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Cultura cabocla:
o messianismo como elemento da cultura popular e erudita na
Guerra do Contestado
RUI BRAGADO SOUSA*

Resumo
Há uma estreita relação entre os movimentos de resistência e cultura popular
com o messianismo. Este artigo examina essa aproximação a partir do conceito
dialético benjaminiano de “origem” (ursprung). A “origem” é um
protofenômeno no sentido teológico, quer seja ele o Paraíso ou o comunismo
primitivo, uma idade edênica e igualitária na Terra. Literalmente são “saltos”
para fora da continuidade histórica linear que rompem com o desenvolvimento
meramente evolucionista da História. A quebra da continuidade histórica não
volta-se exclusivamente ao passado idealizado, mas também para o futuro, à
utopia, ao millenium. Entre a experiência no passado e a expectativa no porvir
há o que pode ser denominado de “tempo messiânico”. No contexto da História
Cultural, pode-se dizer que o messianismo está inserido tanto na cultura erudita
(nas filosofias de Walter Benjamin e Ernst Bloch), como na cultura popular
(entre os caboclos do Contestado, no folclore). Estes elementos constituem uma
hipótese de circularidade cultural.
Palavras-chave: Guerra do Contestado; Messianismo; Circularidade cultural.

*
RUI BRAGADO SOUSA é Mestre em História (UEM).
O messianismo é o sal da terra – e do céu também; para que não só a
terra, mas também o céu intencionado não se tornem insípidos. O que o 101
numinoso prometeu o messiânico se dispõe a cumprir (Ernst Bloch, O
princípio esperança).
Sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua
condição de escravo. Daí a importância do messianismo na história do
patriarcado (Oswald de Andrade, A crise da filosofia messiânica).
O mundo messiânico é o mundo de uma atualidade plena e integral. Só
nele existe uma história universal. (Walter Benjamin, Nota às teses).

Guerra de Contestado

1. Introdução análise do Contestado, afinal o Messias


A Guerra do Contestado é seguramente não aparece explicitamente nos
documentos, é preciso interpretá-lo.
o movimento social brasileiro com
maior conotação messiânica e A dificuldade na análise do milenarismo
milenarista, ao ponto de alguns produziu interpretações reducionistas e
sociólogos a caracterizarem como factuais, de cunho positivista com forte
“guerra santa”, ou como um influência de Euclides da Cunha, onde
messianismo do tipo clássico. Dentre os os rebeldes sertanejos foram adjetivados
diversos elementos que tornam este de forma pejorativa como culturalmente
conflito bastante multifacetado, o arcaicos e atrasados e o messianismo
messianismo é um dos fatores mais associado à degeneração racial. Os
complexos, pois escapa aos olhos do caboclos, portanto, legaram o atributo
investigador. Termo evanescente e por inglório de fanatismo e ignorância,
vezes hermético, confunde os epíteto que carregam ainda hoje. A
pesquisadores e o senso-comum. Assim hermenêutica sociológica do
ocorre com as fontes utilizadas na messianismo representou um salto
qualitativo quanto à definição Rogério Rosa (2008) chamou de
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conceitual do termo, porém não houve “historiadores de farda”. O segundo, no
um diálogo efetivo entre a sociologia e qual se entendem os movimentos
a historiografia, fator que relegou o milenares como expressão dos conflitos
messianismo como um epifenômeno na no campo, com viés notadamente
recente produção historiográfica. Este sociológico. A hermenêutica
trabalho objetiva corrigir esse “hiato” sociológica do messianismo representou
na recente literatura do Contestado, um salto qualitativo quanto à definição
relacionando a cultura popular dos conceitual do termo, porém não houve
sertanejos da “guerra santa” com a um diálogo efetivo entre a sociologia e
cultura erudita na filosofia de Walter a historiografia, fator que relegou o
Benjamin e Ernst Bloch, uma hipótese messianismo como um epifenômeno na
de circularidade cultural. A teoria recente produção historiográfica. E por
fornece os conceitos para pensar o fim, no atual momento, nos últimos
messianismo como uma tradição vinte ou trinta anos, no qual o sentido
cultural no ocidente e a prática (os dos surtos messiânicos é compreendido
rebeldes e o monge José Maria) a partir de suas próprias raízes e
demonstra a tentativa da construção do referências culturais.
milenarismo na terra.
Os historiadores strictu-sensu voltaram-
O movimento do Contestado é bastante se tardiamente para a análise dos
multifacetado, com uma variedade de movimentos de cunho messiânico. Eric
atores históricos e cenários que tornam Hobsbawm (1970, p. 12), em Rebeldes
o conflito demasiado complexo e Primitivos, afirma que a tendência à
permite diversas interpretações. É marginalização dos surtos milenaristas
interessante o relativismo de Nilson por parte dos historiadores ocorre por
Thomé (1999, p. 13) afirmando que dois motivos. Em primeiro lugar devido
para os religiosos ocorreu uma “Guerra à tendência racionalista e “modernista”;
de Fanáticos”; para sociólogos, houve e em um segundo ponto, devido ao fato
um “Movimento Messiânico”; para de que as inclinações e o caráter político
políticos, aconteceu uma “Questão de desses movimentos são, muitas vezes,
Limites”; para militares, tratou-se de indeterminados, ambíguos ou mesmo
uma “Campanha Militar”; para conservadores.
marxistas, foi uma “Luta pela Terra”.
