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1.

Antropologia do Corpo Licenciatura em


2. A Política Educacional do Brasil

3. Teorias do Esporte

Educação Física

Licenciatura em
Volume 4

Educação Física • Volume 4

ISBN 978-85-68359-02-0

9 788568 359020
LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO FÍSICA
GOVERNO FEDERAL

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

LICENCIATURA EM
EDUCAÇÃO FÍSICA

2014
REITORIA DIREÇÃO DO CENTRO INTEGRADO DE 
Orlando Afonso Valle do Amaral APRENDIZAGEM EM REDE • CIAR
Leonardo Barra Santana de Souza
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
Luiz Mello de Almeida Neto COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
E COMUNICAÇÃO IMPRESSA
DIRETORIA DA FACULDADE Ana Bandeira
DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Anegleyce Teodoro Rodrigues DESIGN GRÁFICO -
PROJETO EDITORIAL
COORDENAÇÃO GERAL DO CURSO  Equipe de Publicação CIAR
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA / EAD
Ari Lazzarotti Filho EDITORAÇÃO
Lara Carolina da Silva
ORGANIZADORES
Ari Lazzaroti Filho ILUSTRAÇÕES E IMAGENS
Renato Mendes de Oliveira Vanessa Gomes

AUTORES TRÁFEGO DE REVISÃO


Aline da Silva Nicolino Laryssa Tavares
Cleber Dias
Mariana Cunha Pereira REVISÃO PEDAGÓGICA
Reigler Siqueira Pedroza Mara B. de Medeiros
Tadeu João Ribeiro Baptista
REVISÃO LINGUÍSTICA
Andelaide Lima

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

Universidade Federal de Goiás.


U58l Licenciatura em educação física: v. 4 / Universidade Federal de Goiás.
Centro Integrado de Aprendizagem em Rede (CIAR) / Org. Ari Lazzarotti
Filho – Goiânia : Gráfica UFG/CIAR, 2014.
160 p.

Bibliografia
ISBN: 978-85-68359-02-0

1. Educação física 2. Politica educacional – Brasil


3. Corpo - Antropologia I. Título.
CDU: 796
MINICURRÍCULOS

Aline da Silva Nicolino Graduada em Licenciatura em Educação Física pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho de Rio Claro - UNESP (2000), mestrado em
Ciências da Motricidade, pela UNESP/Rio Claro
(2003) e doutora em Psiquiatria pela Universidade
de São Paulo, na Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto (2007). Professora do Programa Interdiscipli-
nar de Direitos Humanos da Universidade Federal de
Goiás (UFG) e docente da Faculdade de Educação
Física. Líder do Laboratório Physis de Pesquisa em
Educação Física Sociedade e Natureza (LABPHY-
SIS) da FEF/UFG. Pesquisadora na linha de Alteri-
dade, Estigma e Educação em Direitos Humanos, nas
questões de gênero, sexualidade e políticas públicas.

Cleber Dias Doutor em Educação Física (Unicamp), Mestre em


História Comparada (UFRJ), especialista em Edu-
cação Física Escolar (UFF) e graduado em Educação
Física; professor da Faculdade de Educação Física
da Universidade Federal de Goiás (UFG); editor
da revista Pensar a Prática (UFG); pesquisador de
grupos dedicados aos estudos do lazer e do esporte
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Univer-
sidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade
Federal de Goias (UFG).

Mariana Cunha Pereira Possui graduação em Ciências Sociais na Universi-


dade Federal do Ceará (1985/UFC), Especialização
em Metodologia de Pesquisa em Educação (1988/
UFC), Especialização em Política, Planejamento e
Gestão na Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília (1992/UnB), Mestrado em Educação
(1995/UnB) e Doutorado em Antropologia - An-
tropologia da América Latina e Caribe (2005/UnB).
Atualmente é professora efetiva na Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás. Realiza
pesquisas na área de Antropologia, Educação e
Movimentos Sociais com recortes para as discussões
de relações etnicas-raciais, gênero, corporeidade e
políticas públicas.

Reigler Siqueira Pedroza Graduação em Educação Física pela Universidade


Federal de Goiás (2005), Especialização em
Educação Física escolar (2009) pela mesma
instituição e Mestrado em Antropologia Social pela
Faculdade de Ciências Sociais da UFG (2013).
Experiência docente na área de formação de
professores de Educação Física (nível superior)
e na educação básica, nível fundamental (redes
municipais de Goianira/GO e Goiânia/GO e na
Rede Estadual de Goiás). Atualmente, Docente na
Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia
da Universidade Estadual de Goiás - ESEFFEGO/
UEG. Vinculado atualmente a dois laboratórios de
pesquisa, ambos sediados na FEF/UFG. O primeiro
e o segundo (Ve)lhaco.

Tadeu João Ribeiro Baptista Graduação (Licenciatura Plena) em Educação


Física pela Escola Superior de Educação Física de
Goiás (1989), Especialização em Planejamento
Educacional pela Associação Salgado de Oliveira
(1991) e Treinamento Esportivo pela Escola
Superior de Educação Física de Goiás (1995).
É Mestre em Educação pela Universidade Federal
de Goiás (2001). É Doutor em Educação pela
Universidade Federal de Goiás (2007). Professor
Adjunto da Universidade Federal de Goiás, onde atua
como Docente no curso de Educação Física.
É pesquisador dos Grupos de pesquisa LABPHYSIS
- Laboratório Physis de Pesquisa em Educação
Física, Sociedade e Natureza e COEESA - Grupo de
Estudos e Pesquisa sobre Corpo, Estética, Exercício
e Saúde. Tem experiência na área de Educação Física,
com ênfase em Educação, atuando principalmente
nos seguintes temas: educação física, corpo, atividade
física, indústria cultural e saúde.
SUMÁRIO

Antropologia do Corpo 09
1. Introdução ao pensamento antropológico 09
O que é antropologia 09
Papai Noel e os ritos modernos de iniciação 12
Brevíssima história da antropologia 13
Relativismo e anti-relativismo 16
Os meninos perdidos do Sudão 19
Antropologia do corpo 20
O ritual do corpo entre os Sonacirema por Horace Minner 22
Referências 27
2. Corpo e Cultura: Ampliando Conceitos 28
Apresentando reflexões sobre a cultura 28
O Corpo: suas concepções , suas percepções
sociais e o trato dado pela educação física 33
Algumas Considerações Preliminares 42
3. A construção cultural do corpo (in)civilizado 42
Cultura corporal: entre o sagrado e o profano 50
A primazia do belo em corpos ocidentais urbanos 54
Referências 58
4. Antropologia do corpo e Educação Física 61
A academia de ginástica 61
Concepções de corpo e academias de ginástica 63
Os homens dos músculos de aço 64
Referências 70

A política educacional do Brasil 75


Introdução 75
1. A Relação Estado e Políticas Educacionais 77
2. Educação no Contexto das
Transformações da Sociedade Contemporânea 81
3. As Políticas, Estrutura e Organização da
Educação Escolar no Brasil a partir da década de 1990 84
A Educação de Jovens e Adultos 89
A Educação do Campo 90
A Educação Escolar Indígena 92
A Educação Étnico-Racial nas Escolas 94
4. Financiamento, Gestão e trabalho docente 97
Financiamento da Educação 97
Gestão, Financiamento e Formação de Professores 99
Referências 103

Teorias do Esporte 107


Aprensentação 107
Ementa 108
Objetivos 109
Conteúdo Programático 109
1. Definições Preliminares 109
2. Conceitos de Esporte 110
3. Características do Esporte 117
4. História da formação das teorias do esporte 126
5. A Sociologia Figuracional e as Teorias do Esporte 132
O esporte na sociologia figuracional 134
Críticas 136
À guisa de conclusão 141
6. Esporte, Educação e Desenvolvimento Social 144
Referências 154
ANTROPOLOGIA DO CORPO
Drª Aline da Silva Nicolino
Dr. Cleber Dias
Dr. Tadeu João Ribeiro Baptista

1. Indrodução ao pensamento antropológico

O objetivo desta seção será apresentar um breve histórico do desenvolvimento da


antropologia, mencionando algumas das suas principais escolas de pensamento,
bem como as concepções ao redor de alguns dos seus conceitos. Em outras palavras,
pretenderemos esclarecer o que é antropologia e o que esta disciplina nos diz sobre o ser
humano e a sociedade?
Em segundo lugar, teremos como objetivo também abordar algumas das relações
possíveis entre a antropologia e a Educação Física, ou, mais especificamente, as
maneiras pelas quais a reflexão antropológica pode colaborar para a formação e atuação
profissional em Educação Física. Dito de maneira mais direta, nosso objetivo nesta seção
será o de esclarecer porque estudar antropologia do corpo em um curso de formação em
Educação Física e qual sua viabilidade para a atuação profissional nessa área.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

1.1 O que é antropologia?

De um ponto de vista estritamente etimológico, antropologia quer dizer “estudo


do homem” (antropos, homem, logia, estudo). Nesse sentido, antropologia seria
a disciplina científica dedicada a estudar o homem, assim como a biologia seria a

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disciplina dedicada ao estudo da vida. Obviamente, esta é uma acepção bastante
genérica e nos diz pouco sobre as particularidades desta ciência, afinal, no limite,
outras áreas do conhecimento como a Medicina ou a Filosofia, de diferentes formas
também se dedicam a isso.

O “Estudo do Homem” é certamente um rótulo de algum modo pretensioso,


para não dizer absurdo, quando aplicado à Antropologia acadêmica na forma
em que ela se situa agora. Várias disciplinas, antigas e recentes, veneráveis
e novas, também se ocupam das investigações da natureza humana, do
trabalho manual humano e das relações entre os seres humanos. Podem
reivindicar, todas elas, ser consideradas como ramos do legítimo Estudo do
Homem (MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. 2. ed.
Rio de Janeiro: Zahar: 1970, p. 13).

A segunda maneira de caracterizar a antropologia seria não através de um assunto


de estudo próprio, mas sim por intermédio de uma maneira específica de estudá-los.
Nesse caso, é uma abordagem peculiar o traço que define e singulariza esta área do
conhecimento. Em outras palavras, para esta acepção do termo, antropologia não é mais
que uma maneira de olhar para o comportamento humano; um enfoque particular na
forma de compreender a forma através da qual se comportam os seres humanos em
diferentes sociedades, incluindo aí as sociedades ditas “complexas”, isto é, sociedades
desenvolvidas no interior das áreas sob influência direta da civilização européia. Nesses
termos, a antropologia deve se ocupar em estudar a maneira como os traços típicos de
comportamento de um grupo definem as características específicas de uma determinada
sociedade (que pode ser, nesse caso, até mesmo a nossa sociedade, não custa lembrar).
É esta segunda forma de caracterizar a antropologia que estaremos assumindo
para este curso. É ela que importará para os nossos objetivos. Aqui, nos interessa
compreender a antropologia, não como disciplina ou área de conhecimento, mas
como abordagem ou enfoque específico a respeito das coisas humanas. Nesse sentido,
podemos falar não tanto de antropologia, mas de uma perspectiva antropológica . Esta
perspectiva diz respeito à capacidade de olhar para aquilo que era aparentemente
evidente de maneira a torná-lo infinitamente problemático; realizar uma reflexão
profunda sobre nós mesmos a partir do estudo dos outros.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Porque distribuir presentes no natal (veja o Quadro 1)? Porque vestir-se de


branco para a noite do réveillon? Porque usar terno e gravata para ocasiões que
julgamos distintivas? Porque comer arroz e feijão, ao invés de embriões de pato como
nas Filipinas, ou ensopado de pênis de animais como em certas partes da China? Ou
seja, ao assumirmos uma perspectiva antropológica para olhar acontecimentos que nos
rodeiam, um universo de coisas que podemos às vezes tomar como “naturais”, podem
então passar a ser vistas como radicalmente contingentes e até arbitrárias.

10
O antropólogo François Lanplatine dizia que a perplexidade provocada pelo
encontro com culturas diferentes das nossas acaba por induzir uma modificação do
olhar que se tem sobre si mesmo, quer dizer, o conhecimento de um modo de vida
diferente dos nossos tende a estimular uma atitude de surpresa e de estranhamento
diante dos nossos próprios modos de vida. De certo modo, afirmava Lanplatine,
pode-se começar a duvidar de si mesmo através do exercício antropológico, pois o
conhecimento de outras culturas abre a possibilidade de um conhecimento cada vez
mais amplo e profundo a respeito da nossa própria. Nas palavras desse antropólogo:
“De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos dos outros, mas míopes
quando se trata da nossa” (LAPLANTINE, François. Aprender antropologia . São
Paulo, Brasiliense, 1988, p. 14).
A perspectiva antropológica, enfim, tem ensinado a tomar o estranho por familiar, bem
como o familiar por estranho. Para apelar uma vez mais as palavras de François Lanplatine:

Somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única [...]
formas de comportamento e de vida em sociedade que tomávamos todos
espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos
encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa existência...) são,
na realidade, o produto de escolhas culturais (LAPLANTINE, 1988, p. 15).

Assim, critérios que definem o nosso entendimento a respeito de noções como


saúde ou doença, beleza ou feiúra, desejável ou indesejável, bondade ou ruindade,
entre inúmeras outras, encontram seus fundamentos nas culturas que as informam.
O que o conhecimento decorrente da antropologia tem mostrado, em suma, é que
cada povo, cada país, cada cultura ou mesmo cada pequeno grupo social específico
possui suas próprias formas para definir aquilo que será tido como socialmente
aceitável. Os nossos padrões culturais, nesse sentido, seriam apenas um, entre muitos
possíveis. Não haveria critérios universais ou transcendentais para estabelecer normas
de comportamento a serem incorporadas por todos os seres humanos, independentes
de sua cultura.
A própria preocupação com a universalidade do universal não é um fenômeno
universal, isto é, nem todas as culturas aspiram (ou aspiraram) difundir hábitos e
mentalidades de maneira generalizada. Algumas, aliás, em sentido francamente
contrário, tenderam a considerar os valores de sua própria cultura como elementos
exclusivos; impossíveis de se estenderem a tudo e a todos. Certas culturas, como
ANTROPOLOGIA DO CORPO

a islâmica, por exemplo, não têm por característica o empenho em disseminar


universalmente seus padrões de organização. Para o Islã, a condição islâmica é uma
prerrogativa atribuída por Deus, ou melhor, por Allah (em árabe, “o Deus”), a um
grupo de escolhidos: os islâmicos. É um privilégio, portanto, algo que não pode se
irradiar universalmente apenas pela vontade dos humanos. De outro modo, a visão

11
de mundo implícita à civilização chinesa tende a não se considerar predestinada, nem
sequer escolhida: tal arranjo cultural seria apenas o único possível.
Assim, pode-se dizer, paradoxalmente, que a preocupação com a projeção universal
dos próprios hábitos, costumes e valores é algo característico de um tipo particular de
cultura: a cultura Ocidental. Modos de pensamento, questões avaliadas como mais
importantes, ou conceitos como tempo, liberdade ou verdade são a expressão abstrata
de uma singularidade que se quer generalidade. No caso da idéia de universalidade,
especificamente, “esta é efetivamente a história da Europa”, afirma sobre esse assunto
o filósofo François Jullien. Ainda segundo ele, “o universalismo preconizado pela
Europa não passou senão da universalização do seu próprio culturalismo” (JULLIEN,
François. O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009, p. 118).
Voltaremos a esse assunto mais adiante. Por ora, importa apenas destacar que um
dos elementos que mais nos interessa nessa perspectiva antropológica, a despeito das
polêmicas ainda vigentes a esse respeito, é a dimensão relativa ou mesmo relativista que
tal perspectiva, em geral, implica. Nesse sentido, podemos tomar a antropologia como
uma ciência das diferenças, o estudo sobre o modo pelo qual os homens percebem e
constroem suas diferenças com relação aos outros.

1.2 Papai Noel e os ritos modernos de iniciação

O famoso antropólogo francês, Claude Lévi-Straus, representante máximo de uma


tendência teórica na antropologia conhecida como estruturalismo, que viveu no Brasil
entre 1934 e 1935, já tomou a figura de Papai Noel como objeto de reflexão. Lévi-Straus
abre seu ensaio sobre o assunto citando episódios que se desenrolavam na França
nos inícios da década de 1950, nomeadamente uma polêmica ao redor de Papai Noel
no natal de 1951. Na ocasião, autoridades eclesiásticas manifestavam desaprovação
à importância crescente que se atribuía à imagem do “bom velhinho”. Segundo os
religiosos, Papai Noel era um mito pagão, sem valor religioso, portanto totalmente
distante dos verdadeiros sentidos do natal. Para protestar, cristãos organizaram uma
manifestação na véspera do natal daquele ano, que culminou com o assassinato
(metafórico) do Papai Noel na frente da catedral de Dijon, no interior da França.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

O episódio acirrou as polêmicas e um grupo simpático ao Papai Noel decidiu


organizar, em represália, uma cerimônia de ressurreição em frente à prefeitura da
mesma cidade. Lévi-Straus, da sua parte, aproveitou a oportunidade para refletir
sobre as razões que levaram a nossa cultura a inventar a imagem do Papai Noel.
Nesse sentido, ele começa por estabelecer um paralelo entre as festas de natal e
algumas cerimônias dos índios do sudoeste norte-americano, particularmente o
katchina, uma cerimônia em que personagens mascaradas, encarnando deuses e

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ancestrais que voltam às aldeias para punir ou recompensar as crianças. Trata-se,
segundo explica Lévi-Strauss, de um ritual em que as crianças desempenham o
papel daqueles que não fazem parte da vida em sociedade, dado que não foram ainda
iniciadas na vida adulta. As crianças, em suma, estão apenas sendo preparadas para
no futuro se integrarem à sociedade. A partir dessa condição infantil, que dramatiza
o modo de relacionamento entre os que fazem parte da sociedade e os que não
fazem, é a oposição mais profunda entre os mortos e os vivos, última fronteira da
relação entre pertencimento e não-pertencimento, o que estaria sendo ritualizado
no katchina. Aceitando o paralelo, Papai Noel, da mesma forma, seria a figura de um
mundo sobrenatural responsável por presentear aqueles que melhor personificam os
casos-limite de não-pertencimento ao nosso grupo, quais sejam, os mortos. Nossas
cerimônias natalinas, especialmente aquelas “intermediadas” pelo Papai Noel,
seriam, em última instância, um esforço para melhorarmos nossas relações com a
morte. Nas palavras de Lévi-Strauss: “A crença que inculcamos em nossos filhos de
que os brinquedos vêm do além oferece um álibi ao movimento secreto que nos leva
a ofertá-los ao além, sob o pretexto de dá-los às crianças. Dessa maneira, os presentes
de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em
primeiro lugar, em não morrer [...] Acreditando no Papai Noel, elas [as crianças] nos
ajudam a acreditar na vida” (LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de papai Noel. São
Paulo: Cosac Naif, 2008, p. 45-46).

1.3 Brevíssima história da antropologia

Não começou agora a preocupação do ser humano com o próprio ser humano,
tampouco seu interesse pela diversidade de condutas e comportamentos no convívio
social. Por volta do século V a.C. (sigla para o período Antes do nascimento de
Cristo, isto é, Antes de Cristo), o filósofo grego Heródoto, que muitos antropólogos,
não por acaso, gostam de tomar como o precursor dos precursores da moderna
antropologia, se interessou vivamente em refletir a respeito do modo de vida de outros
povos. Dedicou-se particularmente em registrar os hábitos dos citas, dos egípcios,
dos etíopes, fenícios e dos persas, povos a quem os gregos tinham como bárbaros
e subdesenvolvidos.
Heródoto percebeu que muitos desses povos, tal como os próprios gregos,
consideravam seus costumes como superiores, chamando aos outros, que tinham
ANTROPOLOGIA DO CORPO

hábitos e costumes diferentes, de bárbaros e incivilizados. Logo, Heródoto conclui que


cada sociedade estabelece seus respectivos padrões de julgamento, sendo muito difícil
tentar estender a outros povos modos de olhar que fossem específicos a cada cultura.
No mundo moderno, pensadores como Montaigne, influenciados pelas
Grandes Navegações do século XVI, que acabaram levando Colombo à

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América, problematizaram, a partir do impacto causado por costumes totalmente
desconhecidos pelos europeus ate então, práticas e comportamentos dos próprios
europeus. Particularmente, Montaigne comentou sobre o canibalismo, dizendo que
os europeus que se escandalizavam com isso eram, na verdade, capazes de feitos tão
ou mais horripilantes – referindo-se à Santa Inquisição praticada na época em que ele
escrevia pela Igreja Católica.

Não me pesa acentuar o horror bárbaro que tal ação significa, mas sim que
tanto condenemos suas faltas e tão cegos sejamos para as nossas. Penso
que há mais barbárie em comer um homem vivo que morto, dilacerar com
tormentos e martírios um corpo ainda cheio de vitalidade, assá-lo lentamente
e arrojá-lo aos cães e aos porcos, que o mordem e martirizam (como vimos
recentemente, e não lemos, entre vizinhos e concidadãos, e não entre antigos
inimigos, e, o que é pior, sob pretexto de piedade e de religião) que em o assar
e comer depois de morto. ?

Montaigne queria mostrar aos seus contemporâneos o quão absurdos poderiam


ser os costumes de um país quando vistos pelos olhos de um estrangeiro. Mais que isso,
ele queria chamar atenção para a aplicabilidade desse argumento aos costumes dos
próprios europeus. Em outras palavras, Montaigne pretendia destacar que a maneira
de julgar os comportamentos sociais é relativa, algo que depende inteiramente do
ponto de vista de quem julga. Nesses termos, dizia Montaigne, haveria poucas razões
para se espantar com comportamentos aparentemente exóticos. Se os houvesse, então
seriam exóticos os comportamentos de todos, inclusive os de quem declara exótico o
comportamento dos outros.

Creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação [...] Sucede,
porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-
ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo
e a idéia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre
perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas [...]
Não há opinião tão relaxada que desculpe a traição, a deslealdade, a tirania, a
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

crueldade, que são os nossos pecados de todos os dias. Podemos, pois, achá-los
bárbaros em relação às regras da razão, mas não a nós, que os sobrepassamos
em toda a espécie de barbárie [...] Eis aqui, sem mentir, homens completamente
selvagens em contraste conosco; porque ou eles o são na realidade, ou o somos
nós. Há uma enorme distância entre a sua maneira de ser e a nossa.?

Apesar desses antecedentes, apenas em meados do século XIX começou a se


organizar um conjunto de conhecimentos mais sistemáticos a respeito da diversidade

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de comportamentos humanos, com uma explícita pretensão de tornar-se ciência.
É dessa época que datam as primeiras reflexões ligadas ao que chamamos agora de
antropologia. Desde então, uma série de paradigmas seriam alternados e combinados
na busca do aprimoramento do saber antropológico.
Por volta dos anos 1860 e 1870, trabalhos como os de Herbert Spencer ou Lewis
Morgan iniciavam o esforço de sistematização do conhecimento acumulado sobre os
“povos primitivos”. Nessa época, predominava o que ficou conhecido depois como
“trabalho de gabinete”. Nessa perspectiva, os antropólogos se ocupavam basicamente
em sistematizar informações sobre a vida de certos povos a partir do registro dos seus
comportamentos deixados por viajantes, missionários e comerciantes, que não raro
os descreveram em cartas, diários e relatórios. A unidade básica da constituição do ser
humano, quer dizer, o elemento principal na constituição da própria humanidade do
homem era uma das preocupações básicas. Além disso, as origens da nossa espécie
e o seu processo de evolução fora outro tema corrente. Lembremos que pouco
antes, em 1859, Charles Darwin trazia à luz A origem das espécies, livro que integrou
os avanços da teoria evolucionista, que ao menos desde os anos 1840 vinha sendo
progressivamente desenvolvida.
Entre os fins do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, uma nova
forma de se relacionar com o conhecimento antropológico iria surgir, por diferentes
caminhos. Basicamente, a ênfase estaria agora no chamado “trabalho de campo”, qual
seja, ao invés do gabinete, o estudioso interessado em aprender sobre os costumes
de outros povos, deveria viajar ele mesmo, a fim de vê-los com os próprios olhos
e ouvi-los com os próprios ouvidos. O antropólogo, em suma, deveria estabelecer
relações e interagir por meio de uma imersão no contexto social ao qual ele pretendia
compreender ou explicar. Este procedimento, que acabaria marcando a identidade
mesmo da antropologia, receberia o nome de etnografia, ou observação participante.
Os trabalhos de Bronislaw Malinowski, particularmente seus estudos sobre a
Melanésia, são tidos como verdadeiro divisor de águas sob este aspecto. Malinowski,
no entanto, não trabalhava sozinho. De certo modo, ele estava inscrito no interior de
toda uma tradição de pensamento, ainda em formação naquele momento, mas que já
anunciava, além da valorização do trabalho de campo, a ênfase na semelhança entre
sociedades humanas e organismos biológicos. “Escola Britânica de Antropologia” é o
nome que melhor representa essas tendências, conforme sugestão de Roberto Cardoso
de Oliveira (CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Tempo e tradição: interpretando
a antropologia. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o pensamento
ANTROPOLOGIA DO CORPO

antropológico. Tempo Brasileiro / CNPq: Rio de Janeiro / Brasília, 1988, p. 13-26).


Tais idéias, por sua vez, se orientaram, em larga medida, pelo funcionalismo
sociológico francês (ou a “Escola Francesa de Sociologia”, para continuarmos com a
terminologia de Roberto Cardoso de Oliveira), nomeadamente os trabalhos de Émile
Durkheim e de Marcel Mauss, especialmente seus estudos sobre a religiosidade dos

15
nativos australianos, as formas primitivas de classificação ou o esboço de uma teoria
geral da magia, entre outros.
As duas “Escolas” guardam entre si muitas divergências, é certo. Mas guardam
tambem algumas importantes semelhanças. Uma das mais importantes para o nosso
propósito é a tendência, em ambas, de se colocar o problema do relativismo.
Ao longo do século XX muitas outras escolas de pensamento se sucederam, às
vezes aproveitando, às vezes refutando aspectos dessas “Escolas” que as precederam.
Não será relevante para os nossos objetivos detalhar as divergências ou similitudes
entre cada uma delas.

1.4 Relativismo e anti-relativismo

O chamado pensamento relativista, o relativismo, nasceu com a antropologia, poder-


se-ia dizer, com algum exagero. Pois a reflexão sobre a variedade de experiências
humanas, como já vimos, pode induzir a um questionamento a respeito das nossas
próprias experiências. Em outras palavras, ao tomarmos ciência da existência de
inúmeras outras formas de se viver a vida, podemos nos dar conta que a nossa própria
forma de fazer isso é bastante contingente e até arbitrária.
O contrário desse modo de pensar é conhecido como etnocentrismo. Segundo
Everaldo Rocha: “etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é
tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos
nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA,
Everaldo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 5).
Esta oposição entre relativismo e etnocentrismo, além de polêmica, é bastante
atual e, por diferentes motivos, tem inúmeras implicações políticas no contexto
contemporâneo. Episódios recentes como a mobilização internacional ao redor da
condenação à morte por apedrejamento de uma mulher iraniana acusada de adultério
é um exemplo dos impasses e dificuldades suscitadas, tanto pelo relativismo, como
pelo etnocentrismo. O fato de ser o Irã um país que vive sob códigos culturais bastante
diferentes do Ocidente, lhes autoriza a ignorar valores e direitos que supomos
universais, como o direito à vida, por exemplo? Em sentido contrário, as idéias dos
direitos humanos teriam, realmente, alcance universal? Se sim, porque então elas não
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

são universalmente aceitas? Se não, quer dizer que qualquer barbaridade pode se
justificar apelando para a diversidade cultural? Nesses casos, quais seriam os critérios
ou parâmetros para distinguir a barbárie da civilização? Vejamos, rapidamente,
algumas poucas posições sobre o assunto.
Umberto Eco foi um dos que já se propuseram a defender a existência de formas
éticas universais, quer dizer, a existência de códigos e normas de comportamento
válidas para todos os seres humanos, independente da cultura na qual estes estejam

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vivendo. Ele argumenta que apesar de certas culturas não reconhecerem noções
que para nós têm ou deveriam ter estatuto universal, como é o caso da noção de
democracia, por exemplo, não implica, necessariamente, uma impossibilidade de
existência de todo e qualquer “universal semântico”, para usar uma expressão do
próprio Umberto Eco. Segundo ele, existem noções elementares que são comuns
a toda a espécie humana e que podem ser expressas por todas as línguas. Nas
suas palavras:

Estou convencido de que certamente existem noções comuns a todas as


culturas, e que todas elas referem-se às posições de nosso corpo no espaço.
Somos animais de postura ereta, por isso é cansativo permanecer muito
tempo de cabeça para baixo e, portanto, temos uma noção comum de alto e
baixo, tendendo a privilegiar o primeiro sobre o segundo. Igualmente temos
noções de direita e esquerda, do estar parado e do caminhar, do estar em pé
ou deitado, do arrastar-se e do saltar, da vigília e do sono (ECO, Umberto.
Quando o outro entre em cena. In: ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio
de Janeiro: Record, 1998, p. 94)

Todavia, conforme admite o próprio Umberto Eco, todos esses exemplos dizem
respeito a uma “espécie de Adão bestial”, nas palavras dele mesmo. Ou seja, apelam
para questões excessivamente elementares na vida de um ser humano, como a fome,
a sede ou o sono. Deixando de lado que a condição humana nunca se limita a esses
níveis, abarcando também aspectos mais complexos e subjetivos, como o amor
ou a felicidade, poderíamos dizer que mesmo nessas dimensões básicas, bestiais,
animalescas, a diversidade cultural atua, determinando o modo de satisfazê-las. De
acordo com o antropólogo Roque Laraia:

Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente da ordem dos


primatas, depende muito de seu equipamento biológico. Para se manter vivo,
independente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer
um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a
respiração, a atividade sexual etc., mas embora estas funções sejam comuns a
toda humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra.
É esta grande variedade na operação de um número tão pequeno de funções
ANTROPOLOGIA DO CORPO

que faz com que o homem seja considerado um ser predominantemente


cultural. Os seus comportamentos não são biologicamente determinados. A
sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois
todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado
(LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. 16 ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 38-37).

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Por outro lado, posturas relativistas podem ser associadas à frouxidão moral ou a
ausência de qualquer tipo de convicção ética. Mas essa é uma leitura, ao menos em
parte, equivocada. É verdade que o relativismo às vezes conduziu a posicionamentos
extremados, quase inteiramente niilistas. Mas, de maneira geral, de acordo com a inte-
ressante interpretação do antropólogo Cliford Geertz, as conseqüências que se supõe
decorrerem do relativismo, como a incapacidade de julgamento crítico ou bloqueio
de avaliações éticas são todas ilusórias. Geertz, na verdade, de maneira irônica, chama
atenção para as diferenças entre não admitir julgar os costumes dos aborígenes como
atrasados e avaliar o nazismo como um conjunto de hábitos pouco convencionais.
Além disso, continua o antropólogo, combater o anti-relativismo não significa neces-
sariamente aceitar o relativismo. Segundo ele, a situação é semelhante às polêmicas
ao redor da questão do aborto. “Aqueles de nós que nos opomos ao aumento das res-
trições legais ao aborto, não somos, pelo que eu entendo, pró-aborto, no sentido de
o considerar uma coisa maravilhosa e achar que, quanto maior o índice de abortos,
maior será o bem-estar social” (GEERTZ, Cliford. Anti anti-relativismo. In: GEERTZ,
Cliford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 48).
É mais ou menos essa também a posição de Marshall Sahlins. Para este antropólogo,
o relativismo não é uma questão de advocacia. Nas suas palavras:

O relativismo cultural é, antes de mais nada e sobretudo, um procedimento


antropológico interpretativo – ou seja, metodológico. Ele não consiste
no argumento moral de qualquer cultura ou costume é tão bom quanto
qualquer outro, se não melhor. O relativismo é simples prescrição de que,
para que possam tornar-se inteligíveis, as práticas e idéias de outras pessoas
devem ser re-situadas em seus contextos históricos, e compreendidos como
valores posicionais no campo de suas próprias relações culturais, antes de
serem submetidos a juízos morais e categóricos de nossa própria lavra.
A relatividade é a suspensão provisória dos próprios juízos de modo a situar
a prática em pauta na ordem cultural e histórica que as tornou possíveis.
Afora isso, não se trata de forma alguma de uma questão de advocacia
(SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac Naify,
2004, p. 59).
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

São esses os termos através dos quais gostaríamos de encarar o relativismo.


Questões sobre a validade objetiva da universalização de certas idéias sobre a vida
humana estão em larga medida ainda em aberto. Sob que critérios podemos ou
devemos distinguir comportamentos admiráveis de comportamentos triviais e
até condenáveis? Como julgar o certo e o errado? Devemos chamar de crendices
supersticiosas hábitos como os de tocar chocalhos para fazer chover? Se não, devemos
então acreditar que chocalhos fazem chover?

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Não será nosso objetivo aqui tentar responder questões desse tipo, abrangentes
demais, profundas demais. Para os propósitos de agora, interessa apenas aprender
essa forma de pensamento, que é o relativismo, como um procedimento capaz
de suspender provisoriamente as nossas certezas e induzir a um questionamento
permanente dos fundamentos que orientam nossos juízos de valor acerca de uma
série de aspectos da vida social. É algo que de certo modo substitui os pontos finais
pelos pontos de interrogação, nos obrigando a pensar seriamente sobre aquilo que é
aceitável e o que não é; algo, em suma, que desestabiliza certezas arraigadas, exigindo-
nos uma reflexão. O relativismo, afinal, é também um instrumento de crítica da cultura
ocidental. Nossas preferências e estilos de vida são, de fato, tão objetivamente racionais
– como às vezes se supõe?

1.5 Os meninos perdidos do Sudão

Uma exemplar demonstração do estranhamento recíproco entre culturas diferentes


pode ser visto no filme Pátria proibida, produzido em 2006. O documentário dirigido
pelos norte-americanos Christopher Dillon Quinn e Tommy Walker, narra a história
dos “meninos perdidos do Sudão”, nome pelo qual ficaram conhecidas as mais de
25 mil crianças sudanesas, que fugiram de suas aldeias a partir do começo dos anos
1980, tentando evitar o massacre que se desenrolava então. Nessa época, o Sudão vivia
uma sangrenta guerra civil, que dividia o país em duas metades: o norte muçulmano
e o sul cristão (que recentemente decidiu em plebiscito a favor da criação de um país
separado e autônomo). Após as eleições de 1983, o presidente Yaffar al-Numeiry
introduziu rigorosas leis de acordo com as prescrições do fundamentalismo islâmico.
A medida causou descontetamento entre a população não-mulçumana do sul, que
acabou re-iniciando atividades guerrilheiras com intenções separatistas. Movimentos
para-militares do norte reagiram, e, com apoio do governo, comandaram invasões às
vilas do sul, o que resultou, segundo estimativas, em mais de dois milhões de mortos.
Meninos eram sumariamente executados, enquanto meninas eram violentadas
ou escravizadas como empregadas em residências do norte. Os meninos que
conseguiram sobreviver, fugiram a pé por toda savana africana, até conseguirem exílio
em campos de refugiados no Quênia ou na Etiópia. Por volta de 2001, inicou-se
um programa para repatriá-los nos Estados Unidos. Desse ponto em diante, o filme
mostra a dificuldade dos “meninos perdidos” de compreender e se adaptar à coisas
ANTROPOLOGIA DO CORPO

que parecem óbvias aos olhos da cultura ocidental moderna, como a eletricidade, o
vaso sanitário ou as comidas pré-fabricadas. Por outro lado, o filme exibe tambem a
dificuldade dos norte-americanos de compreender alguns dos hábitos dos “meninos
perdidos”, como o de sempre andar em grupo, por exemplo. Depois de passarem toda
a vida em pequenas aldeias ou em campos de refugiados totalmente isolados do resto

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do mundo, os “meninos perdidos” aprenderam, entre outras lições, que permanecer
juntos poderia prevenir o ataque de leões da savana, ao mesmo tempo em que nunca
tiveram notícias de que pessoas de certas regiões do planeta costumam comer
cotidianamente uma coisa chamada pão com manteiga.

1.6 Antropologia do corpo

A antropologia, como a maioria das disciplinas científicas, divide-se ou subdivide-se


em especialidades. No caso da antropologia, especificamente, poderíamos identificar,
de maneira geral, quatro especialidades. Primeiro, a chamada antropologia física,
dedicada ao estudo das variações dos traços biológicos em razão das variações de
cultura em que cada grupo vive e convive. Segundo, uma antropologia pré-histórica
(muito afeita à arqueologia), dedicada ao estudo de sociedades já desaparecidas.
Terceiro, uma antropologia lingüística, que de acordo com a sugestão do próprio
nome, dedica-se ao estudo das diversas formas de expressão da linguagem. Em quarto
e último, poderíamos ainda identificar a chamada antropologia social ou cultural, que
trata dos modos de relação social, em geral.
Os adjetivos que dão lugar a essa divisão podem variar de acordo com o autor que a
informa. Todavia, essa é uma divisão, assim mesmo, costumeiramente admitida como
útil para uma exposição didática das principais maneiras como se organiza o trabalho
antropológico. Mas para além dessas, existe ainda a possibilidade do aprofundamento
em temas específicos, como a religião ou a arte. É nesse sentido que se menciona a
antropologia do corpo.
A rigor, a antropologia do corpo, diferente da antropologia da religião ou da arte,
não chegou a se constituir como uma especialidade temática institucionalmente
consolidada, quer dizer, uma área com associações científicas, periódicos e outros
canais de publicação especializados. A área do conhecimento que mais se aproximou
disso, mesmo assim com restrições, foi a sociologia. Essas vinculações ou distinções
disciplinares, porém, não serão importantes no contexto desse curso, como já
destacamos. Aqui, mais do que preocupar-se em distinguir os limites que separam a
antropologia desta ou daquela disciplina, interessa-nos pensar o corpo e uma série de
práticas que o tem como elemento principal (o esporte, a ginástica, a Educação Física,
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

etc.) dentro de uma perspectiva antropológica.


Nesse sentido, os diversos processos através dos quais diferentes grupos sociais
manipulam culturalmente os seus próprios corpos é o alvo privilegiado do nosso
interesse aqui. Assim, todas as práticas direta ou indiretamente ligadas à Educação
Física devem ser entendidas como manifestações culturais. Com efeito, a Educação
Física é um conjunto organizado de práticas e saberes culturais, cujo objetivo é
prescrever uma (ou várias) maneira (s) determinada (s) de se utilizar, se conceber e

20
se relacionar com os próprios corpos. Nesse sentido, a Educação Física é mais um
dispositivo social através do qual o ser humano intervém na natureza através da
cultura, uma vez que o corpo é, antes de tudo, um dado da natureza. Basicamente, o
estudo das maneiras pelas quais os indivíduos de determinada sociedade utilizam ou
modificam a forma dos seus corpos é o assunto da antropologia do corpo.
Por exemplo, na fronteira da Tailândia com a Birmânia, as mulheres da tribo Pa-
daung, notabilizaram-se internacionalmente pelo característico uso de anéis de metal
para prolongar o pescoço, algo que é considerado tanto um sinal de beleza, como uma
marca distintiva da situação da mulher no interior da tribo. Na Papua Nova Guiné,
jovens do clã kurafi fazem tatuagens no rosto para marcar a passagem da juventude
para a fase adulta. No Vale Omo, no sudeste da Etiópia, jovens solteiras da tribo Ha-
mar se apresentam voluntariamente para uma seção de espancamento no momento
em que algum dos seus parentes do sexo masculino se inicia no ritual de passagem
para a vida adulta. Na Ilha Pentecoste, em Vanuatu, nativos atiram seus corpos do
alto de torres feitas de madeira durante o ritual nagol.
De início, poderíamos julgar cada uma dessas práticas (relacionadas ao
corpo), cujo número poderia ser facilmente ampliado, como algo estranho,
exótico, aparentemente sem sentido, quiçá irracional. No entanto, de uma
perspectiva antropológica, a lógica de comportamentos como esses podem se tornar
compreensíveis a partir do momento em que eles são pensados no interior do
contexto social no qual são realizados. Mais que isso, pode-se, inclusive, começar
a ver irracionalidade em comportamentos que até então eram tidos como
totalmente racionais. Ou o que dizer de homens ou mulheres que modificam seus
corpos implantando silicone, pintando os cabelos, bronzeando-se artificialmente,
esculpindo-o através de exercícios, inserindo piercings ou fazendo tatuagens?
Todos esses hábitos, apesar de mais ou menos comuns e convencionais na nossa
cultura, já poderiam, assim mesmo, começar a ser vistos com considerável dose de
estranhamento. E o que pensar então de hábitos mais extravagantes, mas igualmente
inscritos no ethos de nossa própria cultura, como a bifurcação de língua, as cirurgias
de mudança de sexo, a implantação de chifres, o alargamento dos lóbulos da orelha
ou o bodybuilding? Ou do sentido de práticas que disponibilizam o próprio corpo
ao sofrimento físico, como os esportes radicais ou as lutas de boxe ou de vale-tudo
(praticada por poucos, mas assistida por muitos)?
Compreender o que à primeira vista é estranho e às vezes até repugnante,
ao mesmo tempo em que se interroga sobre o sentido do que à primeira vista é
ANTROPOLOGIA DO CORPO

normal, é uma das maneiras pelas quais a perspectiva antropológica de olhar para o
mundo pode colaborar na formação do professor de Educação Física. O exercício
pedagógico não consiste apenas na aplicação mecânica de técnicas de aprendizagem
motora ou de táticas esportivas. Para além disso, o exercício do ofício de professor de
Educação Física implica, antes de tudo, capacidade de compreender os motivos e os

21
significados atribuídos a certas práticas pelos agentes que delas participam. É a partir
dessa compreensão que o professor, considerando os contextos em que tais ações
se desenrolam, poderá se posicionar, avaliando as circunstâncias e buscando criar
mecanismos e estratégias adequadas a cada caso. Porque as pessoas praticam esporte?
O que as leva a se entusiasmar com essa prática? Porque freqüentam academias de
ginástica? O que esses espaços significam para a nossa sociedade? Porque elas têm se
tornado tão populares? São perguntas que o professor de Educação Física deve ter em
mente se quiser atuar de maneira consciente, e não apenas repetindo mecanicamente
o que lhe mandam repetir.

