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„ Artigo Original

As bases neurobiológicas do
transtorno bipolar
Neurobiological Basis of Bipolar Disorder

RODRIGO MACHADO-VIEIRA1 Resumo


RODRIGO A. BRESSAN2
BENÍCIO FREY 3 Neste artigo, os autores revisam importantes aspectos associados às bases
biológicas do transtorno de humor bipolar (THB). O THB está relacionado com
JAIR C. SOARES 4 o surgimento de diversas alterações bioquímicas e moleculares em sistemas
de neurotransmissão e vias de segundos-mensageiros geradores de sinais
intracelulares. Essas modificações em neurônios e glia parecem estar
associadas com o surgimento de sintomas maníacos e depressivos. Ainda neste
contexto, disfunções na homeostasia e no metabolismo energético cerebral
tem sido associado com alterações comportamentais, na modulação do humor
e ritmo circadiano em humanos e em modelos animais da doença. Assim,
alterações metabólicas em neurônios e células gliais têm sido associadas com
quadros depressivos e maníacos. Nos últimos anos, avanços nas técnicas de
neuroimagem, genéticos e de biologia moleculares têm gerado novos conhe-
cimentos acerca das bases biológicas da bipolaridade. Os autores destacam
que a doença parece estar relacionada diretamente com disfunções em
diferentes mecanismos adaptativos a estresse em células neurais, gerando
perda na capacidade celular de induzir neuroplasticidade e neurotrofismo,
facilitando assim o surgimento da doença.

Palavras-chave: Transtorno bipolar, mania, depressão, neurobiologia,


neuroimagem, biologia molecular.

Recebido: 31/01/2005 - Aceito: 28/02/2005


1 Programa de Transtornos de Humor da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de
Porto Alegre (FFFCMPA) – Hospital Presidente Vargas, Porto Alegre – RS. Stanley Foundation
Research Unit of Porto Alegre – Hospital Espírita de Porto Alegre – RS.
2 Laboratório Interdisciplinar de Neuroimagem e Cognição (LINC) do Departamento de
Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Honorary Lectures, Institute of
Psychiatry, King’s College London.
3 Laboratório de Psiquiatria Experimental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre –
Departamento de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
4 Division of Mood and Anxiety Disorders – Department of Psychiatry – University of Texas
Health Science Center, San Antonio, TX, USA.
Endereço para correspondência: Rodrigo Machado-Vieira. Praça Simões Lopes Neto, 175 –
Teresópolis – 90720-440 – Porto Alegre – RS; e-mail: rvieira@usp.br

Machado-Vieira, R.; Bressan, R.A.; Frey, B.; Soares J.C. Rev. Psiq. Clín. 32, supl 1; 28-33, 2005
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Abstract
In this article, the authors review relevant aspects related to the
neurobiological basis of bipolar disorder. This illness has been associated with
complex biochemical and molecular changes in brain circuits linked to
neurotransmission and intracellular signal transduction pathways, and changes
on neurons and glia have been proposed to be directly associated with clinical
presentation of mania and depression. In the same context, dysfunctions on
brain homeostasis and energy metabolism have been associated with alterations
on circadian rythms, behavior and mood in human and animal models of
bipolarity. In the recent years, advances on techniques of neuroimaging,
molecular biology and genetics has provided new insights about the biology of
bipolarity. The authors emphasize that bipolar disorder has been shown to be
directly associated with dysfunctions on neural adaptative mechanisms,
promoting neural stress. The resulted stress, even that do not lead to cell
death, may limit the neuroplasticity and neurotrophism in neurons and glia,
which in turn may facilitate the arousal of this pervasive illness.

Key words: Bipolar disorder, mania, depression, neurobiology, neuroimaging,


molecular biology.