De certa forma, o Contestado foi tudo Esta tendência fica evidente no foco das
isso e ao mesmo tempo, o que recentes teses sobre a guerra do
problematiza e enriquece o fenômeno. Contestado. Delmir Valentini (2009)
analisa a atuação da Brazil Railway
São três os momentos da historiografia Company, holding criada por Percival
nacional sobre os movimentos Farquhar, em 1906, nos Estados Unidos
messiânicos, que diferem tanto em e que atuou na região conflagrada nos
termos metodológicos como ramos ferroviário, madeireiro e
hermenêuticos. O primeiro pode ser colonizador. Rogério Rodrigues Rosa
designado como “euclidiano”, no qual (2008) pesquisou a produção dos
se opõem as luzes iluministas da historiadores militares (historiadores de
Primeira República ao fanatismo farda) sobre o conflito e o projeto
obscurantista colonial, responsável modernizador do Exército no teatro de
pelos surtos messiânicos. Geração esta operações. Márcia Janete Espig (2008)
eminentemente positivista e militar, que elaborou sua Tese sobre os
trabalhadores da Estrada de Ferro São Queiroz, Maria Isaura Pereira de
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Paulo-Rio Grande e a participação dos Queiros e Duglas Monteiro), até onde se
turmeiros na “guerra santa”. Até mesmo pôde pesquisar.
as pesquisas que abordam a participação
É justamente nesse “hiato”
dos Monges do Contestado, como historiográfico que este trabalho se
Nilson Thomé (1999), Eloy Tonon
insere e justifica-se. Na tentativa de
(2008) e Alexandre Karsburg (2012),
apreender os movimentos de
são abundantes em termos heurísticos,
característica messiânica2 e milenarista3
documentais e empirismo, porém não
como movimentos sociais e políticos,
existe uma hermenêutica interpretativa
com uma racionalidade específica, a
para os conceitos milenares e
recente produção historiográfica tende a
messiânicos. Este fato nos leva a
deslocar o messianismo como um
concluir que a sócio-gênese religiosa do
epifenômeno, questão secundária que
Contestado1 tornou-se um objeto encobriria a visão do essencial, ou seja,
sociológico apenas, enquanto que a
a organização política do movimento.
historiografia propriamente dita estende Essa tendência é perceptível desde
o leque interpretativo para as questões
Milagre em Joaseiro, onde Ralph Della
materiais, palpáveis e políticas.
Cava (1976) busca as origens sociais do
Naturalmente há exceções a esta regra milagre que deu origem ao culto a Padre
que, embora não enfatizem o elemento Cícero; é fundamentada com a
messiânico do confronto, tangenciam descoberta das prédicas de Antônio
para uma análise religiosa da questão. Conselheiro, onde se percebe o cunho
São os trabalhos de Marli Auras (1984), acentuadamente político das pregações
uma interpretação gramsciana sobre a do líder de Canudos; e consolidada com
organização social da irmandade Paulo Pinheiro Machado (2004), em sua
cabocla; de Todd Diacon (1991), análise em torno das lideranças civis do
brasilianista que estudou a dicotomia Contestado.
entre o imaginário milenarista e a
realidade capitalista do conflito; e de
Ivone Gallo (1999), que estabeleceu
uma interessante síntese entre o
Apocalipse de São João com as imagens
representativas dos sertanejos. 2
Algumas definições teórico-metodológicas
Entretanto, não há um trabalho de sobre o messianismo cristão encontram-se em
pesquisa específico sobre o LANTERNARI, Vittorio, As religiões dos
messianismo desde a geração oprimidos, pp. 319 a 339; PEREIRA DE
QUEIROZ, Maria Isaura, O messianismo no
sociológica (Maurício Vinhas de
Brasil e no mundo, p. 27; WEBER, Max,
Sociologia das Religiões, p. 16 a 18. Em linhas
1
Por “religiosidade popular” entende-se as gerais, o Messias é alguém enviado por uma
manifestações que envolvem crenças e práticas divindade, um líder carismático, para trazer a
ligadas ao catolicismo (no caso, ao catolicismo vitória do Bem contra o Mal, restituindo o
rústico) que tem um ponto crucial de culto aos paraíso sobre a Terra. Relacionado, segundo
santos reconhecidos ou não pela Igreja. A Weber aos povos párias; para Lanternari, aos
religiosidade constitui um patrimônio cultural e oprimidos.
3
serve como elemento de identificação, de “O milenarismo representa uma das formas
identidade entre uma nação, classe social ou assumidas pela frustração da espera messiânica”
etnia. Caracterizada pelo culto aos santos (no (...). “Elas enunciam uma mudança radical, uma
caso do Contestado, São Sebastião, São Miguel salvação coletiva, iminente, total. Afirmam o
e São Jorge), por peregrinações e romarias e por sentido da história. Apelam ao agir humano”
ritos e cerimônias. (DELUMEAU, 1997, p. 18).
