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Diálogos, pensamentos e

recordatórios
Vimos anteriormente como construir
personagens a partir de:

histórias de vida;
ações que desenvolvem;
arquétipos;
personagens reais;
aspectos físicos objetivos.
Diálogos, pensamentos e
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A ausência de diálogos pede que os


pensamentos e falas das personagens sejam
substituídos por ações que induzam o leitor a
pensar numa dada situação.
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Paradoxalmente, ao abrir mão dos diálogos,
perdem-se as duas ações que não podem
ser apenas mostradas visualmente numa
HQ: falar e pensar.

Tal decisão deve ser tomada de antemão e


com plena consciência da decisão.
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Outro exemplo: série de histórias da Marvel


constantes da série “Nuff Said”.
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A partir dessa decisão, é possível pensar (ou
não) nos diálogos entre as personagens.

Função dos diálogos

1) revelar as personagens e seus dilemas para


o público;
2) fazer a ação se desenrolar.
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Importante: não é no diálogo que as
características das personagens devem ser
“descritas”; em geral, isso deve ficar
subentendido em palavras, atitudes e gestos
das personagens.

Evite: “ele é um pão-duro”. Prefira: “ele


venderia a mãe, receberia o dinheiro e não
daria ela...”. Isso rende diálogos melhores.
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Um exemplo do cinema: Desconstruindo Harry,


de Woody Allen, cuja personagem encenada
por ele mesmo é (para variar) um maníaco
por doenças.
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Em vez de dizer “sou um hipocondríaco” ou


“veja como sou hipocondríaco”, a
personagem de Woody Allen diz:

“As palavras mais bonitas da nossa língua não


são ‘eu te amo’, e sim ‘é benigno’”.
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Os diálogos, segundo Linda Seger:

1) têm ritmo, batida e melodia próprios;

2) são curtos e enxutos

3) devem ser como uma partida de tênis:


revelar a troca de poderes entre personagens
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4) revelam conflitos, atitudes e intenções. Não


devem contar sobre a personagem, mas
desvendar a própria personagem.

5) fluem com facilidade por terem a cadência


certa
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O que torna um diálogo ruim?

1) enfado, falta de graça, afetação,


artificialidade, falta de fluência.

2) similaridade com diálogo de outras


personagens (falta de destaque, colorido)
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3) apresentação do subtexto (texto indireto) de


forma direta, explicando em detalhes o que
sente cada personagem, em vez de deixar o
leitor entender o que personagem diz,
mesmo que faça outra coisa.

4) banalização das personagens, em oposição


à revelação de sua complexidade.
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Atenção: diálogo depende da língua (que é


algo vivo).

Por isso se redublam produções audiovisuais


antigas e se relançam HQs antigas com
novos diálogos.

Língua = sempre em movimento


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Um diálogo deve permitir:

- reconhecer a personagem pelo modo de


falar (sotaque, gírias, vícios de linguagem);

- diferenciar personagens umas das outras;

- permitir atitudes subtextuais das


personagens.
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No caso dos quadrinhos, há outros aspectos:

1) a personagem pode falar e pensar ao


mesmo tempo.

2) a personagem pode falar sozinha (teatro).

3) o subtexto pode ser apresentado pelo


pensamento da personagem
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Atenção: aspectos do diálogo servem também


para outras personagens, como o narrador
no recordatório, que Thierry Groensteen
prefere chamar de recitante (récitant) em
vez de narrador.
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Atenção 2: resista à tentação de repetir, na fala


do narrador (no recordatório) a ação que já
é mostrada visualmente pelo desenhista (ver
exemplo humorístico a seguir, de Sergio
Aragonés, Sergio Aragonés Massacra a
Marvel):
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Atenção 3: o pensamento tem uma função, que


é externar aquilo que a personagem está
sentindo no âmbito da abstração.

Nos quadrinhos, falar e pensar são ações que


necessitam de palavras.
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Marcos Nicolau (Falas & Balões – a
transformação dos textos nas Histórias em
Quadrinhos) aponta quatro estilos de fala
nos quadrinhos:

1) Texto literário (narrador narra ação da


personagem em terceira pessoa, em
recordatório, e fala da personagem é
abertamente “literária”). Anos 1920 e 1930
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2) A popularização dos balões e onomatopeias


(anos 1940-1960)
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3) A multiplicação dos narradores


(anos 1960-1980).
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4) O pensamento das personagens ganha


destaque; os “diálogos” se dão em
recordatórios (Batman, o Cavaleiro das
Trevas, Frank Miller; Arma X, Barry
Windsor-Smith; HQs baseadas na estética
noir). Anos 1980 em diante.
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O domínio das técnicas textuais enriquece o
trabalho do roteirista.

