Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3. Teorias do Esporte
Educação Física
Licenciatura em
Volume 4
ISBN 978-85-68359-02-0
9 788568 359020
LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO FÍSICA
GOVERNO FEDERAL
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO FÍSICA
2014
REITORIA DIREÇÃO DO CENTRO INTEGRADO DE
Orlando Afonso Valle do Amaral APRENDIZAGEM EM REDE • CIAR
Leonardo Barra Santana de Souza
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
Luiz Mello de Almeida Neto COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
E COMUNICAÇÃO IMPRESSA
DIRETORIA DA FACULDADE Ana Bandeira
DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Anegleyce Teodoro Rodrigues DESIGN GRÁFICO -
PROJETO EDITORIAL
COORDENAÇÃO GERAL DO CURSO Equipe de Publicação CIAR
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA / EAD
Ari Lazzarotti Filho EDITORAÇÃO
Lara Carolina da Silva
ORGANIZADORES
Ari Lazzaroti Filho ILUSTRAÇÕES E IMAGENS
Renato Mendes de Oliveira Vanessa Gomes
Bibliografia
ISBN: 978-85-68359-02-0
Antropologia do Corpo 09
1. Introdução ao pensamento antropológico 09
O que é antropologia 09
Papai Noel e os ritos modernos de iniciação 12
Brevíssima história da antropologia 13
Relativismo e anti-relativismo 16
Os meninos perdidos do Sudão 19
Antropologia do corpo 20
O ritual do corpo entre os Sonacirema por Horace Minner 22
Referências 27
2. Corpo e Cultura: Ampliando Conceitos 28
Apresentando reflexões sobre a cultura 28
O Corpo: suas concepções , suas percepções
sociais e o trato dado pela educação física 33
Algumas Considerações Preliminares 42
3. A construção cultural do corpo (in)civilizado 42
Cultura corporal: entre o sagrado e o profano 50
A primazia do belo em corpos ocidentais urbanos 54
Referências 58
4. Antropologia do corpo e Educação Física 61
A academia de ginástica 61
Concepções de corpo e academias de ginástica 63
Os homens dos músculos de aço 64
Referências 70
9
disciplina dedicada ao estudo da vida. Obviamente, esta é uma acepção bastante
genérica e nos diz pouco sobre as particularidades desta ciência, afinal, no limite,
outras áreas do conhecimento como a Medicina ou a Filosofia, de diferentes formas
também se dedicam a isso.
10
O antropólogo François Lanplatine dizia que a perplexidade provocada pelo
encontro com culturas diferentes das nossas acaba por induzir uma modificação do
olhar que se tem sobre si mesmo, quer dizer, o conhecimento de um modo de vida
diferente dos nossos tende a estimular uma atitude de surpresa e de estranhamento
diante dos nossos próprios modos de vida. De certo modo, afirmava Lanplatine,
pode-se começar a duvidar de si mesmo através do exercício antropológico, pois o
conhecimento de outras culturas abre a possibilidade de um conhecimento cada vez
mais amplo e profundo a respeito da nossa própria. Nas palavras desse antropólogo:
“De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos dos outros, mas míopes
quando se trata da nossa” (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia . São
Paulo, Brasiliense, 1988, p. 14).
A perspectiva antropológica, enfim, tem ensinado a tomar o estranho por familiar, bem
como o familiar por estranho. Para apelar uma vez mais as palavras de François Lanplatine:
Somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única [...]
formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos
espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos
encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência...) são,
na realidade, o produto de escolhas culturais (LAPLANTINE, 1988, p. 15).
11
de mundo implícita à civilização chinesa tende a não se considerar predestinada, nem
sequer escolhida: tal arranjo cultural seria apenas o único possível.
Assim, pode-se dizer, paradoxalmente, que a preocupação com a projeção universal
dos próprios hábitos, costumes e valores é algo característico de um tipo particular de
cultura: a cultura Ocidental. Modos de pensamento, questões avaliadas como mais
importantes, ou conceitos como tempo, liberdade ou verdade são a expressão abstrata
de uma singularidade que se quer generalidade. No caso da idéia de universalidade,
especificamente, “esta é efetivamente a história da Europa”, afirma sobre esse assunto
o filósofo François Jullien. Ainda segundo ele, “o universalismo preconizado pela
Europa não passou senão da universalização do seu próprio culturalismo” (JULLIEN,
François. O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009, p. 118).
Voltaremos a esse assunto mais adiante. Por ora, importa apenas destacar que um
dos elementos que mais nos interessa nessa perspectiva antropológica, a despeito das
polêmicas ainda vigentes a esse respeito, é a dimensão relativa ou mesmo relativista que
tal perspectiva, em geral, implica. Nesse sentido, podemos tomar a antropologia como
uma ciência das diferenças, o estudo sobre o modo pelo qual os homens percebem e
constroem suas diferenças com relação aos outros.
12
ancestrais que voltam às aldeias para punir ou recompensar as crianças. Trata-se,
segundo explica Lévi-Strauss, de um ritual em que as crianças desempenham o
papel daqueles que não fazem parte da vida em sociedade, dado que não foram ainda
iniciadas na vida adulta. As crianças, em suma, estão apenas sendo preparadas para
no futuro se integrarem à sociedade. A partir dessa condição infantil, que dramatiza
o modo de relacionamento entre os que fazem parte da sociedade e os que não
fazem, é a oposição mais profunda entre os mortos e os vivos, última fronteira da
relação entre pertencimento e não-pertencimento, o que estaria sendo ritualizado
no katchina. Aceitando o paralelo, Papai Noel, da mesma forma, seria a figura de um
mundo sobrenatural responsável por presentear aqueles que melhor personificam os
casos-limite de não-pertencimento ao nosso grupo, quais sejam, os mortos. Nossas
cerimônias natalinas, especialmente aquelas “intermediadas” pelo Papai Noel,
seriam, em última instância, um esforço para melhorarmos nossas relações com a
morte. Nas palavras de Lévi-Strauss: “A crença que inculcamos em nossos filhos de
que os brinquedos vêm do além oferece um álibi ao movimento secreto que nos leva
a ofertá-los ao além, sob o pretexto de dá-los às crianças. Dessa maneira, os presentes
de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em
primeiro lugar, em não morrer [...] Acreditando no Papai Noel, elas [as crianças] nos
ajudam a acreditar na vida” (LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de papai Noel. São
Paulo: Cosac Naif, 2008, p. 45-46).
Não começou agora a preocupação do ser humano com o próprio ser humano,
tampouco seu interesse pela diversidade de condutas e comportamentos no convívio
social. Por volta do século V a.C. (sigla para o período Antes do nascimento de
Cristo, isto é, Antes de Cristo), o filósofo grego Heródoto, que muitos antropólogos,
não por acaso, gostam de tomar como o precursor dos precursores da moderna
antropologia, se interessou vivamente em refletir a respeito do modo de vida de outros
povos. Dedicou-se particularmente em registrar os hábitos dos citas, dos egípcios,
dos etíopes, fenícios e dos persas, povos a quem os gregos tinham como bárbaros
e subdesenvolvidos.
Heródoto percebeu que muitos desses povos, tal como os próprios gregos,
consideravam seus costumes como superiores, chamando aos outros, que tinham
ANTROPOLOGIA DO CORPO
13
América, problematizaram, a partir do impacto causado por costumes totalmente
desconhecidos pelos europeus ate então, práticas e comportamentos dos próprios
europeus. Particularmente, Montaigne comentou sobre o canibalismo, dizendo que
os europeus que se escandalizavam com isso eram, na verdade, capazes de feitos tão
ou mais horripilantes – referindo-se à Santa Inquisição praticada na época em que ele
escrevia pela Igreja Católica.
Não me pesa acentuar o horror bárbaro que tal ação significa, mas sim que
tanto condenemos suas faltas e tão cegos sejamos para as nossas. Penso
que há mais barbárie em comer um homem vivo que morto, dilacerar com
tormentos e martírios um corpo ainda cheio de vitalidade, assá-lo lentamente
e arrojá-lo aos cães e aos porcos, que o mordem e martirizam (como vimos
recentemente, e não lemos, entre vizinhos e concidadãos, e não entre antigos
inimigos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de religião) que em o assar
e comer depois de morto. ?
Creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação [...] Sucede,
porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-
ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo
e a idéia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre
perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas [...]
Não há opinião tão relaxada que desculpe a traição, a deslealdade, a tirania, a
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
crueldade, que são os nossos pecados de todos os dias. Podemos, pois, achá-los
bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que os sobrepassamos
em toda a espécie de barbárie [...] Eis aqui, sem mentir, homens completamente
selvagens em contraste conosco; porque ou eles o são na realidade, ou o somos
nós. Há uma enorme distância entre a sua maneira de ser e a nossa.?
14
de comportamentos humanos, com uma explícita pretensão de tornar-se ciência.
É dessa época que datam as primeiras reflexões ligadas ao que chamamos agora de
antropologia. Desde então, uma série de paradigmas seriam alternados e combinados
na busca do aprimoramento do saber antropológico.
Por volta dos anos 1860 e 1870, trabalhos como os de Herbert Spencer ou Lewis
Morgan iniciavam o esforço de sistematização do conhecimento acumulado sobre os
“povos primitivos”. Nessa época, predominava o que ficou conhecido depois como
“trabalho de gabinete”. Nessa perspectiva, os antropólogos se ocupavam basicamente
em sistematizar informações sobre a vida de certos povos a partir do registro dos seus
comportamentos deixados por viajantes, missionários e comerciantes, que não raro
os descreveram em cartas, diários e relatórios. A unidade básica da constituição do ser
humano, quer dizer, o elemento principal na constituição da própria humanidade do
homem era uma das preocupações básicas. Além disso, as origens da nossa espécie
e o seu processo de evolução fora outro tema corrente. Lembremos que pouco
antes, em 1859, Charles Darwin trazia à luz A origem das espécies, livro que integrou
os avanços da teoria evolucionista, que ao menos desde os anos 1840 vinha sendo
progressivamente desenvolvida.
Entre os fins do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, uma nova
forma de se relacionar com o conhecimento antropológico iria surgir, por diferentes
caminhos. Basicamente, a ênfase estaria agora no chamado “trabalho de campo”, qual
seja, ao invés do gabinete, o estudioso interessado em aprender sobre os costumes
de outros povos, deveria viajar ele mesmo, a fim de vê-los com os próprios olhos
e ouvi-los com os próprios ouvidos. O antropólogo, em suma, deveria estabelecer
relações e interagir por meio de uma imersão no contexto social ao qual ele pretendia
compreender ou explicar. Este procedimento, que acabaria marcando a identidade
mesmo da antropologia, receberia o nome de etnografia, ou observação participante.
Os trabalhos de Bronislaw Malinowski, particularmente seus estudos sobre a
Melanésia, são tidos como verdadeiro divisor de águas sob este aspecto. Malinowski,
no entanto, não trabalhava sozinho. De certo modo, ele estava inscrito no interior de
toda uma tradição de pensamento, ainda em formação naquele momento, mas que já
anunciava, além da valorização do trabalho de campo, a ênfase na semelhança entre
sociedades humanas e organismos biológicos. “Escola Britânica de Antropologia” é o
nome que melhor representa essas tendências, conforme sugestão de Roberto Cardoso
de Oliveira (CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Tempo e tradição: interpretando
a antropologia. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o pensamento
ANTROPOLOGIA DO CORPO
15
nativos australianos, as formas primitivas de classificação ou o esboço de uma teoria
geral da magia, entre outros.
As duas “Escolas” guardam entre si muitas divergências, é certo. Mas guardam
tambem algumas importantes semelhanças. Uma das mais importantes para o nosso
propósito é a tendência, em ambas, de se colocar o problema do relativismo.
Ao longo do século XX muitas outras escolas de pensamento se sucederam, às
vezes aproveitando, às vezes refutando aspectos dessas “Escolas” que as precederam.
Não será relevante para os nossos objetivos detalhar as divergências ou similitudes
entre cada uma delas.
são universalmente aceitas? Se não, quer dizer que qualquer barbaridade pode se
justificar apelando para a diversidade cultural? Nesses casos, quais seriam os critérios
ou parâmetros para distinguir a barbárie da civilização? Vejamos, rapidamente,
algumas poucas posições sobre o assunto.
Umberto Eco foi um dos que já se propuseram a defender a existência de formas
éticas universais, quer dizer, a existência de códigos e normas de comportamento
válidas para todos os seres humanos, independente da cultura na qual estes estejam
16
vivendo. Ele argumenta que apesar de certas culturas não reconhecerem noções
que para nós têm ou deveriam ter estatuto universal, como é o caso da noção de
democracia, por exemplo, não implica, necessariamente, uma impossibilidade de
existência de todo e qualquer “universal semântico”, para usar uma expressão do
próprio Umberto Eco. Segundo ele, existem noções elementares que são comuns
a toda a espécie humana e que podem ser expressas por todas as línguas. Nas
suas palavras:
Todavia, conforme admite o próprio Umberto Eco, todos esses exemplos dizem
respeito a uma “espécie de Adão bestial”, nas palavras dele mesmo. Ou seja, apelam
para questões excessivamente elementares na vida de um ser humano, como a fome,
a sede ou o sono. Deixando de lado que a condição humana nunca se limita a esses
níveis, abarcando também aspectos mais complexos e subjetivos, como o amor
ou a felicidade, poderíamos dizer que mesmo nessas dimensões básicas, bestiais,
animalescas, a diversidade cultural atua, determinando o modo de satisfazê-las. De
acordo com o antropólogo Roque Laraia:
17
Por outro lado, posturas relativistas podem ser associadas à frouxidão moral ou a
ausência de qualquer tipo de convicção ética. Mas essa é uma leitura, ao menos em
parte, equivocada. É verdade que o relativismo às vezes conduziu a posicionamentos
extremados, quase inteiramente niilistas. Mas, de maneira geral, de acordo com a inte-
ressante interpretação do antropólogo Cliford Geertz, as conseqüências que se supõe
decorrerem do relativismo, como a incapacidade de julgamento crítico ou bloqueio
de avaliações éticas são todas ilusórias. Geertz, na verdade, de maneira irônica, chama
atenção para as diferenças entre não admitir julgar os costumes dos aborígenes como
atrasados e avaliar o nazismo como um conjunto de hábitos pouco convencionais.
Além disso, continua o antropólogo, combater o anti-relativismo não significa neces-
sariamente aceitar o relativismo. Segundo ele, a situação é semelhante às polêmicas
ao redor da questão do aborto. “Aqueles de nós que nos opomos ao aumento das res-
trições legais ao aborto, não somos, pelo que eu entendo, pró-aborto, no sentido de
o considerar uma coisa maravilhosa e achar que, quanto maior o índice de abortos,
maior será o bem-estar social” (GEERTZ, Cliford. Anti anti-relativismo. In: GEERTZ,
Cliford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 48).
É mais ou menos essa também a posição de Marshall Sahlins. Para este antropólogo,
o relativismo não é uma questão de advocacia. Nas suas palavras:
18
Não será nosso objetivo aqui tentar responder questões desse tipo, abrangentes
demais, profundas demais. Para os propósitos de agora, interessa apenas aprender
essa forma de pensamento, que é o relativismo, como um procedimento capaz
de suspender provisoriamente as nossas certezas e induzir a um questionamento
permanente dos fundamentos que orientam nossos juízos de valor acerca de uma
série de aspectos da vida social. É algo que de certo modo substitui os pontos finais
pelos pontos de interrogação, nos obrigando a pensar seriamente sobre aquilo que é
aceitável e o que não é; algo, em suma, que desestabiliza certezas arraigadas, exigindo-
nos uma reflexão. O relativismo, afinal, é também um instrumento de crítica da cultura
ocidental. Nossas preferências e estilos de vida são, de fato, tão objetivamente racionais
– como às vezes se supõe?
que parecem óbvias aos olhos da cultura ocidental moderna, como a eletricidade, o
vaso sanitário ou as comidas pré-fabricadas. Por outro lado, o filme exibe tambem a
dificuldade dos norte-americanos de compreender alguns dos hábitos dos “meninos
perdidos”, como o de sempre andar em grupo, por exemplo. Depois de passarem toda
a vida em pequenas aldeias ou em campos de refugiados totalmente isolados do resto
19
do mundo, os “meninos perdidos” aprenderam, entre outras lições, que permanecer
juntos poderia prevenir o ataque de leões da savana, ao mesmo tempo em que nunca
tiveram notícias de que pessoas de certas regiões do planeta costumam comer
cotidianamente uma coisa chamada pão com manteiga.
20
se relacionar com os próprios corpos. Nesse sentido, a Educação Física é mais um
dispositivo social através do qual o ser humano intervém na natureza através da
cultura, uma vez que o corpo é, antes de tudo, um dado da natureza. Basicamente, o
estudo das maneiras pelas quais os indivíduos de determinada sociedade utilizam ou
modificam a forma dos seus corpos é o assunto da antropologia do corpo.
Por exemplo, na fronteira da Tailândia com a Birmânia, as mulheres da tribo Pa-
daung, notabilizaram-se internacionalmente pelo característico uso de anéis de metal
para prolongar o pescoço, algo que é considerado tanto um sinal de beleza, como uma
marca distintiva da situação da mulher no interior da tribo. Na Papua Nova Guiné,
jovens do clã kurafi fazem tatuagens no rosto para marcar a passagem da juventude
para a fase adulta. No Vale Omo, no sudeste da Etiópia, jovens solteiras da tribo Ha-
mar se apresentam voluntariamente para uma seção de espancamento no momento
em que algum dos seus parentes do sexo masculino se inicia no ritual de passagem
para a vida adulta. Na Ilha Pentecoste, em Vanuatu, nativos atiram seus corpos do
alto de torres feitas de madeira durante o ritual nagol.
De início, poderíamos julgar cada uma dessas práticas (relacionadas ao
corpo), cujo número poderia ser facilmente ampliado, como algo estranho,
exótico, aparentemente sem sentido, quiçá irracional. No entanto, de uma
perspectiva antropológica, a lógica de comportamentos como esses podem se tornar
compreensíveis a partir do momento em que eles são pensados no interior do
contexto social no qual são realizados. Mais que isso, pode-se, inclusive, começar
a ver irracionalidade em comportamentos que até então eram tidos como
totalmente racionais. Ou o que dizer de homens ou mulheres que modificam seus
corpos implantando silicone, pintando os cabelos, bronzeando-se artificialmente,
esculpindo-o através de exercícios, inserindo piercings ou fazendo tatuagens?
Todos esses hábitos, apesar de mais ou menos comuns e convencionais na nossa
cultura, já poderiam, assim mesmo, começar a ser vistos com considerável dose de
estranhamento. E o que pensar então de hábitos mais extravagantes, mas igualmente
inscritos no ethos de nossa própria cultura, como a bifurcação de língua, as cirurgias
de mudança de sexo, a implantação de chifres, o alargamento dos lóbulos da orelha
ou o bodybuilding? Ou do sentido de práticas que disponibilizam o próprio corpo
ao sofrimento físico, como os esportes radicais ou as lutas de boxe ou de vale-tudo
(praticada por poucos, mas assistida por muitos)?
Compreender o que à primeira vista é estranho e às vezes até repugnante,
ao mesmo tempo em que se interroga sobre o sentido do que à primeira vista é
ANTROPOLOGIA DO CORPO
normal, é uma das maneiras pelas quais a perspectiva antropológica de olhar para o
mundo pode colaborar na formação do professor de Educação Física. O exercício
pedagógico não consiste apenas na aplicação mecânica de técnicas de aprendizagem
motora ou de táticas esportivas. Para além disso, o exercício do ofício de professor de
Educação Física implica, antes de tudo, capacidade de compreender os motivos e os
21
significados atribuídos a certas práticas pelos agentes que delas participam. É a partir
dessa compreensão que o professor, considerando os contextos em que tais ações
se desenrolam, poderá se posicionar, avaliando as circunstâncias e buscando criar
mecanismos e estratégias adequadas a cada caso. Porque as pessoas praticam esporte?
O que as leva a se entusiasmar com essa prática? Porque freqüentam academias de
ginástica? O que esses espaços significam para a nossa sociedade? Porque elas têm se
tornado tão populares? São perguntas que o professor de Educação Física deve ter em
mente se quiser atuar de maneira consciente, e não apenas repetindo mecanicamente
o que lhe mandam repetir.
22
tal corpo, a única esperança do indivíduo é evitar essas características através do uso
de poderosas influências do ritual e da cerimônia mágica. Todo o grupo doméstico
possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais
poderosos dessa sociedade têm vários santuários do corpo em suas moradias, com
suas paredes cobertas de pedras, e, de fato, a opulência de uma casa é frequentemente
aferida em termos de quantidade dos centros rituais que abriga.
Mesmo que cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a
eles associados não são coletivos, realizados pela família, mas cerimônias privadas
e individuais. Os ritos normalmente são discutidos somente com as crianças; e isto
apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes mistérios.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca
são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo
acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários iniciados, de
acordo com a especialidade. Dentre eles, os mais poderosos são os Curandeiros,
cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto,
o Curandeiro não fornece as poções desejadas por seus assistidos, decidindo apenas
os ingredientes que nelas devem entrar e, em seguida, escrevendo em uma língua
estranha e secreta. Tal escrita apenas pode ser decifrada pelo Curandeiro e pelos
Herbanários, os quais fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado logo após seu uso, porém é colocado na caixa de
mágicas do santuário doméstico. Como esses materiais mágicos são específicos para
certas funções – e considerando que as doenças reais ou imaginárias desse povo são
muitas – a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos
são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original e temem usá-los
novamente. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a esta questão,
só podemos concluir que a idéia subjacente ao costume de se guardar, mesmo não
tendo mais nenhuma utilidade, todos os materiais mágicos e seus vasilhames nas
caixas dos santuários diante das quais são encenados os rituais do corpo, é que os
materiais continuam agindo magicamente e protegendo o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte; todo dia cada membro
da família entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágicas,
mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve rito de ablução.
As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da tribo aonde os Sacerdotes
conduzem elaborados cerimoniais para manter o líquido ritualmente puro.
Há hierarquia entre os Sacerdotes da Magia. Abaixo do Curandeiro, em termos
ANTROPOLOGIA DO CORPO
23
dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos
os abandonariam e seus/suas amantes as/os rejeitariam.
O ritual do corpo quotidianamente realizado por todos inclui um ritual bucal.
Apesar de sabermos que esse povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado
com a boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não acostumado não
consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste
na inserção de uma pequeno feixe de cordas de porco na boca, juntamente com
certos pós mágicos numa mistura cremosa e, em seguida, na movimentação deste
feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados e ritualizados. Além
desse ritual, os Sonacirema procuram os “Homens-da-Boca-Sagrada” uma ou
duas vezes por ano, dependendo da crença familiar. Esses curandeiros possuem
uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes,
furadores, sondas, agulhas e pastas. O uso desses materiais rituais no exorcismo dos
perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura do indivíduo. O “Homens-
da-Boca-Sagrada” alarga qualquer buraco que o uso tenha naturalmente feito nos
dentes e deposita pós mágicos nas cavidades. Se não são encontrados buracos entre
os dentes, grandes seções de um ou mais deles são serrados para a realização do rito.
Na imaginação desse povo, o objetivo dessas aplicações é deter o apodrecimento dos
dentes e atrair amigos. O caráter de crença sagrada deste ritual fica evidente no fato de
que os Sonacirema voltam todo ano a esse tipo de Curandeiro, embora seus dentes
continuem a se deteriorar naturalmente.
Para não nos estendermos na descrição de todos os rituais do corpo, terminaremos
com mais três muito interessantes. Primeiro, vamos considerar o ritual de laceração
que os Sonacirema realizam quase cotidianamente. Esse ritual é distinto, conforme se
o indivíduo que o realiza é homem ou mulher. No primeiro caso, o rito envolve uma
arranhadura da superfície da face por meio de um instrumento cortante que irrita a
pele do praticante e, não raro, o corta. No segundo caso, o rito feminino é ainda mais
agressivo: as mulheres costumam raspar-se em várias partes do corpo acreditando
que tal feito melhore suas relações sociais. Essa descrição não é completa, pois no
caso das mulheres existem muito mais rituais bárbaros – como assar suas próprias
cabeças num pequeno forno durante mais ou menos uma hora.
Os curandeiros possuem um Templo imponente, o Latipsoh. As cerimônias mais
elaboradas, necessárias para o tratamento dos indivíduos mais doentes podem ser
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
realizadas apenas nesses lugares sagrados. Tais cerimônias são tão violentas que chega
a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes
que entram no Latipsoh consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é
ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-las ao Templo alegando que
“é aonde você vai para morrer”. Apesar disto, os doentes adultos não apenas desejam,
mas ficam ansiosos para submeter-se a prolongada purificação ritual. Se eles não
possuem meios para tanto, os Guardiões do Templo, não importa quão suplicante o
24
doente ou quão grave a emergência, não permitem sua entrada sem que seja dado um
rico presente ao Zelador do Templo.
O suplicante é despido de todas as suas roupas ao entrar no Latipsoh. Ao contrário
da vida cotidiana – em que o indivíduo Sonacirema nunca tem suas excreções
realizadas em público –, no Templo ocorre uma perda súbita da privacidade, como se
com isso o indivíduo renascesse. Ali o doente se vê auxiliado por uma Vestal durante
todos os momentos, até mesmo no ato excretório, em que suas funções naturais
devem ser realizadas num vaso sagrado. Além de terem seus corpos nus submetidos
ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos diversos Curandeiros.
Por fim, ainda resta um tipo de Curandeiro muito procurado e mais um tipo de
ritual para ser descrito. Trata-se do Escutador. Este feiticeiro tem o poder de exorcizar
os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os
Sonacirema acreditam que o contato e relacionamento entre os indivíduos podem
ser origem de muitos feitiços perigosos. O Escutador possui uma contra-magia que
singular por seu caráter simples de quase nenhum ritual. O doente simplesmente
conta a esse Curandeiro todos os seus medos, problemas e dificuldades. A memória
exibida pelos Sonacirema durante esses ritos é realmente notável, não sendo
incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu no útero materno ou logo
quando foi desmamado; alguns chegam mesmo a localizar seus problemas nos efeitos
traumáticos de seu próprio nascimento.
São tantos os rituais Sonacirema que é impossível descrevê-los em tão pouco
espaço. Existem certas práticas, baseadas na estética nativa, mas que dependem de
uma enorme aversão generalizada pelo corpo ou por suas funções naturais. Há jejuns
para fazer pessoas consideradas gordas emagrecerem. Outros ritos ainda são usados
para os seios das mulheres sonacirema ficarem maiores ou menores – nunca elas estão
satisfeitas com os seus. Há pinturas rituais que mais escondem a verdadeira aparência
física. Até mesmo as funções excretórias são ritualizadas e rotinizadas, relegadas ao
domínio do secreto. Igualmente as funções reprodutivas. O intercurso sexual é tabu
como tópico de conversa e, não raro, programado enquanto ato. Grandes esforços
são feitos para se evitar a gravidez por meio de mais materiais e rituais mágicos ou
simplesmente pela limitação do encontro sexual de acordo com fases lunares. O parto
se realiza em segredo, sem a presença de amigos e familiares e a maioria das mulheres
não amamenta seu bebê.
Nossa descrição da vida Sonacirema certamente mostra que eles são um povo
obcecado pela magia. E toda sua cultura parece calcada num valor central, numa
ANTROPOLOGIA DO CORPO
configuração particular que se baseia, acima de tudo, numa forma singular de perceber
as coisas. Em poucas palavras, suas crenças e rituais do corpo. É difícil compreender
como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos fardos que eles
próprios criaram para si. Mas mesmo para costumes tão exóticos quanto esses que
foram descritos, seu estudo ganha sentido e importância quando encarados a partir do
25
ensinamento do antropólogo Malinowski: “Nosso objetivo final ainda é enriquecer
e aprofundar nossa própria visão do mundo, compreender nossa própria natureza
e refiná-la, intelectual e artisticamente. Ao captar a visão essencial dos outros, com
a reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo aos selvagens, estamos
contribuindo para alargar a nossa própria visão. Não podemos chegar à sabedoria final
socrática de conhecer-nos a nós mesmos se nunca deixarmos os estreitos limites dos
costumes, crenças e preconceitos em que todo homem nasceu”.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
26
Referências
ECO, Umberto. Quando o outro entre em cena. In: ECO, Umberto. Cinco
escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998.