No entanto, a A metodologia da
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expectativa de História Cultural
ressurreição do permite estabelecer
Monge José Maria e aproximações,
de fundação de uma correspondências
cidade sagrada em (circularidade) e
Taquaruçu tornaram o resgatar alguns
Contestado, sem elementos
dúvida, o mais marginalizados na
explicitamente Monge José Maria. Autor: Willy Zumblick recente historiografia,
messiânico e Fonte: www.zumblick.com.br como a festa, sempre
milenarista dos três intimamente ligada
movimentos. Assim sendo, acreditamos com o messianismo. As festas sempre
que relegar um dos aspectos mais ricos tiveram papel de destaque no calendário
e complexos da “guerra santa” como cristão do sertanejo, porém, uma vez
secundário, mesmo com objetivos instituídos os “quadros santos” esses
nobres, seria encobrir um dos traços momentos que eram exceção passaram
4
mais importantes da cultura cabocla . A a ser regra geral, fenômeno que Duglas
partir do conceito de tradição cultural Monteiro (1974) chamou de “festa
pode-se compreender o fenômeno permanente”, onde por um curto
messiânico do Contestado, e assim período, os caboclos aproximaram-se do
espera-se retirar o véu de fanatismo que “Reino de liberdade”. Nesse ponto,
(ainda) envolve o conceito; afinal, como pode-se tecer uma relação entre a festa
afirmou Paul Ricoeur, “somos filhos permanente com utopia e messianismo.
bastardos da memória judaica e da Roger Caillois faz relação entre os “dias
historiografia secularizada do século de festa” e a rememoração da Idade de
XIX”. Ouro. No artigo “A festa”, publicado na
Nouvelle Revue Française, em 1939.
2. Metodologia: história social da
Caillois afirma que a festa apresenta-se
cultura e circularidade cultural
como uma atualização dos primeiros
Assim como a língua, a cultura tempos do universo, da Urzeit, da era
oferece ao indivíduo um horizonte original eminentemente criadora. A
de possibilidades latentes – uma Idade de Ouro, a infância do mundo
jaula flexível e invisível dentro da
como infância do homem, responde a
qual se exercita a liberdade
condicionada de cada um. (Carlo essa concepção de um paraíso terrestre
Ginzburg, O queijo e os vermes). onde tudo é dado de início e ao sair do
qual foi preciso ganhar o pão com o
suor do próprio rosto. É o reino de
4
Por “cultura cabocla” compreendo a Saturno ou de Cronos, sem guerra e sem
experiência histórica, a tradição e o contato com comércio, sem escravidão nem
os monges peregrinos da região Sul, desde o propriedade privada (apud LÖWY,
primeiro João Maria (Agostini) até o segundo 1989, p. 105). É nesse contexto que
João Maria e o “Messias Caboclo” José Maria. surge a figura da idade edênica do
A cultura, nesse sentido, é uma forma de
identidade, “uma espécie de teatro em que passado, o que faz a grandeza e a
várias causas políticas e ideológicas se importância dos dias de festa é permitir
empenham mutuamente”. Concebida dessa o encontro com “uma vida anterior”, diz
maneira, a cultura “pode se tornar uma cerca de Mikhail Bakhtin.
proteção: deixa a política na porta antes de
entrar” (SAID, 1995, pp. 13-14).
As festividades – escreve Bakhtin – são Gramsci), através do exemplo do
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uma forma primordial, marcante, da moleiro friulano Menochio. Se por um
civilização humana. Durante a festa, é a lado há dicotomia cultural, por outro há
própria vida que se representa, e por circularidade, influxo recíproco entre
certo tempo, o jogo5 se transforma em cultura subalterna e cultura hegemônica
vida real. Mikhail Bakhtin consolida (ou cultura popular e erudita). É com
termos fundamentais na História conceito de circularidade cultural,
cultural, como carnavalização da cultura formulado por Bakhtin e consolidado
e realismo grotesco,6 na obra sobre as por Ginzburg que procuramos uma
relações entre François Rabelais e a metodologia específica para o mundo
cultura popular. Essa penetração da camponês da Primeira República.
cultura popular no seio da ideologia
“superior” (em Rabelais, mas também Um exemplo reconhecido de
em Shakespeare, Boccaccio e circularidade cultural no Brasil é a tese
Cervantes) ocorre no Renascimento de Jacqueline Hermann sobre o
devido à decadência das fronteiras sebastianismo português, intitulada No
linguísticas, entre a literatura oficial e Reino do desejado. Os traços judaicos
não-oficial, latim e línguas vulgares; em de mística escatológica nas trovas de
parte pela decomposição do regime Gonçalo Anes Bandarra, a tradição de
feudal e teocrático da Idade Média. Joaquim de Fiore, a presença e a força
“Mil anos de riso popular foram assim desses aspectos milenaristas e
incorporados na literatura do escatológicos Jacqueline Hermann
Renascimento” (BAKHTIN, 1996, p. (1998) procura apreender como “cultura
62). popular portuguesa quinhentista”. Esta
cultura popular portuguesa da era dos
A crítica de Carlo Ginzburg é que os descobrimentos integrava um cenário
protagonistas que Bakhtin tentou bem mais amplo e complexo,
descrever – os camponeses e artesãos – conformando o que Hermann denomina
falam quase que exclusivamente através como “cultura artesã apocalíptica”.
de Rabelais. Ginzburg deseja uma Pode-se estabelecer uma ponte ou um
sondagem direta, sem intermediários ao corolário das definições de Jacqueline
mundo popular. Ginzburg busca Hermann sobre o messianismo
penetrar no que chama de cultura das português com o caso do Contestado,
classes subalternas (lembrando como uma “cultura campesina
5 messiânica”.
No clássico Homo Ludens: o jogo como
elemento da cultura, Johan Huizinga (2012),
afirma que o jogo antecede a própria cultura,
De Edward Thompson emprestamos os
reside no mito, no ritual, no próprio jogo de conceitos de “tradição cultural” e
palavras: a metáfora. O jogo se torna uma experiência, relacionando a resistência
necessidade urgente na medida em que o prazer popular, os costumes e a tradição
por ele provocado o transforma numa religiosa. “Essa cultura expressa os
necessidade. Seu ambiente dominante é a festa,
que implica na interrupção da vida cotidiana.
sistemas de poder, as relações de
6
O termo “grotesco” surge no século XV, propriedade, as instituições religiosas
deriva de “grotta”, ou gruta de escavações onde etc., e não atentar para esses fatores
foram encontrados formas de arte opostas ao simplesmente produz uma visão pouco
convencional, ao sublime; são formas profunda dos fenômenos e torna a
deterioradas, invertidas, eróticas, deformadas.