doença. A utilização de modelos animais também tem


Introdução trazido novos conhecimentos sobre a neurobiologia do
THB (Machado-Vieira et al. , 2004). Os fatores
O transtorno de humor bipolar (THB) é uma doença
neurobiológicos intracelulares e intercelulares envol-
grave, incurável e de distribuição cosmopolita, afe-
vidos na fisiopatologia do THB incluem alterações em
tando cerca de 1,5% dos homens e mulheres em todo o
sistemas de neurotransmissão, segundos-mensageiros,
mundo. É considerada uma doença complexa, apresen-
vias de transcrição de sinal e regulação na expressão
tando diversos quadros clínicos e vários modelos neuro-
gênica. Apesar da grande quantidade e diversidade de
biológicos e etiológicos que visam explicar o surgimento
estudos avaliando a biologia da doença, ainda pouco
e a manifestação da doença. Desde os anos de 1970,
se sabe sobre a real associação entre os achados
estudos bioquímicos, genéticos e neuroendócrinos têm
neurobiológicos do THB e as alterações comporta-
apresentado novos referenciais sobre a etiopatogenia
mentais e neurovegetativas observadas nesses
do THB. Mesmo que já se possa considerar o THB
pacientes. A seguir, são descritos os principais achados
uma doença bem estudada quando se analisa o número
neurobiológicos relacionados ao THB, divididos de
de estudos realizados avaliando diferentes aspectos
acordo com o tipo de modelo utilizado.
neurobiológicos na doença, deve-se considerar que
ainda existem poucos achados representativos que
demonstrem evidências consistentes da associação Sistemas de neurorreceptores
entre estes achados com a etiopatogenia do THB. Ainda
que a doença seja de difícil avaliação quanto à relação Estudos têm descrito alterações neuroquímicas no
de causa e efeito entre o surgimento dos sintomas e os THB, por meio da avaliação de diversos hormônios,
achados bioquímicos e moleculares descritos em pa- neurotransmissores e seus metabólitos, segundos-men-
cientes bipolares, inúmeras alterações na função cere- sageiros, fatores neurotróficos e gênicos, tanto em
bral têm sido descritas em pacientes apresentando plasma, líquor, plaquetas e fatias de cérebro. Com
quadros de depressão e mania. exceção da tireóide e do eixo adrenal, existem dados
Pesquisas utilizando modelos genéticos, neuroa- muito limitados relacionados à neuroendocrinologia
natômicos, neuroquímicos e de neuroimagem no THB do THB, especialmente no que se refere à mania aguda.
têm trazido importantes referenciais teóricos e concei- Com relação às alterações em sistemas de neurotrans-
tuais para o melhor entendimento de como determi- missão associados à doença, estudos têm descrito alte-
nados mecanismos biológicos podem afetar a apresen- rações na regulação de aminas biogênicas no THB
tação clínica, o curso e a resposta farmacológica na (Young et al. 1994). Esses estudos têm demonstrado

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alterações na regulação dos sistemas noradrenérgico, neurotransmissão supostamente alterados no THB


