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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

•I

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COLETTE SOLER

a psicanálise

Tradução
Vera Avellar Ribeiro
Manoel Barros da Motta

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Copyright © 1998. Colette Soler
Copyrighc da tradução © 1998, Contra Capa Livraria

Projeto Grifico e Preparação

Contra Capa

Capa

“La Sphinge”, Tristan Soler, 1998

Revisão da tradução

Vera Avellar Ribeiro

A psicanálise na civilização - Colette Soler. Tradução: Vera


Avellar Ribeiro; Manoel Motta. — Rio de Janeiro. Contra Capa
Livraria, 1998.

480 p.; 14 x 21 cm

ISBN 85-8601 1-16-9


Inclui bibliografia.

I. Psicanálise. I. Título. II. Série.


CDD 150.195
CDU 159.964-2

1998
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
< ccapa@easynet.com.br >
Rua Barata Ribeiro, 370 — Loja 208
22040-000 — Rio de Janeiro — RJ
Tel (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526

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SUMÁRIO

Apresentação - Antonio Quinet

Parte i - Escritores
A literatura como sintoma I3
Duas vocações, duas escrituras 21
Rousseau, o símbolo 29
Jean-Jacques Rousseau e as mulheres 63
Constelação familiar de um paranóico genial 87
O filho necessário 93
Joyce: retrato do artista como jovem depreciador 107
Um-pai 117

Parte 2 - Analistas
Homenagem a Jacques Lacan 121
A aposta de Jacques Lacan 129
Por causa de Jacques Lacan... 13 3
O efeito Jacques Lacan 147
Théodor Reik, 1888-1969: um analisante modelo 155
Ferenczi, dernier cri 165
O ato falho de Ferenczi 173

Parte 3 - Mulheres
O não-toda I87
O não-todo do gozo e a sexualidade feminina 199
Mascaradas 205
Posição masoquista, posição feminina 209
A histérica e / Mulher: clínica diferencial 223

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Parte 4 - Política
Incidência política do psicanalista
A histeria no discurso da ciência
26 5
A identidade freudiana da psicanálise
i - 1 ■ • ^77
Os direitos do sujeito
O psicanalista e sua instituição

Parte 5 - Finais de análise

Que final para o analista?


Antecipações do final 323
Um por um 33I
Três finais 347
Vislumbres do final de uma análise 355
Dos fins... do amor 363
Entre palava e lógica 371
Apostar 377
Os postulados da experiência 383
Amar seu sintoma? 391
Experiência no dispositivo do passe 417
“O que posso esperar”... de uma psicanálise 465

Bibliografia

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UMA ORIENTAÇÃO POLÍTICA PARA A PSICANÁLISE

Nomeada por Lacan em 1980 como Diretora Adjunta da Causa


Freudiana, Colette Soler veio a ser a primeira Diretora da Es­
cola da Causa Freudiana, assim como sua conselheira, aten­
dendo ao apelo de Lacan em sua última tentativa institucional
para fazer existir o laço da psicanálise em intensão com a psi­
canálise em extensão. Desde então, vem desempenhando uma
função fundamental na transmissão da psicanálise de orienta­
ção lacaniana não só em Paris como no mundo.
Analisante e aluna de Jacques Lacan, Colette Soler foi mem­
bro da Ecole Freudienne de Paris (EFP), onde nos anos 1970 já
ocupava, apesar de sua juventude, um lugar na comunidade
analítica, sobressaindo-se como uma rigorosa comentadora do
texto lacaniano — suas primeiras contribuições na EFP datam
de 1975. Talento que se unia a sua formação na Ecole Normal
Supe'rieure de Fontenay-aux-Roses e de sua agregation em filosofia,
conjunção que dará a nota de rigor a seu estilo de transmissão
reconhecido internacionalmente. Prometida a uma brilhante
carreira universitária, abandonou os louros acadêmicos abrindo
mão em 1976 de sua função de ensino em Fontenay-aux-Roses,
cargo que ocupava desde 1969, para seguir a psicanálise na via
aberta por Jacques Lacan.
Colette Soler é um exemplo do que Lacan, na apresentação de
seus Escritos (1966), pede ao leitor novo: que ele coloque de si em
sua leitura. O comentário do texto efetuado por Colette Soler,

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i n e de encerrar-se em uma leitura unificante e unívoca, que
visada a uma suposta leitura oficial a banir qualquer outra, é
uma leitura elaborada com um saber que toca a verdade do
le ado de Freud, revigorado por Lacan. Saber extraído de mais
d? trinta anos de clínica analítica. O comentário do texto é
assim iluminado pela clínica, fazendo vibrar no leitor a corda
da verdade que ressoa nos recônditos do ser. Sem ser dogmática,
sua leitura esclarece e orienta.
Somando-se a seu talento na transmissão do ensino de Lacan,
é a partir do discurso do analista, como laço social inventado
por Freud e matemizado por Lacan como um dos quatro dis­
cursos que estruturam o campo social, que Colette Soler, com
essa chave na mão, abre as portas de escritores, analistas, mu­
lheres para daí extrair o que nenhum outro discurso seria ca­
paz: a parte de gozo, rechaçado pela civilização, que retorna ao
sujeito na arte, na teoria, no sexo. Retorno de gozo que cons­
titui o mal-estar na civilização aqui abordado pelo mal-estar
na política e na clínica do final de análise que concerne, propria­
mente falando, à formação do analista.
Esta coletânea de textos é uma amostra representativa daquilo
que sempre constituiu a preocupação de Colette Soler. Ela
sempre se destacou por seu interesse em vincular a clínica psi-
canalítica às questões de seu tempo, tanto no âmbito da ética
(vide sua intervenção em 1975 nas Jornadas da EFP), como
da arte, da política dos movimentos sociais e da política pró­
pria à psicanálise e as questões que dela derivam, como a for­
mação e a instituição psicanalíticas no mundo de hoje.
d psicanálise na civilização inscreve a autora e analista na via aberta
por Freud com seu texto “O mal-estar na civilização’ (1930)»
convocando os psicanalistas a refletirem sobre seu tempo e so­
bre a forma de se associarem e de tratarem o mal-estar entre si.
Este livro, que acolhe a produção de mais de dez anos de
trabalho, encontra-se em contato direto com a atualidade da
comunidade lacaniana. O anúncio de seu lançamento foi um

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dos fatores desencadeadores da crise que hoje abala a Associ­
ação Mundial de Psicanálise (AMP) e da cisão de 1998 da
Escola Brasileira de Psicanálise do Campo freudiano. Os pro­
cedimentos de censura e segregação que o Delegado Geral desta
AMP colocou em funcionamento, o cerceamento de suas trans­
ferências, a prática processual da qual foi alvo, o cancelamento
de suas atividades didáticas internacionais e a recente anula­
ção de seu seminário da Seção Clínica em Paris, eis alguns
fatos que situam Colette Soler na série de analistas que, como
Lacan, vêem seu ensino proscrito pela autocracia de uma asso­
ciação analítica. A impossibilidade de discutir seus pontos de
vista no âmbito da AMP levou Colette Soler a conclamar no
Congresso Internacional da AMP em julho último em Barce­
lona os analistas a se reunirem em fórum para retomar a ori­
entação de Lacan relativa à Escola e a formação analítica.
Efetivamente, a contribuição clínico-ética de Colette Soler à
psicanálise vai de encontro à atual política da AMP objetando,
com o discurso analítico, práticas de exercício de poder com
efeitos segregativos entre analistas, que só fazem aumentar o
mal-estar entre eles. Ao transformar a Escola em grupo, um
grupo comandado por Um — teorizado como Um necessário
por ser o Um da leitura, o Um da direção, o Um da orientação
é o próprio discurso analítico que daí é expulso. Pois o
grupo, como diz Colette Soler, “não encarna somente o Ou­
tro significante — que não existe e no qual o sujeito deve
alojar-se. Encarna também o Outro do gozo — que pode existir.
Neste caso não se trata da dimensão do ‘estar aí’, mas da dimen­
são do ‘eu estava ali ao vivo e a cores’. E um segundo aspecto
dos benefícios narcisistas do grupo: incluir um gozo que ao
mesmo tempo dissimula’’(p. 297)- A Escola, como formação
social distinta do grupo, abriga o discurso do analista, laço social
baseado na realidade psíquica, e como tal se opõe ao Um do
grupo, ao Um do Ideal do eu, modelo de identificação discernido
por Freud em “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921)

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jm massificador.
como o tuin ma A Escola é o que responde _no nível
da conjunção da psicanálise em intensao e em extensão a in-
cidência política desta nova dimensão da realidade psíquica”,
a quali “impoe r
se não apenas
;«Ar\Ap-se como dissimulada, mas como
pura diferença de um a outro; logo nao e possível de ser
coletivizada” (p. 258). O esforço de Colette Soler, evidenciado
nesu livro, é o de seguir a orientação de Lacan de colocar a
psicanálise à frente da política. Não só na questão da formação
do analista mas também diante dos avanços da ciência e das
peripécias e novas caras do discurso capitalista, versão moderna
do discurso do mestre que ordena nossa civilização onde a
"ciência comanda nossos desejos" (p. 261-2).

RIO DE JANEIRO, 8 DE NOVEMBRO DE 1998,


Antonio Quinet

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ESCRITORES

PARTE I

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A LITERATURA COMO SINTOMA*

Em seu Seminário, livro 2j: o sinthoma sobre Joyce (1975-6),


Lacan escreveu a palavra sintoma na forma em que esta era grafada
em francês — sinthome — introduzindo portanto o enigma da
equivocação translingüística. Em inglês, nela escutamos as palavras
sin (pecado) e home (casa), assim como as palavras francesas saint
(santo) e homme (homem).*1 Este jogo com a língua materna dá o
tom. Devemos tentar avaliar a importância dos efeitos possíveis
desta forma de manejar a letra2, 3mas não pensemos que isto é uma
questão literária; nisto vemos uma questão analítica. Além disso,
não causa surpresa que esta questão se refira ao psicanalista, pois a
instância da letra pode ser encontrada no inconsciente, como Lacan
o estabeleceu em 1956.’ De fato, temos aqui uma questão: como é
permitido à psicanálise falar sobre uma obra de arte, aqui sobre a
literatura?
De sua parte, Freud provavelmente não diria “Joyce o sintoma”,
mas sim “Goethe [ou Jansen] a fantasia”. Implicam estas frases um
menosprezo da obra de arte? Conhecemos o que Freud fez com a
literatura. Nos artistas ele viu seus precursores e nos textos literá­
rios, a oportunidade de validar o método analítico. De Sófocles a
Goethe, passando por Jansen e Dostoiévski, Freud encontrou na
ficção uma antecipação da descoberta do inconsciente. Portanto,

* “Literature as symptom”. Conferência pronunciada na Kent University em


maio de 1988.
1. N. do E. Em português, encontramos as grafias simptôma e symptòma, desig­
nando ‘‘accidente produzido pela doença, do qual se tira algum presagio ou
consequência”. Cf. Moraes Silva, Antonio de.Diccionario da Língua Portuguesa. Lis­
boa, Typographia Lacerdina, 18l 3, p. 701 e 746. Neste sentido, poderíamos
escutar as palavras ‘‘sim”, ‘‘toma”.
2. N. do T. No original letter; como o francês lettre, significa tanto ‘‘carta” como
<<f ♦ »
letra .
3. N. do E. Trata-se do texto de Lacan ‘‘A instância da letra no inconsciente ou
a razão desde Freud” (1957). Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1988, p. 496-53 3.

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para Freud, o neurótico é aquele que parece copiar a fábula ao nar­


rar sua história familiar, a qual chama de o “romance familiar”,
para dizer que sua fantasia é estruturada como um romance. De
todo modo, Freud entrou na psicanálise aplicada ao tratar o savoir-
faire do artista como eqüivalente do que ele proprio chamou de o
trabalho do inconsciente, colocando as obras artísticas e literárias
no mesmo nível dos sonhos, dos lapsos, dos atos falhos e dos sin­
tomas, todos estes interpretáveis.
Neste ponto Lacan inverte a posição freudiana: o texto escrito
não deve ser psicanalisado; antes é o psicanalista que deve ser bem
lido. A psicanálise não se aplica à literatura. As tentativas de fazê-lo
sempre manifestaram sua futilidade, seu desajuste em fundamentar
mesmo o mais tosco julgamento literário. Por quê? Porque os tra­
balhos artísticos não são produtos do inconsciente. É bem possível
interpretar um romance ou poema — isto é, compreendê-lo —
porém este sentido não tem nada a ver com a criação do próprio
trabalho. Este sentido não tem uma medida comum com a existên­
cia do trabalho e um enigma permanece do lado da existência da
obra de arte. Isto inclusive poderia ser uma definição possível do
trabalho em sua relação ao sentido: o trabalho ao mesmo tempo
resiste e se presta à interpretação. No entanto, ainda que a psicaná­
lise não se aplique à literatura, aquela pode aprender uma lição des­
ta, tirando uma página de seu livro, se assim o fosse. Mais precisa­
mente, o ensino de Lacan mostra que podemos aprender não só a
partir de sua obra, como também de sua pessoa e de sua vida, sem
que seja necessário subtrair um ao outro. Ou seja, a psicobiografia
é possível, porém ela não explica a obra de arte, impossível de ser
deduzida da vida do autor. Ainda assim, seguindo numerosas refe­
rências literárias de Lacan, podemos dizer: Hamlet, desejo ,
“Antígona, beleza”; “Gide, o fetiche”; “Sade e Kant, a vontade de
gozo”; “Edgar Allan Poe, a letra” e finalmente “Joyce e sua literatu-
ra> o sintoma *.
O recurso de Lacan à literatura segue estritamente seu recur
so à lingüística. Sabemos que muitos — não todos, mas os membros

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

da IPA quiseram ai denunciar uma tendência para o inte­


lectualismo e para o verbalismo. Todavia este recurso inicial de Lacan
foi necessário e inevitável por uma simples razão: a lingüística
consigna o "material” da análise, e até mesmo o “dispositivo com o
qual se opera na análise”, que não é nada além das assertivas profe­
ridas pelo analisante e pelo analista.
Porém a própria operação analítica não é uma operação lin­
guística porque ela atesta o domínio da linguagem no sintoma, con­
forme este se apresente na análise. Eu considero aqui o sintoma em
seu sentido clínico, no modo em que ele é apresentado ao analista,
ou seja, como aquele que não cessa de se impor ao sujeito. Consiste
em um não ser capaz de parar de pensar, ou de sentir no corpo ou
de experienciar afetos, e é somente através da fala que se pode
mudar o pensamento, a sensação do corpo e o afeto.
Retornemos à literatura. Em psicanálise, a linguagem opera
sobre o sintoma e a questão que se nos defronta é a de saber como
o uso literário da linguagem pode ser denominado um sintoma.
Basta deixar de lado a fala em favor da escrita? E como pode a
criação literária — o tempero da civilização, como freqüentemente
se pensa — ser colocada no mesmo patamar do sintoma, quando
por sua própria definição um sintoma é aquilo que é um tanto
"inusitado” (fishy') ou não “se ajusta” (fit in) bem? Imcialmente,
gostaria de indicar o encaminhamento geral da solução: a criação
literária pode ser um sintoma porque o sintoma é por si só uma
invenção. O que significa criar? A resposta é: trazer algo à luz la
onde antes havia nada. Entretanto ao dizer “lá onde havia nada”, eu
já implico um lugar. E não há tal coisa como um lugar sem o sim­
bólico e suas marcas, toda marca simbólica engendrando como va­
zio o lugar que ela cria (create').
Permitam-me narrar em um tom mais leve uma recordação
pessoal de meus dias de suposta educação religiosa. Tinha cerca de
nove ou dez anos quando um velho cônego se aproximou de mim du­
rante um exame e com grande pompa e circunstância me fez uma per­
gunta banal do catecismo: “O que havia antes de Deus criar a terra?”.

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COLETTE SOLER.

O que vocês responderiam? Eu respondi com a maior autoconfiança:


“Nada”. Observem que nada (not/ung) não é nada além do que
permanece quando o significante terra é barrado. Porém minha
resposta não foi correta; para minha surpresa e sanção, a resposta
era: o nada (nothingness). Isso causou um grande efeito sobre mim.
Eu até perguntei para as pessoas à minha volta, apresentando-lhes
o problema, mas o velho cônego demonstrou estar certo. O nada
não é nada. É a palavra que foi inventada para se falar do impensável
vácuo pré-simbólico, que comparado com “nada” — o resultado da
elisão de algo — é um animal de outra estirpe, embora isto de
forma alguma desconsidere as aporias da criação divina! O que é
claro é que toda criação supõe que o simbólico suscitou uma falta
no real, onde por definição nada pode faltar.
Posso completar minha primeira assertiva: a criação traz algu­
ma coisa à luz lá onde nada existia, exceto um buraco, que não é
nada. Este vazio é constatado em todos os níveis da experiência
analítica — em primeiro lugar, como a falta do sujeito, sendo o
efeito inicial da fala transformar o vivente no sujeito do querer-ser,
simbolizado por nós pelo o -<p da castração. Como uma conseqüência
deste primeiro nível, ele também é como a falta do objeto que
tamponaria esta rachadura ou fissura. Isto é o que Freud aborda
com sua teoria de um objeto que está sempre substituindo um ob­
jeto originalmente perdido. Reconhecemos nesta formulação que é
simplesmente a falta do sujeito que dá ao objeto sua importância.
O que, por sua vez, Lacan retoma com o embasamento de sua
lógica do significante na assertiva: “não há relação sexual”. O que
isto significa? Certamente há corpos, corpos biológicos de diferen­
tes generos assim como aqueles que erigem ideais sexuais: “virgem .
puta , mulher e assim por diante. Nenhum destes inscreve o ob­
jeto que anularia a falta sexual e todos eles falham na compensação
buraco, pois o parceiro de gozo é inabordável na linguagem •
mo resultado, procura-se; e é por isto que se fala e que não há
sive satisfação no blablablá, a não ser que se encontre uma-
substituição.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

É isto o que o sintoma faz: ele tampona o “não há tal coisa”


da não-relação com a ereção de um “há”. Dada a falta do parceiro
adequado de gozo, um sintoma coloca alguma outra coisa no lugar:
um substituto, um elemento adequado para encarnar o gozo. Sua
primeira conseqüência é que não há sujeito sem sintoma, sua fun­
ção sendo a de fixar o modo de gozo privilegiado do sujeito. É o
sintoma que cria a singularidade do sujeito, sujeito de outra forma
à grande lei do querer-ser. O sintoma é uma função — uma função
lógica — de exceção relativa ao trabalho infinito, a cifra infinita do
inconsciente. Um sintoma represa, crava o gozo, ao passo que o
inconsciente desaloja o gozo.
De que modo nos deslocamos da descoberta freudiana até as
últimas fórmulas sobre o sintoma? Em termos freudianos, a deci­
fração do sintoma revela a fantasia e a satisfação libidinal que ela
engendra. A noção freudiana de formação de compromisso implica
que o sintoma constitua o retorno do gozo recalcado. Não é sim­
plesmente a memória do gozo; é o gozo sempre presente, imutável
em seu cerne. Ora, se ele pode ser decifrado e sua transformação
levada a termo, para nós lacanianos, podemos deduzir que ele é da
mesma natureza que a linguagem — o que explica a tese de que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem. Mas, por outro
lado, sua inércia contrasta com o que é próprio à linguagem,
notadamente a substituição dos signos, substituição pela qual o
significado é engendrado. Esta contradição é resolvida por Lacan
da seguinte maneira: no sintoma, o significante é, digamos assim,
casado com algo mais, encontrando-se portanto transformado.
E o que seria este algo mais senão o que é manifestado no
sofrimento e reside na fantasia, precisamente o que chamamos de
gozo? Investir um termo, um significante, o qual é subtraído da
substituição significante, da incessante cifra do gozo inconsciente,
transforma-o em uma letra que é fora do significado e portanto
real, uma letra que sozinha é capaz de fixar ou amarrar o próprio
ser de gozo. É por isso que Lacan diz que o significante retorna na
experiência como uma letra.

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Mas então como pode a literatura ser um sintoma? A literatu


ra serve, é claro, como um veículo de gozo. Mas qual gozo? Muito
freqüentemente o gozo do significado, especialmente no caso em
que é uma literatura romanesca e faz uso da ficção; em outras pala­
vras, do imaginário. Isto não é uma contradição? Aqui gostaria de
considerar o exemplo de uma invenção sintomática dado por Lacan
De acordo com ele, não é somente a literatura de Joyce que pode
ser chamada de sintoma. Também uma mulher o pode, ou ainda,
para tomar outro exemplo, um cenário masoquista ou mesmo a
invenção lacaniana do real. Quando um homem obedece ao modelo
paterno, uma mulher4 pode ser sua invenção sintomática porque A
mulher (com A maiúsculo) não existe. O que quer dizer que a su­
posta normalidade, heterossexualidade — que Lacan escreve normt-
mâle ou père-version' — é ela própria um sintoma. Um sintoma que
Freud interpreta no Complexo de Edipo.
Aqui podemos ver que talvez a invenção não seja criação. O
sintoma inventa — o que significa: escolhe, seleciona — o termo
singular que não é programado pelo Outro, e que fixa o gozo. Mas
este termo não é necessariamente um termo original. Neste senti­
do, se a criação — a verdadeira criação que produz uma novidade
radical — é um sintoma, ela o é um especial, e poderíamos dizer
que o artista/criador está sempre sem pai. Ainda que sempre data­
do, seu trabalho não tem filiação. Ele é sempre “filho de seu traba­
lho”, como dizia Cervantes. E no entanto é sempre tolo procurar
pela chave da obra de arte em suas fontes. O cenário masoquista
como um sintoma é outra coisa. Mas o seu caso é instrutivo uma
vez que ele indica que um cenário — isto é, o imaginário - pode
ser a variável do sintoma. Todavia por que não falar do mesmo
modo sobre o sintoma romanesco? A experiência clínica fornece
exemplos entre leitores, mas também entre artistas/criadores.

4- N. do T. No original encontra-se a seguinte observação da autora, mui


(womunj com o a sublinhado”. . .
5- N. do T. Conhecido neologismo de Lacan possibilitado pela homofon
pcrvtrsion (perversão) eptrt-version (versão do pai ou pai-versão).

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Leiam novamente, por exemplo, o relato de Jean-Jacques Rousseau


sobre a composição de A Nova Heloísa, o romance que fez a Europa
tremer. Certamente um romance se dedica ao significado, ao passo
que um sintoma é real, fora do significado. Mas isto é um paradoxo
apenas aparentemente, uma vez que nada opõe uma unidade de sig­
nificado como faz o romance ao um do sintoma.
É neste contexto que Lacan evoca Joyce, usando Finnegans Wake
para ilustrar a mensagem de Edgar Allan Poe sobre o objeto-carta
(Jetter-object'), o lixo (litter'). Qual foi, segundo Lacan, a mensagem
de Poe ao escrever ‘‘A carta roubada”?6 A carta não é somente um
veículo da mensagem; a carta é também um objeto. Joyce usou a
equivocação, que é a essência da poesia, como um força exponencial
excluindo o significado, elevando-a à força do ininteligível. Antes
de Joyce não se poderia dizer que os poetas, mesmo no ponto mais
alto de sua arte da letra, demonstrassem algo mais que a eficácia da
letra na gênese do significado. O poeta torna clara a junção ou a
costura na qual a audácia da letra engendra algo novo no significado.
Esta é uma operação em que o poeta subverte o assim chamado
senso comum. Esta operação certamente produz um gozo para o
qual a antinomia kantiana gosto/julgamento não apresenta obje­
ção, uma vez que este gozo não precisa ser universal para ser com­
provado. No entanto este gozo não é o puro gozo da letra. Ele não
vai além do gozo do chiste, o qual em sua literalidade produz um
efeito de significado, e algumas vezes quase um não-significado.
Seu gozo emerge na junção em que o significado brota do literal,
indo mais-além e então curto-circuitando a intenção do sujeito.
Portanto a poesia e o chiste são um savoir-faire da letra porém
isto significa mover o inconsciente. Joyce dá um passo a mais com
Finnegans Wake. Ele consegue usar a linguagem — onde o conhe­
cimento inconsciente reside — sem fazer o significado vibrar.

6. N. do E. Para os comentários de Lacan a respeito desta questão ver especial-


mente “Seminário sobre ‘A carta roubada’ " (1955). Em: Escritos. Op. cit., p. 13-66. Para
o conto de Edgar Allan Poe, Poe, E. A. Ficção completa, poesia e ensaios. Rio de Janeiro,
NovaAguilar, 1997.

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É por isso que Lacan diz que Joyce é “desabonado do inconsciente”,


ou seja, não registrado no inconsciente. Este trabalho, caracteri­
zado por algo como uma elação, algo muito próximo do qUe eni
psiquiatria é chamado de mania, livre do peso do significado, per­
tence à era científica. Ele fascina pelo gozo que atesta, e tem urna
maior afinidade com o gozo ejue os matemáticos encontram nos
números do que com o romance clássico. Ele talvez inclusive assi­
nale o fim do sintoma literário clássico. Mas observem que Joyce
não se fecha dentro do ininteligível: outra das realizações de Joyce
foi ter sucesso em impor a seus comentadores, por muitos séculos
ainda, o peso de significado que seu trabalho representa.
Mas em que o sintoma de Joyce interessa aos psicanalistas?
Mais precisamente, o que em seu savoir-faire interessa aos analis­
tas? O que interessa a estes é o limite da ação analítica. O sintoma
de Joyce é um sintoma não analisável; ele é, em seu próprio gozo,
fechado aos efeitos de sentido, ou seja, ele é fora da transferência.
E a psicanálise é precisamente uma prática que opera através do
sentido. Ela assume que o sujeito permita a ele próprio ser seduzido
e cativado pelo significado, como um efeito da articulação
significante. Ora, este limite, o que provavelmente explica por que
Joyce não fez análise, surge para Lacan como o modelo do final de
uma psicanálise. Joyce foi diretamente ao melhor do que pode se
esperar no final de uma psicanálise, diz Lacan. Por quê? Qual é o
problema analítico aqui em jogo? É o problema de pôr um termo
na relação transferencial com o analista, que é, ele próprio, um novo
sintoma. É o problema de deixar de engajar o analisante no gozo-
do sentido do inconsciente. Neste ponto Joyce é um exemplo e
o é o que Lacan nos ensina com Joyce. Aqui, podemos vê-lo, cada
prende até o limite de seu próprio conhecimento. E creio que
estamos muito longe de alcançar Lacan.

7. N. do T Equivocação proposta por Lacan


(gozo-do-sentido) entre jouissance (gozo) e jouis-sens

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DUAS VOCAÇÕES, DUAS ESCRITURAS*

Escolhi ater-me a uma comparação entre Joyce e Rousseau.


Esta aproximação é justificada pelo fato de que ambos, com mais
de um século de distância entre eles, colocam o mesmo problema
para nós: compreender a compatibilidade, até mesmo as afinidades,
entre a estrutura psicótica e a criação.
Construí um Rousseau anti-Joyce, ou um Joyce anti-Rousseau.
É o contraste entre as palmadas que levam o que inicialmente me
sugeriu esta aproximação, e sobre o fio desta primeira oposição,
uma série de outras que surgiram, as quais não retomo aqui, mas
que me conduziram à seguinte questão: a Joyce o sinthoma não se
deveria opor um Rousseau o imaginário? Seria bastante coerente
com a definição que Lacan propõe da paranóia como “viscosidade
imaginária” (engluenient imaginaire) em 1975-
Destacarei três pontos: o desencadeamento das duas vocações,
a oposição dos dois tipos de escrita e a função subjetivamente dife­
rencial destas.

Duas vocações

Eu sabia há muito tempo como a escrita viera a Jean-Jacques


Rousseau, através do que ele próprio chama de a “revelação de
Vincennes”. Descobri mais recentemente o momento correspon­
dente em Joyce — ao menos se nos fiarmos em seu Stephen o herói,
como há algumas razões para fazê-lo.
Rousseau se tornou escritor em um momento de interlocução,
para responder a um Outro. O contexto é muito interessante.
Diderot está preso na Bastilha. Rousseau, o amigo terno, vai visitá-lo,
e vai a pé, é claro. Ele tem debaixo do braço o Mercure de France para
ler um pouco, caso precise descansar. É então que se defronta com

Deux vocations, deux écritures”. Texto apresentado a “Soirée bibltothèque


e ^4 de junho de 1988 e publicado em Lettre Mtnsuelle, n. 8l, 1989.

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a famosa proposição da Academia de C.ênc.as e de Belas Letras de


Diion Esta anuncia que o prêmio de moral para o ano de I75o
"será concedido àquele que melhor solucionar o seguinte problema;
o restabelecimento das Ciências e das Artes contribuiu para depu-

rar os costumes? •
A conjuntura objetiva é portanto muito simples. Sobre o eixo
imaginário: os dois amigos, Jean-Jacques e Diderot a vítima. Entre
eles o grande Outro da lei que aprisionou Diderot. Não falamos
disto aqui, mas sabemos por outras vias que Rousseau estava muito
emocionado, e mesmo agitado, com o golpe que atingia seu alter-
ego Diderot. Esse Outro da lei implicitamente presente duplica-se
de repente de um Outro do saber, o qual se dirige aos eruditos para
interrogar o valor dos saberes do tempo. Aí Rousseau foi tomado
por esse distúrbio inexprimível que descreveu muitas vezes segui­
das, notadamente em Cartas a Malesherbes, e que certos autores, Janet
sobretudo, compararam aos transes dos místicos. Releiam o texto.
À questão do Outro do saber a resposta do sujeito Rousseau é a
revelação íntima, ou seja, a presença de uma verdade que não é pos­
ta em palavras senão parcialmente, Rousseau insiste nisso, mas que
é totalmente transformada em emoção como certeza do sujeito.
Esta verdade sem dúvida é recusa da mensagem implícita do Outro
e e inteiramente contestadora. Rousseau permanece no registro da
comunicação, da troca das significações às quais podemos nos identi­
ficar, porém o faz para denunciar e consignar uma nova mensagem.

Outro da lei
Outro do saber
irto
Jean-lacques identificação £rt*
Diderot
c
o
u
a verdade emocionada
certeza do sujeito
As Epifanias de Joyce são completamente diferentes. E as coiy
tituem um fenômeno extremamente opaco ao qual com certeza nao

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h PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

é a compreensão que nele pode nos introduzir. Ora, esses pequenos


textos em prosa que Joyce escreveu bem no começo de sua carreira,
ele os identifica a sua vocação de escritor. Sabemos que ele era
apegado a isso como à menina de seus olhos, e que muito cedo ele
confiara a seu irmão a tarefa de salvá-los do desastre do esqueci­
mento, caso ele viesse a desaparecer. E no entanto esses textos es­
critos em pedaços de papel nada têm de inventivos. Propriamente
falando, não são criações. São retalhos fora do contexto, fragmen­
tos de descrição ou de conversações pegos no ar, nos lugares públi­
cos. Pedaços de discurso extraídos. Oponho então à iluminação de
Vincennes o “poeta premeditado” das Epifanias — é a própria ex­
pressão de Joyce. O primeiro passo de seu herói é a consulta ao
dicionário etimológico de Skate:

Ele encontrava palavras para seu tesouro. Ele as recolhia


também ao acaso nas butiques, nos cartazes, nos lábios da
multidão que se arrastava. Ele as repetia para si tanto e tanto
que. no final, elas perdiam para ele sua significação imediata e
se transformavam em falas admiráveis. Ele resolvera interditar
para si, com toda a energia de sua alma e de seu corpo, até
mesmo a menor adesão ao que ele agora considerava como o
inferno dos infernos — em outros termos, a região em que
qualquer coisa aparece como evidente. ...] Certas expressões
lhe vinham, exigindo serem interpretadas. Ele se dizia: devo
esperar que a Eucaristia venha a mim. Em seguida ele se aplicava
na transformação da expressão segundo o sentido comum.

Vocês terão observado primeiramente a expressão “as palavras


para seu tesouro”, que evidentemente evoca para nós seja o tesouro
dos significantes de Lacan, seja a língua fundamental de Schreber.
Eis aí um sujeito que vai recolher náufragos de discurso1, que ex­
traindo-os de seu contexto consegue repelir a significação, pois
esta precisamente não decorre senão sob a condição de que um

I- N. do T. Aqui a autora utiliza o termo "épaves de discours . Em francês, épaves


corno substantivo plural significa "destroços”, "salvados de naufrágio ou res-
tos . como adjetivo, significa "perdidos", "sem dono".

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significante seja referido a outros. E preciso que ele nos diga qUa[ ,
seu objetivo. É a evidência, aquela das significações comuns. As
Epifanias desmontam o Outro do sentido comum, o Outro do dis
curso corrente. Em Rousseau, este Outro não existe para ser des­
truído, mas para ser contestado e Rousseau se mantém em seu nível
o da significação. A operação epifania é radical de outro modo: fora
da polêmica, ela quebra a própria linguagem deste Outro.
Eu me interroguei sobre o contexto desta operação. Nela bus­
quei os rastros da relação ao semelhante tanto quanto ao grande
Outro. Eu descobri com surpresa que Joyce tomava o cuidado de
nos precisar que seu herói sofria nas mãos de seus colegas. Sobre o
eixo imaginário, seus colegas de colégio lhe são insuportáveis; estes
inclusive o deixam "enojado”, tal como ele o ficará mais tarde com
a surra. E também há um Outro da dissertação. Espantosa coinci­
dência, não é? Joyce explica a aplicação de Stephen na redação de
suas composições em inglês: "Ele aí se distingue por um certo tom
original um pouco sumário; ele não se dava a nenhum trabalho de de­
senvolver as audácias expressas ou subentendidas em seus escritos .
O Outro da dissertação encarnado pelo pai Butt é o Outro da tra­
dição jesuítica na qual Joyce foi educado. Aqui há uma grande dife­
rença de Rousseau a Stephen. Rousseau se via como autodidata.
Ele não se emparelha com os eruditos e pensadores da época no
momento em que começa a escrever. Já Stephen é um herdeiro da
tradição, ainda que aí ele seja atípico pela posição de sua família.
Como Descartes que, tendo estudado nos melhores colégios, pôde
traçar uma linha sobre todos os saberes de seu tempo e fazer surgir
seu cogito, Joyce-Stephen, experto em Humanidades, fabrica epifanias
subversivas de toda significação.

Outro da dissertação

nojo
irúo CS
V)

revelação epifânica

9 A

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Então o que ele busca? Ele o diz: fazer surgir a própria coisa.
Jvlais-alem das significações, fazer aparecer o que ele chama de um
termo tomado de São Tomás, a claritas , de algum modo o ser das
coisas.

Duas escritas

A escrita de Joyce é destruidora da linguagem. Isso começa


com As epifanias, isso termina com Finnegans Wakc, inicialmente pu­
blicado com o título ITorÁ in progress. As epifanias destroem o que
chamarei de o um de significação, já que dela existem muitos uns.
O procedimento é simples. O um de significação é produzido pelo
ponto de basta, que esquematizamos com o binário significante
S _S Joyce extrai um peça destacada, que de golpe se encontra
insensata: S -S2< A Epifania é um destroço fora do sentido e por
isso com o lastro de um peso de enigma. Em Finnegans Wake, esta
destruição da linguagem vai mais longe. Joyce não ataca somente a
sintaxe de uma língua, ele também ataca o um de significante. Ele
atenta contra os elementos da língua, aqueles que o dicionário re­
censeia. Ele os desfaz, combina-os, neles injeta línguas estrangeiras.
Donde um impossível a decifrar, que leva o equívoco à inin-
teligibilidade. É um savoir-faire com a língua que alcança uma
foraclusão do sentido. Como Lacan o observou, é sensível que haja
para Joyce um gozo neste exercício, confirmado, como seus próxi­
mos o indicam, pelas gargalhadas com que acompanhava suas eja­
culações verbais.
A escrita de Rousseau é oposta. Sem dúvida é a mais bela prosa
do século XVIII. Rousseau por certo introduz algo do novo no
espírito da época, porém com a língua comum. Ele se serve da es­
crita, todavia para se fazer reformador, censor, modelador de idéias,
artesão de uma retificação dos gostos e das consciências, e aqui
seria preciso falar de sua notoriedade, de sua influência. Ele foi o
homem mais célebre, o mais amado e também o mais vilipendiado
seu tempo. A crermos em Lacan, terá ele deixado sua marca na

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língua como joyce, que pôs fim à literatura? E duvidoso. É certo


que há um estilo Rousseau. Ele tem sua maneira própria, porém ela
permanece nos limites da retórica e mesmo da rítmica. Lá onde
Joyce leva a sintaxe à desgraça, Rousseau a conduz ao ritmo de seu
eu (moí), ajusta-a ao fluxo de seus pensamentos, de seus estados, de
suas emoções. Certo, Rousseau não respeita o Outro, nem mesmo
o da filosofia iluminista, mas ele respeita a língua. Joyce não respei­
ta nem o Outro, nem a língua. E um passo a mais. E não é por acaso
que Joyce pode dizer que, em razão de sua significação, trivial, as
palavras “lhe faltam com o respeito”.

Função diferencial da escrita

Temos a tese de Lacan: para Joyce, a escrita preenche uma função


de sintoma. Isso não significa somente que Joyce goza de escrever,
o que seria verdade para todo escritor. Isso quer dizer antes de tudo
que ele atinge a um gozo da letra, fora do sentido, desconectado do
Outro e dos efeitos de comunicação. Se o que realça naquilo que
ele nos apresenta é mais o cálculo poético do que as palavras faladas
impostas, isto é por certo difícil de dizer. Em todos os casos, isso
não explica que ele publique. O sintoma implica que ele publique,
pois é através disso que de seu sintoma da letra ele se faz um nome,
pelos séculos dos séculos assim ele o crê, corrigindo então a falta
do imaginário pela qual ele é afetado.
Rousseau não tem uma escrita sintoma. Ao contrário, ele cons­
truiu significações capazes de colonizar o furo da foraclusão. Ele
construiu varias delas no curso de suas obras, passando do registro
político ao registro romanesco de A Nova Heloísa, à meditação peda­
gógica com o Emílio, a propósito do qual ele teve seu primeiro epi­
sódio francamente delirante, e enfim às obras autobiográficas. As-
m vemos Rousseau assumir ideais sucessivos em uma estratégia
f lh *nSCFeVe a^° um simbólico novo lá onde o Nome-do-Pai
1 ’ I tOrn° ^esse ^uro acampam sucessivamente Rousseau o
g or, o retificador da sociedade corrompida, em seguida

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Rousseau o romancista moralista do amor denoiç Ra


cador, o visionário do Homem
< , t D • um m°ao mais ge­
verdadeiro e dee urn
ral, ate o final, Rousseau o inocente, exemplo do bem nativo.

o inocente moralista do amor

Neste sentido, podemos dizer que Rousseau tentou fabricar


suplências simbólicas. Se Joyce pode por vezes evocar a língua fun­
damental de Schreber, Rousseau está mais perto de evocar para nós
o trabalho do delírio. Porém ele fracassa lá onde Joyce foi bem-
sucedido. O que de seu lado ele foraclui lhe retorna de fora, e ele
que se “crê” inteiramente bom, termina perseguido pelos malvados
que o acusam. Ele fracassa não em fazer uma obra, mas em tratar
sua paranóia através de sua obra.

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ROUSSEAU, O SÍMBOLO*

Jim é uma personagem genial. [...] Possui uma extra­


ordinária coragem moral — tão imensa que pude esperar que
ele um dia se tornasse o Rousseau da Irlanda. No entanto
Rousseau podia ser acusado de procurar desviar de modo sub-
reptício a cólera dos leitores que o desaprovavam, confessando-se
a estes, o que, em nenhum caso, se pode suspeitar de Jim. Ao
contrário, sua grande paixão é um violento desprezo do que ele
chama de o "acanalhamento” — um ódio selvagem, insaciável.
(Stanislaus Joyce, JornaP).

“Joyce o sintoma”, diz Lacan em 1975- É uma tese sobre Joyce


que implica uma outra sobre o sintoma. Eu a converto em uma
questão que coloco para aquele que Lacan, em 1932, chamava de
“um paranóico genial”: Jean-Jacques Rousseau.
De fato, em sua tese sobre a paranóia de autopunição1 Lacan
convocava Rousseau em um paralelo com sua paciente Aimée, para
introduzir a questão das afinidades entre a psicose e a criação artís­
tica, notadamente literária. Hõlderlin, Nerval, Van Gogh, Rousseau,
Joyce e tantos outros nomes aí estão para dizer que a psicose não é
simples déficit ou desordem. Quanto à tese pela qual Michel
Foucault concluía sua História da loucura na idade clássica (1961), e
que pretendia a exclusão entre obra e loucura, uma expulsando a
outra, ela afasta o problema sem resolvê-lo.
De sua parte, à idéia de psicose como simples carência Lacan
inicialmente contrapôs a idéia inversa da psicose eventualmente
geradora do “sem par”, grávida, por exemplo, das qualidades de
exceção que marcaram tanto a personalidade como a obra de Jean-

Rousseau le symbole . Publicado em Omiear?, n. 48, Revue du Champ freudien,


^989. Anteriormente traduzido para o português em Opção Lacaniana, n. 18, abril

r Publicada em português com o título de: Da psicose paranóica em suas


í'es com a personalidade. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987-

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COLETTE SOLER.

Jacques Rousseau. Seria necessário ainda explicar a disparidade efe­


tiva dos fatos psicóticos, e compreender como o que se impõe na
maioria das vezes nos fenômenos de anomalia ou deficiência pode
também se desdobrar em efeitos de criação. E a função causal da
foraclusão do Nome-do-Pai que, uma vez reconhecida no fundamento
da psicose, permite ordenar e unificar suas diversas manifestações.
Pode-se, com efeito, conceber que a falha do simbólico que a
foraclusão descobre se traduza, de um lado, em efeitos desor-
ganizadores designados com o termo “perda da realidade”, mas que,
por outro, funcione como um starter para produções inéditas. Elas
nem sempre chegam até o sumo da arte, mas todas são o traço de
que a foraclusão libera um efeito que podemos chamar de “empuxo
à criação”. Lacan reconhece em Joyce aquele que levou este empuxo
até seu limite extremo identificável, até a função do sintoma, uma
vez que esta dá o salto do simbólico ao real. Joyce artesão de si
mesmo, tanto de seu nome como de sua saúde, se converte com
Finnegans Wake em senhor da letra, se quisermos, o demiurgo de uma
linguagem sem Outro, de uma arte inteiramente neológica que bri­
lha com a ocultação de um gozo estranho e fora do sentido. Não há
dúvida de que Rousseau ilustra um caminho diferente, ele que foi
causa de tanta paixão.