Importante ter em mente que o conceito está
análise trivial” (THOMPSON, 1998, p.
presente no ensaio de Benjamin sobre Eduard 288 e 289). Seu conceito de “economia
Fuchs e o erotismo. moral”, descrito em Costumes em
Comum, também auxilia a compreensão existência rural para a urbana, da
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de que toda desorganização histórica criação de porcos a Picasso, do lavrar o
das condições sociais acarreta na solo à divisão do átomo. A construção
desarticulação dos conceitos e das da cultural está, portanto, desde sua
representações dos homens e, por origem epistemológica, relacionada com
conseguinte, de suas representações a natureza e com o trabalho. Com base
religiosas. De acordo com Ronaldo em suas raízes etimológicas no trabalho
Vainfas (1997), o campo teórico da rural, a palavra primeiro significa algo
cultura popular em Thompson valoriza como “civilidade”; depois, no século
a resistência social e a luta de classes XVIII, torna-se mais ou menos
em conexão com as tradições, os ritos e sinônima de “civilização”, no sentido de
o cotidiano das classes populares, em um processo geral de progresso
um contexto histórico de transformação, intelectual, espiritual e material. A
pois a cultura popular é rebelde, mas o é cultura é o sinônimo e a antítese da
em defesa dos costumes. São inter- civilização.
relações recíprocas entre os dois
3. O messianismo, erudito e popular
universos culturais que de certo modo,
escreve Vainfas (1997), aproximam-se A afinidade eletiva entre utopia
dos conceitos de circularidade libertária e religião, política e
formulado por Ginzburg. “Pois não messianismo tende a chagar ao grau de
existe desenvolvimento econômico que fusão, teoricamente nas obras de Walter
não seja ao mesmo tempo Benjamin, Ernst Bloch8 e do jovem
desenvolvimento ou mudança de uma Lukács.9 A forma original em gestação,
cultura” (THOMPSON, 1998, p. 304). a figura inédita que se esboça nessa
alquimia espiritual complexa na obra
Partindo das premissas desta Escola e benjaminiana e blochiana, é a de uma
de uma citação magnífica de nova concepção de história e de
Hobsbawm (1998, p. 87) de que “o temporalidade que Michael Löwy,
historiador das ideias pode não dar o emprestado uma expressão de George
mínimo para economia, e o historiador
econômico desprezar Shakespeare, mas
8
o historiador social que negligencia um Bloch cita Os Irmãos Karamazov onde
Dostoievski escrevia que o “socialismo é a
dos dois não irá muito longe”, torna-se
Torre de Babel que se constrói para fazer o céu
coerente afirmar que o historiador da descer sobre a terra” e faz uma analogia entre
cultura deve abordar tanto o mundo das Jó do Antigo Testamento - como sendo um
ideias e cultura, como a sociedade Prometeu hebraico, defendendo energicamente
material, a base econômica. Afinal, o direito e a rebelião - e o personagem Ivan
Karamazov: “Creio em Deus, más recuso o seu
como demonstra Terry Eagleton (2011),
mundo” (MUNSTER, 1993, p. 65).
Cultura7 denotava no início um 9
Em obra sobre a evolução política de Lukács e
processo completamente material, o que os intelectuais revolucionários da primeira
foi depois metaforicamente transferido metade do século XX, Michael Löwy (1979)
para as questões do espírito; da cita as memórias de Marianne Weber, a esposa
de Max Weber, que descreve o jovem Lukács
como “agitado por esperanças escatológicas na
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A origem da palavra “cultura”, do latim culter, vinda de um novo Messias” e considerando
designa a relha de um arado, deriva de trabalho “uma ordem social fundada na fraternidade
e agricultura, colheita e cultivo. A raiz latina da como pré-requisito da Salvação”. Um epigrama
palavra cultura é colere, com significado bastante irônico e bem humorado resumia com
diverso, desde cultivar a adorar e proteger. perfeição a visão de mundo desses jovens
Também pode significar, via o latim cultus, no intelectuais: “Como se chamavam os quatro
termo religioso “culto”. evangelistas? Marcos, Mateus, Lukács e Bloch”.
Lukács, chamou de “messianismo escapar às distinções tradicionais entre
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histórico” ou “concepção romântico- religião e vida secular, sagrado e
messiânica da história”. Oposta à profano (Durkheim), natural e
concepção estritamente quantitativa da sobrenatural (Max Weber),
temporalidade, que percebe o transcendente e imanente (Eliade). O
movimento da história como um termo ateísmo-religioso – proposto por
continuum de aperfeiçoamento Lukács a propósito de Dostoievski –
constante, de evolução irreversível, da permite delimitar essa figura paradoxal
acumulação crescente, da modernização e buscar o ponto de convergência
cujo motor reside no progresso messiânica entre o sagrado e o profano.