GEERTZ, Cliford. Anti anti-relativismo. In: GEERTZ, Cliford. Nova luz sobre
a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
27
2. Corpo e Cultura: ampliando conceitos
28
Foucault (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 26.
ed. Petrópolis: Vozes, 2002. Veja também: FOUCAULT, Michel. História da
sexualidade I: a vontade de saber. 15. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.)
Podemos identificar nos exemplos das duas figuras acima, as características
comentadas sobre o corpo, as quais fazem parte de padrões culturais determinantes
inclusive das características corporais das mulheres e daquilo que se esperava dos seus
papeis na sociedade de cada tempo.
Assim, podemos dizer que é preciso estabelecer de maneira mais explícita alguns
conceitos de cultura. O primeiro elemento relativo à cultura que podemos citar é
apresentado por Eagleton (2005, p. 10-11) do ponto de vista etimológico:
A raiz latina da palavra “cultura” é colere, o que pode significar qualquer coisa,
desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de “habitar”
evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”, de modo
que títulos como Cultura e colonialismo são, de novo, um tanto tautológicos1.
Mas colere também desemboca , via latim cultus, no termo religioso “culto”,
assim como a própria idéia de cultura vem da Idade Moderna a colocar-
se no lugar de um sentido devanescente2 de divindade e transcendência.
ANTROPOLOGIA DO CORPO
1. Que se explicam a si próprios, ou seja, aquelas explicações que são dadas por elas mesmas,
sem sair do lugar.
29
– são algumas vezes verdades sagradas, a serem protegidas e reverenciadas.
A cultura, então, herda o manto imponente da autoridade religiosa, mas
também tem afinidades desconfortáveis com ocupação e invasão; e é entre
esses dois pólos, positivo e negativo, que o conceito, nos das de hoje, está
localizado (Grifos do autor).
Assim, é possível percebermos que a perspectiva de cultura tem a ver com certo
patamar de cultivo do ser humano, tanto do ponto de vista material como do ponto
de vista espiritual. Desse modo, a cultura apresenta uma tensão entre o que é próprio
do ser humano, portanto, natural, como do que é artificial. Assim, se retomamos a
reflexão elaborada por Eagleton (2005, p. 11), podemos dizer:
Dessa maneia, podemos apreender a ideia de uma cultura que se faz na relação
do homem com a natureza, com ele mesmo e com os significados que esta produção,
este “cultivo” possui para a vida humana. Nessa dimensão “construtivista” da cultura
a interface do ser humano com as matérias-primas permitem o desenvolvimento
de maiores ou menores níveis de relação e formação de sentidos e significados.
A relação presente entre o ser humano e a natureza e entre este e a cultura é descrito
de maneira interessante por Carlos Rodrigues Brandão (A educação como
cultura. ed. rev. e ampl. Campinas: São Paulo, Mercado das Letras, 2002, p. 16)
quando ele diz: “Eu me vejo como um ser da natureza, mas me penso como um
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
sujeito da cultura. Como um alguém que pertence também ao mundo que a espécie
humana criou para aprender e viver”.
A cultura é então uma forma de produção humana. Não se pode pensar na
elaboração de matéria-prima, em sua transformação na definição de sentidos
e significados dos produtos e da própria transformação da natureza fora da
humanidade. Por isso, apoiado nos estudos Geertz apresenta algumas definições
de cultura como:
30
[...] (1)“o modo de vida global de um povo”; (2) “o legado social que o indivíduo
adquire de seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma
abstração do comportamento”; (5)”uma teoria, elaborada pelo antropólogo,
sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente”; (6)
“um celeiro de aprendizagem em comum”; (7) “um conjunto de orientações
padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”;
(9) “um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento”;
(10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como
em relação aos outros homens”; (11) “um precipitado da história”, e voltando-
se, talvez em desespero, para as comparações, como um mapa, como uma
peneira, como uma matriz (KLUCKHOHN apud GEERTZ, 2005, p. 4).
31
Em segundo lugar, a cultura depende dos determinantes simbólicos e significados
estabelecidos pela humanidade. Portanto, a cultura é intrinsecamente formativa do
ponto de vista das relações grupais, e consequentemente, do próprio indivíduo. Isso
quer dizer que as práticas de um determinado grupo tem sentido de grupo, importância
e prioridade totalmente diferente de um grupo para outro. Um rápido exemplo disso é
o futebol. Enquanto no Brasil, a grande maioria dos meninos sonha ou já sonharam em
ser grandes jogadores de futebol, nos Estados Unidos, a preferência é claramente pelo
basquete. Por outro lado, na Islândia, o handebol é considerado o principal esporte do
país, tendo a sua equipe masculina se classificado em sexto lugar e segundo lugar na
última Olimpíada (Pequim, 2008). Estes dados, simplesmente demonstram o fato de
a cultura possuir características próprias em cada lugar, a qual depende inclusive das
condições históricas. Assim, podemos afirmar segundo Brandão (2002) que a cultura
constrói a história, bem como, a história faz a cultura. Finalmente, devemos reforçar
a perspectiva da cultura enquanto construção humana, uma vez que, ela possui
interfaces com a consciência. Sobre isso, comenta Brandão (2002, p. 39):
história e, por conseguinte, da relação definitiva com o ser humano, um ser natural/
cultural simultaneamente, devemos refletir sobre o processo de existência do ser
humano. Em outras palavras, se o ser humano se constitui na sua relação dialética entre a
natureza e a cultura e na sua condição entre o biológico e o social, sua forma de presença
no mundo se faz de uma única forma: pelo corpo. Afinal, o corpo é o lócus da existência
humana, criador e criatura da própria cultura, sem a qual, as suas modificações biológicas,
naturais e históricas não seriam possíveis. Esta cultura, constituída por meio da ação
32
transformadora do ser humano o trabalho, compreendido aqui como o processo de
transformação da natureza pelo homem e, consequentemente, do homem pela natureza.
Do ponto de vista humano, é no corpo onde estão expressas todas as regras,
normas, padrões culturais, sentidos e significados, símbolos e ritos. É por ele que
somos identificados e é nele que o ser humano se distingue por “[...] uma postura
bípede, um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido” (Este refrão
é o mote principal do filme Ilha das flores, o qual sugerimos que seja assistido. ILHA
das flores (1989). Cineasta: Jorge Furtado Gênero: Comédia/Curta-Metragem.
Tempo De Duração: 13 Min. Disponível em: http://video.google.com/videoplay?do
cid=5310352391555601366#.).
Para refletir melhor sobre o corpo, passaremos então a uma outra discussão a respeito
das concepções de corpo presentes na história.
Não se pode afirmar que o debate sobre o corpo seja recente. A discussão sobre o
que ele seja se manifesta na filosofia, em várias ciências como a biologia, a sociologia,
a antropologia, em diferentes formas de reflexão e ainda, vem sendo discutido de
forma mais significativa na educação física brasileira desde os anos de 1980.
Refletir sobre o corpo é pensar a série de relações estabelecidas por ele, tendo
como referência, a maneira de ser e estar presente na face da terra, procurando
entender as analogias do corpo de cada pessoa com outros corpos, submetido às
suas condições biológicas, ao mesmo tempo em que apresenta as suas condições
sociais, filosóficas, religiosas, científicas, entre várias outras dimensões da vida
humana com condições de serem citadas. O corpo é por isso um objeto de estudo
interessante para ser pensado, discutido e analisado sob óticas diferentes. Assim
sendo, pretendemos subdividir essa discussão em três elementos centrais. O
primeiro tópico está vinculado a algumas das suas concepções presentes na filosofia
e na sociologia, o segundo, a suas percepções e construções sociais e finalmente, o
trato da educação física sobre o corpo nos últimos anos.
33
concepções de corpo é interessante fazer duas separações sobre esta temática: a
distinção entre o organismo e o corpo.
Neste caso, podemos ainda dizer que o corpo é um dado e um produto. Para
explicar melhor, é possível afirmar.
34
Os filósofos, ao verem sua alma presa ao corpo e obrigados a apreciar as
coisas por intermédio do corpo, como se fosse através de um cerca ou
prisão e não por ela mesma, ao que fazem com que a alma, acorrentada,
ajude a apertar seus ferros, ao reconhecerem que a filosofia vem se apossar
de sua alma nesse estado, consolam-na suavemente e trabalham em
liberdade fazendo-a ver que os olhos do corpo estão repletos de ilusões,
bem como seus ouvidos e todos os outros sentidos, e a advertem que não
os utilize mais do que exige a necessidade [...] (PLATÃO, 1999, p. 149).
[...] compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar,
nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a
alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e,
mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse
ela não deixaria de ser tudo o que é (DESCARTES, 1973, p. 47). (Grifo
nosso)
35
física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes
significa apenas que a natureza inter-relaciona consigo mesma,
já que o homem é uma parte da natureza (Marx, 2002, p. 116).
(Grifo nosso)
3. As principais obras de cada autor apontado neste quadro estão indicadas nas referências
bibliográficas deste capítulo.
36
Quadro 1. Categorização Didática das Concepções de Corpo, Formas de Reflexão e
Principais Autores dessas Correntes..
Categoria/ Forma de se Pensar o Corpo Principais
Concepção Autores
Esta é provavelmente a tendência mais
Sócrates5, Platão,
clássica da filosofia. Aqui o corpo é sempre
Santo Agostinho,
comparado com a alma, devido à sua con-
Corpo da Alma São Tomás de
dição de finitude face à infinitude da alma,
Aquino,
ou ainda como a sua prisão ou motivo de
Descartes
pecado e de não evolução da alma.
Nesta perspectiva o corpo é visto apenas
Corpo de Si Mesmo pela sua existência. Dessa forma, ele é Descartes,
(Corpo Próprio) tratado como máquina ou como elemento La Mettrie
meramente biológico.
Nessa concepção normalmente o corpo é
visto em relação com o mundo que o cerca
ou com a natureza, entendida por sua
dimensão histórica e, portanto, vinculada às
Merleau-Ponty,
Corpo com o construções e transformações pelo trabalho
Foucault, Hegel,
Mundo/Natureza e por suas determinações sociais. Muitas
Marx e outros.
vezes ele se aproxima de concepções exis-
tenciais, pensando o corpo pela sua relação
com outros seres humanos, constituindo
assim a sua subjetividade.
Nessa perspectiva o corpo é visto por duas
possibilidades. A primeira passa pela pers-
pectiva de que o corpo como algo natural/
cultural pode ser manipulado por uma série
de recursos ligados à biotecnologia como
Marzano-Parisoli;
Corpo sem o Corpo as próteses e a possibilidade de clonagem.
Le Breton
Por outro lado, existe a defesa de o corpo
não ser um componente material, empírico,
mas uma categoria, um objeto de estudo,
pois, o que existe são homens e mulheres e
não corpos.
Fonte: Adaptado de Baptista e Vilarino Neto, 2014.
necessidades da organização social da produção, a qual tem por sua vez, o objetivo de
atender as necessidades de cada pessoa e/ou grupo.
A necessidade de se propor padrões de beleza, produtividade e habilidades, sempre
aconteceu na história da sociedade. Todavia, este movimento de determinação do
ANTROPOLOGIA DO CORPO
modelo de corpo, gerando dessa maneira percepções distintas sobre o mesmo, nunca
atingiu os patamares da sociedade atual. Este processo é facilitado pela utilização dos
diferentes meios de comunicação de massa (mídia), a qual, transmite informações
5. De maneira geral, Sócrates não deixou obras escritas. Muito do seu pensamento é obtido
através das obras de Platão, provavelmente, o seu discípulo mais importante..
37
precisas, sem que as pessoas percebam claramente as mensagens que estão recebendo,
facilitando dessa forma, a assimilação das mensagens e ideias como se fossem fruto da
inteligência de cada ser humano isolado.
Desse modo, mais importante do que identificar os modelos e as características
consideradas perfeitas para o modo de produção atual como a juventude, a beleza,
a magreza, a força, a pele branca, os cabelos escorridos, entre outros como são
anunciados por autores como Hasse e Goellner (HASSE, M. Branca, limpa e alinhada:
a ressignificação da natureza no processo de transformação do corpo feminino (1938-
1972). In: GRANDO, B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura: práticas sociais e
maneiras de ser. Ijuí: Ed. Da Unijuí, 2009. p. 53-73; GOELLNER, S. V. A Produção de
corpos hígidos: atividade física, saúde e nacionalismo no Brasil no início do século 20.
In: GRANDO, B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura: práticas sociais e maneiras
de ser. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2009. p. 75-92), estão os motivos que levam a essas escolhas.
Do ponto de vista social, se formos identificar os fatores sociais responsáveis
por esses processos, encontramos no limite as relações de trabalho. Isto se justifica
pelo fato de ser o trabalho um componente constitutivo do ser humano, responsável
pela elaboração do corpo da consciência e pela consciência do corpo, haja vista
a impossibilidade de separação do corpo e da consciência humana como
elementos distintos.
Nas condições atuais, o trabalho possui características distintas de outros
momentos históricos, entre eles, o fato de o trabalho ser assalariado, alienado e forçado.
(Para maiores detalhes, vejam: MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. São
Paulo: Global Editora, s.d. e; MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
São Paulo: Martin Claret, 2002).
O trabalho assalariado é caracterizado por uma relação mercantil estabelecida
entre um patrão, dono de uma empresa qualquer, que funciona com uma determinada
quantidade de trabalhadores. Para poder funcionar então, é necessário ao patrão pagar
pelo tempo de trabalho do seu empregado. Destarte, a relação de compra do trabalho,
pelo patrão, e venda do tempo de trabalho, pelo funcionário, é realizada de forma livre
por ambos. O patrão pode oferecer um determinado valor por hora trabalhada e cabe
ao funcionário definir se aquela quantia é adequada ao labor a ser realizado ou não.
Contudo, de maneira geral o trabalhador não consegue obter o salário pretendido
tendo em vista, a classe dominante nessa relação ser a dos patrões.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Quanto ao trabalho ser alienado, podemos dizer que o mesmo se torna alienado
quando é transferido para outros, ou seja, quando se vende a força de trabalho e, junto
com ele o fruto (produto) do trabalho. Assim, tudo o que o trabalhador produz não é
mais dele, mas, do patrão.
Esse primeiro processo (perda do produto), é acompanhado por outros três
processos. O passo seguinte é o trabalhador não fazer mais o trabalho do modo que
deseja, mas de acordo com as instruções do patrão (perda do controle do processo),
38
assim, se avança para o momento seguinte. Como o funcionário não é dono do seu
produto e não controla o processo, ele não se vê como ser humano, mas como um
apêndice (peça) da máquina – o seu trabalho.
Logo, se a pessoa não se reconhece como sujeito, mas como máquina, o trabalhador
passa a ver as outras pessoas não como seres humanos, mas como máquinas. Dessa
forma, as relações entre as pessoas passam a ser vistas como relação entre máquinas,
importando apenas as características quantitativas das relações (Alguns exemplos:
quantas aulas um professor dá por dia, quanto o aluno tira na prova, que distância se
consegue saltar, em quanto tempo se corre 100 metros, quantas pessoas eu beijo na
balada de sábado à noite).
No final das contas, os indivíduos presentes em uma dada sociedade não são mais
seres humanos, mas máquinas. Não são mais sujeitos, mas objetos, coisas. Assim, os
seres humanos são reificados (transformados em coisa).
Finalmente, o trabalho realizado, pelos motivos apresentados acima, não é feito de
acordo com o interesse, o tempo e os procedimentos planejados pelos trabalhadores,
mas conforme as normas e as regras ditadas pelo patrão. Portanto, o trabalho não é
mais uma ação livre, mas trabalho forçado. Por isso, as pessoas tem a sensação de não se
realizarem e alcançarem a felicidade durante o trabalho (onde ela deveria formar a sua
consciência de maneira plena), porém, forçado, tornando-se fruto de frustração, apatia
e, em alguns casos, doenças e morte.
Contudo, qual é a relação de toda esta construção social com a determinação
do modelo de corpo e os padrões de beleza e mesmo de saúde da sociedade?
De certo modo, a noção de saúde só como ausência de doenças, e de beleza como força,
magreza e juventude, entre as outras já mencionadas, tem como fundo, a perspectiva
da produtividade. Dessa maneira, os corpos para serem considerados ideais, para cada
coisa, devem atender a essas exigências. Quanto mais próximo o modelo do corpo
de cada um do padrão da sociedade atual, mais valorizado ele é, pois, o corpo nesse
modelo de sociedade, tornou-se uma mercadoria como outra qualquer.
Por isso, tendo como ponto de partida, o valor das mercadorias de uma forma em
geral, o valor estabelecido para o corpo, enquanto tal, é o fetiche (Para maiores detalhes,
veja: MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996, v. 1. Principalmente, o
Capítulo 1 – a Mercadoria): um valor irreal, sem base material que esconde o valor real
– o tempo de trabalho humano necessário para a produção de uma mercadoria, com
característica fantasmagórica.
Todas essas determinações da sociedade constroem os dois elementos centrais
ANTROPOLOGIA DO CORPO
apontados neste tópico. Por um lado, permite às pessoas elaborarem a sua percepção de
corpo belo, saudável, ideal, entre outras características, uma vez que, estas características
são transmitidas pelos processos educativos ocorridos nas diferentes estruturas sociais.
Por outro, esse processo de educação usa diferentes estratégias de disseminação
dos valores e normas estabelecidos (como a mídia já citada), assim como, são adotadas
39
estratégias para a construção do modelo e habilidades do corpo sugeridas para cada
sociedade. Essas características são constituídas com base na alimentação, nas práticas
higiênicas e finalmente, pelas diferentes práticas corporais, objeto diretamente
relacionado à educação física. Dessa forma, este campo de conhecimento acadêmico
estabelece uma série de práticas e maneiras de intervenção sobre o corpo, para que ele
alcance os objetivos propostos pela sociedade.
40
Quadro 2. Relação entre Educação Física e o Corpo.
Relação entre a
Educação Física Período Histórico Visão do Corpo pela Educação Física
e o Corpo
A Educação Física encara o corpo como um
elemento biológico, sem nenhum outro tipo
Educação Física Do Século XIX até de relação. Cabe à Educação Física melhorar
“Médica” os anos de 1960 as habilidades do corpo, a sua saúde e em
alguns momentos tem como meta discipliná-
lo e prepara-lo para a guerra.
O corpo é visto como uma máquina.
O principal objetivo da Educação Física
é aprimorar o seu nível de desempenho, seja
Final dos anos de para a prática esportiva, seja para a saúde.
Educação Física
1960 até o início Não ultrapassa a percepção biológica da
“Tecnológica”
dos anos 1980. perspectiva anterior, mas tem como diferença
central a preocupação, com o uso das
tecnologias educacionais e o aprimoramento
da aptidão física.
Aqui a Educação Física atinge uma condição
contraditória em relação ao corpo. Por um
lado, mantém em certas tendências a preo-
cupação com os componentes biológicos, de
rendimento esportivo, de saúde biológica e
acrescenta um novo fator: a estética, a qual
De Meados dos
Educação Física acompanha o desenvolvimento das acade-
Anos de 1980 até
“Dialética” mias de ginástica. Por outro lado, os estudos
os dias atuais.
passam a denunciar este tipo de trato com o
corpo, o seu disciplinamento, e a necessidade
de situá-lo como sujeito do ponto de vista his-
tórico e social, apontando para a necessidade
de emancipação e autonomia corporal.
41
No universo das práticas corporais enquanto desenvolvemos novas tecnologias,
avançamos no conhecimento biológico e social, mantemos a mesma compreensão de
corpo em perspectivas técnicas como indicam alguns estudos (Para maiores detalhes,
vejam os estudos de SILVA, Alan Marques da; FERREIRA, Juliano Vinhas. Análise
da concepção de corpo presente no discurso dos docentes da FEF-UNICAMP:
primeiras aproximações. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO
ESPORTE, XIII, Caxambu, 2003. Anais... Campinas: CBCE, 2003. [CD-ROM] e
de; SILVA, Alna C. et al. Ainda uma questão técnica: o corpo na visão de graduandos
em educação física. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE,
XIII, Porto Alegre, 2007. Anais... Campinas: CBCE, 2007. [CD-ROM]).
Esta seção explora o contexto cultural e social para dialogar com os referenciais
teóricos das Ciências Sociais, partindo da ótica ocidental urbana, para pensar,
vivenciar e expressar as relações humanas. Tais obras apresentam dois pontos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
42
nas mentes, retratando no corpo seus contrastes. Tais códigos, simbologias, normas
e regras podem ser identificados mediante aceitação e rejeição de determinadas
ações, (re)elaborados de forma individual e coletiva. Um exemplo disso pode ser a
aprovação ou reprovação em levar o cachorro para passear em ambientes públicos
e não limpar seu excremento, tal ato pode gerar, em determinadas cidades do país,
olhares e comentários de desaprovação, bem como uma multa, ao mesmo tempo, em
outros locais, a mesma ação pode ser imparcial, sem qualquer tipo de manifestação.
Para trazer mais elementos de identificação e análise sobre as construções e
(re)elaborações sociais, parte-se da perspectiva teórica defendida por José Carlos
Rodrigues (1986), do corpo como representante de características próprias de uma
determinada sociedade, em que a linguagem se manifesta por codificações de grupos
sociais particulares. Em suas palavras...
43
e corpo nas demais classes sociais. O autor afirma que toda manifestação
corporal “externa” (postura, gestos, vestuários, expressões faciais) é inculcada
nos indivíduos por meio de tratados, livros e poemas que descrevem “o quê”
e “como” deveria ser feito ou não, o que era certo e errado, como se portar,
agir, sentar, andar, comer, expressar-se e, sobretudo, como conter os impulsos
“naturais” do ser humano.
Esses tratados trouxeram um novo olhar sobre o comportamento,
inaugurando uma nova forma de relacionamento entre as pessoas e interação
com o mundo. Nesse momento, novas concepções foram construídas e levaram
ao desenvolvimento de sentimentos específicos dessa formação social como a
vergonha, a repugnância e o nojo. Estabelecendo um novo modelo de relações
humanas, “[...] aumenta a compulsão de policiar o próprio comportamento”
(ELIAS, 1990, p. 93). Assim, o controle das emoções e impulsos revela, nesses
poemas, tratados e livros, o intuito de padronizar e modelar o comportamento
humano por meio de uma valorização da razão.
44
A repressão de desejos é internalizada de tal forma que hoje isso nos parece
um sentimento “natural” interno, que opera o nosso autocontrole, mesmo que seja
contra nossos desejos conscientes. A razão lentamente modela os hábitos e instintos
“primitivos”, fazendo com que o ”[...] código social de conduta grava-se de tal forma no
ser humano, que se torna elemento constituinte do indivíduo” (ELIAS, 1990, p. 189).
O privilégio da razão e das atividades intelectuais sobre o corpo dicotomizou o ser/
homem em mente e corpo. Nessa divisão, a parte intelectual, a razão, é responsável
pelo controle e domesticação do corpo, ou seja, pela construção do homem civilizado.
A história dos corpos é uma construção simbólica e para entendê-la é preciso
visualizar como o corpo tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas
culturais particulares. Segundo Porter (1992), com base nos valores da modernidade,
dentro da cultura tradicional européia, a divisão hierárquica do corpo assume a
mente em uma posição superior ao corpo físico. Tal relação de subordinação ganha
reforço no cristianismo, visto que o corpo era um representante do desejo, portanto
fonte de ação pecaminosa. A mente assumia a responsabilidade de controlar atitudes
sem pudor. Desse modo, a ciência desenvolve neuroses e rotula comportamentos,
oferecendo novas racionalidades e padrões de ações.
Ao destacar a importância do corpo nos diversos sistemas sociais, dentro da
cultura tradicional européia, as pesquisas de Porter (1992) revelam significados
presentes entre mente e carne, ou seja, a superioridade estabelecida entre mente
e corpo, entre os valores morais, culturais e éticos estabelecidos entre as duas
instâncias. Dentro da visão religiosa, o autor apresenta o cristianismo como o maior
representante, o qual mostrava o desejo e o prazer como um pecado, portanto o corpo
era visto como fonte de ação pecaminosa, e a mente assumia a obrigação de controlar
atitudes sem decência. Contudo, ao corpo e à mente são atribuídos deveres cruciais
“[...] para a avaliação do homem como um ser racional e moral no interior de sistemas
e teologia, ética, política e jurisprudência, tanto teóricos quanto práticos” (PORTER,
1992, p. 304). Dessa maneira, o corpo, visto como produto e produtor de emblemas
culturais, estabelece significados múltiplos, facilitando a compreensão de diferentes
meios punidores e repreendedores da linguagem corporal, no decorrer dos tempos
em diversas culturas.
45
preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso” (FOUCAULT,
1979, p.229-230).
46
reprodução e animalidade. Assim, como já sinalizado anteriormente, a parte superior,
a cabeça, assume uma posição favorável, visto que expressa a marca, a razão, que nos
diferencia dos animais. Os autores evidenciam a questão da segmentação corporal
atribuída a uma visão depreciativa do uso do corpo, bem como uma valorização da
mente, retratando a dualidade corpo/mente. Diante disso, pode-se compreender que
"[...] o corpo simboliza a sociedade, e os poderes e perigos atribuídos à estrutura social.
Esta encontra-se simbolicamente impressa no corpo e a atividade corporal nada mais
faz senão torná-la expressa” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 32).
Para ter um exemplo de povos que não se organizam sob o Estado, nem têm
registro escrito, traz-se o estudo de Pierre Clastres (1990, p. 131) que descreve rituais
iniciatórios, que se valem de tatuagens para imprimir a linguagem social sobre o
corpo dos indivíduos. Desse modo, símbolos e regras são registrados por meio de
marcas corporais, impressas pelo sofrimento, sendo a tortura um ensinamento para
uma ordem social igualitária, "[...] e essa lei não separada só pode ser inscrita num
espaço não-separado: o próprio corpo". Portanto, o silêncio no ritual da dor expressa
pertencimento ao grupo, e as cicatrizes deixadas nos corpos são lembranças de uma
identidade social.
O corpo, tanto nas sociedades primitivas quanto nas consideradas "civilizadas",
é objeto de apropriação e dominação, as técnicas corporais utilizadas modificam
de uma para outra, mas os significados impressos no corpo são coletivamente
construídos. Nesse sentido, o controle permanente sobre os corpos, é descrito por
Michel Foucault, em processos direcionados para o rendimento, exigências de uma
sociedade moderna e industrializada, que preserva interesses de um determinado
grupo, desenvolvidos num sistema estratificado e hierarquizador.
Para melhor compreender as dinâmicas de poder impressas no corpo, traz-se a
introdução dos padrões de condutas e hábitos corporais contemporâneos decorrentes
do surgimento do Estado, que tinha o interesse de controlar, vigiar e punir atitudes
"não civilizadas", portanto, não aceitáveis dentro de uma nova estrutura social e
moderna (ELIAS, 1990). A contribuição científica, com seus mecanismos ideológicos
utilizados para facilitar as relações de dominação e dominado, é referenciada por
Foucault (1990), por meio de recursos e técnicas de saber e poder. O autor afirma
que, desde o nascimento, existe o controle exercido pela família, em seguida a escola,
o trabalho, a instituição religiosa, as ruas, os momentos de lazer etc, ou seja, é exercido
um controle permanente.
A instauração e a contemplação do poder sobre o corpo podem ser introduzidas
ANTROPOLOGIA DO CORPO
de várias formas. Algumas delas podem ser expressas nas ginásticas, na valorização de
formas bem definidas da musculatura, na concepção de belo, ou seja, na inserção de
padrões. Entretanto, inserido nessa lógica de imposição de poder, existe uma reprodução
de saberes que sofre alterações no decorrer do tempo, tanto nos instrumentos utilizados
como na intensidade de suas técnicas, porque esse corpo produz respostas, já que não
47
se encontra num estado de morbidez, o que gera mudanças e indica outros caminhos.
Contudo, novos mecanismos de controle são ativados e transformados. Foucault
(1979) ressalta em seu estudo a importância desse poder ou das diferentes formas de
manifestação no desenvolvimento de valores, símbolos, normas e leis no nosso contexto
social. O autor retrata a transmissão desse saber-poder por meio de mecanismos que
não estão explícitos, mas interiorizados e naturalizados dentro de cada um, fincados na
cultura e presentes no movimento humano.