Joyce e Rousseau

Pode haver algo mais dessemelhante de um Joyce do que um


Rousseau? Tudo parece contrapô-los e em primeiro lugar a emer­
gência do inconsciente freudiano, apontando o fato de que se Joyce
escreve sem a psicanálise, não escreve sem Freud. É verdade que o
próprio Joyce empresta a seu herói Stephen uma experiência de
compreensão instantânea” daquele que ele chama de o filósofo
perverso : Jean-Jacques Rousseau. E, se lhe damos credito, é o me
mo encontro que em uma outra ocasião o põe em contato corn
espírito de Ibsen” em uma "simultaneidade de irradiação (199
p- 3 54). Será preciso ver aí o índice do reconhecimento de
obscura afinidade? E no entanto que contraste!

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Um trombeteia a verdade e quer tudo dizer até a transparência.


O outro monta os equívocos da língua como mistérios e os impele
ao ininteligível. Este joga com o hermetismo que confunde, en­
quanto o apóstolo da verdade, condenado à explicação repetida que
deve accossar o mal-entendido, cativa seu leitor em uma interlocução
forçada. Com um, as reverberações do enigma; com o outro, as
miragens da confissão e da evidência, que se traduzem sobre o lei­
tor em efeitos bem distintos: Joyce, quando não entedia, fascina;
Rousseau, quando não fatiga, encanta. Questão de gosto.
Oporíamos também suas pessoas e notadamente o que foi o
ponto de partida de minha questão: a palmada erotizada nas náde­
gas de Jean-Jacques e a surra indiferente no pequeno James. A pri­
meira, diz Rousseau, “recebida aos oito anos das mãos de uma mulher
de trinta, decidiu de meus gostos, de meus desejos, de minhas pai­
xões, de mim para o resto de minha vida” (1987, p- I 5)- A segunda
se apaga sem comoção logo que os golpes acabam, pois Stephen,
diz Joyce, “sentira que uma certa potência o despojava desta cólera
subitamente entrelaçada, tão facilmente quanto um fruto se despoja
de sua pele tenra e madura” (1966, p. 611). E nesta falha da vindita
que Lacan viu o signo de um “deixar cair o corpo próprio” muito
suspeito de psicose. Está claro, em todo caso, que o imaginário não
tem para cada um a mesma função. A falta do ego joyceano cuja
hipótese é elaborada por Lacan se opõe em Rousseau esta sensibili­
dade tão contundente e sempre voltada para o quem vem lá?, em
uma palavra, esta “viscosidade” no imaginário que é o próprio da
paranóia.
Donde uma questão analógica. Se a arte de Joyce remedeia a
falta de seu ego, a que supre aquele de Rousseau?

Uma inspiração estruturada como uma re'pltca

Desde o aspecto da obra, a palavra rousseauniana se opõe à


letra joyceana, pois a escrita se encontra muito longe de estar sub­
traída da dialética da relação com o Outro. A obra, inteiramente
tecida de interlocução, ceve além disso para seus contemporâneos

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imensos efeitos
e de ressonância e uma influencia
emociona, inflama e sem precedentes
forçando o con-
sobre o esptr^ constrange_o à réplica que adere ou contesta,
sentimento q seu corte)o de apostas cada vez mais
Assim ca a p lêmicas indignadas. Por mais que Rousseau

decisão que tome. de escrever e de me ocultar é a que me


,<ra decisão
C0?Vinu "irrita Uma palavra do autismo
não é aque e do stlencto
se faz crítica mas a da
e reformadora,
tutora e edificante, portadora do testemunho ou da confissão
Ínfòrme a obra se pretenda política, socai, romanesca, pedagog.ca

OU autobiográfica.
Neste sentido, a entrada de Rousseau na carreira das letras
com o famoso Discurso sobre as ciências e as artes, que o levou de manei­
ra tao estrondosa à celebridade é exemplar: evidentemente a inspi­
ração aí está estruturada como uma réplica; nela Rousseau respon­
de ao Outro. E que Outro! — “Uma das mais sábias companhias
da Europa”, a “célebre” Academia de Ciências e de Belas Letras de
Dijon, que propõe para o concurso do prêmio de moral do ano de
I75O nada menos do que a questão seguinte: “O restabelecimento
das ciências e das artes contribuiu para depurar os costumes?”!
O Outro do saber colocando a verdade a prêmio, e ainda por cima
a verdade ética, eis o que galvaniza a eloqüência de Rousseau, até 0
ponto dele se desprender de um só golpe da “feliz obscuridade
para tornar-se o homem mais célebre da Europa. Ele próprio, aliás,
sempre apresentou sua vocação como vinda de fora.
Do desencadeamento de sua primeira inspiração ele fez várias
narrativas nas Confissões, no segundo Discurso, no terceiro Passeio, mas
sobretudo e em primeiro lugar nas Cartas a Malesberbes.
Eu ia ver Diderot então prisioneiro em Vincennes.[-J Ca,°
sobre a questão da Academia de Dijon. [...] Se alguma co
assemelhou a uma inspiração súbita, foi o movim ,^to
produziu em mim esta leitura; de repente sinto o
deslumbrado por mil luzes; multidões de ‘^'^fusão
apresentam ao mesmo tempo com uma força e

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que me lançaram em uma perturbação inexprimível; sinto minha


cabeça tomada por um atordoamento semelhante à embriaguez.
Uma violenta palpitação me oprime, meu peito se inflama;
não podendo mais respirar ao caminhar, deixo-me cair sob uma
árvore da avenida, e passo aí uma meia hora numa tal agitação
que ao me levantar percebo toda a frente de minha jaqueta
molhada com minhas lágrimas, sem ter sentido que eu as
derramava. [...] Tudo o que pude reter desta multidão de grandes
verdades, que em quinze minutos me iluminaram sob esta ár­
vore, foi muito levemente borrifado nos três de meus escritos
principais, a saber: este primeiro discurso, aquele da desi­
gualdade e o tratado da educação, três obras inseparáveis que
formam juntas um mesmo todo (1987. p. I I 3 5).

O escrito se revela aqui inspirado e a inspiração, cativa da


interlocução. Mais ainda, ele desenha sua estrutura quadripartite,
vindo o eixo da relação ao Outro que a Academia torna presente
cruzar-se com o eixo da relação imaginária com o semelhante, cujo
amigo Diderot ocupa o lugar.
Afora os Devaneios do caminhante solitário, toda a obra de Rousseau
está escrita para um Outro. A própria forma da maior parte de suas
obras dele carrega o traço, os títulos e sua sucessão indicando cla­
ramente que a dimensão do endereçamento aí predomina: são dis­
cursos e seu suplemento, as cartas; a seguir confissões, diálogos.
Apreendemos de imediato o contraste com o puro escrito joyceano.
De Stephen 0 herói a Finnegans Wake, a work in progress de Joyce o conduz
do testemunho da autobiografia literária ao hermetismo dos jogos
da letra. Se é difícil saber até que ponto este último foi deliberado,
é certo que ele assinala a autarquia de um gozo a esperar tão pouco
do Outro que o porquê de sua publicação se coloca.
Ei-la aí, a famosa “suficiência” com que Rousseau jamais ces­
sou de sonhar sempre sem alcançá-la. Pois ele escreve tão bem para
o Outro que quanto mais escreve, mais se torna premente e tortu­
rante a questão de saber se sua carta chegou a seu destino.
O destinatário que causa sua infelicidade, e que ele por muito tem­
po identificou a seu próprio destino, tem vários nomes: o século,

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os contemporâneos, a posteridade, o próprio Deus enfim, mas es


tes são os nomes múltiplos de um Outro único. Rousseau crê na
existência deste Outro com todas as esperanças e com todas as
ameaças que ele sustenta com sua grande obra loquaz.

Fornecer a ficção que convém

Mas Rousseau o mensageiro, artesão da escrita oratória, não


se tornou menos mestre na arte de forjar ciladas à crença. Se ele foi,
em sua pessoa, assujeitado ao imaginário como escritor, dele ele se
fez senhor e também teórico. Que dele tenha permanecido cativo é
indubitável. Disto dão testemunho não apenas o delírio de inter­
pretação manifesto em sua maturidade, mas também a nota de
mitomania de seus anos de juventude — por exemplo, sua inclinação
a se fazer passar por um outro — sua captura por identificações
imediatas, tão lábeis quanto súbitas, sua propensão de sempre ao
devaneio e às tabulações que permitem, diz ele, “entregar a si pró­
prio aos seres quiméricos”. Neste aspecto, os textos são múltiplos
e concordantes.
Rousseau foi um freqüentador da imaginação, porém um
frequentador metódico que se fez além disso teórico de sua experi­
ência. Diz ele: “perigosa imaginação" que desapossa e irrealiza, pois
“o mundo imaginário é infinito” e “o objeto que a princípio pare­
cia nas mãos, foge mais rápido do que se pode persegui-lo (1969.
p. 304). Nós o vemos, a imaginação é aqui o nome da falta que 0
significante engendra e na qual se sustenta a metonímia do objeto.
Mas ele acrescenta: “benfazeja imaginação”, pois é ela que acomoda
o complemento que esta falta reclama. Ela põe à disposição do
sujeito um objeto de perfeição real ou quimérico (ibid., p-743)>
em outras palavras ela adorna o objeto com seus charmes ideais
Ei-la portanto suscetível de um bom uso, que Rousseau, e evan
sua propensão ao método controlado, tenta definir.
É o que ele faz a propósito de Emílio, quando para seu precep
trata-se de protegê-lo dos perigos do sexo: “Pintando-lhe a am

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

que cu lhe destino, imaginem se não saberei fazer-me ouvir por ele;
se não lhe saberei tornar agradáveis e caras as qualidades que ele
deve amar. [...] Ora, fornecendo o objeto imaginário, sou o mestre
das comparações e facilmente impeço a ilusão dos objetos reais”
(ibid., p. 656). Confrontado com a tarefa impossível de educar,
lutando contra o problema de todos os poderes, a saber o domínio
da fantasia, Rousseau enuncia a solução ideal: fornecer a ficção que
convém. A imaginação aqui não é mais o nome dos efeitos de
negativação e de irrealização da linguagem, mas o nome de seus
recursos de comando ou de orientação.
Há várias destas ficções ideais na obra de Rousseau. Elas se
repartem com bastante simplicidade. Inicialmente vêm as figuras
anteriores à desordem. São o bom selvagem e Emílio, o homem das
míticas origens e o filho da natureza. A seguir, tendo advindo o mal
social, há, na pior das hipóteses, as figuras da virtude, Julie e Saint-
Preux, Emílio adulto e seu preceptor. Deixo fora da série por ora o
bom Jean-Jacques. Certamente estes produtos de sua imaginação
“visionária” — é o termo que aplica a seu Emílio — estão agora
fora de uso, para nós fora de uso de gozo. Julie nos aparece sobre­
tudo como uma princesa de Clèves fastidiosamente tagarela, e o
preceptor como um Sócrates pervertido doutrinando um tolo. Mas
houve uma época em que suas imagens souberam captar a libido
chegando a produzir o enlevo. Através delas Rousseau se tornou
um verdadeiro ídolo, sua correspondência o confirma. Conside­
remos, por exemplo, esta insólita super-ficção que foi, após a
publicação de A Nova Heloísa, a troca epistolar com Marie Anne
de la Tour fingindo ser uma Julie, dirigindo-se a um Rousseau-
Saint-Preux que não desdenhou entrar no jogo, e isto durante
mais de um decênio...
A este Rousseau-a-ficção, que não se opõe menos a Joyce-o-
sintoma do que a palavra rousseauniana à letra joyceana, pergunto
como são forjadas suas criaturas.

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O inverso do mito freudiano

Observemos seu bom selvagem, observemos Emílio, e vererno


que em Rousseau a invenção não é jocosa e que a ficção procede da
lógica.
O mito rousseauniano das origens inverte ponto por ponto
aquele do pai primitivo que Freud constrói em “Totem e Tabu”
(I9B). Para este, o fato primeiro do qual é preciso dar conta
porque a experiência o atesta, é a existência de uma lei reguladora
do gozo. Para Rousseau. a evidência primeira, subjetiva e social, é
inteiramente oposta. Ela se enuncia categoricamente: “Os homens
são maus; uma triste e contínua experiência dispensa a prova” (1964,
nota IX, p. 202). Aqui pouco importa como esta maldade se declina
nas formas particulares da desordem social e doméstica. A convicção
primeira é aquela do mal. Ora, o mito situa na origem o negativo
dos dados imediatos da experiência. De saída, Freud aí colocará
logicamente o gozo não regulado, sem limite e sem partilha, do
ancestral primitivo; já Rousseau, não menos logicamente, localiza­
rá aí a doçura de uma natureza posta em movimento pelas necessi­
dades, mas que não conhece o artifício e a nocividade das paixões
humanas. Para o primeiro, o tempo terá gerado ao menos parcial­
mente a pacificação da horda selvagem e o pacto que torna suportá­
vel o laço social; para o outro, ao contrário, a perversão das impulsões
naturais põe cada um em guerra consigo mesmo e com o outro,
fazendo do homem civilizado uma... fera, “que acabará por tudo
massacrar até tornar-se senhor do universo’’. No pólo oposto:
O homem selvagem, após comer, permanece em paz com toda
a natureza e é o amigo de todos os seus semelhantes. Tratar
se-á algumas vezes de disputar sua refeição? Ele jamais vai as
vias de fato sem antes ter comparado a dificuldade de vencer
com a de encontrar alhures sua subsistência; e como o orgu o
não se intromete no combate, este termina com alguns socos,
o vencedor come, o vencido vai em busca da sorte, e tudo esta
pacificado (ibid., p. 203).

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Em outras palavras ainda, “seus desejos não vão além de suas


necessidades físicas" e “sua imaginação nada [figurando] para ele,
[...] sua alma que nada agita se entrega ao único sentimento de sua
existência efetiva” (ibid., p. 143-4). Vê-se aqui claramente como
se gera a imagem mítica. Rousseau procede por subtração. Ele en­
contra o homem civil, com sua falta, as paixões que se entretêm
com uma tal falta e seus prazeres artificiosos. Dele Rousseau
subtrai todos estes avatares do gozo e obtém o bom selvagem —
certamente menos perorante que o pai orangotango de Freud — ou
Emílio, o filho da natureza, que é o seu duplo e ao qual se aplicam
em ritornelo as mesmas expressões.

A foraclusão metódica

É um procedimento que chamo de foraclusão metódica, por


analogia com a dúvida metódica de Descartes. A “intenção de rejei­
ção” é aqui o instrumento do pensamento. Encontro seu paradigma
na relação com a morte. De Emílio, como do homem primitivo,
Rousseau não hesita cm dizer: “As próprias aproximações da morte
não sendo de modo algum a morte, mal ele a distinguirá como tal;
ele não morrerá por assim dizer, ele estará vivo ou morto; nada
mais” (1969, p. 378). Tal é o milagre que opera a supressão da
imaginação antecipada. O que dizer senão que ao subtrair o
significante da morte, sem o qual ela não é imaginada, certamente
rejeitamo-la não do real, mas da subjetividade?
Quanto a isto o Emílio é um texto único. Sendo sua ambição a
de pôr no mundo um homem segundo a natureza, Rousseau desdo­
bra aí uma vasta e sistemática meditação sobre os meios de fazer
passar ao ato educativo esta foraclusão metódica. Do mesmo modo ele
constrói uma ficção que desdobra detalhadamente a intenção foraclusiva.
E ao que provê primeiramente a educação “negativa" que consiste,
diz Rousseau, em “impedir que alguma coisa seja feita” (ibid., p. 251).
A primeira parte do texto, consagrada ao período da infância
que precede a revelação do sexo, procede passo a passo, metodica­

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COLETTE SOLER

mente, na questão de saber o que é necessário subtrair dp


- aeu mun­
do para que Emílio não conheça senão as necessidades da nature
Rousseau joga com três termos: desejo, demanda e necessidad
Notavelmente, afirma que para reduzir as aspirações à necessidad
verdadeira, é preciso subtrair a demanda, e que para conter a da
criança, é necessário primeiro suprimir, ao menos aparentemente a
demanda do mestre. E o famoso “governar sem preceitos”.

Nada conceda a seus desejos porque ela o demanda, mas


porque ela tem necessidade deles. [...] Desde o momento em
que ela pode demandar falando o que ela deseja e que para
obtê-lo mais depressa ou para vencer uma recusa, ela reforça
com choros a demanda, esta lhe deve ser irrevogavelmente
recusada. Se a necessidade a fez falar, você deve sabê-lo e em
seguida fazer o que ela demanda (ibid., p. 362).
[E também] Não dê a seu aluno qualquer espécie de lição
verbal. [...] Jamais lhe ordene nada. Não o deixe nem mesmo ima­
ginar que você pretendia ter uma autoridade sobre ele (ibid., 312).
[Ele não deve perceber senão] que o mundo físico [e somente] a
experiência e a impotência devem ter para ele lugar de lei (ibid., p. 31I).

Nós o vemos, trata-se de conceber uma coerção que exclua os


problemas de legitimidade, uma regulação tão incontestável que
esteja resguardada dos questionamentos da revolta, e que nada deixe
ao aleatório do consentimento subjetivo. Então para Emílio haverá
o possível e o impossível, o agradável e o penoso, mas ele ignorará
o “capricho dos homens” e acreditará não afrontar senão o silêncio
do mundo físico. Portanto ele será dócil, pois “está na natureza ao
homem suportar pacientemente a necessidade das coisas, mas nao a
má vontade de outrem” (ibid., p. 320). Tendo suprimido a demanda,
o preceptor terá conseguido elidir a “diz-mensão (dit-mtnsion) do
Outro. Desde então, o interdito será foracluído; a impossibilidade
e a necessidade a ele fazendo suplência.
Mas como chegar a isso quando aquele que fala já saiu
natureza? Rousseau está longe de ignorá-lo. Por isso, lógic0,
conclusão é a de que seria necessário que Emílio não falasse n

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

O preceptor se fara então o censor do vocabulário e o apologista


do silêncio:

O maior mal da precipitação com a qual se força as crianças


a falarem antes da idade não e o fato de que os primeiros
discursos que lhes dirigimos e as primeiras palavras que dizem
não tenham nenhum sentido para elas, mas sim que elas tenham
um outro diferente do nosso, sem que saibamos como nos
apercebemos disso. Na maioria das vezes, devemos a tais
equívocos a surpresa em que nos lançam seus ditos em certas
ocasiões. [...] Esta desatenção influi sobre sua maneira de ser
para o resto de suas vidas. [...] Restrinjam portanto o máximo
possível o vocabulário da criança (ibid., p. 298).

Com estas palavras que uma vez lançadas são ingovernáveis e


cuja polissemia segrega o equívoco incontrolável, concebemos o
embaraço de Rousseau no momento das revelações do sexo. Ele
testemunha haver fracassado, apesar de seus esforços, em construir
um discurso de iniciação exemplar. É que, diz ele, a língua francesa,
empanzinada de “torneios desonestos”, não suporta a “ingenuidade
das primeiras instruções sobre certos assuntos”; com efeito, estes
torneios, “para evitá-los, é preciso neles pensar. [...] O leitor, sempre
mais hábil em encontrar sentidos obscenos do que o autor em
afastá-los, se escandaliza e se intimida com tudo” (ibid., p. 649).
Aliás, no mesmo passo e também segundo a mesma lógica,
seria necessário recusar a Emílio o contato com semelhantes.
Rousseau não recua diante desta conclusão. Ele postula que se dotou
de um preceptor à altura de sua função — não falo de suas qualida­
des, diz ele, eu as suponho — e também de uma criança órfã. Emílio
será portanto subtraído de todo outro laço social, permanecendo
inteiramente do preceptor. A ele recusar-se-á inclusive o recolhi­
mento que é a intimidade. “Não o deixe nem de dia nem à noite; ao
menos durma em seu quarto” (ibid., p. 66?), diz o preceptor, que
assim pensa preveni-lo dos perigos do sexo, mas também, sem dú­
vida, da primitiva simbolização da ausência que torna presente o
desejo do Outro.

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COLETTE SOLER.

Não seria um pensamento louco e bastante paradoxal


escritor não sonhar senão em esvaziar o intervalo signifj
seus subentendidos? Mas se existe aqui excesso, eu o ame
• , . . . ■ . crei° Metódico
e exploratorio. Admiremos antes o rigor de uma démarche ue d
cobre que para subtrair o interdito, no sentido da limitação^
também necessário evitar os inter-ditos da palavra, nos quaisT'3
justamente os temas do sexo que se insinuam.
Assim a ficção pedagógica constrói metodicamente uma nova
criatura. Por subtração dos diversos efeitos de linguagem, ela trata
de encontrar um real que não teria sofrido do simbólico, de inven­
tar um humano que não seria um sujeito. Sem demanda, ele seria
sem desejo; sem palavra, ele estaria numa pura presença e portanto
sem objeto, notadamente sem objeto sexual, pois tal é a foraclusão
maior desta construção: o sexo aí não é representado.
Isto não passa de metade da quimera. Dela duvidamos, pois é
preciso ainda assim fabricar um homem, e um homem que fale e
que seja sociável. Isso não ocorre sem a revelação dos “perigosos
mistérios”. Emílio, que ignorava a diferença dos sexos tanto quanto
a lei, deverá ao mesmo tempo aprender que existem mulheres e que
seu uso não é absolutamente livre, pois “a ordem e a regra” devem
reger as “paixões nascentes”.
Na etapa seguinte, Rousseau se engaja então na difícil e
apaixonante tarefa de assegurar uma operação inversa da foraclusão
metódica, uma espécie de retorno controlado do foracluído.

Onde o ideal encobre a foraclusão

Com o Outro sexo, o Outro do discurso até então dissim °


do faz sua entrada. Por conseguinte, o problema crucial torn
da submissão à autoridade. É necessário obter de Emílio este g^
Quero obedecer às suas leis, eu o quero sempre” (íbid., p>
Então o preceptor poderá dizer: “Nunca ele foi melhor ass J
pois ele o é porque quer sê-lo” (ibid., p. 661). $e $er
conheceu, pela virtude da foraclusão metódica, a h er

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

não alienado ao Outro, na adolescência ele deve elevar-se àquela da


alienação aceita. Ele foi primeiramente dirigido a despeito de sua
vontade, sem o saber e sem normas. Sao doravante as diretivas da
palavra que devem orientá-lo, e para isso é preciso seu consenti­
mento. A questão pedagógica torna-se portanto: como seduzir a
própria vontade?
Rousseau afronta aqui o problema dos fundamentos subjeti­
vos da ordem e se interroga sobre as condições da submissão inte-
rior ao mandamento. E ainda a regência do capricho do Outro que
ele quer eliminar, mas desta vez por outros meios que não o silên­
cio e a dissimulação. Ele isola duas molas do consentimento, uma
pertencente à ordem das razões; a outra, àquela do sentimento: a
legitimidade e o amor. O preceptor conta tanto com as evidências
do coração quanto com as luzes do pensamento, pois, diz ele, é
necessário “vestir a razão de formas que a façam amar” (ibid., p. 651).
De um lado, o preceptor tratará de seduzir. Para fazê-lo, contando
com o transitivismo do sentimento, ele mostrará o que antes
escondera: a saber, seu próprio amor e seu próprio devotamento.
Mas, por outro lado, ser-lhe-á necessário justificar os preceitos enfim
introduzidos. E para isso que serve, parece-me, a famosa Profissão de
fé do vigário savoiano.
Longe de ser uma peça referida ao sistema pedagógico, ela
responde aí à necessidade evidente de fundar a palavra do preceptor
no momento em que ele deve introduzir as normas restritivas da
educação. No duo do mestre e do discípulo, entre as exigências do
desejo sexual de um e os imperativos do Outro convocando a virtude,
é necessário um terceiro. Será a voz da Natureza, da qual o precep­
tor é apenas um executante. O abrigo da verdade escrita no fundo
dos corações “em caracteres indeléveis” (ibid., p. 594) é a garantia
da exigência pedagógica. Ela exerce a função de Outro do Outro.
Ela assegura ao preceptor não estar fora da lei, e o absolve da sus­
peita de arbitrário. O teórico da alienação, ele próprio tão rebelde
às coerções e aos apegos, sempre tão propenso a confundir influên­
cia e sujeição, obrigação e abuso, se esforça aqui para conceber uma

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COLETTE SOLER

autoridade que não se prestaria a tirania e que, por conseguinte


poderia seduzir o consentimento do sujeito. Ele duvida tão pOl4c
que este seja subordinado a legitimidade senão ao amor qu
o preceptor deve ser inocentado da suspeita de impostura caso ele
queira ser o verdadeiro pai de Emílio.
Pois o Emílio é de fato uma tentativa — fracassada — de acesso
à paternidade. É pelo menos o que eu tentei estabelecer em minha
tese sobre Rousseau e a pedagogia (1977). Rousseau ali está no
encalço de um discurso que se fundaria a si próprio. A exigência
deste discurso impossível de se encontrar acelera à medida da
foraclusão — desta vez, a que opera para o sujeito Rousseau
pois o apelo à legitimidade tanto mais enfurece quanto mais é im­
posta a rejeição da exceção paterna.
Não foi impunemente que Rousseau se engajou nesta tarefa
impossível. Na realidade, ele a pagou ao preço de perseguições inau­
ditas das quais foi vítima. Mas os efeitos não foram menores, se
pensamos que a publicação do Emílio foi a causa de seu primeiro
episódio delirante caracterizado. Não foi um acaso se, a despeito
de todo realismo, foi dos jesuítas, "os mais civis dentre os intérpre­
tes titulados das escrituras", que ele esperou a falsificação de sua
profissão de fé e o ultraje feito à sua memória. Não é apenas por­
que de dois intérpretes e de dois textos — o das escrituras e o da
natureza reencontrada — há um a mais. É que a Natureza da qual o
preceptor se autoriza teria a voz bem baixa se Rousseau não lhe
emprestasse a sua. Seu bom vigário se esforçou em vão para mane­
jar o vocabulário da fé e dizer “amém a seu criador; seu dizer e
apofantico. Não o é de um crente, mas de um mestre da fe. E talvez
seja este o caso em toda profissão de fé. Ele é menos interprete d
que artesão do texto, menos profeta do que oráculo; em uma palavra
menos fiel do que fundador de religião.
E certo que Rousseau não caiu na loucura messiânica, ma
estrutura aí esta: a de um dizer que trata de remediar a incon
tência do Outro, e que procede à substituição da impostura do p

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Qual é portanto sua própria versão da ordem subjetiva? Ela


tem um nome: a virtude; um objetivo: regular a insaciabilidade do
sexo e da vontade de poder; e os meios: o medo e a idealização,
ambos próprios para “reprimir os sentidos pela imaginação”.
Anti-Sade, o preceptor faz vibrar a fibra do pavor diante das
desgraças do vício. Ele desejava inclusive conduzir Emílio ao hos­
pital dos sifilíticos, para sua edificação. Porém ao mesmo tempo
ele se faz o panegirista da virtude idealizada da mulher. Para fazer o
filho da natureza, Rousseau realizou a subtração do sexo. Para fa­
zer o homem social, é necessário que o discurso se sobreponha a
ele. Mas se falta o modelo paterno, o que resta de diferente para aí
fazer suplência senão os ideais do Outro, abstinência, fidelidade etc.,
cuja exaltação assim como a exigência de legitimidade se inflam à
proporção da falta da lei inconsciente. Esta espécie de virtude
paradoxal nos limites da simples razão, que Rousseau tenta definir,
encontra por vezes os recursos do amor cortês que se guarda da
coisa pelos obstáculos que ele aí coloca.
Curiosamente, quando a mulher entra em cena, Rousseau não
é novo, e o artesão do discurso da natureza retorna aparentemente
ao ramerrão da tradição para exaltar a abstinência e a monogamia.
Ele retoma então as acentuações de uma retórica de pregação,
jogando com a intimidação e os modelos ideais. Estes marcham aos
pares, unindo os sexos — Julie e Saint-Treux, Emílio e Sophie —;
as gerações — Emílio e o preceptor —; e ainda assintoticamente,
Deus e as criaturas. Destes dois parceiros, um remete ao outro a
imagem amável que o assegura de sua excelência, e aí reconhecemos
facilmente o par do ideal do eu e do eu ideal. A todos se aplicam as
mesmas expressões retomadas em leitmotiv: são corações amantes
e ternos”, “almas ingênuas” “transparentes como o cristal , anima­
das tanto pela “ternura do amor” quanto pela indignação da virtude
etc. Constata-se aliás que esta série léxica inverte de modo
maniqueísta e ponto por ponto os atributos que se aplicarão aos
perseguidores de Jean-Jacques, os “negros senhores”, amigos das

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COLETTE SOLER

trevas. Com estes pares de sonho, figuras antiquadas do romance


água-com-açúcar que Rousseau erotizou atingindo o entusiasmo,
não podemos duvidar de que seja a coisa que se trata de exorcizar.
Todavia estas figuras estão longe de serem figuras apenas da
repressão. Através delas Rousseau realiza uma operação sobre o gozo,
que não somente lhe dá forma — e forma implica limite — mas
que o converte em um gozo do ideal. Sabemos que para o próprio
Rousseau todas estas figuras angelicais não eram flores de retórica,
mas que, convocadas para o cenário de sua fantasia masoquista,
suportavam o gozo masturbatório. Sabemos igualmente que atra­
vés de sua arte, ele soube contagiar seus prazeres, e que suas ficções
não apenas seduziram, mas fletiram a sensibilidade e os gostos do
tempo.
Todavia esta operação de regulação e de conversão só foi bem
sucedida parcialmente. Quando o ideal não faz senão encobrir a
foraclusão, quando ele não se instaura sobre o recalque de um desejo,
o que ele exclui não deixa de retornar no real. Notavelmente, o
texto de Rousseau traz a marca disso. Ele escreve Os solitários imedia­
tamente após o Etntlio, em 1762, assim parece, exatamente antes
de sua crise persecutória. Sua problemática é impressionante:
supondo-se que a virtude tenha substituído no coração de Emílio a
ingenuidade infantil, não se pode negar que ele esteja à mercê do
outro, e Rousseau o submete à prova crucial da infidelidade da
mulher e da vontade de poder do homem. Emílio salva então sua
felicidade e sua virtude por meio de uma substituição de ideal. Aos
ideais do casal sexual e social — que fracassaram em encobrir
ou em converter o gozo do Outro, ele prefere doravante a auto-
suficiência.
Quando os ideais se mostraram impotentes para regular o laço
social, Emílio descobre os recursos do recesso libidinal sobre o
corpo próprio. Rousseau pedagogo quis parir o Homem e
quantas vezes ele falou de Emílio como de seu filho! —; não terá
conseguido fazer senão um solitário, não um homem social. Que
ucação ideal desemboque em uma tal falência, não a de Emíl*0,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

mas de sua inserção no discurso, indica bastante o fracasso da su-


plência que se procura neste texto. O filho de suas obras acaba
como ele próprio: solitário, perseguido pelo destino, mas feliz e
livre. Ele antecipa assim, de alguns dez anos, tanto a problemática
como as fórmulas dos Devaneios.
Este traço nos é uma indicação do que o visionário não vê
enquanto não deduz as consequências possíveis da recusa primor­
dial seguindo as linhas fora do tempo da estrutura. E se eu disse
Rousseau-a-ficção, é preciso acrescentar que é a lógica dos efeitos
da foraclusão que comanda aqui seu imaginário.

Que sou eu?

Esta hipótese esclarece, além disso, o laço especialmente íntimo


da pessoa Rousseau com sua obra, laço tão estreito que pode dar a
impressão de que esta não é senão um vasto book of himself. A figura
de Jean-Jacques, embaraçada nas suas altercações com seus seme­
lhantes, se desenha sempre por trás do rosto do Rousseau filósofo,
literato ou pedagogo. Ele próprio não se engana quando nota: “Vi
muitos que filosofavam bem mais doutamente do que eu, mas sua
filosofia lhes era por assim dizer estranha’’ (1987, p. 1012). Para
ele, com efeito, o campo da verdade não se compartimenta. Sua
biografia atesta amplamente o emaranhado de suas posições subje­
tivas e de suas produções artísticas. Nela vemos seu pensamento
surgir da emoção, e sua obra recolher o que se deposita de suas
sucessivas conversões subjetivas. Neste sentido, suas duas grandes
revoluções’’ não são senão os episódios extremos de um processo
constante.
A primeira, nós o sabemos, surgiu da inspiração de Vincennes.
Dela saiu o primeiro Discurso sobre as ciências e as artes, assim como o
personagem do cidadão. “Imediatamente eu vi um outro universo e
tornei-me um outro homem. Eu não representei nada, tornei-me
de fato tal como pareci” (ibid., p. 416). Em seguida, com seu
Segundo discurso, houve a grande “reforma pessoal” que desviou sem

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COLETTE SOLER

retorno o curso de sua vida. O cidadão, que em sua primeira ’


cia, na época das primeiras leituras, um dia apoiou “a mão
um réchaud”, a exemplo de um de seus heróis romanos, e qUe
durante uns quatro anos “embriagado de virtude’’, “auja
“orgulhoso”, “intrépido”, se desarraiga dos artifícios da cidad ’
“determinado a passar na independência e na pobreza o pouco J
tempo que [lhe] restava para viver” (ibid., p. 362). Desafiando Os
usos e o senso comum — como se diz na sua língua: “quebrar os
grilhões da opinião” — Rousseau vende seu relógio, abandona
suas roupas, renuncia aos recursos oferecidos e deserta da cidade
Torna-se o caminhante, ainda não inteiramente solitário que
tomado por sonhos de amor e de educação ideal, consigna a seu
século A Nova Heloísa e o Emílio.
Rousseau colore de emoção estas verdades sucessivas, chegan­
do por vezes ao êxtase, põe-nas em atos demonstrativos e espetacu­
lares, impele-as até a certeza desta "viva persuasão” sem a qual ele
testemunha não poder escrever. O que está em jogo nestas inven­
ções senão o próprio ser? Quando Rousseau, sondando sua infeli­
cidade, nela reconhece a natureza desfigurada; quando molda o ho­
mem selvagem e a criança à sua imagem ou quando, cantando seus
“doces gozos”, acredita ver aí a espécie em seu frescor, haveria ne­
cessidade de dizer que aí ele se toma pelo Homem? Sem dúvida,
mas se os mesmos termos lhe vêm para designar o ancestral pre-
histórico, o Emílio e ele próprio, não seria pelo fato de a questão
filosófica estar estruturada como a questão íntima, em torno do
mesmo furo em que o significante falta?
Mais do que qualquer outro, Rousseau soube dizer esta
interna, o “vazio inexplicável” de seu coração, e sua dupla aspitaÇ3^
— a um suplemento" que lhe faça esquecer a hiância insacia
a uma resposta que lhé retire a opacidade. Ele diz: ‘ Procurei
todos os tempos conhecer a natureza e o destino de meu se
mais interesse e cuidado do que encontrei em qualquer 0
homem” (ibid., p. IOI2). Sua questão, simples, é aquela que
os Devaneios: “Mas eu, separado deles e de todos, que

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

eu próprio?” (ibid., p. 995). De onde ele espera a resposta, ele que


recusa os ouropéis do Outro?
Certamente ele não foi insensível à sedução dos modelos, lon­
ge disto, mas ele recusa reconhecer-se na efervescência de suas sú­
bitas identificações, e se surpreende com esses "curtos momentos
de [sua] vida em que [ele] se tornava um outro e deixava de ser
[ele] ”. Rejeita igualmente a mensagem do Outro. Ao dizer: “Eu amaria
a sociedade tanto quanto um outro se eu não estivesse seguro de aí
mostrar-me não apenas em desvantagem, mas inteiramente dife­
rente do que sou” (ibid., p. I 16), não estaria ele recusando esta
mensagem? Será que notamos a certeza fora de transferência que
este "inteiramente diferente do que sou” implica? E quem sabe o
que são o homem e o próprio Rousseau, a não ser o próprio Jean-
Jacques interrogando o fundo de seu coração? “De onde o pintor e
o apologista da natureza, hoje tão desfigurada e caluniada, pode ter
tirado seu modelo senão de seu próprio coração? Ele a descreveu
como ele próprio se sentia” (ibid., p. 93 6). E quando ele exclama:
“consciência, consciência, instinto divino”, o divino não pesa tanto
diante do que postula este grito, a saber a relação imediata da
criatura e da verdade; Nisso a hierarquia não se enganou: ela
reconheceu aí a dissidência de uma enunciação fundadora.

Um Outro que não sabe

Rousseau não recebe sua mensagem do Outro. Para aquele


que abriu seu Segundo discurso cunhando a sentença: O homem nas­
ceu livre e por toda parte ele está agrilhoado , para aquele que so­
lenemente preveniu Thérèse de que jamais a esposaria, e que teste­
munha ainda estremecer ante o pensamento de dela fazer a mãe de
seus filhos, para aquele que não duvida ser outro que não se o vê, as
palavras paradigmáticas da mensagem invertida, Tu és meu senhor, tu és
minha mulher, são palavras impossíveis. E esta própria impossibilidade
que funda sua imensa meditação sobre o laço social, tanto no nível
do coletivo, como do casal ou das gerações.

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COLETTE SOLER

Aliás é impressionante constatar ao termino de Emílio, que


fará do preceptor um verdadeiro pai isto é, um pai ao qual se
poderia consentir — que este deseja obter do aluno o grito: "Oh!,
meu mestre!”. Porque ele recusa consentir ao Outro, Rousseau deve
se erigir como suplemento, para retomar um termo que lhe é caro.
Rousseau, é verdade, dialoga e fala ao Outro, eu o disse.
Porém não pensa com o Outro, e quando este último o inspira, não
é no elã da aquiescência, mas naquele da rejeição. Poderíamos, sem
forçar as coisas, esboçar um Rousseau solitário em seu século,
excluído inclusive das luzes. Nós o vemos desde o Primeiro discurso.
Ele aí se ergue para “ousar censurar as ciências" e “louvar a igno­
rância” e o “desprezo pelo estudo”. A verdade se faz ofensiva e a
inspiração, vingadora. Hoje pouco nos importa saber se Diderot
diz a verdade, quando pretende ter sido ele quem sugeriu esta ousadia,
pois a sequência prova bastante bem que em Rousseau a contradição
é muito mais do que um simples apoio retórico do pensamento.
Que ele denuncie, estigmatize, que dê a lição, que a pretexto de
dizer a verdade ele diga ao mundo suas quatro verdades, ou então
que faça vibrar pela pastoral musical, romanesca ou educativa, em
todos os casos a intencionalidade pulsional está presente. O gênio
de Rousseau foi precisamente ter, pelo trabalho da obra — este
trabalho que ele diz tão laborioso uma vez passado o sopro da
inspiração — levado o negativismo à inovação conceituai ou poética
que o transcende. O Outro, que para Jean-Jacques vai dos precon­
ceitos da sociedade à Escritura sagrada, passando pela voz dos filósofos,
é tão pouco sujeito suposto saber, que lhe é necessário fazer-se legis­
lador, pedagogo, pastor, romancista, enfim analista de si próprio.

Urn Outro primordial fundamentalmente nocivo

Na hiância do Outro que não sabe, Rousseau colocou sua obra


e também seus postulados paranóicos. Se ele não crê no saber deste
ro, crê em sua vontade... má. Não se pode duvidar disto quando
ideramos, em ordem, seus sofrimentos, seus maus encontros e
seus sonhos.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Rousseau e doente de seu proximo. Ele descreveu longamente


o mal-estar, a tensão, a coerção experimentados quando acompa­
nhado; sua falta de jeito, suas lentidões, sua inibição, seu sentimento
de ser o “joguete” de quem o cerca, e sempre à mercê do menor
olhar. Claramente ele sofre da intersubjetividade. Mais exatamente,
ele sofre por ser visto de um lugar que lhe escapa. Este homem tem
medo, dizem os Diálogos. Em todo caso, medo do julgamento. Mas
sua desconfiança não existe sem supor uma repulsão primordial,
pois ele também é juiz. As Cartas a Malesherbes, cartas que já inspiram
a vontade de confissão, testemunham:

Durante muito tempo me enganei sobre a causa desta inven­


cível repugnância que sempre experimentei no trato com os homens.
Eu a atribuía à tristeza de não ter o espírito bastante presente
para mostrar na conversação o pouco que dele tenho, e indi­
retamente, àquela de não ocupar no mundo o lugar que acredi­
tava aí merecer. [...] Mas quando, após haver rabiscado o papel [...] me vi
procurado por todo mundo [...]e que apesar disto senti esta mesma
repugnância mais aumentada do que diminuída, concluí que
ela provinha de uma outra causa (ibid., p. 11 32).

Desta repugnância à perseguição há certamente uma distância.


Não é ainda a idéia fixa dos últimos anos, e a iminência de ver
surgir ino pinadamente o kakon do Outro, tal como no instante em
que o véu dos fenômenos se rasgava, a alegria maligna lhe apareceu
no negro olhar do amigo Hume, ou como nestes outros momentos
em que, devendo atravessar Paris para alcançar o campo, ele rara­
mente escapava do alcance de um olhar torto que envenenava seu
passeio. Mas de um a outro, da repugnância à perseguição, um eixo
é estendido, pois ambos testemunham um desregramento patente
do laço social, e sua junção introduz para nós a questão de seu
fundamento libidinal. Odiaria Rousseau seu próximo como ama a
si mesmo, logo ele que diz: “Amo demais a mim mesmo para poder
odiar quem quer que seja”(ibid., p. 1056)?
Os maus encontros sempre lhe vêm de um outro. Destes exis­
tem essencialmente dois: a injustiça e o sexo. A primeira, a mais

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decisiva, inesquecível, é a da acusação injustificada, relatada por ele


no começo das Confissões.
Ocorrerá a Rousseau deixar ser acusada em seu lugar uma
empregada, mas esta falta não pesa muito ao lado da lembrança
fatídica do pente de Mlle. Lambercier. O Rousseau envelhecido,
que escreve as Confissões vários decênios depois, não pode evocá-la
sem paixão: “Sinto, escrevendo isto, que meu pulso ainda se acelera;
estes momentos me serão sempre presentes ainda que eu viva cem
mil anos. Este primeiro sentimento da violência e da injustiça
permaneceu tão profundamente gravado na minha alma, que todas
as idéias a ele relacionadas me devolvem minha primeira emoção”
(ibid., p. 20).
Nós o vemos, o que é “indestrutível” aqui não é o desejo
recalcado que Freud descobre na raiz da neurose, mas a memória da
nocividade do Outro primordial.
O mal propriamente sexual também vem do exterior. E pri­
meiramente a descoberta da homossexualidade. Jovem adolescente,
Rousseau está na Itália para ser instruído pelos católicos. Em sua
ingenuidade, nada vê das indiretas que lhe são mandadas, até
encontrar em sua cama um homem num estado não equívoco.
Descoberta inaudita que o faz gritar contra o horror e o obsceno,
em detrimento dos bons padres que o conjuram a não fazer tanto
barulho.
Mais em surdina, há uma outra efração quando Mme. de
Warens, com mil precauções oratórias e uma semana de espera, lhe
oferece... sua própria pessoa! Rousseau jura que esta idéia não lhe
viera uma só vez ao espírito”, ele se persuade longamente que só o
devotamento dita a conduta de Mme. de Warens, e testemunha sua
obsessão:

Não sei como descrever o estado em que me encontrava, cheio


de um certo misto de pavor e impaciência. [...] Como pude
ver aproximar-se a hora, com mais pena do que prazer? Como
eu, em lugar das delícias que deveriam me embriagar, sentia
quase repugnância e temores? Não há dúvida nenhuma de que

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

se eu tivesse podido me furtar à minha felicidade com decoro,


eu o teria feito de todo meu coração (ibid., p. 194.5).

