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INTRODUÇÃO

Em “Suspensões da Percepção”, Crary relaciona novas noções de percepção e


atenção com as mudanças trazidas pela transformação econômica e tecnológica da
sociedade moderna. Ao analisar o desenvolvimento histórico da abordagem dos estudos
acerca do problema da atenção, o autor objetiva especificamente o universo da
percepção visual.

No primeiro capítulo da obra, Crary se dedica analisar a ideia de “visão subjetiva”


que surgiu na segunda metade do século 19. O autor se refere a essa ideia como a noção
de que “nossa experiência perceptiva e sensorial depende menos da natureza do
estímulo externo e mais da constituição e do funcionamento de nossa aparelho sensorial”.
Dentro deste contexto, Crary aponta que a “modernidade capitalista”, seria o agente
manipulador que atua neste vácuo, onde a percepção humana passa a residir no corpo e
se torna passível de mensuração.

Segundo Crary, a lógica do sistema capitalista ordena que os indivíduos tenham a


habilidade de mudar o foco de sua atenção constantemente, em resposta ao grande
espectro de estímulos multissensoriais recebidos diariamente. Além disso, sua pesquisa
revela que o que tradicionalmente entendemos como atenção pode ter se dissolvido a
ponto de se tornar um estado repleto de distrações e carente de direção.

A dificuldade humana de manter atenção em um assunto específico foi reconhecida


como problema psicológico durante as duas décadas finais do século XIX, e os estudos
anteriores a Freud encaravam a questão da atenção meramente como um processo de
seleção e isolamento. Crary aposta na expansão da concepção freudiana de atenção,
onde nada é perdido mas tudo é recebido com um nível moderado de atenção.

Jonathan Crary aponta para como o problema da atenção persiste nos dias de hoje
sob o nome de “Transtorno de Déficit de Atenção” (TDA) e traça semelhanças entre os
sintomas das crianças diagnosticadas com o transtorno e os problemas recorrentes dos
pacientes contemporâneos, como impulsividade, dificuldade de manter a atenção, baixa
tolerância a frustrações e distração constante.

Crary conclui o primeiro capítulo do livro considerando como as novas invenções


tecnológicas nos estimulam a emergir em um processo de suspensão da percepção. Em
um mundo que demanda atenção constante, onde os indivíduos precisam processar
múltiplas informações advindas de filmes, televisão e rádio, o autor propõe que um nível
permanente de atenção reduzida pode contribuir para uma experiência mais produtiva e
consciente da vida como um todo.

Como forma de representar visualmente sua análise dos problemas da percepção


e as novas possibilidades trazidas pelo estudo, o autor aborda nos capítulos seguintes
obras de Manet, Seurat e Cézanne, que dialogam com a questão da atenção em sua
natureza unificadora e desintegradora.

Cada um destes pintores posicinou-se de modo único a respeito das rupturas,


ausências e fissuras do campo perceptivo, criando um inovador espaço para descobertas
sobre a indeterminação da percepção atenta e da instabilidade da atenção.

Essas pinturas, não são somente ilustrações ou representações visuais de


problemas da percepção visual na modernidade. Crary as utilize como meio de
“investigação das consequências e reverberações da ascensão dos modelos de visão
subjetiva e fisiológica do início do século XIX”, e as coloca como importantes pontos de
partida para a compreensão dos novos horizontes criativos e suas restrições derivadas
deste momento de transformação na história.

EDOUARD MANET E A VISÃO QUE SE DESPRENDE

Jonathan Crary escolhe O Balcão, de Edouard Manet (fig. 1), para iniciar sua
jornada investigativa da transformação do modelo de percepção visual. Para o autor, esta
obra distancia o observador do sistema clássico de visão preso ao modelo de
interioridade e se afirma como marco representativo da modernidade justamente por sua
externalidade.

A composição da obra e os olhares desencontrados das figuras inauguram um


universo de múltiplas perspectivas mutáveis e permeáveis, por onde a atenção do
observador flutua de maneira não linear.

