Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Introdução
V a m o s d a r a q u i u m a s l i n h a s g e r a is s o b r e a o r ie n t a ç ã o d o C u r s o d e
Filosofia, que será dado em cinco anos. Eu vou enunciar aqui, vagamente, um programa
que – é claro – poderá ser mudado, dependendo do aproveitamento dos alunos ou de
o u t r a s c i r c u n s t â n c i a s q u e s u g ir a m i s s o .
E m t e r m o s g e r a i s , a id é i a é e q u i p a r o s a l u n o s p a r a q u e p o s s a m
r e a g i r f i l o s o f i c a m e n t e – r e a g i r d e u m a m a n e ir a i n t e l e c t u a l m e n t e v i á v e l – à s m u d a n ç a s
culturais e históricas que estamos vivendo hoje.
V a m o s p a r t i r d a s e g u i n t e c o n s id e r a ç ã o : t o d a s a s g r a n d e s m u d a n ç a s
d a m o d a c u lt u r a l a o l o n g o d o s t e m p o s , a c o n t e c e m d e u m a m a n e ir a p e c u l i a r . D i f i c i l m e n t e
um conjunto de idéias, valores e símbolos é abandonado por ter sido atacado
diretamente, refutado ou superado.
E n t ã o , j a m a i s s e p o d e c o n f u n d ir a i d é i a d e u m a s u p e r a ç ã o h i s t ó r ic a
– do fato de que uma nova moda cultural tomou conta do espaço – com o confronto
i n t e l e c t u a lm e n t e v á l id o e n t r e d o i s c o r p o s d e i d é i a s : n u n c a p o d e m o s a c h a r q u e u m a
i d é i a , s i m p l e s m e n t e p o r q u e e l a f o i a b a n d o n a d a h i s t o r ic a m e n t e , ( e l a ) t e r á s i d o r e f u t a d a
o u im p u g n a d a d e m a n e i r a a l g u m a .
I s s o N i e t z s c h e o b s e r v o u b e m : “ vo c ê s ó s u p e r a a q u i l o q u e v o c ê
substitui”, quer dizer: não se trata de discutir ou de refutar idéias, mas de colocar
o u t r a s n o l u g a r d e la s e f a z e r c o m q u e a s a n t e r i o r e s s e j a m e s q u e c i d a s . N a m e d i d a e m q u e
s ã o e s q u e c i d a s , e n t ã o j u s t a m e n t e p o r i s s o ( . . . ) e n q u a n t o e l a s e s t ã o d o m i n a n d o e la s n ã o
foram refutadas, depois que elas são esquecidas não precisa refutar mais.
1
O efeito disso é que o chamado “progresso” da cultura,
“ p r o g r e s s o ” d o c o n h e c i m e n t o , n a v e r d a d e é u m a s u c e s s ã o d e e s q u e c im e n t o s , u m a
s u c e s s ã o d e p e r d a s a b s o l u t a m e n t e f o r m i d á v e is .
Quer dizer: a gente pode observar uma série, uma tendência geral à
u n i f o r m i z a ç ã o : n a m e d i d a e m q u e vo c ê v a i a b a n d o n a n d o a s p e r s p e c t i v a s a n t e r i o r e s e q u e
as novas vão ocupando todo o espaço, as anteriores se tornam inimagináveis ou
i m p e n s á v e is , e x c e t o p a r a u m n ú m e r o m u i t o p e q u e n o d e p e s s o a s .
J u s t a m e n t e p o r i s s o , a s n o v a s i d é i a s q u e o c u p a m o c e n á r io , e l a s o
fazem com uma grande liberdade de ação: não têm satisfações a prestar à cultura
a n t e r i o r e , p o r t a n t o , e la s s ó a d m it e m s e r c o n t e s t a d a s o u d i s c u t id a s d e n t r o d a s u a
p r ó p r i a p e r s p e c t i v a . E n t ã o i s s o , n a t u r a lm e n t e , t e n d e a f e c h a r o e s q u e m a .
Por outro lado, como as novas gerações já são educadas dentro das
novas idéias, elas não são capazes de imaginar, quer dizer, há um processo de
esquecimento e depois há um outro processo de eliminação completa, ao ponto de que a
p r ó p r i a c u lt u r a a n t e r i o r s e t o r n a i n i m a g i n á v e l , e x c e t o s o b a f o r m a d e e s t e r e ó t i p o s
s i m p l i f i c a d o s , c o n c e b i d o s p e l a n o va c u l t u r a s ó p a r a f i n s d a s u a p r ó p r i a a u t o g l o r i f i c a ç ã o .
E n t ã o , i s s o é a m e s m a c o is a q u e d i z e r q u e o p r o g r e s s o c u l t u r a l , o
progresso intelectual é constituído de uma série de empobrecimentos, de uma série de
p e r d a s , d e p e r d a s d e m e m ó r i a , p o r a s s im d i z e r , e q u a n d o a p e r d a d e m e m ó r i a s e
p r o l o n g a p o r t e m p o s u f i c i e n t e e la s e t o r n a u m a p e r d a d e c a p a c id a d e , d e t o d a s a s
capacidades intelectuais, imaginativas requeridas para a compreensão da cultura
a n t e r i o r ; e l a s s ã o r e a l m e n t e e l im i n a d a s .
P o r o u t r o l a d o , o f a t o d e q u e e s s a s n o v a s id é i a s v e n h a m c o m o
poder avassalador de quem ocupa um espaço vazio, faz com que facilmente elas se
transformem em instrumentos de ação social, e produzam, então, mudanças sociais de
m a n e ir a m u i t o a c e l e r a d a . P o d e - s e o b s e r v a r i s s o a o l o n g o d o s ú l t i m o s q u a t r o o u c i n c o
séculos. Por exemplo, quando aparece, por volta de 1400, de 1500, a camada dos
c h a m a d o s “ h u m a n is t a s ” .
2
Os humanistas eram pessoas que já não tinham a formação
f i l o s ó f i c a e s c o l á s t ic a , m a s t i n h a m u m a f o r m a ç ã o r e t ó r ic a b a s e a d a n o s r e t ó r ic o s d e
antigamente, principalmente Quintiliano e Cícero. Eram pessoas dedicadas à arte
literária, às línguas etc. Portanto, a área específica de capacitação deles era justamente a
arte da persuasão.
P o r é m , a p a r t ir d o s u r g im e n t o d o s h u m a n is t a s , q u e f a l a m n a s
l í n g u a s n a c i o n a i s , e j á n ã o u s a m c o m o i n s t r u m e n t o a q u e l a s t é c n ic a s l ó g i c a s a l t a m e n t e
c o m p l e x a s d o s e s c o l á s t i c o s , m a s u s a m i n s t r u m e n t o s d e p e r s u a s ã o – n ã o d e p r o v a –,
i n s t r u m e n t o s , n a v e r d a d e , d e a ç ã o p s i c o l ó g ic a ; e n t ã o , e v i d e n t e m e n t e , a n o v a c u l t u r a s e
e s p a l h a m u i t o r a p id a m e n t e e n t r e a c l a s s e d o m i n a n t e , e n t r e o s n o b r e s .
3
p r o g r e s s o q u a n d o a q u e l e t e r r e n o c o n q u i s t a d o é c o n s e r va d o , a b s o r vi d o e a m p li a d o ,
vamos dizer, absorvido e superado dentro de uma estrutura maior. E (isso nós podemos
dizer que) os casos em que existe um progresso objetivamente verificável na História são
bem diferentes dessas grandes mudanças, daquilo que o Thomas Kuhn chama de as
“revoluções científicas”.
T e m . Q u a n d o v o c ê p e g a , p o r e x e m p l o , a e vo l u ç ã o d a d o u t r i n a
c r i s t ã , d e s d e o s p r im e i r o s p a d r e s a t é a E s c o l á s t i c a , a í v o c ê p o d e d i z e r q u e h o u v e
e f e t i v a m e n t e u m p r o g r e s s o p o r q u e n a d a s e p e r d i a , a c o is a e r a ( . . . ) t u d o o q u e t i n h a n a
e t a p a a n t e r i o r e r a a s s im i l a d o e f u n d i d o n u m n o v o a r r a n j o c o m o s e l e m e n t o s n o v o s , p o r
e x e m p l o , a q u e l e s q u e e le s a b s o r v e r a m d e A r i s t ó t e le s .