O corpo, como propício a excessos, tem que ser policiado por tempo integral,
vigiado, controlado e manipulado, dentro dessa moralidade social imposta.
Na intenção de assegurar a “ordem social”, o corpo se torna cada vez mais dependente
de condutas punitivas e repressoras, segundo uma ordem social instaurada no corpo
para este ser dócil e eficiente.
O controle, segundo Foucault (1975), passou a ser exercido e vigiado,
principalmente nos séculos XVIII e XIX, individualmente, por meio de códigos
que operam sobre os corpos a todo o momento. Dessa forma, moldes de controles
disciplinares foram implantados nas escolas, nos discursos pedagógicos, na
permanente vigilância médica como partes integrantes de uma linguagem social
manipuladora, como forma de impor hierarquias. De acordo com o autor, as famílias
foram grandes colaboradoras para a reprodução de corpos submissos, repreendidos e
fiscalizados. A microfísica do poder, termo utilizado por Foucault (1975) para definir
as diversas relações de disciplina e eficiência expressas no corpo, visava à qualidade
do tempo, como rendimento e obediência. Ou seja, um corpo disciplinado torna-se
um corpo útil, dócil e obediente. Para o filósofo, os métodos utilizados para facilitar o
controle são vistos com clareza nos exercícios de técnicas disciplinares para reproduzir
dominações. Com isso, constantes punições e controles fazem parte de um processo
inacabado de mecanismos de poder, que vê no movimento humano uma dinâmica
rica e fértil de sujeições e contribuições.
48
o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico” (idem, p.148-149).
Assim, “[...] o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas
essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas.
As relações de poder são, antes de tudo, produtivas” (idem, p. 236).
49
essencial para a modernidade. O que pode explicar em parte a resistência à emoção,
à repressão, aos desejos e sentimentos, bem como as couraças interiorizadas como
fatores fundamentais para a organização e desenvolvimento de amarras sociais, que
constituem e permanecem atuando no sistema.
A ciência se torna importante fonte de controle, já que engloba as vontades, os
desejos, os prazeres, as emoções de maneira global, explicando-os. Assim, diferentes
manifestações ou inquietações eram respondidas como efeitos de uma patologia.
Portanto, não pertencer a um determinado padrão imposto pelos moldes científicos
é corresponder à "anormalidade". Por trás dessa linguagem "racional", estaria uma
posição autoritária e totalitária da ciência.
fundamental de todas essas técnicas consiste em fazer adaptar o corpo a seu emprego”
(MAUSS, 1974, p. 232). Desse modo, os corpos carregam consigo um sistema de
montagens simbólicas expressas nas ações corporais.
50
não observados, e dos quais é necessário fazer a observação, compõem a
educação física de todas as idades e dos dois sexos” (MAUSS, 1974, p. 221).
“Uma nova cultura do corpo, que não deve ser mais buscada nos livros de
civilidade, na expressão atenta das “belas maneiras” da qual o espartilho
é ao mesmo tempo a garantia e a testemunha, e sim nos livros de higiene,
no recenseamento e na declinação de forças que apenas o exercício pode
aumentar e convocar. Da fórmula física à teatralização das atitudes, a razão
domina a natureza” (VIGARELLO, 1995, p. 32).
51
expressa modelos a serem seguidos, condutas de saúde e designa a auto-culpa pelo seu
fracasso e sua manutenção. Em tal consideração, o médico assume papel fundamental
para o tratamento e manutenção dessa beleza, pois a falta dela é tida como uma
doença. Assim, feiura se associa à degeneração da raça, fruto de uma vida doente,
sem cuidados e vaidades. Portanto, o bonito e o feio são construções científicas que
associam o aparelho reprodutor feminino com preocupações de higiene e limpeza.
Enfim, instaura-se uma nova consciência corporal, regida por um sistema padronizado,
que necessita de consumidores.
Com base nos pressupostos apresentados por Sant’Anna, Del Priore (2000)
reforça que na nossa cultura o belo se associa à juventude e saúde e o velho, à doença, à
pessoa que não se cuida diariamente, ressalvando que os avanços científicos e médicos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
52
usar o nosso dinheiro, sentir bela e amada ou feia e ridícula, conseguir bons empregos
e se relacionar com os nossos pares.
Algumas manifestações sociais, geradoras de movimentos culturais, como
revolução sexual, a contracultura6 dos anos 60 e o feminismo dos anos 70, tentaram
derrubar hierarquias, provenientes de complexos sistemas, criados para manipular
o meio social. Contudo, diversas fontes de mudanças, pensamentos e estudos
redimensionaram focos de resistência, o que levou algumas ciências a travar diálogos,
inovar suas linguagens e simbologias relacionadas ao corpo. A complexa história do
corpo denuncia mecanismos de controle, fazendo dele um elemento de comunicação.
Portanto, ver o corpo nas suas impressões, a forma como ele se manifesta nas suas
particularidades, bem como suas transformações e inquietações no decorrer dos
tempos, gerou reflexões e contestação.
As expressões do corpo também podem ser anunciadas por meio de uma
corporeidade liberada, prazerosa, sob um excessivo culto ao corpo, por exemplo,
entre outras manifestações. Quanto à origem de uma cultura visual do músculo,
Jean-Jacques Courtine (1995) retrata os “body-building” na década de 80: “atletas“
que possuem um excessivo culto ao corpo, aos músculos e às formas bem definidas.
Esse grupo, composto por jovens, que adquiriram sucesso material e reconhecimento
social, pode ser facilmente identificado através do inchaço muscular e da excessiva
exposição corporal. O autor acredita em alguns fatores desencadeadores desse novo
estilo de vida, que podem estar vinculados à espetacularização do esporte na mídia,
brinquedos, revistas, filmes voltados para a cultura do corpo, os quais exerceram forte
influência para esse culto “desvairado”. Os valores e conceitos lançados com excessivo
mercantilismo na sociedade tiveram efeitos inesperados, ou seja, o consumo sem
controle gerou consequências. Tais manifestações apóiam-se no medo de envelhecer,
morrer, amolecer, desfigurar, desenrijecer, ou mesmo na descentralização da figura
masculina devido à ascensão da figura feminina.
53
Sob a vertente de uma linguagem corporal, os exercícios físicos e o esporte,
durante o século XIX e XX, desempenharam um papel central nessa relação de
imagens do corpo e um ideal da aparência corporal, fazendo do corpo um mercado
lucrativo. De acordo com Courtine (1995), a ideologia puritana e a ascensão do modo
de vida capitalista foram veículos-chefe na condução desses valores que induzem
muitas pessoas, consumidoras e praticantes a aturarem a dor em prol de uma estética
muscular rígida, dura, exposta e visível. A recompensa está tatuada em seu corpo, com
a exposição de seus músculos, uma verdadeira roupagem passível de admiração.
54
exercida sobre outras pessoas, a qual possibilita obter parceiros”. A associação de
beleza e mulher, por exemplo, é uma constante histórica, como se beleza fosse a
essência definidora das mulheres. Desde pequenas interiorizam a necessidade
de ser belas, até o ponto que sua identidade como mulher depende do grau de
beleza reconhecido.
Os referenciais apresentados exploram o belo, em nossa sociedade, sempre
relacionado à juventude, ao corpo novo e rígido, sem rugas, cicatrizes, sem marcas
e manchas, exigindo cuidados diários e policiamento constante, bem como
sentimentos de culpa e responsabilidade nos excessos e marcas adquiridas. Em
outras palavras, tal rearranjo que se faz com o próprio corpo pode indicar a busca
de uma nova identidade, muito próxima da vendida nos meios de comunicação,
como forma de obter um reconhecimento social e porque não mencionar o
investimento na felicidade. A busca parte de necessidades (re)elaboradas em
diversas linguagens, anunciadas em invasivas formas de intervenção cirúrgicas
(silicone, lipoaspiração, lifting, minilifting, peelling, rinoplastia, blefaroplastia, botox)8,
no uso de medicamentos, na aplicação de anabolizantes, em extenuantes exercícios
físicos e severas dietas, como forma representativa dessa dedicação despendida
ao corpo, que extrapolam a cartilha higienista ensinada nas escolas, ganhando
formas plásticas na mídia e, algumas vezes, manifestando-se de forma drástica na
linguagem corporal cotidiana das mulheres9.
A temática tem merecido atenção de diversas áreas de conhecimento, visto
suas implicações na excessiva e diária preocupação com a aparência física. Deixar
de comer, fazer dietas sem nenhuma orientação especializada, realizar exercício
físicos, extrapolando os limites de cargas, para obter uma musculatura inchada e
torneada, assim como se submeter às intervenções cirúrgicas para esculpir a forma
física, são fatos frequentes em nosso convívio social e apresentados em diversos
meios de comunicação (televisão, outdoor, rádio, jornais, revistas, dissertações,
teses, livros).
A intolerância a flacidez e ao excesso de gordura, quando analisada sob o
discurso popular, por meio de uma mensagem “só é feio quem quer”, reforça a
associação beleza/saúde/potência, já apontada por Joana Novaes (2006) em
seu livro, “O intolerável peso da feiúra”, ao discutir uma ‘educação reguladora
dos corpos’, licenciada pelo coletivo. Portanto, pertencer, ser ou estar belo em
nossa sociedade, demanda tempo e investimento cotidiano, tanto no uso de
ornamentos, vestimentas, calçados, maquiagem, cremes, exercícios e intervenções
ANTROPOLOGIA DO CORPO
8. Para saber mais sobre a indústria da beleza e formas de intervenções, ler Alexander
Edmonds (2002).
55
invasivas no corpo, como na ingestão de nutrientes, remédios e na atenta vigia da
falta de atenção e cuidado, interpretados como desleixo, preguiça e, muitas vezes,
doença. Expressões desse investimento podem ser traduzidas em elogios, maiores
oportunidades de se relacionar e melhores chances no mercado de trabalho10.
O cuidado de si, relacionado à aparência corporal, nos remete a novos
questionamentos ou à busca de novos paradigmas, como a compreensão da dinâmica
social a que estamos inseridos, as veiculações de imagens corporais que as mídias
impressas e eletrônicas transmitem diariamente, a racionalidade técnica empregada
na gestão do corpo, a associação de beleza e hábitos saudáveis com felicidade, bem
como a dependência mascarada por símbolos de independência diária e contínua.
O corpo em si exerce poder.
A instauração do poder no corpo, como parte da visão fragmentada de ser
humano, normatiza linguagens e comportamentos, de modo a legitimar um padrão
estético que atrela saúde aos discursos das formas e curvas corporais delineadas e
delgadas, sendo a disciplina da forma física a vitrine da lógica do corpo como capital.
A cultura corporal ocidental pode ser interpretada como expressão máxima dessa
interface corpo, cuidados e identidade feminina.
O corpo como identificador e marcador de determinados grupos, torna-se
símbolo das diferenças sociais. Mirian Goldenberg e Marcelo Ramos, sob o título
“A civilização das formas: o corpo como valor”, problematizam a moral da “boa
forma”, por meio de um recorte das camadas médias do Rio de Janeiro, analisando a
constituição de certa virtude humana ao corpo rígido, forte e definido em músculos.
Os estudiosos levantam três possibilidades que articulam-se entre si:
[..] a de insígnia (ou emblema) do policial que cada um tem dentro de si para
controlar, aprisionar e domesticar seu corpo para atingir a “boa forma”, a de
grife (ou marca), símbolo de um pertencimento que distingue como superior
aquele que o possui e a de prêmio ( ou medalha) justamente merecido pelos
que conseguiram alcançar, por intermédio de muito esforço e sacrifício, as
formas físicas mais “civilizadas (GOLDENBERG; RAMOS, 2002, p. 39).
10. RABELO, C; MAGALDI, M. Quem disse que beleza não põe mesa? Revista Isto É, ed 2037,
19 de nov.de 2009.
56
Por entendermos e concordarmos com Novaes (2006) que o culto ao corpo se
atualiza nas diferentes classes sociais de forma semelhante, circunscrita em dispositivos
normatizadores presentes nas representações das manifestações corporais, terminamos
o texto refletindo sobre o discurso contemporâneo da obtenção e manutenção de
uma vida saudável, que ao articular alimentação balanceada com formas simétricas
e rígidas, circunscreve no corpo que o acúmulo, representado no excesso de gordura,
é observado e mensurável ao corpo improdutivo, ao descuido e falta de higiene.
A Educação Física e os esportes, ao longo do século XX, foram importantes campos
científicos para educar o corpo e colocá-lo em movimento, obtendo legitimidade no
campo da higiene pessoal e da coesão social, por meio da “[...] profilaxia, quando bem
dirigida, fortifica e disciplina o caráter e o corpo dirigindo também para diversões sãs”
(SOARES, 2003, p. 129).
ANTROPOLOGIA DO CORPO
57
Referências
58
HEILBORN, M. L. Entre as tramas da sexualidade brasileira. Estudos
Feministas, Florianópolis, n.14, v. 1, p. 43-59, jan./abril, 2006.
Sugestões de Leitura
59
SABINO, César. Musculação: expansão e manutenção. In: GOLDENBERG,
M. Os Novos desejos: das academias de musculação às agências de
encontros. Rio de Janeiro: Record, p. 61-103, 2000.
Entrevista
Filmes
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Flor do Deserto
A onda
Entre os muros da escola
A morte inventada – alienação parental
A fita branca
Ensaio sobre a cegueira
60
4. Antropologia do corpo e Educação Física
61
os dotes de escritor seriam inteiramente desprezíveis dentro de um campo de futebol.
Igualmente, os motivos que fazem determinada pessoa ser reconhecida e celebrada
em dado contexto, não necessariamente lhe garantirão valor e reconhecimento em
todos os contextos possíveis. Assim, entre estudantes que se preparam para os exames
do vestibular, por exemplo, é possível que a capacidade de dedicação aos estudos, de
resolução de problemas ou de boas notas seja um elemento valorizado, o que acaba
por reforçar esse comportamento entre os membros daquele grupo. De maneira
semelhante, mas em sentido oposto, entre delinqüentes juvenis, a coragem para
pequenos crimes audaciosos pode ser a atitude valorizada, o que também tende a
reforçá-la no fim das contas.
Este é um tipo de implicação do modo de olhar o mundo de uma perspectiva
antropológica que a reflexão sobre Educação Física deveria considerar com muita
seriedade, pois, o seu papel educativo bem poderia ser o de tentar criar atmosferas
capazes de propugnar e reforçar determinados valores como desejáveis. Em academias
de ginástica onde a saúde e o bem-estar sejam os comportamentos, atitudes e escala
de valores reconhecidos pode estimular a incorporação de atitudes favoráveis a tais
comportamentos, bem como a valorização de corpos grandes, “sarados”, “trincados”
pode acabar por estimular o uso de drogas para o alcance dessas finalidades.
Quanto mais severo e rigoroso os rituais para iniciar um indivíduo no interior
de determinado grupo ou instituição, mais fiel e convicta tende a ser a adesão e o
comprometimento deste indivíduo aos valores e regras do seu grupo. Você provavelmente
já deve ter assistido ao filme Tropa de Elite (nos referimos aqui ao primeiro). Se não o fez
ainda, tente fazê-lo agora. Em certo momento, a locução em off do coronel Nascimento,
personagem principal do filme interpretado por Wagner Moura, explica e justificativa
para o espectador a razão do curso de treinamento daquela tropa de policiais ser tão
exigente. Segundo o coronel Nascimento, o Batalhão de Operações Especiais parece
uma seita. Ainda segundo ele, parte da eficiência e do sucesso do Batalhão justifica-se,
precisamente, por causa desse fanatismo dos seus membros.
Para pensar estratégias capazes de criar atmosferas educativas, é preciso, antes de
tudo, compreender a dinâmica social mais geral na qual esta instituição está imersa.
A atuação pedagógica em Educação Física não se resume a capacidade de ensinar
ou aplicar determinadas técnicas de exercício ou treinamento físico, embora diga
respeito a isso também – não se pode negar. Mas para além disso, sem desprezar isso, é
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
preciso que o professor de Educação Física assuma uma postura de intelectual diante
do mundo. Uma postura de intelectual diante do mundo não se confunde com uma
postura intelectualista diante do mundo. Ou seja, não se trata de abandonar as quadras,
piscinas e ginásios em favor de bibliotecas ou salas de leitura. Uma postura intelectual
diante do mundo significa assumir a responsabilidade de refletir ativa e profundamente
sobre o sentido e o significado das práticas comuns ao universo da Educação Física.
Nesse sentido, o professor de Educação Física deve ser capaz de compreender – de
62
maneira ampla e geral – tudo que está envolvido ao redor e por detrás das práticas
da Educação Física. Ele deve ser capaz, em suma, de organizar, sistematizar, elaborar
e difundir idéias sobre o sentido social das práticas relacionadas à Educação Física.
Portanto, sem a necessidade de se tornar sociólogo ou antropólogo, o professor de
Educação Física deve ser capaz de pensar sociológica e antropologicamente.
63
“ir à academia é uma decisão voluntária, mas, logo, o próprio ambiente obriga a treinar
apesar de não se ter vontade” (p. 250).
Portanto, é a construção de um consenso a respeito do papel e do lugar da atividade
física na vida de um indivíduo o elemento que irá prescrever socialmente esta mesma
atividade física como importante, necessária e prazerosa, um dos primeiros elementos
de persuasão para garantir a adesão e a permanência do freqüentador de academias.
É fundamentalmente este o agente capaz de inibir a rotatividade nas academias,
fitando e convencendo o aluno a freqüentá-la regularmente. “O fitness tem sucesso,
sobretudo, quando passa a fazer parte de um estilo de vida, quando passa a ser um
período prazeroso de uma rotina em que se dedica tempo porque isso é considerado
‘normal’” (p. 252).
64
tida como “natural”, ao mesmo tempo em que esportes que a maioria das pessoas toma
como convencionais, poderia também ser vista como “estranha”. Segundo ele:
Muita gente nos olha e pensa que o que fazemos é um pouco estranho. Porém
essa gente não sabe muito sobre o assunto. Apenas poucos entendem como
são estas coisas. É algo natural. Não é mais estranho que subir num carro e
tratar de correr 400 metros em cinco segundos. Para mim, isso é estranho.
Tudo isso quer dizer que a incorporação do hábito da atividade física cotidiana,
indispensável para o sucesso das academias de ginástica, depende da incorporação de
um conjunto de idéias sobre exercícios, saúde e corpo. Pois a academia de ginástica
mobiliza e de certo modo impõe uma determinada concepção de corpo.
Um dos fundamentos da própria possibilidade de dedicar-se aos extenuantes
exercícios reside na idéia de que o corpo é resultado do trabalho árduo e dedicado de
um indivíduo. É algo que lhe pertence, e sobre o que ele pode atuar da maneira que
julgar mais conveniente (é essa forma de compreender o próprio corpo que justifica
ANTROPOLOGIA DO CORPO
intervenções mais radicais como aquelas citadas na primeira seção desse material,
como o implante de chifres). Portanto, uma ideologia individualista e a convicção
de que o corpo é uma entidade a ser manipulada livremente são condições de
possibilidade para as práticas desenvolvidas no interior de uma academia de ginástica.
No caso das academias de ginástica, dedicar tempo e energia a cuidar do corpo,
65
significa dedicar tempo e energia a cuidar de si mesmo, ao mesmo tempo em que se
vive sob a idéia de que um corpo belo é algo a ser conquistado.
Além desse princípio de autoconstrução, a aparência do corpo passa ser visto
também como um atributo de identidade. Isto é, acredita-se piamente que a identidade
de uma pessoa toma forma através do seu corpo, se expressando por intermédio dele.
É a aparência da pessoa, portanto, o primeiro aspecto da sua identidade. Nesse contexto,
o aspecto físico torna-se “uma verdadeira fachada social”, como diz a antropóloga
Stéphane Malysse, que fez uma pesquisa sobre o culto ao corpo no Rio de Janeiro
– incluindo aí as academias de ginástica, lugar privilegiado para essa nova adoração.
A modelação do corpo, ou melhor, a modelação do corpo de uma determinada
maneira torna-se uma espécie de atalho para o sucesso em várias esferas da vida.
Pesquisas já identificaram que pessoas obesas ganham menos do que as magras,
sem mencionar as próprias oportunidades de emprego que se pode ganhar ou perder
em função da silhueta. Atualmente, a obesidade é uma característica classificada como
doença pela Organização Mundial de Saúde, aliás, como epidemia. Assim, a gordura
(e junto com ela, o obeso), vai sendo classificado como desviante (tal como já fora o
leproso ou o doente mental). Nos Estados Unidos, país que sabidamente tem grande
número de população obesa, já se chegou a falar em “gordismo” para descrever o
preconceito contra os gordos, tal como o racismo, o sexismo e o ageísmo. Na Escócia,
conforme noticiado por uma revista semanal, um casal obeso perdeu a guarda dos
filhos, sob acusação de estarem pondo em risco a saúde das crianças.
próprios males. É como se a sociedade dissesse que quem quer ser tratado
com respeito deve emagrecer, quando na verdade todo ser humano merece
ser respeitado, independentemente de seu tamanho”, diz Allen Steadham,
criador de uma ONG que promove a criação de leis para garantir os
direitos dos obesos nos Estados Unidos (VILAVERDE, Suzana. A vida
muito acima da média. Veja, São Paulo: Abril, 11 de novembro de 2009, ed.
2138, p. 114-115. Disponível em: http://veja.abril.com.br/111109/vida-
muito-acima-media-p-114.shtml)
66
Exigências da vida moderna
Anônimo*
* O texto tem circulado na internet sob autoria de Luis Fernando Veríssimo, mas não
conseguimos confirmar tal informação, nem a fonte onde teria sido publicada.
“Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro. E uma
banana pelo potássio. E também uma laranja pela vitamina C. Uma xícara de chá ver-
de sem açúcar para prevenir a diabetes.
Todos os dias deve-se tomar ao menos dois litros de água. E uriná-los, o que con-
some o dobro do tempo.
Todos os dias deve-se tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe bem
o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão). Cada dia uma Aspirina, previne infarto.
Uma taça de vinho tinto também. Uma de vinho branco estabiliza o sistema nervoso. Um
copo de cerveja, para... não lembro bem para o que, mas faz bem. O benefício adicional
é que se você tomar tudo isso ao mesmo tempo e tiver um derrame, nem vai perceber.
Todos os dias deve-se comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para fazer
um pulôver. Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente. E nunca se
esqueça de mastigar pelo menos cem vezes cada garfada. Só para comer, serão cerca
de cinco horas do dia...
E não esqueça de escovar os dentes depois de comer. Ou seja, você tem que esco-
var os dentes depois da maçã, da banana, da laranja, das seis refeições e enquanto tiver
dentes, passar fio dental, massagear a gengiva, escovar a língua e bochechar com Plax.
Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para colocar um equipamento de
som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você vai passar ali várias horas por dia.
Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por dia, mais as cinco
comendo são vinte e uma.
Sobram três, desde que você não pegue trânsito. As estatísticas comprovam que
assistimos três horas de TV por dia. Menos você, porque todos os dias você vai ca-
minhar ao menos meia hora (por experiência própria, após quinze minutos dê meia
volta e comece a voltar, ou a meia hora vira uma).
E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem ser regadas
diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar delas quando eu estiver viajando.
ANTROPOLOGIA DO CORPO
Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para com-
parar as informações.
Ah! E o sexo! Todos os dias, tomando o cuidado de não se cair na rotina. Há que
ser criativo, inovador para renovar a sedução. Isso leva tempo - e nem estou falando
de sexo tântrico.
67
Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero
que você não tenha um bichinho de estimação. Na minha conta são 29 horas por dia.
A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo! Por
exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e escova os den-
tes. Chame os amigos junto com os seus pais. Beba o vinho, coma a maçã e a banana
junto com a sua mulher... na sua cama. Ainda bem que somos crescidinhos, senão ain-
da teria um Danoninho e se sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.
Agora tenho que ir. É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã,
tenho que ir ao banheiro. E já que vou, levo um jornal... Tchau!”
Em parte, a idéia de que o corpo pode ser modulado de acordo com as vontades
explica os desajustes que se tornado cada vez mais freqüente nos nossos vocabulários,
como a bulimia ou a anorexia. Essas doenças, na verdade, expressam o desencontro entre
o corpo que se tem e o corpo que se ter. Este corpo desejado, na maioria das vezes diferente
do que corpo que se tem, deve desenvolver-se em conformidade com padrões estéticos
muito rígidos, para o que a academia de ginástica é um instrumento quase indispensável.
O modelo de corpo apresentado socialmente como ideal é um corpo impossível.
As modelos que os exibem, além de contarem com todo tipo de recursos auxiliares, como
a iluminação, a maquiagem e o photoshop, têm um estilo de vida totalmente dedicado a
este propósito: ter um corpo adequado aos padrões estéticos dominantes. Esses corpos, em
suma, são resultados de uma dedicação extrema, algo pouco tangível para a grande maioria
dos trabalhadores e trabalhadoras, que têm muitos outros compromissos e obrigações, além
de cuidar do próprio corpo ou da própria aparência.
Assim, a dinâmica social como um todo vai reforçando a exigência implacável de se
estar em conformidade a determinados padrões estéticos; padrões estéticos que, na prática,
são inatingíveis. Mais, esses padrões estéticos tendem a ser naturalizados. Basta olhar nas
bancas de jornal e revista as inúmeras publicações que reforçam este modelo. De certo
modo, todos e todas as modelos que pousam para a capa dessas revistas parecem iguais. Essa
uniformização dos corpos, no entanto, não corresponde a diversidade – genética, inclusive
– de constituição física e cultural de sociedade tão complexas como as nossas. O conteúdo
das reportagens, além disso, não é mais que a exaustiva repetição de uma mesma mensagem,
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
quase um mantra: dicas para ter uma barriga firme e forte, “o novo jeito de comer que
elimina a pança”, exercícios inéditos para uma barriga chapada. Porque todos têm que exibir
a mesma aparência? Porque todos têm que apreciar o mesmo tipo de beleza, um único tipo
de beleza? Não será possível que pessoas diferentes tenham preferências diferentes?
Essa uniformização tem ainda mais um efeito perverso, que é o de condenar a eterna
insatisfação aqueles que não podem usufruir das academias de ginástica ou salas de
cirurgia estética.
68
A mídia banalizou a tal ponto a idéia de que o corpo é moldável pela ação
da força de vontade que em toda a sociedade brasileira, das classes mais
desfavorecidas às classes médias e superiores, vigora o paradigma de um
corpo autoplástico. No entanto, entre o desejo e a possibilidade de mudar o
próprio corpo existe uma margem social ligada ao fato de essas práticas de
malhação serem antes de tudo práticas de consumo do corpo. Nem todas as
cariocas têm acesso às academias, pois só as que podem pagar de 140 à 200
reais por mês podem tentar transformar o próprio corpo para se apropriar
das diversas características corporais valorizadas socialmente [...] Todas as
revistas femininas dizem que é preciso força de vontade para mudar o corpo,
mas nunca dizem que também é preciso uma cultura adequada e dinheiro
suficiente. Na luta contra o acaso biológico, ricos e pobres tendem a se
repartir em uma escala social de beleza (MALYSSE, stéphane. Em busca dos
(H) alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca. In:
GOLDENBERG, Mirian. Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do
corpo carioca. Rio de Janeiro: 2. ed. Record: 2007, p. 101-102).
69
Referências
70
HASSE, M. Branca, limpa e alinhada: a ressignificação da natureza no
processo de transformação do corpo feminino (1938-1972). In: GRANDO,
B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura: práticas sociais e maneiras
de ser. Ijuí: Ed. Da Unijuí, 2009. p. 53-73; GOELLNER, S. V. A Produção
de corpos hígidos: atividade física, saúde e nacionalismo no Brasil no
início do século 20. In: GRANDO, B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura:
práticas sociais e maneiras de ser. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2009. p. 75-92
Fontes, 1998.
71
MEDEIROS, Mara. Didática e prática de ensino da educação física: para
além de uma abordagem formal. Goiânia: CEGRAF-UFG, 1998.
