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Uma heroína em

busca de sua
identidade
 

Aimó, a menina que ninguém sabe quem é. Essa é a heroína criada


pelo escritor e sociólogo Reginaldo Prandi em seu último lançamento,
que leva o nome da pequena africana trazida como escrava para o
Brasil. Separada de sua família, morre ainda criança. Sem grandes
feitos em vida e sem uma família para recordá-la, chega ao Orum,
plano dos mortos e dos orixás, e descobre que não pode voltar ao Aiê,
plano dos vivos, até descobrir a sua identidade. A partir de então, sai
em uma jornada em busca de seu orixá.

 
 

A narrativa acontece no contexto do candomblé, religião que


Reginaldo estudou quando trabalhou no Cebrap, instituição criada em
1969 onde atuavam professores universitários afastados de seus
trabalhos pelo AI-5. Estava no início da carreira. Mais tarde, na livre
docência na Universidade de São Paulo, retomaria o tema da
sociologia da religião, sua especialidade. Escreveu o
clássico Mitologia dos Orixás e, mais tarde, adentraria o universo da
literatura infantil. Trouxe alguns mitos às crianças, inicialmente em
uma trilogia: Ifá, o adivinho; Xangô, o trovão e Oxumarê, o arco-íris.
 
 

Agora o autor busca discutir a identidade a partir dessa perspectiva.


“Aimó é o negro brasileiro buscando a identidade que foi roubada dele
pela escravidão, que lhe tirou a família, a origem, o nome, a crença, a
própria língua”, conta o escritor sobre o livro, que aproxima o jovem
leitor do universo dos orixás. “Aimó é o negro na construção da cultura
brasileira.”

Mistura de “tradição e invenção”, como aponta o escritor em nota no


livro, a obra tem cuidados sutis. Cada capítulo do livro, por exemplo,
tem seus temas principais prenunciados por desenhos que marcam
um odu (“capítulo do conjunto dos poemas de Ifá; sinal do destino”).
Ao final da obra, uma tabela com cada odu e a quais orixás ele remete
ajuda o leitor a se localizar na narrativa, que segue a estrutura do
oráculo.

 
 

O autor também apresenta o leitor a personagens caros ao universo


do candomblé, como os orixás Ifá e Exu, verdadeiros guias da menina
de identidade perdida. Na narrativa, Exu é mostrado como orixá
esperto, atrapalhado, zombeteiro, guloso, intrometido, nada
relacionado à figura diabólica com a qual por vezes é confundido. “Exu
é um mensageiro. Só que ele leva as mensagens boas e as ruins, e
cobra para fazer o serviço dele, porque ele é um carteiro. Por isso
sempre foi visto como uma figura esquisita, identificado com o diabo.
No livro, não.”

 
 

Se o autor acredita que a literatura possa mudar de alguma forma


esse preconceito? “Individualmente, não. Mas se você pensar na obra
como elemento de uma cultura mais ampla, se incorporado na cultura
corrente, acho que sim”, afirma o sociólogo.

Confira a seguir um bate-papo com Reginaldo Prandi.

Como nasceu o livro Aimó?


Reginaldo Prandi – Aimó teve uma trajetória muito difícil. Foi feito
inicialmente a pedido da Cosac Naify. Quando eu fiz Os príncipes do
destino, tinha feito um contrato para dois livros. Então trouxe a ideia
de Aimó. Faz uns três anos mais ou menos. Sei que fomos produzindo
o livro, ele já estava diagramado, todo pronto para ir para a gráfica e
ser lançado dali a dois meses quando a Cosac Naify fechou. Foi
quando eu tive uma reunião na Companhia por outro assunto e contei
que estava com esse livro abortado. Levei [os originais] para a editora,
e eles disseram que iam publicar e que gostaram muito das
ilustrações. Mudaram toda a diagramação, mas recontrataram o
ilustrador, o Rimon Guimarães.
O livro estava pronto quando a Júlia [Schwarcz] leu com as filhas dela,
e falou "Olha, o livro está ótimo, mas eu não concordo muito com o
último capítulo". Eu falei: “Eu, nesta altura, também não concordo”.
Reescrevi o último capítulo e cheguei mais perto de onde eu queria.
Foi até bom que ele foi abortado, que saiu em uma versão de que
gosto mais. E ainda fiz um anexo falando como funciona o oráculo.
Essa é a história de Aimó, é um livro que foi abortado e que renasceu,
exatamente como aconteceria com a personagem.
 