No entanto estes episódios tão diferentes se encontram, pois


todos evocam ou tornam presente o gozo do Outro. Que contraste
no tom, quando Rousseau testemunha sejam suas próprias faltas,
sejam seus “sentidos depravados”. Ao horror indestrutível que lhe
inspira o Outro absolutamente não respondem neste caso os tor­
mentos da vergonha e da culpa. Trata-se da narrativa de suas pri­
meiras comoções masoquistas com Mlle. Lambercier, de seus pri­
meiros amores com Mlle. Wotton, de suas exibições, ou ainda da
mentira que faz ser condenada uma empregada em seu lugar, pior,
do abandono de seus próprios filhos; o ponto de vista então se faz
compreensivo e a análise, tão admiravelmente precisa, perspicaz,
graciosa enfim, toca o tom da indulgência.
Para Rousseau o kakon da coisa sempre aparece do lado do
próximo.

A culpabilidade foracluída retorna no real

Será possível interpretar estas emergências persecutórias?


René Laforgue o tentou em um estudo publicado em 1927 na
Révuefrançaise de psychanalyse e retomado em 1944 no capítulo IX de
sua Psycbopatbologie de Péchec (1993). Ele faz da culpa e da necessidade
de punição, em uma palavra, da posição masoquista, a chave da
perseguição de Rousseau. O que não deixa de ter uma certa verossi­
milhança. Jean-Jacques, tendo custado a vida de sua mãe, este
primordial “tu ou eu” da existência — que a palavra de seu pai vem
substituir, ao menos ele o crê, dizendo: “Devolve-ma, consola-me
dela” — parece a Rousseau a causa traumática de uma inextinguível
culpa, de uma consciência original do delito de existir, que todas
as acusações das quais ele padece ou as quais imagina não fazem
senão repercutir a mil vozes que ele deve expiar na dor e na
perseguição. Nesta via, seria preciso pensar a perseguição como
° retorno de um recalque, aquele de um primeiro julgamento

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COLETTE SOLER

íntimo, de uma Bejahung de um delito que lhe diria ser ele cu|pado
de sua vida e de seu ser.
Esta hipótese se choca com uma objeção. Como fazer do del
o sentido oculto da obra e a chave da vida de Rousseau um
que ele está por toda parte, à flor do texto e das proposições explí
cito, invasor e, traço decisivo, inteiramente localizado do lado d0
outro? Que Rousseau de fato tenha sido, “ao se constituir vivent ”
a causa da morte de sua mãe e por conseguinte do drama paterno
parece antes tê-lo predisposto a rejeitar esta causalidade, sem dúvida
demasiado objetiva para ser facilmente subjetivável.
Quando ele solenemente clama perante o mundo que era ino­
cente, a despeito de toda aparência, quando desafia seja lá quem for
a se declarar melhor do que ele, quando se acusando, ainda assim
ele se absolve, não são nem o tom nem a forma da denegação, ela
que confessaria, negando. São ditos categóricos e fora da dialética.
Mais genericamente, para ele há o sim e o não, o tudo e o nada,
o verdadeiro e o falso, o inocente e o culpado, que não poderiam
flutuar segundo a linha dos Pirineus. O ainda que, o talvez, o por
um lado, o sim-e-não lhe são insuportáveis, como são insuportá­
veis todas as formas do meio-dizer da verdade. Assim nós o vemos
— sobretudo tragicomicamente — intimar Saint-Lambert a se pro­
nunciar com um sim ou com um não sobre sua amizade, reivindicar
ser tudo para o outro a menos que conclua não ser nada, exigir que
se pertença inteiramente a ele e que também o deixemos entregue a
si próprio, enfim pretender tudo dizer até a famosa transparência .
Ele não quer uma verdade mocha, também lhe é necessário supô-la
escrita no fundo dos corações, como um selo indelével, subtraído
da divisão significante.
Mas um coração “transparente como cristal é um coraçao
maniqueu que nada recalcou, que, tornando absoluta a binaridade
significante, separou sem dialética o bem do mal, e expulsou este
último para os confins da alteridade. Aliás, evidentemente esta par
tição dos contrários, geradora das grandes polaridades conceituais,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

terá contribuído para a força de seu pensamento assim como para a


marca de seu estilo, sem que ela seja parente da denegação. Portanto
nada de recalque da culpa, mas na verdade um postulado, o da ino­
cência de princípio, que — tal como para Schreber — coloca a
justiça de seu lado.
Há mais além disso. Não apenas ele é inocente, mas se vale da
ordem e da norma contra os vícios do outro. Seus gostos e desgos­
tos mais particulares — de seu amor pela natureza às suas reticên­
cias para com a sociedade — ele os eleva à única moeda corrente
que lhe é possível: a conformidade à natureza. De inocente ele se
faz então o acusador dos supostos vícios do próximo.
No entanto os fatos de sua conduta contradizem seu postulado.
É uma situação propícia para demonstrar o caráter transexperimental
deste. Não é ele que abandona seus filhos à assistência pública, sem
um nome, sem mesmo uma marca de reconhecimento, exceto para
o primeiro? Num primeiro tempo, ele não se preocupa com isso:
ele o diz, inclusive o confia de modo aturdido a seu bom amigo
Diderot. Porém quando ele se torna o polemista da virtude e o
mensageiro da educação ideal, como consegue arrumar as coisas
que não se acomodam tão bem assim — corremos o risco de fazê-lo
saber disso?
Sua démarche, que todavia evolui ao longo do tempo e dos
textos, é impagável. Inicialmente, é certo que ele foi por demais
leviano, mas com ótimas razões, pois apenas a idéia de não poder
subtrair seus filhos da influência de Thérèse e de sua família o faz
ainda tremer. Portanto ele escolheu o pior, mas apesar de tudo foi
um ato de “cidadão e de pai”! Em segundo lugar — aí o delito se
faz mais pesado — ele procedeu mal, um mal tão irreparável que
ele interrompe as investidas iniciadas por Mme. de Luxemburgo
para tentar reencontrar seus filhos — mas este mal procedimento
não foi senão um erro de seu pensamento, e não uma falta de seu
bom coração. Em terceiro lugar, enfim, não é indigno que ainda
ousemos criticá-lo após sua confissão?

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COLETTE SOLER

Concluo: se a dimensão do delito é maior em Rousseau, isto é


como a inconsciente
A°cul o a céu aberto
longe de ser recalcada, que Freudela
é foracluída; retornaemnoSchreber.
percebe real sob

3 forna da acusação delirante


I aforcrue Não é por sempre
e quase inefável.
sentir-se É necessário
inconscientemente
inverter a tese de Larorguc r

do eque
Ele1 Pnáo ele é acusado,
culpado, ele éfalante
mas sendo está se
porque
acusadonão postula
menos inocente.
separado de

uma verdade da qual a foraclusão o drssoera. Na falta do recalque,

tal é o avesso de seu postulado.

Quando o Outro silencia...

Todavia Rousseau foi efetivamente perseguido: isto é incon­


testável. Não apenas suas obras foram condenadas, mas sua pessoa
vilipendiada, queimada em efígie, acossada, inclusive lapidada.
Assim a realidade reenvia ao “melhor dos homens" sua imagem
invertida, diabólica.

Teria então chegado esta última idade predita pelo autor


inspirado no apocalipse, na qual veremos se elevarem homens
ímpios ou antes monstros que armarão ciladas à fé? '...] Pois
eis que aparece com audácia a nova produção de um autor
desventurado no campo dos filósofos novos, tal como o são
algumas vezes no campo de nossos inimigos, estes homens
bárbaros [...] que não pensam senão em pilhar.f...] para saciar
sua maldade e satisfazer a inclinação natural de prejudicar que
possuem.
Tal é a abertura do discurso pronunciado na faculdade de te

pela condenação do Emílio.de realidade, estruturados pch simetn^


Mas estes retornos
lmagln^ria, não devem ser confundidos com as respostas do real.
cjue antes elas recobrem ou mascaram. Nós o constatamos de
maneira paradigmática precisamente a propósito do Entilto. Se a

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

impressão do livro demora um pouco e ele não vê as razões disso,


então a ameaça toma consistência, o complo dos jesuítas lhe parece
assegurado, e Rousseau delira. Mas se o livro é finalmente publicado,
sua condenação iminente, se o duque e a duquesa de Luxemburgo
assim como todos os seus amigos o pressionam a pensar em sua
segurança, eis Rousseau com uma despreocupação e uma alegria
bem estranhas.
Quando de fato a condenação chega, ele deve fugir precipita-
damente durante a noite, mas ao mesmo tempo impávido e alegre
se entrega a uma bucólica inspiração. Na carruagem que o leva, ele
escreve o Levita de Efraim, tema certamente atroz, mas no qual ele se
felicita de ter feito reinar coloridos de um frescor, imagens de uma
ingenuidade, enfim uma doçura dos costumes das mais enternece-
doras.' Na verdade, ao longo dos anos e à medida que suas prova­
ções se multiplicarão, este tom de franca jubilação desaparecerá,
mas em proveito de um distanciamento próximo da indiferença e
bastante afastado da prostração. No auge do delírio, os Diálogos o
notam, logo que Jean-Jacques está longe de seus inimigos, ele os
esquece — aliás, suas cartas assim como suas ocupações o confir­
mam — porém o que ele não esquece são as verdadeiras respostas
do real cujas perseguições sofridas o aliviam.
Estas aparecem precisamente quando a realidade se cala, quando
se rasga o tecido das significações que a constituem. Se o seme­
lhante, em lugar de expandir uma alma fraterna, busca o duelo,
Rousseau aí se reencontra. Mas se ele se abstém, se silencia, então a
incerteza surge e a sombra do Outro se levanta.
Para Jean-Jacques, uma boa perseguição vale sempre mais do
que uma desconfiança má. Considera-a como o mal que lhe dizem
ou que lhe fazem, pois seu horror é a opacidade, o não-dito, os suben­
tendidos. Se ele denuncia de modo tão sentido o hiato do ser e do parecer,
se tanto detesta a reserva e a discrição, se persegue as ambiguidades, isto
ocorre porque o “mistério” é sua obsessão. Ele o diz e o demonstra.
Assim, quando ao final de sua leitura das Confissões um silêncio,
sem dúvida meduseu, cai sobre a assistência, ele se sabe perdido,

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COLETTE SOLER

pois quando o Outro se cala, Rousseau se faz intérprete, e no vacúol


enigmático, ele coloca o mal que o postulado da inocência rejeitou
de sua subjetividade. O Outro silencioso é um Outro malvado e
que condena. Sua mania de confissão se esclarece também daí Se
ocorre ao neurótico falar para prevenir a interpretação, Rousseau
confessa para se preservar da condenação.
A confissão se impõe à medida da falta em saber, no lugar da
qual a falta em merecer ameaça a todo instante se instalar. O mais
grave, Rousseau insiste nisso, seria não tudo dizer. O vazio de seu
coração, a opacidade de seu ser serão ao menos cobertos pela trama
contínua de suas lembranças e de suas confissões. “No empreendi­
mento que fiz de mostrar-me inteiramente ao público, é necessário
que nada de mim lhe permaneça obscuro ou oculto [...] que ele não
me perca de vista um só instante, por medo de que, encontrando na
minha narrativa a menor lacuna, o menor vazio, e se perguntando o
que fez ele durante este tempo, ele não me acuse de não ter querido
tudo dizer” (ibid. p. 59). A confissão auto-imposta conjura e tam-
pona o lugar vazio da coisa. Aliás, é em torno de um vazio enigmá­
tico aparecido em sua correspondência, vazio no qual ele de início
recusou acreditar, mas que no entanto era “bem real’, e que ele
imputou inicialmente a um roubo, é nesse vazio que se cristaliza
para ele a convicção definitiva do complô universal.
Sua carta de 23 de setembro de 1770 é muito precisa: a pro-
pósito da evocação de um prisioneiro, o vazio aparecido nestes ras­
tros dele próprio que são suas cartas encontra-se subitamente
conectado pelo delírio a um “atentado execrável”, não um atentado
qualquer, mas um regicida. Daí se impõe a convicção do complô-
Rousseau, que folheia uma coletânea transcrita de cartas, diz.

Caí por acaso na lacuna de que falei e que sempre me parecera


difícil de compreender. No que me tornei, notando que esta
lacuna caía precisamente sobre o tempo da época, cuj
prisioneiro que acabava de passar me lembrara a idéia, e
qual, sem este acontecimento, eu não teria pensado mais
que antes? Esta descoberta me transtornou, nela encontre

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

chave de todos os mistérios que me cercavam. Compreendi


que este rapto das cartas sem dúvida tinha relação com a época
em que elas foram escritas e que, por mais inocentes que fossem
estas cartas, não era a troco de nada que haviam se apropriado
delas. Conclui daí que há mais de seis anos minha perda estava
jurada [...] (1982, p. 141).

As ficções de Rousseau têm uma dupla relação com a foraclusão.


Se suas criaturas — as da natureza e as do romance social — são
engendradas pela foraclusão metódica, elas também encontram seu
lugar no vazio da “Verwerfung inaugural”. E neste mesmo lugar que
vem o vasto registro de seu ser que são as Confissões. O analista de
si-mesmo é aqui para ele próprio sua própria ficção. Para nosso
contentamento. Mas para sua infelicidade é uma ficção que fracassa
em conter a ameaça persecutória. No entanto Rousseau ainda tem
um recurso: o do autismo cultivado.

Um goçp autárquico

Bastar-se a si próprio foi um grande sonho de Rousseau. Ele


tende para isto na mesma proporção de uma outra aspiração imensa:
a do amor. O grande tema do “natural amante e terno” atravessa
toda a obra biográfica e uma grande parte da correspondência. Nem
tudo é arrazoado em sua insistência: é sua própria experiência.

Eu me repito, já se sabe; é preciso. A primeira de minhas


necessidades, a maior, a mais forte, a mais inextinguível, estava
inteiramente no meu coração: era a necessidade de uma
sociedade íntima e tão íntima o quanto ela pudesse ser: era
sobretudo por isto que eu precisava de uma mulher mais do
que um homem, de uma amiga mais que de um amigo. Era tal
esta necessidade singular que a mais estreita união dos corpos
não podia bastar: ter-me-iam sido necessárias duas almas no
mesmo corpo, sem isto eu sempre sentia o vazio (1987, p. 414).

De fato conhecemos seus sucessivos entusiasmos, suas ami­


zades apaixonadas que sempre darão em drama ou em confusão:

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172,9, M. Bâle; 1730, M. Venture de Villeneuve- 1744 r


Emanuel de Altuno, em seguida Diderot, Grimm, George Keith
duque de Luxemburgo, Hume... Curiosa série em que o charlar
se mistura aos talentos e aos grandes do século. Para as mulheres
lista, mais curta, desenha toda uma paleta de figuras: são elas .Mmr
de Warens, o amor materno; Mlle. d’ Houdelot, o verdadeiro amor
impossível; Mme. de Larnage, meteoro do desejo; Mme. d’ Épinay
a amiga protetora; Mme. de Luxemburgo, a grande dama tutelar
enfim Thérèse... o fiel animal doméstico que sozinho atravessa o
tempo.
Tantas amizades, tantos amores, tantos tumultos. De repente
Rousseau sonha em se lançar contra estas hemorragias do ser fora
dos limites do organismo que são os laços sociais. Já para Emílio,
para que o aluno possa gozar incondicionalmente e sem relações,
para que ele possa se tornar independente da má sorte, a ficção
empregara todos os procedimentos do desligamento em benefício
de um aqui e agora sem horizonte, de um ser-aí todo em presença.
Ora, para Rousseau isto será uma ficção experimentada.
Disto é testemunho a célebre passagem do Quinto passuo:

Mas se existe um estado em que a alma encontra uma situação


bastante sólida para nela se repousar inteiramente e aí reunir
todo o seu ser, sem precisar nem lembrar do passado nem
transpor o futuro; em que o tempo nada seja para ela, em que
o presente sempre dure, sem contudo marcar sua duração e
sem nenhum traço de sucessão, sem nenhum outro sentimento
de privação nem de gozo, de prazer nem de pena, de desejo
nem de temor, a não ser aquele de nossa existência, e que apenas
este sentimento possa preenchê-la inteiramente; enquanto dure
este estado, aquele que nele se encontra pode se declarar feliz
[...] de uma felicidade suficiente, perfeita e plena, que não deixa
na alma nenhum vazio que ela sinta a necessidade de preenuher.
Tal é o estado em que me encontrei muitas vezes na ilha de Samt
Pierre em meus devaneios solitários (ibid., p. 1046).
Quando fala das virtudes ideais, Rousseau não é verdadeira
mente novo, no máximo ele faz com que reflitam o brilho de su

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

fantasia. Mas com Devaneios de um caminhante solitário, sem projeto e


sem cuidado, inteiramente devotado a ociosidade e a uma volup­
tuosa ausência através da qual ele comunga com o grande todo da
natureza, ele inventa uma nova figura de felicidade. Sua consistên­
cia certamente está à altura da ameaça persecutória, e ele por vezes
reencontra a seu respeito as ênfases e a técnica da ataraxia estóica.
No entanto aquela muito difere desta, pois ela não diz “que tua
vontade seja feita”, mas antes “tua vontade é nula”. Ela não aceita
nem se esgota em resistência, ela se fecha sobre um gozo autárquico.
É nesta mesma veia que o Segundo devaneio isola um instante
“singular ”. Rousseau, derrubado por um acidente, retoma a consci­
ência:

A noite avançava. Percebi o céu, algumas estrelas e um pouco


de verdor. Esta primeira sensação foi um momento delicioso.
Eu não me sentia ainda senão através dela. Eu nascia neste
instante para a vida, e me parecia que eu enchia com minha
leve existência todos os objetos que percebia. Inteiramente no
momento presente, eu não me lembrava de nada; eu não tinha
nenhuma noção distinta de meu indivíduo, nem a menor idéia
do que acabava de me acontecer; eu não sabia nem quem eu era,
nem onde eu estava. [...] Eu via escorrer meu sangue como eu teria
visto correr um riacho sem imaginar que este sangue de modo
algum me pertencia. Eu sentia em todo meu ser uma calma
arrebatadora [...] foi-me necessário todo o trajeto de lá até a
avenida para lembrar minha morada e meu nome (ibid., p. 1005,
grifos nossos).

É exatamente este apagamento das coordenadas imaginárias e


simbólicas, esta dessubjetivação, aqui acidental, e que aliás foi se­
guida, nos dizeres de Rousseau, do anúncio de sua morte em um
jornal, que o caminhante solitário cultiva no casco de sua barca da
ilha de Saint-Pierre. É neste espaço de um entre-duas-mortes não
trágico que está para Rousseau a resposta última à questão do ser, e
esta é uma resposta de separação do Outro. Ao evocar “o sentimento
da existência despojado de qualquer outro afeto”, ele diz: “De que
se goza numa tal situação? De nada exterior a si, de nada senão de si

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próprio e de sua própria existência; enquanto este estado dura nós


nos bastamos a nós próprios como Deus” (ibid., p. IO47) e|
experimenta o que Lacan enuncia em 1979: o ter, o ter do corpo
prima sobre o ser.
Assim a questão do ser, colocada — eu o disse desde a
abertura do Primeiro devaneio em um tom muito schreberiano de evo­
cação de fim do mundo, encontra no Quinto devaneio a resposta do
ter. Será por acaso que ela se enuncia do campo suprimido da ilha
para onde Rousseau se “deportou” após a lapidação de Motiers?
Um pouco mais tarde, quando ele alucinará a malignidade de Hume
Rousseau ouvirá um: “Eu detenho Jean-Jacques Rousseau”; não sua
alma é claro, tampouco sua memória, mas seu corpo. E como não
ressaltar que nesse momento na natureza, cujas cores sabemos que
mudam para ele ao sabor do sujeito, Rousseau não veja mais musas,
porém se dedique a esta espécie de anatomia que é a botânica, e
cujo mérito essencial é, ele o diz, de ocupá-lo ao mesmo tempo que
de impedi-lo seja de pensar, seja de soçobrar na letargia.

Letrificação de um goço outro

Seria melhor dizer que a libido, desligada da cadeia das relações


ditas de objeto, submete o sujeito a uma satisfação fechada nela
própria? Seguramente há aí muito mais do que a teoria freudiana
introduziu sob o termo de fixação narcísica. Com certeza Rousseau
sabia, sem Freud, que o amor-próprio é a paixão primordial; ele o
diz de Jean-Jacques: “Ele se ama e eles o odeiam” (ibid., p. 860).
No entanto as práticas de sua solidão visam outra coisa. Elas repe­
lem explicitamente não apenas a divisão subjetiva, mas também a
unidade imaginária do eu, não deixando menos de lado o que preci-
samente a língua chama de os prazeres solitários.
Por certo Rousseau foi um grande masturbador, mas aqui e
um Diógenes sem o órgão que metodicamente se separa do campo
do Outro. Será a foraclusão que, na falha de castração, lhe da
acesso a um gozo específico? Sem dúvida. Em sua barca, Rousseau

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Se identifica senão a “seu ser de vivente”, ao menos à única consci­


ência de sua existência, ou seja, ao ser-aí do corpo animado das
sensações. O que nestes momentos emerge é a virtude separadora
de um gozo da existencta, fora do simbolico, que não seria nem o
gozo-do-sentido (jouis-sens') do entre-dois-símbolos, nem o gozo
do um fálico.
Assim os Devaneios de um caminhante solitário se isolam na obra de
Rousseau. Confissões e Diálogos eram títulos sugestivos do laço social.
Devaneios não retém do pensamento senão sua vertente de prazer.
Inclusive parece que Rousseau jamais tenha verdadeiramente pen­
sado em publicá-los. Mas da letra ele aqui espera que ela fixe seu
ser de vida.
Do âmago de sua certeza delirante, ele que acaba de dizer:
“Tudo o que me é exterior doravante me é estranho... Não tenho
mais neste mundo nem próximo, nem semelhantes, nem irmãos”,
ele precisa: “Eu faço o mesmo empreendimento que Montaigne,
mas com uma finalidade inteiramente contrária à sua: pois ele não
escrevia seus Ensaios senão para os outros e eu não escrevo meus
devaneios senão para mim (...) sua leitura me lembrará a doçura que
saboreio ao escrevê-los, e (...) duplicará, por assim dizer, minha
existência” (ibid., p. 59).
O gozo da letra permanece subordinado àquele do ser. Certa­
mente, com muita freqiiência em seus últimos textos, Rousseau é
mais poeta que pensador. Esquecendo a argumentação, ele algumas
vezes abandona o conhecimento paranóico em benefício da letra
poética, mas nem por isto ele é Joyce. Joyce, fazendo-se representar
para os séculos através de seu Finnegans Wake, não se identifica a seu
ser de vivente; antes a seu ser de morte, ou ao menos ao que seria
necessário chamar de seu ser de letra, do qual ele se faz um nome
sintomático. Rousseau autor não pode fazer menos do que deixar
levar seu nome pela escrita, mas sua letra permanece com a viscosi­
dade do imaginário. E menos gozo da letra que letrificação de um
gozo outro, entre imaginário e real, aquele que ele diz o da pura
existência.

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COLETTE SOLER

Mas exceto alguns momentos privilegiados fixados pelo verbo.


R usseau-a-existência é menos realizado do que chamado como
eStC ° a título de defesa com relação à apreensão persecutória.
VRoússeau fracassou lá onde Joyce foi bem-sucedido. Ele não

elevou seu savoir-faire com a língua à função do sintoma. Sua arte


é dLplamente uma arte do simbólico: porque ela procede pelo sim­

bólico e porque ela interroga o simbólico. Na primeira vertente, ela


joga com a palavra e com os recursos da ficção, ela veicula o gozo
do sentido até produzir efeitos de retificação do gosto. Na segunda,
ela explora os efeitos do simbólico, porém questionando o simbó­
lico pelo simbólico: ela reproduz a rejeição foraclusiva sem se tornar
senhora dos retornos no real e. longe de evitar o desencadeamento,
conduz a ele. É o que ilustra o Emílio, colocando a questão: O q<u íxm
pail Aqui a letra não se emancipou do simbólico, ele próprio ligado
ao imaginário. Disto encontro um último traço sintomático no
fato de que Rousseau, tendo adquirido um nome, logo reivindica a
precedência para o significante de sua particularidade no desejo do
Outro, a saber, seu nome, do qual ele faz a insígnia de seu çjc. Era
portanto necessário dizer: Rousseau o símbolo.

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I

JEAN-JACQUES ROUSSEAU E AS MULHERES*

Anunciei como título o caso Jean-Jacques Rousseau. Ser tra­


tado como um caso foi exatamente o que Rousseau quis; mas um
caso único, suscetível de instruir a posteridade sobre o homem que
ele foi e, através dele, sobre o homem em geral.
Uma pequena nota como abertura das Confissões afirma: “Eis
aqui, pintado exatamente segundo a natureza e em toda sua verdade,
o único retrato de homem que existe e que provavelmente existirá
para sempre”. E o primeiro parágrafo:

Concebo um empreendimento que jamais teve exemplo e cuja


execução não terá nenhum imitador. Quero mostrar a meus
semelhantes um homem na mais completa verdade da natureza;
e este homem serei eu. Apenas eu. Eu sinto meu coração e
conheço os homensf...].

Por menos experiência clínica que tenham, vocês terão reco­


nhecido a nota tipicamente paranóica do tom. “Paranóico genial”,
diz Lacan no fim de sua tese sobre o caso Aimée; com efeito,
incomparável e monumental, contudo paranóico. Não temos ne­
nhuma razão para pensar, como o postulava Michel Foucault, que a
obra e a loucura se excluem. A experiência antes indica o contrário
e além disso, inversamente às aparências, uma posição bastante
segregativa no que concerne à psicose. Eu coloco uma questão para
o caso J-J. Rousseau a fim de que, segundo seu voto, nos instruamos
com seu exemplo. Eu interrogo Rousseau o apaixonado.
Essa questão se impõe em razão de nossa tese sobre a
foraclusão. Trata-se dos efeitos desta sobre o acesso do sujeito
psicótico ao outro sexo. Existe aí um problema que evidentemente
ultrapassa o caso J-J. Rousseau. É claro que a questão se introduz

Jean-Jacques Rousseau et les femmes”. Conferência pronunciada em Bruxelas


no Après-midi du Champ freudien” em 7 de outubro de 1989. Publicado em
Quarto, n. 40/41, 1990.

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inevitavelmente, desde que, de um lado, reconheçamos na castraçã


no que em determinado momento Lacan chamava de sua -
i òUriÇao
o que “regula o desejo sexual, no normal e no patológico”, e qUe j'
outro, identifiquemos na psicose uma foraclusão fálica, o qUe qUer
dizer uma foraclusão da castração. Que acesso ao outro sexo esta
foraclusão da castração deixa aberto para o sujeito psicótico?
Lacan situou seu efeito maior no que diz respeito à sexuação
Ele o qualifica de “sardónico” e o nomeia: empuxo-à-mulher. A
expressão não está aí simplesmente para dizer, com outras palavras,
a tese freudiana sobre a homossexualidade do paranóico; ao contrário,
ela aí está para corrigir sua ambiguidade. A tese freudiana tem o
mérito de insistir sobre a função do pai na psicose. No entanto ela
não isola nitidamente, no problema da relação ao sexo, o registro
classicamente chamado de identificação sexual e aquele da escolha
de objeto. Ora, embora estejam ligados, eles não se confundem. É o
que claramente mostram os casos de homossexualidade masculina
em que o sujeito, ainda que inscrito do lado homem, não escolhe o
objeto feminino. A noção de empuxo-à-mulher situa-se no nível da
sexuação do sujeito. Esta implica um modo de gozo — a precisar
— mas deixa em suspenso a escolha de objeto. Na falta de poder se
inscrever na função fálica, se o paranóico é impulsionado a ser mu­
lher, isto não nos diz ainda o que serão seus objetos e se ele amará
as mulheres ou antes os homens, e mesmo os dois indiferentemente.
Tudo bem que ele seja impulsionado a ser mulher, mas será uma
mulher homo ou heterossexual? Como então aquele, do qual dize­
mos não que ele é mulher mas que é impulsionado a sê-lo, que está
em vias de tornar-se, como ele encara o encontro de amor, de desejo
ou de gozo com as mulheres? Dito de outro modo, como aquele
que e impulsionado a ser mulher, pode sentir-se chamado a tê-las,
no sentido de possuí-las? Sobre esta questão, apelo para Rousseau.
Evidentemente, ele não poderá me responder senão por seu
texto, e a questão que se coloca é a de saber como toma-lo, este
texto das Confissões, no que diz respeito à nossa questão. Não basta
pegá lo com pinças, ou seja, com prudência; é necessário ainda

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

saber que uso dele podemos fazer. De minha parte, considero, sem
justificá-lo aqui, que a paranóia de Rousseau já estava desencadeada
e ativa no momento em que ele começou a escrever suas Confissões.
Certamente existem diferenças segundo os livros, mas o conjunto
do texto esta escrito na perspectiva da perseguição e do arrazoado
que responde a ela. A elaboração que os justificam está presente em
toda parte e não podemos esperar do relato que ele nos dê a exati­
dão biográfica lá onde é a verdade paranóica que ressoa. A demons­
tração não deve mais ser feita: sabemos, por exemplo, que desde as
primeiras páginas, nas quais Rousseau descreve sua família, seus
pais, o casamento deles, seu nascimento, ele nos apresenta uma his­
tória quase mítica em que nada é exato, mas em que podemos reco­
nhecer a verdade de sua ficção paranóica.
Tomando-o assim, podemos identificar sem dificuldade
alguns indícios claros de um discreto empuxo-à-mulher.
A página sete evoca o laço da criança Rousseau com seu pai
(vocês sabem que sua mãe morreu no momento de seu nascimento).
Ele diz:
Eu não soube como meu pai suportou esta perda; mas sei
que ele jamais se consolou dela. Ele acreditava revê-la em mim,
sem poder esquecer que eu a tinha tirado dele; jamais ele me
abraçou sem que eu sentisse em seus suspiros, em seus
convulsivos abraços, um lamento amargo que se misturava com
seus carinhos; estes não deixavam de ser mais ternos. Quando
ele me dizia: Jean Jacques, falemos de tua mãe; eu lhe dizia:
pois bem, meu pai, então vamos chorar; e só essa palavra já lhe
arrancava lágrimas. Ah!, dizia ele gemendo: devolve-ma,
consola-me dela; preencha o vazio que ela deixou em minha
alma. Eu te amaria assim se fosses apenas meu filho? Quarenta
anos após tê-la perdido, ele morreu nos braços de uma segunda
mulher, mas com o nome da primeira na boca, e sua imagem
no fundo do coração.
Vemos desde estas primeiras linhas, ante o Outro barrado,
evocado precisamente pela expressão “o vazio da alma , Rousseau

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COLETTE SOLER

sentir-se chamado no lugar do objeto. Muito explicir


a criança viva, no lugar de uma mulher perdida, morta
esta substituição é compreensível em um duplo sentido
volvi em outro lugar: é a criança que se feminiza ou é a mulk^'
se defeminiza? Entretanto, não podemos duvidar da Ce
Rousseau: o Outro o quer objeto. É a própria pos.ção schXrhJ'
e dela podemos concluir que muito provavelmente também
sido “advertido pela adivinhação do inconsciente” "de oup n, f i*’
J c i r 1 Mue na talta
de ser o talo que Falta a mae, restava para ele a solução de ser a
mulher que falta aos homens”. Mas isso ainda não nos diz nada das
pulsões do sujeito e de sua maneira de assumi-las. É precisamente
isto o que está em questão.
Rousseau nunca cessou de afirmar seu “caráter efeminado”.
Ele designa com isso, parece-me, sua recusa às coerções e ao esforço,
sua moleza, seu gosto pela liberdade de fazer aquilo que lhe agrada,
quando quiser, sem horário e sem obrigação vinda do Outro. 0 que
Rousseau detesta acima de tudo é o imperativo; digamos, andar no
passo de todos, como todos os homens. Eis o que é ser efeminado
para ele. Ele nos conta uma historieta nas Confissões (1985, p-47)-
Ele tem 16 anos, está diante de um homem que tenta, ainda que ele
seja protestante, convertê-lo ao catolicismo. Ele explica sua reação
como mulher — é sobretudo divertido: consistiu em não dizer
sim, sem contudo dizer não, deixando esperar sem dar coisa alguma.
Compreendemos que ser categórico não seria feminino, mas que
tenacidade todavia não está excluída.
Rousseau não se contenta com saber das disposições fe
é nelas que ele se reconhece. Ele muito se interrogou s
próprio ser — “mas eu, separado deles e de tudo, que s°
prio?” — e quando ele se reconhece como ele PróPr10 identi-
pressão tem muito peso para ele — jamais é pelo vies ^unj0.
ficações heróicas ou viris, que o tornaram conheci ° P, urn
O cidadão de Genebra, que exalta as virtudes da c enSação,
Rousseau de quem ele dirá “eu era um outro • Em ^orn]ean-
ele se reconhece, o que quer dizer que ele se assume,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Jacques, que sonha com o amor como uma mulher, que flana no
campo, que conhece gozos requintados abandonando-se à natureza
ou que trança os laços com as mulheres ao pe da porta. Diferente­
mente de Schreber, Rousseau jamais advoga por sua virilidade. Muito
longe de protestar ou de lutar contra a feminilidade, ele antes se
surpreende que lhe tenha chegado a alcançar a estatura do Homem.
Ele comenta sobre um ‘isto não era eu', reconhecendo aí o artifício
de uma sobreposição identificatória tomada emprestada das leituras
de sua infância sobre a Roma antiga.
Afirmando-se feminino, Rousseau diz ter sempre preferido a
companhia das mulheres. De fato, ele amou homens com paixão,
mesmo muitos homens, teve grandes amigos e disso não se defende,
mas sempre protestou que efetivamente entre a companhia de um
homem e a companhia de uma mulher, há nesta última uma coisinha
a mais que não é o amor, mas que se liga ao sexo e que ultrapassa os
encantos da amizade. Certamente esse traço pode receber diversas
interpretações, mas sabemos em todo caso que no final de sua vida
ele tomou o hábito armênio. Ele usava vestido — pretendendo ser
isto mais cômodo em razão dos cuidados necessários com sua
doença na bexiga! — e se ocupava, como as mulheres, com as mulheres,
em trançar laços. Nessa época, ele escreve para uma mulher e essen­
cialmente lhe diz: “Eis-me aqui um pouco em seu sexo e eu me
sinto melhor nele do que no meu”.
Podemos ir mais longe. Gostaria de evocar um texto — citado
recentemente por Alain Grosrichard — que nos permite ultrapassar
as declarações explícitas de Rousseau e perceber alguma coisa de
sua posição em relação ao reconhecimento da diferença dos sexos,
ao que são homens e mulheres, sexualmente falando. O texto se
encontra em seu Emílio. Rousseau medita sobre o que deveria ser a
educação sexual ideal. Como o preceptor deveria responder à per­
gunta: “De onde vem as crianças?”. A resposta nos é importante,
pois, a partir de Freud, aprendemos que esta pergunta esconde
uma outra: aquela da diferença dos sexos e dos gozos. E eis o
que diz Rousseau: “Conheço a resposta de uma mãe que é admirável”.

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A seu filho que lhe interrogava, respondeu: "Meu filk-


I j „ * as nnj]kpr
os miiam como pedras em dores atrozes . E Roncei res
. . _ usseau se rnaravilk
com uma resposta tao apropriada! Ora, o que sabemos? Se ai * *
mijava pedras com dores atrozes, era bem ele, que durante t0/Uem
vida sofreu da bexiga, terminando por não poder mais urinar 3
ajuda de sondas. Como por acaso, a função orgânica é condena^ 3
simbolizar a potência fálica que se encontra lesada na doen a /
Rousseau. Agressividade uretral, dizia Freud; alegria fálica retoma ?
Lacan, para designar esse alcance simbólico do ato de urinar Ora
Rousseau nos indica em um outro de seus textos que esta não lhe
foi estranha. Na página dez de suas Confissões, ele se enternece sobre
sua inocência e sua bondade infantil, procurando rememorar algum
malfeito seu. Ele só encontra um, cuja evocação, diz ele, ainda o
fazia nr, cerca de cinquenta anos depois: ele se lembra de ter uma
vez mijado na marmita de uma vizinha, uma boa mulher, velha e
resmungona. Como então não concluir com a aproximação destes
dois textos que a doença de Rousseau realizava uma fantasia de
mulher parindo e que funcionava no real como mortificação fálica
— de passagem, noto que a criança viva é aí colocada como
equivalente da pedra inanimada.
Como este homem que situa as mulheres quase como suas
irmãs, pode amá-las como homem?
Três contaram, três encontros que desviaram o curso de sua vida.
Certamente houve alguns outros, vocês os encontrarão no decorrerdas
Confissões, mas apenas três tomaram para ele a figura do destino. Tome­
mos estes encontros como uma ocasião de interrogar na escolha de
objeto o respectivo jogo do automaton e da tykhé, a combinação da repe­
tição do mesmo e do que se nos esbarra por acaso. Tratemos de ler
como esta oferta do real que é o acaso é consonante com a insistência
da fantasia. Vocês conhecem a afirmação de Lacan em Televisão, a
mulher não existe, mediante o que O homem [...] encontra
mulher, com a qual tudo acontece, ou seja, comumente esse fracasso
em que consiste o êxito do ato sexual” (1974, p- 60-1). Pois hem,
quando Rousseau encontra uma mulher, tudo não acontece.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Estas três mulheres são: Mme. de Warens, Thérèse e sobretudo


Mme. d Houdetot. Frente a cada uma delas, Rousseau se reconhece
em dívida. Já não é uma posição comum se reconhecer em dívida
para com as mulheres, habitualmente é antes para com o pai que
um homem está em dívida, ainda que o seja na denegação.
Ele encontra Mme. de Warens em 1728. Ele tem 16 anos.
É, diz ele, o encontro que “decidiu meu caráter”. Eis aí o valor da
dívida. Rousseau tão suscetível de seu próprio ser, sempre pronto a
se revoltar contra toda influência, e a se insurgir contra seus
abusos, coloca si próprio como a obra — o termo é repetido muitas
vezes — de Mme. de Warens.
A segunda mulher é Thérèse. Rousseau a encontra em 1745,
quando já não é muito jovem; ele tem 32 anos. Ele observa: “O dia
em que me uni a Thérèse fixou meu ser moral”. Permanecerá com
ela até sua morte e a esposará no final de sua vida.
Em 1757, vem a terceira: Mme. d Houdetot. Ela é também a
primeira, pois ele deve a ela o fato de ter conhecido o amor, o que
ele considera como o verdadeiro amor, e que aconteceu em sua vida,
é preciso dizê-lo, como uma catástrofe. Isto durou uma primavera-
verão; no outono, já era o desastre.
Pois bem, por sorte, Rousseau fez um esforço extraordinário
para nos dizer o que foram estas três mulheres para ele. Aí percebemos
que das mulheres ele não procura menos colocá-las em série do que
distinguí-las. Ele não se contenta, como é o caso para maioria dos
homens, em contá-las; ele tenta torná-las únicas tanto quanto ele
próprio gostaria de ser único, e para cada uma coloca a pergunta:
que foi ela para mim?
O encontro com Mme. de Warens se passa no instante de um
olhar. Existe aliás na obra de Rousseau muitas cenas extraordinárias
de troca de olhares — com uma tal Mme. Basile, com uma Mlle.
Debray etc. — e inúmeros comentadores frisaram a importância
do registro escópico no laço que une Rousseau a seus semelhantes.
Mas o que eu inicialmente gostaria de destacar, neste primeiro encontro,
e sua dimensão narcísica. Remetam-se às páginas 48 e 5 3-ss das

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Confissões c cm seguida às páginas 194 e 197 para o que concerne a0


encontro propriamente sexual.
Rousseau chega a Chambéry. E necessário apreender bem 0
contexto. Ele acaba de fugir de Genebra, não podendo suportar a
posição servil que estava à sua espera desde que ele fora colocado
como aprendiz de um artesão. Ele e então um jovem vagabundo
esfomeado e sem recursos. Ele acaba encontrando um bom padre
que o envia a uma boa devota, chegando em Chambéry com uma
carta de recomendação. Ele espera encontrar uma devota fazendo
profissão de caridade. Ora, o jovem Jean-Jacques conhece as devotas
e de modo algum as ama; ele teve três tias, entre as quais a tia
Suson, a que o criou, e a quem ele diz dever a vida, e por quem ele
sempre conservou um amor inalterável. Quanto às duas outras, ele
só soube denunciar sua carolice. Assim ele preparou uma pequena
carta lindamente redigida porque sabia que não falava bem.
Eis o começo do texto: “Enfim chego; vejo Mme. de Warens.
Esta época de minha vida decidiu meu caráter; não posso me decidir
por passá-la levianamente. Eu estava com meus 16 anos”.
A construção é surpreendente, pois transforma a imagem recém-
percebida de Mme. de Warens no retrato, sobretudo avantajado, do
jovem visto por ela. É apenas na página seguinte que o projetor a
encontra novamente. Sem dúvida existe aí alguma retórica feita para
criar um suspense, porém existe mais.
O fenômeno do espelho é aqui patente, prestes a ser traduzido
em movimento de câmera. Ela andava diante dele, ele a chama:

Mme. de Warens se volta ao meu chamado. Quão me toca


esta visão.' Eu imaginara a figura de uma velha devota bem
rabugenta. [...] Eu vejo um rosto graciosamente modelado, com
belos olhos azuis cheios de doçura, uma tez deslumbrante, o
contorno de um pescoço encantador. Nada escapa a rápida
olhada do jovem prosélito; pois me torno imediatamente seu .