72
__________.De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973a: 319-56.
(Coleção Os Pensadores)
ANTROPOLOGIA DO CORPO
73
A POLÍTICA
EDUCACIONAL DO BRASIL
Conteúdos e discussões pertinentes
Introdução
75
da America Latina profundamente marcado por esse período ditatorial. A disciplina
passou por um processo de mudança de objeto, deixou de desenvolver um estudo de
caráter mais tecnicista e sistêmico que privilegiava a legislação descontextualizada da
sociedade brasileira para uma perspectiva histórica-crítica na qual a escola é o lócus de
investigação da educação infantil, do ensino fundamental e médio.
Nesse sentido, essa disciplina Política Educacional (PE) tem por base estudar e
discutir a partir da conjuntura que se formou após os anos da ditadura, como se orga-
nizou e está a educação escolar no Brasil. Sabemos que a Educação Escolar é aquela
ofertada nas instituições de ensino organizadas em redes, onde estas integram as esfe-
ras Municipal, Estadual e Federal do nosso poder. Essas redes incluem escolas públi-
cas e privadas que devem seguir a Legislação educacional, que são: Lei de Diretrizes
Nacional de Educação (LDB), Parâmetros Nacionais de Educação (PCNs), Diretrizes
Curriculares e por fim as demais leis e Resoluções sobre as Políticas Públicas para
a Educação (PPE) que são implementadas pelo Governo Federal, Estadual e/
ou Municipal.
Segundo Azevedo (1997) o conceito de Políticas Públicas (PP) requisita uma
dimensão significativa do ponto de vista da memória coletiva, qual seja, aquela que
indica que as PP são definidas, implementadas, reformuladas, ou desativadas de acordo
com essa memória pública. Tais políticas públicas revelam o jogo de poder que se
incorpora nas relações entre os órgãos do Estado e a sociedade civil.
76
Organizamos, então, este texto de acordo com as unidades de conteúdo. Na primei-
ra unidade abordaremos a discussão sobre: Estado e Políticas Educacionais para funda-
mentar o debate das interfaces entre Educação, Estado e Sociedade no recorte do jogo
de poder que envolve os interesses de classe diante da oferta de educação pública no
Brasil. Na segunda unidade a idéia é situar a educação no contexto das transformações
da sociedade contemporânea apresentando as revoluções científicas e tecnológicas e a
influências delas para o modelo de educação que vigorou. A partir das fundamentações
trabalhadas nestas duas unidades podemos entrar na terceira, intitulada: As Políticas,
Estrutura e a Organização da Educação Escolar no Brasil. Nesta unidade nosso objetivo
é entender os referenciais/princípios que norteiam as políticas públicas de educação.
Por fim, a quarta terá centralidade em discutir duas formas de política pública – o finan-
ciamento e a formação docente e suas relações com os processos de gestão.
77
Engels. Trazemos então, o texto de Gruppi (1983) para contribuir com as indicações
e releitura desses teóricos. O autor indica que Marx ao fazer a critica ao pensamento
de Hegel apresenta os indícios do que podemos chamar de uma teoria do Estado e
a interpreta dizendo: “(...) não é o Estado que funda a sociedade civil, que absorve
em si a sociedade civil, como afirmava Hegel; pelo contrário, é a sociedade civil,
entendida como o conjunto das relações econômicas (essas relações econômicas são
justamente a anatomia da sociedade civil), que explica o surgimento do Estado, seu
caráter, a natureza de suas leis, e assim por diante.” (p. 27).
Em Engels, essa discussão inicia-se quando este autor apresenta o livro:
A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1894). Ali o autor discute
a origem constitutiva da família e da sociedade, mostrando que a sociedade ao
organizar as relações entre os sexos, visa sua sobrevivência econômica e social.
Assim, família e sociedade se organizam simultaneamente com base numa divisão
sexual do trabalho. O Estado, portanto, só vai surgir com o desenvolvimento da
economia que origina a divisão dessa sociedade em classes, portanto a sociedade
capitalista. Esses são, portanto, os teóricos de referencia do pensamento do Estado
o qual trabalharemos a partir do texto de Grupii (1983) com aprofundamento
em outros textos.
Quando o modelo capitalista se impõe como modo de produção, com
ele nasce à concepção de Estado denominada Estado Liberal, orientado pelos
princípios do liberalismo clássico da econômia. A principal característica deste
Estado liberal é que os conjuntos de políticas públicas, que dele deve emergir,
estão sujeitas a uma mercantilização e uma administração da produção privada
mais do que da pública, regulada pelo mercado. Como o capitalismo sofre crises
cíclicas, a cada crise há uma reestruturação no modo de produzir que reflete
modificações nas concepções de Estado, adaptando-o às novas demandas
do capital e das forças políticas que assumem o poder econômico, político
e social recontextualizando a dimensão da cultura. Assim, na crise dos anos
30, a reestruturação das economias faz surgir o Estado do Bem Estar Social,
também denominado de Estado Provedor/ Estado Intervencionista/ Estado
Interventor/ Estado Previdenciário que não necessariamente terá o mesmo grau
de desenvolvimento em todos os países do mundo. Nas sociedades da América
Latina, ele aparece nos governos populistas.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
78
3. Relação entre Estado e Sociedade
79
Sabemos que esta é uma área estratégica na utilização de mecanismos de coopta-
ção e controle no interior da sociedade. O uso do discurso e da memória é resgatado
para inferir a sociedade a importância da educação no desenvolvimento social, diante
a utopiai de que através da educação é possível alcançar a ascensão social a partir da
mobilidade de classe, ou seja, que através do estudo é possível que os indivíduos mu-
dem de classe social atingindo melhores status na estrutura econômica do capitalismo.
Frigotto (1996) na tele-conferência: Educação e Trabalho afirma que o capitalis-
mo sempre entra em crises, que estas são cíclicas e que o modo de sair dessas crises
tende a apontar para uma reelaboração das formas como o Estado vai lidar com os
serviços a serem prestados à sociedade: saúde, educação, seguridade e etc. Nesse sen-
tido os teóricos do capitalismo naturalizam que de acordo com a crise seja normal que
o Estado através dos serviços públicos atenda a uns e outros não. Para o autor nesse
raciocínio o que está em pauta é a assumência de que com isso está posto o dilema:
Barbárie ou Ética?
Para esse quadro de questões trazidas pelos textos de Dias (2002); Machado
(2002) e as inquietações de Frigotto (1996) que estão inter-relacionadas e têm visi-
bilidade com as crises do capitalismo real, nos apoiamos no raciocínio desse último
autor para sugerir no âmbito das políticas educacionais os seguintes pontos:
Dentre esses tópicos acima o que está implícito é uma concepção de Estado
máximo, que evidentemente está presente na sociedade capitalista, e oferta
como serviço público as áreas de: educação, saúde, moradia, lazer e seguridade.
Desse modo a Ciência teria uma função social para servir ao bem comum, seria
desenvolvida de acordo com os interesses sociais e não de acordo com a lei da
oferta e da procura que regula as relações do mercado. Evidencia-se nessa pers-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
80
É por esse raciocínio que nesse ponto do programa nos deparamos com o
estudo da sociedade e as transformações causadas pelas grandes revoluções sociais
e tecnológicas, porque é do novo que se deve conhecer o velho, a idéia é entender
na crise do capitalismo real que vivemos hoje o que está sendo discutido quanto à
organização da escola.
Navarro (1995) que escreve o texto: Produção e Estado do Bem Estar - o contexto
das reformas em especial,analisa que houve um acentuado aumento de mão de obra
urbana nos anos 60, na América Latina, e isto se traduzem em movimentos operá-
rios que mudam a ótica de participação dos sindicatos, anteriormente nos anos 50
voltados para um aspecto de cunho psicológico das relações de trabalho, para uma
81
preocupação com as relações de poder no interior da fábrica, dos locais de trabalho,
iniciando-se aí reivindicações mais singulares desde a definição do horário de trabalho
até algo mais macro como o próprio processo produtivo. Assim, o movimento operá-
rio conquista uma série de lutas que empurravam o Estado a responder as demandas
colocadas e, por conseguinte, alargavam a estatização dos bens e serviços. Isto é o que
caracteriza o Estado do Bem Estar Social.
Segundo Navarro (1995) as três respostas significativas que o capital constrói no
seu imenso poder de se refazer das suas crises são:
- Mudanças no modelo produtivo e da própria empresa em sua totalidade, ou seja,
o Fordismoii como modelo produtivo é questionado e os processos de gerenciamento
e administração das empresas também o são;
- A internacionalização da produção foi à principal resposta do capital ante a força
do movimento operário;
- A terceirização ou subcontratação de pequenas empresas, ajuste para o modelo
japonês – denominado Toyotismo, (trabalho em redes, ou seja, um núcleo de pro-
dução dependendo de vários grupos de fornecedores com trabalho mal pago, tempo
parcial e precária organização).
Para os países europeus e os Estados Unidos, o Estado do Bem Estar Social será
questionado a partir do conjunto de políticas públicas que se configurou no pós-guer-
ra – 1945. Mesmo quando as bases do Estado do Bem Estar Social se construíam,
ainda em alguns países europeus, e se visibilizava o crescimento econômico e as van-
tagens do capitalismo no mundo rico, alguns teóricos orientados por Friderick Haiek
elaboraram fortes teses contra esse modelo de Estado. O texto de Haiek que materia-
liza as idéias dessa crítica chama-se: Caminhos da Servidão trata-se de uma “bíblia”
para o neoliberalismo. Porém, as críticas ao Estado do Bem Estar Social ficaram na
teoria por quase 20 anos, somente quando estourou mais uma crise no capitalismo,
nos anos 70/73 é que a chamada “nova direita” teve como materializar e propalar o
neoliberalismo como uma reordenação da ordem mundial, tendo como base a refor-
mulação do Estado – nascendo, então, o Estado Neoliberal.
Para Gentili (1996) o neoliberalismo aponta para uma perspectiva de organizar a
política neoliberal, para tanto, incide nos aspectos simbólicos e estruturais da socieda-
de. Os neoliberais atuam no âmbito do discurso e difundem suas teses como leitura
de mundo do senso comum; impregnam o modo de ver e de ser de uma sociedade
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
82
apontando que este fato é um exemplo da ineficácia desse Estado, a partir desse
argumento os neoliberais caracterizam que há uma inoperância do Estado do Bem
Estar Social. Para eles, o erro esta no fato da educação ser pensada como um sistema,
enquanto ela deveria ser organizada de acordo com as leis de mercado estando assim
sujeitas aos instrumentos de regulação que a providenciam e a controlam.
De acordo com as idéias de Gentili e o que vimos ocorrer na educação do Brasil,
desde o período colonial até hoje, podemos entender que o neoliberalismo é uma
filosofia política de reconstrução do capitalismo que na dimensão da educação
produz um discurso que atribui àqueles que fazem educação a culpa da crise
educacional. Portanto, o neoliberalismo “(...) constitui um projeto hegemônico. Isto
é, uma alternativa dominante à crise do capitalismo contemporâneo através da qual
pretende-se levar a cabo um profundo processo de reestruturação material e simbólica
das nossas sociedades”. (GENTILI, 1998 p.102).
A educação é um dos elementos estruturantes desse discurso. Cabe, então,
refletirmos sobre este discurso que busca culpados para o quadro em que a educação
brasileira se encontra atualmente. O curioso é que esse discurso utiliza-se da educação
como principal eixo para, inclusive, justificar que nós professores somos culpados
pela crise educacional. A partir destas afirmações, podemos lançar mão da seguinte
indagação: seria a sociedade civil responsável pela crise capitalista?
Estudar o Neoliberalismo e compreender as conseqüências dessa releitura que
o capital faz para ressurgir de mais uma crise nos impõe, também, entender qual é
o papel da educação nessa nova ótica, assim fazemos nossa as mesmas dúvidas de
Machado (2006) ao questionar:
83
esteja em pauta um trabalho mais intelectualizado, que reconfigura a relação trabalho
intelectual e trabalho manual, talvez essa hipótese tenha surgido por causa das inúmeras
exigências de dimensões comportamentais que estão postas no tipo de trabalhador
que se quer formar (tais como: criatividade, flexibilidade, concentração, assiduidade,
entre outras). Entretanto, sabe-se que não desaparecerão as funções de coordenação,
supervisão e orientação estas inclusive ainda mais ajustadas à nova velocidade e tempo
das relações de trabalho.
No Brasil abordamos estas transformações no contexto dos anos 90, quando o
Neoliberalismo se configura a partir do governo Collor de Melo. Na área educacional
esse governo não chega a operar grandes mudanças, mesmo assim as entidades educa-
cionais representativas da educação no Brasil tiveram que se proteger da imensa onda de
privatizações que ali se iniciaram. Estávamos, também, vivendo o debate no Congresso
Nacional sobre a construção da Nova Lei de Diretrizes e Bases, que se iniciará des-
de a Constituinte de 1988 e a perspectiva privatista teve forte peso em seu texto final.
As tendências do Neoliberalismo no Brasil a partir da década de 90 era o enxugamento
da máquina estatal, daí passaram a surgir um conjunto de discursos desqualificando o
setor público e a escola pública foi um dos alvos atacados com força pelo discurso neoli-
beral. Vejamos agora como este conjunto de críticas recairá sobre a escola pública.
Assim, vamos entender a partir da unidade III como se organiza o sistema educacional
brasileiro, entretanto, antecede ao entendimento dessa organização uma discussão
política e científica trazida por Saviani (1987) que se resume nas questões por ele
apresentadas: Existe Sistema Educacional no Brasil? Há sistemas ou um sistema? São
sinônimos os termos - sistema educacional, estrutura educacional, sistema escolar?
Os textos de Saviani aqui elencados para esta discussão são introdutórios, o
objetivo, é apenas levantar a dúvida a fim de que possamos daí apresentar a tese
do autor quanto a esta discussão. Uma vez que concordamos com o autor ao dizer
implicitamente que nossa tendência seja sempre naturalizarmos o modo como a
educação escolar se apresenta a nós, sem quase nunca nos perguntarmos às polêmicas
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
que ali estão postas. Além do que, essa perspectiva de discutir: o que é sistema?
Segundo Saviani (1987), isto se caracteriza como um modo de introduzir o educador
em uma discussão macro na área da educação, posto que ele esteja sempre às voltas
com a micro-educação.
Desse modo, fazendo o percurso pelo caminho da macro-educação nos propo-
mos a estabelecer uma discussão introdutória sobre sistema e apontar de imediato a
tese conclusiva do autor a fim de que possamos imediatamente passar a discutir a Lei
84
de Diretrizes e Bases da Educação que de certo modo é o instrumento legislativo que
corporifica a noção de estrutura educacional apontada por Saviani.
Para o autor, o conceito de sistema está bastante embricado com o conceito de
estrutura educacional e na literatura aparece como sinônimos. O mesmo ocorre
com sistema escolar e essa polêmica Saviani vai apenas anunciar no referido capítulo.
Entretanto, lendo a tese do autor vamos encontrar sua discordância quanto a esses
termos serem sinônimos e, por conseguinte, a resposta da questão; se existe ou não
sistema educacional?
Para o autor:
sistema. O sistema traz um conflito universal, daí porque muitas das experiências são
produzidas a imagem de outras, como verdadeiros transplantes culturais; Segundo:
existe uma relação entre os conflitos de classe e os conflitos educacionais, que explici-
ta/tenciona as divergências entre escola pública e escola particular. Terceiro: demons-
tra que o liberalismo influenciou de modo significativo a organização de leis para
educação brasileira; Quarto: que há uma “insuficiência teórica dos educadores” cuja
possibilidade de explicação está no fato de que a educação é vista como algo dado,
uma supraposição a ser vivida.
85
Para Saviani (1987) enfim, não existe sistema, mesmo assim o termo é larga-
mente utilizado por nós educadores e pela legislação educacional brasileira. E nesse
sentido, o uso na legislação, o qual passou a examinar que se confunde com estru-
tura educacional, principalmente, quando associado à LDB. Ali aparece o termo
sistema associado ao ensino municipal, estadual e federal.
É nesse ponto que a discussão se amplia para situar a construção da escola pú-
blica no Brasil com seus avanços e impasses. Para isso há que se contemplar o estu-
do dos princípios da organização escolar conforme a LDB/96; conhecer os níveis
e as modalidades da educação brasileira; entender como se formula a legislação, em
especial a Lei 10.639/03, o Parecer 03/04, os Referenciais Curriculares Indígenas,
as Diretrizes e Bases da Educação do Campo e as Diretrizes Nacionais Curriculares.
Por fim ter uma visão do que está sendo planejado, implementado e qual a critica
em termos de políticas publicas para cada nível e/ou modalidades de educação.
A Constituição brasileira explica no Artigo 205 que é direito de todos e é dever
do Estado e da Família promover e contribuir com o processo de educação para
a cidadania, e que este processo educativo deve servir, também, a formação para
o trabalho. As implicações dos dizeres constitucionais se traduzem em inúmeras
ações por parte dos indivíduos que buscam se capacitar e a partir dessa qualificação
almejam uma vida melhor, mais digna do que o termo cidadania lhe possibilita.
Por sua vez impõe também ao Estado – em suas diferentes esferas – proporcionar
as condições básicas e estruturais para que esse indivíduo se instrumentalize.
Além disso, institui a família com a obrigação de zelar por esse acesso a educação
escolarizada. As conseqüências dessas três dimensões as quais a busca e oferta por
educação escolar está diretamente relacionada, traduzem-se num conjunto de
políticas públicas que são instituídas e reelaboradas servindo aos interesses de
todos os sujeitos sociais que ai estão envolvidos – indivíduo, família, sociedade, e
órgãos governamentais.
Vejamos cada um dos aspectos acima elencados como parte constitutiva para
que compreendamos a construção da Escola Pública e a organização colocada pela
atual LDB.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
86
todo o território nacional no que diz respeito a consolidar leis, diretrizes, políticas de
formação e principalmente uma ação de instrução pública para as classes populares.
Ghiraldelli Jr. (2006) situa a forma como a educação brasileira se organiza a
partir das experiências dos jesuítas:
Sabe-se que inevitavelmente foi com essa ação de educar repleta de interesses
ideológicos e políticos que ocorreu algum tipo de instrução escolar atingindo até
mesmo, os nativos e filhos de colonos, embora fosse direcionada para os filhos da
elite. Mas, com a expulsão dos Jesuítas, essa incipiente estrutura educacional que se
organizava pela égide da Igreja voltou a ser orientada pelo Estado através das ações
do Marquês de Pombal. De acordo com Saviani (1987): “As reformas pombalinas
se contrapõem ao predomínio das idéias religiosas e, com base nas ideias laicas ins-
piradas no iluminismo, instituem o privilegio do Estado em matéria de instrução
surgindo, assim, a nossa versão da “educação pública estatal”. (p.04).
No entanto, durante o período imperial mais uma vez a educação brasilei-
ra muda de rumo quanto a ser ou não uma ação de responsabilidade do Estado.
D.Pedro I, ainda em 1823 antes mesmo da Constituição outorgada de 1824, cria a
Lei que declara livre a instrução popular com isso abre caminho à iniciativa privada
sobre o ensino e retira a obrigação do Estado. A conseqüência disto é que desde
o período imperial e chegando a república a educação popular continuou sendo
descentralizada e de acordo com o que os estados federados podiam providenciar.
Para Saviani (1987) somente depois de 1930 é que a questão da instrução po-
pular se configurou como uma necessidade dado os rumos econômicos que o pais
se encaminhava. Com questões polêmicas do cenário nacional, entre elas o perío-
do denominado “Era Vargas”, chegamos ao momento em que na reorganização da
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL
87
É Saviani (1986) que explica alguns elementos de dentro da Lei que, também, im-
possibilitaram a democratização do ensino fundamental. Entre eles a própria isenção
da responsabilidade de obrigatoriedade da educação escolar colocada na lei e expli-
cada pela “falta de condições financeiras do pai ou responsável e a “insuficiência de
escola”. Ou seja, havia por parte da lei uma institucionalização da impossibilidade do
Estado ofertar a instrução escolar a todos.
Nesse momento histórico da realidade brasileira em que se instituiu a LDB nº
4.024/61 tratou-se de uma discussão para efeito de compreender a questão educacio-
nal do Brasil a partir dos conteúdos da disciplina de Fundamentos Sócio-Históricos
e Filosóficos da Educação que antecede nossa disciplina. Mesmo assim, nos reporta-
mos até aqui ao período e as conseqüências no âmbito da educação para situar que,
posteriormente a ditadura militar do Brasil que vai de 1964 a 1985 reiniciamos através
dos movimentos sociais ligados a educação e como resultado da própria política na-
cional uma nova construção de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.
Vejamos como expõe esse processo, Ghiraldelli Jr.(2006):
Mesmo assim e com algumas emendas e leis complementares estamos, hoje, tra-
balhando com a LDB nº 9394/96 que diante alguns tropeços e percalços no âmbito
da política educacional é a expressão maior da legislação que nos possibilita a constru-
ção de uma escola pública que se pretende democratizada e universal.
88
embora somente a primeira seja citada na lei como um tipo de modalidade, foram às
discussões em seminários nacionais posteriores à criação da LDB que deram a estas ulti-
mas o status de modalidade. Vejamos como cada uma se configura no cenário brasileiro.
Antes do curso, todos devem saber qual será a sua duração, quais os conheci-
mentos que lhes serão passados, quais os tipos de avaliação a que se subme-
terão e que tipo de certificado de conclusão obterão ao final do mesmo. Isto
significa que o ensino na Educação de Jovens e Adultos deve ser de qualida-
de. E, para ser de qualidade, é preciso também ter certeza da idoneidade da
instituição que oferece o curso. Esta idoneidade tem que possuir um registro
mínimo: a aprovação certa e determinada do Conselho Federal de Educação
com os respectivos prazos de validade. (p.03).
com EJA. Enfim há um debate em curso que aponta estes como alguns dos elementos
significativos para a exeqüibilidade desta modalidade de instrução escolar.
E mais do que isso há um movimento social no formato de Fóruns Estaduais, que
surgiu em 1996 e, hoje se articula em 26 estados e mais o Distrito Federal, formando
assim, o Fórum Nacional de Educação de Jovens e Adultos. Trata-se de um espaço
de debate propositivo trazendo contribuições para o repensar de políticas públicas.
Integram esses fóruns os sujeitos da EJA, representantes dos sindicatos de educadores,
representantes dos órgãos governamentais da educação e a Universidade, através dos
89
educadores e acadêmicos que estão pesquisando e se identificam com as temáticas
que impulsionam o debate da EJA.
Imagem 3. Primeira turma de Pedagogos da Terra formados na FE/UFG com discentes oriundos exclu-
sivamente de movimentos sociais do campo. Foto: Acervo pessoal da Profª Drª Mariana Cunha Pereira
(17/03/2011).
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
As lutas políticas das três últimas décadas no Brasil, que foram resultantes do pro-
cesso de redemocratização de nossa sociedade, fizeram surgir uma consciência políti-
ca em torno de algumas temáticas diretamente ligadas ao mundo da escola e da pro-
dução do conhecimento. O que aponta para isso é a redefinição dos conceitos sobre
escola, educação e políticas públicas. É nesse sentido, que a educação escolar daqueles
que vivem nas áreas rurais do Brasil é rediscutida e reapresentada num debate que se
constrói com novos conceitos e sujeitos em ação.
90
Hoje, os estudiosos de educação que sempre discutiram historicamente sobre
educação escolar rural e os integrantes dos movimentos sociais do campo estão
apontando para uma mesma direção no sentido de rever estes conceitos. Isto por-
que os processos de consciência política nos levaram a perceber que a velha e tradi-
cional educação rural precisava ser redefinida, reelaborada e reestruturada frente aos
sujeitos do campo que já não são mais os mesmos de três décadas atrás.
A educação básica do campo que se defende hoje propõe uma escola que seja
participativa, que tenha um papel social de enfrentamento diante dos problemas em
que o campo está inserido. Aliás, o primeiro conceito que está sendo reelaborado
aqui é o de: rural para campo.
Os povos do campo conforme se autointitulam os trabalhadores que vivem da
agricultura, da pecuária, da exploração das riquezas dos rios e da floresta, também se
fazem presente na reorganização de movimentos sociais e da construção de políticas
públicas em torno da educação escolar. Eles não aceitam essa terminologia de “rural”
porque esta ficou arraigada de um sentido de atraso social e principalmente ficou
colada a imagem de exploração dentro do latifúndio.
Com a mudança no conceito, se assume também a modificação quanto à escola
que agora tem um papel social de “ser um espaço onde a comunidade deve exigir
lutar, gerir e fiscalizar as políticas educacionais.” (Conferencia: p.01). Essa escola
propõe que a educação básica do campo tenha a função social de resgatar o direito
social dos povos do campo por uma educação pública de qualidade.
Segundo o documento citado: CONFERENCIA NACIONAL: por uma
Educação Básica do Campo, assinado pela CNBB, MST, UNESCO, UnB, UNICEF3
que se originou de um encontro entre educadores, trabalhadores, gestores e demais
autoridades em julho de 2008 na cidade de Luziânia/Brasília alguns pontos devem
ser redefinidos quanto à oferta da educação básica no campo:
• Pensar a Educação Básica do Campo vinculada a um processo de desenvolvimen-
to nacional;
• Viver e resgatar valores que se contrapõem ao individualismo e ao consumismo;
• Valorizar a cultura do campo e as especificidades dessa cultura quanto aos papeis
de homens e mulheres;
• Fazer mobilizações em torno das políticas públicas da educação do campo;
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL
91
3.3 A Educação escolar indígena
Propomos nesse tópico uma leitura sobre de que modo se tratou a educação dos
indígenas na Brasil. Vejamos como essa temática é anunciada na LDB nº 9394/96,
e a partir do que ali está posto, de que modo essa discussão serve ao debate sobre o
currículo da Educação Básica, tomando o referido documento como referência:
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e esta-
belecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (BRA-
SIL, 1997).
continuação dos estudos em nível de ensino médio muitos deles evadiam-se da escola
por não suportarem os processos discriminatórios e as diferenças culturais impostas
no currículo. Quando muito se tornavam alunos repetentes até desistirem.
Porém, a realidade imposta pelo contato inter-étnico é imperativa e talvez tenha
sido por isso que alguns resistiram e tornaram-se os atores políticos que impulsio-
naram as reivindicações por uma educação escolar indígena que se pautou desde a
construção de escolas nas aldeias, ofertando educação básica, até a reivindicação de
92
políticas públicas de formação de professores em programas interculturais. A escola
indígena é, então, um campo de disputa e isto é perceptível na fala de uma das autoras
de nossa bibliografia, cuja identidade é uma das indígenas militantes do movimento
de professores;
Diante desse processo histórico é que retomamos aqui como vem ocorrendo às
mudanças na legislação quanto à educação escolar indígena. A partir da década de 70, segundo
Leitão (1998) o governo brasileiro através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) fez
convênio com a Sociedade Internacional de Linguística (SIL) para adotar programas de
educação bilíngüe nas escolas indígenas esse foi um avanço pontual na legislação.
Porém, é preciso que se diga que esta questão de ser a educação escolar indígena
bilíngüe, foi um marco de debate entre Estado e sociedade civil. Foi um tema polêmi-
co, inclusive entre os povos indígenas posto que para algumas etnias a língua materna
deveria ser ensinada apenas no âmbito familiar, enquanto outras etnias defendem que
as línguas maternas deveriam ser um componente curricular. Mas, passado esse deba-
te, ficou o ensino das duas línguas na escola como necessárias diante do fato de que a
cultura da sociedade envolvente tendia a se sobrepor cada vez mais as novas gerações
minimizando assim a importância de se aprender e falar a língua materna.
É importante, nesse ponto, que se destaque a diversidade que caracteriza o debate
de uma educação escolar indígena, posto que cada povo tem suas especificidades e
interesses coletivos. Tais interesses, em última instância, apresentam as influências e
conseqüências do lugar em que vivem. Sem contar as experiências políticas na relação
com o Estado, as relações que estabeleceram entre grupos e, por fim, o que resultou,
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL
93
reconhecimento do Estado de que os povos indígenas são atores de seus processos
educativos escolarizados e que esta tem sido uma construção reivindicatória que se
desenhou ao largo da discussão sobre currículo. Vejamos:
A educação das Relações Étnico-Racial não é citada como uma modalidade de edu-
cação, entretanto, a LDB aponta para que haja uma educação escolar na perspectiva
étnico-racial na medida em que propõe no: “Art. 26 A - Nos estabelecimentos de ensi-
no fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena.” Esse artigo deu origem a formulação e
Implementação da Lei 10.639/03 que propõe, também, a releitura do calendário es-
colar e da formação do professor quanto a este aspecto de incluir a temática da cultura
afro-brasileira e da História africana.