Então, nesse caso, você pode dizer que, desde os primeiros padres
a t é a E s c o l á s t i c a , h o u v e u m c a s o d e p r o g r e s s o r e a l. M a s , v e j a : i s s o é d e n t r o d a m e s m a
c u l t u r a , n ã o h o u v e u m a r e v o l u ç ã o c u l t u r a l, n ã o h o u v e u m a r u p t u r a .
Então, eles criam uma nova imagem dos escolásticos que não tem
n a d a a v e r c o m o q u e s e p a s s o u h is t o r i c a m e n t e , c o m a r e a l i d a d e h i s t ó r ic a . M a s t e m a v e r
c o m a a u t o j u s t i f ic a ç ã o e a a u t o g l o r i f i c a ç ã o d a n o v a c u l t u r a e m e r g e n t e .
4
Quando aparece também a cultura do Iluminismo, você tem
n o v a m e n t e u m a m u t a ç ã o d e s s e t i p o , q u e r d iz e r , q u e u m a n o v a c l a s s e e m e r g e n t e d e
i n t e l e c t u a is , m a s q u e a g o r a j á n ã o e r a m m a i s n e m h u m a n is t a s , n o s e n t id o d e E r a s m o ; n ã o
eram estudiosos, no sentido de Erasmo: não eram escolásticos, não eram humanistas e
t a m b é m n ã o e r a m c i e n t is t a s n a t u r a is .
E n t ã o é u m q u a r t o t i p o d e i n t e le c t u a l q u e s u r g e , c o m o p r e c u r s o r d o
j o r n a l i s m o m o d e r n o , c o m o V o l t a ir e , p o r e x e m p l o , q u e é o p r im e ir o j o r n a l is t a m o d e r n o .
Quer dizer: ele não era um retórico de estilo antigo, não era um filósofo escolástico, não
era um cientista natural, o que ele era? Ele era um jornalista.
I s s o q u e r d iz e r q u e , e m c a d a e t a p a h i s t ó r i c a , o i n d i v í d u o q u e b u s c a
a d q u ir ir uma cultura superior, seja ele um estudante universitário, seminarista,
q u a l q u e r c o i s a , a p r i m e i r a c o i s a q u e e l e v a i r e c e b e r é u m c o n j u n t o d e f a ls i f i c a ç õ e s e
e s q u e c i m e n t o s . Q u e r d iz e r : a m e n t a l i d a d e d e l e s e r á m o ld a d a d e a c o r d o c o m a c u l t u r a
contemporânea, no que ela tem de excludente.
5
Quer dizer: a autoglorificação da cultura contemporânea é parte
d e s s a m e s m a c u l t u r a . E d e n t r o d is s o , p o r e x e m p l o , a i d é i a d e p r o g r e s s o j á e s t á e m b u t i d a
c o m o u m m e c a n i s m o d e a u t o l e g i t im a ç ã o p e r m a n e n t e .
A c o is a m a i s i n c r í v e l é q u e q u a n d o v o c ê p e g a p e s s o a s q u e s ã o
r e l a t i v i s t a s – r e l a t i v i s t a s h i s t ó r ic o s – , q u e n ã o d e v e r i a m a c r e d i t a r e m p r o g r e s s o d e
m a n e ir a a l g u m a – e l e s d e f a t o d i z e m q u e n ã o e x i s t e p r o g r e s s o h i s t ó r i c o , q u e v o c ê n ã o
p o d e r a c i o c i n a r n e s s e s t e r m o s – m a s , n a p r á t ic a , e l e s s e c o n s i d e r a m m u i t o s u p e r i o r e s a
todos os seus antecessores. Quer dizer: não saem dessa visão criada pela ideologia do
p r o g r e s s o . N ã o c o n s e g u e m s a i r d e la .
Q u e r d i z e r , a e x i s t ê n c ia d e p r o g r e s s o é u m f a t o , v o c ê n ã o p o d e
n e g a r : à s v e z e s a s c o is a s m e l h o r a m . M a s à s v e z e s a s c o i s a s t a m b é m p i o r a m . E n t ã o , a
e x i s t ê n c i a d e a l g u n s e x e m p l o s d e p r o g r e s s o e f e t i v o é u m a r e a l i d a d e h i s t ó r ic a i n e g á v e l ,
você não pode ser contra a idéia de progresso. Nem contra, nem a favor.
E n t ã o , p r a t ic a m e n t e q u a l q u e r é p o c a p o d e s e r v i s t a , o u c o m o d e
p r o g r e s s o , o u c o m o d e d e t e r io r a ç ã o , m a s n u n c a d e a t r a s o . A t r a s o n ã o e x i s t e , p o r q u e n ã o
e x i s t e u m r e l ó g i o h i s t ó r ic o q u e p o s s a m e d i r t o d a s a s c i v i l i z a ç õ e s , t o d a s a s s o c i e d a d e s e
d i z e r : o l h a , à s t a n t a s h o r a s vo c ê t e m d e e s t a r e m t a l l u g a r , p o r q u e e u e s t a r e i l á . A i d é i a
d e “ a t r a s o ” é u m s u b p r o d u t o m e c â n i c o d a id é i a d e p r o g r e s s o . P r o g r e s s o e x i s t e , a t r a s o
não.
V o c ê n ã o p o d e d i z e r q u e u m a s o c ie d a d e q u e f i c o u e s t á t i c a d u r a n t e
cinco mil anos está “atrasada”. Está atrasada em relação à outra, mas ela não faz parte
d a o u t r a . I s s o q u e r d i z e r q u e , p a r a e l a s e r u m a s o c i e d a d e q u e e s t á e m p r o g r e s s o e la t e r i a
q u e a b a n d o n a r a s u a p r ó p r i a a u t o - r e f e r ê n c i a e s e m e d ir p o r u m a o u t r a , m a s i s s o s e r i a a
extinção dela.
6
Denotar essa idéia do atraso é uma idéia autocontraditória. Atraso
h i s t ó r ic o não existe, de maneira alguma. Progresso ainda pode ser uma noção
cientificamente aceitável, atraso não é.
Dentro de uma mesma cultura, por exemplo, você pode medir... uma
maneira de medir é aquela sua teoria dos patamares, não é, que você vê se a nova geração
apreende os patamares anteriores?
Q u e a s c o i s a s d e t e r io r a m ? E u f a l o : b o m , q u a l q u e r p e s s o a q u e j á
esteve doente e já sarou, sabe o que é deterioração. Qualquer sujeito que teve dinheiro e
perdeu, sabe o que é deterioração.
D i g a m o s , s e v o c ê p r e t e n d e r e a l i z a r a l g u m a c o is a , e e l a d e m o r a
mais tempo do que você esperou, você diz que está atrasado. Mas eu acho que isso –
h i s t o r ic a m e n t e – n u n c a a c o n t e c e u c o m u m a s o c i e d a d e .
O q u e s e f a la d e a t r a s o é p o r q u e v o c ê m e d e u m a c e r t a c u l t u r a , u m a
c e r t a s o c ie d a d e , p e lo p a r â m e t r o d a o u t r a , b a s e a d o n o p r e s s u p o s t o – i n t e i r a m e n t e im b e c i l
– d e q u e u m a d e v e r ia e s t a r i g u a l a o u t r a , q u e v o c ê n ã o s a b e ( p o r q u e ) n ã o e s t á .
E s o b r e t u d o p o r q u e m e d i r u m a p e la o u t r a s i g n i f i c a j á d e s t r u ir a
p r im e ir a . S e u m a c u l t u r a p e r m i t e s e r m e d id a n a r e g r a d a o u t r a , e l a j á p e r d e u s u a
autonomia, ela já se transformou numa subcultura da outra. Então quer dizer, o
progresso seria (...) para você entrar na linha do progresso, você teria que se
a u t o d e s t r u ir .