1.7 O ritual do corpo entre os Sonacirema por Horace Minner

O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que


diferentes povos reagem diante de situações similares que ele não consegue se
surpreender com os costumes mais exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer
entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem
sido encontradas em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que
elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada ou conhecida. As
crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais,
que nos parece importante descreve-las como exemplo dos extremos a que o
comportamento humano pode chegar. A descrição que segue é resultante de anos
de vivência entre esse povo exótico.
O professor Linton foi o primeiro a chamar atenção para o complexo ritual
dos Sonacirema, há 20 anos atrás, mas a cultura deste povo é ainda muito pouco
compreendida. Os Sonacirema são um grupo Norte americano que vive no
território que se estende desde os Cree no Canadá aos Yaqui e Tarahuna do México
e ao Caribe nas Antilhas. Pouco se sabe sobre sua origem, embora a tradição mítica
afirme que eles vieram do Leste...
A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente
desenvolvida que se beneficiou de um habitat muito rico. Embora a maior parte
do tempo das pessoas, nessa sociedade, seja devotado à ocupação econômica,
uma grande porção do fruto destes trabalhos e uma considerável parte do dia são
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja


aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do modo de viver
e se comportar desse povo. Ainda que tal tipo de preocupação não seja raro entre
diversas culturas, na sociedade Sonacirema seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí
implícita são únicos.
A crença fundamental subjacente a todo sistema parece ser a de que o corpo
humano é feio e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em

22
tal corpo, a única esperança do indivíduo é evitar essas características através do uso
de poderosas influências do ritual e da cerimônia mágica. Todo o grupo doméstico
possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais
poderosos dessa sociedade têm vários santuários do corpo em suas moradias, com
suas paredes cobertas de pedras, e, de fato, a opulência de uma casa é frequentemente
aferida em termos de quantidade dos centros rituais que abriga.
Mesmo que cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a
eles associados não são coletivos, realizados pela família, mas cerimônias privadas
e individuais. Os ritos normalmente são discutidos somente com as crianças; e isto
apenas durante a fase em que elas estão sendo iniciadas nestes mistérios.
O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca
são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo
acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários iniciados, de
acordo com a especialidade. Dentre eles, os mais poderosos são os Curandeiros,
cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto,
o Curandeiro não fornece as poções desejadas por seus assistidos, decidindo apenas
os ingredientes que nelas devem entrar e, em seguida, escrevendo em uma língua
estranha e secreta. Tal escrita apenas pode ser decifrada pelo Curandeiro e pelos
Herbanários, os quais fornecem o feitiço desejado.
O feitiço não é descartado logo após seu uso, porém é colocado na caixa de
mágicas do santuário doméstico. Como esses materiais mágicos são específicos para
certas funções – e considerando que as doenças reais ou imaginárias desse povo são
muitas – a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos
são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original e temem usá-los
novamente. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a esta questão,
só podemos concluir que a idéia subjacente ao costume de se guardar, mesmo não
tendo mais nenhuma utilidade, todos os materiais mágicos e seus vasilhames nas
caixas dos santuários diante das quais são encenados os rituais do corpo, é que os
materiais continuam agindo magicamente e protegendo o fiel.
Embaixo da caixa de mágicas existe uma pequena fonte; todo dia cada membro
da família entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágicas,
mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve rito de ablução.
As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da tribo aonde os Sacerdotes
conduzem elaborados cerimoniais para manter o líquido ritualmente puro.
Há hierarquia entre os Sacerdotes da Magia. Abaixo do Curandeiro, em termos
ANTROPOLOGIA DO CORPO

de prestígio, existe um outro tipo de Curandeiro cuja designação é mais bem


traduzida pela expressão “Homens-da-Boca-Sagrada”. Os Sonacirema tem um horror
pela boca e, ao mesmo tempo, uma fascinação por ela que chega a ser patológica.
Acredita-se que a condição da boca tem influência sobrenatural sobre as relações
sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema realmente acreditam que os

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dentes cairiam, suas gengivas sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos
os abandonariam e seus/suas amantes as/os rejeitariam.
O ritual do corpo quotidianamente realizado por todos inclui um ritual bucal.
Apesar de sabermos que esse povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado
com a boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não acostumado não
consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste
na inserção de uma pequeno feixe de cordas de porco na boca, juntamente com
certos pós mágicos numa mistura cremosa e, em seguida, na movimentação deste
feixe segundo uma série de gestos altamente formalizados e ritualizados. Além
desse ritual, os Sonacirema procuram os “Homens-da-Boca-Sagrada” uma ou
duas vezes por ano, dependendo da crença familiar. Esses curandeiros possuem
uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes,
furadores, sondas, agulhas e pastas. O uso desses materiais rituais no exorcismo dos
perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura do indivíduo. O “Homens-
da-Boca-Sagrada” alarga qualquer buraco que o uso tenha naturalmente feito nos
dentes e deposita pós mágicos nas cavidades. Se não são encontrados buracos entre
os dentes, grandes seções de um ou mais deles são serrados para a realização do rito.
Na imaginação desse povo, o objetivo dessas aplicações é deter o apodrecimento dos
dentes e atrair amigos. O caráter de crença sagrada deste ritual fica evidente no fato de
que os Sonacirema voltam todo ano a esse tipo de Curandeiro, embora seus dentes
continuem a se deteriorar naturalmente.
Para não nos estendermos na descrição de todos os rituais do corpo, terminaremos
com mais três muito interessantes. Primeiro, vamos considerar o ritual de laceração
que os Sonacirema realizam quase cotidianamente. Esse ritual é distinto, conforme se
o indivíduo que o realiza é homem ou mulher. No primeiro caso, o rito envolve uma
arranhadura da superfície da face por meio de um instrumento cortante que irrita a
pele do praticante e, não raro, o corta. No segundo caso, o rito feminino é ainda mais
agressivo: as mulheres costumam raspar-se em várias partes do corpo acreditando
que tal feito melhore suas relações sociais. Essa descrição não é completa, pois no
caso das mulheres existem muito mais rituais bárbaros – como assar suas próprias
cabeças num pequeno forno durante mais ou menos uma hora.
Os curandeiros possuem um Templo imponente, o Latipsoh. As cerimônias mais
elaboradas, necessárias para o tratamento dos indivíduos mais doentes podem ser
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

realizadas apenas nesses lugares sagrados. Tais cerimônias são tão violentas que chega
a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes
que entram no Latipsoh consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é
ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-las ao Templo alegando que
“é aonde você vai para morrer”. Apesar disto, os doentes adultos não apenas desejam,
mas ficam ansiosos para submeter-se a prolongada purificação ritual. Se eles não
possuem meios para tanto, os Guardiões do Templo, não importa quão suplicante o

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doente ou quão grave a emergência, não permitem sua entrada sem que seja dado um
rico presente ao Zelador do Templo.
O suplicante é despido de todas as suas roupas ao entrar no Latipsoh. Ao contrário
da vida cotidiana – em que o indivíduo Sonacirema nunca tem suas excreções
realizadas em público –, no Templo ocorre uma perda súbita da privacidade, como se
com isso o indivíduo renascesse. Ali o doente se vê auxiliado por uma Vestal durante
todos os momentos, até mesmo no ato excretório, em que suas funções naturais
devem ser realizadas num vaso sagrado. Além de terem seus corpos nus submetidos
ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos diversos Curandeiros.
Por fim, ainda resta um tipo de Curandeiro muito procurado e mais um tipo de
ritual para ser descrito. Trata-se do Escutador. Este feiticeiro tem o poder de exorcizar
os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os
Sonacirema acreditam que o contato e relacionamento entre os indivíduos podem
ser origem de muitos feitiços perigosos. O Escutador possui uma contra-magia que
singular por seu caráter simples de quase nenhum ritual. O doente simplesmente
conta a esse Curandeiro todos os seus medos, problemas e dificuldades. A memória
exibida pelos Sonacirema durante esses ritos é realmente notável, não sendo
incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu no útero materno ou logo
quando foi desmamado; alguns chegam mesmo a localizar seus problemas nos efeitos
traumáticos de seu próprio nascimento.
São tantos os rituais Sonacirema que é impossível descrevê-los em tão pouco
espaço. Existem certas práticas, baseadas na estética nativa, mas que dependem de
uma enorme aversão generalizada pelo corpo ou por suas funções naturais. Há jejuns
para fazer pessoas consideradas gordas emagrecerem. Outros ritos ainda são usados
para os seios das mulheres sonacirema ficarem maiores ou menores – nunca elas estão
satisfeitas com os seus. Há pinturas rituais que mais escondem a verdadeira aparência
física. Até mesmo as funções excretórias são ritualizadas e rotinizadas, relegadas ao
domínio do secreto. Igualmente as funções reprodutivas. O intercurso sexual é tabu
como tópico de conversa e, não raro, programado enquanto ato. Grandes esforços
são feitos para se evitar a gravidez por meio de mais materiais e rituais mágicos ou
simplesmente pela limitação do encontro sexual de acordo com fases lunares. O parto
se realiza em segredo, sem a presença de amigos e familiares e a maioria das mulheres
não amamenta seu bebê.
Nossa descrição da vida Sonacirema certamente mostra que eles são um povo
obcecado pela magia. E toda sua cultura parece calcada num valor central, numa
ANTROPOLOGIA DO CORPO

configuração particular que se baseia, acima de tudo, numa forma singular de perceber
as coisas. Em poucas palavras, suas crenças e rituais do corpo. É difícil compreender
como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos fardos que eles
próprios criaram para si. Mas mesmo para costumes tão exóticos quanto esses que
foram descritos, seu estudo ganha sentido e importância quando encarados a partir do

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ensinamento do antropólogo Malinowski: “Nosso objetivo final ainda é enriquecer
e aprofundar nossa própria visão do mundo, compreender nossa própria natureza
e refiná-la, intelectual e artisticamente. Ao captar a visão essencial dos outros, com
a reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo aos selvagens, estamos
contribuindo para alargar a nossa própria visão. Não podemos chegar à sabedoria final
socrática de conhecer-nos a nós mesmos se nunca deixarmos os estreitos limites dos
costumes, crenças e preconceitos em que todo homem nasceu”.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

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Referências

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Tempo e tradição: interpretando a


antropologia. In: CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o pensamento
antropológico. Tempo Brasileiro / CNPq: Rio de Janeiro / Brasília, 1988,
p. 13-26.

ECO, Umberto. Quando o outro entre em cena. In: ECO, Umberto. Cinco
escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998.

GEERTZ, Cliford. Anti anti-relativismo. In: GEERTZ, Cliford. Nova luz sobre
a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas: do universal ao


multiculturalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo, Brasiliense,


1988.

LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. 16 ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício de papai Noel. São Paulo: Cosac


Naif, 2008.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. 2. ed. Rio de


Janeiro: Zahar: 1970.

ROCHA, Everaldo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo:


Brasiliense, 1988.

SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda. São Paulo: Cosac


Naify, 2004.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

27
2. Corpo e Cultura: ampliando conceitos

A proposta deste capítulo é fazer a discussão de dois elementos centrais: a cultura e


o corpo. Assim sendo, em um primeiro momento, discutiremos o que é a cultura,
algumas de suas definições e a relação desta com a história e o próprio ser humano.
No segundo item, faremos a discussão a respeito das principais concepções de
corpo, a forma como vem sendo pensado socialmente e discutido na educação física,
bem como, apontaremos alguns elementos necessários para a sua determinação.

2.1 Apresentando reflexões sobre a cultura

A discussão sobre o corpo e a cultura é recorrente em determinados tipos de ciências.


A perspectiva da cultura pode ser compreendida por diversos enfoques como
aquela demonstrada por Cliford Geertz no livro “A Interpretação das Culturas” (13.
Reimpressão. Rio de Janeiro: LTC, 2008).
Entretanto, outros enfoques poderiam ser apresentados a partir de
modelos diferentes de análise, como aquelas que se aproximam da ideia
de uma Cultura genérica de todos os seres humanos (como exemplo,
podemos mencionar o fato de todos andarmos vestidos) e, por outro, a
perspectiva de que os nossos costumes, nesse caso as nossas roupas, possuem
características próprias de diferentes culturas, sejam elas entendidas de
forma geográfica (as roupas do Brasil, da Europa e do Oriente Médio não
são as mesmas), ou temporal (há diferença entre as roupas do século XIX,
com os vestidos cheios de camadas das mulheres, e as atuais, onde no caso
do Brasil, de acordo com a região, temos roupas muito curtas e com poucas
peças). Este é o caso se adotar a perspectiva apresentada por Terry Eagleton
(A Idéia de Cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005.), no qual o autor
apresenta a perspectiva de uma “Cultura” com “C” para o contexto geral e outras
culturas com “c” para características específicas.
Do ponto de vista corporal podemos dizer a mesma coisa. Cada época e lugar
possuem, até certo ponto ao menos, as suas próprias características e concepções
de corpo. Ao olharmos para a Antiguidade e Idade Média, conseguiremos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

encontrar atributos considerados privilegiados para o corpo. Um exemplo disso


são os quadros pintados na Idade Média, onde aparecem corpos de mulheres
corpulentas, com formas arredondadas. (Veja Figura 1, pág. 31)
Por outro lado, dentro dos padrões culturais da atualidade, o modelo
de corpo, sobremodo, o feminino apresenta características de magreza (em
alguns casos excessiva, como acontece com os casos de anorexia e bulimia) e
força, como forma de destacar os níveis de disciplina e caráter, como comenta

28
Foucault (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 26.
ed. Petrópolis: Vozes, 2002. Veja também: FOUCAULT, Michel. História da
sexualidade I: a vontade de saber. 15. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.)
Podemos identificar nos exemplos das duas figuras acima, as características
comentadas sobre o corpo, as quais fazem parte de padrões culturais determinantes
inclusive das características corporais das mulheres e daquilo que se esperava dos seus
papeis na sociedade de cada tempo.

Figura 1 Os modelos de corpos das Mulheres na Idade Média e na Atualidade.

Assim, podemos dizer que é preciso estabelecer de maneira mais explícita alguns
conceitos de cultura. O primeiro elemento relativo à cultura que podemos citar é
apresentado por Eagleton (2005, p. 10-11) do ponto de vista etimológico:

A raiz latina da palavra “cultura” é colere, o que pode significar qualquer coisa,
desde cultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de “habitar”
evoluiu do latim colonus para o contemporâneo “colonialismo”, de modo
que títulos como Cultura e colonialismo são, de novo, um tanto tautológicos1.
Mas colere também desemboca , via latim cultus, no termo religioso “culto”,
assim como a própria idéia de cultura vem da Idade Moderna a colocar-
se no lugar de um sentido devanescente2 de divindade e transcendência.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

Verdades culturais – trate-se da arte elevada ou das tradições de um povo

1. Que se explicam a si próprios, ou seja, aquelas explicações que são dadas por elas mesmas,
sem sair do lugar.

2. Devanescente significa que a ideia de Deus se dilui, se esvanece, se evapora no contexto


daquele momento.

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– são algumas vezes verdades sagradas, a serem protegidas e reverenciadas.
A cultura, então, herda o manto imponente da autoridade religiosa, mas
também tem afinidades desconfortáveis com ocupação e invasão; e é entre
esses dois pólos, positivo e negativo, que o conceito, nos das de hoje, está
localizado (Grifos do autor).

Assim, é possível percebermos que a perspectiva de cultura tem a ver com certo
patamar de cultivo do ser humano, tanto do ponto de vista material como do ponto
de vista espiritual. Desse modo, a cultura apresenta uma tensão entre o que é próprio
do ser humano, portanto, natural, como do que é artificial. Assim, se retomamos a
reflexão elaborada por Eagleton (2005, p. 11), podemos dizer:

Se a palavra “cultura” guarda em si os resquícios de uma transição histórica


de grande importância, ela também codifica várias questões filosóficas
fundamentais. Neste único termo, entram indistintamente em foco
questões de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer, mudança e
identidade, o dado e o criado. Se cultura significa cultivo, um cuidar, que é
ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre
o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo
nos faz. É uma noção “realista”, no sentido epistemológico, já que implica
a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós; mas que tem
também uma dimensão “construtivista”, já que essa matéria-prima precisa
ser elaborada numa forma humanamente significativa.

Dessa maneia, podemos apreender a ideia de uma cultura que se faz na relação
do homem com a natureza, com ele mesmo e com os significados que esta produção,
este “cultivo” possui para a vida humana. Nessa dimensão “construtivista” da cultura
a interface do ser humano com as matérias-primas permitem o desenvolvimento
de maiores ou menores níveis de relação e formação de sentidos e significados.
A relação presente entre o ser humano e a natureza e entre este e a cultura é descrito
de maneira interessante por Carlos Rodrigues Brandão (A educação como
cultura. ed. rev. e ampl. Campinas: São Paulo, Mercado das Letras, 2002, p. 16)
quando ele diz: “Eu me vejo como um ser da natureza, mas me penso como um
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

sujeito da cultura. Como um alguém que pertence também ao mundo que a espécie
humana criou para aprender e viver”.
A cultura é então uma forma de produção humana. Não se pode pensar na
elaboração de matéria-prima, em sua transformação na definição de sentidos
e significados dos produtos e da própria transformação da natureza fora da
humanidade. Por isso, apoiado nos estudos Geertz apresenta algumas definições
de cultura como:

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[...] (1)“o modo de vida global de um povo”; (2) “o legado social que o indivíduo
adquire de seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma
abstração do comportamento”; (5)”uma teoria, elaborada pelo antropólogo,
sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta realmente”; (6)
“um celeiro de aprendizagem em comum”; (7) “um conjunto de orientações
padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”;
(9) “um mecanismo para a regulamentação normativa do comportamento”;
(10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como
em relação aos outros homens”; (11) “um precipitado da história”, e voltando-
se, talvez em desespero, para as comparações, como um mapa, como uma
peneira, como uma matriz (KLUCKHOHN apud GEERTZ, 2005, p. 4).

Havendo então esta quantidade significativa de definições do que seja cultura,


optamos então por apresentar outra proposição de cultura, apresentada por Brandão
(2002, p. 37). Primeiro ele se reporta à definição de cultura de Carlos Estevam. Este diz:
“Cultura é, sem dúvida, um conceito de extensão miseravelmente vasta. A rigor, quer
dizer tudo que não é exclusivamente natureza e passa a significar praticamente tudo num
mundo como o de hoje penetrado por todas as partes pelo trabalho criador humano
(Estevam 1963, p. 7)”.
No entanto, Carlos Rodrigues Brandão, trará uma definição de cultura
bastante interessante.

De modo concreto, a cultura inclui objetos, instrumentos, técnicas e


atividades humanas socializadas e padronizadas de produção de bens, da
ordem social, de normas, palavras, idéias, valores, símbolos, preceitos, crenças
e sentimentos. Destarte, ela abrange o universo do mundo criado pelo
trabalho do homem sobre o mundo da natureza de que o homem é parte.
Aquilo que ele fez sobre o que lhe foi dado.
Mas a cultura, que é a natureza transformada e significada pelo homem, deve
ser produzida de modo a “garantir a um nível cada vez mais integral a realização
do ser humano no mundo” (Carlos Estevam 1963, pp. 8-9). Portanto, pensar
a cultura importa conceber a sua ética. (Citado por BRANDÃO, 2002, p. 37).

Destarte, podemos observar a perspectiva da cultura a partir de alguns elementos


constitutivos da mesma. Em primeiro lugar, considera-se a cultura como elemento
ANTROPOLOGIA DO CORPO

de transformação da natureza pelo homem, ação esta capaz de modificar as coisas


ao redor do ser humano. Mas ao transformar a natureza e com esta mudança, o
homem também se transforma, tendo em vista o fato de as condições objetivas serem
responsáveis pela formação da consciência de cada pessoa, como diriam Marx e
Engels (A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998).

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Em segundo lugar, a cultura depende dos determinantes simbólicos e significados
estabelecidos pela humanidade. Portanto, a cultura é intrinsecamente formativa do
ponto de vista das relações grupais, e consequentemente, do próprio indivíduo. Isso
quer dizer que as práticas de um determinado grupo tem sentido de grupo, importância
e prioridade totalmente diferente de um grupo para outro. Um rápido exemplo disso é
o futebol. Enquanto no Brasil, a grande maioria dos meninos sonha ou já sonharam em
ser grandes jogadores de futebol, nos Estados Unidos, a preferência é claramente pelo
basquete. Por outro lado, na Islândia, o handebol é considerado o principal esporte do
país, tendo a sua equipe masculina se classificado em sexto lugar e segundo lugar na
última Olimpíada (Pequim, 2008). Estes dados, simplesmente demonstram o fato de
a cultura possuir características próprias em cada lugar, a qual depende inclusive das
condições históricas. Assim, podemos afirmar segundo Brandão (2002) que a cultura
constrói a história, bem como, a história faz a cultura. Finalmente, devemos reforçar
a perspectiva da cultura enquanto construção humana, uma vez que, ela possui
interfaces com a consciência. Sobre isso, comenta Brandão (2002, p. 39):

As abelhas e as formigas também agem sobre a natureza e sabem transformá-


la admiravelmente. Mas fazem isso como uma extensão do corpo, não
da consciência. Não separam reflexivamente da “coisa” que produzem e,
consequentemente, não atribuem significado ao que fazem. Não re-criam o
que criam. O homem – sujeito que produz a cultura – define-se mais por
significa-la como um ato consciente de afirmação de si mesmo, senhor do
seu trabalho e do mundo que transforma, do que por simplesmente fazê-la de
modo material. Antes de ser machado o objeto é seu símbolo, logo, a relação
simbólica entre ele e o homem, entre o homem e seus símbolos. É isto o que
torna o homem um “ser histórico”, um ser que não está na história, mas que
a constrói como produto de um trabalho e dos significados que atribui, ao
fazê-lo: ao mundo, à sua ação e a si mesmo, vistos no espelho de sua prática.
Um ser tornado histórico também no sentido de que não existe como uma
espécie de essência dada ao mundo, mas como alguém a quem a história cria
ao ser, ela própria, construída por ele.

A partir de todas essas apresentações a respeito da cultura, da sua relação com a


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história e, por conseguinte, da relação definitiva com o ser humano, um ser natural/
cultural simultaneamente, devemos refletir sobre o processo de existência do ser
humano. Em outras palavras, se o ser humano se constitui na sua relação dialética entre a
natureza e a cultura e na sua condição entre o biológico e o social, sua forma de presença
no mundo se faz de uma única forma: pelo corpo. Afinal, o corpo é o lócus da existência
humana, criador e criatura da própria cultura, sem a qual, as suas modificações biológicas,
naturais e históricas não seriam possíveis. Esta cultura, constituída por meio da ação

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transformadora do ser humano o trabalho, compreendido aqui como o processo de
transformação da natureza pelo homem e, consequentemente, do homem pela natureza.
Do ponto de vista humano, é no corpo onde estão expressas todas as regras,
normas, padrões culturais, sentidos e significados, símbolos e ritos. É por ele que
somos identificados e é nele que o ser humano se distingue por “[...] uma postura
bípede, um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido” (Este refrão
é o mote principal do filme Ilha das flores, o qual sugerimos que seja assistido. ILHA
das flores (1989). Cineasta: Jorge Furtado Gênero: Comédia/Curta-Metragem.
Tempo De Duração: 13 Min. Disponível em: http://video.google.com/videoplay?do
cid=5310352391555601366#.).
Para refletir melhor sobre o corpo, passaremos então a uma outra discussão a respeito
das concepções de corpo presentes na história.

2.2 O Corpo: suas concepções, suas percepções sociais e o


trato dado pela educação física

Não se pode afirmar que o debate sobre o corpo seja recente. A discussão sobre o
que ele seja se manifesta na filosofia, em várias ciências como a biologia, a sociologia,
a antropologia, em diferentes formas de reflexão e ainda, vem sendo discutido de
forma mais significativa na educação física brasileira desde os anos de 1980.
Refletir sobre o corpo é pensar a série de relações estabelecidas por ele, tendo
como referência, a maneira de ser e estar presente na face da terra, procurando
entender as analogias do corpo de cada pessoa com outros corpos, submetido às
suas condições biológicas, ao mesmo tempo em que apresenta as suas condições
sociais, filosóficas, religiosas, científicas, entre várias outras dimensões da vida
humana com condições de serem citadas. O corpo é por isso um objeto de estudo
interessante para ser pensado, discutido e analisado sob óticas diferentes. Assim
sendo, pretendemos subdividir essa discussão em três elementos centrais. O
primeiro tópico está vinculado a algumas das suas concepções presentes na filosofia
e na sociologia, o segundo, a suas percepções e construções sociais e finalmente, o
trato da educação física sobre o corpo nos últimos anos.

a. Discutindo as concepções de corpo


ANTROPOLOGIA DO CORPO

Como já dissemos antes, a maneira como o corpo é concebido vem de distintos


autores e épocas, em áreas distintas, mas, em sua grande maioria, são provenientes da
filosofia, desde a antiguidade clássica com Sócrates, Platão e Aristóteles, até as mais
recentes como as proposições de David Le Breton, um autor francês da atualidade, o
corpo vem sendo alvo de debates. Todavia, antes de fazer a reflexão sobre as diferentes

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concepções de corpo é interessante fazer duas separações sobre esta temática: a
distinção entre o organismo e o corpo.

Organismo – é a estrutura Anátomo-fisiológica do ser humano;


Corpo – “Corpo humano vivo é o conjunto dos poderes de um existente
tendo capacidade de avaliar e de se representar a si mesmo esses poderes,
seus exercícios e seus limites” (CANGUILHEM, 2005, p. 41).

Neste caso, podemos ainda dizer que o corpo é um dado e um produto. Para
explicar melhor, é possível afirmar.

Dado: [...] uma vez que é um genótipo, efeito a um só tempo necessário e


singular dos componentes de um patrimônio genético” (CANGUILHEM,
2005, p. 42 – Grifo nosso).
Produto: [...] sua atividade de inserção em um meio característico, seu
modo de vida escolhido ou imposto, esporte ou trabalho, contribui para dar
forma a seu fenótipo, ou seja, para modificar sua estrutura e, por conseguinte,
para singularizar suas capacidades” (CANGUILHEM, 2005, p. 42 –
Grifos nossos).

A distinção sobre o corpo e o organismo se faz necessária para que não se


pense o corpo apenas pelo seu componente material, biológico. Nesse caso, a
intenção é em um primeiro momento manter as reflexões presentes na filosofia.
Por isso, temos como preocupação apresentar algumas variações a respeito do
assunto corpo.
As variações de corpo trazidas por eles são muitas e ao mesmo tempo possuem
aproximações e distanciamentos variados. As aproximações, de modo geral, são
estabelecidas por compreender o corpo em relação à alma, aos outros seres
humanos e ao mundo/natureza.
Por outro lado, os diferentes autores se distanciam por compreender o corpo
como um elemento inferior ou mesmo prisão da alma, como uma máquina,
como um sujeito de sua história individual ou mesmo da história de seu grupo
social ou da humanidade. Há ainda autores que acreditam no corpo apenas como
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

componente meramente biológico ou cultural. Existem também defensores da


perspectiva de o corpo ser apenas um objeto de estudo, o qual reflete a condição
de existência e materialidade de homens e mulheres como seres existentes no
mundo, pessoas, mas não corpos.
Uma ideia da maneira como diferentes autores ao longo da história discutiam e
pensavam o corpo pode ser demonstrada nos fragmentos de texto abaixo, os quais
permitem analisar alguns exemplos:

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Os filósofos, ao verem sua alma presa ao corpo e obrigados a apreciar as
coisas por intermédio do corpo, como se fosse através de um cerca ou
prisão e não por ela mesma, ao que fazem com que a alma, acorrentada,
ajude a apertar seus ferros, ao reconhecerem que a filosofia vem se apossar
de sua alma nesse estado, consolam-na suavemente e trabalham em
liberdade fazendo-a ver que os olhos do corpo estão repletos de ilusões,
bem como seus ouvidos e todos os outros sentidos, e a advertem que não
os utilize mais do que exige a necessidade [...] (PLATÃO, 1999, p. 149).

Mas, se para as cores consultamos a luz, e para as outras coisas que


percebemos mediante o corpo consultamos os elementos deste mundo, os
mesmos corpos percebidos e os próprios sentidos de que a mente se serve
como de intérpretes para conhecer as coisas externas; e, no entanto, para
aquelas coisas que se conhecem mediante a inteligência consultamos, por
meio da razão, a verdade interior [...] (SANTO AGOSTINHO, 1973a, p.
351-2).

[...] compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar,
nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a
alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e,
mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse
ela não deixaria de ser tudo o que é (DESCARTES, 1973, p. 47). (Grifo
nosso)

[...] se é verdade que tenho consciência do meu corpo através


do mundo, que ele é no centro do mundo, o termo não-percebido para
o qual todos os objetos voltam sua face, é verdade pela mesma razão
que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces
porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho
consciência do mundo por meio de meu corpo (MERLEAU-
PONTY, 1999: 122). (Grifo nosso)

A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz


ANTROPOLOGIA DO CORPO

de toda a natureza o seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida;


e igualmente 2) como objeto material e instrumento da sua atividade vital.
A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza
na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive
da natureza, ou também, a natureza é o seu corpo, com o qual tem de
manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida

35
física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes
significa apenas que a natureza inter-relaciona consigo mesma,
já que o homem é uma parte da natureza (Marx, 2002, p. 116).
(Grifo nosso)

Estes fragmentos dos vários textos que discutiram de maneira específica a


questão do corpo, seja por meio de uma reflexão densa, seja por um fragmento
com o qual o autor traz alguma contribuição para este debate ou mesmo para
refletir outras questões. De qualquer forma, estas diferentes concepções são
importantes por estarem sempre presentes no cotidiano, seja no senso comum,
seja nas reflexões de professores de educação física que participaram de várias
pesquisas diferenciadas. A partir dos dados levantados, é possível se fazer uma
análise que aproxime algumas dessas concepções mencionadas anteriormente.
Assim sendo, mesmo sabendo dos limites gerados por uma classificação
e entendendo ainda a dificuldade de apresentar autores e “rótulos” em caixas
sem as quais não seria possível pensa-los, apesar de todos os limites estamos
propondo uma categorização das diferentes concepções de corpo, as quais
possuem aspectos meramente didáticos, haja vista, a necessidade de neste
trabalho limitarmos as discussões. Destarte, propomos o seguinte quadro
de análise: Quadro 1- Categorização Didática das Concepções de Corpo, Formas de
Reflexão e Principais Autores3 dessas Correntes4. (Ver página 39)
Além de todos esses autores e temáticas mencionadas existem vários outros
pensadores, pesquisadores e concepções que poderiam ser citados, na filosofia, na
história, na antropologia internacional e nacional. Ademais, poderiam ser citadas várias
pesquisas brasileiras desenvolvidas nos últimos 20 anos abordando estas temáticas.
Entretanto, existem outros pontos a serem tratados, como a percepção e a
construção social do corpo, além do trato dado pela educação física, discutidos a seguir.

b. As percepções e construções sociais do corpo.

As concepções de corpo apresentadas no item anterior, assim como as características


consideradas adequadas ou ideais que já foram comentadas dependem dos padrões
culturais de cada momento da história como já foi comentada.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Assim, temos de considerar a maneira de perceber o corpo no contexto de cada


sociedade. Como já foi mostrado no debate sobre a cultura, o corpo de cada período
e sociedade possui as características consideradas as mais adequadas para se atender as

3. As principais obras de cada autor apontado neste quadro estão indicadas nas referências
bibliográficas deste capítulo.

4. Pode ocorrer a presença de um mesmo autor em mais de uma corrente.

36
Quadro 1. Categorização Didática das Concepções de Corpo, Formas de Reflexão e
Principais Autores dessas Correntes..
Categoria/ Forma de se Pensar o Corpo Principais
Concepção Autores
Esta é provavelmente a tendência mais
Sócrates5, Platão,
clássica da filosofia. Aqui o corpo é sempre
Santo Agostinho,
comparado com a alma, devido à sua con-
Corpo da Alma São Tomás de
dição de finitude face à infinitude da alma,
Aquino,
ou ainda como a sua prisão ou motivo de
Descartes
pecado e de não evolução da alma.
Nesta perspectiva o corpo é visto apenas
Corpo de Si Mesmo pela sua existência. Dessa forma, ele é Descartes,
(Corpo Próprio) tratado como máquina ou como elemento La Mettrie
meramente biológico.
Nessa concepção normalmente o corpo é
visto em relação com o mundo que o cerca
ou com a natureza, entendida por sua
dimensão histórica e, portanto, vinculada às
Merleau-Ponty,
Corpo com o construções e transformações pelo trabalho
Foucault, Hegel,
Mundo/Natureza e por suas determinações sociais. Muitas
Marx e outros.
vezes ele se aproxima de concepções exis-
tenciais, pensando o corpo pela sua relação
com outros seres humanos, constituindo
assim a sua subjetividade.
Nessa perspectiva o corpo é visto por duas
possibilidades. A primeira passa pela pers-
pectiva de que o corpo como algo natural/
cultural pode ser manipulado por uma série
de recursos ligados à biotecnologia como
Marzano-Parisoli;
Corpo sem o Corpo as próteses e a possibilidade de clonagem.
Le Breton
Por outro lado, existe a defesa de o corpo
não ser um componente material, empírico,
mas uma categoria, um objeto de estudo,
pois, o que existe são homens e mulheres e
não corpos.
Fonte: Adaptado de Baptista e Vilarino Neto, 2014.

necessidades da organização social da produção, a qual tem por sua vez, o objetivo de
atender as necessidades de cada pessoa e/ou grupo.
A necessidade de se propor padrões de beleza, produtividade e habilidades, sempre
aconteceu na história da sociedade. Todavia, este movimento de determinação do
ANTROPOLOGIA DO CORPO

modelo de corpo, gerando dessa maneira percepções distintas sobre o mesmo, nunca
atingiu os patamares da sociedade atual. Este processo é facilitado pela utilização dos
diferentes meios de comunicação de massa (mídia), a qual, transmite informações
5. De maneira geral, Sócrates não deixou obras escritas. Muito do seu pensamento é obtido
através das obras de Platão, provavelmente, o seu discípulo mais importante..

37
precisas, sem que as pessoas percebam claramente as mensagens que estão recebendo,
facilitando dessa forma, a assimilação das mensagens e ideias como se fossem fruto da
inteligência de cada ser humano isolado.
Desse modo, mais importante do que identificar os modelos e as características
consideradas perfeitas para o modo de produção atual como a juventude, a beleza,
a magreza, a força, a pele branca, os cabelos escorridos, entre outros como são
anunciados por autores como Hasse e Goellner (HASSE, M. Branca, limpa e alinhada:
a ressignificação da natureza no processo de transformação do corpo feminino (1938-
1972). In: GRANDO, B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura: práticas sociais e
maneiras de ser. Ijuí: Ed. Da Unijuí, 2009. p. 53-73; GOELLNER, S. V. A Produção de
corpos hígidos: atividade física, saúde e nacionalismo no Brasil no início do século 20.
In: GRANDO, B. S. (Org.). Corpo, educação e cultura: práticas sociais e maneiras
de ser. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2009. p. 75-92), estão os motivos que levam a essas escolhas.
Do ponto de vista social, se formos identificar os fatores sociais responsáveis
por esses processos, encontramos no limite as relações de trabalho. Isto se justifica
pelo fato de ser o trabalho um componente constitutivo do ser humano, responsável
pela elaboração do corpo da consciência e pela consciência do corpo, haja vista
a impossibilidade de separação do corpo e da consciência humana como
elementos distintos.
Nas condições atuais, o trabalho possui características distintas de outros
momentos históricos, entre eles, o fato de o trabalho ser assalariado, alienado e forçado.
(Para maiores detalhes, vejam: MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. São
Paulo: Global Editora, s.d. e; MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos.
São Paulo: Martin Claret, 2002).
O trabalho assalariado é caracterizado por uma relação mercantil estabelecida
entre um patrão, dono de uma empresa qualquer, que funciona com uma determinada
quantidade de trabalhadores. Para poder funcionar então, é necessário ao patrão pagar
pelo tempo de trabalho do seu empregado. Destarte, a relação de compra do trabalho,
pelo patrão, e venda do tempo de trabalho, pelo funcionário, é realizada de forma livre
por ambos. O patrão pode oferecer um determinado valor por hora trabalhada e cabe
ao funcionário definir se aquela quantia é adequada ao labor a ser realizado ou não.
Contudo, de maneira geral o trabalhador não consegue obter o salário pretendido
tendo em vista, a classe dominante nessa relação ser a dos patrões.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Quanto ao trabalho ser alienado, podemos dizer que o mesmo se torna alienado
quando é transferido para outros, ou seja, quando se vende a força de trabalho e, junto
com ele o fruto (produto) do trabalho. Assim, tudo o que o trabalhador produz não é
mais dele, mas, do patrão.
Esse primeiro processo (perda do produto), é acompanhado por outros três
processos. O passo seguinte é o trabalhador não fazer mais o trabalho do modo que
deseja, mas de acordo com as instruções do patrão (perda do controle do processo),

38
assim, se avança para o momento seguinte. Como o funcionário não é dono do seu
produto e não controla o processo, ele não se vê como ser humano, mas como um
apêndice (peça) da máquina – o seu trabalho.
Logo, se a pessoa não se reconhece como sujeito, mas como máquina, o trabalhador
passa a ver as outras pessoas não como seres humanos, mas como máquinas. Dessa
forma, as relações entre as pessoas passam a ser vistas como relação entre máquinas,
importando apenas as características quantitativas das relações (Alguns exemplos:
quantas aulas um professor dá por dia, quanto o aluno tira na prova, que distância se
consegue saltar, em quanto tempo se corre 100 metros, quantas pessoas eu beijo na
balada de sábado à noite).
No final das contas, os indivíduos presentes em uma dada sociedade não são mais
seres humanos, mas máquinas. Não são mais sujeitos, mas objetos, coisas. Assim, os
seres humanos são reificados (transformados em coisa).
Finalmente, o trabalho realizado, pelos motivos apresentados acima, não é feito de
acordo com o interesse, o tempo e os procedimentos planejados pelos trabalhadores,
mas conforme as normas e as regras ditadas pelo patrão. Portanto, o trabalho não é
mais uma ação livre, mas trabalho forçado. Por isso, as pessoas tem a sensação de não se
realizarem e alcançarem a felicidade durante o trabalho (onde ela deveria formar a sua
consciência de maneira plena), porém, forçado, tornando-se fruto de frustração, apatia
e, em alguns casos, doenças e morte.
Contudo, qual é a relação de toda esta construção social com a determinação
do modelo de corpo e os padrões de beleza e mesmo de saúde da sociedade?
De certo modo, a noção de saúde só como ausência de doenças, e de beleza como força,
magreza e juventude, entre as outras já mencionadas, tem como fundo, a perspectiva
da produtividade. Dessa maneira, os corpos para serem considerados ideais, para cada
coisa, devem atender a essas exigências. Quanto mais próximo o modelo do corpo
de cada um do padrão da sociedade atual, mais valorizado ele é, pois, o corpo nesse
modelo de sociedade, tornou-se uma mercadoria como outra qualquer.
Por isso, tendo como ponto de partida, o valor das mercadorias de uma forma em
geral, o valor estabelecido para o corpo, enquanto tal, é o fetiche (Para maiores detalhes,
veja: MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1996, v. 1. Principalmente, o
Capítulo 1 – a Mercadoria): um valor irreal, sem base material que esconde o valor real
– o tempo de trabalho humano necessário para a produção de uma mercadoria, com
característica fantasmagórica.
Todas essas determinações da sociedade constroem os dois elementos centrais
ANTROPOLOGIA DO CORPO

apontados neste tópico. Por um lado, permite às pessoas elaborarem a sua percepção de
corpo belo, saudável, ideal, entre outras características, uma vez que, estas características
são transmitidas pelos processos educativos ocorridos nas diferentes estruturas sociais.
Por outro, esse processo de educação usa diferentes estratégias de disseminação
dos valores e normas estabelecidos (como a mídia já citada), assim como, são adotadas

39
estratégias para a construção do modelo e habilidades do corpo sugeridas para cada
sociedade. Essas características são constituídas com base na alimentação, nas práticas
higiênicas e finalmente, pelas diferentes práticas corporais, objeto diretamente
relacionado à educação física. Dessa forma, este campo de conhecimento acadêmico
estabelece uma série de práticas e maneiras de intervenção sobre o corpo, para que ele
alcance os objetivos propostos pela sociedade.

c. A Educação Física e o trato sobre o corpo.

A educação física é um campo de conhecimento acadêmico configurada no


início da modernidade e tem como ponto de corte para a sua constituição a origem
dos denominados métodos ginásticos europeus, os quais possuem como objetivo o
disciplinamento dos corpos e a sua preparação para a construção de um novo homem,
na realidade, um novo trabalhador, adestrado para atender às necessidades do modo
de produção capitalista conforme discute Soares (SOARES, Carmen L. Educação
Física: raízes européias e Brasil. 2. ed. rev. Campinas: Autores Associados, 2001).
Ao partir para esta discussão, sobre como a educação física se divide e como
ela participa da construção da sociedade, dos padrões culturais e da constituição
do corpo, tradicionalmente, a mesma é analisada por suas diferentes tendências
pedagógicas, períodos históricos e perspectivas metodológicas. Do ponto de vista do
trato com o corpo, propomos aqui uma discussão diferenciada, a fim de estabelecer
uma concepção diferente. Desse modo, a partir de elementos históricos e dos debates
feitos sobre o corpo por diferentes autores, poderíamos separar a educação física em
relação ao trato com o corpo a partir do seguinte quadro: Quadro 2 - Relação entre
Educação Física e o Corpo. (Ver página 43)
Assim sendo, a intenção central do quadro citado acima é demonstrar o fato
de a educação física ao longo da história ter visto o corpo de maneiras diferentes,
demonstrando, em dado sentido o seu desenvolvimento do ponto de vista acadêmico.
Todavia, esse processo se mostra contraditório do ponto de vista da intervenção da
educação física em relação ao corpo. Em primeiro lugar, o processo de compreensão
do corpo toma forma, a partir dos anos de 1980, quando a área se aproxima das
ciências humanas, ampliando a capacidade de compreensão do seu objeto de estudo,
principalmente da relação com o corpo. Esta aproximação permitiu uma ampliação da
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

concepção do corpo devido à maior presença da psicologia, da filosofia e da sociologia.


Em segundo lugar, a educação física mantem práticas com concepções de corpo
ainda biológicas, agregando aí um novo elemento: a estética. Não é que a estética seja
um elemento totalmente novo, haja vista a sua preocupação com o uso das práticas
corporais desde a Grécia Antiga, porém, a partir dos anos 80, mais do que nunca,
se direcionou a realização de atividades físicas e exercícios para uma padronização
de corpo, nunca vista na sociedade. Como diriam Adorno e Horkheimer (1985 –

40
Quadro 2. Relação entre Educação Física e o Corpo.

Relação entre a
Educação Física Período Histórico Visão do Corpo pela Educação Física
e o Corpo
A Educação Física encara o corpo como um
elemento biológico, sem nenhum outro tipo
Educação Física Do Século XIX até de relação. Cabe à Educação Física melhorar
“Médica” os anos de 1960 as habilidades do corpo, a sua saúde e em
alguns momentos tem como meta discipliná-
lo e prepara-lo para a guerra.
O corpo é visto como uma máquina.
O principal objetivo da Educação Física
é aprimorar o seu nível de desempenho, seja
Final dos anos de para a prática esportiva, seja para a saúde.
Educação Física
1960 até o início Não ultrapassa a percepção biológica da
“Tecnológica”
dos anos 1980. perspectiva anterior, mas tem como diferença
central a preocupação, com o uso das
tecnologias educacionais e o aprimoramento
da aptidão física.
Aqui a Educação Física atinge uma condição
contraditória em relação ao corpo. Por um
lado, mantém em certas tendências a preo-
cupação com os componentes biológicos, de
rendimento esportivo, de saúde biológica e
acrescenta um novo fator: a estética, a qual
De Meados dos
Educação Física acompanha o desenvolvimento das acade-
Anos de 1980 até
“Dialética” mias de ginástica. Por outro lado, os estudos
os dias atuais.
passam a denunciar este tipo de trato com o
corpo, o seu disciplinamento, e a necessidade
de situá-lo como sujeito do ponto de vista his-
tórico e social, apontando para a necessidade
de emancipação e autonomia corporal.

Dialética do Esclarecimento já citado), a diferença plena é a semelhança absoluta.


No caso do corpo, quanto mais as pessoas se aproximam do modelo de corpo
disseminado pela mídia, mais elas se sentem seres individuais.
É por isso que se comentou que este período é dialético no sentido da presença
de uma série de contradições, porquanto, o campo acadêmico avança nas discussões
elaboradas, mas, aparentemente esse debate não chega ao chão da escola e da academia
de ginástica. Este é um elemento que ainda deve ser explorado do ponto de vista das
ANTROPOLOGIA DO CORPO

pesquisas dentro da área, pois, temos um movimento interessante na educação física.


Os seus avanços teóricos, ao se pensar o corpo, são significativos, considerando-
se inclusive a compreensão de um corpo biológico, determinado do ponto de vista
social/cultural. Ao mesmo tempo, temos novos elementos enquanto mantemos
práticas antigas.