científico, técnico e industrial, em suma
A obra mais densa e elaborada de
como contraponto ao paradigma do
Benjamin é certamente a Origem do
progresso, o messianismo histórico ou
drama barroco alemão. Inicialmente
concepção romântico-milenarista da apresentada como tese de livre docência
história está em ruptura com essa
ou Habilitação na Universidade de
filosofia do progresso e com o culto Frankfurt, tem como propósito inicial
positivista do desenvolvimento
distinguir a forma desse drama,
científico e técnico. Propõe uma
enquanto “drama trágico”
concepção qualitativa, não
(Trauerspiel)11, da tragédia (Tragödie),
evolucionista do tempo histórico, na e procura demonstrar as afinidades
qual a volta ao passado representa o existentes entre a forma literária do
ponto de partida necessário para o salto drama trágico e a forma artística da
em direção ao futuro, em oposição à alegoria12. A tese foi esboçada em 1916
visão linear, unidimensional, puramente num curto texto chamado “Drama
quantitativa da temporalidade enquanto barroco e tragédia”. O fragmento é uma
progresso cumulativo (LÖWY, 1989). das primeiras formulações do que
Quanto a essa concepção da História de Michael Löwy chama de “crítica
Benjamin, Michael Löwy (2005, p. 95) teológica” ao tempo mecânico, e
adverte que o vínculo entre a era
messiânica e a sociedade sem classes
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não pode ser compreendido unicamente Trauerspiel deveria traduzir-se, literalmente,
por “drama lutuoso”, que não corresponde a
em termos de secularização,10 uma vez
nenhuma designação do gênero em português.
que o religioso e o político conservam, Optei por “drama trágico” para fugir à tradução,
em Benjamin, uma relação de comum em línguas românticas, de “drama
reversibilidade recíproca, de tradução barroco” que não está no termo original nem
mútua, que escapa a qualquer redução designa também nenhum gênero dramático
particular (nota do tradutor João Barrento).
unilateral: “em um sistema de vasos
Neste momento, utiliza-se o termo “drama
comunicantes, o fluido está trágico”, seguindo as explicações de Barrento;
necessariamente presente em todos os contudo, alguns autores ainda fazem uso do
ramais simultaneamente”. Tendem a termo drama barroco, e outros preferem não
traduzi-lo, mantendo o termo em alemão:
“Origem do trauerspiel alemão”.
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Max Weber (1983) define a secularização “O sentido literal não é o sentido verdadeiro.
como um processo pelo qual o conjunto de Deve-se aprender uma outra leitura que busque
fenômenos saídos das representações religiosas sob as palavras do discurso seu verdadeiro
que desaparecem ao incorporarem-se nas pensamento, uma prática que os estóicos
sociedades históricas. Weber compreende a chamam de hyponoia (subpensamento) e à qual
secularização como um movimento trazido Filo de Alexandria dará seu nome definitivo de
intimamente pela dialética histórica própria do alegoria (de allo, outro e agorein, dizer)”
cristianismo. (GAGNEBIN, 1999, p. 34)
constitui um dos fundamentos especialistas na obra de Walter
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filosóficos de sua rejeição às ideologias Benjamin no Brasil, uma estratégia
do progresso. Para Walter Benjamin, interessante é entendê-lo como uma
não se pode pensar nenhum espécie de “estrutura” histórica, algo
acontecimento empírico isolado que não como uma ideia platônica, porém
tenha uma relação necessária com a historicizado. Para o filósofo da
constelação temporal específica em que Unicamp Márcio Seligmann-Silva
acontece. Mas o tempo da história é (2008), ursprung – literalmente proto-
diferente do tempo da mecânica, ele salto – significa saltar e fazer pontes
pondera. O tempo dos calendários ou entre fragmentos da redenção, isto é,
dos ponteiros do relógio não contém o uma rememoração do evento original
que ele chama de “tempo preenchido”, que se transforma em tradição cultural.
pois são mecanicamente ascendentes, Jeanne Marie Gagnebin (1999, p. 10)
quantitativos, em detrimento do tempo reitera que ursprung designa a origem
vivido, ou da experiência. “A esta ideia como salto [Sprung] para fora da
do tempo preenchido chama-se na sucessão cronológica niveladora e linear
Bíblia – e esta é a sua ideia histórica tradicional; pelo seu surgir a origem
dominante – o tempo messiânico” quebra a linha do tempo15.
(BENJAMIN, 2011, p. 262). Com uma visão crítica da modernidade,
No livro dobre o Drama trágico, a da civilização industrial, o messianismo
dialética benjaminiana distingue aquilo é incorporado como expressão milenar
que, na experiência histórica, nos afeta a das esperanças, sonhos e aspirações dos
partir das origens (ursprung): “O que é párias e excluídos da história, como
próprio da origem [e não gênese] nunca uma “tradição dos oprimidos”, utópica e
se dá a ver no plano factual, cru e subversiva, e como a fonte de uma visão
manifesto. O seu ritmo só se revela a descontínua da temporalidade.
um ponto de vista duplo. A origem (...) Contrariamente ao tempo dos relógios
tem a ver com a pré e pós-história dos ou calendários, vazios e homogêneos, a
fatos” (BENJAMIN, 2011, p. 34). O tradição dos oprimidos está carregado e
conceito de “origem”13 é certamente preenchido de “tempo atual” ou “o
bastante complexo e obscuro. Segundo agora” que faz explodir o continuum da
filósofo Romero Freitas14, um dos história, no qual há estilhaços do tempo
messiânico, “pois nele cada segundo era
13
“A origem não é só ‘Entstehung’ (um a porta estreita pela qual podia penetrar
surgimento, um nascimento milagroso), mas o Messias” (BENJAMIN, 1994, p.
sobretudo, ‘Ursprung’ (momento original que 232,Tese XVIII B).
sempre se renova). Daí a frase misteriosa de
Walter Benjamin: ‘Ursprung ist der Ziel’ (A O Contestado representou “um salto de
origem é o alvo); ou para citar Ernst Bloch “A tigre em direção ao passado”, como
Gênese é o fim”. A criação com fundamentação
que nos antecede, torna-se o movimento pelo
qual estamos chegando à plenitude” (FURTER, movimentos messiânicos, como desdobramento
1974, p. 57). de uma tradição profética que faz parte de toda a
14
De acordo com o professor Romero Freitas, cultura ocidental, marcada pelo judaísmo e
com quem mantivemos correspondência, os cristianismo. Ver a revista Artefilosofia, Dossiê
estudos sobre Benjamin encontram-se em um Walter Benjamin. Ouro Preto, n.6, abril 2009.