I s s o q u e r d i z e r q u e , h i s t o r ic a m e n t e f a l a n d o , p r o g r e s s o n ã o é o
contrário de atraso. Agora, raciocinar em termos de progresso e atraso, você sabe que é
uma coisa que está tão arraigada na nossa cultura atual que já virou quase um
automatismo.
7
Falam sociedades “atrasadas”. Pegam a sociedade na Zâmbia: está
“atrasada”. Está atrasada em relação a o quê? Você acha que Zâmbia deveria ser Nova
Iorque? De onde você tirou essa idéia? Que uma coisa deveria ser a outra? Não tem
s e n t i d o . V o c ê p o d e d i z e r q u e a s it u a ç ã o d a Z â m b i a e s t á m u i t o r u i m , q u e e l e s e s t ã o
morrendo de fome, que está tudo estragado. Mas, “atrasado” não.
Q u e r d i z e r , a v i g ê n c i a d e u m a d e t e r m i n a d a c u l t u r a im p l i c a t a m b é m
a e x i s t ê n c i a , p o r a s s i m d i z e r , d e c a r r e i r a s i n t e le c t u a i s p r e d e t e r m i n a d a s , q u e r d i z e r , u m
esquema predeterminado da carreira intelectual.
V o c ê f o r m a u m a i d é ia d e p r o g r e s s o , c o m o u m a c o is a q u e v a i p a r a
frente, de atraso, como uma coisa que vai para trás. Mas acontece que o tempo nunca
v o l t a a t r á s , n ã o t e m c o m o v o c ê f a z e r is s o .
Q u e r d i z e r , o e s t a d o p r e s e n t e d e u m a s o c i e d a d e p o d e p io r a r , m a s
ele não pode voltar ao estado anterior, pelo simples fato de que ele já esteve no outro
estado.
8
Quando as pessoas dizem: não, nós vamos voltar à Idade da Pedra.
E u d i g o , b o m , m a s u m a c o is a é v o c ê t e r n a s c i d o n a I d a d e d a P e d r a ; o u t r a c o i s a ,
completamente diferente, é você ter que viver com instrumentos da Idade da Pedra
d e p o i s d e vo c ê t e r t i d o t o d a e s s a t e c n o l o g i a q u e n ó s t e m o s . I s s o n ã o é u m a I d a d e d a
Pedra. É completamente diferente. Isso é uma deterioração, não é um atraso.
E s s e s im p l e s p a r d e c o n c e i t o s – p r o g r e s s o e a t r a s o – q u e e s t ã o e n t r e
os mais usados, entre os mais imaginativamente poderosos na nossa cultura, mais
impregnados na nossa cultura, eles já são praticamente a garantia de que você não vai
entender uma série de processos históricos. Quer dizer, se você os vê como progresso ou
a t r a s o , v o c ê n u n c a v a i e n t e n d e r o q u e r e a lm e n t e a c o n t e c e u .
E n t ã o , j u s t a m e n t e , o e s t u d o d a F i l o s o f i a é p a r a v o c ê c r ia r a s u a
p r ó p r i a m a lh a , d e a c o r d o c o m a s n e c e s s id a d e s e f e t i v a s d a b u s c a d o c o n h e c im e n t o . E n ã o
d e a c o r d o c o m f i n a l i d a d e s s o c i a i s j á e s t a b e l e c id a s d e a n t e m ã o , v o l t a d a s à c r ia ç ã o ,
expansão, conservação de determinadas modas culturais.
P a r a f a z e r is s o , a p r i m e i r a c o i s a é v o c ê a p r e n d e r a r e c u p e r a r a s
possibilidades cognitivas e intelectivas de outras épocas, que foram perdidas.
9
Como é que você faz isso? Em primeiro lugar, você precisa ter os
m a t e r i a is à s u a d i s p o s i ç ã o , v o c ê p r e c i s a t e r o s t e x t o s , o s d o c u m e n t o s , a q u i l o q u e s e
p a s s o u , ( n u m l u g a r ) . E v o c ê v a i p r e c is a r e m s e g u i d a f a z e r u m e s f o r ç o i m a g i n a t i v o q u e
lhe permita – não (é) compreender os autores antigos como eles mesmos se
compreendiam, mas – compreender a sua própria situação como eles a compreenderiam.
I s s o q u e r d i z e r q u e n ó s e s t a m o s n a c i v i l i z a ç ã o t e c n o ló g i c a ? N ã o
e s t a m o s a i n d a . A t e c n o lo g i a d e c id e e d e t e r m i n a a m a i o r p a r t e , u m a p a r t e i m p o r t a n t e d o s
p r o c e s s o s s o c i a is , m a s n ã o d e t e r m in a t o d o s . A i n d a t e m m u i t a c o i s a q u e é b a s e a d a e m
processos que não têm nada a ver com a tecnologia.
Mas, uma coisa é você viver num universo onde você acredita que
existe um Deus que criou o mundo e que vai levar o processo da História do mundo até
uma (certa) meta, na qual haverá o fim desse mundo e a passagem de tudo para a escala
da Eternidade. Isso é uma coisa. Outra coisa é você viver dentro de um mundo onde
tudo é um problema tecnológico.
N a m e d i d a e m q u e o im p a c t o d a t e c n o l o g i a n a s o c i e d a d e a u m e n t a ,
a tendência da cultura é encarar tudo sob a categoria da tecnologia.
A p r i m e i r a e m a is i m e d i a t a c o n s e q ü ê n c i a q u e i s s o t e m : “ im e d i a t a ”
n ã o é r á p i d o , i s s o l e v a m u i t a s d é c a d a s , p e l o m e n o s , p a r a q u e i s s o a c o n t e ç a . A p r im e ir a
conseqüência é que tudo aquilo que esteja fora da possibilidade de ação tecnológica
acabe ficando fora da imaginação também. Porque, se a tecnologia é a grande chave,
10
então nós só vamos pensar naquilo que está ao alcance da tecnologia. Ou o que você
supõe que possa estar ao alcance da tecnologia, amanhã ou depois.
I s s o q u e r d iz e r q u e a e s f e r a d a a ç ã o m a t e r i a l h u m a n a s e t o r n a d e
a l g u m m o d o o h o r i z o n t e ú l t i m o d a r e a l i d a d e : n a d a e x i s t e p a r a a l é m d is s o .
É claro que existe uma esfera de ação muito grande, na qual a ação
t e c n o l ó g ic a h u m a n a é v i á v e l . D i g a m o s : t o d a s a s d o e n ç a s a t u a l m e n t e e x i s t e n t e s , n ó s
podemos esperar que elas serão curadas, por meios tecnológicos. Não foram ainda. Mas,
nós podemos esperar isso e as pessoas têm essa esperança.
Qualquer doença que você pegue, se não existe cura ainda, o que as
pessoas fazem? Nós vamos sentar e esperar que pode ser que dentro de dois, de três, de
quatro, de cinco, ou dez, ou vinte anos eles descubram a cura para isto. Cada aidético no
mundo vive com esta idéia. Existe essa esfera da existência sujeita à ação tecnológica,
ela existe. E ela é muito grande.
Isso quer dizer que o fenômeno da morte, não podendo ser objeto
d e a ç ã o t e c n o l ó g i c a , e le n ã o t e m c o n c e it o s o c i a l m e n t e i n t e g r a d o , e n t ã o n ó s v i v e m o s
numa cultura sem morte. A morte, durante séculos, foi tema quase predominante da
cultura. De repente, não. Não se fala mais. Só se fala de saúde, de prolongar a vida etc.,
de eliminar as dores e assim por diante.
11
Se você já entra na busca da cultura superior numa situação assim
definida, você já entra com um escotoma, você já tem um pedaço imenso da realidade
que não existe para você. E que, justamente, o estudo superior, o estudo da Filosofia,
visará a reconquistar para você. Fazer com que você se torne capaz de imaginar aquilo
q u e d e n t r o d a s u a c u l t u r a n ã o é g e r a l m e n t e im a g i n a d o .