Alem disso, o Conselho Nacional de Educação criou com base na Lei 10.639/03
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
94
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.
Todos esses aspectos legislativos são frutos das conquistas do movimento negro
nacional e resultante das pesquisas que influenciam e explicam o olhar que a socieda-
de constrói de si mesma. Na medida em que ao longo desses anos a discussão sobre a
identidade nacional no Brasil foi mostrando os conflitos raciais, e os conflitos étnicos
envolvendo os aspectos da má distribuição de renda, da terra e da diversidade religiosa.
Os estudos trazidos por essas pesquisas mostram que o Brasil dos anos 90 a par-
tir do censo de 2000 passa a se assumir como afro-descendente em percentuais até
então, ainda não visto. No RDR (2008) que é organizado com dados coletados para
compor o Censo de 2010, as pesquisa de amostragem e domicílio (PNAD) revelam
que 49,55% da população brasileira se auto-identificam como negra (pardos e pretas).
O censo escolar que passa a ser usado a partir de 2005 também revela dados sig-
nificativos quanto à educação brasileira e traz alguns dados empíricos para compreen-
dermos o processo de identificação e auto-identificação na área educacional, vejamos:
Ainda na educação escolar quanto ao aspecto étnico-racial vale a pena citar as po-
líticas públicas em torno do Livro Didático que buscam implementar esses conhe-
cimentos sobre a cultura afro-brasileira. A História Africana é tematizada na foram
95
de mitos, lendas, contos de origem afro como parte da literatura a ser conhecida por
nossos alunos. E, principalmente, quebrando o padrão adotado pelos livros didáticos
que em geral o negro aparece como escravo. Entretanto, ainda temos alguns problemas
na elaboração desses livros que comprometem a intenção de desfazer o preconceito.
A educação étnico-racial aponta aponta para uma perspectiva anti-racista, onde
precisamos avançar em dois aspectos: nas políticas de formação de professores e da
construção de um currículo para as escolas quilombolas. A ênfase na formação de
professores para que essas leis e diretrizes possam se efetivar na prática docente inclui
políticas públicas de capacitação e formação continuada em que sejam revistos esses
elementos constitutivos da identidade nacional que até então não se discutia e nem se
visibilizava no material didático produzido para a educação básica.
A professora Petronila Beatriz G. e Silva nos chama atenção para o que diz o
Parecer nº 03 quanto à formação dos profissionais de educação nas diferentes dimen-
sões do processo educacional:
96
olhar diferenciado para a escola quilombola dado as especificidades do lugar e dos
sujeitos dessa escola. Entretanto, este é um processo que ainda está em construção,
talvez avance um pouco mais agora, em que universidades brasileiras apresentam cur-
sos de graduação direcionados a professores do campo. Possivelmente, esta formação
direcionada para os quilombolas possibilite a estes educadores elaborar propostas pe-
dagógicas que considerem seus locais de origem.
4. 1 Financiamento da Educação
No texto de Oliveira (2003) os autores explicam pelo menos três formas de finan-
ciamento da educação escolar básica. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) que foi criado para suplantar o financiamento público estatal da
educação básica, e cria o Salário Educação que é uma contribuição de 2,5% da folha
de pagamento das empresas. A este fundo ficam isentos: os órgãos públicos, as institui-
ções de ensino público e privado, e, as autarquias. Os autores explicam também que:
97
O recolhimento dos recursos do salário-educação pode ser feito de duas
formas distintas, a critério das empresas contribuintes: - ao FNDE, passando,
nesse caso, a integrar o Sistema de Manutenção do Ensino Fundamental. –
ao INSS, juntamente como os recolhimentos usuais da Previdência Social.
(OLIVEIRA et al 2003, pg.03).
Entretanto, o governo federal não tem nenhum controle quanto à forma como o
Estado irá distribuir as quotas da educação do FNDE. A outra é que mesmo a quota
federal sofre pressões da classe política no aspecto da implementação e aplicabilidade
ou é conduzida segundo as demandas dos parlamentares que tendo acesso a essas in-
formações e mecanismos de poder interferem com emendas constitucionais direcio-
nando tais verbas aos municípios de seus interesses eleitorais. Sendo que a quota federal
deveria ser planejada para minimizar as discrepâncias regionais quanto à educação que
existe no Brasil. Se não existisse tais atitudes na aplicabilidade dessas verbas muito po-
deria ser realizado na educação diante das desigualdades socioeconômicas que caracte-
rizam as regiões brasileiras.
Outro instrumento de financiamento da educação escolar é o FUNDESCOLA –
Fundo de Fortalecimento da Escola. Trata-se de um programa que, também, visa valo-
rizar e apoiar o ensino fundamental. Este é um programa que o Ministério da Educação
e as Secretarias de Educação introduziram para fomentar e contribuir com a autonomia
da escola. Nesse programa a prioridade está para as regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Entretanto, segundo consta no documento que cria este fundo, há alguns requisitos
que a escola deve cumprir a fim de que essa verba chegue à escola. Um deles é: “(...)a
elaboração de um Plano de Desenvolvimento da Escola, (...) com o conjunto de ações
que a escola se propõe a desenvolver para melhorar as condições de ensino e de seus
processos administrativos e pedagógicos”. A esse plano denomina-se PDE.
Esse fundo determina algumas ações que compete à aplicabilidade dessa verba.
Estas, no entanto, não são assumidas de modo consensual entre os gestores da edu-
cação escolar. As criticas baseiam-se em diferentes teses, vejamos primeiro quais são
as ações em que o FUNDESCOLA é anunciado para depois discutirmos as criticas.
Segundo OLIVEIRA (2003) as ações em que o FUNDESCOLA atua são:
1 - Padrões Mínimos de Funcionamento das Escolas; 2 - Processo de Desenvolvimento
da Escola; 3 - Planejamento e Provisão de Vagas; 4 - Gestão e Desenvolvimento dos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Sistemas Educacionais.
O autor ainda situa a discussão de Padrões Mínimos de Funcionamento das
Escolas, onde é preciso assegurar melhores condições materiais para que a exeqüibi-
lidade do serviço da educação escolar seja ofertado. Desse modo com a verba deve se
financiar obras para adequar prédios, mantê-los, a aquisição de equipamentos e mo-
biliário e, por fim, cursos de formação de professores e demais funcionários da escola
(merendeiros, técnicos de informática, administrativos e etc).
98
Uma das criticas se relaciona ao aspecto de engessamento que é criado pela
burocracia ao exequibilizar o gasto da verba do FUNESCOLA. Para alguns estu-
diosos a burocracia que se exige para as licitações e a falta de preparo dos gestores
da educação escolar criam uma grande demora para as reformas que são possíveis
de realizar-se. Há ainda atrelado a isso as restrições com o que pode ser gasto frente
às necessidades que a escola esteja apontando. A outra critica, também, em curso
nos textos que compõem essa discussão é de que o FUNDESCOLA dá uma maior
importância ao PDE que é um instrumento técnico de planejamento no qual os
aspectos sociopolíticos da educação escolar não são prioritários. Esta é uma critica
que se articula no bojo das discussões que trazem para a escola a necessidade de
se construir o Projeto Político Pedagógico, no qual a escola faria um planejamento
levando em consideração concepções de educação e de sociedade em que respecti-
vamente está o sujeito a ser formado.
Nesse sentido, o trabalho pedagógico e a formação de professores estão subme-
tidos a uma lógica que articula gestão e financiamento, daí passamos a discussão de
nosso segundo ponto.
professor. Esta é uma informação relevante para entendemos que há nos estados e
municípios o recebimentos de verbas federais para serem aplicadas na educação
oriundas de diferentes fundos. Este é o modo, então, de subsidiar a política pública de
formação de professor no nosso país.
Também se faz relevante conhecer os estudos de Nicolas Davies apresentado no
texto de Souza Junior de nossa bibliografia para essa unidade. Ali o autor discute as
criticas de Davies sobre a política de fundos e considera:
99
Assiste razão a Davies ao apontar as limitações das políticas de fundos para
a educação pública, que, em geral, são problemas com referência à política
geral de financiamento da educação no Brasil, sobretudo no que se refere à
base de impostos e à falta de definição de custo-aluno-qualidade. Entretan-
to, a exclusão de determinadas etapas da fonte de financiamento do fundef
está a ser corrigida bem como o ingresso das várias categorias do magistério.
Quanto à participação dos demais trabalhadores nos gastos desses fundos,
trata-se de uma questão que deve ser resolvida no âmbito das .negociações
quando da regulamentação no Congresso Nacional. (SOUSA JUNIOR,
2006, pg.03/4).
O autor também chama a atenção que esta política não modificou em nada o
modo de repasse dos recursos financeiros para a manutenção do ensino, ou seja, a
União – 18%, os estados e municípios – 25%. E afirma: “..., não se injetam recursos no-
vos para a educação. Porém, com relação às mudanças introduzidas na EC 53/2006,
destaque-se que os Municípios e os Estados deverão aportar gradualmente no Fundo
20%, não mais 15% como era no Fundef...” (Souza Junior, 2006, pg. 05).
Em verdade, Souza Junior (2007) traz uma reflexão bastante pertinente para que
possamos discutir a formação dos professores da educação básica que a LDB também
vai legislar. Segundo a LDB a formação dos professores deveria ser de forma continu-
ada e direcionada àqueles profissionais da educação básica, ou seja, educadores dos
diferentes níveis de ensino e modalidades da educação em efetivo serviço.
Sabe-se que a educação escolar brasileira passa por efetivas mudanças em sua le-
gislação a partir dos anos 90, conforme situa as autoras analisando o novo direciona-
mento que se dá diante das políticas de formação continuada:
Essa formação continuada (FC) que os autores se referem poderá ser ofertada
com uso das novas tecnologias da educação e no modelo presencial e à distância.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Acreditamos está ai implícito uma concepção de trabalho que se impôs pela efe-
tiva participação dos profissionais da educação nos movimentos sociais dos educa-
dores do Brasil. Também explicita na construção de uma LDB que, se não a ideal,
a possível na conjuntura de participação política em que foi elaborada. Vimos que a
relação Estado e Sociedade aponta para o jogo de relações de poder e de forças contra-
-hegemônica de nossa sociedade. Nesta o trabalho pedagógico torna-se critério de
condição para a valorização do magistério quanto a seus processos de capacitação.
100
De outro modo, para que o trabalho docente possa assumir um status de relevân-
cia numa sociedade cada vez mais desprestigia a formação humana, se fazem neces-
sários cursos de FC que capacite/instrumentalize esses professores para estas novas
dinâmicas sociais. Tanto do ponto de vista da tecnologia quanto dos desafios que se
apresentam à prática docente com o aparecimento de todos os conflitos e debates que
incidem sobre a escola.
É por isso que desde o final dos anos 90 estamos vivenciando um conjunto de
cursos de formação de professores que se realizam em diferentes espaços e modelos.
Diferenças, também, de conteúdos na medida em que o currículo foi repensado e se
diversificou como exige a própria realidade.
Por fim, queremos citar a lei Complementar n. 26/1998 que trata das Diretrizes e
Bases do Sistema Educativo do Estado de Goiás. Porém, a construção dessa Lei advém
de um processo de lutas políticas desde os anos 60, quando da primeira entidade que
mesmo representando os profissionais da educação funcionava vinculada ao Estado.
A história da relação Estado e Sociedade na realidade de Goiás e na perspectiva
dos movimentos de educação foi de avanços e retrocessos. Tivemos inúmeras greves
e algumas vitórias contribuíram para melhorar a oferta do serviço educacional e os
direitos dos profissionais da educação. Porém, a história tem períodos de retrocessos e,
hoje, podemos falar que se reafirmam os laços entre Estado e Entidades Educacionais
comprometendo, e muito, os direitos coletivos que foram conquistados.
Na relação Estado e Sociedade os direitos constitutivos que estão relacionados às
categorias de trabalhadores tem uma força política muito maior através de diferentes
formas de representação ou de reivindicação. Que difere do modelo dos sindicatos
considerados, hoje, instrumentos de manipulação de sindicalistas reconvertidosiv.
Em Goiás, as políticas públicas que avançam em direção a autonomia e emancipa-
ção dos trabalhadores da educação caminham de mãos dadas com as novas formas de
movimentos sociais, que se distanciam dos partidos políticos, criam fóruns de partici-
pação que envolve a Universidade, seguimentos do Estado e da Sociedade Civil. São
exemplos destacáveis o Fórum de Educação de Jovens e Adultos; o Fórum Estadual
de Educação; Programas de Educação das Relações Étnico-Raciais desenvolvidas por
entidades do movimento negro em parceria com a Universidade; entre outros.
Mas, sem dúvida que a gestão da escola pública continua interligada ao financia-
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL
mento, e no caso de Goiás isto significa que tais financiamento, bem como em todos
os estados brasileiros dependem do percentual que de fato é aplicado na educação, de
acordo com a lei deveria ser 25% dos impostos arrecadados e destinados a educação.
(Cf. Art.69 da LDB).
A formação continuada está ocorrendo por intermédio das Universidades
públicas e privadas. Porém, às vezes com um caráter puramente individual, ou seja, por
iniciativa do educador e não por intencionalidade e incentivo do governo estadual,
que poderia fazê-lo através das Secretarias de Educação. Temos também, experiências
101
de formação de professores como resposta a projetos coletivos de iniciativa da
Universidade Pública, nestes casos, ofertados gratuitamente. Como exemplo,
podemos citar os seguintes cursos: de Pedagogia firmado por um convênio entre a
Secretaria Municipal de Goiânia (2001 – 2004) e a UFG; de Pedagogia da Terra –
convênio entre a UFG e o Programa Nacional de Reforma Agrária/PRONERA; as
Licenciaturas na modalidade EAD e diversos outros advindos de recursos específicos
por editais do MEC através de várias Universidades Federais do Brasil.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
102
Referências
103
KUENZER, Acacia Z. Ensino Médio e profissional: As políticas do Estado
neoliberal. São Paulo: Cortez, 1997.
104
Leituras complementares
OLIVEIRA, F.; PAOLI, Maria C. (orgs.). 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Brasília:
NEDIC, 1999. p.83-129.
UFG, 2006.
105
Sites de Pesquisa
www.inep.gov.br
www.mec.gov.br
www.acaoeducativa.org.br
www.isa.org.br
www.forumeja.org.br
Fordismo - Foi Henry Ford em sua fábrica, Ford Motor, que em 1913 criou
ii
2006 para fazer uma critica aos intelectuais que escreveram e defen-
deram idéias contra a lógica capitalista (até a década de 80), e que a
partir dos anos 90, se articulam segundo as concepções neoliberais, em
muitos casos defendendo teses neocapitalistas. Do mesmo modo agem
alguns sindicalistas.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
106
TEORIAS DO ESPORTE
Apresentação
Caro e cara estudante, você inicia agora a leitura do material de apoio à disciplina Teoria
do Esporte, do curso de Licenciatura em Educação Física na modalidade à distância
da Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo, como todos os demais, é facilitar o
seu estudo e aprendizagem do conteúdo desta disciplina. Trata-se, portanto, de um
material didático, sem as preocupações características a um trabalho acadêmico, ainda
que a linguagem e outras convenções estejam inteiramente subordinadas às tradições
acadêmicas. Força do hábito. A única principal exceção é o texto referente à seção
dedicada à “Sociologia figuracional e as teorias do esporte”, que reproduz um texto de
minha autoria publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte; um periódico
acadêmico portanto, o que obviamente exigia um texto tipicamente acadêmico.
Quer dizer então que, grosso modo, o que vai se seguir não tem a intenção de
abordar em toda sua profundidade cada um dos assuntos sugeridos, nem tampouco
explorar exaustivamente as referências citadas. A intenção foi tão somente apontar e
às vezes recomendar textos sobre teorias do esporte que me parecem úteis ao conhe-
cimento de um graduando em Educação Física. Espero que ajude. De todo modo, é
importante tentar consultar os textos mencionados ao longo do material sempre que
TEORIAS DO ESPORTE
107
social deste fenômeno, excluindo-se, dessa maneira, as muitas e importantes pesqui-
sas sobre a fisiologia do desempenho esportivo, nutrição esportiva, a biomecânica do
esporte, entre outros.
A segunda seção apresenta algumas definições correntes do conceito de esporte.
Veremos considerável diversidade nesse sentido. A falta de consenso a esse respeito
expõe apenas a própria natureza de qualquer empreendimento científico, sempre pro-
visório, sempre inacabado e nunca definitivo.
A terceira seção aborda algumas das características sócio-históricas mais usualmente
atribuídas ao esporte, naquilo que vai constituir também uma das suas mais influentes
teorias, a saber, aquela que estabelece uma relação entre o esporte e a época moderna.
A quarta seção comenta a história da formação da especialidade acadêmica
dedicada ao esporte, mencionando os principais acontecimentos nesse sentido, bem
como os trabalhos e autores mais influentes sob este aspecto. Inevitavelmente, os
trabalhos e autores mencionados são resultado de uma seleção pessoal, o que significa
que nem todos os mais influentes estão presentes. Eventualmente, de fato, algumas
ausências e exclusões foram cometidas. Mesmo assim pode-se dizer que a amostra
é representativa.
A quinta seção se dedica a apresentar, de maneira um pouco mais detalhada, uma
importante abordagem teórica no âmbito do esporte: nomeadamente, a chamada
sociologia figuracional.
A sexta e última seção tem por finalidade apresentar algumas reflexões sobre a
relação entre o esporte, a educação e o desenvolvimento social.
Em linhas gerais, em suma, o conteúdo deste material corresponde à ementa e ao
conteúdo programático da disciplina (que segue adiante). No mais, insisto, procurem
ler os livros e artigos citados ao longo do material. Certamente eles constituem um
importante material de estudo. Desejo-lhes um proveitoso período de estudos, na
esperança de colaborar na formação de cada um de vocês.
Um grande abraço,
Cleber
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Ementa
108
Objetivos
Conteúdo programático
1. Definições preliminares
O estudo sobre as teorias do esporte deve começar por se perguntar o que é, afinal,
uma teoria do esporte. Até mesmo antes disso, deveríamos nos perguntar se existe
uma teoria do esporte e se o emprego dessa expressão é adequado e faz sentido.
Devo lhes dizer sob este aspecto que sim, existe uma teoria do esporte. Na verdade,
não apenas uma, mas várias, no plural. Portanto, a referência e à alusão a uma idéia
de “teoria do esporte” não só faz sentido, como é também pertinente.
Admitindo, então, a premissa de que teorias do esporte existem e que o uso
dessa expressão é teoricamente adequado, podemos continuar nos perguntando
sobre o que elas seriam exatamente, o que tal expressão quer dizer e qual o conteúdo
das suas prescrições?
Ao longo desse curso, estaremos entendendo por teorias do esporte, basicamente,
quaisquer generalizações explicativas a respeito dos sentidos e significados sociais do
esporte. Em outras palavras, teorias do esporte são esforços intelectivos que, através
TEORIAS DO ESPORTE
109
Esta definição de teoria do esporte está orientada por uma acepção de teoria que
se aplica não apenas a esse caso, em particular, mas a toda e qualquer teoria, de maneira
geral – particularmente a toda e qualquer teoria social. Nesse sentido, amiúde, teorias
do esporte serão interpretações explicativas acerca do fenômeno esportivo.
Pouco a pouco – vocês já devem estar percebendo – estamos circunscrevendo
a arena de pesquisa ao redor da qual iremos gravitar. Esta delimitação – acreditem –
apesar de excluir uma dimensão considerável de estudos acadêmicos que de alguma
forma versam sobre esporte, ainda assim diz respeito a um universo bastante amplo
e diversificado (como exemplos, vejam o Quadro 5, que lista alguns periódicos
internacionais dedicados, especificamente, à publicação de pesquisas sobre esporte
nessa perspectiva). São estudos de diferentes disciplinas científicas, desde a História,
até a Sociologia, passando pela Antropologia (para não mencionar a Psicologia ou
a Filosofia, que de maneira talvez menos enfática, também se dedicam a estudar o
esporte). Meu esforço, aqui, será o de selecionar entre essa variedade de esforços o
que parece obviamente mais pertinente para a formação em Educação Física, além
de tentar lhes apresentar o conteúdo de algumas dessas teorias de maneira resumida
e organizada, a fim de facilitar o mais possível seus estudos. Nesse sentido, registre-se
ainda que na história desses esforços intelectivos, isto é, na história de formação dessas
teorias do esporte, algumas generalizações foram mais abrangentes, outras menos;
bem como algumas foram mais influentes e outras menos. Aqui, vamos nos limitar
aquelas que encontraram mais receptividade entre professores de Educação Física,
influenciando a forma pela qual o esporte passou a ser concebido e, conseqüentemente,
desenvolvido no interior de certas propostas pedagógicas.
2. Conceitos de Esporte
ciente para as finalidades de uma teoria do esporte, que, como vimos, pretende expli-
car sociologicamente o esporte. Para esses casos, mais do que identificar situações que
não são esportivas, é necessário também estabelecer critérios capazes de servir como
parâmetro das situações que podem ser chamadas de esportivas.
Um esforço para melhor definição conceitual do esporte não é algo fortuito. Não
se trata de um problema meramente teórico ou filosófico. A maneira como se define
conceitualmente um objeto, uma prática ou um acontecimento pode ter inúmeras
110
implicações sobre o seu próprio modo de constituição. Em outras palavras, a definição
de certos conceitos influencia a maneira pela qual a realidade a que tal conceito se
refere é percebida. A maneira de perceber certa realidade, por sua vez, pode também
influenciar a própria forma que certos objetos, práticas ou fenômenos assumem. Ou
seja, a maneira como se define o esporte, pode mudar a maneira como o percebemos,
e essa nova percepção pode também mudar a maneira como o esporte se realiza em
sua prática.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1996) foi um dos que já teceu comentários a res-
peito dessa complexa relação entre a forma de definir conceitualmente elementos da
realidade social e a própria realidade social. Nas palavras dele: “A ciência social lida
com realidades nomeadas e classificadas, portadoras de nomes próprios e de nomes
comuns, de títulos, signos, siglas”. Sendo assim, continua ele, “a ciência social deve to-
mar como objeto às operações sociais de nomeação e os ritos de instituição através
dos quais eles se realizam [...] a ciência social precisa examinar a parte que cabe às
palavras na construção das coisas sociais” (p. 81).
Essas palavras de Bourdieu sintetizam o entendimento de que a linguagem (leia-
se, nesse caso, os conceitos) não apenas expressa pensamentos e sentimentos de um
contexto social, como também estrutura as percepções que os indivíduos têm sobre
este. Nas palavras do autor, mais uma vez: “a nomeação contribui para constituir a
estrutura desse mundo”. Na medida em que as palavras, conceitos ou os discursos
sejam compreendidos como ferramentas mais ou menos eficazes na constituição da
realidade, o poder de nomear coisas torna-se o poder de impor uma visão de mundo,
isto é, o poder de estruturar uma maneira de apreender a realidade.
Palavras e conceitos, portanto, permitem apreender e expressar um mundo de
experiências. Nesse sentido, as formas pelas quais elas são empregadas devem ser
seriamente consideradas. As categorias de inteligibilidade utilizadas por certos atores
são instrumentos de decodificação de um sistema de valores e, por isso mesmo, têm
grande relevância na tradução e interpretação dos sentidos e significados presentes
nessas práticas. Tais conceitos, em suma, constituem modelos cognitivos e programas
de percepção.
No caso do universo esportivo, especificamente, interessa saber quais os conceitos
vêm sendo utilizados pelos diversos grupos de atores sociais envolvidos com essa
prática e o que eles significam para além do que está explicitamente anunciado. Que
convicções esses conceitos são capazes de dramatizar e à quais representações esses
vocábulos são conclamados a integrar?
Ainda de acordo com as proposições sumariadas acima, é possível dizer que os
TEORIAS DO ESPORTE
111
dos objetos da realidade social depende de uma complexa cadeia de interdependência,
onde a força das palavras depende, fundamentalmente, da legitimidade daqueles
que as anunciam. Assim, o poder da palavra, enquanto instrumento de estruturação
das percepções, depende da posição social dos seus enunciadores. Ela está, portanto,
subordinada a uma confluência de condições sociais, onde é preciso que todos vejam
no locutor-enunciador das palavras uma pessoa autorizada a dizê-las. Em suma, há uma
forte relação entre a propriedade do discurso em si e as propriedades de autoridade
daqueles que os anunciam. A partir desse entendimento, poderemos entrever disputas
políticas ou cisões ideológicas que o uso diversificado de conceitos encerra em qualquer
atividade humana, onde o campo esportivo, evidentemente, não se exclui.
Para formular novamente e talvez em termos mais simples, diferentes maneiras de
conceituar o esporte, resumem diferentes maneiras de concebê-lo. E essas diferentes
concepções, por seu turno, implicam diferentes possibilidades de prática e de uso so-
cial. Ou seja, se nós, por exemplo, definíssemos esporte como uma prática corporal
historicamente relacionada ao advento do capitalismo, de certo modo, estaríamos im-
plicitamente sugerindo uma vinculação entre esses dois elementos, o esporte e o ca-
pitalismo. Por conseqüência, alguém que avalie o capitalismo como um sistema social
perverso e injusto, como de fato o é, tenderia, para manter alguma coerência com essa
nossa hipotética definição, que avaliar o esporte como algo também perverso e injusto,
que deve por isso, ser abandonado ou radicalmente modificado.
De outra forma, se nossa definição de esporte o afirmasse como uma prática que
subordina os jogos a uma forma de organização racional, estaríamos, de certo modo,
sugerindo uma vinculação entre esporte e razão. Pois, nesse caso, alguém que avalie a
razão algo positivo, um instrumento de emancipação humana, tenderia, também por
coerência a essa definição, a avaliar o esporte nesses mesmos termos.
Para os propósitos de agora, não interessa tanto discutir em que medida essas defi-
nições hipotéticas são ou não pertinentes. São apenas definições hipotéticas, embora,
como veremos nas próximas seções, com semelhanças com propostas de interpreta-
ção que de fato existem entre as teorias do esporte. De todo modo, o objetivo aqui é
apenas o de assinalar que uma forma específica de definir esporte tem uma série de
implicações sobre a maneira de conceber tal fenômeno, bem como sobre a forma de
se relacionar com a sua prática. Nesse sentido, vejamos algumas maneiras pelas quais
se tem definido este fenômeno.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Para Valter Bracht (2003), “o esporte moderno refere-se a uma atividade corporal
de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultural européia por
volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo” (p. 13).
De outra forma, Ronaldo Helal (1990) afirma que “O esporte é qualquer competição
que inclua uma medida importante de habilidade física e que esteja subordinada a
uma organização mais ampla que escape ao controle daqueles que participam da ação
(sejam eles jogadores ou torcedores)” (p. 28)
112
Um dos elementos que se destaca nessas definições de Bracht e de Helal é a di-
mensão ou o caráter competitivo do esporte. Ou seja, para estes autores, o esporte é,
fundamentalmente, uma atividade de competição.
Tal destaque pode orientar decisivamente a maneira pela qual percebemos e nos
relacionamos com o esporte. Pois para alguém que enxergue a competição como algo
natural e inevitável na vida em sociedade, o esporte poderia parecer um instrumen-
to positivo e desejável, capaz de fortalecer valores e capacidades importantes para a
vida nessa sociedade (competitiva, afinal). Por outro lado, para alguém que enxergue
a competição como algo nocivo à vida em sociedade, um elemento que opõe os seus
membros uns aos outros, talvez olhasse para o esporte como algo a ser substituído
por uma prática alternativa, com mais condições de disseminar valores e disposições à
atividade cooperativa – e não competitiva. Na Educação Física, compreensões como
esta última já serviram de justificativa para a elaboração de propostas pedagógicas.