41
No universo das práticas corporais enquanto desenvolvemos novas tecnologias,
avançamos no conhecimento biológico e social, mantemos a mesma compreensão de
corpo em perspectivas técnicas como indicam alguns estudos (Para maiores detalhes,
vejam os estudos de SILVA, Alan Marques da; FERREIRA, Juliano Vinhas. Análise
da concepção de corpo presente no discurso dos docentes da FEF-UNICAMP:
primeiras aproximações. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO
ESPORTE, XIII, Caxambu, 2003. Anais... Campinas: CBCE, 2003. [CD-ROM] e
de; SILVA, Alna C. et al. Ainda uma questão técnica: o corpo na visão de graduandos
em educação física. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE,
XIII, Porto Alegre, 2007. Anais... Campinas: CBCE, 2007. [CD-ROM]).

2.3 Algumas considerações preliminares

A título de concluir essa sessão, devemos considerar preliminarmente, que todas as


concepções de corpo, a forma de identifica-lo, pensa-lo, utiliza-lo dependem de padrões
históricos disseminados e consolidados pelas relações de trabalho, ao mesmo tempo
em que, esses elementos constituem a cultura de cada sociedade e período histórico.
Se a educação física avança em alguns debates, mas, não transforma a sua
prática, em uma sociedade conhecida por suas contradições internas, isso não é
necessariamente responsabilidade dela, mas faz parte de um todo mais amplo, no qual
as condições efetivas de transformação ainda são limitadas. Os embates estão postos,
no entanto, cabe aos professores de educação física modificar as suas práticas à luz
dos novos estudos, tendências e concepções, pois, se os professores não se colocarem
à disposição para uma ação diferenciada, os estudos acadêmicos terão pouco ou
nenhum impacto sobre a sociedade como um todo.

3. A construção cultural do corpo (in)civilizado

Esta seção explora o contexto cultural e social para dialogar com os referenciais
teóricos das Ciências Sociais, partindo da ótica ocidental urbana, para pensar,
vivenciar e expressar as relações humanas. Tais obras apresentam dois pontos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

fundamentais de discussão e análise: a importância atribuída ao corpo como


decorrente de cada momento histórico e suas diversas linguagens segundo épocas
e culturas. Compreender porque na cultura contemporânea o corpo ganhou tanto
“ibope”, transformando-se em um campo privilegiado das diferenças étnicas, culturais
e simbólicas.
Sob um olhar direcionado a determinados códigos culturais, evidencia-se o
funcionamento social regido por uma determinada lógica que se institui e se interioriza

42
nas mentes, retratando no corpo seus contrastes. Tais códigos, simbologias, normas
e regras podem ser identificados mediante aceitação e rejeição de determinadas
ações, (re)elaborados de forma individual e coletiva. Um exemplo disso pode ser a
aprovação ou reprovação em levar o cachorro para passear em ambientes públicos
e não limpar seu excremento, tal ato pode gerar, em determinadas cidades do país,
olhares e comentários de desaprovação, bem como uma multa, ao mesmo tempo, em
outros locais, a mesma ação pode ser imparcial, sem qualquer tipo de manifestação.
Para trazer mais elementos de identificação e análise sobre as construções e
(re)elaborações sociais, parte-se da perspectiva teórica defendida por José Carlos
Rodrigues (1986), do corpo como representante de características próprias de uma
determinada sociedade, em que a linguagem se manifesta por codificações de grupos
sociais particulares. Em suas palavras...

“[...] a Cultura dita normas em relação ao corpo: normas a que o indivíduo


tenderá, à custa de castigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de
estes padrões de comportamento se lhe apresentarem como tão naturais
quanto o desenvolvimento do nascer e do pôr-do-sol. Entretanto, mesmo
assumindo para nós este caráter “natural” e “universal”, a mais simples
observação em torno de nós poderá demonstrar que o corpo humano
como sistema biológico é afetado pela religião, pela ocupação, pelo grupo
familiar, pela classe e outros intervenientes sociais e culturais. [...] Ao corpo
se aplicam, portanto, crenças e sentimentos que estão na base de nossa vida
social e que, ao mesmo tempo, não estão subordinados diretamente ao corpo.
O mundo das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamento
natural, sem provir diretamente dele. As forças físicas e as forças coletivas
estão simultaneamente juntas e separadas” (RODRIGUES, 1986, p. 45-46).

A diversidade cultural, histórica e social dos corpos apontados por


Rodrigues, retrata o corpo como um meio condutor de símbolos e codificações
pertencentes a um grupo particular, tendo a cultura como regente de uma
determinada lógica social, sendo importante, portanto, a compreensão corporal
dentro do cenário social e do seu poder de linguagem e expressão.
Para melhor compreender nossas atitudes, gestos e sentimentos, resgatam-
se estudos da História Ocidental, como descrito por Nobert Elias (1990) em o
processo civilizador, recorrendo a este material para conceituar, de um modo
ANTROPOLOGIA DO CORPO

geral, a construção e o desenvolvimento da “civilização” ocidental no decorrer


dos tempos. Elias retrata o processo civilizador e suas manifestações no decorrer
da História, apresentando o conceito de “civilité” como um período de formação
dos costumes ocidentais, pontuando que inicialmente o processo foi pensado e
imposto para as camadas dominantes e, mais tarde, esse modelo tomou forma

43
e corpo nas demais classes sociais. O autor afirma que toda manifestação
corporal “externa” (postura, gestos, vestuários, expressões faciais) é inculcada
nos indivíduos por meio de tratados, livros e poemas que descrevem “o quê”
e “como” deveria ser feito ou não, o que era certo e errado, como se portar,
agir, sentar, andar, comer, expressar-se e, sobretudo, como conter os impulsos
“naturais” do ser humano.
Esses tratados trouxeram um novo olhar sobre o comportamento,
inaugurando uma nova forma de relacionamento entre as pessoas e interação
com o mundo. Nesse momento, novas concepções foram construídas e levaram
ao desenvolvimento de sentimentos específicos dessa formação social como a
vergonha, a repugnância e o nojo. Estabelecendo um novo modelo de relações
humanas, “[...] aumenta a compulsão de policiar o próprio comportamento”
(ELIAS, 1990, p. 93). Assim, o controle das emoções e impulsos revela, nesses
poemas, tratados e livros, o intuito de padronizar e modelar o comportamento
humano por meio de uma valorização da razão.

“Sobre as coisas consideradas nojentas, é sempre necessário perguntar


quando, como e por que elas são nojentas e quando, como e por que deixam
de ser nojentas. Uma mulher considerará repulsivo o catarro que escorre do
nariz de sua cozinheira, mas verá completamente diferente o que provém
de seu filhinho adoentado. É preciso explicar o código dessas situações”
(RODRIGUES, 1986, p. 132).

Como exemplo dessas construções, Rodrigues (1999) descreve sobre


sensibilidades diferentes em determinados momentos históricos. Cita o corpo medieval,
como sendo expressão de qualquer vontade, apresentado sem vergonha ou repressão,
visto que o certo e o errado tinham poucos limites e dimensões. Já na modernidade,
com a organização de novas classes sociais e o desenvolvimento de concepções
burguesas, o corpo é apropriado por outras coerções, abordado como mecânico,
como um bem de produção. Portanto, pensar no corpo medieval, contextualizado nas
condições culturais da época, ou seja, aquele que expressa barulhos, exala cheiros, entra
em contato com outros corpos, é classificá-lo como sem compostura. Contudo, ele era
coerente com seu tempo em que “[...] nada se conhecia desta censura à informação e à
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

comunicação entre os corpos” (RODRIGUES, 1999, p. 84).


A descrição do corpo medieval mostra que este não era regido por couraças
musculares para conter sintomas e manifestações naturais do ser humano, diferentemente
do corpo “civilizado” descrito por Nobert Elias (1990), que foi institucionalizado
através de costumes e valores para reprimir e controlar os instintos naturais, e, assim,
tornar-se racional e produtivo, ilustrando as mudanças de sensibilidades e apropriações
que foram introduzidas no corpo durante a História européia.

44
A repressão de desejos é internalizada de tal forma que hoje isso nos parece
um sentimento “natural” interno, que opera o nosso autocontrole, mesmo que seja
contra nossos desejos conscientes. A razão lentamente modela os hábitos e instintos
“primitivos”, fazendo com que o ”[...] código social de conduta grava-se de tal forma no
ser humano, que se torna elemento constituinte do indivíduo” (ELIAS, 1990, p. 189).
O privilégio da razão e das atividades intelectuais sobre o corpo dicotomizou o ser/
homem em mente e corpo. Nessa divisão, a parte intelectual, a razão, é responsável
pelo controle e domesticação do corpo, ou seja, pela construção do homem civilizado.
A história dos corpos é uma construção simbólica e para entendê-la é preciso
visualizar como o corpo tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas
culturais particulares. Segundo Porter (1992), com base nos valores da modernidade,
dentro da cultura tradicional européia, a divisão hierárquica do corpo assume a
mente em uma posição superior ao corpo físico. Tal relação de subordinação ganha
reforço no cristianismo, visto que o corpo era um representante do desejo, portanto
fonte de ação pecaminosa. A mente assumia a responsabilidade de controlar atitudes
sem pudor. Desse modo, a ciência desenvolve neuroses e rotula comportamentos,
oferecendo novas racionalidades e padrões de ações.
Ao destacar a importância do corpo nos diversos sistemas sociais, dentro da
cultura tradicional européia, as pesquisas de Porter (1992) revelam significados
presentes entre mente e carne, ou seja, a superioridade estabelecida entre mente
e corpo, entre os valores morais, culturais e éticos estabelecidos entre as duas
instâncias. Dentro da visão religiosa, o autor apresenta o cristianismo como o maior
representante, o qual mostrava o desejo e o prazer como um pecado, portanto o corpo
era visto como fonte de ação pecaminosa, e a mente assumia a obrigação de controlar
atitudes sem decência. Contudo, ao corpo e à mente são atribuídos deveres cruciais
“[...] para a avaliação do homem como um ser racional e moral no interior de sistemas
e teologia, ética, política e jurisprudência, tanto teóricos quanto práticos” (PORTER,
1992, p. 304). Dessa maneira, o corpo, visto como produto e produtor de emblemas
culturais, estabelece significados múltiplos, facilitando a compreensão de diferentes
meios punidores e repreendedores da linguagem corporal, no decorrer dos tempos
em diversas culturas.

“[...] a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer “Para saber


quem és, conheça teu sexo”. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja,
ANTROPOLOGIA DO CORPO

juntamente com o devir de nossa espécie, nossa “verdade” de sujeito humano.


A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos
e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo
ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a
sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus
movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedade cristãs, era

45
preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso” (FOUCAULT,
1979, p.229-230).

Para refletir sobre a pluralidade de linguagens e expressões humanas em diferentes


contextos sociais resgata-se dois estudos reunidos por Renato Queiroz (2000) no
livro “O corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza”, em que cientistas sociais
mostram a noção do corpo brasileiro construído culturalmente, questionando
como a cultura tem nos ensinado a olhá-lo? Quais os afastamentos da natureza e as
associações à animalização? A obra de modo geral apresenta uma procedência racial
do brasileiro, que sob um cultivo hegemônico dos modelos brancos, se pretende
branco e civilizado.
Inicia-se com Pereira (2000) descrevendo um mapeamento simbólico do
corpo, sob o viés da verticalidade e horizontalidade como fonte de "qualificação e
desqualificação", analisando a divisão do corpo em duas partes: a parte alta, composta
pelo tronco, cabeça e braços, como uma conotação positiva, em decorrência da razão,
e a parte baixa, composta por órgãos sexuais e membros inferiores, áreas consideradas
sem pudor, com significado negativo, já que mistura sexualidade e reprodução.
Seguindo esse raciocínio, o autor faz uma comparação de partes mais valorizadas que
outras em diferentes sociedades, dando o exemplo do Brasil, onde a bunda é o ponto
mais alto dessa hierarquia e, nos Estados Unidos, os seios fartos. Essas construções
simbólicas se estruturam em valores sociais, no caso do Brasil, ao erótico, distante
do racional, pois a bunda se encontra na parte sul do corpo, e, no caso dos Estados
Unidos, na parte superior, ligados à preservação da vida, por meio da amamentação.

O corpo “[...] segmentado, dividido à luz de critérios simbólicos ou


classificatórios, as suas diferentes partes dão margem a representações variadas.
A porção superior é associada às suas funções mais relevantes. Na cabeça,
encontra-se a face – e nesta a boca e os olhos, os órgãos mais expressivos
para a comunicação humana - marca da identidade da pessoa, e o crânio,
sede do cérebro e da razão, justamente a faculdade que mais nos distinguiria
dos animais. A porção inferior do corpo reúne os órgãos considerados mais
animalescos e “indignos” – reprodutivos, digestores e excretores -, em geral
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

escondidos e dissimulados, assim como as funções que lhes correspondem,


posto que nos aproximam ameaçadoramente da condição animal, da própria
natureza” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 23).

O segundo ensaio é apresentado por Queiroz e Otta (2000) em estudos sobre


a fragmentação do corpo associada a algumas expressões de animais e aos órgãos
reprodutores feminino e masculino, como cobra e aranha. As análises centram na
conotação de inferioridade que a reprodução possui, reforçando a associação entre

46
reprodução e animalidade. Assim, como já sinalizado anteriormente, a parte superior,
a cabeça, assume uma posição favorável, visto que expressa a marca, a razão, que nos
diferencia dos animais. Os autores evidenciam a questão da segmentação corporal
atribuída a uma visão depreciativa do uso do corpo, bem como uma valorização da
mente, retratando a dualidade corpo/mente. Diante disso, pode-se compreender que
"[...] o corpo simboliza a sociedade, e os poderes e perigos atribuídos à estrutura social.
Esta encontra-se simbolicamente impressa no corpo e a atividade corporal nada mais
faz senão torná-la expressa” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 32).
Para ter um exemplo de povos que não se organizam sob o Estado, nem têm
registro escrito, traz-se o estudo de Pierre Clastres (1990, p. 131) que descreve rituais
iniciatórios, que se valem de tatuagens para imprimir a linguagem social sobre o
corpo dos indivíduos. Desse modo, símbolos e regras são registrados por meio de
marcas corporais, impressas pelo sofrimento, sendo a tortura um ensinamento para
uma ordem social igualitária, "[...] e essa lei não separada só pode ser inscrita num
espaço não-separado: o próprio corpo". Portanto, o silêncio no ritual da dor expressa
pertencimento ao grupo, e as cicatrizes deixadas nos corpos são lembranças de uma
identidade social.
O corpo, tanto nas sociedades primitivas quanto nas consideradas "civilizadas",
é objeto de apropriação e dominação, as técnicas corporais utilizadas modificam
de uma para outra, mas os significados impressos no corpo são coletivamente
construídos. Nesse sentido, o controle permanente sobre os corpos, é descrito por
Michel Foucault, em processos direcionados para o rendimento, exigências de uma
sociedade moderna e industrializada, que preserva interesses de um determinado
grupo, desenvolvidos num sistema estratificado e hierarquizador.
Para melhor compreender as dinâmicas de poder impressas no corpo, traz-se a
introdução dos padrões de condutas e hábitos corporais contemporâneos decorrentes
do surgimento do Estado, que tinha o interesse de controlar, vigiar e punir atitudes
"não civilizadas", portanto, não aceitáveis dentro de uma nova estrutura social e
moderna (ELIAS, 1990). A contribuição científica, com seus mecanismos ideológicos
utilizados para facilitar as relações de dominação e dominado, é referenciada por
Foucault (1990), por meio de recursos e técnicas de saber e poder. O autor afirma
que, desde o nascimento, existe o controle exercido pela família, em seguida a escola,
o trabalho, a instituição religiosa, as ruas, os momentos de lazer etc, ou seja, é exercido
um controle permanente.
A instauração e a contemplação do poder sobre o corpo podem ser introduzidas
ANTROPOLOGIA DO CORPO

de várias formas. Algumas delas podem ser expressas nas ginásticas, na valorização de
formas bem definidas da musculatura, na concepção de belo, ou seja, na inserção de
padrões. Entretanto, inserido nessa lógica de imposição de poder, existe uma reprodução
de saberes que sofre alterações no decorrer do tempo, tanto nos instrumentos utilizados
como na intensidade de suas técnicas, porque esse corpo produz respostas, já que não

47
se encontra num estado de morbidez, o que gera mudanças e indica outros caminhos.
Contudo, novos mecanismos de controle são ativados e transformados. Foucault
(1979) ressalta em seu estudo a importância desse poder ou das diferentes formas de
manifestação no desenvolvimento de valores, símbolos, normas e leis no nosso contexto
social. O autor retrata a transmissão desse saber-poder por meio de mecanismos que
não estão explícitos, mas interiorizados e naturalizados dentro de cada um, fincados na
cultura e presentes no movimento humano.
O corpo, como propício a excessos, tem que ser policiado por tempo integral,
vigiado, controlado e manipulado, dentro dessa moralidade social imposta.
Na intenção de assegurar a “ordem social”, o corpo se torna cada vez mais dependente
de condutas punitivas e repressoras, segundo uma ordem social instaurada no corpo
para este ser dócil e eficiente.
O controle, segundo Foucault (1975), passou a ser exercido e vigiado,
principalmente nos séculos XVIII e XIX, individualmente, por meio de códigos
que operam sobre os corpos a todo o momento. Dessa forma, moldes de controles
disciplinares foram implantados nas escolas, nos discursos pedagógicos, na
permanente vigilância médica como partes integrantes de uma linguagem social
manipuladora, como forma de impor hierarquias. De acordo com o autor, as famílias
foram grandes colaboradoras para a reprodução de corpos submissos, repreendidos e
fiscalizados. A microfísica do poder, termo utilizado por Foucault (1975) para definir
as diversas relações de disciplina e eficiência expressas no corpo, visava à qualidade
do tempo, como rendimento e obediência. Ou seja, um corpo disciplinado torna-se
um corpo útil, dócil e obediente. Para o filósofo, os métodos utilizados para facilitar o
controle são vistos com clareza nos exercícios de técnicas disciplinares para reproduzir
dominações. Com isso, constantes punições e controles fazem parte de um processo
inacabado de mecanismos de poder, que vê no movimento humano uma dinâmica
rica e fértil de sujeições e contribuições.

“A sexualidade, tornando-se assim um objeto de preocupação e de análise,


como alvo de vigilância e de controle, produzia ao mesmo tempo a
intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo... A revolta do
corpo sexual é o contra-efeito desta ofensiva. Como é que o poder responde?
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Através de uma exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização,


desde os produtos para bronzear até os filmes pornográficos... Como resposta
à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a
forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: “Fique nu... mas
seja magro, bonito, bronzeado!” (FOUCAULT, 1979, p.146-147).
É importante contextualizar que o poder “[...] longe de impedir o saber, o
produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um
conjunto de disciplinas militares e escolares. É a partir de um poder sobre

48
o corpo que foi possível um saber fisiológico, orgânico” (idem, p.148-149).
Assim, “[...] o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas
essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas.
As relações de poder são, antes de tudo, produtivas” (idem, p. 236).

A questão da sexualidade evidenciada por Foucault (1990), controlada por


diferentes tipos de mecanismos, utilizados tanto para estimular quanto para controlar,
também pode ser citada no contexto classificatório e segmentário, em que interesses
políticos e econômicos estariam atuando no intuito de modelar o corpo de acordo
com as necessidades de crescimento e de determinados interesses particulares. Um
exemplo é a masturbação infantil, vista desde o início do século XVIII como algo
terrível, uma epidemia, capaz de comprometer a espécie humana. Inicia, assim, um
processo de reorganização das relações entre adultos e crianças, pais, educadores. “Na
encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da moral, da educação e do adestramento,
o sexo das crianças tornou-se ao mesmo tempo um alvo e um instrumento de poder”
(FOUCAULT, 1979, p. 232). A sexualidade infantil, policiada constantemente em
decorrência de sua “’ameaçadora ação”, era estimulada para ser falada a determinados
especialistas, como médicos, sexólogos, policiais, no sentido de revelar tudo que
pensam e vivenciam, evidenciando, segundo Foucault, um instrumento formidável
de controle e de poder.
A partir do século XIX, houve um incentivo à proliferação da espécie humana,
quando se fundamentou o prazer na ação de reproduzir. Foucault (1990) revela
formas de controle exercidas pela ciência médica, família, instituições de ensino, bem
como a religião, que desenvolveram técnicas disciplinares por tempo integral. Nesse
momento, o autor descreve o surgimento de vários emblemas, que instauraram no
corpo um determinado padrão.
Sob essa perspectiva, a indução do sexo conjugal, da construção da família, foi
analisado por Foucault (1990) como meio facilitador dessa vigilância permanente,
visto que o discurso girava em torno da reprodução para o desenvolvimento social.
Com isso, foi criado todo um sistema de repressão e observação, tanto na dinâmica
familiar como na didática escolar, que correspondiam ao discurso científico.
Sob a visão de uma dinâmica voltada para disciplinar os corpos, Foucault (1979)
apresenta formas de modelar e adequar o movimento para uma determinada
necessidade da época, quando os meios de produção eram os grandes responsáveis
pela estimulação e cobrança de um corpo disciplinado e contextualizado em
ANTROPOLOGIA DO CORPO

relação ao sistema. Portanto, tais conceitos, introduzidos num determinado


período histórico, têm a intenção de classificar, hierarquizar, distinguir e aumentar
a produção, fazendo dessa vigilância uma linguagem social. De fato, repressão,
emoção e o autocontrole foram construídos historicamente, sendo que o processo
civilizador, no sentido de controlar impulsos e moldar o comportamento humano, foi

49
essencial para a modernidade. O que pode explicar em parte a resistência à emoção,
à repressão, aos desejos e sentimentos, bem como as couraças interiorizadas como
fatores fundamentais para a organização e desenvolvimento de amarras sociais, que
constituem e permanecem atuando no sistema.
A ciência se torna importante fonte de controle, já que engloba as vontades, os
desejos, os prazeres, as emoções de maneira global, explicando-os. Assim, diferentes
manifestações ou inquietações eram respondidas como efeitos de uma patologia.
Portanto, não pertencer a um determinado padrão imposto pelos moldes científicos
é corresponder à "anormalidade". Por trás dessa linguagem "racional", estaria uma
posição autoritária e totalitária da ciência.

3.1 Cultura corporal: entre o sagrado e o profano

Considerar o processo civilizador e a transmissão de técnicas corporais como


relevantes para a organização e evolução da prática educadora social, visa dialogar
sobre o processo de (in)civilidade expresso no corpo cultural, político, histórico
e social. Os anúncios, segundo autores citados, podem vir sob diferentes códigos e
linguagens: repreensão, incitação, silenciamento, opressão, ocultamento, coerção,
liberação, satisfação, necessidades inculcadas em valores, normas, regras e símbolos
que ao serem pensadas, vistas e vivenciadas ganham formas plurais.
Para compreender o corpo dentro do cenário social, bem como seu poder de
expressão, apresenta-se o clássico e pioneiro estudo do corpo de Marcel Mauss (1974),
em que anuncia a noção de técnica corporal, estilos e comportamentos reproduzidos
em uma determinada sociedade, como fruto de um contexto social e histórico, que
em outras palavras, revela a cultura corporal como aquela que desenvolve técnicas
corporais em seu processo social. A abordagem demonstra que o uso dos corpos no
decorrer dos tempos, através de técnicas corporais tradicionais, impostas socialmente,
atribui um caráter de naturalidade ao comportamento humano, tendo a cultura
como regente de uma determinada lógica social. O autor descreve como as pessoas
se utilizam de seus corpos e as diversas formas de educá-lo, quando essas imitam
atitudes de êxito, atos bem sucedidos. Segundo ele, as técnicas corporais tradicionais e
eficazes, prevalecem na educação e se instalam na sociedade, visto que "[...] a educação
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

fundamental de todas essas técnicas consiste em fazer adaptar o corpo a seu emprego”
(MAUSS, 1974, p. 232). Desse modo, os corpos carregam consigo um sistema de
montagens simbólicas expressas nas ações corporais.

“Adestram-se as crianças [...] a dominar reflexos [...] inibem-se medos [...]


selecionam pausas e movimentos [...] A educação da criança está cheia do
que chamamos detalhes, mas que são essenciais. Quantidade de detalhes,

50
não observados, e dos quais é necessário fazer a observação, compõem a
educação física de todas as idades e dos dois sexos” (MAUSS, 1974, p. 221).

No século XIX, o esquema de poder sofre mudanças, segundo Georges Vigarello


(1995). As transformações se fixam no movimento, portanto o que sofria a ação (o
corpo), neste momento manifesta ações sobre os aparelhos. Em decorrência de uma
nova ideologia de dominação, criam-se novas táticas disciplinares, que são interiorizadas
e imbricadas no âmbito social de forma despercebida. Contudo, tanto o processo
pedagógico que atua nas escolas quanto o discurso científico evidenciam, de maneira
sutil, formas de controle, por meio de fixações mecânicas para corrigir a motricidade.
Vigarello (1995), com um olhar voltado para os aparelhos “corretores” dirigidos
à lógica social-política-econômica da época, revela a dimensão mecanicista ligada ao
desenvolvimento das máquinas e, junto com elas, corpos trabalhados e manipulados para
atuarem juntos, de forma a aumentar a produção e consequentemente o lucro. O autor faz
uma leitura das aparelhagens corretoras de “defeitos” que atuam sobre os corpos. Muitas
vezes o intuito não é apenas melhorar ou oferecer um melhor desenvolvimento físico, mas
moldar esse corpo para melhor se adaptar à dinâmica do trabalho ou mesmo oferecer
uma melhor aparência. Ou seja, outros interesses que não terapêuticos pairam sobre tais
técnicas e aparelhagens, que tiveram seu início no século XVII. Nesse contexto, o aspecto
pedagógico também teve a função de contribuir para o processo modelador do corpo,
atribuindo formas definidas e esteticamente impondo padrões.

“Uma nova cultura do corpo, que não deve ser mais buscada nos livros de
civilidade, na expressão atenta das “belas maneiras” da qual o espartilho
é ao mesmo tempo a garantia e a testemunha, e sim nos livros de higiene,
no recenseamento e na declinação de forças que apenas o exercício pode
aumentar e convocar. Da fórmula física à teatralização das atitudes, a razão
domina a natureza” (VIGARELLO, 1995, p. 32).

As redescobertas do corpo embarcam em outras formas de manipular e controlar


suas manifestações, direcionando e delineando seus comandos para adequar
produções e resultados que garantam a estabilidade de um determinado grupo. No
entanto, a cada descoberta existe uma necessidade de cuidar de si mesmo e se policiar
integralmente, sem descanso. O belo, para os “civilizados”, é designado pelo controle
individual diário, que não traz nenhum benefício à sociedade, e, como está associado
ANTROPOLOGIA DO CORPO

à juventude, se perde com o tempo.


Pensar nas práticas corporais é refletir sobre as políticas do corpo que regem essa
dinâmica. Denise Sant’Anna (1995), ao descrever os valores e os métodos políticos
e econômicos utilizados para introduzir o discurso científico nos padrões morais,
éticos e culturais, cita o culto à beleza como sendo um importante instrumento, já que

51
expressa modelos a serem seguidos, condutas de saúde e designa a auto-culpa pelo seu
fracasso e sua manutenção. Em tal consideração, o médico assume papel fundamental
para o tratamento e manutenção dessa beleza, pois a falta dela é tida como uma
doença. Assim, feiura se associa à degeneração da raça, fruto de uma vida doente,
sem cuidados e vaidades. Portanto, o bonito e o feio são construções científicas que
associam o aparelho reprodutor feminino com preocupações de higiene e limpeza.
Enfim, instaura-se uma nova consciência corporal, regida por um sistema padronizado,
que necessita de consumidores.

Nas revistas femininas, as artistas de Hollywood fornecem centenas de


receitas para a beleza confirmando o crescimento da influência norte-
americana na cultura brasileira. O acesso à “vida moderna”, depende, entre
outros, do cultivo diário de uma aparência bela e do bem-estar-conjugal. No
final da década de 50, a beleza parece ter se tornado um “direito” inalienável de
toda mulher, algo que depende unicamente dela: “hoje é feia somente quem
quer”, por conseguinte, recusar o embelezamento denota uma negligência
feminina que deve ser combatida.[...] mesmo as mais idosas não escapam
do trabalho embelezador sugerido pelos conselheiros. A imagem da velhice
será cada vez menos associada às duras penas da doença, naturais da idade,
para ser considerada como “um estado de espírito”, passível de correção
(SANT’ANNA, 1995, p. 129-130).
Na base desta “liberação” do corpo sedutor e da positividade inédita atribuída
ao prazer de cuidar de si mesma, encontramos inúmeros fatores, que vão
dos movimentos de liberação ocorridos na década de 60, à contracultura,
passando pelo importante desenvolvimento da publicidade, da cosmetologia
e da indústria da beleza em diversos países. O que era suficiente em décadas
passadas deixou de sê-lo, confirmando que a história do embelezamento
feminino é constituída de novas exigências, tanto quanto de novas
preocupações antes inexistentes (ibidem, p. 134-135).

Com base nos pressupostos apresentados por Sant’Anna, Del Priore (2000)
reforça que na nossa cultura o belo se associa à juventude e saúde e o velho, à doença, à
pessoa que não se cuida diariamente, ressalvando que os avanços científicos e médicos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

no processo da longevidade, estão se tornando um problema, já que pessoas idosas


tendem a ficar cada vez mais dentro de casa, pois velho ou gordo não são aceitos
socialmente, são ridicularizados, considerados uma vergonha, associados à feiura e sem
cuidados consigo, sem amor próprio. Ela diz que os anúncios de revistas exploram a
imagem da mulher magra como sendo possuidora de virtudes, independência, beleza
e saúde. E sinaliza sobre os meios de comunicação em geral, afirmando sobre suas
interferências em nossas ações, nos nossos comportamentos, na maneira de vestir,

52
usar o nosso dinheiro, sentir bela e amada ou feia e ridícula, conseguir bons empregos
e se relacionar com os nossos pares.
Algumas manifestações sociais, geradoras de movimentos culturais, como
revolução sexual, a contracultura6 dos anos 60 e o feminismo dos anos 70, tentaram
derrubar hierarquias, provenientes de complexos sistemas, criados para manipular
o meio social. Contudo, diversas fontes de mudanças, pensamentos e estudos
redimensionaram focos de resistência, o que levou algumas ciências a travar diálogos,
inovar suas linguagens e simbologias relacionadas ao corpo. A complexa história do
corpo denuncia mecanismos de controle, fazendo dele um elemento de comunicação.
Portanto, ver o corpo nas suas impressões, a forma como ele se manifesta nas suas
particularidades, bem como suas transformações e inquietações no decorrer dos
tempos, gerou reflexões e contestação.
As expressões do corpo também podem ser anunciadas por meio de uma
corporeidade liberada, prazerosa, sob um excessivo culto ao corpo, por exemplo,
entre outras manifestações. Quanto à origem de uma cultura visual do músculo,
Jean-Jacques Courtine (1995) retrata os “body-building” na década de 80: “atletas“
que possuem um excessivo culto ao corpo, aos músculos e às formas bem definidas.
Esse grupo, composto por jovens, que adquiriram sucesso material e reconhecimento
social, pode ser facilmente identificado através do inchaço muscular e da excessiva
exposição corporal. O autor acredita em alguns fatores desencadeadores desse novo
estilo de vida, que podem estar vinculados à espetacularização do esporte na mídia,
brinquedos, revistas, filmes voltados para a cultura do corpo, os quais exerceram forte
influência para esse culto “desvairado”. Os valores e conceitos lançados com excessivo
mercantilismo na sociedade tiveram efeitos inesperados, ou seja, o consumo sem
controle gerou consequências. Tais manifestações apóiam-se no medo de envelhecer,
morrer, amolecer, desfigurar, desenrijecer, ou mesmo na descentralização da figura
masculina devido à ascensão da figura feminina.

Todas estas técnicas de gerenciamento do corpo que florescem no decorrer dos


anos 80 são sustentadas por uma obsessão dos invólucros corporais: o desejo de
obter a tensão máxima da pele; o amor pelo liso, pelo polido, pelo fresco, pelo
esbelto, pelo jovem; ansiedade frente a tudo que na aparência pareça relaxado,
franzino, amarrotado, enrugado, pesado, amolecido ou distendido; uma
contestação ativa das marcas do envelhecimento no organismo. Uma negação
ANTROPOLOGIA DO CORPO

laboriosa de sua morte próxima(COURTINE, 1995, p. 86).

6. A contracultura foi um movimento social da década de 1960, que iniciou em um período


pós-guerra, com a corrida armamentista e o acirramento das lutas raciais, visando contestar
tabus (moral, religioso e cultural), costumes e padrões vigentes, por meio de manifestações
pacíficas de paz e amor. A contracultura foi uma anticultura, ou seja, uma crítica a cultura
tradicional, com propostas de criar novas formas de pensar, sentir e agir, a partir de um
universo com regras e valores próprios (MAYARA, et al., 2009).

53
Sob a vertente de uma linguagem corporal, os exercícios físicos e o esporte,
durante o século XIX e XX, desempenharam um papel central nessa relação de
imagens do corpo e um ideal da aparência corporal, fazendo do corpo um mercado
lucrativo. De acordo com Courtine (1995), a ideologia puritana e a ascensão do modo
de vida capitalista foram veículos-chefe na condução desses valores que induzem
muitas pessoas, consumidoras e praticantes a aturarem a dor em prol de uma estética
muscular rígida, dura, exposta e visível. A recompensa está tatuada em seu corpo, com
a exposição de seus músculos, uma verdadeira roupagem passível de admiração.

3.2 A primazia do belo em corpos ocidentais urbanos

Partindo de uma ótica ocidental contemporânea, traz-se o ideal de beleza rígido


e jovem, para dialogar sobre os excessos de cuidados apontados em diferentes
estudos7, visto que a idealização por um padrão de beleza esculpido em músculos sutis
e formas delineadas, tem provocado sérios agravantes e severos questionamentos
sobre a manutenção de um determinado padrão estético de corpo, repercutindo nas
atitudes, nos hábitos e na sexualidade das pessoas. O questionamento que se faz é
por que problematizar tal temática? Qual o problema de se ter um modelo de beleza
como parâmetro?
Uma dentre várias possíveis respostas pode ser explorada no trabalho de Le
Breton (2002), ao analisar as relações que se estabelecem entre as formas corporais
e a saúde. Assim, o discurso de qualidade de vida impõe-se na preocupação de
formas rígidas e marcadas por uma musculatura definida, induzindo a uma
relação, consigo e com os outros, de fidelidade a uma autoridade difusa. Segundo
ele, os valores primordiais da modernidade, os que a publicidade comunica, são
direcionados para a saúde, juventude, sedução, suavidade e higiene. Tais atributos
modernos, valorizam qualidades vinculadas com a condição física. E finaliza
argumentando que dificilmente o homem possui esse corpo, responde a esse
padrão, assim se explica o êxito das práticas para exercitar o corpo (ginásticas) ou o
êxito de cirurgias estéticas ou reparadoras, para dar formas e curvas mais delgadas.
A importância social atribuída aos valores voltados para a estética, também é
discutida por Heilborn (2006, p. 47) ao referir-se aos danos que a falta de beleza
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

pode proporcionar na forma de expressão da sexualidade. A autora descreve


que existe “[...] uma apreciação social dos corpos que intervém diretamente
sobre as oportunidades relativas ao exercício da sexualidade, tais como a atração

7. O corpo ocidental como centro de investimentos ideológico e tecnológico é tema de


diversos estudiosos, Breton (2002); Courtine (1995); Goldenberg (2004); Novaes (2006);
Vázquez (1994); Sant’Anna (1995), que analisam as diversas expressões social, política e
cultural envolvidas ao culto de um determinado modelo de beleza.

54
exercida sobre outras pessoas, a qual possibilita obter parceiros”. A associação de
beleza e mulher, por exemplo, é uma constante histórica, como se beleza fosse a
essência definidora das mulheres. Desde pequenas interiorizam a necessidade
de ser belas, até o ponto que sua identidade como mulher depende do grau de
beleza reconhecido.
Os referenciais apresentados exploram o belo, em nossa sociedade, sempre
relacionado à juventude, ao corpo novo e rígido, sem rugas, cicatrizes, sem marcas
e manchas, exigindo cuidados diários e policiamento constante, bem como
sentimentos de culpa e responsabilidade nos excessos e marcas adquiridas. Em
outras palavras, tal rearranjo que se faz com o próprio corpo pode indicar a busca
de uma nova identidade, muito próxima da vendida nos meios de comunicação,
como forma de obter um reconhecimento social e porque não mencionar o
investimento na felicidade. A busca parte de necessidades (re)elaboradas em
diversas linguagens, anunciadas em invasivas formas de intervenção cirúrgicas
(silicone, lipoaspiração, lifting, minilifting, peelling, rinoplastia, blefaroplastia, botox)8,
no uso de medicamentos, na aplicação de anabolizantes, em extenuantes exercícios
físicos e severas dietas, como forma representativa dessa dedicação despendida
ao corpo, que extrapolam a cartilha higienista ensinada nas escolas, ganhando
formas plásticas na mídia e, algumas vezes, manifestando-se de forma drástica na
linguagem corporal cotidiana das mulheres9.
A temática tem merecido atenção de diversas áreas de conhecimento, visto
suas implicações na excessiva e diária preocupação com a aparência física. Deixar
de comer, fazer dietas sem nenhuma orientação especializada, realizar exercício
físicos, extrapolando os limites de cargas, para obter uma musculatura inchada e
torneada, assim como se submeter às intervenções cirúrgicas para esculpir a forma
física, são fatos frequentes em nosso convívio social e apresentados em diversos
meios de comunicação (televisão, outdoor, rádio, jornais, revistas, dissertações,
teses, livros).
A intolerância a flacidez e ao excesso de gordura, quando analisada sob o
discurso popular, por meio de uma mensagem “só é feio quem quer”, reforça a
associação beleza/saúde/potência, já apontada por Joana Novaes (2006) em
seu livro, “O intolerável peso da feiúra”, ao discutir uma ‘educação reguladora
dos corpos’, licenciada pelo coletivo. Portanto, pertencer, ser ou estar belo em
nossa sociedade, demanda tempo e investimento cotidiano, tanto no uso de
ornamentos, vestimentas, calçados, maquiagem, cremes, exercícios e intervenções
ANTROPOLOGIA DO CORPO

8. Para saber mais sobre a indústria da beleza e formas de intervenções, ler Alexander
Edmonds (2002).

9. O Brasil é campeão mundial de cirurgias plásticas com finalidades estéticas (GOLDENBERG,


2004).

55
invasivas no corpo, como na ingestão de nutrientes, remédios e na atenta vigia da
falta de atenção e cuidado, interpretados como desleixo, preguiça e, muitas vezes,
doença. Expressões desse investimento podem ser traduzidas em elogios, maiores
oportunidades de se relacionar e melhores chances no mercado de trabalho10.
O cuidado de si, relacionado à aparência corporal, nos remete a novos
questionamentos ou à busca de novos paradigmas, como a compreensão da dinâmica
social a que estamos inseridos, as veiculações de imagens corporais que as mídias
impressas e eletrônicas transmitem diariamente, a racionalidade técnica empregada
na gestão do corpo, a associação de beleza e hábitos saudáveis com felicidade, bem
como a dependência mascarada por símbolos de independência diária e contínua.
O corpo em si exerce poder.
A instauração do poder no corpo, como parte da visão fragmentada de ser
humano, normatiza linguagens e comportamentos, de modo a legitimar um padrão
estético que atrela saúde aos discursos das formas e curvas corporais delineadas e
delgadas, sendo a disciplina da forma física a vitrine da lógica do corpo como capital.
A cultura corporal ocidental pode ser interpretada como expressão máxima dessa
interface corpo, cuidados e identidade feminina.
O corpo como identificador e marcador de determinados grupos, torna-se
símbolo das diferenças sociais. Mirian Goldenberg e Marcelo Ramos, sob o título
“A civilização das formas: o corpo como valor”, problematizam a moral da “boa
forma”, por meio de um recorte das camadas médias do Rio de Janeiro, analisando a
constituição de certa virtude humana ao corpo rígido, forte e definido em músculos.
Os estudiosos levantam três possibilidades que articulam-se entre si:

[..] a de insígnia (ou emblema) do policial que cada um tem dentro de si para
controlar, aprisionar e domesticar seu corpo para atingir a “boa forma”, a de
grife (ou marca), símbolo de um pertencimento que distingue como superior
aquele que o possui e a de prêmio ( ou medalha) justamente merecido pelos
que conseguiram alcançar, por intermédio de muito esforço e sacrifício, as
formas físicas mais “civilizadas (GOLDENBERG; RAMOS, 2002, p. 39).

Tais mensagens divulgadas e estimuladas pelos meios midiáticos (televisão, revistas,


rádio, internet) ao estabelecer nexos entre beleza-poder por meio do investimento de
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

necessidades e modelos de felicidade centrado no indivíduo, nomeiam um estereótipo


corporal como hegemônico. Tal normatização é refletida por Novaes (2006) como um
problema, pois ao se distanciar das formas corporais da grande maioria das mulheres,
constrói formas de sociabilidade centradas em ideais físicos.

10. RABELO, C; MAGALDI, M. Quem disse que beleza não põe mesa? Revista Isto É, ed 2037,
19 de nov.de 2009.

56
Por entendermos e concordarmos com Novaes (2006) que o culto ao corpo se
atualiza nas diferentes classes sociais de forma semelhante, circunscrita em dispositivos
normatizadores presentes nas representações das manifestações corporais, terminamos
o texto refletindo sobre o discurso contemporâneo da obtenção e manutenção de
uma vida saudável, que ao articular alimentação balanceada com formas simétricas
e rígidas, circunscreve no corpo que o acúmulo, representado no excesso de gordura,
é observado e mensurável ao corpo improdutivo, ao descuido e falta de higiene.
A Educação Física e os esportes, ao longo do século XX, foram importantes campos
científicos para educar o corpo e colocá-lo em movimento, obtendo legitimidade no
campo da higiene pessoal e da coesão social, por meio da “[...] profilaxia, quando bem
dirigida, fortifica e disciplina o caráter e o corpo dirigindo também para diversões sãs”
(SOARES, 2003, p. 129).

ANTROPOLOGIA DO CORPO

57
Referências

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A sociedade contra o Estado: pesquisas de Antropologia Política. 5 ed.
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Entrevista

RODRIGUES, José Carlos. Antropologia do Corpo. Entrevista (Edição nº


48), 03 de março de 2009. Disponível em http://www.antropologia.com.
br/entr/entr48.htm. Acesso em 12 de jan. de 2011.