E n t ã o , a í vo c ê t e m u m s e r i í s s i m o p r o b l e m a : s e v o c ê q u e r u m a
cultura superior no sentido de adquirir a capacidade de compreender a Realidade,
s o b r e t u d o a r e a l i d a d e d a H i s t ó r i a , d a C i v i l i z a ç ã o , a r e a l id a d e d a e x i s t ê n c i a h u m a n a a o
longo dos milênios; é uma coisa.
E s e v o c ê q u e r a c u l t u r a s u p e r io r n o s e n t i d o d e p o d e r e x e r c e r e s t a
o u a q u e l a p r o f i s s ã o , v o c ê e s t á i n d o n o s e n t id o e x a t a m e n t e c o n t r á r i o . V o c ê p r e c is a r á s e
adaptar à cultura presente, o mais possível para que você possa representá-la
profissionalmente.
E u e s t a v a v e n d o e s s a g r a v a ç ã o d o E r ic V o e g e l i n e m T o r o n t o –
conferência que ele deu lá em Toronto – participando de mesas redondas onde estavam,
12
e n t r e o u t r a s f i g u r a s , B e r n a r d L o n e r g a n e H a n s - G e o r g G a d a m e r . S ã o f i g u r a s d e p r im e ir o
p l a n o . M a s v o c ê c o m p a r a n d o – o q u e e l e s d i z ia m , c o m o q u e o V o e g e l i n d i z i a – e l e s
estavam discutindo questões acadêmicas profissionais. E o Voegelin estava falando de
realidades. Ao ponto de que aqueles não chegaram a compreender o que ele dizia,
p o r q u e e r a g r a v e d e m a i s , e r a s é r io d e m a is .
E n t ã o ( is s o q u e r d i z e r q u e ) , t u d o a q u i l o q u e t e n t a s e a d a p t a r à
m e n t a l i d a d e e s c o l a r , e s t á i m i t a n d o a r e a l i d a d e , m a s i m it a n d o d e l o n g e , v o c ê e s t á d e n t r o
de muros que o protegem da Realidade. Você é apenas um estudante ou um professor e
você não será cobrado pelo conteúdo do que você diz. Porque tem a famosa liberdade
acadêmica.
E n t ã o , s e v o c ê é u m p o l í t ic o , u m m i n i s t r o , u m p r e s i d e n t e d e
empresa, tudo aquilo que você fala tem conseqüências. Agora, se você é um professor ou
u m e s t u d a n t e n a d a d o q u e v o c ê f a l a t e m c o n s e q ü ê n c i a s , p o r q u e é t u d o p a r a f in s d e
ensino. Um professor pode ensinar numa classe exatamente o contrário do que ele
a c r e d i t a . N a d a o im p e d e d e f a z e r i s s o . P o r q u ê ? É p a r a f i n s d i d á t i c o s , é t u d o
e x p e r im e n t a l , p o r a s s i m d i z e r , n a d a é v á l i d o , n a d a é d e f i n i t i v o .
N ã o e x i s t e , p o r e x e m p l o , u m a g u e r r a p a r a o p r i m e ir o a n o d a
f a c u l d a d e , o u t r a g u e r r a p a r a o s e g u n d o a n o d a f a c u ld a d e ; n ã o . E x is t e u m a g u e r r a s ó ,
13
meu filho, está entendendo? Não existe uma guerra para os economistas, outra para os
s o c i ó l o g o s , o u t r a p a r a o s c ie n t i s t a s p o l í t i c o s ; n ã o . E x i s t e u m a g u e r r a s ó .
A g o r a , s e e u , p o r e x e m p l o , e u s o u u m c i e n t i s t a p o l í t ic o e e s t o u
d a n d o a u l a p a r a o p r im e ir o a n o d a f a c u l d a d e , e n t ã o e u v o u t e r q u e s e l e c i o n a r d e s s a
g u e r r a a q u il o q u e c o m b i n e c o m a m i n h a d i s c i p l i n a , v o u t e r q u e r e c o r t a r d e a c o r d o c o m
as exigências de minha disciplina, e não com as exigências do fenômeno objetivo
chamado Guerra.
E u q u e r o d i z e r q u e , q u a n t o m a i s a i n s t i t u iç ã o u n i v e r s i t á r i a c r e s c e e
se torna ela própria um instrumento essencial de manutenção do funcionamento da
própria sociedade, menos ela se presta à busca do conhecimento.
Quer dizer: mesmo que todo mundo agisse com a maior idoneidade
possível, a estrutura da coisa já é problemática. Mas, o fato é que as pessoas não agem
c o m a m a i o r i d o n e i d a d e p o s s í ve l . E x i s t e t o d o u m a s p e c t o a l i d e d i s p u t a d e p o d e r , d e
conservação do prestígio de classe etc. E tudo isso, se você pegar esse conjunto de
14
i m p e d im e n t o s e s t r u t u r a i s e m a i s a m á i n t e n ç ã o e a s a c a n a g e m ( q u e ) s e m i s t u r a m a l i ,
então aí acabou.
E r a o c a s o d o E r ic V o e g e l i n . T o d o m u n d o t i n h a m e d o d e l e . E n t ã o ,
n u n c a o im p e d i u d e f a z e r a s c o i s a s d e l e , m a s s e m a n t i n h a u m a d i s t â n c i a , p o r q u e
r e a lm e n t e n ã o c o m p r e e n d i a o q u e e l e d i z i a . T e m u m c a s o f a m o s o , q u a n d o e l e f o i f a z e r a
conferência pela primeira vez na universidade de Munique, que aí lá tinha a
i n t e l e c t u a l id a d e d o m i n a n t e e t i n h a o R a l p h D a h r e n d o r f , q u e e r a o g r a n d e c i e n t i s t a
p o l í t i c o d o m o m e n t o e e l e o u v i u a c o n f e r ê n c i a d o V o e g e l i n e s a i u p e r p l e x o . E l e d is s e q u e
não tinha entendido uma palavra do que ele disse: “ele não falou nada sobre o problema
da Constituição, o problema dos direitos humanos etc., que raio de Ciência Política é
e s s a ? É o u t r a c o is a , e u n ã o s e i d o q u e e l e e s t á f a l a n d o ” .
M e s m o n o s E s t a d o s U n i d o s , q u a n d o v o c ê f a la e m H a r v a r d ( . . . )
H a r v a r d h o j e é u m a e s c o l i n h a d o M S T , n ã o é n a d a m a i s d o q u e is s o . N o e n t a n t o , a s
p e s s o a s f a l a m : o h , e l e f o i d ir e t o r d a R e v i s t a d e D i r e i t o d e H a r v a r d . A R e v i s t a d e D i r e i t o
d e H a r v a r d é u m s e m a n á r io d o M S T , u m a c o is a d e a n a l f a b e t o – c o m u n i s t a a n a l f a b e t o –
mas ainda tem o prestígio.
15
C u r i o s a m e n t e , o s m e s m o s c a r a s q u e ( m a is ) a j u d a r a m a d e s t r u ir a
i n s t i t u i ç ã o u n i v e r s i t á r ia , ( q u e s ã o ) a q u e le s a t i v i s t a s d o s a n o s 6 0 , ( e l e s m e s m o s ) u s a m o
prestigio da universidade que eles mesmos destruíram. Quer dizer, é usurpação mesmo:
mata o sujeito e assume o título dele, parece com a estória do “Máscara de Ferro”.
Este curso meu – não só o meu curso, mas tudo que eu estou
fazendo – é concebido em vista de responder ao seguinte problema: supondo-se que eu
q u i s e s s e a d q u i r ir u m c o n h e c i m e n t o d a H i s t ó r i a , d a C u l t u r a , d a F i l o s o f i a , d a R e l i g i ã o ;
que respondesse àquela famosa exigência do Leopold von Ranke – “eu quero conhecer as
c o is a s c o m o e f e t i v a m e n t e s e p a s s a r a m ” – p o u c o i m p o r t a n d o s e e u v o u p o d e r u s a r i s s o
n u m a p r o f is s ã o a c a d ê m ic a o u s e , a o c o n t r á r i o , i s s o s ó v a i m e t r a n s f o r m a r n u m s u j e i t o
esquisito, que ninguém compreende.
