se apaixonaram nem
amaram ninguém. Os pacientes que são promíscuos e que têm intensos sentimentos de
frustração e impaciência, quando os objetos sexuais desejados não se tornam
imediatamente disponíveis, podem parecer estar apaixonados, mas não o estão. Isto se
torna evidente em sua indiferença logo depois de terem realizado sua conquista.
Por razões terapêuticas e prognosticas, é importante diferenciar a promiscuidade sexual
de pacientes com uma estrutura de personalidade narcísica da dos pacientes com
personalidade histérica e fortes tendências masoquistas: nos últimos, a promiscuidade
sexual normalmente reflete uma culpa inconsciente em relação a estabelecer um
relacionamento estável, maduro, gratificante, porque tal relacionamento representaria
inconscientemente a realização edípica proibida. Esses pacien tes histéricos e masoquistas
apresentam uma capacidade para relações objetais plenas e estáveis em outras áreas que não
o envolvimento sexual. Por exemplo, mulheres com uma personalidade histérica e fortes
tendências competitivas inconscientes com os homens podem desenvolver relações estáveis
e profundas com eles enquanto não estiver presente nenhum componente sexual; é somente
quando se desenvolve a intimidade sexual que o ressentimento inconsciente pela submissão
fantasiada aos homens, ou a culpa inconsciente pela sexualidade proibida, interfere na
relação.
Em contraste, a promiscuidade sexual das personalidades narcísicas está vinculada à
excitação sexual por um corpo que "se retrai" e fica indisponível, ou por uma pessoa
considerada atraente ou valiosa por outras pessoas. Esse corpo ou pessoa desperta inveja e
cobiça inconscientes nos pacientes narcisistas e a necessidade de possuí-los, assim como a
tendência inconsciente a desvalorizar e estragar aquilo que é invejado. Na medida em que a
excitação sexual temporária intensifica a ilusão da desejabilidade do objeto, um entusiasmo
transitório pelo objeto sexual desejado pode assemelhar-se ao estado de apaixonar-se.
Entretanto, a realização sexual logo gratifica a necessidade de conquista, desencadeaando
o processo inconsciente de desvalorizar o objeto desejado, e resultando num rápido
desaparecimento tanto da excitação sexual quanto do interesse pessoal.
A situação é complexa, entretanto, porque a cobiça e a inveja inconscientes tendem a
ser projetadas no objeto sexual desejado,e, em consequência, o medo da cobiça possessiva e
do potencial exploração pelo objeto sexual se torna uma ameaça, reforçando a necessidade de
escapar para a "liberdade". Para o paciente narcisista, todas as relações são entre
exploradores e explorados, e a "liberdade" é simplesmente uma fuga da possessividade
devoradora fantasiada. No curso do tratamento psicanalítico, todavia, a promiscuidade
compulsiva do paciente narcisista também revela uma desesperada busca de amor
humano, como se ele estivesse
68 Otto F. Kernberg

magicamente ligado a partes do corpo — seios ou pênis, nádegas ou vaginas. C anseio


interminável e repetitivo do paciente narcisista por essas partes do corpc podem emergir, na
análise, como uma fixação regressiva em experiências simbióticas iniciais, dissociadas, envolvendo
zonas erógenas e a idealização da superfície corporal, para compensar uma incapacidade de
estabelecer uma relação objetal total ou uma constância de objeto (Arlow e colaboradores, 1968).
A fuga dos pacientes narcisistas dos objetos sexuais que foram "conquistados" também
pode representar uma tentativa de proteger esses objetos da destrutividade sentida
inconscientemente. Riviere (1937), discutindo a psicologia dos "Dons Juans and Rolling Stones",
enfatizou as fontes orais da inveja do outro género, e as defesas de rejeição e desprezo, como
fatores dinâmicos essenciais. Fairbairn (1954) sublinhou a função da perversão como uma forma
de substituição para um relacionamento com objetos profundamente dissociados, idealizados e
persecutórios, que não podiam ser tolerados pelo ego "central" do paciente.
A patologia narcísica, em resumo, ilustra como a capacidade original para a excitação
sexual e idealização de superfícies corporais pode prosseguir para uma sexualidade infantil
polimorfa perversa bem desenvolvida, e, eventualmente, para interesses genitais e a capacidade
para o orgasmo genital. Esta progressão ocorre quando a pessoa não desenvolve em
profundidade a capacidade para relações objetais íntimas, de modo que a idealização
permanece restrita ao domínio sexual e abastante subdesenvolvida no domínio das relações
objetais reais. A temporária idealização das pessoas significativas pelos pacientes narcisistas é
inadequada para gerar mais do que um interesse "puramente sexual", uma idealização de
superfícies corporais que não se estende à idealização da pessoa total. Algumas personalidades
narcisistas, no entanto, são capazes de experienciar uma idealização da outra pessoa que se
estende do seu corpo até a pessoa, mesmo que este interesse seja transitório e limitado por
mecanismos inconscientes de desvalorização defensiva. Os seguintes casos, originalmente descritos
num trabalho anterior (1976), ilustram o contínuo psicopatológico na variação dos transtornos
de personalidade narcísica.
Um homem de vinte e poucos anos consultou-me por medo de impotência. Embora tivesse
tido intercurso sexual, ocasionalmente, com prostitutas, quando o tentou pela primeira vez com
uma mulher que descreveu como tendo sido uma amiga platónica, não conseguiu ter uma
ereção completa. Este fracasso foi um severo golpe em sua auto-estima e provocou uma
intensa reação de ansiedade. Jamais se apaixonara e nunca se envolvera sexual ou
emocionalmente com mulheres nem com homens. Suas fantasias masturbatórias refletiam
tendências perversas múltiplas, com aspectos homossexuais, heterossexuais,
sadomasquistas, exibicionistas e voyeuristas.
Muito inteligente e culto, trabalhava eficientemente como contador, e várias relações um
tanto distantes,mas estáveis, com homens e mulheres, centravam-se em interesses políticos e
intelectuais comuns. Não parecia ambicioso. Estava satisfeito com sua rotina de trabalho e as
pessoas em geral gostavam dele, por seu
Psicopatologia das Relações Amorosas 69

comportamento amistoso, flexível e altamente adaptativo. Seus amigos se divertiam com sua
ocasional ironia mordaz e sua atitude arrogante em relação a outras pessoas.
O paciente foi atendido inicialmente como uma personalidade obsessiva, mas a análise
revelou uma estrutura de personalidade narcísica típica. Possuía uma convicção profunda, em
grande parte inconsciente, de ser superior às disputas mesquinhas e competitivas, em que seus
colegas e amigos se envolviam. Também se sentia superior aos interesses desenvolvidos pelos
amigos por mulheres medíocres, psicologicamente desprezíveis, apesar de fisicamente atraentes.
O fato de ter sido incapaz de desempenhar-se quando consentiu em ter intercurso com sua "amiga
platónica" foi um terrível golpe em seu autoconceito, pois pensava que deveria ser capaz de
desempenhar-se sexualmente com homens ou mulheres, e que estava acima da moralidade
estreita e convencional de seus contemporâneos.
Aqui enfatizaria primeiro que a capacidade para um envolvimento sexual, para apaixonar-
se — mesmo na forma de uma louca paixão temporária — estava ausente, sugerindo um
prognóstico reservado para o tratamento psicanalítico. (A análise deste paciente acabou em
fracasso depois de mais de cinco anos de tratamento.) A característica dinâmica central neste
caso era uma intensa inveja das mulheres, e defesas contra esta inveja, através da desvalorização e
de uma orientação homossexual narcisicamente determinada — uma característica frequente nas
personalidades narcísicas.
O próximo caso ilustra tanto a presença de certa capacidade para apaixonar-se quanto a
deterioração desta capacidade numa série de breves paixões loucas e promiscuidade. Ele também
ilustra a proposta de que o avanço, desde a fixação nas superfícies corporais até o apaixonar-se por
uma pessoa, está vinculado ao desenvolvimento da capacidade de vivenciar culpa e preocupação,
depressão e tendências reparadoras. Em contraste com o caso anterior, este homem no início da
casa dos 30, mostrava certo potencial para apaixonar-se. No curso da psicanálise, este potencial
desenvolveu-se extraordinariamente enquanto ele tentava elaborar um paradigma transferencial
básico.
O paciente originalmente consultou-me por uma intensa ansiedade ao falar em público e
uma promiscuidade sexual cada vez mais insatisfatória. Disse que se apaixonara algumas vezes em
sua adolescência, mas descobriu que logo se cansava das mulheres que idealizara e desejara.
Depois de alguma intimidade sexual com uma mulher, perdia todo o interesse e passava a
procurar outra. Logo antes de iniciar o tratamento, começara uma relação com uma mulher
divorciada, que tinha três filhos pequenos. Achou-a muito mais satisfatória do que a maioria das
anteriores. No entanto, sua promiscuidade sexual continuou, e, pela primeira vez, experimentou
conflitos entre seu desejo de estabelecer uma relação mais estável com uma mulher, e os
numerosos casos que mantinha ao mesmo tempo.
Sua desesperada busca de experiências sexuais com mulheres foi o principal assunto da
análise desde o início. A princípio, proclamava orgulhosamente seus sucessos com as mulheres
e o que considerava sua extraordinária capacidade de
70 Otto F. Kernberg

atividade e satisfação sexuais. Entretanto, logo ficou aparente que seu interesse nas mulheres
buscava exclusivamente seus seios, nádegas, vaginas, pele suave, e, acima de tudo, gratificar sua
fantasia de que as mulheres estavam escondendo e retendo todos os seus "tesouros" (como ele
costumava chama'-los). Ao conquistá-las, sentia que as "desempacotava" e "engolia". Num nível
mais profundo (ele tomou consciência disso somente depois de muitos meses de análise), tinha a
assustadora convicção de que não havia nenhuma maneira de incorporar a beleza das mulheres e
que a penetração sexual, o intercurso e o orgasmo somente representavam uma incorporação
irreal e ilusória daquilo que ele admirava e queria tornar seu.
A gratificação narcísica de "ganhar" uma mulher passava rapidamente, e sua consciência da
completa perda de interesse, após um breve período de envolvimento sexual, estava estragando toda
a antecipação e desenvolvimento dessas efémeras relações. Nos últimos anos, mantinha
fantasiado frequentemente ter intercurso com mulheres ainda não-conquistadas, enquanto
mantinha intercurso com uma que já era dele e, portanto, a caminho da desvalorização.
Mulheres casadas eram particularmente atraentes para ele, não como imaginei a princípio, em
virtude de conflitos edípicos triangulares, mas porque o fato de outros homens descobrirem algo
atraente nessas mulheres alimentava o interesse minguante do paciente por elas como possuindo
um "tesouro escondido".
Finalmente, o paciente percebeu a intensidade de sua inveja das mulheres, derivada de sua
inveja e raiva da mãe. Sua mãe o frustrara cronicamente: ele sentia que ela lhe sonegara, física e
mentalmente, tudo o que era adorável e admirável. Ainda se lembrava de agarrar-se
desesperadamente ao seu corpo, cálido e macio, enquanto ela rejeitava friamente sua expressão
de amor e lembrava também suas iradas exigências em relação a ela.
Durante a adolescência, lutou constantemente para controlar a consciência e a expressão de
sua inveja e ódio inconscientes das mulheres. Costumava assistir a filmes sobre a Segunda Guerra
Mundial, e ficava enraivecido quando as atrizes se exibiam para uma grande audiência de
soldados que aplaudiam. Achava isso cruel, e que os soldados deveriam ter tomado de assalto o
palco e matado as atrizes. Meditava interminavelmente sobre o fato de as mulheres terem
consciência de seus seios e genitais, e que quando elas tiravam suas roupas de baixo, à noite,
aquelas peças de roupa maravilhosas, macias, que tinham o privilégio de ficar junto ao corpo
delas), elas as atiravam — tesouros negligenciados e inacessíveis para ele — no chão.
A análise gradualmente descobriu fantasias sádicas de masturbação que c paciente tinha
quando criança. Via a si mesmo dilacerando mulheres, torturandc um grande número delas, e
então "libertando" a única do grupo que parecia ino cente e gentil, boa, amorosa e generosa—
uma substituta ideal da mãe, eternamen te bondosa, generosa, linda e incansável. Ao dissociar suas
relações internas com a mulheres em dependência de uma mãe ideal, absolutamente boa, e uma
destrui cão vingativa de todas as outras mães más, o paciente acabou sem a capacidade d
estabelecer uma relação profunda em que teria sido capaz de tolerar e integrar seu
Psicopatologia das Relações Amorosas 71

sentimentos contraditórios de amor e ódio. Em vez disso, a idealização dos seios, dos genitais
femininos e de outras partes do corpo permitiu-lhe gratificar regressi-vamente um erotismo
primitivo e frustrado, enquanto simbolicamente roubava as mulheres daquilo que lhes era
específico e único. Através de sua promiscuidade, também negava sua assustadora dependência
de qualquer mulher em especial e inconscientemente estragava a que ele estava avidamente
tentando incorporar.
Que ele pudesse "dar" um orgasmo às mulheres, que elas precisassem de seu pênis, o
reassegurava simbolicamente de que ele não precisava delas — que ele tinha um órgão generoso,
superior a qualquer seio. Mas o fato de que uma mulher tentasse, depois, continuar sendo
dependente dele, despertava o medo de que quisesse roubá-lo daquilo que ele tinha para dar. No
entanto, em meio à sua desesperada busca de gratificação de anseios eróticos para substituir sua
necessidade de amor, o paciente sentia crescente insatisfação e, num certo momento, tornou-se
consciente de estar na verdade procurando uma relação com uma pessoa "por baixo" da pele
das mulheres.
Foi somente através do exame sistemático de sua exigência oral, de sua duradoura insatisfação
na transferência, que o paciente percebeu tendência a estragar e destruir inconscientemente aquilo
que ele mais desejava, a saber, o entendimento e interesse por parte de seu analista, e o amor e
gratificação sexual por parte das mulheres. À plena consciência de suas tendências destrutivas em
relação ao analista e às mulheres levou a um gradual desenvolvimento da culpa, depressão e ten-
dências reparadoras. Finalmente, a preocupação pelo objeto trouxe uma mudança radical em sua
relação com o analista, com sua mãe e com aquela mulher divorciada, com quem (atuando uma
culpa inconsciente) ele casara durante sua análise.
Na medida em que ia percebendo quanto amor e dedicação recebia de sua esposa, passou a
sentir que não a merecia. Percebeu que estava ficando mais interessado nos pensamentos e
sentimentos dela, que conseguia aproveitar junto os momentos de felicidade dela, que estava
ficando profundamente curioso sobre a vida interior de outro ser humano. Finalmente percebeu
como fora terrível sua inveja dos interesses independentes da esposa, das amigas dela, de suas
coisas, e dos milhares de pequenos segredos que ele sentia que ela partilhava com outras
mulheres, e não com ele. Percebeu que, ao depreciá-la e desvalorizá-la constante-mente, ele a
tornara vazia e aborrecida para ele e ficara com menos medo caso tivesse de deixá-la como
deixara outras mulheres antes dela.
Ao mesmo tempo, experimentou uma dramática mudança em sua atitude interna durante
o intercurso sexual. Ele o descreveu quase como um sentimento religioso, um sentimento de
esmagadora gratidão, humildade e satisfação, por encontrar o corpo e a pessoa dela ao mesmo
tempo. Agora era capaz de expressar essa gratidão na forma de intimidade física, enquanto sentia
o corpo dela (agora representando sua pessoa total e não um objeto parcial) com uma nova
excitação. Em resumo, o paciente passara a ser capaz de vivenciar o amor romântico, vinculado à
paixão sexual, pela mulher com quem estava casado há mais de dois anos. Sua vida sexual o
deixava plenamente satisfeito — um contraste com seu antigo
72 Otto F. Kernberg

padrão de rápido desapontamento e uma imediata busca por uma nova mulher. Sua necessidade
anterior de masturbar-se compulsivamente após o intercurso sexual desapareceu.
Intensa inveja e ódio das mulheres podem ser vistos em muitos pacientes do sexo masculino.
Na verdade, em termos clínicos, sua intensidade nos homens parece igualar-se à da inveja do pênis
nas mulheres. O que distingue as personalidades masculinas narcisistas não é somente a
intensidade dessa inveja e ódio, mas também a desvalorização patológica das mulheres (derivada da
desvalorização da mãe como um objeto primário de dependência).
A desvalorização da sexualidade feminina juntamente com a negação das necessidades de
dependência em relação à mulher, contribuem para uma incapacidade de sustentar qualquer
envolvimento profundo, pessoal e sexual, com as mulheres. Nós encontramos uma completa
ausência de interesse sexual pelas mulheres (mas uma definida orientação heterossexual) nos
pacientes mais severamente doentes; os casos menos severos mostram uma frenética procura de
excitação sexual e promiscuidade sexual, vinculadas a uma incapacidade de estabelecer um
relacionamento mais permanente; os casos ainda mais brandos apresentam uma limitada
capacidade para loucas paixões passageiras.
Loucas paixões passageiras podem representar o início da capacidade de apaixonar-se,
mas com a idealização limitada aos atributos físicos sexuais das mulheres a serem conquistadas.
O que esses pacientes não conseguem atingir, todavia, é a idealização característica do apaixonar-
se, em que a genitalidade feminina e a mulher específica são idealizadas, e a gratidão por seu amor e
sua preocupação com ela como pessoa se desenvolvem na capacidade para uma relação mais estável.
O sentimento de realização que acompanha o apaixonar-se não existe na personalidade narcísica;
no máximo, conseguem ter um sentimento fugaz de realização por terem feito uma conquista.
A inveja e dependência da mãe como a primeira fonte de amor e dependência é, com certeza,
tão intensa nas mulheres quanto nos homens, e uma importante fonte de inveja do pênis nas
mulheres é sua busca da relação dependente com o pai e seu pênis como uma fuga e liberação de
uma relação frustrante com a mãe. Os componentes orais da inveja do pênis são predominantes nas
mulheres com estrutura de personalidade narcísica, assim como sua vingativa desvalorização dos
homens e das mulheres. Permanece uma questão aberta se o prognóstico para o tratamento
psicanalítico das mulheres com estrutura de personalidade narcísica é mais reservado do que
para o dos homens: esta questão é explorada no relato de Paulina Kernberg (1971) sobre o caso de
uma mulher com personalidade narcísica refletindo esses mecanismos.
Uma paciente narcisista, com vinte e poucos anos, era gelidamente atraente (a frieza é típica
das mulheres narcisistas, em contraste com o coquetismo ardente das personalidades histéricas), o
suficiente para substituir um homem por outro, sucessivamente, como seu "escravo". Explorava os
homens impiedosamente: quan-
Psicopatoíogta das Relações Amorosas 73

do eles finalmente decidiam deixá-la, reagia com raiva e vingança, mas sem saudade, pesar ou culpa.
Com pacientes neuróticos estamos no domínio da inibição da capacidade para relações
amorosas, sob a influência de conflitos edípicos não-resolvidos. Os processos de idealização,
envolvidos nas relações amorosas, já evoluíram da idealização primitiva e irrealista para a
integração das relações objetais internalizadas "totalmente boas" e "totalmente más", e o paciente já
atingiu a constância de objeto e capacidade realista para avaliar em profundidade, tanto a si mesmo
quanto ao seu objeto de amor.
Á típica patologia das relações amorosas relacionada aos conflitos edípicos dominantes é uma
plena capacidade para a idealização romântica, para apaixonar-se e permanecer apaixonado (isto é,
para um profundo comprometimento no contexto da tolerância da ambivalência), em combinação
com a inibição dos anseios genitais diretos e dos anseios sexuais infantis polimorfos pelo objeto
edípico. Os pacientes em que predomina este tipo de psicopatologia são capazes de apaixonar-se, e
ter relações amorosas profundas e estáveis, no contexto de certa inibição de sua sexualidade genital
são sintomas predominantes: impotência, ejaculação precoce ou retardada (embora nesses casos a
psicopatologia pré-genital também costume desempenhar um papel importante) e frigidez
(especialmente inibição da capacidade feminina de excitar-se sexualmente e ter orgasmos no
intercurso).
Uma defesa alternativa contra a proibição inconsciente de envolvimento sexual, em virtude de
suas implicações edípicas, é a dissociação entre os anseios ternos e os eróticos, de modo que um
objeto de amor "sexual" é escolhido em contraste com outro objeto de amor, dessexualizado e
idealizado. A incapacidade para integrar o desejo erótico e a ternura se evidencia em uma outra a
capacidade: a de ter uma relação sexual intensamente gratif icante com um objeto, dissociada do amor
intenso não-genital, por um outro objeto. A expiação da culpa inconsciente por anseios edípicos
proibidos pode ser expressada ou pela seleção de objetos de amor frustrantes, inacessíveis ou
punitivos, ou por somente ser capaz de combinar totalmente o amor sexual e a ternura em relações
amorosas frustrantes. Na verdade, poderíamos dizer que, enquanto as relações amorosas do tipo
narcisístico representam a típica psicopatologia dos conflitos pré-edípicos na área das relações
amorosas, as relações amorosas masoquistas representam a típica patologia do nível edípico de
desenvolvimento. O seguinte caso, descrito primeiramente num trabalho anterior (1976), ilustra
alguns aspectos dessas questões.
Um homem com trinta e poucos anos consultou-me em virtude de dúvidas obsessivas acerca
de sua noiva ser ou não atraente. Na primeira sessão, trouxe uma maleta contendo fotos ampliadas da
noiva, cuidadosamente escolhidas entre aquelas nas quais ele a achava atraente, e aquelas em que ela
não lhe parecia atraente. Perguntou-me se via qualquer diferença nas duas séries de fotos:
respondi que não, e o paciente, mais tarde, me contou que esta fora a mesma reação apresentada
pelos amigos, quando lhes confiara esta sua dificuldade. Depois, revelou-me que
74 Otto F. Kernberg

sua noiva sempre lhe parecia menos atraente quando suspeitava que ela pudesse estar
sexualmente excitada por ele.
O paciente apresentava uma típica estrutura de cará ter obsessiva, com intensas reações
formativas contra a agressão, uma polidez exagerada, e uma maneira pedante de expressar-se.
Tinha uma importante posição numa universidade local, mas era prejudicado em seu trabalho por
ser tímido, por seu medo dos colegas mais velhos e por sua insegurança em relação aos alunos (os
quais desconfiava que riam secretamente dele devido às suas maneiras "corretas e conservadoras".
Sua mãe, dominadora e resmungona, controlava a família, conforme o paciente, com a ajuda
do "exército feminino" (suas várias irmãs mais velhas). Seu pai era um homem claramente tenso,
um pouco explosivo, mas submisso à mulher. Por toda a infância, o paciente sentira viver numa
casa cheia de mulheres, cheia de segredos e lugares nos quais ele não podia entrar, gavetas que
não podia abrir, assuntos que não podia escutar. Foi criado numa atmosfera extremamente religio-
sa, em que tudo o que se relacionava a sexo era considerado sujo. Em um episódio da infância, a mãe
o espionara quando ele se envolvera num jogo sexual com as amigas da irmã mais moça, para
depois puni-lo severamente.
O paciente se orgulhava de sua "pureza moral" e ficou chocado por eu não me impressionar
"como uma realização moral" o fato de ele nunca ter tido uma relação sexual na vida (nem sentido
qualquer excitação sexual com mulheres pelas quais "se apaixonara"). Depois admitiu que havia
mulheres que o haviam excitado sexualmente em sua adolescência, geralmente mulheres de nível
sócio-econômico mais baixo, já que idealizava e dessexualizava completamente as mulheres de seu
próprio grupo social. Nunca tivera quaisquer sintomas, afirmou, até começar a sair com sua noiva,
cerca de dois anos antes de me procurar, e até desenvolver-se a dúvida obsessiva sobre ser ela
atraente ou repulsiva, justamente quando ela começou a querer uma relação fisicamente mais
íntima, como beijá-lo ou acariciá-lo.
Na transferência, seu perfeccionismo obsessivo-compulsivo a princípio interferiu seriamente
com a associação livre, e gradualmente tomou-se o maior foco do trabalho analítico nos primeiros
dois anos de análise. Por trás de sua submissão perfeccionista à psicanálise, estava uma zombaria
inconsciente do analista, como supostamente poderoso, mas na verdade fraco e impotente—uma
reação inconsciente semelhante à que o paciente tinha em relação aos colegas mais velhos, e que
projetava em seus alunos (que via como zombando dele). Um enorme desafio e rebelião contra a
figura paterna gradualmente emergiram na transferência, e tomaram a forma específica de intensa
suspeita de que eu queria corromper a sua moralidade (uma visão que o paciente atribuía a todos
os psicanalistas).
Mais tarde, o paciente achou que o analista também era um "agente" de sua noiva, querendo
empurrá-lo para os braços dela: consultou vários pastores religiosos a respeito dos perigos da
psicanálise para a moralidade sexual e para a pureza do seu relacionamento com a noiva. Depois de
ver o analista como repetindo o comportamento superficialmente controlador, mas
profundamente submisso, do pai em relação à mãe (o analista sendo um agente da noiva), a
transferência gradu-
Psicopatologia das Relações Amorosas 75

almente mudou e ele passou a me perceber como sua mãe, espiando-o e apenas fingindo ser
sexualmente tolerante, de modo a fa/ê-lo confessar seus sentimentos sexuais para depois puni-lo.
Durante o segundo e terceiro ano da análise, predominou esta transferência materna, e os mesmos
conflitos puderam ser analisados em sua relação com a noiva e em sua opinião geral sobre as
mulheres, como mães perigosas que estavam a fim de provocar os jovens homens e levá-los a um
comportamento sexual para mais tarde vingar-se deles.
Este paradigma transferencial mudou, por sua vez, para um nível ainda mais profundo, em que
a excitação sexual em relação a suas irmãs, e particularmente sua mãe, passou para o primeiro plano,
com medos profundamente reprimidos de retaliação por parte do pai. A percepção da mãe hostil
era um deslocamento de sua percepção ainda mais assustadora de um pai hostil.
Neste momento, o característico asseio, polidez e superpreocupação com a limpeza
tornaram-se o foco do trabalho analítico. Esses traços de caráter agora pareciam representar uma
reação formativa contra sentimentos sexuais de qualquer tipo; também representavam um protesto
silencioso e obstinado contra uma mãe "excitada", desorganizada e superpoderosa. Finalmente,
representavam seu desejo de ser sempre um garotinho asseado, que seria amado pelo pai ao preço
de renunciar à sua competitividade com o pai e com os homens em geral.
Durante o quarto ano de sua análise, o paciente começou a sentir desejo erótico pela noiva.
Anteriormente, quando ele a achava atraente, ela representava a mulher idealizada, pura,
inacessível — uma contrapartida da imagem da mãe sexualmente excitante mas repulsiva.
Durante o quinto e último ano da análise, o paciente começou a ter relações sexuais com sua
noiva e, após um período de ejaculação precoce (ligada ao medo de ter seus genitais danificados
pela vagina, e uma reativação de medos paranóides do analista como uma figura pai-mãe vingativa),
sua potência tornou-se normal. Foi somente então que o paciente descobriu que sempre tivera uma
necessidade compulsiva de lavar as mãos com frequência, porque este sintoma desapareceu no
contexto de suas experiências sexuais com a noiva. É este último episódio que eu gostaria de
examinar melhor.
O paciente costumava encontrar sua noiva nas manhãs de domingo, originalmente para reunir-
se aos pais e outros membros da família, para ir à igreja. Depois de um certo tempo, os dois
começaram a se encontrar no escritório dele, e não em seu apartamento — que era perto do lugar em
que seus pais moravam—e a passar as manhãs de domingo juntos, em vez de irem à igreja. Numa
manhã de domingo o paciente conseguiu, pela primeira vez em sua vida, como parte do jogo
sexual, lamber os genitais dela e ficar excitado. Surpreendeu-se, maravilhado, por ela chegar ao
orgasmo dessa maneira e ficou profundamente impressionado por ela ser tão livre e aberta com ele.
Percebeu como imaginava que todas as mulheres (mãe) eram terrivelmente proibidoras e
reprovadoras em relação a sexo. Também percebeu, com um sentimento de exultação, que o calor, a
umidade, o cheiro e o gosto do corpo e dos genitais da noiva o excitavam em vez de repelir, e seu
sentimento de vergonha e nojo transformou-se em excitação e satisfação. Para sua surpresa, não
76 Oito F. Kernberg

teve ejaculação precoce ao ter relações sexuais com ela, e compreendeu que isto estava relacionado
a ter perdido, pelo menos temporariamente, o sentimento de raiva e ressentimento contra ela como
mulher.
Reconheceu, durante as semanas seguintes, que o permanecer no escritório e envolver-se
sexualmente com a noiva representava uma rebelião contra o pai e a mãe, e contra aqueles aspectos
das convicções religiosas dele que representavam uma racionalização das pressões do seu superego.
O paciente, em sua adolescência, tivera a fantasia de que Jesus o estava observando, particularmente
quando ele espiava as amigas das irmãs, tentando vislumbrar seus corpos quando elas se despiam. Foi
extraordinário observar como sua atitude em relação à religião mudou, e como agora começou a
perceber Jesus como não estando tão preocupado com se os seres humanos "se comportavam bem"
ou não sexualmente, mas como representando a busca de amor e de entendimento humano.
O paciente também percebeu que os aspectos em sua noiva que às vezes lhe desagradavam,
representavam, em sua mente, aspectos de sua mãe quando, na infância, ela parecia estar
sexualmente excitada com o pai. Esses aspectos da noiva agora deixaram de ter importância, e
reconheceu outras semelhanças, reais, que ela tinha com sua mãe, como o mesmo background cultural
e ético. Quando sua noiva cantava músicas de sua região nativa, ele ficava profundamente
emocionado; as músicas lhe transmitiam o sentimento de comunicar-se com uma parte de seu
passado; não com sua mãe como pessoa, mas com obackground do qual ela se originava. Sentiu que ao
alcançar esta realização total em sua relação com a noiva, também estava atingindo uma nova
ponte com seu passado, um passado que previamente rejeitara como parte de sua rebelião reprimida
contra os pais.
A inveja do pênis pode ser sempre traçada até a inveja original da mãe (basicamente, dos "seios"
da mãe como o símbolo da capacidade de dar vida, nutrição, e simbolizando o primeiro objeto bom),
de modo que a inveja do pênis nas mulheres tem como uma raiz importante a inveja inconsciente da
mãe, deslocada para o pênis do pai, e então reforçada pelos componentes agressivos dos conflitos
edípicos (incluindo particularmente o deslocamento da agressão da mãe para o pai). Por trás da
inveja do pênis regularmente encontramos a desvalorização que a mulher faz de seus próprios
genitais, refletindo uma combinação da inibição primária da genitalidade vaginal no relacionamento
inconsciente entre mãe e filha; a fantasia infantil da superioridade masculina promovida e reforçada
pela cultura; e os efeitos indiretos da culpa inconsciente pela relação positiva com o pênis do pai.
Uma mulher com uma significativa patologia de caráter, consultou-me pelas inibições sexuais
que somente conseguia superar fazendo sexo com homens que a humilhavam. Nos primeiros dois
anos de análise, foi possível examinar as suas necessidades autodestrutivas nos relacionamentos que
estabelecia com os homens, e com o analista, ligadas a profundos sentimentos inconscientes de culpa
por suas atividades e desejos sexuais, que representavam conflitos edípicos.
Psicopatologia das Relações Amorosas 77

No terceiro ano da análise, o desejo de que o analista—e os homens em geral —precisasse dela,
gradualmente transformou-se em anseios dependentes antigos por sua madrasta, que sentira como fria e
rejeitadora. Voltara-se para o pai, numa tentativa de receber amor sexual em substituição à falta de gratificação
oral por parte da mãe. A idealização de sua mãe de fato, que morrera no auge do período edípico da paciente,
parecia agora ser uma defesa não apenas contra a culpa edípica, mas contra a raiva anterior, oralmente
determinada, contra ela.
O analista era agora visto como uma imagem da mãe, frio e rejeitador, e a paciente desenvolveu fortes
desejos de ser protegida, abraçada e amada por ele como umaboa mãe que a traqúilizava contra os medos em
relação à mãe má. Tinha fantasias sexuais centradas na felação, relacionadas ao sentimento de que o orgasmo do
homem representava simbolicamente a doação de amor e leite, proteção e nutrição. A desesperada aderência em
suas relações com os homens e, ao mesmo tempo sua frigidez, agora foram entendidas como uma expressão
desses anseios orais em relação aos homens, de seus raivosos desejos de controlá-los e incorporá-los, e de seu
medo de permitir-se experimentar uma ratificação sexual plena, porque isso significaria uma total dependência
e, portanto, uma total frustração por homens "maternais" cruéis.
Foi neste estágio de sua análise que a paciente conseguiu, pela primeira vez, estabelecer uma relação com
um homem que parecia um objeto de amor mais adequado do que a maioria daqueles que ela escolhera
anteriormente. (Ela casou com ele um pouco depois de terminar a análise.) Uma vez que sua capacidade de
chegar à gratificação sexual completa com este homem assinalou uma dramática mudança em sua relação com
ele, com o analista, com sua família e em sua visão geral da vida, examinarei melhor este episódio.
Durante a análise, a paciente tornou-se capaz de chegar ao orgasmo regularmente, nas relações sexuais com
este homem. Para sua surpresa, se descobriu chorando nas primeiras vezes em que conseguiu um orgasmo
completo, chorando com um sentimento de embaraço e, ao mesmo tempo, de alívio. Ficou profundamente grata
a ele por lhe dar seu amor e seu pênis; sentiu-se grata por poder aproveitar plenamente o seu pênis, e em certo
momento do intercurso teve a fantasia de estar abraçando um pênis imenso, girando em torno dele exultantemente,
sentindo estar girando em torno do centro do universo, a fonte fundamental de luz. Sentiu que o pênis dele era
dela, que podia realmente confiar que ele e seu pênis pertenciam a ela.
Ao mesmo tempo, deixou de invejá-lo por ele ter um pênis e ela não. Se ele se separasse dela, ela poderia
tolerar isso, porque aquilo que ele vinha-lhe dando tornara-se parte de sua vida interior. Sua nova experiência
era algo que lhe pertencia e não lhe poderia ser tirado. Sentiu-se grata e culpada, ao mesmo tempo, pelo amor
que este homem lhe dera enquanto ela fora, agora percebia, tão invejosa e desconfiada dele e tão inclinada a não
se entregar inteiramente a ele, para impedir
78 Otto F. Kernberg

seu suposto "triunfo" sobre ela como mulher. E sentiu que fora capaz de abrir-se para aproveitar seu
corpo e seus genitais, apesar das proibições internas oriundas das ordens fantasiadas de sua mãe e
de sua madrasta. Estava livre do terror de excitar-se sexualmente com um homem adulto que a
tratava como uma mulher adulta (assim quebrando o tabu edípico).
Também sentiu-se exultante por conseguir expor o corpo ao namorado, sem o medo secreto de
que seus genitais fossem feios, mutilados e repugnantes. Conseguiu dizer a ele "não posso imaginar, se
existe um céu, que ele seja melhor do que isso", referindo-se à experiência sexual deles. Foi capaz de
apreciar o corpo dele, de ficar sexualmente excitada ao brincar com o seu pênis, que não era mais o
odiado instrumento de superioridade e dominação masculina. Agora conseguia andar por aí, sentindo-
se igual às outras mulheres. Não precisava mais invejar a intimidade dos outros, porque tinha a sua
própria relação íntima com o homem que amava. Mas, acima de tudo, a capacidade de aproveitar o
sexo de forma compartilhada e de ter plena consciência de estar recebendo amor dele, ao mesmo
tempo em que o dava a ele — sentindo-se grata por isso e não tendo mais medo de expressar intei-
ramente suas necessidades de depender dele—estavam expressadas no seu choro, depois do orgasmo.
A característica central neste caso foi a superação da inveja do pênis: tanto suas raízes orais
(inveja da mãe generosa e do pênis generoso, e medo de uma odiosa dependência deles), quanto
suas raízes genitais (a convicção infantil da superioridade dos homens e da sexualidade masculina),
foram elaboradas no contexto de uma relação objetal total em que a culpa pela agressão dirigida ao
objeto, a gratidão pelo amor recebido e a necessidade de reparar a culpa, dando amor, foram todas
expressadas junto.
C a p í t u l o 6

Agressão, Amor e o Casal

á tendo estudado como a excitação sexual incorpora a agressão a serviço do amor, agora me
J volto para a interação do amor e da agressão no relacionamento emocional do casal. Com a
intimidade sexual vem uma maior intimidade emocional, e com a intimidade emocional, a
inevitável ambivalência das relações edípicas e pré-edípicas. Nós poderíamos dizer, colocando de
maneira condensada e simplificada, que a ambivalência masculina em relação à mãe excitante e
frustrante, a partir do início da infância, sua profunda desconfiança da natureza provocadora e
retraída da sexualidade materna, tornam-se questões que interferem com seu vínculo erótico,
idealização e dependência da mulher que o homem ama. Sua culpa edípica inconsciente e seu
sentimento de inferioridade em relação à mãe edípica idealizada podem resultar em inibição sexual
ou intolerância com uma mulher que se torna sexualmente livre e não é mais uma
garotinha/mulher em relação à qual ele se sente reasseguradoramente protetor. Esse
desenvolvimento pode perpetuar a dicotomia entre relações erotizadas e relações idealizadas
dessexualizadas com as mulheres, típicas dos meninos no início da adolescência. Em circunstâncias
patológicas, particularmente nos homens com patologia narcisista, a inveja inconsciente da mãe e a
necessidade de vingar-se dela podem provocar uma desvalorização inconsciente catastrófica da
mulher como o objeto sexual desejado, com consequente distanciamento e abandono.
A mulher que não teve um relacionamento inicial satisfatório com uma mãe que tolerava a
sexualidade de sua filhinha, a experiência inconsciente de uma mãe hostil e rejeitadora que interferia
com o desenvolvimento inicial da sensualidade corporal da menininha e, mais tarde, com seu amor
pelo pai, pode resultar numa culpa inconsciente exagerada pela intimidade sexual em conjunção com
um pro-

79
80 Otto F. Kernberg

fundo comprometimento com um homem. Nessas circunstâncias, a mudança de objeto normal na


garotinha da mãe para o pai é inconscientemente distorcida, e o relacionamento com os homens se
torna um relacionamento sadomasoquista. Caso se desenvolva uma estrutura de personalidade
narcísica, a jovem pode expressar sua intensa inveja inconsciente dos homens através de uma
desvalorização defensiva dos homens que a amam, pelo distanciamento emocional, e talvez por
uma promiscuidade narcisicamente determinada que equivale à promiscuidade correspondente nos
homens narcisistas. A experiência de um pai edípico inacessível, sádico, sexualmente rejeitador, ou
sedutor e provocador, irá exacerbar esses conflitos iniciais e seus efeitos sobre a vida amorosa de
uma mulher.
Dada a frequência de uma grave culpa edípica inconsciente e das defesas narcísicas derivadas
de fontes edípicas e pré-edípicas, bem poderíamos perguntar que fatores são responsáveis por criar e
manter uma relação bem-sucedida entre um homem e uma mulher. Duas respostas-padrão e
convencionais: que os costumes morais sociais protegem a estrutura do casamento, e que, na medida
em que as estruturas culturais e sociais parecem estar atualmente se desintegrando, a instituição do
casamento está em perigo; e segundo, que o amor "maduro" implica em amizade e camaradagem, que
gradualmente substituem a apaixonada intensidade do amor inicialmente romântico e asseguram a
continuidade da vida conjunta do casal.
De um ponto de vista psícanalítico, o anseio por tornar-se um casal e assim preencher as
profundas necessidades inconscientes de uma identificação amorosa com os próprios pais e seus
papéis num relacionamento sexual é tão importante quanto as forças agressivas que tendem a minar
relacionamentos íntimos; e o que destrói o apego apaixonado e talvez pareça ser um sentimento de
aprisionamento e "aborrecimento sexual" é na verdade a ativação da agressão, que ameaça o delicado
equilíbrio entre o sadomasoquismo e o amor no relacionamento do casal, tanto sexual quanto
emocional.
Mas uma dinâmica mais específica entra em ação na medida em que a intimidade emocional se
desenvolve. Õ desejo inconsciente de reparar os relacionamentos patogênicos dominantes do
passado e a tentação de repeti-los em termos de necessidades agressivas e vingativas insatisfeitas
resulta em sua reencenação com o parceiro amado. Através da identificação projetiva, cada parceiro
tende a induzir no outro as características do antigo objeto edípico e/ou pré-edípico com quem ele ou
ela tiveram conflitos. Se os antigos conflitos em torno da agressão foram graves, surge a possibilidade
de reencenar imagens de mãe-pai primitivas, fantasticamente combinadas, que apresentam pouca
semelhança com as características reais dos objetos parentais.
Inconscientemente, é estabelecido um equilíbrio, através do qual os parceiros complementam a
relação objetal patogênica dominante do passado, e isso tende a cimentar o relacionamento de
maneiras novas e imprevisíveis. Descritivamente, nós descobrimos que os casais, em sua intimidade,
interagem com vários "pequenos milagres". Essa "loucura privada" (empregando os termos de
André Green
Psicopatologia das Relações Amorosas 81

[1986]) pode ser ao mesmo tempo frustrante e excitante, porque ela ocorre no contexto de um
relacionamento que bem pode ter sido o mais excitante, satisfatório e realizador que ambos os
parceiros poderiam ter sonhado. Para um observador, o casal parece reencenar um estranho
cenário, completamente diferente de suas interações habituais, um cenário que, todavia, foi
encenado repetidamente no passado. Por exemplo, um marido dominante e uma esposa submissa se
transformam, respectivamente, num garotinho lamuriento e numa severa mestra quando ele fica
gripado e precisa de cuidados; ou uma esposa delicada e empática com um marido direto e agressivo
pode transformar-se numa queixosa paranóide e ele num cuidador maternal e tranquilizador quando ela
se sente ameaçada por uma terceira pessoa; ou uma orgia de pratos arremessados pode romper o
harmonioso estilo de vida de um casal de tempos em tempos. Esta "união na loucura" comumente
tende a ser rompida pelos aspectos mais normais e gratificantes do relacionamento do casal nos
domínios sexual, emocional, intelectual e cultural. De fato, uma capacidade para a descontinuidade
em seu relacionamento desempenha um papel central em sua manutenção.