serotonérgico, dopaminérgico e colinérgico. Essas ami- poderão propiciar melhor avaliação da importância
nas biogênicas são amplamente distribuídas no siste- desses achados. O estudo da possível relação entre as
ma límbico, as quais estão envolvidas na modulação anormalidades observadas nesses sistemas de neuro-
do sono–vigília, do apetite, de funções endócrinas e de transmissão e a manifestação clínica do THB também
estados comportamentais, como irritabilidade e medo. auxiliará na avaliação da influência de determinadas
Também tem sido sugerido que as alterações relacio- alterações bioquímicas na modulação tanto do humor
nadas a esses neurotransmissores monoaminérgicos como de funções cognitivas e neurovegetativas.
possam ocorrer no THB em virtude de alterações na
sensibilidade de seus receptores.
Neuroimagem estrutural
Estudos avaliando o metabolismo noradrenérgico
em pacientes maníacos comparados com controles Alterações na estrutura cerebral também têm sido
normais descrevem aumento nos níveis liquóricos do descritas no THB, por meio de estudos de neuroima-
metabólito da noradrenalina, 3-metoxi-4-hidroxife- gem (Soares e Mann, 1997). A maioria dos estudos
nilmetil-glicol (MHPG), e também elevação nos níveis que avaliaram o volume cerebral total e o grau de
urinários de noradrenalina. Quando utilizado o lítio, atrofia cortical não demonstrou diferenças signifi-
foi observada uma diminuição significativa desses cativas entre indivíduos bipolares e controles, en-
marcadores nos pacientes maníacos. Outro neuro- quanto um estudo encontrou a relação inversa entre
transmissor relacionado à biologia do THB é o ácido a idade e o volume da substância cinzenta cerebral
gama-aminobutírico (GABA). O ácido gama amino- em indivíduos com THB, sugerindo uma possível
butírico (GABA), principal neurotransmissor inibitório perda neuronal induzida pelo transtorno. Além disso,
do sistema nervoso central, também parece estar o mesmo grupo encontrou aumento significativo da
envolvido no THB. O GABA modula a atividade de substância cinzenta cerebral em bipolares em uso de
vários neurotransmissores, incluindo serotonina, lítio, em comparação com controles normais e bipolares
dopamina e noradrenalina. A síntese do GABA inicia- sem uso do fármaco.
se pela descarboxilação de seu precursor, o glutamato. Estudos que avaliaram regiões cerebrais especí-
Diminuição nos níveis de GABA tem sido descrita no ficas de pacientes com THB demonstraram diminuição
cérebro, líquor e plasma de pacientes bipolares. Tam- do volume temporal em bipolares masculinos, redução
bém a maioria dos estabilizadores do humor apresenta significativa apenas no córtex temporal esquerdo e
efeitos terapêuticos mediados por modulação gabaér- aumento significativo do giro temporal superior ante-
gica. Além disso, achados de disfunções no metabo- rior, em relação a esquizofrênicos e controles. No en-
lismo da dopamina no THB relacionam-se aos achados tanto, outros cinco estudos não observaram alterações
de indução de mania com o uso de estimulantes com volumétricas no córtex temporal entre bipolares e
propriedades dopaminérgicas e polimorfismos em controles. Em relação à amígdala, mais especifica-
genes como o dopamina beta-hidroxilase, entre outros mente, um estudo observou diminuição significativa
achados. Com relação ao sistema serotonérgico, anor- à esquerda, dois estudos encontraram aumento da
malidades em genes do sistema serotonérgico, assim amígdala, enquanto um estudo não encontrou dife-
como elevação de cálcio intracelular induzido por renças entre bipolares e controles. Na região do hipo-
serotonina (5-HT), são achados neurobiológicos des- campo, um estudo demonstrou aumento significativo
critos na mania bipolar. Com relação à noradrenalina, do hipocampo direito em pacientes bipolares, e outros
o conceito geral relaciona-se com aumento no turnover quatro estudos não descreveram diferenças nesta
noradrenérgico na mania e diminuição na depressão. região. No córtex pré-frontal (CPF), dois estudos
Porém, a noradrenalina é metabolizada também demonstraram diminuição significativa especifica-
perifericamente pelo sistema simpático, o que pode mente da região subgenual de indivíduos bipolares com
dificultar a caracterização desses achados como história familiar positiva para transtornos de humor,
provenientes do SNC. Da mesma forma, a presença e outros cinco estudos não encontraram diferenças
de polimorfismos em genes moduladores da formação significativas no volume total ou em outras sub-regiões
de dopamina, como a dopamina beta-hidroxilase do CPF. Dessa forma, os achados neuroanatômicos
sugere a participação do metabolismo dopaminérgico das diversas regiões corticais cerebrais sugerem,
na doença. principalmente, alterações da amígdala e diminuição
Cabe lembrar que, por ser uma doença multifa- do CPF subgenual, estruturas que são intimamente
torial e poligênica do ponto de vista biológico, esses conectadas a regiões subcorticais e estão relacionadas
achados relacionados a alterações em sistemas de com o controle da resposta emocional. Estudos que
neurotransmissão tornam-se pouco representativos se avaliaram os gânglios basais demonstraram aumento
avaliados de forma isolada. Futuros estudos que significativo do estriado, globo pálido e núcleo caudado
busquem trazer novos conhecimentos sobre a inter- em pacientes com THB. Um estudo demonstrou
relação metabólica entre os diversos sistemas de relação inversa entre a idade e o volume do putâmen,