Então, quanto mais você sabe, menos você será compreendido por
aqueles que não sabem. Se você quer pagar esse preço, se você acha que o conhecimento
vale isso – eu acho que vale, eu dediquei a isso minha vida e não estou nem um pouco
a r r e p e n d id o , e s t o u a c h a n d o ó t i m o , m a s e u t i v e q u e a p r e n d e r a o l o n g o d o t e m p o a n ã o
esperar ser compreendido pelos ignorantes, (eles) não têm como compreender – então
e s s a é u m a p r i m e ir a c o i s a .
E n t ã o , ( e u ) q u a n d o c o l o c o u m p r o b le m a n a m i n h a c a b e ç a , e u q u e r o
a resposta efetiva, (eu sempre penso) essa frase do Ranke não me sai da cabeça: “eu
quero conhecer as coisas como efetivamente se passaram”. E eu acredito que a
i n t e l i g ê n c i a h u m a n a é e f e t i v a m e n t e c a p a z d e f a z e r is s o .
16
v o c ê d e s c o b r e c o is a s d o p a s s a d o , v o c ê m o d i f ic a a v i s ã o q u e v o c ê t e m d o s p e r s o n a g e n s d o
presente, você os olha dentro de uma outra perspectiva.
Q u e r d i z e r : a s u a e s c a l a d e c o m p a r a ç ã o c r e s c e f o r m id a v e l m e n t e ,
porque aquilo que para os outros pode ser uma novidade e tal, você já tem elementos de
comparação anterior, já não é tão “novidade” assim. Muitas coisas nas quais a maior
parte das pessoas depositam grandes esperanças, você já vai saber – de antemão – que
n ã o v ã o d a r c e r t o . P o r q u e v o c ê j á t e m a e x p e r iê n c i a h is t ó ri c a a c u m u l a d a .
E u m e l e m b r o q u e u m a v e z e u v i u m a s e n h o r a n a r u a , e la t i n h a
caído no chão e ela estava se debatendo e tendo uma crise histérica, acho que até uma
c r i s e e p i l é t i c a . E f u i l á a j u d á - l a a s e l e v a n t a r e t a l. D a í e l a c o m e ç o u a m e e s m u r r a r ,
gritando assim: “eu odeio homem, eu odeio homem”. E o que eu posso fazer minha
senhora? Então, quer saber? Foda-se. Não, não vou ajudar mais, a senhora não quer que
eu a ajude, eu não a ajudo.
Isso também pode acontecer, mas ainda assim eu acho que a busca
d o c o n h e c im e n t o é a m e l h o r f i n a l i d a d e d a v i d a , n ã o t e m c o is a m e l h o r . E é m e l h o r v o c ê
e s t a r e n t e n d e n d o , p o r q u e v o c ê n ã o v a i s o f r e r c o m o u m b ic h i n h o . S o f r e c o m a d i g n i d a d e
do ser humano, você sabe o que está acontecendo.
A m i n h a i d é i a p a r a e s t e c u r s o é t r a n s m i t ir p a r a v o c ê s u m a p a r t e
d e s s a e x p e r iê n c i a . O p r o b l e m a q u e a g e n t e c o l o c a é o s e g u i n t e : o q u e n ó s e s t u d a m o s n ã o
é Filosofia. O que nós estudamos é um negócio que chama Realidade.
17
R e a l i d a d e é a o n d e v o c ê v i v e . A o n d e v o c ê s e m o v e . É a o n d e v o c ê s e a le g r a , c h o r a , t e m
e s p e r a n ç a , lu t a , t e m v i t ó r i a s , d e r r o t a s e t c . , i s t o é a R e a l i d a d e .
E n t ã o o n o s s o o b j e t i v o , e m p r im e i r o l u g a r , é f a z e r a q u i l o q u e e l e s
faziam. É se dedicar à mesma coisa que eles faziam. E, o que eles faziam era exatamente
u m a e s p e c u l a ç ã o s o b r e a n a t u r e z a , f u n d a m e n t o e e s t r u t u r a d a R e a li d a d e , d e m o d o a
p e r m i t ir q u e a e x i s t ê n c ia h u m a n a t r a n s c o r r e s s e d e u m a m a n e i r a i l u m i n a d a e e s c l a r e c i d a .
Q u e r d i z e r : v o c ê c r ia r u m a c e r t a z o n a d e c l a r id a d e n o m e io d a
c o n f u s ã o e o b s c u r i d a d e d a e x i s t ê n c i a h u m a n a e m g e r a l. N ã o h á a m e n o r p o s s i b i l i d a d e d e
d u v i d a r q u e e r a is t o q u e e l e s f a z i a m , p o r q u e e l e s d i z e m q u e é i s t o q u e e l e s e s t ã o
f a z e n d o . E q u a n d o v o c ê v a i v e r a p r á t i c a d e l e s , é e x a t a m e n t e is t o .
N o s t r ê s c a s o s , e l e s v ê e m a F i l o s o f ia c o m o u m a b u s c a d a S a b e d o r i a .
E a Sabedoria consiste exatamente em tornar a Realidade translúcida. Quer dizer: você
saber o que está acontecendo, você entender do que se trata na sua existência. Quer o
“ser”, o que você está fazendo ali e o que é este universo que te rodeia e qual é a melhor
m a n e ir a d e v o c ê v i v e r d e n t r o d i s t o . I s s o é o q u e e le s f a z i a m e i s s o é o q u e n ó s v a m o s
fazer.
M u i t o b e m . C o m o o p o n t o d e p a r t id a d e s t e c u r s o é a c o n s t a t a ç ã o , a
descoberta daquele estado de coisas que eu estava descrevendo no começo da aula,
e n t ã o , o p ri m e i r o p a s s o é t e n t a r r e s t a u r a r n o s a l u n o s a p o s s i b i l i d a d e d e q u e e l e s
compreendam o pensamento, a cultura de outras épocas e de outros lugares não desde o
p o n t o d e v i s t a a c a d ê m i c o d e h o j e , m a s d e s d e u m p o n t o d e v i s t a f i l o s o f ic a m e n t e v á l i d o .
18
Você não terá acesso nenhum, a nenhuma filosofia de outras
épocas, se você fizer questão de encará-la apenas desde o ponto de vista da cultura
a t u a l . E x i s t e m m u i t o s a s p e c t o s d a f i l o s o f i a d e P l a t ã o , A r i s t ó t e l e s , S ó c r a t e s – s e m f a la r d e
o u t r o s e d e o u t r a s c u l t u r a s d e a c e s s o m a i s d if í c i l – q u e n ã o t ê m l u g a r , n ã o c a b e m n a
cultura contemporânea, porque você não pode compreendê-los desde um horizonte de
r e a l i d a d e d e t e r m i n a d o p e l a t e c n o lo g i a . E l e s e s t ã o f a l a n d o d e c o i s a s s o b r e a s q u a i s a
t e c n o l o g i a n ã o t e m a c e s s o d e m a n e ir a a l g u m a .
Todo mundo sabe que vai ter um certo tempo para viver e que
depois ele vai morrer. Isso aí todo mundo sabe. Todo mundo sabe – de cara – que da
totalidade do que acontece, só uma parte ínfima chega ao seu conhecimento, mas a parte
que não chegou está presente. Ela não é uma pura ausência. Ela é uma latência.
V o c ê e s t á a n d a n d o a q u i p o r u m a r u a e t e m a l i u m c a c h o r r o d e it a d o .
O c a c h o r r o , o q u e e l e v a i f a z e r ? E le v a i a b a n a r o r a b o p a r a vo c ê ? V a i l a t i r p a r a v o c ê ? V a i
te morder? Você não sabe. Mas o conjunto do que o cachorro não fez ainda, está tão
presente para você quanto a própria presença física do cachorro. Às vezes até mais. Se
19
v o c ê t e m m e d o d e c a c h o r r o , a p o s s ib i l i d a d e d e o c a c h o r r o t e m o r d e r , t e a f e t a m a i s a t é d o
que a mera presença física do cachorro.