Vejamos os exemplos de 1602 (Neil Gaiman)


e A Liga Extraordinária (Alan Moore):
respectivamente, as diferentes formas
temporais de falar/escrever e a retomada do
texto literário.
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Isso aponta para um aspecto peculiar do
romance, mas que serve também para os
quadrinhos (vale lembrar: graphic novel =
romance gráfico): seu estilo e composição.

O teórico russo Mikhail Bakhtin (1895-1975)


elenca, em Esthétique et Théorie du Roman
(1978), as cinco unidades composicionais e
estilísticas de um romance:
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- Narração direta, literária (fala do narrador);
- estilização das formas de narração oral;
- estilização de formas de narração escrita;
- formas literárias diversas (cartas, diários
etc.);
- discursos das personagens,
estilisticamente individualizados (BAKHTIN,
1978: 87-8).
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“[Um] romance [para Bakhtin, é um gênero
diferente dos demais, porque] ele incorpora
todos os outros gêneros, mesclando-os;
alterna todos os estilos, entrelaçando-os. Um
romance apresenta diálogos de todos os
tipos (a conversação mundana, o bate-papo
de amigos, os colóquios dos amantes...),
monólogos interiores, ensaios, narrativas,
cartas etc.” (FIORIN, 2006: 117-8).
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Atenção: balões de diálogos têm funções:

1) permitir que o leitor conheça as falas e


pensamentos das personagens.

2) permitir o aceleramento ou o
desaceleramento do tempo de leitura de uma
página.
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3) auxiliar na criação de uma página.

4) auxiliar na condução do olhar do leitor ao


longo de uma página.
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Exemplo 1: Mom's Cancer, de Brian Fies.

Diz o quadrinista: “o letreiramento vem em


primeiro lugar! Muita gente não sabe disso, e
antigamente isso não acontecia, e as
palavras acabavam esmagadas em bloco
(como em Little Nemo)”.
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Tal decisão é importante se você, como


roteirista, pretende dar um peso considerável
às falas e pensamentos das personagens.

Vejamos como Brian Fies trabalha a


articulação diálogo + balão / recordatório
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Aqui, processo tem 5 etapas:

- esboço e diagramação dos balões;


- esboço do desenho das personagens;
- letreiramento manual (canetas mais
grossas para o negrito);
- arte-final parcial (à mão);
- acabamento no computador (Photoshop).
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Alguns preferem fazer o percurso inverso:


fazer primeiro os desenhos para depois
inserir os balões, recordatórios e textos.

Tal recurso pode implicar alguns problemas.


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Exemplo 2: o balonamento como condutor da


leitura numa página.
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A colocação dos balões de diálogo, nesse


exemplo:

a) muda o ritmo de leitura da página; e


b) reforça ao leitor a indicação de onde
começa a onde termina a leitura da página.
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Uma vez tendo “criado” o seu “mundo possível”
(personagens, locais, falas etc.), cabe ao
roteirista pensar:

1) nos modos de contar a história (pontos de


vista, cortes de narrativa, duração temporal
etc.) (a seguir);
2) no modo de iniciar a narrativa para melhor
terminá-la (Hitchcock: “é melhor começar
com clichês do que terminar com eles”).
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Exercícios

Imaginem diálogos, pensamentos e modos de


falar para as pessoas das figuras. Vamos
convencionar que elas são da mesma história.

Sugestão: crie oralmente uma voz para cada


personagem.
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Aula parcialmente estruturada a partir dos seguintes
livros:

BAKHTIN, Mikhail. Esthétique et Théorie du Roman.


Paris: Gallimard, 1978.

CARRIÉRE, Jean-Claude & BONITZER, Pascal. Prática


do Roteiro Cinematográfico. São Paulo: JSN Editora,
1996.

CASETTI, Francesco & DI CHIO, Federico. Cómo


Analizar un Film. Barcelona: Paidós, 2007.
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DAVIS, Rib. Escribir Guiones – desarrollo de
personajes. Barcelona: Paidós, 2004.

FIELD, Syd. Manual do Roteiro – os fundamentos do


texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao Pensamento de


Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

KOHAN, Silvia Adela. Como Escrever Diálogos. Belo


Horizonte: Gutenberg, 2011.
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REUTER, Yves. A Análise da Narrativa – o texto, a


ficção e a narração. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

SEGER, Linda. Como Criar Personagens Inesquecíveis.


São Paulo: Bossa Nova, 2006.

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