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sobretudo em bipolares do tipo I, sugerindo alterações humor). A técnica de espectroscopia por ressonância
neurodegenerativas relacionadas com a idade nesta magnética (MRS) tem possibilitado o estudo do meta-
região. No entanto, seis estudos não encontraram bolismo de regiões específicas do cérebro humano in
alterações volumétricas significativas nos gânglios vivo (Stanley et al., 2002).
basais entre bipolares e controles. Os resultados Utilizando a espectroscopia por ressonância com
observados nas regiões subcorticais e fossa posterior próton (HMRS), dois estudos demonstraram aumento
sugerem comprometimento dos gânglios da base e do dos compostos de colina em pacientes bipolares eutímicos
cerebelo, estruturas associadas à modulação do afeto e deprimidos, sugerindo alteração do metabolismo dos
e da atenção, respectivamente. fosfolipídeos de membrana nesta amostra. No lobo frontal,
Em resumo, diminuição no córtex pré-frontal foi observado aumento dos compostos de colina no córtex
parece ser o achado mais consistente no estudo topo- cingulado anterior direito, bem como diminuição
gráfico cerebral de pacientes bipolares. Também tem significativa do N-acetil-aspartato na substância cinzenta
sido relatado alargamento de ventrículos, porém de de pacientes maníacos e mistos e no CPF dorsolateral
forma menos consistente que na esquizofrenia. Ainda, de bipolares em eutimia, o que sugere diminuição da
alterações no volume de hipocampo e amígdala têm viabilidade neuronal nestas regiões. Dois estudos recentes
sido descritas na doença, porém sem homogeneidade demonstraram aumento significativo do pico de
destes achados específicos. Estudos realizados nos anos glutamato/glutamina no CPF dorsolateral esquerdo de
de 1990 descrevem de forma consistente a presença bipolares maníacos e no giro cingulado de bipolares em
de hiperintensidades em substância branca subcortical uma amostra de bipolares em episódio depressivo ou
em bipolares, usualmente associadas a alterações misto. Possíveis alterações do metabolismo dos
vasculares, as quais são denominadas de “objetos fosfolipídeos de membrana associados à fisiopatogenia
brilhantes não-identificados”. Estima-se que indivíduos do THB. Além disso, achados de diminuição do N-acetil-
com THB possuem um risco três vezes maior de aspartato no CPF e hipocampo sugerem a hipótese de
apresentar lesões hiperintensas em substância branca, disfunção neuronal no THB. Os estudos de neuroimagem
que é a constatação mais prevalente nos estudos em estrutural e funcional convergem para um modelo de
neuroimagem. Cabe lembrar que tais achados não disfunção do circuito de regulação do humor, que
foram considerados como específicos ao THB, já que compreende o CPF, o complexo amígdala–hipocampo,
foi observada associação entre este achado com idade tálamo, gânglios da base e suas interconexões.
avançada e alteração vascular em significativa Ainda, por meio de exames de tomografia por
proporção dos pacientes bipolares que apresentavam emissão de pósitrons (PET), observa-se ativação de
esta alteração. regiões límbicas (porção subgenual do giro do cíngulo
e ínsula anterior) e desativação cortical (córtex pré-
frontal D e parietal inferior) tanto na indução de
Neuroimagem funcional tristeza em indivíduos normais, como em portadores
de transtorno depressivos. Com o tratamento para de-
Com o uso de ressonância magnética funcional têm- pressão, ocorrem mudanças recíprocas, pois há au-
se examinado as áreas cerebrais que ficam ativas em mento na atividade das regiões corticais e diminuição
voluntários sadios versus pacientes com THB em na atividade límbica.
vários estágios do transtorno (depressão, hipomania, Estudos avaliando a taxa de metabolismo cere-
eutimia) por meio de paradigmas de ativação emocional bral global apresentam resultados controversos, como
utilizando estímulos com valência afetiva ou neutra. diminuição, aumento e nenhuma diferença entre pa-
Tanto controles como pacientes com THB ativam cientes bipolares e controles. Em relação ao CPF, diver-
regiões cerebrais relacionadas com controle dos afetos, sos estudos descrevem diminuição no metabolismo da
incluindo o córtex pré-frontal e regiões anteriores do glicose durante episódio depressivo, observado pela
giro do cíngulo. Pacientes com transtorno bipolar utili- técnica de PET. Na mania, como regra geral, obser-
zam áreas cerebrais diferentes (por exemplo, tálamo vam-se diminuição significativa do metabolismo do
e hipotálamo) dos controles saudáveis (regiões do CPF dorsolateral esquerdo e aumento do metabolismo
córtex frontal). Em contraste com controles saudáveis, no CPF subgenual. Ainda foi demonstrada diminuição
pacientes com THB têm ativações adicionais em do metabolismo da amígdala esquerda em bipolares
regiões subcorticais, tais como amígdala, tálamo, hipo- maníacos e deprimidos com história familiar positiva.
tálamo e porções mediais do globo pálido. Em tarefas Os achados com PET e tomografia por emissão de fóton
de indução afetiva, pacientes bipolares em fase depres- único (SPECT) sugerem, com certa consistência,
siva e na hipomania apresentam ativações seme- hipometabolismo cerebral durante a fase depressiva
lhantes entre si, mas diferentes dos padrões encon- do THB e, embora com menos consistência, tendência
trados em controles saudáveis. Entretanto, as evidên- ao hipermetabolismo em algumas sub-regiões
cias sugerem que os pacientes com THB apresentam cerebrais durante a fase maníaca.
padrões de ativação subcortical, que são tanto rela- Cabe salientar que resultados isolados ou contro-
cionados ao traço (THB) como ao estado (fase do versos necessitam de replicação por meio de estudos