Descontinuidades

Esta capacidade para a descontinuidade, descrita por Braunschweig e Fain (1971, 1975) e
André Green (1989, 1993), tem suas raízes fundamentais na descontinuidade do relacionamento
entre mãe e bebé. De acordo com Braunschweig e Fain, quando uma mãe fica inacessível para o filho
por ter retornado ao marido como parceira sexual, o bebé termina percebendo este fato. Idealmente,
a mulher pode alternar seus dois papéis e passar facilmente da mãe terna, afetuosa, sutil-mente
erótica de seu bebé à parceira erótica, sexual, de seu marido. E seu bebé inconscientemente se
identifica com ela em ambos os papéis. A descontinuidade da mãe desencadeia as primeiras fontes de
frustração e anseio no bebé. Mas também, através da identificação com a mãe, é acionada a
capacidade do bebé e da criança para a descontinuidade em sua próprias relações íntimas. De
acordo com Braunschweig e Fain, o auto-erotismo do bebé decorre de repetidas sequências de
gratificação alternando-se com frustração de seu desejo de fusão com a mãe: a masturbação pode
representar um relacionamento objetal antes de se tornar uma defesa contra aquele relacionamento.
André Green considera esta descontinuidade como uma característica básica do funcionamento
humano tanto na normalidade quanto na patologia. A descontinuidade nas relações amorosas,
propõe ele, protege o relacionamento da fusão perigosa na qual a agressão tornar-se-ia suprema. A
capacidade para a descontinuidade é acionada pelos homens em seus relacionamentos com as mulhe-
res: separar-se das mulheres após a gratificação sexual representa uma asserção de autonomia
(basicamente, uma reação narcisista normal ao retraimento da rnãe), e costuma ser mal-interpretada
no cliché cultural—principalmente feminino — de
82 Otto F. Kernberg

que os homens têm menos capacidade do que as mulheres para estabelecer um


relacionamento de dependência. Nas mulheres, esta descontinuidade é normalmente ativada
na interação com seus bebés, incluindo a dimensão erótica desta interação: o que leva ao
frequente sentimento do homem de ser abandonado: mais uma vez, no cliché cultural — desta
vez, masculino — da incompatibilidade das funções maternas e do erotismo heterossexual
nas mulheres.
As diferenças na capacidade para tolerar descontinuidades nos homens e nas mulheres
também aparecem em suas descontinuidades referentes às relações amorosas, conforme
Alberoni (1987) salientou: as mulheres normalmente interrompem (descontinuam) suas relações
sexuais com um homem que não amam mais e estabelecem uma descontinuidade radical entre
um antigo relacionamento amoroso e um novo. Os homens normalmente são capazes de
manter um relacionamento sexual com uma mulher mesmo que seu comprometimento
emocional esteja em outro lugar, isto é, eles têm uma maior capacidade de tolerar a
descontinuidade entre investimentos emocionais e eróticos, e para uma continuidade de
investimentos eróticos numa mulher, na realidade e na fantasia, durante muitos anos,
mesmo na ausência de um relacionamento real com ela.
A descontinuidade masculina entre atitudes eróticas e ternas em relação às mulheres
está refletida na dissociação "Virgem-prostituta", sua defesa mais típica contra o
relacionamento sexual edípico com a mãe, inconscientemente jamais abandonado, proibido e
desejado. Mas por trás dessa dissociação, profundos conflitos pré-edípicos com a mãe tendem
a reemergir de modo intenso nos relacionamentos dos homens com as mulheres, interferindo
em sua capacidade de comprometer-se profundamente com uma mulher. Para as mulheres,
que já mudaram seu comprometimento da mãe para o pai no início da infância, o problema não
é a incapacidade de se comprometerem num relacionamento de dependência com um homem,
mas tolerar e aceitar sua própria liberdade sexual neste relacionamento. Em contraste com a
asserção masculina da sua genitalidade fálica a partir do início da infância, no contexto da
erotização inconsciente do relacionamento mãe-bebê, as mulheres têm de redescobrir sua
sexualidade vaginal original, inconscientemente inibida no relacionamento mãe-filha.
Poderíamos dizer que os homens e as mulheres precisam perceber, com tempo, aquilo com o
que o outro vem preparado, ao estabelecer um relacionamento amoroso: os homens precisam
chegar a um comprometimento profundo, e as mulheres, à liberdade sexual. Obviamente, há
exceções significativas a esse desenvolvimento, tais como a patologia narcisista nas mulheres e
graves tipos de ansiedade de castração nos homens.
A descontinuidade na relação amorosa também é estimulada pela mútua projeção de
ditames do superego; projetar no parceiro sexual os aspectos sádicos de um superego
infantil e/ou edípico pode levar à submissão masoquista e distorções irreais,
sadomasoquistas, no relacionamento, mas também a uma rebelião contra o superego projetado
precisamente através das separações temporárias que caracterizam descontinuidades normais
no relacionamento amoroso. Ao rejeitar violentamente ou atacar o objeto que inspira culpa,
pode ser obtida uma liber-
Psicopatologia das Relações Amorosas 83

dade temporária em relação ao superego projetado, sádico. Esse alívio, paradoxalmente, pode permitir
a reemergência do amor.
A função central da descontinuidade explicaria por que alguns casais mantêm um
relacionamento sólido e durável juntamente com a agressão e violência estabelecidas em sua vida
amorosa. Se nós agruparmos, de forma simplificada, a psícopatologia não-orgânica em categorias
neuióúca,borderline, narcisista e psicótica, os parceiros de diferentes categorias podem estabelecer
variados graus de equilíbrio que estabilizam seu relacionamento ao mesmo tempo em que lhes
permitem encenar seu mundo de loucura privada contida por descontínuidades protetoras. Por
exemplo, um homem neurótico com uma personalidade obsessiva, casado com uma mulher
borderline, pode inconscientemente admirar o que ele sente como a liberdade dela de dar expansão
às suas violentas explosões agressivas, enquanto ela pode ficar protegida das consequências reais e
temidas de seu comportamento agressivo pela descontinuidade obtida pelos processos de cisão que ela
impõe como a maneira mais natural de relacionar-se num relacionamento conjugal. E seu marido
obsessivo pode ser reassegurado pela natureza autocontida da agressão que ele inconscientemente
teme em si mesmo. Mas um outro casal com uma patologia semelhante pode destruir-se, porque o
homem obsessivo não consegue tolerar a inconsistência da mulher e porque a mulher fonfer/zne não
consegue tolerar a natureza persecutória, como ela a experencia, da persistência e continuidade
racional do seu marido obsessivo.
Através de muitos anos de vida conjunta, a intimidade de um casal pode ser ou reforçada ou
destruída pela encenação de certos tipos de cenários, diferentes das relações objetais passadas,
usuais, dissociadas e inconscientes. Esses cenários específicos, temidos e desejados, são gradualmente
estabelecidos pelos efeitos cumulativos de comportamentos dissociativos. As encenações podem
tornar-se altamente destrutivas, às vezes simplesmente porque desencadeiam reações circulares que
engolfam a vida amorosa do casal além de suas intenções e de sua capacidade de contê-las. Aqui me
refiro, acima de tudo, à encenação de cenários edípicos representando a invasão do casal por terceiros
excluídos como uma força disruptiva maior, e a várias relações gemelares imaginárias, encenadas pela
dupla como uma força destrutiva centrípeta ou distanciadora. Vamos examinar primeiro essas últimas
relações.
Os conflitos narcísicos se manifestam não apenas na inveja inconsciente, desvalorização,
exploração e separação, mas também no desejo inconsciente de completar a si mesmo através do
parceiro amado, que é tratado como um gémeo imaginário. Didier Anzieu (1986), desenvolvendo o
trabalho de Bion (1967), descreveu a seleção inconsciente do objeto de amor como uma
complementação homossexual e/ou heterossexual dose//: uma complementação homossexual no
sentido de que o parceiro heterossexual é tratado como uma imagem especular dose// Qualquer
coisa no parceiro que não corresponda a esse esquema de complementar, não é tolerada. Se a
intolerância inclui a sexualidade do outro, ela pode levar a uma grave inibição sexual. Por trás da
intolerância à sexualidade do outro está a inveja narci-
84 Oito F. Kernberg

sista do outro género. Em contraste, quando a escolha do outro é como um gémeo heterossexual, a
fantasia inconsciente de complementação por ser ambos os géneros num só, pode agir como um
poderoso cimento. Bela Grunberger (1979) foi o primeiro a salientar as fantasias narcisistas
inconscientes de ser ambos os géneros num só.
Tem sido frequentemente observado que, após muitos anos de vida conjunta, os parceiros
começam a ficar parecidos até mesmo fisicamente; os observadores muitas vezes ficam
maravilhados de como duas pessoas assim semelhantes se encontraram. A gratificação narcisista
neste relacionamento gemelar, o casamento, poderíamos dizer, do objeto de amor e da gratificação
narcisista protege o casal contra a ativação da agressão destrutiva. Em circunstâncias menos ideais,
essas relações gemelares podem evoluir para aquilo que Anzieu (1986) chamou de uma "pele" para
relacionamento do casal — uma exigência de completa e contínua intimidade, que a princípio
parece uma intimidade de amor, mas termina por se tornar uma intimidade de ódio. A pergunta
constantemente repetida: "Tu ainda me amas?" reflete a necessidade de manter a pele comum do casal
e é a contraparte da afirmação "Tu sempre me tratas assim!" que sinaliza a mudança na qualidade do
relacionamento sob a pele, do amor para a perseguição. Somente a opinião do outro realmente conta
para proteger a própria segurança e sanidade, e essa opinião pode transformar-se, de um fluxo regular
de amor, em um f luxo igualmente regular de ódio.
Antigos cenários encenados inconscientemente podem incluir fantasias realizadoras de desejo,
culpa inconsciente, a desesperada busca de um final diferente para uma situação traumática temida e
interminavelmente repetida, e uma reação em cadeia acionada, involuntariamente, que rompe a
sequência interna do cenário. Por exemplo: uma mulher com uma estrutura de personalidade
histérica, uma fixação edípica num pai idealizado, e profundas proibições contra o envolvimento
sexual com ele, casa-se com um homem com uma estrutura de personalidade narcisista e um intenso
ressentimento inconsciente contra as mulheres. Ele a escolheu como um gémeo heterossexual
desejável, que ele inconscientemente esperava ter totalmente sob controle, como um suporte para o
seu narcisismo. Sua inibição sexual frustra seu narcisismo e o leva a buscar satisfação extraconjugal,
enquanto o desapontamento dela com o pai edípico desencadeia, primeiro, uma inútil submissão
masoquista em relação ao marido e, depois, um caso amoroso masoquista (e pela mesma razão)
sexualmente gratificante com um homem proibido e socialmente perigoso. Quando ela abandona o
marido, este percebe sua temida dependência em relação a ela, negada pela maneira como a tratava
antes, como uma escrava, enquanto a sua (dela) resposta sexual agora plenamente despertada no
relacionamento ameaçador, mas inconscientemente permitido (por sua natureza não-conjugal),
provoca a aceitação de sua própria sexualidade genital. O marido e a mulher se reencontram com um
melhor entendimento de suas necessidades mútuas.
Psicopatologia das Relações Amorosas 85

É verdade que ambos fizeram psicanálise e, sem tratamento, provavelmente não teriam sido
capazes de reconstruir seu relacionamento. Ele inconscientemente precisava provocá-la para que se
tornasse a mãe rejeitadora, justificando assim, retrospectivamente, por assim dizer, sua
desvalorização dela e sua busca por uma nova mulher idealizada; ela inconscientemente
precisava reconfirmar a inacessibilidade e deslealdade do pai e pagar o preço de uma situação
socialmente perigosa, como uma condição para responder sexualmente a um homem que não era seu
marido.

Triangulação

Triangulações diretas e inversas, que descrevi num trabalho anterior (1988), constituem os
cenários inconscientes mais frequentes e típicos, que podem, no pior dos casos, destruir o casal ou, no
melhor dos casos, reforçar sua intimidade e estabilidade. Eu utilizo triangulação direta para descrever
a fantasia inconsciente de ambos os parceiros de um terceiro excluído, um membro idealizado do
género do sujeito — o temido rival replicando o rival edípico. Todos os homens e todas as
mulheres, inconsciente ou conscientemente, temem a presença de alguém que seria mais satisfatório
para o seu parceiro sexual; este terceiro temido é a origem da insegurança emocional na intimidade
sexual e do ciúme como um sinal de alarme protegendo a integridade do casal.
A triangulação inversa define a fantasia compensadora, vingativa, de envolvimento com
uma outra pessoa além do parceiro sexual, um membro idealizado do outro género que representa o
objeto edípico desejado, estabelecendo assim um relacionamento triangular no qual o sujeito é
cortejado por dois membros do outro género, em vez de precisar competir como rival edípico do
mesmo género pelo objeto edípico idealizado do outro género. Proponho que, dadas essas duas
fantasias universais, existem potencialmente, na fantasia, sempre seis pessoas na cama, juntas: o
casal, seus respectivos rivais edípicos inconscientes e seus respectivos ideais edípicos inconscientes.
Se essa formulação lembrar o comentário de Freud (1954) a Fliess: "Estou-me acostumando com a
ideia de considerar todo ato sexual como um processo em que quatro pessoas estão envolvidas"
(carta 113, página 289), deve ser observado que seu comentário foi feito no contexto da discussão da
bissexualidade. Minha formulação surge no contexto das fantasias inconscientes baseadas nas
relações objetais edípicas e identificações.
Uma forma que a agressão relacionada aos conflitos edípicos assume frequentemente (na
prática clínica e na vida cotidiana) é o conluio inconsciente de ambos os parceiros para encontrar, na
realidade, uma terceira pessoa que represente o ideal condensado de um e o rival do outro. A
implicação é a de que a infidelidade conjugal, os relacionamentos triangulares breves ou
duradouros, muito frequentemente refletem conluios inconscientes entre o casal, a tentação de ence-
86 Otto F. Kernberg

nar o que é mais temido e desejado. A dinâmica homossexual assim como a heterossexual entram em
cena, porque o rival inconsciente é também um objeto sexualmente desejado no conflito edípico
negativo: a vítima da infidelidade frequentemente se identifica inconscientemente com o parceiro
traidor nas fantasias sexuais acerca do relacionamento do parceiro com o rival ciumentamente odiado.
Quando uma grave patologia narcisista em um ou ambos os membros do casal impede a capacidade
para o ciúme normal — uma capacidade que implica numa certa conquista para tolerar a rivalidade
edípica — essas triangulações podem ser facilmente encenadas.
O casal que consegue manter sua intimidade sexual, proteger-se da invasão de terceiros, não
está apenas mantendo sua óbvia fronteira convencional, mas está também reafirmando, em sua luta
contra rivais, a gratificação inconsciente da fantasia do terceiro excluído, um triunfo edípico e uma
rebelião edípica sutil ao mesmo tempo. As fantasias sobre terceiros excluídos são componentes típicos
das relações sexuais normais. A contraparte da intimidade sexual que permite o desfrutar da
sexualidade perversa polimorfa é o desfrutar das fantasias sexuais secretas que expressam, de modo
sublimado, a agressão em relação ao objeto amado. A intimidade sexual nos apresenta então mais
uma descontinuidade: a descontinuidade entre os encontros sexuais nos quais ambos os parceiros
estão completamente absorvidos e identificados um com o outro, e os encontros sexuais nos quais
cenários fantasiados secretos são encenados, daí trazendo para o relacionamento as
ambivalências não-resolvidas da situação edípica.
As perenes perguntas: "O que as mulheres querem?" "O que os homens querem?" podem ser
respondidas dizendo-se que os homens querem uma mulher em papéis múltiplos — como mãe, como
uma garotinha [filha], como irmã gémea, e, acima de tudo, como uma mulher adulta sexual. As
mulheres, em virtude de sua decisiva mudança de objeto primário, querem os homens em papéis
paternais, mas também em papéis maternais, como pai, como garotinho [filho], um irmão gémeo e
um homem adulto sexual. E, num nível diferente, tanto os homens quanto as mulheres podem
desejar encenar um relacionamento homossexual ou inverter os papéis sexuais num derradeira
tentativa de superar as fronteiras entre os sexos que inevitavelmente limitam a gratificação narcisista
na intimidade sexual: ambos anseiam por uma fusão completa com o objeto amado, com elementos
edípicos e pré-edípicos que jamais podem ser satisfeitos.

Perversidade e Fronteiras

Basicamente, a experiência das fronteiras entre os géneros pode ser superada somente quando a
destruição simbólica do outro como pessoa permitir o uso de seus órgãos sexuais como artifícios
mecânicos sem envolvimento emocional. O assassinato sádico é a consequência extrema, mas lógica,
de uma tentativa de penetrar uma outra pessoa, até a própria essência de sua existência e para apagar
todo
Psicopatologia das Relações Amorosas 87

o sentimento de ser excluído dessa essência. Em circunstâncias mais moderadas, a perversidade — o


recrutamento do amor a serviço da agressão — transforma a profunda intimidade sexual numa
mecanização do sexo, que deriva da desvalorização radical da personalidade do outro, uma
observação feita primeiramente por Fairbairn(1954).
A perversidade no encontro sexual pode ser ilustrada pelos desenvolvimentos típicos dos casais
envolvidos, durante um período de tempo, em sexo grupai. Após seis meses/um ano de consistente
participação em múltiplas atividades perversas polimorf as, sua capacidade para a intimidade sexual e,
por falar no assunto, para qualquer intimidade, termina (Bartell, 1971). Nessas circunstâncias, a estrutu-
ra edípica tende a desmantelar-se. Isto está num acentuado contraste com os efeitos, estabilizadores,
sobre um casal, de um relacionamento triangular real, de modo a ser atingido um equilíbrio que
permite a atuação da agressão não-integrada ao separar o amor da agressão no relacionamento com
dois objetos; a atuação da culpa inconsciente pelo triunfo edípico é obtida através da manutenção de um
relacionamento amoroso que não chega a ser inteiramente satisfatório.
No relacionamento emocional do casal, uma perversidade correspondente pode ser observada
nos relacionamentos sadomasoquistas duradouros, em que um dos parceiros desempenha as
funções do superego perfeccionista e cruel, gratificando assim as suas próprias tendências sádicas
através da indignação farisaica, enquanto o parceiro masoquisticamente expia sua culpa derivada de
fontes edípicas e, mais frequentemente, pré-edípicas.
Ou talvez esse equilíbrio perverso não mais envolva a expressão da agressão sancionada pelo
superego, mas a encenação de cenários sadomasoquistas mais primitivos, com formas de agressão
que envolvem risco de vida, e a idealização primitiva de um objeto poderoso e cruel sem uma
dimensão moral. Um parceiro por exemplo, pode concordar, com a esterilização ou mesmo com
mutilação, real ou automutilação como castração simbólica. Mecanismos dissociativos primitivos
podem proteger a perversidade dentro de um equilíbrio estável do casal, que atinge uma
extraordinária intimidade dominada pela agressão.
A ativação de relacionamentos objetais primitivos dissociados na interação dos parceiros pode
criar reações circulares que adquirem uma qualidade fixa, que a descontinuidade comum no
relacionamento do casal pode não mais conter. Por exemplo, as explosões hostis de um dos parceiros
podem evocar uma resposta, de indignação justificada e identificação com funções primitivas do
superego. Isso é seguido por uma submissão masoquista do primeiro perpetrador ao seu parceiro,
mudando para novas explosões raivosas ou um imediato reforço da agressividade como uma defesa
secundária contra a culpa inconsciente. Essas reações podem escalar até esta relação objetal
primitiva dissociada transformar-se num aspecto recorrente da vida do casal. Ethel Person (1988)
descreveu uma situação típica na qual um dos parceiros tem um relacionamento extraconjugal e
defende-se dos sentimentos de culpa através de um comportamento provocador em relação ao parceiro
conjugal, visando induzir uma rejeição por parte desse parceiro e assim aliviar
88 Otto F. Kernberg

a culpa existente. Isso pode levar a um resultado exatamente oposto ao pretendido, o que acaba
destruindo o casal. De modo geral, uma agressão implacável, como um apelo inconsciente de aceitação
e como a expiação da culpa desencadeada por essa mesma agressão, não pode ser contida pelo
parceiro.

Fronteiras e Tempo

As fronteiras que separam o casal de seu ambiente social protegem o equilíbrio do casal, para o
seu bem ou não. O extremo isolamento social dos casais com desenvolvimentos perversos nas áreas
sexual, emocional e/ou do superego pode gradualmente piorar o relacionamento destrutivo, porque
os parceiros não têm as interações corretivas com o ambiente, e perdem a capacidade normal
para "metabolizar" aspectos da agressão gerada em suas interações no contexto de sua vida social.
Casais extremamente sadomasoquistas, em isolamento social, podem colocar em perigo o parceiro
masoquista. No lado positivo, as fronteiras normais protegem a intimidade do casal não apenas
contra a invasão triangular do ambiente social circundante, mas também sua "loucura privada",
as necessárias descontinuidades em seu relacionamento.
Certas fronteiras comuns dos casais tornam-se significativas em diferentes estágios da vida do
casal. Primeiro, o relacionamento com seus filhos, um assunto vasto e complexo demais para ser
examinado nesse momento, exceto para destacar a importância de se manter as fronteiras que
separam as gerações. Uma das mais ubíquas manifestações de culpa inconsciente pela qualidade
implicitamente rebelde e desafiadora de qualquer relacionamento íntimo (representando a realização
edípica) é o casal não ter coragem para manter fronteiras firmes de intimidade em relação aos filhos.
A proverbial ausência de uma chave na porta do quarto pode simbolizar a culpa inconsciente dos
pais pela intimidade sexual e a concepção inconsciente de que as funções paternas devem substituir
as sexuais. Esta fantasia regressiva, projetada nos filhos como um medo de suas reações por serem
excluídos do quarto dos pais, reflete o medo subjacente de identificar-se com o casal parental na
cena primária e o conluio inconsciente entre os pais, que assim abdicam da completa identificação com
seus próprios pais.
Uma outra fronteira é com a rede de casais que constituem a vida social habitual. Os
relacionamentos com outros casais normalmente são infiltrados por erotismo; entre os amigos e seus
cônjuges em conluio inconsciente estão os temidos rivais e os objetos sexuais desejados e proibidos.
As fronteiras provocadoramente excitantes e proibitivas entre os casais são os ambientes típicos
em que as triangulações diretas e inversas são desenvolvidas.
A fronteira entre o casal e o grupo é sempre uma zona de combate. Uma "guerra estática" é
representada pela pressão do grupo para moldar o casal à sua imagem e se reflete na moralidade
convencional — na ritualização ideológica e teológica do amor, comprometimento, casamento e
tradição familiar. Deste ponto
Psicopatologia das Relações Amorosas 89

de vista, o casal que existe desde o início da adolescência ou mesmo desde a infância, aproximados por
seus parentes, sancionados pela percepção universal benevolente, na verdade mora numa prisão
simbólica, embora possa escapar para um relacionamento amoroso secreto. As mútuas tentações e
seduções na rede de casais adultos representam uma guerra mais dinâmica, mas também, às vezes, a
potencial salvação para indivíduos e casais aprisionados em relacionamentos que estão se afundando
em mútuo ressentimento e agressão.
O grupo precisa do casal para a sua sobrevivência, para o reasseguramento de que um triunfo
edípico, afastando-se da multidão anónima. E o grupo inveja e se ressente do sucesso do casal, num
contraste com a solidão do indivíduo nessa multidão anónima. O casal, por sua vez, precisa do
grupo para descarregar sua agressão no ambiente. A identificação projetiva não somente opera dentro
do casal, mas, de maneiras sutis, inclui também uma terceira e uma quarta pessoa. Liberman (1956)
descreveu como as amargas queixas do paciente para o analista sobre o parceiro conjugal podem
ser parte de uma sutil atuação. O analista torna-se o repositório da agressão contra o parceiro
conjugal, e o paciente se retira para um relacionamento "preservado" com o parceiro, enquanto
abandona o relacionamento com o analista.
Este é um exemplo particular do fenómeno mais geral do analista-"penico" descrito por
Herbert Rosenfeld (1964). Os amigos íntimos de um casal que cumprem esta função geralmente não
percebem que se tornaram os portadores da agressão que de outra forma se tornaria intolerável para o
casal.
Um casal que parece estar funcionando bem pode despertar uma inveja excessiva nos grupos
sociais não-estruturados, tais como os grupos grandes de viagem ou em partidos políticos, em
organizações profissionais ou comunidades de artistas. A inveja que normalmente é mantida sob
controle pelos aspectos racionais e maduros dos relacionamentos interpessoais e amizades numa
rede de casais, torna-se imediatamente aparente em tais grupos. A percepção inconsciente dessa
inveja, no casal, pode assumir a forma de ataques públicos mútuos provocados pela culpa, para
acalmar aqueles que têm inveja, ou de um comportamento externo desafiador de total harmonia,
enquanto a agressão mútua permanece escondida da visão pública. Às vezes, os parceiros conseguem
esconder dos outros como seu relacionamento é verdadeiramente íntimo.
E uma terceira fronteira, representada pela dimensão do tempo, é a estrutura para o desenvolvimento
da vida do casal como tal, e para a natureza limitada dessa vida, em virtude da morte e da separação.
A morte se torna uma importante consideração para os casais em anos mais avançados. O medo de
envelhecer e adoecer, o medo de deixar de ser atraente para o parceiro, o medo de ficar
excessivamente dependente do outro, o medo de ser abandonado por uma outra pessoa, e a tendência
inconsciente a desafiar ou negar a realidade do tempo—por exemplo, por uma descuidada negligência
da própria saúde física ou da do parceiro—podem tornar-se o campo em que a agressão, de todas as
fontes, é acionada. Aqui, a preocupação e mútua responsabilidade derivadas das funções do ego e
do superego podem
90 Otio F. Kernberg

desempenhar um papel maior na proteção da sobrevivência do casal, em contraste com o conluio


inconsciente com perigosos padrões autoderrotistas, como ao negligenciar a doença ou ser
financeiramente irresponsável.
Os homens podem ser particularmente sensíveis ao processo de envelhecimento nas mulheres,
muito mais do que as mulheres em relação aos homens, em virtude de uma conexão inconsciente
entre a idealização da superfície do corpo da mãe, como uma origem do erotismo e o medo do
conteúdo do corpo da mãe, como uma expressão da projeção inconsciente, nela, de tendências
agressivas primitivas (Meltzer e Williams, 1988). Esta sensibilidade pode inibir os homens
sexualmente (e, na medida em que elas temem ser sexualmente menos atraentes, também as
mulheres) em estágios avançados da sua vida, e reativar ou reforçar proibições edípicas contra sua
sexualidade. A afirmação da intimidade sexual de um casal, quando eles atingem uma idade
avançada, é um teste final de sua liberdade sexual. Á negação comum da vida sexual nos idosos é a
edição final, por assim dizer, dos esforços da criança para negar a sexualidade dos pais; também é a
edição final da culpa dos pais associada à sua própria sexualidade. Preocupar-se pela companhia
amada de toda uma vida pode vir a ser um fator cada vez mais importante na mediação e
controle da representação da agressão dissociada do casal.
As mudanças de poder e autoridade relacionadas a mudanças no prestígio das pessoas, nos
rendimentos e outros desenvolvimentos relacionados à profissão e ao trabalho podem não apenas af
etar o equilíbrio emocional, mas, paradoxalmente, muitas vezes representam os efeitos imprevistos de
fatores inconscientemente determinados. Um clássico exemplo é o da enfermeira que sustenta o
marido estudante de medicina, segura em seu papel de provedora maternal enquanto gratifica as
necessidades de dependência dele. Quando, mais tarde, ele se torna um médico bem-sucedido, ele se
ressente da dependência da mãe, procurando um relacionamento em que ele é o pai dominante para
uma garotinha-amante, enquanto sua esposa luta com o ressentimento pela perda de sua função
materna para ele e o ressentimento inconsciente em relação aos homens poderosos (inveja do
pênis) ativado pelo sucesso profissional dele.
Ou um homem narcisista que estabelece um relacionamento com uma jovem simples, inibida,
que o adora, estimula-a a estudar e trabalhar para que ela satisfaça suas expectativas de gemelaridade
narcísica, apenas para descobrir que o desabrochar dela ativa sua profunda inveja das mulheres e
ressentimento por sua independência. Ele subsequentemente a desvaloriza, e seu relacionamento é
destruído.
Mas o tempo não opera apenas destrutivamente. A busca da reativação de conflitos passados
para curar feridas (empregando a expressão de Martin Bergmann [1987]) pode ter sucesso no sentido
de que o amor pode ser mantido apesar da violência da agressão mútua; a sobrevivência do casal
pode expor a natureza fantástica e exagerada dos medos inconscientes que cercam a agressão
reprimida ou dissociada. Ser capaz de atacar o parceiro sadicamente e contudo testemunhar a
sobrevivência de seu amor; ser capaz de experienciar em si mesmo a transição da raiva implacável e
desvalorização para culpa, pesar e reparação, constituem expe-
Psicopatologia das Relações Amorosas 91

riências inestimáveis para o casal. Quando a intimidade sexual e o prazer incorporam os esforços
reparadores vinculados a essa consciência, culpa e preocupação, então a excitação sexual e a
intimidade emocional aumentam, juntamente com o comprometimento do casal para uma
responsabilidade conjunta por suas vidas.
O crescimento emocional implica numa identificação expansível com todos os estágios da vida,
criando uma ponte sobre as fronteiras que separam os grupos de idade. As experiências acumuladas
de uma vida compartilhada incluem o luto pela perda dos pais, da juventude da pessoa, de uma
passado cada vez maior deixado para trás, de um futuro que se torna implacavelmente limitado.
Uma vida conjunta se torna o repositório do amor, uma força poderosa de união que proporciona
continuidade perante as descontinuidades da existência cotidiana.
Num estágio posterior de vida, a fidelidade ao outro se torna a fidelidade ao mundo interno. A
crescente consciência da limitação de todos os relacionamentos pela morte salienta a importância
desse mundo interno. A negação da própria morte fica limitada pela consciência do fim necessário,
em algum momento, da vida conjunta do casal, que inicia um processo de luto que novamente
enriquece a vida vivida junto e após a morte da pessoa amada. O membro sobrevivente fica com a
responsabilidade pela continuação da vida vivida junto. A mulher cujo marido morreu e que volta à sua
velha rede de casais com um novo marido ativa este processo de luto no grupo todo.

Fixação Patológica de Papel

Eu descrevi a perversidade nas relações amorosas que a destrói no par sexual porque os
elementos agressivos predominam e controlam a excitação sexual, em virtude dos padrões
sadomasoquistas que dominam e controlam o relacionamento emocional, e em virtude da
dominância e controle por aspectos persecutórios e sádicos de funções do superego mutuamente
projetados. Uma forma adicional de perversidade é o congelamento do relacionamento num único
padrão de um relacionamento objetal complementar, inconsciente, do passado. Normalmente, repre-
sentações do passado interagem com relações realistas. Uma ilustração de uma mudança
tipicamente flexível nas interações dos parceiros seria a mudança inconsciente do marido do papel do
homem sexualmente dominante e excitado penetrando sua mulher e simbolicamente restabelecendo
o pai amoroso e sexualmente aceitador, para o papel do bebé satisfeito que foi nutrido pela mãe,
simbolicamente representada pela mulher que lhe deu o presente do orgasmo dela. Ele pode então
tornar-se a criança dependente de uma mãe maternal que o cobre, alimenta e põe para dormir. Ou ele
pode ativamente mudar para um papel paternal em relação a uma filha dependente, consertando uma
lâmpada queimada que ela não consegue (ou finge que não consegue) trocar.
Ou a mulher pode mudar do papel da parceira sexual adulta para a filha dependente de uma
mãe protetora, ou a mulher maternal que alimenta seu garoti-
92 Otío F. Kernberg

nho-homem. Ou ela pode tornar-se a garotinha culpada que é seduzida sexualmente por um pai
sádico; ou ela é "estuprada" em sua fantasia durante a relação sexual, confirmando assim a
ausência de culpa (dela) pelo prazer sexual; ou ela pode exibir-se envergonhadamente, expiando
assim seu prazer sexual enquanto obtém a gratificação de ser admirada pelo homem que a ama.
Ou um homem pode mudar do garotinho movido pela culpa, repreendido por uma mãe
perfeccionista, para o garotinho invejoso observando os mistérios das preocupações e interesses
femininos adultos. Ou ele pode ressentir-se da dedicação da sua mulher à sua profissão ou ao bebé
deles porque ele se sente como uma criança negligenciada, a contraparte para o ressentimento
inconsciente da mulher pelo sucesso profissional do marido porque este sucesso reativa a inveja inicial
dos homens. Estes e outros desempenhos de papel podem ser mutuamente gratif ican-tes porque
expressam tanto amor e ódio — a integração da agressão num relacionamento amoroso. Mas esses
conluios inconscientes podem falhar, e a agressão pode ser expressada numa "fixação" inconsciente
de si mesmo e do parceiro sexual num determinado papel, levando aos típicos cenários que se
tornam o tema de conflitos conjugais crónicos: a mulher dependente, aderente e faminta de amor e o
homem narcisista, indiferente e autocentrado; a mulher dominadora, poderosa e controladora que se
sente frustrada por seuhomem-menino, que quer um homem adulto como seu parceiro, e que está
tendo dificuldade em perceber a natureza auto-perpetuadora de seu relacionamento. Ou o homem
"faminto por sexo" que não consegue entender o limitado interesse sexual da mulher; e, é claro, o
parceiro culpado e o acusador, em todas as suas variações.
Fixações rígidas de papéis normalmente refletem reencenações de cenários dissociados e
uma incapacidade de aceitar ou executar as funções de descontinuidade relacionadas à culpa
edípica ou fixações narcísicas. Poderíamos perguntar se uma simples falta de correspondência
harmoniosa de encenações inconscientes poderia provocar choques resultantes de expectativas
contraditórias; um homem tentando ser um pai protetor colide com um mãe competitiva; ou ambos os
parceiros ficam frustrados porque ambos têm expectativas de dependência. Clinicamente,
entretanto, a sintonia inconscientemente fina na percepção inconsciente do casal da disposição do
outro, torna muito claro para eles como serão percebidos pelo outro. O que parece ser um simples
equívoco é normalmente determinado por necessidades inconscientes.
A suposição de que os problemas do casal resultam de seu fracasso em comunicar-se toca apenas
a superfície. Às vezes, a comunicação serve para estabelecer uma agressão mal e mal controlada, o
que não significa que os esforços para comunicar necessidades e expectativas não sejam úteis. Mas
quando conflitos inconscientes profundos entram em cena, o processo comunicativo pode ser
contaminado por eles, e a comunicação aberta pode servir apenas para acentuar os conflitos.
Uma palavra final sobre os casais diante de valores sociais e convencionais. Dicks (1967) descreveu o
complexo relacionamento entre as aspirações conscientes do casal, seus valores culturais, e os do
mundo social circundante. Eu acredito que
Psicopatologia das Relações Amorosas 93
não há regras "objetivas" sobre quais valores devem determinar o relacionamento de um casal,
especialmente sua maneira de lidar com os conflitos. A dimensão ideológica de todas as culturas é,
creio, implicitamente dirigida contra a intimidade do casal. Está na própria natureza da cultura
convencional tentar controlar a natureza basicamente rebelde e implicitamente associai do casal, como
é percebido pelo ambiente social convencional. A independência do casal, em relação à
convencionalidade social pode, conseqúentemente, ser crucial em sua sobrevivência em condições de
conflito — e a não-convencionalidade do terapeuta do casal, essencial em seu papel com eles. É
verdade, naturalmente, que quando distorções extremas no restabelecimento de relações objetais
dissociadas do passado ameaçam a integridade física ou emocional de um ou ambos os parceiros, a
realidade social comum pode proteger os parceiros de uma deterioração perigosa, que traz inclusive
risco de vida. Tais condições, entretanto, aplicam-se apenas a uma minoria de casos. Há uma grande
maioria de casais cujos conflitos inconscientes assumem o mimetismo superficial de gritos de guerra
ideológicos, com novas complicações em seu relacionamento conforme os padrões convencionais se
tomamslogans rígidos que reduzem ainda mais sua flexibilidade para lidar com os conflitos.
C a p í t u l o 7

Funções Superegóicas
Construtivas e Destrutivas do
Casal

Superego: Aspectos Estruturais e Funcionais

Ao descrever as contribuições feitas pela libido e pela agressão às relações sexuais e


emocionais do casal, me referi ao papel crucial desempenhado pelo superego. Passemos a
examinar agora com mais detalhes o papel dessa instância. Vimos como o casal se torna o
repositário das fantasias e desejos conscientes e inconscientes de ambos os parceiros e de suas
relações objetais e internalizadas. Também vimos como o casal adquire uma identidade
própria, além da identidade de cada um dos parceiros. Sugiro que o casal, como entidade,
também ativa as funções conscientes e inconscientes do superego, de cada um de seus
membros, resultando na aquisição, com o passar do tempo, de um sistema superegóico pró-
prio do casal, num acréscimo aos superegos individuais que o constituem.
O efeito deste novo sistema de superego sobre o relacionamento do casal depende da
maturidade do superego de cada parceiro. Quando domina a patologia de um superego
primitivo, são reativados precursores sádicos do superego, e que têm o potencial de destruir o
casal. Um superego maduro, expressado na preocupação pelo parceiro — e pelose//— protege as
relações objetais do casal, estimula o amor e o comprometimento, mas, uma vez que o superego
sempre inclui remanescentes de conflitos edípicos, pode também ameaçar a capacidade para o
amor sexual, inibindo ou proibindo as expressões de sentimentos ternos e sexuais pelo mesmo
objeto. Portanto, o superego pode reforçar a capacidade para uma paixão sexual duradoura,
ou pode destruí-la. Schafer (1960) esclareceu os aspectos benignos e hostis do superego para o
indivíduo; aqui, estou examinando essas mesmas funções para o casal.