Filmes
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Flor do Deserto
A onda
Entre os muros da escola
A morte inventada – alienação parental
A fita branca
Ensaio sobre a cegueira

60
4. Antropologia do corpo e Educação Física

4.1 A academia de ginástica

A academia de ginástica é um universo sui generis, cheio de códigos e regras


particulares. Isto não quer dizer, contudo, que tal instituição esteja, literalmente, à
margem da sociedade. Por certo, a academia não é um mundo paralelo, isolado do
resto da sociedade e sem nenhuma comunicação com esta. Ao contrário, ela está
inteiramente inscrita e circunscrita no universo social mais amplo que a compõe e a
condiciona. Destacá-la como universo sui generis, nesse contexto, quer dizer apenas
que, ali, encontra-se um conjunto de códigos culturais próprios, peculiares, específicos,
ainda que não exclusivos.
O vocabulário do universo da academia de ginástica, por exemplo, é todo
seu. A “bomba”, o “marombeiro”, a “sarada”, a “bola” são figuras de linguagem que
assumem um significado muito particular naquele contexto. Para compreendê-los
adequadamente é necessário um longo – e às vezes tortuoso – período de iniciação,
aonde o neófito pouco a pouco vai tendo acesso a níveis cada vez mais profundos
de participação naquele universo, tendo também, por conseguinte, níveis cada vez
maiores de entendimento a respeito dos seus significados. A bomba, por exemplo, é o
neologismo para drogas anabolizantes, e a “bola”, ou “dar bola” significa oferecer ajuda
a um companheiro que se exercita com pesos muito elevados.
Da mesma forma, a academia de ginástica exige e mobiliza um conjunto de saberes
que lhes são próprios. Estratégias de suplementação alimentar, técnicas de execução
de exercícios ou métodos de treinamento são conhecimentos que apenas o convívio
prolongado naquele ambiente garante de maneira adequada. Além disso, a escala de
valores da academia de ginástica submete-se a uma série de convenções que também
lhes são própria, de tal modo que atitudes e comportamentos serão mais ou menos
aceitos de acordo com essa hierarquia de valores tácita e pré-determinada. Exercitar-se
de maneira concentrada ao invés de dedicar muito tempo a conversas, usar ou não usar
anabolizantes, vestir-se de tal ou qual maneira são exemplos de atitudes que, de acordo
com o contexto, podem ser valorizadas ou desvalorizadas, incentivadas ou criticadas.
Cada uma dessas considerações, em última instância, pretende chamar atenção
para a radical particularidade de todo e qualquer conhecimento, inclusive os
conhecimentos ligados ao mundo das academias de ginástica. Ou seja, cada grupo ou
subgrupo tem sua própria maneira de edificar critérios de honra e de respeitabilidade.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

Nesse sentido, nossos conhecimentos a respeito de certos assuntos podem ser


inteiramente inadequados (ou até inúteis) fora dos contextos aos quais estamos
familiarizados a empregá-lo. Um jogador de futebol, por exemplo, poder ser um gênio
dentro de campo, mas apenas um semi-analfabeto entre escritores ou intelectuais.
Nesse contexto, suas habilidades futebolísticas não lhe serviriam, da mesma forma que

61
os dotes de escritor seriam inteiramente desprezíveis dentro de um campo de futebol.
Igualmente, os motivos que fazem determinada pessoa ser reconhecida e celebrada
em dado contexto, não necessariamente lhe garantirão valor e reconhecimento em
todos os contextos possíveis. Assim, entre estudantes que se preparam para os exames
do vestibular, por exemplo, é possível que a capacidade de dedicação aos estudos, de
resolução de problemas ou de boas notas seja um elemento valorizado, o que acaba
por reforçar esse comportamento entre os membros daquele grupo. De maneira
semelhante, mas em sentido oposto, entre delinqüentes juvenis, a coragem para
pequenos crimes audaciosos pode ser a atitude valorizada, o que também tende a
reforçá-la no fim das contas.
Este é um tipo de implicação do modo de olhar o mundo de uma perspectiva
antropológica que a reflexão sobre Educação Física deveria considerar com muita
seriedade, pois, o seu papel educativo bem poderia ser o de tentar criar atmosferas
capazes de propugnar e reforçar determinados valores como desejáveis. Em academias
de ginástica onde a saúde e o bem-estar sejam os comportamentos, atitudes e escala
de valores reconhecidos pode estimular a incorporação de atitudes favoráveis a tais
comportamentos, bem como a valorização de corpos grandes, “sarados”, “trincados”
pode acabar por estimular o uso de drogas para o alcance dessas finalidades.
Quanto mais severo e rigoroso os rituais para iniciar um indivíduo no interior
de determinado grupo ou instituição, mais fiel e convicta tende a ser a adesão e o
comprometimento deste indivíduo aos valores e regras do seu grupo. Você provavelmente
já deve ter assistido ao filme Tropa de Elite (nos referimos aqui ao primeiro). Se não o fez
ainda, tente fazê-lo agora. Em certo momento, a locução em off do coronel Nascimento,
personagem principal do filme interpretado por Wagner Moura, explica e justificativa
para o espectador a razão do curso de treinamento daquela tropa de policiais ser tão
exigente. Segundo o coronel Nascimento, o Batalhão de Operações Especiais parece
uma seita. Ainda segundo ele, parte da eficiência e do sucesso do Batalhão justifica-se,
precisamente, por causa desse fanatismo dos seus membros.
Para pensar estratégias capazes de criar atmosferas educativas, é preciso, antes de
tudo, compreender a dinâmica social mais geral na qual esta instituição está imersa.
A atuação pedagógica em Educação Física não se resume a capacidade de ensinar
ou aplicar determinadas técnicas de exercício ou treinamento físico, embora diga
respeito a isso também – não se pode negar. Mas para além disso, sem desprezar isso, é
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

preciso que o professor de Educação Física assuma uma postura de intelectual diante
do mundo. Uma postura de intelectual diante do mundo não se confunde com uma
postura intelectualista diante do mundo. Ou seja, não se trata de abandonar as quadras,
piscinas e ginásios em favor de bibliotecas ou salas de leitura. Uma postura intelectual
diante do mundo significa assumir a responsabilidade de refletir ativa e profundamente
sobre o sentido e o significado das práticas comuns ao universo da Educação Física.
Nesse sentido, o professor de Educação Física deve ser capaz de compreender – de

62
maneira ampla e geral – tudo que está envolvido ao redor e por detrás das práticas
da Educação Física. Ele deve ser capaz, em suma, de organizar, sistematizar, elaborar
e difundir idéias sobre o sentido social das práticas relacionadas à Educação Física.
Portanto, sem a necessidade de se tornar sociólogo ou antropólogo, o professor de
Educação Física deve ser capaz de pensar sociológica e antropologicamente.

4.2 Concepções de corpo e academias de ginástica

Nessa perspectiva, muitos professores de Educação Física tem se dedicado a estudar


sociológica ou antropologicamente os espaços das academias. De certo modo, essas
pesquisas pretendem oferecer um conhecimento detalhado e profundo sobre o seu
significado social e os seus modos de funcionamento, a fim desse conhecimento poder
subsidiar reflexões sobre a melhor e mais eficiente maneira de atuar profissionalmente
nesses espaços. O pressuposto é que uma atuação pedagógica de qualidade requer um
considerável nível de entendimento sobre a situação na qual se vai intervir.
Nesse sentido, destaca-se, entre outros, o trabalho de Ileana Wenetz, que
recentemente comentou o estudo da socióloga italiana Roberta Sassatelli, sobre
academias de ginástica de Florença, na Itália. Wenetz sublinha, de início, que a
socióloga esteve interessada, basicamente, em decifrar os mecanismos sociais de
aprendizagem no interior de uma academia, ou seja, as regras implícitas que orientam
o comportamento das pessoas no interior daquele espaço. Sob este aspecto, uma
concepção de corpo específica e bem determinada é o primeiro – e talvez o principal
– elemento a ser incorporado pelo aprendiz de “marombeiro”. É o aprendizado deste
conhecimento sobre o corpo que pode garantir a sua permanência no interior daquela
instituição social que é a academia de ginástica.
Em outras palavras, a freqüência à academia de ginástica reforça a idéia de que o
exercício é uma necessidade. Aceitar este ensinamento é indispensável para tornar-se,
de fato, um membro permanente de uma academia de ginástica. De acordo com essa
escala de valores, todo esforço e cansaço tendem a ser vistos como compensadores e
até prazerosos. Pouco a pouco, a atividade física passa a receber dos freqüentadores
da academia conotações de uma prática socialmente importante e significativa,
indispensáveis mesmo. “Nenhum cliente pode estar sem fazer nada no mesmo
espaço que os outros freqüentadores estão se exercitando. Os clientes aprendem,
através da expressão ou de um determinado modo de olhar que o exercício é a
ANTROPOLOGIA DO CORPO

única ação relevante” (WENETZ, Ileana. Anatomia da academia: cultura comercial


e disciplina do corpo. Movimento, Porto Alegre, vol. 13, n. 3, p. 245-259, set. / dez.
2007, p. 251. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/index.php/Movimento/article/
viewArticle/3581). Não por acaso, o freqüentador da academia, uma vez envolvido
pela sua atmosfera, vai cada vez mais se obrigando a freqüentá-la. Segundo Wenetz,

63
“ir à academia é uma decisão voluntária, mas, logo, o próprio ambiente obriga a treinar
apesar de não se ter vontade” (p. 250).
Portanto, é a construção de um consenso a respeito do papel e do lugar da atividade
física na vida de um indivíduo o elemento que irá prescrever socialmente esta mesma
atividade física como importante, necessária e prazerosa, um dos primeiros elementos
de persuasão para garantir a adesão e a permanência do freqüentador de academias.
É fundamentalmente este o agente capaz de inibir a rotatividade nas academias,
fitando e convencendo o aluno a freqüentá-la regularmente. “O fitness tem sucesso,
sobretudo, quando passa a fazer parte de um estilo de vida, quando passa a ser um
período prazeroso de uma rotina em que se dedica tempo porque isso é considerado
‘normal’” (p. 252).

4.3 Os homens dos músculos de aço

Em 1977, George Butler e Robert Fiore lançaram de maneira totalmente


independente o documentário Pumping Iron, que explorava a rotina de fisiculturistas
profissionais, exibindo o modo de funcionamento de um universo que até ali era
bastante desconhecido de um público mais amplo. Mais especificamente, o filme
acompanha um atleta que perseguia o até então inédito hexacampeonato do mais
prestigiado torneio de fisiculturismo do mundo: o Mr. Olympia. Seu nome é Arnold
Schwarzenegger, que o próprio filme mostraria encerrando sua carreira no esporte,
para logo em seguida, nós sabemos, dedicar-se a uma bem sucedida carreira no cinema,
que se iniciou com o filme Conan, o Bárbaro, de 1982, seguido dois anos depois pela
sua sequência, Conan, o Destruidor, além do Exterminador do futuro, também de 1984.
No filme, Schwarzenegger registra alguns depoimentos bastante úteis para as
finalidades dessa nossa reflexão. Os momentos em que registra as suas concepções
sobre os sentidos da prática do fisiculturismo, por exemplo, são muito ilustrativas.
Schwarzenegger compara os fisiculturistas a artistas, que estariam, segundo ele,
esculpindo obras de arte no próprio corpo. Nas palavras de Schwarzenegger:

Os fisiculturistas pensam que são escultores. Se você começa a analisar, a


LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

pessoa olha-se no espelho e diz: Preciso de mais deltódies, mais ombros. E


assim se chega a uma boa proporção. O que a pessoa faz é começar a treinar
para fazer crescer os deltóides. Se fosse um artista, ele colocaria um pouco de
argila de cada lado. Assim é mais fácil. Nós tomamos um caminho mais difícil
porque trabalhamos com o corpo humano.

Em outra passagem, Schwarzenegger relativiza a excentricidade desse esporte,


afirmando que, de acordo com o ponto de vista, sua prática pode perfeitamente ser

64
tida como “natural”, ao mesmo tempo em que esportes que a maioria das pessoas toma
como convencionais, poderia também ser vista como “estranha”. Segundo ele:

Muita gente nos olha e pensa que o que fazemos é um pouco estranho. Porém
essa gente não sabe muito sobre o assunto. Apenas poucos entendem como
são estas coisas. É algo natural. Não é mais estranho que subir num carro e
tratar de correr 400 metros em cinco segundos. Para mim, isso é estranho.

Por último, outra exemplar declaração de Schwarzenegger diz respeito à


possibilidade de prazer na prática do fisiculturismo. É uma informação interessante,
pois o treinamento cotidiano de fisiculturistas envolve disciplina, dedicação e uma
considerável capacidade de resistência à dor. Nessas ocasiões, os músculos são
exercitados à exaustão, como o próprio filme exibe em várias tomadas. Apesar disso,
essas sensações podem ser vivenciadas como agradáveis, como atesta a declaração de
Schwarzenegger no filme:

A melhor sensação que existe numa academia é o esforço do músculo.


Digamos que você exercita os bíceps. Os músculos se enchem de sangue. E
você sente essa sensação. Os músculos ficam enormes, como se a pele fosse
arrebentar de imediato. Ficam muito grandes, como se alguém os estivessem
inflando com ar. Inflam-se e você sente-se diferente. É fantástico. Para mim
é tão satisfatório como um orgasmo, como ter relações com uma mulher e
ejacular. É como tocar os céus com as próprias mãos. Tenho essa sensação
de orgasmo na academia e na minha casa também. Tenho essa sensação
nos bastidores quando me exercito e quando poso diante de 5.000 pessoas.
Tenho orgasmos todo o dia.

Tudo isso quer dizer que a incorporação do hábito da atividade física cotidiana,
indispensável para o sucesso das academias de ginástica, depende da incorporação de
um conjunto de idéias sobre exercícios, saúde e corpo. Pois a academia de ginástica
mobiliza e de certo modo impõe uma determinada concepção de corpo.
Um dos fundamentos da própria possibilidade de dedicar-se aos extenuantes
exercícios reside na idéia de que o corpo é resultado do trabalho árduo e dedicado de
um indivíduo. É algo que lhe pertence, e sobre o que ele pode atuar da maneira que
julgar mais conveniente (é essa forma de compreender o próprio corpo que justifica
ANTROPOLOGIA DO CORPO

intervenções mais radicais como aquelas citadas na primeira seção desse material,
como o implante de chifres). Portanto, uma ideologia individualista e a convicção
de que o corpo é uma entidade a ser manipulada livremente são condições de
possibilidade para as práticas desenvolvidas no interior de uma academia de ginástica.
No caso das academias de ginástica, dedicar tempo e energia a cuidar do corpo,

65
significa dedicar tempo e energia a cuidar de si mesmo, ao mesmo tempo em que se
vive sob a idéia de que um corpo belo é algo a ser conquistado.
Além desse princípio de autoconstrução, a aparência do corpo passa ser visto
também como um atributo de identidade. Isto é, acredita-se piamente que a identidade
de uma pessoa toma forma através do seu corpo, se expressando por intermédio dele.
É a aparência da pessoa, portanto, o primeiro aspecto da sua identidade. Nesse contexto,
o aspecto físico torna-se “uma verdadeira fachada social”, como diz a antropóloga
Stéphane Malysse, que fez uma pesquisa sobre o culto ao corpo no Rio de Janeiro
– incluindo aí as academias de ginástica, lugar privilegiado para essa nova adoração.
A modelação do corpo, ou melhor, a modelação do corpo de uma determinada
maneira torna-se uma espécie de atalho para o sucesso em várias esferas da vida.
Pesquisas já identificaram que pessoas obesas ganham menos do que as magras,
sem mencionar as próprias oportunidades de emprego que se pode ganhar ou perder
em função da silhueta. Atualmente, a obesidade é uma característica classificada como
doença pela Organização Mundial de Saúde, aliás, como epidemia. Assim, a gordura
(e junto com ela, o obeso), vai sendo classificado como desviante (tal como já fora o
leproso ou o doente mental). Nos Estados Unidos, país que sabidamente tem grande
número de população obesa, já se chegou a falar em “gordismo” para descrever o
preconceito contra os gordos, tal como o racismo, o sexismo e o ageísmo. Na Escócia,
conforme noticiado por uma revista semanal, um casal obeso perdeu a guarda dos
filhos, sob acusação de estarem pondo em risco a saúde das crianças.

As pessoas obesas enfrentam na vida normal uma barreira universal de


preconceito que vai desde as piadinhas humilhantes até a violência [...]
As manifestações preconceituosas em matéria de raça, sexualidade e
religião são unanimemente condenadas, ainda que apenas da boca para
fora – e nesse campo é uma homenagem que o vício presta à virtude –,
mas os muito gordos são sempre julgados pelo peso. Na vida real ou na
ficção, espera-se que sejam apenas engraçados, espirituosos ou piadistas.
Qualidades morais indesejáveis, como falta de força de vontade, gula
incontrolável e até carência emocional, são automaticamente associadas
ao excesso de peso. “As pessoas enxergam o gordo como responsável pelos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

próprios males. É como se a sociedade dissesse que quem quer ser tratado
com respeito deve emagrecer, quando na verdade todo ser humano merece
ser respeitado, independentemente de seu tamanho”, diz Allen Steadham,
criador de uma ONG que promove a criação de leis para garantir os
direitos dos obesos nos Estados Unidos (VILAVERDE, Suzana. A vida
muito acima da média. Veja, São Paulo: Abril, 11 de novembro de 2009, ed.
2138, p. 114-115. Disponível em: http://veja.abril.com.br/111109/vida-
muito-acima-media-p-114.shtml)

66
Exigências da vida moderna

Anônimo*

* O texto tem circulado na internet sob autoria de Luis Fernando Veríssimo, mas não
conseguimos confirmar tal informação, nem a fonte onde teria sido publicada.
“Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro. E uma
banana pelo potássio. E também uma laranja pela vitamina C. Uma xícara de chá ver-
de sem açúcar para prevenir a diabetes.
Todos os dias deve-se tomar ao menos dois litros de água. E uriná-los, o que con-
some o dobro do tempo.
Todos os dias deve-se tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe bem
o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão). Cada dia uma Aspirina, previne infarto.
Uma taça de vinho tinto também. Uma de vinho branco estabiliza o sistema nervoso. Um
copo de cerveja, para... não lembro bem para o que, mas faz bem. O benefício adicional
é que se você tomar tudo isso ao mesmo tempo e tiver um derrame, nem vai perceber.
Todos os dias deve-se comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para fazer
um pulôver. Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente. E nunca se
esqueça de mastigar pelo menos cem vezes cada garfada. Só para comer, serão cerca
de cinco horas do dia...
E não esqueça de escovar os dentes depois de comer. Ou seja, você tem que esco-
var os dentes depois da maçã, da banana, da laranja, das seis refeições e enquanto tiver
dentes, passar fio dental, massagear a gengiva, escovar a língua e bochechar com Plax.
Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para colocar um equipamento de
som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você vai passar ali várias horas por dia.
Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por dia, mais as cinco
comendo são vinte e uma.
Sobram três, desde que você não pegue trânsito. As estatísticas comprovam que
assistimos três horas de TV por dia. Menos você, porque todos os dias você vai ca-
minhar ao menos meia hora (por experiência própria, após quinze minutos dê meia
volta e comece a voltar, ou a meia hora vira uma).
E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem ser regadas
diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar delas quando eu estiver viajando.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para com-
parar as informações.
Ah! E o sexo! Todos os dias, tomando o cuidado de não se cair na rotina. Há que
ser criativo, inovador para renovar a sedução. Isso leva tempo - e nem estou falando
de sexo tântrico.

67
Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero
que você não tenha um bichinho de estimação. Na minha conta são 29 horas por dia.
A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo! Por
exemplo, tomar banho frio com a boca aberta, assim você toma água e escova os den-
tes. Chame os amigos junto com os seus pais. Beba o vinho, coma a maçã e a banana
junto com a sua mulher... na sua cama. Ainda bem que somos crescidinhos, senão ain-
da teria um Danoninho e se sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.
Agora tenho que ir. É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã,
tenho que ir ao banheiro. E já que vou, levo um jornal... Tchau!”

Em parte, a idéia de que o corpo pode ser modulado de acordo com as vontades
explica os desajustes que se tornado cada vez mais freqüente nos nossos vocabulários,
como a bulimia ou a anorexia. Essas doenças, na verdade, expressam o desencontro entre
o corpo que se tem e o corpo que se ter. Este corpo desejado, na maioria das vezes diferente
do que corpo que se tem, deve desenvolver-se em conformidade com padrões estéticos
muito rígidos, para o que a academia de ginástica é um instrumento quase indispensável.
O modelo de corpo apresentado socialmente como ideal é um corpo impossível.
As modelos que os exibem, além de contarem com todo tipo de recursos auxiliares, como
a iluminação, a maquiagem e o photoshop, têm um estilo de vida totalmente dedicado a
este propósito: ter um corpo adequado aos padrões estéticos dominantes. Esses corpos, em
suma, são resultados de uma dedicação extrema, algo pouco tangível para a grande maioria
dos trabalhadores e trabalhadoras, que têm muitos outros compromissos e obrigações, além
de cuidar do próprio corpo ou da própria aparência.
Assim, a dinâmica social como um todo vai reforçando a exigência implacável de se
estar em conformidade a determinados padrões estéticos; padrões estéticos que, na prática,
são inatingíveis. Mais, esses padrões estéticos tendem a ser naturalizados. Basta olhar nas
bancas de jornal e revista as inúmeras publicações que reforçam este modelo. De certo
modo, todos e todas as modelos que pousam para a capa dessas revistas parecem iguais. Essa
uniformização dos corpos, no entanto, não corresponde a diversidade – genética, inclusive
– de constituição física e cultural de sociedade tão complexas como as nossas. O conteúdo
das reportagens, além disso, não é mais que a exaustiva repetição de uma mesma mensagem,
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

quase um mantra: dicas para ter uma barriga firme e forte, “o novo jeito de comer que
elimina a pança”, exercícios inéditos para uma barriga chapada. Porque todos têm que exibir
a mesma aparência? Porque todos têm que apreciar o mesmo tipo de beleza, um único tipo
de beleza? Não será possível que pessoas diferentes tenham preferências diferentes?
Essa uniformização tem ainda mais um efeito perverso, que é o de condenar a eterna
insatisfação aqueles que não podem usufruir das academias de ginástica ou salas de
cirurgia estética.

68
A mídia banalizou a tal ponto a idéia de que o corpo é moldável pela ação
da força de vontade que em toda a sociedade brasileira, das classes mais
desfavorecidas às classes médias e superiores, vigora o paradigma de um
corpo autoplástico. No entanto, entre o desejo e a possibilidade de mudar o
próprio corpo existe uma margem social ligada ao fato de essas práticas de
malhação serem antes de tudo práticas de consumo do corpo. Nem todas as
cariocas têm acesso às academias, pois só as que podem pagar de 140 à 200
reais por mês podem tentar transformar o próprio corpo para se apropriar
das diversas características corporais valorizadas socialmente [...] Todas as
revistas femininas dizem que é preciso força de vontade para mudar o corpo,
mas nunca dizem que também é preciso uma cultura adequada e dinheiro
suficiente. Na luta contra o acaso biológico, ricos e pobres tendem a se
repartir em uma escala social de beleza (MALYSSE, stéphane. Em busca dos
(H) alteres-ego: olhares franceses nos bastidores da corpolatria carioca. In:
GOLDENBERG, Mirian. Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do
corpo carioca. Rio de Janeiro: 2. ed. Record: 2007, p. 101-102).

Todavia, a “ditadura da magreza e da boa forma” pouco a pouco tem encontrado


cada vez mais insatisfeitos. São pessoas que não concordam – ou simplesmente não
conseguem – em seguir os ditames desses padrões de corpo, valorizando, de outra
forma, modelos de beleza alternativos. Recentemente, a imprensa passou a falar
do fat pride, ou o “orgulho de ser gordo”. Revistas de moda começaram a exibir,
ocasionalmente, modelos totalmente fora dos costumeiros padrões. A revista norte-
americana Glamour, por exemplo, exibiu fotos de um grupo de mulheres gordinhas,
em iniciativa que encontrou grande receptividade do público. A brasileira Flúvia
Lacerda, no mesmo sentido, tem conquistado prestígio internacional atuando como
modelo “plus size”. Em 2010, a São Paulo Fashion Week, famoso evento de moda
brasileiro, teve uma versão dedicada às pessoas acima do peso tido como “ideal”, a
Fashion Weekend Plus Size (CUMINALE, Natalia. ‘Fatpride’, o orgulho de ser gordinha.
Veja On-line, 30 de dezembro de 2009. Disponível em: http://veja.abril.com.br/
em-profundidade/sobrepeso/).
Qual o papel que a Educação Física deve assumir diante desses acontecimentos e
a maneira de fazê-lo são questões que ficam em aberto, mas cujas respostas, a reflexão
e atuação de cada um de vocês terá necessariamente que enfrentar.
ANTROPOLOGIA DO CORPO

69
Referências

CUMINALE, Natalia. ‘Fal pride’, o orgulho de ser gordinha. Veja On-


line, 30 de dezembro de 2009. Disponível em: http://veja.abril.com.br/
em-profundidade/sobrepeso/.

MALYSSE, Stéphane. Em busca dos (H) alteres-ego: olhares franceses


nos bastidores da corpolatria carioca. In: GOLDENBERG, Mirian. Nu e
vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de
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ANTROPOLOGIA DO CORPO

73
A POLÍTICA
EDUCACIONAL DO BRASIL
Conteúdos e discussões pertinentes

Drª Mariana Cunha Pereira


Ms Reigler Siqueira Pedroza

Introdução

Este texto é construído com o propósito de explanar sobre os conteúdos da disciplina


de Políticas Educacionais do Brasil, por conseguinte, foi organizado seguindo a estru-
tura da referida disciplina que está disponibilizada em unidades de conteúdos. Assim,
o texto abordará o que é a síntese da discussão básica de cada unidade e, assim, apro-
fundar em cada temática.
No momento em que nos dirigimos aos alunos de Licenciatura em Educação
Física vimos expressar a relevância acadêmica e sociopolítico dessa disciplina junto
àquelas que compõem o Currículo e afirmar sua importância no Projeto Político
Pedagógico do Curso.
Na seqüência do conjunto de disciplinas pedagógicas que integram o currículo das
Licenciaturas vimos que há uma perspectiva histórica na organização das disciplinas.
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

A intenção é que caminhe junto às explicações sócio, histórica e políticas da sociedade e


de modo particular o desenvolvimento do modelo educacional. É, por isso, que a disci-
plina de Política Educacional do ponto de vista histórico situa as discussões da conjuntu-
ra brasileira a partir da década de 90, dando continuidade as discussões de Fundamentos
Sócio-Históricos e Políticos da Educação que tratou dos fundamentos de uma educação es-
colar no Brasil desde o período da colônia até o período da redemocratização, anos 80.
Porém, a disciplina Política Educacional do Brasil, é bom que se diga, tem uma tra-
jetória que demonstra o inegável aspecto da conjuntura brasileira de ser um dos países

75
da America Latina profundamente marcado por esse período ditatorial. A disciplina
passou por um processo de mudança de objeto, deixou de desenvolver um estudo de
caráter mais tecnicista e sistêmico que privilegiava a legislação descontextualizada da
sociedade brasileira para uma perspectiva histórica-crítica na qual a escola é o lócus de
investigação da educação infantil, do ensino fundamental e médio.
Nesse sentido, essa disciplina Política Educacional (PE) tem por base estudar e
discutir a partir da conjuntura que se formou após os anos da ditadura, como se orga-
nizou e está a educação escolar no Brasil. Sabemos que a Educação Escolar é aquela
ofertada nas instituições de ensino organizadas em redes, onde estas integram as esfe-
ras Municipal, Estadual e Federal do nosso poder. Essas redes incluem escolas públi-
cas e privadas que devem seguir a Legislação educacional, que são: Lei de Diretrizes
Nacional de Educação (LDB), Parâmetros Nacionais de Educação (PCNs), Diretrizes
Curriculares e por fim as demais leis e Resoluções sobre as Políticas Públicas para
a Educação (PPE) que são implementadas pelo Governo Federal, Estadual e/
ou Municipal.
Segundo Azevedo (1997) o conceito de Políticas Públicas (PP) requisita uma
dimensão significativa do ponto de vista da memória coletiva, qual seja, aquela que
indica que as PP são definidas, implementadas, reformuladas, ou desativadas de acordo
com essa memória pública. Tais políticas públicas revelam o jogo de poder que se
incorpora nas relações entre os órgãos do Estado e a sociedade civil.

Imagem 1. O passado e o presente como orientador das políticas públicas.


LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

No sentido das políticas públicas apresentadas acima que organizamos o conteúdo


deste material didático para discutir o Estado, uma vez que este em nossa sociedade é
o financiador de tais políticas. Pretendemos, também, explicitar a estrutura do sistema
educacional para que os cursistas compreenderem por que as demandas por educação
são manipuladas pelos grupos dominantes e/ou são resultantes do jogo de relações
de poder entre classes sociais antagônicas. Enfim, discutir e entender como se forma a
Política Pública Educacional da qual fazemos parte no estado de Goiás e no Brasil.

76
Organizamos, então, este texto de acordo com as unidades de conteúdo. Na primei-
ra unidade abordaremos a discussão sobre: Estado e Políticas Educacionais para funda-
mentar o debate das interfaces entre Educação, Estado e Sociedade no recorte do jogo
de poder que envolve os interesses de classe diante da oferta de educação pública no
Brasil. Na segunda unidade a idéia é situar a educação no contexto das transformações
da sociedade contemporânea apresentando as revoluções científicas e tecnológicas e a
influências delas para o modelo de educação que vigorou. A partir das fundamentações
trabalhadas nestas duas unidades podemos entrar na terceira, intitulada: As Políticas,
Estrutura e a Organização da Educação Escolar no Brasil. Nesta unidade nosso objetivo
é entender os referenciais/princípios que norteiam as políticas públicas de educação.
Por fim, a quarta terá centralidade em discutir duas formas de política pública – o finan-
ciamento e a formação docente e suas relações com os processos de gestão.

1. A Relação Estado e Políticas Educacionais

O objetivo é discutir as políticas públicas como objeto de estudo e a partir daí


entender o que é uma política educacional; o Estado e as teorias sobre o Estado e a
relação Educação, Estado e Sociedade.

1. O que são as Políticas Públicas?

Segundo Azevedo (1997) a política educacional é um tipo de política pública


que traça as diretrizes da educação escolar e delimita os papeis de cada um dos
atores sociais envolvidos nessa dinâmica, quais sejam: MEC, Organismos Unilaterais
(UNESCO, OEI, FMI), Secretarias estaduais e municipais, Escola, Comunidade
escolar (professores, alunos, pais, funcionários, etc).
Com o propósito de entender as PP que são definidas a partir de uma concepção
de Estado que se impõem à sociedade, temos claro, que a PE vai cumprir as
perspectivas de cada concepção predominante em um momento histórico, e
assim ser a materialização de um projeto hegemônico, ou seja, o projeto de um
grupo dominante.
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

Uma vez tendo compreendido isso discutiremos as concepções de Estado que


se inserem nas relações políticas das sociedades a fim de entendermos o sentido e
significado desse elemento constitutivo das sociedades modernas.

2. O Estado – invenção das sociedades modernas;

Há um debate que impõe à discussão se existe ou não uma teoria de Estado na


obra dos dois maiores teóricos sobre as sociedades capitalistas: Karl Marx e Frederick

77
Engels. Trazemos então, o texto de Gruppi (1983) para contribuir com as indicações
e releitura desses teóricos. O autor indica que Marx ao fazer a critica ao pensamento
de Hegel apresenta os indícios do que podemos chamar de uma teoria do Estado e
a interpreta dizendo: “(...) não é o Estado que funda a sociedade civil, que absorve
em si a sociedade civil, como afirmava Hegel; pelo contrário, é a sociedade civil,
entendida como o conjunto das relações econômicas (essas relações econômicas são
justamente a anatomia da sociedade civil), que explica o surgimento do Estado, seu
caráter, a natureza de suas leis, e assim por diante.” (p. 27).
Em Engels, essa discussão inicia-se quando este autor apresenta o livro:
A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1894). Ali o autor discute
a origem constitutiva da família e da sociedade, mostrando que a sociedade ao
organizar as relações entre os sexos, visa sua sobrevivência econômica e social.
Assim, família e sociedade se organizam simultaneamente com base numa divisão
sexual do trabalho. O Estado, portanto, só vai surgir com o desenvolvimento da
economia que origina a divisão dessa sociedade em classes, portanto a sociedade
capitalista. Esses são, portanto, os teóricos de referencia do pensamento do Estado
o qual trabalharemos a partir do texto de Grupii (1983) com aprofundamento
em outros textos.
Quando o modelo capitalista se impõe como modo de produção, com
ele nasce à concepção de Estado denominada Estado Liberal, orientado pelos
princípios do liberalismo clássico da econômia. A principal característica deste
Estado liberal é que os conjuntos de políticas públicas, que dele deve emergir,
estão sujeitas a uma mercantilização e uma administração da produção privada
mais do que da pública, regulada pelo mercado. Como o capitalismo sofre crises
cíclicas, a cada crise há uma reestruturação no modo de produzir que reflete
modificações nas concepções de Estado, adaptando-o às novas demandas
do capital e das forças políticas que assumem o poder econômico, político
e social recontextualizando a dimensão da cultura. Assim, na crise dos anos
30, a reestruturação das economias faz surgir o Estado do Bem Estar Social,
também denominado de Estado Provedor/ Estado Intervencionista/ Estado
Interventor/ Estado Previdenciário que não necessariamente terá o mesmo grau
de desenvolvimento em todos os países do mundo. Nas sociedades da América
Latina, ele aparece nos governos populistas.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

A principal característica do Estado provedor é a universalização dos serviços


e uma significativa interferência na regulação da economia. Portanto, educação,
saúde, seguridade e lazer como bens e serviços são universais, por conseguinte,
direitos sociais que o Estado oferta através de políticas públicas compensatórias.1

1. Compensatórias porque objetiva ofertar para a sociedade respostas de algumas demandas


reprimidas inerentes ao próprio sistema.

78
3. Relação entre Estado e Sociedade

Está posta, assim, a relação entre Educação, Estado e Sociedade. É Shiroma


(2002) que aqui recorremos para explicitar os meandros dessa relação quando diz: “o
Estado institui-se, nesse entendimento, como expressão das formas contraditórias das
relações de produção que se instalam na sociedade civil, delas é parte essencial, nelas
tem fincada sua origem e são elas, em ultima instancia que historicamente delimitam e
determinam suas ações.” (p. 08).
É por causa desse entendimento do papel do Estado junto as relações de produção
de uma sociedade que somos levado a estudar a dinâmica do capital posto que ela
corporifica um conjunto de ações e antagonismos que dão ênfase as diferentes políticas
públicas. Dito de outro modo, o capitalismo enquanto sistema implementa através do
Estado políticas públicas que são na verdade o projeto social de um grupo dominante
ou do conflito antagônico entre os grupos sociais de uma sociedade. No caso das
políticas educacionais é por isso que elas surgem expressando um papel reprodutor
e/ou inovador das relações humanas. É por isto que em muitos casos as políticas
educacionais são copiadas de uma sociedade a outra, posto que os jogos das relações
de poder em sociedades distintas estão caracterizados pela mesma lógica do capital.
Dias (2002) ao discutir reformas do Estado e Direitos Sociais nos traz uma
conceituação que traduz essa discussão que pontua no jogo das relações a contradição
na qual o Estado está inserido:

O Estado é o conjunto de aparelhos que está destinado a dar maior


potencialidade e coerência às classes dominantes, ele constituiu o arcabouço
legal-institucional necessário à implementação do monopólio da racionalidade
capitalista. Longe da visão que reduzia o Estado às suas formas meramente
repressivas, devemos entendê-lo como o grande articulador das práticas
classistas, portanto, realizando tarefas que ultrapassam em muito o horizonte
meramente corporativo que o reducionismo glorificou. Como dizia Gramsci,
o Estado "fabrica o fabricante", cria, de fato, o capitalista. Nesta perspectiva ele
se apresenta como o Partido do Capital, o construtor da racionalidade classista.
É o produto de um conjunto articulado de lutas entre dominantes e dominados,
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

lutas estas que são sobredeterminadas pelos encontros/desencontros entre os


próprios dominantes e entre os dominados. (p. 04)

Para além de determinações repressivas o Estado vai atuar na racionalidade pro-


pondo um modelo de ação nos diferentes setores dos serviços. Essa perspectiva nos
coloca a seguinte pergunta: de que modo o Estado produz uma racionalidade classista
que sugere os programas de educação, as normativas, as diretrizes e, por conseguinte,
os currículos educacionais?

79
Sabemos que esta é uma área estratégica na utilização de mecanismos de coopta-
ção e controle no interior da sociedade. O uso do discurso e da memória é resgatado
para inferir a sociedade a importância da educação no desenvolvimento social, diante
a utopiai de que através da educação é possível alcançar a ascensão social a partir da
mobilidade de classe, ou seja, que através do estudo é possível que os indivíduos mu-
dem de classe social atingindo melhores status na estrutura econômica do capitalismo.
Frigotto (1996) na tele-conferência: Educação e Trabalho afirma que o capitalis-
mo sempre entra em crises, que estas são cíclicas e que o modo de sair dessas crises
tende a apontar para uma reelaboração das formas como o Estado vai lidar com os
serviços a serem prestados à sociedade: saúde, educação, seguridade e etc. Nesse sen-
tido os teóricos do capitalismo naturalizam que de acordo com a crise seja normal que
o Estado através dos serviços públicos atenda a uns e outros não. Para o autor nesse
raciocínio o que está em pauta é a assumência de que com isso está posto o dilema:
Barbárie ou Ética?
Para esse quadro de questões trazidas pelos textos de Dias (2002); Machado
(2002) e as inquietações de Frigotto (1996) que estão inter-relacionadas e têm visi-
bilidade com as crises do capitalismo real, nos apoiamos no raciocínio desse último
autor para sugerir no âmbito das políticas educacionais os seguintes pontos:

1. Que a saúde e a educação sejam ofertadas na perspectiva de retornarmos ao Estado


Máximo, ou seja, onde o Estado tem a obrigatoriedade de garantir seu financiamento
e qualidade;
2. Usar a ciência e a tecnologia como valor de uso do homem e não como valor de troca;
3. Ensinar e aprender o que é uma gestão e um currículo democrático;
4. Entender o sujeito que conhece (o professor), qual a cultura dele?
5. Enfim, descer ao chão da escola;

Dentre esses tópicos acima o que está implícito é uma concepção de Estado
máximo, que evidentemente está presente na sociedade capitalista, e oferta
como serviço público as áreas de: educação, saúde, moradia, lazer e seguridade.
Desse modo a Ciência teria uma função social para servir ao bem comum, seria
desenvolvida de acordo com os interesses sociais e não de acordo com a lei da
oferta e da procura que regula as relações do mercado. Evidencia-se nessa pers-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

pectiva uma dilatação do Estado, para a estatização do bem público.


Somente numa perspectiva em que o Estado oferta Educação como serviço
público a todos, independente da classe social e com a autonomia garantida a
educadores, administrativos, gestores e educandos é possível contemplarmos a
idéia de que o currículo e a gestão possam ser exercidos dentro de parâmetros
democráticos. E as políticas de formação de professores poderão ter uma origem
uma democrática.

80
É por esse raciocínio que nesse ponto do programa nos deparamos com o
estudo da sociedade e as transformações causadas pelas grandes revoluções sociais
e tecnológicas, porque é do novo que se deve conhecer o velho, a idéia é entender
na crise do capitalismo real que vivemos hoje o que está sendo discutido quanto à
organização da escola.

2. Educação no Contexto das


transformações da sociedade contemporânea

A Educação, portanto, sofre modificações de acordo com a lógica do capital. É o


que passamos a estudar nesta unidade ao discutir a Educação no Contexto das
Transformações da Sociedade Contemporânea. A proposta é que o façamos através
da discussão sobre as mudanças do Estado e do que as originam, buscando entendê-
las no contexto das relações entre Estado e Sociedade.

A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

Imagem 2. Transformações da sociedade contemporânea.

Navarro (1995) que escreve o texto: Produção e Estado do Bem Estar - o contexto
das reformas em especial,analisa que houve um acentuado aumento de mão de obra
urbana nos anos 60, na América Latina, e isto se traduzem em movimentos operá-
rios que mudam a ótica de participação dos sindicatos, anteriormente nos anos 50
voltados para um aspecto de cunho psicológico das relações de trabalho, para uma

81
preocupação com as relações de poder no interior da fábrica, dos locais de trabalho,
iniciando-se aí reivindicações mais singulares desde a definição do horário de trabalho
até algo mais macro como o próprio processo produtivo. Assim, o movimento operá-
rio conquista uma série de lutas que empurravam o Estado a responder as demandas
colocadas e, por conseguinte, alargavam a estatização dos bens e serviços. Isto é o que
caracteriza o Estado do Bem Estar Social.
Segundo Navarro (1995) as três respostas significativas que o capital constrói no
seu imenso poder de se refazer das suas crises são:
- Mudanças no modelo produtivo e da própria empresa em sua totalidade, ou seja,
o Fordismoii como modelo produtivo é questionado e os processos de gerenciamento
e administração das empresas também o são;
- A internacionalização da produção foi à principal resposta do capital ante a força
do movimento operário;
- A terceirização ou subcontratação de pequenas empresas, ajuste para o modelo
japonês – denominado Toyotismo, (trabalho em redes, ou seja, um núcleo de pro-
dução dependendo de vários grupos de fornecedores com trabalho mal pago, tempo
parcial e precária organização).
Para os países europeus e os Estados Unidos, o Estado do Bem Estar Social será
questionado a partir do conjunto de políticas públicas que se configurou no pós-guer-
ra – 1945. Mesmo quando as bases do Estado do Bem Estar Social se construíam,
ainda em alguns países europeus, e se visibilizava o crescimento econômico e as van-
tagens do capitalismo no mundo rico, alguns teóricos orientados por Friderick Haiek
elaboraram fortes teses contra esse modelo de Estado. O texto de Haiek que materia-
liza as idéias dessa crítica chama-se: Caminhos da Servidão trata-se de uma “bíblia”
para o neoliberalismo. Porém, as críticas ao Estado do Bem Estar Social ficaram na
teoria por quase 20 anos, somente quando estourou mais uma crise no capitalismo,
nos anos 70/73 é que a chamada “nova direita” teve como materializar e propalar o
neoliberalismo como uma reordenação da ordem mundial, tendo como base a refor-
mulação do Estado – nascendo, então, o Estado Neoliberal.
Para Gentili (1996) o neoliberalismo aponta para uma perspectiva de organizar a
política neoliberal, para tanto, incide nos aspectos simbólicos e estruturais da socieda-
de. Os neoliberais atuam no âmbito do discurso e difundem suas teses como leitura
de mundo do senso comum; impregnam o modo de ver e de ser de uma sociedade
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

de classes e naturalizam as desigualdades atribuindo-lhes características individuais


para resolvê-las a partir do mérito e da esfera privada. Nesse sentido criam as condi-
ções reais de quebra da noção de direitos sociais que foi conquistada em um intenso
processo de lutas sociais.
O autor discute que até os anos 80 se democratizou a tarefa de universalização
da educação escolar no Brasil, porém, isso não se deu de modo igual para todos. No
entanto, a perspectiva neoliberal utiliza isso para criticar o Estado previdenciário,

82
apontando que este fato é um exemplo da ineficácia desse Estado, a partir desse
argumento os neoliberais caracterizam que há uma inoperância do Estado do Bem
Estar Social. Para eles, o erro esta no fato da educação ser pensada como um sistema,
enquanto ela deveria ser organizada de acordo com as leis de mercado estando assim
sujeitas aos instrumentos de regulação que a providenciam e a controlam.
De acordo com as idéias de Gentili e o que vimos ocorrer na educação do Brasil,
desde o período colonial até hoje, podemos entender que o neoliberalismo é uma
filosofia política de reconstrução do capitalismo que na dimensão da educação
produz um discurso que atribui àqueles que fazem educação a culpa da crise
educacional. Portanto, o neoliberalismo “(...) constitui um projeto hegemônico. Isto
é, uma alternativa dominante à crise do capitalismo contemporâneo através da qual
pretende-se levar a cabo um profundo processo de reestruturação material e simbólica
das nossas sociedades”. (GENTILI, 1998 p.102).
A educação é um dos elementos estruturantes desse discurso. Cabe, então,
refletirmos sobre este discurso que busca culpados para o quadro em que a educação
brasileira se encontra atualmente. O curioso é que esse discurso utiliza-se da educação
como principal eixo para, inclusive, justificar que nós professores somos culpados
pela crise educacional. A partir destas afirmações, podemos lançar mão da seguinte
indagação: seria a sociedade civil responsável pela crise capitalista?
Estudar o Neoliberalismo e compreender as conseqüências dessa releitura que
o capital faz para ressurgir de mais uma crise nos impõe, também, entender qual é
o papel da educação nessa nova ótica, assim fazemos nossa as mesmas dúvidas de
Machado (2006) ao questionar:

Estariam ocorrendo apenas mudanças no trabalho ou mudança societal? Que


mudanças no trabalho e que mudança societal? Fim da sociedade industrial
e novas perspectivas para o trabalho com o concurso da tecnologia? Fim do
próprio trabalho humano? Como refletir e atualizar a problemática da forma-
ção humana, considerando o caráter ambivalente/contraditório do trabalho
(alienação x emancipação humana) e o caráter ambivalente / contraditório
das atuais inovações tecnológicas e organizacionais (reestruturação capitalista
para reposição dos seus pressupostos x afirmação do novo com a alteração das
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

bases da produção do valor negando esses mesmos pressupostos)/ P. 59/.