No instante de ver, a figura feminina cheia de graça oS


olhos, a tez, o pescoço — veio em oposição à máscara da beata.
Será necessário concluir que ela ressuscitou — escolha por apoio

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

— os encantos que foram aqueles da tia Suson? Lendo a descrição


das primeiras páginas das Confissões, podemos calculá-lo. Mais além,
em toda a seqüencia do texto, os traços de identificação narcísicos
são ainda mais legíveis.
De seu novo ídolo, ele nos diz: “Ela havia abandonado seu
marido, sua família e seu país por um desatino semelhante ao meu”.
Tal como ele, ela perdera sua mãe ao nascer e era seguramente vítima
de charlatães em virtude de seu bom coração. Por fim — traço
raramente ressaltado — ela tinha além disso um nada de virilidade:
“Não era das intrigas de mulheres que ela precisava, eram empreen­
dimentos a fazer e para dirigir. A cada dia novos sistemas germina­
vam em sua cabeça e ela precisava de liberdade para se dedicar a
eles” etc. É portanto uma escolha de objeto compósito, ao mesmo
tempo narcísica e por apoio, que investiu Mme. de Warens da po­
tência tutelar da mulher protetora. Rousseau diz: “Eu logo me vi
vivendo sob seu encaminhamento”. Desde então ele a chamará de
“mamãe”, e ela lhe dirá “meu pequeno”. Mais tarde, ele poderá pre­
cisar: “Com o hábito de chamá-la de mamãe, com o hábito de usu­
fruir com ela da familiaridade de um filho, eu me acostumei a olhar-me
como tal”(l9S5. p- 196).
Rousseau tenta precisar seus sentimentos para dizer que abso­
lutamente não se trata de desejo sexual. Tampouco é de amizade,
mas alguma coisa de “mais voluptuoso e mais terno”, que não implica
“nem desejo, nem arrebatamento”, e dos quais ele não imagina que se
possa senti-los por alguém do mesmo sexo. Há no entanto um
paradoxo, e Rousseau se espanta que um sentimento tão tranquilo,
que evoca a tranqüilidade da criança junto de sua mãe, o faça come­
ter toda sorte de loucuras e de extravagâncias, como por exemplo
beijar sua cama, imaginando que ela ali estivera deitada... Algumas
vezes, mesmo em sua presença, diz Rousseau, escapavam-me ex­
travagâncias que só o amor mais violento parecia poder inspirar.
Um dia na mesa, no momento em que ela colocava um pouco de
comida em sua boca, grito ao ver ali um cabelo: ela recoloca o pedaço
em seu prato, eu o pego avidamente e o engulo”. Nós o vemos, são

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COLETTE SOLER.

toda sorte de provocações, de abraços, de agarros, ela lhe põe Os


dedos na boca para fazê-lo engolir porções, para implicar com ele,
eles riem como dois doidinhos. E bastante para que compreendamos
que a relação não deixa de implicar um certo corpo a corpo, mas
um corpo a corpo que elide a dimensão fálica e antes evoca o objeto
erótico que uma criança pode ser para uma “terna mamãe”.
É notável a posição subjetiva de Rousseau para com Mme. de
Warens. Dela, ele pode tudo suportar e principalmente o que em
geral lhe é insuportável. Todas as restrições, todas as exigências se
lhe tornam leves, e ele, o rebelde, revela-se o mais submisso dos
homens. Ele o diz com sua precisão habitual: “Eu estava a serviço
da melhor das mães”. No entanto, não tardamos a descobrir que
tudo se passa como se não fosse necessário que ele estivesse intei­
ramente a seu serviço. Este acaba num ponto muito preciso: aquele
em que se tornaria “serviço sexual”, no sentido fálico do termo.
Chegou portanto o momento em que Mme. de Warens acreditou
dever iniciar o jovem Rousseau e julgou bom oferecer-se a ele, não
sem tê-lo advertido duas semanas antes.
É aí que tudo muda. Ele adora esta mulher, tem nela uma
confiança absoluta, mas ele não a quer. Em várias páginas, ele explica
seu pavor — misturado à impaciência — sua repugnância e seus
temores; ele diz o quanto ele teria querido poder dizer não e o
quanto ele avaliava que isso não era uma resposta a ser dada para
uma mulher, nem mesmo a esta.
Vem então o dia fatídico:

Eu me vi pela primeira vez nos braços de uma mulher, e de


uma mulher que eu adorava. Fui feliz? Não, experimentei o
prazer. Não sei que invencível tristeza envenenou seu encanto.
Eu estava como se tivesse cometido um incesto.

Ora, Rousseau não aprendeu o Édipo com Freud, não é?, e sua
observação tem muito mais valor, valor de verdade.
A partir dai, as relações de Mme de Warens e de Rousseau *ão
se deteriorar, e isto bem antes que ela lhe imponha um rival. Temos

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

vários indícios: Jean-Jacques fica várias vezes doente, viaja muitís­


simo, ele vai e vem tantas vezes que não exageramos em supor que
ele foge dela sem o saber; aliás, na primeira oportunidade ele deci­
dirá interromper suas relações. Evidentemente esta ocasião não é
uma qualquer: durante uma ausência de Jean-Jacques, Mme. de
Warens arranjou um outro amante. Mas é necessário notar que
Rousseau não fora até então o único amante de Mme. de Warens.
Em seu lugar já havia um outro homem que tinha o papel de amante,
chamado Claude Anet. Logo voltarei a isto, mas já vemos que não
esta aí a própria situação triangular que repugnava Rousseau.
Entretanto ele anuncia que renuncia à sua posse. Cessa então de
estar a serviço da melhor das mães e jamais duvida que ela o tenha
perdoado e que o esfriamento de suas relações tenha vindo daí.
Com relação a Mme de Warens, a fórmula seria: todo o serviço,
exceto o serviço sexual.
A segunda é Thérèse, que, se acreditamos nele, fixa seu “ser
moral”. Disso falo rapidamente, ainda que Thérèse tenha sido e
permaneça um enigma para todos. Rousseau, o genial Rousseau,
encontrou como mulher uma mentecapta, uma verdadeira. Ele
próprio a descreve: não somente ela não tem formação, nenhuma
instrução, o que não seria nada, como também ela é incapaz de
adquiri-la. Nunca aprendeu a ver as horas; coisas muito, muito sim­
ples lhe são inteiramente inacessíveis, para grande divertimento de
Rousseau, que inclusive irá estabelecer o bestiário de seus ditos.
Analfabeta e, mais ainda, um pouquinho sem-vergonha — pois ela
nem mesmo foi fiel — tal é a mulher que o amigo de todos os
enciclopedistas escolheu, o homem que não iria tardar em ser o
mais célebre da Europa. O encontro se fez no momento de um
olhar, ainda aqui (cf. ibid., p. 3 30). O olhar de Rousseau cruzou
um outro, “vivo e doce”, que, diz ele, jamais teve outro igual.
O contexto deste instante está longe de ser insignificante: trata-se
de uma simples servente de um hotel, estão jantando, os amigos de
Rousseau dela zombam com superioridade e logo Jean-Jacques se
levanta em sua defesa.

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COLETTE SOLER

O traço de identificação naroísico está presente desde a entrada


pois não esqueçamos que o orgulhoso Rousseau também serviu à
mesa dos grandes — ele escreveu a este respeito páginas admiráveis
encontrando-se por causa disto muitas vezes mortificado, se bem
que tenha sabido às vezes aí se fazer distinguir em razão de seus
próprios conhecimentos. Rousseau o humilhado toma então a
defesa da simplória da qual se troça, e o idílio começa.
Como situar esta nova figura na sequência das mulheres? Com
uma cortante lucidez Rousseau observa:

Era necessário, para dizer tudo, uma sucessora de Mamãe; já


que eu não devia mais viver com ela, era-me preciso alguém
que vivesse com seu aluno, e que encontrasse a simplicidade,
a docilidade de coração que ela encontrara em mim.f...] Eu
encontrei em Thérèse o suplemento de que precisava.

Ela virá portanto como suplência de Mme. de Warens, mas em


um esquema invertido, e uma vez que Rousseau era a obra desta
última, ele tentará — durante um tempo — fazer de Thérèse sua
obra. Aí fracassa, e finalmente ela se encontra no lugar da mãe ou
do duplo: ele a chama de “a tia”, ocasionalmente a faz passar por sua
irmã, e quando usa um nome falso, pede emprestado o dela. Mas ele
jura pelos deuses que não se tratava nem de amor nem de desejo:

Que pensará então o leitor, quando eu lhe disser [...] que do


primeiro momento que eu a vi até hoje, jamais senti a menor
fagulha de amor por ela, assim como desejei possuí-la tanto
quanto a Mme. de Warens, e que as necessidades dos sentidos
que satisfiz junto dela, para mim foram unicamente as do sexo,
sem ter nada próprio ao indivíduo? (ibid., p. 414)-
Sem dúvida está aí — em um outro vocabulário — seu modo
de distinguir amor e gozo sexual. No fim, o que ele lhe terá pedido e
o que dela terá obtido é, muito claramente, a presença incondiciona.
Por isso é que me permiti dizer certa vez que ela estava no
lugar do fiel animal doméstico. De fato, ela o seguiu por toda parte,
indefectivelmente, durante os tempos de desgraça e de perseguição.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Chego agora a Mme. d’Houdctot. "Desta vez foi o amor”.


Será para nós a ocasião de interrogar o que permitiu a Mme.
cTHoudetot ser elevada à posição do objeto, "o primeiro e o único”,
diz ele.
Falarei inicialmente do que quase poderei chamar de os
pródromos do encontro — como se diz pródromos de um
desencadeamento — que, na minha opinião, o enquadram e o
condicionam. Vemos aí, de maneira notável, o automaton avançar ao
encontro da tykhê.
Rousseau se apaixona por Mme d’Epinay na primavera de 1757.
Qual é então sua posição subjetiva? Ele fez sua “grande revolução”.
Tendo pensado em coincidir sua conduta e seus propósitos, em
uma decisão espetacular que “fez barulho”, ele abandonou os faustos
enganadores da sociedade pervertida para viver conforme a natureza,
longe do mundo, em pleno campo, que sempre amou e onde, assim
ele o crê, irá reencontrar ele próprio, liberto do jogo das aparências
mundanas.
Mme. d’Epinay, sua amiga, quis bancar a boa fada e realizar
seu sonho de um recanto solitário e campestre. Ela pôs a sua dispo­
sição uma casinha toda arrumada para ele. Eis portanto Jean-Jacques
no Hermitage, em pleno campo, atravessando, para sua surpresa,
uma crise profunda. Hoje diríamos, diretamente, que ele se deprime.
Ele nos explica como as identificações heróicas do cidadão de Ge­
nebra foram como que sopradas de um só golpe desde que ele se
encontrou separado de seus interlocutores mundanos: elas se eva­
poraram tão subitamente quanto haviam aparecido em seu Primeiro
discurso.
Ele escreveu a um de seus correspondentes: “Não tenho mais
gênio . E por não ter conservado sua inspiração polêmica, e ele o
observa em páginas muito dolorosas, que ele se via chegar às portas
da velhice sem ter vivido, sem ter conhecido o amor, ele que se
sentia todo amor. Já — é preciso notá-lo — buzinam em seus ou­
vidos alguns ecos maldosos de seus amigos. Diderot, seu melhor
companheiro, escreveu: “Só o maldoso fica só”. Rousseau sentiu-se

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COLETTE SOLER

visado e lhe deu uma resposta bastante comovida, inteir


pirada em uma verve paranóica. ’ eiraniente ins.
Que se passa então? Não é ainda o encontro; é inici
fabulação. Rousseau, solitário e abatido entre»/. ,CIa mente a
habitual, a “benfazeja imaginação”. Ele sonha: recurso

Que fiz eu nesta ocasião? Meu leitor já o adivinhou


pouco que tenha me seguido até aqui. A imposs.bilidVd'
alcançar os seres reais me lançou no país das quimeras e n
vendo nada de existente que fosse digno de meu delírio
nutri em um mundo ideal que minha imaginação criadora fo o
povoou de seres segundo meu coração(ibid., p. 427). g°

E o que ele inventa? d Nova Heloísa, vocês me dirão. Com efeito


mas isso não passa de, no nível do esquema amoroso, a invenção
antecipada de seu encontro com Mme d’Houdetot. Digamos, como
se diz em geometria: seja um par de amigas, Julie e Claire, duas
mulheres virtuosas; seja Volmar, o interessado, e Saint-Preux, 0
amante infeliz, dela privado por sua própria virtude. Este dispo­
sitivo faz Rousseau mergulhar nos transes: “Em meus contínuos
êxtases eu me embriagava aos borbotões com os mais deliciosos
sentimentos jamais entrados num coração de homem”. Este é 0
tributo da fantasia. Não é uma fantasia de transgressão; ao contrário,
é a instalação do que poderíamos chamar de uma estrutura tanta-
lizante: a mulher amada aí está protegida pela “virtude” e proibida
em razão dos laços legítimos que a unem a um terceiro. Que fazer
com uma mulher interdita — que não seja apenas nela pensar —
senão lhe falar, ou melhor escrever-lhe? Falar de amor é em si um
gozo, dizia Lacan no Seminário, livro 20: mais, ainia (1975)-d A*»"
Heloísa o ilustra da melhor forma. É um romance composto ecar
tas em que nos deleitamos com as privações reais em
prazeres do verbo. Vocês não imaginam o sucesso que te
fo. um dos primeiros da hrera.u
O efeito contagiante fo. imenso e constante, Por «eJ
manteve, cerca de I 5 anos, uma correspon je jjie e de
nhecidas que lhe escreviam como sendo as enca í

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Claire, e às quais, entrando no jogo, respondia como Saint-Preux.


De fato, seria necessário que gozássemos deste delírio de virtude
_ que hoje nos parece inteiramente maçante — para que em seu
nome fosse consagrado tanto tempo e tanta energia.
Seja como for, o primeiro esboço do texto está acabado, quando
a realidade, através de uma oferta sobrevinda como que por acaso,
começou a responder à ficção, e bem depressa a superá-la. Eviden­
temente temos aí alguma coisa muito marcante em que se vê como
a hora da tykhê trabalha para a boa-hora' do sujeito. Podemos quase
tocar com o dedo o quanto “a realidade é a fantasia”, esta desenvol­
vendo-se inicialmente como devaneio, antes que um objeto venha
deslizar no lugar já formado. Sem dúvida é necessário não esquecer
que todo o relato de Rousseau é atravessado pela intenção de justi­
ficar que o anima, mas esta não muda a estrutura descrita.
Ele imaginara Claire e Julie e terá Mme. d’Epinay, a amiga
benfeitora, assim como Mme d Houdetot, sua jovem cunhada, que
tem um amante com títulos, St-Lambert. Este é um conhecido de
Rousseau e, aliás, foi ele que o enviou para ela. O lugar do amante
tímido é desde então vago. Serão necessárias duas visitas para que
Mme. d’Houdetot seja verdadeiramente alojada no quadro da fan­
tasia diurna de Rousseau. É na segunda que seu amor explode em
toda sua amplitude, mas creio que a primeira não deixa de ter im­
portância. Entre as duas, podemos portanto tentar descobrir os
traços condicionantes deste amor.
A primeira visita — Confissões, p. 432 — aconteceu em janeiro.
Teve ares de romance, que Rousseau ressalta insistindo sobre um
traço na medida de seu agrado: a carruagem de Mme. d Houdetot
se atolou, ela quis fazer o trajeto a pé, mas seu delicado sapatinho
logo furou” e ela finalmente chega "de botas , toda enlameada mas
rindo às gargalhadas. “Foi necessário mudar tudo. Thérèse provi­
denciou , e a dama consentiu em um lanche rústico com o qual se
sentiu muito bem”. Já podemos deduzir: por maior que ela seja,

I N. do T. Há aqui um jogo de palavras entre bon-beur (boa hora) e bonheur


(felicidade), tornado possível pela homofonia entre as duas.

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COLETTE SOLER

esta dama não partilha da soberba dos grandes, tão odiosa para o
coração do cidadão de Genebra; ela conservou, como o próprio
Jean-Jacques, uma simplicidade bem próxima da natureza.
O segundo encontro, fatídico, foi outra coisa. Nada de sapato
furado, bem longe disto: “Ela estava a cavalo e vestida de homem”.
“Ainda que eu não goste deste tipo de mascaradas”, diz Rousseau,
“fui tomado por seu jeito romanesco”— ainda o traço de romance
e “desta vez foi o amor”. Ele nos descreve Mme. d’Houdetot,
sua figura, seu jeito etc.

Ela veio, eu a vi, eu estava ébrio de amor sem objeto, esta


embriaguez fascinou meus olhos, este objeto se fixou sobre
ela, eu vi minha Julie em Mme. d’Houdetot e logo não vi senão
Mme. d’Houdetot. [...] Enfim, sem que eu me apercebesse e
sem que ela se desse conta, ela me inspirou por ela própria
tudo o que ela exprimia por seu amante. Hélas! Isto muito
tarde, muito cruelmente, queimar de uma paixão não menos
viva que infeliz, por uma mulher cujo coração estava pleno de
um outro amor! (1987 p. 440).

Uma coisa é certa: sabemos que Mme. d’Houdetot e Rousseau


conversaram muito, muito falaram de amor, mas ele não a possuiu.
Ele diz: “Estávamos ambos ébrios de amor, mas com objetos dife­
rentes e, uma única vez, “Eu fui sublime”. Ele o foi até o ponto de
arrancar-lhe a confissão de que jamais vira amante como ele, sendo
o amante aquele que fala, não o que realiza.
Uma questão concernindo à função do que eu chamei de a
estrutura tantalizante do cenário imaginário se coloca, assim como
os traços decisivos que — além do fato de que ela era a mulher de
um outro e portanto interdita — permitiram a Mme. d Houdetot
vir se alojar em sua fantasia.
Precisemos: inicialmente ele percebeu que Mme. d Houdetot
partilhava de sua simplicidade: ei-los portanto vestidos (cbaussí^
do mesmo couro, pois não esqueçamos que ele primeiro foi um—
borra-botas (traine savate'). Num segundo tempo, ele chegou a amar—
como ela. Se ela é sua irmã em inocência nativa, ele é portanto seu

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

irmão em matéria de contágio amoroso. A isto se acrescenta a série:


sapato furado, bota substituta, traje viril, que por metonímia evoca
claramente a castração. Que concluir disto? Muitas hipóteses são
possíveis, quero dizer plausíveis.
Poderíamos inicialmente pensar que o devaneio diurno da
mulher interdita se desdobra a contrário da fantasia inconsciente,
como defesa, e suporemos então um voto oculto de transgressão,
fomentando a situação do terceiro lesado, que Freud isolou como
uma das condições possíveis do desejo masculino, e na qual uma
mulher não é desejada senão sob a condição de pertencer a um
outro de quem se poderá tirá-la.
A não ser que, outra hipótese possível, infiramos da presença-
ausência do traço fálico nos dois encontros seja Rousseau que ama
Mme. d Houdetot na qualidade de homem, seja Rousseau amando
em posição especular com ela, portanto como uma mulher, um ho­
mem — aqui naturalmente St-Lambert. Seria ir ao encontro de
uma outra tese freudiana, aquela que faz da posição homossexual
senão a causa, ao menos a condição libidinal da psicose. E talvez
haja ainda uma terceira via.
Examinemos inicialmente a primeira hipótese. A fantasia do
amante tímido, renunciando possuir em benefício de um outro,
põe em cena uma situação de terceiro não lesado. E um fato. E a
questão a de saber se temos alguma razão de pensar que se trata de
uma formação reativa, ou seja, de uma defesa contra o voto inverso?
Para respondê-lo, examinemos alguns dados da biografia de
Rousseau. Houve muitos outros trios em sua vida e o primeiro é
sem dúvida aquele constituído por seu pai e seus dois objetos: sua
mulher morta e a criança que esta lhe deixa. Com Mme. de Warens,
Rousseau tampouco ficou a sós. Poderíamos nos surpreender, pois
ele próprio insistiu sobre seu modo de funcionar tudo ou nada,
sobre seu voto de um ser inteiramente para si, sem partilha: se eu
não fosse tudo, eu não seria mais nada, diz ele. No entanto, quando
ele chega à casa de Mme. de Warens, esta já tem um amante, um
jovem chamado Claude Anet. Jean-Jacques vem na posição de

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COLETTE SOLER

terceiro, realizando, com efeito, a situação do terceiro lesado, exCet0


pelo fato de que o foi consentindo. Claude Anet morrera em 17^
Mme. de Warens não demorou em reintroduzir um terceiro ata >
chamado Vintzenried. Desta vez é Rousseau que se encontra no
lugar do terceiro lesado — Encontrei meu lugar tomado”
constatamos que não é a mesma canção. Mme. de Warens lhe asse
gura que ele conserva “todos os seus direitos”, mas ele não mais os
quer desde que é necessário partilhá-los. Ele lho diz e faz vibrar
para o leitor seus primeiros tons trágicos:

Eu me vi só pela primeira vez. Este momento foi terrível-


aqueles que o seguiram foram sempre sombrios. Eu ainda era
jovem: mas este doce sentimento de gozo e de esperança que
vivifica a juventude me deixou para sempre (ibid., p. 263).

Se nos detivéssemos aí, poderíamos de fato evocar com alguma


probabilidade o terceiro lesado como condição inconsciente do amor,
e daí reinterpretar, como eu o disse, a ligação com Mme. d’Houdetot.
Há no entanto uma objeção: no momento de seu encontro com
Mme. de Warens, Rousseau ignora sua ligação com Claude Anet e
sobretudo o que estava em jogo não era aparentemente a posse de
Mme. de Warens. Eu já mencionei a espécie de repugnância que ela
parece lhe ter inspirado, e ressaltei que antes mesmo do apareci­
mento de seu novo rival, Rousseau iniciara uma estratégia de
distanciamento. Ele precisa, além disso, o interesse que tinha na
presença de Claude Anet, indicando que a três formavam uma soci­
edade encantadora, ao passo que o face-a-face teria introduzido 0
constrangimento e o mal-estar. Enfim, sabemos como Rousseau
“satisfazia as necessidades dos sentidos”, pois ele não nos deixa
disponíveis os detalhes, precisando que é a masturbação, este pe­
rigoso suplemento” que... o “preservaria dela e de todo seu sexo • E
de qualquer forma uma curiosa expressão. Nós o vemos, o terceiro
não parece intervir aqui como terceiro lesado, condição do desejo,
porém antes como terceiro-tela, protegendo o sujeito do risco
ser inteiramente do objeto.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Tomemos então a segunda hipótese: ele amaria o homem e


não a mulher. E neste caso seria preciso então supor que esta última
lhe serve para desconhecer o desejo homossexual.
De fato, Rousseau amou, e mesmo adorou, as mulheres, mas
ele as terá amado como homem?
Uma vez, uma única vez em sua vida ele diz ter se sentido
homem junto de uma mulher. Foi com Mme. de Larnage, na oca­
sião de uma viagem a Montpellier, uma breve ligação de quatro
dias, sem a qual, diz ele, teria morrido “sem ter conhecido o prazer”.
É necessário observar ainda que foi ela que investiu nele e que
Rousseau não a terá possuído senão sob um disfarce, pois ele se
fizera passar por um jovem inglês em viagem!
De um modo geral, Rousseau jamais se “autorizou dele pró­
prio” a possuir uma mulher. É ele quem o diz: “Eu o lembrei, Mme.
de Warens se ofereceu, inclusive se impôs”. Ele não tinha escolha, a
cortesia o mandava executar. Houve, aliás, muitos outros episódios,
com uma Mme. de Breille, por exemplo. Ele se joga a seus pés, tre­
mendo, mas não faz mais do que isso, explicando que espera um
sinal. Nisto Rousseau é o contrário de um perverso. Este, em sua
vontade de gozo, força o consentimento do outro. Rousseau dele
espera uma autorização.
Porém há mais. Vejamos o que ele nos diz do que lhe advém
nas poucas experiências em que essa barreira foi ultrapassada. Por
duas vezes ele tentou se aproximar das prostitutas, durante sua
estadia em Veneza. Não que as tenha procurado — pois durante os
dois anos lá passados, contentou-se de “ludibriar suas necessi­
dades — entendam masturbação — mas porque ele não podia se
furtar sempre às ofertas de seus amigos.
A primeira foi com a Padoana. Resultado: duas semanas de
um verdadeiro delírio de infecção. A segunda, com Zulietta (cf seu
relato nas p. 320-ss das Confissões'): “Seja você quem for, caso quei­
ra conhecer um homem, ouse ler as duas ou três páginas que se
seguem e você irá conhecer plenamente J-J. Rousseau’. Eu resumo.
Ela o deslumbrou, ele acredita ter entrado no “santuário do amor e

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da beleza” e diz: “Jamais teria acreditado que sem res '


estima pudéssemos sentir algo semelhante ao que ela me f C
rimentar”, mas “de repente, em lugar das chamas que me^ev^'
vam, sinto um frio mortal correr em minhas veias” etc QUe
deria adivinhar a causa? Pois bem, ele está às voltas com uma
tação sobre a ordem do mundo e sobre a perfeição miseravelm^'"
“consignada ao público”.' Ele conclui: “Ou meu coração me
na,[...] e me torna o ludibriado por uma vigarista indigna,
preciso que alguma falha secreta que ignoro destrua o efeito de
seus encantos e a torne odiosa àqueles que deveriam disputá-la en
tre si”. Portanto o conflito subjetivo explodiu no momento preciso
da aproximação sexual. Em seguida a arte de Zulietta consegue ex­
pulsar seus pensamentos, mas apenas por um instante, pois, ele o
diz, “no momento em que eu estava prestes a me lançar sobre um
pescoço que parecia pela primeira vez se oferecer à boca e às mãos
de um homem, eu percebi que ela tinha um mamilo zarolho”. Este
seio zarolho, tal como a castração desvelada que faz uma mancha
no quadro da perfeição, o olha tão bem, que num instante ele viu
“claro como o dia” que ele não “tinha em seus braços senão uma
espécie de monstro, o rebotalho da natureza, dos homens, e do
amor ”. E tudo acaba com este frio dito de Zulietta: “Lascia ItDonnc,
e studia la matematica”.
Nós o vemos, quer o amor esteja aí ou não, o medo da mulher
se interpõe entre Rousseau e sua parceira. Neste sentido, ele tam­
bém não pertence ao tipo que Freud descreve como depreciação da
vida amorosa e na qual as mulheres se repartem em duas séries, a d
amor e a do desejo. Militaria pela tese da homossexualidade con
este elemento de aversão pela mulher como Outro do sexo. E
que isso ela não contradiz, e poderíamos pensar que ^‘OUSSj^er
terpõe, como defesa, entre ele e o objeto masculino, uma m
qual ele não quer gozar, mas à qual ele se identifica para a
procuração o objeto inconsciente, um pouco como a ^conlO
histérica que atinge outra mulher identificando se ao
terceiro. Não é ele quem diz de Madame d Houde

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Ela me falou de St. Lambert como amante apaixonada. Força


contagiante do amor! Ouvindo-a, sentindo-me junto dela, fui
tomado de um frêmito delicioso que nunca experimentara junto
de alguém. Ela me falava e eu me emocionava, acreditava
interessar-me apenas por seus sentimentos quando era tomado
por outros semelhantes; [...] Enfim [...] ela me inspirou por ela
própria tudo o que ela exprimia para seu amante (ibid., p. 440).

Desta passagem, concluo que de fato ele ama da mesma forma


que ela. Mas será que ele ama o mesmo objeto dele se defendendo?
Para afirmá-lo, é necessário que disponhamos de alguns indícios
convergentes atestando nele a presença de uma defesa para com sua
feminilidade e intimidade com os homens. Ora, é exatamente o
contrário. Não apenas ele não luta contra sua feminilidade, eu já o
disse, como também a assume muito explicitamente, quase com
orgulho, e nisto é bem diferente de Schreber. Quanto à intimidade
com os homens e a ameaça que ela deveria representar para um
sujeito que se defenderia de uma obscura tentação, Rousseau está
muito longe de dela ter fugido. E com relação às mulheres que ele
marca um recuo. No que concerne aos homens, ele amou muitos,
sem reserva, até à paixão. Conhecemos sobretudo Diderot e Grimm,
mas há muitos outros “sufocos”, como ele diz, antes e depois: os
M.M. Bâcle, Venture etc. Rousseau sempre os evocou com uma ên­
fase e um lirismo que nada têm a ver com o tom muito moderado
que usa para evocar seu amigo St. Lambert. Com efeito, no início
este não era para ele senão uma relação mundana de pura conveni­
ência e não vemos de fato por que, de repente, teria sido necessário
erigir uma defesa lá onde ele avançara sem reserva. Se assim o é,
onde encontrar o segredo da fantasia do amante infeliz, que surgiu
com A Nova Heloísa e foi realizada com Mme. dHoudetot?
Sabemos o que foi a fantasia de gozo — que distingo do ce­
nário imaginário — de J-J. Rousseau. Ele o expõe com toda clareza
nas primeiras páginas de suas Confissões: se fazer apanhar nas náde­
gas por uma mulher. Foi seu voto quase exclusivo durante toda
Sua v'ida. A primeira correção lhe foi aplicada por sua governanta

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Mlle. Lambercier. Ela também faz parte das mulheres que infletíram
seu destino. Ela decidiu não sobre seu caráter ou sobre seu ser moral
mas, diz ele: “sobre meus gostos, sobre meus desejos, sobre minhas'
paixões, e a respeito de mim pelo resto de minha vida”. E nas págInas
l6-ss do livro I, ele precisa ter devorado durante muito tempo;

com olhar ardente as beldades [...] unicamente para usá-las à


[sua] moda e delas fazer outras tantas Mlle. Lambercier.
Quando enfim o decorrer dos anos me fez homem [...] meu
antigo gosto de criança em vez de se esvanecer, se associou
tanto a outro que jamais pude afastá-lo dos desejos despertados
por meus sentidos. [...] Não ousando nunca confessar meu
gosto, eu me divertia ao menos com relações que conservavam
a idéia dele para mim. Estar aos pés de uma amante imperiosa,
obedecer às suas ordens, ter de lhe pedir perdão, eram para
mim gozos dulcíssimos e quanto mais minha viva imaginação
me inflamava o sangue, mais eu tinha o aspecto de um amante
tímido. [...] Portanto possuí muito poucas vezes, mas não
deixei de gozar muito à minha maneira, ou seja, pela
imaginação.

Quanto a nós, diríamos: pela fantasia. Não busquemos mais


longe o segredo do trio tantalizante: o terceiro não lesado é aí a
condição do gozo masoquista do amante infortunado. E quando
tudo andar mal, Rousseau escreverá a Mme. d’Houdetot: ‘Ah! se eu
pudesse apenas me lançar sob os cavalos de vossa carruagem para aí
ser pisoteado . De Mme. d Houdetot ele não recebeu as chicotadas,
mas o amante súplice era a metonímia da criança fustigada. Eu
acrescento que se ele não a possuiu, não deixou de gozar dela...
masturbatoriamente. Ele o explica (Confissões, p. 445), com a vera­
cidade e o tato que lhe são próprios. Ele diz o quanto ardia por ela
e que havia um longo caminho a percorrer no campo para se unir a
ela, e que seu sangue era abrasivo, que sua cabeça girava e que ele
estava de tal maneira maravilhado, eu o cito: “Não creio que jamais
enha me ocorrido fazer este trajeto impunemente”. Rousseau in-
c usive chega a se perguntar se não está prejudicando sua saúde.
Eu chegava primeiro, estava feito para esperar, mas como esta

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espera me custava caro . De resto, o gozo da letra não estava pres­


crito, já que a espera era também consagrada a fabricar bilhetinhos
de amor que deixava num esconderijo apropriado, como testemu­
nha da desordem na qual ela o deixava. Noto aliás que a referência
freudiana também não falta quanto a este ponto, já que, bem de­
pois da tese sobre a homossexualidade do paranóico, Freud insistira
sobre a presença nele da fantasia masoquista.
Retorno a minha questão inicial para responder a isto. Como
a foraclusão e o empuxo-à-mulher são compatíveis para um sujeito,
para este sujeito, com o encontro das mulheres? Parece-me que
temos a resposta. O sujeito pode encontrá-las, se as encontra, pela
mediação de uma fantasia de gozo, que muito exatamente curto-
circuita a castração, poderia inclusive dizer, que a foraclui.
Aliás, notem que quando Freud introduziu no caso Schreber,
em 1911, a tese do laço homossexual com o pai, faz dele precisa­
mente uma escolha de objeto “anterior” à escolha heterossexual, e
que portanto precede e não põe em jogo o reconhecimento da dife­
rença dos sexos, isto é, o que Freud chama de Wirklichkeit1 da castra­
ção, sua eficácia. Podemos dizer o mesmo da fantasia masoquista.
Lembro que quando Freud fala da fantasia masoquista, notadamente
em “Bate-se numa criança” (1919), mas também em “O problema
econômico do masoquismo” (1924), ele a atribui ao paranóico,
mas a faz equivaler a uma fantasia de posição feminina em relação
ao pai, ou seja, para o homem, uma fantasia de homossexualidade.
Mas Freud, neste momento, se ocupa da neurose e está em vias de
insistir sobre a função do Édipo na gênese dos sintomas. Ora, as
posições homossexuais ou masoquistas do neurótico ou do perverso
devem ser distinguidas radicalmente daquelas do psicótico. E ne­
cessário dizer que aí faz falta a Freud a distinção capital
introduzida por Lacan entre o pai como nome e o pai como objeto,
e que ele não chega a dissociar o problema da sexuação do ser da
escolha de objeto propriamente dita. Ora, o paranóico não se dis­
tingue por seu objeto mas por seu ser, que cai sob o golpe do

(2) N. do T. Realidade efetiva no sentido hegeliano.

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empuxo-à-mulher, ou seja, o empuxo-a-um-gozo que escapa à b


reira fálica. E se é necessário invocar um texto de Freud eu
referirei de bom grado àquele de 1923 sobre “A organização genit
infantil”, pois Freud aí reconhece uma escolha de objeto anr
, . > dn'-erior
ao reconhecimento da castraçao, e que nao e a escolha narcísíc
homossexual, mas a escolha ligada justamente ao que ele chama de
fase sádico-anal: aí estão em jogo apenas, diz Freud, o ativo e 0
passivo — com o que Rousseau sabe tão bem nos entreter nj0
sendo o sexo do objeto levado em conta. De fato, podemos traduzir
uma escolha do objeto que foraclui a castração. E, eu creio, a fun­
ção da fantasia masoquista em Rousseau.
Rousseau não foi nem um homossexual, nem verdadeiramente
um heterossexual, embora só tenha tido relações com mulheres:
Rousseau foi um masturbador masoquista. Ele amou as mulheres
como a si próprio, com toda a ênfase que se deve dar a este si
próprio, pois Deus sabe o quanto ele se amava. Há acesso pelo
amor, não pelo sexo. Nisso as mulheres não estão enganadas, elas
que fizeram o sucesso de d Nova Heloísa. Nenhuma das histéricas da
época pensou que ele amasse Volmar através de Julie; todas com­
preenderam que aquele homem amava as mulheres, que as amava
com amor. Daí o entusiasmo que causou seu sucesso de romancista.
É um signo que não engana. No entanto, se como sujeito da fala
Rousseau ama as mulheres, como sujeito do gozo lhe é necessária,
para sua fantasia, a mulher imperiosa, ou seja, não castrada — o que,
entre parênteses, está longe de fazer dela um homem, se este bem se
define pela castração. Mas não é absolutamente do corpo do outro
que ele goza, seu próprio órgão lhe basta. Ele sentiu-se mulher, eu
o disse, mas sem ir até o ponto de sacrificar, como Schreber, o
órgão do qual ele goza. Sem dúvida foi o que limitou nele o alcance
do empuxo-à-mulher, e o que o dispensou de ter que tornar-se a
mulher de Deus, ou mesmo de todos os homens. Foi também sem
dúvida o que lhe permitiu elevar curiosamente o gozo masturba
tório, habitualmente mais limitado, até a nota extática geralmente
reservada às mulheres.

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CONSTELAÇÃO FAMILIAR DE UM PARANÓICO GENIAL*

O gênio em questão é Jean-Jacques Rousseau tal como o


qualificava Jacques Lacan em 1932. Quem esta à sua volta durante
seus primeiros anos? Seu pai e sua tia, Suzanne Rousseau, pois sua
mãe, também Suzanne Rousseau, morreu no seu nascimento.
Seguindo a evidência dos fatos, deles concluímos que a Rousseau
faltou a mãe. Isto é exato, mas será verdade?
Rousseau, começando a escrever suas Confissões, já idoso e per­
seguido, proclama: “Custei a vida de minha mãe e meu nascimento
foi a primeira de minhas infelicidades” (1987, p. 7)- Mas desta
aposição sintática será necessário concluir com uma ligação de cau­
salidade, como fizeram muitos comentadores e notadamente René
Laforgue (1993)? Será necessário então encontrar uma outra ligação
entre esta primeira ausência de uma mãe — suposta traumática —
e o desenvolvimento ulterior do delírio paranóico, que assinala uma
ausência inteiramente diversa, a da foraclusão do Nome-do-Pai.
O que responde sobre este ponto o próprio texto de Rousseau? Ele
pinta o quadro de uma infância sem conflitos, idílica e idealizada,
que não tropeça senão nos momentos da aprendizagem educativa e
social, mais tardios:

Os filhos dos reis não poderiam ser cuidados com mais zelo
do que eu o fui durante meus primeiros anos, idolatrado por
tudo o que me cercava, e sempre, o que é muito mais raro,
tratado como uma criança querida, jamais como criança
mimada. [...] Meu pai, minha tia, meus pais, minha ama, meus
parentes, nossos amigos, nossos vizinhos, todos os que estavam
à minha volta não me obedeciam, é verdade, porém me amavam,
e eu os amava igualmente (ibid., p. 10).
Esta criança-rei sem dúvida não deve ser psicologizada, pois
aquele que escreveu: “Odeio os grandes anuncia aqui ao mundo

* Constellation familiale d’un paranoíaque de génie”. Publicado em LVmpromptu, n. 4,


1988.

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que não é necessário ser um dos grandes para ter uma inf«
homem. Contudo o testemunho da felicidade permanece
for a nota de idealização que aí se acrescente. Não é a Sual
,,crnoria d
dilaceramentos e das renúncias subjetivas próprias ao ne ' ■ °S
mas contrariamente uma memória em que nao sao denosiraJ,
< ,r- j . *í aas senão
as imagens do pacifico contentamento da primeira infância De
genitores, de seus primeiros anos, Rousseau jamais se queixa e
quisermos encontrar neste contexto familiar um indício que trad
zisse ao nível dos fenômenos uma deficiência do simbólico é ne
cessário proceder a um decifração.
Qual é a cronologia dos fatos?
Até seus dez anos, o jovem Jean-Jacques foi educado por seu
pai e por sua tia. Em outubro de 1722, seu pai tendo que deixar
precipitadamente Genebra, ele passa para a tutela de seu tio Bernard
que o manda para o campo com seu primo. Ei-lo então em Bossey
na casa do pastor Lambercier “para aí aprender com o latim todo
esse conjunto de pequenas coisas que o acompanham sob o nome
de educação" (ibid., p. 12). Aí ocorrem os dois episódios cruciais
da palmada deliciosa aplicada pela Mlle. de Lambercier e da injusta
correção infligida pelo tio Bernard. Em seguida, após dois anos
passados em Bossey, Jean-Jacques retorna a Genebra para junto de
seu tio e de sua tia.
Se falta alguma coisa neste contexto, isto não é uma mãe.
Rousseau encontrou uma e das mais ternas na pessoa de sua tia e se
esta não foi aquela que o gerou, ao menos ele crê, tendo nascido
quase agonizante, dever a vida a seus cuidados. Desta tia pouco
temos conhecimento; no entanto sabemos que ela consagrou seu
celibato para que pudesse velar por seu sobrinho, e seus último
anos aos cuidados de seu jovem marido alcoólico com quem
casou tardiamente. De Rousseau, sabemos do amor que lhe dedic
jamais desmentido, a marca que dela conservava em sua paixão p^
música, a nostalgia essencial que ele não cessou de associar
lembrança, enfim a reatualização de sua imago quando da g
com aquela a quem chamava de mamãe:

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Com o exceção do tempo que eu passava a ler e a escrever


junto a meu pai, e daquele em que minha ama me levava para
passear, eu estava sempre junto de minha tia, vendo-a bordar,
ouvindo-a cantar, sentado ou em pé ao seu lado, e eu ficava
contente. Sua jovialidade, sua doçura, sua figura agradável,
deixaram em mim tão fortes impressões que vejo ainda seu
jeito, seu olhar, sua atitude; lembro-me de seus pequenos ditos
carinhosos: direi como ela estava vestida e penteada, sem
esquecer os dois caracóis que seus cabelos negros faziam sobre
sua têmporas, segundo a moda daquela época(ibid., p. 11).

Para evocar a felicidade dos anos ulteriores com Mme. de


Warens, Rousseau retomará as mesmas construções: “Eu passeava e
era feliz, eu via mamãe e era feliz” etc. (ibid., p. 225).
Nada permite duvidar que nesta figura de devoção tranqüila e
satisfeita de sua tia, Rousseau não tenha encontrado “a mãe suficiente­
mente boa”, custosa a Winnicott, que com sua presença incondici­
onal sustenta as primeiras satisfações narcísicas da criança.
Mlle. Lambercier, que sucede a esta tia, traz também as insígnias
maternas, porém, encarregada que estava de zelar pela aprendizagem,
acrescenta àquela do amor a da exigência educativa: “Ela tinha por
nós a afeição de uma mãe e também sua autoridade” (ibid., p. 15);
e ainda “eu a amava como uma mãe e talvez mais’.
Se existe aí uma carência, não é aquela da mãe, porém antes a
do homem que falta a estas duas mulheres, todas votadas aos cui­
dados da criança. Em todo caso, o fato é que ambas são celibatárias,
e que ambas vivem sob o teto de seu irmão. São mães — adotivas
— e irmãs; não são esposas. Ora, temos um índice muito claro,
desde as primeiras páginas das Confissões, do fato de que para
Rousseau o par irmão-irmã recobre o par matrimonial. Aliás, a con­
juntura familiar se prestava a isso, já que o tio Bernard, irmão da
mãe, se casara com uma senhorita Rousseau, irmã do pai. Meu tio
era também o marido da minha tia” (ibid., p. 22) diz Rousseau; ao
evocar o casamento das duas irmãs com os dois irmãos, ele forja
uma estranha fábula:

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Gabriel Bernard, irmão de minha mãe, enamorou-Se


das irmãs de meu pai; mas ela não consentiu em casar
irmão senão sob a condição de que seu irmão se casasse °
irmã. O amor arranjou tudo e os dois casamentos 1
realizados (ibid., p. 6). arn

Sc tivesse sido o caso, o casamento de seus pais, nós o


teria sido o resultado de uma solidariedade fraterna. Mas
passa de uma invenção, contraria aos tatos ao menos num pOri
o casamento do tio se realizou cinco anos antes do que o dos
de Rousseau. No mesmo sentido, como não evocar a longa coabit^
com Tereza, que Rousseau só esposou muito tardiamente, que^f
sempre chamou de tia, e que na ocasião ele fez passar por sua irmã'»
Outros tantos estigmas da perpetuação de um modelo feminino
elidem a categoria de esposa, em benefício de um ideal de abnegação
assexuada. O retrato de Isaac Rousseau, o pai de Jean-Jacques pa­
rece, ao contrário, tornar absoluta a dimensão do amor conjugal
As primeiras linhas que Rousseau consagra à lembrança de seu pai
o situam sob o signo de um interminável luto: “Eu não soube como
meu pai suportou esta perda; mas sei que dela ele jamais se
consolou.[...] Ah!, dizia ele soluçando; devolve-ma; consola-me dela;
preenche o vazio que ela deixou em minha alma” (ibid., p. 7).
Estarão aí as considerações de um homem viúvo há mais de
cinco anos, já que Rousseau data deste tempo sua lembrança? Não
busquemos aí uma improvável exatidão. Os fatos nos dizem so­
mente que Isaac Rousseau não foi tão ardente em gozar da presença
de sua mulher; tendo se casado com Suzanne Bernard no dia 2 de
junho de 1704, praticamente um ano depois ele pensa em embarcar
para Constantinopla no final de 1705, tendo seu primeiro fil
nascido em março. Ele não retorna senão seis anos mais tar^’
novembro de 1711, no momento de uma gestação e ele ap
início de julho do ano seguinte. Mas Rousseau constroí
de um pai inconsolável e lhe empresta um discurso^
próprio, é ambivalentemente chamado ao lugar vazio efe-
René Laforgue faz derivar desta conjuntura o sUpóe-
minado” em que Rousseau se reconhece e a culpa q

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Apenas uma coisa e certa, a mulher do pai falta, sendo todo o pro­
blema o de saber a título de que. Não e uma lógica única que faz
concluir, a partir desse "consola-me dela”, que Rousseau é chamado a
um lugar feminizante.
Também seria possível ler aí a confissão de que a mulher estava
no lugar da criança. Mas não se trata, com efeito, de uma palavra do
desejo, que evocaria um lugar sexuado; antes, de uma demanda de
preencher a falta-a-ser; dito de outro modo: de um apelo do amor
que elide precisamente a dimensão sexuada do objeto.
Aliás não somente os fatos — que Rousseau não ignorava —
mostram um homem pouco obsequioso para dividir a vida com sua
mulher, como também o discurso que evoca esta última a idealiza
demasiado para tornar presente a dimensão propriamente sexuada
do desejo. Para Rousseau, o casal original de seus pais está certa­
mente colocado sob o signo do amor, mas de um amor que fala a
mesma língua que o amor parental ou que o amor fraternal.
Que pai foi este tal de Isaac Rousseau?
Seu filho se enternecia com sua lembrança mas os traços que
ele isola são aqueles da falência; e duplamente: por sua negligência
e sua brutalidade para com seu filho mais velho que ele abandonou
à sua mãe deste o nascimento, e que Rousseau se lembra de ter tido
que cobrir seu corpo para protegê-lo dos golpes, mas também por
sua camaradagem totalmente paritária com Jean-Jacques.
A propósito das noites passadas lendo romances, quando não
tinha mais do que seis anos, ele observa:

Nós não podíamos jamais abandonar a leitura antes do final


do volume. Algumas vezes meu pai, escutando a alvorada das
andorinhas, dizia todo envergonhado: vamos nos deitar; eu
sou mais criança que você (ibid., p. 8).