94
Psicopatologia das Relações Amorosas 95

Estabelecer o ideal de ego como uma subestrutura do superego é um pré-requisito básico para
a capacidade de apaixonar-se. A idealização da pessoa amada reflete a projeção de aspectos do ideal
de ego da própria pessoa, um ideal que representa a realização sublimatória de desejos edípicos. É
uma projeção que coincide com o apego a este ideal projetado, o sentimento de que a pessoa amada
representa a corporificação, na realidade externa, de um ideal desejável, profundamente almejado. A
este respeito, o relacionamento, na realidade, com a pessoa amada, é idealmente uma experiência de
transcender as próprias fronteiras psíquicas, uma experiência de êxtase em contraste dialético com o
mundo comum da realidade cotidiana, e uma experiência que traz um novo significado à vida. O
amor romântico, portanto, expressa uma profunda necessidade emocional, essencial para explicar a
razão que leva as pessoas a formarem casais, e não algo simplesmente derivado do romantismo
como um ideal cultural.
Conforme Chasseguet-Smirgel (1985) salientou, a projeção do ideal de ego na pessoa amada não
reduz a própria auto-estima, como Freud (1914) originalmente sugeriu, mas a aumenta, porque as
aspirações do ideal do ego são dessa forma realizadas. Além disso, o amor retribuído aumenta a
auto-estima como parte da gratificação de estar apaixonado e ser amado de volta. Nessas condições,
o auto-amor e o amor objetal se fundem — um aspecto crucial da paixão sexual. O amor não
correspondido pode ter diferentes consequências, dependendo do equilíbrio psíquico da pessoa. O
processo de luto poderia, numa pessoa com suficiente flexibilidade, permitir a recuperação da mesma
sem um trauma maior significativo; mas se o indivíduo está neuroticamente fixado no que era
originalmente um objeto inacessível e frustrante, ele poderá experimentar uma perda importando da
auto-estima. Em geral, quanto maior a predisposição do indivíduo para a derrota edípica e a frustração
pré-edípica (por exemplo, a frustração da dependência oral), maior o sentimento de inferioridade
relacionado ao amor não-correspondido.
Estou propondo que o estabelecimento de funções maduras do superego em ambos os parceiros
se reflete em ambos terem a capacidade de se sentirem responsáveis um pelo outro e pelo casal, de se
preocuparem por seu relacionamento e de ambos protegerem contra as consequências da inevitável
ativação da agressão, que resulta da igualmente inevitável ambivalência nos relacionamentos
íntimos.
Ao mesmo tempo, ativa-se uma função mais sutil do superego, mas extremamente importante.
Refiro-me aos aspectos sadios dos ideais do ego de ambos os parceiros, que se combinam para
criar uma estrutura conjunta de valores. Uma série de valores pré-conscientemente adotados é
gradualmente delineada, elaborada e modificada através dos anos, e proporciona uma função de
fronteira para o casal diante do resto do mundo. Em resumo, o casal estabelece seu próprio superego. É
no contexto dessa série conjunta de valores que o casal pode criativamente contribuir para a solução
de seus conflitos. Um inesperado gesto de amor, remorso, perdão, humor, podem manter a agressão
dentro dos limites. A tolerância em relação às deficiências e limitações do outro, assim como de si
mesmo, são silenciosamente integradas ao relacionamento.
96 Otto F. Kernberg

A importância dessa estrutura conjunta de superego está em função implícita como "corte de
apelação", uma espécie de último recurso quando um dos parceiros infligiu uma grave lesão ao
sistema de valores estabelecido em conjunto. Uma transgressão real, ou a tentação de transgredir,
essa fronteira conjunta, alerta o casal para um extraordinário perigo para seu relacionamento,
constituindo assim um importante sistema de alarme que protege o casal de uma possível dissolução.
Se um dos parceiros — ou ambos — tiver um superego menos maduro, menos firme, a
projeção de aspectos reprimidos do superego infantil pode deixar o outro parceiro particularmente
suscetível às críticas de um ou de outro. Uma série de projeções de um superego primitivo reforça
ilogicamente qualquer crítica obje-tiva que possa estar vindo do parceiro. Ter um superego maduro
permite que o parceiro criticado se rebele, supere o ataque e ajude a manter o equilíbrio do casal.
Mas uma severa patologia do superego em qualquer um dos parceiros pode resultar no
emprego da identificação projetiva, em vez da simples projeção, tornando mais difícil se opor contra
essa defesa. A consequência pode ser a destruição do equilíbrio do casal, na medida em que
introjeções de um superego sádico assumem o controle do relacionamento.
No desenvolvimento normal, os precursores pré-edípicos do superego (caracterizados por
idealização primitiva e fantasias persecutórias) são gradualmente reduzidos e neutralizados, o que, por
sua vez, facilita a internalização dos aspectos idealizados e proibidores do superego edípico mais
maduro. A integração dos níveis pré-edípicos e edípicos da formação do superego facilita, então, a
consolidação do superego pós-edípico, com sua abstração, individuação e despersonificação
características (Jacobson, 1964).
Um dos afetos complexos que se desenvolvem em consequência desses processos é a gratidão.
A gratidão é também uma das maneiras pelas quais o amor se desenvolve e se perpetua. A capacidade
de gratidão, para a qual contribuem o ego e o superego, é básica para a reciprocidade nos
relacionamentos humanos; ela se origina no prazer do bebé com o reaparecimento, na realidade
externa, da imagem da mãe ou cuidador gratificantes (Klein, 1957). A capacidade de tolerar a
ambivalência, que marca a mudança da fase de aproximação da separação-individuação para a
fase da constância do objeto, também é marcada por um aumento na capacidade de gratidão. A
conquista da constância de objeto também aumenta a capacidade para sentir culpa pelas próprias
agressões. A culpa, conforme Klein (1957) salientou, reforça a gratidão (embora não seja a sua
origem).
A culpa também aumenta a idealização. A idealização mais primitiva é a da mãe, na fase
simbiótica do desenvolvimento, que evolui para a idealização da mãe da fase de separação-
individuação. A integração do superego, que promove o desenvolvimento da capacidade para a
culpa inconsciente, também estimula o desenvolvimento da idealização tanto como uma formação
reativa contra esta culpa quanto uma expressão direta da mesma culpa. Esta idealização, estimulada
pelo superego, age como um poderoso reforço para a gratidão como um componente do amor.
Psicopatologia das Relações Amorosas 97

A capacidade do casal para idealizar um ao outro, está expressada, mais intensamente, na


capacidade para sentir gratidão pelo amor recebido e a correspondente intensificação do desejo de
retribuir amor em troca. A experiência do orgasmo do outro como uma expressão do amor recebido,
assim como a capacidade de retribuir com amor, contém a garantia de que o amor e a reciprocidade
prevalecerão sobre a inveja e o ressentimento.
Paradoxalmente, entretanto, a capacidade de gratidão resultante da idealização, é oposta
a certas características avançadas do ideal de ego do estágio edípico de desenvolvimento, em que o
relacionamento idealizado com os pais edípicos deriva da renúncia ao erotismo infantil perverso
polimorfo e aos aspectos genitais eróticos da relação.
Conforme Dicks (1967) enfatizou, a idealização mútua inicial do casal recentemente formado, e
suas expectativas conscientes de um relacionamento amoroso sustentado, mais cedo ou mais tarde
entram em conflito com o ressurgimento de antigas relações objetais internalizadas, conflitadas,
reprimidas e dissociadas. Os conflitos edípicos e as correspondentes proibições do superego
provocarão, na maioria dos casos, um gradual colapso dessas idealizações iniciais enquanto se dá a
renovação da tarefa adolescente de integrar o erotismo e a ternura. Esses conflitos, frequentemente
envolvendo testes para a estabilidade do casal, podem não apenas produzir descobertas dolorosas
para ambos os participantes, mas também criar seus próprios processos curativos, como o caso
seguinte ilustra.
Um paciente tinha o que considerava um relacionamento sexual satisfatório com seu namorado,
antes do casamento. Depois de casados, sua vida sexual se deteriorou. Queixava-se que o marido
não lhe dava atenção suficiente e que parecia exclusivamente interessado na natureza sexual do
relacionamento, sem ternura suficiente.
Ela não tinha nenhuma tolerância para com as descontinuidades comuns em qualquer
relacionamento íntimo duradouro, assim como não tinha consciência de que sua tendência a culpar o
marido, e ver a si mesma como uma vítima impotente, estava envenenando seu relacionamento. Sentia
que o amava e não percebia que seu comportamento infantilmente "grudado", e provocador de
culpa, repetia aspectos do relacionamento de sua mãe com seu pai, e de seu próprio relacionamento
com o pai durante o início da adolescência.
Quando mais tarde encontrou um homem que fora seu namorado no início da adolescência, e a
quem ela idealizara naqueles anos todos, iniciou num caso com ele, sexualmente muito satisfatório.
Surpreendeu-se por sentir-se, com o amante, inteiramente satisfeita como mulher e com maior senso
de segurança e auto-esti-ma. Ao mesmo tempo, sentiu renovar o amor que nutria pelo marido, o que fez
com que ficasse culpada pelo caso extraconjugal e passasse a apreciar mais os aspectos positivos de
sua vida de casada. Depois de um certo tempo, descobriu que os aspectos emocionais do
relacionamento com o marido eram muito mais satisfatórios do que com o amante, enquanto, por outro
lado, experienciava uma plena gratificação sexual com o amante, que imaginava que seu marido não
conseguiria pró-
98 Oito F. Kernberg

porcionar-lhe. Este conflito levou-a ao tratamento psicanalítico, e à gradual consciência de sua


incapacidade inconsciente de experimentar, plenamente, um relacionamento emocional e sexual
satisfatório com o mesmo homem.
A externalização crónica de um superego infantil, e a busca de um relacionamento
inabalavelmente amoroso com o objeto parental que essa estrutura de superego personifica,
podem restringir severamente a vida do indivíduo e a vida amorosa do casal, apesar da ausência de
conflito manifesto. Normalmente, no entanto, essa aparente estabilidade e harmonia manifestas são
obtidas à custa de certo grau de restrição na vida social do casal, pois outros relacionamentos poten-
cialmente ameaçadores — ou que possam promover confrontos corretivos—precisam ser
cuidadosamente evitados, especialmente a consciência da possibilidade de relacionamentos mais
satisfatórios. A identificação de um dos parceiros com o agressor (expressada na identificação com o
superego do outro), pode resultar na aliança sadomasoquista do casal contra o mundo externo,
pode, por outro lado, também e gratificar a necessidade do casal ter um conjunto de valores
compartilhado, ao projetar no ambiente, conjuntamente, a rebelião interna contra o superego infantil.
Os casais que conjuntamente se comportam como vítimas ofendidas e humilhadas de terceiras
pessoas, podem, portanto, manter um relacionamento neurótico, mas estável, que talvez inclua
também muitos aspectos sadios de mútua preocupação e responsabilidade.
No extremo oposto, valores compartilhados podem ser ao casal a força e resistência necessárias
para sobreviver num ambiente hostil — por exemplo, numa sociedade totalitária —, em que a
desonestidade culturalmente sancionada nos relacionamentos sociais comuns, deve ser tolerada e
filtrada pela silenciosa rebelião secreta do casal contra a opressão e corrupção de seu ambiente.
Conforme já sugeri, a própria natureza da intimidade sexual do casal implica em certa rebelião
compartilhada contra a convencionalidade, e é uma fonte de constante gratificação em seu
relacionamento.
A luta contra o superego infantil precisa de ajuda para consolidar o relacionamento do casal—
libertando-o da aceitação impensada de ideologias e estereótipos sexuais convencionais, tipicamente
representados pelos clichés culturais de "homens sujos", "homens indiferentes", "mulheres
sexualmente passivas". Outra tarefa que o casal precisa enfrentar, é tomar consciência da tendência
humana de projetar remanescentes do próprio superego infantil no parceiro sexual. A
tranqúilização implícita do parceiro contra esses medos fantasiados, pode ter funções curativas: "Não,
não acho que você seja um garotinho tímido que eu não possa levar a sério sexualmente." "Não, não
vou te considerar uma mulher sem valor depois de fazer os sexo." "Não, teu comportamento
agressivo não provocará eterna punição, desvalorização, ressentimento ou meu eterno rancor." Ainda
outra tarefa relacionada, é enfrentar o perigo de que as funções do superego primitivo de um dos
parceiros, imponham um simbólico reino do terror para ambos. Entramos aqui no domínio da
psicopatologia da formação do superego sádico, em um ou em ambos os parceiros, levando a
relacionamentos sadomasoquistas.
Psicopatologia das Relações Amorosas 99

Mais outra tarefa é a de integrar as expectativas conscientes em relação a uma vida a dois, com as
aspirações, exigências e proibições do meio cultural. Os conflitos produzidos por diferenças nos
meios religiosos, étnicos ou económicos, e as divergências de opinião política e ideológica, podem
desempenhar um importante papel para garantir ou interferir no relacionamento do casal com seu
ambiente social.
Um casal pode proteger-se contra conflitos potenciais entre o ambiente cultural atual e os antigos
valores intemalizados, através do isolamento social. Entretanto, de modo típico, depois do
nascimento dos filhos, o isolamento do casal fica ameaçado e o desafio de integrar os próprios
valores com os do ambiente pode tornar-se urgente e inevitável.
No lado positivo da projeção de funções do superego no parceiro está o uso do parceiro como
um conselheiro e protetor, consolo contra ataques externos e fonte de tranqúilização quanto ao
próprio valor. A maneira pela qual um dos parceiros idealiza o outro tem seus significados: um homem
que casa com uma mulher porque a admiração dela alimentou a auto-estima dele, não pode mais
tarde depender da admiração dela, se vier a desvalorizá-la. Assim, a utilização inicial de um reforço
por parte do outro pode ter um efeito contrário, por produzir um sentimento de solidão numa pessoa
incapaz de idealizar o parceiro.
Embora a frequente dissociação entre o amor terno e o erótico constitua a dinâmica
subjacente de muitos relacionamento triangulares duradouros, também o é a busca de um
relacionamento que compense frustrações importantes. Alguns casos extraconjugais têm, como
função maior, proteger o relacionamento conjugal de um aspecto desse relacionamento que é
inconscientemente temido: o casamento se consolida, assim, através da redução do nível da temida
intimidade. Sentir uma culpa inconsciente, pela natureza gratificante e realizadora de um
relacionamento amoroso, particularmente o casamento, pode representar os efeitos da patologia do
superego de um dos parceiros (ou de ambos).
Outra triangulação crónica, determinada pelo superego, pode refletir a intolerância em um ou
ambos os parceiros pela ambivalência normal das relações amorosas e, assim, pela expressão direta
de qualquer agressão. Por exemplo, um ou ambos, podem ter um sentimento idealizado (mas
emocionalmente ingénuo) de uma perfeita relação amorosa com um parceiro com quem o sexo e a
ternura se combinam e, simultaneamente, manter um outro relacionamento duradouro que também
combine sexo e ternura: a agressão subjacente estará sendo expressada apenas indiretamente, na
satisfação inconsciente das implicações agressivas de estar traindo a ambos os parceiros.
Essas dinâmicas, particularmente os mecanismos dissociativos envolvidos, podem ser uma
defesa contra características sádicas do superego no relacionamento do casal, que se observam quando
um dos relacionamentos paralelos é desfeito. Surge um medo desproporcional de que a pessoa com
quem o indivíduo realmente está comprometido jamais perdoará ou esquecerá a infidelidade passada
— tornando-se assim um superego cruel, rancoroso—o que pode se combinar, realmen-
100 Otto F. Kernberg

te, com o parceiro cumprindo este papel rancoroso e eternamente ressentido. Embora a lesão
narcisista de sentir-se abandonado e traído seja um aspecto obviamente importante desse
comportamento rancoroso, estou pensando também na proje-ção correspondente no parceiro e/ou
na identificação com um superego implacável, por parte do parceiro "traído".
A capacidade de perdoar aos outros é normalmente sinal de um superego maduro, que se
origina da capacidade de reconhecer a agressão e a ambivalência em si mesmo, e da capacidade de
aceitar a ambivalência inevitável nas relações íntimas. A autêntica capacidade de perdoar é
expressão de um senso maduro de moralidade, de uma aceitação da dor que vem da perda das
ilusões sobre si mesmo e sobre o outro, da fé na possibilidade da recuperação da confiança, da
possibilidade de que o amor seja recriado e mantido vivo, apesar e além de seus componentes
agressivos. A disposição de perdoar baseada na ingenuidade ou na grandiosidade narcísica, todavia,
tem muito menos valor para reconstruir a vida de um casal que se supõe tenha como base uma nova
consolidação da preocupação compartilhada um pelo outro, e por sua vida conjunta.
As fantasias sobre a morte do parceiro e a própria morte são tão comuns que dizem muito
sobre ostatus do casal. Quando ocorre uma doença grave, ou ameaça à vida, talvez seja mais fácil
tolerar a perspectiva da própria morte do que da do parceiro: inconscientemente, a fantasia
essencial de ser preservado se refere à sobrevivência da mãe. Kãthe Kollwitz simboliza a morte na
sua escultura da jovem Kollwitz adormecendo nos braços de Deus — uma expressão de uma fonte
básica de ansiedade e segurança. A perda fundamental da mãe, o protótipo do abandono e da
solidão, é a ameaça básica contra a qual a sobrevivência do outro é uma pro-teção; esta
preocupação aumenta o amor pelo outro e o desejo inconsciente da imortalidade do outro.
Tal preocupação básica é complementada pela assustadora perspectiva da própria morte
fantasiada como sendo o triunfo final do outro excluído: o perigo de ser substituído pelo rival edípico:
"Até que a morte nos separe" é vivenciado como uma ameaça básica, uma cruel brincadeira do
destino: simbolicamente, a castração. Essa confiança básica no amor do parceiro, e no próprio amor
pelo parceiro, reduz significativamente o medo de um terceiro excluído e ajuda a lidar com a
ansiedade relativa à própria morte.
Um importante aspecto da reencenação de conflitos do superego no relacionamento do casal
pode ser o desenvolvimento da disposição de enganar. Enganar pode servir como proteção contra
uma agressão real ou fantasiada por parte do outro, ou pode servir para esconder, ou manter sob
controle, a própria agressão contra o outro. Enganar é, em si mesmo, sem dúvida, uma forma de
agressão. Isto pode se desenvolver como uma relação a ataques temidos, vindos do outro, que por
sua vez podem ser uma estimativa realista ou refletir uma projeção do próprio superego. A
declaração de um marido "Eu não posso contar isso à minha mulher. Ela jamais aceitaria", pode ser
verdade e refletir o superego infantil da esposa, ou derivar do fato de ele projetar nele seu próprio
superego infantil. Ou ambos podem
Psicopatologia das Relações Amorosas 101

estar aprisionados por uma estrutura de superego conjunto: o casal pode


às vezes sucumbir ao conlui autodestrutivo derivado da submissão conjunta
a um superego sádico compartilhado. A disposição de enganar também
pode servir para proteger o outro de uma lesão narcisista, ciúme ou
desapontamento. Por outro lado, uma "absoluta honestidade" é às vezes
simplesmente uma agressão racionalizada. A ambivalência, normalmente
sob controle nas interações sociais, pode escapar ao controle nas relações
íntimas: a inflexão da voz, ou uma mudança na expressão facial, têm o
potencial de escalar rapidamente num sério conflito, mesmo quando o
estímulo original foi relativamente inócuo. Muitas vezes, o casal não está
plenamente consciente de quão bem se conhece, de quão bem um pode
"ler" o outro.
De fato, a comunicação afetiva aumenta o perigo de mútuas
projeções superegóicas de expressões descontroladas, ou incontroláveis,
dos aspectos negativos da ambivalência normal. A própria "intrusão" na
experiência psíquica do outro, alimentada pela capacidade de ambos de
"ler" os sentimentos não-expres-sos do outro, acelera a transformação dos
medos paranóides na disposição defensiva de enganar. No melhor dos
casos, a disposição de enganar pode ser percebida pelo outro como um
discreto grau de artificialidade que aumenta a distância. No pior dos
casos, pode ser sentida como um ataque disfarçado, o que desencadeia
novas reações paranóides no parceiro. Embora o engano pretenda proteger
o relacionamento do casal, ele pode piorá-lo. Mesmo nos relacionamentos
bem-sucedí-dos, há ciclos que poderiam ser chamados de
comportamentos enganadores, paranóides (ou mutuamente
desconfiados), e comportamentos depressivos, determinados pela culpa,
que expressam e ao mesmo tempo defendem contra a comunicação afetiva
direta. A disposição de enganar pode ser uma defesa contra medos
paranóides subjacentes, e o comportamento paranóide pode, por sua vez,
ser uma defesa contra características depressivas mais profundas: mas a
auto-acusação também pode ser uma defesa contra tendências
paranóides, uma formação reativa contra acusar o outro.

Patologia do Superego relativamente Moderada

Nos tipos mais moderados de patologia do superego, quando o


relacionamento do casal é mantido, mas o superego conjuntamente
estabelecido é muito restritivo, o casal também se torna mais suscetível
às exigências e proibições limitadoras da cultura circundante,
particularmente aos aspectos convencionais dessa cultura. Na medida em
que a convencionalidade reflete remanescentes culturalmente
compartilhados do superego da latência, esta é outra maneira pela qual o
fracasso das funções do superego maduro provoca uma regressão a
exigências e proibições de um superego restritivo infantil.
O caso seguinte ilustra o problema produzido por um superego bem-
integra-do, mas excessivamente severo, de ambos os parceiros,
compartilhado pelos dois, ou inconscientemente imposto por um deles ao
relacionamento do casal.
102 Otto F. Kernberg

Um casal consultou-me em virtude de crescentes dificuldades interpessoal; e sexuais. Ela


estava no início da casa dos 30, e, conforme ambos descreveram, era uma dona-de-casa dedicada,
eficiente, que cuidava amorosamente de seus dois filhos homens, com 3 e 5 anos de idade. Ele, no
final da casa dos 30, foi descrito por ambos como um homem trabalhador e responsável, que
conseguira, em poucos anos, chegar a uma posição importante em seu negócio. Pertenciam a uma
comunidade suburbana católica, de classe média, e ambos faziam parte de grandes famílias de origem
latino-amerícana. A razão para a consulta foi a crescente insatisfaça; dela com o que sentia como
distanciamento, indisponibilidade emocional e negligência por parte do marido; e o que ele sentia
como uma atitude cada vez mair intolerante, resmungona e repreensiva da esposa e que o estava
afastando de casa Eles aceitaram minha proposta de uma combinação de entrevistas diagnosticai
separadas, para cada um, intercaladas com uma série de entrevistas diagnosticas conjuntas. Meu
objetivo era o de avaliar o conflito conjugal e decidir um possíve_ tratamento individual para um ou
ambos, ou para o casal em conjunto.
A avaliação individual da esposa evidenciou um diagnóstico de significativc transtorno de
personalidade, com predominância de características histéricas e masoquistas, mas funcionando
num nível neurótico de organização de personalidade. Suas principais dificuldades pareciam ser o
ajustamento sexual ao casamento. Ela tinha desejo de intimidade sexual, mas uma capacidade para
apenas míru-ma excitação sexual, que desaparecia momentos após a penetração. Odiava o que
sentia como um excessivo interesse e "crueza" sexual do marido e parecia ressentir-se do fracasso
dele em reproduzir o relacionamento cálido que tivera com seu pai forte e idealizado. Também se
odiava por começar a soar como sua mãe submissa, resmungona e provocadora de culpa.
Descreveu a atitude puritana de ambos os pais em relação a sexo, e manifestou intensas defensas
repressivas, tais come bloquear todas as lembranças da primeira infância. Queixou-se amargamente
da mudança em seu marido, cujo comportamento alegre, amistoso e cortês durante o namoro, fora
substituído por mau-humor e retraimento.
As entrevistas individuais com o marido também forneceram evidências de um significativo
transtorno de personalidade, com predomínio de características obsessivo-compulsivas.
Apresentava também uma identidade de ego bem integrada, capacidade para relações objetais
profundas e sintomas de uma depressão neurótica moderada, persistente. Seu pai fora um homem de
negócios que admirara na primeira infância por sua força e poder, mas com quem se desapontara
cada vez mais na adolescência, à medida que reconhecera seu comportamento autoritário em relação
à esposa e aos filhos. O paciente tinha duas irmãs mais velhas, e sua curiosidade infantil sobre a
sexualidade fora severamente reprimida por ambos os pais, particularmente por sua mãe, uma
mulher aparentemente submissa mas cujo controle manipulativo sobre o pai era muito evidente
para o paciente.
Durante a adolescência, ele se envolveu, desafiadoramente, com mulheres de um status sócio-
econômico mais baixo, e grupos culturais diferentes. Teve vários casos amorosos apaixonados
durante a idade adulta jovem, que terminaram quan-
Psicopatologia das Relações Amorosas 103

do, para grande alegria de seus pais e familiares, ele casou com uma jovem de seu próprio meio
cultural e religioso. A conduta um tanto tímida e acanhada de sua esposa, a semelhança de
background, sua relutância em começar um relacionamento sexual com ele antes do casamento, tudo
isso o atraíra. Uma vez casados, sua falta de responsividade sexual, que ele a princípio descartou
como decorrente de sua falta de experiência, tornou-se uma crescente fonte de insatisfação. Ao
mesmo tempo, acusava-se por sua incapacidade de gratificá-la sexualmente, sentindo-se cada vez
mais inseguro para aproximar-se dela, e finalmente reduzindo suas investidas sexuais de modo que,
no momento da consulta, estavam tendo relações sexuais apenas a uma ou duas vezes por mês.
Também se sentia cada vez mais deprimido, conscientemente culpado por não estar mais
disponível para sua mulher e filhos, mas aliviado quando se afastava de casa e submergia no
trabalho. Insistia em que amava a esposa, e que, se ela fosse menos crítica com ele e se suas
relações sexuais fossem melhores, os outros problemas desapareceriam. O fato de ambos terem
tantos interesses e aspirações em comum lhe parecia importante. E salientou, realmente amava a
maneira pela qual ela cuidava dos filhos, da casa e da vida cotidiana.
Ela, por sua vez, declarou convicções semelhantes em suas entrevistas individuais: amava o
marido, estava desapontada com sua distância e retraimento, mas esperava que o
relacionamento pudesse voltar ao que fora antes. O único problema era o sexual. O sexo era um
dever que ela estava disposta a cumprir, mas responder-lhe de maneira que ele desejava dependia,
tinha certeza, de ele adotar uma abordagem mais gentil e mais paciente.
Nas entrevistas conjuntas que realizei em paralelo às sessões individuais, durante várias
semanas, ficou claro que eles realmente compartilhavam suposições e aspirações referentes à sua
vida em comum, a valores culturais e a expectativas conscientes sobre seus respectivos papéis no
casamento. A principal dificuldade de fato parecia estar na área sexual. Eu me perguntava em que
extensão a depressão dele poderia ser secundária à sua culpa inconsciente por não ter conseguido
satisfazer as expectativas de ambos como um homem forte e bem-sucedido; e me questionava se a
inibição sexual dela poderia refletir uma culpa inconsciente por conflitos edípicos não-resolvidos,
reforçada pela incapacidade do marido em ajudá-la a superar essas inibições.
Ambos, eu pensava, estavam lutando com questões edípicas em suas relações objetais
inconscientemente ativadas. Ele inconscientemente a percebia como a reencarnação da mãe
controladora e manipuladora, que desaprovava seu comportamento sexual; e, contra a própria
vontade, estava restabelecendo uma identificação com o pai fracassado de sua adolescência. Ela, ao
inconscientemente reduzi-lo ao papel de um marido sexualmente falho, estava evitando um
relacionamento sexual com um pai forte, cálido e dominador, que teria despertado culpa edípica. E,
contra a sua vontade, estava repetindo os comportamentos frustrados, provocadores de culpa e
controladores da mãe. Conscientemente, ambos tentavam agarrar-se a seus ideais comuns da
esposa afetuosa e generosa, e do marido forte e
104 Oito F. Kernberg

protetor, e ambos, num conluio inconsciente, estavam evitando perceber os sentimentos


agressivos inconscientemente presentes em seu relacionamento.
Ao investigar a extensão em que eles seriam capazes de reconhecer este conluio inconsciente,
descobri que ambos estavam muito relutantes em explorar melhor sua dificuldade sexual. Ela
criticava muito minhas tentativas de tratar aspectos íntimos das relações sexuais no que ela
chamava de uma maneira "pública e mecânica", e ele concordava que, dada à relutância dela e à
aceitação dele dessa situação, ele não queria "inflamar artificialmente" seus conflitos sexuais.
Eram tão hábeis e mutuamente apoiadores no minimizar a importância de suas dificuldades
sexuais que tive de retornar às minhas anotações sobre as entrevistas individuais, para me
reassegurar do que eles me haviam dito a respeito de suas dificuldades sexuais.
Ao reafirmar sua imagem conscientemente mantida de um relacionamento ideal, eles
estabeleceram o que poderia ser chamado de um superego conjunto, colocando-me no papel de
um demónio tentador. Ambos expressaram não mais que o desejo de que eu apenas lhes desse
recomendações e regras de como deveriam tratar um ao outro para reduzir suas tensões e mútuas
recriminações e esperavam, assim, resolver suas dificuldades.
Nas sessões individuais que se seguiram a essas entrevistas conjuntas, aconteceu um novo
desenvolvimento. Ele deixou muito claro que não acreditava que sua mulher quisesse continuar
as entrevistas diagnosticas, e que, de fato, ela achava que eu estava contra ela e era mais uma
ameaça do que uma ajuda para o casamento. Ao mesmo tempo, continuou ele, seria aceitável
para ela se ele continuasse me vendo, para que eu pudesse tentar melhorar seu comportamento
em relação a ela. Disse que se eu realmente acreditasse que ele precisava de tratamento, ele estaria
disposto a fazer um tratamento sozinho. Perguntei qual seria o obje-tivo desse tratamento
individual, em contraste com o trabalho conjunto para "resolver" seu relacionamento conjugal;
disse que o objetivo seria tratar sua depressão e sua indiferença às relações sexuais, que era tão
diferente de seu comportamento antes do casamento, além da sua incapacidade de relacionar-se
com esposa.
Encontros individuais com ela confirmaram sua desconfiança e ressentimento em relação às
entrevistas conjuntas. Sentia que, como homem, eu tendia a ficar do lado do seu marido, e que
exagerava a importância dos aspectos sexuais de seu relacionamento. Disse que se ele precisasse
de tratamento, isso estava bem para ela, mas que não estava mais disposta a continuar as
entrevistas conjuntas.
Finalmente resolvi recomendar tratamento individual para ambos; aceitei sua decisão de
não continuar as entrevistas conjuntas, e, em entrevistas individuais com ela, sugeri que avaliasse
com um outro terapeuta, sozinha, se suas reconhecidas dificuldades sexuais poderiam ter fontes
mais profundas e se ela poderia beneficiar-se de um tratamento adicional. Com certa relutância,
ela começou uma psicoterapia psicanalítica com uma mulher, que, entretanto, suspendeu depois
de alguns meses, achando que não era nem útil nem necessário.
Psicopatologia das Relações Amorosas 105

O marido fez um tratamento psícanalítico comigo nos seis anos seguintes. No curso dessa
análise, a natureza dos conflitos com a esposa/ os motivos de escolhê-la como parceira, a dinâmica
de sua depressão e inibição sexual foram esclarecidos e elaborados. Nos estágios iniciais da
análise, ele insistia repetidamente em que, independentemente de qualquer outro resultado,
jamais iria querer divorciar-se da esposa: sua convicção religiosa e seu background impediam um
passo desses. A investigação psicanalítica revelou como, por trás dessa declaração, estava proje-
tando em mim seu comportamento adolescente e rebelde em relação a ambos os pais,
particularmente as proibições dopai de qualquer relacionamento commuíhe-res fora de sua
comunidade cultural e religiosa. Eu, e a psicanálise em geral, representávamos uma ideologia anti-
religiosa, e ele estava em guarda contra isso.
Mais tarde, na medida em que conseguiu reconhecer este aspecto projetado de sua
personalidade, percebeu a moralidade dicotomizada, de "virgem-prostitu-ta", de sua adolescência,
e como ele identificava a noiva com a mulher latina católica idealizada que o lembrava de sua mãe.
Sua inibição sexual refletia a reativação deprofunda culpa pelo interesse sexual em suas irmãs, e a
percepção de sua esposa como uma mãe ideal, desapontada e desgostosa. Num estágio mais
avançado da análise, a culpa inconsciente pela agressão relacionada a frustrações anteriores com a
mãe, a raiva inconsciente por sentir que ela o negligenciava, e a culpa por uma doença séria e
com risco de vida que mãe tivera quando ele era pequeno (e pela qual se sentira
inconscientemente responsável), emergiram como temas maiores. Além disso, relacionada à
inibição de seus esforços competitivos no trabalho, a culpa inconsciente pelo sucesso nos
negócios que eleja obtivera emergiu como um novo elemento. Sentia que um mau casamento era
um preço justo a pagar por seu sucesso nos negócios, que inconscientemente representava um
triunfo sobre seu pai.
Estas múltiplas camadas de conflitos relacionados à culpa inconsciente haviam sido
expressadas em sua depressão, que foi gradualmente desaparecendo nos primeiros dois anos de
tratamento. Num estágio avançado de sua análise, a atua-ção de sua rebelião edípica, na forma de
um caso extraconjugal com uma mulher altamente insatisfatória, iluminou ainda mais seu
profundo medo de combinar um relacionamento terno e erótico com a mesma mulher. No quinto
ano da análise, desenvolveu um relacionamento com outra mulher. Esta mulher era eroticamente
responsiva e gratificante em termos culturais, intelectuais e sociais. Quando estava num estágio
inicial desse relacionamento, contou à mulher acerca da relação, atu-ando tanto uma agressão
retaliadora contra a mãe frustrante, como também um esforço inconsciente de dar à esposa, e a si
mesmo, mais uma chance de melhorar seu relacionamento. Ela reagiu com muita raiva e
indignação, apresentando-se à família como a vítima inocente da agressão dele, envenenando
assim, ainda mais, o relacionamento, e acelerando o seu fim. O paciente divorciou-se da esposa
e casou com essa mulher, um passo que também assinalou a resolução de sua inibição sexual. Uma
significativa melhora de seus traços de personalidade obsessivo-
106 Otto F. Kernberg

compulsivos coincidiu com essas mudanças. No final da análise, suas dificuldades


maiores haviam sido resolvidas. Um seguimento após cinco anos confirmou a es-
tabilidade dessa melhora e sua felicidade no novo casamento.
Temos aqui vários aspectos de patologia do superego: o mútuo reforço de
uma rígida idealização da expectativa consciente do casamento e dos papéis conju-
gais, provocou a confluência da identificação do casal com os valores culturais e
com a ideologia de um grupo social específico; seu ideal de ego mutuamente pro-
jetado e rigidamente adotado, proporcionou estabilidade com o sacrifício de suas
necessidades sexuais. A inconsciente projeção mútua de proibições contra a sexua-
lidade edípica e a integração dos sentimentos eróticos e ternos, facilitou a ativação
inconsciente de seus correspondentes relacionamento edípicos; suas interações atu-
ais mostravam uma crescente semelhança com seus relacionamentos passados com
as figuras edípicas.
No lado positivo, seu senso de responsabilidade e preocupação trouxe-os a
tratamento, mas os sentimentos de culpa subjacentes e seu conluio em manter a
idealização das visões de casamento conscientemente adotadas os impediu, como
casal, de acompanhar essa preocupação com a aceitação da oportunidade de mu-
dar seu presente equilíbrio. Ele provou ser o mais flexível, mas o próprio fato de
seu tratamento criou um desequilíbrio no relacionamento do casal que levou à sua
gradual destruição.

Patologia Severa do Superego

Passando agora do efeito sobre o casal de um superego normal ou com uma patologia relativamente moderada,
para o impacto de uma patologia severa do superego sobre a vida amorosa do casal, poderíamos começar dizendo
que quanto maior a patologia, maiores as restrições que o casal coloca sobre o que os parceiros acham tolerável. Uma
severa patologia do superego também é responsável por rígidas racionalizações da identificação com um superego
primitivo por parte de um ou ambos os parceiros, por "colecionar injustiças", por traições e vinganças assumidas, e
um afastamento hostil.
Além disso, uma severa patologia das funções do superego conduz a um comportamento indiferentemente
negligente e francamente hostil, que expressa níveis primitivos de agressão, a qual começa a dominar e amiúde
destrói o casal. Paradoxalmente, nos primeiros estágios da ativação dessa severa patologia do superego, a vida
sexual do casal pode florescer, por causa da negação das proibições edípicas inconscientes ou da expiação da culpa
inconsciente pelo sofrimento do casal. Uma interação sexual aparentemente livre e prazerosa pode obscurecer a
deterioração do relacionamento emocional.
Quando a patologia do superego é severa, precursores do superego, ao mesmo tempo idealizados e
persecutórios, limitam contra a integração do superego e facilitam a excessiva reprojeção de núcleos do superego no
parceiro, o que permite
Psicopatologia das Relações Amorosas 107

que um, ou ambos, tolerem em si mesmos uma contínua reencenação de padrões contraditórios de caráter. Um dos
parceiros acusa, critica e deprecia o outro e, através da identificação projetiva, inconscientemente induz esses
comportamentos no outro. Essas projeções podem refletir-se num distanciamento emocional defensivo entre os
parceiros, que evolui num período de meses ou anos. Às vezes, o casal pode simplesmente "congelar-se" numa posição
de distanciamento, que se reforça com o passar do tempo e conduz à eventual destruição ou colapso do relaciona-
mento amoroso. Outras vezes, esse distanciamento permite a preservação da intimidade do casal em algumas áreas.
Esse distanciamento crónico, mas controlado, interfere na intimidade do casal e em suas estabilizadoras
descontinuidades comuns. Desenvolvimentos secundários podem incluir uma racionalização reativa do
comportamento agressivo de cada parceiro contra o outro. Frustrações mutuamente induzidas e sustentadas podem
então tornar-se uma racionalização para comportamentos que aumentam ainda mais a frustração e o
distanciamento, por exemplo, envolvimento num caso extraconjugal.
A expressão mais frequente de projeção do superego, todavia, é um dos parceiros vivenciar o outro como um
perseguidor implacável, uma autoridade moral que tem um prazer sádico em fazer o outro se sentir culpado e oprimido; e
o segundo parceiro vivência o primeiro como não-confiável, enganador, irresponsável e desleal, tentando "safar-se
impunemente". Esses papéis são muitas vezes intercambiáveis. Em consequência de mútuas identificações
projetivas, os parceiros podem ser altamente eficientes em reforçar ou mesmo induzir as exatas características que
temem no outro. Os relacionamentos sadomasoquistas persistentes, sem intervenções de "terceiros excluídos", são
provavelmente as manifestações mais frequentes de patologia severa do superego. Os relacionamentos podem ini-
cialmente permitir relações sexuais satisfatórias, mas com o passar do tempo as interações sadomasoquistas afetam
também o funcionamento sexual do casal.
Um casal consultou em virtude de constantes alterações violentas. Ele apresentava um transtorno de
personalidade misto, com características obsessivas, infantis e narcísicas; ela tinha uma personalidade
predominantemente infantil, com características histéricas e paranóides. Os sentimentos de insegurança dele no tra-
balho, de não ser capaz de satisfazer suas próprias expectativas de ser tão forte quanto o pai, refletiam-se no seu
comportamento com a mulher. Comumente atencioso, um tanto submisso a ela, ele precisava lutar com medos de
aproximar-se sexualmente da esposa. A rejeição dela à sexualidade, a menos que ele a abordasse de certas maneiras
limitadas, estabelecidas por ela, havia gradualmente restringido seus contatos sexuais e contribuído muito para a sua
ocasional impotência com ela.
Um apaixonado caso amoroso com uma colega do escritório havia temporariamente proporcionado a ele
sentimentos de bravura e realização sexual, mas fingidos por intensos sentimentos de culpa em relação à esposa (a
quem ele agora começara a ver como uma mãe dominadora, enganadora, provocadora de culpa e sádica). A mãe
alternava subserviência com violentos ataques de raiva dirigidos ao
108 Otto F. Kernberg

pai. O paciente começou então a alternar seu comportamento entre uma submissão culpada e gestos conciliatórios, com
periódicos episódios de ataques de raiva súbitos e infantis (quando gritava e quebrava pratos, com sua mãe fizera)
quando tentava, de maneira desajeitada e derrotista, emular o pai.
A esposa então sentia que ele a havia maltratado e abusado, uma repetição de sua experiência de ter sido
fisicamente abusada pelo pai. Tentando evitar o que sentira em sua infância como o humilhante comportamento de
uma mãe submissa, ela passou a protestar violentamente, envolvendo os vizinhos e familiares como testemunhas, e,
acima de tudo, sua própria mãe.
Numa tentativa inconsciente de provocar o marido a novas violências, depreciava seu desempenho sexual e
envolvia os dois filhos (em idade escolar) e outros conhecidos, para envergonhar o marido. No curso de uma violência
cada vez maior, numa ocasião ele finalmente bateu nela, o que prontamente a levou a acusá-lo de comportamento
abusivo às autoridades locais. Foi nesse ponto que a avaliação e o tratamento de casal foram recomendados.
Este relato ilustra identificações inconscientes, reprojeções de imagens parentais no parceiro conjugal, e,
acima de tudo, introjeções do superego com comportamentos de "colecionar injustiças", "indignações justificadas",
comportamentos fortemente racionalizados que servem para justificar a mútua perseguição, assim como a atuação da
culpa inconsciente devido a aspectos do relacionamento conjugal adulto que ambos julgam intolerável. O tratamento
psicanalítico da mulher revelou as origens de sua inibição sexual em tentativas inconscientes de recriar um
relacionamento sadomasoquista com um pai abusivo; o tratamento do marido revelou, por baixo de uma camada de
ambivalência em relação a uma mãe provocadora e rejeitadora, sua luta infrutífera com uma imagem de pai poderosa e
ameaçadora.
C a p í t u l o 8

O Amor no Setting Analítico

O Amor Transferencial

O setting analítico é o laboratório clínico que nos permitiu estudar a natureza do amor e suas múltiplas formas,
e a transferência, em conjunção com a contratransferência, é o veículo para o estudo dessas formas.
A principal diferença entre a situação edípica original e o amor transferencial é a possibilidade, em circunstâncias
ótimas, de investigar totalmente, na transferência, os determinantes inconscientes da situação edípica. Elaborar o
amor transferencial implica em elaborar a renúncia e o luto que normalmente acompanham a resolução da situação
edípica. Ao mesmo tempo, o paciente precisa aprender que a busca do objeto edípico será um aspecto permanente de
todos os seus relacionamentos amorosos (Bergmann, 1987). Isso não significa compreender todas as futuras relações
amorosas como derivadas unicamente da situação edípica; isso significa apenas que a estrutura edípica influencia a
moldura das novas experiências tanto para os indivíduos como para o casal.
Em circunstâncias ótimas, a experiência regressiva do amor transferencial e sua elaboração são facilitadas pela
natureza "como-se" da regressão transferencial (e pela subjacente força do ego implicada nessa possibilidade de
regressão limitada), bem como pela crescente capacidade do paciente de gratificação de seus anseios edípicos, através da
sublimação em um relacionamento real e amoroso recíproco. A ausência dessa reciprocidade diferencia nitidamente o
amor de transferência de um relacionamento amoroso fora do ambiente analítico, assim como a investigação consciente
dos conflitos edípicos o diferencia da situação edípica original. Poderíamos dizer que o amor transferencial se
assemelha ao amor neurótico, no sentido de que a regressão transferencial estimula o desenvolvimento de um
amor

109
110 Oito F. Kernberg

nãocorrespondido. Mas a resolução analítica da transferência, por sua vez, diferencia nitidamente o amor
transferencial da qualidade de atuação que tem o amor neurótico, na qual o amor não-correspondido aumenta o
apego em vez de resolvê-lo, através do luto.
A investigação psicanalítica do amor transferencial proporciona evidências de todos os componentes que fazem
parte do processo normal do apaixonar-se: a projeção em outra pessoa (o analista) de aspectos maduros do ideal de
ego; a relação ambivalente com o objeto edípico; as defesas contra (assim como o desdobramento) conflitos infantis
perversos polimorfos e conflitos genitais edípicos. Tudo isso se combina para provocar a experiência do amor
romântico matizado de desejos sexuais na transferência, mesmo que de modo relativamente breve e temporário. Esses
sentimentos são comumente diluídos por deslocamentos para outros objetos disponíveis na vida do paciente. Na
verdade, provavelmente não existe nenhuma outra área de tratamento psicanalítico, em que o potencial tanto para a
atuação como para experiências de crescimento estejam tão intimamente condensados.
O amor transferencial pode trair seus componentes neuróticos através de sua intensidade, rigidez e persistência
teimosa, particularmente quando sua natureza for masoquista. No oposto extremo, a ausência de evidências do amor
transferencial pode refletir ou fortes resistências sadomasoquistas contra um relacionamento edípico positivo, ou
uma transferência narcísica em que esses desenvolvimentos edípicos positivos ficam significativamente
reduzidos. A natureza do amor transferencial varia também conforme o género dos participantes, como foi ampla-
mente observado (Bergmann, 1971,1980,1982; Blum, 1973; Chasseguet-Smirgel, 1984a; Goldberger e Evans, 1985;
Karme, 1979; Lester, 1984; Person, 1985; Silverman, 1988).
Em resumo, as pacientes neuróticas em análise com analistas do sexo masculino, tendem a desenvolver típicas
transferências edípicas positivas — como evidenciam os casos descritos por Freud (1915) em seu clássico artigo
sobre o amor transferencial. Mas as mulheres com personalidade narcísica, em análise com analistas do sexo
masculino, não costumam desenvolver esse amor transferencial, ou o desenvolvem somente em estágios muito
avançados do tratamento, normalmente de forma bastante branda. As resistências narcísicas contra a dependência na
transferência, parte da defesa contra a inveja inconsciente em relação ao analista, impedem o desenvolvimento do
amor transferencial; a paciente vivência qualquer anseio sexualizado pelo analista como humilhante, como a fazendo
sentir-se inferior.
Os pacientes do sexo masculino, em análise com analistas do sexo feminino, normalmente mostram certo grau de
inibição em manifestar diretamente o amor transferencial e uma tendência a deslocá-lo para outros objetos; ao invés,
desenvolvem nosettmg analítico intensas ansiedades em relação à inferioridade ou insuficiência sexual como parte da
reativação de fantasias narcísicas infantis normais, referentes à mãe edípica. Conforme Chasseguet-Smirgel
(1970,1984b) salientou, o
Psicopfltoíogza das Relações Amorosas 111

medo inconsciente do garotinho de que seu pequeno pênis não seja capaz de satisfazer sua grande mãe é, aqui, uma
dinâmica significativa. Os pacientes narcisistas do sexo masculino, com analistas mulheres, muitas vezes apresentam o
que parece ser um intenso amor de transferência, mas que não passa de uma sedução sexualizada e agressiva,
refletindo a resistência transferencial contra sentir-se realmente dependente de uma analista idealizada. Este esforço
para reproduzir uma dupla cultural, convencional, do homem poderoso e sedutor perante uma mulher passiva e
idealizada, é a contrapartida da situação cultural convencional de um relacionamento sexualizado e dependente entre
apaciente neurótica e o seu analista do sexo masculino, assim como a reprodução, no último caso, do desejo edípico da
garotinha pelo pai idealizado.
Os pacientes que foram sexualmente traumatizados, particularmente as vítimas de incesto e os pacientes com uma
história de envolvimentos sexuais com seus terapeutas, devido à maior pressão, induzida pelo trauma para a
compulsão à repetição, podem tentar seduzir o analista e com suas demandas amorosas talvez dominando a
transferência por um período de tempo prolongado. A identificação inconsciente com o agressor desempenha um
papel importante nesses casos, e a cuidadosa análise do ressentimento raivoso do / a paciente pelo fracasso da resposta
do/a analista às suas solicitações sexuais, pode exigir muita atenção antes que o / a paciente sinta alívio e apreciação
pela manutenção do setting analítico.
As mulheres narcisistas, com fortes características anti-sociais, podem tentar seduzir sexualmente o analista no que
pode ser erroneamente compreendido como um amor transferencial edípico. Mas a agressão por trás de seus
esforços para corromper o tratamento geralmente está bem clara na transferência. Essas mulheres devem ser
distinguidas das mulheres masoquistas, que podem ou não ter uma história de abuso sexual e uma predisposição para
serem sexualmente abusadas e exploradas. A intensidade das transferências erotizadas em pacientes com uma
estrutura de personalidade histérica é um exemplo do clássico amor transferencial: uma idealização defensiva e
sexualizada do analista muitas vezes encobre uma agressão inconsciente significativa, derivada do desapontamento
edípico e da culpa edípica inconsciente.
As características neuróticas do amor de transferência estão evidentes não apenas na intensificação dos anseios
eróticos relativos ao amor não-retribuído: também estão presentes no desejo narcisista infantil normal de ser amado, mais
do que no amor adulto ativo pelo analista; no desejo de intimidade sexual como uma expressão simbólica de
anseios simbióticos ou de dependência pré-edípica; e na acentuação geral, defensiva, da idealização sexualizada
como uma defesa contra conflitos agressivos de muitas fontes. Os pacientes com uma organização de personalidade
borderline podem manifestar desejos particularmente intensos de serem amados, solicitações eróticas com fortes
esforços para controlar o analista, e eventuais ameaças de suicídio como uma tentativa de extrair à força o amor do
terapeuta.
O desenvolvimento do amor transferencial homossexual é semelhante em ambos os géneros, mas podem
emergir importantes diferenças na contratrans-
112 Otto F. Kernberg

f erência do analista. Os pacientes com psicopatologia neurótica podem desenvol-


ver intensos anseios homossexuais por seu analista do mesmo género, em que
convergem o complexo edípico negativo e conflitos pré-edípicos, de dependência
oral e conflitos anais; os elementos dos desejos sexuais podem ser investigados
após a sistemática análise das resistências contra a regressão transferencial.
Na patologia narcísica, as transferências homossexuais normalmente adqui-
rem as mesmas características exigentes, agressivas e controladoras das transfe-
rências narcísicas dos pacientes narcisistas do sexo masculino com analistas mu-
lheres, e de pacientes borderline e narcisistas anti-sociais do sexo feminino, com
analistas homens.
Como regre geral, a confortável tolerância do analista ao amor transferencial
positivo, sexualizado, do paciente neurótico, e a manutenção da moldura analítica
com o amor transferencial pseudopositivo da patologia narcísica, são exigências
essenciais para uma investigação e resolução analíticas completas de todos esses
desenvolvimentos. Por outro lado, vejo as vicissitudes da contratransf erência como
de central importância nesse processo.