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com amostras mais representativas e com melhor liando os efeitos dos estabilizadores do humor em
controle dos potenciais vieses. Estudos futuros devem diversos sistemas de neurotransmissão, neuroplastici-
determinar com mais precisão a participação e inte- dade e em cascatas de segundos e terceiros mensageiros
gração das diferentes regiões cerebrais durante o (Manji et al., 2000). Também, tem-se buscado relacionar
processamento de emoções, nas diferentes fases do esses efeitos bioquímicos com os efeitos terapêuticos de
transtorno (Stoll et al., 2000). tais fármacos. Pesquisadores têm investigado os efeitos
de estabilizadores do humor na atividade de fatores de
transcrição ligados ao DNA (por exemplo, AP-1) e
Biologia molecular relacionados à manutenção da vitalidade celular. O lítio,
em concentrações terapêuticas, tem demonstrado
A ligação de um neurotransmissor ao seu receptor
aumentar a captação de AP-1. É sabido que os genes
de membrana desencadeia uma cascata de processos
regulados pela AP-1 incluem vários neuropeptídeos,
neuroquímicos que incluem os sistemas de segundos-
neurotrofinas, receptores, fatores de transcrição e
mensageiros, e vários destes têm sido associados à
enzimas que estão envolvidos na neuroplasticidade e
etiopatogenia do THB (Ghaemi et al., 1999). Os se-
neuroproteção. Porém, o significado clínico dessa
gundos-mensageiros associados à etiopatogenia do
constatação permanece desconhecido, podendo-se
THB são as proteínas G, AMPc (monofosfato cíclico
perguntar: será que os conhecidos estabilizadores de
de adenosina), PKC (proteína quinase C) e IP3 (ino-
humor serão os neuroprotetores de amanhã? O exato
sotol-trifosfato), entre outros (Manji e Lenox, 2000).
efeito da alteração na expressão desses genes ainda não
As proteínas G são um grupo de proteínas que desem-
está claramente elucidado. O valproato e a olanzapina
penham papel fundamental na transcrição de infor-
também parecem estar associados a modificações
mação celular através da membrana plasmática e
similares na expressão de marcadores relacionados à
têm sido associadas à fisiopatogenia do THB. Diversos
neuroplasticidade, incluindo-se o fator neurotrófico
sistemas de receptores do SNC são modulados pelas
derivado do cérebro. Estudos recentes sugerem que o
proteínas G, incluindo os receptores noradrenérgicos,
THB esteja relacionado a disfunções mitocondriais. Em
serotoninérgicos, dopaminérgicos, colinérgicos e
estudo post-mortem avaliando genes nucleares em
histaminérgicos, entre outros. A ativação de neurorre-
hipocampo de pacientes bipolares, foi encontrada
ceptores modula o fluxo de íons através de canais de
diminuição na expressão de inúmeros genes diretamente
membrana, além de controlar a atividade de uma
relacionados à atividade mitocondrial (Konradi et al.,
variedade de enzimas “efetoras” das células da
2004). Esse estudo corrobora dados anteriores e a
membrana, as quais regulam a função celular via
hipótese de Kato, da Universidade de Tóquio, que sugere
produção de segundos-mensageiros intracelulares.
depleção mitocondrial e alteração no metabolismo
O AMPc é um segundo-mensageiro responsável
energético de bipolares (Kato e Kato, 2000). Entretanto,
pela sinalização intracelular, que também parece
os resultados que reforçam essa hipótese são ainda
mediar a ação terapêutica dos estabilizadores de humor
pouco conclusivos.
pela regulação exercida na liberação de neurotrans-
missores e expressão gênica no cérebro. A proteína G
ativa a fosfolipase C (PLC), formando os segundos- Neuropatologia e genética
mensageiros diacilglicerol (DAC) e inositol-trifosfato
(IP3). O DAC age ativando a proteína quinase C (PKC), Segundo Rajkowska (2002), os achados neurobiológicos
gerando aumento na excitabilidade neuronal e na mais consistentes e representativos do THB são alte-
liberação de neurotransmissores. Estudos têm descrito rações em células gliais. Estudos demonstraram signi-
aumento de PKC no THB, mas pouco se sabe sobre a ficativa diminuição no número e na densidade glial
importância deste achado na biologia e na manifestação (não no tamanho) no THB. Outro estudo também des-
clínica da doença. Já o IP3 age liberando os estoques de creveu diminuição na densidade de oligodendrócitos
Ca+2 intracelular, necessários para a modulação neu- (tipo de célula glial) na mesma área. Essa alteração
ronal. Estudos demonstram aumento nos níveis não deve ser considerada como o principal achado
intracelulares de cálcio em pacientes com THB, espe- neuropatológico no THB, mas sim determinadas
cialmente associado à mania. No entanto, pouco se pode alterações neuronais (especialmente em neurônios não-
inferir sobre a possível associação entre esses achados piramidais gabaérgicos). Como base para tal argumen-
com a etiopatogenia e a manifestação da doença, já que tação, observa-se que há apenas um estudo que
a maioria das pesquisas que descrevem achados demonstrou redução na densidade glial em bipolares
relacionando o THB com alterações em segundos- sem uso de estabilizadores do humor. Em outra re-
mensageiros envolve um pequeno número de pacientes visão, foram descritas alterações metabólicas inte-
em estudos post-mortem ou via avaliação de material gradas entre neurônios e glia na doença. Como base
biológico de origem periférica. referencial, cabe lembrar que os achados de estudos
Conhecimentos adicionais relativos à etiopatogenia histopatológicos no THB foram obtidos por meio da
do THB também têm surgido a partir de estudos ava- utilização de pequenas amostras de pacientes, sem