Essa personagem por demais sentimental estava sem dúvida


bem distante das figuras desses grandes homens ilustres, que
Rousseau, com exaltação, cedo descobriu em Plutarco. Aliás, seu
pai não levaria muito tempo, em seguida a uma briga e com o álibi
do ponto de honra, para abandonar definitivamente não apenas sua

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COLETTEsoler
v>da e sua casa m
^^ebuscindo^^^-^ho-con^
contrado alhures e não neste pai°$' ’ ^“«eaj dif'“'l-
quente. Sem dúvida seu nr' ? mesmo «mpo inf í '■>-
heHado. que a ambos ocup^pÍ? ’ ‘>ÍWi°te« éhT"
aparentemente acreditou reencontrar o^ " Rou^

Sem trégua ocupado comRomaeAte


dlZer «nr os grandes homens 7 , V,w"d<> p„r _
romano; eu me tornava a personagem Z ’vu‘‘'“J’’ 8^° ““
dos traços de constância e de arrojo que me / :°
tornavam-me os olhos faiscantes é a voz forte ú””

eu contava a mesa a aventura de Scevola r


atemorizados de me verem avanrar ’ '°d°s í'tirâm
réchaud para representar sua ação(«7^ •

Concluo portanto: não faltou a Rousseau uma mãe. De um


lado, ele foi entregue a essas mulheres irmãs e mães intemmente
devotadas ao cuidados da assistência materna. De outro, o modelo
paterno lhe transmitiu — numa veia, deve-se dizê-lo, muito
mitomaníaca — a imagem de uma esposa transfigurada condensando
uma nostalgia assexuada e os ideais exaltados do Homem. Uma
clivagem aí se desenha: às mulheres as crianças, e sem partilha; aos
homens as poses da imponência. O que precisamente falta é o meio-
dizer da père-version, da versão sexuada do pai.
Porém o problema da causalidade da foraclusão não é resolvido
por aí. Com efeito, a constelação familiar que Rousseau nos apre­
senta é evidentemente uma construção, com certeza apoiada em
fatos, todavia ainda assim uma construção, mais causai.do.que
causal, e que fala da posição de Rousseau. Conru o se eprec.^

um papel à morte efetiva de sua mae, direi que a a a ° °


encarnada terá sem dúvida contribui amor a0 passo
para sua superpresença como signi ícan insuficiência

Muc rnm seu nome de pai.


sua personagem para co

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O FILHO NECESSÁRIO*

Se Lacan dedicou o Seminário, livro 23:0 sinthoma (1975-6) a James


Joyce, isto não ocorreu por razões literárias mas porque acreditou
ver na work in progress de Joyce um exemplo extremo e paradoxal de
sintoma, segundo a definição generalizada de sua estrutura que propôs
em um Seminário anterior: o Seminário, livro zz: A,S.Z.(l974-5).
A tese de Lacan é que Joyce aprimora o sintoma ao fazer “existir”
o inconsciente fora do sentido. Aprimora o sintoma até seu estado
supremo. Eis o termo usado por Lacan: Joyce ilustra o puro gozo
da letra fora do sentido e deste modo permanece fora do símbolo,
sempre condensador de sentido. Que há nisso de especial? O que
há aí de especial não é o fato de que Joyce goze da letra fora do
sentido, mas que disso goze por meio da literatura. Isto é um para­
doxo extraordinário. O ensino de Lacan nos propõe outro exemplo
de puro gozo da letra: a caligrafia, gozar de traçar o traço único, de
um só golpe. Pode-se conceber que é um gozo fora do sentido, uma
arte da riscadura, que justamente não é uma riscadura literária. Lacan
jogou com a assonância entre literatura e riscadura. Não é difícil
entender que a paixão da caligrafia é uma localização de gozo que
deprecia o campo do símbolo e que por isso também deixa o Imagi­
nário fora do jogo. Mas que através da literatura alguém chegue a
depreciar o símbolo, isto é um paradoxo. Pois toda literatura, in­
clusive a mais pura poesia, trança sempre o gozo da letra com o
gozo do sentido. Todas as proporções são possíveis, mas sempre
entre esses dois elementos.
Lacan reconhece em Joyce uma literatura que desordena o sen­
tido. A idéia de Lacan é que o desordena por um uso especial do
equívoco. Entende-se que isso interesse a Lacan e aos psicanalistas
em geral porque, se seguimos a prática de Freud e a teorização que

Le fils nécessaire”. Extrato das lições de 25 de janeiro, 8 de fevereiro e 10 de


Hiarço de 1989 do Seminário: os poderes do Simbólico (1988-9).

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COLETTE SOLER

Lacan dela fez, é do equívoco que dispomos contra o sintoma L


o disse muitas vezes e volta a dizê-lo ainda no Seminário livro
sinthoma: o equívoco é tudo de que dispõe o analista para desorde^ °

o sintoma. Em “O aturdito” (1972), ele o diz : "A interpret


produz seu efeito pelo equívoco”. Retoma-o no Seminário livr °

R.S.I. e confirma-o no Seminário, livro 2J: o sinthoma. O paradoxo '


que Joyce trama o próprio equívoco como sintoma. Onde o analista
utiliza o equívoco para desfazer uma fixação sintomática de ao
Joyce faz exatamente o contrário. O jogo com o equívoco na psica­
nálise tem um objetivo preciso.
A interpretação que utiliza o equívoco finge equivocar-se de
significante e, rivalizando com o lapso, faz semblante de enganar-se
para fazer aparecer outro termo por trás do termo sintomático e
assim conectar o Um do sintoma a uma cadeia na qual seu gozo se
metonimiza e toma outro sentido. Ao contrário, Joyce utiliza o
equívoco para fazer ex-sistir o inconsciente. Fazer existir o inconsci­
ente quer dizer subtrair a letra da cadeia do sentido, desconectá-la do
inconsciente como sentido e fixá-la pelo gozo. Por isso Lacan pode
dizer que Joyce abole o sentido, uma vez que o símbolo está
sempre cheio de sentido, inclusive quando ele se erige e se isola
como Um. Joyce acentua um aspecto que está presente em todo
sintoma, pois todo sintoma é uma ofensa ao sentido, mais preci­
samente ao sentido comum. O sentido comum, o que se chama o
bom sentido, a sensatez, o que permite nos reconhecermos mais ou
menos com o vizinho, o sentido comum no qual o chamado louco
não logra muitas vezes manter-se, é produzido pelo discurso. O
sentido comum é um efeito do ajuste do gozo pelo discurso do
Mestre. O segredo da eleição do sentido é sempre o gozo. E o
segredo do sentido comum, o gozo ajustado segundo as leis comuns
ao discurso.
O sintoma faz objeção ao sentido comum. O sentido que se
chega a dar na psicanálise ao sintoma neurótico ou perverso nunca
é comum; é um sentido singular. Não há sentido comum do sintoma
neurótico, disse Lacan mais de uma vez. O neurótico em seu sintoma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

eStá desabonado do sentido comum. Parcialmente desabonado do


sentido comum, pois não é louco. Joyce, no dizer de Lacan, está
desabonado do inconsciente; é um desabonado voluntário, um
desabonado diligente e consciente de sê-lo. Em Stephen Hero, Joyce
diz o que para ele é o inferno dos infernos: o jovem Stephen
que nada mais é do que o porta-voz de Joyce — diz: "Estava deci­
dido a lutar com todas as forças da alma e do corpo contra todo o
possível de consignar no que agora considerava o inferno dos infernos
— a região, dito de outro modo — na qual tudo se encontra óbvio”
(1991, p- 36).
A evidência, ligada ao sentido comum, do que resulta que todos
pensem um pouco igual, que repitamos o mesmo disco, é para Joyce
a pior coisa. O jovem Stephen — Joyce — se dedica à carreira
literária de maneira decidida, com uma intenção fundada no ódio e
no asco profundo pelo que é evidente, pelo que indica consenso ou
acordo. Não é indiferente para nós que esta afirmação surja numa
passagem em que Joyce está falando do tesouro das palavras e da
linguagem e em páginas nas quais se surpreende hipnotizado pelas
conversas mais banais. Lendo estas páginas se pode observar que o
hipnotizam porque dá às palavras um valor além do dito no contexto
comum.
Lutar contra a evidência, tal é sua palavra de ordem de artista,
a situar do mesmo lado do que chama as epifanias. Essas epifanias,
elas que tanto deram o que falar, se constroem com um modo muito
simples: Joyce toma um objeto, uma cena, uma frase e os retira do
que habitualmente chamamos de seu contexto, isto é, os extrai do
contexto em que este objeto, esta cena, esta frase têm um sentido
que é um sentido banal. Quando lemos aparece claramente que se
trata de uma técnica que vai do dois, o dois necessário na escrita
mínima para definir um contexto — ou seja, S(—S2 — até o só um
isolado. Joyce para construir suas epifanias rompe o contexto de
sentido e extrai esse objeto, isolando-o como S(. Uma vez assim
erigido em sua solidão, encontra ou supõe que este objeto, esta
cena ou esse fragmento de discurso comecem a revelar algo mais ou

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COLETTE SOLER

menos inefável. Isto não deixa de evocar para nós algo próximo de
certos fenômenos elementares da psicose, embora aqui não tnr<b
de fenômenos elementares porém de uma técnica literária. Ainda
ocorre que Joyce se divirta confundindo os comentadores, pOIS frn
seguida volta a colocar suas epifanias em outro contexto. Tendo-as
tirado de um, coloca-as em outro e desta maneira provoca uma
nova interrogação.
Em resumo, Joyce usa a língua de maneira distinta da habitual
a maneira com que joga com as palavras e com a letra o faz sair do
terreno do chiste. O chiste também é um jogo com a língua e com
a letra, mas que se detém na emergência de uma pequena borbulha
de sentido, ao passo que Joyce aprimora o jogo até o limite em que
já não há nada chistoso. Em sua escrita trata-se unicamente de
matéria da letra, e o que finalmente interessou Lacan foi o fato do
gozo de Joyce estar mais próximo ao do matemático que, assim
como na caligrafia, também faz a seu modo um curto-circuito do
sentido. Essa é a razão pela qual Lacan diz que Joyce põe um ponto
final no sonho. O sonho é a própria literatura; Finncganf Wakc, um
despertar do sonho do sentido.
Assim podemos inicialmente sublinhar que a arte de Joyce é
homogênea aos fenômenos elementares da psicose. Em segundo
lugar — é do que trataremos a seguir — há uma correspondência
entre sua arte e sua especial relação com o corpo. Podemos perguntar
de que modo Lacan teve a idéia de que Joyce era psicótico. Dizer
que Rousseau era paranóico, isso todo mundo sabe, mas Joyce.
psicótico, só um Lacan pode dizer algo assim, exceto nós mesmos,
que o repetimos depois de Lacan. E que a psicose de Joyce tenha
ocorrido a Lacan, nós o explicamos — sem que muito se tenha
revelado sobre isso — pelo fato de que sua escrita expulsa o imagi­
nário do sentido e de que é um jogo entre o Simbólico e o Reai-
Pois bem, Lacan define os fenômenos elementares da psicose como
uma interseção direta entre o Simbólico e o Real. "Porca é um
significante que aparece no Real, fora do sentido, e se quisermos
coloca lo no nó borromeano, teríamos que situá-lo entre Real e

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Simbólico. A alucinação do dedo cortado do Homem dos Lobos é a


mesma coisa, apesar de ser uma imagem: o corte aparece no Real
Trata-se de uma interseção direta entre o Simbólico e o Real sem a
mediação do Imaginário.
Lacan começou perguntando-se: podemos considerar Joyce
psicótico? Inclusive dirige esta pergunta num dado momento a
Jacques Aubert. Vemos desdobrar-se o tempo para compreender no
Seminário, livro 2j: o sinthoma e finalmente há a conclusão de que a
psicose de Joyce não deixa dúvidas. Devemos interrogar este diagnós­
tico, não tão evidente à primeira vista, e perguntar no que Lacan
fundamenta sua certeza. Lacan suspeitou da psicose de Joyce a
partir de diferentes pontos. Em seguida era preciso que estes di­
ferentes pontos pudessem se conectar e se enlaçar, para que a conclusão
fosse válida. O ponto principal é o que Lacan considera como sin­
toma: a maneira de escrever de Joyce, sua maneira de tratar a língua
até o ponto em que realt^g o Simbólico. Se consideramos a linguagem
como o campo do Simbólico, Joyce o eleva à dignidade do sintoma, à
dignidade do Real; é um modo de dizê-lo seguindo a definição de
sublimação de Lacan. O Simbólico que se encontra no Real ou que se
torna Real é a definição da psicose desde o ponto de partida de Lacan.
A enigmática escrita de Joyce é uma escrita separada, cortada
do sentido. Lacan insiste muito neste ponto, na expulsão do sentido
na escrita de Joyce, expulsão da qual resulta que do sentido só resta
um pequeno vestígio, um pequeno resto que é o enigma. De certo
modo, poderíamos dizer que trata-se de um procedimento metódico
de foraclusão do sentido. Recordemos a passagem citada emStephen
Hero, na qual Joyce afirma que temos que eliminar a evidência,
custe o que custar. Não se trata apenas de que ele sofra com a
desaparição do sentido mas de que decida fazê-lo desaparecer de
maneira metódica. Isto é o que evoca um procedimento de foraclusão.
Em segundo lugar está o que Lacan localiza como outra porta
de entrada na psicose de Joyce: a relação com o próprio corpo. Lacan
se apóia em um pequeno fenômeno, um fenômeno tênue do qual
Joyce dá o testemunho e que a Lacan não parece exagerado, ainda

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COLETTE SOLER.

que lhe pareça raro: é o fenômeno da surra que JOyCe


Retrato do artista quando jovem (1992). Quando foi surrado n°
companheiros, a cólera se dissolveu, não se manteve co^^
normal para alguém que amasse seu corpo como a si
O narcisismo é isso: identificar-se com seu corpo, com Süa°-r,°-
gem, o bastante para amá-lo quase como a si próprio. Pois
Joyce isto não se mantém. Joyce em várias passagens no-lo
muita precisão. Podemos citar uma delas, se bem que JOyCe
insistido várias vezes em seu espanto ante o fato de que suas pai^/
narcísicas apenas esboçadas se dissiparam, se diluiram imediatament

Todas as descrições de excessivo amor e ódio que havia


encontrado nos livros tinham-lhe parecido, portanto, irreais
Inclusive esta noite, quando regressava para casa titubeando
na Jones Road, sentira que algum poder o despojara dessa
cólera subitamente trançada, tão facilmente como um fruto
despojado de sua pele tenra e madura (ibid., p. 97).

Também poderíamos encontrar este sentimento em outras pas­


sagens, o evanescente das paixões narcisistas que têm relação com o
corpo próprio e de maneira mais geral com o eu (moí). Ele próprio
então evoca uma deficiência do registro passional, do que Kant cha­
maria de o registro do patológico. E preciso ser Lacan para extrair
isto, já que as diferentes passagens em que podemos ler a evocação
destes sentimentos não somam mais do que vinte linhas num gros­
so volume. Lacan decididamente se apóia neste traço, e o diz assim:
O abandono do corpo próprio é suspeitoso de psicose”.
Em Joyce este fato não deixa de ter relação com seu tipo de
escrita. Assim, em Lacan há dois acessos à psicose de Joyce: o sin­
toma literário e o abandono do corpo próprio. Qual é a razão, a
lógica desta equiparação? Que têm a ver uma escrita que rechaça o
sentido e a indiferença narcisista para com o corpo? Ambas conve
gem por uma simples razão: têm a ver com a função do Imaginar
e são indícios da falta de nó entre Imaginário, por um lado, e S
bólico e Real, por outro. Não há por que perder de vista que o sen
produz na incidência do Simbólico sobre o Imaginário (fg-

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

o sentido está sempre ligado ao imaginário do corpo. É neces­


sário não esquecê-lo para poder ligar as duas portas de entrada na psi­
cose de Joyce. Dito de outro modo, a expulsão do sentido em Joyce
nos faz supor que nao ha enlace do Imaginário com o Simbólico, o
que se pode representar separando os dois círculos ou superpondo-os
sem enlace (fig- 2).

O sem sentido, o ilegível da escrita de Joyce tem correlação


com o fato de que, para ele, o sentido cravado no corpo não está
enganchado nos símbolos; podemos conceber que ele, como resul­
tado disto, tenha acesso a uma arte que opera diretamente entre
Simbólico e Real. Ambos são solidários. Para compreendê-lo bem,
convém precisar o que Lacan chama de Imaginário no nó
borromeano. O Imaginário como consistência distinta e autônoma
do Simbólico e do Real é o próprio corpo. Lacan enfatiza esta tese
em R.S.l. e em O sintboma. Diz isso de maneira insistente: “O Imagi­
nário é o corpo”, porém temos que precisar que o imaginário não é
irreal e que há um real no imaginário. O Imaginário e a consistência
do corpo e não devemos reduzir este imaginário ao estádio do es­
pelho, à imagem do corpo, dado que nestes Seminários Lacan evoca o
corpo em termos de superfícies e de orifícios. Não o evoca em
termos de forma mas em termos de saco; o corpo e um saco com
orifícios, orifícios em que objetos vêm desempenhar seu papel, even­
tualmente ' tampões”, o que permite entender que e um Imaginário
relacionado com o objeto a como consistência corporal.

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COLETTE SOLER

Para concluir sobre este ponto, o que permite a Lacan dizer


que Joyce é psicótico é que o nó borromeano de três não funciona
e que o Imaginário, por assim dizer, fica flutuando.
A particularidade da literatura-sintoma de Joyce é que ela não
é sintoma de corpo; esta deixa o corpo plantado. Por isso podemos
entender que em sua segunda conferência "Joyce, o sintoma’’ Lacan
chegue a pôr em questão o fato de que Joyce tenha um corpo (1979,
p. 3 3). Insiste no fato de que o homem não é seu corpo, de que seu
corpo o tem, mas para que o tenha, é necessário que ocorra uma
operação que o atribua a si: esta operação é a operação de enlace.
Assim, dizer que o anel do Imaginário fica livre, flutuando, é 0
mesmo que dizer que Joyce não tem um corpo.
O que quer dizer "ter um corpo’’? Não tomemos a expressão
no sentido de um realismo simplista, como ter um corpo que se
pode fotografar. Temos fotografias de Joyce, não era um fantasma,
não era um espírito puro por mais incorporai que tenha sido sua
literatura. O incorporai de sua literatura ocorre porque entre Real
e Simbólico trata-se de um gozo que não é gozo do corpo mas
gozo da letra. Ter um corpo é fazer algo com ele, utilizá-lo, usá-lo.
Na literatura de Joyce fica claro que ele não usa seu corpo.
Um corpo, insistamos nisso, há de ser atribuído ao sujeito.
Podemos jogar com a palavra e escrever a—tribuir, a—tributo, o que
significa que para que o corpo seja atribuído a alguém, há que se
pagar um tributo e o nome desse tributo que se paga é: castração.
De todo modo, o sintoma Joyce tem a particularidade de não ser
um acontecimento do corpo. É assim que Lacan define o sintoma
em 1979: "O sintoma é um acontecimento de corpo” (ibid., p- 31)*
Isto se pode dizer de todos os sintomas, mas não do sintoma de
Joyce. Para que um sintoma seja um acontecimento de corpo e
necessário o nó. Um acontecimento de corpo forçosamente implica
uma interseção entre o Simbólico e o Imaginário. Podemos falar de
acontecimento de corpo quando o Simbólico incide no corpo
[ocasionando uma perdaj e nesse sentido evidentemente há uma
elação entre o sintoma como acontecimento de corpo e a pulsão,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

posto que a pulsão é de certo modo a prova da eficácia da lingua­


gem sobre o corpo. Quando o sintoma não é um acontecimento do
corpo, isto supõe um corte, uma separação entre o Simbólico e o
Imaginário e, mais ainda, outro corte, outra separação interna ao
Simbólico. Seja como for, Lacan ordena os sintomas em relação a
um acontecimento do corpo, colocando o de Joyce, para diferenciá-lo,
em série com o sintoma mulher e o sintoma histérico. “Uma mulher é
sintoma de outro corpo” (ibid., p. 3 5). Nesta frase, “uma mulher” está
tomada como um indivíduo nomeado, que não é qualquer um. O que
constitui o indivíduo não é o corpo, contrariamente ao que acreditava
Aristóteles, mas o Um do significante. Assim, uma mulher é nomeada
Uma e portanto particular, sintoma de outro corpo a não ser que se
trate de um sintoma histérico. O sintoma histérico é outro. O sintoma
histérico, que está ao alcance tanto do homem como da mulher,
consiste em interessar-se pelo sintoma de outro. Tal é a definição da
histeria que Lacan dá neste momento de sua elaboração.
/
Ao sujeito histérico só interessa outro sintoma. E também
um acontecimento do corpo, mas que concerne a outro que não é o
sujeito. O exemplo que Lacan nos propõe aqui é muito claro:
Sócrates. Lacan nos diz que Sócrates não é um homem, já que aceita
morrer pela cidade. Frase surpreendente, pois dela podemos deduzir
que ser um homem resulta em não aceitar morrer pela cidade. Isto
requereria muitos comentários e talvez não se possa dizer muito a
respeito: pode-se assinalar que o desapego de Joyce é com seu corpo;
o de Sócrates, com sua vida. Trata-se talvez de um avatar histérico
da relação com o próprio corpo. O sintoma histérico de interessar-
se pelo sintoma de outro não exige o corpo a corpo. Não se tem
que perdê-lo de vista quando falamos do gozo do sujeito histérico.
Isto permite entender muitos fatos clínicos e especialmente todos
Os ascetismos histéricos. O sujeito histérico tem esta particulari­
dade quanto ao acontecimento do corpo, pois o que conta para ele
e ° acontecimento de corpo do outro.
Joyce já que nos ocupamos de seu caso — não pertence
em ao Slnt°ma mulher nem ao sintoma histérico. Lacan nos diz

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COLETTE SOLER

que Joyce é sintomato^ico, sublinhando que ele nos prop0rcj


apenas a abstração, o aparato lógico do sintoma. A expressão'0119
tem peso neste texto de Lacan é que Joyce mantém o sintOniJUe
seu nível de consistência lógica. Temos de recordar a oposição
Lacan constrói a respeito do objeto a em seu Seminário, llVro
lógica da fantasia (1966-7) entre a consistência lógica do objeto^ “
sua consistência corporal. A consistência lógica do objeto a é o qu
permite a inserção do objeto na lógica do sigmficante. Sua consis-
tência corporal resulta do fato de que um pedaço do corpo, o qUe
às vezes chamou de uma peça desgarrada do corpo, chegue a alojar-se
no ponto em que escrevemos (-1), ali onde há significante que falta
no Outro. No sintoma como acontecimento do corpo, o objeto a
em suas duas consistências — lógica e corporal — está sempre em
jogo.
A definição geral do sintoma como função da letra, ou seja, de
um termo tomado do inconsciente, extraído como um, que faz/íxfão1
do gozo, não exclui a referência ao objeto, suporte da letra. É preci­
samente isto o que permite a Lacan situar o parceiro como sintoma.
Mas o sintoma Joyce, diferentemente do sintoma neurótico, está
livre do Imaginário e a letra pura, sem corpo, é o que se faz parceiro.
Por isso Lacan diz sintomatológica, o que quer dizer que não é
somatologia, se me permitem a expressão para evocar o abandono do
corpo.
Portanto algo deve se agregar a seu gozo da letra para que
Joyce se torne LOM, três letras para designar o nó necessário.
Em que ponto então podemos encontrar a suplencia? Minha
idéia é que a suplência não é a escrita de Joyce em si própria, e q
a escrita de Joyce está muito mais próxima de seu sintoma psicot
O que produz a suplência é o fato de Joyce publicar. Lacan es
lece esta distinção. Sente-se que Joyce em sua escrita goza da e
com um gozo que não é dividido, que não é contagioso. O s
é muito mais contagioso que o gozo de Joyce. Se nos pergun
' " feita
N. do T Traduzimos assim o termo fixion, que é uma condensaÇ*
Lacan defiction (ficção) efixation (fixação).

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

por que Joyce publicou, encontraremos o que Lacan escreverá como


“sinthotna", isto é, uma função que desempenha o mesmo que o
Nome—do—Pai. Quando a publicação se agrega ao sintoma, à escrita,
então temos o sinthoma, e isso é o que, para Lacan, fará de Joyce um
LOM (ibid., p. 31). Lacan escreve 1’hontme (o homem) com essas
três letras, LOM, que quando lidas como palavra, são pronunciadas
do mesmo modo. Por um lado, LOM faz Um, mas também, colo­
cando-se pontos após cada uma das letras, faz três e isso nos remete
aos três do nó borromeano, R.S.I. Para a promoção de LOM faz falta
o que Lacan escreve assim: l’hessecabeau, jogando com a palavra escabeau
— escabelo — de tal modo que nela encontramos o h de homem
junto com o beau — belo. O escabelo é algo para subir e ganhar
estatura; é o que faz de um qualquer alguém, isto porque se vê “belo”
(bissecrot—bcau, il se croit beau1, tal como o escreve Lacan, jogando à
maneira de um pastiche joyceano).
A arte de Joyce é o escabelo que o transformará em Um de
exceção, que é a função do Pai. Deixa de ser um homem qualquer
para tornar-se Um de exceção. Aí Lacan, em vez de escrever hessecabeau,
toma apenas duas letras, SK beau. SK é belo, pois o traço específico
de Joyce é o fato de que consegue fazer-se LOM graças à letra, à
escrita da letra sem o imaginário. Graças ao engenho da letra, Joyce
consegue “pôr-se belo”. Mas tem de agregar-se à publicação para
que esta escrita entre em correlação com os outros, que podem
valer como segundo significante, de tal modo que entre a escrita de
Joyce e seu público se estabeleça um equivalente de cadeia
significante. Em resumo, o escabelo de Joyce, o que produz a levi­
tação do nome, implica a publicação. O surpreendente é o fato de
que com uma escrita fechada sobre si própria Joyce conseguiu criar
um efeito de comunicação, um efeito de intercâmbio. Assim, em
Joyce, há um modo de “ficar belo” — se faire beau — que não e
banal. Pois o modo banal de “pôr-se belo", a via habitual — e uma

2. N. do T. Além do assinalado pela autora, existe em bissecroi-beau a conjunção


entre hisser (elevar-se) e ilst croit beau (ele se crê belo), conjunção que será retoma­
da adiante.

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COLETTE SOLER.

maneira de traduzir o escabelo, recordando que o imaoinXr;


i j • 1 • j •j ■ 0 trans-
porta algo da imagem — passa pela via do sentido imaginário incl
sive do sentido edípico. Pois bem, Joyce “não se põe bei
0 pela
novela edípica; Joyce “põe-se belo” pela letra. É sua originalidade
“Pôr-se belo” é um modo de dizer “fazer-se um ego consolidado"
Poderíamos refletir sobre o fato de que Lacan não dizmoi, diz^o e
não creio que seja apenas pelo fato de Joyce escrever em inglês Se
retoma o termo ego, é por ser um termo alheio à língua francesa e
por ser necessário dar-lhe uma definição mais ampla que ao moi
Joyce chega a sustentar seu ego com sua escrita e, ao mesmo
tempo, por isso se faz “o filho de suas obras”, como disse Cervantes-
de certo modo, um filho sem pai. O fato de a questão do filho
surgir da pena de Joyce, Lacan o vê como um sinal de que a função
do Nome-do-Pai é incondicional no sintoma. Joyce nos desvela que
“pôr-se belo” sem passar pela história edípica introduz necessaria­
mente a questão do filho. Ele se fez filho, um filho sem genealogia
e, quase teríamos de dizer, um filho-pai, pois ele próprio se fez o
sustentador do que chama de “o espírito incriado de minha raça”.
Ainda que Lacan não o tenha dito, arriscaria dizer que Joyce ilustra
algo que Schreber não ilustrou em absoluto. Schreber ilustra um
empuxo-à-mulher como efeito da foraclusão. Joyce mostra outra
coisa: um efeito empuxo-ao-filho. É outra versão, melhor dito, outro
efeito da foraclusão. Podemos além disto pôr em série todos os
casos de psicose em que aparece o tema do filho redentor, os delírios
de ser o Cristo e todos os delírios de salvação do pai. Se há filho
redentor é que há pai a salvar. Pode-se ver que este efeito empuxo-
ao-filho, tanto e mais ainda que o efeito empuxo-à-mulher, é para
Joyce um elemento de estabilização, ou melhor, de suplência, mais
do que para Schreber, dado que aparentemente Joyce nunca se
descompensou. É um empuxo-ao-filho que se realiza sem delírio,
sem o delírio de redenção. Assim entendemos por que Lacan, nessa
época, interrogava a Jacques Aubert se havia vestígios de que Joyce
se tomara pelo redentor: Lacan buscava os signos do delírio. Mas,
finalmente, a resposta de Jacques Aubert não foi clara. Não ha\ia

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Jelírio de redenção propriamente dito em Joyce: o que ele dizia de si


óprio é que através de sua arte se converteria no pai de sua raça.
* Lacan diz textualmente: “E o filho necessário, o que não cessa
Se escrever de que se conceba (ibid., p. 34). Podemos entendê-lo
como uma espécie de “criação contínua” do filho. É importante
sublinhar o equívoco da palavra “conceber”, que designa também a
concepção do filho, a imaculada ou não imaculada concepção do
filho. Joyce, esse filho necessário, evoca a imaculada concepção, pois a
imaculada concepção se engendra, se auto-engendra sem o relevo
da carne. Mas ele vai mais longe do que a imaculada concepção,
pois a imaculada concepção se engendra sem o relevo da carne, mas
não se engendra sem o relevo do Pai; aí está Deus sob a forma do
Espírito Santo que fecunda a Virgem. Joyce, no fundo, se engendra
sem o recurso da carne e também sem o recurso do Pai.
Por que falar então de filho necessário"? Em primeiro lugar, por­
que é o próprio Joyce quem o diz; é Joyce aquele que fala do espí­
rito incriado de sua raça, promovendo-o. E sobretudo porque esta
referência ao filho — e necessariamente, como conseqüência, à pa­
ternidade — demonstra que o sinthoma, o sinthoma Joyce, é uma
estrutura “na qual o Nome-do-Pai é um elemento incondicional”.
O que isto significa? Isto quer dizer, creio, que a partir do momento
em que se produz o enlace, isto necessariamente evoca a geração do
filho, e o que Joyce nos mostra é que não há necessidade de Pai, que
há uma suplência possível. Lacan em “Joyce o sintoma” o diz precio­
samente através de uma comparação com Hamlet: “Eleva-se-crê-
se-belo mas não da histerieta’’3.
Eleva-se e se crê belo. O que permite a Joyce “crer-se belo ,
acreditar-se belo como LOM de sua raça, o primeiro e talvez o único?
E que ele consegue enganchar este corpo que não o interessa, cons­
tituir para si um ego, de onde a imagem especular era desfalecente.
Acreditar-se belo” pela histerieta é “acreditar-se belo” pelo Édipo a
partir do Pai. De maneira interessante Lacan não evoca em

3 • N- do T. No original Hissecroibeau mais pas de 1’hystoriette. Nesta frase encontra-se


também um jogo de palavras entre hystérie (histeria) e histoirette (historieta).

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COLETTE SOLER

absoluto E, »P°- evoca Hamlet e o assassinato


Hamlet de Hamlet.
não deixa de Eviden-
incluir em suas
temente o de Édipo. Então Joyce tkva-sc-cri-st-bdo
'-"-hhistoriet, mas pela "promoção" de seu s.ntoma. pronto
na0 pela n , Santo. Ucan prcclsa que, embora joyce
que indica que narcisista, não é um santo. Aqui, entre

J“PTtX°.u -"d”" rH *•
P’,enKSes, lovc. PorqueoJana/smo‘onJiS«de«r.omodom
*
, c>;'„ De um modo ou de outro. Joyce nao e um
fabricada, artl 1 Lacan co|o„ o analista do lado do
santo. Isto nos interessa ja du
santo e nos propõe uma nova definição do santo: a scabtaustration
(ibid., p. 3 3) — escabelastração, a castração do escabelo. E uma
condensação cjue cjuer dizer a castração da promoção do ego.
Não sei se em psicanálise chegamos a isso. Não encontro ares
disso. Apesar de tudo, é um Ideal, talvez um ponto no horizonte.

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JOYCE: RETRATO DO ARTISTA
COMO JOVEM DEPRECIADOR*

A impossibilidade experimentada do discurso pulverulento é


o cavalo de Tróia por onde entra na cidade do discurso o mestre
que aí é o psicótico (Lacan).

Por pouco, apenas por alguns meses, Sigmund Freud e James


Joyce não se cruzaram em Roma no começo do século: de lá Joyce
partiu em 7 de março de 1907; Freud aí chegou em setembro. Para
“Jim” era uma fuga após oito meses de tribulações numa cidade
detestada; para Sigmund, uma semana de encantamento, pois Roma
sempre foi mágica para ele.
Joyce tinha 24 anos quando chegou a Roma com Nora e seu
filho de um ano de idade Giorgio em julho de 1906. Era uma meia-
escolha. Dois anos antes, em 8 de outubro de 1904, ele fugira da
Irlanda com Nora e, via Paris e em seguida Pola, chegara a Trieste
para ensinar na Escola Berlitz. Tendo perdido seu posto, ele se ofe­
rece para um emprego de escritório num banco de Roma. Através
das cartas a seu irmão Stanislaus1, que permaneceu em Trieste, po­
demos seguir, quase dia a dia, o desenvolvimento de sua paixão
negativa por Roma.
Joyce detestou Roma imediatamente, violentamente. Ousar não
amar Roma quando se foi nutrido pela cultura clássica dada pelos
jesuítas e quando a arte é a sua única paixão, que insolência! Este
arroubo de paixão invertido é um caso raro, talvez unico na litera­
tura, se excetuarmos Julien Gracq e suas Sept collines (1991)- E se
Freud não se recusou a admitir que seu amor a Roma pedia uma
interpretação, o mesmo deve ocorrer para o ódio de Joyce.

Joyce: portrait de Partiste en jeune contempteur . Publicado em Le Cheval dc


Troit, agosto de 1993.
I- Todas as cartas citadas provêm de James Joyce, Lettres, II (1973)-

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COLETTE SOLER.

Nada tem graça a seus olhos. Ele chega a Roma em n de


julho de 1906. Sua reação é imediata. Sua primeira mensagem, seis
linhas datadas deste dia, acaba com: “O Tibre me amedronta” [muito
largo]! No dia 2 de agosto, algumas linhas apenas, mas o bastante
para poder notar: “Os romanos são de uma cortesia acabrunhante”
No dia 7 de agosto começa o balanço. Viu São Pedro, o Pincio, 0
Fórum, o Coliseu — que ele escreve Colisseu. Pois bem! “São Pedro
não é muito maior do que São Paulo em Roma. Visto do interior, 0
domo não produz a mesma impressão de altura. [...] São Pedro está
enterrado no centro da basílica”. Ele esperava “uma música soberba,
mas não era grande coisa”, “as vizinhanças do Coliseu parecem com
um velho cemitério”, e os camelôs, os guias, as jovens americanas
importunam! De qualquer maneira, ele reconhece que o Pincio é
um magnífico jardim. Um pouco mais tarde, no dia 25 de setembro,
ele escreve: “Devo ser insensível. Ontem fui ver o Fórum. [...] Eu
estava tão emocionado que adormeci. [...] Roma evoca para mim
um homem que ganha sua vida mostrando aos turistas o cadáver de
sua avó”!
Este tom rangente não cessará durante toda a estadia, elevan­
do-se ao sarcasmo e algumas vezes à diatribe injuriosa, quando não
se tratará mais de "monumentos estúpidos”, porém dos próprios
italianos. Uma apreciação do dia 3 de dezembro: “Vi agora muitos
romanos [...] tanto quanto eu saiba sua principal preocupação na
vida é o estado (a julgar por suas palavras) estragado, inchado etc.
de seus colhões e seus passatempo e divertimento principais, os gases
que soltam pelo traseiro”. Os qualificativos se seguem: obscenos,
vulgares, de mau gosto, comuns, pueris, sem delicadeza nem virili­
dade etc. Subitamente ele se arrepende de “ter sido inutilmente
duro com a pobre Irlanda, tão cândida, tão hospitaleira, tão bela, e
finalmente ele acha que... “os irlandeses são os seres mais civiliza­
dos da Europa ! No dia 7 de dezembro escreve: “Tenho horror de
pensar que os italianos jamais tenham feito algo de artístico , l°g°
acrescentando na margem: “Que fizeram eles senão ilustrar uma ou
duas páginas do Novo Testamento!”. Quando pensamos no afã de

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Freud, que acha tudo maravilhoso, mesmo o barulho, a agitação e


também... a feiúra das mulheres. Pois diz ele a sua família em uma
carta de 22 de setembro: “Coisa estranha, mesmo quando são feias,
mas isto é pouco freqüente, as mulheres romanas ainda assim são
belas”. Por sua vez, Joyce não tarda em ficar fora de si: “Estou
totalmente farto da Itália, do italiano e dos italianos; ultrajante­
mente, ilogicamente farto”. Ilogicamente? Vejamos. Os afetos têm
sua lógica.
E verdade que nada anda na vida de Joyce no momento em que
ele chega e mora em Roma. Ele que desde sempre acredita, com
uma convicção desmedida, na singularidade de sua vocação de ar­
tista, que admite como única obrigação a que ele crê dever a sua
natureza de exceção, que zomba daqueles que imaginam que “o
dever de um homem é o de pagar suas dívidas”, que proclama seu
ódio das virtudes convencionais, que desde o começo de sua relação
advertiu Nora que jamais se casaria com ela e que rejeitaria com
todas as suas forças a idéia de lar, ele portanto o artista dos séculos
futuros, encontra-se com o fardo de sua família, burocrata num
banco, trabalhando algumas vezes 12 horas por dia com cursos
suplementares e apesar disto... sempre dramaticamente com pouco
dinheiro. Ao tédio e à rotina da vida de funcionário acrescentam-se
ainda as recusas grosseiras de seus editores, que não lhe deixam, na
sua vida de artista, senão a precariedade e a penúria.
Nenhuma semana se passa sem que ele peça a Stanislaus para
lhe enviar urgentemente algum dinheiro, aliás indicando a ele pró­
prio como pedi-lo emprestado. E fazer a contabilidade das liras
que lhe restam, do número de dias em que poderão se nutrir, do
que comeram e do que comerão, das últimas e próximas despesas,
de aluguel, de roupas, de medicamentos. Evidentemente há um se­
gredo de polichinelo, jamais evocado nestas cartas, mas que
Stanislaus, extenuado por esta insistência e já instruído pela expe­
riência de Trieste, conhece: são as incessantes bebedeiras noturnas
de Joyce, tão caras financeiramente, tão fatigantes e tão...
recrirninatórias. Não nos surpreendemos que lhe seja necessário

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COLETTE SOLER

“de se comparar ao pobre José! E ainda, Nora engray.da de novo...