Contratransferência

Embora a Contratransferência como importante fator na formuação das interpretações transferenciais


venha recebendo crescente atenção na literatura sobre a técnica psicanalítica, vê-se que muito mais foi
escrito sobre a Contratransferência agressiva do que sobre a Contratransferência erótica. A atitude
tradicionalmente f óbica em relação à Contratransferência, que mudou somente nas últimas décadas, ainda
opera em relação à resposta erótica do analista à transferência erótica do paciente.
Em geral, quando os sentimentos e fantasias eróticas na transferência são reprimidos, eles
normalmente evocam pouca resposta erótica na Contratransferência. Mas quando as fantasias e desejos
eróticos do paciente se tornam conscientes, a resposta contratransferencial do analista pode incluir
elementos eróticos que o alertam para a possibilidade de que o paciente esteja suprimindo conscientemente
tais fantasias e desejos. Quando as resistências contra a plena expressão da transferência diminuíram
significativamente, e o paciente vivência fortes desejos sexuais em relação ao analista, as respostas
contratransf erenciais eróticas podem tornar-se intensas, flutuando com a intensidade da transferência
erótica.
Minha ênfase aqui é nas flutuações da transferência: normalmente, mesmo as transferências eróticas
intensas aumentam e diminuem conforme o paciente desloca sentimentos e desejos transferenciais para
oportunidades de reprodução, atua-ção e/ou gratificação extra-analíticos de seus sentimentos sexuais.
Quando os desejos eróticos do paciente ficam centrados exclusivamente no analista, o aspecto de resistência se
torna muito evidente e o componente agressivo das solicitações sexu-
Pstcopatologia das Relações Amorosas 113

ais fica mais acentuado. Este desenvolvimento tende a diminuir a intensidade dos sentimentos
contratransferenciais eróticos.
Quando a identificação projetiva predomina sobre a projeção (isto é, quando o paciente atribui ao
analista sentimentos sexuais que reconhece em si mesmo, mas rejeitando-os como perigosos, enquanto tenta
controlar o analista para evitar um temido ataque sexual — em contraste com uma simples projeção de
impulsos inconscientes — a contratransferência erótica normalmente está ausente. De fato, uma estranha
discrepância entre as intensas fantasias sexuais projetadas por um paciente com transferência
erotomaníaca, e uma resposta contratransferencial re-fletindo apenas um sentimento de intimidação e
constrangimento por parte do analista, deve alertá-lo para a existência de severa patologia narcísica no
paciente ou profunda regressão na transferência.
Em minha experiência, a contratransferência erótica mais intensa provavelmente acontece em alguma
dessas três situações: (1) em analistas do sexo masculino tratando pacientes do sexo feminino, com
características masoquistas fortes (mas não borderliné) e que desenvolvem um amor sexualizado intenso e
"impossível" por um objeto edípico inacessível; (2) em analistas de ambos os géneros, com fortes
características narcísicas não-resolvidas; (3) em algumas analistas do sexo feminino, com fortes tendências
masoquistas, tratando pacientes homens, narcisistas, altamente sedutores. Algumas pacientes masoquistas são
capazes de provocar acentuadas fantasias de salvação em seu analista do sexo masculino, "persuadindo-o" a
tentar ajudá-las, apenas para provar ao analista o quão equivocado ou inútil é essa ajuda. Essas
persuasões podem tornar-se sexualizadas e manifestas na contratransferência como fantasias de salvação com
um forte componente erótico. Tipicamente, por exemplo, o analista homem pode perguntar-se: "Por
queseráque essa paciente tão atraente não consegue manter nenhum homem e está sempre sendo
rejeitada?" Desta pergunta para a fantasia contratransferencial "Eu seria um parceiro sexual muito
gratificante para esta paciente", é apenas um passo.
Descobri que é útil, com pacientes masoquistas com uma longa história de casos amorosos infelizes,
ficar atento aos momentos em que se desenvolvem essas fantasias de salvação ou uma contratransferência
erótica. Com muita frequência, essas seduções transferenciais—contratransferenciais culminam no paciente
compreender erroneamente, e subitamente ficar frustrado, desapontado ou zangado com os comentários do
analista, ou passar a fazer exigências súbitas e excessivas ao analista, que destroem instantaneamente o
desenvolvimento da contratransferência de salvação erotizada.
Também descobri ser útil para o analista, tolerar suas fantasias sexuais sobre o paciente e inclusive
deixar que se desenvolvam na narrativa de um relacionamento sexual imaginário. Rapidamente, a própria
fantasia do analista fará com que a ideia se evapore, em decorrência de sua percepção pré-consciente dos
aspectos " antilibidinais", autodestrutivos e rejeitadores de ajuda da personalidade do paciente; essa
abordagem facilitará uma interpretação da transferência mesmo antes de
114 Otto F. Kernberg

sua súbita mudança para aspectos negativos. Inconsistências nos arranjos do trata-
mento, solicitações para mudanças de horário, alegadas insensibilidades do analis-
ta a circunstâncias especiais, irresponsabilidade financeira e pagamentos atrasados
dos honorários do tratamento, são algumas das maneiras óbvias pelas quais são
encenadas as tentativas inconscientes do paciente de impedir, ou destruir, a possi-
bilidade de um relacionamento positivo estável com o analista. Atenção em relação
às narrativas contratransferenciais pode capacitar ao analista detectar essas ten-
dências antes que sejam encenadas no tratamento.
As intensas manifestações de transferência erótica devem ser diferenciadas
do desejo do paciente de ser amado pelo analista. Por baixo de esforços sedutores
conscientes ou inconscientes na transferência pode haver o desejo de tornar-se o
objeto de desejo do analista — tornar-se o falo do analista — com fantasias de
inferioridade física e castração. Eu, portanto, gosto de analisar não apenas as defe-
sas do paciente contra a plena expressão da transferência erótica, mas também a
natureza das próprias fantasias transferenciais. Sob o que parece um desejo de
relacionamento sexual com o analista, estão múltiplas transferências e significa-
dos. Uma intensa erotização frequentemente pode ser uma defesa, por exemplo,
contra transferências agressivas de muitas fontes, uma tentativa de escapar de
conflitos dolorosos acerca da dependência oral ou o estabelecimento de transferên-
cias perversas (o desejo de seduzir o analista para destruí-lo).
O analista que se sente livre para explorar em sua mente seus sentimentos
sexuais em relação ao paciente será capaz de avaliar a natureza dos desenvolvi-
mentos da transferência, e assim evitar uma negação defensiva de sua própria
resposta erótica ao paciente; deve, ao mesmo tempo, ser capaz de examinar o amor
transferencial sem atuar sua contratransferência, no que possa se configurar como
uma abordagem sedutora. A transferência erótica do paciente pode ser expressada
por comportamento não-verbal, pela erotização do relacionamento com o analista,
ao qual o analista deve responder investigando a natureza defensiva desta sedução
não-verbalizada, sem nem contribuir para uma erotização adicional da situação de
tratamento e nem rejeitar defensivamente o paciente.
A patologia narcísica não-resolvida do analista é provavelmente a maior cau-
sa de atuação da contratransferência, na forma de uma contribuição à erotização da
situação psicanalítica ou, inclusive, de uma ruptura da estrutura do ambiente psi-
canalítico. Ter relações sexuais com um paciente geralmente é, acredito, um sinto-
ma da patologia de cará ter narcísica do analista e uma correspondente patologia de
seu superego. Entretanto, às vezes também há uma dinâmica puramente edípica
envolvida, com o cruzamento de fronteiras do relacionamento analítico simbolica-
mente representando o cruzamento da barreira edípica. Talvez o fato de o analista
cruzar as fronteiras sexuais reflita uma atuação da patologia masoquista, um dese-
jo inconsciente de ser punido por uma transgressão edípica.
A investigação dos aspectos complexos e íntimos das fantasias eróticas do
paciente e de seu desejo de uma relação amorosa sexual com o analista, proporcio-
na uma oportunidade única para o analista compreender melhor a vida sexual do
Psicopatologia das Relações Amorosas 115

outro género. Aqui operam as dinâmicas homossexual e heterossexual, o complexo


de Édipo negativo e o positivo. Na medida em que o analista se identifica com as
experiências emocionais do paciente do outro género, a correspondente identifica-
ção, na contratransferência, com as experiências eróticas do paciente com outros
objetos heterossexuais também ativa a capacidade do analista para, e as resistências
contra, a identificação com os anseios sexuais do outro género. O analista do
sexo masculino, para ser capaz de estabelecer uma identificação correspondente na
coníratransferência, com o interesse de sua paciente por um outro homem, tem de
estar livre para alcançar sua própria identificação feminina. Quando esta paciente
vivência sentimentos sexuais em relação ao analista, ele pode obter um entendi-
mento muito melhor do desejo sexual de um membro do outro género, ao integrar
sua identificação correspondente com o desejo sexual da paciente, e sua identifica-
ção complementar como o objeto do desejo dela. Este entendimento por parte do
analista inclui uma ressonância emocional com sua própria bissexualidade, assim
como o cruzamento de uma fronteira de intimidade e comunicação que é alcançada
apenas nos maiores momentos de intimidade sexual de um casal.
A ativação de uma intensa e complexa contratransferência, que possa ser
tolerada e utilizada para o trabalho terapêutico, é exclusiva da situação psicanalí-
tica apenas porque há a proteção oferecida pelas fronteiras do relacionamento psi-
canalítico. Uma irónica confirmação da singularidade dessa experiência
contra transferencial pode ser o seguinte: embora os psicanalistas tenham uma opor-
tunidade única de estudar a psicologia da vida amorosa de pessoas do outro géne-
ro, este conhecimento e experiência tendem a evaporar-se quando se trata de en-
tender suas próprias experiências com este outro género, fora da situação psícana-
lítica. Isto é, fora da situação psicanalítíca, a vida amorosa do analista se toma
simplesmente humana...
Quando o paciente e o analista não são do mesmo género, a identificação
concordante, na contratransferência, depende da tolerância do analista aos seus
componentes homossexuais, prevalecendo os componentes heterossexuais na iden-
tificação complementar contra transferencial. Esta distinção fica obscurecida quan-
do pacientes do mesmo género do analista vivenciam um intenso amor
transferencial. Transferências homossexuais, e a resposta erótica do analista a essas
transferências, tendem a ativar conflitos pré-edípicos e edípicos, particularmente
com pacientes cujos conflitos e anseios homossexuais são expressados no contexto
de uma organização de personalidade neurótica. Se o analista pode tolerar seus
próprios componentes homossexuais, a investigação contra transferencial de sua
identificação com os pais edípicos deve ajudar a analisar as implicações edípicas
negativas dos sentimentos homossexuais do paciente. Isso raramente parece tor-
nar-se um problema maior, exceto com analistas que estão lutando contra uma
repressão conflitual de seus próprios anseios homossexuais, ou contra uma orien-
tação homossexual suprimida.
Os desenvolvimentos da transferência nos pacientes homossexuais com es-
trutura de personalidade narcisista, em tratamento com analistas do mesmo gene-
116 Otto F. Kernberg

ro, adquirem uma qualidade tão intensamente exigente e agressiva, que reduzem
ou eliminam as fortes respostas contratransferenciais homossexuais, e suas corres-
pondentes dificuldades. Naturalmente, a falta de ressonância sexual na
contratransferência de um analista do mesmo género de um paciente homossexu-
al, que sofre de uma severa patologia narcísica, também requer uma investigação
em termos de uma reação fóbica, possivelmente específica, por parte do analista,
aos seus impulsos homossexuais. O preconceito cultural mais forte contra a ho-
mossexualidade masculina pode representar, infelizmente, uma sobrecarga
contratransferencial maior para o psicanalista do sexo masculino.
A partir das observações precedentes, poderia parecer que as questões técni-
cas mais importantes na análise do amor transferencial são, primeiro, a tolerância
do analista ao desenvolvimento de sentimentos sexuais em relação ao paciente,
quer homossexuais quer heterossexuais, que exige liberdade interna do analista
para utilizar sua bissexualidade psicológica; depois, também, a importância de
analisar sistematicamente as defesas do paciente contra a completa expressão do
amor transferencial, adotando um percurso intermediário entre a relutância fóbica
em investigar as resistências contra a plena expressão da transferência sexual, e o
risco de se tornar sedutoramente invasivo; finalmente, a capacidade do analista de
analisar inteiramente a expressão do amor transferencial do paciente, e as reações
à frustração do mesmo, que inevitavelmente acontecerá. Assim, em minha opi-
nião, as tarefas do analista incluem abster-se de comunicar sua contratransferência
ao paciente (de modo a assegurar sua própria liberdade interna, para investigar
inteiramente seus sentimentos e fantasias), e integrar o entendimento obtido com
sua contratransferência em interpretações transferenciais em termos dos conflitos
inconscientes do paciente.
A experiência que o paciente tem da "rejeição" do analista como uma confor-
mação das proibições contra seus anseios edípicos, ou uma confirmação da humi-
lhação narcísica, além da inferioridade sexual e castração do paciente, deve ser
investigada e interpretada. Quando essas condições forem satisfeitas, períodos de
expressão aberta e livre do amor transferencial, edípico e pré-edípico, podem de-
senvolver-se na transferência e expressar-se, tipicamente, em intensidades flutu-
antes, conforme o crescimento emocional na vida sexual do paciente facilite seus
esforços para conseguir relações mais gratificantes na realidade externa.
O analista deve chegar a um acordo não apenas com as próprias tendências
bissexuais, conforme forem ativadas na contratransferência erótica, mas também
com outros conflitos infantis perversos e polimorfos, tais como as implicações sádi-
cas e voyeuristas das explorações interpretativas da vida sexual do paciente. Pro-
vavelmente também é verdade que, quanto mais satisfatória a vida sexual do ana-
lista, mais ele será capaz de ajudar o paciente a resolver suas inibições e limitações
nessa área essencial da experiência humana. Independentemente dos aspectos pro-
blemáticos do amor transferencial, acredito que a experiência singular que o traba-
lho psicanalítico proporciona, ao analisar este amor enquanto se é seu alvo tempo-
Psicopatologia das Relações Amorosas 117

rário, pode contribuir também para o crescimento emocional e profissional do ana-


lista.

Uma Ilustração Clínica

A Srta. A. era uma mulher solteira, no final da casa dos 20, encaminhada a
mim por seu clínico geral em virtude de depressão crónica, abuso de álcool e de
polissubstâncias, e um estilo de vida caótico, com instabilidade no trabalho e em
seus relacionamentos com os homens. Anteriormente já me referi a outros aspectos
de seu tratamento (veja o Capítulo 5). A Srta. A. me pareceu uma mulher inteligen-
te, calorosa e atraente, mas com uma aparência e trajes um tanto simples e negli-
gentes. Concluíra com sucesso seus estudos de arquitetura, e estivera empregada
em várias firmas de arquitetura, mas mudando frequentemente de emprego, como
gradualmente descobri sobretudo em função dos casos amorosos infelizes, com
homens que conhecia no trabalho. Tinha, pois, uma tendência a misturar trabalho
e relações pessoais, de maneira a prejudicar-se.
O pai da Srta. A., um proeminente homem de negócios, tinha conexões inter-
nacionais que exigiam frequentes viagens transoceânicas. Desde a morte de sua
primeira mulher, a mãe da paciente, quando esta estava com 6 anos de idade, ele
viajava sozinho, deixando a Srta. A. e seus dois irmãos mais velhos aos cuidados de
sua segunda esposa, com quem a paciente não se dava muito bem. A Srta. Á.
descreveu sua mãe de maneira idealizada e um tanto irrealista. Sentira um pesar
profundo após sua morte e que se transformara numa duradoura hostilidade em
relação à madrasta, com quem o pai casara, um ano depois. A relação com o pai,
que até então fora excelente, também deteriorou. Ele favorecia a nova esposa em
virtude do que considerava a injustificada hostilidade da Srta. A. em relação à
madrasta.
Durante a adolescência da Srta. A., sua madrasta pareceu satisfeita ficando
em casa e continuando seus compromissos sociais, enquanto a Srta. A. acompanha-
va o pai em suas viagens transoceânicas. Foi durante os anos escolares do segundo
grau que a Srta. A. descobriu os casos amorosos do pai com outras mulheres, e
ficou claro, para ela, que em suas viagens esses casos eram o foco maior de suas
atividades. A Srta. A. tornou-se a confidente do pai, e sentia-se conscientemente
emocionada e feliz por ele confiar nela. De modo menos consciente, ela sentia-se
triunfar sobre a madrasta.
Enquanto isso, durante a faculdade começou a tomar forma um padrão em
seu comportamento, que continuava até quando entrou em tratamento. Ela se apai-
xonava, tornava-se intensamente dependente, submissa e aderente, e invariavel-
mente era abandonada. Reagia então com profunda depressão e uma tendência a
recorrer ao álcool e tranquilizantes menores para superar a depressão. Experimen-
tou uma gradual deterioração em sua posição social, no exclusivo grupo social ao
118 Oito F. Kernberg

qual pertencia, pois desenvolveu a reputação de ser uma "presa fácil demais".
Quando um caso amoroso infeliz complicou-se, com uma gravidez indesejada e
um aborto induzido, seu pai ficou preocupado, o que levou o clínico geral da Srta.
A. a encaminhá-la para mim.
Minha impressão diagnostica foi a de uma personalidade masoquista, de-
pressão caracterológica e abuso sintomático de álcool e drogas. A Srta. A. mantivera
boas relações com algumas amigas durante muitos anos, era capaz de trabalhar
efetivamente na medida em que não se envolvesse em relações íntimas com ho-
mens no trabalho, e impressionou-me como basicamente honesta, preocupada con-
sigo mesma, além de capaz de estabelecer relações objetais profundas. Recomen-
dei psicanálise, e os seguintes desenvolvimentos aconteceram no terceiro e quarto
anos de seu tratamento.
A Srta. A. estivera envolvida por algum tempo com um homem casado, B.,
que deixara muito claro não estar disposto a abandonar a esposa para ficar com ela.
Ele se oferecera, todavia, para ter um filho com a Srta. A. e assumir a responsabili-
dade financeira por esta criança. A Srta. A. estava acalentando a ideia de engravidar
como uma maneira de cimentar seu relacionamento, e esperando que isso eventu-
almente consolidasse sua união. Em seu relacionamento comigo, repetidamente
descrevia suas experiências com B. de maneiras que o retratavam como sádico,
enganador e inconfiável e queixava-se amargamente dele. Mas quando lhe per-
guntei como ela entendia o fato de manter um relacionamento que descrevia nes-
ses termos, acusou-me de tentar destruir o que era, afinal de contas, o relaciona-
mento mais significativo de sua vida, e de eu ser impaciente, dominador e moralis-
ta.
Ficou gradualmente claro que ela estava me vivenciando como uma figura
paterna crítica, pouco simpática e de pouca ajuda, uma réplica de como sentia a
preocupação do pai em relação a ela. Ao mesmo tempo, estava repetindo na trans-
ferência seu padrão masoquista de relacionamento. O que me pareceu peculiar foi
que, embora descrevesse com muitos detalhes todos os seus argumentos e dificul-
dades com o amante, ela jamais descrevia os aspectos íntimos de sua relação sexu-
al, exceto dizer, de tempos em tempos, que era maravilhoso quando estavam jun-
tos na cama. Por alguma razão, eu não investiguei os motivos para essa discrepân-
cia entre sua abertura geral e esta reserva particular. Só lentamente percebi que
estava hesitando em explorar sua vida sexual, por causa da minha fantasia de que
ela iria imediatamente interpretar isso como uma invasão sedutora. Sentia uma
certa reação contra transferencial em mim, que ainda não compreendia inteiramen-
te.
Conforme analisei as funções de sua interminável repetição das mesmas
interações sadomasoquistas com B., descobri que ela estava com medo de que eu
ficasse com ciúme da intensidade de sua relação com ele. Ela ouviu minhas inter-
pretações — de que estava reproduzindo um relacionamento frustrante e auto-
destrutivo comigo, conforme ela o vivenciava com B. — como um convite para
uma submissão erótica a mim. Então fui capaz de compreender minha relutância
Psicopatologia das Relações Amorosas 119

anterior em investigar sua vida sexual como uma consciência intuitiva, de minha
parte, da sua desconfiança quanto às minhas intenções sedutoras em relação a ela.
Sugeri que estava com medo de compartilhar comigo os detalhes de sua vida sexual,
porque pensava que eu queria explorá-la sexualmente e persuadi-la a desenvolver
sentimentos sexuais em relação a mim.
Devo acrescentar que todos esses desenvolvimentos aconteceram numa at-
mosfera notavelmente não-erótica; pelo contrário, nessa época pareciam ocorrer
momentos de tranquila auto-reflexão, em meio a zangadas explosões contra seu
amante ou contra mim, em virtude de minha alegada intolerância ao seu relaciona-
mento com ele. Ela então começou a analisar nas sessões os aspectos sexuais do seu
relacionamento com B.. Fiquei sabendo que, embora desde o início fosse uma par-
ticipante voluntária em qualquer jogo ou atividade sexual proposta por B., e que
sua submissão lhe desse um prazer especial, ela não conseguia chegar ao orgasmo
na relação sexual, vivenciando a mesma inibição sexual que sentira com seus mui-
tos amantes anteriores. Somente quando um desses amantes, enraivecido, lhe ba-
tia, ela conseguira sentir uma excitação sexual completa e orgasmo.
Esta informação esclareceu um aspecto de seu comportamento atual com B.,
aderente mas provocador, seus esforços inconscientes de provocá-lo para que ele
batesse nela, de modo que ela fosse capaz de chegar à plena gratificação sexual. Seu
abuso do álcool e de tranquilizantes menores emergiu como uma maneira de apre-
sentar-se como impulsiva, descontrolada, exigente e queixosa—em contraste com
seu jeito doce e submisso habitual—ao mesmo tempo levando os homens à violên-
cia — com a possibilidade de gratificação sexual — e tornando-se pouco atraente
para eles. Retrospectivamente, seu abuso de álcool parecia uma maneira de expli-
car por que os homens eventualmente a rejeitavam. A culpa inconsciente pelas
implicações edípicas desses relacionamentos, gradualmente emergiu como uma
dinâmica maior.
A análise deste material acelerou o final do relacionamento com B.: a Srta. A.
deixou de ser tão regressivamente exigente, e confrontou B., de modo mais realista,
com as inconsistências de seu comportamento em relação a ela. Confrontado com
as alternativas propostas por ela para o futuro do relacionamento deles, ele decidiu
terminá-lo. No período de luto que se seguiu, surgiram pela primeira vez, na trans-
ferência, sentimentos eróticos conscientes em relação a mim. A Srta. A., que ante-
riormente desconfiara que eu estivesse tentando seduzi-la sexualmente, e me vira
como uma réplica de seu pai hipócrita, moralista e promíscuo, percebia-me agora
como muito diferente de seu pai. Sua imagem de mim passou a ser a de um homem
idealizado, amoroso, protetor, mas sexualmente responsivo, e ela expressou livre-
mente seus sentimentos eróticos em relação a mim, que integravam fantasias e
desejos ternos e sexuais. Eu, por minha vez, tendo-a vivenciado antes como uma
mulher tanto sem graça, desenvolvia agora fantasias contratransferenciais eróticas
durante as sessões, juntamente com o pensamento de que era realmente notável
que uma mulher tão atraente não tivesse sido capaz de manter nenhum relaciona-
mento permanente com um homem.
120 Oito F. Kernberg

A Srta. A., em meio à aparente liberdade para expressar suas fantasias de


uma relação amorosa comigo — em cujo contexto ela imaginava predominante-
mente interações sexuais sadomasoquistas —, também ficou altamente sensível a
qualquer mínima frustração nas sessões. Se tivesse de esperar alguns minutos, ou
se um horário precisasse ser mudado, se por alguma razão eu não pudesse acomo-
dar uma mudança solicitada por ela, ela ficava muito magoada—primeiro "depri-
mida", e depois muito zangada. Humilhada por minha ausência de resposta aos
seus desejos sexuais, ela acusou-me de ser frio, insensível e sadicamente sedutor.
Imagens das relações descuidadas de seu pai com várias mulheres, durante as
viagens deles, quando ele a usava para proteger-se das suspeitas de sua segunda
esposa, emergiram como um tema significativo: eu era tão sedutor e não-confiável
quanto seu pai, e a estava traindo com minhas relações "descuidadas" com minhas
outras pacientes e minhas colegas do sexo feminino.
O intenso afeto dessas recriminações, sua atitude acusadora, autodepreciativa
e ressentida, uma réplica de suas dificuldades com os homens, e a abertura de um
aspecto de seu relacionamento com o pai que fora anteriormente reprimido, tam-
bém conduziu a uma mudança em minha contratransferência. Paradoxalmente,
me senti mais livre para investigar minhas fantasias contratransferenciais, que
variavam de interações sexuais repetindo suas fantasias sadomasoquistas até como
seria viver com uma mulher como a Srta. A. Minhas fantasias sobre interações
sexuais sadomasoquistas também reproduziam o comportamento agressivo dos
homens em relação a ela, que ela, no passado, tendia inconscientemente a induzir
neles. Minhas fantasias culminaram no claro reconhecimento de que ela continua-
ria provocando situações de frustração de suas necessidades de dependência, com
suas recriminações zangadas escalando até interações violentas, e manifestações
públicas de depressão e raiva. Ela iria apresentar-se como minha vítima, o que
inevitavelmente destruiria nosso relacionamento.
Quando utilizei esse materialcontratransferencial em minhas interpretações
destes desenvolvimentos na transferência, ficaram aparentes os profundos senti-
mentos de culpa da Srta. A. pelos aspectos sexualizados do relacionamento comi-
go. Em contraste com queixas anteriores sobre sentir-se rejeitada e humilhada em
virtude de minha ausência de resposta amorosa a ela, agora estava ansiosa, culpa-
da e chateada por seus desejos de seduzir-me, e evocou uma imagem idealizada da
minha mulher (sobre quem ela não tinha nenhuma informação ou conhecimento).
Percebi, em retrospecto, que minha resistência a investigar anteriormente minhas
fantasias contratransferenciais haviam-me impedido de segui-las numa direção
que tornaria muito mais clara a autodestrutividade masoquista dos desejos eróti-
cos da Srta. A. por mim. Diria que minha contra-identificação inconsciente com seu
pai sedutor interferiu em minha liberdade de analisar minha contratransferência
erótica e de, portanto, poder perceber melhor o padrão transferencial masoquista
que ocorria. Também penso que minha resistência contra meus próprios impulsos
sadomasoquistas inconscientes em resposta à Srta. A., desempenhou um papel
Psicopatologia das Relações Amorosas 121

neste processo. As fantasias sexuais da Srta. A. sobre seu pai, o fato de senti-lo no
passado como provocador, mas sexualmente rejeitador, tornaram-se então um con-
teúdo dominante da análise.
No contexto de nossa investigação dos profundos sentimentos de culpa que
agora ligavam a imagem da minha mulher, à imagem idealizada de sua própria
mãe, a Srta. A. percebeu que se defendera contra esses sentimentos de culpa divi-
dindo a imagem da mãe na mãe morta, idealizada, e na madrasta temida e depre-
ciada, representada pelas suas rivais, as outras mulheres na vida dos homens que
ela jamais poderia ter exclusivamente para si. Este entendimento também ajudou
a esclarecer sua seleção inconsciente de homens "impossíveis", e a proibição in-
consciente da gratificação sexual plena, a não ser em condições de sofrimento físico
e mental.
A Srta. A. finalmente estabeleceu um relacionamento com um homem que de
muitas maneiras era mais satisfatório do que seus amantes anteriores, tanto em
termos de não estar envolvido com uma outra mulher naquele momento, quanto
por pertencer ao seu próprio ambiente social (do qual, em virtude de seu turbulen-
to estilo de vida, ela se sentira banida). Seguiu-se um longo período de análise, no
curso do qual pudemos explorar com maiores detalhes as fantasias e medos em seu
relacionamento com C. Conseguiu falar bastante sobre o relacionamento sexual
deles, e pudemos examinar seus sentimentos de culpa em relação a mim—tendo-
me abandonado como seu objeto de amor — e ao mesmo tempo de triunfo sobre
mim, num relacionamento sexual que, em sua fantasia, era mais satisfatório do que
qualquer relacionamento que eu tivesse nesse momento. Em outras palavras, uma
relação amorosa altamente satisfatória na realidade externa, também tinha a fun-
ção transferencial de elaborar um processo de luto comigo, que repetia o luto e a
nova reconciliação referentes ao relacionamento ambivalente com seu pai.
C a p í t u l o 9

Patologia Masoquista e
Relações Amorosas

Masoquismo: um Resumo Geral

Em minha opinião, o masoquismo pode ser descrito como um amplo


campo de fenómenos, tanto normais quanto patológicos, centrados
numa auto-destrutiyidade motivada e num prazer consciente e/ou
inconsciente com o sofrimento. É um campo de fronteiras imprecisas. Num
extremo, encontramos uma autodestrutividade tão severa que a auto-
eliminação, ou a eliminação da autoconsciência, adquire uma importância
motivacional central — Green (1983) chamou-o de o "narcisismo da
morte"—em que a psicopatologia masoquista se funde com a psicopatologia
associada à agressão primitiva e severa.
No outro extremo, uma sadia capacidade para o auto-sacrifício pela
família ou pelos outros, por um ideal, as funções sublimatórias da
disposição para sofrer determinada pelo superego não justificam que seja
considerado patológico. Nossa prolongada dependência infantil e a
necessária internalização da autoridade dos pais durante nossa demorada
infância e adolescência tornam quase impossível conceber um superego
que não inclua componentes masoquistas, isto é, alguma necessidade
inconscientemente motivada para o sofrimento e sua dinâmica
subjacente.
Entre esses dois extremos está um amplo espectro de psicopatologia
masoquista, cujos elementos comuns centram-se em torno de conflitos
inconscientes relativos à sexualidade e ao superego. No domínio do
masoquismo moral, é pago um alto preço para se conseguir prazer, a
transformação da dor em prazer erótico, a integração da agressão dentro do
amor, acontece na relação entre o self e um introjeto do superego. Em
virtude de sentimentos inconscientes de culpa, sofrer

122
Psicopatologia das Relações Amorosas 123

conforme a vontade de um introjeto punitivo é recuperar o amor do objeto e a união


com ele; desta maneira, a agressão é absorvida pelo amor.
A mesma dinâmica acontece também no masoquismo sexual, como uma
perversão específica: a experiência obrigatória da dor, submissão e humilhação
para obter gratificação sexual é a punição inconsciente pelas implicações edípicas
proibidas da sexualidade genital.
O masoquismo como parte da sexualidade infantil perversa polimorfa, como
vimos, constitui um aspecto central da excitação sexual, baseada na resposta po-
tencialmente erótica à experiência de discreta dor física e a simbólica transforma-
ção desta capacidade (transformar dor em excitação sexual) na capacidade de ab-
sorver e integrar o amor no ódio (Kernberg, 1991b). Conforme Braunschwieg e Fain
(1971,1975) enfatizaram, o objeto do desejo sexual é originalmente um objeto pro-
vocador, a mãe sensualmente estimulante e frustrante, e a excitação erótica, com
seu componente agressivo, é uma resposta básica a um objeto desejado, frustrante
e excitante.
Em circunstâncias ótimas, os aspectos dolorosos da excitação sexual são trans-
formados em prazer, excitação sexual aumentada e o sentimento de proximidade
em relação ao objeto erótico. A internalízação do objeto erótico, o objeto de desejo,
também inclui as exigências feitas por esse objeto como uma condição para manter
o seu amor. A fantasia inconsciente básica poderia ser expressada assim: "Você
está me machucando, como parte de sua resposta ao meu desejo; eu aceito a dor
como parte do seu amor, ela cimenta a nossa proximidade, eu estou me tornando
como você ao apreciar a dor que me é infligida." As exigências do objeto também
podem ser traduzidas num código moral inconsciente, expressado na fantasia in-
consciente básica que poderia ser verbalizada assim: "Eu me submeto à sua puni-
ção porque, vinda de você, ela deve ser justa; eu a mereço para manter o seu amor,
e ao sofrer eu mantenho você e o seu amor". As implicações agressivas da dor (a
agressão oriunda ou atribuída ao objeto desejado, e a reação raivosa à dor) são
portanto entrelaçadas ou fundidas com o amor, como uma parte indispensável da
excitação erótica, conforme acentuaram Braunschweig e Fain (1971) e Stoller (1991a),
e como parte da "defesa moral" descrita por Fairbairn (1954).
Um caso ilustrativo é o de uma mulher com quarenta e poucos anos, com
uma estrutura de personalidade depressivo-masoquista, avançada em seu trata-
mento psicanalítico, durante o qual ela foi capaz de resolver sua incapacidade de
chegar ao orgasmo no intercurso com seu marido, após muitos anos de casamento.
Em uma sessão, ela desenvolveu a fantasia, na transferência, de que viria totalmente
despida para uma sessão, e que eu ficaria tão impressionado com seus seios e
genitais que tornar-me-ia um completo escravo de seu desejo; eu responderia fi-
cando sexualmente excitado e tendo relações sexuais com ela, e ela, por sua vez,
estaria disposta a tornar-se minha escrava e abandonar todas as suas responsabili-
dades para me seguir.
Filha única de uma mãe proibidora, que não tolerava nenhuma manifestação sexual
na filha, e de um pai caloroso, mas distante, que passara longos períodos de
124 Otío F. Kernberg

sua infância ausente de casa, ela imediatamente percebeu a conexão entre seu de-
sejo de uma relação sexual comigo e a rebelião contra a mãe, presente no desejo de
seduzir o pai e afastá-lo da mãe. Tornar-me seu escravo combinava o desejo de
minha total aceitação de seus genitais e de sua sexualidade, enquanto me punia por
ter preferido outras mulheres (sua mãe) e oferecia-se para a escravidão para expiar
a sua culpa. Mas ela também vivenciava a encenação da fantasia de escravidão
como uma expressão excitante da agressão, sem precisar temer seus efeitos inibidores
em seu prazer sexual. Pelo contrário, sentia que essa agressão aumentaria a grati-
ficação de total intimidade e fusão na reciprocidade da relação escravo e senhor.
Depois dessa sessão, conseguiu pedir ao marido, pela primeira vez, no meio de
uma relação sexual, para apertar com força seus mamilos, o que ele fez com intensa
excitação sexual, permitindo que ela, por sua vez, arranhasse suas costas até ele
sangrar, e ambos, pela primeira vez, chegaram a um intenso orgasmo juntos.
Ao analisar esta experiência, expressou a fantasia de que seu marido era como
um bebé faminto, frustrado, mordendo os seios da mãe, e que ela, podia gratificar
suas necessidades enquanto tolerava sua agressão, isto é, uma mãe poderosa, com-
preensiva e generosa. Ao mesmo tempo, sentia que também era uma mulher sexual
relacionando-se com seu marido-bebê (que assim não era um pai ameaçador) e
ainda assim vingando-se de um pai que a abandonara, e também do marido, que
lhe causara dor, fazendo com que ele também sangrasse. E sentiu que arranhá-lo
enquanto o abraçava, apertado, intensificou sua fusão e o sentimento de que podia
participar do orgasmo dele enquanto ele podia participar do dela. Esta mulher,
chegando ao final de sua análise, conseguiu articular importantes facetas da exci-
tação sexual e do desejo erótico normais.
A fusão com o objeto do desejo, entretanto, é estimulada em condições não
apenas de intensa excitação erótica e amor, mas também de extrema dor e ódio,
conforme proposto por Jacobson (1971). Quando as interações com a mãe são cro-
nicamente agressivas ou abusivas, frustrantes e provocadoras, a intensidade da
dor física ou psíquica do bebé pode não ser absorvida por uma resposta erótica
normal, ou pelos precursores sádicos, e ainda assim de protetores e confiáveis do
superego; em vez disso, esta dor é diretamente transformada em agressão. Com
base nas observações de Fraiberg (1982), Galenson (1983,1988), Herzog (1983),
Stoller (1975) e outros, Grossman (1986,1991) propôs que a dor excessiva é transfor-
mada em agressão, que a agressão excessiva distorce o desenvolvimento de todas
as estruturas psíquicas, e que além disto ela interfere com a capacidade de elabora-
ção da agressão na fantasia, em contraste com sua expressão direta no comporta-
mento. Poderíamos dizer também, com Green (1986), que a agressão excessiva
restringe o domínio da experiência psíquica inconsciente, por uma somatização
primordial e / ou pela atuação.
Em circunstâncias extremas, a agressão excessiva se reflete na auto-
destrutividade primitiva. Uma severa doença inicial, com dor prolongada, ataques
físicos e/ou sexuais, relações cronicamente abusivas e caóticas com um objeto
Psicopatologia das Relações Amorosas 125

parental, tudo isso pode se refletir em severa destrutividade e autodestrutividade,


produzindo o síndrome do narcisismo maligno (Kernberg, 1992). Este síndrome se
caracteriza por umse/f grandioso patológico, infiltrado com agressão, que reflete a
fusão do selfcom o objeto sádico. A fantasia poderia ser descrita assim: "Eu estou
sozinho com meu medo, raiva e dor; ao tornar-me unido com meu torturador,
posso proteger-me ao destruir a mim mesmo ou à minha autoconsciência; agora
não preciso mais temer a dor ou a morte, porque ao infligi-las a mim mesmo ou aos
outros, me torno superior a todos os outros que induzem ou teme essas calamida-
des."
Em circunstâncias menos extremas, o objeto sádico, e a fusão com ele refleti-
da no desejo moralmente carregado de destruir a si mesmo. A convicção delirante
da própria maldade, na depressão psicótica, o desejo de destruir o se//mau fanta-
siado, e a fantasia inconsciente de reunir-se ao objeto amado através do auto-sacri-
fício, podem também refletir essas condições. Em condições ainda menos severas,
o sofrimento masoquista pode proporcionar um sentimento de superioridade moral;
os pacientes que "colecionam injustiças" representam tipicamente uma formação
de compromisso mais moderada do masoquismo moral.
Mas, se a agressão é absorvida pelo superego na forma da internalização de
um objeto de desejo punitivo, mas necessário, o masoquismo erótico também pode
"conter" a agressão, não nos aspectos usuais sadomasoquistas da excitação sexual,
mas na condensação da excitação sexual com uma total submissão ao objeto dese-
jado e o desejo de ser humilhado por esse objeto. O masoquismo como uma prática
sexual restritiva e obrigatória transforma a sexualidade infantil perversa polimorfa
comum numa "parafilia" ou perversão num sentido estrito; mas, pela mesma ra-
zão, pode proteger o desenvolvimento psíquico da infiltração geral da agressão no
superego, pela internalização do objeto sádico. Dois tipos de organização mental
são construídos separadamente, em alguns pacientes cujo abuso físico ou sexual
tenha sido mais limitado, ou quando o incesto ocorreu no contexto de outras rela-
ções objetais relativamente normais, ou quando a própria punição foi erotizada em
experiências reais de espancamento e interações relacionadas.
Uma perversão sexual, estabelecida cedo, poderia mais tarde ser reforçada
por defesas contra a ansiedade de castração e a culpa inconsciente derivada de
conflitos edípícos avançados e eventualmente "contendo" esses conflitos. Entre-
tanto, a ascendência de um superego rígido mas bem integrado, que internaliza a
moralidade sexual repressiva, pode contribuir para a transformação do masoquis-
mo sexual mais primitivo num masoquismo moral, transformando os significados
simbólicos da dor, submissão e humilhação sexuais, em sofrimento psíquico, sub-
missão ao superego, e atuação da culpa inconsciente num comportamento humi-
lhante ou autodestrutivo.
Em resumo, estou descrevendo três níveis de organização psíquica em que a
severa agressão primitiva é incorporada ao aparelho psíquico: autodestrutividade
primitiva, masoquismo erótico e masoquismo moral. Em todos os tipos, elabora-
126 Otto F. Kernberg

coes narcísicas secundárias de tendências masoquistas contribuem para que o su-


jeito racionalize e secundariamente defenda as manifestações caracterológicas e
comportamentais desses padrões masoquistas.
De modo ótimo, a agressão primitiva seria integrada como o elemento
sadomasoquista da excitação erótica, ou, se mais severa, seria contida por uma
perversão masoquista, sem necessariamente "contaminar" a estrutura geral de
caráter sob os efeitos de um desenvolvimento mais patológico do superego. Mas o
fracasso do masoquismo erótico, mesmo de uma perversão masoquista, em execu-
tar essas funções de continente, predisporia então o indivíduo ao masoquismo
moral. O próprio masoquismo moral, dentro de uma estrutura de superego exces-
sivamente severa, mas bem integrada, poderia limitar os efeitos autodestrutivos
do masoquismo, de fato contendo-o. A agressão excessiva, contudo, avançando
primeiro da autodestrutividade primitiva para uma perversão sexual mais tarde,
e em desenvolvimentos de personalidade sadomasoquista ainda mais adiante, pode
apresentar os casos mais severos de personalidades masoquistas em que coinci-
dem a perversão sexual, a severa patologia narcísica e as características de persona-
lidade sadomasoquistas com significativa autodestrutividade.