A autora fala de mudanças na sociedade advindas dessas novas formas de produzir,


que incluem a maior utilização de maquinário no mundo do trabalho e/ou nos serviços
que são prestados a sociedade. O que se traduz na busca de formação diante a essa
tecnização mesmo que se perca a dimensão humana. Chama nossa atenção para o uso
universal dessas transformações e de como estas atingem todos os setores da vida social.
Comenta que é possível a crítica de que advindo dessas novas formas de produção

83
esteja em pauta um trabalho mais intelectualizado, que reconfigura a relação trabalho
intelectual e trabalho manual, talvez essa hipótese tenha surgido por causa das inúmeras
exigências de dimensões comportamentais que estão postas no tipo de trabalhador
que se quer formar (tais como: criatividade, flexibilidade, concentração, assiduidade,
entre outras). Entretanto, sabe-se que não desaparecerão as funções de coordenação,
supervisão e orientação estas inclusive ainda mais ajustadas à nova velocidade e tempo
das relações de trabalho.
No Brasil abordamos estas transformações no contexto dos anos 90, quando o
Neoliberalismo se configura a partir do governo Collor de Melo. Na área educacional
esse governo não chega a operar grandes mudanças, mesmo assim as entidades educa-
cionais representativas da educação no Brasil tiveram que se proteger da imensa onda de
privatizações que ali se iniciaram. Estávamos, também, vivendo o debate no Congresso
Nacional sobre a construção da Nova Lei de Diretrizes e Bases, que se iniciará des-
de a Constituinte de 1988 e a perspectiva privatista teve forte peso em seu texto final.
As tendências do Neoliberalismo no Brasil a partir da década de 90 era o enxugamento
da máquina estatal, daí passaram a surgir um conjunto de discursos desqualificando o
setor público e a escola pública foi um dos alvos atacados com força pelo discurso neoli-
beral. Vejamos agora como este conjunto de críticas recairá sobre a escola pública.

3. As Políticas, Estrutura e Organização da


Educação Escolar no Brasil a partir da década de 1990

Assim, vamos entender a partir da unidade III como se organiza o sistema educacional
brasileiro, entretanto, antecede ao entendimento dessa organização uma discussão
política e científica trazida por Saviani (1987) que se resume nas questões por ele
apresentadas: Existe Sistema Educacional no Brasil? Há sistemas ou um sistema? São
sinônimos os termos - sistema educacional, estrutura educacional, sistema escolar?
Os textos de Saviani aqui elencados para esta discussão são introdutórios, o
objetivo, é apenas levantar a dúvida a fim de que possamos daí apresentar a tese
do autor quanto a esta discussão. Uma vez que concordamos com o autor ao dizer
implicitamente que nossa tendência seja sempre naturalizarmos o modo como a
educação escolar se apresenta a nós, sem quase nunca nos perguntarmos às polêmicas
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

que ali estão postas. Além do que, essa perspectiva de discutir: o que é sistema?
Segundo Saviani (1987), isto se caracteriza como um modo de introduzir o educador
em uma discussão macro na área da educação, posto que ele esteja sempre às voltas
com a micro-educação.
Desse modo, fazendo o percurso pelo caminho da macro-educação nos propo-
mos a estabelecer uma discussão introdutória sobre sistema e apontar de imediato a
tese conclusiva do autor a fim de que possamos imediatamente passar a discutir a Lei

84
de Diretrizes e Bases da Educação que de certo modo é o instrumento legislativo que
corporifica a noção de estrutura educacional apontada por Saviani.
Para o autor, o conceito de sistema está bastante embricado com o conceito de
estrutura educacional e na literatura aparece como sinônimos. O mesmo ocorre
com sistema escolar e essa polêmica Saviani vai apenas anunciar no referido capítulo.
Entretanto, lendo a tese do autor vamos encontrar sua discordância quanto a esses
termos serem sinônimos e, por conseguinte, a resposta da questão; se existe ou não
sistema educacional?
Para o autor:

Portanto, embora se denomine a organização educacional brasileira de “siste-


ma”, a verdade é que não existe sistema educacional no Brasil. O que existe é
estrutura. E é preciso que se tome consciência disso, pois é a partir das estru-
turas que se poderá construir o sistema. (Idem, p. 85).

No âmbito do entendimento da macroeconomia isso equivale dizer que o estudo


que se coloca para nós educadores é, também, entender porque a estrutura educacio-
nal mesmo tendo uma Lei de Diretrizes e Bases que propõe e regula as ações dos di-
ferentes sujeitos da educação (Família, Estado, Sociedade, Instituições e Organismos)
ainda não nos levou a construção de um sistema.
O termo sistema pressupõe a construção de uma práxis intencional comum, en-
tretanto, segundo Saviani (1987), os estudos acadêmicos sobre a educação no Brasil
tem nos levado a conhecer as incoerências, contradições, limitações e equívocos nos
interstícios da estrutura educacional o que de imediato contribui para o não apareci-
mento do sistema. Mas, se sistema pressupõe uma práxis intencional comum é evi-
dente que fica difícil pensar isto no âmbito do capitalismo cuja característica está na
organização social de classes. Ou seja, a estrutura de classe não permite uma práxis
intencional comum.
O sistema, nesse sentido, surge como uma meta a ser alcançada com a reordena-
ção das sociedades de classe. O autor vai elencar algumas hipóteses que poderiam ser
aprofundadas como temas de estudo para esclarecer a ausência do sistema de ensino
nas sociedades. Primeiro: de que existe uma inter-relação entre sociedade de classe e
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

sistema. O sistema traz um conflito universal, daí porque muitas das experiências são
produzidas a imagem de outras, como verdadeiros transplantes culturais; Segundo:
existe uma relação entre os conflitos de classe e os conflitos educacionais, que explici-
ta/tenciona as divergências entre escola pública e escola particular. Terceiro: demons-
tra que o liberalismo influenciou de modo significativo a organização de leis para
educação brasileira; Quarto: que há uma “insuficiência teórica dos educadores” cuja
possibilidade de explicação está no fato de que a educação é vista como algo dado,
uma supraposição a ser vivida.

85
Para Saviani (1987) enfim, não existe sistema, mesmo assim o termo é larga-
mente utilizado por nós educadores e pela legislação educacional brasileira. E nesse
sentido, o uso na legislação, o qual passou a examinar que se confunde com estru-
tura educacional, principalmente, quando associado à LDB. Ali aparece o termo
sistema associado ao ensino municipal, estadual e federal.

1. A Escola Pública - Conflitos da Organização na Educação Escolar:

É nesse ponto que a discussão se amplia para situar a construção da escola pú-
blica no Brasil com seus avanços e impasses. Para isso há que se contemplar o estu-
do dos princípios da organização escolar conforme a LDB/96; conhecer os níveis
e as modalidades da educação brasileira; entender como se formula a legislação, em
especial a Lei 10.639/03, o Parecer 03/04, os Referenciais Curriculares Indígenas,
as Diretrizes e Bases da Educação do Campo e as Diretrizes Nacionais Curriculares.
Por fim ter uma visão do que está sendo planejado, implementado e qual a critica
em termos de políticas publicas para cada nível e/ou modalidades de educação.
A Constituição brasileira explica no Artigo 205 que é direito de todos e é dever
do Estado e da Família promover e contribuir com o processo de educação para
a cidadania, e que este processo educativo deve servir, também, a formação para
o trabalho. As implicações dos dizeres constitucionais se traduzem em inúmeras
ações por parte dos indivíduos que buscam se capacitar e a partir dessa qualificação
almejam uma vida melhor, mais digna do que o termo cidadania lhe possibilita.
Por sua vez impõe também ao Estado – em suas diferentes esferas – proporcionar
as condições básicas e estruturais para que esse indivíduo se instrumentalize.
Além disso, institui a família com a obrigação de zelar por esse acesso a educação
escolarizada. As conseqüências dessas três dimensões as quais a busca e oferta por
educação escolar está diretamente relacionada, traduzem-se num conjunto de
políticas públicas que são instituídas e reelaboradas servindo aos interesses de
todos os sujeitos sociais que ai estão envolvidos – indivíduo, família, sociedade, e
órgãos governamentais.
Vejamos cada um dos aspectos acima elencados como parte constitutiva para
que compreendamos a construção da Escola Pública e a organização colocada pela
atual LDB.
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2. A história da Organização da Educação Brasileira:

Fazendo um recorte temporal a partir do período colonial vimos através das


leituras de Saviani (1987); de Ghiraldelli Jr.(2006) e de Aranha (1996) que a edu-
cação demorou para tornar-se uma questão nacional, ou seja, ter uma orientação
emanada do Estado com a pretensão de organizar uma estrutura educacional para

86
todo o território nacional no que diz respeito a consolidar leis, diretrizes, políticas de
formação e principalmente uma ação de instrução pública para as classes populares.
Ghiraldelli Jr. (2006) situa a forma como a educação brasileira se organiza a
partir das experiências dos jesuítas:

Aos Jesuítas coube, praticamente, o monopólio do ensino escolar no Brasil


durante um tempo razoável. Algo em torno de duzentos anos. Durante esse
tempo, eles fundaram vários colégios com vistas à formação de religiosos.
Ainda que os filhos da elite da colônia não quisessem, todos eles, se tornar
padres, tinham de se submeter a tal ensino. Eram os únicos colégios exis-
tentes. (p.25).

Sabe-se que inevitavelmente foi com essa ação de educar repleta de interesses
ideológicos e políticos que ocorreu algum tipo de instrução escolar atingindo até
mesmo, os nativos e filhos de colonos, embora fosse direcionada para os filhos da
elite. Mas, com a expulsão dos Jesuítas, essa incipiente estrutura educacional que se
organizava pela égide da Igreja voltou a ser orientada pelo Estado através das ações
do Marquês de Pombal. De acordo com Saviani (1987): “As reformas pombalinas
se contrapõem ao predomínio das idéias religiosas e, com base nas ideias laicas ins-
piradas no iluminismo, instituem o privilegio do Estado em matéria de instrução
surgindo, assim, a nossa versão da “educação pública estatal”. (p.04).
No entanto, durante o período imperial mais uma vez a educação brasilei-
ra muda de rumo quanto a ser ou não uma ação de responsabilidade do Estado.
D.Pedro I, ainda em 1823 antes mesmo da Constituição outorgada de 1824, cria a
Lei que declara livre a instrução popular com isso abre caminho à iniciativa privada
sobre o ensino e retira a obrigação do Estado. A conseqüência disto é que desde
o período imperial e chegando a república a educação popular continuou sendo
descentralizada e de acordo com o que os estados federados podiam providenciar.
Para Saviani (1987) somente depois de 1930 é que a questão da instrução po-
pular se configurou como uma necessidade dado os rumos econômicos que o pais
se encaminhava. Com questões polêmicas do cenário nacional, entre elas o perío-
do denominado “Era Vargas”, chegamos ao momento em que na reorganização da
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

Constituinte de 1946, é colocada como ponto de pauta a construção de uma Lei de


Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Assim, nos explica Aranha (1996):

A Constituição de 1946 reflete o processo de redemocratização do país,


após a queda da ditadura de Vargas. Em oposição à constituição outorgada
de 1937, os “pioneiros da educação nova” retomam a luta pelos valores já
defendidos em 1934.

87
É Saviani (1986) que explica alguns elementos de dentro da Lei que, também, im-
possibilitaram a democratização do ensino fundamental. Entre eles a própria isenção
da responsabilidade de obrigatoriedade da educação escolar colocada na lei e expli-
cada pela “falta de condições financeiras do pai ou responsável e a “insuficiência de
escola”. Ou seja, havia por parte da lei uma institucionalização da impossibilidade do
Estado ofertar a instrução escolar a todos.
Nesse momento histórico da realidade brasileira em que se instituiu a LDB nº
4.024/61 tratou-se de uma discussão para efeito de compreender a questão educacio-
nal do Brasil a partir dos conteúdos da disciplina de Fundamentos Sócio-Históricos
e Filosóficos da Educação que antecede nossa disciplina. Mesmo assim, nos reporta-
mos até aqui ao período e as conseqüências no âmbito da educação para situar que,
posteriormente a ditadura militar do Brasil que vai de 1964 a 1985 reiniciamos através
dos movimentos sociais ligados a educação e como resultado da própria política na-
cional uma nova construção de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira.
Vejamos como expõe esse processo, Ghiraldelli Jr.(2006):

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional resultou de intensa luta par-


lamentar e extra-parlamentar. Entidades da sociedade, com interesses diversos,
porém convergentes em relação à defesa do ensino publico e gratuito, se reu-
niram em vários momentos, criando versões de uma LDB de seu agrado. To-
davia a LDB resultante não foi esta, mas uma mescla entre o projeto que ouviu
os setores da população e o projeto do Senador Darcy Ribeiro. É certo que
a influência do segundo projeto sobre o primeiro foi preponderante. (170).

Mesmo assim e com algumas emendas e leis complementares estamos, hoje, tra-
balhando com a LDB nº 9394/96 que diante alguns tropeços e percalços no âmbito
da política educacional é a expressão maior da legislação que nos possibilita a constru-
ção de uma escola pública que se pretende democratizada e universal.

3. A LDB – os níveis de ensino e as modalidades:

Na LDB nº 9394/96 faremos o estudo dos níveis de ensino fundamental e ensino


médio, pois ambos compõem a Educação Básica que também compreende a Educação
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Infantil. E, em seguida elegemos como partes constitutivas a serem estudadas na cate-


goria de modalidade de ensino2 a: Educação de Jovens e Adultos; Educação do Campo,
Educação Escolar Indígena e Educação Étnico-Racial. Entretanto é preciso explicar que

2. Modalidade utilizamos no sentido de expressar um modelo de instrução escolar institu-


cionalizada, posto que reconhecida pelo Estado, mas, que não está instituída na dimensão
regular do ensino uma vez que se trata de um olhar específico sobre um grupo social e/ou
cultural que reivindica esse tipo de ensino.

88
embora somente a primeira seja citada na lei como um tipo de modalidade, foram às
discussões em seminários nacionais posteriores à criação da LDB que deram a estas ulti-
mas o status de modalidade. Vejamos como cada uma se configura no cenário brasileiro.

3.1 A Educação de jovens e adultos

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) instituída pelos artigos 37 e 38 da LDB é


direcionada aquelas pessoas que em idade considerada regular pelo sistema de ensino
e que não tiveram oportunidade de estudar e concluir o ensino fundamental e médio.
Porém, o texto da lei não expressa à complexidade que esta modalidade traz de
problemas e incertezas que hoje se configuram nos debates dos inúmeros congressos
e eventos científicos que discutem sobre este tipo de educação escolar. Segundo Cury
(2007) ai está implícito um direito constitucional do qual aqueles que não puderam
estudar não devem abrir mão. Porém, é preciso observar alguns aspectos quanto à oferta
dos cursos de EJA.

Antes do curso, todos devem saber qual será a sua duração, quais os conheci-
mentos que lhes serão passados, quais os tipos de avaliação a que se subme-
terão e que tipo de certificado de conclusão obterão ao final do mesmo. Isto
significa que o ensino na Educação de Jovens e Adultos deve ser de qualida-
de. E, para ser de qualidade, é preciso também ter certeza da idoneidade da
instituição que oferece o curso. Esta idoneidade tem que possuir um registro
mínimo: a aprovação certa e determinada do Conselho Federal de Educação
com os respectivos prazos de validade. (p.03).

A EJA, entretanto, tem carecido de um maior incentivo enquanto uma modalida-


de de ensino e as políticas educacionais que podem ser subsidiária a sua implemen-
tação. Citamos como exemplo: as políticas de formação de professores com recorte
para a modalidade EJA; cursos diferenciados dos moldes atuais da escola pública que
não atrai o trabalhador para sala de aula após um dia de trabalho; financiamento que
eleve o salário dos professores para uma carga horária diferenciada quando se trabalha
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

com EJA. Enfim há um debate em curso que aponta estes como alguns dos elementos
significativos para a exeqüibilidade desta modalidade de instrução escolar.
E mais do que isso há um movimento social no formato de Fóruns Estaduais, que
surgiu em 1996 e, hoje se articula em 26 estados e mais o Distrito Federal, formando
assim, o Fórum Nacional de Educação de Jovens e Adultos. Trata-se de um espaço
de debate propositivo trazendo contribuições para o repensar de políticas públicas.
Integram esses fóruns os sujeitos da EJA, representantes dos sindicatos de educadores,
representantes dos órgãos governamentais da educação e a Universidade, através dos

89
educadores e acadêmicos que estão pesquisando e se identificam com as temáticas
que impulsionam o debate da EJA.

3.2 A Educação do Campo

A educação do Campo vem se apresentando como uma modalidade de educação


no sentido que aqui nos apropriamos desse termo, ou seja, uma educação pensada
para os sujeitos sociais do campo, que ali moram e tiram o sustento da terra. Tem suas
origens as reivindicações do movimento social do campo e junto à luta pela terra,
almejando educação escolar do campo e não para o campo.

Imagem 3. Primeira turma de Pedagogos da Terra formados na FE/UFG com discentes oriundos exclu-
sivamente de movimentos sociais do campo. Foto: Acervo pessoal da Profª Drª Mariana Cunha Pereira
(17/03/2011).
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As lutas políticas das três últimas décadas no Brasil, que foram resultantes do pro-
cesso de redemocratização de nossa sociedade, fizeram surgir uma consciência políti-
ca em torno de algumas temáticas diretamente ligadas ao mundo da escola e da pro-
dução do conhecimento. O que aponta para isso é a redefinição dos conceitos sobre
escola, educação e políticas públicas. É nesse sentido, que a educação escolar daqueles
que vivem nas áreas rurais do Brasil é rediscutida e reapresentada num debate que se
constrói com novos conceitos e sujeitos em ação.

90
Hoje, os estudiosos de educação que sempre discutiram historicamente sobre
educação escolar rural e os integrantes dos movimentos sociais do campo estão
apontando para uma mesma direção no sentido de rever estes conceitos. Isto por-
que os processos de consciência política nos levaram a perceber que a velha e tradi-
cional educação rural precisava ser redefinida, reelaborada e reestruturada frente aos
sujeitos do campo que já não são mais os mesmos de três décadas atrás.
A educação básica do campo que se defende hoje propõe uma escola que seja
participativa, que tenha um papel social de enfrentamento diante dos problemas em
que o campo está inserido. Aliás, o primeiro conceito que está sendo reelaborado
aqui é o de: rural para campo.
Os povos do campo conforme se autointitulam os trabalhadores que vivem da
agricultura, da pecuária, da exploração das riquezas dos rios e da floresta, também se
fazem presente na reorganização de movimentos sociais e da construção de políticas
públicas em torno da educação escolar. Eles não aceitam essa terminologia de “rural”
porque esta ficou arraigada de um sentido de atraso social e principalmente ficou
colada a imagem de exploração dentro do latifúndio.
Com a mudança no conceito, se assume também a modificação quanto à escola
que agora tem um papel social de “ser um espaço onde a comunidade deve exigir
lutar, gerir e fiscalizar as políticas educacionais.” (Conferencia: p.01). Essa escola
propõe que a educação básica do campo tenha a função social de resgatar o direito
social dos povos do campo por uma educação pública de qualidade.
Segundo o documento citado: CONFERENCIA NACIONAL: por uma
Educação Básica do Campo, assinado pela CNBB, MST, UNESCO, UnB, UNICEF3
que se originou de um encontro entre educadores, trabalhadores, gestores e demais
autoridades em julho de 2008 na cidade de Luziânia/Brasília alguns pontos devem
ser redefinidos quanto à oferta da educação básica no campo:
• Pensar a Educação Básica do Campo vinculada a um processo de desenvolvimen-
to nacional;
• Viver e resgatar valores que se contrapõem ao individualismo e ao consumismo;
• Valorizar a cultura do campo e as especificidades dessa cultura quanto aos papeis
de homens e mulheres;
• Fazer mobilizações em torno das políticas públicas da educação do campo;
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

• Ter como foco Alfabetizar a todos;


• Formar educadores e educadoras do campo;
• Propor uma educação básica do campo envolvendo a todas as comunidades
e acreditar que é possível pautar-se na realidade do campo. (Cf. Conferência,
1998).
3. CNBB – Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros; MST – Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra; UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura;
UnB – Universidade de Brasília; UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância.

91
3.3 A Educação escolar indígena

Propomos nesse tópico uma leitura sobre de que modo se tratou a educação dos
indígenas na Brasil. Vejamos como essa temática é anunciada na LDB nº 9394/96,
e a partir do que ali está posto, de que modo essa discussão serve ao debate sobre o
currículo da Educação Básica, tomando o referido documento como referência:

Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e esta-
belecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características
regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. (BRA-
SIL, 1997).

Esta perspectiva de currículo anunciada no caput do artigo 26 permite que o pará-


grafo quarto venha assegurar o que já estava sendo cobrado pelos povos indígenas do
Brasil, vejamos seu enunciado:

§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das dife-


rentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das
matrizes indígena, africana e européia. (BRASIL, 1997).

Na questão da matriz indígena, objeto de discussão nesse momento, já havia uma


articulação e inúmeras experiências quanto à educação escolar indígena espalhada por
vários estados brasileiros. Faltava o respaldo da lei, uma legitimidade institucional para
que esses povos pudessem acessar seu direito por educação através do movimento
indígena que vem se organizando desde metade dos anos 80.
A autora de: “Estudantes indígenas em escolas de branco: expectativas e dificulda-
des”, Rosani Moreira Leitão avalia nesse texto o quanto é imprescindível para a auto-
nomia das etnias brasileiras serem sujeitos sociais e políticos da história de sua educa-
ção escolar. Avalia isso a partir do texto constitucional de 1988 que assume o discurso
do reconhecimento de ser o Brasil uma nação multiétnica, plurilíngual e pluricultural.
Segundo a autora os estudantes indígenas, pelo menos no inicio da década de 90
quando realizou suas pesquisas, ao freqüentarem escolas urbanas por necessidade de
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

continuação dos estudos em nível de ensino médio muitos deles evadiam-se da escola
por não suportarem os processos discriminatórios e as diferenças culturais impostas
no currículo. Quando muito se tornavam alunos repetentes até desistirem.
Porém, a realidade imposta pelo contato inter-étnico é imperativa e talvez tenha
sido por isso que alguns resistiram e tornaram-se os atores políticos que impulsio-
naram as reivindicações por uma educação escolar indígena que se pautou desde a
construção de escolas nas aldeias, ofertando educação básica, até a reivindicação de

92
políticas públicas de formação de professores em programas interculturais. A escola
indígena é, então, um campo de disputa e isto é perceptível na fala de uma das autoras
de nossa bibliografia, cuja identidade é uma das indígenas militantes do movimento
de professores;

Portanto, a verdadeira escola indígena será aquela pensada, elaborada e


gerenciada pelo povo indígena, de acordo com seus anseios, expectativas e
modos de organização política e social, voltada para seu futuro. Sendo um
projeto coletivo, essa escola indígena específica e diferenciada será construída
para efetivo exercício da cidadania e da autonomia. Para isso, as instituições
públicas responsáveis devem centrar esforços para providenciar estratégias
de participação, sob pena de cometer a negação dos direitos constitucionais.
(ANGELO, 2006, pg.04)

Diante desse processo histórico é que retomamos aqui como vem ocorrendo às
mudanças na legislação quanto à educação escolar indígena. A partir da década de 70, segundo
Leitão (1998) o governo brasileiro através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) fez
convênio com a Sociedade Internacional de Linguística (SIL) para adotar programas de
educação bilíngüe nas escolas indígenas esse foi um avanço pontual na legislação.
Porém, é preciso que se diga que esta questão de ser a educação escolar indígena
bilíngüe, foi um marco de debate entre Estado e sociedade civil. Foi um tema polêmi-
co, inclusive entre os povos indígenas posto que para algumas etnias a língua materna
deveria ser ensinada apenas no âmbito familiar, enquanto outras etnias defendem que
as línguas maternas deveriam ser um componente curricular. Mas, passado esse deba-
te, ficou o ensino das duas línguas na escola como necessárias diante do fato de que a
cultura da sociedade envolvente tendia a se sobrepor cada vez mais as novas gerações
minimizando assim a importância de se aprender e falar a língua materna.
É importante, nesse ponto, que se destaque a diversidade que caracteriza o debate
de uma educação escolar indígena, posto que cada povo tem suas especificidades e
interesses coletivos. Tais interesses, em última instância, apresentam as influências e
conseqüências do lugar em que vivem. Sem contar as experiências políticas na relação
com o Estado, as relações que estabeleceram entre grupos e, por fim, o que resultou,
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

em particular, sua experiência com o restante da sociedade brasileira.


Porém, só em 1993 é que ocorre a organização do Comitê Nacional de Educação
Indígena contribuindo na sistematização das Diretrizes para a Educação Escolar
Indígena e, depois surge em 1998 o Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNE/Indigena).
O RCNE/Indígena se fundamenta nos princípios de: Multietnicidade,
pluralidade e diversidade; Saberes educativos indígenas; Autodeterminação;
Educação Intercultural e Diferenciada. Do texto de sua introdução trazemos aqui o

93
reconhecimento do Estado de que os povos indígenas são atores de seus processos
educativos escolarizados e que esta tem sido uma construção reivindicatória que se
desenhou ao largo da discussão sobre currículo. Vejamos:

Nos últimos anos, os professores indígenas a exemplo do que ocorre em


muitas outras escolas do país, vêm intensamente afirmando a necessidade de
contarem com currículo mais próximos de suas realidades e mais condizen-
tes com as novas demandas de seus povos. Esses professores reivindicam a
construção de novas propostas curriculares para suas escolas , em substitui-
ção àqueles modelos de educação que, ao longo da história,lhes vem sendo
impostos já que tais modelos nunca corresponderam aos seus interesses polí-
ticos e as pedagogias de suas culturas. (BRASIL, 1998, pg.11).

Desse modo, a partir da década de 90, no Brasil, está se consolidando uma


educação escolar indígena oriunda da relação entre Estado e Organizações Indígenas
que é assumida por algumas etnias como uma reivindicação diante a sociedade
nacional. Trata-se de um processo educativo fecundado na memória histórica do
reconhecimento dessas diferentes etnias na composição do povo brasileiro e na ação
política de que esses povos são sujeitos, através de suas escolas nas aldeias, comunidades
ou terras indígenas onde se viabiliza um dialogo entre diferentes culturas.

3.4 A Educação Étnico-Racial nas Escolas

A educação das Relações Étnico-Racial não é citada como uma modalidade de edu-
cação, entretanto, a LDB aponta para que haja uma educação escolar na perspectiva
étnico-racial na medida em que propõe no: “Art. 26 A - Nos estabelecimentos de ensi-
no fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena.” Esse artigo deu origem a formulação e
Implementação da Lei 10.639/03 que propõe, também, a releitura do calendário es-
colar e da formação do professor quanto a este aspecto de incluir a temática da cultura
afro-brasileira e da História africana.
Alem disso, o Conselho Nacional de Educação criou com base na Lei 10.639/03
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

o Parecer 03/2004 que traça as Diretrizes Curriculares da Educação Étnico-Racial


na perspectiva de reorientar os currículos nacionais valorizando assim a nossa
identidade afrodescendente.
Vejamos o que nos coloca a Lei 10.639/2003:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida


dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

94
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá


o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão


ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Todos esses aspectos legislativos são frutos das conquistas do movimento negro
nacional e resultante das pesquisas que influenciam e explicam o olhar que a socieda-
de constrói de si mesma. Na medida em que ao longo desses anos a discussão sobre a
identidade nacional no Brasil foi mostrando os conflitos raciais, e os conflitos étnicos
envolvendo os aspectos da má distribuição de renda, da terra e da diversidade religiosa.
Os estudos trazidos por essas pesquisas mostram que o Brasil dos anos 90 a par-
tir do censo de 2000 passa a se assumir como afro-descendente em percentuais até
então, ainda não visto. No RDR (2008) que é organizado com dados coletados para
compor o Censo de 2010, as pesquisa de amostragem e domicílio (PNAD) revelam
que 49,55% da população brasileira se auto-identificam como negra (pardos e pretas).
O censo escolar que passa a ser usado a partir de 2005 também revela dados sig-
nificativos quanto à educação brasileira e traz alguns dados empíricos para compreen-
dermos o processo de identificação e auto-identificação na área educacional, vejamos:

Em relação ao quesito cor/raça dos alunos, incluído pela primeira vez no


questionário do Censo Escolar de 2005, os resultados de 2006 reafirmam os
obtidos no ano anterior, quando maioria dos alunos declara-se parda (37,8%)
e branca (33,3%). Contudo, cabe destacar que o maior número de alunos que
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

se declaram pardos está no ensino fundamental (39,6%) e na EJA (38,6%),


enquanto que o maior número de alunos que se declararam brancos está na
educação especial (44,8%), na educação profissional (40,3%) e na educação
Infantil (39,6%). (sinopse do Censo Educacional, 2005).

Ainda na educação escolar quanto ao aspecto étnico-racial vale a pena citar as po-
líticas públicas em torno do Livro Didático que buscam implementar esses conhe-
cimentos sobre a cultura afro-brasileira. A História Africana é tematizada na foram

95
de mitos, lendas, contos de origem afro como parte da literatura a ser conhecida por
nossos alunos. E, principalmente, quebrando o padrão adotado pelos livros didáticos
que em geral o negro aparece como escravo. Entretanto, ainda temos alguns problemas
na elaboração desses livros que comprometem a intenção de desfazer o preconceito.
A educação étnico-racial aponta aponta para uma perspectiva anti-racista, onde
precisamos avançar em dois aspectos: nas políticas de formação de professores e da
construção de um currículo para as escolas quilombolas. A ênfase na formação de
professores para que essas leis e diretrizes possam se efetivar na prática docente inclui
políticas públicas de capacitação e formação continuada em que sejam revistos esses
elementos constitutivos da identidade nacional que até então não se discutia e nem se
visibilizava no material didático produzido para a educação básica.
A professora Petronila Beatriz G. e Silva nos chama atenção para o que diz o
Parecer nº 03 quanto à formação dos profissionais de educação nas diferentes dimen-
sões do processo educacional:

Muito trabalho pela frente para divulgar e incentivar a execução do parecer.


Será preciso atingir não somente os professores, mas também dirigentes
de escolas, sistemas de ensino, entidades mantenedoras, pais e estudantes.
Atente-se para o que diz o parecer: Destina-se o parecer aos administradores
dos sistemas de ensino, de mantenedoras de estabelecimentos de ensino, aos
estabelecimentos de ensino, seus professores e a todos implicados na elabo-
ração, execução, avaliação de programas de interesse educacional, de planos
institucionais, pedagógicos e de ensino.(SILVA, 2004:02).

Em outras palavras, a professora acentua a necessidade de um compromisso de


todos que compõem a escola no sentido de se capacitar para esse olhar que até então
fora invisibilizado dos conteúdos escolares, dos debates, dos livros didáticos, da forma-
ção e capacitação dos educadores, enfim.
Os profissionais que se qualificam a partir dos conhecimentos sobre a origem das
diferentes identidades sociais e históricas tem condições de desconstruir os precon-
ceitos enraizados em nossa história, valorizar os antecedentes dos grupos negros mos-
trando os personagens que também construíram a história brasileira, esclarecendo o
sentido de frases racistas que estão inseridas no nosso dia a dia e são cristalizadas no
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

senso comum, desmontando as práticas escolares que também reforçam a exclusão


daqueles que são identificados pela cultura negra.
O outro aspecto da educação escolar com ênfase na identidade étnico-racial é
o movimento de educadores e estudiosos e comunidade em geral de construir um
currículo da escola quilombola. Desde quando as comunidades quilombolas do
Brasil passaram a se auto-identificar e reivindicar seus direitos com base no Art.68 da
Constituição brasileira foi surgindo, também, uma consciência de que é preciso um

96
olhar diferenciado para a escola quilombola dado as especificidades do lugar e dos
sujeitos dessa escola. Entretanto, este é um processo que ainda está em construção,
talvez avance um pouco mais agora, em que universidades brasileiras apresentam cur-
sos de graduação direcionados a professores do campo. Possivelmente, esta formação
direcionada para os quilombolas possibilite a estes educadores elaborar propostas pe-
dagógicas que considerem seus locais de origem.

4. Financiamento, gestão e trabalho docente

Por fim, nesta unidade temos por


objetivo apresentar e realizar a dis-
cussão em torno dos seguintes te-
mas: O financiamento da Educação
(FUNDEB); a relação entre Finan-
ciamento e Gestão e O trabalho e
a Formação Docente (políticas de
formação de professor).
Nesta unidade teremos três
textos: no primeiro trataremos do
FUNDEB. No segundo, há uma
abordagem sobre a Gestão e o
Financiamento. No terceiro a dis-
cussão é sobre a necessidade de
recriar os cursos de formação de
Imagem 4. Escola Quilombola Calunga III, situada
na Fazenda Ema no município de Terezina de Goiás. professores no Brasil a partir de
Foto: Acervo pessoal da Profª Drª Mariana Cunha novos pilares para superação das
Pereira retirada em 03/04/2009.
problemáticas atuais. No bojo do
debate suscitado por estes textos
poderemos perceber a relação entre teoria e prática nestas formações, bem como en-
tre trabalho e formação continuada.
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

4. 1 Financiamento da Educação

No texto de Oliveira (2003) os autores explicam pelo menos três formas de finan-
ciamento da educação escolar básica. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE) que foi criado para suplantar o financiamento público estatal da
educação básica, e cria o Salário Educação que é uma contribuição de 2,5% da folha
de pagamento das empresas. A este fundo ficam isentos: os órgãos públicos, as institui-
ções de ensino público e privado, e, as autarquias. Os autores explicam também que:

97
O recolhimento dos recursos do salário-educação pode ser feito de duas
formas distintas, a critério das empresas contribuintes: - ao FNDE, passando,
nesse caso, a integrar o Sistema de Manutenção do Ensino Fundamental. –
ao INSS, juntamente como os recolhimentos usuais da Previdência Social.
(OLIVEIRA et al 2003, pg.03).

Entretanto, o governo federal não tem nenhum controle quanto à forma como o
Estado irá distribuir as quotas da educação do FNDE. A outra é que mesmo a quota
federal sofre pressões da classe política no aspecto da implementação e aplicabilidade
ou é conduzida segundo as demandas dos parlamentares que tendo acesso a essas in-
formações e mecanismos de poder interferem com emendas constitucionais direcio-
nando tais verbas aos municípios de seus interesses eleitorais. Sendo que a quota federal
deveria ser planejada para minimizar as discrepâncias regionais quanto à educação que
existe no Brasil. Se não existisse tais atitudes na aplicabilidade dessas verbas muito po-
deria ser realizado na educação diante das desigualdades socioeconômicas que caracte-
rizam as regiões brasileiras.
Outro instrumento de financiamento da educação escolar é o FUNDESCOLA –
Fundo de Fortalecimento da Escola. Trata-se de um programa que, também, visa valo-
rizar e apoiar o ensino fundamental. Este é um programa que o Ministério da Educação
e as Secretarias de Educação introduziram para fomentar e contribuir com a autonomia
da escola. Nesse programa a prioridade está para as regiões Norte e Nordeste do Brasil.
Entretanto, segundo consta no documento que cria este fundo, há alguns requisitos
que a escola deve cumprir a fim de que essa verba chegue à escola. Um deles é: “(...)a
elaboração de um Plano de Desenvolvimento da Escola, (...) com o conjunto de ações
que a escola se propõe a desenvolver para melhorar as condições de ensino e de seus
processos administrativos e pedagógicos”. A esse plano denomina-se PDE.
Esse fundo determina algumas ações que compete à aplicabilidade dessa verba.
Estas, no entanto, não são assumidas de modo consensual entre os gestores da edu-
cação escolar. As criticas baseiam-se em diferentes teses, vejamos primeiro quais são
as ações em que o FUNDESCOLA é anunciado para depois discutirmos as criticas.
Segundo OLIVEIRA (2003) as ações em que o FUNDESCOLA atua são:
1 - Padrões Mínimos de Funcionamento das Escolas; 2 - Processo de Desenvolvimento
da Escola; 3 - Planejamento e Provisão de Vagas; 4 - Gestão e Desenvolvimento dos
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Sistemas Educacionais.
O autor ainda situa a discussão de Padrões Mínimos de Funcionamento das
Escolas, onde é preciso assegurar melhores condições materiais para que a exeqüibi-
lidade do serviço da educação escolar seja ofertado. Desse modo com a verba deve se
financiar obras para adequar prédios, mantê-los, a aquisição de equipamentos e mo-
biliário e, por fim, cursos de formação de professores e demais funcionários da escola
(merendeiros, técnicos de informática, administrativos e etc).

98
Uma das criticas se relaciona ao aspecto de engessamento que é criado pela
burocracia ao exequibilizar o gasto da verba do FUNESCOLA. Para alguns estu-
diosos a burocracia que se exige para as licitações e a falta de preparo dos gestores
da educação escolar criam uma grande demora para as reformas que são possíveis
de realizar-se. Há ainda atrelado a isso as restrições com o que pode ser gasto frente
às necessidades que a escola esteja apontando. A outra critica, também, em curso
nos textos que compõem essa discussão é de que o FUNDESCOLA dá uma maior
importância ao PDE que é um instrumento técnico de planejamento no qual os
aspectos sociopolíticos da educação escolar não são prioritários. Esta é uma critica
que se articula no bojo das discussões que trazem para a escola a necessidade de
se construir o Projeto Político Pedagógico, no qual a escola faria um planejamento
levando em consideração concepções de educação e de sociedade em que respecti-
vamente está o sujeito a ser formado.
Nesse sentido, o trabalho pedagógico e a formação de professores estão subme-
tidos a uma lógica que articula gestão e financiamento, daí passamos a discussão de
nosso segundo ponto.

4.2 Gestão, financiamento e formação de professores

De acordo com os documentos oficiais a política de formação de professores depende


da política de criação de fundos para a educação, conforme já explicitado acima, aqui
tratamos do FUNDEB que é:

O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de


Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) atende toda a educação
básica, da creche ao ensino médio. Substituto do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(Fundef), que vigorou de 1997 a 2006, o Fundeb está em vigor desde janeiro
de 2007 e se estenderá até 2020. (www.mec.fundeb.gov.br)

Entende-se ai uma conotação sistêmica que oferece as condições possíveis de


manutenção de políticas públicas e de programas emergenciais para a formação de
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

professor. Esta é uma informação relevante para entendemos que há nos estados e
municípios o recebimentos de verbas federais para serem aplicadas na educação
oriundas de diferentes fundos. Este é o modo, então, de subsidiar a política pública de
formação de professor no nosso país.
Também se faz relevante conhecer os estudos de Nicolas Davies apresentado no
texto de Souza Junior de nossa bibliografia para essa unidade. Ali o autor discute as
criticas de Davies sobre a política de fundos e considera:

99
Assiste razão a Davies ao apontar as limitações das políticas de fundos para
a educação pública, que, em geral, são problemas com referência à política
geral de financiamento da educação no Brasil, sobretudo no que se refere à
base de impostos e à falta de definição de custo-aluno-qualidade. Entretan-
to, a exclusão de determinadas etapas da fonte de financiamento do fundef
está a ser corrigida bem como o ingresso das várias categorias do magistério.
Quanto à participação dos demais trabalhadores nos gastos desses fundos,
trata-se de uma questão que deve ser resolvida no âmbito das .negociações
quando da regulamentação no Congresso Nacional. (SOUSA JUNIOR,
2006, pg.03/4).

O autor também chama a atenção que esta política não modificou em nada o
modo de repasse dos recursos financeiros para a manutenção do ensino, ou seja, a
União – 18%, os estados e municípios – 25%. E afirma: “..., não se injetam recursos no-
vos para a educação. Porém, com relação às mudanças introduzidas na EC 53/2006,
destaque-se que os Municípios e os Estados deverão aportar gradualmente no Fundo
20%, não mais 15% como era no Fundef...” (Souza Junior, 2006, pg. 05).
Em verdade, Souza Junior (2007) traz uma reflexão bastante pertinente para que
possamos discutir a formação dos professores da educação básica que a LDB também
vai legislar. Segundo a LDB a formação dos professores deveria ser de forma continu-
ada e direcionada àqueles profissionais da educação básica, ou seja, educadores dos
diferentes níveis de ensino e modalidades da educação em efetivo serviço.
Sabe-se que a educação escolar brasileira passa por efetivas mudanças em sua le-
gislação a partir dos anos 90, conforme situa as autoras analisando o novo direciona-
mento que se dá diante das políticas de formação continuada:

No Brasil, a FC [formação continuada] teve suas ações impulsionadas, a partir


da década de 1990, período no qual se evidenciou uma grande explosão de
propostas visando atingir os professores em serviço, nas diferentes instâncias
dos sistemas públicos de ensino. (GAMA, Maria Eliza et al 2006, pg.05).

Essa formação continuada (FC) que os autores se referem poderá ser ofertada
com uso das novas tecnologias da educação e no modelo presencial e à distância.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Acreditamos está ai implícito uma concepção de trabalho que se impôs pela efe-
tiva participação dos profissionais da educação nos movimentos sociais dos educa-
dores do Brasil. Também explicita na construção de uma LDB que, se não a ideal,
a possível na conjuntura de participação política em que foi elaborada. Vimos que a
relação Estado e Sociedade aponta para o jogo de relações de poder e de forças contra-
-hegemônica de nossa sociedade. Nesta o trabalho pedagógico torna-se critério de
condição para a valorização do magistério quanto a seus processos de capacitação.

100
De outro modo, para que o trabalho docente possa assumir um status de relevân-
cia numa sociedade cada vez mais desprestigia a formação humana, se fazem neces-
sários cursos de FC que capacite/instrumentalize esses professores para estas novas
dinâmicas sociais. Tanto do ponto de vista da tecnologia quanto dos desafios que se
apresentam à prática docente com o aparecimento de todos os conflitos e debates que
incidem sobre a escola.
É por isso que desde o final dos anos 90 estamos vivenciando um conjunto de
cursos de formação de professores que se realizam em diferentes espaços e modelos.
Diferenças, também, de conteúdos na medida em que o currículo foi repensado e se
diversificou como exige a própria realidade.
Por fim, queremos citar a lei Complementar n. 26/1998 que trata das Diretrizes e
Bases do Sistema Educativo do Estado de Goiás. Porém, a construção dessa Lei advém
de um processo de lutas políticas desde os anos 60, quando da primeira entidade que
mesmo representando os profissionais da educação funcionava vinculada ao Estado.
A história da relação Estado e Sociedade na realidade de Goiás e na perspectiva
dos movimentos de educação foi de avanços e retrocessos. Tivemos inúmeras greves
e algumas vitórias contribuíram para melhorar a oferta do serviço educacional e os
direitos dos profissionais da educação. Porém, a história tem períodos de retrocessos e,
hoje, podemos falar que se reafirmam os laços entre Estado e Entidades Educacionais
comprometendo, e muito, os direitos coletivos que foram conquistados.
Na relação Estado e Sociedade os direitos constitutivos que estão relacionados às
categorias de trabalhadores tem uma força política muito maior através de diferentes
formas de representação ou de reivindicação. Que difere do modelo dos sindicatos
considerados, hoje, instrumentos de manipulação de sindicalistas reconvertidosiv.
Em Goiás, as políticas públicas que avançam em direção a autonomia e emancipa-
ção dos trabalhadores da educação caminham de mãos dadas com as novas formas de
movimentos sociais, que se distanciam dos partidos políticos, criam fóruns de partici-
pação que envolve a Universidade, seguimentos do Estado e da Sociedade Civil. São
exemplos destacáveis o Fórum de Educação de Jovens e Adultos; o Fórum Estadual
de Educação; Programas de Educação das Relações Étnico-Raciais desenvolvidas por
entidades do movimento negro em parceria com a Universidade; entre outros.
Mas, sem dúvida que a gestão da escola pública continua interligada ao financia-
A POLÍTICA EDUCACIONAL DO BRASIL

mento, e no caso de Goiás isto significa que tais financiamento, bem como em todos
os estados brasileiros dependem do percentual que de fato é aplicado na educação, de
acordo com a lei deveria ser 25% dos impostos arrecadados e destinados a educação.
(Cf. Art.69 da LDB).
A formação continuada está ocorrendo por intermédio das Universidades
públicas e privadas. Porém, às vezes com um caráter puramente individual, ou seja, por
iniciativa do educador e não por intencionalidade e incentivo do governo estadual,
que poderia fazê-lo através das Secretarias de Educação. Temos também, experiências

101
de formação de professores como resposta a projetos coletivos de iniciativa da
Universidade Pública, nestes casos, ofertados gratuitamente. Como exemplo,
podemos citar os seguintes cursos: de Pedagogia firmado por um convênio entre a
Secretaria Municipal de Goiânia (2001 – 2004) e a UFG; de Pedagogia da Terra –
convênio entre a UFG e o Programa Nacional de Reforma Agrária/PRONERA; as
Licenciaturas na modalidade EAD e diversos outros advindos de recursos específicos
por editais do MEC através de várias Universidades Federais do Brasil.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

102
Referências

ANGELO, Francisca Novatino P. A Educação Escolar Indígena e


a Diversidade Cultural no Brasil. In: CD ROM – Curso Educação e
Diversidade. UnB / SECAD / Ministério da Educação.