E s s a s l a t ê n c i a s n ã o e x is t e m s ó n a n o s s a m e n t e . S e e x i s t i s s e m s ó n a
n o s s a m e n t e ( . . . ) v e j a : u m a c o is a é o q u e e u p e n s o q u e o c a c h o r r o v a i f a z e r , e u p o s s o
f a z e r a s q u a t r o h i p ó t e s e s , o u e l e m e a b a n a o r a b o , o u e l e r o s n a p a r a m im , o u e l e l a t e , o u
ele me morde. Pelo menos tenta me morder. Essas quatro hipóteses existem na minha
c a b e ç a . M a s s e e l a s e x is t i s s e m s ó n a m i n h a c a b e ç a , n ã o t e r i a n e n h u m p r o b l e m a , p o r q u e
um cachorro mental não morde.
20
mesmo, não sei o que vai ser o futuro. As latências se prolongam para o passado e para o
futuro.
T o d o s o s s e r e s h u m a n o s , d e s d e o p r im e i r o q u e n a s c e u a t é o ú l t i m o
que está nascendo nesse momento, eles já entram dentro desta situação. Nenhum nasceu
numa situação diferente. Nem um único. Isto é um dado – um dos muitos dados – que
compõe a estrutura da Realidade.
P o r e x e m p lo : q u a n t a s e d iç õ e s v o c ê t e m h o j e d o s l i v r o s d e P l a t ã o ?
M i l h a r e s . E n t ã o , m a t e r i a l m e n t e , e s s e m a t e r i a l e s t á à s u a d is p o s i ç ã o . Q u a n t a s p e s s o a s
você tem que podem ajudar você a ler Platão de uma maneira útil e frutífera? É muito
menor. Quantas dessas pessoas você vai encontrar durante a vida? Uma, duas – e se tiver
muita sorte.
E m g e r a l, o q u e v o c ê v a i t e r ? V o c ê t e m o a c e s s o m a t e r i a l à s o b r a s ;
mas você vai ter um monte de professores que só vão te confundir a cabeça. Porque eles
v ã o t e o f e r e c e r u m P l a t ã o à i m a g e m e s e m e l h a n ç a d a l im i t a ç ã o m e n t a l d e l e s . S o b r e t u d o
(...) você imagina (você) ler Platão à luz de uma cultura definida pela tecnologia. É
impossível, porque quase tudo o que Platão fala está fora disso aí. Então, ou se torna
i n c o m p r e e n s í v e l, o u v o c ê t e m q u e r e c o r t a r a q u i l o p a r a r e d u z i - l o à m e d i d a d a q u i l o q u e a
cultura contemporânea pode abarcar.
21
E n t ã o , q u e r d i z e r : o s e s t u d o s s u p e r io r e s q u a n d o s ã o e m p r e e n d i d o s
d e m a n e ir a s é r i a , e l e s s ã o , e m p r i m e i r o l u g a r , d e s a c u l t u r a n t e s ; q u e r d i z e r , v ã o c o l o c a r
v o c ê f o r a e a c im a d a s u a c u l t u r a . C o l o c a m v o c ê f o r a e a c im a d a s u a c u l t u r a m e d i a n t e a
assimilação de elementos de outras culturas. Mas esses elementos de outras culturas, se
eles forem colocados dentro da perspectiva da nossa, já não são o que eles eram, e são –
sim – a sua redução à perspectiva de hoje.
Então, quando eu vou ler Platão, eu vou ler Platão não de acordo
c o m a q u i l o q u e d e P l a t ã o i n t e r e s s a a o m e u p r o f e s s o r d e f i lo s o f i a d a U S P . M a s e u v o u l e r
P l a t ã o p a r a s a b e r o q u e P l a t ã o p e n s a d e m i m . E u v o u u s a r e s s e s m a t e r ia i s c o m o e s p e l h o s
d a m i n h a p r ó p r i a p e s s o a . Q u e r d iz e r : e u s o u u m a p e s s o a r e a l , h i s t o r i c a m e n t e e x i s t e n t e ,
num momento x e então me reaparecem essas pessoas de outras épocas, que me falam
sobre mim.
E n t ã o e s t e é o p r i m e ir o p r e c e i t o : v o c ê v a i t e r q u e a p r e n d e r a s e
o l h a r a s i m e s m o , a s i p r ó p r io , c o m o s o l h o s d o s f i l ó s o f o s d a s o u t r a s é p o c a s e n ã o a
o l h a r e l e s c o m o s o l h o s d a s u a c u l t u r a . P o r q u e e s t a ú l t im a c o i s a é f á c i l , o l h a r c o m o s
olhos da cultura, bom, é só você pegar qualquer manual aí ou pegar o que se diz de
P l a t ã o e A r is t ó t e l e s n a c u l t u r a , n a m í d i a p o p u l a r , e p r o n t o : vo c ê t e m e s t a i m a g e m .
22
Cultura Humana. Você vai abrir e ampliar e ampliar e ampliar (...) e cada novo elemento
que você integrar ali, seja proveniente dos próprios antepassados da sua cultura ou seja
d e c u l t u r a s e s t r a n h a s , s e r v ir ã o c o m o s u p e r f í c i e s , c o m o e s p e l h o s n o s q u a i s v o c ê s e
r e c o n h e c e r á . E r e c o n h e c e n d o - s e a s i p r ó p r io , v o c ê f i c a r á , e n t ã o , h a b i l i t a d o a r e c o n h e c e r
a s u a p r ó p r ia c u l t u r a s o b o s o l h o s d e s s a s o u t r a s m e n t e s .
P a r a r e a l i z a r is t o , n ó s p r e c i s a m o s d e u s a r m u i t a i m a g i n a ç ã o .
P o r q u e a e x p e r i ê n c i a i n d i v i d u a l h u m a n a e l a é m u i t o l im i t a d a , q u e r d iz e r , o c o n j u n t o d e
c o is a s q u e t e a c o n t e c e m , q u e v o c ê p o d e a s s i s t i r p e s s o a l m e n t e , m e s m o s u p o n d o - s e q u e
tenha uma vida que nem a minha, que (eu) assisti milhões de coisas, que se eu fosse
contar tudo o que eu vi (...) os caras falam: por que você não escreve as suas memórias?
E u f a l e i: p o r q u e n ã o d á , p o r q u e a c o n t e c e u c o i s a d e m a i s . N ã o é q u e a c o n t e c e u c o i s a
d e m a is , e u v i c o i s a d e m a i s . E n t ã o n ã o d á p a r a c o n t a r .
Mas, mesmo supondo-se que a sua vida seja isso – “já vi as coisas
mais esquisitas que existem” – mesmo aí é limitado, isso aí é um nada. Você vai ter que
suplementar isso com a Imaginação. Nós temos que começar com a cultura da
imaginação, nós temos que tornar a sua imaginação rica e flexível o suficiente para que
v o c ê p o s s a , a m a n h ã o u d e p o is , s e c o l o c a r d e n t r o d a s p e r s p e c t i v a s a b e r t a s p o r e s t e s
f i l ó s o f o s d e o u t r a s é p o c a s e e n x e r g a r - s e c o m o s o l h o s d e le s .
I s s o q u e r d iz e r q u e o p r im e i r o a n o d e n o s s o c u r s o é p r a t ic a m e n t e
um curso de História e Literatura. Não um estudo especializado de História, no sentido
de transformar você num historiador, mas simplesmente transformar você num leitor de
História. E também não um curso especializado de Letras, no sentido de transformar
v o c ê n u m f il ó l o g o o u c o i s a a s s i m , m a s n o s e n t i d o d e e q u i p a r v o c ê c o m e s s e s g r a n d e s
produtos da imaginação humana que funcionam como espelhos – não da realidade
h i s t ó r ic a – m a s d a R e a l i d a d e p o s s í v e l , q u e r d i z e r , d a s p o s s i b i l i d a d e s d a v i d a h u m a n a .
23
Ora, a História e a Literatura têm que ir (muito) juntas, porque a
História é aquilo que efetivamente aconteceu, mas qual é o significado daquilo que
a c o n t e c e u ? Q u a l ( é ) a im p o r t â n c i a e o v a l o r d a q u i l o q u e a c o n t e c e u ? V o c ê n ã o t e m c o m o
s a b e r i s s o , a n ã o s e r s e v o c ê p u d e r e s p e c u l a r o q u e p o d e r i a t e r a c o n t e c id o , q u e r d i z e r , s e
você não imaginar outras hipóteses.