Masoquismo nos Homens e nas Mulheres


Como todas as perversões sexuais, o masoquismo é mais frequente nos ho-
mens do que nas mulheres (Baumeister, 1989). Emprego o termo perversão para
referir-me à obrigatória e exclusiva organização do comportamento sexual, sob o
domínio de um impulso instintualparcial. Embora os achados de estudos empíricos
nos Estados Unidos e Europa variem amplamente (Kinsey e colaboradores, 1953;
Hunt, 1974; Greene e Greene, 1974; Spengler, 1977; Scott, 1983; Weinberg e Kammel,
1983; GBaumeister, 1989; Arndt, 1991), parece que de cinco a dez por cento da
população adulta americana habitualmente pareciam algum tipo de atividade se-
xual masoquista. Aparentemente, existem variações culturais tanto em relação à
prevalência do masoquismo como uma perversão em si, quanto à forma dominante
que ele assume.
Há semelhanças e diferenças nas fantasias e atividades sexuais masoquistas
entre homens e mulheres. As fantasias e atividades sexuais dos homens, expres-
sando o desejo de ser dominado, provocado, excitado e forçado a submeter-se a
uma mulher poderosa e cruel como uma exigência para o orgasmo, são a
contrapartida das fantasias e atividades femininas de ser humilhada ao exibir-se
para os outros, e ser estuprada por um homem poderoso, perigoso e desconhecido.
Baumeister (1989) nos diz que o masoquismo masculino normalmente envol-
ve uma dor maior, uma ênfase mais acentuada na humilhação, na infidelidade do
parceiro sexual, na participação da audiência e no travestismo. O masoquismo
feminino, em contraste, envolve dor mais frequente, mas de menor intensidade,
punição no contexto de um relacionamento íntimo, exposição sexual como humi-
Psicopatologia das Relações Amorosas 127

Jhação e a não-participação da audiência. O masoquismo masculino normalmente


culmina no orgasmo, excluindo o intercurso sexual, ao passo que o masoquismo
feminino normalmente culmina no sexo genital, embora menos consistentemente,
no orgasmo.
O entendimento psicanalítico ajuda a esclarecer essas diferenças num nível
edípico, a dinâmica central do masoquismo sexual e da perversão em geral envolve
uma intensa ansiedade de castração relacionada a intensos aspectos agressivos de
conflitos edípicos (que também podem incluir uma significativa agressão pré-
edípica), e uma defensiva acentuação da sexualidade pré-genital como garantia
contra a ameaça de castração. A maior intensidade da ansiedade de castração nos
homens parece relacionar-se à maior frequência de perversões sexuais neles.
McDougall (comunicação pessoal) chamou atenção para a natureza mais primitiva
e difusa da ansiedade de castração nas mulheres, seu medo inconsciente de uma
destruição corporal geral, como principal dinâmica que explicaria suas diferentes
estruturas defensivas contra a ansiedade de castração.
Chasseguet-Smirgel (1984) descreveu perversões em pacientes com patolo-
gia borderline e a condensação da agressão pré-edípica com a ansiedade de castração
edipicamente determinada. A agressão pré-edípica intensifica, pela projeção, a
ansiedade de castração edípica. Chasseguet-Smirgel enfatizou a regressão à sexua-
lidade anal, nesses casos, como subordinada à negação inconsciente das diferenças
entre as gerações e os géneros, à idealização defensiva da perversão, à desvaloriza-
ção do intercurso genital e à deterioração geral das relações objetais.
As descrições de Chasseguet-Smirgel (1970,1984) e de Braunschweig e Fain
(1971) do desenvolvimento da situação edípica nos meninos e nas meninas, pro-
porcionam pistas mais específicas para as diferenças na natureza das fantasias no
masoquismo masculino e feminino. No caso dos homens, a dominação por uma
mulher poderosa reproduz as fantasias do envolvimento do garotinho com a mãe
poderosa e esmagadora, juntamente com a expiação da culpa pela transgressão
edípica e a fantasia narcísica de que seu pequeno pênis é tão satisfatório para a mãe
quanto o pênis dopai. As fantasias e atividades de travestismo integradas no ma-
soquismo masculino, o típico "masoquismo feminino" dos homens, tanto simboliza
quanto serve para negar a ansiedade de castração. Nas mulheres, a fantasia
inconsciente de ser o objeto sexual preferido de um pai poderoso, distante epoten-
cialmente ameaçador, mas também sedutor, se condensa com a expiação da culpa
ao ser forçada a submeter-se, ser sexualmente humilhada e abandonada. Em am-
bos os géneros, os cenários masoquistas enfatizam a qualidade provocadora das
interações sexuais ao mesmo tempo frustrantes e estimulantes, uma dinâmica bá-
sica de excitação sexual rastreável até a qualidade erótica do relacionamento mãe-
bebê (Braunschweig e Fain, 1971,1975). Esta qualidadeprovocadora pode emergir
diretamentenos cenários masoquistas masculinos, em seus relacionamentos com
as mulheres; os cenários masoquistas das mulheres, relacionados ao pai, também
podem ser condensados com uma relação masoquista com a mãe.
128 Otto F. Kernberg

Se o masoquismo como uma perversão sexual é mais frequente nos homens


do que nas mulheres, nada indica que o masoquismo moral seja mais frequente em
qualquer um dos géneros. Fatores psicodinâmicos e sociais podem contribuir para
esses achados. Acredito que seria razoável supormos que uma cultura paternalista
reforça o masoquismo caracterológico nas mulheres e componentes sádicos da se-
xualidade nos homens, reforçando portanto a sexualização do masoquismo nos
homens, enquanto fortalece sua transformação em padrões caracterológicos nas
mulheres. Conforme autoras feministas (Thompson, 1942; Mitchell, 1974; Benja-
min, 1986) salientaram, é importante diferenciar a opressão objetiva do prazer in-
consciente em relacionamentos de submissão, embora um fator possa complemen-
tar o outro. A opressão objetiva pode deformar os padrões de prazer. Os padrões
culturais podem, por exemplo, reforçar padrões sádicos nas mulheres com identi-
ficações masculinas: existem estereótipos culturais para serem usados nas fantasi-
as do género. Além disso, a ideologia pode ser utilizada para racionalizar a origem
inconsciente da estrutura de caráter.
As características clínicas da personalidade depressivo-masoquista (Kernberg,
1992) podem ser encontradas tanto nos homens quanto nas mulheres, mas elas
tendem a cristalizar-se em diferentes situações de vida. Em minha experiência, as
relações amorosas masoquistas são mais frequentes nas mulheres do que nos ho-
mens; mas a submissão masoquista no local de trabalho, é provavelmente mais
frequente nos homens do que nas mulheres. Acredito que os terapeutas do sexo
masculino, em especial, podem subestimar a extensão em que os padrões maso-
quistas nos comportamentos submissos dos homens acontecem no local de traba-
lho. Novamente, a discriminação objetiva contra as mulheres no local de trabalho,
deve ser distinguida da submissão difundida, culturalmente adaptativa, à autori-
dade e poder dos homens. Além disso, conforme exploramos em profundidade a
atitude dos homens com referência às relações amorosas, emergem elementos
masoquistas inconscientes significativos por trás da superfície "sádica" socialmente
adaptativa. E a investigação do relacionamento das mulheres com o estudo,
profissão, trabalho e vida social, revela elementos masoquistas significativos (por
exemplo, com relação ao abandono prematuro da competição e as oportunidades
de progresso perdidas).
A literatura psicanalítica inicial, talvez mais bem representada pelaPsychology
ofWomen, de Deutsch (1944-45), enfatizava a maior predisposição das mulheres ao
masoquismo, relacionando-o a fatores biológicos tais como a menstruação, e ex-
pressados numa crença inconsciente da castração, também presumivelmente se
refletia nos dolorosos aspectos do parto; pressupunha-se uma estreita relação entre
feminilidade e passividade, assim como características subdesenvolvidas do
superego feminino. Essas visões iniciais foram desde então fortemente repudiadas
(Stoller, 1968; Chasseguet-Smirgel, 1970; Mitchell, 1974; Schafer, 1974; Blum, 1976;
Chorodorow, 1978; Person, 1983). Desenredar a influência dos estereótipos cultu-
rais, a adaptação a desafios sociais e culturais específicos, comprometimentos
Psicopatologia das Relações Amorosas 129

ideológicos, dinâmicas inconscientes e predisposições biológicas relativas ao ma-


soquismo moral permanece ainda uma tarefa inacabada.

Relações Amorosas Masoquistas

Nas mulheres com personalidades depressivo-masoquistas, as relações amo-


rosas masoquistas são geralmente elas mesmas a psicopatologia dominante.
Frequentemente, em algum momento da adolescência, o apaixonar-se por um ho-
mem idealizado, inacessível, frustrante ou profundamente desapontador, torna-se
uma experiência que influencia a futura vida amorosa. Apaixonar-se por homens
"inacessíveis" pode levar a encontros românticos em situações irrealistas, que ter-
minam em desapontamento, ou a fantasias românticas mantidas durante muitos
anos, relativas ao que poderia ter sido. Apaixonar-se por homens que não estão
disponíveis pode ser considerado uma manifestação normal da reativação de con-
flitos edípicos durante a adolescência, mas a persistência e, especialmente, a inten-
sificação do amor sentido, precisamente após ter ficado claro que ele não é
correspondido, é o que caracteriza esses relacionamentos particulares. Essas mu-
lheres não superam, gradualmente, a idealização dos homens não-disponíveis no
curso de futuros relacionamentos, que se tornam mais realisticamente seletivos —
característicos do desenvolvimento normal. Uma fixação no trauma as leva a inter-
mináveis repetições das mesmas experiências.
Mulheres com psicopatologia masoquista podem alternar medos e inibição
sexual, com envolvimentos sexuais impulsivos em circunstâncias frustrantes ou
mesmo perigosas. Por exemplo, uma paciente com wnbackground puritano e puni-
tivo referente a todas as experiências sexuais, e com várias relações amorosas com
homens nas quais resistira a qualquer intimidade sexual, teve seu primeiro rela-
cionamento sexual em um encontro casual com um homem cujas qualidades agres-
sivas e potencialmente ameaçadoras exerceram uma forte influência sedutora so-
bre ela.
Em seus encontros sexuais, as mulheres masoquistas com funções de superego
bem integradas e uma organização neurótica de personalidade, podem a princípio
vivenciar certo grau de inibição sexual, e depois, às vezes como que por acaso,
descobrir uma qualidade especialmente dolorosa, humilhante ou submissa em sua
interação sexual em torno do que se cristaliza uma perversão sexual. Quando uma
paciente com uma personalidade depressivo-masoquista estava tendo relações
sexuais com seu namorado, este, como parte da dominação simulada sobre ela,
torceu seu braço até ela sentir dor, e ela conseguiu ter um orgasmo pela primeira
vez. A experiência iniciou um padrão de relações sexuais masoquistas, em que
seus braços tinham de ser amarrados atrás de seu corpo para proporcionar-lhe a
máxima excitação e orgasmo.
Novamente, comparando este desenvolvimento com a integração normal das
fantasias e experiências sadomasoquistas, as experiências sexuais iniciais trauma-
130 Otto F. Kernberg

ticas podem dar origem a fantasias masoquistas que


acompanham e facilitam o intercurso sexual no contexto
de relações amorosas e interações sexuais gratifican-tes.
As fantasias masturbatórias, em especial, podem
perpetuar o que chega a ser um cenário masoquista
autolimitado, oriundo da iniciação adolescente precoce à
atividade sexual. A novela romântica "gótica", um
género de cultura de massa destinado às mulheres (e
tão em contraste com as novelas pornográficas-padrão
destinadas aos homens), normalmente se centra no
relacionamento de uma jovem inexperiente com um
homem f arnoso, inacessível, geralmente desacreditado e
não-confiável, atraente, mas ameaçador ou perigoso.
Contra todas as probabilidades e após numerosos
desapontamentos e fracassos, a heroína é finalmente
abraçada pelo grande homem (cujas qualidades
positivas foram reconfirmadas), desmaia em seus
braços, e a história termina.
As típicas fantasias e experiências masculinas tipo "virgem-prostituta" da
adolescência inicial são grandemente exageradas quando influenciadas
pela psicopatologia masoquista. Tipicamente, um "amor impossível" envolve
a extrema idealização de uma mulher adorada, disponível ou não, com uma
inibição em relação a ela que interfere com o estabelecimento de um
relacionamento com esta figura, e a atividade sexual do homem fica restrita
a fantasias masturbatórias a respeito de relações sexuais com mulheres
depreciadas ou envolvimentos sexuais que podem incluir aspectos sádicos e
que são vivenciados como frustrantes, vergonhosos ou degradantes. A
idealização é acompanhada por inibição e falta de afirmação como homem,
uma tendência inconsciente a deixar o campo para os rivais ou a provocar
condições para fracassar.
Tanto nos homens quanto nas mulheres, o amor não correspondido aumenta o
amor, ao invés de diminuí-lo, como costuma acontecer no luto sadio. Durante
um período de anos, podemos observar em homens e mulheres masoquistas
uma tendência a submeter-se excessivamente a um parceiro idealizado, e a
minar inconscientemente o relacionamento por esta mesma submissão,
enquanto são descartados as possibilidades de outros relacionamentos,
potencialmente muito mais gra-tificantes.
Por que longas cadeias de casos amorosos infelizes, ao longo de muitos anos,
são mais constantes nas mulheres do que nos homens, é frequentemente
explicado apontando-se as pressões culturais que reforçam, e inclusive
induzem e facilitam, o comportamento auto-sabotador nas mulheres, as
limitações criadas pela exploração económica das mulheres, as gravidezes
indesejadas e o reforço cultural do comportamento sádico nos homens.
Embora essas sejam, na verdade, influências poderosas, é igualmente
importante a capacidade, mais precoce nas mulheres do que nos homens, para
desenvolver uma relação objetal profunda no contexto de um relacionamento
sexual (derivada da mudança da garotinha da mãe para o pai na iniciação do
período edípico), em contraste com o apego persistente e a intensa
ambivalência do garotinho em relação ao objeto primário. A capacidade mais
precoce da mulher para o comprometimento numa relação amorosa e seus
apegos masoquistas podem, então/ reforçar-se mutuamente.
Psicopatologia das Relações Amorosas 131

As nítidas diferenças iniciais no desenvolvimento psicossexual nos meninos


e nas meninas se atenua na idade adulta. Talvez as maiores diferenças entre os
homens e as mulheres emerjam no final da adolescência e no início da idade adulta,
quando as mulheres têm de integrar sua nova consciência da menstruação, parto e
maternidade, enquanto os homens têm de chegar a um acordo com sua intensa
ambivalência em elação à mãe, o objeto primário não-modificado. Conforme exa-
minamos as relações amorosas dos pacientes em seus 30 e 40 anos, em contraste
com as relações nos 20 anos e antes, as diferenças entre a patologia masoquista de
caráter e as vicissitudes comuns da vida se tornam mais nítidas.
Um médico enamorado de sua linda e criativa esposa artista encorajou-a a
desenvolver relacionamentos estreitos com outros artistas (do sexo masculino),
enquanto submergia em sua vida profissional a ponto de as necessidades emocio-
nais da esposa ficarem cada vez mais frustradas. Quando ela o abandonou por um
de seus amigos artistas, ele mergulhou numa severa depressão, dizendo-se disposto
a até tolerar que ela tivesse casos com outros homens. A investigação analítica
revelou que, inconscientemente, a culpa não-resolvida por uma intensa rivalidade
com o pai edípico, e um desejo relacionado de submeter-se sexualmente a ele,
levou-o a empurrar sua mulher para outros homens, enquanto se identificava com
ela. Ele idealizava intensamente as mulheres inacessíveis, representando a mãe
que morrera no início da sua infância, e recriava, inconscientemente com a esposa,
a relação fantasiada com a mãe perdida.
E importante diferenciar as personalidades predominantemente masoquis-
tas, com o reforço narcisista secundário dos padrões masoquistas das personalida-
des narcísicas, cuja caótica vida amorosa pode assemelhar-se aos padrões maso-
quistas. As personalidades predominantemente narcísicas tendem a idealizar par-
ceiros potenciais quando eles parecem inacessíveis, e então os desvalorizam quan-
do eles se tornam acessíveis, tendo grande dificuldade de tolerar as frustrações e
ambivaíências comuns de todas as relações amorosas. As personalidades maso-
quistas buscam parceiros altamente idealizados, potencialmente inacessíveis, mas
possuem uma capacidade para relações objetais profundas, especialmente quando
essas relações são com parceiros frustrantes e sádicos. Clinicamente, entretanto,
complexas combinações tornam estas diferenças, prognosticamente importantes,
difíceis de avaliar na coleta inicial das histórias (Cooper, 1988). No curso do trata-
mento psicanalítíco, as personalidades narcísicas que sofriam de uma incontrolável
promiscuidade sexual podem desenvolver relações amorosas masoquistas em con-
sequência da dissolução do se//grandioso patológico: o comprometimento maso-
quista pode ser vivenciado como um alívio do isolamento anterior.
Até o momento, mencionei padrões masoquistas individuais. No inconscien-
te do casal, o conluio entre os parceiros pode transformar um relacionamento
satisfatório num pesadelo. Com muita frequência, a mútua projeção das exigências
e proibições do superego sádico é reforçada por um mútuo comportamento provo-
cador de culpa, conforme os parceiros se identificam com seus próprios íntrojetos
de superego sádico. Um ou ambos os parceiros frequentemente mostram uma ten-
132 Otto F. Kernberg

dência a submeter-se cronicamente, por uma culpa irracional, às exigências impos-


síveis do outro, e depois a rebelar-se contra essas exigências de maneiras potenc-
almente autoprejudiciais.
Um marido um tanto dependente era casado com uma mulher com persona-
lidade depressivo-masoquista e uma depressão caracterológica severa, que facil-
mente se sentia menosprezada por ele e por outros parentes e amigos; submetidc
às exigências dela, ele tentava fazer com que os parentes e amigos tivessem mais
consideração pela esposa. Enquanto os outros o viam como um marido dominad:
ele se culpava por aquilo que considerava como deficiências suas em tomar a vida
mais tolerável para sua talentosa e hipersensível esposa. Ela, reforçada em sua
convicção de que ele a estava tratando mal (por seu comportamento culpado),
supôs que estava condenada a viver com um homem insensível. Projetar nele seus
sentimentos inconscientes de culpa lhe dava um temporário alívio da depressão.
Mas o fato de ele aceitar suas acusações, reconfirmava seus sentimentos de ter sido
prejudicada, alimentando ainda mais a depressão. Esta mulher estava reencenando
a submissão edípica a uma mãe sádica, que despertava culpa, inconscientemente
esperando ser salva por um pai poderoso e bom; mas ele reforçava sua submissão
à mãe, através de seu comportamento conciliatório.
Um homem com padrões auto-sabotadores antigos em seu trabalho, e uma
atitude paranóide crónica em relação às autoridades, era casado com uma mulher
forte e protetora, que sacrificara sua carreira para dedicar-se a um marido cujas
realizações ela admirava muito. Em casa, ele encontrava um refúgio seguro do
desprezo real e imaginado no trabalho, enquanto as necessidades dela de ser pro-
tetora eram gratificadas. Com o passar dos anos, entretanto, ela não pôde deixar de
ver como ele mesmo contribuía para a suas dificuldades, e, com medo da própria
exasperação pelo comportamento dele no trabalho (e sentindo-se culpada por não
satisfazer seu ideal de uma esposa perfeita), ela ficou ainda mais solícita, enquanto
se retraía socialmente. Ele, por sua vez, ficava cada vez mais dependente dela,
sendo reforçado em seu sentimento de que o mundo era injusto. Começou a ressen-
tir-se de sua crescente dependência, mas tinha dificuldade em formular esse res-
sentimento até para si mesmo, temendo perder o seu único apoio. A culpa dela por
ser inadequada e o medo dele de expressar suas frustrações gradualmente cresce-
ram, e ela começou a abusar de drogas para lidar com sua ansiedade o que final-
mente levou-os a tratamento.
Um outro padrão frequente é representado por aquilo que poderíamos cha-
mar de "barganhas masoquistas": um indivíduo, ou um casal, incoscientemente
sacrifica uma área importante da vida como um preço a pagar pelo sucesso e satis-
fação nas outras áreas. Jogar roleta russa com o destino, envolver-se numa situação
potencialmente ameaçadora que poderia destruir as maiores expectativas de vida,
é uma outra forma de atuar profundas necessidades masoquistas.
A roleta russa também pode ser jogada através do ataque incessante à pessoa
amada, provocando rejeição por parte do objeto amado, ao mesmo tempo em que
a pessoa espera que aquele amor ainda prevaleça. Uma mulher inteligente, traba-
Psicopatologia das Relações Amorosas 133

lhadora, criativa e atraente/ estava casada com um homem com características se-
melhantes. Ele era um jovem profissional batalhador, com problemas não-resolvi-
dos com a autoridade, uma tendência a desafiar o que via como figuras de pai
dominadores, e a "buscar cobertura" em mulheres poderosas e protetoras. Era
filho de um pai bem-sucedido e admirado, mas emocionalmente indisponível com
quem, inconscientemente, sentia que não podia competir. Ela, a filha de uma mu-
lher dominadora, hipocondríaca, profundamente insatisfeita, que tratava seu ma-
rido como um escravo e se intrometia na vida de todos os filhos casados, inconsci-
entemente reproduzia o comportamento da mãe no relacionamento com o próprio
marido.
Ela o criticava por sua excessiva dedicação ao trabalho e falta de atenção às
necessidades dela, e ele respondia alternando comportamentos culpados e longas
ausências do lar, reproduzindo, no processo, a indisponibilidade do pai. Ela, in-
conscientemente, conseguia reproduzir a atmosfera tensa e caótica que caracteriza-
ra a casa de seus pais, enquanto ele, sentindo-se derrotado porque, inconsciente-
mente, não podia competir com seu bem-sucedido pai, comportava-se de maneira
resignada. À intervenção terapêutica ocorreu logo antes de um rompimento peri-
goso em seu relacionamento que, com efeito, corresponderia à submissão maso-
quista da mulher à sua própria mãe internalizada, e teria confirmado simbolica-
mente o fracasso edípico dele.
As racionalizações ideológicas das escolhas masoquistas tem uma importante
função na perpetuação destes relacionamentos. A confirmação moral, ou mesmo a
superioridade, envolvidas na manutenção do relacionamento com um parceiro
sádico mas "inferior", tal como um cônjuge alcoolista ou um membro de uma
minoria perseguida, ou racionalizar a persistência de um relacionamento impossí-
vel "por causa das crianças", pode contribuir para sistemas defensivos que preci-
sam ser diferenciados das circunstâncias sociais ou económicas, objetivamente
limitantes, que impedem uma esposa maltratada de abandonar um relacionamento
impossível.
O uso dos filhos como uma justificativa para a perpetuação de um relaciona-
mento severamente masoquista é a contrapartida do adiar os filhos até que o reló-
gio biológico o impeça objetivamente, ou seja, um núcleo importante em torno do
qual os padrões masoquistas tendem a se consolidar. Uma mulher que, inconscien-
temente, conseguiu racionalizar o adiamento do casamento e dos filhos até chegar
aos quarenta e tantos anos, pode então desenvolver um sistema ideológico secun-
dário segundo o qual o fato de não poder mais ter filhos justifica sua infelicidade
para o resto da vida.
O estabelecimento de um sistema de valores conjunto do casal que possa
solidificar sua união e assegurar sua liberdade em relação ao meio cultural pode
ser infiltrado por sistemas ideológicos que racionalizam desenvolvimentos maso-
quistas em seu relacionamento. Tanto uma ideologia convencional tradicional das
tarefas femininas como restritas à "igreja, crianças e cozinha", quanto uma ideolo-
gia de liberação feminina, podem ser utilizadas em função de necessidades maso-
134 Otto F. Kernberg

quistas. Uma mulher pode/ por exemplo, rejeitar o estereótipo da feminilidade, e


com isso, os cuidados com a aparência e sua atratividade, ou pode racionalizar
uma provocação hostil em relação aos homens, que possui um propósito inconsci-
entemente auto-sabotador. A realidade de uma história passada de grave
vitimização, tal como violência física ou incesto, pode determinar, superficialmen-
te, um sentimento de ter direitos em função do antigosfaf ws de vítima, e, num nível
mais profundo, uma identificação com o agressor internalizado no superego, que
recria, vezes sem conta, a situação de maus tratos e perpetua a vitimização.

Desenvolvimentos Transferenciais
Entre as muitas maneiras pelas quais a patologia masoquista pode se apre-
sentar no tratamento psicanalítico, os seguintes exemplos ilustram frequentes de-
senvolvimentos na transferência. Uma idealização inicial do analista pode coinci-
dir, ao mesmo tempo, com o foco do paciente num objeto externo, mau, persecutório,
seguido pela incapacidade de deixar ou enfrentar este objeto mau. Tipicamente,
um homem pode estar envolvido com uma mulher que descreve como cronica-
mente frustrante, depreciativa, provocadora, exibicionista, mas é incapaz de deixá-
la, apesar da aparente análise das raízes inconscientes dessa disposição. De fato, o
paciente pode acabar ou queixando-se da incapacidade do analista de ajudá-lo com
a situação, ou defendendo este objeto supostamente mau, acusando o analista de
tentar destruir um relacionamento potencialmente bom. Assim, o analista ideali-
zado se transforma logo num objeto persecutório.
O analista, em outras palavras, se torna o objeto mau que ou deixa que o
paciente continue sofrendo num mau relacionamento, ou supostamente tenta des-
truir um relacionamento em que o paciente ainda investe muita esperança. A inter-
pretação desse desenvolvimento transferencial pode revelar uma patologia maso-
quista significativa, expondo a necessidade inconsciente do paciente de transfor-
mar um relacionamento potencialmente útil num relacionamento ruim, porque ele
não pode tolerar ser ajudado (expressando assim sua culpa inconsciente, e as ori-
gens masoquistas do deslocamento do ódio pelo suposto objeto mau para o objeto
bom. Muitas vezes, num nível mais profundo, estas transferência leva à investiga-
ção de uma agressão vingativa contra um objeto bom do passado, necessário, mas
frustrante. A identificação inconsciente com o agressor, à medida que o paciente
defende sua relação objetal passada, e a gratificação oculta por sua "superioridade
moral" como uma vítima sofredora, são outras características desse desenvolvi-
mento transferencial.
As reações terapêuticas negativas por culpa inconsciente são típicas no trata-
mento analítico de pacientes com um masoquismo grave. Por exemplo, uma paci-
ente me sentia como crítico, impaciente e domina dor, precisamente quando estava
ameaçada por seus próprios padrões auto-sabotadores e eu tentava interpretar sua
tentação de destruir novas oportunidades, com uma óbvia preocupação com os
Psicopatologia das Relações Amorosas 135

processos auto-destrutivos que ela estava gerando em sua vida. A mesma paciente
me sentia como cálido e compreensivo, quando eu não interferia, interpre-
ta tivamente, nos momentos em que ela se referia aos seus comportamentos auto-
sabotadores. Eventualmente consegui esclarecer e interpretar seu esforço inconsci-
ente para criar uma situação, na transferência, em que ela me contaria sobre as
terríveis condições da sua vida, enquanto eu escutaria cálida e empaticamente,
sem ser capaz de ajudá-la, conspirando assim com ela em sua autodestrutividade.
Ou então tentaria ajudá-la, momento em que ela me sentiria imediatamente como
um inimigo que a atacava. Na transferência, estava inconscientemente tentando
me transformar num introjeto maternal invejoso e sádico.
Os pacientes masoquistas podem sutilmente recusar-se a proporcionar infor-
mações completas sobre suas próprias contribuições para suas dificuldades, prote-
gendo assim suas atuações masoquistas. Novamente, o analista é colocado numa
posição em que ou simpatiza com o paciente, ou, se tenta avaliar objetivamente a
situação, pode ser imediata e zangadamente acusado de estar do lado do inimigo
do paciente. É importante interpretar que o paciente está inconscientemente colo-
cando o analista numa situação em que este está condenado a frustrar as necessida-
des do paciente.
Alguns pacientes masoquistas podem insistir em que estão piorando, que o
tratamento os está prejudicando, mas, justamente por isso, se recusam a considerar
a possibilidade de que o analista possa realmente ser incapaz de ajudá-los, e que
seria útil serem reavaliadas ou considerar uma mudança de terapeuta. Alguns
desses pacientes podem insistir que querem "este terapeuta ou nenhum", ou "este
tratamento ou o suicídio", indicando claramente sua fixação nesta experiência te-
rapêutica como uma situação prejudicial, cronicamente traumática, uma fixação
num objeto mau interno projetado no analista. Na contratransferência, o analista
pode sentir-se inclinado a terminar o tratamento com tais pacientes, e é extrema-
mente importante que este desejo contratransferencial seja transformado numa
análise sistemática do comportamento transferencial gerado para levar o analista
nesta direção.
Nos pacientes com uma perversão masoquista organizada, uma tarefa inicial
é analisar os aspectos defensivos da idealização de seu masoquismo sexual. Aqui,
nós encontramos frequentemente, no significado inconsciente da perversão e em
seu reflexo na transferência, uma pseudo-idealização do masoquismo sexual e do
analista. Esta pseudo-idealização reflete, num nível inconsciente, a substituição do
pênis genital por um pênis anal, fecal, uma regressão de um mundo edípico para
um mundo anal de relações objetais, e uma correspondente qualidade "como-se"
na transferência, refletindo a negação dos conflitos edípicos descritos por
Chasseguet-Smirgel (1984,1991). Este desenvolvimento requer uma especial aten-
ção aos aspectos "como-se" do material associativo e da transferência, uma dinâ-
mica particularmente proeminente nos homens. Nas mulheres, por trás das fanta-
sias masoquistas de ser estuprada por um homem sádico, encontramos
frequentemente a imagem inconsciente de uma mãe invasiva e fálica. Não surpre-
136 Otto F. Kernberg

endentemente, as mulheres com uma estrutura de personalidade masoquista tendem a ser


seduzidas em relações sexuais destrutivas com terapeutas aéticos, o que torna o subsequente
tratamento dessas pacientes por diferentes terapeutas ainda mais difícil. Por outro lado, as
mulheres com personalidade narcisista também podem querer seduzir o terapeuta como uma
expressão final de seu triunfo sobre ele.
O sentimento de proximidade, inclusive de fusão, na interação com um obje-to objetivamente
perigoso e sádico, no contexto de um cenário sadomasoquista, como sendo um aspecto essencial
das interações sexuais, normalmente aponta para uma grave traumatização e fixação pré-edípica
num objeto indispensável, embora trauma ti/ante. Os pacientes com essa dinâmica desenvolvem
fortes transferências sadomasoquistas com relativamente pouca erotização, em contraste com os
pacientes com intensa erotização na transferência, nos quais as fantasias sadomasoquistas refletem a
reativação inconsciente de uma cena primária edípica mais avançada. A identificação fantasiada
com ambos os pais no intercurso sexual, e a expiação masoquista da culpa por esse triunfo edípico,
podem ser condensadas com a fantasia narcisista de ser de ambos os sexos, e portanto não precisar
começar nenhum relacionamento de dependência, temida, com qualquer objeto — uma dinâmica
frequente nos pacientes narcisistas.
Num trabalho anterior (1992), relatei minhas experiências no tratamento psi-canalítico de
alguns pacientes com transferências severamente sadomasoquistas, que pareciam resistir a todos
os esforços interpretativos durante muitos meses. A característica essencial dessas transferências
eram as consistentes acusações dos pacientes, dirigidas a mim, no sentido de meu comportamento
supostamente frustrante, agressivo, invasivo, frio ou depreciativo, em relação ao paciente, sem qual-
quer possibilidade de esclarecer a natureza fantástica ou exagerada destas afirmações, o que
expressava severa regressão transferencial em pacientes que não eram nem borderline nem
psicóticos. Após investigar meticulosamente cada um e todos os exemplos que, na experiência dos
pacientes, pareciam merecer essas acusações, sem jamais ser capaz de "organizar as coisas", e com
uma demonstrada impossibilidade de encaminhar essas experiências de volta aos seus antecedentes
passados, decidi confrontar os pacientes com minha total discordância em relação às suas
afirmações de terem sido maltratados por mim. Enfatizei, ao mesmo tempo, que a minha intenção
não era convencê-los da minha opinião, mas tomar a incompatibilidade de nossas experiências da
realidade naqueles momentos, como o sujeito da investigação analítica. Esta abordagem permitiu
que eu, gradualmente, mapeasse uma verdadeira perda do teste de realidade na transferência, um
"núcleo psicótico" na transferência, e rastreasse essa mesma incompatibilidade de realidades até
seus antecedentes genéticos. Obviamente, esta abordagem requer um cuidadoso exame, por parte
do analista, de sua disposição contra transferencial nesses momentos críticos do tratamento.
C a p í t u l o 10

Narcisismo e Relações
Amorosas

A psicopatologia narcisista nos casais varia amplamente. Um casal faz esfor-/\ cos conscientes
para manter uma imagem pública irreal de seu relaciona-Â. JLmento como sendo um
relacionamento de total gratificação mútua. Outro casal está inconscientemente em um conluio
para a exploração implacável de um parceiro pelo outro. A investigação psicanalítica mostra que a
proverbial imagem de um parceiro narcisista combinado com um parceiro masoquista não
coincide necessariamente com as patologias de caráter de cada um. Mais geralmente, a identificação
inconsciente de um dos parceiros com seus próprios aspectos, dissociados e projetados, junto com a
mútua indução de papéis complementares através da identificação projetiva por parte de ambos,
pode resultar numa distribuição de papéis que transmite uma impressão errónea da psicopatologia
de cada parceiro. A exploração egoísta da esposa, por parte de um marido sem consideração, por
exemplo, pode sugerir significativa psicopatologia narcísica dele e vitimização de sua mulher. Um
exame das interações conscientes e inconscientes do casal, todavia, pode revelar que ela o está
provocando, inconscientemente, e projetando nele seu próprio superego sádico. A profundidade,
dedicação e qualidade intacta de suas relações com os outros podem revelar que o marido é
predominantemente infantil em vez de narcisista. Nós, portanto, temos de lidar com dois
problemas: a psicopatologia narcísica em um ou ambos os parceiros, e o "intercâmbio" de aspectos de
personalidade de ambos que provoca um relacionamento patológico do casal, que não corresponde
à patologia individual dos parceiros.

137
138 Otto F. Kernberg

Características das Relações Amorosas Narcisistas

O estudo psicanalítico das relações amorosas das personalidades narcisistas poderia começar
com uma comparação entre casais, em que um ou ambos os parceiros sofrem de um transtorno de
personalidade narcisista e casais que não apresentam nenhum desses sinais. A pessoa com um
narcisismo não-patológico tem a capacidade de apaixonar-se e manter um relacionamento
amoroso durante um período de tempo prolongado. Os casos mais graves de personalidade
narcisista não têm esta capacidade de apaixonar-se, o que é patognomônico do narcisismo
patológico. E mesmo as personalidades narcisistas que conseguem apaixonar-se por breves
períodos de tempo apresentam diferenças notáveis se comparadas às que possuem a capacidade
normal para apaixonar-se.
Quando a personalidade narcisista se apaixona, a idealização do objeto amado pode centrar-se
em torno da beleza física como uma fonte de admiração dos outros, ou em torno de poder, riqueza
ou fama, como atributos a serem admirados e inconscientemente incorporados como parte do
seuself.
A ressonância edípica de todas as relações amorosas faz com que a pessoa narcisista tente,
inconscientemente, um relacionamento dominado pela agressão, tanto quanto ou mais do que pelo
amor, em virtude da profunda frustração e ressentimento do passado, um passado que na fantasia
será magicamente superado pela gratificação sexual proporcionada pelo novo objeto. Rivalidade,
ciúme e insegurança edípicos se compõem com a agressão pré-edípica, deslocada para o domínio
edípico. Os pacientes narcisistas manifestam medo inconsciente do objeto amado, um medo
relacionado à agressão projetada: também demonstram uma notável ausência de liberdade interna
para interessar-se pela personalidade do outro. Sua excitação sexual está dominada por uma inveja
inconsciente do outro género,'por um profundo ressentimento decorrente do que foi vivenciado como
uma privação da gratificação inicial, por sofreguidão e voracidade, e pela esperança de apropriar-se do
que foi privado no passado, de modo a eliminar o anseio por aquela ausência.
Para o parceiro narcisista, a vida prossegue em isolamento; a dependência em relação ao
outro é temida, na medida em que representa o reconhecimento da inveja e gratidão pela
dependência; a dependência é substituída por exigências cheias de razão e frustração quando tais
exigências não são atendidas. Os ressentimentos aumentam e são difíceis de se desfazer dos
momentos de intimidade; são mais facilmente resolvidos por meio da cisão de experiências
diferentes de cada um, mantendo-se a paz à custa da fragmentação da relação. No pior dos casos,
temos um cenário onde se desenvolve um sufocante sentimento de aprisionamento e perseguição de
um pelo outro. Aspectos dose//não reconhecidos e indesejáveis são projetados no parceiro para
proteger uma auto-imagem idealizada. A provocação inconsciente do parceiro para fazê-lo sujeitar-se
aos aspectos projetados dose//, se combina com o ataque e rejeição a este parceiro que passa a ser
percebido de forma distorcida.
Psicopatologia das Relações Amorosas 139

A incorporação simbólica das características admiradas do outro pode servir como uma
gratificação narcísica: uma mulher narcisista que casa com um homem público famoso pode
continuar a se engrandecer em sua proeminência pública. Na privacidade do lar, contudo, ela pode
sentir um enorme aborrecimento, além de conflitos inconscientes em torno da inveja. A ausência de
valores conjuntos impede que se abra uma área de novos interesses, que proporciona uma nova
visão de mundo e de outros relacionamentos. A ausência de curiosidade sobre o outro, o
relacionamento em termos de comportamentos imediatos aos que se reage, mais do que a
preocupação pela realidade interna do outro (um problema central da personalidade narcisista,
relacionado à subjacente difusão da identidade e à falta da capacidade de empatia profunda com os
outros) fecha a porta para o entendimento da vida do outro. Além da inevitável ativação de conflitos
inconscientes do passado, e a eclosão da frustração e agressão no relacionamento íntimo do casal,
faltam fontes de gratificação e prevalecem o aborrecimento, o fracasso em conter a raiva despertada, a
frustração crónica e um senso de estar aprisionado pelo relacionamento.
De modo dramático, na esfera sexual, a inveja inconsciente do outro transforma a idealização do
seu corpo em desvalorização; a mesma inveja alimenta a transformação da gratificação sexual em
um sentimento de ter conseguido invadir e incorporado o outro e elimina a riqueza das primitivas
relações objetais ativadas na sexualidade perversa polimorf a normal, acabando em tédio e
aborrecimento.
Podemos perguntar se as personalidades narcisistas podem amar apenas a si mesmas. Em
minha opinião (1984), a questão não é se o investimento é no sel/ou no objeto, ou na representação
dosei/como oposta a representações do objeto. A questão é a diferença entre que tipo de sei/que é
investido: se ele tem a capacidade de integrar o amor e o ódio sob a dominância do amor, ou se é
um self grandioso e patológico. Segundo Laplanche (1976) sugeriu, com referência ao ensaio de
Freud (1914) sobre o narcisismo, tanto as relações amorosas anaclíticas quanto as narcisistas implicam
num relacionamento objetal. Conforme van der Waals (1965) colocou, não é que os narcisistas amem
apenas a si mesmos e a ninguém mais, mas que eles amam a si mesmos tão precariamente quanto
amam precariamente aos outros.
Consideremos a interação dos aspectos narcisistas e objetais das relações amorosas comuns.
Coloquemos de outra maneira: o que, numa relação amorosa estável, conecta a autogratificação e a
satisfação e o compromisso com o outro? Na medida em que o parceiro selecionado reflete os
próprios ideais da pessoa, uma qualidade eminentemente "narcisista" permeia o apaixonar-se e o
amar. E na medida em que existe uma busca consciente e inconsciente pela complementaridade —
que varia da admiração e gratificação por aquilo que o outro consegue apreciar e tolerar em si mesmo
e a pessoa não consegue, até a superação das limitações do próprio género, estabelecendo-se uma
união "bissexual" com o parceiro—mesmo essa complementaridade, poderíamos dizer, serve a
propósitos "narcisistas". Ao mesmo tempo, na medida em que o outro proporciona a gratificação
tanto das
140 Oito F. Kernberg

necessidades edípicas quanto as de ser cuidado, e sente-se grato por aquilo que recebe, o
relacionamento amoroso é obviamente "relacionado ao objeto". Ele tem características altruístas
que integram de inúmeras maneiras o egocentrismo e o auto-sacrifício, a dedicação ao outro e a
gratificação dosei/. Em resumo, o narcisismo normal e o relacionamento objetal complementam-se
um ao outro.
Para propósitos clínicos, o que disse torna necessário considerar separadamente o padrão
de comportamento em que o relacionamento de um casal estabilizou-se ou congelou — e as
estruturas de personalidade de cada um dos parceiros. A presença de um transtorno de
personalidade narcisista em um ou ambos os parceiros é indubitavelmente importante para
colorir a natureza de seu relacionamento; e, em alguns casos, a resolução de conflitos conjugais
profundos e antigos dependerá da modificação da estrutura de personalidade de um ou ambos;
mais frequentemente, contudo, a resolução da interação patológica através da psicanálise e
psicoterapia—ou separação e divórcio — revelará o quanto aquilo que parecia ser uma patologia
narcisista em um ou ambos, era o resultado de um conluio inconsciente de mútua exploração e
agressão, derivado de outros conflitos.