A balaustrada metálica presente na obra é vista por Crary como elemento


fundamental para o entendimento da questão da percepção. Inicialmente percebida como
um simples elemento decorativo, a balaustrada é visualmente composta de elementos
que curiosamente remetem ao esquema ótico de Descartes (fig. 2).
¹ ²

Outra leitura proposta pelo autor enfatiza as diagonais metálicas da balaustrada


como extensão dos olhares das figuras. Desta forma, a direção dos olhares pode ao
mesmo tempo distanciar e entralaçar as diferentes perspectivas presentes na obra,
criando complexos paradoxos emaranhados e ininteligíveis.

A pluralidade de leituras e a subsequente dificuldade de racionalização do espaço


visual trazem à pintura uma inédita vitalidade, que se renova infinitamente diante do
observador.

A natureza intensamente dialética das obras de Edouard Manet é abordada por


Crary em sua análise da obra Na Estufa, de 1879. A surpreendente mudança de
características técnicas presente nesta pintura foi objeto de estudo de diversos críticos,
que conjecturavam a respeito de uma possível troca de postura de Manet. O artista
parecia estar se curvando às expectativas do público e aparentemente buscando
reconstituir a noção de visão contida e integrada que ele tanto ajudara a desagregar.
Segundo Crary, situam-se nesta pintura dois aspectos conflitantes da percepção
moderna: a integridade da visão aliada ao conceito de unidade na percepção e a dinâmica
fluida e desestabilizadora contida na dispersão do olhar.

O rosto da mulher, representado com esmero incomum ao artista, pode ser


analisado como um retorno à hierarquia tradicional da representação do corpo, aonde a
face contém a maior carga substancial de expressão.

Mantida a integridade do rosto e a conformidade com a realidade dominante, Manet


explora outros aspectos da composição para denotar a recusa dos aspectos expansivos
das formas em nome de uma ordem social e pictórica fixa. O espartilho, o cinto, a pulseira
sobre a luva colocam sobre a mulher uma dose de constrangimento e domesticação,
enquanto no restante da obra, através do acavalamento de objetos que comprimem os
retratados estabelece-se uma forte sensação de aprisionamento e compressão do
espaço.

Assim como a balaustrada de O Balcão, as ripas de madeira do banco (fig.3)


também conduzem o olhar, desta vez definindo através de linhas paralelas (e portanto
não convergentes) uma separação do olhar.

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Outro interessante apontamento de Jonathan Crary se dá no que concerne a
posição centralizada dos anéis matrimoniais das figuras. Mesmo que extremamente
próximas, permanecem distantes pela postura retraída do homem e pela indiferença da
mulher.

Esta organização da obra alude à possível existência de um caso extraconjugal


entre os dois, que sublinha o problema de expansão e retração presente no restante da
obra.

Além de outras obras de Manet, Crary encaminha o fim do capítulo dedicando


atenção especial à obra Diante do Espelho (fig. 4), onde encontra novamente outra
proposta do artista quanto aos limites do campo visual.

Através de uma pincelada de ritmo intenso e o proeminente uso de cores não


referenciais, Manet expande a atenção sensorial e remove a rigidez dos objetos,
propondo um jogo de eventos instintivos, móveis e amorfos.

O papel da mulher na obra – a vestir-se ou despir-se – perde relevância quando


posto dentro de um contexto visual completamente livre, sagazmente metaforizado no
espartilho afrouxado.

Se em Na Estufa, vê-se um mundo sucumbir à rigidez e à petrificação, em Diante


do Espelho há a vivacidade e a vibração da pintura.
GEORGES SEURAT E AS ILUMINAÇÕES DO DESENCANTAMENTO

Ao analisar a obra de Georges Seurat, Jonathan Crary coloca em primeiro plano a


construção calculada de novos modelos semânticos e cognitivos, diferentemente de sua
análise da obra de Manet, onde a corrosão dos códigos representativos tradicionais
interessa mais.

Em Parada de Circo (fig. 5), o artista pressupõe uma atenção cromática


autossuficiente e subjetiva o bastante para constituir um reino provisório de liberdade para
o observador e, por outro lado, aspira controlar suas respostas através de sugestões.

“Parada de circo revela e reprime”, diz Crary. Esta sensação antinômica


perturbadora é perfeitamente simbolizada nesta obra, que ao passo que nega qualquer
possibilidade de ilusão estética, também utiliza as cores de maneira extremamente
complexa em busca de um senso de unidade.