Nomeadamente, os chamados “jogos cooperativos”, que têm no trabalho de Fábio
Broto (veja o Quadro 1) seu principal representante, propõe que jogos esportivos
sofram alterações e modificações em suas regras no sentido de atenuar a sua dimen-
são competitiva e reforçar a cooperativa. Assim, uma partida de voleibol, diferente das
regras convencionais, deveria propor que ambas as equipes tentassem trocar o maior
número de passes possíveis, ao invés de tentar fazer a bola cair na quadra adversária.
Dessa forma, elas estariam cooperando entre si, ao invés de competindo.
Por volta do final da década de 1980 e 1990, aproximadamente, inicia-se no Brasil
um processo de apresentação de jogos esportivos com regras adaptadas como estra-
tégia possivelmente capaz de diminuir atitudes agressivas, ao mesmo tempo em que
estimula o trabalho coletivo e cooperativo. A alteração das regras desses jogos preten-
dia, explicitamente, evitar a eliminação dos participantes, estimulando a criatividade e
o convívio colaborativo. Tratava-se claramente de uma reação a tendências sociais que
eram percebidas e avaliadas como excessivamente individualistas.
Tal abordagem metodológica pressupõe a possibilidade de transferência da apren-
dizagem em situações de jogos para a vida como um todo. Assim, o aprendizado de
valores e de uma ética, nesse caso, cooperativa, seria, em tese, posteriormente incorpo-
rado pelos alunos em situações além do jogo.
Os livros de Fábrio Brotto tornaram-se um dos principais representantes das no-
vas propostas, que pouco a pouco evoluiu para a idéia de uma “pedagogia da coo-
peração”, para além da esfera restrita dos jogos ou das aulas de Educação Física (ver
BROTTO, 2001). Em 2001, atualmente com apoio da Unesco, foi criada a “Revista
Jogos Cooperativos”, cuja missão seria, de acordo com apresentação disponível no site
TEORIAS DO ESPORTE
da publicação:
113
uma mudança de modelos de ver e sentir o mundo, onde cada vida humana
seja dedicada à realização e ao aprimoramento pessoal, em um ambiente de
harmonia, paz e confiança mútua (Disponível em: http://www.jogoscoope-
rativos.com.br/).
O sociólogo George Magnane (1969) foi outro que já propusera sua própria defi-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
nição para esporte. Segundo o autor, o esporte seria “Uma atividade do lazer cuja pre-
dominância é o esforço físico, participando simultaneamente do jogo e do trabalho,
praticado de maneira competitiva, comportando regulamentos e instituições específi-
cas, e suscetível de se transformar em atividade profissional” (p. 71).
Magnane, portanto, também afirma o esporte como sendo uma prática realizada
de maneira competitiva. Além disso, o sociólogo destaca o esporte como atividade
de lazer, embora às vezes possa transformar-se em atividade profissional, como ele
114
mesmo sublinha mais adiante. O esforço físico é outra dimensão apontada como
predominante, o que significa que não é a única dimensão a definir o esporte, embora
sobressaia-se. Nessa definição, jogos de tabuleiro cuja exigência corporal é notadamente
menor, como o xadrez, por exemplo, talvez também pudessem ser entendidos como
esportes. Por último, cita-se ainda a presença de instituições específicas, isto é, clubes,
federações, confederações, cuja existência se justifica, especificamente, para organizar as
atividades esportivas. Veremos na próxima seção que esta é uma caracterização teórica
bastante importante para os debates sobre o esporte.
O francês George Hebert (apud. POCIELLO, 1995), que se notabilizou por ter
criado um método de treinamento físico chamado “Método Natural”, que influenciou
bastante a Educação Física no Brasil e em outros países, propôs uma definição, só que
um pouco diferente. Para ele:
O esporte é toda forma de exercício ou de atividade física que tem como alvo
a realização de uma performance e cuja execução repousa essencialmente so-
bre a idéia de luta contra um elemento definido, uma distância, uma duração,
um obstáculo, uma dificuldade material, um perigo, um animal, um adversá-
rio, e, por extensão, contra si mesmo (p. 38).
115
precisei, de alguma forma, especificar com mais precisão o que entediamos por
esporte naquela ocasião. Conforme anotamos:
um conceito de esporte.
116
O exemplo serve apenas para ilustrar que talvez, durante o trabalho com
Educação Física, você também precise pensar sobre a extensão ou a validade dos
conceitos de esporte. Em situações assim, quais conceitos são mais adequados para
pensar o planejamento pedagógico de uma escola? Quais os que melhor respondem
às intenções educativas da instituição ou do professor?
Todavia, a tentativa de definição do fenômeno esportivo não é apenas um traba-
lho de nomeação. Ao contrário, no esforço de criar um conceito adequado a deter-
minadas situações, procura-se, além de avaliar em profundidade as circunstâncias
envolvidas nessas situações, refletir sobre as características teóricas e sociais mais
marcantes na prática esportiva. Nesse sentido, a definição conceitual pressupõe
uma análise rigorosa a respeito daquilo que se pretende definir. Dito de outro modo,
o processo de definição ocorre pari passu com a própria dinâmica de teorização, a
tal ponto que é quase impossível distinguir os dois momentos. Assim, a constru-
ção de uma definição de esporte é, em certa medida, a construção de uma teoria
do esporte.
3. Características do Esporte
117
gregas Antigas como Olympia eram apreendidas como um “território sagrado em
um mundo governado por outros deuses que foram capazes de impor a paz graças
a trégua olímpica”, uma cultura dedicada ao “amor pela pátria, a consagração a arte e
ao empenho na consecução da felicidade”, conforme disse Ernst Curtius, professor
na Alemanha, por volta de 1852. Era esse o ambiente intelectual em que vivia Pierre
de Coubertin. Portanto, mais do que uma efetiva transmissão através dos séculos, a
relação entre as Olimpíadas do passado e do presente, isto é, entre as Olimpíadas do
mundo antigo e as do mundo moderno seria, de acordo com essa perspectiva, resul-
tado de uma idealização. Os dois tipos de Jogos Olímpicos, afinal, têm muito pouco
em comum, exceto, talvez, o nome – que os Modernos inspiraram-se nos Antigos.
Imagem 1. Do lado esquerdo, fotografia da cerimônia de entrega de medalhas nas Olimpíadas de Inverno,
em Vancouver, Canadá, 2010. Na categoria individual da patinação artística, a sul-coreana Kim Yu-Na, a
japonesa Mao Asada e a canadense Joannie Rochette receberam, respectivamente, as medalhas de ouro,
prata e bronze (Disponível em: http://www.life.com/image/97082239). Do lado direito, pintura retratando
jogos e competições da Grécia Antiga, datadas desde, aproximadamente, os anos 1.600 a.C (Disponível
em: http://tiagotrankera.blogspot.com/2010/10/olimpiadas-na-grecia-antiga.html). Existiria continuidade
histórica entre as duas práticas?
Carl Diem nos jogos de 1932, em Los Angeles, os mesmos que criaram também
a cerimônia de entrega de medalhas no pódio com folhas de louro na cabeça dos
atletas (ver LIMA; MARTINS; CAPRATO, 2009).
1. Sobre as características do esporte atribuídas por Guttman, ver GUTTMAN, 1978. Nenhum
de seus trabalhos fora traduzido para o português. Para um artigo que comenta sinteticamen-
te parte de suas idéias, c.f. PILATTI, 2002.
118
Pesquisas como as de Alen Guttman (1978) estão entre as que corroboram o
vínculo específico entre a prática de esportes e o mundo moderno.1 Segundo esse
autor, as características assumidas pelos jogos no contexto moderno foram as razões
pelas quais tais práticas se transformaram em esporte. Antes disso, os jogos existiam
e eram praticados, mas de forma muito diferente. Não haveria divisão do trabalho
entre os jogadores, isto é, não havia especialização de funções. No esporte, de outra
forma, cada jogador tem uma função específica: o goleiro, o defensor, o atacante e
assim por diante. No mesmo sentido, Guttman destaca que o esporte operou uma
distinção entre o praticante e o espectador, o que segundo ele não ocorria em jogos
pré-modernos. Em terceiro lugar, continua o autor, os esportes desvincularam sua
prática de qualquer fundamento religioso, secularizando-o. Nos jogos pré-modernos,
diferentemente, partidas de vários tipos eram organizadas no contexto de rituais
religiosos. Além disso, os jogos modernos, isto é, os esportes experimentam grande
nível de racionalização, o que não necessariamente ocorria em jogos pré-modernos.
A complexa organização burocrático-administrativa típica ao esporte, com muitas
entidades, associações, federações, clubes e etc., seria uma amostra desse aspecto,
bem como a presença de regras escritas – o que realmente é uma peculiaridade dos
esportes. A fixação de regras e a definição de condições de igualdade seria outro aspecto
distintivo dos esportes com relação aos jogos pré-modernos. Nesses últimos, regras
variavam ao sabor das circunstâncias, enquanto que as equipes que se confrontavam
não necessariamente tinham o mesmo número de jogadores Além disso, no esporte
Secularidade
Igualdade
Especialidade
Racionalização
Burocratizaçao
Quantificação
119
que existia prática esportiva, afinal, antes disso, as pessoas não poderiam praticar algo
que sequer seus vocabulários teriam palavras para designar. Essa história remonta ao sé-
culo XV, quando se inicia o registro da palavra inglesa sport, originária do francês antigo,
disport, por sua vez de origem latina deportare, que significava, basicamente, “enviar para
fora”, “levar para longe dos negócios”, “diversão”. De certo modo, tal palavra, desde essa
época, assume sentidos mais ou menos semelhantes ao sentido de “ócio” ou de “lazer”.
No entanto, com o tempo, o significado de tais palavras iria se especializar, tornando-se
cada vez mais diferentes entre si. No século XVI, esporte designava um “Jogo que en-
volve atividade física”, “representação teatral”, performance musical”. No século seguinte,
por volta dos anos 1712 e 1728, de acordo com o dicionário de língua portuguesa de
Raphael Bluteau, “disporto”, significava “divertimento”. Por volta de 1813, no dicionário
do brasileiro Antonio de Moraes Silva, "desporto" significa “divertimento”, mas também
“recreação” e “deporte”. Já em 1945, o significado atribuído ao vocábulo “desporto”, o de-
signava como uma “prática sistemática de exercício físico”.
De outra forma, no entanto, pesquisadores como Fábio Lessa tem questionado essas
interpretações. Lessa, que é um historiador da Grécia Antiga, afirma que, realmente, a
Antiguidade desconhecia o vocábulo esporte. No entanto, segundo ele, é perfeitamente
possível que essas culturas tenham teorizado a respeito de suas práticas em termos seme-
lhantes aos que nós definimos através do conceito de esporte. Assim, nas palavras do his-
toriador, “se o termo esporte era desconhecido pela Antigüidade, o mesmo não se pode
afirmar para o seu conteúdo. Os gregos antigos, assim como os romanos, certamente
vivenciaram o conteúdo que nós teorizamos como esporte” (ver LESSA, 2008, p. 4).
De maneira mais abrangente, proposições teóricas como as de Alen Guttman tem
sido questionadas por opor excessivamente esportes modernos e jogos pré-modernos,
como se uma fissura insuperável tivesse ocorrido entre os tipos de prática corporal. Pois
ainda que o esporte encerre em si muitas singularidades, que apenas se fizeram conhecer
no contexto das sociedades modernas, não parece adequado afirmar que não existem
heranças e continuidades legadas pelos jogos do passado. Em outras palavras, os esportes,
ao mesmo tempo em que inauguram nos jogos características desconhecidas até épocas
recentes, preservam, em alguma medida, características mais antigas. A presença às vezes
ostensiva de elementos religiosos nos campos e quadras de esporte é um aspecto nesse
sentido. O futebol, em especial, é uma modalidade reconhecidamente envolvida por at-
mosferas de magia e religiosidade. São comuns os casos de jogadores, técnicos, dirigentes
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
120
Segundo Reinaldo Aguiar, que realizou uma pesquisa sobre o assunto, esses atle-
tas acreditam encontrar na religião cristã um meio capaz de superar as várias incertezas
da profissão, desde o risco constante de lesões até as incertezas dos resultados (veja no
Quadro 3 um fragmento do artigo de Aguiar). Dessa maneira, eles acabam por ado-
tar uma explicação religiosa para a prática do esporte. Os Atletas de Cristo, além disso,
assumem o papel de propagadores da fé cristã. Nesse contexto, o universo esporti-
vo fornece metáforas e vocabulários para a tentativa de evangelização de novos fiéis.
Uma reportagem do Jornal Atletas de Cristo citada por Aguiar fornece uma ilustração
do processo:
Você está cansado de lidar com um técnico que só é desonesto com você
e quando você menos espera, dá-lhe uma rasteira? Deixe Deus ser o seu
técnico. Ele só vai tratar-lhe com sinceridade e fará tudo para o seu bem.
Você está cansado de tanta conversa para assinar um contrato, e só por seis
meses? Assine um contrato com Jesus, sem muito blá-blá-blá e por toda a
eternidade. Você está cansado porque só consegue, no máximo, ficar no
banco de reservas? Saiba que no nosso time todos são titulares absolutos,
pois cada um tem uma função específica para ganhar almas [...] Você está
cansado porque ninguém mais lhe dá o seu devido valor? No esquema
tático de Deus você tem uma função especial: dar testemunho e falar de
Cristo para os seus colegas de profissão. Você está cansado de jogar num
time que não ganha dos adversários? Venha jogar no time de Cristo que
vence todas, inclusive a morte ( Jornal Atletas de Cristo, n. 52, p. 2, apud.
(AGUIAR, 2006).
“[...] A origem dos Atletas de Cristo (ADC) remonta a 1978, com um então atleta do
Clube Atlético Mineiro, João Leite. Depois de sua experiência de conversão surgiu a
preocupação de propagação de sua fé entre os seus companheiros de profissão. Uniu-
se com um ex-jogador de basquete amador, Abrahão Soares, que na época dirigia a
Mocidade para Cristo (MPC), com o intuito de “começar um trabalho de testemu-
nho e de evangelização no meio esportivo, alcançando vidas para Cristo”. O grande
público começou a perceber a sua presença quando exemplares da Bíblia eram distri-
TEORIAS DO ESPORTE
121
Neto, seu primeiro presidente; Baltazar Maria de Moraes Jr., José Baltazar de Olivei-
ra, Hélio Delvo Vilela, Hildo Zuge, Mirian Gomes Soares, Rita Maria Campos Leite
Rocha e Abrahão Soares da Silva, George Foster, José Francisco Veloso, Ivênio dos
Santos, Manfred Grellert e. Dervy Gomes de Souza.
Em janeiro de 1983 foram criados os dois primeiros Grupos Locais de ADC:
um em Curitiba, sob a liderança de Hildo Zuge e um em Salvador, tendo como líder
Mário Lima. Em 1984 surgiu o Grupo do Rio de Janeiro, sob a liderança do Pr. Eze-
quiel Batista da Luz (Zick). Em 1985 surgiu o Grupo de São Paulo, com o trabalho do
Johnny Monteiro. Depois vieram os grupos em Uberlândia, Joinville, Bauru e Recife.
Atualmente há mais de cento e vinte Grupos Locais espalhados pelo Brasil.
A partir de março de 1986, o Diretor Executivo de ADC passou a ser Alex Dias
Ribeiro (expiloto de Fórmula 1), o qual passou a ser um tipo de ideólogo de ADC.
O jornal de ADC é um periódico mensal, com tiragem de cerca de 35.000 exempla-
res. Os ADC reúnem-se com freqüência em torno de seu Congresso Anual, sempre
no mês de dezembro. Os produtos da grife Atletas de Cristo, que inicialmente se resu-
miam a adesivos, atualmente contam com camisetas, jaquetas, bonés, e várias outras
peças que divulgam sua imagem e ideal. A organização está ligada aos trabalhos
da ISC – International Sports Coalition, entidade fundada em 1982 e que congrega
os ministérios esportivos que funcionam ao redor do mundo, priorizando megaeven-
tos, como Olimpíadas e Copa do Mundo. Hoje ADC conta com mais de seis mil
atletas brasileiros, atuando no Brasil e em vários de países, como Argentina, EUA,
Portugal, Espanha, França, Itália, Turquia, Japão etc.
Institucionalmente, os ADC se definem como um ministério interdenominacio-
nal evangélico, aceitando como legítimas todas as igrejas evangélicas. Isto significa que
ADC não impõe e nem tolhe a participação de seus filiados em qualquer denomina-
ção, deixando a cargo de cada atleta a escolha da igreja que desejar. Em razão disso, o
movimento não se posiciona formalmente em relação às diferenças doutrinárias e aos
pontos polêmicos existentes no campo evangélico [...]”.
Claude Rivière (1997) foi outro pesquisador que assinalou a existência de algu-
mas correspondências entre o esporte e a religião. Segundo ele, as inúmeras práticas
mágicas ao redor do universo esportivo criam uma atmosfera que, de certo modo, ser-
ve de metáfora religiosa. Além disso, Rivière cita ainda os rituais que acontecem antes,
durante e depois das exibições, criando uma identificação coletiva entre os envolvidos
(atletas e torcedores), como as situações apropriadas de levantar e sentar nos estádios.
122
Em terceiro lugar, o autor menciona o fato da prática esportiva, tal como a religião,
acontecer em “lugares consagrados ao culto” (o estádio, o ginásio, o campo, a piscina),
ademais, em circunstâncias onde a maioria dos envolvidos deverá vestir roupas litúrgi-
cas próprias para a ocasião (o uniforme do árbitro, a batina do padre, etc.).
Antes destes, talvez de maneira pioneira, Johan Huzinga (2001) também estabe-
lecera relações entre o jogo e a religião, mesmo no contexto das sociedades modernas.
Segundo este autor:
uma prática realizada por todos os seres humanos ou apenas pelos seres humanos
de algumas culturas? Do ponto de vista das teorias do esporte, são essas as questões
suscitadas por debates como àqueles sobre a presença ou ausência da religião no
âmbito esportivo.
123
Um dos problemas – mas certamente não o único, nem o mais importante – é a
crença de que o fenômeno esportivo manifesta-se de uma maneira homogênea. Atual-
mente, muitos estudos – sobretudo de antropólogos – têm destacado que existe uma
variedade de maneiras de se praticar esportes. Os esportes de alto rendimento, subor-
dinados a uma organização institucional formal, com regras fixas e pré-estabelecidas
representa apenas uma dessas muitas maneiras de praticá-lo. O problema, portanto,
não é propriamente o de criar uma teoria do esporte ou identificar suas características
principais, mas sim o de tentar fazê-lo através de uma única teoria, tomando como
modelo uma, dentre muitas formas de manifestação do fenômeno esportivo. Pois se
os esportes praticados durantes os eventos de alto nível assumem certas característi-
cas, como a padronização mundial de regras, outras formas de prática, como o futebol
de várzea, por exemplo, tem seus próprios princípios de organização, que diz respeito,
entre outras coisas, a improvisação e variação regional nas regras, no tamanho do cam-
po ou no número de jogadores. Vale fazer tabelinha com a parede? Qual a duração das
partidas? Quantos jogadores irão compor as equipes? Qual a altura máxima permitida
na validação de um gol, quando as traves são improvisadas com pedras, chinelos ou
uma variedade de outros objetos? Geralmente tudo isso varia bastante de uma região
para outra, de um bairro para outro, às vezes de uma rua para outra (Sobre a variedade
de formas do futebol, veja o quadro 4, com texto de autoria de Álvaro Cabo).
Não será nosso objetivo aqui chegar a um consenso sobre a época mais adequada
para localizar as origens históricas do esporte ou sobre o grau de influência desempe-
nhado pelos jogos antigos na atual conformação dos esportes. Nossa finalidade foi tão
somente apresentar as principais interpretações possíveis a esse respeito. Todavia, a
despeito das divergências sobre esse assunto, podemos concluir, assim mesmo, que a
definição de esporte adotada é fator determinante. Assim, se adotarmos, por exemplo,
uma definição que conceitua esporte como qualquer forma de treinamento ou edu-
cação do corpo, seria correto e coerente enxergar nas práticas dos ginásios gregos ou
nos jogos dos povos pré-históricos uma forma de prática esportiva. Se, de outra forma,
adotarmos uma definição que conceitua esporte como algo específico, teríamos, cer-
tamente, uma definição menos abrangente, circunscrevendo esse fenômeno apenas à
uma cultura em particular, que é a nossa, no caso.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
124
pseudo-retrospectiva dos principais acontecimentos daquele ciclo que se encerra.
No âmbito esportivo, isto fica muito claro, principalmente nos veículos e canais espe-
cializados como o Jornal o Lance, e as emissoras de tv a cabo SPORTV e ESPN. Neste
último mês me recordo por exemplo de um especial com 180 gols internacionais, fato
que apesar de toda a minha paixão pelo futebol me deixou cansado. Poderia seguir o ób-
vio e relatar nesta página os melhores momentos de partidas como a final da Copa das
Confederações na África do Sul vencidas pelo Brasil sobre os Estados Unidos, a partida
final do brasileirão na qual o Flamengo derrotou dramaticamente o Grêmio, sagrando-
-se hexacampeão brasileiro, ou a final do Mundial Interclubes vencido pelo Barcelona
com gol de peito do argentino bola de ouro da FIFA Lionel Messi na prorrogação sobre
o Estudiantes de la Plata do craque Verón, porém acredito que muitos amantes da bola já
estejam também enfadados e devidamente informados sobre esses “jogos para sempre”.
Isto posto, pretendo nessas linhas registrar visões pitorescas do futebol que presen-
ciei em viagens ao longo de 2009, momentos únicos de amor pelo esporte mais popular
do mundo no Chile, Brasil e Argentina, onde o prazer de estar com uma bola estava
acima do prestígio de ser campeão, da motivação econômica ou da busca de uma vaga
para uma Copa do Mundo.
Futbolito na Ilha de Páscoa. Isolada no Oceano Pacífico, a 3.720 km do Chile e
4.025 do Tahiti está localizada este pequeno paraíso que desde 9 de setembro de 1888
foi incorporado politicamente ao Chile apesar da sua cultura milenar Rapa Nui e da ní-
tida influência polinésia nos seus habitantes.
Ilha vulcânica de impressionantes moais (enormes esculturas de pedras), do mito
do Homem Pássaro, de ótimas ondas, da festa cultural do Tapati com um povo bron-
zeado e hospitaleiro que sobrevive atualmente da pesca, artesanato e turismo, o futebol
também está presente nos domingos em um campo esburacado no centro da vila de-
fronte a Praia de Hanga Roa.
No mês de Janeiro, quando visitei a ilha estava sendo disputado um torneio de Fut-
bolito, como o soçaite brasileiro com 6 na linha e um goleiro. Várias partidas de 20 minu-
tos são realizadas no campão, desde às 14:00 até o entardecer, pois o mesmo é dividido
em dois com balizas no meio. Muitos jovens e turistas assistem as disputas e no final do
dia rola um grande peladão onde todos podem participar. O torneio dura 4 semanas e a
final ocorre junto com o Tapati, que é um evento cultural que mobiliza toda a ilha.
É curioso que no ano de 2009 ocorreu a primeira partida oficial na ilha. Pela Copa
do Chile o tradicional Colo-Colo venceu um selecionado de nativos por 4×0, consti-
tuindo assim, apesar da goleada sofrida, em um marco histórico para o futebol rapa nui.
TEORIAS DO ESPORTE
Fortaleza em julho. Pesquisadores do esporte brigam com a bola nas areias da Praia de
Iracema. Após uma frutífera semana de debates e discussões no Simpósio Temático
de História do Esporte na ANPUH/NACIONAL realizada na capital cerarense uma
125
pelada na praia de “eternos” 20 minutos encerra as atividades. Alguns dos integran-
tes deste blog como Maurício Drumond, Ricardo Bull, Luiz Carlos Santana, Rafael
Fortes e Leonardo Bahiense, além do cronista que vos escreve suaram bastante para
empatar em 1 a 1 com o combinado do Paraná/São Paulo
Fim do Mundo. Na Terra del Fuego, cidade de Ushuaia, canal de Beagle, antiga
colônia penal e importante porto de saída para a Antártida, presenciei em outubro
a realização de um torneio abrasador, a Copa da Patagônia argentina. Fui informado
no campo que o campeão se classifica para Série C do Campeonato Argentino pelo
técnico de uma das principais equipes da região,os “Cuervos del Sur”, cujo uniforme é
igual ao do San Lorenzo de Almagro.
Temperatura em torno de dois graus com muito vento. Estava retornando de
uma visita ao Parque Nacional da Terra del Fuego onde tinha nevado bastante, quan-
do avistei um campo e “locos por fútbol” em torno dele. Maluco também, desci do
ônibus do passeio que estava com minha esposa e acompanhei o primeiro tempo da
equipe dos funcionários do Município de Ushuaia que vestia o uniforme argentino
contra o time Arturo Pont formado por chilenos que vivem na região. A beleza da
localização do campo a beira da Bahia de Ushuaia cercada por montanhas nevadas
como o Glaciar Martial, o Cerro Godoy e o Cerro Roy é indescritível, talvez a ima-
gem de uma jogada registre palidamente o momento.
Após uma caminhada na geleira com um grupo de turistas em um lugar incrível
percebi que uma das principais formas de lazer dos guias era disputar em uma peque-
na área um jogo de controle de bola com os pés misturando regras do tênis com o
vôlei. No momento que os turistas estão lanchando ou enquanto não chega um novo
grupo a principal diversão para muitos dos guias são essas acirradas disputas de mais
um jogo onde o amor a bola é o que predomina.
Assim sendo, enquanto a bola rolava nos estaduais, nas eliminatórias para a Copa
do Mundo da África do Sul, na Libertadores, no Brasileirão, Champions League e tan-
tos outros torneios nacionais e internacionais é importante lembrar que ela também
corre nas peladas de praia entre amigos, nos confins da Patagônia e até na distante e
isolada Ilha de Páscoa. Com certeza a pelota está em todo o Mercosul e em vários
locais inóspitos de todo o planeta”.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Nesta seção, como o título anuncia, vamos estudar a história do processo de formação
das teorias do esporte. A Inglaterra foi o primeiro lugar em que a pratica esportiva
126
assumiu suas formas modernas, isto é, basicamente, as formas pelas quais até hoje
muitas modalidades são praticadas. Reparem que a maioria das modalidades esportivas,
com poucas exceções, tem sua história ligada à história da Inglaterra. O futebol, o rúgbi,
o turfe, o tênis, o atletismo, entre muitas outras, tiveram suas regras atuais criadas ou
no mínimo organizadas pela primeira vez na Inglaterra (veja neste trabalho a seção
“A sociologia figuracional e as teorias do esporte”). Seria interessante pensar os motivos
para esse pioneirismo inglês, bem como as razões pelas quais a disseminação mundial
dessas modalidades se tornou possível. No entanto, isto escapa em muitos aos limites
deste nosso material pedagógico.
Para os propósitos desta seção, interessa assinalar que as primeiras reflexões sobre
o esporte tiveram lugar, como era de se esperar, também na Inglaterra. Em 1796, Peter
Beckford lançara um pioneiro livro versando sobre caça a raposa. De certo modo, tal
iniciativa daria ensejo para outras publicações sobre esporte. Em 1812, Pierce Egan
lançaria um livro sobre pugilato. Caça a raposa e boxe, além do turfe e do iatismo, foram
algumas das primeiras modalidades a se conformar mais evidentemente nos moldes
de organização que até hoje caracterizam o que reconhecemos como esporte, o que
explica sua precoce presença em livros e outras publicações.
A medida, pois, que outras modalidades iam se desenvolvendo, livros, estudos
e reflexões sobre elas, em geral, iam também tendo vez. Em 1887 e 1889, Montagu
Shearman lançava seus livros sobre futebol, rúgbi e atletismo. Mais ou menos na
mesma época, final do século XIX, acadêmicos começavam, discretamente, a fazer
referência ao esporte em seus estudos. Em 1889, o economista Thorstein Veblen
trazia à luz seu hoje famoso livro intitulado A teoria da classe ociosa. Veblen destacava
uma série de atividades empregadas no tempo livre como estratégias de distinção
social por intermédio do consumo improdutivo. Segundo ele, nas sociedades
modernas industriais, a posse e exibição de luxo e riqueza é algo que confere
prestígio e status. Nesse contexto, a aquisição de habilidades como o conhecimento
de línguas, de músicas, de artes ou até mesmo a desinteressada prática de esportes
serviria como prova da capacidade pecuniária de quem exibia e ostentava essas
habilidades, na medida em que pressupunham a capacidade do indivíduo em dispor
de tempo, energia e dinheiro para adquiri-las e desenvolvê-las (VEBLEN, 1983).