E quem é Aimó?
Reginaldo Prandi – Aimó é um africano nascido no Brasil que não
sabe quem é. Pode ser qualquer um de nós. Pode ser um africano
porque os primeiros humanos foram africanos, mas, na verdade, pode
ser qualquer um. Aimó é uma pessoa em busca de si mesma, que não
sabe quem é, mas que precisa saber a sua identidade porque é a
forma que ela tem de sobrevida, de continuar a viver. Aimó é o negro
brasileiro buscando a identidade que foi roubada dele pela escravidão,
que lhe tirou a família, origem, o nome, a crença, a própria língua. O
escravo rapidamente perdia a sua língua original. A primeira coisa
feita com um escravo era dar a ele um nome cristão. Aimó é o negro
na construção da cultura brasileira. É alguém que se perdeu, que
perdeu suas origens. Porque nós, brancos, nós sabemos se somos
italianos, sírios, portugueses ou alemães, mas o negro não sabe.
Sabe que é africano. É a mesma coisa que toda a nossa ideia de
identidade se resumisse ao fato de que todos nós sabemos que
somos europeus. É uma contradição muito grave porque, ao contrário
de nós, eles eram muito diversificados e as fraternidades deles eram
fraternidades muito específicas.
 

E como foi criar personagens fictícios a partir de entidades que


realmente existem no candomblé? 
Reginaldo Prandi – Os personagens sempre agem na ficção,
sobretudo Exu e Ifá, que vão levar Aimó pelo mundo. Agem sempre de
acordo com o estereótipo, não fogem daquilo que a tradição reza. Exu
é sempre muito esperto, atrapalhado, zombeteiro, guloso, intrometido.
O Ifá é aquele que acha que sabe tudo, que gosta de ser levado a
sério e que fica bravo quando alguma coisa não sai do jeito que ele
quer. A ideia também foi mostrar que Exu não tem nada a ver com o
diabo, como as pessoas dizem. Não, Exu é um mensageiro. Só que
ele leva as mensagens boas e as ruins, e cobra para fazer o serviço
dele, porque ele é um carteiro. Por isso sempre foi visto como uma
figura esquisita, identificado com o diabo. No livro, não.
 

Você acredita no poder da literatura para derrubar preconceitos


como esse?
Reginaldo Prandi – Individualmente, não. Mas, se você pensar na
obra como elemento de uma cultura mais ampla, se incorporado na
cultura corrente, acho que sim.
 

Já viveu algum caso de intolerância em relação aos seus livros?


Reginaldo Prandi – Já tive livros queimados em praça pública em
uma cidade do sul da Bahia. Isso porque a diretora, a professora e a
bibliotecária eram evangélicas, e elas receberam do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) um pacote, viram aquilo que era
para distribuir para os alunos e, quando abriram as caixas, só tinha
‘coisa do demônio’. Acho que era a trilogia Ifá-Xangô-Oxumarê.
Abriram todas as caixas, separaram os livros, jogaram-nos na rua, em
frente à escola, e tocaram fogo. Depois foram processadas porque
estavam queimando patrimônio público. Não sabemos se a
intolerância religiosa aumentou ou se foram os movimentos e as
iniciativas que ganharam uma maior consciência de que têm de reagir.
Acho que as duas coisas vêm juntas. Embora algumas denominações
mais antigas já estejam aprendendo que têm de respeitar a
diversidade, as igrejas mais novas são mais agressivas. Acontece que
os terreiros também têm sido mais agressivos no sentido de se
defender mais.
 