ANDES, Universidade e Sociedade. In: CD-ROM edições do nº 1 a 24.


2002.

BRASIL. Lei nº 9.424, de 24 de dezembro de 1996. Dispõe sobre o


Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e Valorização do Magistério, na forma prevista no art. 60, 7º do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial, Brasília, de 26
dez.1996.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN 9.394


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VIEIRA, Sofia L. Política educacional em tempos de transição. Brasília:


Editora Plano, 2000.

105
Sites de Pesquisa

www.inep.gov.br
www.mec.gov.br
www.acaoeducativa.org.br
www.isa.org.br
www.forumeja.org.br

Utopia – no sentido marxiano, é o que pode ser realizado.


i

Fordismo - Foi Henry Ford em sua fábrica, Ford Motor, que em 1913 criou
ii

esse modelo de produção. um modelo ou tipo de produção baseado em


inovações técnicas e organizacionais que se articulam tendo em vista a
produção e o consumo em massa;

Reconvertidos – utilizamos este termo que Pablo Gentilli utilizou em


iv

2006 para fazer uma critica aos intelectuais que escreveram e defen-
deram idéias contra a lógica capitalista (até a década de 80), e que a
partir dos anos 90, se articulam segundo as concepções neoliberais, em
muitos casos defendendo teses neocapitalistas. Do mesmo modo agem
alguns sindicalistas.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

106
TEORIAS DO ESPORTE

Dr. Cleber Dias

Apresentação

Caro e cara estudante, você inicia agora a leitura do material de apoio à disciplina Teoria
do Esporte, do curso de Licenciatura em Educação Física na modalidade à distância
da Universidade Federal de Goiás. Seu objetivo, como todos os demais, é facilitar o
seu estudo e aprendizagem do conteúdo desta disciplina. Trata-se, portanto, de um
material didático, sem as preocupações características a um trabalho acadêmico, ainda
que a linguagem e outras convenções estejam inteiramente subordinadas às tradições
acadêmicas. Força do hábito. A única principal exceção é o texto referente à seção
dedicada à “Sociologia figuracional e as teorias do esporte”, que reproduz um texto de
minha autoria publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte; um periódico
acadêmico portanto, o que obviamente exigia um texto tipicamente acadêmico.
Quer dizer então que, grosso modo, o que vai se seguir não tem a intenção de
abordar em toda sua profundidade cada um dos assuntos sugeridos, nem tampouco
explorar exaustivamente as referências citadas. A intenção foi tão somente apontar e
às vezes recomendar textos sobre teorias do esporte que me parecem úteis ao conhe-
cimento de um graduando em Educação Física. Espero que ajude. De todo modo, é
importante tentar consultar os textos mencionados ao longo do material sempre que
TEORIAS DO ESPORTE

possível. Não limitem seus estudos às poucas páginas que se seguirão.


Por último, cabe assinalar, em resumo, que o conteúdo do material propriamente
dito, está divido em sete seções. A primeira define o que estaremos entendendo por
teoria do esporte. Basicamente, são pesquisas com a intenção de explicar a dimensão

107
social deste fenômeno, excluindo-se, dessa maneira, as muitas e importantes pesqui-
sas sobre a fisiologia do desempenho esportivo, nutrição esportiva, a biomecânica do
esporte, entre outros.
A segunda seção apresenta algumas definições correntes do conceito de esporte.
Veremos considerável diversidade nesse sentido. A falta de consenso a esse respeito
expõe apenas a própria natureza de qualquer empreendimento científico, sempre pro-
visório, sempre inacabado e nunca definitivo.
A terceira seção aborda algumas das características sócio-históricas mais usualmente
atribuídas ao esporte, naquilo que vai constituir também uma das suas mais influentes
teorias, a saber, aquela que estabelece uma relação entre o esporte e a época moderna.
A quarta seção comenta a história da formação da especialidade acadêmica
dedicada ao esporte, mencionando os principais acontecimentos nesse sentido, bem
como os trabalhos e autores mais influentes sob este aspecto. Inevitavelmente, os
trabalhos e autores mencionados são resultado de uma seleção pessoal, o que significa
que nem todos os mais influentes estão presentes. Eventualmente, de fato, algumas
ausências e exclusões foram cometidas. Mesmo assim pode-se dizer que a amostra
é representativa.
A quinta seção se dedica a apresentar, de maneira um pouco mais detalhada, uma
importante abordagem teórica no âmbito do esporte: nomeadamente, a chamada
sociologia figuracional.
A sexta e última seção tem por finalidade apresentar algumas reflexões sobre a
relação entre o esporte, a educação e o desenvolvimento social.
Em linhas gerais, em suma, o conteúdo deste material corresponde à ementa e ao
conteúdo programático da disciplina (que segue adiante). No mais, insisto, procurem
ler os livros e artigos citados ao longo do material. Certamente eles constituem um
importante material de estudo. Desejo-lhes um proveitoso período de estudos, na
esperança de colaborar na formação de cada um de vocês.

Um grande abraço,

Cleber
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Ementa

Temas gerais da filosofia e sociologia do esporte. Fundamentos gerais da pedagogia do


esporte. O esporte como manifestação humana, cultural, e de relação social complexa.
Relações entre esporte, indústria cultural e mídia. Concepções de esporte no desenvol-
vimento histórico da sociedade de classes. Reconstrução do esporte como ética, esté-
tica, arte, política social e suas possibilidades para a formação e emancipação humana.

108
Objetivos

• Apropriar-se das principais teorias do esporte.


• Possibilitar a compreensão geral do fenômeno esportivo.
• Identificar e compreender os diferentes conceitos e concepções de esporte e suas
relações com a Educação Física.
• Identificar e compreender as ações de políticas esportivas e suas relações com o
desenvolvimento social.

Conteúdo programático

1 – O esporte como fenômeno cultural


1.1. Conceitos básicos;
1.2. O desenvolvimento da pesquisa sobre esporte;

2 – Principais teorias do esporte

3– Esporte e desenvolvimento social

1. Definições preliminares

O estudo sobre as teorias do esporte deve começar por se perguntar o que é, afinal,
uma teoria do esporte. Até mesmo antes disso, deveríamos nos perguntar se existe
uma teoria do esporte e se o emprego dessa expressão é adequado e faz sentido.
Devo lhes dizer sob este aspecto que sim, existe uma teoria do esporte. Na verdade,
não apenas uma, mas várias, no plural. Portanto, a referência e à alusão a uma idéia
de “teoria do esporte” não só faz sentido, como é também pertinente.
Admitindo, então, a premissa de que teorias do esporte existem e que o uso
dessa expressão é teoricamente adequado, podemos continuar nos perguntando
sobre o que elas seriam exatamente, o que tal expressão quer dizer e qual o conteúdo
das suas prescrições?
Ao longo desse curso, estaremos entendendo por teorias do esporte, basicamente,
quaisquer generalizações explicativas a respeito dos sentidos e significados sociais do
esporte. Em outras palavras, teorias do esporte são esforços intelectivos que, através
TEORIAS DO ESPORTE

de conceitos e definições, buscam explicar aspectos históricos, culturais ou sociais do


fenômeno esportivo. O que é um esporte? Porque as pessoas o praticam? Quais as
causas da popularidade de certas modalidades? Porque umas e não outras? São alguns
dos tipos de pergunta que tal “esforço intelectivo” tenta responder.

109
Esta definição de teoria do esporte está orientada por uma acepção de teoria que
se aplica não apenas a esse caso, em particular, mas a toda e qualquer teoria, de maneira
geral – particularmente a toda e qualquer teoria social. Nesse sentido, amiúde, teorias
do esporte serão interpretações explicativas acerca do fenômeno esportivo.
Pouco a pouco – vocês já devem estar percebendo – estamos circunscrevendo
a arena de pesquisa ao redor da qual iremos gravitar. Esta delimitação – acreditem –
apesar de excluir uma dimensão considerável de estudos acadêmicos que de alguma
forma versam sobre esporte, ainda assim diz respeito a um universo bastante amplo
e diversificado (como exemplos, vejam o Quadro 5, que lista alguns periódicos
internacionais dedicados, especificamente, à publicação de pesquisas sobre esporte
nessa perspectiva). São estudos de diferentes disciplinas científicas, desde a História,
até a Sociologia, passando pela Antropologia (para não mencionar a Psicologia ou
a Filosofia, que de maneira talvez menos enfática, também se dedicam a estudar o
esporte). Meu esforço, aqui, será o de selecionar entre essa variedade de esforços o
que parece obviamente mais pertinente para a formação em Educação Física, além
de tentar lhes apresentar o conteúdo de algumas dessas teorias de maneira resumida
e organizada, a fim de facilitar o mais possível seus estudos. Nesse sentido, registre-se
ainda que na história desses esforços intelectivos, isto é, na história de formação dessas
teorias do esporte, algumas generalizações foram mais abrangentes, outras menos;
bem como algumas foram mais influentes e outras menos. Aqui, vamos nos limitar
aquelas que encontraram mais receptividade entre professores de Educação Física,
influenciando a forma pela qual o esporte passou a ser concebido e, conseqüentemente,
desenvolvido no interior de certas propostas pedagógicas.

2. Conceitos de Esporte

No momento de definir o que seria um esporte, existem consideráveis divergências e


desacordos. O que seria um esporte, afinal?
De início, registre-se que, provavelmente, todos nós saberíamos dizer com relativa
facilidade o que não é um esporte. A leitura de um livro não é um esporte. O uso do
computador também não é um esporte, bem como um dia de descanso na beira do
Araguaia não o seria. Essa primeira abordagem mais intuitiva, no entanto, não é sufi-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

ciente para as finalidades de uma teoria do esporte, que, como vimos, pretende expli-
car sociologicamente o esporte. Para esses casos, mais do que identificar situações que
não são esportivas, é necessário também estabelecer critérios capazes de servir como
parâmetro das situações que podem ser chamadas de esportivas.
Um esforço para melhor definição conceitual do esporte não é algo fortuito. Não
se trata de um problema meramente teórico ou filosófico. A maneira como se define
conceitualmente um objeto, uma prática ou um acontecimento pode ter inúmeras

110
implicações sobre o seu próprio modo de constituição. Em outras palavras, a definição
de certos conceitos influencia a maneira pela qual a realidade a que tal conceito se
refere é percebida. A maneira de perceber certa realidade, por sua vez, pode também
influenciar a própria forma que certos objetos, práticas ou fenômenos assumem. Ou
seja, a maneira como se define o esporte, pode mudar a maneira como o percebemos,
e essa nova percepção pode também mudar a maneira como o esporte se realiza em
sua prática.
O sociólogo Pierre Bourdieu (1996) foi um dos que já teceu comentários a res-
peito dessa complexa relação entre a forma de definir conceitualmente elementos da
realidade social e a própria realidade social. Nas palavras dele: “A ciência social lida
com realidades nomeadas e classificadas, portadoras de nomes próprios e de nomes
comuns, de títulos, signos, siglas”. Sendo assim, continua ele, “a ciência social deve to-
mar como objeto às operações sociais de nomeação e os ritos de instituição através
dos quais eles se realizam [...] a ciência social precisa examinar a parte que cabe às
palavras na construção das coisas sociais” (p. 81).
Essas palavras de Bourdieu sintetizam o entendimento de que a linguagem (leia-
se, nesse caso, os conceitos) não apenas expressa pensamentos e sentimentos de um
contexto social, como também estrutura as percepções que os indivíduos têm sobre
este. Nas palavras do autor, mais uma vez: “a nomeação contribui para constituir a
estrutura desse mundo”. Na medida em que as palavras, conceitos ou os discursos
sejam compreendidos como ferramentas mais ou menos eficazes na constituição da
realidade, o poder de nomear coisas torna-se o poder de impor uma visão de mundo,
isto é, o poder de estruturar uma maneira de apreender a realidade.
Palavras e conceitos, portanto, permitem apreender e expressar um mundo de
experiências. Nesse sentido, as formas pelas quais elas são empregadas devem ser
seriamente consideradas. As categorias de inteligibilidade utilizadas por certos atores
são instrumentos de decodificação de um sistema de valores e, por isso mesmo, têm
grande relevância na tradução e interpretação dos sentidos e significados presentes
nessas práticas. Tais conceitos, em suma, constituem modelos cognitivos e programas
de percepção.
No caso do universo esportivo, especificamente, interessa saber quais os conceitos
vêm sendo utilizados pelos diversos grupos de atores sociais envolvidos com essa
prática e o que eles significam para além do que está explicitamente anunciado. Que
convicções esses conceitos são capazes de dramatizar e à quais representações esses
vocábulos são conclamados a integrar?
Ainda de acordo com as proposições sumariadas acima, é possível dizer que os
TEORIAS DO ESPORTE

procedimentos de classificação, conceituação ou ordenação lingüística expressam


uma determinada estrutura de poder. Ao mesmo tempo, esses procedimentos de
classificação não cumprem essa função por eles mesmos. O poder da palavra não está
localizado na própria palavra. Esse exercício de poder através da classificação e nomeação

111
dos objetos da realidade social depende de uma complexa cadeia de interdependência,
onde a força das palavras depende, fundamentalmente, da legitimidade daqueles
que as anunciam. Assim, o poder da palavra, enquanto instrumento de estruturação
das percepções, depende da posição social dos seus enunciadores. Ela está, portanto,
subordinada a uma confluência de condições sociais, onde é preciso que todos vejam
no locutor-enunciador das palavras uma pessoa autorizada a dizê-las. Em suma, há uma
forte relação entre a propriedade do discurso em si e as propriedades de autoridade
daqueles que os anunciam. A partir desse entendimento, poderemos entrever disputas
políticas ou cisões ideológicas que o uso diversificado de conceitos encerra em qualquer
atividade humana, onde o campo esportivo, evidentemente, não se exclui.
Para formular novamente e talvez em termos mais simples, diferentes maneiras de
conceituar o esporte, resumem diferentes maneiras de concebê-lo. E essas diferentes
concepções, por seu turno, implicam diferentes possibilidades de prática e de uso so-
cial. Ou seja, se nós, por exemplo, definíssemos esporte como uma prática corporal
historicamente relacionada ao advento do capitalismo, de certo modo, estaríamos im-
plicitamente sugerindo uma vinculação entre esses dois elementos, o esporte e o ca-
pitalismo. Por conseqüência, alguém que avalie o capitalismo como um sistema social
perverso e injusto, como de fato o é, tenderia, para manter alguma coerência com essa
nossa hipotética definição, que avaliar o esporte como algo também perverso e injusto,
que deve por isso, ser abandonado ou radicalmente modificado.
De outra forma, se nossa definição de esporte o afirmasse como uma prática que
subordina os jogos a uma forma de organização racional, estaríamos, de certo modo,
sugerindo uma vinculação entre esporte e razão. Pois, nesse caso, alguém que avalie a
razão algo positivo, um instrumento de emancipação humana, tenderia, também por
coerência a essa definição, a avaliar o esporte nesses mesmos termos.
Para os propósitos de agora, não interessa tanto discutir em que medida essas defi-
nições hipotéticas são ou não pertinentes. São apenas definições hipotéticas, embora,
como veremos nas próximas seções, com semelhanças com propostas de interpreta-
ção que de fato existem entre as teorias do esporte. De todo modo, o objetivo aqui é
apenas o de assinalar que uma forma específica de definir esporte tem uma série de
implicações sobre a maneira de conceber tal fenômeno, bem como sobre a forma de
se relacionar com a sua prática. Nesse sentido, vejamos algumas maneiras pelas quais
se tem definido este fenômeno.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Para Valter Bracht (2003), “o esporte moderno refere-se a uma atividade corporal
de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultural européia por
volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo” (p. 13).
De outra forma, Ronaldo Helal (1990) afirma que “O esporte é qualquer competição
que inclua uma medida importante de habilidade física e que esteja subordinada a
uma organização mais ampla que escape ao controle daqueles que participam da ação
(sejam eles jogadores ou torcedores)” (p. 28)

112
Um dos elementos que se destaca nessas definições de Bracht e de Helal é a di-
mensão ou o caráter competitivo do esporte. Ou seja, para estes autores, o esporte é,
fundamentalmente, uma atividade de competição.
Tal destaque pode orientar decisivamente a maneira pela qual percebemos e nos
relacionamos com o esporte. Pois para alguém que enxergue a competição como algo
natural e inevitável na vida em sociedade, o esporte poderia parecer um instrumen-
to positivo e desejável, capaz de fortalecer valores e capacidades importantes para a
vida nessa sociedade (competitiva, afinal). Por outro lado, para alguém que enxergue
a competição como algo nocivo à vida em sociedade, um elemento que opõe os seus
membros uns aos outros, talvez olhasse para o esporte como algo a ser substituído
por uma prática alternativa, com mais condições de disseminar valores e disposições à
atividade cooperativa – e não competitiva. Na Educação Física, compreensões como
esta última já serviram de justificativa para a elaboração de propostas pedagógicas.
Nomeadamente, os chamados “jogos cooperativos”, que têm no trabalho de Fábio
Broto (veja o Quadro 1) seu principal representante, propõe que jogos esportivos
sofram alterações e modificações em suas regras no sentido de atenuar a sua dimen-
são competitiva e reforçar a cooperativa. Assim, uma partida de voleibol, diferente das
regras convencionais, deveria propor que ambas as equipes tentassem trocar o maior
número de passes possíveis, ao invés de tentar fazer a bola cair na quadra adversária.
Dessa forma, elas estariam cooperando entre si, ao invés de competindo.
Por volta do final da década de 1980 e 1990, aproximadamente, inicia-se no Brasil
um processo de apresentação de jogos esportivos com regras adaptadas como estra-
tégia possivelmente capaz de diminuir atitudes agressivas, ao mesmo tempo em que
estimula o trabalho coletivo e cooperativo. A alteração das regras desses jogos preten-
dia, explicitamente, evitar a eliminação dos participantes, estimulando a criatividade e
o convívio colaborativo. Tratava-se claramente de uma reação a tendências sociais que
eram percebidas e avaliadas como excessivamente individualistas.
Tal abordagem metodológica pressupõe a possibilidade de transferência da apren-
dizagem em situações de jogos para a vida como um todo. Assim, o aprendizado de
valores e de uma ética, nesse caso, cooperativa, seria, em tese, posteriormente incorpo-
rado pelos alunos em situações além do jogo.
Os livros de Fábrio Brotto tornaram-se um dos principais representantes das no-
vas propostas, que pouco a pouco evoluiu para a idéia de uma “pedagogia da coo-
peração”, para além da esfera restrita dos jogos ou das aulas de Educação Física (ver
BROTTO, 2001). Em 2001, atualmente com apoio da Unesco, foi criada a “Revista
Jogos Cooperativos”, cuja missão seria, de acordo com apresentação disponível no site
TEORIAS DO ESPORTE

da publicação:

Tornar a Pedagogia da Cooperação acessível ao maior número possível de


educadores do Brasil, para que o exercício dos Jogos Cooperativos facilite

113
uma mudança de modelos de ver e sentir o mundo, onde cada vida humana
seja dedicada à realização e ao aprimoramento pessoal, em um ambiente de
harmonia, paz e confiança mútua (Disponível em: http://www.jogoscoope-
rativos.com.br/).

Quadro 1 - Jogos Cooperativos

Por volta do final da década de 1980 e 1990, aproximadamente, inicia-se no Brasil


um processo de apresentação de jogos esportivos com regras adaptadas como
estratégia possivelmente capaz de diminuir atitudes agressivas, ao mesmo tempo em
que estimula o trabalho coletivo e cooperativo. A alteração das regras desses jogos
pretendia, explicitamente, evitar a eliminação dos participantes, estimulando a criati-
vidade e o convívio colaborativo. Tratava-se claramente de uma reação a tendências
sociais que eram percebidas e avaliadas como excessivamente individualistas. Tal
abordagem metodológica pressupõe a possibilidade de transferência da aprendiza-
gem em situações de jogos para a vida como um todo. Assim, o aprendizado de va-
lores e de uma ética, nesse caso, cooperativa, seria, em tese, posteriormente incorpo-
rado pelos alunos em situações além do jogo. Os livros de Fábrio Brotto tornaram-se
um dos principais representantes das novas propostas, que pouco a pouco evoluiu
para a idéia de uma “pedagogia da cooperação”, para além da esfera restrita dos jo-
gos ou das aulas de Educação Física (ver BROTTO, 2001). Em 2001, atualmente
com apoio da Unesco, foi criada a “Revista Jogos Cooperativos”, cuja missão seria, de
acordo com apresentação11 disponível no site da publicação: Tornar a Pedagogia da
Cooperação acessível ao maior número possível de educadores do Brasil, para que
o exercício dos Jogos Cooperativos facilite uma mudança de modelos de ver e sentir
o mundo, onde cada vida humana seja dedicada à realização e ao aprimoramento
pessoal, em um ambiente de harmonia, paz e confiança mútua.

(Disponível em: http://www.jogoscooperativos.com.br/).

O sociólogo George Magnane (1969) foi outro que já propusera sua própria defi-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

nição para esporte. Segundo o autor, o esporte seria “Uma atividade do lazer cuja pre-
dominância é o esforço físico, participando simultaneamente do jogo e do trabalho,
praticado de maneira competitiva, comportando regulamentos e instituições específi-
cas, e suscetível de se transformar em atividade profissional” (p. 71).
Magnane, portanto, também afirma o esporte como sendo uma prática realizada
de maneira competitiva. Além disso, o sociólogo destaca o esporte como atividade
de lazer, embora às vezes possa transformar-se em atividade profissional, como ele

114
mesmo sublinha mais adiante. O esforço físico é outra dimensão apontada como
predominante, o que significa que não é a única dimensão a definir o esporte, embora
sobressaia-se. Nessa definição, jogos de tabuleiro cuja exigência corporal é notadamente
menor, como o xadrez, por exemplo, talvez também pudessem ser entendidos como
esportes. Por último, cita-se ainda a presença de instituições específicas, isto é, clubes,
federações, confederações, cuja existência se justifica, especificamente, para organizar as
atividades esportivas. Veremos na próxima seção que esta é uma caracterização teórica
bastante importante para os debates sobre o esporte.
O francês George Hebert (apud. POCIELLO, 1995), que se notabilizou por ter
criado um método de treinamento físico chamado “Método Natural”, que influenciou
bastante a Educação Física no Brasil e em outros países, propôs uma definição, só que
um pouco diferente. Para ele:

O esporte é toda forma de exercício ou de atividade física que tem como alvo
a realização de uma performance e cuja execução repousa essencialmente so-
bre a idéia de luta contra um elemento definido, uma distância, uma duração,
um obstáculo, uma dificuldade material, um perigo, um animal, um adversá-
rio, e, por extensão, contra si mesmo (p. 38).

Essa definição é interessante porque desloca a ênfase na competição para uma


ênfase na luta, o que a torna sensivelmente mais abrangente (o que não significa que
é melhor ou mais adequada, bem entendido). Nesse caso, ele dizia, a luta contra qual-
quer elemento definido pode ser definida como esporte. Por exemplo, uma pessoa
que corre sozinha ao redor de um parque está praticando esporte? Se entendermos
esporte como competição, provavelmente diríamos que não. No entanto, se enten-
dermos esporte tal como sugere George Hebert, talvez disséssemos que sim, pois essa
pessoa, embora não esteja propriamente competindo, está lutando contra certos ele-
mentos: os seus próprios limites por exemplo.
Logo se vê que muitas formas de definir-se o esporte têm sido sucessivamente
apresentadas. Não há consenso ou unanimidade a esse respeito. Em geral, além da
provisoreidade intrínseca às conclusões científicas, as contingências sócio-históri-
cas condicionam a variedade de definições. São situações sociais e circunstâncias
históricas específicas que de certo modo determinarão a validade ou invalidade de
determinada definição. Trata-se mesmo de uma questão de conveniência, isto é,
para algumas situações, tal conceito pode mostrar-se mais adequado do que para
outras. Uma definição não necessariamente se aplica irrestritamente a todas as situ-
TEORIAS DO ESPORTE

ações. Importa, portanto, saber identificar as circunstâncias que favorecem ou difi-


cultam o uso de determinado conceito.
Eu mesmo, quando realizava junto com o Professor Edmundo Alves Junior
uma pesquisa sobre os sentidos da prática de esportes na natureza no Rio de Janeiro

115
precisei, de alguma forma, especificar com mais precisão o que entediamos por
esporte naquela ocasião. Conforme anotamos:

O início desta pesquisa, como acontece freqüentemente, deu-se através


de uma fase exploratória. Tateávamos as melhores maneiras de iniciar uma
abordagem, permitindo que o próprio contato com o universo cultural que
visávamos apresentasse questões. Sabíamos apenas que nosso interesse estava
centrado na compreensão dos significados assumidos contemporaneamente
por práticas esportivas desenvolvidas em ambientes naturais na cidade do
Rio de Janeiro. Para resumir, agrupávamos esse conjunto de modalidades sob
o conceito de esportes na natureza.

Precisávamos então estabelecer quantas e quais eram as modalidades desse


tipo que se faziam presentes na cena esportiva carioca para, finalmente,
darmos início a algum tipo de investigação mais sistemática. Nesse momento,
deparamo-nos com questões aparentemente elementares que não havíamos
cogitado até então: Quais modalidades afinal poderiam ser consideradas
como sendo “desenvolvidas em ambientes naturais?” Vela, surfe, remo, vôlei
de praia, natação em mar aberto, vôo livre, rafting, montanhismo, submeter-
se-iam todas a uma análise conjunta? Integrariam um mesmo fenômeno
social? Responderiam a um mesmo conjunto de circunstâncias históricas?
Estabeleceriam, de fato, relações simbólicas entre si? Seria adequado tentar
elucidá-las com um mesmo modelo explicativo? Eram todas questões que
precisaríamos responder preliminarmente.

Tínhamos de detalhar o que estávamos chamando realmente pelo nome


esportes na natureza (DIAS; ALVES JUNIOR, 2007, p. 19).

Em linhas gerais, esboçamos, ao menos provisoriamente, o que estaríamos con-


siderando esportes e, mais especificamente, esportes na natureza naquele trabalho.
Seguindo a reflexão em outras pesquisas, novos problemas foram se colocando, bem
como nosso entendimento sobre o assunto foi se ampliando. Assim, tentei formalizar
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

um conceito de esporte.

Um conjunto de práticas ou modalidades que correspondem a um jogo regu-


lamentado, assentado na proeza física e em que níveis variáveis de seriedade e
ludicidade, cooperação e competição, amadorismo e profissionalismo, inter-
vêm simultaneamente,variando de acordo com a especificidade da atividade,
mas sem nunca escapar a esse esquema geral (DIAS, 2007, p. 27).

116
O exemplo serve apenas para ilustrar que talvez, durante o trabalho com
Educação Física, você também precise pensar sobre a extensão ou a validade dos
conceitos de esporte. Em situações assim, quais conceitos são mais adequados para
pensar o planejamento pedagógico de uma escola? Quais os que melhor respondem
às intenções educativas da instituição ou do professor?
Todavia, a tentativa de definição do fenômeno esportivo não é apenas um traba-
lho de nomeação. Ao contrário, no esforço de criar um conceito adequado a deter-
minadas situações, procura-se, além de avaliar em profundidade as circunstâncias
envolvidas nessas situações, refletir sobre as características teóricas e sociais mais
marcantes na prática esportiva. Nesse sentido, a definição conceitual pressupõe
uma análise rigorosa a respeito daquilo que se pretende definir. Dito de outro modo,
o processo de definição ocorre pari passu com a própria dinâmica de teorização, a
tal ponto que é quase impossível distinguir os dois momentos. Assim, a constru-
ção de uma definição de esporte é, em certa medida, a construção de uma teoria
do esporte.

3. Características do Esporte

Um dos primeiros e mais repetitivos problemas relacionados ao estudo histórico de


qualquer acontecimento é a determinação das suas origens. Trata-se, na realidade, de
um tipo importante de problema teórico. Quando se iniciou tal prática ou proces-
so? Até onde podemos recuar para localizar suas origens? Aplique essas perguntas ao
fenômeno esportivo e saberá precisamente do que estamos falando. Quando os ho-
mens começaram a praticar esportes?
Interrogações desse tipo também se fazem presente no estudo do esporte. Nesse
caso, podemos identificar basicamente duas opiniões. De um lado, uma que compre-
ende o esporte como um conjunto de práticas típicas e específicas ao mundo mo-
derno; de outro, a opinião de que o esporte remonta a um passado longínquo, numa
prática, portanto, socialmente presente desde sempre.
É muito comum que se estabeleçam vínculos entre o esporte dos dias atuais
e práticas corporais de culturas mais antigas. Em épocas de Jogos Olímpicos, por
exemplo, são corriqueiras as referências aos Jogos da Grécia Antiga, com reportagens
e outras matérias jornalísticas enfatizando uma continuidade histórica entre esses
dois acontecimentos; separados cronologicamente por mais de 30 séculos.
Por outro lado, alguns teóricos do esporte enfatizam que os jogos olímpicos
TEORIAS DO ESPORTE

modernos foram concebidos apenas muito recentemente, em 1896, mais especifi-


camente, quando o francês Pierre de Coubertin, seguia os preceitos de uma ambi-
ência intelectual européia bastante encantada para com a cultura da Grécia antiga e
propunha o “resgate” de certas tradições, como as Olimpíadas. Nessa época, cidades

117
gregas Antigas como Olympia eram apreendidas como um “território sagrado em
um mundo governado por outros deuses que foram capazes de impor a paz graças
a trégua olímpica”, uma cultura dedicada ao “amor pela pátria, a consagração a arte e
ao empenho na consecução da felicidade”, conforme disse Ernst Curtius, professor
na Alemanha, por volta de 1852. Era esse o ambiente intelectual em que vivia Pierre
de Coubertin. Portanto, mais do que uma efetiva transmissão através dos séculos, a
relação entre as Olimpíadas do passado e do presente, isto é, entre as Olimpíadas do
mundo antigo e as do mundo moderno seria, de acordo com essa perspectiva, resul-
tado de uma idealização. Os dois tipos de Jogos Olímpicos, afinal, têm muito pouco
em comum, exceto, talvez, o nome – que os Modernos inspiraram-se nos Antigos.

Imagem 1. Do lado esquerdo, fotografia da cerimônia de entrega de medalhas nas Olimpíadas de Inverno,
em Vancouver, Canadá, 2010. Na categoria individual da patinação artística, a sul-coreana Kim Yu-Na, a
japonesa Mao Asada e a canadense Joannie Rochette receberam, respectivamente, as medalhas de ouro,
prata e bronze (Disponível em: http://www.life.com/image/97082239). Do lado direito, pintura retratando
jogos e competições da Grécia Antiga, datadas desde, aproximadamente, os anos 1.600 a.C (Disponível
em: http://tiagotrankera.blogspot.com/2010/10/olimpiadas-na-grecia-antiga.html). Existiria continuidade
histórica entre as duas práticas?

A contemporaneidade de muitos símbolos olímpicos é com freqüência


destacada como prova de que os jogos modernos não têm, de fato, relações históricas
profundas com os jogos da Antiguidade, como a própria mitologia olímpica atual faz
questão de fazer acreditar. A bandeira olímpica, por exemplo, foi criada por Pierre
de Coubertin, idealizador dos jogos modernos, apenas em 1913, sendo apresentada
apenas nos jogos de Amsterdã, em 1928, por causa da interrupção decorrente da
Primeira Guerra. A tocha olímpica, do mesmo modo, foi um símbolo criado por
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Carl Diem nos jogos de 1932, em Los Angeles, os mesmos que criaram também
a cerimônia de entrega de medalhas no pódio com folhas de louro na cabeça dos
atletas (ver LIMA; MARTINS; CAPRATO, 2009).

1. Sobre as características do esporte atribuídas por Guttman, ver GUTTMAN, 1978. Nenhum
de seus trabalhos fora traduzido para o português. Para um artigo que comenta sinteticamen-
te parte de suas idéias, c.f. PILATTI, 2002.

118
Pesquisas como as de Alen Guttman (1978) estão entre as que corroboram o
vínculo específico entre a prática de esportes e o mundo moderno.1 Segundo esse
autor, as características assumidas pelos jogos no contexto moderno foram as razões
pelas quais tais práticas se transformaram em esporte. Antes disso, os jogos existiam
e eram praticados, mas de forma muito diferente. Não haveria divisão do trabalho
entre os jogadores, isto é, não havia especialização de funções. No esporte, de outra
forma, cada jogador tem uma função específica: o goleiro, o defensor, o atacante e
assim por diante. No mesmo sentido, Guttman destaca que o esporte operou uma
distinção entre o praticante e o espectador, o que segundo ele não ocorria em jogos
pré-modernos. Em terceiro lugar, continua o autor, os esportes desvincularam sua
prática de qualquer fundamento religioso, secularizando-o. Nos jogos pré-modernos,
diferentemente, partidas de vários tipos eram organizadas no contexto de rituais
religiosos. Além disso, os jogos modernos, isto é, os esportes experimentam grande
nível de racionalização, o que não necessariamente ocorria em jogos pré-modernos.
A complexa organização burocrático-administrativa típica ao esporte, com muitas
entidades, associações, federações, clubes e etc., seria uma amostra desse aspecto,
bem como a presença de regras escritas – o que realmente é uma peculiaridade dos
esportes. A fixação de regras e a definição de condições de igualdade seria outro aspecto
distintivo dos esportes com relação aos jogos pré-modernos. Nesses últimos, regras
variavam ao sabor das circunstâncias, enquanto que as equipes que se confrontavam
não necessariamente tinham o mesmo número de jogadores Além disso, no esporte

Quadro 2 - Principais caracterísitcas


do esporte segundo Guttman

Secularidade
Igualdade
Especialidade
Racionalização
Burocratizaçao
Quantificação

moderno testemunhou-se a tendência à quantificação de marcas e resultados – o que


a invenção do cronometro em 1730 sinaliza de forma bastante explícita.
TEORIAS DO ESPORTE

A própria história do registro da palavra esporte, segundo se argumenta, poderia


ser tomada como indício da especificidade moderna desse tipo de prática. Ou seja, o
fato da palavra esporte só ter entrado em uso social corrente a partir de determinado
momento histórico, seria prova de que apenas a partir desse momento pode-se dizer

119
que existia prática esportiva, afinal, antes disso, as pessoas não poderiam praticar algo
que sequer seus vocabulários teriam palavras para designar. Essa história remonta ao sé-
culo XV, quando se inicia o registro da palavra inglesa sport, originária do francês antigo,
disport, por sua vez de origem latina deportare, que significava, basicamente, “enviar para
fora”, “levar para longe dos negócios”, “diversão”. De certo modo, tal palavra, desde essa
época, assume sentidos mais ou menos semelhantes ao sentido de “ócio” ou de “lazer”.
No entanto, com o tempo, o significado de tais palavras iria se especializar, tornando-se
cada vez mais diferentes entre si. No século XVI, esporte designava um “Jogo que en-
volve atividade física”, “representação teatral”, performance musical”. No século seguinte,
por volta dos anos 1712 e 1728, de acordo com o dicionário de língua portuguesa de
Raphael Bluteau, “disporto”, significava “divertimento”. Por volta de 1813, no dicionário
do brasileiro Antonio de Moraes Silva, "desporto" significa “divertimento”, mas também
“recreação” e “deporte”. Já em 1945, o significado atribuído ao vocábulo “desporto”, o de-
signava como uma “prática sistemática de exercício físico”.
De outra forma, no entanto, pesquisadores como Fábio Lessa tem questionado essas
interpretações. Lessa, que é um historiador da Grécia Antiga, afirma que, realmente, a
Antiguidade desconhecia o vocábulo esporte. No entanto, segundo ele, é perfeitamente
possível que essas culturas tenham teorizado a respeito de suas práticas em termos seme-
lhantes aos que nós definimos através do conceito de esporte. Assim, nas palavras do his-
toriador, “se o termo esporte era desconhecido pela Antigüidade, o mesmo não se pode
afirmar para o seu conteúdo. Os gregos antigos, assim como os romanos, certamente
vivenciaram o conteúdo que nós teorizamos como esporte” (ver LESSA, 2008, p. 4).
De maneira mais abrangente, proposições teóricas como as de Alen Guttman tem
sido questionadas por opor excessivamente esportes modernos e jogos pré-modernos,
como se uma fissura insuperável tivesse ocorrido entre os tipos de prática corporal. Pois
ainda que o esporte encerre em si muitas singularidades, que apenas se fizeram conhecer
no contexto das sociedades modernas, não parece adequado afirmar que não existem
heranças e continuidades legadas pelos jogos do passado. Em outras palavras, os esportes,
ao mesmo tempo em que inauguram nos jogos características desconhecidas até épocas
recentes, preservam, em alguma medida, características mais antigas. A presença às vezes
ostensiva de elementos religiosos nos campos e quadras de esporte é um aspecto nesse
sentido. O futebol, em especial, é uma modalidade reconhecidamente envolvida por at-
mosferas de magia e religiosidade. São comuns os casos de jogadores, técnicos, dirigentes
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

e torcedores que recorrem a auxílios sobrenaturais na esperança de obter auspiciosos


resultados esportivos. A utilização de talismãs, a realização de orações coletivas antes do
início das partidas, além de uma variedade de outras superstições como usar a mesma
roupa, entrar em campo com o pé direito ou realizar o sinal da cruz antes de momentos
decisivos são situações que evidenciam as relações entre a religião e o ato esportivo até
os dias de hoje. Os Atletas de Cristo constituem um exemplo talvez mais enfático sobre
essa presença e atualidade.

120
Segundo Reinaldo Aguiar, que realizou uma pesquisa sobre o assunto, esses atle-
tas acreditam encontrar na religião cristã um meio capaz de superar as várias incertezas
da profissão, desde o risco constante de lesões até as incertezas dos resultados (veja no
Quadro 3 um fragmento do artigo de Aguiar). Dessa maneira, eles acabam por ado-
tar uma explicação religiosa para a prática do esporte. Os Atletas de Cristo, além disso,
assumem o papel de propagadores da fé cristã. Nesse contexto, o universo esporti-
vo fornece metáforas e vocabulários para a tentativa de evangelização de novos fiéis.
Uma reportagem do Jornal Atletas de Cristo citada por Aguiar fornece uma ilustração
do processo:

Você está cansado de lidar com um técnico que só é desonesto com você
e quando você menos espera, dá-lhe uma rasteira? Deixe Deus ser o seu
técnico. Ele só vai tratar-lhe com sinceridade e fará tudo para o seu bem.
Você está cansado de tanta conversa para assinar um contrato, e só por seis
meses? Assine um contrato com Jesus, sem muito blá-blá-blá e por toda a
eternidade. Você está cansado porque só consegue, no máximo, ficar no
banco de reservas? Saiba que no nosso time todos são titulares absolutos,
pois cada um tem uma função específica para ganhar almas [...] Você está
cansado porque ninguém mais lhe dá o seu devido valor? No esquema
tático de Deus você tem uma função especial: dar testemunho e falar de
Cristo para os seus colegas de profissão. Você está cansado de jogar num
time que não ganha dos adversários? Venha jogar no time de Cristo que
vence todas, inclusive a morte ( Jornal Atletas de Cristo, n. 52, p. 2, apud.
(AGUIAR, 2006).

Quadro 3 - Religião e Cultura Popular: o caso dos Atletas


de Cristo por Reinaldo Aguiar

“[...] A origem dos Atletas de Cristo (ADC) remonta a 1978, com um então atleta do
Clube Atlético Mineiro, João Leite. Depois de sua experiência de conversão surgiu a
preocupação de propagação de sua fé entre os seus companheiros de profissão. Uniu-
se com um ex-jogador de basquete amador, Abrahão Soares, que na época dirigia a
Mocidade para Cristo (MPC), com o intuito de “começar um trabalho de testemu-
nho e de evangelização no meio esportivo, alcançando vidas para Cristo”. O grande
público começou a perceber a sua presença quando exemplares da Bíblia eram distri-
TEORIAS DO ESPORTE

buídos aos adversários, geralmente no início das partidas.


Em 1981, com a criação de um grupo de apoio formado com gente suficiente
para suportar o nascimento de uma instituição é que o nome "Atletas de Cristo" passa
a denominá-los. Constam como fundadores de ADC no Brasil, João Leite da Silva

121
Neto, seu primeiro presidente; Baltazar Maria de Moraes Jr., José Baltazar de Olivei-
ra, Hélio Delvo Vilela, Hildo Zuge, Mirian Gomes Soares, Rita Maria Campos Leite
Rocha e Abrahão Soares da Silva, George Foster, José Francisco Veloso, Ivênio dos
Santos, Manfred Grellert e. Dervy Gomes de Souza.
Em janeiro de 1983 foram criados os dois primeiros Grupos Locais de ADC:
um em Curitiba, sob a liderança de Hildo Zuge e um em Salvador, tendo como líder
Mário Lima. Em 1984 surgiu o Grupo do Rio de Janeiro, sob a liderança do Pr. Eze-
quiel Batista da Luz (Zick). Em 1985 surgiu o Grupo de São Paulo, com o trabalho do
Johnny Monteiro. Depois vieram os grupos em Uberlândia, Joinville, Bauru e Recife.
Atualmente há mais de cento e vinte Grupos Locais espalhados pelo Brasil.
A partir de março de 1986, o Diretor Executivo de ADC passou a ser Alex Dias
Ribeiro (expiloto de Fórmula 1), o qual passou a ser um tipo de ideólogo de ADC.
O jornal de ADC é um periódico mensal, com tiragem de cerca de 35.000 exempla-
res. Os ADC reúnem-se com freqüência em torno de seu Congresso Anual, sempre
no mês de dezembro. Os produtos da grife Atletas de Cristo, que inicialmente se resu-
miam a adesivos, atualmente contam com camisetas, jaquetas, bonés, e várias outras
peças que divulgam sua imagem e ideal. A organização está ligada aos trabalhos
da ISC – International Sports Coalition, entidade fundada em 1982 e que congrega
os ministérios esportivos que funcionam ao redor do mundo, priorizando megaeven-
tos, como Olimpíadas e Copa do Mundo. Hoje ADC conta com mais de seis mil
atletas brasileiros, atuando no Brasil e em vários de países, como Argentina, EUA,
Portugal, Espanha, França, Itália, Turquia, Japão etc.
Institucionalmente, os ADC se definem como um ministério interdenominacio-
nal evangélico, aceitando como legítimas todas as igrejas evangélicas. Isto significa que
ADC não impõe e nem tolhe a participação de seus filiados em qualquer denomina-
ção, deixando a cargo de cada atleta a escolha da igreja que desejar. Em razão disso, o
movimento não se posiciona formalmente em relação às diferenças doutrinárias e aos
pontos polêmicos existentes no campo evangélico [...]”.

Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/058/58esp_aguiar.htm


LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Claude Rivière (1997) foi outro pesquisador que assinalou a existência de algu-
mas correspondências entre o esporte e a religião. Segundo ele, as inúmeras práticas
mágicas ao redor do universo esportivo criam uma atmosfera que, de certo modo, ser-
ve de metáfora religiosa. Além disso, Rivière cita ainda os rituais que acontecem antes,
durante e depois das exibições, criando uma identificação coletiva entre os envolvidos
(atletas e torcedores), como as situações apropriadas de levantar e sentar nos estádios.

122
Em terceiro lugar, o autor menciona o fato da prática esportiva, tal como a religião,
acontecer em “lugares consagrados ao culto” (o estádio, o ginásio, o campo, a piscina),
ademais, em circunstâncias onde a maioria dos envolvidos deverá vestir roupas litúrgi-
cas próprias para a ocasião (o uniforme do árbitro, a batina do padre, etc.).
Antes destes, talvez de maneira pioneira, Johan Huzinga (2001) também estabe-
lecera relações entre o jogo e a religião, mesmo no contexto das sociedades modernas.
Segundo este autor:

Uma das características mais importantes do jogo é sua separação espacial


em relação à vida quotidiana. É-lhe reservado, quer material ou idealmente,
um espaço fechado, isolado do ambiente quotidiano, e é dentro desse espaço
que o jogo se processa e que suas regras têm validade. Ora, a delimitação de
um lugar sagrado é também a característica primordial de todo ato de culto
[...] Quase todos os rituais de consagração e iniciação implicam um certo iso-
lamento artificial tanto dos ministros como dos neófitos [...] De um ponto de
vista formal, não existe diferença alguma entra a delimitação de um espaço
para fins sagrados e a mesma operação para fins simples de jogo. A pista de
corridas, o campo de tênis, o tabuleiro de xadrez ou o terreno da amarelinha
não se distinguem, formalmente, do templo ou do círculo mágico (p. 23).

A secularidade dos esportes modernos, portanto, não é uma característica abso-


luta ou inquestionável. Em varias situações, como vimos, sua prática está imersa em
rituais de ordem religiosa. Por outro lado, isto não quer dizer que o esporte atual te-
nha, então, características idênticas aos jogos praticados por outras épocas e culturas.
De todo modo, a questão religiosa é apenas um exemplo das dificuldades em se ca-
racterizar consensualmente o esporte. Outros aspectos da sua teorização poderiam
ser problematizados.
Como se vê, tal como as formas de definição conceitual do esporte, aqui também
existem divergências. O principal móvel para esses desacordos está, basicamente,
na dificuldade de se determinar com precisão a justa medida das diferenças ou das
semelhanças entre esporte e jogos pré-modernos. Isto é, até que ponto as eventuais
similaridades do esporte com outras práticas corporais autorizaria definir todas as
práticas corporais através do conceito de esporte? Jogos de bola como os praticados
pelos incas podem ser chamados de esporte? Inversamente, até que ponto eventuais
dessemelhanças autorizariam uma conceituação diferente para esses jogos? Em ou-
tras palavras, o esporte seria ou não um fenômeno universal? O esporte seria, afinal,
TEORIAS DO ESPORTE

uma prática realizada por todos os seres humanos ou apenas pelos seres humanos
de algumas culturas? Do ponto de vista das teorias do esporte, são essas as questões
suscitadas por debates como àqueles sobre a presença ou ausência da religião no
âmbito esportivo.

123
Um dos problemas – mas certamente não o único, nem o mais importante – é a
crença de que o fenômeno esportivo manifesta-se de uma maneira homogênea. Atual-
mente, muitos estudos – sobretudo de antropólogos – têm destacado que existe uma
variedade de maneiras de se praticar esportes. Os esportes de alto rendimento, subor-
dinados a uma organização institucional formal, com regras fixas e pré-estabelecidas
representa apenas uma dessas muitas maneiras de praticá-lo. O problema, portanto,
não é propriamente o de criar uma teoria do esporte ou identificar suas características
principais, mas sim o de tentar fazê-lo através de uma única teoria, tomando como
modelo uma, dentre muitas formas de manifestação do fenômeno esportivo. Pois se
os esportes praticados durantes os eventos de alto nível assumem certas característi-
cas, como a padronização mundial de regras, outras formas de prática, como o futebol
de várzea, por exemplo, tem seus próprios princípios de organização, que diz respeito,
entre outras coisas, a improvisação e variação regional nas regras, no tamanho do cam-
po ou no número de jogadores. Vale fazer tabelinha com a parede? Qual a duração das
partidas? Quantos jogadores irão compor as equipes? Qual a altura máxima permitida
na validação de um gol, quando as traves são improvisadas com pedras, chinelos ou
uma variedade de outros objetos? Geralmente tudo isso varia bastante de uma região
para outra, de um bairro para outro, às vezes de uma rua para outra (Sobre a variedade
de formas do futebol, veja o quadro 4, com texto de autoria de Álvaro Cabo).
Não será nosso objetivo aqui chegar a um consenso sobre a época mais adequada
para localizar as origens históricas do esporte ou sobre o grau de influência desempe-
nhado pelos jogos antigos na atual conformação dos esportes. Nossa finalidade foi tão
somente apresentar as principais interpretações possíveis a esse respeito. Todavia, a
despeito das divergências sobre esse assunto, podemos concluir, assim mesmo, que a
definição de esporte adotada é fator determinante. Assim, se adotarmos, por exemplo,
uma definição que conceitua esporte como qualquer forma de treinamento ou edu-
cação do corpo, seria correto e coerente enxergar nas práticas dos ginásios gregos ou
nos jogos dos povos pré-históricos uma forma de prática esportiva. Se, de outra forma,
adotarmos uma definição que conceitua esporte como algo específico, teríamos, cer-
tamente, uma definição menos abrangente, circunscrevendo esse fenômeno apenas à
uma cultura em particular, que é a nossa, no caso.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Quadro 4 - Retrospectiva sob outra perspectiva -


registros futebolísticos peculiares em 2009
por Alvaro Cabo

“Com o findar de mais um ano diversos artigos jornalísticos, programas tele-


visivos, mensagens de e-mails e até conversas de botequim versam sobre uma

124
pseudo-retrospectiva dos principais acontecimentos daquele ciclo que se encerra.
No âmbito esportivo, isto fica muito claro, principalmente nos veículos e canais espe-
cializados como o Jornal o Lance, e as emissoras de tv a cabo SPORTV e ESPN. Neste
último mês me recordo por exemplo de um especial com 180 gols internacionais, fato
que apesar de toda a minha paixão pelo futebol me deixou cansado. Poderia seguir o ób-
vio e relatar nesta página os melhores momentos de partidas como a final da Copa das
Confederações na África do Sul vencidas pelo Brasil sobre os Estados Unidos, a partida
final do brasileirão na qual o Flamengo derrotou dramaticamente o Grêmio, sagrando-
-se hexacampeão brasileiro, ou a final do Mundial Interclubes vencido pelo Barcelona
com gol de peito do argentino bola de ouro da FIFA Lionel Messi na prorrogação sobre
o Estudiantes de la Plata do craque Verón, porém acredito que muitos amantes da bola já
estejam também enfadados e devidamente informados sobre esses “jogos para sempre”.
Isto posto, pretendo nessas linhas registrar visões pitorescas do futebol que presen-
ciei em viagens ao longo de 2009, momentos únicos de amor pelo esporte mais popular
do mundo no Chile, Brasil e Argentina, onde o prazer de estar com uma bola estava
acima do prestígio de ser campeão, da motivação econômica ou da busca de uma vaga
para uma Copa do Mundo.
Futbolito na Ilha de Páscoa. Isolada no Oceano Pacífico, a 3.720 km do Chile e
4.025 do Tahiti está localizada este pequeno paraíso que desde 9 de setembro de 1888
foi incorporado politicamente ao Chile apesar da sua cultura milenar Rapa Nui e da ní-
tida influência polinésia nos seus habitantes.
Ilha vulcânica de impressionantes moais (enormes esculturas de pedras), do mito
do Homem Pássaro, de ótimas ondas, da festa cultural do Tapati com um povo bron-
zeado e hospitaleiro que sobrevive atualmente da pesca, artesanato e turismo, o futebol
também está presente nos domingos em um campo esburacado no centro da vila de-
fronte a Praia de Hanga Roa.
No mês de Janeiro, quando visitei a ilha estava sendo disputado um torneio de Fut-
bolito, como o soçaite brasileiro com 6 na linha e um goleiro. Várias partidas de 20 minu-
tos são realizadas no campão, desde às 14:00 até o entardecer, pois o mesmo é dividido
em dois com balizas no meio. Muitos jovens e turistas assistem as disputas e no final do
dia rola um grande peladão onde todos podem participar. O torneio dura 4 semanas e a
final ocorre junto com o Tapati, que é um evento cultural que mobiliza toda a ilha.
É curioso que no ano de 2009 ocorreu a primeira partida oficial na ilha. Pela Copa
do Chile o tradicional Colo-Colo venceu um selecionado de nativos por 4×0, consti-
tuindo assim, apesar da goleada sofrida, em um marco histórico para o futebol rapa nui.
TEORIAS DO ESPORTE

Fortaleza em julho. Pesquisadores do esporte brigam com a bola nas areias da Praia de
Iracema. Após uma frutífera semana de debates e discussões no Simpósio Temático
de História do Esporte na ANPUH/NACIONAL realizada na capital cerarense uma

125
pelada na praia de “eternos” 20 minutos encerra as atividades. Alguns dos integran-
tes deste blog como Maurício Drumond, Ricardo Bull, Luiz Carlos Santana, Rafael
Fortes e Leonardo Bahiense, além do cronista que vos escreve suaram bastante para
empatar em 1 a 1 com o combinado do Paraná/São Paulo
Fim do Mundo. Na Terra del Fuego, cidade de Ushuaia, canal de Beagle, antiga
colônia penal e importante porto de saída para a Antártida, presenciei em outubro
a realização de um torneio abrasador, a Copa da Patagônia argentina. Fui informado
no campo que o campeão se classifica para Série C do Campeonato Argentino pelo
técnico de uma das principais equipes da região,os “Cuervos del Sur”, cujo uniforme é
igual ao do San Lorenzo de Almagro.
Temperatura em torno de dois graus com muito vento. Estava retornando de
uma visita ao Parque Nacional da Terra del Fuego onde tinha nevado bastante, quan-
do avistei um campo e “locos por fútbol” em torno dele. Maluco também, desci do
ônibus do passeio que estava com minha esposa e acompanhei o primeiro tempo da
equipe dos funcionários do Município de Ushuaia que vestia o uniforme argentino
contra o time Arturo Pont formado por chilenos que vivem na região. A beleza da
localização do campo a beira da Bahia de Ushuaia cercada por montanhas nevadas
como o Glaciar Martial, o Cerro Godoy e o Cerro Roy é indescritível,  talvez a ima-
gem de uma jogada registre palidamente o momento.
Após uma caminhada na geleira com um grupo de turistas em um lugar incrível
percebi que uma das principais formas de lazer dos guias era disputar em uma peque-
na área um jogo de controle de bola com os pés misturando regras do tênis com o
vôlei. No momento que os turistas estão lanchando ou enquanto não chega um novo
grupo a principal diversão para muitos dos guias são essas acirradas disputas de mais
um jogo onde o amor a bola é o que predomina.
Assim sendo, enquanto a bola rolava nos estaduais, nas eliminatórias para a Copa
do Mundo da África do Sul, na Libertadores, no Brasileirão, Champions League e tan-
tos outros torneios nacionais e internacionais é importante lembrar que ela também
corre nas peladas de praia entre amigos, nos confins da Patagônia e até na distante e
isolada Ilha de Páscoa. Com certeza a pelota está em todo o Mercosul e em vários
locais inóspitos de todo o planeta”.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Disponivel em: http://historiadoesporte.wordpress.com

4. História da formação das teorias do esporte

Nesta seção, como o título anuncia, vamos estudar a história do processo de formação
das teorias do esporte. A Inglaterra foi o primeiro lugar em que a pratica esportiva

126
assumiu suas formas modernas, isto é, basicamente, as formas pelas quais até hoje
muitas modalidades são praticadas. Reparem que a maioria das modalidades esportivas,
com poucas exceções, tem sua história ligada à história da Inglaterra. O futebol, o rúgbi,
o turfe, o tênis, o atletismo, entre muitas outras, tiveram suas regras atuais criadas ou
no mínimo organizadas pela primeira vez na Inglaterra (veja neste trabalho a seção
“A sociologia figuracional e as teorias do esporte”). Seria interessante pensar os motivos
para esse pioneirismo inglês, bem como as razões pelas quais a disseminação mundial
dessas modalidades se tornou possível. No entanto, isto escapa em muitos aos limites
deste nosso material pedagógico.
Para os propósitos desta seção, interessa assinalar que as primeiras reflexões sobre
o esporte tiveram lugar, como era de se esperar, também na Inglaterra. Em 1796, Peter
Beckford lançara um pioneiro livro versando sobre caça a raposa. De certo modo, tal
iniciativa daria ensejo para outras publicações sobre esporte. Em 1812, Pierce Egan
lançaria um livro sobre pugilato. Caça a raposa e boxe, além do turfe e do iatismo, foram
algumas das primeiras modalidades a se conformar mais evidentemente nos moldes
de organização que até hoje caracterizam o que reconhecemos como esporte, o que
explica sua precoce presença em livros e outras publicações.
A medida, pois, que outras modalidades iam se desenvolvendo, livros, estudos
e reflexões sobre elas, em geral, iam também tendo vez. Em 1887 e 1889, Montagu
Shearman lançava seus livros sobre futebol, rúgbi e atletismo. Mais ou menos na
mesma época, final do século XIX, acadêmicos começavam, discretamente, a fazer
referência ao esporte em seus estudos. Em 1889, o economista Thorstein Veblen
trazia à luz seu hoje famoso livro intitulado A teoria da classe ociosa. Veblen destacava
uma série de atividades empregadas no tempo livre como estratégias de distinção
social por intermédio do consumo improdutivo. Segundo ele, nas sociedades
modernas industriais, a posse e exibição de luxo e riqueza é algo que confere
prestígio e status. Nesse contexto, a aquisição de habilidades como o conhecimento
de línguas, de músicas, de artes ou até mesmo a desinteressada prática de esportes
serviria como prova da capacidade pecuniária de quem exibia e ostentava essas
habilidades, na medida em que pressupunham a capacidade do indivíduo em dispor
de tempo, energia e dinheiro para adquiri-las e desenvolvê-las (VEBLEN, 1983).
Reparem que até hoje o movimento olímpico se declara oficialmente
amador, embora, na prática, as Olimpíadas tenham se tornado um grande
negócio profissional há muito tempo. Mesmo assim, não se admite nenhum tipo
de premiação em dinheiro para os atletas durante as Olimpíadas. Todavia, os
“nobres” ideais do amadorismo serviram historicamente como barreira para o
TEORIAS DO ESPORTE

acesso das classes populares à prática esportiva. Pois praticar esporte por amor e
por cavalheirismo é um privilégio de quem pode não se preocupar com dinheiro.
Os pobres, por outro lado, precisavam dedicar-se ao trabalho, ao invés do esporte.
Apenas quando esporte e trabalho se encontraram, quer dizer, apenas quando

127
esporte virou trabalho, profissionalizando-se, é que as classes populares tiveram
então condições de participar da sua prática.
Em 1904, o alemão Max Weber apresentava seu não menos famoso livro intitula-
do A ética protestante e o espírito do capitalismo. Weber, nesse livro, postulava que o surgi-
mento de uma organização econômica capitalista tinha relações (ou afinidades, para
usarmos um termo próprio de Weber) com a ética das religiões protestantes. Segundo
Weber, fora a construção da idéia de aumento da riqueza como dever religioso um dos
principais fundamentos para o surgimento do capitalismo. As doutrinas protestantes
teriam inaugurado um corolário religioso capaz de atenuar os preceitos da chamada
“Doutrina da Predestinação”. Dali em diante, a bíblia era interpretada no sentido de
destacar que a condição de eleito não era uma fatalidade, até porque, a motivação da
decisão divina não estaria acessível aos homens, de modo que nunca se saberia ao
certo quem seria ou não eleito ao Reino dos Céus. Ao mesmo tempo, a nova inter-
pretação protestante da bíblia destacava que Deus desejava um Reino de riqueza e
prosperidade, onde a abundância entre os homens serviria à glorificação da bondade e
justiça de Deus. Assim, o trabalho dedicado e disciplinado era uma espécie de serviço
a Deus, já que seu eventual resultado, a riqueza, era então uma forma de Louvá-lo. A
riqueza, por outro lado, era um sinal de que Deus favorecera aquele trabalhador, que
honrava Sua vontade. Logo, ainda que a salvação fosse sempre incerta, a condição ma-
terial e financeira na terra era um indício lógico da vontade de Deus.
O surgimento histórico dessa nova doutrina religiosa teria um amplo conjunto
de implicações sociais, inclusive, no que diz respeito ao esporte. Segundo anotara o
próprio Weber, o puritanismo protestante favorecia diversões de caráter mais racio-
nal, mais controlado, mais asséptico, algo a que o esporte, de certa forma, se prestaria
muito bem. Não por acaso, claramente na esteira dos acontecimentos mencionados
no parágrafo anterior, por volta de 1617, o rei James I publicou na Inglaterra a “Decla-
ração de Sua Majestade Real sobre os assuntos relacionados aos esportes permitidos”,
que seria reeditado algumas vezes nos anos subseqüentes. Tratava-se de uma tentati-
va clara de regulamentar racionalmente as formas de jogo e divertimento da época
(WEBER, 2003).
Pouco depois, só que de forma ainda mais sistemática, começariam a surgir tra-
balhos realizados por acadêmicos que tinham o esporte como principal interesse de
estudo. Foi o caso do livro Sport und Kultur, do alemão Steinitzer, lançado em 1910.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

Aproximadamente uma década depois, também na Alemanha, Risse publicaria outro


estudo sobre esporte, que pelo pioneirismo também se tornaria famoso.2 Essas foram
as primeiras iniciativas para refletir sobre o esporte de um ponto de vista propriamente
acadêmico, ou melhor, sócio-histórico. No início, o interesse pelo esporte não assumia
um caráter propriamente acadêmico, senão o de uma curiosidade diletante. Depois,

2. Sobre essas publicações, ver PILZ, 1999.

128
por volta do fim do século XIX, e ao longo das duas primeiras décadas do século XX,
no momento mesmo em que a idéia de uma ciência dedicada ao estudo da sociedade
se consolidava mais obviamente, intelectuais acadêmicos começavam a dedicar aten-
ção a este fenômeno. É o que poderíamos chamar, utilizando uma forma de classifica-
ção empregada por Juliano Souza e Wanderley Marchi Junior, de fase pré-histórica das
teorias do esporte (ver SOUZA, 2010). Depois disso, essas iniciativas se tornariam
pouco a pouco mais regulares, além de ganharem em profundidade teórica.
A partir da década de 1920, aproximadamente, sociólogos, sobretudo nos Estados
Unidos, ampliam seu interesse pelo tema do esporte. Por outra via, em 1938, o his-
toriador holandês Johan Huizinga publicaria seu clássico livro sobre os jogos como
elemento da cultura. Seu argumento, em poucas palavras, era que o jogo constituía
elemento básico da cultura, “uma das principais bases da civilização”, conforme suas
palavras (HUIZINGA, 2001, p. 8). Huizinga dizia que o jogo não encontra funda-
mento em qualquer elemento racional. O jogo não tem uma finalidade especial ou
uma razão. É algo realizado gratuitamente, sem a necessidade de uma utilidade. No
jogo, dizia Huizinga, só o próprio jogo importa. Trata-se, portanto, de uma “entidade
independente desprovida de sentido e racionalidade” (p. 21). De acordo com Huizin-
ga, era justamente essa característica fundamental do jogo que o habilitaria a ser ele-
vado como uma das “mais altas regiões do espírito”. Assim, pouco a pouco, cientistas
sociais iam percebendo a importância de práticas lúdicas para a ampliação do nosso
conhecimento sobre a sociedade.
Essas iniciativas poderiam ser chamadas de estágio transitório na formação das te-
orias do esporte (SOUZA, MARCHI JUNIOR, op.cit.). Pois somente a partir da dé-
cada de 1950, iniciativas para estudar sociologicamente o esporte ganhariam feições
mais ininterruptas, deixando de ser a ação individual de algum pesquisador isolado,
para transformar-se em ações organizadas e permanentes de grupos de pesquisado-
res. Em 1955, Gregory Stone publicava um estudo sobre o esporte nos Estados Uni-
dos. Em 1958, A. Natan lançava o livro Sport and society. No início dos anos 1960,
sociólogos como Anthony Giddens e Eric Dunning defendiam teses de doutorado
dedicadas especificamente à temática do esporte. Em 1963, Peter McIntosh publicava
seu livro intitulado Sport in society . No ano seguinte, na França, era a vez do sociólogo
George Magnane lançar Sociologie du Sport . Em 1965, seria criada, na Polônia, a Asso-
ciação Internacional de Sociologia do Esporte . Em 1966, esta mesma Associação lançaria
o primeiro periódico científico dedicado, especificamente, a temática do esporte: a
Revista Internacional de Sociologia do Esporte. Até ali, as pesquisas sobre esporte
eram poucas, e eram vinculadas através de periódicos mais gerais. Este momento, por-
TEORIAS DO ESPORTE

tanto, marca o período de institucionalização das teorias do esporte. É o momento em que


se consolida uma especialização no estudo do esporte no âmbito das Ciências Sociais.
Depois disso, autores, livros, associações e periódicos científicos iriam, literalmen-
te, se multiplicar. Atualmente, inclusive, é grande a dificuldade para acompanhar e

129
manter-se atualizado sobre os principais estudos e pesquisas, dado o enorme volume
de informações disponíveis a esse respeito.

Quadro 5 - Alguns dos principais periódicos científicos


internacionais dedicados especificamente ao esporte

Culture, sport, society

International Journal of Religion and Sport


International Journal of Sport and Exercise Psychology
International Review for the sociology of sport
International Sports Journal
International Sport Studies
Japanese Journal of Sociology of Sport
Journal of Sport Behavior
Journal of sport and social issues
Journal of sport and tourism
Journal of Sport History

Research Quarterly for Exercise and Sport

Sociology of Sport Journal


Sport, Ethics and Philosophy
Sport in history
Sport in society
Sporting Traditions
Sport Management Review
The British journal of sports history

Assim, tem-se um breve panorama sobre o rumo do desenvolvimento das teorias


do esporte em âmbito internacional. Agora, devemos nos voltar para esse processo no
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

âmbito nacional. Grosso modo, pode-se dizer que, no Brasil, o desenvolvimento das
teorias do esporte seguiu formas análogas aquela do contexto internacional. Primei-
ro, um estágio pré-histórico, que marca o surgimento de um interesse não-acadêmico
pela reflexão sobre esporte. Em 1893, Manoel Valadão apresentava seu livro intitulado
História do turfe. Em 1901, Thomaz Rabello apresentava sua própria versão para o mes-
mo assunto através do livro sobre História do turf no Brazil. Em 1909, Alberto Mendonça
divulgava seu trabalho sobre História do Sport náutico no Brasil.

130
Eram publicações de entusiastas do esporte. Lembremos também que o turfe e os
esportes náuticos (o remo, mais especificamente) foram as primeiras modalidades espor-
tivas a se desenvolverem no Brasil.3
Depois, por volta da década de 1920, Gilberto Freyre, importantíssimo intelectual
brasileiro, anotaria, de maneira dispersa, algumas reflexões sobre a possibilidade do es-
porte – e mais especificamente o futebol – ser suscetível à problematizações sociológicas.
Em 1947, o jornalista Mario Filho – que dá nome ao estádio do Maracanã – publicava
seu livro O negro no futebol brasileiro , acompanhado por prefácio de Gilberto Freyre. Em
1952, Inezil Penna Marinho divulgava seu trabalho sobre a História da Educação Física e
dos Desportos no Brasil. Penna Marinho foi um importante nome da Educação Física da
época, escrevendo muitos livros sobre esporte e Educação Física em geral. Tem-se ainda,
em 1954 a publicação de Os desportos de todo mundo, de Adolpho Scherman.
A partir do final da década de 1960, aparecem novas publicações refletindo sobre os
sentidos sociais do esporte. Daí em diante, esse tipo de esforço tenderia a assumir um ca-
ráter mais permanente, incitando outros pesquisadores a se dedicarem ao assunto. Nome-
adamente, em 1969, a editoria da Universidade de São Paulo traduzia o livro do sociólogo
francês Georges Magnane. Em 1973, João Lyra Filho, que já havia publicado livros sobre
Psicologia do esporte e Direito Esportivo, lança, dessa vez, uma obra intitulada Introdução
a sociologia do desporto , naquela que é, provavelmente, o primeiro trabalho do gênero no
Brasil. Em 1981, o historiador Joel Rufino dos Santos apresenta o livro História política do
futebol brasileiro.4 No ano seguinte, o antropólogo Roberto da Matta, famoso por elaborar
interpretações alternativas sobre o significado de ser brasileiro, organiza uma coletânea
de artigos dedicada exclusivamente ao futebol. Em 1983, a norte-americana Janet Lever
publica sua tese de doutorado intitulada A loucura do futebol , resultado do fascínio da psi-
cóloga norte-americana com a paixão do brasileiro por futebol.
Entre o fim da década de 1980 e início da década de 1990, José Sérgio Leite Lopes
publicava estudos sobre o sentido antropológico do futebol brasileiro em importantes
periódicos acadêmicos internacionais, ao mesmo tempo em que nomes como Ronaldo
Helal, depois de estudar nos Estados Unidos, regressava ao Brasil e iniciava a divulgação
da idéia de uma “sociologia do esporte” (ver HELAL, 1990). Na mesma época, na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o professor Maurício Murad criava o núcleo de
sociologia do futebol, que logo passaria a editar a revista intitulada Cadernos de Campo.
No fim dos anos 1990, em 1997, mais especificamente, sete anos depois da fundação
da Associação Nacional de Pesquisadores em História, aparece o primeiro Grupo de
Trabalho sobre História do Esporte no Seminário Nacional dessa entidade científica.
Em 2000, acontece o mesmo no âmbito da Reunião Brasileira de Antropologia – evento
TEORIAS DO ESPORTE

3. Para uma história da formação do campo esportivo no Brasil ver MELO, 2001.

4. Para um comentário sobre esse livro, veja a resenha de minha autoria, disponível em: http://
www.sport.ifcs.ufrj.br/recorde/pdf/recordeV1N1_2008_21.pdf

131
organizado pela Associação Brasileira de Antropologia. Em 2002, é a vez da formação de
um grupo de trabalho na Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisadores em
Ciências Sociais.
Esta seqüência de acontecimentos vai denunciando a progressiva institucionalização
das teorias do esporte no Brasil. Agora, ao invés de iniciativas isoladas e ocasionais, cria-se
uma estrutura capaz de dar suporte e incentivar permanentemente iniciativas de pesquisa
sobre os esportes. Registre-se, contudo, que desde 1978, têm-se notícias do Colégio Brasi-
leiro de Ciências do Esporte . Não o citamos por não considerá-lo dedicado especificamente
às teorias do esporte, apesar do nome. Em verdade, o Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
é uma associação científica de pesquisadores em Educação Física, o que significa não ne-
cessariamente em esporte. O mesmo se diz do periódico dessa entidade, a Revista Brasileira
de Ciências do Esporte, publicada desde 1979, que apesar do nome, vincula artigos sobre
muitos assuntos além do esporte propriamente dito.5 O mesmo talvez se possa dizer da
Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, periódico da Escola de Educação Física e
Esporte da Universidade de São Paulo, publicada desde os meados dos anos 1980.
Nesse sentido, ao longo da primeira década do século XXI, depois de um processo
de amadurecimento, aprofundamento e qualificação, um sensível aumento do número
de publicações especializadas poderia ser notado. Para se ter idéia, uma busca pela palavra
esporte no catálogo antigo do banco de dados da Biblioteca Nacional, referente a publica-
ções datadas até 1980, acusa 156 livros relacionados ao assunto. Uma busca no catálogo
atual, referente às publicações lançadas depois de 1980, acusa 681 títulos. É um indício
do aumento de recente interesse pelo assunto, ainda que nem todos os registros digam
respeito a publicações relacionadas às teorias do esporte, isto é, a livros acadêmicos, notan-
do-se grande número de trabalhos jornalísticos e mesmo literários. Além disso, números
especiais tendo o esporte como temática principal em revistas acadêmicas no âmbito das
Ciências Sociais vem sendo registrados desde os meados da década de 1990 (veja alguns
exemplos no Quadro 6, página 27).
Mais sintomático, fora o lançamento da revista Esporte e Sociedade (Disponível em:
http://www.uff.br/esportesociedade/), em 2006, acompanhada pelo lançamento da Re-
corde – Revista Brasileira de História do Esporte (Disponível em: http://www.sport.ifcs.ufrj.
br/recorde/home.asp), dois anos depois.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

5. A Sociologia Figuracional e as Teorias do Esporte*

Recentemente, em artigo na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Cristina de

5. Veja o site da revista em http://www.rbceonline.org.br/revista/index.php?journal=RBCE


*Publicado originalmente na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, vol. 31, n. 2,
p. 155-169, jan. 2010.

132
Quadro 6 - Números dedicados ao esporte em revistas
das Ciências Sociais

Número 22 da Revista da USP (1994)


Disponível em:
http://www.usp.br/revistausp/22/SUMARIO-22.htm

Número 23 da revista Estudos Históricos (1999)


Disponível em:
http://virtualbib.fgv.br/ojs/index.php/reh/issue/view/289

Número 39 da Revista História – Questões e Debates (2003)


Disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/issue/view/298

Numero 30 da revista Horizontes antropológicos (2008)


Disponível em:
http://www6.ufrgs.br/ppgas/ha/index.html

Número 163 da Revista de História (2010)


Disponível em:
http://revhistoria.usp.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=119:rh-163&catid=6:edicoes&Itemid=7

Medeiros e Letícia Godoy (2009) mapearam o grau de presença e as tendências


de apropriação dos trabalhos de Pierre Bourdieu e Norbert Elias na produção de
conhecimento em educação física. Mais particularmente, analisando os artigos
publicados nessa mesma revista entre 1979 e 2007, identificaram a forma que esses
autores foram referenciados, tentando ainda especificar o modo de utilização de seus
conceitos. Por fim, aparentemente advogando uma incorporação mais sistemática de
seus modos de trabalho, sugerem a necessidade de um maior “comprometimento
qualitativo com relação à apropriação de Elias” (p. 209).
Em caminho mais ou menos contrário ao das autoras, este trabalho quer discutir
criticamente alguns problemas e limites colocados aos estudos do esporte, justamen-
TEORIAS DO ESPORTE

te, pelo movimento de apropriação de teorias como as derivadas da sociologia figura-


cional de Norbert Elias. Com esse propósito, o trabalho está dividido em três partes.
A primeira, que apresenta a maneira pela qual essa composição teórica aborda o es-
porte, tomando como exemplo, mais particularmente, suas abordagens a respeito da

133
gênese desse fenômeno; a segunda, que se ocupa em apresentar algumas críticas que
vêm se colocando a essas abordagens, ampliando o número de referências; e a terceira,
cuja intenção é situar esses debates de maneira mais ampla, buscando apreender algu-
mas das suas implicações.

5.1 O esporte na sociologia figuracional

Os trabalhos de Norbert Elias inauguraram a noção de uma sociologia figuracional.


Trata-se, nas palavras do próprio autor, de uma prática sociológica que pretende “libe-
rar o pensamento da compulsão de compreender termos como individuo e sociedade
de maneira desarticulada”, como se fossem “simples opostos ou meras entidades onto-
logicamente diferentes” (ELIAS, 1994, p. 7). Sua motivação parte do diagnóstico dos
limites conceituais impostos pela falsa dicotomia entre indivíduo e sociedade.

Dispomos dos conhecidos conceitos de “indivíduo” e “sociedade”, o pri-


meiro dos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma en-
tidade existindo em completo isolamento, enquanto o segundo costuma
oscilar entre duas idéias opostas, mas igualmente enganosas. A sociedade é
entendida, quer como mera acumulação, coletânea somatória e desestrutu-
rada de muitas pessoas individuais, quer como objeto que existe para além
dos indivíduos (ibid.)

Em contrapartida, busca-se então, através da noção de figuração, conceber que


indivíduo e sociedade não existem, na realidade, de maneira autônoma, mas “ligam-
-se uns aos outros numa pluralidade” (ibid., p. 8). Segundo Elias, isso permitiria final-
mente compreende-los de maneira integrada na cadeia de interdependência formada
através do seu convívio coletivo. Tais propostas começaram a se realizar, em primeiro
lugar, na sua análise sobre A sociedade de corte e ganharam corpo mais visível no seu
célebre livro sobre O processo civilizador (ELIAS, 2001, 1990, respectivamente).
Não é o caso de comentarmos pormenorizadamente os detalhes e vicissitudes de
tais formulações. Isso, aliás, já tem sido feito de maneira até bastante repetitiva (ver
ALMEIRDA e GUITERREZ, 2005; GEBARA, 2000, 2002; LUCENA, 2002). Para
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

os nossos propósitos, interessa apenas sublinhar que os trabalhos de Elias acabaram


abrindo caminho para uma influente teorização sobre o esporte, ou como prefere
Eric Duning (1992), um dos seus principais colaboradores, “lançam as bases de uma
adequada teoria do lazer” (p. 3).
De fato, apesar do exagerado entusiasmo de Dunning, Elias dedicou considerável
atenção ao estudo do fenômeno esportivo. Entre os sociólogos de maior envergadura,
talvez ele tenha sido o que fez isso de maneira mais sistemática. Não parece fortuito,

134
portanto, que alguns dos principais seguidores de Elias sejam pesquisadores dedica-
dos ao estudo do esporte e do lazer.
Os trabalhos de Elias sobre o esporte versavam, basicamente, sobre temas
como sua prática enquanto um espaço de controle ou descontrole das emoções.
Sob este aspecto, eles podem ser vistos como desdobramentos e aplicações óbvias
de suas teorizações mais gerais, notadamente a idéia de um processo civilizador,
compreendido como um progressivo controle da natureza e das relações sociais, com
um respectivo grau de autocontrole individual (ver ELIAS e DUNNING, 1992).
Mais particularmente, suas reflexões sobre o esporte trataram também de
questões referentes à gênese moderna deste fenômeno. Aí, seus argumentos centrais, a
exemplo de todo o resto, não escapam a lógica mais ampla de toda a sua obra, que é a
de identificar o acionamento de uma macro-tendência social, que ele próprio designa
como um processo de civilização dos costumes. Nesse artigo, pretendemos tomar
esse tópico, em especial, como veículo para as nossas reflexões sobre a sociologia
figuracional frente ao esporte.
De modo geral a sociologia figuracional afirma que as características dos jogos
praticados no contexto histórico moderno se singularizam. O esporte, nesses termos,
não teria equivalências, por exemplo, com jogos da Antiguidade, como o senso co-
mum costuma supor. O pancrário e o boxe – para tomar um caso apresentado pelo
próprio Elias – se diferenciam entre si exatamente pelo fato do último assumir uma
forma “mais civilizada” com relação ao primeiro. Ou seja, a forma de se jogar em uma
sociedade civilizada, tende a assumir tais características. À medida que uma sociedade
vai, pois, se pacificando, ter-se-á uma estrutura de sentimentos que vai progressiva-
mente desprezando os jogos mais violentos e sanguinários, como as touradas ou as
brigas de animais, ao mesmo tempo em que vai valorizando, cada vez mais, jogos e
diversões pacatas e com relativo grau de controle. Assim, o esporte é definido como
atividades moderadas e regradas, com normas escritas, número pré-estabelecido de
jogadores e igualdade numérica entre as equipes, um processo de “regulamentação
dos passatempos”. Nesse sentido, o surgimento de regras escritas ou de associações na-
cionais seriam aspectos bastante exemplares de tais dinamizações. Cita-se, por exem-
plo, a criação de categorias de peso no boxe entre 1850 e 1860, ou a limitação da dura-
ção e do número de assaltos nas lutas a partir de 1865. Fala-se também da elaboração
das primeiras regras escritas no futebol e no rúgbi ao longo da década de 1840, bem
como da padronização desses jogos através de clubes e associações que atuavam já em
níveis nacionais por essa época. Todas essas iniciativas, segundo esta argumentação,
limitavam o contato físico e o nível de emprego da força, exigindo, consequentemente,
TEORIAS DO ESPORTE

um elevado grau de autocontrole.


Desse modo, ainda segundo essas teorias, é no momento em que os efeitos do
processo civilizador se consolidam que aparecem as primeiras modalidades em
conformidade com os parâmetros modernos de esportividade, como corridas de

135
cavalo, pugilismo, caça a raposa e alguns outros jogos com bola como o futebol e o
tênis. Em suma, e de acordo com os sociólogos figuracionais, somente no contexto
de uma sociedade moderna que se pacificava progressivamente é que jogos e outras
práticas corporais puderam se decodificar como esportes. Em outras palavras, esse
é um fenômeno que deve ser visto como um produto de atitudes e sensibilidades
próprias à modernidade. “Foi no contexto de uma sociedade cada vez mais pacificada
e submetida a formas mais eficazes de legislação parlamentar onde começaram a
surgir formas modernas e reconhecíveis de esportes baseados em regras escritas”
(DUNNING, 2003, p. 72).