Reparem que até hoje o movimento olímpico se declara oficialmente
amador, embora, na prática, as Olimpíadas tenham se tornado um grande
negócio profissional há muito tempo. Mesmo assim, não se admite nenhum tipo
de premiação em dinheiro para os atletas durante as Olimpíadas. Todavia, os
“nobres” ideais do amadorismo serviram historicamente como barreira para o
TEORIAS DO ESPORTE
acesso das classes populares à prática esportiva. Pois praticar esporte por amor e
por cavalheirismo é um privilégio de quem pode não se preocupar com dinheiro.
Os pobres, por outro lado, precisavam dedicar-se ao trabalho, ao invés do esporte.
Apenas quando esporte e trabalho se encontraram, quer dizer, apenas quando
127
esporte virou trabalho, profissionalizando-se, é que as classes populares tiveram
então condições de participar da sua prática.
Em 1904, o alemão Max Weber apresentava seu não menos famoso livro intitula-
do A ética protestante e o espírito do capitalismo. Weber, nesse livro, postulava que o surgi-
mento de uma organização econômica capitalista tinha relações (ou afinidades, para
usarmos um termo próprio de Weber) com a ética das religiões protestantes. Segundo
Weber, fora a construção da idéia de aumento da riqueza como dever religioso um dos
principais fundamentos para o surgimento do capitalismo. As doutrinas protestantes
teriam inaugurado um corolário religioso capaz de atenuar os preceitos da chamada
“Doutrina da Predestinação”. Dali em diante, a bíblia era interpretada no sentido de
destacar que a condição de eleito não era uma fatalidade, até porque, a motivação da
decisão divina não estaria acessível aos homens, de modo que nunca se saberia ao
certo quem seria ou não eleito ao Reino dos Céus. Ao mesmo tempo, a nova inter-
pretação protestante da bíblia destacava que Deus desejava um Reino de riqueza e
prosperidade, onde a abundância entre os homens serviria à glorificação da bondade e
justiça de Deus. Assim, o trabalho dedicado e disciplinado era uma espécie de serviço
a Deus, já que seu eventual resultado, a riqueza, era então uma forma de Louvá-lo. A
riqueza, por outro lado, era um sinal de que Deus favorecera aquele trabalhador, que
honrava Sua vontade. Logo, ainda que a salvação fosse sempre incerta, a condição ma-
terial e financeira na terra era um indício lógico da vontade de Deus.
O surgimento histórico dessa nova doutrina religiosa teria um amplo conjunto
de implicações sociais, inclusive, no que diz respeito ao esporte. Segundo anotara o
próprio Weber, o puritanismo protestante favorecia diversões de caráter mais racio-
nal, mais controlado, mais asséptico, algo a que o esporte, de certa forma, se prestaria
muito bem. Não por acaso, claramente na esteira dos acontecimentos mencionados
no parágrafo anterior, por volta de 1617, o rei James I publicou na Inglaterra a “Decla-
ração de Sua Majestade Real sobre os assuntos relacionados aos esportes permitidos”,
que seria reeditado algumas vezes nos anos subseqüentes. Tratava-se de uma tentati-
va clara de regulamentar racionalmente as formas de jogo e divertimento da época
(WEBER, 2003).
Pouco depois, só que de forma ainda mais sistemática, começariam a surgir tra-
balhos realizados por acadêmicos que tinham o esporte como principal interesse de
estudo. Foi o caso do livro Sport und Kultur, do alemão Steinitzer, lançado em 1910.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
128
por volta do fim do século XIX, e ao longo das duas primeiras décadas do século XX,
no momento mesmo em que a idéia de uma ciência dedicada ao estudo da sociedade
se consolidava mais obviamente, intelectuais acadêmicos começavam a dedicar aten-
ção a este fenômeno. É o que poderíamos chamar, utilizando uma forma de classifica-
ção empregada por Juliano Souza e Wanderley Marchi Junior, de fase pré-histórica das
teorias do esporte (ver SOUZA, 2010). Depois disso, essas iniciativas se tornariam
pouco a pouco mais regulares, além de ganharem em profundidade teórica.
A partir da década de 1920, aproximadamente, sociólogos, sobretudo nos Estados
Unidos, ampliam seu interesse pelo tema do esporte. Por outra via, em 1938, o his-
toriador holandês Johan Huizinga publicaria seu clássico livro sobre os jogos como
elemento da cultura. Seu argumento, em poucas palavras, era que o jogo constituía
elemento básico da cultura, “uma das principais bases da civilização”, conforme suas
palavras (HUIZINGA, 2001, p. 8). Huizinga dizia que o jogo não encontra funda-
mento em qualquer elemento racional. O jogo não tem uma finalidade especial ou
uma razão. É algo realizado gratuitamente, sem a necessidade de uma utilidade. No
jogo, dizia Huizinga, só o próprio jogo importa. Trata-se, portanto, de uma “entidade
independente desprovida de sentido e racionalidade” (p. 21). De acordo com Huizin-
ga, era justamente essa característica fundamental do jogo que o habilitaria a ser ele-
vado como uma das “mais altas regiões do espírito”. Assim, pouco a pouco, cientistas
sociais iam percebendo a importância de práticas lúdicas para a ampliação do nosso
conhecimento sobre a sociedade.
Essas iniciativas poderiam ser chamadas de estágio transitório na formação das te-
orias do esporte (SOUZA, MARCHI JUNIOR, op.cit.). Pois somente a partir da dé-
cada de 1950, iniciativas para estudar sociologicamente o esporte ganhariam feições
mais ininterruptas, deixando de ser a ação individual de algum pesquisador isolado,
para transformar-se em ações organizadas e permanentes de grupos de pesquisado-
res. Em 1955, Gregory Stone publicava um estudo sobre o esporte nos Estados Uni-
dos. Em 1958, A. Natan lançava o livro Sport and society. No início dos anos 1960,
sociólogos como Anthony Giddens e Eric Dunning defendiam teses de doutorado
dedicadas especificamente à temática do esporte. Em 1963, Peter McIntosh publicava
seu livro intitulado Sport in society . No ano seguinte, na França, era a vez do sociólogo
George Magnane lançar Sociologie du Sport . Em 1965, seria criada, na Polônia, a Asso-
ciação Internacional de Sociologia do Esporte . Em 1966, esta mesma Associação lançaria
o primeiro periódico científico dedicado, especificamente, a temática do esporte: a
Revista Internacional de Sociologia do Esporte. Até ali, as pesquisas sobre esporte
eram poucas, e eram vinculadas através de periódicos mais gerais. Este momento, por-
TEORIAS DO ESPORTE
129
manter-se atualizado sobre os principais estudos e pesquisas, dado o enorme volume
de informações disponíveis a esse respeito.
âmbito nacional. Grosso modo, pode-se dizer que, no Brasil, o desenvolvimento das
teorias do esporte seguiu formas análogas aquela do contexto internacional. Primei-
ro, um estágio pré-histórico, que marca o surgimento de um interesse não-acadêmico
pela reflexão sobre esporte. Em 1893, Manoel Valadão apresentava seu livro intitulado
História do turfe. Em 1901, Thomaz Rabello apresentava sua própria versão para o mes-
mo assunto através do livro sobre História do turf no Brazil. Em 1909, Alberto Mendonça
divulgava seu trabalho sobre História do Sport náutico no Brasil.
130
Eram publicações de entusiastas do esporte. Lembremos também que o turfe e os
esportes náuticos (o remo, mais especificamente) foram as primeiras modalidades espor-
tivas a se desenvolverem no Brasil.3
Depois, por volta da década de 1920, Gilberto Freyre, importantíssimo intelectual
brasileiro, anotaria, de maneira dispersa, algumas reflexões sobre a possibilidade do es-
porte – e mais especificamente o futebol – ser suscetível à problematizações sociológicas.
Em 1947, o jornalista Mario Filho – que dá nome ao estádio do Maracanã – publicava
seu livro O negro no futebol brasileiro , acompanhado por prefácio de Gilberto Freyre. Em
1952, Inezil Penna Marinho divulgava seu trabalho sobre a História da Educação Física e
dos Desportos no Brasil. Penna Marinho foi um importante nome da Educação Física da
época, escrevendo muitos livros sobre esporte e Educação Física em geral. Tem-se ainda,
em 1954 a publicação de Os desportos de todo mundo, de Adolpho Scherman.
A partir do final da década de 1960, aparecem novas publicações refletindo sobre os
sentidos sociais do esporte. Daí em diante, esse tipo de esforço tenderia a assumir um ca-
ráter mais permanente, incitando outros pesquisadores a se dedicarem ao assunto. Nome-
adamente, em 1969, a editoria da Universidade de São Paulo traduzia o livro do sociólogo
francês Georges Magnane. Em 1973, João Lyra Filho, que já havia publicado livros sobre
Psicologia do esporte e Direito Esportivo, lança, dessa vez, uma obra intitulada Introdução
a sociologia do desporto , naquela que é, provavelmente, o primeiro trabalho do gênero no
Brasil. Em 1981, o historiador Joel Rufino dos Santos apresenta o livro História política do
futebol brasileiro.4 No ano seguinte, o antropólogo Roberto da Matta, famoso por elaborar
interpretações alternativas sobre o significado de ser brasileiro, organiza uma coletânea
de artigos dedicada exclusivamente ao futebol. Em 1983, a norte-americana Janet Lever
publica sua tese de doutorado intitulada A loucura do futebol , resultado do fascínio da psi-
cóloga norte-americana com a paixão do brasileiro por futebol.
Entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990, José Sérgio Leite Lopes
publicava estudos sobre o sentido antropológico do futebol brasileiro em importantes
periódicos acadêmicos internacionais, ao mesmo tempo em que nomes como Ronaldo
Helal, depois de estudar nos Estados Unidos, regressava ao Brasil e iniciava a divulgação
da idéia de uma “sociologia do esporte” (ver HELAL, 1990). Na mesma época, na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o professor Maurício Murad criava o núcleo de
sociologia do futebol, que logo passaria a editar a revista intitulada Cadernos de Campo.
No fim dos anos 1990, em 1997, mais especificamente, sete anos depois da fundação
da Associação Nacional de Pesquisadores em História, aparece o primeiro Grupo de
Trabalho sobre História do Esporte no Seminário Nacional dessa entidade científica.
Em 2000, acontece o mesmo no âmbito da Reunião Brasileira de Antropologia – evento
TEORIAS DO ESPORTE
3. Para uma história da formação do campo esportivo no Brasil ver MELO, 2001.
4. Para um comentário sobre esse livro, veja a resenha de minha autoria, disponível em: http://
www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde/pdf/recordeV1N1_2008_21.pdf
131
organizado pela Associação Brasileira de Antropologia. Em 2002, é a vez da formação de
um grupo de trabalho na Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisadores em
Ciências Sociais.
Esta seqüência de acontecimentos vai denunciando a progressiva institucionalização
das teorias do esporte no Brasil. Agora, ao invés de iniciativas isoladas e ocasionais, cria-se
uma estrutura capaz de dar suporte e incentivar permanentemente iniciativas de pesquisa
sobre os esportes. Registre-se, contudo, que desde 1978, têm-se notícias do Colégio Brasi-
leiro de Ciências do Esporte . Não o citamos por não considerá-lo dedicado especificamente
às teorias do esporte, apesar do nome. Em verdade, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
é uma associação científica de pesquisadores em Educação Física, o que significa não ne-
cessariamente em esporte. O mesmo se diz do periódico dessa entidade, a Revista Brasileira
de Ciências do Esporte, publicada desde 1979, que apesar do nome, vincula artigos sobre
muitos assuntos além do esporte propriamente dito.5 O mesmo talvez se possa dizer da
Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, periódico da Escola de Educação Física e
Esporte da Universidade de São Paulo, publicada desde os meados dos anos 1980.
Nesse sentido, ao longo da primeira década do século XXI, depois de um processo
de amadurecimento, aprofundamento e qualificação, um sensível aumento do número
de publicações especializadas poderia ser notado. Para se ter idéia, uma busca pela palavra
esporte no catálogo antigo do banco de dados da Biblioteca Nacional, referente a publica-
ções datadas até 1980, acusa 156 livros relacionados ao assunto. Uma busca no catálogo
atual, referente às publicações lançadas depois de 1980, acusa 681 títulos. É um indício
do aumento de recente interesse pelo assunto, ainda que nem todos os registros digam
respeito a publicações relacionadas às teorias do esporte, isto é, a livros acadêmicos, notan-
do-se grande número de trabalhos jornalísticos e mesmo literários. Além disso, números
especiais tendo o esporte como temática principal em revistas acadêmicas no âmbito das
Ciências Sociais vem sendo registrados desde os meados da década de 1990 (veja alguns
exemplos no Quadro 6, página 27).
Mais sintomático, fora o lançamento da revista Esporte e Sociedade (Disponível em:
http://www.uff.br/esportesociedade/), em 2006, acompanhada pelo lançamento da Re-
corde – Revista Brasileira de História do Esporte (Disponível em: http://www.sport.ifcs.ufrj.
br/recorde/home.asp), dois anos depois.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
132
Quadro 6 - Números dedicados ao esporte em revistas
das Ciências Sociais
133
gênese desse fenômeno; a segunda, que se ocupa em apresentar algumas críticas que
vêm se colocando a essas abordagens, ampliando o número de referências; e a terceira,
cuja intenção é situar esses debates de maneira mais ampla, buscando apreender algu-
mas das suas implicações.
134
portanto, que alguns dos principais seguidores de Elias sejam pesquisadores dedica-
dos ao estudo do esporte e do lazer.
Os trabalhos de Elias sobre o esporte versavam, basicamente, sobre temas
como sua prática enquanto um espaço de controle ou descontrole das emoções.
Sob este aspecto, eles podem ser vistos como desdobramentos e aplicações óbvias
de suas teorizações mais gerais, notadamente a idéia de um processo civilizador,
compreendido como um progressivo controle da natureza e das relações sociais, com
um respectivo grau de autocontrole individual (ver ELIAS e DUNNING, 1992).
Mais particularmente, suas reflexões sobre o esporte trataram também de
questões referentes à gênese moderna deste fenômeno. Aí, seus argumentos centrais, a
exemplo de todo o resto, não escapam a lógica mais ampla de toda a sua obra, que é a
de identificar o acionamento de uma macro-tendência social, que ele próprio designa
como um processo de civilização dos costumes. Nesse artigo, pretendemos tomar
esse tópico, em especial, como veículo para as nossas reflexões sobre a sociologia
figuracional frente ao esporte.
De modo geral a sociologia figuracional afirma que as características dos jogos
praticados no contexto histórico moderno se singularizam. O esporte, nesses termos,
não teria equivalências, por exemplo, com jogos da Antiguidade, como o senso co-
mum costuma supor. O pancrário e o boxe – para tomar um caso apresentado pelo
próprio Elias – se diferenciam entre si exatamente pelo fato do último assumir uma
forma “mais civilizada” com relação ao primeiro. Ou seja, a forma de se jogar em uma
sociedade civilizada, tende a assumir tais características. À medida que uma sociedade
vai, pois, se pacificando, ter-se-á uma estrutura de sentimentos que vai progressiva-
mente desprezando os jogos mais violentos e sanguinários, como as touradas ou as
brigas de animais, ao mesmo tempo em que vai valorizando, cada vez mais, jogos e
diversões pacatas e com relativo grau de controle. Assim, o esporte é definido como
atividades moderadas e regradas, com normas escritas, número pré-estabelecido de
jogadores e igualdade numérica entre as equipes, um processo de “regulamentação
dos passatempos”. Nesse sentido, o surgimento de regras escritas ou de associações na-
cionais seriam aspectos bastante exemplares de tais dinamizações. Cita-se, por exem-
plo, a criação de categorias de peso no boxe entre 1850 e 1860, ou a limitação da dura-
ção e do número de assaltos nas lutas a partir de 1865. Fala-se também da elaboração
das primeiras regras escritas no futebol e no rúgbi ao longo da década de 1840, bem
como da padronização desses jogos através de clubes e associações que atuavam já em
níveis nacionais por essa época. Todas essas iniciativas, segundo esta argumentação,
limitavam o contato físico e o nível de emprego da força, exigindo, consequentemente,
TEORIAS DO ESPORTE
135
cavalo, pugilismo, caça a raposa e alguns outros jogos com bola como o futebol e o
tênis. Em suma, e de acordo com os sociólogos figuracionais, somente no contexto
de uma sociedade moderna que se pacificava progressivamente é que jogos e outras
práticas corporais puderam se decodificar como esportes. Em outras palavras, esse
é um fenômeno que deve ser visto como um produto de atitudes e sensibilidades
próprias à modernidade. “Foi no contexto de uma sociedade cada vez mais pacificada
e submetida a formas mais eficazes de legislação parlamentar onde começaram a
surgir formas modernas e reconhecíveis de esportes baseados em regras escritas”
(DUNNING, 2003, p. 72).
5.2 Críticas
críticas desse tipo. Por último, diz-se ainda que sua teoria é de fácil reprodução e fornece
um recurso reconfortante para a rotina de pesquisa.
Desse breve quadro esquemático das críticas apontadas por Giulianotti são as duas
últimas que parecem mais interessantes para (re) pensar os problemas do esporte nas
teorias sociais.
Sobre a questão da linguagem evolucionista, o uso recorrente de termos normativos
como “efeito retardado”, “integração em alto nível” ou mesmo a adoção da noção webe-
136
riana de “sociedades simples”, de fato abrem a obra de Elias para uma pertinente leitura
crítica. A cadeia semântica de cada uma dessas noções, bem como os constructos teó-
ricos que lhes são subjacentes, sugere que as dinâmicas sociais progridem de maneira
geométrica, com certa inevitabilidade.
É ilustrativo sob este aspecto que Elias tenha recorrido reiteradamente à figura de
uma espiral para explicar a ordem evolutiva do processo civilizador. É emblemático
também que Elias sempre tenha demonstrado uma confiança mais ou menos excessiva
nas qualidades da civilização moderna, desprezando, de certo modo, algumas das suas
principais conseqüências, como a violência da colonização ou o Holocausto. Tragédias
humanitárias como as que se testemunharam reiteradamente ao longo de todo o século
XX, seriam apenas pequenos retrocessos no processo civilizador, sempre sujeito a re-
veses. “A civilização a que me refiro nunca está completa, e está sempre ameaçada [...] a
pacificação interna de uma sociedade também está sempre correndo perigo” (ELIAS,
1997, p. 161).
Outras análises, no entanto, tem se esforçado em destacar que eventos como os
horrores do terrorismo ou as barbáries dos campos de concentração não são meros
desvios ou contratempos à marcha civilizacional do Ocidente. Ao contrário, tem-se
concluído que tais episódios são inerentes ao seu desenvolvimento, onde seria um
equívoco ou uma cegueira tentar não enxergá-los como produtos do seu próprio
processo de expansão. Para mencionar alguns exemplos, citemos, primeiramente, um
ensaio de John Gray, que analisa a rede terrorista Al Qaeda.
Segundo Gray (2004), o terror revolucionário praticado pelos talibãs, que se auto-
-proclamam como um ataque aos valores da modernidade ocidental, é, ele próprio,
uma invenção ocidental moderna. Seus princípios de pensamento, suas estratégias de
ação e boa parte das suas convicções foram moduladas pela ideologia moderna do
Ocidente. A tradição de violência revolucionária, inventada pelos jacobinos e depois
utilizada pelos anarquistas no Ocidente, tinham as mesmas finalidades do islamismo
radical do Oriente, qual seja, “refazer o mundo com atos espetaculares de terror” (p.
34). Nesse sentido, o terrorismo islâmico, que costuma ser apresentado como algo
típico ao Oriente, não passa de uma realização do ideal europeu moderno: “é um sin-
toma da doença da qual pretende ser a cura” (ibid., p. 38).
De maneira ainda mais desconcertante, Zygmunt Bauman aborda sociologica-
mente o Holocausto. Contrariando a corrente que vê a civilização como aquela for-
mação social que eliminou a violência da vida diária sendo, hipoteticamente e por isso
mesmo, moralmente edificante, Bauman (1998) recorre aos bárbaros acontecimen-
tos da carnificina nazista para fazer ver que este episódio “nasceu e foi executado na
TEORIAS DO ESPORTE
137
normativa, excluem tendências não menos cruciais, como o seu potencial destrutivo,
sugerindo falsamente que aspectos como esses são de natureza casual e transitória (p.
48). Mas de acordo com os argumentos de Bauman, tragédias como o Holocausto
não foram nem uma “interrupção do curso normal da história”, nem um “câncer no
corpo da sociedade civilizada”, tampouco “uma loucura momentânea num contexto
de sanidade” (passim). Ao invés disso, Bauman insiste que episódios dessa natureza
fazem mesmo parte da estrutura social da nossa civilização.
Elias, de outra forma, relutou em aceitar que fatos “não-civilizados” fossem
conseqüências e desdobramentos próprios ao desenvolvimento da civilização
Ocidental moderna. Tal postura exprime uma “certa indiferença a especificidade dos
eventos históricos” (GIULIANOTTI, op.cit., p. 156).
Não se trata aqui de um desprezo pela história pura e simples, mas sim, de um
desprezo pela história que se dá fora do escopo da história do Ocidente. Não por acaso,
nomes como Jack Goody (2008), um renomado antropólogo inglês, já se ocuparam
de sumariar alguns limites do pensamento de Elias nesse sentido. Referindo-se ao
conjunto da obra elisiana, Goody afirma que “seu texto é altamente eurocêntrico” (p.
191). Segundo ele, suas teorias, apesar de terem grandes pretensões generalizantes,
privilegiam o ponto de vista particular da Europa Ocidental. Assim, o singular uso
de utensílios para a alimentação, os complexos rituais de cumprimento e de higiene
pessoal, bem como a rigorosa e característica disciplina da antiguíssima civilização
chinesa são sumariamente ignoradas, o que significa que o conceito de civilização na
obra de Elias esteve sempre confinado ao contexto europeu.
Por que desconsiderar – como ele faz – o que aconteceu em outras sociedades tais
como a China, quando se está lidando com “civilizações”? Lá também o desenvolvi-
mento dos costumes, o uso de intermediários (pauzinhos – hashi) entre o alimento e
a boca, os rituais complicados de saudação e limpeza corporal, as restrições da corte
em contraste com a objetividade dos camponeses, como, por exemplo, na cerimônia
do chá, tudo isso apresenta paralelo com a Europa da Renascença [...] Prenda-se à Eu-
ropa se desejar, mas não quando está fazendo afirmações mais generalizadas. E isso era
exatamente o que Elias estava fazendo. (p. 198).
Ao lado do problema de tomar os padrões culturais do Ocidente como parâmetro
ideal de comportamento, o antropólogo destaca ainda, ao encontro de outras críti-
cas apresentadas anteriormente, que a formação do Estado – tão enfatizada por Elias
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
138
trabalhou como professor da Universidade de Legon, em Gana, na África, o sociólogo
alemão teria mantido uma postura de permanente afastamento das culturas locais. De
acordo com Goody (2002), essa forma de relacionar-se com as diferenças culturais
seria apenas a expressão cotidiana de uma tradição intelectual européia da qual Elias
era, de certo modo, um herdeiro. “[Esta] ignorância e distância da cena local [...] não
era característica apenas de Elias, mas era visível em outros professores das ciências so-
ciais expatriados na África e que vinham da tradição sociológica européia dominante”
(p. 402).
Tudo isso resultaria, em síntese, no que Jack Goody (2008) chama de “falta de
profundidade histórica de longo prazo” (p. 186), que faz com que os problemas de
pesquisa, bem como todas as suas explicações, sejam postas de maneira sempre muito
geral e, portanto, de forma inadequada tanto histórica quanto sociologicamente. Em
decorrência, “muitas das diferenças que surgem das suas observações superficiais so-
bre ‘civilização’ desaparecem em um exame mais intensivo e completo (p. 204, o grifo
é meu).
De fato, não seria de todo errado dizer que, de um ponto de vista especificamente
histórico, o panorama traçado por Elias sobre as transformações ocorridas na Europa
parece mesmo pouco matizado. No caso da reconstituição histórica das dinâmicas
que produziram o chamado processo civilizador já se tem estudos que demonstram
que aquelas transformações da intimidade não operaram de maneira inequívoca por
toda a sociedade européia, e sequer o fizeram em todos os estratos da população dos
países que de fato se submeteram a tal processo, como é o caso da França e da Ingla-
terra. Ao contrário, diferentes segmentos dessas sociedades vivenciaram de maneira
igualmente diferente cada um daqueles processos, assim como diferentes contextos
culturais e nacionais apreenderam e experimentaram de maneira diversificada esses
processos. Nesse sentido, pode-se dizer que há muitos modos de ser modernos, assim
como há muitos modos de ser civilizado. “Os atuais desenvolvimentos das sociedades
modernas têm refutado a homogeneização e a suposta hegemonia deste programa de
modernidade Ocidental” (EISENSTADT, 2001, p. 1).
Thompson (1987) já nos mostrou como as classes populares da Inglaterra foram
reticentes em adotar alguns padrões de conduta e comportamento típicos à moder-
nidade. A vida nas cidades ou o trabalho na fábrica, por exemplo, opus magnum da
civilização moderna, foram duramente rechaçados por algum tempo antes de se es-
tabelecerem hegemonicamente. Antigos camponeses, quando forçados a se deslocar
para grandes cidades, tendiam a ver este ambiente, acertadamente, como uma das
principais causas do seu mal-estar e “desenraizamento”. Tais sentimentos e condições
TEORIAS DO ESPORTE
139
maneiras de realizar as tarefas em conformidade com antigos hábitos, flexibilizando
o cumprimento de horários, desrespeitando a etiqueta e o decoro comportamental,
bebendo durante o expediente, escapando para pequenos passeios ou não retornando
depois de garantir a quantidade de dinheiro que lhes parecia suficiente. Não por acaso,
uma das principais preocupações das classes dirigentes nesse período foi a de como
inculcar no populacho a disciplina necessária ao trabalho fabril. Estratégias para a confor-
mação a uma rotina monótona, repetitiva e mecanizada se constituíram como o mote
modernizador na transição do século XVIII para o XIX.
Se, no coração da Inglaterra, que avançava a passos largos naquela direção civilizató-
ria, os sentidos das mudanças foram plurais, relativos e multidirecionais, como permi-
tem concluir análises como as de Thompson, o que dizer de países e culturas distantes e
menos expostos àqueles processos? Igualmente, poderíamos facilmente estender esses
questionamentos para a esfera dos lazeres. Pois, se alguns setores da sociedade se es-
forçavam em manter hábitos e costumes mais antigos, é óbvio que também o faziam
nos seus divertimentos (e talvez sobretudo nos seus divertimentos). Assim, os jogos es-
portivos eram apreendidos através de uma grade de interpretação que lhes era peculiar,
de modo que novos divertimentos se combinavam com os antigos e eram codificados
com base em tradições já instituídas. Nesse sentido, não parece equivocada a afirmação
de Giulianotti (2004) para quem, nas teorias elisianas, “a distinção entre esportes mo-
dernos e tradicionais tem sido exagerada” (p. 158).
O trabalho de Richard Holt apresenta uma interessante perspectiva e que vai mais
ou menos nessa direção. Suas investigações vão de encontro às abordagens “comumen-
te adotadas pela sociologia do esporte, que no seu entender vê o esporte como uma
atividade ‘não problemática’” (PRONI, 2001, p. 24). Holt (1992) questiona os vínculos
explicativos que se estabelecem entre o advento do esporte e as teorias da moderni-
zação. Segundo ele, nesse tipo de enfoque, desconsideram-se diferenças entre classes
dentro de um mesmo país e também as diferenças culturais entre as nações, sendo que
“aos esportes foram atribuídos sentidos culturalmente muito específicos em diferen-
tes lugares” (p. 130). Assim, ao lado das inovações simbólicas acionadas pelo efetivo
advento de jogos regrados e com relativo controle da violência, persistiam, sobretudo
entre as classes populares, formas de jogos e divertimentos mais tradicionais que não se
enquadram naquela concepção de “regulamentação dos passatempos”, como é o caso
dos açulamentos de touro ou brigas de urso, por exemplo. “A interação entre mudança e
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
140
regulamentados”. Em outras palavras, o fato dos jogos das classes populares terem regras
diferentes dos praticados pela aristocracia não quer dizer que não as tinham, mas apenas
que eram diferentes. E mesmo entre as classes dirigentes, que em geral experimentavam
o espírito vitoriano do autocontrole de maneira mais intensa, antigos costumes atrela-
dos a um padrão de conduta tido, nesses termos, como “mais violentos”, continuavam
se fazendo presentes. Nesse sentido, “Elias exagera na civilidade dos jogos nas public
schools” (Giulianotti, 2004, p. 156).