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nível maduro no Brasil, mas são poucos os Na definição de Peter Szondi, o “tempo
trabalhos que associam a teoria messiânica da verbal de Benjamin não é o pretérito perfeito,
história e o conceito de “origem” benjaminiano mas o futuro do pretérito em todo o seu
empiricamente. Para Freitas há uma afinidade paradoxo: ele é futuro e, mesmo assim,
entre a ideia ou origem em questão com os passado.” (Dossiê Benjamin, Artefilosofia).
diria Walter Benjamin (1994, p. 230) na Ernst Bloch – “um vasto sistema do
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XIV Tese “Sobre o conceito de messianismo teórico”. Theodor Adorno
história”. Um salto dialético sobre o afirma que “a perspectiva do fim
livre céu da história para explodir o messiânico da história e da passagem
continuum, aquele tempo linear, para a transcendência é o centro em
evolucionista, vazio e homogêneo, o torno do qual tudo se ordena em Geist
tempo dos vencedores em suma. Mas der Utopie.
esse “salto de tigre” não significa Ao abordar o tema das utopias
meramente um retorno ao passado concretas16, Bloch não está apenas
idealizado de uma sociedade pré-
interessado na valorização barata do
industrial. Inversamente, ele também
elemento irracional da humanidade,
volta-se para o futuro, para a utopia do pelo contrário, na superação do
Reino. Entre o passado e o futuro ele
elemento sociológico e econômico
nega o presente opressor, resgatando as vulgar e na introdução do elemento
energias da tradição e a utopia vindoura. religioso e metafísico como um impulso
Para analisar a função histórica das que acompanha a consciência
utopias, do porvir, do ômega, é revolucionária, rompendo assim com o
necessária uma visita ao pensador Ernst conceito historicista de linearidade. Para
Bloch. romper com o saber puramente
Walter Benjamin e Ernst Bloch podem contemplativo e idealista das utopias,
ser representados como o deus romano Bloch as articula com a filosofia da
Janus. Na mitologia romana, Janus (ou práxis de Marx e com a ontologia da
Jano) é um deus biforme que mantém “consciência antecipadora” ao que
uma face para o que foi e outra para o “ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo,
vir-a-ser, ou seja, uma para o passado e o homem compreendido como um ser
outra para o futuro, uma é o velho e a ainda em formação é remetido em
outra é o jovem. É também o deus das direção do futuro, ao novum, ao devir. O
transformações e o guardião dos portais impulso ou interrupção que nos move
e caminhos. Como “irmãos siameses”, necessariamente rumo ao novo é
ambos representam a mais pura tradição abordado por Bloch de uma forma
judaica, impregnados de messianismo bastante peculiar e distinta às pulsões
teórico, com a diferença apenas que freudianas; a fome, as profecias, os
Bloch volta-se para o horizonte do movimentos messiânicos e
amanhã, do porvir, das utopias escatológicos são os motivadores das
concretas; enquanto que Benjamin irrupções históricas e cuidadosamente
analisa a experiência em vez da articulados às utopias.
expectativa. Benjamin e Bloch
sintonizam a vontade utópica, na qual o
sonho primordial e a “luz do futuro” se
fundem. Esses filósofos alemães e 16
O termo utopia, do grego u-topos, significa
judeus mantiveram uma intensa relação originalmente “nenhum lugar”, o que ainda não
recíproca de crítica e amizade durante existe, uma aspiração que está em contradição
toda a década de 1920, período de com o existente, com a ordem estabelecida.
ascensão nazista. Todavia, “restringir ou até orientar o utópico ao
modo de Tomás Morus seria como querer
reduzir a eletricidade ao âmbar-amarelo, do qual
Desde Espírito da Utopia, obra de 1918, ela recebeu o seu nome em grego e no qual ela
até Ateísmo no Cristianismo, publicado foi percebida pela primeira vez” (BLOCH,
em 1968, há – nas palavras do próprio 2005, p. 25).
Essa dimensão 31) – “um corpo de
110
utópica está presente doutrina, ‘um
em Bloch desde suas evangelho caboclo’,
obras de juventude, com sua face
mas é em O Princípio anedótica,
Esperança que sua miraculosa, seus
filosofia da história aspectos morais e
ganhará sociais”. É
fundamentação conveniente lembrar
prática. Na primeira que o segundo João
parte de sua obra- Maria previu
prima, o autor trata de acertadamente, em
conceitos ontológicos linguagem profética,
como “ainda-não-ser” Monge José Maria. Autor: Willy Zumblick futuras guerras, a
ou “ainda-não- Fonte: www.zumblick.com.br vinda de “gafanhotos
consciente” e “sonhos acordados”; de aço” (serrarias), que comeriam toda a
enfim, das potencialidades imanentes do madeira, de “dragões que soltam fogo
ser-humano que ainda não foram pelas ventas” (trens), e que a cidade de
exteriorizadas, mas que possui uma Curitibanos viraria “tapera”17. O
força dinâmica e projeta o homem sociólogo Cesar Goes (2007) demonstra
necessariamente para o futuro. Ligando que a relação entre os personagens, suas
a dimensão de Esperança ao conceito práticas e o contexto social que estão
de Antecipação, de utopia e práxis, inseridos, permite compreender como a
Bloch consegue integrar perfeitamente formação de narrativas proporciona,
este conceito teológico-filosófico ao através da circulação das mesmas, um
projeto de uma filosofia da práxis sistema de crença. Goes busca as
revolucionária e transformadora. formas que articulam esse sistema na
“sociologia da experiência”.