Esta Vida de galera, Joyce a desdobra em um est.lo precioso e
cortante, pseudo-objetivo, que surpreende. Sem duvtda, tanto mais
facilmente quanto mais ele mend.ga com cons.deravel natural,dade
e com notável consciência de seus merecidos d.re.tos Aliás, ele
escreveu a Nora, em agosto de 1904. antes de part.r da Irlanda:
"As dificuldades atuais de minha existência são macred.táve.s mas
eu as desprezo”. Em seguida, as coisas pioraram ainda, quero d.zer
aquela que verdadeiramente contava para ele, a saber, o dest.no de
sua arte: suas tentativas para publicarDnWínrnsrs fracassaram (o livro
só será publicado em junho de 1914), ele tem a idéia de Ulisses, mas
dele não escreveu sequer uma linha e suas possibilidades de criar
lhe parecem em perigo.
No ano precedente, em setembro de 1905. dois anos após o
nascimento de Giorgio, enquanto ele ainda estava em Trieste, escreve
a Stanislaus: “Tenho uma natureza de artista e me é impossível ser
feliz enquanto eu a recalque.[...] Tenho o hábito (incômodo para
mim, parece) de agir segundo minhas convicções. Estou convencido
que este gênero de vida é um suicídio para minha alma, afastarei
tudo e todos de meu caminho, como já o fiz". Em dezembro de
1905 informa sua tia Josephine que cogita deixar Nora. Em l8 de
outubro de 1906, a questão permanece: “É-me possível aliar o exer-
ício de minha arte e uma vida moderadamente feliz?”. Quando em
'k- C ^evere’ro’ sern qualquer previsão, ele anuncia a Stanislaus sua
su ita emissão do banco, ele desejará de fato reconhecer que “mijou
lo o Pen’co (coglioneria), mas sem nisso acreditar de fato, pois
Es^tou J3 ^~erno clue m’nba barca espiritual tenha encalhado.
x]r- . .C ^Ue ex*ste um elemento de bom senso em minha
ultima louca iniciativa”.
Daí para pensar que sua rejeição de Roma é apenas um efeito
mau humor, uma espécie de ab-reação de suas contradições

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

interiores, não haveria senão um passo. Richard Elmann, seu prin­


cipal biógrafo, não está longe desta hipótese, que inclusive fala de
“depressão” e nota que durante estes meses Joyce também expressa
uma repulsão quase sistemática por todas as coisas e especialmente
para o que lhe ocorre ler em matéria de literatura inglesa. É verdade
que no fim de sua estadia, Joyce está ulcerado pela recusa de seus
editores, transtornado por estar ausente das polêmicas teatrais de
Dublin, extenuado pelas recriminações de Nora, aterrorizado pela
nova gravidez. Mas por causa disto Joyce também teria amaldiçoado
Trieste, onde as condições objetivas de sua sorte não foram melhores,
exceto o trabalho, é verdade. Em Roma ele o acha “mais dissipável
que a dissipação” e afirma que não o quer. No entanto, é um fato,
sua vituperação contra “a mais idiota e puta das cidade onde ele
tinha] jamais vivido” não esperou longas jornadas rascunhando,
nem a acumulação das decepções. Esta também não é uma pose de
autor. Joyce é realmente... afetado por Roma, até o pesadelo. Quinze
dias depois de sua chegada, ele escreve: “Sou atormentado todas as
noites por sonhos horríveis e terrificantes: morte, cadáveres, assas­
sinatos Seria dizer pouco evocar a sombra da morte. Não, as
contingências de sua vida dão sem dúvida o contexto, mas não o
fundamento da rejeição imediata e em seguida de sua vituperação
contra Roma. Esta virulência tem algo de mais visceralmente íntimo.
Ela está ligada ao ser.
O amor de Freud por Roma não é menos homogêneo de tudo
o que dele se sabe. Não nos surpreendemos de que o explorador do
passado subjetivo, tão curioso das civilizações de outrora, que o
colecionador de antigüidades se encante com a cidade das virgens.
Mas então, já que a execração de Joyce é como a face negativa do
entusiasmo exaltado de Freud, não seria indicada uma interpretação
inversa?
No que concerne a Freud, a interpretação é... do próprio Freud.
Malgrado a discrição elíptica com a qual ele sempre decifrou seu
proprio caso, as poucas observações de sua correspondência em
dUe ele menciona o obstáculo interior que se opunha a sua viagem

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COLETTE SOLER.

a Roma e o efeito subjetivo da resolução deste impedimento


euforia que sempre lhe inspirou esta cidade, e sobretudo a referênci
a Aníbal, não deixam dúvida alguma: compreende-se que, mutat
mutandis, sua interpretação de “Um distúrbio de memória sobre a
Acrópole" (193 6) pelo desejo de transgressão do filho se aplicaria
também a Roma. Seria necessário, uma vez mais, usar da interpre­
tação ready madc em relação ao pai?
Não nos faltariam justificativas. Joyce não fez, alguns meses
antes, no dia 29 de agosto de 1904. sua profissão de fé junto a
Nora para adverti-la de sua posição? Há seis anos, diz ele, “deixei a
Igreja Católica, que odeio do fundo do coração. [...] Agora faço-lhe
abertamente guerra por meus escritos, minhas palavras e meus atos”.
Como então teria ele amado a cidade de Nosso Santo Padre? Ele
admite aliás que a Roma antiga deveria ser bela. E a “Roma papal”
que ele denigre e rebaixa ao nível de “qualquer quarteirão pouco
importante de uma bela metrópole”. Aliás, aí ele pensa no Papa: ao
passo que ele não tem um só minuto para ele, no I 3 de novembro,
na Biblioteca Vittorio Emanuele, ele encontra tempo para ler... o
relatório sobre o Concílio do Vaticano de 1870, que proclamou a
infalibilidade do Papa. E eis aqui o seu resumo: “O Papa pergunta
‘Tudo bem, senhores?’. Todos disseram ‘Placet’ (De acordo) mas
dois gritaram ‘Non placet’ (Em desacordo). Então o papa: ‘Vão se
foder! Beijem meu cu! Eu sou infalível!" Não esqueçamos também
até que ponto o Bloom de Ulisses encarna a derrisão do pai. Em
suma, isto daria uma bela tese afirmando que Roma herdou da
relação do filho ao Pai: a Freud, a emulação respeitosa pela qual 0
filho se ultrapassa; a Joyce, a rejeição insolente. O inconveniente e
que se deveria igualmente acrescentar: através do que o filho não se
ultrapassa menos. O mesmo efeito para causas diferentes, pouco
importa, eis aí por que sua filha é muda!
Questão de gosto, então? Talvez, mas o gosto, como o afeto,
tem sua lógica. No presente caso, é um gosto nutrido de razões,
quase polêmico, e é sensível que haja algo como uma nota de sacri
légio provocador na reação de Joyce. A Roma, a bela intocável da

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

história e da arte do Ocidente, Joyce opõe ostensivamente um desprezo


lesa-majestade. Além disso, identificando-se a O artista — artigo
definido ele pretende que seus gostos tenham peso contra a tradição.
Na carta que eu citava há pouco, é sem pestanejar que ele opõe aos
preceitos seculares da Igreja “os impulsos de (sua) natureza”.
Um Joyce contestatório então? Ele próprio talvez não tivesse
dito não, ele que escrevia a Nora: “Meu espírito rejeita todo o apa­
relho social atual e o cristianismo: lar, virtudes reconhecidas, clas­
ses sociais, doutrinas religiosas Todavia ele não se atém sim­
plesmente ao aparelho das instituições de seu tempo. Denuncia com
a mesma força os sentimentos convencionais, as significações parti­
lhadas, ele zomba desde sua chegada a Roma das emoções prescritas,
e ironiza o jovem casal “olhando gravemente tudo em torno [dele]
por dever”. Sozinho, Joyce pretende fazer sua revolução cultural,
ainda que seja por caminhos que curto-circuitem Marx — parece
que ele não lera além da primeira frase do Capital. Sua contestação
não é um banal protesto reformador, sonhando com uma nova
ordem. Nós o vemos com seu suposto socialismo. Dele ele reclama
um tempo, justamente no começo de sua estadia em Roma, mas
isto jamais foi para ele uma opção política concreta, e ele admite de
bom grado que o chamem de inconsistente não por inconseqüência,
mas porque seu socialismo era de fato o nome provisório de sua
greve intelectual” — é dele a expressão em sua carta de 6 de no­
vembro de 1906. É inútil recorrer a seu suposto mau humor para
compreender que sua greve também visa a literatura de seus con­
temporâneos. Ele zomba de suas frases vazias, suas personagens
convencionais, os pobres procedimentos pelos quais eles giram
continuamente em torno do próprio umbigo”; em suma, sua impo­
tência em abordar o real pela literatura. Ele não pode, como final-
mente o diz, “se rotular socialista, anarquista ou revolucionário ,
pois são todas as prescrições do discurso como tais que ele não
suporta.
Joyce não é filho pródigo: antes um frágil David — não teria
elc falado bastante de sua fragilidade — sozinho face a face com o

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COLETTE SOLER

Golias de todo o edifício do discurso. Para ele o d


rai■ não n
um fantoche entre outros. Depreciador da mentira do dc
como tais, se assim designamos o edifício das ren $ ''"'“Otites

em cada cultura o simbólico oferece à credulidade e à ad <’U'


homens, ele põe em questão todas as obras da civiliZasj0 JSSO<los
nam e orientam a realidade subjetiva. tlue°rde.

Para isso nos fiemos nas considerações que ele empresta a


Sl kt„ o herói (1996). seu porta-voz quanto à sua vocação literária.
Com ele. Joyce explica como tratava as palavras ouvidas: "Ele as
repetia para si tanto e tanto que no fim elas perdiam para ele sua
significação imediata c se transformavam em falas admiráveis. Ele
resolvera interditar para si. com toda a energia de sua alma e de seu
corpo até mesmo a menor adesão ao que ele agora considerava
como o inferno dos infernos — em outros termos, a região em que
qualquer coisa aparece como evidente". Eis então a besta negra de
íovce o monumento das significações partilhadas, o grande ventre do
sentido comum, do qual finalmente ele se fará o cove.ro hteráno.
Mais do que por suas declarações, das quais um espírito revo­
lucionário possivelmente acabaria apenas se vangloriando, é por seu
savoir-faire artístico que a coisa se julga, e especialmente por seus
dois extremos: as Epifanias dos anos I9OO-I9O4, estes fragmentos
de discurso fora do contexto, subversivos a toda significação, e no
final o work in progress dos neologismos calculados de Ftnnegans Wakt.
Aí sua arte do não-sentido produz uma literatura paradoxal que
separa a letra do sentido; esta joga com a primeira não para entreter
o segundo ou para renová-lo, mas para destruí-lo, não deixando
dele subsistir senão o afeto de enigma. Todavia é um enigma não
interpretável na qualidade de um desejo inconsciente. Jung foi o
primeiro a se aperceber disso. Mais-além do chiste, que contraria­
mente produz um efeito de sentido no não-sentido, Joyce conse­
guiu produzir, mais do que produzir, fazer admitir no que chamamos
de as letras , textos que se excluem do simbólico — se de fato
o simbólico é o que gera a significação pelo encadeamento dos
signos.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Anomaha, talvez? A suspeita ocorreu a Jung assim como a


Lacan, nós o sabemos. Em todo caso isto não é a veta inspirada
estigmatizante e reformadora de um Rousseau, mas o trabalho cor’

rosivo de um negattvtsmo decidido. Estando justamente em Roma


Joyce se lembra que sua mãe lhe chamava de "gozador” ím0WHr}'

Ela provavelmente percebera, sem o saber, as primeiras manifesta


ções de sua louca tronta. Aquela pela qual ele se tornou mestre da
"cidade do discurso", o bastante ao menos para consegutr curvar a
seus pés a mats inexpugnável das instituições, a do gosto da época'.

Como teria ele amado Roma, a cidade dos semblantes por


excelencia. Ele antes proferirá seu veredicto da nova era: “Deixemos
apodrecer as ruínas”.

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UM-PAI*

No começo de seu seminário sobre Joyce — O Seminário, livro


2j: o sinthoma Çl975-(>') — Lacan evoca, como uma evidência, a
carência do pai de Joyce. A expressão pode surpreender vindo de
alguém que tanto ironiza os defensores de carência paterna, no
momento em que introduzia a distinção entre o Nome-do-Pai e o
pai. Ele acrescenta a expressão: “Verwerfung de fato”, que evidente­
mente autoriza a procurar seu traço na conduta do boa gente John
(Joyce), no que se sabe de sua vida.
E alguma coisa de muito espantoso uma Verwerfung... “de fato”.
Isto quer dizer que ela se passaria sem a implicação do próprio
sujeito, que ela de fato já estaria lá antes dele, e nada exigiria do
consentimento. Observem que o recurso à metáfora paterna deixava
lugar para a dimensão do consentimento. Ele certamente supõe que
a ausência do Nome-do-Pai no Outro seja a condição da psicose,
mas a sua presença neste mesmo lugar exige o que Lacan, em seus
textos iniciais, falamos disso com frequência, chama de: a insondável
decisão do ser. Que um significante possa estar em seu lugar ou
não no Outro, isto implica uma participação do sujeito, uma respon­
sabilidade, uma escolha fundamental no que concerne às significações
engendradas por este significante, alguma coisa como um julgamento
primeiro, tão originário que não se pode localizá-lo em parte alguma
no tempo, e para o qual Lacan ousou evocar o termo de liberdade ,
malgrado os mal-entendidos que ele não deixa de gerar. Ao contrário,
dizer de uma Verwerjung que ela é “de fato’ a exclui de toda participação
do sujeito, que desde então não pode ser senão o paciente.
Isto nada diz das relações com a pessoa do pai, e não exclui
notadamente o amor pelo pai. De Joyce, sabemos que ele não rejeitou
seu pai, ao contrário ele é o único da família que permanece ligado
a ele, e que inclusive impede Richard Ellman de registrar na sua

Un-père . Extrato do Seminário à Ste. Anne de 16 de fevereiro de 1991.


Publicado em Conjluents, n. 10, 1994-

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COLETTE SOLER

índicios de suas carências, deste exigindo que enfatize o


biografia os ° amor tão mcsmo csta fa|u
qU Wvalência própria da neurose. í tanto mais chocante por contrastar
nZderosamente com a rejeição do s.gnificante mestre patente e extrema
P toda a obra de Joyce: isto não é apenas a sua denuncia da ordem
^igreja, do exército, da Irlanda, da pátria etc.; c sobretudo sua

técnica artística que tritura, fragmenta, põe em xeque os semblantes.


É certo que o pai de Joyce não preencheu as únicas condições
que, segundo Lacan, em sua lição de 21 de janeiro de 1975. fazem
com que um pai tenha “direito ao respeito", aquelas da...pèrrwílon,
a saber “que sua causa seja uma mulher, que ele a tenha adquirido para
nela fazer filhos, e que destes, quer ele o queira ou não, ele se encar­
regue dos cuidados paternos”. Evidentemente, tais condições prometem
à época moderna uma maior extensão da psicose! Mas enfim...
Sabemos o que valeram os cuidados, muito pouco paternos,
do pai de Joyce, este John, que se ocupou sobretudo de cantar, de
fazer política e de beber. Em suma, um bon vivant com o vibrante
sentimentalismo do alcoólico. E no mínimo o que certas passagens
fazem parecer. No fundo, chegamos a isolar uma forma de abandono
das crianças e principalmente a exigência que ele fez pesar sobre
James. A posição de John Joyce foi a de fazer de seu filho James seu
próprio substituto. Pede a ele que faça o que deveria ter feito: encar­
regar-se dos cuidados paternos de... seus irmãos. É um dado funda­
mental da história de James Joyce. Eu o cito: “Sua família contava vê-lo
engajar-se sem demora no caminho de uma respeitabilidade lucrativa e
salvar a situação . Aí não é o pai, é a família em geral — aliás, o fato não
é raro nas famílias pobres... Mas há uma outra citação em que Joyce
evoca a si próprio como “seu filho mais velho, sobre os ombros do qual
ele piedosamente depositara o fardo de suas responsabilidades .
Joyce confirma aí o que a biografia permite constatar: ele recebeu
esta mensagem de ter que fazer suplência à missão do pai. Talvez ele
tivesse podido tomá-la de outra forma, mas é fato que ele foi chamado
a este lugar vazio. Que ele se o tenha recusado, disso não podemos
duvidar, mas ele de qualquer modo inventou uma versão para seu uso.

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ANALISTAS

PARTE 2

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HOMENAGEM A JACQUES LACAN*

Em Televisão, Jacques Lacan evoca o psicanalista: “Não se po­


deria melhor situá-lo objctivamente senão com aquilo que no pas­
sado se chamava de: ser um santo" (1974, p. 28). Antigamente,
escrevia-se a vi da dos santos, o que se chamava de hagiografia.
Desta obtínhamos relatos muito edificantes.
Pois bem, para o psicanalista, creio que não se escreve sua
vida. Há razões essenciais para isso. Falar de Jacques Lacan é falar
de seu ensino que lhe deu um nome. Este ensino é indissociável da
prática analítica: de início, porque ele surgiu dela; em seguida, por­
que seu ensino constitui seu próprio objetivo. Era para os psicana­
listas que Jacques Lacan falava, ainda que sua voz alcance muito
além do círculo dos praticantes.
O Seminário dos dez últimos anos, aberto a todos, e onde nos
comprimíamos em grande número, o Seminário do tempo da noto­
riedade, não deve nos fazer esquecer aquele dos primórdios, que foi
um Seminário reservado, “confidencial”, dizia Lacan. O que só-
depois impressiona nesse começo é o apelo constante feito às con­
tribuições de cada um, a preocupação em explicar, o esforço para
integrar os ecos recolhidos, o cuidado dedicado na reelaboração
contínua dos termos e das fórmulas. Esse Lacan, esse Lacan paciente,
esse Lacan pedagogo dos psicanalistas, será ele tão diferente do
Lacan mais conhecido, o do sucesso nas livrarias? Será ele tão dife­
rente do Lacan difícil, aquele do estilo, dos aforismos e dos maternas,
aquele que no Seminário, no rádio ou na televisão fala não a um
público escolhido, mas como se falasse a esmo, e que aí diz coisas
árduas, sem nenhum esforço de “vulgarização ? E certo que sua
visada permaneceu sempre a mesma: dizer com precisão sobre a
experiência analítica e, assim fazendo, permitir ao psicanalista de aí
se encontrar.

Hommage à Jacques Lacan”. Publicado em Lettn Mensuellt, n. 4, outubro de 1991.

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COLETTE SOLER

Oue possa haver psicanalista. Tal é o voto que se dec.fra ao


lon o de todo o ensino de Jacques Lacan, e eertamente ele muito
feXaltar a função do psicanalista.
O que então fundamenta esse optativo? Com certeza, nao uma
preocupação profissional qualquer, mas a idé.a de que, na ps.caná-
hse se ela é freudiana, cada um está interessado.
É preciso perceber o alcance desse ensino no contexto de sua
época. Lacan não inventou a psicanálise; ele a recebeu de Freud,
porém soube reconduzi-la na estrita v.a que fo> a sua, entre a desti-
tu.ção do sujeito pela ciência e sua falsa promoção pelas .deolog.as
da liberdade.
Até agora, a mortificação do vivente pelas recaídas da ciência
tomou proporções inigualáveis e não deixam de crescer. E para to­
dos uma evidência quotidiana, uma banalidade. Manipula-se com
medicamentos a sobrevivência e a reprodução do corpo; dispõe-se
econômica e militarmente das vidas de povos inteiros; agencia-se a
fantasia através da imagem e do “discurso-curto-corrente (dtscours-
court-courant) dos meios de comunicação de massa. Esse “se” (on)
não é nenhuma subjetividade, mas um efeito da ciência hoje desen­
cadeado. Um efeito através do qual vem à luz a exclusão que a torna
específica em seu manejo do símbolo como uma prática de “anulação
do sujeito . Correlativamente, a ideologia de autonomia desse
sujeito não e mais do que um contrapeso derrisório. Não foi por
acaso que contra ela teve Lacan de restabelecer a verdade freudiana.
Esta ideologia tem com certeza seus títulos de nobreza na filosofia,
mas é sob a forma a mais abastardada tnade in USA que ela se
funde na opinião, inflectindo todo nosso sistema educativo. Nesse
b ento em que a materialidade das imagens, das palavras, dos
j egÇ cada vez mais anonimamente os indivíduos, sua
—legaçao ideológica se amplifica, fabricando um sujeite i que evo-
antes o autômato do século XVIII ou o computador moderno,
Se e es se julgassem os agentes .....-------- =
jSSQ , ° ujjcia^ues.
desdobrarei C°"St‘tui ° c°ntexto do ensino de Lacan. Não
u aÇões deste ensino; enfatizo somente que a

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

psicanálise, freudiana, prega uma peça tanto na vertente opressiva


da ciência, quanto nas crenças que a mascaram. Ora, hoje a psicaná­
lise na França não é freudiana senão graças a Jacques Lacan. De que
Se ocupa um tratamento, no dizer de Freud? Do desejo inconsciente
e seus efeitos. Sem Lacan o teríamos quase esquecido. Ele reconduziu
a psicanálise a este eixo através do qual ela faz antídoto. Em pri­
meiro lugar, antídoto contra o discurso da ciência, justamente por­
que este mesmo sujeito que a ciência anula, ela se dedica a sustentá-lo
em seu desejo, no que ela é bem uma compensação. Mas, por outro
lado, ela opera essa subversão através da qual o sujeito verifica não
ser nem o vivente, nem o psíquico, porém somente o suposto dos
significantes que estruturam a fala. Seu desejo, tal como é causado
em um tratamento, é estranho a toda idéia de profusão, de força
obscura chamada à manifestação. Mais indestrutível que qualquer
elã vital, ele está sempre sujeitado às fragmentações da gramática
inconsciente, sempre religado a uma falta em que se constitui o
objeto. Portanto a psicanálise tampouco é a “religião do desejo”.
Contrariamente à ciência, ela sustenta o sujeito do desejo mas, no
sentido oposto ao do discurso comum, ela o reconduz ao impasse
constitutivo ligado à sua determinação pela linguagem. E o ensino
de Lacan foi uma luta contra a tendência que conduziu a doutrina
analítica a deslizar no ramerrão ideológico, o mesmo que se ilustra
na figura daqueles que o deixaram, protestando contra o sentido
estrito de suas formulações.
Evoquei a constância de Jacques Lacan, constância em pôr o
inconsciente contra o próprio espírito do tempo. Enfatizarei agora
sua coerência. Há um sinal de autenticidade. Não creio mais que
isto seja o acento de verdade. Nesse nível, o talento do paranóico é
notório. Em compensação, prova-se que a démarche não desmente
o dizer. Sobre esse ponto Lacan foi muito longe, talvez mais que
Freud. Em sua prática, antes de tudo. Dela tomarei tres aspectos.
No que concerne à abordagem da doença dita mental, neurose,
psicose, ou perversão, Lacan revezou Freud, reabilitando as histér
Os sintomas, Jacques Lacan jamais os tratou como defeitos

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COLETTE SOLER

ele o sintoma não era uma falta de uma pretensa normalidade a ser
retificada. Era antes um testemunho do fato de que o desejo é
estruturado em um impasse. Esses pacientes, ele os tratava corno
testemunhos. Isso excluía evidentemente a condescendência.
Testemunhos do que é o destino do "fala-ser”, esse fala-ser em
quem os corpos podem se acoplar sem no entanto fazerem relaçào.
Era um outro modo de ouvi-los, diferente de simplesmente querer
corrigi-los, e todos os que dele se aproximaram foram sensíveis a

ISSO.
Quanto ao sujeito, Lacan o distinguia do indivíduo. A conse­
quência disso, consequência prática, foi que ele não escolhia seus
pacientes em função de seus status. Que tivessem cultura, que fossem
ou não do meio da saúde mental, que tivessem ou não recursos,
intenções ou não quanto à análise, pouco lhe importava. Ele sem­
pre teve todos os tipos de paciente. E um traço que o diferencia
completamente da maioria dos psicanalistas ditos “experientes", os
quais, mais ou menos, talvez sem o escolherem, terminam sempre por
se especializarem nas análises de cunho didático e nas supervisões.
Minha última observação concerne à própria técnica. E sur­
preendente que ela tenha suscitado os mais diversos ecos, e para
isso há uma razão. Lacan o disse, ele não fazia aliança com o eu
(moí), e seu savoir-faire antes ia de encontro aos simples hábitos
que regulam as relações mundanas entre os indivíduos. Não é inco­
modando pouco as convenções em que o sujeito pensa encontrar
sua estabilidade que podemos invocar em cada um o sujeito universal
e os impasses particulares de seu desejo e de seu gozo. Sobre este
ponto Lacan foi incansável até o último momento.
Esta coerência com suas próprias teses, Jacques Lacan a mani­
festou também na relação com seu próprio ensino. Observo em
primeiro lugar que ele não se julgava o agente de seu ensino mas
seu e eito, e que jamais visou a originalidade, ainda que a tenha
alcançado. O que ele visava, seu caminhar, seus ajustamentos suces­
sivos, seu modo de girar em torno o mostram. Ele procura dizer
com precisão, bem dizer ’ sobre a experiência analítica. Em uma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

j- alouma coisa que valesse para todos, e que pudesse


palavra, dizer ag , , • , c ,
r ~ submeter-se à prova da critica; e, de rato, sua tese de um incons-
enta estruturado implica que haja uma doutrina analítica possível.
Portanto Lacan não visava a originalidade; no entanto ele a
i rhe^ando mesmo ao hermetismo. Ora, este hermetismo,
alcançou, 5 r • 1
c|e 0 quis, ao menos parcialmente, e isso para deter os efeitos do
sucesso. É que ele conhecia bem os impasses da transmissão atra­
vés da linguagem e o fato de que na língua os significantes são
usados como moeda. Do momento em que seu nome, ele próprio
tornado um significante, bastava para garantir a difusão de suas
fórmulas, a ele foi necessário, para que houvesse chance de trans­
missão, fazer obstáculo à depreciação das significações no discurso
comum. Ele tinha uma palavra para isso: “publixar”1 (poubellication').
Para dar um exemplo, vejamos: Freud disse “sexualidade per­
versa polimorfa”. Foi uma bomba. Atualmente, isso passou para o
nível dos berçários, e não tem mais a menor consequência. “Não
existe relação sexual”. Isso causa uma pequena emoção, mas já che­
gou a algumas classes dos últimos anos do ginásio, e será breve­
mente engolido pela inexorável digestão do discurso. Como impedir
as palavras, quando elas circulam, de se “designificantizarem”? Lacan
fez uso de dois modos: o obstáculo do estilo e a aridez do materna.
Assim ele tratava de imitar o sintoma, já que é somente no sintoma
que o significante, preso ao corpo ou à função corporal, não se usa.
Não era senão uma tentativa, pois imitar o sintoma não está ao
alcance de ninguém, Lacan bem o sabia, e é por isso mesmo que ele
precisou contar com a presença do psicanalista como objeto, este,
indigesto.
Ele próprio, aliás, soube tão bem ser esse ponto de impasse,
que não evitou de se fazer vomitar e, nesses últimos tempos, espe-

1. N. do T. Neologismo de Lacan já bastante con ■ erirlo obtido pela ocondensação


demarcar que seria o
de poubelle (lixeira) e publication (publicação), Pr°.^3 QptarnOs pela construção
destino reservado às publicações, qual seja, o txo. rbo [jXar em seu sentido
publixar, fazendo uso em português da gíria re „rl
de “não dar importância”, “não se incomodar

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COLETTE SOLER

cialmente por aqueles que acreditavam poder mctabolizá-lo. Eles


como se diz, encontraram um osso duro de roer. Contra eles Lacan
não contou senão com seus textos. E ainda um ponto de coerência
com sua doutrina, o último que evocarei.
Lacan dissolveu a Escola freudiana. Se ele não o tivesse feito
teria havido lacanianos garantidos, como houve freudianos garantidos
pela Internacional. Um grande corpo, agitado sem dúvida pelos
piores conflitos, mas onde todos teriam acreditado possuir a
estampilha: garantia EFR Teria sido, desta feita, a evacuação garan­
tida. Lacan não quis esse mausoléu e estava suficientemente seguro
em sua doutrina da transmissão para poder negligenciar tanto o obstá­
culo dos ódios belicosos, quanto a contribuição das boas vontades.
Assim ele lançou seu ensino ao que ele chamava de “fortuna";
um passo mais-além de Freud. Ele cuidou somente de que seus
textos fossem salvos, tendo tomado há muito tempo disposições
neste sentido.
Então. L.acan era um santo? A questão não é impertinente e a
homenagem que prestamos a Jacques Lacan não implica a solenidade
do tom. Lacan sabia rir com esse riso que lhe era muito particular,
que todos aqueles que dele se aproximaram conheceram, e que ex­
primia menos sua própria alegria do que aquela ligada a seu saber.
Alguns acham mordaz deixar subentender que ele não foi um
pequeno santo. Somente por isso eles testemunham seu próprio
nível de acomodação.
O que eram então esses santos de outrora, que evidentemente
não existem mais? Sujeitos que, em um mundo onde se insinuava o
esquecimento de Deus, sustentavam solitariamente um desejo de
Deus, tão raro, tão excepcional que este desejo era capaz de causar
outros. Eis por que os tomávamos como exemplo.
O psicanalista, se é psicanalista, não tem de se haver com Deus,
antes com sua falta. Nisso ele não é um santo. No entanto, quando
ele está em função, ele se faz também causa do desejo. E ocorreu o
seguinte: Jacques Lacan, após Sigmund Freud, deixou em seu ensino

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A PSICANÁLISE NA
civilização

de psicanalista o rastro de um desejo sem r


signo para quem dele queira fazer uma causT SUStCn‘’d° Sue f’2
Nisso ele é, no presente, um exemplo do osirs I
título, ele merece, mais-além do amor indevido d
nosso respeito. transferência,

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A APOSTA DE JACQUES LACAN*

Será que algum dia falaremos de A Psicanálise como falamos


de A Matemática?
A difusão da obra de Freud não terá sido suficiente para isso.
Está claro que a exportação da experiência produziu sobretudo a
difração da doutrina: Lacan para a velha Europa, e a Psicologia do
Ego para o Novo Mundo. Quanto ao kleinianismo, mais nômade,
surgido do ensino do berlinense Abraham, dificilmente implantado
na Inglaterra, encontrou afinal seu campo de expansão na América
Latina. Assim, os segmentos de fratura da descendência freudiana
parecem seguir as clivagens da história e dos continentes.

A psicanálise, freudiana

“O que é uma psicanálise lacaniana?”, perguntava-me uma jor­


nalista na Venezuela. Ora, o ensino de Lacan inicialmente foi um
convite ao freudismo. Portanto este convite implica que se deva
z
antes escrever: a psicanálise, f reudiana. E bem porque Jacques Lacan
pensava não haver senão uma psicanálise, resultante do procedi­
mento inventado por Freud, que o debate entre os praticantes lhe
parecia possível, e o próprio Lacan pagou com seu exemplo.
Sem dúvida ele evocou com frequência a solitude de sua relação
com a causa analítica. No entanto ele não deixou de ter parceiros, e
se ele consagrou vários anos à elaboração interna de sua doutrina,
tanto o início quanto o fim de seu ensino antes se colocam sob o
signo do encontro. Os anos do "retorno de Freud assim foram
anos de debate com seus contemporâneos. Nisso a polêmica não
ocupou todo o espaço: por exemplo, ele foi um dos primeiros que,
na França, levou em consideração Melanie Klein e Winnicott. Lacan
foi também aquele que deu seu último Seminário no estrangeiro,

Le pari de Jacques Lacan". Publicado em L’Ant, n. 4, 1982.

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COLETTE SOLER

Caracas ("julho de 1980). Ali ele tomou a iniciativa de convidar

para o tncunu” *
seguinte. Vejo nisso um símbolo
Podemos observar que aqueles que se reagruparam em torno
de Jacques Lacan em sua antiga Escola, nem sempre souberam reto­
mar por conta própria o questionamento dos psicanalistas “Outros".
Seus alunos muito frequentemente acreditavam em tudo que ele
dizia, sendo o círculo de suas leituras quase sempre interno ao das
referências de Lacan. Certamente sempre houve psicanalistas que
“viajavam", como se diz em Caracas. Mas como eles o entendiam:
representação do lacanismo ou simples vilegiatura? E muito difícil
dizê-lo, pois essas trocas nunca foram versadas na conta da elabo­
ração teórica, e Lacan foi sempre o único a falar publicamente do
ensino que soube tirar de seus contatos estrangeiros: por exemplo,
de sua viagem ao Japão ou aos Estados Unidos.
Assim, trata-se hoje sobretudo de recomeçar um tipo de troca
científica, iniciada por Lacan, porém por muito tempo em vão re­
comendada. Uma Escola não é um Círculo, sua relação íntima a um
ensino fundador não implica nem a exclusividade das referências,
nem mesmo a localização geográfica.
É fato que Lacan, como todos os autores ditos intraduzíveis,
é hoje amplamente traduzido: inglês, alemão, espanhol, italiano,
japonês... imperialismo da tradução talvez. Esta palavra pode fazer
vibrar a sensibilidade muito particularmente lá onde se sofre a
verdade, de imperialismo.
Contra seus tradutores, em nome das línguas nacionais,
podemos inclusive invocar Lacan e sua doutrina do significante.
Uma tese se destaca: a verdade se prende ao texto, ela é sempre
literal. O retorno a Freud é um retorno não no sentido literal, mas
às articulações do texto sempre lá; da mesma forma, é no palavra
por palavra da versão que se decifram os “ditos” do analisante.
O inconsciente, portanto, se enlaça a alíngua (lalangut').
ngue). Mas então
não se deveria concluir, sendo cada língua específica, que o procedi­
mento freudiano não se exporta senão ao preço de cair sob o golpe

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

das particularidades linguísticas? O argumento é sedutor. Ele pode


servir de complemento teórico as mais justas reivindicações políticas
que se ligam às línguas nacionais, ou de explicação às atitudes mais
refratárias à psicanálise. Assim, para os Estados Unidos haveria a
hipótese de que a resistência a Lacan — após aquela, diferente, a
preud — seria lingüística. A tradução impossível faria portanto
objeção à psicanálise, em benefício das psicanálises de cor local.
Estaria ela fundando segregações incompatíveis com esta “forma­
ção que se endereça a todo homem”, pela qual Lacan marcava sua
preferência? Será preciso dizer então que a psicanálise é votada a
não opor aos efeitos da ciência, estes planetários, senão antídotos
fragmentários fixados aos solos linguísticos.

O inconsciente tem suas razões...

A aposta de Lacan é outra. Nós o vemos imediatamente no


fato de que definir o inconsciente como um saber que se enlaça à
alíngua não o impede de chegar ao materna, ou seja, a essas escritas
que visam precisamcnte a uma transmissão sem resto.
Para dizer a verdade, o argumento do particularismo das lín­
guas é muito forte, pois o inconsciente é ao mesmo tempo autista
e poliglota: sorvendo eventualmente muitas línguas, não se ajustando
jamais a nenhuma, sua língua é tão pouco partilhada que se deveria
mesmo dizê-la estritamente singular. No nível do inconsciente, não
falamos nunca a mesma língua. Nenhuma maneira, portanto, de fazer­
mos conjuntos com os inconscientes. Contudo isso daria uma divertida
versão pós-freudiana dos temperamentos "nacionais : os inconsci­
entes ingleses, espanhóis, franceses... Ora, um inconsciente é
sempre uma língua estritamente privada, como saber retirado da alíngua.
E entretanto há a leitura. A leitura que, não sendo tradução porém
decifração, implica que o inconsciente trabalhe de modo ordenado, que
ele opere segundo as “razões”, aquelas mesmas que Freud tratou de
isolar, e nas quais Lacan identificou os “efeitos de linguagem . Será
preciso dizê-los sem fronteiras, ou seja, próprios a todo ser falante?

Ui

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COLETTE SOLER

aí Q e não é para ser tomado ao nível de princípios.


,. 3 T M aliás evocava — seria mais que um dito espirituoso?
O próprio a uma língua, a escrita japonesa sobretudo,
jq ,, pouco compatível com a pstcanal.se, sem duvida por tor.
P° esses efeitos de linguagem inúteis. Abre-se asstm a questão do
"ue aí se substituiria. Mas esses efeitos, seja qual for sua untversa-
l.dade eles não se atestam senão pela dectfração. Portanto é prectso
lcr. Ler "mais-além do que (se) incitou o sujetto a dizer , ler do
mesmo modo Freud. Lacan e alguns outros. Concebemos bem, por
exemplo, que as filigranas da dectfração freud.ana apareçam como
vãs sutilezas para quem imagina que alíngua nao e senão um instru­
mento. extertor ao sujetto, e redutível, como nas máqu.nas de tra­
duzir. ao talo de uma semântica e de uma sintaxe comuns. Entretanto
o obstáculo aqui não se deve a alíngua, mas ao tipo de discurso. Que
se leia permanece esquecido...

O Encontro

Lacan, tendo partido de um imperativo de leitura freudiana,


promove no final de seu ensino a expressão Causa freudiana. Essa
causa dá retroativamente razão de ser à palavra de ordem primeira:
fundando o retorno a Freud, há o olhar de Freud como causa.
Contrariamente ao objeto tomado como Ideal, que funda a identi­
ficação recíproca dos membros de todos os povos do mundo, da
qual Freud descreveu a estrutura, o paradoxo desse objeto-causa
lacaniano é que ele não funda nenhuma identificação. Daí o mote
de Lacan: “Façam como eu, não me imitem”. A Causa freudiana é
menos comum do que Lacan o teria querido. E ainda que se tornas­
se mais, ela não faria no entanto uma multidão; tampouco terri­
tório, mas sim Encontro, no qual se põe à prova o que se lê do
inconsciente, ali onde essa causa faz ler. Assim os psicanalistas
versarão no dossiê de A psicanálise o mais particular do saber
que a experiência deposita”.

132

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POR CAUSA DE JACQUES LACAN...*

Em 1951, Jacques Lacan começou o Seminário de psicanálise


que prosseguiria até sua morte em 1981, e foi em 195 3 que che­
gou ao conhecimento do público — com o anúncio da cisão da
Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), filiada à Associação Psica-
nalítica Internacional (IPA), e a criação da Sociedade Francesa de
Psicanálise (SFP) — o indício de uma crise na qual se jogaria a
sorte da psicanálise, que na França, antes da guerra, não estava senão
em seus balbucios.
Foi o início de grandes lutas: cisão (1953), excomunhão
(1963), dissolução (1980) e... a consequência. Luta da IPA contra
Lacan, sem dúvida pela proteção dos standards, até a morte, mas
também o reverso, luta pelos fundamentos ganha por Lacan contra
a IPA em nome do inconsciente e da prática analítica; e depois, a
surpresa: luta de Lacan contra sua escola, e por quê? O que então
resistiu a Jacques Lacan para que, após ter-se declarado contra a
ordem instituída nas primeiras Sociedades de analistas, seja de sua
Escola, criada em 1964, que ele profira a famosa delenda estl A or­
dem da Associação Internacional não terá sido então a única em
causa no que fez Lacan se opor à coletividade dos analistas. Um
contra todos, mas sempre com alguns, embora nunca os mesmos,
este foi o destino de Jacques Lacan na psicanálise a partir de 195 3-
Após sua morte, outra surpresa: todos estão com ele. Não evoco aí
sua consagração evidente como pensador, nem mesmo o interesse
que lhe é dedicado desde então na IPA, mas esse fato novo de que
pela primeira vez, por toda parte no mundo, coletividades inteiras
do Campo freudiano se formam em seu ensinamento, através de
um trabalho de leitura metódica, aberto tanto à sua fala como ao
seu saber.

* “A cause de Jacques Lacan...". Concluído em 28 de julho de 1991. Anterior­


mente traduzido para o português em Opção Lacaniana, n. 2

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COLETTE SOLER

Sabemos hoje que Lacan não terá sido um Dom Quixot d


psicanálise. “Eu ganhei sem dúvida. Pois fui bem sucedido em faz *
ouvir o que eu pensava do inconsciente, princípio de uma prática”
dizia ele em outubro de 1976 na abertura do volume “A cisão de 53"'
publicado por Ornicar?. Em 1991 seria quase necessário acrescentar'
vitória por nocaute, restando seu ensino o único a ter renovado
racionalmente o status do inconsciente e a ter tirado disso algumas
consequências para a formação do analista. Mesmo na IPA chega-se
a isso, a passos curtos. Donde, comicamente, um novo dilema para
esse grande corpo: como ingerir de novo o excomungado, sem nada
mudar nos hábitos standards com os quais ele é incompatível? Isso
talvez nos prometa um Lacan expurgado... Entretanto o: “Eu ganhei’’
de 1976 não deve fazer esquecer o “Eu fracassei” de 1967, muitas
vezes repetido, menos imaginário, e que dele não está anulado.
Em 1921, Freud, após ter escrito o “Além do princípio do
prazer” (1920), escreveu “Psicologia de grupo e análise do eu”.
A problemática desse texto supõe a de um outro de 1914: “Para
introduzir o narcisismo”. Trata-se então para Freud de explicar a
razão do laço social, da união dos casais, e também da perenidade
unificante das grandes instituições tais como a igreja e o exército.
É o problema do amor e da discórdia, mas é também um problema
de lógica, aquele, original, do um e do múltiplo, repercutindo mais
perto de nós na teoria dos conjuntos. A questão é esta: como cada
qual, cada um, cada singleton1 narcísico vem incluir-se em unidades
mais amplas? Freud responde a isso por uma teoria da identificação
suposta servir ao Eros que une contra Tânatos, que dispersa. A psica­
nálise está aqui diretamente concernida. No nível do par analista-
analisante, o problema da transferência e o paradoxo de um amor quase
programado para se dissolver, e que, diferente de qualquer outro, aspira
curiosamente a não ser para sempre e mesmo a não ser por demasiado
tempo, sem por vezes poder consegui-lo! No nível da coletividade, da
qual não sabemos que mau sortilégio entrega suas instituições à corrosão

I. N. do T. Termo originário do inglês utilizado no jogo de cartas para designar


a carta que é única em seu naipe.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

empre renovada de Neikos, ainda a discórdia, a não ser que esse sorti­
légio as cubra com a mortalha de uma inércia mortificante.
Eis a pedra de escândalo da qual se alimenta a perplexidade do
público, as testemunhas. Por vezes isso é usado para o descrédito
da disciplina. Mas isso é concluir, antes de ter compreendido, sobre
um fenômeno do qual seria preciso apreender a lógica interna, e
que sobretudo apela a uma interpretação sobre a causa.
Constato que nunca evocamos esses conflitos sem aí colocar
uma ponta de decepção, e mesmo de indignação, ao menos alguma
coisa parecida com uma lástima em constatar que o psicanalista
mergulha nas paixões que achamos muito comuns, para que não
sonhemos vê-lo delas liberto. Ao mesmo tempo postulamos que
deve haver, de um lado, os psicanalistas e suas pequenas guerras e,
do outro, os verdadeiros problemas da psicanálise. Isso quer dizer
que gostaríamos que a psicanálise, que de fato se distingue dos
psicanalistas, não seja demasiadamente comprometida por eles. Sem
dúvida este é o sinal de algum respeito transferencial. Aliás, é evi­
dente que os psicanalistas o mantêm e que estão prontos a deixar
pensar que a instituição concerne não à psicanálise, mas aos psica­
nalistas, e que aquilo que conta é a psicanálise! Ora, se levada a
sério, esta tese é insustentáve 1. H á solidariedade entre a instituição
analítica e a psicanálise por uma razão fácil de dizer: a psicanálise
— o estado de sua prática e de sua conceitualização — está subor­
dinada ao psicanalista. Quanto ao psicanalista, ele depende da for­
mação que recebeu, ao menos em parte, e a própria formação, que
em nenhum caso se reduz ao tratamento, é solidária da instituição
— mesmo quando ela faz falta. Conclusão: o problema da comuni­
dade analítica é um problema de psicanálise.
Mesmo assim, perguntamos ainda se não é necessário distin­
guir nesses conflitos as questões pessoais dos embates técnicos.
Quando formulados assim, fica de antemão entendido que bater-se
por questões pessoais — passionais — é sempre muito reles, en­
quanto é muito nobre ter cu idado com a doutrina! Mediante o que,
aliás, não há torpeza em psicanálise que não se faça em nome de sua

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COLETTE SOLER

saúde — viúva e orfã sem dúvida, em todo caso suposta como


estando mal de arautos. Por vezes, em sua ambição de inserir a
psicanálise na ciência, Lacan almejou que pudéssemos dizer: a PSI.
canálise, como dizemos a Matemática. De fato, por uma espécie de
ironia da pequena história2, dizemos a psicanálise, mas somente ao
nível da retórica falsificada dos bons apóstolos. Que o verifiquemos
nos documentos citados acima. Aí veremos a IPA, Hartmann e Anna
Freud à frente, conduzir uma verdadeira caça ao homem, porém
pela pureza da formação analítica, e mais, na hora da verdade, os
alunos ainda ontem obsequiosos, consentirem em renegar o
ensinamento que os formou e adquirirem o título de membros da
IPA, mas em nome da proteção da Sociedade dos analistas.
Assim, na falta de se igualar à matemática, a psicanálise terá pelo
menos conseguido servir de álibi para usos múltiplos. Por mais
desconcertantes que sejam esses avatares bufos ou dramáticos, eles
não exigem menos uma interpretação sobre a causa.
De fato, esta alternativa — finalidades pessoais ou finalida­
des próprias à disciplina — não convém para as crises da psicaná­
lise tanto quanto não se coloca para a ciência.
Na ciência, ela não teria sentido, pois o saber que aí se elabora
não é solidário do desejo que para ela contribuiu. Sua transmissão
integral tem esse preço. Não que os costumes sejam aí mais afáveis
que alhures; as lutas desencadeiam raiva do mesmo modo, os crédi­
tos são disputados com violência, as experiências por vezes se falsi­
ficam, furtam-se invenções e técnicas etc. Mas, na hora da desco­
berta, a história se apaga e seus agentes se esquecem. Além disso, a
história da ciência não é para a própria ciência senão o que merece
ser esquecido, e quando essa história se escreve como recensão dos
obstáculos epistemológicos que fizeram barragem à invenção, ou como
exploração das vias desta, isso antes fica por conta do filósofo. Que o
científico por vezes aí se interesse, não muda em nada esse fato.