Duas Ilustrações Clínicas

Nosso primeiro exemplo é o de um conflito sutil, mas persistente, entre um marido com
estrutura de personalidade aparentemente narcisista (mas na realidade uma estrutura de
personalidade obsessivo-compulsiva) e uma esposa com características de personalidade
depressivo-masoquistas. Ele parecia frio, distante e sem consideração pelas necessidades dela, e
ela estava sofrendo silenciosamente em virtude das excessivas expectativas dele em relação a ela.
Ele era filho de uma mãe superprotetora, narcisista, cujas preocupações com a ordem e o perigo
de infecções e doenças físicas dominaram sua infância, enquanto seu amável pai deixava a mulher
dirigir a família. O marido fora fortemente atraído pela natureza calorosa e relaxada da mulher,
e ficava divertido e aliviado pela sua maneira um tanto desordenada de lidar com as coisas. Ela,
filha de uma mãe dominadora mas desorganizada e negligente, e de um pai afetuoso mas
frequentemente ausente, ficara impressionada pela ênfase do marido na ordem e limpeza. Mas
após vários anos de casamento, a obsessiva necessidade do marido de ordem e limpeza au-
mentou na mesma medida que a desorganização da mulher. Ela o acusava, asperamente, de
sobrecarregá-la de tarefas enquanto negligenciava suas próprias respon-sabilidades; ele a acusava
de intencionalmente tentar provocá-lo através de sua maneira descuidada de dirigir a casa.
As confrontações gradualmente diminuíram porque o marido "desistiu". De fato, ao retrair-
se e ausentar-se, ele inconscientemente alimentava a desordem da esposa. Gradualmente separou
os seus interesses e pertences dos dela e tornou-se retraído, sentindo que ela o negligenciava e não
lhe dava importância, ao mesmo tempo em que se culpava por ele negligenciá-la. Mais tarde, no
curso de seu trata-
Psicopatologto das Relações Amorosas 141

mento psicanalítico, emergiu que se ressentia dela como se ela fosse uma mãe indiferente,
enquanto inconscientemente se identificava com seu próprio pai, que deixara o controle da casa
para a mãe. Ele assim, restringiu sua autoridade e gratificação no que poderia ter sido, de muitas
maneiras, um casamento satisfatório. Sua esposa, por sua vez, o vivenciava cada vez mais como
um homem frio, indiferente e egoísta, e a si mesma como vítima de um tradicional marido
patriarcal.
Os tratamentos psicanalíticos individuais., juntamente com o exame de seu conflito conjugal
numa psicoterapia psicanalítica conjunta, de tempo limitado, com outro terapeuta, revelaram seu
conluio mútuo inconsciente. O entendimento desse conluio levou ao notável desaparecimento do
que inicialmente pareceram ser qualidades severamente narcisistas no marido e qualidades
masoquistas significativas na mulher.
O segundo caso centra-se em torno dos desenvolvimentos no tratamento psicanalítico de um
homem com grave patologia narcisista, que consultou em virtude de sua incapacidade para
manter um relacionamento com uma mulher que lhe desse gratificação emocional e sexual. O
Sr. M., um arquiteto bem-sucedido com quarenta e poucos anos, já passara por três casamentos e
divórcios com mulheres que ele descrevia, em retrospecto, como dedicadas a ele, atraentes e
inteligentes. De fato, ele tivera relacionamentos sexuais gratificantes com as três antes de casar, mas
depois do casamento perdia completamente o interesse sexual por elas. Os relacionamentos
conjugais se transformavam numa espécie de "amizade fraterna", que era cada vez mais
insatisfatória para ambos e acabando finalmente em divórcio. O Sr. M. não quisera ter filhos,
pois temia que eles interferissem no seu estilo de vida e na sua liberdade.
A posição financeira e a capacidade administrativa do Sr. M. lhe permitiam passar grande
parte do seu tempo numa busca interminável de novas experiências com mulheres. Essas
experiências eram de dois tipos distintos-, experiências sexuais, que eram intensas mas debreve
duração, porque rapidamente perdia o interesse pela mulher, e platónicas ou quase platónicas, com
mulheres que usava como confidentes, conselheiras ou amigas.
Naparte inicial do tratamento, a característica mais importante durante muitos meses foram as
sólidas defesas do Sr. M. contra o aprofundamento do relacionamento transferencial, que só
gradualmente pôde ser entendido como defesas contra uma inveja inconsciente do analista como
um homem casado, capaz de usufruir um relacionamento que era satisfatório em termos
emocionais e sexuais. O Sr. M. gastava uma porção enorme do tempo nas sessões troçando de
amigos casados há muito tempo, e do que ele considerava suas ridículas tentativas de convencê-lo
de que eles tinham um relacionamento conjugal feliz. Ele, triunfantemente, contou-me de suas
façanhas sexuais, somente para cair novamente num sentimento de desespero em virtude de sua
incapacidade para manter um relacionamento sexual com uma mulher que fosse importante para
ele emocionalmente. Nesses momentos, se sentia fortemente inclinado a terminar o tratamento,
porque este não o estava ajudando a superar seus problemas. Gradualmente tomou consciência de
que,
142 Otto F. Kernberg

embora esperasse que eu não sofresse do mesmo problema que ele, a ideia de que eu pudesse ter
um bom relacionamento conjugal o enchia de um sentimento de inferioridade e humilhação. Ele
então começou a tolerar sentimentos conscientes de inveja de mim.
A tolerância cada vez maior dessa inveja mudou seu relacionamento na transferência para um
relacionamento semelhante ao que tinha com outros amigos do sexo masculino, com quem ele
vivenciava um relacionamento "somente para homens" de honestidade e comprometimento, em
contraste com a suposição de que as mulheres precisavam ser usadas sexualmente e logo
abandonadas (pois de outra forma elas tornar-se-iam exploradoras e controladoras). Fantasias
homossexuais, na transferência, refletiam agora seu sentimento de que apenas os homens
mereciam confiança, e emergiu um quadro de mulheres agressivas e exploradoras. Depois disso,
uma nova tendência a comparar-se comigo assumiu a forma de fantasias nas quais eu tinha filhos
para os quais era um pai generoso e protetor, enquanto ele corria o risco de jamais ter filhos.
Pela primeira vez, reviveu emocionalmente aspectos de seu passado, com lembranças das
frequentes brigas entre seus pais, seu sentimento de que eles estavam sempre descofiando um do
outro e suas muitas tentativas inúteis para servir de mediador. As duas irmãs mais velhas do Sr.
M. haviam desistido há muito tempo de manter relacionamento com os pais. Era o Sr. M.
quem continuava a atender às necessidades dos pais, tentando acomodar suas disputas, e
envolvendo-se em violentas trocas e acusações verbais que aconteciam entre os três.
O Sr. M. transmitia a impressão de que nenhum de seus pais jamais tivera a capacidade, ou
talvez inclusive a intenção, de interessar-se por ele. Sua atitude inicial de bravata e depreciação
das pessoas que estavam envolvidas em conversas "psicológicas" vazias, mudou agora para uma
crescente consciência da frustração de suas necessidades, na infância e na adolescência, de ser
ouvido e respeitado. Ficou evidente que desconfiara desde o início, que eu queria que ele casasse,
para que eu pudesse demonstrar minha superioridade como terapeuta; jamais acreditara que o
propósito do tratamento fosse o de ajudá-lo a achar suas próprias soluções, em vez de impor as
minhas.
Neste contexto, aconteceu o seguinte: o Sr. M. começou a interessar-se cada vez mais por
uma jovem arquiteta cujo comportamento era tema de comentários irónicos no seu círculo
profissional, mas com quem ele estabelecera um relacionamento sexual que achava muito
gratificante.
Descreveu a Srta. F. como agressiva, taciturna, arbitrária em suas expectativas e exigências,
e tão abertamente controladora e manipuladora que ele podia ter certeza de que ela não estava
tentando explorá-lo. Nos meses seguintes, o comportamento da Srta. F. em relação a ele, e a atitude
passada da mãe do Sr. M., pareciam coincidir de maneiras estranhas. O Sr. M. insistia em que não
amava a Srta.F., e lhe dizia abertamente que nada sentia por ela além da enorme satisfação com o
relacionamento sexual deles. A Srta. F. parecia tolerar as suas declarações de indiferença, a um
ponto que despertou em minha mente (mas não na do Sr. M.) a dúvida se-
Psicopatologia das Relações Amorosas 143

guinte: ela estaria sendo masoquista ou calculista? Meus esforços para interpretar, na transferência,
como o Sr. M. poderia estar se defendendo contra preocupações semelhantes sobra a Srta. F., fê-lo
perceber gradualmente não só como gostava da natureza sádica como tratava a Srta. F. (e da
tolerância dela por isto) como também o quanto ele achava que, mesmo se ela estivesse tentando
manipulá-lo, o fato de ele se sentir tão no controle do relacionamento deles lhe dava um grande
sentimento de excitação.
Um novo tema então emergiu no tratamento: a fantasia do Sr. M. de que se ele realmente
quisesse casar-se novamente ter filhos, isso seria o início da velhice e da morte; somente uma
existência de playboy, com sexo descuidado e ausência de responsabilidades, garantia a eterna
juventude. Agora, sua maneira adolescente de apresentar-se na sessão (um estilo de roupas e
maneiras excessivamente "juvenil" e quase inadequado) tornou-se o assunto do exame analítico,
em que apareceu como um esforço protetor para evitar o sentimento de condenação e morte
associado à ideia da idade adulta. Conforme revelado por uma série de sonhos, cristalizou-se em
sua mente uma fantasia de que ele poderia ter filhos com mulheres casadas com outras pessoas,
ou que, após divorciar-se dele, lhe permitissem apenas contatos casuais com seus filhos. Num
dos sonhos, o Sr. M. via a si mesmo morando num apartamento no edifício em frente ao de
uma antiga namorada, e através da rua ele conseguia observar, das janelas, um filho seu crescendo
ao longo dos anos.
Uma condensação do seu medo de mulheres agressivas, frustrantes, dominadoras e
manipuladoras, por um lado, e de sair-se melhor do que seu pai distante, indiferente e dominado
pela mulher (e um desespero relacionado por ser ou não capaz de competir comigo, como versão
idealizada do modelo de pai inacessível), impregnava agora as sessões. Numa súbita atuação, o
Sr. M. decidiu casar-se com a Srta. F, Logo depois do casamento ela engravidou. O relacionamento
com ela continuou a ser tumultuado e caótico, mas agora, pela primeira vez em sua vida, estava
totalmente engajado neste relacionamento, sem sentir as pressões internas para ter casos sexuais
com outras mulheres. Ele mesmo estava surpreso com esse desenvolvimento e,
retrospectivamente, percebeu que uma de suas fantasias fora a de envolver-se, mais uma vez,
num casamento infeliz e fracassado, que poderia então colocar diante de mim a fim de confirmar
o fracasso de nosso trabalho analítico — e o meu fracasso como pai edípico. Ao mesmo tempo,
contudo, também havia uma ousadia edípica, competitiva, de ter um filho, ainda que encerrada
no contexto de um casamento muito parecido com o dos seus pais.
O que chamava mais a atenção no seu relacionamento com a esposa era que o Sr. M., que
originalmente a tratava de maneira depreciativa e aviltante, tornou-se agora estranhamente
submisso a ela (embora desconfiasse que quisesse divorciar-se dele para obter o controle de parte
de seus bens). O próprio Sr. M. estava impressionado ao ver que ele, umplayboy anteriormente
independente, feliz e bem-sucedido, pudesse agora estar sob um tal controle de uma mulher que
seus amigos percebiam como agressiva e imagura. O Sr. M., em resumo, conseguira reproduzir
144 Otto F. Kernberg

o relacionamento entre seu pai e sua mãe, e passara de uma promiscuidade sexual
para um relacionamento sadomasoquista, que continuava a ser sexualmente grati-
ficante e afetivamente investido.

Em suas sessões analíticas, o Sr. M. ficou surpreso com essa mudança, e gra-
dualmente tomou consciência de que se pensasse que sua mulher realmente o
amava, ele estaria disposto a confiar nela e dedicar sua vida a ela. A combinação da
culpa edípica (estabelecer um relacionamento com uma mulher que fosse mais
satisfatório do que com os pais), com a culpa por impulsos sádicos primitivos em
relação a uma mãe frustrante e inacessível, tornou-se agora o principal assunto das
horas analíticas.
Em resumo, era como se o controle sádico e onipotente no seu comportamento
em relação às mulheres tivesse mudado, e estivesse dando agora encerrado por
sua mulher, enquanto sua regressão a uma dependência infantil, prolongada, ti-
vesse substituído sua própria indiferença narcisista. O comportamento dominador
que sua mulher evidenciara antes do casamento aumentara muito, inconsciente-
mente alimentado pelo comportamento provocador dele, induzido através da iden-
tificação projetiva de uma réplica de sua mãe "para dentro" dela.

Dinâmica da Patologia Narcisista

Com muita frequência, a personalidade narcisista vivência seuse//grandioso


patológico enquanto projeta a parte desvalorizada do própriose//no parceiro, cuja
interminável admiração confirma ose//grandioso. Com menor frequência, a perso-
nalidade narcisista pode projetar osd/grandioso patológico no parceiro, e encerrar
um relacionamento entre estesd/grandioso e o seu reflexo, projetado. O parceiro,
nesses casos, fica um mero veículo para um relacionamento entre aspectos dose//.
Tipicamente, um parceiro idealizado e um "apêndice" ou satélite daquele objeto
ideal constituem o casal em dramatizações ou na fantasia, ou "reflexos" inconsci-
entes em que cada parceiro reproduz o outro, ou, ao complementar-se um ao outro,
reconstituem juntos a grandiosa unidade ideal fantasiada e perdida.
Num exame da dinâmica essencial subjacente a essas manobras defensivas,
é de central importância nos conflitos inconscientes a inveja pré-edipicamente de-
terminada, isto é, uma forma específica de raiva e ressentimento contra um objeto
necessário que é vivenciado como frustrante e alienado: o que é desejado se torna,
portanto, também uma fonte de sofrimento. Numa reação a este sofrimento, se
desenvolve um desejo consciente ou inconsciente de destruir, de estragar, de apro-
priar-se pela força, do que que esteja sendo sonegado—especificamente, o que seja
mais admirado e desejado. A tragédia da personalidade narcisista é que esta raivo-
sa e voraz apropriação do que é negado e invejado, não conduz à satisfação, porque
o ódio inconsciente daquilo que se quer "estraga" tudo que for incorporado: o
sujeito termina sempre sentindo-se vazio e frustrado.
Psicopatologta das Relações Amorosas 145

Além disso, dado que a excelência daquilo que o outro


tem a oferecer é uma fonte de inveja, a dependência em relação
a um objeto amado se toma impossível e precisa ser negada; a
personalidade narcisista precisa ser admirada em vez de
amada. A admiração do outro apoia e reconfirma a auto-estima,
a auto-idealização do se!/grandioso patológico. A admiração
dos outros passa a substituir as funções normalmente
protetoras e reguladoras da auto-estima do superego, que fica
enfraquecido e distorcido, particularmente o ideal do ego.
As pessoas narcisistas precisam ser admiradas e
inconscientemente extraem "suprimentos" de admiração dos
outros, como uma defesa vingativa contra a inveja; ao projetar
essas mesmas necessidades em seu parceiro, elas temem, por
sua vez, serem exploradas e "roubadas" daquilo que têm.
Portanto não toleram que seu parceiro dependa delas, e
vivenciam a reciprocidade habitual das relações humanas
como uma exploração invasiva. Em virtude dos conflitos em
torno da inveja inconsciente, não podem sentir gratidão por
aquilo que recebem do outro, cuja própria capacidade de dar
livremente elas também invejam. À ausência de gratidão
impede o fortalecimento da capacidade de apreciar,
amorosamente, o amor recebido.
Em casos graves, a desvalorização dos outros sofre uma "
analização" regressiva (Chasseguet-Smirgel, 1984,1989), um
desejo inconsciente de transformar, simbolicamente, todo o
amor e todos os valores em excrementos, o que pode levar a
uma negação inconsciente das diferenças entre os géneros e as
gerações (todas as diferenciações são negadas e
desvalorizadas), para evitar a inveja do outro género e de
outras gerações. À inveja inconsciente do casal edípico pode
estar por trás da inveja do parceiro, uma necessidade de destruir
o casal, derivada mais da agressão primitiva contra o casal
edípico, do que da culpa edípica. Que o ódio e inveja
inconscientes do bom relacionamento entre o casal parental
possa ser transformado em desejos destrutivos contra o
próprio funcionamento do indivíduo, como parte de um casal,
é uma das características mais dramáticas da patologia narcisis-
ta.
Esses conflitos inconscientes normalmente podem ter
sua origem rastreada até a patologia primitiva do
relacionamento mãe-bebê. A agressão oral provocada,
desencadeada e reforçada por mães frias e rejeitadoras; ou
mães ambivalentes, rejeitadoras e superestimuladoras; ou
por uma negligência grave e crónica; ou ainda a exploração
por parte de uma mãe narcisista, que ignora as necessidades
emocionais e a vida interna de seu bebé, mais o reforço
secundário por conflitos com o pai—ou a ausência da
disponibilidade compensadora de um pai—podem levar a
uma intensa inveja e ódio da mãe, que eventualmente af eta o
relacionamento inconsciente com ambos os pais, e leva à
inveja patologicamente intensa do relacionamento amoroso
do casal edípico,
Nos homens, cuja relação inicial com a mãe continua a
colorir suas relações com as mulheres por toda a vida, o ódio
patológico e a inveja das mulheres podem tornar-se uma
poderosa força inconsciente que intensifica seus conflitos
edípicos.
146 Otto F. Kernberg

Podem vivenciar a mãe como sexualmente provocadora e alienada, devido à trans-


formação das frustrações orais iniciais em uma espécie de agressão sexual (proje-
tada). Esta imagem provocante de mãe, por sua vez, intensifica os componentes
agressivos da excitação sexual e estimula a dissociação entre a excitação erótica e a
ternura. Esses homens vivenciam o desejo sexual por uma mulher como uma repe-
tição das provocações primitivas por parte da mãe, o que ativa ódio inconsciente
em relação à mulher desejada. O ódio pode destruir a capacidade para a excitação
sexual e levar à inibição sexual. Em casos menos graves, a idealização defensiva da
atratividade sexual das mulheres conduz a uma busca intensificada de estimulação,
excitação e gratificação sexual, seguidas rapidamente por uma destruição da expe-
riência sexual, desvalorização da mulher idealizada e tédio. Uma idealização in-
tensa e defensiva das mulheres, seguida por uma rápida desvalorização delas como
objetos sexuais, pode resultar em promiscuidade sexual.
Um amplo espectro de patologia sexual se deriva dessas dinâmicas. Alguns
homens narcisistas apresentam uma severa inibição sexual, um medo de serem
rejeitados e ridicularizados pelas mulheres, relacionado à projeção nas mulheres
de seu ódio inconsciente por elas. Este medo das mulheres também pode levar a
uma intensa aversão pelos genitais femininos, em que a inveja pré-edípica e a
ansiedade de castração edípica convergem; ou ocorre uma cisão radical entre a
idealização de algumas mulheres, em relação às quais todos os sentimentos sexu-
ais são negados, enquanto outras mulheres são percebidas puramente como obje-
tos genitais com quem a liberdade e a satisfação sexuais são possíveis à custa da
ausência de qualquer ternura ou idealização romântica (o que conduz à desvalori-
zação auto-sabotadora da intimidade sexual, e a uma interminável busca de novas
parceiras sexuais).
Alguns outros homens narcisistas podem ser capazes de manter relaciona-
mentos ternos com mulheres das quais dependem, até certo ponto, na medida em
que as desvalorizam inconscientemente como parceiras sexuais. O que é notável é
que os homens narcisistas gravemente inibidos, temerosos das mulheres, possivel-
mente vivenciando a impotência como uma expressão direta desse medo, no curso
do tratamento atenuam seu medo das mulheres mas se tornam sexualmente pro-
míscuos. Estão atuando tanto a busca de um relacionamento amoroso quanto a
necessidade de separar, dessa busca, sua agressão inconsciente em relação às mu-
lheres. Em contraste, os homens narcisistas que são sexualmente promíscuos desde
a adolescência, frequentemente apresentam uma gradual deterioração de sua vida
sexual, à medida que a idealização defensiva das mulheres, em breves paixões
fugazes, repetidamente se desfaz. Seus novos encontros sexuais parecem cada vez
mais repetições de encontros anteriores; a erosão da idealização defensiva e os
desapontamentos cumulativos na experiência sexual podem levar a uma deterio-
ração secundária em sua vida sexual e à impotência, o que os traz a tratamento
somente quando chegam aos 40 ou 50 anos.
Em ambos os géneros, as personalidades narcisistas frequentemente têm a
fantasia inconsciente de ser ambos os géneros ao mesmo tempo, negando assim a
Psicopatologia das Relações Amorosas 147

necessidade de invejar o outro género (Grunberger, 1971, Rosenfeld, 1964,1071,


1975). Esta fantasia estimula a busca de parceiros sexuais em várias rotas alterna-
tivas. Alguns pacientes narcisistas do sexo masculino buscam mulheres que in-
conscientemente representam imagens especulares deles mesmos, "gémeos hete-
rossexuais", completando-se especulares deles mesmos, "gémeos heterossexuais",
completando-se assim com os genitais e as correspondentes implicações psicológi-
cas do outro género, sem precisar aceitar a realidade da existência de uma outra
pessoa autónoma e diferente. Em alguns casos, no entanto, a inveja inconsciente
dos genitais do outro género é tão grande que a desvalorização das características
sexuais invejadas conduz a um relacionamento gemelar assexuado a que pode
destruir a relação em virtude das graves inibições sexuais presentes.
Às vezes, o desejo inconsciente de adquirir as características de ambos os
géneros leva a um relacionamento com um homem ou uma mulher desvaloriza-
dos, a não ser pela complementação sexual para o paciente. Alguns pacientes nar-
cisistas fisicamente atraentes, de ambos os géneros, que dependem muito da admi-
ração dos outros, podem selecionar um parceiro feio para salientar sua própria
beleza. Outros selecionam um "gémeo", de modo que a aparição pública do belo
casal se torna uma fonte relativamente confiável de gratificação das necessidades
narcisistas. Selecionar uma mulher que os outros homens podem invejar, pode
também gratificar tanto os aspectos narcisistas quanto os homossexuais.
O ódio inconsciente em relação às mulheres (e o medo delas, devido à proje-
ção desse ódio) é uma fonte importante da homossexualidade narcisicamente de-
terminada nos homens: a seleção de um outro homem como um gémeo homosse-
xual, uma idealização defensiva do pênis do outro como uma república do próprio
pênis, e um reasseguramento inconsciente de que ele/eles não dependem mais da
genitalidade das mulheres, pode efetivamente proteger contra a inveja do outro
género e inclusive permitir também relações com mulheres, idealizadas e
dessexualizadas.
Uma fonte maior de conflitos para os pacientes narcisistas num relaciona-
mento heterossexual ou homossexual, que pode emergir apenas gradualmente,
mas depois domina as interações e um eventual rompimento do relacionamento, é
a proteção contra a fantasia da gemelaridade. O parceiro tem de preencher o ideal
do paciente, mas não ser melhor do que este, pois isto desencadearia a inveja; e o
parceiro também não pode ser inferior ao paciente, pois isto desencadearia desva-
lorização e a destruição do relacionamento. Conseqúentemente, o parceiro, através
do mecanismo de defesa do controle onipotente, é "forçado" a tornar-se exatamen-
te igual ao que o paciente precisa que ele seja, restringindo assim a liberdade e a
autonomia do outro, além de significar que o paciente é incapaz de apreciar a outra
pessoa pelo que ela tem de único ou diferente. Não surpreende que os pacientes
que restringem a liberdade de seus parceiros têm muito medo de serem restringi-
dos, ou aprisionados, pelo outro: está em ação a identificação projetiva.
Nos casos relativamente mais brandos de relações amorosas de pacientes
narcisistas do sexo masculino, a típica dicotomia virgem santa-prostituta da ado-
148 Otío F. Kernberg

lescência masculina é mantida como um padrão durante a vida inteira. Na medida


em que este padrão se ajusta à dupla moralidade culturalmente tolerada e estimu-
lada das sociedades patriarcais, a patologia narcisista masculina é culturalmente
reforçada — da mesma forma que a patologia masoquista feminina nas relações
amorosas.
Embora o tédio sexual se torne prevalente nas personalidades narcisistas
masculinas ao longo dos anos, alguns continuam a empregar os encontros sexuais
para acionar intensa ambivalência em relação às mulheres, com uma simultânea
busca de gratificação sexual e vingança sádica, inclusive uma repetição masoquis-
ta das frustrações vivenciadas com a mãe: aqui convergem as patologias narcisista
e masoquista.
A síndrome de Don Juan reflete um amplo espectro de patologia narcísica
masculina. Num dos extremos, Don Juan poderia ser um homem que precisa de-
sesperadamente seduzir as mulheres, e é levado a um relacionamento sexual em
que frustra e humilha a mulher que escolheu casualmente; a sedução é quase cons-
cientemente, manipuladoramente agressiva, e abandoná-la é um alívio prazeroso.
Ou a intensa busca compulsiva de Don Juan por novas aventuras origina-se de
uma idealização das mulheres, e o desejo de encontrar alguma que não o desapon-
te.
No extremo mais sadio deste espectro encontramos um Don Juan com uma
mistura de traços narcisistas e infantis, um homem-criança com qualidades
efeminadas, que seduz as mulheres precisamente pela ausência de uma masculini-
dade ameaçadora, um pequeno menino-homem que inconscientemente nega a
inveja, o medo e a rivalidade com o pai poderoso, afirmando que seu "pequeno
pênis" é inteiramente satisfatório para a mãe (Chasseguet-Smirgel, 1984) e cujas
aventuras sexuais com mulheres gratificam a fantasia de que ele, o garotinho, é o
favorito da mãe e que é tudo o que a mãe precisa. Braunshweig e Fain (1971) des-
creveram como este tipo infantil de Don Juan nunca deixa de achar um tipo com-
plementar de mulher, cujo ódio inconsciente ao pai poderoso a leva a idealizar o
homem não-ameaçador e infantil.
A idealização defensiva das mulheres da personalidade narcisista masculina,
expressada em ardentes paixões transitórias, geralmente exerce uma poderosa
atração nas mulheres, particularmente aquelas com um significativo potencial
masoquista ou que são inseguras sobre sua atratividade como mulheres. As mu-
lheres narcisistas também podem ser atraídas por homens cujo senso de superiori-
dade e grandiosidade gratifica sua própria necessidade de completamento narci-
sista, com o que poderíamos chamar de gémeo heterossexual. A genitalidade sem
a paternidade oferecida pelos homens narcisistas, que inconscientemente não po-
dem se identificar com os aspectos protetores, preocupados e procreativos da iden-
tidade paterna, talvez sejam tranquilizadores para as mulheres narcisistas para as
quais as funções maternas representam uma importante ameaça inconsciente.
Psicopatologia das Relações Amorosas 149

A idealização transitória e rápida desvalorização dos homens pode estar por


trás da promiscuidade sexual nas mulheres narcisistas. A tradicional sociedade
patriarcal reforça a promiscuidade sexual nos homens, mas a repudia nas mulhe-
res. Os costumes morais patriarcais podem direcionar o ódio dos homens para um
relacionamento explorador no casamento, e com os filhos. O feminismo, parado-
xalmente, pode estimular a promiscuidade sexual nas mulheres com patologia
narcisista, numa identificação com uma sexualidade masculina agressivamente
percebida.
Sem, em virtude da sua intensidade, o deslocamento da agressão da mãe
para o pai não resolver a ambivalência da garotinha em relação à mãe, o medo e o
ódio da mãe podem levá-la abuscar uma figura de mãe substituta, idealizada, que
facilmente se transforma em desapontamento e ressentimento. Além disso, abusca
de um relacionamento mais gratificante com os homens pode transformar-se numa
identificação inconsciente com os homens—isto é, uma negação secundária dessa
dependência ameaçadora—e evoluir para uma identificação homossexual narci-
sista com homens, buscando uma relação homossexual com mulheres nas quais a
paciente pode projetar suas próprias necessidades dependentes. Às vezes, a ho-
mossexualidade narcisicamente motivada nas mulheres pode gratificar a fantasia
inconsciente de ser ambos os géneros ao mesmo tempo, negar a dependência em
relação ao pai odiado e invejado, e inverter a perigosa dependência em relação à
mãe.
Uma identificação inconsciente com uma mãe narcisista, fria e rejeitadora
pode ser expressada num exibicionismo e sedução frios e controlados em relação
aos homens, num esforço para dominá-los e explorá-los, o que gratifica as necessi-
dades sexuais da mulher, assim como a protege da inveja.
Com certa frequência, as mulheres narcisistas podem aceitar um relaciona-
mento estável com um homem que elas considerem "o melhor de todos", buscan-
do, numa relação gemelar heterossexual inconsciente, uma solução de compromis-
so para uma inveja inconsciente dos homens. Isto pode levar ao que parecem ser
relações masoquistas, no sentido de que essas mulheres tendem a desvalorizar um
homem assim que ele responde a elas; permanecem fixadas em homens inacessí-
veis, cuja própria indisponibilidade permite que sua idealização permaneça sem
quer questionada, e as protege de serem desvalorizadas. Algumas mulheres gra-
vemente narcisistas podem manter alianças autodestrutivas prolongadas com ho-
mens extremamente narcisistas, cujo poder, fama ou talentos incomuns, lhes dão a
aparência de uma figura masculina ideal. Outras, socialmente mais bem-sucedi-
das, podem identificar-se inteiramente com esses homens idealizados, sentir-se
inconscientemente como a verdadeira inspiração deles, e acabar realmente dirigin-
do a vida desses homens.
Algumas mulheres narcisistas combinam a busca de um homem ideal com
uma desvalorização igualmente intensa do parceiro, o que as leva a gravitar de um
150 Otto F. Kernberg

homem famoso para outro; outras, entretanto, acham que ser o poder por trás do
trono gratifica as necessidades narcisistas e compensa a inveja inconsciente dos
homens. Enquanto a promiscuidade sexual nos homens é largamente do tipo nar-
cisista, a promiscuidade sexual nas mulheres pode ter origem narcisista ou maso-
quista.
As mulheres narcisistas podem também expressar sua patologia em seu rela-
cionamento com os filhos. Algumas manifestam pouca disposição para ter filhos
porque têm medo da dependência de uma criança, que elas sentiriam inconscien-
temente como vorazmente exploradora e restritiva. Outras amam os filhos enquanto
eles são totalmente dependentes—isto é, enquanto eles constituem uma extensão
narcisista do corpo ou da personalidade da mãe. Ou o foco da mãe nos filhos está
em certos aspectos que são incomumente atraentes como uma fonte de admiração
de terceiros, mas mostrando muito pouco interesse pela vida interior dos filhos.
Essa mãe favorece a transmissão da patologia narcisista de uma geração para ou-
tra. Os homens podem apresentar a mesma relutância em ter filhos, uma incapaci-
dade de investir neles, uma profunda indiferença em relação aos filhos, exceto
quando eles gratificam as suas próprias necessidades: a tradicional sociedade pa-
triarcal, ao diferenciar nitidamente os papéis de pai e mãe, obscureceu a patologia
no relacionamento dos homens narcisistas com seus filhos. Na medida em que eles
deixam o cuidado dos filhos para a esposa, sua falta de investimento nas crianças
f iça mascarada.
Um outro sintoma narcisista significativo é a ausência da capacidade para o
ciúme, que frequentemente reflete a incapacidade de comprometer-se suficiente-
mente com alguém, tornando, assim, irrelevante a infidelidade. A ausência do
ciúme também pode refletir uma fantasia inconsciente de ser tão superior a todos
os rivais, que a infidelidade do parceiro é inimaginável.
Paradoxalmente, contudo, o ciúme pode emergir após o fato: um forte ciúme
pode refletir a lesão narcisista que o paciente narcisista pode experimentar, quando
trocado por uma outra pessoa. O ciúme narcisista é particularmente surpreenden-
te, já que o parceiro era tratado antes com negligência ou desprezo. Os tipos narci-
sistas de ciúme podem, ao desencadear a agressão, piorar o relacionamento já em
perigo. Ao mesmo tempo, entretanto, eles também podem refletir a capacidade
para investimento afetivo no outro, e para a entrada no mundo edípico. Conforme
Klein (1957), enquanto a inveja é típica da agressão pré-edípica, particularmente a
oral, o ciúme domina a agressão edípica. O ciúme, oriundo de uma traição real ou
fantasiada, pode desencadear desejos de vingança e frequentemente assume a for-
ma de uma triangulação inversa: o desejo, inconsciente ou consciente, de ser o
objeto de alguma com petição entre duas pessoas do outro género.
Ao selecionar um parceiro, as personalidades narcisistas são prejudicadas
por sua incapacidade de avaliar em profundidade uma outra pessoa. Este déficit
resulta numa combinação possivelmente perigosa: as qualidades "ideais" do par-
ceiro podem ser desvalorizadas em virtude da inveja inconsciente, enquanto a
realidade da personalidade do parceiro pode ser vivenciada como uma invasão,
Psicopatologia das Relações Amorosas 151

um constrangimento, uma imposição, que o paciente interpreta como exploração e


que, mais uma vez, despertará inveja.
Um parceiro que foi escolhido porque admira as qualidades da pessoa narci-
sista pode ser rapidamente desvalori/ado, uma vez que esta admiração seja toma-
da como certa. Em contraste, o encontro de uma pessoa narcisista com um parceiro
que é capaz de um relacionamento amoroso, pode despertar uma intensa inveja
inconsciente, precisamente por causa dessa capacidade—que o narcisista sabe que
não tem.
Na medida em que a pessoa narcisista possua um certo desenvolvimento do
superego e sinta culpa por não ser capaz de retribuir o amor recebido, ela pode ter
um aumentado sentimento de inferioridade, o que desencadeia novos esforços
secundários para defender-se desses sentimentos de culpa, procurando defeitos no
parceiro que justifiquem seu fracasso em retribuir o afeto. Existem portanto duas
possibilidades: o desenvolvimento inadequado do superego estimula a indiferen-
ça, a falta de preocupação e a insensibilidade, o que distancia os parceiros; ou a
existência de certo funcionamento do superego pode resultar na projeção dos sen-
timentos de culpa no parceiro, o que introduz uma qualidade paranóide no rela-
cionamento.

Relações Prolongadas em Parceiros Narcisistas

Frequentemente, um casal em que ambos os parceiros têm personalidades


narcisistas pode encontrar um arranjo para viverem juntos, gratificando mútuas
necessidades de dependência e proporcinando uma estrutura para a sobrevivência
económica e social de ambos. O relacionamento pode ser emocionalmente vazio,
mas variados graus de apoio mútuo, exploração e/ou conveniência, podem
estabilizá-lo. Compartilhar expectativas conscientes de seus papéis sociais, inte-
resses financeiros, adaptação ao ambiente cultural e interesses pelos filhos podem
cimentar o relacionamento. Com frequência, no entanto, são ativados relaciona-
mentos objetais inconscientes do passado. Numa reativação da relação entre uma
mãe frustrante, fria e rejeitadora, e uma criança ressentida, invejosa e vingativa, a
mútua identificação projetiva pode destruir a vida sexual, alimentar a reencenação
de relações triangulares e ameaçar o relacionamento com o mundo social
circundante. A competição inconsciente entre os parceiros pode destruir o relacio-
namento, quando um ou o outro se deparam com um sucesso ou fracasso inusita-
do.
Como afirmei anteriormente, a inveja pré-edípica intensa e esmagadora afeta
a entrada na situação edípica. A inveja inconsciente da mãe se torna a inveja incons-
ciente do casal edípico. O próprio casamento do narcisista se torna inconsciente-
mente uma repólica do casal edípico que deve ser destruído. A inveja e a culpa
inconscientes por substituir os pais na situação edípica convergem. A "analização"
do relacionamento edípico, isto é, seu estrago regressivo e a destruição do relacio-
152 Otto F. Kernberg

namento ao inconsciente e simbolicamente, submergi-lo em excrementos, pode ser


expressada por um interminável esforço para destruir tudo o que é bom e valioso
na outra pessoa, noselfe no relacionamento (Chasseguet-Smirgel, 1984b).
O conflito entre as forças narcisistas (ativas na destruição do relacionamento)
e a desesperada busca, por parte do casal, de um caminho de acesso de um ao
outro, é normalmente ativado no seu relacionamento sexual. A desvalorização
narcisista pode ter eliminado a capacidade para achar o parceiro eroticamente ex-
citante. E se ainda existir um relacionamento sexual, a capacidade para a excitação
transitória e a possibilidade de fazer sexo não servem de proteção contra a consci-
ência da distância entre eles. Na verdade, repetidos encontros sexuais em tais cir-
cunstâncias podem constituir uma complicação traumática e resultar na piora do
relacionamento.
Mas se a idealização, que é parte de um relacionamento sexual normal, ainda
existe o suficiente para que a experiência conjunta de excitação sexual e orgasmo
também seja sentida e comunicada como uma busca de um encontro de fusão,
perdão, dependência e uma expressão de gratidão e amor além da busca de prazer,
então certa esperança pode se cristalizar em tais encontros. A sobrevivência da
idealização que é parte do relacionamento amoroso, pode assumir a forma da so-
brevivência da idealização da superfície do corpo do outro. De fato, um dos primei-
ros efeitos da tolerância da ambivalência — o reconhecimento da própria agressão
em relação ao outro e a nova experiência de culpa e preocupação por esta agressão
— pode ser um reviver da capacidade de uma continuada apreciação e
responsividade ao corpo do outro.
Uma das relações objetais mais difíceis é a representada pela mútua atração
entre pacientes com o síndrome do narcisismo maligno (Kemberg, 1989), constituído
por graves conflitos destrutivos e autodestrutivos e uma tendência a comporta-
mentos paranóides e/ou anti-sociais. Na medida em que a agressão grave e difusa,
autodirigida, se combina com uma psicopatologia masoquista primitiva, pode haver
diferentes graus em que cada parceiro explora ou maltrata o outro, e negligencia e
maltrata a si mesmo, no processo.
Por exemplo, uma mulher com crónicas tendências suicidas e incapacidade
de apaixonar-se ou comprometer-se profundamente com alguém, sentiu-se atraída
por um homem, cujo interesse por ela servia-lhe como proteção contra um terrível
sentimento de solidão, e cuja ausência de solicitações ou disposição em gratificar as
necessidades dela, tornava esse relacionamento muito confortável para a paciente.
Ao mesmo tempo, contudo, o homem negligenciava muito a sua própria saúde
física, embora sofresse de uma doença com um potencial risco de vida e que reque-
ria constantes cuidados médicos. Um padrão profissional autodestrutivo compar-
tilhado por ambos, e uma mesma indiferença pelas consequências, a longo prazo,
da falta de um adequado desempenho profissional, os unia no que uma investiga-
ção psicanalítica revelou ser uma fascinação inconsciente de ambos por uma répli-
ca heterossexual de seus próprios selfs grandiosos e autodestrutivos. Somente a
Psicopato/ogta das Relações Amorosas 153

psicoterapia psicanalítica, para a mulher, eventualmente modificou esta aliança


mutuamemte destrutiva.
Talvez a ilustração mais dramática da condensação dos conflitos edípicos e
pré-edípicos na determinação de um relacionamento amoroso narcisista, seja o
desenvolvimento da "triangulação inversa". Tipicamente, o homem é bem-sucedi-
do num determinado meio social, cultural ou profissional e está casado com uma
mulher reconhecida como exemplar, inclusive tambémpor ele. Pode haver filhos,
e ambos os pais têm uma atitude carinhosa e responsável em relação a eles. O
homem também tem uma amante, normalmente de um meio social, cultural ou
profissional diferente. As mulheres sabem da existência uma da outra, parecem
sofrer com essa situação, e surgem muitas oportunidades de embaraço público, na
medida em que o envolvimento do homem com ambas colide nos negócios, profis-
são, vida social ou política. O próprio homem parece infeliz e perturbado, oscilan-
do entre períodos em que se dedica a uma das mulheres, ou à outra.
Os amigos, conhecidos, colegas e profissionais de saúde mental aconselham
tratamento, e nosso homem muitas vezes começa um, demonstrando assim sua
boa-vontade e boas intenções de lidar com uma situação que está, aparentemente,
além de seu controle. No curso da investigação psicanalítica, o que costuma emer-
gir é uma severa psicopatologia narcísica, com uma total cisão nas relações do
homem com as mulheres. Na interação concreta com uma ou com ambas, predomi-
na o amor, enquanto a agressão é sutilmente expressada no elemento sádico do
abandono de ambas, normalmente obscurecido por uma culpa intensamente
vivenciada ou professada.
A competição edípica original pela mãe, entre o filho e o pai, aqui foi inverti-
da: o homem — filho-sedutoramente-infantil passa a ser agora o objeto de compe-
tição entre duas mulheres. Dividir a imagem da mãe numa esposa maternal e
dessexualizada e numa amante sexualmente excitante, mas emocionalmente des-
valorizada, difere da divisão mais permanente origem edípica. Os determinantes
pré-edípicos emergem no relacionamento infantil, dependente e sutilmente explo-
rador do homem narcisista com ambas as mulheres, seu sentimento de ter direitos
a serem cumpridos e indignação quando as necessidades delas não correspondem
com as dele, assim como incapacidade de sustentar qualquer um desses relaciona-
mentos por um período de tempo prolongado, sem o relacionamento compensató-
rio com outras mulheres. Este mesmo padrão pode ser observado nas mulheres
que precisam ser cortejadas simultaneamente, e constantemente, por dois ou mais
homens.
As vezes, essas condições induzem o genuíno sentimento de desespero e um
desejo de resolver a situação em que precisa agarrar-se às duas pessoas do outro
género. Mais frequentemente, contudo, ficamos com a impressão de que foram as
pressões sociais externas que levaram esses pacientes a tratamento; o prognóstico,
em minha experiência, depende muito do tratamento ser tentado como um álibi
inconsciente para perpetuar os relacionamentos, ou representar uma tentativa de
escapar deste aprisionamento.
154 Otto F. Kernberg

Na melhor das circunstâncias, em virtude da ansiedade e culpa por frustrar


e implicitamente atacar duas mulheres que o amavam, o paciente narcisista está
genuinamente interessado em tratar-se: deseja escapar daquilo que vivência como
um aprisionamento em sua incapacidade de comprometer-se com uma das duas
mulheres com as quais está envolvido.
Uma grave patologia narcísica em um ou ambos os parceiros normalmente
requer tratamento psicanalítico, em contraste com os casos em que o conflito do
casal, por si, excede ou eclipsa as dificuldades narcisistas de um, ou dos dois. A
motivação para o tratamento é um fator crucial, pois esses pacientes requerem
análises difíceis e prolongadas; a extensão em que a patologia do casal pode ser
inteiramente reencenada e trabalhada na transferência é, na minha experiência, a
característica prognostica mais importante. Muitos pacientes narcisistas precisam
experimentar o fracasso de repetidas idealizações e relações amorosas, antes de
ficarem suficientemente preocupados consigo mesmos para estarem realmente
motivados para o tratamento analítico. Conseqúentemente, o tratamento para os
pacientes com quarenta ou cinquenta anos tem um melhor prognóstico do que o
tratamento para pessoas mais jovens. Os pacientes gravemente narcisistas, no en-
tanto, requerem um tratamento precoce, a fim de impedir graves destruições na
sua vida de trabalho e nas suas relações amorosas.
Comparei até agora o relacionamento de casais sob o impacto de patologia
narcisista em um ou ambos os parceiros, com casais com um mínimo de patologia
narcísica. Chamar a atenção para os efeitos da patologia narcísica introduz o risco
de superenfatizar seus efeitos destrutivos, assim como chamar a atenção para as
relações não-patológicas pode exagerar o aspecto ideal ou idealizado de um rela-
cionamento amoroso. Permitam-me completar minha descrição, mostrando as mui-
tas maneiras pelas quais o patológico e o não-patológico se entrelaçam. Repetidos
confrontos com as consequências negativas da patologia narcísica podem ter efei-
tos positivos, e as interações entre parceiros que são contrárias às expectativas
inconscientes e às repetições de conflitos do passado, podem ter efeitos curativos,
neutralizando os efeitos das identificações projetivas e do controle onipotente, as-
sim como os comportamentos repetitivos auto-sabotadores.
Em geral, reconhecer sua ambivalência é o denominador mais comum da
crescente consciência do paciente de sua contribuição para os conflitos e as frustra-
ções. A melhora é caracterizada por um luto profundo, durante o qual o paciente
pode reconhecer e elaborar a agressão, o desejo de anular seus efeitos, e de reparar
o dano provocado por ela na realidade ou na fantasia.
Esses processos de cura também podem ocorrer na vida cotidiana, fora das
situações de tratamento. Uma mulher narcisista, com uma longa história de rela-
ções exploradoras com homens poderosos e um estilo de vida auto-centrado e
auto-engrandecedor, conseguiu ter um filho após anos de tentativas infrutíferas de
engravidar. Quando descobriu que seu filho tinha uma doença que o mataria du-
rante a infância, a raiva pelo que sentiu como um destino cruel e injusto transfor-
mou-se numa dedicação total à criança. Colocando os cuidados ao filho acima de
Psicopatologia das Relações Amorosas 155

sua vida social, profissional e pessoal, ela descobriu-se em paz consigo mesma,
pela primeira vez em sua vida. Sua total dedicação ao filho refletia tanto um inves-
timento narcísico na criança, quanto o que poderia ser chamado de uma capitula-
ção altruísta, com implicações masoquistas. Essa condensação de características
narcisistas e masoquistas num auto-sacrifício, também influenciou sua relação com
outras pessoas importantes de sua vida e levou-a a revisar radicalmente sua atitu-
de em relação aos homens. Com isto, também libertou-se da necessidade de man-
ter uma visão idealizada de si mesma como base para a regulação de sua auto-
estima. Após a morte do filho, conseguiu empenhar-se, pela primeira vez, num
relacionamento com um homem, caracterizado por mutualidade e compromisso.
Às vezes, a seleção de um parceiro inclui esforços para curar a patologia do
indivíduo. Inconscientemente, um homem com um auto-engrandecimento narcísico,
uma desvalorização cínica de compromissos com valores éticos, e a convicção de
que o mundo é hedonista e egoísta, pode escolher uma mulher com características
opostas, de um profundo comprometimento ético e uma significativa apreciação
desses valores nas outras pessoas. Ao ser atraído por essa mulher e tentado a pisotear
seus valores, como parte de uma compulsão à repetição de seus conflitos narcísicos,
ele também pode estar encerrando a esperança inconsciente de que ela afinal triun-
fe moralmente sobre o cinismo dele. Portanto, os esforços de cura podem desenvol-
ver-se tanto na esfera dos sistemas de ideal de ego do casal quanto na dos conflitos
passados inconscientes.
C a p í t u l o 11

Sexualidade da Latência,
Processos de Grupo e
Convencionalidade

T endo examinado como a disposição do indivíduo para a excitação sexual e o


desejo erótico é gradualmente transformada na capacidade para o amor
maduro, quando o indivíduo se torna parte do casal sexual, investiguemos agora
o relacionamento entre o casal e a rede social que o circunda. Meu foco será
especialmente nos grupos pequenos e grandes, nos quais os casais encontram um
ao outro, e com os quais interagem de maneiras complexas, tendo isto uma influ-
ência importante nas vicissitudes da vida amorosa do casal.
Estou me referindo não apenas aos grupos reais com os quais o casal interage,
mas também às fantasias que o indivíduo e o casal desenvolvem acerca dos grupos
dos quais fazem parte, incluindo as fantasias referentes às expectativas, exigências,
ameaças e gratificações a serem esperadas quando eles se tornarem parte desse
grupo — acredito que a ideologia, os julgamentos de valor e as expectativas mo-
rais, reais ou fantasiadas, acerca da natureza das relações amorosas e das expecta-
tivas e responsabilidade do casal, também desempenham aqui um papel significa-
tivo. Penso que se estabelece um delicado equilíbrio entre o casal e seu grupo ou
grupos circundantes, que por sua vez influencia o equilíbrio psicodinâmico do
casal. Meu entendimento dessas relações está baseado em formulações psicanalíti-
cas referentes à psicodinâmica dos processos de grupo, particularmente o relacio-
namento desses processos com as atitudes do indivíduo em relação à sexualidade
e à vida sexual do casal.