Exageros ou ênfases desmedidas em certos aspectos ligam o relativo desprezo de
Elias pelas singularidades históricas à crítica que vê sua teoria como de fácil reprodu-
ção ou como “recurso reconfortante para a rotina de pesquisa” (GIULIANOTTI, 2004,
146); “uma sociologia desenvolvimentista linear” (Holt, op.cit., p. 356). A idéia insis-
tentemente repetida por Elias e pelos elisianos de que é preciso efetivar uma pesquisa
empírica guiada por uma teoria expõe uma forma de conceber o trabalho sociológico
que é bastante discutível, pois, partindo aprioristicamente de um modelo que, em últi-
ma instância, deve ser confirmado, não é difícil transformar o trabalho de pesquisa em
um mero esforço de reunir evidencias ao seu favor.
Para além das próprias controvérsias envolvendo a gênese do esporte moderno, pode-
se extrair daí algumas implicações mais gerais que tocam o próprio fazer científico
do cientista social dedicado ao estudo do esporte. Parte dessas implicações, no caso
TEORIAS DO ESPORTE
da sociologia figuracional, está sobremaneira ligada à noção de que uma boa pesquisa
deve mesmo ser orientada por uma boa teoria. Desnecessário dizer que, nesse caso,
a boa teoria é a do processo civilizador e a boa pesquisa, por conseguinte, aquela
que a corrobora.
141
Trata-se, evidentemente, de uma espécie de tautologia que traz em si um ranço
positivista. Tais vinculações fazem ver que não é fortuita a analogia que alguns críticos
têm estabelecido entre a religião e a sociologia figuracional, acusando seus seguidores
de compor uma liturgia (GIULIANOTTI, 2005), afinal, o positivismo comtiano, que
tem sido reconhecido pelos próprios sociólogos figuracionais como importante in-
fluencia no pensamento de Elias, resultou numa religião de fato.
Evidentemente, o pensamento científico é ou deve ser a antítese do pensamento
religioso, na medida em que uma das suas principais condições de possibilidade é a
recusa às certezas do saber definitivo, o que a religião, por motivos óbvios, não pode
admitir. Em outras palavras, o progresso das ciências está condicionado a sua capaci-
dade de colocar indefinidamente em questão os princípios de sua própria constru-
ção, ou, como nos dizem Bourdieu, Chamboredon e Passerron (2004), “conduzir um
questionamento radical dos postulados fundamentais da teoria” (p. 39).
Já não se trata simplesmente de reconhecer limites e reorientar hipóteses, o que
admitem até certo ponto, mas só até certo ponto, os sociólogos figuracionais. Trata-
-se, isso sim, de ponderar a respeito dos fundamentos mais elementares das regras de
enunciação da teoria, reconhecendo nela uma construção conceitual arbitrária e, por-
tanto, sujeita a plena substituição.
Claro que reconhecer que o esquematismo teórico está mal construído está mui-
tíssimo além do que fazem os elisianos em geral, que reagem de maneira sempre mui-
to indignada a críticas de qualquer natureza (ver, por exemplo, DUNNING, 2002;
MENNELL e GOUDSBLON, 1997). Seu apego e admiração pelas proposições te-
óricas de Elias chegam mesmo a obliterar qualquer possibilidade de questionamento
mais radical, impedindo, no limite, sua própria condição de cientificidade.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
142
de, em vez de confiná-la a na observância de um decálogo de processos que
só devem, talvez, parecer avançados em relação à prática real na medida em
que são definidos de antemão [...] Portanto, é inútil pretender apresentar a
priori as condições de um pensamento autenticamente científico (ibid., pp.
14, 18, 19).
A ciência sociológica, em suma, é sempre algo em via de se fazer e por isso deve
prescindir de quaisquer formulações oferecidas de antemão, onde a filiação dogmática
a uma teoria particular, às vezes chamadas dissimuladamente de “referencial teórico”,
inibe o autêntico exercício sociológico, que diz respeito, fundamentalmente, a cons-
trução de fatos sociais, e não a pura e simples observação imparcial e distanciada de
eventos sociais, como o próprio Elias quis acreditar um dia. E é precisamente o enten-
dimento dos fatos sociais como construções que oferece talvez a dimensão mais pro-
funda dos limites da sociologia figuracional. Pois, de acordo com que Bourdieu e seus
parceiros chamaram de “fácil garantia de realismo”, não existe uma realidade objetiva
de dados sociais à espera de uma observação, cuja fidedignidade do registro depende-
ria tão somente da adequação da teoria que a informa e a orienta. “Para saber construir
um objeto e conhecer o objeto que é construído, é necessário ter consciência de que
todo objeto propriamente científico é consciente e metodicamente construído” (ibid.,
p. 64).
Nessa perspectiva, o fazer da pesquisa sociológica se desobriga de uma teoria, no
sentido em que essa noção é costumeiramente empregada. Isso não quer dizer, con-
tudo, que o esforço de teorização – no sentido da generalização de explicações sobre
situações particulares – pudesse ou devesse ser abandonado. Não é essa a questão.
O que está em tela aqui é que a explicação de fenômenos sociais (incluindo os es-
portivos) não deve admitir soluções teóricas a priori, mas sim exigir um esforço de
compreensão a partir de um detalhamento empírico e factual, derivado da análise e in-
terpretação de cada manifestação específica. Logo, não seria o caso de apontar limites
nas teorias de Norbert Elias a fim de substituí-las por outras, hipotética e supostamen-
te mais adequadas. Também não seria o caso de seguir multiplicando comentários
teóricos, só porque importantes tópicos relacionados aos esportes desenvolvidos pela
sociologia figuracional foram deixados de lado, como é o caso, por exemplo, da vio-
lência das torcidas. De certo modo, deixar de abordá-los nesse contexto é uma tentati-
va metafórica de sugerir, deliberadamente, uma possível esterilidade na discussão em
torno da qualidade da apropriação de teorias pelas pesquisas do esporte. Insistir nesse
caminho, nesse momento, seria como se limitar a discutir a eficiência das pesquisas
TEORIAS DO ESPORTE
em reproduzir os genéricos postulados das teorias com as quais e contra as quais bus-
cam as respostas para suas interrogações. Dito de outro modo, medir qualidade de
apropriação seria quase como inferir o quanto a cópia se aproxima do original, esti-
mulando a continuidade de uma tradição de pesquisa fundada na cultura do ensaio, e
143
que se restringe a elucubrações teóricas, em detrimento da investigação propriamente
dita. Ao invés de desperdiçarmos tempo e energia com isso, seria muito mais proveito-
so que continuássemos nos concentrando em dar seqüência aos estudos que vem se
anunciando de maneira bastante alvissareira.
Atualmente, uma das facetas que mais se pronuncia no fenômeno esportivo é sua
utilização como ferramenta de ação social. Multiplicam-se as iniciativas que procu-
ram promover a cidadania por intermédio da organização de atividades culturais
e/ou esportivas (no Quadro 7, veja uma interessante reflexão sobre o sentido mais
profundo dessas ações sociais na reflexão do cineasta João Moreira Salles, que já di-
rigiu uma trilogia documental sobre o futebol). O fundamento dessas ações é que o
esporte é um instrumento privilegiado de educação, de formação moral, além de ser
positivo para a saúde. Segundo dados de uma pesquisa sobre Fundações Privadas
e Associações Sem Fins Lucrativos realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), em 2002, conforme citado por Julio Davies (2006), o Brasil
tinha registrado mais de 275 mil instituições desse tipo. Dessas, aproximadamente
27 mil respondiam pela área de esporte e recreação, o que equivale a 9,75% do total
de entidades identificadas na pesquisa. Ou seja, “dentro do campo do chamado ter-
ceiro setor, a área de esportes parece ocupar uma posição de destaque” (p. 1).
É nesse contexto que cada vez mais se vê ex-ídolos do esporte emprestando seus
prestígios, suas redes de relações e às vezes parte dos seus dinheiros para levar o
esporte para crianças e jovens pobres das periferias. A triatleta Fernanda Keller, por
exemplo, empresta seu nome a um projeto de triatlo para crianças e jovens na cida-
de de Niterói, no Rio de Janeiro. Na mesma cidade, os irmãos velejadores Torben e
Lars Grael criaram um projeto de vela e iatismo – que foi inclusive objeto de inves-
tigação de Julio Daves. Da mesma forma, os ex-jogadores de futebol Leonardo e Raí
assumem a Fundação Gol de Letra, só para citarmos alguns exemplos.
Do ponto de vista sociológico, o que significam exatamente essas ações? Porque
tamanha popularidade do esporte dentro das ações sociais? Como tem sido o uso
dessa prática? Tem tido resultado? Apresentar alguns desses pontos será o nosso
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
144
da premissa que a educação e o exercício do corpo eram indispensáveis para uma
adequada educação integral do ser humano.
No Brasil, por volta da década de 1880, iniciativas como o projeto de lei de Rui
Barbosa, que propunha o ensino obrigatório da ginástica em todas as escolas brasi-
leiras dá um testemunho desse processo. No que diz respeito ao esporte, de maneira
geral, suas origens ao longo da primeira metade do século XIX, historicamente liga-
das às escolas inglesas, já denota o vínculo entre educação e prática esportiva.
Depois disso, de maneira cada vez mais aguda, esses vínculos serão consolida-
dos nos ideais do olimpismo, expressos, particularmente, em 1896, por ocasião dos
primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna. Daí em diante, a crença dos poderes
educativos do esporte só faria ganhar força. Basta observar algumas convenções in-
ternacionais a respeito, além de atentar para o já mencionado processo de multipli-
cação de ações sociais baseadas no oferecimento de atividades esportivas.
Ao menos desde 1978, a UNESCO (sigla em inglês para “Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura” – United Nations Educational,
Scientific, and Cultural Organization, tem considerado o esporte como um “direito
fundamental para todos”. A própria Organização das Nações Unidades (ONU),
por volta de 2002, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Salt Lake City, passou a
sugerir publicamente uma revisão dos sistemas internos à entidade, a fim de melhor
considerar a presença do esporte, nomeadamente, identificando programas já exis-
tentes de esporte para o desenvolvimento, mapeando exemplos e iniciativas mais
instrutivos sobre o uso social do esporte, além de encorajar a inclusão do esporte
nas Metas para o Desenvolvimento do Milênio. Tais ações justificam-se sempre
através da enumeração de supostas características do esporte, como seu poder de
atração e mobilização, além da sua capacidade de irradiar valores humanos como
o respeito ao oponente, o trabalho em equipe, a aceitação de regras ou a igualdade
de condições durante as competições. Conforme se lê muito explicitamente em um
dos documentos da UNESCO:
145
Por outro lado, apesar de todo esse consenso e aparente unanimidade a respei-
to da capacidade educativa do esporte, existem muitas vozes divergentes, chamando
atenção, em sentido contrário, para a suposta falácia desses ideais. No essencial, elas
podem ser resumidas às chamadas “teorias críticas do esporte”. Essa perspectiva de
compreensão do fenômeno esportivo destaca as inúmeras incoerências e contradi-
ções decorrentes da prática esportiva, denunciando como falsas às declarações que o
dizem dotado de positividade e valores positivos. Jean-Marie Bhrom foi um dos no-
mes que mais se destacou nesse sentido. Suas pesquisas sobre esporte apontavam para
o inexorável vínculo entre o esporte e o desenvolvimento da sociedade capitalista, de
tal modo que sua prática estaria sempre subordinada aos interesses da reprodução do
capital, isto é, ao desenvolvimento econômico e a geração de lucro a ser usufruída pe-
las classes dominantes.
Como veremos logo adiante, este é um pensamento que influenciou consideravel-
mente algumas propostas pedagógicas para a Educação Física, especialmente a partir
da década de 1980, quando o esporte passou a ser visto, em algumas dessas propos-
tas, como veículo de alienação e controle social. Por isso é importante refletirmos um
pouco mais demoradamente sobre essas teorias.
O diagnóstico de Jean-Marie Bhrom sobre o esporte declara-o uma prática inse-
rida nas engrenagens do capitalismo, mas que ao se declarar livre de influências políti-
cas, camufla, na verdade, sua função ideológica, que é inteiramente política. O esporte,
em outras palavras, através dessa aparente despolitização das suas práticas, acaba por
ocultar à luta de interesses que separa os mais ricos dos mais pobres, contribuindo,
dessa maneira, para a estabilização e perpetuação do atual sistema capitalista. Segundo
Bhrom, o esporte difunde valores convenientes a esse sistema social. Primeiro por-
que, em si mesmo, o esporte é uma forma de ação econômica, com alta capacidade
de produção de lucro. Os clubes, por exemplo, nada mais são do que empresas que
competem por dinheiro dentro de um mercado internacional. Nesse sentido, criam-
-se produtos, que vão desde ingressos nos estádios, até camisetas, brindes, ou bonés.
De maneira análoga, o atleta, nesse sistema, é uma espécie de operário: um trabalha-
dor explorado pelos seus patrões, tentando, na medida do possível, obter melhores
pagamentos em troca da sua mão (ou pé) de obra. Mais que tudo isso, talvez, a ce-
lebração esportiva dos ideais de rendimento e produção não deixa de ter paralelos,
segundo ele, com a ordem e disciplina necessária para o trabalho industrial, ou os va-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
lores consumistas de querer sempre mais e mais. Tal como desejado no mundo capi-
talista, o esporte dissemina a idéia que a vitória ou a derrota (no jogo ou na sociedade)
depende apenas do esforço e do talento do jogador, fazendo esquecer as inúmeras
desigualdades sociais que, na prática, condicionam as chances e as oportunidades de
desenvolvimento de cada indivíduo.
Além disso, o esporte seria um produto do imperialismo colonial e um vetor
da globalização – assumindo, portanto, a responsabilidade de transmitir em nível
146
mundial um único modelo de prática corporal (o esporte); no limite, instrumento de
dominação cultural e aniquilamento da diversidade.
Os adjetivos que Jean-Marie Bhrom usa para tratar do esporte oferecem uma
síntese da compreensão desse autor sobre esse fenômeno. Segundo ele, o esporte
seria uma “pandemia”, um “tifo”, uma “intoxicação”, uma “peste emocional”, uma
“intoxicação emocional fictícia”, uma “contaminação geral das consciências”, em suma,
algo que “destila” valores nocivos à sociedade e ao ser humano.
Talvez de maneira menos enfática, muitos outros pesquisadores seguiram essa
linha de interpretação, inclusive no Brasil. Não vamos comentá-los para não fugir
do nosso assunto6 . Na Educação Física são muitos os exemplos das implicações
dessa forma de compreensão sobre o esporte. Reflexões que condenam o esporte
competitivo na escola, geralmente o fazem por influência dessas teorias críticas. A
corrente diferenciação que se estabeleceu entre o esporte na escola e o esporte da escola
, identificando, de certo modo, aspectos nocivos do esporte competitivo (ou de alto
rendimento) é um exemplo de tais influências. Segundo se argumenta, nesses casos, o
esporte praticado na escola não deveria se assemelhar com aquele esporte praticado
fora da escola, isto é, com o esporte vinculado pela mídia através das suas competições
internacionais. De outra forma, o esporte na escola, para garantir sua eficácia educativa,
deveria ter características próprias, supondo-se, obviamente, que o esporte praticado
fora da escola não tem condições de fazê-lo.
Tal como em outros aspectos das teorias do esporte, aqui também não se pode
dizer que exista qualquer tipo de consenso. Saber se o esporte – da maneira como
é praticado hegemonicamente, isto é, de forma competitiva – pode ou não servir de
instrumento de educação é um debate em aberto. Como vimos, as posições a esse
respeito oscilam entre extremos. Particularmente, eu também tenho lá meus pontos
de vista. Vou me furtar de expô-los apenas para estimular que cada um de vocês reflita
a respeito e elaborem suas próprias interpretações. No máximo, poderíamos acres-
centar que estudos recentes têm apontado, justamente, para a falta de estudos mais
profundos sobre as dinâmicas de aprendizagem em projetos sociais que têm o espor-
te como tema. José Vianna e Hugo Lovisolo (2009), por exemplo, chamam atenção
para a necessidade de um refinamento dos dados para um melhor entendimento dos
efeitos desse tipo de projeto. A identificação de elementos simples como o tempo de
permanência dos alunos, é destacado pelos autores como informações capazes de ofe-
recer índices de avaliação sobre a eficiência de projetos sociais com esporte.
6. Para um balanço geral dessas abordagens, c.f. VAZ, 2005.
TEORIAS DO ESPORTE
147
Quadro 7 - Arte, ciência e desenvolvimento
por João Moreira Salles | Folha de S.Paulo, em 6 de junho de 2010.
148
Certa vez, um amigo seu, cidadão emérito das humanidades, foi convidado para
um daqueles jantares solenes que as universidades inglesas cultivam com tanto gosto.
Sentando-se a uma mesa no Trinity College - onde Newton viveu e onde descobriu
as leis da mecânica clássica - e feitas as apresentações formais, o amigo se virou para
a direita e tentou entabular conversa com o senhor ao lado. Recebeu um grunhido
como resposta. Sem deixar a peteca cair, virou-se para o lado oposto e repetiu a tenta-
tiva com o professor à sua esquerda. Foi acolhido com novos e eloquentes grunhidos.
Acostumado ao breviário mínimo da cortesia - segundo o qual não se ignora solene-
mente um vizinho de mesa -, o amigo de Snow se desconcertou, sendo então socor-
rido pelo decano da faculdade, que esclareceu: "Ah, aqueles são os matemáticos. Nós
nunca conversamos com eles". Snow concluiu que a falta de diálogo fazia mais do que
partir o mundo em dois. A especialização criava novos subgrupos, gerando células
cada vez menores que preferiam conversar apenas entre si.
Síntese e ordem
Não sei se alguém já voltou a conversar com os matemáticos. Torço para que sim, ape-
sar das evidências em contrário. Seria um desperdício, pois a matemática, para além
dos seus usos, é guiada por um componente estético, por um conceito de beleza e de
elegância que a maioria das pessoas desconhece. O que move os grandes matemáti-
cos e os grandes artistas, desconfio, é um sentimento muito semelhante de síntese e
ordem. Os dois grupos teriam muito a dizer um ao outro, mas, até onde sei, quase não
se falam. (No passado, o poeta Paul Valéry deu conferências para matemáticos e o
matemático Henri Poincaré falou para poetas.)
Segundo Snow, com a notável exceção da música, não há muito espaço para as
artes na cultura científica: "Discos. Algumas fotografias coloridas. O ouvido, às vezes
o olho. Poucos livros, quase nenhuma poesia." Talvez seja exagero, não saberia dizer.
Posso falar com mais propriedade sobre a outra parcela do mundo, e concordo quan-
do ele diz que, de maneira geral, as humanidades se atêm a um conceito estreito de
cultura, que não inclui a ciência.
Os artistas e boa parte dos cientistas sociais são quase sempre cegos a uma ex-
tensa gama do conhecimento. Numa passagem famosa de sua palestra, Snow conta o
seguinte: "Já me aconteceu muitas vezes de estar com pessoas que, pelos padrões da
cultura tradicional, são consideradas altamente instruídas. Essas pessoas muitas vezes
têm prazer em expressar seu espanto diante da ignorância dos cientistas. De vez em
TEORIAS DO ESPORTE
quando, resolvo provocar e pergunto se alguma delas saberia dizer qual é a segunda
lei da termodinâmica. A resposta é sempre fria - e sempre negativa. No entanto, essa
pergunta é basicamente o equivalente científico de 'Você já leu Shakespeare?'. Hoje,
149
acho que se eu propusesse uma questão ainda mais simples - por exemplo: 'Defina o
que você quer dizer quando fala em 'massa' ou 'aceleração'', o equivalente científico de
'Você é alfabetizado?'-, talvez apenas uma em cada dez pessoas altamente instruídas
acharia que estávamos falando a mesma língua.
Responsabilidade
150
Há pouco tempo, escrevi o perfil de um jovem matemático carioca, Artur Avila.
Boa parte dos meus amigos -alguns deles muito bem informados- não sabia da existên-
cia do IMPA[Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada], sob vários aspectos
a melhor instituição de ensino superior do país (o número de artigos publicados em
revistas de circulação internacional de alto padrão científico, por exemplo, põe o IMPA
de par em par com alguns dos grandes centros americanos de matemática, como
Chicago e Princeton).
Descolados
Uma das minhas obsessões é folhear a revista dominical do jornal "O Globo". Existe ali
uma seção na qual eles abordam jovens descolados na saída da praia, de cinemas, lojas
e livrarias, para conferir o que andam vestindo. No pé da imagem, informa-se o nome e
a profissão da pessoa. Um número recente trazia um designer, uma produtora de moda,
um estudante, uma dona de restaurante, um assistente de estilo, outra designer, uma
jornalista, uma publicitária, um "dramaturg" (estava assim mesmo), uma estilista, outra
estilista e alguém que exercia a misteriosa profissão de "coordenadora de estilo".
Acompanho essas páginas há um bom tempo, e estatisticamente o resultado é
assombroso. Conto nos dedos o número de engenheiros, médicos ou biólogos que
vi passar por ali. Eles não podem ser tão mal vestidos assim. De duas, uma: ou são
relativamente poucos, ou a revista prefere destacar as profissões que considera mais
charmosas. As duas alternativas são muito ruins, mas a segunda me incomoda parti-
cularmente, pois sei por experiência como é poderosa a atração exercida por algumas
profissões com alto cachê simbólico. Dou aula na PUC-Rio, no departamento de co-
municação, que num passado recente oferecia apenas cursos de jornalismo e publici-
dade. Durante alguns anos, lecionei história do documentário para turmas de futuros
jornalistas. Em 2005 foi criada a especialização em cinema - e, hoje, quase todos os
meus trinta e poucos alunos são estudantes de cinema.
Pesadelo
Existem no Rio quatro universidades que oferecem cursos de cinema; no Brasil, são
ao todo 28, segundo o Cadastro da Educação Superior do MEC. No ano passado, a
PUC-Rio formou três físicos, dois matemáticos e 27 bacharéis em cinema. Existem
128 cursos superiores de moda no Brasil. Em 2008, segundo o Inep [Instituto
TEORIAS DO ESPORTE
151
É evidente que um país pode ter documentaristas demais e físicos de menos. O
Brasil já sofre uma carência de engenheiros. Segundo dados de um relatório do IEDI
[Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial] entregue ao ministro da
Educação, Fernando Haddad, a taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à
da China, da Índia e da Rússia, países emergentes com os quais competimos.
A Rússia forma 190 mil engenheiros por ano, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil,
diz o relatório. Nós formamos 47 mil. Os números da China são pouco confiáveis,
mas outras comparações eliminam possíveis dúvidas. A Coreia do Sul, por exemplo,
com 50 milhões de habitantes, forma 80 mil engenheiros por ano, 26% de todos os
formandos. Na China, a crer nas métricas, essa proporção chega a 40%. Em 2006, a
taxa por aqui era de apenas 8%. Até o México, país com indicadores sociais semelhan-
tes aos nossos, hoje possui 14% de seus formandos nessa área.
Estagnação
Companhias que integram a "Fortune 500", lista das maiores empresas do mundo, man-
têm 98 centros de pesquisa e desenvolvimento na China e outros 63 na Índia. No Brasil
aparentemente não é feita esta contagem; se o número existe, consegui-lo é uma proeza,
o que só confirma a pouca importância atribuída ao assunto. O relatório do IEDI mos-
trou que os gastos totais em pesquisa e desenvolvimento como proporção do PIB estão
estagnados no país. Há cinco anos não cresce o número de empresas que investem em
desenvolvimento.
Em 2009, apesar da crise, a Toyota sozinha registrou mais de mil patentes. A soma
de todas as patentes requeridas pelas empresas brasileiras não chegou à metade disso,
segundo a Anpei [Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas
Inovadoras]. Somos detentores de 0,3% das patentes do planeta. Em termos de inova-
ção, ocupamos o 24º lugar entre as nações. O país prospera à força de consumo, não de
investimento ou invenção. Compramos coisas que foram pensadas lá longe, as quais se-
rão brevemente superadas por outras coisas que também não terão sido pensadas aqui.
É um processo estéril.
Escritores, cineastas e editores de suplementos dominicais se espantariam em saber
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA
152
Xu, Sunanda Sharma, Sarine Gayaneh Shahmirian, Arjun Ranganath Puranik, Raman
Venkat Nelakant -assim prossegue a lista, até terminar com Yale Wang Fan, Yuval Yaacov
Calev, Levent Alpoge, John Vincenzo Capodilupo e Namrata Anand.
Valorização pífia
Enquanto isso, como lembra o matemático César Camacho, diretor do IMPA, várias
universidades brasileiras têm vagas abertas para professores de matemática, não pre-
enchidas por falta de candidatos. A valorização das ciências entre nós é pífia.
Sempre me espanto com a presença cada vez maior de projetos sociais que levam
dança, música, teatro e cinema a lugares onde falta quase tudo. Nenhuma objeção,
mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios. Nin-
guém pensa em levar a esses jovens um telescópio ou um laboratório de química ou
biologia? Centenas de estudantes universitários gostariam de participar de iniciativas
assim. Com entusiasmo - e um pró-labore -, mostrariam que a ciência também é legal
e despertariam talentos. Seria bom também se o nosso sistema educacional fosse mais
flexível, com cadeiras de humanidades e iniciação científica no ciclo básico de todos
os cursos universitários.
É imprudente tomar uma decisão definitiva aos 18 anos de idade, mas é exata-
mente o que têm de fazer os alunos ao entrar na universidade - embora, como norma,
eles não saibam para o que têm vocação. Uma vez escolhido o escaninho, somem as
oportunidades de conhecer outras áreas e eventualmente migrar. Se em algum mo-
mento a vocação se manifesta, em geral o aluno e sua família consideram que é tarde.
Circunstâncias econômicas ou psicológicas - começar de novo exige determinação
férrea - dificultam muito um ajuste de rota. (Sei bem como é, porque foi o meu caso.)
É absolutamente certo que, neste momento, alguns milhares de jovens estão
prestes a cometer o mesmo equívoco. Muitos se revelarão apenas medianos ou pre-
guiçosos, e é provável que a ciência não tenha como alcançá-los. Sem desmerecer os
excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém
sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de
humanas do que num de exatas.
Alguns desses jovens sem orientação provavelmente terão inclinação para as ci-
ências e ainda não descobriram. É preciso criar mecanismos que os ajudem a escolher
o caminho certo. Infelizmente, as artes e as humanidades, pelo menos por enquanto,
não colaboram muito. Ao contrário. Nós disputamos esses jovens e, infelizmente, até
TEORIAS DO ESPORTE
153
Referências
154
DIAS, Cleber; ALVES JUNIOR, Edmundo. Entre o mar e a montanha:
esporte, aventura e natureza no Rio de Janeiro. Niterói, RJ: EdUFF, 2007.
DUNNING, Eric. Some comments on Jack Goody's 'Elias and the an-
thropological tradition'. Anthropological Theory, Dec 2002; vol. 2: pp.
413 - 420.
155
GIULIANOTTI, Richard. Sport: a critical sociology. Cambridge: Polity
Press, 2005.
HOLT, Richard. Sport and the British: a modern history. Oxford: Clare-
don, 1992.
156
LIMA, Mariza A. de; MARTINS, Clovis J.; CAPRATO, Andre M. Olimpía-
das modernas: a história de uma tradição inventada. Pensar a Prática,
Goiânia, vol, 12, n. 1, p. 1-12, 2009. Disponível em: http://www.revistas.ufg.
br/index.php/fef/article/view/5874/5344
157
SOUZA, Juliano; MARCHI JR. Wanderley. Por uma gênese do campo da
sociologia do esporte. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 45-70, 2010.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/11159.
158