2. N. do T. No original, par une sorte d’ironie de la petite histoire; expressão que


designa os acontecimentos históricos menores, anedóticos e secundários em re
lação à História que relata os grandes fatos de uma época determinada.

136 _

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Na psicanálise, a alternativa não cabe, mas por razões inver­


sas: aí as questões analíticas jamais são separadas das pessoas, por­
que nela a invenção resulta do desejo do descobridor. É o status da
psicanálise que está aqui em causa, seu status de ser na ciência, ou
seja, condicionado pela ciência e ligada à ciência sem ser uma ciência,
mas uma pratica na qual o desejo do analista e um operador
O status da prova e da transmissão em seu campo encontra-se radi­
calmente modiliçado. Que Freud, por exemplo, tenha encontrado a
porta de entrada do inconsciente, que alguns tenham conseguido
revezá-lo, isto deve ser posto na conta da contingência não
universalizável. Sem dúvida não sabemos por que Newton foi
Newton mais do que por que Freud foi Freud, porém a lei da gravi­
dade eclipsa seu descobridor, ao passo que a lei do inconsciente
tem um sésamo que põe em cena o desejo; como conseqüência,
tanto a descoberta como a crítica doutrinal no campo da psicanálise
concernem ao ser. Como se surpreender desde então que aí os de­
bates sejam tão... vivos, e até intoleráveis aos psicanalistas, e que
eles o rebaixem em geral ao uso de momices? Como surpreender-se
ainda que na falta de ter algo que seja equivalente ao papel media­
dor que têm as santas escrituras na religião, os psicanalistas sejam
irresistivelmente impelidos à sacralização do texto original, ao rito
da citação, e que a menor das novidades seja coagida a não avançar
senão sob a responsabilidade das referências autorizadas? Talvez
houvesse um pouco disso no retorno a Freud de Lacan.
Não nos surpreenderemos que sob estas condições a pedra no
caminho, em cada um dos momentos cruciais desta história, tenha
sido o problema dos procedimentos e dos fundamentos da formação
e da seleção dos analistas. E que não creiamos serem querelas de
iniciantes, pois a aposta da garantia analítica é na realidade a garantia,
para aquele que demanda uma análise, de poder encontrar
analista. Em 19 5 3 o pequeno colégio da SPP se cinde na ocasião da
criação do Instituto psicanalítico. A saída de Lagache e de
amigos, aos quais Lacan se agrega, é a resposta à tentativa
bando de Nacht de assegurar o controle exclusivo desse Institu

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executiva da IPA contra Lacan. Trata-se de deter a

"nalisar sob condição de que seu ensino não figurasse nos progra-
’mas — com todas as letras — e de que seus anahsantes nao preten­
dessem tornar-se analistas! Continue falando, dizia-se àquele que
fizera sua entrada pelos poderes da fala e a quem se pretendia privar,
porém tarde demais, do poder de transmitir.
Em 1980 as coisas passam entre Lacan e sua Escola: ele aposta
em seu ensino contra esta Escola que, sem recusar nem esse ensino,
nem sua conseqüência maior no que se refere ao passe, deles não
soube fazer uso. Através da dissolução, Lacan, sem dúvida instruído
pelos avatares da obra de Freud, priva sua Escola do monopólio do
rótulo Lacan.
E lógico que a partir daí a Associação Internacional proclame
o fracasso, explique que era um belo ensino porém um fracasso
institucional, e queira fazer crer que hoje exista, de um lado, a
ordem consensual da grande associação e, do outro, a desordem
disruptiva dos lacanianos. Isso tem a simplicidade do maniqueísmo,
mas isso tem também sua falácia. Porque esta ordem é sobretudo
aquela da confusão e porque, por outro lado, a dispersão da EFP
não é a última palavra da aposta institucional de Lacan.
. em torno do ensino de
A verdade é que — Jacques
,—1— Lacan um
------—
. c_: .
passo 01 transposto: as lutas internas do movimento francês che­
garam pela primeira vez a questionar o princípio de unificação
. jonal ^Ue ^reud acreditara necessário à sobrevivência da

iormas provocou
Lvuiousempre
boração modificando a prática instituídas,neles novacrise
todauma ela­

rna. Antes de Lacan, o maior exemplo é sem dúvida o de Melanie

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Klein, a primeira depois de Freud a trazer o novo na psicanálise


com crianças. Que pensemos nas oposições ferozes que se desenro­
laram em torno de sua descoberta das fantasias infantis, nas lutas
sórdidas que se travaram para saber se prevaleceria a sua técnica ou
a orientação pedagógica de Anna Freud. Que não nos esqueçamos
tampouco que nesta época, alguns anos antes da cisão da sociedade
francesa, a própria Sociedade inglesa não evitou a ruptura senão
por um triz, recorrendo, na falta de melhor solução, a uma divisão
aritmética das tarefas do ensino, sendo a conseqüência para os es­
tudantes a de terem de submeter-se à repartição obrigatória e cifrada
dos cursos e supervisões de diversas orientações. E o que se chama
resolver um problema de saber por uma medida política — aqui de
estilo democrático. Quem ganhou com isso? Sem dúvida a estabilidade
da instituição, mas certamente não o consenso e nem tampouco a dou­
trina, o que foi claramente mostrado pelo desenrolar dos fatos.
O mesmo fechamento se manifesta em 195 3, desta vez entre
Paris e Londres, quando se informou a J. Aubry e a F. Dolto, que
começavam a explorar o campo da psicanálise com crianças, que
esta “não existia” na França, e que seria necessário chamar confe­
rencistas de Londres. Será preciso ainda evocar a estranha
marginalidade de algumas prospecções que conseguiram sobreviver
nos Estados Unidos? (cL Kohut, Kernberg etc.).
Quem quiser compreender o que se passou na França pode
bem escrutar a sequência dos acontecimentos, interrogar as maqui­
nações de tal ou qual, e inclusive, não nos privamos disto, pôr em
discussão a personalidade” de Lacan, como se dizia antes que ele
tivesse ensinado aos psicanalistas a falar sobretudo do desejo do
sujeito. Seja qual for a minúcia que ele aí coloque, e sem arquivos
secretos, ele não poderá ignorar o fato maior a partir de 195 3, que
esmaga a significação de todos os documentos da pequena história,
o desdobramento e a ascensão inexorável de um ensino imenso, e de
urn alcance carismático sem igual, tão potente para produzir saber
inédito, quanto para suscitar um desejo de transferência renovado,
bm ensino que, retomando Freud na fonte de sua invenção, não

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COLETTE SOLER

visava nada menos do que reatualizar sua inspiração ra ’


avaliar sua coerência e finalidades, e até mesmo o raCl°n^lsta-
limites e suas não conclusões. Como a Associação que nã
M. Klein senão por um triz — mesmo quando esta não^Í
dúvida nada dos procedimentos instituídos, descobrindo " *
as fantasias transferenciais da crianca teria S0lTlente
ii li j. ■ - S podido ouvir a V02
daquele que lhe dizia que ela esquecera Freud, daquele que pUnha
radicalmente em questão sua prática e sua formação? Como teria
ela podido tolerar este Golias inspirado, que pretendia nada menos
do que uma reforma da psicanálise, tal como ela se tornou sem
Freud? Esta não é uma opinião só-depois: o projeto Lacan estava
confessado, explícito, desde os primeiros passos e, por outro lado
teria sido um contra-senso sonhar com uma reforma interna da
própria Internacional.
Dir-se-á que Lacan, com mais paciência e prudência política,
teria podido sitiar a praça do interior, para nela fazer germinar,
como às escondidas, o germe da renova? Aqueles que em 1963
negociariam a malograda entrada da SFP na Internacional, teriam
sonhado, assim o parece, com esse Cavalo de Tróia à moda nova.
Daí a crer que só o próprio Lacan recalcitrava nisso não havia senão
um passo rapidamente transposto, e desde então... era ele o problema.
Alguém podia assim, de modo amigável, em público, como uma
grande evidência, evocar os defeitos de Lacan, aqueles sem os quais
provavelmente todos estariam ainda no colo. Um outro, bem pena­
lizado, garantia a seu mundo que havia, numa conversa particular,
se empenhado em vão em convencer Lacan a ser mais astucioso que
os obtusos e a reconduzir sua prática aos seus standards. Lacan
cabeça dura, qual! É pegar o problema de esguelha. E quem fará a
triagem entre pensamento torcido e intenção torva?
A IPA não baniu Lacan apesar de seu ensino, como o preten
dem hoje aqueles que lhe tiram tardiamente o chapéu, ela o
por causa de seu ensino. E quanto mais ele era importante, m
inelutável, é lógico, pois, na verdade, se a saída por certo ai
estava em jogo, era apesar de tudo Lacan quem conduzia uma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

era a IPA que estava ameaçada nos próprios fundamentos de sua


transmissão. A via terceira de uma evolução progressiva da IPA sob
0 efeito desse ensino inovador jamais foi aberta. Para dizer a verda­
de eu a acho impensável, precisamente porque o sistema não é in­
coerente, mas de uma lógica que faz bloco.
Esta lógica é fácil de evidenciar nas suas formas de funciona­
mento. A formação, já que é esta a pedra no caminho, ali é hierar­
quicamente controlada pelos já formados. O corpo de didatas dis­
põe do monopólio das decisões em todos os níveis do controle das
capacidades: entrada e saída da análise do candidato, autorização de
exercer, aquisição de títulos etc. Aí nada de original, encontramos
um modelo análogo em muitos domínios, notadamente na medicina.
Aqui porém há uma dificuldade: a ausência de uma doutrina sólida
sobre o final da análise didática. Não se sabe dizer o que é um
analista, mas batiza-se regularmente com um: “Tu és analista”, que
abre as portas da carreira, tendo o candidato atravessado todas as
provas instituídas. Assim o poder longe de ratificar uma compe­
tência objetivável, dissimula seus impasses. Ali onde falta o saber, a
instituição instala a avaliação dos mais velhos. Colegial, ela será
sem dúvida prudente, mas não será por isso mais fundamentada, o
número dos pareceres jamais se igualando às razões.
A impostura — no que tange ao saber — dessa transmissão
simulada se redobra de inconvenientes próprios à cooptação que,
selecionando-a, sempre favorece a conformidade. É alias o que jus­
tificava Lacan quando postulava uma solidariedade entre a ordem
hierárquica da Sociedade dos analistas e a pane da psicanálise. Esta
conformidade é, além disso, reivindicada e inclusive idealizada em
uma doutrina da identificação ao analista e sobretudo da identifi­
cação ao modelo freudiano. Freud advertira bastante aos analistas
de não fazerem de seus hábitos técnicos uma norma. No entanto
des foram elevados ao status de traço intocável de mesmice, atra-
ves do que se esperava sem dúvida que os analistas fossem a lenha
da qual todos se fazem. Dizem-nos hoje que as coisas estão bem
aplacadas desde os anos 1960. Eu o creio, mas que uma lógica se

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degrade não constituí em nenhum caso uma mutaçao de progresso.


Reconhecemos nitidamente nesta organização a estrutura daquilo
ue Freud abordou em I 920: a identificação ideal ao líder condiciona
a identificação recíproca dos membros. E que antes renuncie à carreira
aquele que aí não consente! O Eros do grupo analítico teria este preço?
Lacan não consentiu, não renunciou, vemos o que isso lhe custou.
O paradoxo é que a psicanálise como experiência é heterogênea
a esta identificação grupai: porque ela parte da singularidade do
sintoma, vai exatamente na direção oposta, no sentido de revelar
que se o inconsciente é na verdade um saber, objetivável na decifra­
ção curativa, ele não é todavia nem universalizável, nem totalizável.
Tudo se passa como se os artesãos da primeira Associação analítica,
tomados de terror sagrado diante de uma prática que assedia os
encontros da singularidade última, real, do sujeito, não tivessem
outro fim que o de conjurá-la na imposição de uma conformidade
tanto mais absoluta quanto mais exige de cada um que ele abdique
sua diferença no amor partilhado dos standards. Em suma, justifica-se
isto pela necessidade de impedir o mau uso eventual do poder que
a transferência confere ao analista. De fato, ele deve ser regulado,
todos estão de acordo, exceto que os standards não estão ali senão
corno semblante de regulação. Estavam eles tão incertos quanto ao
que herdaram verdadeiramente de Freud, ou muito pouco marca­
dos em seu ser pela experiência que dele receberam, para renunciar
à idolatria desta marca de convenção? SAMCDA, diz Lacan: sociedade
de asseguração mútua contra o discurso analítico. Para ele, a rejei­
ção dos standards da prática e da formação por Lacan não teve nada
a ver com os caráteres. Ele deu sequência a uma outra submissão da
qual ele foi a consequência.
O problema com os standards não é que eles molestassem a
re fantasia de cada um, é que eles são heterogêneos à operatividade
tica e que, por conseguinte, eles a encobrem e a entravam, dis-
ando sua verdadeira mola. A démarche de Lacan foi visar os
.ntOS ^esta operação, deduzindo do dispositivo inventado
P uas implicações necessárias e delas tirando as consequências

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

práticas. Exemplo prínceps: foi por ter interrogado a psicanálise


com respeito a seu meio, a fala, ter trazido à luz sua função e
construído a estrutura, que ele colocou em causa, como consequência,
a duração da sessão analítica. A inovação técnica está ali subordi­
nada ao progresso da doutrina. Insubmisso às normas do grupo,
Lacan não inventa senão sendo ludibriado da lógica que extrai da
experiência. Não e evidentemente a unica chave de seu work in progress
sobre Freud e sobre todos os seus contemporâneos. Era necessário
também uma vontade, e que, além disso, ele tivesse os meios para suas
ambições. Mas é isso que importa para apreender sua aposta
institucional, esta também deduzida de sua doutrina da análise.
O que então quis Jacques Lacan da comunidade dos analistas?
Não o perguntemos à EFR a desaprovada, mas aos textos fun­
dadores nos quais Lacan depositou sua concepção de uma Escola, e
que guardam intacto seu valor de orientação reguladora. Esses textos,
não muito numerosos, localizados em alguns anos apenas, têm um
status compósito: eles misturam as teses fundamentais sobre a aná­
lise e o analista, as precisões organizacionais e participam às vezes
também do manifesto, por seu tom e sua conjuntura. Contudo as
finalidades são aí ao mesmo tempo muito simples e claramente
indicadas: trata-se de sujeitar a ordem que rege a coletividade dos ana­
listas aos fins da disciplina, para dela servir-se, se for possível.
A palavra Escola já diz muito. Não é Sociedade científica —
porque o status do saber não é aquele da ciência. Não é tampouco
associação corporativa — porque o destino da psicanálise não se
reduz à proteção dos analistas. Escola enfatiza o ensino e o estudo,
subentendendo a transferência, que aí está implicada, às Escolas
antigas, antes do corte da ciência. E já que não sabemos dizer o que
é O psicanalista, será uma Escola de psicanálise, na qual o psicana­
lista estará em questão, e na qual portanto o não analista, analisante
ou não, terá todo seu lugar, se a psicanálise o concerne. O que
objetar?
Daí as indicações de Lacan obedecerem a uma lógica inevitável.
Suas inovações se ligavam a um princípio, a permutação, e a duas

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estruturas, o cartel e o dispositivo do passe. Da permutação das


tarefas de responsabilidade, espera-se que ela quebre a consistência
da hierarquia, que, como pudemos verificar pela IPA, contraria as
exigências próprias à transmissão analítica. Era um remédio de
desespero para impedir tanto as formações de castas da hieraquia,
como os enquistamentos do pensamento. O cartel deve servir ao
trabalho para todos, galonados ou noviços: pois se não há grupo
sem traço unário, mais vale a identificação ao trabalhador analisante
que a identificação ao colégio dos mestres. Quanto ao passe que
fez escorrer tanta tinta, que animou tantas paixões e que deveria
fazer da Escola uma verdadeira escola de psicanálise, ele não é nem
tão retorcido, nem mesmo tão complexo. Ele visa, mais-além do
título que ele outorga, uma nova compilação de testemunhos verí­
dicos sobre a análise que torna possível o analista. Procuramos aí
então o analista não em seu savoir-faire, mas nos deslocamentos e
mutações do sujeito que condicionam seu ser; medimo-lo não
segundo sua identificação conforme, mas segundo a operatividade
da função analisante, e as efetuações que dela resultaram. Disso não
se poderá esperar que a dita didática seja interrogada, devidamente
documentada, caso a caso, e que daí uma elaboração seja depositada?
Sabemos o destino do projeto na EFP A permutação foi ali
uma palavra vã, rapidamente esquecida no ato de fundação e a
Escola teve sua oligarquia — além disso, precária, pois muito pen­
dente do que lhe retornava da transferência a Lacan. Os cartéis
permaneceram adormecidos apesar de algumas veleidades, e houve
mais causadores do que trabalhadores — é verdade que em maio de
1968 havia convencido muitas virtudes, supostas espontaneamente
gestatórias, de uma tomada de fala! Quanto ao passe, ele funcionou...
sob reticência, entre o ceticismo de uns e a oposição franca de
outros, ele não alcançou seu objetivo. No entanto a EFP fez uso do
ensino de Lacan; se não foi para a psicanálise, ao menos foi para
seus membros: ela se autorizou desse ensino, dele fez um abrigo,
uma publicidade, esqueceu-o, denegriu-o, também o consumiu, mas
la carte. Enfim, para dar a ultima palavra a Lacan, ela tornou seu

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

ensino “água de esgoto”. Concluo: a EFP não foi a Escola deste


ensino, tampouco a Escola de psicanálise que Lacan havia concebido.
Entretanto a experiência tem seu preço e merece ser levada a
sério por aquilo que ela revela.
Uma coisa é clara: apesar das indicações de Lacan e contra ele,
e dentro de uma organização de início inteiramente diferente da­
quela da IPA, vimos crescer, como de modo espontâneo, uma tentação
dos analistas de se constituírem em uma sociedade de analistas.
Que se chame isto como se quiser: colégio, associação, confraria, e
mais próximos dos dias de hoje, interassociativo, é tudo a mesma
coisa. Há uma tendência a fazer da psicanálise um objeto de con­
versação. E talvez essa tendência não seja contingente, ligando-se
ao próprio status do psicanalista: os psicanalistas gostam muito de
se reunir para talar da psicanálise; o que não querem manifesta­
mente é serem tidos como responsáveis do efeito de transmissão.
Na IPA, isto é remetido ao automaton dos standards — um modo
como outro qualquer de se lavar as mãos; na nebulosa lacaniana,
fora das Escolas do Campo freudiano, isto se traduziu pela renúncia
em conjunto, por enquanto — sugiro que se possa remediá-lo — a
assumir as aporias da formação dos analistas. Aqui não se quer ter
de conhecer senão os problemas do praticante (CFRP’) — e que o
diferenciará então de todos os “psi”; ali se quer de bom grado um
passe mas sem a sanção de uma resposta (cartéis constituintes) etc.
Assim deixa-se a formação ir ao sabor das marés, cada um se virando
sozinho ao sabor dos encontros de transferência. Esta fuga — no
sentido de uma debandada, como diz Lacan — é uma irres­
ponsabilidade de dimensão coletiva. A psicanálise não é a ciência, o
status do sujeito aí inclui uma hiância irredutível, que condena os
psicanalistas a serem os "sábios de um saber com o qual eles não
podem se entreter ”, dizia Lacan. Pouco importa, eles se entreterão
com outra coisa, e ali onde Lacan não cessou jamais de construir a
teoria desta experiência esburacada, eles tamponarão a fenda
desta vez no sentido do tonel — com suas tagarelices.

N. do T. Centre de Formation et des Recherches Psychanalytiques.

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Pois é claro que quanto menos eles podem se entreter com seu
saber, mais eles querem se associar. A prova foi dada dez anos após
a dissolução: aqueles mesmos que o amargor, a desolação, sei lá
mais o quê, impulsionaram a ir cada um para seu lado, tal como
gato esfomeado, se agrupam novamente; e por quê, senão para se
reconhecerem entre si, e se fazerem reconhecer? E isso a sociedade
dos analistas: uma máquina de identificar socialmente o psicanalista
na falta de não poder fazê-lo analiticamente. A coletividade dos
analistas é afligida por um tormento secreto que transcende as indi­
vidualidades: em seu ato o psicanalista não é identificado, e talvez
isso não seja suportável sem algumas compensações e efeitos de
retorno. Este grande atormentado da psicanálise que foi Ferenczi o
viu bem, ele que muito cedo se interrogou sobre os efeitos da prá­
tica analítica... sobre o analista. “O psicanalista só se autoriza de si
mesmo” sim, com certeza, mas ele ainda quer que isso se saiba e
que sua mensagem lhe retorne do Outro. A organização da IPA,
arrogando-se o direito de batizar o analista e lhe impondo sua iden­
tificação, mascarava este fato: os psicanalistas aspiram a esta identi­
ficação. Eles aspiram a isso tão mais ferozmente quanto mais
estiverem à mercê da investidura da transferência, e sobre a qual
imaginam que ela é condicionada pela identificação — erronea­
mente, pois isso não é tão simples. Desde que, graças a Lacan, o ser
não identificado dos analistas foi descoberto, tudo é bom para eles:
a Sociedade dos analistas, é claro, o apelo do Estado para que este
o distinga — é o cúmulo — a mass media a todo o vapor, e isso só
para começar. Temo bastante que aqui, como em cada caso, seja o
erro do julgamento que não perdoe, e que de tanto lisonjear o Outro,
os psicanalistas não venham a se encontrar na sopa dos psi .
O que no momento está em jogo é o seguinte: será a Socieda­
de dos analistas ou a Escola de psicanálise. Uma vez mais na história
e desta vez há numerosos nas Escolas do Campo freudiano -
existem aqueles que estão ainda com Lacan, pela Escola de Lacan. E
isso graças à indução de seu ensino, operando doravante mais-além
de sua presença.

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O EFEITO JACQUES LACAN*

Ha um efeito Jacques Lacan na psicanálise. Havia também um


nas psicanálises que ele dirigia. Eu passei pelos dois e às vezes me
surpreendo de não reconhecer o analista que conheci naquele de
quem escuto falar. Acho que sei por quê.
Para aquela que, sob meu nome, bateu à sua porta em dezem­
bro de 1969, Lacan já era um ponto de interrogação e ela foi lá ver
de perto. Ela tinha outras razões, é claro: eu não estava sem sinto­
mas e há muito tempo a psicanálise era para mim uma causa à espera,
mas de fato sua questão prévia de transferência não estava longe da
nossa: Lacan, o que você quer? Ela confiava em seu texto, em seu
talento, logo depois em seu savoir-faire, porém restava ainda saber,
segundo ela, o que valiam seus fins e se estes justificavam o nome
que ele fizera na psicanálise. Não era a transferência positiva, vocês
o terão percebido. Sua desconfiança não demandaria nada menos
do que isso: analista, você o é de verdade, ou você não passa de um
mestre mais astucioso que os outros?
Permitam-me evocar as primeiras surpresas desta inocente. Na
ocasião da primeira entrevista, foi a de encontrá-lo muito pouco
surpreendente, Lacan. Ela ouvira alguns ecos de uma subversão, ela
supunha o aventureiro do pensamento, sei lá, ele lhe falou com
bom senso. Ela esperava uma lenda, encontrou um homem como
todo mundo, nada apressado, paternal tanto quanto se possa almejar,
incitante e gentil, tão gentil, muito gentil! Ele lhe tirou o manto,
ele a fez sentar precavidamente na pequena poltrona etc. Também
realista, tanto quanto um profissional do recrutamento, ele se
informou metodicamente sobre sua situação familiar, sobre sua pro­
fissão, sobre seus diplomas. Implicado, ele a interrogou deta-lha-
damente sobre o que dele ela lera. O que ela pensava a esse

L effet Jacques Lacan". Publicado em Connaisstçvous Jacques Lacan?. Paris,


Seuil, I992.

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COLETTE SOLER

o cprá aue ela conhecia sua filha, Judith?... e outras coisas


respeito, e sera qu , , r j i
Enfim, o incrível, ele acabou fazendo a ela uma promessa
m1 nt.e ela evidentemente não lhe demandava, de pensar em um
pequeno dilema que ela lhe havia submetido e de dar para ela a
solução na próxima entrevista. Em poucas palavras, ele a adormeceu.
Resultado: ela não pensara estritamente em mais nada até passar de
novo por aquela porta.
A segunda surpresa. Ela nem tinha chegado até sua cadeira —
que no entanto ficava a dois passos — quando, à maneira de um
despertar, ela fot colhida pelo clarão de um simples. E então? ,
definitivo. Como por milagre, ela respondeu vapt-vupt. Na falha
temporal do instante de estupor, uma frase se fez ouvir de sua boca,
frase que ela não havia pensado, que de fato era a última que ela
teria pensado em lhe dizer, que apenas proferida, todavia deixava
em evidência o que ela tinha vindo lhe dizer. Ele avisou seu recebi­
mento, com uma grande risada.
Esta sequência memorável, embora seus meios tivessem sido,
para dizer a verdade, minimantes, durara em torno de um minuto.
Ela ali experimentava pela primeira vez, sem o saber ainda, o que
quer dizer bater do exterior à porta do inconsciente. Ela descobria
que alguma coisa respondia na surpresa e que, para ela ao menos, o
desconhecido tornava-se palavra, fórmula. Isso contudo não podia
ser antecipado; tampouco generalizável. Durante um tempo, cada
vez que ela se aproximava de seu analista, era habitada pelo pen­
samento seguinte: o que ela vai dizer? Ela lhe disse isso. Ele perguntou:
Então, o que ela diz?”, e desta vez ainda, ela o disse, aprendendo
ao mesmo tempo. Todos os primeiros anos foram como a marcha
ç da das mensagens emitidas sob a surpresa que, por sua série,
tal como as pedras do Pequeno Polegar, desenhavam um percurso
araCSCd mec^a 9ue ele se traçava. A vontade ali não servia
mPouco o pensamento, pois ela não pensava. Quanto
sem dúvid C C mensagens inauditas: houve algumas,
-mas não era o caso geral; a surpresa era dela dizer mais
ao que era dito. r

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Houve outras dessas reviravoltas inesperadas, e mais complexas


escolhi a mais simples, no início — mas não precisava muito
para que Lacan, já objeto de uma questão, se transformasse em
objeto de... — atenção ao termo — admiração. Não o tomo no
sentido moderno que implica a idealização, mas no sentido em que
Descartes dele faz a primeira das paixões, que precede o amor e o
ódio e que participa do espanto em face do desconhecido. Com
toda certeza, esse objeto fora do contrato não era freudiano e no
entanto eficaz — ela às vezes experimentava seus efeitos até a
alegria. Aliás, o desconhecido em questão não era somente dele, já
que ele não se tornava admirável senão por ter sabido arrancar uma
resposta imprevista. Entretanto ela ficava de olho nele, eu o disse,
medindo-o por seu nome de analista — deve-se acreditar que ela
tinha uma idéia do que isso devia ser. Honesta tanto quanto ino­
cente, disso ela o advertiu, nesses termos momentâneos: “Eu per­
cebi ’, ela lhe diz — a respeito de uma confidência que ela lhe havia
feito e que era suscetível de provocar o analista na junção do ser e
do semblante — "que neste ponto eu lhe esperava na esquina, a
curto ou a longo prazo”. Ela queria dizer no final da análise. Não
se ofuscando por tão pouco, ele lhe respondeu muito gentilmente:
Isso não me escapou, mas isso teria podido escapar a você”.
Encontro portanto marcado. Enquanto esperava, de tanto vigiá-lo,
ela se instruiu.
Ela teve todo o tempo de verificar pela repetição com que
agilidade inventiva ele sabia causar as surpresas do dizer através das
surpresas do objeto. Quando se tratava de provocar a coisa, Lacan,
mais do que artista do verbo, igualava-se sozinho a uma verdadeira
comtnedia dell’arte. Sabendo o risco das palavras cujo alcance é incal­
culável, ele se punha mudo. Exibindo subitamente uma máscara de
furor, de hilaridade, de sedução, de contrição, um braço levantado
pai chicoteador1, esse Lacan da careta, do gesto, da silhueta, com
todos esses trejeitos de mímica silenciosos, não era farsante: ele

1 • N. do T. No original, “nn bras levt dcptrtfouettard expressão que faz referência


a urna personagem lendária munida de um chicote, com o qual ameaçava as crianças.

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cutucava o outro, como se diz, fazendo-o perceber, como por detrás


do vidro, no lugar do objeto desconhecido, o logro próprio para
despertar a fera. Era provocação — caça-fantasmas. Porém calculado
o suficiente para que o lugar da ignorância ali fosse respeitado.
Procedendo como que por ensaio e erro, segundo a resposta, ele
também estava pronto para deixar escapar uma pantomima e para
brandi-la, sem inércia ou obstinação, pois ele não buscava levar a
melhor. Assim eu o vi, por exemplo, estacar súbita e claramente
uma de suas famosas fúrias e rematá-la com uma frase, categórica
mas tranquila, no exato momento em que ela lhe significava que o
verbo valia tanto quanto sapatear de raiva.
Deste Lacan Fregoli2 3fizeram chacota, tanto da parte de seus
analisantes, que com isso jubilavam, como da parte de seus difama-
dores, que com isso se escandalizavam. Mas se ele alegava o falso’,
era para funcionar realmente como a causa envolvida pelo imaginário.
Não se reteve senão os ares de provocação, lá onde era4 o invocador
do dizer que operava.
No entanto não é esta arte do invocador que, aos meus olhos,
dava o tom da análise com Lacan. Seu alcance não era senão preli­
minar e suas manifestações de fato muito pontuais. Sempre me
surpreendi que se fale tão pouco — e ele próprio em primeiro lugar —
daquele que, ao contrário, respondia sempre do mesmo modo. Quero
falar do Lacan monótono, repetitivo, economizando os meios.
Esse Lacan tratava ox do desejo através da... certeza atualizada.
Não a certeza por vir para o fim suposto, mas aquela já lá, sem
esperar o amanhã.
Operando por exclusão da questão, ele reduzira seus meios a
duas intervenções maiores: no nível do tempo, a interrupção de

2. N. do T. Alusão ao famoso ator italiano Leopoldo Fregoli (1867-1956 ,


transformista extraordinário, q que ...
criou cenários em que representava sozinho
até sessenta papéis diferentes, tanto masculinos quanto femininos.
3. N. do T. Alusão ao ditado popular “plaidtr le fauxpour savoir le vrai — alegar
o falso para incitar o outro a se declarar”.
or*ginal, là ou c'etait — “lá onde isso era", provável alusão à
frase de Freud “Wb es War [...]”.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

sessão, e no nível do verbo, a aprovação assertiva. Os famosos “bem


muito bem, absolutamente formidável” com suas sutis gradações e
entonações, que tinham como efeito unilateralizar a questão do
único lado da perplexidade analisante, nos quais proliferava o “o que
quer isso dizer?”. Pois, afinal, você começava uma frase, bem no
início, quando ele ainda não sabia nada de você: “Minha avó materna
era muito bonita... . Ele a interrompia prontamente com um: "Com
toda certeza’. Como não se perguntar de onde ele sabe e de onde
vem essa certeza? E depois essas felicitações que pareciam atribuir
mérito aos dizeres mais estranhos a você mesmo! Para esta de quem
eu lhes falava, era um quebra-cabeça. No entanto ele a ajudou a
compreender. Um dia, após tê-la especialmente aprovado com um:
“De fato, está muito, muito bem”, ele barrou-lhe a saída. “Você
está de acordo? perguntou ele. Com um encolhimento de ombros
ela sussurrou: Eu não sei . — “Pois bem, eu, disse ele, eu acho que
você está muito bem, saiba disso”. Ela acabou por perceber que
todos esses julgamentos não tomavam a medida de seu eu (moí) de
vaidade, mais do eu (jc) da enunciação, do qual ela não sabia no
começo nem o que ele era, nem o que ele dizia, nem mesmo se ele
iria dizer.
Caindo sob o golpe dessas asserções e cortes igualmentes
categóricos, não havia meio de supor um parceiro animado de uma
questão, ou mesmo de um desejo de saber... a verdade. Pronto para
apreender a furtiva quando ela se esquivava, Lacan o analista nada
curioso, que às vezes interrompia a confidência antes da confissão,
que uma vez respondeu ao “Eu não sei do analisante com um fi­
losófico “Não nos aflijamos, nós o saberemos dentro de pouco tempo ,
não era o cão de Diana. O automaton de suas sanções realizava uma
performance repetida: fabricar o risco com a fala única e elevar à
aposta o que teria podido não passar de tagarelice. Isso não di
nada das durações relativas ao cronômetro, os tempos de silêncio
podiam inclusive prevalecer e, alias, cada vez mais passado p_
meiro turno, mais a alternativa era esta: que isso responda o

151
r
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Esta prática anti-wittgensteiniana por excelência era inteira­


mente voltada a extrair o ‘‘que se diga” do esquecimento no qual a
causa se dissimula. A esse respeito, Lacan era um extremista. Nada
a ver com o revolucionário, mas com a coragem de uma lógica im­
placável, que impelia às últimas consequências as implicações prá­
ticas da divisão do sujeito. Essas implicações são, se quisermos,
inumanas, mas subversão nao era para ele uma palavra vã.
Analisante de Lacan, você estava interditado não somente de
preenchimento, mas dos rodeios da reflexão, da glosa só-depois.
Interdito de elocubrações e redizeres por uma técnica revisada da...
associação livre interrompida. Assim eu imaginava, sob o modelo
de muitas sessões que conheci, uma sessão do Homem dos ratos
corrigida por Lacan. A quarta, por exemplo. Ela começa assim:
“Decidi lhe contar o que considero muito importante...” Esta sessão
teria podido se interromper aí por um: Está bem, muito bem mesmo,
até amanhã”. O analisante, amputado de sua intenção de dizer,
frustrado em seu propósito de explicar, também encontraria aí creditada
uma mensagem já lá, que ele não sabia ter dito, a do consentimento
ao dispositivo que ressoa na decisão de seu eu (moí). A não ser que
o corte, mais radicalmente ainda, torne somente presente a opaci­
dade do puro “eu” (/>) cortado de todo predicado.
No entre-duas-mensagens assim produzido, entre o relato
perdido no instante em que é enunciado, e a enunciação que por
pouco se perdia, estava oferecido ao sujeito tocar com o dedo sua
divisão em ato, enquanto a técnica inumana se elevava a... uma
outra oblatividade. De fato, não era somente concedido ao sujeito
ver atualizar-se, como eu disse, o desconforto do “Cbe vuot? ou o
horror de um efeito castrador. Paralelamente e no mesmo momento,
operava-se de modo curioso o que chamarei de uma transfusão de
certeza, passo a passo da produção. Não disse de saber — nesse
entido, ao contrário, que desoxidação! Era uma revirada radical,
balo do ser, porém alguma coisa ali se assegurava: a vacilação
dências primeiras desembocando estranhamente na
consumpção das perplexidades.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Há certamente muitas facetas de Lacan porem organizadas.


Ele não era um caleidoscópio. O analista que pagava com seus ve­
redictos em série é aquele que, aos meus olhos, produzia o mais
importante do efeito Lacan, ele que conseguia arrancar o sujeito do
gozo do inconsciente, tirar deste último a certeza de suas marés.
Analisante de Lacan, encontrei ali a fixidez de uma determinação
taciturna, ausente do semelhante, que anulando todo narcisismo,
reduzia a pessoa à sua tarefa de analisante; mais do que um desejo,
uma vontade não conhecendo senão seu alvo, e como que indiferente
às próprias particularidades de que no entanto ela tratava. Sim, o ope­
rador era indiferente ao operado, desde que a operação acontecesse.
Estranhamente, essa indiferença estava em contraste completo
com sua presença que, durante o tempo em que ele nô-la concedia,
era toda nossa. O implacável parteiro do ser, ele não era inumano,
muito ao contrário, generoso e do mesmo lado que seu analisante.
Sensível à incurável condição do fala-ser, com alguma coisa como
um tino extremo das diferenças, um senso de detalhe concreto
inigualável, atento, malicioso, paciente mesmo, e receptivo às afli­
ções do sujeito, que ele sabia aliviar com um toque cômico. Não
exaltado: eu o vi muitas vezes induzir-me à prudência, jogando o
jogo do discurso corrente, como ele o disse, sustentando se fosse o
caso, eu o sei, os casamentos, a maternidade das mulheres, as ambi­
ções mundanas etc. Esse Lacan, Jacques, que deixava transparecer
algo de seus gostos e de suas rixas, presente em sua particularidade
única de homem não comum, contava também: creio que ele permitia
suportar o outro, mas era este último que operava.
Minha pergunta do começo terá portanto encontrado sua res­
posta. Não posso ignorar que Lacan foi a causa real de minha aná­
lise. Quero dizer, não somente o sustentador do lugar transferencial
de uma causa a repetir, mas deveras, de uma causa a produzir o
novo. Adveio o que advém das verdadeiras causas, aquelas que mu­
dam alguma coisa; à medida que produzem seus efeitos, elas se
desvanecem. Assim eu o deixei um dia como se deixa um despojo.
Como meu analista, isso estava determinado, ele com isso concordou,

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COLETTE SOLER

mas não, é claro, para Lacan o ensinante c tampouco para a psicaná-


lise.
Em resumo, o que eu deixei aos três Lacan de que lhes falei?
Ao primeiro, minha admiração — desta vez, no sentido moderno
da palavra por seu unhei tnlich talento de invocador. Ao segundo,
ao extremista da subversão, meu respeito sem partilha. Para o ter­
ceiro, o da presença, um raminho de afeição.

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THEODOR REIK, 1888-1969:
UM ANALISANTE MODELO*

Em 1948, Theodor Reik publica Escutar com a terceira orelha, a


obra mais importante do período americano. É um manifesto
"freudiano”. Ele se dirige aos psicanalistas do futuro, pois os con­
temporâneos, os da Sociedade psicanalítica de Nova Iorque, não
quiseram como par esse não médico que era Reik. Na ocasião de
sua chegada aos Estados Unidos em 193 8, momento da ascensão
do nazismo, com seus alguns 25 anos de prática analítica, suas cerca
de I 5 obras já publicadas, suas inúmeras comunicações e a reco­
mendação expressa de Freud, Theodor Reik ficou às margens do
grande corpo da Associação internacional.
Dez anos depois, cm 1948, ele reagrupou à sua volta outros
esquecidos pelo sistema. Tinha alunos, uma escola, uma revista —
mas há tantas nos Estados Unidos... Não era sem notoriedade: ele
publica, dá conferências, aparece na televisão — porém ele não é
uma alternativa à Psicologia do Ego. Está irremediavelmente fora
da série, reduzido a encarnar a figura impotente da protestação.
Tem então sessenta anos e não sabe que ainda lhe restam 21 anos
de vida. Ele conclui seu livro com um capítulo intitulado Adeus, no
qual diz o lugar em que se colocou: ”Nós representamos o passado
da psicanálise, suas primeiras lutas heróicas, suas primeiras glorio­
sas vitórias”. É verdade. Por volta de 1920, em Viena, Reik era a
um só tempo um pioneiro da psicanálise, uma personagem e uma
aposta. Quando morre em 1969, ele não passa de um... anacronis­
mo na grande América do progresso (!). Foi seu destino. Tivesse ele
ah dado de si — alguns acreditam delicado calcula-lo disso não
seria senão mais paradigmático.

Theodor Reik, 1888-1969: un analysant modele . Publicado em OmicarP, n. 3 3,


abril-junho de 1985, p. I6O-I67.