Poderia explicar o contexto em que a história se passa do ponto


de vista religioso?
Reginaldo Prandi – Segundo a concepção do candomblé, nós temos
pelo menos três almas: a primeira é o orixá, que representa aspectos
da natureza e que depende da linhagem da pessoa. Na África, você
herda o orixá do seu pai, que era do seu avô, do seu bisavô, e assim
por diante. Você tem ainda um segundo orixá, que é o da sua mãe.
Como as famílias são poligínicas, os homens têm diversas esposas,
os irmãos têm o mesmo orixá principal, mas não necessariamente o
segundo orixá, porque podem ser filhos de mães diferentes. Essa
ideia foi destruída na escravidão, em que o escravo não sabia mais de
onde ele vinha, qual era a sua origem. Era impossível saber quem era
você, uma questão de identidade. A religião resolveu esse problema
ritualmente com o oráculo. A mãe de santo joga os búzios e diz o seu
orixá. Foi uma forma de a religião resolver esse problema. Existe a
segunda alma, que representa a continuidade social das pessoas (a
alma que reencarna). A terceira alma é o ori, que é a sua
individualidade. Representa a sua cabeça, as suas decisões, o seu
temperamento. Essas três almas atuam conjuntamente para formar a
pessoa. Os ritos do candomblé propiciam a melhor integração possível
entre as três dimensões, inclusive porque elas podem ser conflitantes.
No candomblé, para renascer, você não pode ser esquecido. Como
você não é esquecido? Tendo uma família grande, tendo feito coisas
importantes. Mas a Aimó era escrava, não tinha família, morreu
criança. Não pode fazer nada porque não deu tempo, não sabia de
onde vinha. Estava condenada a não renascer, a viver em um mundo
sem prazeres. Esse é o grande drama dela.

Poderia contextualizar o surgimento das religiões afro-brasileiras


no Brasil?
Reginaldo Prandi – A primeira grande importação de escravos é de
origem bantu, do sul da África, incluindo Angola, Congo e até mesmo
Moçambique, que é do outro lado do continente. A primeira presença
negra na cultura brasileira é bantu, que deu origem a muitos costumes
brasileiros. Enriqueceu muito a língua portuguesa falada no Brasil,
com palavras, por exemplo, como “moleque” e “bunda”. Eles eram
trazidos para trabalhar no campo – na cultura da cana e nas minas.
Viviam nas senzalas, nas fazendas, no interior, e sob o controle e o
domínio da Casa Grande. Eram sempre muito pressionados a
assimilar o mais rápido possível a religião católica. Depois vieram
muitas outras etnias.
Nos últimos 60, 70 anos do tráfico, os grupos preferenciais que eram
trazidos ao Brasil eram de povos iorubás e uma fração um pouco
menor de um povo vizinho chamado fon, além de outras etnias
próximas. Esses escravos iorubás vieram em uma época em que
havia muitas mudanças no regime da escravidão. Primeiro que eles
vinham para trabalhar nos serviços urbanos, não eram levados para
trabalhar nos campos e nas minas, mas em atividades urbanas, como
pedreiros, carpinteiros, carregadores, amas de leite. Todo trabalho
urbano manual era feito por escravo, já que era considerado uma
desonra para o branco. E o trabalho escravo não era voltado para o
seu dono como o escravo rural, que trabalhava na fazenda ou na
mina. O escravo urbano trabalhava para quem precisasse da
habilidade dele e cobrava pelo serviço. Eram chamados de “escravos
de ganho” porque ganhavam para os seus donos. Não moravam mais
na propriedade dos patrões. Os patrões moravam nos bairros
aristocratas da cidade. Os escravos moravam em bairros distantes,
tinham as suas próprias igrejas católicas, tinham seus próprios pontos
de encontro. Passaram a ter uma mobilidade urbana que o antigo
escravo da senzala não tinha. Tinham que circular na cidade e tinham
uma capacidade de se organizar, de se conhecer. É aí que a religião
africana começa a se organizar. É aí que se funda a religião dos
orixás com uma presença grande de iorubás e de jejes, que falavam
uma língua similar e que tinham uma religião muito parecida.

Os bantus também organizaram as suas religiões, mas não tinham na


África uma religião organizada como a dos iorubás, não tinham um
panteão organizado. Cada aldeia tinha o seu modo de ser. Eram
divindades ligadas à terra, então adotaram divindades locais. Como a
religião era de antepassados ligados à terra, adotaram divindades
indígenas, dando origem ao culto dos caboclos, que vai ser o
candomblé de caboclo, o candomblé bantu, que depois vai dar origem
à umbanda. Como os orixás tinham muito prestígio no mundo negro,
eles acabam também adotando os orixás, mas com nomes bantus.

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