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replicação posterior. Em resumo, achados neuropato- encontrados para humanos é um dos fatores que
lógicos descritos a partir da realização de estudos post- limitam a produção de novos conhecimentos sobre
mortem, os quais demonstraram alterações morfoló- as bases biológicas do THB. As perspectivas mais
gicas e morte de neurônios e células gliais em cérebro promissoras no estudo das bases biológicas da bipola-
de pacientes bipolares, são inconclusivos. Esses estu- ridade parecem estar associadas com a realização de
dos foram realizados utilizando pacientes suicidas, com estudos genéticos, de biologia molecular e neuroima-
polifarmácia, dependência química e outros fatores gem funcional em portadores. Essas linhas de
representativos de viés amostral. O tamanho da pesquisa têm provido descobertas recentes e ainda
amostra desses estudos limitou-se a dez, no máximo poderão trazer importantes contribuições sobre a
vinte pacientes, o que, pela lógica científica, exclui a etiopatogenia do THB.
possibilidade de extrapolar esses achados como sendo O uso continuado dos estabilizadores do humor
característicos da doença, mesmo que alguns autores parece ser fundamental não somente para manter o
assim proponham. Quanto aos estudos genéticos no quadro de humor estável, mas também para evitar o
THB, ainda não existe nenhum marcador genético surgimento de modificações bioquímicas relacionadas
associado diretamente com o surgimento da doença. a certo grau de dano neural. Por outro lado, a não-
aderência ao tratamento farmacológico e a conseqüente
Conclusões agudização do THB pode determinar danos celulares
secundários e alterar de forma consistente, e por vezes
Todos esses avanços descritos no estudo da neurobio- irreversível, o processo cognitivo e o curso e prognóstico
logia do THB devem ser interpretados com cautela e da doença. Estudos que avaliem a modulação induzida
sem generalizações. Em alguns tópicos, diversos pelos estabilizadores de humor em sistemas de
achados devem ser replicados e conduzidos com neurotransmissão e neuroproteção neurônio-gliais
amostras maiores e menos heterogêneas. A falta de poderão prover novos conhecimentos sobre a neuro-
modelos animais da doença que incluam os ciclos de biologia e auxiliar a descoberta de novas opções tera-
mania e depressão e que tenham suficiente validade pêuticas para o tratamento dos pacientes portadores
preditiva e de construto para extrapolar os achados dessa doença tão complexa.

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