***
“Quem tem, mói; quem não tem, mói
O “tempo messiânico”, do qual escreve também, e no fim todos ficarão iguais”
Benjamin enquanto teoria, tem sua (Provérbio sertanejo supostamente
fundamentação prática nas prédicas do atribuído a José Maria). Este preceito
monge José Maria e, de maneira geral, ético resumia as novas relações sociais e
nos costumes do sertanejo durante toda econômicas entre os sertanejos. De
a Guerra do Contestado (1912-1916). acordo com Maurício Vinhas de
Queiroz, que o recolheu no jornal
O “Messias caboclo” José Maria Diário da Tarde, esta norma significava
certamente soube aproveitar a tradição que os bens possuídos pelos adeptos de
de João Maria presente nos sertões do José Maria anteriormente ao
Paraná e Santa Catarina até os dias movimento, eram postos em comum.
atuais. O primeiro João Maria, Giovanni “Quem possuía gado e lavouras, tudo
Maria de Agostinho (1801-1869) deixou
um legado de santidade e devotos por 17
conta da lenda das águas santas, por “Os meus povos devem ir em minha
companhia para verem as pedras de Curitibanos
onde andou. chorar sangue”. Profecia atribuída a José Maria,
segundo a narração de Antonio Ferreira dos
Em torno da figura mítica de João Santos, filho mais velho do líder e devoto do
Maria, formou-se – nas palavras do Monge, Euzébio Ferreira dos Santos
folclorista Euclides Felippe (1995, p. (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 221).
entregava ao consumo geral; quem 4. Considerações finais
111
possuía dinheiro, contribuía com o que
Uma das características do complexo
pudesse dispor; quem nada possuía, de estilo de escrita alegórica de Walter
tudo poderia participar também”. É o
Benjamin é que a metodologia aplicada
que atesta o depoimento de um rebelde,
a determinado ensaio, crítica ou tese
Zaca Pedra, “(...) o que eles tinham era
ocorre simultaneamente e inerente ao
repartido. Tudo era irmão. O que um
objeto analisado.18 Isso por vezes
tinha, tinha que repartir” (VINHAS DE
complica a compreensão da obra, por
QUEIROZ, 1981, p. 142). O código
outras, no entanto, torna-se
ético dos camponeses tem claramente
esclarecedor. Dito isto, pode-se traçar
uma inspiração bíblica: “Ninguém
um paralelo entre o estilo literário e a
afirmava serem seus os bens que
metodologia benjaminiana e algumas
possuía, mas tudo lhes era comum”
peculiaridades do Contestado. No
(Atos 4, 32).
ensaio sobre As afinidades eletivas de
José Maria ficou conhecido entre as Goethe, Benjamin distingue a função do
regiões de Palmas (PR) e Curitibanos crítico e do comentador. Enquanto a
(SC) por ser um notório curandeiro, crítica busca o teor de verdade de uma
conhecedor das plantas medicinais, obra, o comentário atinge apenas o seu
alfabetizado e leitor das lendas de teor factual, esta distinção fica evidente
“Carlos Magno e os doze Pares de na brilhante alegoria de uma fogueira:
França”. As práticas deste terceiro Se quiser-se contemplar a obra em
monge constituem, de acordo com a expansão como um a fogueira em
tese de Marli Auras (1984), “o processo chamas vívidas, pode-se dizer então
pedagógico de organização da que o comentador se encontra
irmandade cabocla”. E sua morte em diante dela como o químico, e o
outubro de 1912 pode ser considerado crítico semelhante ao alquimista.
Onde para aquele apenas madeira e
uma “parúsia cristã” em pleno século
cinzas restam como objeto de sua
XX. Imediatamente após perecer na analise, para este tão somente a
primeira batalha do Irani, em outubro de própria chama preserva um enigma:
1912, correu a crença de sua o enigma daquilo que está vivo
ressurreição. Isso fica patente no fato de (BENJAMIN, 2009, pp. 13-14).
que o monge não foi enterrado, mas
As palavras de Walter Benjamin,
apenas coberto com algumas tábuas,
aparentemente desconexas de uma
para que pudesse retornar. E uma vez
relação empírica com Contestado,
frustrado a segunda vinda, um ano após
ganham fundamentação prática se
sua morte os camponeses voltaram a
resgatarmos alguns relatos sobre o culto
reunir-se em Taquaruçu, a “Jerusalém
a São João Maria. Na literatura
cabocla” à sua espera. Tal processo
folclórica, nas reminiscências dos
reavivou a guerra que estava em
franciscanos, ou ainda na literatura
latência desde 1912 e persistiu até 1916
militar existem descrições sobre a
com a intervenção do Exército com
quase metade de seus efetivos, deixando
18
um saldo de aproximadamente dez mil Um exemplo temático: no conjunto de
mortos. aforismos intitulado “Rua de Mão Única”,
Benjamin (1995, p. 61) interrompe o texto para
expor seu estilo de citação: “Citações em meu
trabalho são como salteadores no caminho, que
irrompem armados e roubam ao passante a
convicção”.