P o r e x e m p lo : vo c ê f ic a s a b e n d o q u e o s e u v i z i n h o b a t e n a m u l h e r
todo dia. Por que você acha isso ruim? Ora, se todos os maridos batessem nas mulheres,
todo dia, desde o começo dos tempos, ninguém repararia e seria uma coisa inteiramente
normal. Você acha isso ruim por quê? Porque você, (se nunca foi casado), você é capaz,
p o r e x e m p l o , d e im a g in a r u m a o u t r a m a n e i r a d e v o c ê t r a t a r a s u a m u l h e r s e m v o c ê b a t e r
n e l a t o d o d i a . S e v o c ê n ã o f o r c a p a z d e im a g i n a r is s o , v o c ê n ã o v a i e s t r a n h a r a c o n d u t a
d e s e u v i z i n h o e q u a n d o a m u l h e r c o m e ç a r a g r i t a r , v o c ê va i a c h a r a q u i l o u m a c o i s a t ã o
banal quanto as galinhas cacarejarem no galinheiro.
24
desconstrucionista etc., o elemento de experiência sumiu. Então aquilo não é mais um
espelho da vida. Aquilo é apenas uma atividade formal a que o individuo se dedicou por
– sei lá – frescura. Isso quer dizer que o que se chama de “o estudo de letras” na
universidade hoje, pode se tornar um meio seguro de você se vacinar contra a Literatura
c o m o i n s t r u m e n t o d e a c e s s o im a g i n a t i v o à R e a l i d a d e .
S e v o c ê e s t u d a r a h is t ó r i a d a I n q u i s i ç ã o i n t e i r i n h a , v o c ê v a i v e r
que ninguém jamais foi condenado pela Inquisição por ser “divergente”. A Inquisição
j a m a i s c o n d e n o u o s u j e i t o p o r s e r m u ç u lm a n o o u j u d e u . I s s o e r a a b s o l u t a m e n t e
25
inconcebível na época. (No entanto,) a Inquisição – você pode gostar dela ou não – é um
fenômeno totalmente diferente dos totalitarismos modernos, não tem nada que ver. Sob
certos aspectos era até o contrário.
M a s i s s o é u m e x e m p l o . Q u a n d o v o c ê , t e n t a n d o e x p r im ir o s e u
sentimento para com um fenômeno atual que te choca de alguma maneira, (então) você
d e f o r m a t o t a l m e n t e a p e r s p e c t i v a h i s t ó r ic a e a c a b a p o r n ã o c o m p r e e n d e r a q u e l e m e s m o
f e n ô m e n o d o q u a l vo c ê e s t a v a f a l a n d o . É c l a r o q u e a í , v o c ê j á e s t á f a l a n d o , n ã o d a
r e a l i d a d e , m a s d a q u i l o m e s m o q u e o p r ó p r io R o b e r t M u s i l c h a m a va d e u m a “ s e g u n d a
realidade”: quer dizer, você inventou uma “história humana”, e você toma posições
m o r a i s e m f a c e d e s s e s a c o n t e c im e n t o s p u r a m e n t e im a g i n á r io s .
I s s o q u e r d iz e r : é m a is f á c i l v o c ê im a g i n a r u m f e n ô m e n o , c o m o é a
I n q u i s i ç ã o , a p a r t ir d e d a d o s d a c u l t u r a c o n t e m p o r â n e a , d o q u e v o c ê s a b e r – a q u i l o q u e
dizia o Ranke – “como as coisas efetivamente se passaram” e o que foi efetivamente
aquele fenômeno, ou conjunto de fenômenos diferentes.
H o j e e m d i a , p o r e x e m p l o , o p e s s o a l t e m u m a id é i a b a s t a n t e
pejorativa a respeito da civilização islâmica. Então, eles acham que os islâmicos, (que)
eles cortam as cabeças de todo mundo que diverge etc., e de fato às vezes acontece num
lugar ou num outro. Porém, a civilização islâmica tem 1.400 (mil e quatrocentos) anos. E,
e m n e n h u m l u g a r q u e e l a o c u p o u , e l a j a m a i s t e n t o u is l a m i z a r t o d o m u n d o . N u n c a f e z
i s s o . O u s e j a : a id é i a d e t o t a l i t a r i s m o n ã o e x is t e d e n t r o d o I s l ã .
26
t o t a l i t á r i a é t o t a lm e n t e a u s e n t e d o i s l ã , e l a n ã o e x i s t e n o I s l ã . N o m o m e n t o e m q u e
a l g u n s g r u p o s is l â m i c o s s ã o i n f l u e n c i a d o s p o r i d e o l o g i a s t o t a l i t á r i a s e l e s p o d e m t e n t a r
adaptar o Islã a isso. Mas, ainda assim, ainda é um fenômeno localizado.
A g o r a , a R ú s s i a s o v i é t ic a t e v e s e s s e n t a a n o s p a r a f a z e r e o H i t l e r
teve doze. Doze não, porque a guerra começou em 39. Para construir o estado totalitário
e l e t e v e s e is a n o s – d e 3 3 a 3 9 – e n t ã o , e v i d e n t e m e n t e , ( e l e ) n ã o p o d e t e r c o n s e g u i d o
aquele controle totalitário que conseguiu o Stalin na Rússia e que depois foi imitado em
o u t r o s l u g a r e s . P o r e x e m p l o , e m C u b a e l e s c h e g a m a t e r e s s e c o n t r o le . M a s e m C u b a é
bem mais fácil, Cuba não é do tamanho de um continente, é uma lingüiçinha.
27
Essas comparações são feitas na base apenas da ênfase, baseada no
horror que você sente. Quer dizer, o horror que você sente de uma coisa que você
conhece, você compara ao horror que você sente por uma outra coisa que você não
c o n h e c e e q u e v o c ê s i m p l e s m e n t e im a g i n o u . E q u e v o c ê i m a g i n a q u e é t ã o r u i m q u a n t o .
O u t r o f e n ô m e n o , p o r e x e m p lo , q u e m e c h a m a a a t e n ç ã o : o p e s s o a l,
p o r e x e m p lo , r e v o l u c i o n á r i o , e s q u e r d i s t a , e l e s v i v e m s e m p r e s e s e n t i n d o p e r s e g u i d o s e
a m e a ç a d o s p e l a d ir e i t a , p e l o s r e a c i o n á r i o s e t c . e l e s v i v e m n u m p e r m a n e n t e e s t a d o d e
alerta, como se sua vida estivesse (...) mesmo quando eles estão no poder, eles se sentem
ameaçados. Quer dizer que o Stalin se sentia ameaçado o tempo todo. Fidel Castro se
sente ameaçado o tempo todo. Fidel Castro diz que os americanos fizeram mais de
quarenta tentativas de matá-lo. Na verdade não fizeram nenhuma. E, se fizessem uma,
e l e t e r i a m o r r id o .
28
É perigosíssimo você participar de uma revolução comunista
porque no dia seguinte os caras que tomaram o poder vão te matar. Claro que a vida
d e l e s é p e r i g o s a . E l e s e s t ã o c o n s t a n t e m e n t e a m e a ç a d o s . M a s o p e r i g o n ã o ve m d o
adversário. O perigo vem da militância. Esta é a situação real e objetiva na qual eles
estão.
Q u e r d i z e r : s e v o c ê p a r t ic i p a d o m o v im e n t o c o m u n i s t a , v o c ê p o d e
correr algum risco nas mãos da burguesia enquanto você está na militância. Mas depois
q u e a c o n t e c e r a r e v o l u ç ã o , o r i s c o c e n t u p l ic a ! I s s o n ã o a c o n t e c e u e m u m l u g a r .