156
PstcopatoZogia das Relações Amorosas 157

O Casal e o Grupo
Descrevi anteriormente (Kernberg, 1980b) as
contribuições psicanalíticas que explicam os relacionamentos
entre os indivíduos, casais e grupos. Freud (1921) descreveu
a regressão que ocorre nos grupos e a idealização do líder, que
tem suas raízes na situação edípica. Bion (1961) descreveu a
regressão que ocorre nos grupos pequenos e propôs que os
membros operam de acordo com certas suposições básicas —
os pressupostos de fuga-luta e dependência (de origem pré-
edípica) e o pressuposto do acasalamento (de origem
edípica). Rice (1965) e Turquet (1975) estudaram grupos
maiores, e descobriram que a perda do senso de identidade
caracterizava os seus membros, assim como o medo da
agressão e de perder o controle.
Em geral, todos os grupos não-estruturados (não-
estruturados no sentido de não estarem organizados em
torno de alguma tarefa) estimulam um senso de moralidade
regressivo e restritivo. Este tipo de moralidade é
característica das redes sociais — os pequenos grupos e
comunidades sociais dentro dos quais os indivíduos ainda
se comunicam uns com os outros, mas não são íntimos,
nem necessariamente mantêm relações pessoais entre si. O
estabelecimento de alguns valores básicos comuns nessas
condições sociais não-estruturadas, assim como as "
ideologias" transicionais que se desenvolvem em grupos
pequenos e grandes, são notavelmente semelhantes às
características da psicologia de massa em geral, isto é, as
características psicológicas das reações dos indivíduos quando
eles se sentem como pertencendo temporariamente a um
grande grupo ou a uma massa impessoal.
Sugeri, num trabalho anterior (1980b), que nessas
condições os membros tendem a projetar componentes do
superego infantil sobre o grupo, estabelecendo um consenso
inconscientemente compartilhado em relação a alguns valores
básicos. Esses valores protegem o grupo contra a emergência
da agressão primitiva, protegem o casal contra o ataque ou
invasão do grupo, e implicam num controle do grupo sobre
a privacidade do casal que expressa o ressentimento e a
inveja que o grupo tem do casal, assim como uma defesa
contra essa inveja por meio do exercício do controle sobre o
casal. Esses valores comumente partilhados, inconsciente-
mente projetados e intuitivamente reconhecidos constituem
uma moralidade muito diferente dos valores morais segundo os
quais cada membro do grupo opera como um indivíduo.
Proponho que esta moralidade, que chamo de
moralidade convencional, é surpreendentemente semelhante à
moralidade das crianças na fase da latência, isto é, após o auge
do complexo de Édipo, entre os 4 e 6 anos de idade, e
estendendo-se até à puberdade e adolescência. Este período
desenvolvimental testemunha, como parte da evolução do
superego, a construção de um sistema moral que é altamente
dependente da necessidade de adaptar-se ao sistema social da
escola e do mundo adulto em geral, e ao mesmo tempo
proteger as relações de ternura com os pais dos conflitos
sexuais e agressivos do estágio edípico. A psicologia da
latência inclui a
158 Oito F. Kernberg

consolidação sublimatória das relações positivas com os pais, e a repressão da ex-


pressão direta dos anseios sexuais em relação ao objeto edípico, assim como da
competição agressiva com o rival edípico. Derivativos destes conflitos são
redirecipnados para a formação de grupos que caracterizam o período da latência
e, como parte da integração ao grupo, a criança se identifica com todos os outros
membros do grupo pela projeção do novo superego pós-edípico estabelecido. Ao
mesmo tempo, anseios privados por um relacionamento amoroso exclusivo, deri-
vado dos conflitos edípicos, marcam o início da dialética entre o desejo individual
e a conformidade de um assumido ideal do grupo.
As características da moralidade do grupo da idade da latência incluem o
conhecimento sexual, mas também a "inocência", no sentido de que a sexualidade
é algo proibido e que tem a ver com o comportamento secreto dos "outros". Existe
também uma desvalorização da sexualidade genital percebida como condensada
com seus precursores anais, expressados, por exemplo, nas piadas "sujas", nas
referências aos órgãos e atividades sexuais como sujos e na reação de vergonha e
nojo ao comportamento sexual (juntamente com uma curiosidade secretamente
excitada e admirada em relação à sexualidade). A moralidade simples da idade da
latência divide os indivíduos e causas em bons e maus, dissocia a sexualidade
genital da afeição terna, o sexo genital dos componentes sexuais infantis perversos
polimorfos, e enfatiza a ingenuidade e uma inocência motivada. Esta moralidade
da idade da latência não tolera a ambiguidade e a ambivalência que caracterizam
as relações emocionais maduras e tende a eliminar o elemento erótico dos relacio-
namentos "legalmente aceitos", basicamente, o casal "oficial" parental. E interes-
sante que, em seus sentimentos e fantasias privadas, as crianças na idade da latência
apresentam uma notável capacidade para apaixonar-se, com características do amor
romântico que tradicionalmente têm sido atribuídas apenas aos adolescentes e
adultos, exceção feita ao tema de terem filhos (Paulina Kernberg, 1981).
Os valores da idade da latência tendem a estruturar a comunicação com pre-
dominância da forma sobre o conteúdo: na ação, preferência pelo sentimentalismo
mais que pelo sentimento profundo; e, no pensamento, tendência para o simples e
o trivial em detrimento do profundo. A intolerância da ambivalência, encontrada
na moralidade da latência, está talvez mais notavelmente expressada na resolução
dos conflitos pela dissociação em "inimigo mau" e "amigosbons", abusca de uma
maneira simplista para o bem triunfar sobre o mal. É interessante que essa
moralidade da latência mostra grande semelhança com okitsch, formas de arte sem
mérito estético mas com grande apelo popular. Okitsch normalmente é caracteriza-
do pelo sentimentalismo, caráter óbvio e pretensioso, grandiosidade, a fácil simpli-
ficação dos estilos expressivos tradicionalmente dominantes, superficialidade in-
telectual e a perseguição de ideais infantis: a idealização do que é pequeno, bonito,
aconchegante e divertido; as imagens de palhaços, um fogo de chaminé contra uma
paisagem de inverno, o ambiente protegido, seguro, simples e feliz da fantasia da
infância.
Psicopatologia das Relações Amorosas 159

É esta moralidade de latência que se presta à maciça projeção sobre o grupo,


e persistirá através da adolescência, até às vezes a idade adulta, como um sistema
mínimo de valores em comum nos grupos não-estruturados e sob condições da
regressão grupai. Enquanto o superego do período da latência é facilmente proje-
tado pelos membros dos grupos não-estruturados, o superego posterior, altamente
individualizado e maduro, "permanece no lugar". É este superego maduro que
permitirá a integração de sexualidade com a ternura, possibilitando a capacidade
sustentada do amor apaixonado na idade adulta.
A similaridade da moralidade da latência com okitsch, aponta para a conexão
íntima dos progressos grupais regressivos com a criação da cultura de massas, isto
é, com a criação de produtos com objetivo de atrair os indivíduos que funcionam
sob a influência de psicologia das massas.

Psicologia de Massa e Cultura de Massa

As estratégias de marketing podem ser aplicadas a produtos comerciais ou a


ideologias políticas e religiosas. Serge Moscovici (1981) aplicou a teoria de Freud
(1921) sobre a psicologia das massas à mídia atual; examinou como a nossa mídia
de massa consegue produzir condições de psicologia de massa, mesmo na ausência
de concentrações de pessoas em multidões, movimentos de massa ou organiza-
ções. Isto é, mesmo o indivíduo sozinho, que está escutando rádio ou assistindo à
televisão ou a filmes de arte, responde como se fosse parte de um grupo.
A mídia de massa permite uma simultaneidade de comunicações que cria
uma multidão imediata, potencial, e a sensação de que os indivíduos estão fazendo
parte desse grupo. Na medida em que o rádio proporciona uma maior simultanei-
dade de comunicações do que os jornais, e a televisão intensifica a proximidade
entre o que é visto e o espectador, tanto um quanto o outro são particularmente
eficazes em converter o espectador ao status de um membro do grupo. A comuni-
cação da mídia de massa preenche as características da convencionalidade corres-
pondente às demandas do superego da latência recém-descrito.
A cultura de massa, conforme transmitida pela mídia, é caracterizada pela
simplicidade e significativa limitação nas demandas intelectuais feitas ao consu-
midor. A linguagem e autoridade da televisão são dirigidas a uma massa "unifor-
mizada", implicitamente passiva e nivelada. As histórias dos programas cómicos
(ou comédias de situação) da televisão são simples, claramente compreensíveis, e
a reação do espectador é previsível. Permite-se ao espectador um sentimento de
divertida superioridade, o que facilita sua gratificação narcísica. As situações dra-
máticas, com soluções claras, mantêm a dissociação entre o criminoso (mau) que é
punido, o pecador que se arrepende, e os (bons) defensores triunfantes daquilo que
é certo e puro. O sentimentalismo e a orientação para valores da infância, além da
ativação de fantasias moderadamente paranóides e narcisistas, nas histórias de
160 Oito F. Kernberg

suspense e aventura, gratificam os desejos regressivos do


grande grupo não-estruturado.
A cultura de massa oferece uma moralidade
convencional regulada, estável, estrita e rígida; há
autoridades finais (pais) que decidem o que é bom e mau, a
agressão é tolerada somente como expressão de justificada
indignação ou punição de criminosos, a moralidade
convencional do grupo é tomada como certa, e a estética do
sentimentalismo protege contra uma profundidade
emocional que seria esmagadora da perspectiva da
moralidade infantil.
Mesmo quando a agressão parecer ser o principal
assunto da cultura de massa, o triunfo do herói sobre os
monstros agressivos combina a tolerância do sadis-mo com o
triunfo do superego da idade da latência.
Com temas sexuais predominam as mesmas características
da latência: o amor terno está completamente separado de
qualquer elemento erótico, ou o erotismo é apenas levemente
sugerido em relação a pessoas idealizadas e valorizadas. A
sexualidade genital é "conhecida", mas é somente tolerada
quando dissociada das experiências emocionais com as
pessoas idealizadas. Tipicamente, a sexualidade explícita está
apenas vinculada a interações desvalorizadas, depreciadas e
agressivas, ou às pessoas "estranhas" no drama
convencional. A expressão direta das tendências sexuais
infantis perversas polimorfas está claramente ausente. É carac-
terístico dos filmes convencionais, mesmo quando existe uma
aparente tolerância à exposição da interação sexual, que não
haja nenhum sexo prazeroso entre as pessoas bem-casadas,
e que haja uma ausência de ternura erotizada, a não ser
aquela ligada a momentos de "paixão", normalmente com uma
clara implicação da qualidade agressiva, perigosa ou punível
daquela determinada interação apaixonada.
Descobri que os filmes ilustram particularmente bem o
perene conflito entre a moralidade privada e a
convencionalidade que se origina com os processos grupais do
período da latência. Acredito que a investigação das
diferenças entre a arte erótica, a convencionalidade e a
pornografia nos filmes, permite um melhor entendimento das
motivações inconscientes envolvidas na aceitação ou
intolerância ao erótico sob o impacto da cultura de massa.

A Arte Erótica e sua Expressão nos Filmes

De acordo com Bergmann (1987), a arte erótica foi


inspirada, desde o início da história, pela experiência humana
do amor apaixonado. Os artistas tentaram lidar com a
experiência universal do erótico como uma transcendência da
vida cotidiana comum e de suas tarefas e atividades orientadas
para a realidade. Do meu ponto de vista, dimensões específicas
caracterizam a arte erótica: em primeiro lugar, ela tem uma
dimensão estética, a apresentação da beleza do corpo humano
como tema central, refletindo a idealização da superfície do
corpo, sua textura e forma, como o aspecto central do amor
apaixonado. A descrição artística do que poderia ser chá-
Psicopatologia das Relações Amorosas

mado de geografia do corpo humano, a projeção no corpo humano dos ideais de beleza, a
identificação dose//com a natureza, através do corpo, e a transcendência assim como a natureza
transitória da beleza humana são elementos centrais da arte erótica.
A arte erótica também é caracterizada pelaambiguidade. Ela oferece múltiplos significados em
potencial na relação dos amantes, aponta para a reciprocidade de todos os relacionamentos, e,
implicitamente, para a qualidade polimorf a perversa da sexualidade infantil, assim como a
ambivalência das relações humanas. Esta ambiguidade amplia o espaço da fantasia primitiva
inconsciente, que é ativada em qualquer relacionamento erótico, e contribui fundamentalmente para a
tensão erótica.
E a arte erótica representa um rompimento da atitude convencional restritiva em relação à sexualidade,
já descrita, e revela uma experiência erótica que simbolicamente também representa uma moldura implícita
de valores éticos e responsabilidade. O erótico na arte é descrito como um aspecto sério e maduro dos
valores humanos, símbolo de um ideal do ego adulto que elimina as proibições infantis e as limitações
convencionais da sexualidade.
A arte erótica também contém umadimensão romântica: uma idealização implícita dos amantes que se
rebelam contra as restrições da convencionalidade e contra a degradação da sexualidade presente
na analização, desvalorização e desumanização do erótico que caracteriza os fenómenos do grande
grupo (e que é encontrada na psicologia da pornografia). O aspecto romântico do erótico também implica
na simultânea combinação da fusão ideal no amor, com uma asserção de autonomia por parte dos
amantes.
Finalmente, a arte erótica enfatiza a qualidade individualizada do objeto erótico: ela transmite
tipicamente umelemento "insaturado" de segredo, privacidade e, ainda assim, uma potencial "ausência de
vergonha". A abertura ou "nudez" do objeto erótico, todavia, se torna impenetrável por um elemento de
distância que permanece como um componente estranhamente frustrante dos trabalhos bem-sucedidos
dessa arte. A arte erótica "contém-se a si mesma", no sentido de despertar um anseio irrealizável no
espectador, ela não pode ser totalmente assimilada e possui um elemento intangível que interfere com a
capacidade do observador de se identificar totalmente com ela. Além disso, a cena primária (a intimidade
sexual abertamente retratada) está estranhamente protegida por aquele aspecto autocrítico da obra de
arte, de modo que a integração da ternura e do erótico, do claramente físico e sensual com o ideal
impalpável ou romântico, mantém uma lacuna insuperável entre a obra de arte e o observador.
Essas características gerais da arte erótica podem estar expressadas na escultura, pintura, literatura,
música, dança e teatro, mas talvez em meio nenhum tão claramente como nos filmes. Que o filme é um
meio óbvio para a arte convencional, que reflete a cultura de massa, talvez seja evidente, e esta
função inclui a convencionalidade em sua expressão do erótico. Dado o poder de proximidade das
imagens visuais do filme, ele tem um potencial especial como meio para a expres-
162 Otto F. Kernberg

são do erotismo, que não pode ser dissociado da capacidade do filme de expressar simultaneamente a
contrapartida da arte erótica: o assunto cindido, convencionalmente tabu, da sexualidade genital e da
sexualidade polimorfa perversa, infantil, pré-genital, em sua forma de pornografia despersonalizada e
analizada. De fato, o poder especial do filme como meio para a expressão do erótico, nos encoraja a
comparar os filmes convencionais, dos filmes de arte erótica e dos filmes pornográficos.
O filme permite ao espectador realizar, na fantasia, a invasão da cena primária. Com sua poderosa
proximidade visual, seu potencial para isolar, engrandecer e dissociar a representação dos genitais e
partes do corpo e de seu entrelaçamento, ele fornece um canal para a idealização e para a fetichização do
corpo humano. As propriedades visuais e auditivas do filme permitam ao espectador invadir o segredo e
a privacidade do casal edípico, uma invasão sádica e voyeurista assim como sua implícita
contrapartida, a gratificação pela projeção dos impulsos exibicionistas e masoquistas, e a gratificação dos
aspectos homossexuais e heterossexuais vinculados a essas realizações voyeuristas e exibicionistas.
Ao mesmo tempo, na medida em que o filme permite transcender os marcos de tempo e espaço
que ordinariamente controlam a exibição do comportamento sexual, e que permite a observação direta
e/ou participação, com outros casais, em sexo grupai, permite também uma arbitrária aceleração,
desaceleração e distorção da experiência visual, que ressoa fortemente com a natureza da fantasia
inconsciente. A exibição do erótico no filme atravessa as barreiras da vergonha e, por representar
simultaneamente todos os componentes da sexualidade edípica e pré-edípica, oferece um estímulo
potencial para uma intensa excitação erótica.
Uma vez que o filme é o meio mais efetivo para transmitir a cultura de massa, particularmente
quando projetado para uma audiência reunida em grupo, ele ati-va nos espectadores a disposição para a
psicologia de massa o elemento erótico no filme, desafia a convencionalidade tolerável. Em virtude da
intolerância ao erótico como parte da psicologia de massa (com a exceção daqueles que se reúnem
explicitamente para assistir a filmes pornográficos), o erótico no filme cria um choque na audiência
convencional. O erótico no filme ameaça, pela proximidade de suas imagens visuais, as próprias
fronteiras do convencional.
Examinemos este choque. Para a audiência, a observação de um casal tendo relações sexuais ativa
proibições antigas contra a invasão do casal edípico, e a excitação suprimida ou reprimida associada a
esta invasão. O que a audiência está vendo implica em desafiar o superego infantil e o superego
convencional da latência. A excitação sexual induzida, particularmente naqueles que toleram a
capacidade para excitar-se sexualmente com estímulos visuais (obviamente, os espectadores com
severas inibições sexuais reagirão com repugnância e nojo), pode ser vivenciada como um ataque a valores
profundamente enraizados.
O choque é exacerbado porque o filme de arte foi construído para facilitar a identificação do
espectador com os protagonistas (que representam inconscientemente o casal parental). A violação
inicial de um tabu é então acompanhada por
Psicopatologia das Relações Amorosas 163

culpa, vergonha e embaraço (pela excitação com a cena primária). A identificação


inconsciente com o comportamento exibicionista dos atores, com os aspectos sádi-
cos e masoquistas dos impulsos, respectivamente voyeuristas e exibicionistas, pro-
voca um desafio chocante no superego do espectador.
O filme erótico, como uma forma de arte, exige um alto grau de maturidade
emocional, a capacidade para tolerar e apreciar a sexualidade, para integrar o ero-
tismo e a ternura, para integrar o erótico num relacionamento emocional comple-
xo, para ser receptivo aos valores éticos, e também uma receptividade estética
equivalente aos desenvolvimentos já mencionados referentes à capacidade para o
amor apaixonado. Esta maturidade emocional tende a ficar temporariamente
desgastada sob as condições da psicologia de massa.

O Filme Pornográfico

Vamos examinar agora os aspectos estruturais da pornografia nos filmes. No filme pornográfico
típico — assim como na literatura pornográfica típica—existe uma ausência radical das funções do
superego. As histórias enfatizam a fácil expressão da sexualidade; a vergonha é abolida. Uma vê/
aceita a ruptura dos valores convencionais e particularmente dos valores individuais, a liberdade em
relação ao julgamento moral reproduz a liberdade excitante e liberadora em relação à
responsabilidade pessoal, que Freud descreveu nas massas. O espectador se identifica com atividades
sexuais e não com relações humanas. A falta de ambiguidade e a ausência de significado na
narrativa (que não permite o desenvolvimento de nenhuma outra fantasia a respeito da vida
interna dos protagonistas) contribui para a mecanização do sexo.
A desumanização do relacionamento sexual conforme costuma ser transmitida no filme
pornográfico ativa, no espectador, particularmente quando ele o está assistindo em grupo, sentimentos
sexuais infantis perversos polimorfos dissociados da ternura. Isto inclui os aspectos agressivos da
sexualidade pré-genital, uma degradação feticista do casal na intimidade sexual, como se fossem
uma coleção de partes corporais excitantes, e uma implícita destruição agressiva da cena primária em
componentes sexuais isolados. Aqui, em resumo, ocorre uma perversa decomposição do erótico, que
tende a destruir o vínculo do erótico com o estético, assim como a idealização do amor apaixonado.
Na medida em que o filme pornográfico desafia diametralmente a moralidade convencional, e de
fato expressa uma profunda agressão à convencionalidade, ele também tem um valor de choque.
Mas mesmo quando procurada para facilitar a excitação sexual em níveis primitivos da experiência
emocional, a pornografia rapidamente se torna aborrecida e chata. A razão é que a dissociação entre
o comportamento sexual e a complexidade da relação emocional do casal despoja a sexualidade de
suas implicações pré-edípicas e edípicas; em resumo, ela mecaniza o sexo.
164 Otto F. Kernberg

Existe um paralelo entre o filme pornográfico e a deterioração do amor apaixonado quando os


impulsos agressivos dominam o encontro sexual; quando, em virtude da agressão inconsciente,
existe uma destruição em profundidade, da relação objetal do casal, e quando a falta de um superego
integrado nos parceiros e no casal facilita a dissolução da privacidade e intimidade no sexo grupai
mecanizado. Não é coincidência que o filme pornográfico, que deliberadamente explora a
dissociação do sexo e da ternura, acabe sendo vivenciado — após o primeiro impacto sexualmente
estimulante de sua desafiadora exibição da sexualidade perversa polimorf a—como mecânico e
aborrecido, semelhante aos indivíduos empenhados em sexo grupai, que vivenciam uma deterioração
da capacidade para a excitação sexual com o passar do tempo, em consequência da deterioração de
suas relações objetais.
O filme pornográfico também tem uma audiência de massa facilmente disponível,
aparentemente "não-convencional" ou"underground" mas harmoniosamente responsiva, que tolera
e aprecia a ativação da analização da sexualidade que caracteriza os processos do grande grupo
(Kernberg, 1980). A aparente contradição com os efeitos aborrecidos, auto-sabotadores, o filme
pornográfico está expressada na rápida perda da audiência de massa, na rápida saturação do
interesse pelo material pornográfico, na extrema instabilidade do comparecimento.
As características do filme pornográfico liberam os espectadores do choque da invasão da
cena primária, e da ameaça de confrontação com a integração da ternura e de sensualidade que
não pode ser tolerada pelo superego da latência. Com relação a isso, o filme pornográfico é a
contraparte do filme convencional, e, paradoxalmente, em todos os outros aspectos, obedece à
mesma dominação convencional inconsciente do superego da latência.
De fato, à parte da exibição da interação sexual, o filme pornográfico tende a ser extremamente
convencional e frequentemente mostra um "humor" ou divertimento infantil ao lidar com a
comunicação sexual, o que permite escapar de qualquer profundidade de relação emocional, assim
como da consciência dos elementos agressivos do conteúdo sexual do filme. A ausência consistente
de uma estrutura estética também reflete a ausência de funções maduras do superego, e é ex-
pressada na vulgaridade do cenário, na trilha sonora, nos gestos e no ambiente geral.
Tipicamente, a apresentação agressiva e voyeurista do comportamento sexual, o foco nos contatos
mecânicos de penetrar e ser penetrado, nos genitais que envolvem ou são envolvidos e nas partes
corporais relacionadas, contribui para dividir o corpo humano em partes corporais isoladas, cuja
exibição consistente e repetitiva reflete uma abordagem f etichista aos órgãos sexuais.
A descrição de Stoller (1991) da psicologia dos atores, diretores e produtores dos filmes
pornográficos ilustra, dramaticamente, as experiências traumáticas e agressivas na história
passada dos que participam na criação desses filmes, particularmente experiências de humilhação e
traumatização sexual. Stoller propõe que a pornografia representa, inconscientemente, uma tentativa,
por parte dos envolvidos em sua produção, de transformar essas experiências na ativa reformulação
da
Psicopatologia das Relações Amorosas 165

experiência sexual, através de uma expressão dissociada da sexualidade genital, sob o impacto da
sexualidade infantil perversa polimorfa.
Assim, paradoxalmente, embora o filme pornográfico dê a impressão de ser diferente do filme
convencional, a absoluta dissociação dos aspectos sexuais e sensuais de um lado, e dos aspectos
ternos e idealizados do erotismo do outro, é a mesma encontrada no filme convencional. Existe
uma pornografia geral que corresponde a essas características, e uma pornografia altamente
especializada que atrai os indivíduos com uma perversão específica (ou parafilia), isto é, uma restri-
ção conflitualmente determinada de seu comportamento sexual a um componente infantil perverso
específico, que se torna obrigatório para a obtenção da excitação sexual e do orgasmo.
Examinei em outro trabalho (Kernberg, 1992) a psicodinâmica da perversão, e somente
enfatizaria aqui que esses filmes pornográficos especializados diferem significativamente do filme
pornográfico comum, no sentido de que seus participantes geralmente estão comprometidos com a
perversão particular descrita, o que dá ao filme uma qualidade de autenticidade emocional. Esses
filmes reintroduzem um elemento de individualização, uma "reumanização" dos atores, que
vivenciam o que poderíamos chamar de uma afirmação existencial pela realização do ato perverso
específico, que permite seu encontro com o erótico. Esse comprometimento poderoso e restrito
reintroduz uma qualidade de relacionamento objetal e, paradoxalmente, também um elemento de
superego primitivo, no sentido de que o ato perverso "deve" ser executado para permitir a
realização erótica. Este fator obrigatório torna possível que o espectador se identifique com o ator,
mas também é uma ameaça, porque carrega um forte apelo aos níveis mais profundos da sexu-
alidade pré-edípica e seus conflitos. Isso faz com que seja muito difícil que uma audiência comum
tolere tais filmes eróticos especializados. Conseqúentemente, estes filmes têm uma audiência
limitada, e podem provocar repugnância e nojo numa audiência comum, mesmo quando a pessoa
os assiste sozinha.

O Filme Erótico Convencional

A descrição do erotismo no filme convencional representa a contrapartida do filme


pornográfico. O filme erótico convencional facilita a regressão não-exigente e imediatamente
gratificadora ao divertimento da cultura de massa, permite a harmonia com a moralidade
convencional e a reasseguradora estabilidade de uma identidade de grupo baseada em valores do
superego da latência. Embora esses filmes tenham um conteúdo narrativo e algum
desenvolvimento dos personagens, sua visão da vida sexual dos protagonistas continua a refletir
a moralidade do superego da latência. Envolvimentos sexuais intensos podem ocorrer entre indiví-
duos cujo relacionamento é muito agressivo e sem ternura, ao passo que os casais com um
relacionamento terno, especialmente se são casados, não aparecem em interação sexual. Esses
filmes simplificam as relações emocionais e evitam a pró-
166 Oífo F. Kernberg

fundidade emocional de uma maneira estranhamente semelhante ao filme pornográfico (apesar do


comportamento e reações mais aceitáveis dos indivíduos e da idealização dos ideais da latência,
que proporcionam uma qualidade mais humana, embora sentimental, que está ausente do filme
pornográfico). O filme convencional elimina totalmente a sexualidade infantil perversa polimorfa
que constitui o principal foco do filme pornográfico. Tanto o filme erótico convencional quanto o
filme pornográfico reconciliam sua audiência com a falta de tolerância — como parte de sua
contaminação pela psicologia de massa — à integração, no encontro sexual, da sexualidade e da
ternura, ambivalência e profundidade emocional, fusão e individuação.
A respeito disso, é interessante que exista uma tolerância muito maior, no filme
convencional, para a apresentação da agressão do que do erotismo. Enquanto a censura (ou a
autocensura dos produtores) estimula naturalmente o filme convencional (tendo muito pouca
tolerância pela arte erótica), os mecanismos para este processo seletivo são inconscientes, pelo
menos em parte, relacionados à identificação intuitiva dos censores com a psicologia da idade da
latência da audiência em perspectiva, sem muita análise dos princípios ou estrutura subjacente que
determinam a censura. Uma pessoa que censura filmes comerciais explicou-me que, quando em
dúvida, os censores vêem um filme várias vezes e que, com as repetições, as cenas agressivas
rapidamente têm um efeito dessensibilizador sobre o espectador, o que não acontece com as cenas
eróticas. Assim, os filmes com conteúdo erótico recebem uma censura mais restritiva do que aqueles
com conteúdo agressivo. Na medida em que a capacidade para manter uma resposta erótica seria o
que certamente esperaríamos caracterizar a arte erótica, mais do que a convencional, isso levaria
muito mais naturalmente à censura da arte erótica e à dominância do filme convencional. Mas com
toda a justiça para o censor, os filmes de arte erótica raramente são grandes sucessos comerciais, ao
contrário dos filmes eróticos convencionais. Os censores, poderíamos dizer, relutantemente
respeitam (certa) arte erótica, e a ausência de sucesso comercial completa o seu trabalho. A real
intolerância à arte erótica depende, sem dúvida, da intuição infalível dos produtores de cultura
de massa em resposta à psicologia das massas.

Algumas Outras Considerações sobre a Arte Erótica nos Filmes

A dimensão estética do corpo humano proporciona um sólido potencial para a qualidade visual
do filme como um meio. Se um corpo, ou os corpos, de um casal em intimidade sexual,
correspondem aos corpos daqueles com quem nos identificamos em virtude de sua personalidade,
seu destino e sua psicologia, conforme explicado em detalhes na narrativa, a possibilidade de
identificação traz a integração da ternura com o erotismo em nossa fantasiada participação em sua
intimidade
Psicopatologia das Relações Amorosas 167

sexual, que pode refletir o amor apaixonado na sua mais intensa expressão. A relação emocional
entre os protagonistas que vivenciam um relacionamento erótico tem muitas facetas, ambiguidades e
uma qualidade geralmente insaturada que facilita a experiência de profundidade emocional no
espectador, e permite que este ative totalmente sua fantasia inconsciente e seus derivativos pré-
conscientes e conscientes, fazendo, do devaneio erótico, um importante aspecto da experiência hu-
mana.
A arte erótica apresenta um relacionamento humano em que o erotismo pode ser expressado
livre da convencionalidade comum, rompendo as estruturas convencionais, mas ao mesmo tempo
estabelecendo uma moldura pessoal, individualizada e madura dos valores compartilhados pelo
casal e um ideal do ego compartilhado pelo casal que também estimula a ativação do ego ideal dos
espectadores. O relacionamento erótico se torna a expressão do amor apaixonado, essencialmente
sério e exigente, e inclui uma dimensão romântica do relacionamento dos amantes que ressalta, ao
mesmo tempo, sua união e sua individualidade.
Os momentos de intimidade sexual retratados no filme erótico provocam no observador uma
sensação de excitação sexual, mas também de reticência e vergonha, precisamente porque a união
sexual transmite uma intimidade que envolve uma fragilidade exposta, e permite ao espectador
confrontar-se com seus próprios conflitos acerca da intimidade sexual, de uma maneira que
transcende a experiência comum. Mas, pela mesma razão, esta identificação ativa no espectador
uma separação, de um lado uma identificação com os atores e, de outro, admiração e respeito por
eles e pelo que representam, que mantêm a idealização da cena primária.
De uma estranha maneira, nossa capacidade para nos identificarmos com o casal apaixonado
no filme cria uma nova dimensão de privacidade que o protege, assim como ao espectador, e está
em contraste com a destruição da intimidade e privacidade do filme pornográfico. No filme de
arte, os elementos voyeuristas e exibicionistas da excitação sexual ativada por testemunharmos
uma intimidade sexual, os elementos sádicos e masoquistas dessa invasão, são contidos pela iden-
tificação com os personagens e seus valores. A audiência participa da cena primária, enquanto
inconscientemente assume a responsabilidade por manter a sua privacidade. E os elementos
agressivos da sexualidade infantil perversa polimorfa são integrados com a sexualidade edípica,
assim como a agressão com o erotismo. Isto é o oposto da deterioração do erótico sob o efeito da
dominância da agressão, que caracteriza a sexualidade em certas condições patológicas, da mesma
forma que na pornografia.
A arte erótica consegue uma síntese da sensualidade, profundidade de relações objetais e
sistemas de valores maduros, refletidos na capacidade do indivíduo e do casal para o amor
apaixonado e o mútuo compromisso.
168 Oito F. Kernberg

Ilustrações

The Breakfast Club (Hughes, 1985) era destinado a adolescentes e é um típico exemplo do que
chamei de filme convencional. Ele apresenta os conflitos e a rebelião adolescente na escola—suas
conversas sobre o sexo e comportamento sexual —e transmite a impressão de ser muito "aberto".
Um exame mais atento, contudo, revela que as cenas sexualmente explícitas entre os adolescentes
acontecem sem que os participantes tenham qualquer relação emocional ou são de natureza clara-
mente agressiva. Quando o protagonista, um adolescente anteriormente rebelde e que mais tarde
assume o papel do filho pródigo ou pecador arrependido, se apaixona pela protagonista,
desaparecem todas as referências à intimidade sexual.
O filme Fatal Attraction (Lyne, 1987), que teve um grande sucesso comercial, apresenta
exatamente a mesma estrutura. O marido de uma mulher maravilhosa, compreensiva, tem um caso
com outra mulher que a princípio parece muito atraente, mas que acaba se revelando muito doente,
automutiladora, exigente e por fim assassina. Após aterrorizar o amante, ameaçar a vida do marido
infiel (mas agora arrependido) e de sua família, ela finalmente é morta (em autodefesa) pela esposa.
À parte da moralidade convencional deste filme, em contraste com sua exibição da relação erótica
dos amantes, ele também evita retratar qualquer intimidade sexual entre o marido e a esposa.
Um outro exemplo de um filme convencional, Sex, Lies and Videotape (Soderbergh, 1989),
também um filme comercial de sucesso, com uma exploração da paixão sexual aparentemente
explícita, apresenta a intimidade sexual apenas entre pessoas que não estão apaixonadas umas pelas
outras; o único relacionamento apresentado (quase no final do filme) como autenticamente amoroso
é retratado sem qualquer intimidade sexual. A esposa de um advogado infiel (que tem um caso
com a irmã desta, retratada em termos negativos) é a heroína pura, inocente, frustrada, desapontada
e sexualmente inibida. Após contribuir para a salvação emocional de um jovem amigo
"contracultura" do marido (cuja "perversão" sexual consiste na impotência e numa coleção de
videoteipes contendo confissões sexuais e comportamentos sexuais femininos) a esposa do
advogado acaba num relacionamento amoroso com este amigo do marido, mas sem que qualquer
intimidade sexual seja retratada.
Em contraste com os filmes convencionais e pornográficos,My Night at Maud's, o clássico filme de
Eric Rohmer (1969), exemplifica o erotismo artisticamente retratado. A cena da noite do herói jovem e
obsessivo com a inteligente, cálida, independente e orgulhosa Maud, representa a culminação do
erótico neste filme. O herói é tímido e está apaixonado — por uma jovem que ele viu apenas à
distância, na igreja. Um amigo o apresenta à Maud, uma mulher que recém emergiu de um caso de
amor doloroso, com um final trágico, e que fica atraída e divertida com a rigidez e timidez do nosso
herói. Maud, ao oferecer-lhe a chance de passar uma noite com ela, invade suas reservas morais; ele
luta consigo mesmo e a rejeita, o que fere o orgulho dela. Quando, finalmente, ele está disposto a
aceitar, ela o rejeita, dizendo-
Psicopatologia das Relações Amorosas 169

lhe que gosta de homens que tenham capacidade de decisão. A sutileza da interação entre os dois
personagens e da qualidade erótica de seu relacionamento, e a capacidade do espectador de
identificar-se com ambos, são emocionantes.
Outra ilustração, o Last Tango in Paris, de Bertolucci (1974), que tornou-se um sucesso
comercial—provavelmente devido ao elenco—retrata o desenvolvimento da relação sexual entre os
dois personagens principais, desempenhados por Maria Schneider e Marlon Brando. Schneider está
insegura quanto a casar-se com um jovem diretor de filmes de quem está viva. Ela encontra Brando
num apartamento para alugar, um local potencialmente bonito mas em estado precário. Brando, cuja
esposa, proprietária de um hotelbarato, acabou da cometer suicídio, está num luto profundo,
complicado pela raiva por ela tê-lo traído com um outro homem, que vivia no mesmo hotel. Ao
iniciar um relacionamento com Schneider, uma mulher muito mais jovem, ele tenta negar e superar o
passado recente, estabelecendo com ela um relacionamento no qual ambos concordam nada
dizerem ao outro, nem mesmo seus nomes. Uma relação sexual que vai se aprofundando, em que o
amor e a agressão se misturam, reflete este luto, a idealização, o sentimento de perda e a agressão que
emerge como parte desse esforço para alcançá-la. Schneider, apesar de sua reação assustada ao
sadismo dele, fica tocada e estimulada por este estranho americano em Paris, e o filme lida com a
tentativa, sem sucesso, de manterem e desenvolverem este relacionamento e seu trágico final. A
combinação de amor sexual, relações objetais entrelaçadas e profundos conflitos de valores
descreve a complexa natureza da paixão humana e proporciona uma qualidade intensamente erótica
ao filme.
Por fim, o recente filme de Greenway (1990), The Coook, The Thief, His Wifeand Her Lover oferece
uma poderosa descrição de uma relação erótica como uma tentativa de escapar de um mundo
controlado por um sádico tirano. Uma relação sexual proibida e perigosa, evolui lentamente a partir
de um encontro inicial casual. O fato de os amantes serem de meia-idade intensifica o apelo de
sua busca de uma vida nova, significativa, em seu amor.
O filme integra um mundo simbólico de significados orais, anais e genitais, e uma
superestrutura de um mundo totalitário que transforma todas as relações humanas num mundo
de excremento e violência. A ação corre na elegante sala de jantar de um restaurante exclusivo, em
que o tirano e seus seguidores quebram todas as regras das relações humanas comuns. Além da
sala de jantar, existe um mundo "oral" representado pelo cozinheiro e seus ajudantes, em que a
cultura e a civilização são preservadas pela preparação ritualizada do alimento e pela música de
fundo da voz angelical de um menino, ajudante de cozinha. Fora da imensa cozinha está a rua
"anal", em que uma fumaça venenosa, cães selvagens e pessoas miseráveis dividem a nossa atenção.
Os amantes, tentando escapar dos olhos vigilantes do tirano, num espaço escondido da
cozinha, são eventualmente forçados a fugir, nus, para um caminhão de lixo cheio de carne
estragada. Eles emergem dessa provação no refúgio representado pela biblioteca, da qual o herói é o
zelador, e o relacionamento dos amantes
170 Otto F. Kernberg