utilização dos restos do fogo que o materialismo histórico e teologia – é
112
Monge fazia nos pousos ao relento, possível escapar das armadilhas
utilizadas como verdadeiras relíquias metodológicas que marcaram a
pelos sertanejos. “As cinzas do fogo que produção marxista de meados do século
o velho monge fazia eram avidamente XX. Entre eles, a explicação causal dos
disputadas e colocadas em breves surtos messiânicos como mero reflexo
suspensos ao pescoço, a fim de do atraso econômico e cultural do Brasil
afugentarem ‘coisas ruins’ como no período de “crise do latifúndio semi-
diziam”, narra o Tenente Pinto Soares feudal” (FACÓ, 2009), ou como
(1931, p.13). O carvão feito pelo Monge sintoma de uma “crise estrutural”
tornou-se sagrado para seus devotos, (VINHAS DE QUEIROZ, 1981). Esta
utilizados como patuás ou em receitas abordagem difere também da analise
de cura. sociológica de Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1976) e seu conceito de
Este exemplo demonstra como os
“anomia social” e da busca por um “tipo
comentadores, como químicos, viram
ideal” para apreender o messianismo
apenas o teor factual do movimento e
dos sertanejos do Contestado.
associaram-no a conceitos pejorativos e
reducionistas como “fanatismo”, O messianismo judaico e cristão contém
“obscurantismo”, “misticismo” e duas tendências, intimamente ligadas e
“ignorância”. Todavia, numa analise contraditórias ao mesmo tempo: uma
crítica ou “alquimista”, é a vida que se corrente restauradora voltada para o
propaga no simples resquício de uma restabelecimento de um estado ideal do
fogueira. passado, uma idade de ouro perdida,
Há um conceito sociológico uma harmonia edênica rompida; e uma
consolidado por Max Weber, este corrente utópica, aspirando a um futuro
“alquimista das ciências sociais” – radicalmente novo, a um estado de
como o definiu Michael Löwy – que coisas que jamais existiu. Justamente o
permite uma melhor síntese entre uma ponto de referência entre Walter
análise crítica esboçada através de Benjamin e Ernst Bloch, ou seja,
referenciais como Benjamin e Ernst Benjamin preocupa-se com a
Bloch e o quiliasmo dos camponeses do experiência perdida, enquanto Bloch
Contestado. É o conceito de “afinidade volta-se para o horizonte da expectativa
eletiva”. Löwy (1989) justifica o vindoura, das utopias. Entre a
emprego do conceito criticando a experiência e a expectativa ocorre a
sociologia pautada nas terminologias insurreição messiânica. Aparente
conceituais da física e da biologia, de conservador, o movimento do
inspiração comtiana. Propõe utilizar um Contestado tem caráter explicitamente
campo semântico mais vasto, como das monarquista, o que seria contraditório e
religiões, dos mitos, da literatura e até reacionário em se tratando de uma
das tradições esotéricas, pois “não revolta revolucionária. Mas a volta ao
tomou Max Weber o conceito de passado é um salto em direção ao
carisma da teologia cristã, e Mannheim futuro, ao novum.
o de ‘constelação’ da astrologia
No ensaio sobre Eduard Fuchs o ponto
clássica?”
central da filosofia da história
A partir dos conceitos de Walter benjaminina fica patente. O conceito de
Benjamin e Ernst Bloch – que que “não há um documento de cultura
concebem uma aproximação entre que não seja também um documento de
barbárie”. A desastrosa recepção da _____. Charles Baudelaire: um lírico no auge
do capitalismo. Obras escolhidas volume 3. São 113
técnica capitalista, para Benjamin,
Paulo: Brasiliense, 1996.
extrapola o fato de a técnica só servir à
sociedade para a produção de _____. Ensaios Reunidos: escritos sobre
mercadorias. As questões que a Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.
humanidade coloca à natureza – escreve _____. Origem do drama trágico alemão.
Benjamin (2012, p. 145) – são Edição e tradução João Barrento. Belo
codeterminadas pelo estágio de sua Horizonte: Autentica, 2011.
produção. “Este é o ponto em que o BLOCH, Ernst. O princípio esperança.
positivismo fracassa, porque, na Tradução de Nélio Schneider. Rio de Janeiro:
evolução da técnica, só foi capaz de Eduerj: Contraponto, 2005; 2006. (3 volumes).
reconhecer os progressos da técnica, _____. Thomas Munzer, o teólogo da revolução.
não os retrocessos da sociedade”. Tradução de Vamireh Chacon. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1973.
A linearidade do Positivismo impediu CARDOSO, Ciro. F.; VAINFAS, Ronaldo.
que os observadores militares Domínios da História: ensaios sobre teoria e
euclidianos compreendessem o metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.
fenômeno complexo como o DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Juazeiro;
messianismo. Nossa metodologia tradução de Maria Yedda Linhares. Rio de
dialética teve como objetivo revisar a Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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Contestado, e retirar a semântica uma história do paraíso. Tradução de Paulo
negativa que recaiu sobre os sertanejos, Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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ignorantes. Ao abordar o messianismo tradução Sandra Castello Branco. São Paulo:
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devolvemos aos sertanejos sua ESPIG, Márcia Janete. Personagens do
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