5.2 Críticas

Todos esses entendimentos assumiram uma posição consideravelmente influente na so-


ciologia do esporte, especialmente na Inglaterra e na Holanda (lugares em que Elias este-
ve presencialmente enquanto exilado). No entanto, muitas críticas têm sido formuladas
ao seu respeito. Richard Giulianotti, por exemplo, tem questionado algumas conclusões
e posicionamentos teóricos dos trabalhos de Elias e seus seguidores. Segundo ele, parte
do status da sociologia figuracional e da teoria do processo civilizador como referencia
teórica relativamente importante nos estudos do esporte sustentou-se, com mérito e
em primeiro lugar, por conta de uma sensibilidade pioneira diante do esporte e do lazer.
Nas suas palavras “seu status foi inicialmente sustentado por sua convicção – bastante
incomum entre sociólogos – que o esporte e o lazer são importantes fenômenos sociais”
(GIULIANOTTI, 2004, p. 145). Ao mesmo tempo, ele aponta também para o fato das
idéias de Elias terem sido significativamente promovidas por seus seguidores, que insis-
tem que a genialidade de seu mestre não é devidamente reconhecida. Giulianotti come-
ça então a ponderar sobre a real contribuição de Elias para a teoria social.
Menciona-se, antes de tudo, que Elias é sintomaticamente pouco citado nos livros
textos e compêndios de teoria social. Cita-se também o fato de Elias ter feito poucas refe-
rencias as obras e autores que claramente lhe influenciaram, como Freud, por exemplo,
relativizando a originalidade de suas idéias. De maneira mais profunda, Giulianotti levan-
ta a questão sobre a linguagem empregada por Elias que, segundo ele, demonstra certo
evolucionismo, apesar de todo o esforço entabulado por seus seguidores para atenuar
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

críticas desse tipo. Por último, diz-se ainda que sua teoria é de fácil reprodução e fornece
um recurso reconfortante para a rotina de pesquisa.
Desse breve quadro esquemático das críticas apontadas por Giulianotti são as duas
últimas que parecem mais interessantes para (re) pensar os problemas do esporte nas
teorias sociais.
Sobre a questão da linguagem evolucionista, o uso recorrente de termos normativos
como “efeito retardado”, “integração em alto nível” ou mesmo a adoção da noção webe-

136
riana de “sociedades simples”, de fato abrem a obra de Elias para uma pertinente leitura
crítica. A cadeia semântica de cada uma dessas noções, bem como os constructos teó-
ricos que lhes são subjacentes, sugere que as dinâmicas sociais progridem de maneira
geométrica, com certa inevitabilidade.
É ilustrativo sob este aspecto que Elias tenha recorrido reiteradamente à figura de
uma espiral para explicar a ordem evolutiva do processo civilizador. É emblemático
também que Elias sempre tenha demonstrado uma confiança mais ou menos excessiva
nas qualidades da civilização moderna, desprezando, de certo modo, algumas das suas
principais conseqüências, como a violência da colonização ou o Holocausto. Tragédias
humanitárias como as que se testemunharam reiteradamente ao longo de todo o século
XX, seriam apenas pequenos retrocessos no processo civilizador, sempre sujeito a re-
veses. “A civilização a que me refiro nunca está completa, e está sempre ameaçada [...] a
pacificação interna de uma sociedade também está sempre correndo perigo” (ELIAS,
1997, p. 161).
Outras análises, no entanto, tem se esforçado em destacar que eventos como os
horrores do terrorismo ou as barbáries dos campos de concentração não são meros
desvios ou contratempos à marcha civilizacional do Ocidente. Ao contrário, tem-se
concluído que tais episódios são inerentes ao seu desenvolvimento, onde seria um
equívoco ou uma cegueira tentar não enxergá-los como produtos do seu próprio
processo de expansão. Para mencionar alguns exemplos, citemos, primeiramente, um
ensaio de John Gray, que analisa a rede terrorista Al Qaeda.
Segundo Gray (2004), o terror revolucionário praticado pelos talibãs, que se auto-
-proclamam como um ataque aos valores da modernidade ocidental, é, ele próprio,
uma invenção ocidental moderna. Seus princípios de pensamento, suas estratégias de
ação e boa parte das suas convicções foram moduladas pela ideologia moderna do
Ocidente. A tradição de violência revolucionária, inventada pelos jacobinos e depois
utilizada pelos anarquistas no Ocidente, tinham as mesmas finalidades do islamismo
radical do Oriente, qual seja, “refazer o mundo com atos espetaculares de terror” (p.
34). Nesse sentido, o terrorismo islâmico, que costuma ser apresentado como algo
típico ao Oriente, não passa de uma realização do ideal europeu moderno: “é um sin-
toma da doença da qual pretende ser a cura” (ibid., p. 38).
De maneira ainda mais desconcertante, Zygmunt Bauman aborda sociologica-
mente o Holocausto. Contrariando a corrente que vê a civilização como aquela for-
mação social que eliminou a violência da vida diária sendo, hipoteticamente e por isso
mesmo, moralmente edificante, Bauman (1998) recorre aos bárbaros acontecimen-
tos da carnificina nazista para fazer ver que este episódio “nasceu e foi executado na
TEORIAS DO ESPORTE

nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do


desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade,
dessa civilização e cultura” (p. 12). Segundo ele, imagens sociológicas do processo ci-
vilizador que destacam a supressão dos atos irracionais e a imposição de uma ordem

137
normativa, excluem tendências não menos cruciais, como o seu potencial destrutivo,
sugerindo falsamente que aspectos como esses são de natureza casual e transitória (p.
48). Mas de acordo com os argumentos de Bauman, tragédias como o Holocausto
não foram nem uma “interrupção do curso normal da história”, nem um “câncer no
corpo da sociedade civilizada”, tampouco “uma loucura momentânea num contexto
de sanidade” (passim). Ao invés disso, Bauman insiste que episódios dessa natureza
fazem mesmo parte da estrutura social da nossa civilização.
Elias, de outra forma, relutou em aceitar que fatos “não-civilizados” fossem
conseqüências e desdobramentos próprios ao desenvolvimento da civilização
Ocidental moderna. Tal postura exprime uma “certa indiferença a especificidade dos
eventos históricos” (GIULIANOTTI, op.cit., p. 156).
Não se trata aqui de um desprezo pela história pura e simples, mas sim, de um
desprezo pela história que se dá fora do escopo da história do Ocidente. Não por acaso,
nomes como Jack Goody (2008), um renomado antropólogo inglês, já se ocuparam
de sumariar alguns limites do pensamento de Elias nesse sentido. Referindo-se ao
conjunto da obra elisiana, Goody afirma que “seu texto é altamente eurocêntrico” (p.
191). Segundo ele, suas teorias, apesar de terem grandes pretensões generalizantes,
privilegiam o ponto de vista particular da Europa Ocidental. Assim, o singular uso
de utensílios para a alimentação, os complexos rituais de cumprimento e de higiene
pessoal, bem como a rigorosa e característica disciplina da antiguíssima civilização
chinesa são sumariamente ignoradas, o que significa que o conceito de civilização na
obra de Elias esteve sempre confinado ao contexto europeu.
Por que desconsiderar – como ele faz – o que aconteceu em outras sociedades tais
como a China, quando se está lidando com “civilizações”? Lá também o desenvolvi-
mento dos costumes, o uso de intermediários (pauzinhos – hashi) entre o alimento e
a boca, os rituais complicados de saudação e limpeza corporal, as restrições da corte
em contraste com a objetividade dos camponeses, como, por exemplo, na cerimônia
do chá, tudo isso apresenta paralelo com a Europa da Renascença [...] Prenda-se à Eu-
ropa se desejar, mas não quando está fazendo afirmações mais generalizadas. E isso era
exatamente o que Elias estava fazendo. (p. 198).
Ao lado do problema de tomar os padrões culturais do Ocidente como parâmetro
ideal de comportamento, o antropólogo destaca ainda, ao encontro de outras críti-
cas apresentadas anteriormente, que a formação do Estado – tão enfatizada por Elias
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

como veículo de monopólio do uso da força e conseqüente pacificação – levou tam-


bém à violência, ao colonialismo e à opressão. Nesse sentido, “as ideologias fascistas
e as atividades na Alemanha e na Itália, como as Guerras Mundiais, são certamente
partes intrínsecas do desenvolvimento da sociedade contemporânea que levou à atual
situação e não a algum tipo de ‘regressão’” (p. 195).
O implícito etnocentrismo de Elias, refletido nas suas teorias, também teria se ma-
terializado em situações concretas de confronto com a alteridade. No período em que

138
trabalhou como professor da Universidade de Legon, em Gana, na África, o sociólogo
alemão teria mantido uma postura de permanente afastamento das culturas locais. De
acordo com Goody (2002), essa forma de relacionar-se com as diferenças culturais
seria apenas a expressão cotidiana de uma tradição intelectual européia da qual Elias
era, de certo modo, um herdeiro. “[Esta] ignorância e distância da cena local [...] não
era característica apenas de Elias, mas era visível em outros professores das ciências so-
ciais expatriados na África e que vinham da tradição sociológica européia dominante”
(p. 402).
Tudo isso resultaria, em síntese, no que Jack Goody (2008) chama de “falta de
profundidade histórica de longo prazo” (p. 186), que faz com que os problemas de
pesquisa, bem como todas as suas explicações, sejam postas de maneira sempre muito
geral e, portanto, de forma inadequada tanto histórica quanto sociologicamente. Em
decorrência, “muitas das diferenças que surgem das suas observações superficiais so-
bre ‘civilização’ desaparecem em um exame mais intensivo e completo (p. 204, o grifo
é meu).
De fato, não seria de todo errado dizer que, de um ponto de vista especificamente
histórico, o panorama traçado por Elias sobre as transformações ocorridas na Europa
parece mesmo pouco matizado. No caso da reconstituição histórica das dinâmicas
que produziram o chamado processo civilizador já se tem estudos que demonstram
que aquelas transformações da intimidade não operaram de maneira inequívoca por
toda a sociedade européia, e sequer o fizeram em todos os estratos da população dos
países que de fato se submeteram a tal processo, como é o caso da França e da Ingla-
terra. Ao contrário, diferentes segmentos dessas sociedades vivenciaram de maneira
igualmente diferente cada um daqueles processos, assim como diferentes contextos
culturais e nacionais apreenderam e experimentaram de maneira diversificada esses
processos. Nesse sentido, pode-se dizer que há muitos modos de ser modernos, assim
como há muitos modos de ser civilizado. “Os atuais desenvolvimentos das sociedades
modernas têm refutado a homogeneização e a suposta hegemonia deste programa de
modernidade Ocidental” (EISENSTADT, 2001, p. 1).
Thompson (1987) já nos mostrou como as classes populares da Inglaterra foram
reticentes em adotar alguns padrões de conduta e comportamento típicos à moder-
nidade. A vida nas cidades ou o trabalho na fábrica, por exemplo, opus magnum da
civilização moderna, foram duramente rechaçados por algum tempo antes de se es-
tabelecerem hegemonicamente. Antigos camponeses, quando forçados a se deslocar
para grandes cidades, tendiam a ver este ambiente, acertadamente, como uma das
principais causas do seu mal-estar e “desenraizamento”. Tais sentimentos e condições
TEORIAS DO ESPORTE

encorajavam iniciativas de dotar aquele espaço hostil de alguma familiaridade. Assim,


tabernas, bares e igrejas iam se configurando como lugares sociais onde antigas for-
mas de sociabilidade se manifestavam e se combinavam com todo aquele novo modo
de vida. Do mesmo modo, no ambiente de trabalho, buscava-se de todas as formas

139
maneiras de realizar as tarefas em conformidade com antigos hábitos, flexibilizando
o cumprimento de horários, desrespeitando a etiqueta e o decoro comportamental,
bebendo durante o expediente, escapando para pequenos passeios ou não retornando
depois de garantir a quantidade de dinheiro que lhes parecia suficiente. Não por acaso,
uma das principais preocupações das classes dirigentes nesse período foi a de como
inculcar no populacho a disciplina necessária ao trabalho fabril. Estratégias para a confor-
mação a uma rotina monótona, repetitiva e mecanizada se constituíram como o mote
modernizador na transição do século XVIII para o XIX.
Se, no coração da Inglaterra, que avançava a passos largos naquela direção civilizató-
ria, os sentidos das mudanças foram plurais, relativos e multidirecionais, como permi-
tem concluir análises como as de Thompson, o que dizer de países e culturas distantes e
menos expostos àqueles processos? Igualmente, poderíamos facilmente estender esses
questionamentos para a esfera dos lazeres. Pois, se alguns setores da sociedade se es-
forçavam em manter hábitos e costumes mais antigos, é óbvio que também o faziam
nos seus divertimentos (e talvez sobretudo nos seus divertimentos). Assim, os jogos es-
portivos eram apreendidos através de uma grade de interpretação que lhes era peculiar,
de modo que novos divertimentos se combinavam com os antigos e eram codificados
com base em tradições já instituídas. Nesse sentido, não parece equivocada a afirmação
de Giulianotti (2004) para quem, nas teorias elisianas, “a distinção entre esportes mo-
dernos e tradicionais tem sido exagerada” (p. 158).
O trabalho de Richard Holt apresenta uma interessante perspectiva e que vai mais
ou menos nessa direção. Suas investigações vão de encontro às abordagens “comumen-
te adotadas pela sociologia do esporte, que no seu entender vê o esporte como uma
atividade ‘não problemática’” (PRONI, 2001, p. 24). Holt (1992) questiona os vínculos
explicativos que se estabelecem entre o advento do esporte e as teorias da moderni-
zação. Segundo ele, nesse tipo de enfoque, desconsideram-se diferenças entre classes
dentro de um mesmo país e também as diferenças culturais entre as nações, sendo que
“aos esportes foram atribuídos sentidos culturalmente muito específicos em diferen-
tes lugares” (p. 130). Assim, ao lado das inovações simbólicas acionadas pelo efetivo
advento de jogos regrados e com relativo controle da violência, persistiam, sobretudo
entre as classes populares, formas de jogos e divertimentos mais tradicionais que não se
enquadram naquela concepção de “regulamentação dos passatempos”, como é o caso
dos açulamentos de touro ou brigas de urso, por exemplo. “A interação entre mudança e
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

continuidade, persistência em algumas coisas e inovação em outras, é demasiadamente


complexa para ser primorosamente rasteada num modelo de ‘modernização simplista’”
(ibid., p. 12).
Pesquisas de outros historiadores como os de John Goulstone (2000) reiteram
esse entendimento ao tratarem do desenvolvimento dos esportes entre as classes po-
pulares, mostrando como suas formas de jogar possuíam códigos e regras altamente
complexos, mesmo quando se distanciavam daquilo que Elias quer tratar como “jogos

140
regulamentados”. Em outras palavras, o fato dos jogos das classes populares terem regras
diferentes dos praticados pela aristocracia não quer dizer que não as tinham, mas apenas
que eram diferentes. E mesmo entre as classes dirigentes, que em geral experimentavam
o espírito vitoriano do autocontrole de maneira mais intensa, antigos costumes atrela-
dos a um padrão de conduta tido, nesses termos, como “mais violentos”, continuavam
se fazendo presentes. Nesse sentido, “Elias exagera na civilidade dos jogos nas public
schools” (Giulianotti, 2004, p. 156).
Exageros ou ênfases desmedidas em certos aspectos ligam o relativo desprezo de
Elias pelas singularidades históricas à crítica que vê sua teoria como de fácil reprodu-
ção ou como “recurso reconfortante para a rotina de pesquisa” (GIULIANOTTI, 2004,
146); “uma sociologia desenvolvimentista linear” (Holt, op.cit., p. 356). A idéia insis-
tentemente repetida por Elias e pelos elisianos de que é preciso efetivar uma pesquisa
empírica guiada por uma teoria expõe uma forma de conceber o trabalho sociológico
que é bastante discutível, pois, partindo aprioristicamente de um modelo que, em últi-
ma instância, deve ser confirmado, não é difícil transformar o trabalho de pesquisa em
um mero esforço de reunir evidencias ao seu favor.

Precisamos nos perguntar se é satisfatório simplesmente selecionar um


conjunto específico de fatores culturais e descartar outros que parecem ir em
um sentido contrário. Além de estar atento às mudanças de comportamento
pessoal, é necessário estar ciente do aumento de guerras e violência (incluindo
o que levou o próprio Elias a fugir de sua Alemanha natal), assim como da
diminuição das restrições a comportamentos sexuais, das violações de direitos
de propriedade e outras formas de ação criminal que presenciamos nos dias de
hoje [...] A violência de hoje na família e na rua não é uma miragem e fica difícil
reconciliar abordagem “whiggish” [que acredita no progresso] de Elias (apesar
de sua declaração de ter rejeitado a idéia) com o fato de que, na época em que
ele estava escrevendo, os nazistas assassinavam judeus por toda a Europa e
limpavam refinadamente com lenços suas botas (GOODY, 2008, p. 189-190).

5.3 À guisa de conclusão

Para além das próprias controvérsias envolvendo a gênese do esporte moderno, pode-
se extrair daí algumas implicações mais gerais que tocam o próprio fazer científico
do cientista social dedicado ao estudo do esporte. Parte dessas implicações, no caso
TEORIAS DO ESPORTE

da sociologia figuracional, está sobremaneira ligada à noção de que uma boa pesquisa
deve mesmo ser orientada por uma boa teoria. Desnecessário dizer que, nesse caso,
a boa teoria é a do processo civilizador e a boa pesquisa, por conseguinte, aquela
que a corrobora.

141
Trata-se, evidentemente, de uma espécie de tautologia que traz em si um ranço
positivista. Tais vinculações fazem ver que não é fortuita a analogia que alguns críticos
têm estabelecido entre a religião e a sociologia figuracional, acusando seus seguidores
de compor uma liturgia (GIULIANOTTI, 2005), afinal, o positivismo comtiano, que
tem sido reconhecido pelos próprios sociólogos figuracionais como importante in-
fluencia no pensamento de Elias, resultou numa religião de fato.
Evidentemente, o pensamento científico é ou deve ser a antítese do pensamento
religioso, na medida em que uma das suas principais condições de possibilidade é a
recusa às certezas do saber definitivo, o que a religião, por motivos óbvios, não pode
admitir. Em outras palavras, o progresso das ciências está condicionado a sua capaci-
dade de colocar indefinidamente em questão os princípios de sua própria constru-
ção, ou, como nos dizem Bourdieu, Chamboredon e Passerron (2004), “conduzir um
questionamento radical dos postulados fundamentais da teoria” (p. 39).
Já não se trata simplesmente de reconhecer limites e reorientar hipóteses, o que
admitem até certo ponto, mas só até certo ponto, os sociólogos figuracionais. Trata-
-se, isso sim, de ponderar a respeito dos fundamentos mais elementares das regras de
enunciação da teoria, reconhecendo nela uma construção conceitual arbitrária e, por-
tanto, sujeita a plena substituição.

Quando se verifica que a realidade contradiz uma teoria, pode-se evidente-


mente conciliar a teoria com a realidade fazendo intervir um certo número de
hipóteses suplementares. Há, porém, outra solução, mais lógica, que consis-
te em reconhecer que o esquematismo teórico foi mal construído (ARON,
2002, p. 219).

Claro que reconhecer que o esquematismo teórico está mal construído está mui-
tíssimo além do que fazem os elisianos em geral, que reagem de maneira sempre mui-
to indignada a críticas de qualquer natureza (ver, por exemplo, DUNNING, 2002;
MENNELL e GOUDSBLON, 1997). Seu apego e admiração pelas proposições te-
óricas de Elias chegam mesmo a obliterar qualquer possibilidade de questionamento
mais radical, impedindo, no limite, sua própria condição de cientificidade.
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

À tentação sempre renascente de transformar os preceitos do método em re-


ceitas de cozinha científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos
opor o treino constante da vigilância epistemológica que, subordinando a
utilização das técnicas e conceitos a uma interrogação sobre as condições e
limites da sua validade, proíbe as facilidades de uma aplicação automática de
procedimentos já experimentados [...] A obediência a um organon de regras
lógicas tende a produzir um efeito de “fechamento prematuro” [...] Para apre-
ender os procedimentos de pesquisa, é necessário examinar como ela proce-

142
de, em vez de confiná-la a na observância de um decálogo de processos que
só devem, talvez, parecer avançados em relação à prática real na medida em
que são definidos de antemão [...] Portanto, é inútil pretender apresentar a
priori as condições de um pensamento autenticamente científico (ibid., pp.
14, 18, 19).

A ciência sociológica, em suma, é sempre algo em via de se fazer e por isso deve
prescindir de quaisquer formulações oferecidas de antemão, onde a filiação dogmática
a uma teoria particular, às vezes chamadas dissimuladamente de “referencial teórico”,
inibe o autêntico exercício sociológico, que diz respeito, fundamentalmente, a cons-
trução de fatos sociais, e não a pura e simples observação imparcial e distanciada de
eventos sociais, como o próprio Elias quis acreditar um dia. E é precisamente o enten-
dimento dos fatos sociais como construções que oferece talvez a dimensão mais pro-
funda dos limites da sociologia figuracional. Pois, de acordo com que Bourdieu e seus
parceiros chamaram de “fácil garantia de realismo”, não existe uma realidade objetiva
de dados sociais à espera de uma observação, cuja fidedignidade do registro depende-
ria tão somente da adequação da teoria que a informa e a orienta. “Para saber construir
um objeto e conhecer o objeto que é construído, é necessário ter consciência de que
todo objeto propriamente científico é consciente e metodicamente construído” (ibid.,
p. 64).
Nessa perspectiva, o fazer da pesquisa sociológica se desobriga de uma teoria, no
sentido em que essa noção é costumeiramente empregada. Isso não quer dizer, con-
tudo, que o esforço de teorização – no sentido da generalização de explicações sobre
situações particulares – pudesse ou devesse ser abandonado. Não é essa a questão.
O que está em tela aqui é que a explicação de fenômenos sociais (incluindo os es-
portivos) não deve admitir soluções teóricas a priori, mas sim exigir um esforço de
compreensão a partir de um detalhamento empírico e factual, derivado da análise e in-
terpretação de cada manifestação específica. Logo, não seria o caso de apontar limites
nas teorias de Norbert Elias a fim de substituí-las por outras, hipotética e supostamen-
te mais adequadas. Também não seria o caso de seguir multiplicando comentários
teóricos, só porque importantes tópicos relacionados aos esportes desenvolvidos pela
sociologia figuracional foram deixados de lado, como é o caso, por exemplo, da vio-
lência das torcidas. De certo modo, deixar de abordá-los nesse contexto é uma tentati-
va metafórica de sugerir, deliberadamente, uma possível esterilidade na discussão em
torno da qualidade da apropriação de teorias pelas pesquisas do esporte. Insistir nesse
caminho, nesse momento, seria como se limitar a discutir a eficiência das pesquisas
TEORIAS DO ESPORTE

em reproduzir os genéricos postulados das teorias com as quais e contra as quais bus-
cam as respostas para suas interrogações. Dito de outro modo, medir qualidade de
apropriação seria quase como inferir o quanto a cópia se aproxima do original, esti-
mulando a continuidade de uma tradição de pesquisa fundada na cultura do ensaio, e

143
que se restringe a elucubrações teóricas, em detrimento da investigação propriamente
dita. Ao invés de desperdiçarmos tempo e energia com isso, seria muito mais proveito-
so que continuássemos nos concentrando em dar seqüência aos estudos que vem se
anunciando de maneira bastante alvissareira.

6. Esporte, educação e desenvolvimento social

Atualmente, uma das facetas que mais se pronuncia no fenômeno esportivo é sua
utilização como ferramenta de ação social. Multiplicam-se as iniciativas que procu-
ram promover a cidadania por intermédio da organização de atividades culturais
e/ou esportivas (no Quadro 7, veja uma interessante reflexão sobre o sentido mais
profundo dessas ações sociais na reflexão do cineasta João Moreira Salles, que já di-
rigiu uma trilogia documental sobre o futebol). O fundamento dessas ações é que o
esporte é um instrumento privilegiado de educação, de formação moral, além de ser
positivo para a saúde. Segundo dados de uma pesquisa sobre Fundações Privadas
e Associações Sem Fins Lucrativos realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), em 2002, conforme citado por Julio Davies (2006), o Brasil
tinha registrado mais de 275 mil instituições desse tipo. Dessas, aproximadamente
27 mil respondiam pela área de esporte e recreação, o que equivale a 9,75% do total
de entidades identificadas na pesquisa. Ou seja, “dentro do campo do chamado ter-
ceiro setor, a área de esportes parece ocupar uma posição de destaque” (p. 1).
É nesse contexto que cada vez mais se vê ex-ídolos do esporte emprestando seus
prestígios, suas redes de relações e às vezes parte dos seus dinheiros para levar o
esporte para crianças e jovens pobres das periferias. A triatleta Fernanda Keller, por
exemplo, empresta seu nome a um projeto de triatlo para crianças e jovens na cida-
de de Niterói, no Rio de Janeiro. Na mesma cidade, os irmãos velejadores Torben e
Lars Grael criaram um projeto de vela e iatismo – que foi inclusive objeto de inves-
tigação de Julio Daves. Da mesma forma, os ex-jogadores de futebol Leonardo e Raí
assumem a Fundação Gol de Letra, só para citarmos alguns exemplos.
Do ponto de vista sociológico, o que significam exatamente essas ações? Porque
tamanha popularidade do esporte dentro das ações sociais? Como tem sido o uso
dessa prática? Tem tido resultado? Apresentar alguns desses pontos será o nosso
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

objetivo nesta seção.


O entendimento que prescreve o esporte como uma atividade pedagogicamen-
te positiva remonta ao menos ao século XIX. É a época em que as atividades físicas
e os exercícios corporais paulatinamente passam a ser percebidos como algo peda-
gogicamente desejável. Reparem que a criação dos primeiros métodos de ginástica
ocorre justamente nessa época. Os métodos alemão, sueco ou francês remontam
mais ou menos a esse período. A despeito das peculiaridades, todos eles partiam

144
da premissa que a educação e o exercício do corpo eram indispensáveis para uma
adequada educação integral do ser humano.
No Brasil, por volta da década de 1880, iniciativas como o projeto de lei de Rui
Barbosa, que propunha o ensino obrigatório da ginástica em todas as escolas brasi-
leiras dá um testemunho desse processo. No que diz respeito ao esporte, de maneira
geral, suas origens ao longo da primeira metade do século XIX, historicamente liga-
das às escolas inglesas, já denota o vínculo entre educação e prática esportiva.
Depois disso, de maneira cada vez mais aguda, esses vínculos serão consolida-
dos nos ideais do olimpismo, expressos, particularmente, em 1896, por ocasião dos
primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna. Daí em diante, a crença dos poderes
educativos do esporte só faria ganhar força. Basta observar algumas convenções in-
ternacionais a respeito, além de atentar para o já mencionado processo de multipli-
cação de ações sociais baseadas no oferecimento de atividades esportivas.
Ao menos desde 1978, a UNESCO (sigla em inglês para “Organização das
Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura” – United Nations Educational,
Scientific, and Cultural Organization, tem considerado o esporte como um “direito
fundamental para todos”. A própria Organização das Nações Unidades (ONU),
por volta de 2002, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Salt Lake City, passou a
sugerir publicamente uma revisão dos sistemas internos à entidade, a fim de melhor
considerar a presença do esporte, nomeadamente, identificando programas já exis-
tentes de esporte para o desenvolvimento, mapeando exemplos e iniciativas mais
instrutivos sobre o uso social do esporte, além de encorajar a inclusão do esporte
nas Metas para o Desenvolvimento do Milênio. Tais ações justificam-se sempre
através da enumeração de supostas características do esporte, como seu poder de
atração e mobilização, além da sua capacidade de irradiar valores humanos como
o respeito ao oponente, o trabalho em equipe, a aceitação de regras ou a igualdade
de condições durante as competições. Conforme se lê muito explicitamente em um
dos documentos da UNESCO:

Em todo o mundo, o esporte contribui para melhorar a saúde física e


mental. Através do esporte se aprendem importantes lições de vida so-
bre respeito, liderança e cooperação. Também promove a igualdade para
todos e ajuda a superar barreiras entre as pessoas.
A Unicef está incorporando o poder e o potencial do esporte, da recrea-
ção e do jogo em seu trabalho no mundo todo [...]
Temos utilizado o esporte como veículo de comunicação: como ferra-
TEORIAS DO ESPORTE

menta de mobilização social que reúne a comunidade para determina-


das campanhas e como um meio poderoso de criar consciência sobre
mensagens chave em torneios ou eventos esportivos nacionais ou locais
(KASTBERG, 2007, p. 3).

145
Por outro lado, apesar de todo esse consenso e aparente unanimidade a respei-
to da capacidade educativa do esporte, existem muitas vozes divergentes, chamando
atenção, em sentido contrário, para a suposta falácia desses ideais. No essencial, elas
podem ser resumidas às chamadas “teorias críticas do esporte”. Essa perspectiva de
compreensão do fenômeno esportivo destaca as inúmeras incoerências e contradi-
ções decorrentes da prática esportiva, denunciando como falsas às declarações que o
dizem dotado de positividade e valores positivos. Jean-Marie Bhrom foi um dos no-
mes que mais se destacou nesse sentido. Suas pesquisas sobre esporte apontavam para
o inexorável vínculo entre o esporte e o desenvolvimento da sociedade capitalista, de
tal modo que sua prática estaria sempre subordinada aos interesses da reprodução do
capital, isto é, ao desenvolvimento econômico e a geração de lucro a ser usufruída pe-
las classes dominantes.
Como veremos logo adiante, este é um pensamento que influenciou consideravel-
mente algumas propostas pedagógicas para a Educação Física, especialmente a partir
da década de 1980, quando o esporte passou a ser visto, em algumas dessas propos-
tas, como veículo de alienação e controle social. Por isso é importante refletirmos um
pouco mais demoradamente sobre essas teorias.
O diagnóstico de Jean-Marie Bhrom sobre o esporte declara-o uma prática inse-
rida nas engrenagens do capitalismo, mas que ao se declarar livre de influências políti-
cas, camufla, na verdade, sua função ideológica, que é inteiramente política. O esporte,
em outras palavras, através dessa aparente despolitização das suas práticas, acaba por
ocultar à luta de interesses que separa os mais ricos dos mais pobres, contribuindo,
dessa maneira, para a estabilização e perpetuação do atual sistema capitalista. Segundo
Bhrom, o esporte difunde valores convenientes a esse sistema social. Primeiro por-
que, em si mesmo, o esporte é uma forma de ação econômica, com alta capacidade
de produção de lucro. Os clubes, por exemplo, nada mais são do que empresas que
competem por dinheiro dentro de um mercado internacional. Nesse sentido, criam-
-se produtos, que vão desde ingressos nos estádios, até camisetas, brindes, ou bonés.
De maneira análoga, o atleta, nesse sistema, é uma espécie de operário: um trabalha-
dor explorado pelos seus patrões, tentando, na medida do possível, obter melhores
pagamentos em troca da sua mão (ou pé) de obra. Mais que tudo isso, talvez, a ce-
lebração esportiva dos ideais de rendimento e produção não deixa de ter paralelos,
segundo ele, com a ordem e disciplina necessária para o trabalho industrial, ou os va-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

lores consumistas de querer sempre mais e mais. Tal como desejado no mundo capi-
talista, o esporte dissemina a idéia que a vitória ou a derrota (no jogo ou na sociedade)
depende apenas do esforço e do talento do jogador, fazendo esquecer as inúmeras
desigualdades sociais que, na prática, condicionam as chances e as oportunidades de
desenvolvimento de cada indivíduo.
Além disso, o esporte seria um produto do imperialismo colonial e um vetor
da globalização – assumindo, portanto, a responsabilidade de transmitir em nível

146
mundial um único modelo de prática corporal (o esporte); no limite, instrumento de
dominação cultural e aniquilamento da diversidade.
Os adjetivos que Jean-Marie Bhrom usa para tratar do esporte oferecem uma
síntese da compreensão desse autor sobre esse fenômeno. Segundo ele, o esporte
seria uma “pandemia”, um “tifo”, uma “intoxicação”, uma “peste emocional”, uma
“intoxicação emocional fictícia”, uma “contaminação geral das consciências”, em suma,
algo que “destila” valores nocivos à sociedade e ao ser humano.
Talvez de maneira menos enfática, muitos outros pesquisadores seguiram essa
linha de interpretação, inclusive no Brasil. Não vamos comentá-los para não fugir
do nosso assunto6 . Na Educação Física são muitos os exemplos das implicações
dessa forma de compreensão sobre o esporte. Reflexões que condenam o esporte
competitivo na escola, geralmente o fazem por influência dessas teorias críticas. A
corrente diferenciação que se estabeleceu entre o esporte na escola e o esporte da escola
, identificando, de certo modo, aspectos nocivos do esporte competitivo (ou de alto
rendimento) é um exemplo de tais influências. Segundo se argumenta, nesses casos, o
esporte praticado na escola não deveria se assemelhar com aquele esporte praticado
fora da escola, isto é, com o esporte vinculado pela mídia através das suas competições
internacionais. De outra forma, o esporte na escola, para garantir sua eficácia educativa,
deveria ter características próprias, supondo-se, obviamente, que o esporte praticado
fora da escola não tem condições de fazê-lo.
Tal como em outros aspectos das teorias do esporte, aqui também não se pode
dizer que exista qualquer tipo de consenso. Saber se o esporte – da maneira como
é praticado hegemonicamente, isto é, de forma competitiva – pode ou não servir de
instrumento de educação é um debate em aberto. Como vimos, as posições a esse
respeito oscilam entre extremos. Particularmente, eu também tenho lá meus pontos
de vista. Vou me furtar de expô-los apenas para estimular que cada um de vocês reflita
a respeito e elaborem suas próprias interpretações. No máximo, poderíamos acres-
centar que estudos recentes têm apontado, justamente, para a falta de estudos mais
profundos sobre as dinâmicas de aprendizagem em projetos sociais que têm o espor-
te como tema. José Vianna e Hugo Lovisolo (2009), por exemplo, chamam atenção
para a necessidade de um refinamento dos dados para um melhor entendimento dos
efeitos desse tipo de projeto. A identificação de elementos simples como o tempo de
permanência dos alunos, é destacado pelos autores como informações capazes de ofe-
recer índices de avaliação sobre a eficiência de projetos sociais com esporte.
6. Para um balanço geral dessas abordagens, c.f. VAZ, 2005.
TEORIAS DO ESPORTE

147
Quadro 7 - Arte, ciência e desenvolvimento
por João Moreira Salles | Folha de S.Paulo, em 6 de junho de 2010.

“Agradeço ao professor Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências, o


convite que me fez para falar a uma plateia de colegas seus, na crença de que eu pudes-
se servir de porta-voz das humanidades num encontro de cientistas. Peço desculpas
por desapontá-lo.
Sou ligado ao cinema documental e, mais recentemente, ao jornalismo, atividades
que, se não são propriamente artísticas, decerto existem na fronteira da criação. Jorna-
lismo não é literatura nem documentário é cinema de ficção. Nosso capital simbólico
é muito menor e nosso horizonte de possibilidades é limitado pelos constrangimentos
do mundo concreto.
Não podemos voar tanto, e essa é a primeira razão pela qual, com notáveis exce-
ções, o que produzimos é efêmero, sem grande chance de permanência. Não obstan-
te, é fato que minhas afinidades pessoais e profissionais estão muito mais próximas
de um livro ou de um filme do que de uma equação diferencial - o que não me im-
pede de achar que há um limite para a quantidade de escritores, cineastas e bacharéis
em letras que um país é capaz de sustentar. Isso deve valer também para sociólogos,
cientistas políticos e economistas, mas deixo a suspeita por conta deles. Na minha
área, creio que já ultrapassamos o teto há muito tempo, e me pergunto de quem é a
responsabilidade.
Em 1959, o físico e escritor inglês C.P. Snow deu uma famosa palestra na Uni-
versidade de Cambridge sobre a relação entre as ciências e as humanidades. Snow
observou que a vida intelectual do Ocidente havia se partido ao meio.De um lado,
o mundo dos cientistas; do outro, a comunidade dos homens de letras, representa-
da por indivíduos comumente chamados de intelectuais, termo que, segundo Snow,
fora sequestrado pelas humanidades e pelas ciências sociais. As características de cada
grupo seriam bem peculiares. Enquanto artistas tenderiam ao pessimismo, cientistas
seriam otimistas. Aos artistas, interessaria refletir sobre a precariedade da condição
humana e sobre o drama do indivíduo no mundo. O interesse dos cientistas, por sua
vez, seria decifrar os segredos do mundo natural e, se possível, fazer as coisas funcio-
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

narem. Como frequentemente obtinham sucesso, não viam nenhum despropósito na


noção de progresso.
Estava estabelecida a ruptura: de um lado, o desconforto existencial, agravado
pela perspectiva da aniquilação nuclear; do outro, a penicilina, o motor a combustão
e o raio-X. Na qualidade de cientista e homem de letras, Snow se movia pelos dois
mundos, cumprindo um trajeto que se tornava cada vez mais penoso e solitário. "Eu
sentia que transitava entre dois grupos que já não se comunicavam", escreveu.

148
Certa vez, um amigo seu, cidadão emérito das humanidades, foi convidado para
um daqueles jantares solenes que as universidades inglesas cultivam com tanto gosto.
Sentando-se a uma mesa no Trinity College - onde Newton viveu e onde descobriu
as leis da mecânica clássica - e feitas as apresentações formais, o amigo se virou para
a direita e tentou entabular conversa com o senhor ao lado. Recebeu um grunhido
como resposta. Sem deixar a peteca cair, virou-se para o lado oposto e repetiu a tenta-
tiva com o professor à sua esquerda. Foi acolhido com novos e eloquentes grunhidos.
Acostumado ao breviário mínimo da cortesia - segundo o qual não se ignora solene-
mente um vizinho de mesa -, o amigo de Snow se desconcertou, sendo então socor-
rido pelo decano da faculdade, que esclareceu: "Ah, aqueles são os matemáticos. Nós
nunca conversamos com eles". Snow concluiu que a falta de diálogo fazia mais do que
partir o mundo em dois. A especialização criava novos subgrupos, gerando células
cada vez menores que preferiam conversar apenas entre si. 

Síntese e ordem

Não sei se alguém já voltou a conversar com os matemáticos. Torço para que sim, ape-
sar das evidências em contrário. Seria um desperdício, pois a matemática, para além
dos seus usos, é guiada por um componente estético, por um conceito de beleza e de
elegância que a maioria das pessoas desconhece. O que move os grandes matemáti-
cos e os grandes artistas, desconfio, é um sentimento muito semelhante de síntese e
ordem. Os dois grupos teriam muito a dizer um ao outro, mas, até onde sei, quase não
se falam. (No passado, o poeta Paul Valéry deu conferências para matemáticos e o
matemático Henri Poincaré falou para poetas.)
Segundo Snow, com a notável exceção da música, não há muito espaço para as
artes na cultura científica: "Discos. Algumas fotografias coloridas. O ouvido, às vezes
o olho. Poucos livros, quase nenhuma poesia." Talvez seja exagero, não saberia dizer.
Posso falar com mais propriedade sobre a outra parcela do mundo, e concordo quan-
do ele diz que, de maneira geral, as humanidades se atêm a um conceito estreito de
cultura, que não inclui a ciência.
Os artistas e boa parte dos cientistas sociais são quase sempre cegos a uma ex-
tensa gama do conhecimento. Numa passagem famosa de sua palestra, Snow conta o
seguinte: "Já me aconteceu muitas vezes de estar com pessoas que, pelos padrões da
cultura tradicional, são consideradas altamente instruídas. Essas pessoas muitas vezes
têm prazer em expressar seu espanto diante da ignorância dos cientistas. De vez em
TEORIAS DO ESPORTE

quando, resolvo provocar e pergunto se alguma delas saberia dizer qual é a segunda
lei da termodinâmica. A resposta é sempre fria - e sempre negativa. No entanto, essa
pergunta é basicamente o equivalente científico de 'Você já leu Shakespeare?'. Hoje,

149
acho que se eu propusesse uma questão ainda mais simples - por exemplo: 'Defina o
que você quer dizer quando fala em 'massa' ou 'aceleração'', o equivalente científico de
'Você é alfabetizado?'-, talvez apenas uma em cada dez pessoas altamente instruídas
acharia que estávamos falando a mesma língua.

Responsabilidade

Vivendo quase exclusivamente no hemisfério das humanidades, recebo poucas


notícias do lado de lá. O que eu teria a dizer sobre ciência fica perto do zero.
Por outro lado, como especialista na minha própria ignorância, posso discorrer
sobre ela sem embaraços. Com as devidas ressalvas às exceções que devem existir
por aí, estendo minha ignorância a todo um grupo de pessoas e me pergunto de
quem seria a responsabilidade por sabermos tão pouco sobre as leis que regem o
que nos cerca. 
As respostas são previsíveis. Em parte, a responsabilidade é dos próprios cientistas,
que não fazem questão de se comunicar com a comunidade não-científica; em parte
é dos governos, que raramente têm uma política eficaz de promoção da ciência nas
escolas; e em parte - e essa é a parte que mais me interessa - é nossa, das humanidades,
que tomamos as ciências como um objeto estranho, alheio a tudo o que nos
diz respeito.
A quase totalidade dos personagens de classe média da literatura e do cinema brasileiro
contemporâneos pertence ao mundo dos artistas e intelectuais. São jornalistas, escritores
(geralmente em crise e com bloqueio), professores (quase sempre de história, filosofia ou
letras), antropólogos, viajantes (à deriva), cineastas, atores, gente de TV ou filósofos de bo-
tequim. Quando muito, um empresário aqui, um advogado acolá. Para encontrar um enge-
nheiro ou médico, é preciso voltar quase a Machado de Assis. Cientistas são pouquíssimos,
se bem que no momento não me lembro de nenhum. (Os filmes de Jorge Duran são uma
exceção, mas ele nasceu no Chile.).
É como se, do lado de fora das disciplinas criativas, não houvesse redenção. Em "Cidade
de Deus", o menino escapa do ciclo de violência quando recebe uma máquina fotográfica
e vira fotógrafo. Não parece ocorrer a ninguém - nem aos personagens, nem ao público - a
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

possibilidade de ele virar biólogo, meteorologista ou mesmo técnico em ciência. "Cidade de


Deus" é uma narrativa realista, e portanto tende a preferir o provável ao possível. Mas não é
só isso. Nenhuma daquelas profissões soaria suficientemente cool ao público - seria um anti-
clímax. Em nome da eficácia narrativa, bem melhor ele virar artista. Eleição para a Academia
Brasileira de Letras dá página de jornal. Já no caso da Academia Brasileira de Ciências, saindo
da comunidade científica, é improvável achar alguém que tenha pelo menos noção de onde
ela fica, que dirá saber o nome de algum acadêmico.

150
Há pouco tempo, escrevi o perfil de um jovem matemático carioca, Artur Avila.
Boa parte dos meus amigos -alguns deles muito bem informados- não sabia da existên-
cia do IMPA[Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada], sob vários aspectos
a melhor instituição de ensino superior do país (o número de artigos publicados em
revistas de circulação internacional de alto padrão científico, por exemplo, põe o IMPA
de par em par com alguns dos grandes centros americanos de matemática, como
Chicago e Princeton).

Descolados

Uma das minhas obsessões é folhear a revista dominical do jornal "O Globo". Existe ali
uma seção na qual eles abordam jovens descolados na saída da praia, de cinemas, lojas
e livrarias, para conferir o que andam vestindo. No pé da imagem, informa-se o nome e
a profissão da pessoa. Um número recente trazia um designer, uma produtora de moda,
um estudante, uma dona de restaurante, um assistente de estilo, outra designer, uma
jornalista, uma publicitária, um "dramaturg" (estava assim mesmo), uma estilista, outra
estilista e alguém que exercia a misteriosa profissão de "coordenadora de estilo".
Acompanho essas páginas há um bom tempo, e estatisticamente o resultado é
assombroso. Conto nos dedos o número de engenheiros, médicos ou biólogos que
vi passar por ali. Eles não podem ser tão mal vestidos assim. De duas, uma: ou são
relativamente poucos, ou a revista prefere destacar as profissões que considera mais
charmosas. As duas alternativas são muito ruins, mas a segunda me incomoda parti-
cularmente, pois sei por experiência como é poderosa a atração exercida por algumas
profissões com alto cachê simbólico. Dou aula na PUC-Rio, no departamento de co-
municação, que num passado recente oferecia apenas cursos de jornalismo e publici-
dade. Durante alguns anos, lecionei história do documentário para turmas de futuros
jornalistas. Em 2005 foi criada a especialização em cinema - e, hoje, quase todos os
meus trinta e poucos alunos são estudantes de cinema.

Pesadelo

Existem no Rio quatro universidades que oferecem cursos de cinema; no Brasil, são
ao todo 28, segundo o Cadastro da Educação Superior do MEC. No ano passado, a
PUC-Rio formou três físicos, dois matemáticos e 27 bacharéis em cinema. Existem
128 cursos superiores de moda no Brasil. Em 2008, segundo o Inep [Instituto
TEORIAS DO ESPORTE

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], o país formou 1.114


físicos, 1.972 matemáticos e 2.066 modistas. Alimento o pesadelo de que, em alguns
anos, os aviões não decolarão, mas todos nós seremos muito elegantes.

151
É evidente que um país pode ter documentaristas demais e físicos de menos. O
Brasil já sofre uma carência de engenheiros. Segundo dados de um relatório do IEDI
[Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial] entregue ao ministro da
Educação, Fernando Haddad, a taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à
da China, da Índia e da Rússia, países emergentes com os quais competimos.
A Rússia forma 190 mil engenheiros por ano, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil,
diz o relatório. Nós formamos 47 mil. Os números da China são pouco confiáveis,
mas outras comparações eliminam possíveis dúvidas. A Coreia do Sul, por exemplo,
com 50 milhões de habitantes, forma 80 mil engenheiros por ano, 26% de todos os
formandos. Na China, a crer nas métricas, essa proporção chega a 40%. Em 2006, a
taxa por aqui era de apenas 8%. Até o México, país com indicadores sociais semelhan-
tes aos nossos, hoje possui 14% de seus formandos nessa área.

Estagnação

Companhias que integram a "Fortune 500", lista das maiores empresas do mundo, man-
têm 98 centros de pesquisa e desenvolvimento na China e outros 63 na Índia. No Brasil
aparentemente não é feita esta contagem; se o número existe, consegui-lo é uma proeza,
o que só confirma a pouca importância atribuída ao assunto. O relatório do IEDI mos-
trou que os gastos totais em pesquisa e desenvolvimento como proporção do PIB estão
estagnados no país. Há cinco anos não cresce o número de empresas que investem em
desenvolvimento.
Em 2009, apesar da crise, a Toyota sozinha registrou mais de mil patentes. A soma
de todas as patentes requeridas pelas empresas brasileiras não chegou à metade disso,
segundo a Anpei [Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas
Inovadoras]. Somos detentores de 0,3% das patentes do planeta. Em termos de inova-
ção, ocupamos o 24º lugar entre as nações. O país prospera à força de consumo, não de
investimento ou invenção. Compramos coisas que foram pensadas lá longe, as quais se-
rão brevemente superadas por outras coisas que também não terão sido pensadas aqui.
É um processo estéril.
Escritores, cineastas e editores de suplementos dominicais se espantariam em saber
LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO FÍSICA

que, na China, a proficiência em matemática desfruta de uma forte valorização simbóli-


ca. Na Índia, um jovem programador de software se sente no topo do mundo. Há pou-
co tempo, o jornalista Thomas Friedman, do "New York Times", publicou uma coluna
sobre os 40 finalistas de um concurso promovido pela empresa de processadores Intel,
que premia os melhores alunos de matemática e ciências do ensino médio americano.
Cada um deles solucionou um problema científico. Eis o nome dos jovens americanos
premiados: Linda Zhou, Alice Wei Zhao, Lori Ying, Angela Yu-Yun Yeung, Kevin Young

152
Xu, Sunanda Sharma, Sarine Gayaneh Shahmirian, Arjun Ranganath Puranik, Raman
Venkat Nelakant -assim prossegue a lista, até terminar com Yale Wang Fan, Yuval Yaacov
Calev, Levent Alpoge, John Vincenzo Capodilupo e Namrata Anand.

Valorização pífia

Enquanto isso, como lembra o matemático César Camacho, diretor do IMPA, várias
universidades brasileiras têm vagas abertas para professores de matemática, não pre-
enchidas por falta de candidatos. A valorização das ciências entre nós é pífia.
Sempre me espanto com a presença cada vez maior de projetos sociais que levam
dança, música, teatro e cinema a lugares onde falta quase tudo. Nenhuma objeção,
mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios. Nin-
guém pensa em levar a esses jovens um telescópio ou um laboratório de química ou
biologia? Centenas de estudantes universitários gostariam de participar de iniciativas
assim. Com entusiasmo - e um pró-labore -, mostrariam que a ciência também é legal
e despertariam talentos. Seria bom também se o nosso sistema educacional fosse mais
flexível, com cadeiras de humanidades e iniciação científica no ciclo básico de todos
os cursos universitários.
É imprudente tomar uma decisão definitiva aos 18 anos de idade, mas é exata-
mente o que têm de fazer os alunos ao entrar na universidade - embora, como norma,
eles não saibam para o que têm vocação. Uma vez escolhido o escaninho, somem as
oportunidades de conhecer outras áreas e eventualmente migrar. Se em algum mo-
mento a vocação se manifesta, em geral o aluno e sua família consideram que é tarde.
Circunstâncias econômicas ou psicológicas - começar de novo exige determinação
férrea - dificultam muito um ajuste de rota. (Sei bem como é, porque foi o meu caso.)
É absolutamente certo que, neste momento, alguns milhares de jovens estão
prestes a cometer o mesmo equívoco. Muitos se revelarão apenas medianos ou pre-
guiçosos, e é provável que a ciência não tenha como alcançá-los. Sem desmerecer os
excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém
sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de
humanas do que num de exatas.
Alguns desses jovens sem orientação provavelmente terão inclinação para as ci-
ências e ainda não descobriram. É preciso criar mecanismos que os ajudem a escolher
o caminho certo. Infelizmente, as artes e as humanidades, pelo menos por enquanto,
não colaboram muito. Ao contrário. Nós disputamos esses jovens e, infelizmente, até
TEORIAS DO ESPORTE

aqui estamos ganhando a guerra”.

Disponível em: http://www.abc.org.br/article.php3?id_article=698

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