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Crary distancia-se da pintura para comentar a ligação entre as ideias de Seurat e já
citado conceito de visão subjetiva. O interesse do artista pelo estudo dos fenômenos
óticos reafirma seu gosto pela produção metódica e calculada.

Em seu projeto, Seurat não apenas estava a par de toda a produção científica de
seu tempo, como também buscou através de diversas fontes a confirmação de uma
fórmula universal que racionalizaria os efeitos da cor e da forma.

Uma das importantes contribuições de Seurat para a arte foi o uso sistemático da
decomposição da cor local, o último signo “natural” remanscente como referência para o
artista visual que buscava a verossimilhança.

O equilíbrio classicista das obras de Seurat impediu que muitos críticos


enxergassem a profundidade dos questionamentos de sua obra a respeito de uma ótica
estável. O artista recusava a ideia de fusão final e entendia que a composição fisiológica e
a mobilidade física do observador eram aspectos determinantes para a formação
cognitiva e a própria fruição da obra.

O autor ainda compara Parada de Circo com a A Última Ceia, de Leonardo da


Vinci. Entre as diversas similaridades presentes na composição, há de se atentar para o
forte uso de signos como símbolos de valor nas duas obras. Enquanto a pintura de
Leonardo abre simbolicamente as portas de um mundo numenal, Parada de Circo revela
o engano implícito na representação clássica e questiona a validade da posição legível
que esse sistema supostamente confere ao observador.

Mesmo que construída através de um método que objetivava a produção de


respostas subjetivas, Parada de Circo não pode ser reduzida somente a isto, pois é uma
obra capaz de fazer com que o espectador paire entre a submissão “à sua operação
empírica e a antecipação da fusão luminosa de tudo o que ainda está irreconciliado nela”.

CÉZANNE: REINVENTANDO A SÍNTESE

Neste capítulo, Jonathan Crary analisa através da obra tardia de Paul Cézanne o
estado incerto do observador atento por volta de 1900. Por divergir de Manet e Seurat –
cuja produção continha estratégias de ligação, homeostase e fixação – Cézanne é
referenciado pelo autor como chave para o acesso às coisas-em-si.
O autor propõe que Cézanne não seja rotulado de “inocente” ou infantil, já que sua
obra o revela como um observador surpreendentemente atento a tudo que ocorre de
anormal na experiência perceptiva, desafiando seu próprio entendimento de mundo
reconhecível.

Paul Cézanne questionava a ideia de um campo de visão homogêneo e unificado e


propunha em suas pinturas um exercício ao olho do observador, que poderia ler diversas
áreas desconexas do campo visual ao mesmo tempo, eliminando as noções tradicionais
de centro e periferia.

Enquanto Manet e Seurat impunham seus modelos aglutinadores a respeito da


volatilidade da atenção, Cézanne insere uma nova perspectiva, onde o observador seria
capaz de entrar e habitar o mundo instável e redimensional da percepção através do
olhar. As descontinuidades visuais descobertas pelo artista tornaram-se base para novos
modelos de síntese e organização perceptiva, onde a atenção estava atenta à própria
atenção.

Em Pinheiros e Rochas (fig. 6), nota-se a “tentativa singular de Cézanne para


abordar as vacilações e o caráter heterogêneo de suas próprias experiências
perceptivas”.

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A erradicação completa de uma distinção consistente dos planos é uma
característica marcante desta obra. As superfícies são reunidas de maneira imprevisível e
vertiginosa.

Entre outras inovações citadas por Crary, a exploração do espaço visual realizada
por Cézanne é um divisor de águas na história da arte. Muito mais do que propor um
ruptura, o artista propôs reinvenções e novidades em um campo já habitado por grandes
nomes. Através de desafios que impunha ao próprio olho, foi capaz de viajar para um
universo não da utopia, e sim um universo onde a intensidade das cores e formas era
plenamente reestruturável.

Já no epílogo do livro, Jonathan Crary utiliza a Piazza Colonna (citada em uma


carta de Freud) como referência para abordar aspectos da sociedade contemporânea e
oferecer uma perspectiva a respeito do desenvolvimento de nossa consciência. Neste
panorama, os indíviduos e grupos se reconstruiriam continuamente, seja de maneira
criativa ou reativa.

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