é cimentado, pelo menos temporariamente, por um banho que os liberta do mundo anal do qual
escaparam.
Os maus-tratos que o tirano inflige às mulheres, seu profundo ódio pelo conhecimento e
intelecto, a intolerância em relação à vida amorosa privada e livre do casal, tudo isso é reunido numa
dramática celebração do amor, cuja qualidade erótica nos toca por sua própria fragilidade e pelas
forças poderosas contra as quais ela precisa afirmar-se.
Os relacionamentos entre o filme convencional, o filme pornográfico e a arte erótica no filme,
refletem as dinâmicas que envolvem o grupo, a cultura convencional e o casal apaixonado. O casal é
sempre, num sentido profundo, associai, secreto, privado e rebelde, e um desafio ao amor e à
sexualidade convencionalmente tolerados. Enquanto a moralidade convencional oscila, ao longo
da história, pelo menos na civilização ocidental, entre períodos de puritanismo e libertinagem, a
oposição implícita entre o casal e o grupo, entre a moralidade privada e a convenção cultural,
permanece constante. Tanto o puritanismo quanto a libertinagem refletem a ambivalência
convencional em relação ao casal sexual, e essas oscilações históricas se refletem, nesse momento,
na presença simultânea da cultura convencional de massa e o kitsch, num extremo, e na pornografia,
no outro. Poderíamos dizer que apenas o casal maduro e a arte erótica são capazes de sustentar e
preservar o amor apaixonado. A convencionalidade e a pornografia são aliados inconscientes em sua
intolerância ao amor apaixonado.
C a p í t u l o 12

Desafio Externo do Casal:


Processos Grupais
Adolescentes e Adultos

A sexualidade adolescente começa sob o impacto da renovada intensidade / \ da excitação


sexual e do desejo erótico desencadeados pelas mudanças Â. \hormonais da puberdade; a
percepção das mudanças corporais resulta numa maior responsividade aos estímulos eróticos.
Desenvolve-se uma regressão parcial nas funções do ego, com a ativação dos processos de cisão para
lidar com os conflitos inconscientes reativados acerca da sexualidade, que se manifestam em padrões
de comportamento nitidamente contraditórios, particularmente a alternação entre períodos de culpa
e supressão da resposta sexual (os impulsos ascéticos característicos dos adolescentes), e os anseios
sexuais infantis perversos polimorfos. O decréscimo nos mecanismos repressivos do ego está
relacionado à regressão parcial e reorganização do superego e à necessidade de integrar os novos
anseios sexuais com as proibições do superego infantil. Em circunstâncias ótimas, a tolerância aos
impulsos infantis perversos polimorfos, genitais e pré-genitais, permite sua integração como parte
das novas experiências dosei/, enquanto, simultaneamente, as proibições infantis contra os anseios
sexuais dirigidos ao objeto edípico são reconfirmadas.
Uma pré-condição estrutural importante para o desenvolvimento da capacidade para o amor
sexual maduro é a consolidação de uma identidade de ego integrada, no contexto da crise de
identidade adolescente.
Com base em meu trabalho com pacientes apresentando uma estrutura de
personalidadeíwder/me, e pacientes (borderline ou não) apresentando uma estrutura de personalidade
narcisista, conclui que a identidade de ego se estabelece gradualmente, ao longo do período de
bebé e da primeira infância, no processo de tentar superar a primitiva organização de ego em que
predominam as operações relacionadas aos mecanismos de cisão. A identidade do ego depende, e
reforça, o

171
172 Otto F. Kernberg

estabelecimento de um conceito deseZ/integrado e relações objetais


totais, tendo a repressão (e as operações defensivas relacionadas) como
seus mecanismos predominantes. Erikson (1956) descreveu a
conquista da intimidade como o primeiro estágio da idade adulta, e
enfatizou que este estágio depende de ter sido obtido um sendo de
identidade na adolescência. Os estágios no desenvolvimento da capaci-
dade para apaixonar-se e permanecer apaixonado representam uma
aplicação desse conceito aos relacionamentos amorosos normais e
patológicos.
A adolescência costuma apresentar crises de identidade, mas não
difusão da identidade, dois conceitos que merecem ser claramente
diferenciados (Erikson, 1956,1959). A crise de identidade, sugeriu
Erikson, envolve a perda da correspondência entre o senso interno de
identidade, num certo estágio de desenvolvimento, e a "confirmação"
proporcionada pelo ambiente psicossocial. Essa discrepância ameaça o
autoconceito, assim como a adaptação externa, e requer o reexame do
próprio sentido de identidade e do relacionamento que se tem com o
ambiente. Em contraste, a difusão da identidade é um síndrome típico da
organização borderline de personalidade (Jacobson, 1964; Kernberg,
1970b), caracterizada por estados de ego mutuamente dissociados e
ausência de integração não apenas dose//, mas também do superego e do
mundo de relações objetais internalizadas. Existe uma relação entre a
crise de identidade e a identidade do ego: quanto mais estável a iden-
tidade de ego básica, melhor está o indivíduo equipado para lidar com as
crises de identidade; quanto mais severos os desafios ambientais para
uma identidade de ego estabelecida, maior a ameaça de colapso
naqueles cuja formação de identidade é falha.
O diagnóstico clínico diferencial entre a crise de identidade e a
difusão da identidade requer um cuidadoso exame do comportamento
do adolescente e de suas experiências subjetivas, no passado e no
presente. Um desafio rebelde à autoridade pode coexistir com um
comportamento radicalmente contrário às convicções rebeldes
professadas. Intensos relacionamentos amorosos e lealdades podem
coexistir com um comportamento desconsiderado, negligente,
inclusive cruel e explorador. Entretanto, ao examinar a relação do
adolescente com estados de ego e ações aparentemente contraditórios,
um sentimento básico de continuidade emocional diferencia claramente
o adolescente neurótico e normal, de seu equivalente mais
desorganizado que apresenta difusão da identidade. As seguintes
características são particularmente úteis nesta diferenciação (Kernberg,
1978): a capacidade de sentir culpa e preocupação e o genuíno desejo
de reparar o comportamento agressivo, que é reconhecido como tal
após uma explosão emocional; a capacidade para estabelecer relações
duradouras, não-exploradoras, com amigos, professores e outros
adultos, assim como uma avaliação relativamente realista dessas
pessoas, em profundidade; e um conjunto de valores cada vez mais
amplo e profundo — independentemente do fato de esses valores serem
conformes ou opostos à cultura prevalente que cerca o adolescente.
A implicação prática deste diagnóstico diferencial é que uma
razoável certeza sobre a estabilidade da identidade de ego estabelecida
pelo adolescente, propor-
Psicopatoíogia das Relações Amorosas 173

ciona o reasseguramento básico de que o tumulto e conflitos característicos do


apaixonar-se e das relações amorosas em geral, não refletem estruturas de personalidade
limítrofe e narcisista. As típicas manifestações clínicas dos conflitos sexuais na
adolescência, tais como a dissociação entre ternura e excitação sexual, a dicotomia dos objetos
assexuais idealizados e dos objetos sexuais, desvalorizados, do outro género, a
coexistência da culpa excessiva e da expressão impulsiva dos impulsos sexuais, podem
representar conflitos que variam do normal ao gravemente neurótico e constituem um
desafio diagnóstico. Em contraste, a presença da difusão de identidade indica uma séria
psicopatologia, e que os conflitos sexuais constituem apenas o início de interferências a
longo prazo na vida amorosa normal.
Para o profissional da saúde mental que examina adolescentes de grupos sociais
desfavorecidos, tais como os jovens do interior nas grandes cidades norte-americanas, a
descrição sobre as relações amorosas conflituais baseadas em dados de adolescentes
americanos de classe média, pode parecer inadequada. Não se pode esperar que um
adolescente com uma história de testemunhar ou ser vítima de violência, incluindo
violência sexual, desenvolva a capacidade para estabelecer um mundo integrado de
relações objetais internalizadas, sem falar num superego integrado. Em tais condições, o
estabelecimento de uma relação amorosa fica seriamente ameaçado, e um aparente grau de
completa "liberdade" sexual pode coincidir com nítidas limitações na capacidade de
comprometer-se com qualquer relacionamento pessoal íntimo. Portanto, é tentador
atribuir as manifestações de psicopatologia e a incapacidade de estabelecer uma relação
amorosa à educação e às circunstâncias sociais. Nesse contexto, as características da
formação da identidade normal descritas podem ser muito úteis para diferenciar a
adaptação a um subgrupo desprivilegiado, às vezes anti-social, de uma grave
psicopatologia. Uma estrutura social altamente patológica, com grave desorganização da
família, estimula também uma severa psicopatologia individual, mas a adaptação
superficial ao ambiente social patológico pode mascarar a força subjacente do
desenvolvimento de um adolescente.
A reativação de conflitos edípicos, e a luta para reprimir os anseios sexuais edípicos
são uma motivação inconsciente primordial para o adolescente se separar dos objetos
parentais e estabelecer uma vida social em seu grupo de iguais. A rebelião contra
normas e valores comportamentais da família anteriormente aceitos, vai de mãos dadas
com a busca de novos valores, ideais e normas de comportamento em professores
admirados, e num mundo cada vez mais amplo. Assim, uma estrita adesão aos costumes
do grupo no início da adolescência se reflete na continuação de uma moralidade da idade
da latência, que reconf orma a dissociação entre a sexualidade excitante, mas
desvalorizada, como parte dos costumes do grupo no início da adolescência, por um
lado, e a capacidade para a ternura e o amor romântico gradualmente se desenvolvendo
como um potencial" secreto" do indivíduo, por outro. O fato de que os grupos de jovens
adolescentes do sexo masculino conscientemente afirmam esse conceito de genitalidade
excitante, mas com traços anais, e guardam para si mesmos, provadamente, o anseio por
relações ter-
174 Otto F. Kernberg

nas e românticas com o outro género, contrasta com o desenvolvimento típico das jovens
adolescentes do sexo feminino. A franca aceitação ideal e romantizada, por parte da menina, dos
objetos masculinos admirados, acompanha de perto os impulsos "secretos" e privados dos seus
desejos genitais.
Uma tarefa crucial na segunda metade da adolescência é desenvolver a capacidade para a
intimidade sexual; para conseguir isso, a intimidade do casal tem de ser estabelecida em oposição aos
costumes e valores sexuais convencionais do grupo social no qual o casal evoluiu. Como parte desse
processo, o casal precisa, mais cedo ou mais tarde, opor-se aos valores convencionais não apenas do
mundo adulto mas também de seu próprio grupo de iguais. Nesse momento, o relacionamento entre
a cultura do grupo no final da adolescência e a cultura convencional do mundo adulto se torna
importante. Em épocas de relativa estabilidade social, em ambientes sociais relativamente
homogéneos, a cultura do grupo adolescente e a do mundo adulto podem estar em harmonia e
permitir uma transição relativamente fácil, para os casos recém-formados. Nestas circunstâncias, a
aderência aos valores adolescentes e a gradual liberação em relação a esses valores, mais a aderência
aos valores do mundo adulto sem uma incorporação excessivamente rígida da
convencionalidade, são tarefas relativamente fáceis.
Mas quando existem nítidas discrepâncias entre os costumes dos grupos em final de
adolescência e o mundo adulto circundante (por exemplo, quando esses grupos adolescentes
pertencem a subculturas desprivilegiadas ou são parte de uma sociedade que está vivenciando
conflitos sociais e políticos agudos e divisivos), a formação do grupo adolescente tardio pode ser
reforçada pela rígida aderência a uma ideologia relacionada posições ideológicas extremas no mundo
adulto que os cerca. Por exemplo, as pressões sociais a favor ou contra a "correção política" nos
campos universitários, ou as atitudes em relação a drogas, feminismo, homossexualidade, etc., podem
acentuar os processos de grupo regressivos do final da adolescência, e tornar mais difícil a
possibilidade de um casal estabelecer o seu próprio espaço. Da mesma forma, pode ser muito mais
difícil escapar da tirania de um grupo anti-social de uma minoria social desprivilegiada.
Além disso, são especialmente os adolescentes com grave patologia de cará-ter e difusão de
identidade, que talvez precisem aderir rigidamente aos valores do grupo adolescente, em
substituição a uma estrutura intrapsíquica que estimule a autonomia e o desenvolvimento de um
casal maduro. A respeito disso, é bom examinar a extensão em que um par de adolescentes
apaixonados é capaz de man-ter-se independente das pressões do grupo circundante. Por exemplo,
durante a contracultura hippie dos anos 60, a liberdade sexual irrestrita era a ideologia do grupo
adolescente. Muitos adolescentes, na época, mascararam uma severa inibição sexual e a
psicopatologia relacionada, por meio de uma "liberação sexual" superficial que refletia uma falta
de diferenciação do casal em relação aos valores convencionais prevalentes, de seu grupo de iguais.
A aparente liberdade e o comportamento sexual casual dos hippies adolescentes, frequentemente
mascarava uma patologia histérica, masoquista e narcisista. Novamente, em alguns campos uni-
Psicopafologia das Relações Amorosas 175

versitários nos anos 90, as pressões dos iguais podem vir a se


consolidar em torno de um medo convencional da sexualidade
masculina, perigosa, o que pode inibir a formação de casais sexuais
envolvidos numa relação amorosa madura, e facilitar as interações
sexuais sadomasoquistas regressivas. Quanto mais o adolescente so-
frer de uma severa difusão de identidade, mais será dependente ou
submisso às pressões do grupo de iguais em final de adolescência.
Essas dinâmicas podem ser observadas frequentemente no contexto
do tratamento de adolescentes hospitalizados, com grave patologia
de caráter.
Durante o tratamento de adolescentes hospitalizados, é
responsabilidade social e legal da equipe insistir em que o
comportamento sexual entre os menores não seja aceito nem
tolerado. Ao mesmo tempo, terapeutas mais experientes
geralmente esperam que os adolescentes busquem esta intimidade
sexual, num desafio às regras e regulamentos. Quanto mais sadio
o adolescente, mais irá compreender, ajustar-se, mas também
rebelar-se—privada, discreta e inteligentemente — contra essas
restrições, de modo a estabelecer e desenvolver um relacionamento
de casal. Frequentemente descobri, enquanto tratava adolescentes
com condições narcísicas e borderline, que eles ficavam perplexos
com aquilo que consideravam minha falta de rejeição convencional
ao comportamento sexual que achavam que seria proibido.
Também me viam como terrivelmente "moralista" nas áreas em
que menos esperavam, isto é, em relação à natureza contraditória,
caótica e cindida de suas relações objetais.
Conforme o analista ajuda os seus pacientes adolescentes a
conseguirem autonomia em relação às pressões grupais, para que
possam selecionar um objeto de amor adequado às suas
necessidades pessoais e não ao que parece socialmente oportuno
(ajudando-os a superar uma superdependência neuroticamente
determinada aos critérios socialmente impostos para a seleção de um
objeto de amor), o analista inevitavelmente confronta os pacientes
com as dolorosas incertezas das relações amorosas. Estou pensando
no tempo necessário para que os adolescentes consigam reconhecer
a quem amam, de maneira espontânea e natural, ainda que com
conflitos, em vez de escolher e permanecer com um parceiro por
obrigação, culpa, dever, medo ou solidão.
A análise da estrutura de caráter patológica de um
adolescente neurótico deveria promover a integração dos estados
de ego mutuamente dissociados ou cindidos, e a superação da
formação reativa contra os impulsos instintuais que interferem
com uma vida amorosa plena. Entretanto, mesmo em
circunstâncias ótimas, quando a resolução das tendências de caráter
patológico consolidou-se e enriqueceu o sentido de identidade do
ego do adolescente, a identidade do ego completa somente
chegará com o tempo. Certos aspectos das relações objetais
internalizadas podem ser totalmente integradas numa identidade de
ego consolidada somente quando ocorrer a identificação com os
aspectos de papéis adultos dos objetos parentais, um processo que
se estende por muitos anos. Eventualmente, o amor terá de integrar a
identificação com as funções paternas e maternas dos objetos
edípicos, um processo que pode ser "testado" somente no
contexto das
176 Otto F. Kernberg

tarefas da vida adulta, o que dá tempo para o amor sexual se desenvolver com os anos.
A total identificação com os papéis geradores do casal parental se consolida com o
desejo de ter um filho com a pessoa amada: esta capacidade emerge primeiro no final da
adolescência, e amadurece na idade adulta. Como uma aspiração consciente, é mais
um aspecto do amor sexual maduro. Sua inibição num casal adulto pode significar
conflitos masoquistas significativos, especialmente narcísicos. É óbvio que tal
aspiração deve ser diferenciada da aceitação casual e irresponsável das gravideses
indesejadas.
Em outras palavras, as relações amorosas adolescentes podem tornar-se sólidas e
profundas, mas para que se tornem estáveis são necessárias algumas características na
personalidade dos adolescentes que levam tempo para se desenvolver, e os resultados
não podem ser preditos nem pelo adolescente nem pelo analista. O comprometimento
de um casal que começa na adolescência permanecerá incerto, como uma aventura.
Até certo ponto, isso também é verdade para o casal adulto maduro.
Para o psicoterapeuta que trabalha com adolescentes, convém lembrar que há
uma busca normal, específica para a fase, de um caminho "romântico" para a
intimidade sexual, dentro de um relacionamento pleno e intensivo. Se este caminho
não for bem atravessado na adolescência, ele permanecerá como uma exigência não-
preenchida que comprometerá o sucesso dos futuros relacionamentos, o que torna
esta área crucial para experiência humana (os terapeutas de adolescentes precisam
contestar aqueles que a descartam como sem importância).

O Casal Adulto e o Desafio Externo

O amor sexual maduro, isto é, o experimentar e manter uma relação amorosa


exclusiva com uma pessoa, integrando ternura e erotismo, valores profundos e em
comuns, é sempre uma oposição aberta ou secreta ao grupo social circundante. É
inerentemente rebelde. Ele liberta o casal adulto de participar do convencionalismo do
grupo social, cria uma experiência de intimidade sexual que é eminentemente privada
e secreta, e estabelece um ambiente em que as mútuas ambivalências serão integradas
na relação amorosa e irão enriquecê-la (ao mesmo tempo ameaçá-la). Esta qualidade
não-convencional do amor sexual corresponde a uma convicção e atitude profundas,
compartilhadas, do casal, que deve ser diferenciada do comportamento
anticonvencional superficial—por exemplo, em certos subgrupos adolescentes
rebeldes, ou no comportamento exibicionista que reflete vários tipos de patologia.
Estou descrevendo uma atitude interna que consolida o casal, geralmente de maneira
discreta, e que pode ser mascarada por adaptações superficiais ao ambiente social.
Um casal verdadeiramente isolado, no entanto, fica ameaçado por uma série
liberação da agressão que pode destruí-lo ou prejudicar gravemente ambos os par-
Psicopatologia das Relações Amorosas 177

ceiros. Assim, o casal num relacionamento amoroso está em oposição ao grupo mas
precisa dele para sobreviver. Ainda mais frequente, uma grave psicopatologia em um
ou ambos parceiros, pode desencadear a ativação de relações objetais
internalizadas reprimidas ou dissociadas, conflituosas, que são reencenadas pelo casal
através de um vivenciar projetivo do pior do passado inconsciente, da ruptura da união
do casal, e o retorno de ambos os participantes ao grupo como um todo, numa busca
final e desesperada de liberdade individual. Em circunstâncias menos sérias, os
esforços inconscientes de um ou ambos os parceiros para que o casal se misture ou se
dissolva no grupo como um todo, particularmente rompendo a barreira da
exclusividade sexual, pode ser uma tentativa de preservar a existência do casal mas
com o risco de invasão e deterioração de sua intimidade.
Relacionamentos triangulares estáveis, além de reencerrar vários aspectos de
conflitos edípicos não-resolvidos, representam essa invasão do casal pelo grupo. O
colapso crónico da intimidade sexual—por exemplo, num "casamento aberto" —
representa uma destruição mais grave do casal. O sexo grupai é uma forma extrema de
dissolução do casal no grupo circundante, ao mesmo tempo em que preserva de muitas
maneiras a estabilidade convencional do casal. Normalmente, depois disso, apenas um
passo os separa da completa destruição.
Em resumo, ao rebelar-se contra o grupo, o casal estabelece sua identidade, sua
liberdade em relação à convenção, e o início de sua jornada como casal. A
dissolução no grupo representa o refúgio final de liberdade para os sobreviventes de
um casal que se destruiu. Estou empregando o termo "grupo" de modo amplo,
referindo-me à rede informal de relações sociais e familiares mais próximas, as quais
constituem o ambiente social do casal adulto e, frequentemente, o ponto de origem—
assim como a potencial dissolução — do casal. O grupo social dos casais da mesma
geração, é o grupo típico que estou discutindo.
O amor romântico é o início do amor sexual, caracterizado pela idealização
normal do parceiro sexual, a experiência de transcendência no contexto da paixão
sexual, e a liberação em relação ao grupo social circundante. A rebelião contra o
grupo começa na adolescência tardia, mas não termina aí. O relacionamento ro-
mântico do casal é uma característica permanente. Na verdade, acredito que a
tradicional separação entre o "amor romântico" e a "afeição conjugal" reflete o
conflito entre o grupo e o casal, a saber, a desconfiança que o grupo social mantém dos
relacionamentos envolvendo amor e sexo, que escapam ao seu controle total. Ela
também reflete a negação da agressão no relacionamento do casal, o que
frequentemente transforma uma profunda relação de amor numa relação cruel.
Vejo um relacionamento embutido, complexo e predestinado entre o casal e o
grupo. Já que a criatividade do casal depende do satisfatório estabelecimento de sua
autonomia dentro do ambiente grupai, ela não escapa de suas relações com o grupo. E
porque o casal reencena e mantém a esperança do grupo de união sexual e amor, em
face da potencial destrutividade ativada pelos processos grupais, o grupo precisa do
casal. No entanto, o casal não pode escapar das fontes internas de
178 Otto F. Kernberg ______

hostilidade e inveja do grupo em relação ao casal, derivadas da união feliz e secreta dos
pais e da profunda culpa inconsciente pelos anseios edípicos proibidos.
Um casal estável, formado por um homem e uma mulher que ousam superar as
proibições edípicas contra unir o sexo e a ternura, se separa dos mitos coletivos que
infiltram a sexualidade do grupo social em que seu relacionamento como casal evoluiu.
Os processos de grupo envolvendo a sexualidade e o amor são vistos com a máxima
intensidade na adolescência, mas continuam de maneiras mais sutis nos
relacionamentos dos casais adultos. Existe uma excitação constante no grupo informal
referente à vida privada dos casais que o constituem. Ao mesmo tempo o casal é
tentado a expressar sua raiva através do comportamento agressivo em relação um ao
outro, diante na relativa intimidade de estar com amigos próximos. Incapaz de conter a
agressão na privacidade de seu relacionamento, o casal pode usar o grupo como um
canal para descarregá-la e como um teatro no qual exibi-la. O fato de alguns casais que
brigam cronicamente em público terem um relacionamento profundo e duradouro
não deveria ser uma surpresa. O perigo, maravilhosamente ilustrado na peça de Albee,
Who's Afraid of Virgínia Woolf?, é que a agressão seja expressada num grau tal que
destrua os remanescentes da intimidade do casal, particularmente seus laços sexuais,
e conduza à destruição de seu relacionamento. Os amigos no grupo social imediato,
que tentam ajudar o casal em disputa, obtêm uma gratificação vicariautl a partir das
brigas dos outros, e uma reafirmação da segurança de seu próprio relacionamento.
Quanto à excitação sexual e ao erotismo envolvendo membros de um grupo
social de casais, existe a necessidade de um equilíbrio ótimo entre os casais e o
grupo. A separação entre trabalho e vida social ou, melhor dizendo, a informalidade da
formação do grupo social adulto comum, que se centra nos casais envolvidos, protege
todos os membros dos processos de grande grupo que caracterizam os casais numa
organização formal social ou profissional. O casal que mantém sua coesão interna, e
ao mesmo tempo exerce uma poderosa influência sobre o grupo social circundante,
particularmente dentro de uma estrutura organizacional, se torna um alvo imperioso
de idealização edípica, ansiedade e inveja. O ódio que o resto do grupo sente pelo
poderoso casal pode, paradoxalmente, proteger o casal ao forçar sua unidade num
confronto político com o restante do grupo. Mais tarde, pode emergir uma grave
agressão entre o casal, após ele ter-se separado de um grupo que lhe permitiu antes
deslocar a agressão para fora.
Como vimos, um casal que, por várias razões reais ou neuróticas, se isola
excessivamente do grupo social circundante, corre o risco dos efeitos internos da
agressão mútua. Nessas condições, o casamento pode parecer uma prisão, e fugir e
entrar numa situação de grupo pode parecer uma fuga para a liberdade. A pro-
miscuidade sexual que se segue a muitas separações e divórcios ilustra essa fuga para
a liberdade e anarquia do grupo. Pela mesma razão, o grupo pode tornar-se uma
prisão para os membros que não podem ou não ousam entrar no relacionamento de
um casal estável. O relacionamento de casal nos liberta da perda de identidade e da
primitiva agressão inerente ao grande grupo. O envolvimento no
Psicopatologia das Relações Amorosas 179

sexo grupai como uma ideologia mascara a realidade desse aprisionamento para as
pessoas envolvidas.
A seguir, examinarei vários tipos de invasão crónica do relacionamento do
casal pelo grupo circundante ou, melhor dizendo, vários tipos de equilíbrio pato-
lógico obtidos pelo casal em resultado da sua dissolução no grupo. Isso inclui rela-
cionamentos triangulares de longo alcance, com óbvias implicações edípicas, como
um tipo de equilíbrio regressivo; perda das fronteiras sexuais do casal na medida
em que ele entra num "casamento aberto"; e a total perda da intimidade sexual na
medida em que o casal participa do comportamento sexual grupai compartilhado.
No último caso, normalmente há uma predominância dos conflitos pré-genitais em
relação aos genitais no relacionamento do casal, e sua relação fica mais seriamente
danificada por aquilo que faz fora do relacionamento, do que nos outros dois tipos.
Considerando o casal em que um dos parceiros mantém um relacionamento
com uma terceira pessoa, precisamos diferenciar as situações em que o caso amo-
roso com um terceiro é preliminar à destruição do casal (isto é, um deles se apaixo-
na por alguém, e o casal ou o casamento se dissolve para dar lugar a uma nova
formação de casal), e as situações em que o casamento parece estabilizar-se com a
presença de uma terceira pessoa. No último caso, podem acontecer várias coisas.
Frequentemente, quando um dos parceiros tem um caso, isso permite a estabiliza-
ção de-conflitos edípicos não-resolvídos. Por exemplo, uma mulher que é frígida
com o marido e sexualmente satisfeita pelo amante, pode vivenciar um sentimento
consciente de emoção e satisfação que sustenta o casamento, enquanto inconscien-
temente experimenta o marido como odiada transferência representando o seu pai
edípico. No relacionamento dual, ela sente a satisfação do triunfo inconsciente
sobre o pai que tinha a ela e à mãe sob seu controle, ao passo que agora é ela quem
tem dois homens sob controle. O desejo de ter um caso também pode originar-se da
culpa inconsciente por experimentar o relacionamento conjugal como um triunfo
edípico, embora não ouse estabelecer uma total identificação com a mãe edípica;
assim, o conflito entre o desejo e a culpa é atuado através de jogar uma "roleta
russa" com o casamento.
Paradoxalmente, quanto mais profundos e plenos se tornam esses relaciona-
mentos paralelos (conjugais e extraconjugais), mais tendem para a autodestruição,
porque, no final das contas, a cisão da representação objetal conseguida através da
situação triangular tende a ser perdida. Conforme ilustrado no filme The Captain's
Paradise, os relacionamentos paralelos tendem a tornar-se cada vez mais
idênticos ; om o tempo, impondo uma sobre carga psicológica cada vez mais difícil.
O fato de esses relacionamentos serem mantidos secretamente ou aceitos
abertamente, é cla-::•, depende de outros fatores, tais como a extensão em
que os conflitos sadomasoquistas desempenham um papel na interação
conjugal. A "franqueza" em relação aos casos extraconjugais geralmente reflete a
necessidade de agressão —útua, interação sadomasoquista e a defesa contra
sentimentos de culpa.
Tudo isso precisa ser diferenciado das situações em que o relacionamento
real de um casal fica obscurecido pela manutenção paralela de uma ligação
180 Qtto F. Kernberg

estabelecida em resposta a pressões sociais, políticas ou económicas. Aqui


pode haver um relacionamento significativo, muitas vezes secreto, que existe
em paralelo a um relacionamento meramente formal, tal como um casamento
de conveniência. Há outros exemplos em que esses relacionamentos paralelos
numa situação triangular são basicamente formalistas e ritualizados, como nas
subcultura sem que ter um amante é um símbolo de status esperado de
alguém de certa posição social.
O que gostaria de enfatizar é que as situações triangulares, especialmente
aquelas que incluem um relacionamento extramarital duradouro e estável,
podem ter efeitos complexos e variáveis sobre o relacionamento do casal
primário. Em resumo, os relacionamentos triangulares estáveis normalmente
refletem vários tipos de formação de compromisso envolvendo conflitos
edípicos não-resolvidos. Eles podem proteger um casal contra certos tipos de
agressão (fazendo com que não sejam diretamente expressados), mas na maioria
dos casos o casal fica incapaz de ter um relacionamento realmente profundo e
íntimo, sendo este o preço pago pela proteção contra a agressão.
O clássico estudo de Bartell (1971), Group Sex, documentou ricamente algumas
das características sociais dominantes da sexualidade promíscua numa situação
de grupo aberto. Ele examinou a ideologia conscientemente professada, que
afirma que o sexo grupai protege e renova o relacionamento conjugal ao criar
estímulos e experiências sexuais novos e compartilhados, e concluiu que isso
é uma ilusão injustificada pelo que resulta do sexo grupai na realidade,
Tipicamente, a cena de "swinging" envolve um mínimo de relacionamentos
interpessoais fora aqueles estritamente ligados à preparação e execução dos
encontros sexuais. Embora os casais envolvidos professem estar livres de seu
crónico tédio, por sua excitante participação secreta no grupo social
desioingmg, os relacionamentos sociais, tanto dentro do próprio grupo de
swinging quanto no grupo tradicional do qual os participantes se originam,
se deterioram ainda mais num período de tempo relativamente curto.
Parece que menos de dois anos de participação na cena âeswinging é suficiente
para dissipar a ilusão da nova excitação e estimulação sexual. O sexo se torna
tedioso mais uma vez, e pior. Embora Bartell permaneça fiel a uma
abordagem descritiva e sociopsicológica, evitando um estudo em profundidade
da psicologia individual ou grupai, ele aponta a discrepância existente entre as
fantasias excitantes com as quais os membros do grupo se aproximam do sexo
grupai e o aspecto mecânico real das interações.
O grau de invasão do casal pelo grupo ou a dissolução do casal numa situação de
grupo, se reflete na extensão em que é mantido um casamento puramente for-
mal ou um relacionamento emocional verdadeiro. Quanto mais
aberto, indiscriminado e promíscuo o comportamento sexual, mais
provável que a psicopatologia do casal contenha características pré-edípicas,
com predominância de agressão e necessidades sexuais infantis perversas
polimorfas. Existe uma pró-
Psicopatología das Relações Amorosas 181

gressiva deterioração das relações objetais internalizadas e da satisfação sexual


entre o casal.
Em toda essa discussão, evitei, tanto quanto possível, assumir uma posição
moralista numa área tão carregada de abordagens moralistas. O conceito do casal
autónomo, íntimo e implicitamente não-convencional, que integra um relaciona-
mento erótico e terno todo o tempo, que aceita a responsabilidade da paternidade
juntamente com a busca de uma experiência sexual e amorosa plena, origina-se de
uma concepção do vivenciar e expressar otimamente as necessidades emocionais,
e não de um ponto de vista moral de como um casal deveria se comportar ou levar
a sua vida.
A vantagem de um ponto de vista sobre indivíduos e casais que procede de
uma instância psicológica e psicanalítica e enfatiza a autonomia e a realização
emocional — em vez do que parece vantajoso do ponto de vista de "adaptação
social", "perfeição moral" ou "satisfação sensual" — está na possibilidade de exa-
minar objetivamente as características múltiplas e potencialmente contraditórias
no relacionamento dos casais. Ao avaliar casais, me interesso pela extensão em
que o relacionamento permite um sentimento de liberdade interna e estimulação
emocional, a extensão em que as experiências sexuais são ricas, renovadoras e
excitantes, o quanto o casal pode aventurar-se e experimentar sexualmente sem
sentir-se aprisionando, nem um pelo outro nem pelo ambiente social, e, acima
de tudo, a extensão em que o casal é autónomo, no sentido de se auto-renovar,
ao longo do tempo, independentemente das mudanças no desenvolvimento
dos filhos, do ambiente circundante ou da estrutura social.
Existem os casamentos convencionais assim como os casos amorosos conven-
cionais. Se a escolha de viver na superfície do próprio se!/proporciona um grau
satisfatório de estabilidade e gratificação, não há nenhuma razão para que um
terapeuta queira contestar isso por impulsos ideológicos ou perfeccionistas. Se a
queixa apresentada pelo casal é de indiferença sexual, convém lembrar que o tédio
é a manifestação mais imediata da falta de contato com as necessidades emocionais
e sexuais mais profundas. Mas nem todos têm a capacidade e a disposição para
abrir essa caixa de Pandora.
O relacionamento de um casal com seus filhos nos dá importantes informa-
ções sobre o relacionamento do casal com o grupo, num sentido amplo, conforme
examinado nos dois últimos capítulos. O desejo de ter filhos como uma expressão
do comprometimento com a vida amorosa do casal, a identificação com o papel
criativo e generoso das imagens parentais, e a assunção conjunta da responsabili-
dade pelo desenvolvimento e crescimento dos filhos, expressam o desejo de uma
consolidação definida do casal. Este desejo indica, igualmente, que o casal pode, de
forma madura, deixar para trás as limitações dos grupos adolescentes, e está dis-
posto a empenhar-se numa interação com seu ambiente social e cultural, no qual os
filhos terão de crescer e conquistar a autonomia. Ao conseguir manter sua privaci-
dade e seus direitos como um casal independente, enquanto funcionando como
182 Otto F. Kernberg

objetos parentais dos filhos, o casal consolida suas fronteiras geracionais enquanto
inicia, inconscientemente, a entrada da nova geração no mundo da experiência
edípica. E o ciclo de vida se repete novamente com seus filhos entrando nas primei-
ras formações grupais dos anos escolares, a contribuição inconsciente da criança na
latência à criação de uma moralidade grupai, que lançará uma sombra sobre a
moralidade convencional das formações grupais posteriores, e inclusive sobre a
moralidade convencional que cerca o casal adulto.
As dinâmicas do relacionamento do casal e do grupo como um equilíbrio
constante, dinâmico, também se desenrolam o tempo todo.
De uma perspectiva histórica, podemos observar as repetidas oscilações cul-
turais entre os períodos "puritanos", em que as relações amorosas se tornam
deserotizadas e o erotismo fica oculto, e os períodos "libertinos", em que a sexua-
lidade se deteriora num sexo grupai emocionalmente degradado. Em minha opi-
nião, essas oscilações refletem o equilíbrio a longo prazo entre as dinâmicas da
necessidade social de destruir, proteger e controlar o casal, e as aspirações do casal
de romper as restrições convencionais da moralidade sexual, uma liberdade que,in
extremis, se torna autodestrutiva.
Desse ponto de vista, a assim chamada revolução sexual dos anos 60 e 70
refletiria mais uma oscilação do pêndulo na moralidade convencional, e não indi-
caria nenhuma mudança real nas dinâmicas mais profundas do relacionamento do
casal e do grupo social. Obviamente, a adaptação de um casal à moralidade con-
vencional, seja pela falta de desenvolvimento de um superego autónomo, seja
pelo apelo a submergir nos processos do grande grupo, está potencialmente pre-
sente em todos os momentos, e o comportamento superficial dos casais pode variar
imensamente conforme as pressões convencionais sobre um determinado grupo
social. No entanto, o casal sexual autónomo e maduro mantém suas fronteiras de
privacidade na sua capacidade para um envolvimento secreto, apaixonado, em
qualquer ambiente social, a não ser nos mais extremos.
As normas sociais convencionais que protegem a moralidade pública são
cruciais para proteger a vida sexual do casal. As pressões para o comportamento
convencional, contudo, contrastam com os sofisticados sistemas de valores indivi-
duais que cada casal tem de estabelecer para si mesmo. As pressões para a forma-
ção grupai ao lado de linhas sexuais, para a expressão, nestes grupos, da desconfi-
ança e ódio primitivos entre homens e mulheres, característicos da latência e do:
grupos adolescentes, também ameaçam o casal.
Em relação a isso, sob a influência da aceleradora comunicação de massas
da mídia, é muito provável que a ideologia convencional predominante, partia;
larmente a relativa à sexualidade, mude rapidamente, na medida em que nove
correntes ideológicas se tornam moda, se difundem por toda a consciência públk
e se extinguem em virtude da exigência de variedade na comunicação de mass
Paradoxalmente, essa rápida mudança nos costumes convencionais ilustra as c
racterísticas mais permanentes da atitude convencional referente à sexualidac
que estivemos examinando.
Pstcopatologta das Reíações Amorosas 183

Nas décadas de 70 e 80, a ideologia convencional predominante em nossa


sociedade era uma ideologia de discutir e expressar com relativa abertura certos
aspectos da sexualidade, com uma simultânea tendência à engenharia mecânica
do comportamento sexual ("como ter melhores relações sexuais", etc.), à supressão
dos componentes sexuais polimorfos infantis nos divermentos de massa cultural-
mente sancionados, e franca tolerância à violência (incluindo a violência sexual) na
mesma mídia de massa. Era como se a nossa cultura, em vez de ilustrar a patologia
de um superego sádico, embora neurótico, ilustrasse uma patologiaborderline com
deterioração do superego, condensação regressiva do erotismo e da agressão, e
cisão dos componentes eróticos da sexualidade em relação à matriz das relações
objetais.
Entretanto, mais recentemente, no início da década de 90, houve um aumento
de nova atitude "puritana", com um nítido foco no abuso sexual, no incesto, no
assédio sexual no local de trabalho, e a escalada de uma atitude mutuamente des-
confiada entre os grupos masculinos e femininos. Esta tendência originou-se, por
um lado, de importantes novos achados relativos à importância do trauma físico e
sexual precoce na génese de uma grande variedade de psicopatologia, e de uma
luta para libertar a mulher da opressão tradicional e paternalista, por outro. O que
é interessante, todavia, é quão rapidamente esses desenvolvimentos cientificamente
informados e politicamente progressivos evoluíram para o restabelecimento de
uma moralidade pública convencional, semelhante à dos anos repressivos que
antecederam a "revolução sexual" da década de 60 e às características restritivas à
sexualidade nas sociedades totalitárias comunistas.
A restrição da discussão pública e da expressão da sexualidade nos países
fascistas, na antiga União Soviética e na China, por exemplo, pareceria mais análo-
ga à supressão sádica da sexualidade executada pelo primitivo superego da neuro-
se, do que semelhante à patologiaborderiine com deterioração do superego em nos-
sa cultura, a qual antecedeu a última tendência descrita por mim. Ao mesmo tem-
po, todavia, a atitude convencional atual em relação à sexualidade na nossa socie-
dade, cada vez mais restritiva—em paralelo a um controle de superego sádico —
também pode servir para dissociar este foco na sexualidade "perigosa" da atenção
dirigida às manifestações fortuitas de violência individual, cada vez maiores, nos
grupos sociais desprivilegiados.
É como se em anos recentes nós tivéssemos tido o "privilégio" de observar,
numa ação simultânea ou rápida alternância, extremos relativos entre o puritanis-
mo sexual e a libertinagem sexual, com ambos os extremos revelando o nivelamento
de toda a sexualidade convencionalmente tolerável—em contraste com a potenci-
al riqueza de sua dimensão privada, no casal individual. É verdade, evidentemen-
te, que existe uma enorme diferença entre a supressão, nos regimes totalitários, da
liberdade individual, que impõe brutalmente uma moralidade convencional, e a
tolerância, numa sociedade democrática, a uma significativa lacuna entre a
convencionalidade e a liberdade individual dos indivíduos e casais.
184 Otto F. Kernberg

Para concluir, penso que há um conflito irredutível entre a moralidade con-


vencional e a moralidade privada que cada casal tem de construir como parte de
sua vida sexual total, e que sempre implica num grau não-convencional de liberda-
de que o casal precisa atingir. O delicado equilíbrio entre liberdade sexual, profun-
didade emocional e um sistema de valores refletindo um funcionamento maduro
do superego é uma realização humana complexa que proporciona a base para uma
relação profunda, apaixonada, conflituada, mas satisfatória e potencialmente du-
radoura. A integração da agressão e da sexualidade infantil perversa polimorf a em
uma relação amorosa estável, é uma tarefa para o indivíduo e para o casal. Isso não
pode ser obtido por manipulação social, mas, felizmente, também não pode ser
suprimido a não ser nas circunstâncias mais extremas, pelas convenções da socie-
dade.
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