Aconteceu em todos, sempre. Os maiores inimigos dos comunistas são os comunistas. É
i s s o q u e e le s t e r ia m q u e t e m e r . E n t ã o , p o r q u e e l e s t ê m t a n t o m e d o d o a d v e r s á r i o e s e
s e n t e m t ã o c o n f o r t á v e i s n o m e i o d a s u a m il i t â n c i a ? P o r q u e e l e s v i v e m n a “ s e g u n d a
r e a l i d a d e ” . E l e s n ã o e s t ã o c o m m e d o d o p e r i g o r e a l. M a s s ó d o p e r i g o i m a g i n á r i o , q u e
s e r v e ( p a r a e l e s ) d e a n e s t é s ic o c o n t r a o p e r i g o r e a l .
N o p r i m e i r o a n o , v o u d a r a v o c ê s u m a s é r ie d e l e i t u r a s d e o b r a s
literárias e nós não vamos analisá-las como se analisa em curso de Literatura; nós vamos
u s a r u m s is t e m a q u e m a i s o u m e n o s f o i u s a d o n u m c u r s o d e a r t e s li b e r a i s – e d u c a ç ã o
liberal – que eu dei lá em Curitiba. Quer dizer: você não vai analisar a obra literária;
você vai analisar-se a si mesmo e a vida em torno à luz dessa obra literária. Na verdade
este é o único método que funciona.
29
manda para um laboratório para analisar e decompor. Então eles quebram a pílula,
d e c o m p õ e m e d a í v o c ê f i c a s a b e n d o a f ó r m u l a i n t e ir a ; s ó q u e v o c ê n ã o t o m o u o r e m é d i o .
A s i m p l e s e x i s t ê n c i a d e v á r io s i n s t r u m e n t o s n a r r a t i v o s m o s t r a q u e
você está falando de uma realidade que não se resume à narrativa. Senão você só poderia
fazer a narrativa da narrativa da narrativa da narrativa (...) e isso se diluiria muito
r a p i d a m e n t e . É j u s t a m e n t e p o r q u e e x i s t e p a r a a l é m d a n a r r a t i v a – e x i s t e o m is t é r i o d a
R e a l i d a d e – é q u e v o c ê p r e c is a d a s v á r i a s t é c n i c a s n a r r a t i v a s c o m o q u e m u s a , v a m o s
dizer, várias lentes diferentes, para projetar diferentes visões sobre o objeto, para poder
localizá-lo no espaço, exatamente como um desenhista faz.
30
Então, você tem a estrutura real do objeto que está sendo
d e s e n h a d o e v o c ê t e m a e s t r u t u r a d o d e s e n h o , q u e s ó c o in c i d e m n o q u e d i z r e s p e i t o à s
proporções. Mas isso não quer dizer que o desenho seja uma estrutura em si totalmente
independente do objeto desenhado.
E s t a c a p a c id a d e d e p e r c e b e r i m a g i n a t i v a m e n t e a R e a l i d a d e , t o d o s
nós temos. E é justamente no cruzamento entre as várias imaginações que está o perfil da
realidade presente. Do mesmo modo que, quando você vai desenhar o objeto, você não
toma só uma medida. Você toma várias; em várias direções. Para que? Para você capturá-
lo numa rede de referências que permite lhe mostrar onde ele está e que tamanho ele é.
O c o n j u n t o d a s n a r r a t i v a s t a m b é m é is s o . É c o m o u m a s é r i e d e m e d id a s q u e f o r a m
tomadas em relação à realidade.
31
Se você não tivesse visto a paisagem, mas você tivesse visto as dez
p i n t u r a s ; vo c ê c o n s e g u i r i a i m a g i n a r e s s a r e a l i d a d e . S e v o c ê f o s s e p i n t a r o q u e v o c ê
i m a g i n o u , vo c ê n ã o i a p i n t a r e x a t a m e n t e o q u e v o c ê i m a g i n o u , m a s s ó a q u i l o q u e o s s e u s
p r o c e d i m e n t o s t é c n i c o s p e r m i t e m r e p r o d u z ir d a q u i l o . V o c ê t e r ia , p o r a s s i m d i z e r , d u a s
traduções. Uma tradução da experiência para a imaginação e memória e outra da
m e m ó r i a e im a g i n a ç ã o p a r a o d e s e n h o .
E m v e z d i s s o q u e r e r d iz e r q u e a R e a l i d a d e n o s é i n a c e s s í v e l , q u e
nós só temos acesso àquilo que nós mesmos imaginamos e desenhamos, é justamente isso
que prova a existência da Realidade. Por quê? Se nós só tivéssemos acesso àquilo que
nós mesmos imaginamos – prestem atenção – é este nosso conteúdo imaginário que se
t o r n a r i a a “ r e a l i d a d e ” p a r a n ó s . E n ó s t e r í a m o s q u e p o r s u a v e z r e im a g i n á - l o . E e s t a
s e g u n d a i m a g i n a ç ã o t a m b é m s e r i a u m o b j e t o , e n ó s t e r í a m o s q u e r e im a g i n á - l o e
reimaginar (...) e seria a imaginação da imaginação da imaginação (...) e você nunca
chegaria a nada. Seria um processo infinito.
E l e é f i n i t o p o r q u ê ? P o r q u e e x is t e a r e f e r ê n c ia d a R e a l i d a d e . E a
referência da Realidade dá o limite do trabalho imaginário a ser feito em cima. Se dez
pintores, em vez deles pintarem a mesma paisagem, eles pintassem cada um a pintura do
outro, a paisagem desapareceria.
V o c ê s v ir a m a q u e l e f i l m e q u e t e m n o Y o u T u b e , d e u m e l e f a n t e
desenhando um elefante? Mas notaram como um elefante percebe a estrutura de um
elefante exatamente como nós a percebemos? Com uma pequena diferença: você vê que
p a r e c e q u e a p e r s p e c t i v a d o e le f a n t e é m a i s v e r t ic a l d o q u e h o r i z o n t a l . I s s o q u e r d i z e r
q u e o e l e f a n t e é a n t e r io r a G i o t t o .
32
l i m i t e d a r e a l i d a d e : i s t o a í é a e s s ê n c i a d o m é t o d o c i e n t í f ic o . S e m i s s o v o c ê j a m a i s
chegará no negócio.
U m a c o is a q u e e u g o s t a r i a m u i t o d e d e s e n v o l v e r n o s a l u n o s d e s s e
c u r s o é , t a m b é m , e s t e s e n s o d a r e a l i d a d e c o m o u m a c o is a q u e n ã o f o i v o c ê q u e i n v e n t o u .
N ã o f o i v o c ê q u e c r i o u . M a s d e n t r o d a q u a l vo c ê e s t á e q u e e l a t e d e t e r m i n a e e l a t e
impõe os limites e ela te abre as possibilidades reais.
Q u e r d i z e r , e m c a d a s i t u a ç ã o , v o c ê t e m , p o r a s s i m d i z e r , u m a s é r ie
de elementos que estão fechados e que já são imutáveis – não podem ser mais mudados –
e você tem em aberto uma série de outros elementos. E, no cruzamento desses dois
dados, é que você vai entender a estrutura da ação humana.
E s t o u m e b a s e a n d o n o m é t o d o d o S h e r lo c k H o l m e s : e x c l u a o
i m p o s s í v e l e d o q u e s o b r a r a l g u m a c o is a d e v e s e r v e r d a d e i r o . M a s q u a l é o im p o s s í v e l ?
O i m p o s s í v e l e s t á d a d o n a q u e l e s t r a ç o s d a R e a l i d a d e o n d e j á n ã o é p o s s í v e l m o v im e n t o
algum, onde já não cabe fazer movimento algum.
33
Para os que devem estar curiosos quanto a isso, nós já temos aqui
m o n t a d a m a i s o u m e n o s a s o l u ç ã o t é c n i c a p a r a p e r m i t i r a i n t e r a t i v i d a d e c o m v á r io s
alunos, cada um nas suas casas. Não será necessário aquilo que eu tinha dito em
p r im e ir o l u g a r , d e r e u n i r a s p e s s o a s e m g r u p o s , p o r q u e n ó s d e s c o b r i m o s a í u m
instrumental técnico que permite a interatividade com algumas centenas de pessoas de
m o d o s im u l t â n e o .
34