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COLETTE SOLER

De fato, Reik permaneceu sempre um psicanalista... “do antes-


Guerra”, testemunho do jovem que ele foi e que ama apaixonada­
mente. Sob o abrigo da associação livre, ele conseguiu nos transmi­
tir seu auto-retrato: o de um homem que foi contemporâneo dos
maiores revolvimentos do século — a subversão freudiana, a sinistra
revelação do nazismo, as transformações do pós-Guerra — e que
nunca mudou. Ele nos toca assim como nos comovem as velhas
fotos, aquelas para as quais ainda se posava. Ele também nos enfa­
da, dizendo sempre a mesma coisa e — pior — sempre do mesmo
jeito, interminável. No entanto a voz desse testemunho cristalizado
nos importa, pois sua insistência soube tornar presente nos Estados
Unidos a parte perdida do ensino de Freud.
Entre Reik e a psicanálise houve um encontro. O impacto se
deveu ao momento. Reik estava sob o golpe da morte de seu pai e
dos efeitos estranhos que se seguiram para ele.
Primeiro clichê: jovem órfão, pobre e... doente. De fato, Reik
pertencia a uma família judia que o alimentou de música e de con­
trovérsias religiosas, mas cujos recursos eram muito limitados. Aos
I8 anos — era o ano de 1906 — no momento em que acaba de
terminar seus estudos secundários, vê-se sem pai, sem dinheiro,
confrontado em seguida à depressão de sua mãe e à irrupção nele
próprio do insensato. Ele deu testemunho de suas auto-acusações
aberrantes, de suas incoercíveis mortificações ascéticas e da
irrepreensível compulsão que lhe impôs ler “a obra de Goethe na
edição de Weimar, ou edição Sophia, que comporta 55 tomos de
obras literárias, 13 tomos de artigos científicos, 15 tomos de diário
e cinquenta tomos de correspondência” (1949, p. 19), sem contar
as compilações de conversação e as obras críticas. No entanto ele
fez seus estudos de psicologia: estudos de psicologia experimental.
O primeiro choque nesse contexto foi “A interpretação dos sonhos
(I9OO). Ele ali encontrava um método para tratar o insensato e
responder ao por quê? . Daí saiu sua tese Flaubert e a tentação de
Santo Antônio, seu primeiro ensaio para abordar, sem a interposição
de ninguém, o que ele ja encontrara: “o paradoxo do sofrimento

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

voluntário e do prazer a ele associado” (1940, p. 19). Isto ocorreu


em 191° na ocasiã° seu primeiro encontro com Freud —
j^eik tinha então 22 anos — e de sua entrada no grupo vienense.
O segundo choque foi Totem e Tabu (1914), do qual assistiu a
primeira leitura, na casa de Freud, com os que participavam das
reuniões das quartas-feiras da Sociedade psicanalítica de Viena. Ali
Reik encontrava a resposta. Sem protelar, disso produziu — a partir
de 1913 —o texto “Do efeito dos anseios de morte inconscientes” (1914),
ensaio de auto-análise do estranho comportamento de seus 18 anos.
Esta primeira resposta aplicada foi seguida de muitas outras.
Para Reik, esse foi um período de entusiasmo e de achados.
De amizade também. Ele evocou as noites de discussões exaltadas
com Otto Rank e Hans Sachs — o dito trio de Berlim — nas
quais, na esteira de Totem e Tabu ’, um campo novo parecia se
oferecer à psicanálise. O ritual: psicanálise dos ritos religiosos, publicado
em 1919 com um prefácio de Freud, e que reagruparia quatro estu­
dos feitos entre 1914 e 1919, foi em seu tempo uma obra de van­
guarda. Aliás, ele recebeu o “prêm 10 de honra , fundado em 191 8
por Freud, em homenagem aos trabalhos de peso publicados ao
longo do ano. De golpe, Reik foi consagrado como “uma das maiores
esperanças” do momento.
Segundo clichê, 1920: Reik, personalidade da sociedade psi­
canalítica. Graças à ajuda financeira de Freud, Reik faz análise com
Abraham em Berlim — mais tarde, ele fará uma segunda, mais breve,
com Freud. Ele exerce a psicanálise desde 1914. sua cultura é única
no meio e suas contribuições, múltiplas. Em 1918 é ele quem subs­
titui Rank no secretariado da Sociedade Vienense e a partir de 1920
de ensina na famosa policlínica fundada em Berlim por Eitingon
para o tratamento e formação psicanalíticos.
Entretanto o que se seguiu foi decisivo para sua personagem,
a do analista não médico. Em Viena, a partir de 1914. Reik não era
o único analista não médico, não mais do que nos Estados Unidos
depois de 1938. Lembremo-nos de Sachs, de Rank, de Bernfeld, de
Rris ou de Anna Freud. Todavia, curiosamente, foi ele a quem Freud

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COLETTE SOLER

precisamente desaconselhara os estudos de medicina, que disso se


tornou símbolo. E por duas vezes, pois Nova Iorque 1938 não foi
senão a reprodução do episódio vienense: Reik teve a honra de aí
ter o primeiro processo instaurado contra um analista não médico
pelo exercício ilegal da Medicina. O suporte de Freud lhe foi uma
resposta, "Psicanálise e Medicina”, porém o debate que o opunha,
quanto a este ponto, a muitos analistas, sobretudo àqueles da Asso­
ciação americana, permaneceu em suspenso sem que ele tivesse
conseguido fazer prevalecer seu ponto de vista. Para Reik, a honra
foi antes custosa, pois, ganho o processo, sua situação de praticante
permaneceu precária, ao menos em Viena, e a ele não restou senão a
nostalgia de ver Freud novamente interceder por ele. As desgraças
do tempo que em seguida presidiram sua errância — Viena, Berlim,
Haia, Nova Iorque — lhe deram infelizmente uma nova ocasião.
Ele ali unicamente verificou que a Internacional mudara de mãos:
‘‘Que má-sorte lhe empurrou, justamente você, para a América?”,
pergunta-lhe Freud em junho de 193 8. “Você deveria ter sabido o
modo amável com que os analistas profanos são lá recebidos por
nossos colegas, para quem a psicanálise não é nada mais senão uma
das servas da psiquiatria”. “Estarei pronto a lhe ajudar, do momen­
to em que for investido da onipotência do próprio Deus, ainda que
por um breve momento. Daqui até lá, você deve continuar a penar
sozinho”1.
Sem dúvida Reik teria podido encontrar algumas conciliações.
Ele não o quis, devotando-se doravante a ser o memorial do mestre
morto.
A obra de Reik tem assim um pé na história: o da polêmica.
Nesse sentido, os dois textos mais importantes são: O psicólogo
surpreendido (193 5) e Escutar com a terceira orelha. "Grito de alarme
(1966, p. 3 55), diz Lacan. É Reik com Freud que, “através de cem
exemplos vivos (idem), pleiteia a decifração, as surpresas do in­
consciente, a interpretação de efeitos incalculáveis contra a analise

3 dejU,hoe 13 de outubro de 1938, respeccivamente,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

sistemática e planejada das resistências; que relembra que “os pro­


blemas técnicos não são simplesmente técnicos” (193 5, p. 3 5),
que não há “mapa para o inconsciente” (ibid., p. I I 6), que a par­
ticularidade inesperada de cada caso deve regular a intervenção do
analista, que este não é um mestre, mas um intérprete e, enfim, que
na análise os objetivos terapêuticos permanecem subordinados.
Para nós, sem dúvida, o retorno a Freud operado por Jacques
Lacan fez desbotar o alcance dessas observações, remetendo-as ao
bê-á-bá da técnica freudiana. A fraqueza de Reik polemista foi ter
somente pleiteado a verdade esquecida contra o saber um tanto
importante da doutrina analítica. Na falta de um saber inovador,
isso não passou de um explosivo molhado. Nestes termos, Reik
não terá sido senão o sintoma, no sentido em que o sintoma traz a
verdade, porém como verdade impotente: o sintoma da psicanálise
nos Estados Unidos. Sem dúvida isso é melhor do que uivar com
os lobos.
Mas que discípulo afinal era Reik? Resposta: o de 1912, a
quem foram revelados, num deslumbramento, o método freudiano
e a resposta de “Totem e Tabu”.
Nesta obra prolífica uma única mensagem: no cerne do homem
o ódio, o do pai. Que ele decifre ritos religiosos (1914-1919), que
estude, quarenta anos depois, o mito bíblico da queda do homem e
o sacrifício do Cristo (1957), que ele interrogue o misterioso
masoquismo (1940), que ele questione os sintomas (1926-8) ou
que se confesse (1949 e 195 3), sempre e por toda parte o assassi­
nato sonhado dá a chave última desse grande clamor de culpa que
se eleva tanto da cultura como da neurose. Assim todos os livros
não são senão um único livro. Rituais e sacrifícios se decifram como
formações de compromisso nas quais se condensam o assassinato
original, sempre e a cada vez metonimicamente perpetrado, e o cas­
tigo portanto sempre e novamente motivado... O masoquista, sem
distinção de neurose ou de perversão, se identifica por uma fórmula
última — ele “perde todas as batalhas, exceto a derradeira que
consigna sua verdade: o sadismo e o desafio rancoroso. Quanto ao

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COLETTE SOLER

Sintoma, ele maneja a culpa pela autopumção e designa assim, tam­


bém ele, o crime latente.
Essa simplicidade rústica não vai sem algumas distorções.
De “Totem e Tabu” Reik reteve o assassinato, mas não sua correla­
ção à privação de gozo. Assim ele contesta que o interdito que
estrutura a relação ao sexo seja original. A falta sexual lhe parece
uma racionalização segunda da única falta verdadeira, a qual encobre:
o assassinato. A tal ponto que A criação da mulher — é um título de
Reik — é pensada como uma invenção astuciosa do homem, sim­
plesmente destinada a encobrir o inconfessável que no entanto não
cessa de se confessar. Para Reik, a psicanálise é uma vasta investigação
policial. Nesta procura-se a falta, não o culpado que se tem; nesta
encontramos o ódio do pai, não a mulher. Quanto à segunda tópica
de Freud, no supereu, neste mais-além do princípio do prazer, nesta
pulsão de morte, com os quais a ego-psychology se embaraçou a ponto
de ter que evacuá-los, Reik, é preciso bem constatá-lo, não viu senão
fogo. E certo que ele se apropria do termo supereu, apenas lançado
por Freud, para dele fazer a causa universal da neurose2; todavia
isto se dá pelo fato de que ele crê reconhecer no supereu, sem mais,
o agente da auto-punição... do assassinato original. A pulsão de
morte não é para ele senão um outro nome da culpa; o masoquismo,
uma versão do sadismo; e a reação terapêutica negativa, uma fase
positiva do tratamento. Esta com certeza se manifesta aparente­
mente como “uma mudança para o pior” (1926-8, p. 361), mas
não é senão uma última defesa, um último refúgio do sujeito antes
que o ódio se diga.
Ha uma conseqüência: para Reik, o único problema técnico é
a decifração do inconsciente. Por aí, ele foi freudiano em um tempo
e em lugar pouco propícios, mas deixa também de lado, como prá­
tico, tanto as questões levantadas pelo manejo da transferência
quanto os problemas do final da análise, não se embaraçando, por
exemplo, nem com as dificuldades da “técnica ativa”, nem tampouco

2. E a tese de Besoin d’avouer (1926-8).

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

com o impasse freudiano sobre o complexo de castração. É que


para ele, desde 1912, o mais real do isso ja havia passado ao incons­
ciente, e inclusive a consciência, pela voz de Freud ao nomear o
ódio do filho.
Assim, o que Freud não pôde abordar senão pela ficção, pelo
meandro do mito, se reduz à banalidade de um enunciado único,
moeda corrente de toda decifração. Psicopatologia da vida cotidiana,
manifestações sintomáticas da neurose e sublimações da cultura
revelam um mesmo segredo gasto, que Reik procura incansavel­
mente, com grandes custos de associações, e do qual ele não cessa,
para nossa surpresa de leitor, de se surpreender sempre a cada vez, e
com muito contentamento. Aqui nenhum meio-dizer. Tudo faz sen­
tido, mas sentido único. Por milhares de páginas, essa obra sem
suspensão, como um disco arranhado, percorre sempre o mesmo
sulco fechado’, não sem que aí se deixe ouvir que ali se aloja um
gozo não interpretado.
Impossível não falar de Théodor, pois se a obra tem um pé na
história, ela também tem um na intimidade fora-do-tempo de Reik.
A autobiografia, dita por ele próprio psicanalítica, envolve o con­
junto de suas produções. As exortações de Freud nada conseguiram
aí: Freud gentilmente insistiu que ele botasse a viola de suas con­
fidências no saco para não misturar os gêneros, deplorando ser incapaz
— analiticamente falando — de mudar suas disposições.
Reik endereça suas questões a si próprio e também administra
a resposta. É sempre a mesma. O interesse não está portanto ali,
mas antes no rigor de uma démarche sempre repetida, idêntica a ela
própria. De início, uma pergunta de juventude. Por exemplo: por
que a mortificação voluntária e a obsessão goetheana? (1906), o
que significa o mito do Cristo salvador? (191 3)» e por que ter sido
assediado em 15 de dezembro de 1925, com a notícia da morte de
Abraham meu analista pelos "primeiros compassos do último movi-

3. N. do T. No original, sillon. Utilizamos aqui o termo musical proposto por


Pierre Schaeffer para a gravação de uma célula musical em sulco circular a fim de
possibilitar ao compositor a indefinida repetição do objeto sonoro.

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COLETTE SOLER

mento da segunda sinfonia de Mahler”? Em seguida a resposta,


porém retardada de uns trinta ou quarenta anos. Na ordem: Frag-
mento de uma grande confissão em 1948; Mito e culpa, 1957; Variações
psicanalíticas sobre um tema de Gustav Mabler, 195 3 - Um verso de Goethe
patrocina esse movimento bifásico: “Tarde ressoa, o que cedo soou”.
O que explicitamente ressoa para Reik é de fato a resposta já ah
desde 1912, e que aliás constituíra o objeto de seu primeiro texto
autobiográfico em 1913. Mas então por que essa demora? As da­
tam o dizem e Reik disso não faz mistério, oferecendo-se de bom
grado e com os pingos nos is como ilustração da neurose obsessiva:
as datas são todas correlativas à morte do mestre que, segundo o
caso, se chama Freud, Abraham ou o pai.
Mas o que Reik fazia no intervalo? Ele trabalhava, é claro, e na
resposta, porém com obras de “desvio” — seu estudo sobre Goethe
(I929)4, suas reflexões sobre a música, suas imensas pesquisas sobre
Gustav Mahler, seu trabalho sobre o masoquismo etc. Excetuando-se
o Ritual, cuja realização foi mais ou menos contemporânea de sua
análise, todos os trabalhos de Reik são englobados no parêntese de
sua auto-análise. Mesmo suas obras mais técnicas, o Psicólogo surpre­
endido e Escutar com a terceira orelha, são para ele ocasião de desenvolver
suas próprias formações do inconsciente, em nome do que ele crê
ser a via aberta por Freud “com os capítulos auto-analíticos da
Interpretação dos Sonhos’ e da Psicopatologia da vida cotidiana”
(1949, p. 388). Nesse tempo de suspensão da resposta, Reik se
empenha na associação livre com um zelo que roça a paródia.
Os por quê? pululam, cada pensamento, por ser este e não aquele
outro, sendo de ocasião. E por que então tal método, tal imagem,
tal termo e em tal momento etc.? Aí Reik esquece que, na selva das
associações livres, Freud com freqüência tomava as vias transversais
para desembocar direto sobre os “pensamentos” que dela se des­
tacavam. Porém sua aplicação de discípulo não poderia tolerar nenhum
atalho e devemos seguir minuciosamente cada articulação, o menor

4. Publicado em 1929, no tomo XV da revista Imago.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

esquecimento, ainda que da impressão mais evanescente, arriscando


deixar sucumbir no abismo do recalque o mais substancial dessa
preciosa atividade mental que portanto se deve, ainda quente,
depositar integralmente sobre a folha de papel.
Pois bem, com todas as suas boas intenções demonstrativas,
essa técnica impele ao absurdo, atingindo o grotesco. Eleva-se daí
um efeito de derrisão certeiro, que joga evidentemente para escan­
teio a fidelidade, no entanto tão sincera, de Reik. Para o leitor ino­
cente, não advertido, há um resultado que a menor investigação
pode confirmar. Digamo-lo sem preocupação de estilo polido e nos
termos apropriados da estrutura: Reik o enfeza5. Mas com autenti­
cidade, o que o salva.
Reik é um analisante impenitente. Será preciso dizer auto-
analisante? Antes analisa-se não com seus leitores esporádicos, que
eventualmente recusa, mas com a posteridade, intérprete pouco
incômodo por definição, e cuja paciência infinita deixa o obsessivo
entregue a seu único mestre, o olhar da morte. Reik não o deplora
pois — eis aí uma confissão — “o que você esconde de você mesmo
tem uma íntima qualidade quando você o descobre sozinho, a qual
lhe escapa se alguém faz você descobri-lo (1976, p. 52).
É portanto sem arrependimento que Reik deixou de ter inter­
pretação. Ele seguiu o conselho de Shakespeare: Vai em direção a teu
seio, / bate, e pergunta a teu coração o que ele sabe (ibid., p. 70).
Apenas por isso, ele terá, mesmo assim, merecido bastante.

5. N. do T. No original, “Reik 1’emmerde”. Em francês, o verbo emmerder significa


aborrecer, enfadar, chatear, ser maçante, e também encher de merda. Traduzimo-lo
por enfezar, que guarda os dois sentidos: encher de fezes e enfadar demasiado. Cf.
MORAES SILVA, Antonio de. Diccionario da língua-portugueza, tomo I. Op. cit., p.
693.

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FERENCZI, DERNIER CRI*1

O Diário (19 3 2)2 de Sándor Fercnczi enfim está publicado


entre nos. Ele precede de pouco a edição de sua correspondência
completa com Freud e nos chega logo após o último tomo de suas
Obras completas, já traduzidas para o francês pela equipe doCoq Héron,
da qual faz parte Judith Dupont, responsável, depois da morte de
Michael Balint, pela publicação dos trabalhos de Ferenczi.
Esta tradução é tão excelente quanto aquelas que a precederam.
Desse Diário feito de pedaços justapostos, incompletos e nem sempre
claros, ela faz um texto legível, não desprovido de elegância e que,
no entanto, soube conservar a despretensão do improviso e mesmo
algumas hesitações de leitura. Assim estarão doravante disponíveis
na França todos os documentos relativos a um debate famoso nos
anos 1930 em torno da pessoa e das teses de Ferenczi.

Suspenso

Um documento por tanto tempo inédito não pode suscitar


senão expectativa e curiosidade. Por coincidência, ele nos chega ao
mesmo tempo que um outro inédito, este de Freud, anteriormente
perdido e devido à Sra. Simitis (I9S6)5.
Este não é o caso do Diário. Este estava suspenso. Escrito em
1932, o ano precedente à morte de Ferenczi, esse texto fora recusado

* “Ferenczi, dernier cri' Publicado em L’Âne, n. 23. 1985.


I ■ N. do T Em francês a expressão dernier cri designa# última moda, já dtcionarizada
assim entre nós. Como, no contexto, há também a possibilidade de traduzirmos
por último grito, optamos por manter a forma original a fim de preservar a ambi
güidade.
2. N. do E. Ferenczi, Sándor. Diário clínico. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo.
Martins Fontes, 1990. Observamos que assim como os volumes de suas Obras
Completas, esta tradução para o português foi feita a partir do francês.
3- N. do E. A autora se refere aqui aos documentos publicados entre nós como.
Gkubrich-Simitis, Ilse. De volta aos textos de Freud: dando vo^a documentos mudos. Rio
de Janeiro, Imago, 199 5.

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ao público durante mais de cinqüenta anos. Era no entanto üni


texto que podia ser pensado como crucial cm um debate muito
delicado. Ainda que tenha tido a idéia mais cedo, Ferenczi começou a
redigi-lo no dia 7 de janeiro de 193 2, alguns dias após ter recebido
de Freud uma admoestação epistolar extremamente viva quanto às
licenças que um analista pode se permitir em matéria de técnica
famosa carta sobre a técnica do beijo. Ferenczi interrompe sua re
dação algumas semanas após o Congresso de Wiesbaden, ocorrido
no início de setembro do mesmo ano e no qual ele sustenta, sozi­
nho contra todos, suas teses sobre a neocatarse.
O objeto desse debate está longe de ter caído em desuso. Ele
esclarece tanto o que torna o sujeito doente como o que o cura em
psicanálise e além disso as próprias finalidades desta. Ferenczi nele
pleiteou antes de tudo a terapêutica — curar primeiro — e as virtudes
curativas da gratificação — ideal do amor médico. Correlativamente
ele afirma que é a violência traumática que gera a neurose, ou a
loucura.
A aposta dessas questões vai mais-além das pessoas. Por que
então ter retido esse texto por tanto tempo? Pois ele de início nos
foi cientemente ocultado por Michael Balint, que optou por adiar
sua publicação. Balint se explica em uma introdução escrita por ele
em 1969, momento em que pensava a publicação iminente, e
reproduzida nesse volume. Esperava assim, diz ele, que a benevo­
lência se fizesse. É que Ferenczi, que foi seu analista e mestre, era
demasiado amigo para que Balint não quisesse protegê-lo, digamos,
do julgamento da história. Disso concluo que Balint tinha dúvidas:
seja sobre o triunfo da verdade — ele que não tinha senão muita
experiência dos preconceitos da ortodoxia internacional — seja sobre
o próprio Ferenczi. Afinal, o apelo à benevolência tanto diz que
nada contamos com o peso da razão. Talvez seja o caso de dizer como
Oscar Wilde: “Meu Deus, protegei-me de meus amigos... .
Com efeito, esse texto, por tanto tempo fora do prelo, e do
qual tão freqüentemente se deu a entender que era o âmago selado
da obra, o mais precioso, o jamais dito, era esperado como a pedra

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

angular que faltava nas construções arquitetadas por Ferenczi.


Portanto ele nos chega como a hora da verdade4 e de fato Ferenczi
nele da sua ultima medida, ja que a morte, alguns meses depois, aí
colocou a palavra final. Assim como tantos outros, esse Diário, eu o
esperava e por conseguinte, no fim das contas, é preciso estabelecer
o balanço das contribuições de Ferenczi.
Neste sentido, ficamos um pouco interditados pelo prefácio
de Michael Balint e também pelo prólogo de Judith Dupont.
Ambos, visivelmente inspirados por uma autêntica simpatia, impli­
citamente nos advertem de que devemos ler o Diário com eqüidade
— ora vejam, quanta suspeita! — e de mantermos a justa medida
tanto das intuições precisas como dos desvios, tanto dos acertos
quanto dos erros respectivos no “doloroso desentendimento que
turvou os dois ou três últimos anos da amizade entre esses dois
homens” que foram Freud e Ferenczi. E eis o leitor convocado a
aplicar a justiça salomônica numa disputa entre os pares. Quanto
ao posfácio dc Pierre Sabourin, pleno de entusiasmo, ele apresenta
um Ferenczi subversivo, assolando as idéias “confortáveis”, e precursor
desconhecido dos maiores nomes da psicanálise. Do próprio Lacan,
se procurarmos bem...

Destinado à publicação

Desafio portanto entre, de um lado, Freud, sua autoridade, e


os preconceitos coercitivos de seus sectários; de outro, o espírito
inventivo que em sua solidão trilha os caminhos desconhecidos do
futuro. Vítima e espírito de fronda5, Ferenczi já se vê creditado da
simpatia natural que leva à dor e à subversão.
Pois bem, ela não o será tanto, pois no momento de abrir o
tabernáculo, eu o digo: ele estava vazio. Não de interesse — seu

4. N. do T. No original, “II nous arrive donc comme 1 heure de la verité... . Em


francês, há a homofonia entre 1’heure, hora, e Iturre, engodo, logro, chamariz.
5- N. do T. No original, tspritfrondeur. Expressão que se refere aos participantes
de uma revolta ocorrida na França contra Mazarin (1648-52), contestando as
■nstituições, a sociedade, a autoridade etc.

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COLETTE SOLER

testemunho por si só é apaixonante — nem tampouco de observações


variadas, porém do que esperávamos e do que o próprio Ferenczi
anunciava a Freud em sua correspondência: a sustentação de suas
teses. O que então esse Diário tinha a nos dizer?
Um diário de um psicanalista é um gênero literário inesperado
pois, é óbvio, não é um diário íntimo, mas o dia-a-dia, os pensa­
mentos de um praticante sobre os tratamentos de seus pacientes
sucessos e fracassos — sobre sua técnica — inovações e impasses
— sobre os psicanalistas, sobre a psicanálise em geral e sobre o
próprio Freud. Sem outra ordem que a do cotidiano, não há nenhum
assunto clínico ou prático do qual Ferenczi não fale, ao menos
alusivamente. Espontaneidade e improvisação fariam quase acreditar
serem notas de uso privado, recolhidas pela mão devota de algum
aluno. Mas não, Ferenczi destinou esse diário à publicação: disso
dão testemunho sua correspondência, o fato dele tê-lo ditado e de
que suas idéias diárias tivessem cada uma um título etc.
Mas por que preferir um diário a artigos que recolhessem os
frutos do tatear cotidiano e fizessem o balanço das contribuições,
delas subtraindo as sinuosidades, os enfados, as obstinações, as re­
pisas e até as contradições da elaboração? Ferenczi, e isso fica claro,
contou aqui não com o arranjo das teses, mas com o natural do
tom. Se ele adota o parti-pris da espontaneidade, é que ele o supõe
como sendo o mesmo que o da verdade.

Apologia e requisitório

Ora, Ferenczi escreve em um contexto no qual sua técnica de


gratificação é recusada por Freud, e ele a sustenta denunciando a
neutralidade analítica altamente recomendada por Freud como
hipocrisia profissional — conector de todas as outras. Então, sozi-
ho contra todos os hipócritas, tal como Jean-Jacques Rousseau,
erenezi monta uma empreitada sem que esta jamais tivesse tido
§ m exemplo. Ele vai dizer sua verdade de analista e no único
que convém, assim ele o crê, à verdade: o descosido dos ditos

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

repentinos. Nesta via da bela alma, nada detem Ferenczi, nem a


modéstia — ele se supõe o melhor e ele o diz — nem o pudor, que
recusa. Portanto ele nos confiará suas fraquezas, mas também seus
méritos. Declinados cotidianamente, são eles: a aptidão de reconsi­
derar as questões e a capacidade de se devotar até o sacrifício. Espí­
rito crítico e generosidade, nada menos!
A confidência sem disfarce se faz apologia e requisitório. Essa
abertura e essa ingenuidade, que têm a pretensão de se instruírem
ao longo dos dias e no deslumbramento da descoberta, na fonte
viva da experiência imediata, advogam e denunciam. Sob cada enun­
ciado de doutrina aninha-se o discurso da paixão. O zelo de
analisante, desentocando a verdade una que é a sua, de fato diz as
quatro outras que ele reserva ao outro. O outro é, via a tropa dos
analistas, o próprio Freud que recusou seu aval e de quem se de­
nuncia a frieza, a indiferença terapêutica e a reserva de sua presença.
Opõe-se a Freud, em um vasto acting-out técnico, um analista todo
bondade e todo verdade, que ama verdadeiramente seu paciente ou
que ao menos lhe abre seu coração: isso será chamado de análise
mútua.

Lado coração

Assim fazendo, Ferenczi cativa o leitor no discurso da justa


razão. Pois quem teria o vício de não ser do partido militante da
verdade, perseguido por sua dor, pela hipocrisia e pelo preconceito?
Esse diário advoga pelo espírito do livre arbítrio, mas ele subjuga o
leitor à lei do coração”, caminhando entre astúcia, desconheci­
mento e má-fé.
Ora, no jogo da verdade não ganha quem quer. Em um cres­
cendo de denúncias, Ferenczi estigmatiza como perniciosa a posição
analítica de Freud, mas o Diário culmina em uma página impressio­
nante do dia 2 de outubro6. A única, para mim, que soa real.

Fsta página do Diário é a que reproduzimos.

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COLETTE SOLER

Ferenczi saía do congresso de Wiesbaden e acabara de sofrer o


primeiro ataque de uma anemia, justamente dita perniciosa. Ele
não duvida que seu corpo doente seja ele próprio. Faltando-lhe o
apoio de Freud, ele se sente cair sob o golpe de uma alternativa e
^nota, ele que sucumbiria alguns meses mais tarde. lerei neste
ponto a escolha entre morrer ou me reorganizar — e isso aos 59
anos?”. São as páginas 257 e 258, quase as últimas do Diário.
Brutalmente se impõe, abolida toda demonstração, a irrupção da
verdade. Ela diz sem retórica a aposta real que para Ferenczi manti­
nha a balança dessa polêmica, e sela esse Diário com o sinete da
autenticidade analisante.
O progresso da doutrina, isto seria outra coisa.
Quanto às teses de Ferenczi, o Diário não traz nada de verda-
deiramcnte novo em relação a seus últimos artigos, mas nos informa
sobre sua dcmarche e sobre os extremos em que ela estava prestes a
conduzi-lo. Ferenczi nos garante que é a experiência quem milita a
favor de sua tese, pois ela prova, a crermos nele, que o núcleo sem­
pre idêntico cm torno do qual gravitam as formações do inconsci­
ente de um sujeito não é fantasia, tal como acreditava Freud, mas
traço de um acontecimento traumático que efetivamente aconteceu:
um estupro do corpo e da alma.

Lado teses

Pois bem, sigamo-lo então na experiência que ele nos consigna.


Ela nô-lo mostra mais licencioso com as razões do que com os
próprios pacientes: tão desenvolto com a argumentação como o é o
inconsciente, pois suas provas decorrem sempre do raciocínio de
caldeirão'. Assim, primeiramente no transe do sono hipnótico -
que Ferenczi recomenda ser acrescentado à clássica associação livre
o paciente adquire, diz ele, o sentimento da realidade do trauma, o
qual merece crédito e tudo muda. Em segundo lugar, isso não muda
nada porque o analista deve mudar primeiro e, aliás, o paciente

() 7. N. do T. Alusão ao conhecido caldeirão de Freud, que pode ser encontrada em


Os chistes e sua relação com o inconsciente”(1905). capítulo A. parte analítica.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

jamais adquire de modo durável esse sentimento de realidade devido


à clivagem, tendo o eu vígil perdido o acesso à lembrança do eu
originário.
Exemplo: página 246. A paciente relata sonhos de estupro e se
aflige por não poder rememorar nada deste tipo, tal como intimi­
dada a fazê-lo. Seguem-se duas páginas de explicação para persuadi-la
de que é a clivagem que a priva desta parte perdida dela própria.
Não é a experiência quem ensina, é Ferenczi quem sugere e martela
suas convicções. Compreende-se que Balint, em sua benevolência,
tenha hesitado em nos fazer conhecer esse gênero de provas.'
Quando se trata não mais do trauma universal, porém dos
progressos do tratamento, é mais difícil para o analista e para o
paciente se deixarem engabelar. A impaciência terapêutica de Ferenczi
já havia gerado a técnica ativa; depois seu inverso, a técnica do rela­
xamento. Aqui é a análise mútua que nasce. Ferenczi, posto sob
acusação pela própria voz de seus pacientes, deles recebe sua própria
mensagem: tu prometes (sedução), tu não dás; tu és um carrasco.
Ele reconhece suas queixas, dá razão ao analisante e consente por­
que se lhe demandam o supremo “sacrifício" de confessar, por sua
vez, seus conflitos inconscientes.
Eis aí o analisante analista do analista-analisante. Cada um
não tem um inconsciente? E começam os dilemas, insensatos. Quem
falará primeiro, quanto tempo para cada um, o analista-analisante
terá tantos analistas quanto pacientes, e se o analisante fosse, ele
próprio, um perigoso assassino de almas, capaz de aniquilar a psi­
que do pobre analista sacrificado.'? Felizmente, todos os problemas
têm uma solução: a “franca discussão” — termo pelo qual Ferenczi
ê particularmente afeiçoado — e a confissão.
O analista se sente assim bastante aliviado de fazer reconhecer
suas próprias angústias e sofrimentos, e o paciente, medindo as
fraquezas humanas de seu analista, faz o luto de suas injustas
recriminações. Reencontramo-nos como duas crianças bastante in­
felizes, duas Cosette “igualmente assustado(a)s", que choram juntas
e se aquecem enquanto se perfila um final de análise que poderia

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COLETTE SOLER

parecer com o adeus de dois alegres colegas", quando terá enfim


chegado o "perdão mútuo” que põe fim às exigências da transfe­
rência em lugar dos sintomas. So a simpatia cura . Eis ai com
que parvoíces — em suma, nada novas — Ferenczi teria parido a
subversão freudiana. Quem acreditará que se tratava de uma nuvem
ou de um mal-entendido em uma bela amizade?

Mudança de discurso

Porém o que não sabíamos antes deste Diário era até que ponto
Ferenczi assinaria as consequências de seu postulado. O que ele
nomeia “uma revisão” impõe-se espetacularmente sobre dois temas
que fazem pedra angular: a sexualidade infantil e a pulsão de morte.
Todo o edifício freudiano é enviado às estrebarias de Augias.
Sexualidade infantil, perversão polimorfa, incesto e norma-
tização edipiana, enfim pulsão de morte, sobre a dupla vertente da
agressão c do masoquismo, não são na melhor das hipóteses, diz
Ferenczi, senão os escombros do traumatismo, enxertos artificiais,
quando não são projeções do próprio analista. Pois a criança verda­
deira antes de toda violência não é senão ternura e bondade; a
genitalidade é nativa e primeira enquanto a natureza em geral é
habitada por uma pulsão “de apaziguamento” e de “conciliação”.
Nesta veia rousseauniana — basta citar Ferenczi mais adiante —
poderia se pensar que dele debochamos.
O pássaro de Vénus é cagão, diria Jacques Lacan... Ferenczi
pensava ser mais doce acreditar — ou protestar, talvez — que a
verdade tem o suave perfume das origens, na qual tudo é dom,
apaziguamento e partilha. Uma coisa é certa: técnica e teoricamente.
Ferenczi, no momento de sua morte, tinha saído da via da análise.
De volta à hipnose e à sugestão — que pretende reabilitar — tendo
escolhido, ele o diz, Breuer contra Freud, ele mudou de discurso,
sto seja em nome das boas intenções terapêuticas, não muda
sonhado ser o mestre. Um mestre bom e verídico. Como
> ele o buscou, como analista, ele quis oferecê-lo. Para sua

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O ATO FALHO DE FERENCZI*

Ferenczi faz parte desta geração de analistas que teve de co­


nhecer, pela primeira vez na história, uma dificuldade na psicanálise:
“a amortização de seus resultados” (Lacan, 1955, p. 3 32). Ele res­
pondeu a isso através de uma pergunta: “Que devo fazer?” Foi sua
particularidade buscar a solução para esse “crescimento do recalque”
(1967, p- 34) do lado do analista e da ação que lhe cabe. "Saber
fazer aí” com o inconsciente, o bastante para esperar reduzir até a
própria causa da neurose, foi sua ambição. Assim ele não cessou de
questionar a mola e os fins da ação analítica, com um entusiasmo e
uma autenticidade tão incontestáveis quanto sua despreocupação
acerca da consistência das teses avançadas.
Oq ue dizia então Ferenczi a respeito da técnica? É certo que
nem sempre a mesma coisa. Há ao menos três Ferenczi. Aquele da
técnica ativa primeira versão (1919-1924); aquele da transposição
desta para a neocatarse (1929-193 3). Entre os dois, aquele daelas-
ticidade psicanalítica. É no momento deste “luminoso artigo”, quando
o flagelo de suas oscilações está em seu ponto de equilíbrio, que
Lacan aproveita a ocasião para lhe render homenagem como “o autor
da primeira geração a questionar com mais pertinência o que se
exige da pessoa do analista, sobretudo quanto ao fim do tratamento
(Lacan, 1955, p. 340). Nós o tomaremos nos dois extremos.

Procurem 0 goço

Tudo começa com o artigo de 1919 intitulado Dificuldades


técnicas de uma análise de histeria”. A intuição primeira de Ferenczi
pode ser assim formulada: a ação analítica não se reduz à interpretação.
A decifração certamente abre o acesso ao sentido e através
disso é possível resolver o sintoma — é a descoberta de Freud —
porém é preciso mais para sustentar a dinâmica da transferência.

L acte manque de Ferenczi”. Publicado em Omicar?, n. 3 5, outubro-dezembro


de 1985, p. 81-90.

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Esta convicção, são as histéricas que inicialmente a sugerem


para ele através de sua recusa da regra fundamental. Ferenczi situa
claramente este ponto de partida. Ele descreve de modo muito pre­
ciso, a propósito de um caso, uma sucessão de seqüências-tipo
desenrolando-se cada uma em dois tempos. Primeiro tempo: 0
anahsante se submete a regra, então ele associa, ao passo que o
analista interpreta. Esse “trabalho” geralmente tem como resultado
algum efeito terapêutico. Depois, o segundo tempo: o da resistência,
no qual o amor de transferência e as solicitações que ele suscita
servem de álibi para uma recusa da regra de associação. São os
“pontos mortos do trabalho analítico" (Ferenczi, 1920, p. 121)
que resistem aos efeitos de interpretação. Donde a questão de
Ferenczi: que fazer aí? De modo mais geral, que fazer quando a
“evolução” do paciente não corresponde “absolutamente à profun­
didade de sua compreensão teórica e ao material mnésico já esclare­
cido” (1919, p- 22)?
Como todos os seus contemporâneos, confrontado com esses
fenômenos cruciais da experiência, nos quais se verificaram pela
primeira vez os impasses da interpretação, Ferenczi se distinguiu
de saída por uma posição original. De fato, desde o começo ele
recusou o que iria logo se impor como uma palavra de ordem maior:
a análise das resistências. Para ele, aí não há senão “esforços vãos”.
Por certo, ele constata que isso resiste, mas ele imediatamente pos­
tula que esses tempos de inércia do processo exigem uma interven­
ção outra, específica, “ativa", e cujo efeito esperado deve ser uma
retomada do dito trabalho. Frisemos: para Ferenczi, o que se inter­
preta são as associações do paciente, seus ditos. Não se interpreta a
resistência; esta é ou superada ou contornada. Assim, desde 1919.
ele praticamente discerne um duplo componente da experiência, ao
qual ele faz corresponder uma dupla polaridade da ação analítica.
Ao par associação livre—interpretação agrega este outro: resistência
de transferencia—ação. Champollion que decifra, o analista é tam-
bem o parteiro que maneja o "fórceps”. É dizer que ele suporta,
segundo Ferenczi, a responsabilidade do próprio processo do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

tratamento. Às cegas, e de modo certamente bem tateante, ele impõe


ao analista a tarefa dessa função que Lacan designará como aquela
da causa — causa do trabalho analisante. Por não ser mais escla­
recida, esta exigência não portava menos esse "rigor de algum
modo ético” (Lacan, 1955, p. 324) que a psicanálise requer.
Ferenczi precisa sua concepção em dois artigos: “Prolonga­
mentos da ‘técnica ativa’ em psicanálise”(l921) e “As fantasias
provocadas” (1924). O ponto de impacto da nova técnica está ali
muito explicitamente definido: ele incide sobre o que ele chama de
as “tendências eróticas” (1921, p. 123) na transferência, e visa não
satisfazê-las. A tese é simples: os tempos mortos da análise são
correlativos das satisfações que o sujeito retira da transferência.
Quando as associações se esgotam, quando a interpretação se torna
inoperante, é que ali está uma satisfação; trata-se de “desentocar os
esconderijos” (1924, p. I 8) onde ela se abriga. O silêncio revela
assim a presença da pulsão. “Procurem o gozo” é a palavra de ordem
da técnica ativa.
Para Ferenczi, de modo muito clássico, a transferência é pensada
como a repetição das fantasias eróticas do passado, como atualização
sobre a pessoa do analista das relações fantasísticas desenvolvidas
para com os primeiros parceiros do sujeito, os pais. Mas Ferenczi
acentua um traço: a fantasia não é somente imaginarização, devaneio,
representação mental. Ele insere na representação de um cenário
um elemento que não é da ordem do pensamento, mas da satisfação
— um gozo efetivo. Este, muito diferente segundo os diversos
casos que expõe, se apresenta em seu primeiro exemplo como um
gozo masturbatório, correlato a fantasias edipianas conscientes.
Assim ele se persuade de que a paciente, “cujas sessões se passavam
em declarações e juras de amor apaixonadas’ (idem), praticava o
que ele identifica, graças à sua postura e a algumas observações,
como uma forma larvada de masturbação. A conclusão se impõe a
e^e: é isso que resiste à interpretação. Resta portanto impedir
este bônus de prazer” (ibid., p. 21).

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COLETTE SOLER

Fui levado a estabelecer uma nova regra analítica. Ei-la: durante


o tratamento, é preciso pensar na possibilidade de um onanismo
larvado assim como nos equivalentes masturbatórios e, desde
que se observem os seus sinais, suprimi-los. [...] Se em algum
momento o paciente observa que esses modos de satisfação
escapam ao analista, ele os carrega de todas as suas fantasias
patogênicas, permite-lhes a todo momento a descarga na
motilidade, e se poupa do trabalho penoso e desagradável de
torná-los conscientes (ibid., p. 20).

Operar por subtração de gozo, tal é portanto a finalidade deste


novo passo da técnica: mas é para que o par associação-interpretação
retome seus direitos, permanecendo a nova finalidade sempre subor­
dinada — Ferenczi não cessou de repeti-lo — ao fim primeiro: a
decifração do material.
Quanto aos meios, tratava-se de inventá-los. O primeiro, uti­
lizado em seu caso princeps, foi muito logicamente a proibição.
Acotovelando o preconceito da neutralidade do analista, Ferenczi
interdita a sua paciente a postura de efeitos supostos masturbatórios;
em seguida, na sequência deste primeiro passo, os diversos com­
portamentos derivados. Entretanto, embora entusiasmado com os
resultados “fulminantes” desta primeira audácia, Ferenczi precisou
convir que se os momentos de estagnação do processo analítico são
frequentes, não é comum que a fantasia e a satisfação veiculada por
este aí se ofereçam abertamente. Ele concebe então o provocar a
fantasia. Um segundo exemplo, comiplementar ao primeiro, é apre-
sentado em “Prolongamentos da técnica ativa’ em psicanálise
(1920). Trata-se de uma jovem musicista, que a vergonha e o cons­
trangimento impedem que se apresente em público, tanto como
musicista (apesar de seu talento) quanto como mulher (apesar de
sua beleza). O que se impõe em primeiro plano neste caso nao e
satisfação da fantasia, mas ao contrário a defesa do sujeito. Ferencz
não tenta interpretar mais a defesa do que ele o fazia com o goZ
em seu primeiro exemplo. Ele antes se empenha em fazê-la ce^
Sob uma saraivada de ordens e exortações, tomando a vergon
como indício do desejo, ele obtém de sua paciente que ela cons g

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

na sessão — segundo seu voto — exibir-se diante dele com um


canto equívoco e lascivo.
A técnica se faz aqui provocativa. O analista não se contenta
de prestar-se à fantasia. Em nome disso é preciso mobilizar a repe­
tição na transferencia para poder analisa-la; ele se faz o agente de
uma injunção de gozo. Por mais escabrosa que possa parecer esta
prática, para Ferenczi ela não implica uma mudança de orientação.
Ela não é, assim ele o crê, senão uma variante técnica necessária
para fazer aflorar a fantasia de desejo nos casos em que a defesa do
sujeito precede a satisfação da pulsão. Em seguida, o segundo tempo:
o da interdição, no qual o analista diz: “Chega de cantar, trata-se de
trabalhar” (1921, p. 122), para a rememoração. No caso citado, o
que disso se produziu de fato atualiza a aspiração infantil de se
fazer ver, assim como o contexto de instalação da defesa.
Portanto injunção e proibição são as duas atividades comple­
mentares da nova técnica. Elas respondem à dupla necessidade de
atualizar a fantasia na transferência e de não satisfazê-la, para que
esta não entrave o processo do tratamento. Certamente as formula­
ções de Ferenczi sobre a fantasia estão longe de serem sempre claras e
coordenadas. Ele a descreve na maioria das vezes como cenário edipiano
acompanhado de gozo masturbatório, e a assemelha a uma mentira,
exclusiva ao real. Esse ponto por si só mereceria um estudo separado.
Entretanto o uso prático contrasta aqui com o que Ferenczi quer dizer.
Sua técnica ativa postula que a fantasia é uma espécie de curativo
para o sujeito, um dispositivo feito para lhe assegurar uma satisfação
a mais, a qual compensa as frustrações sofridas e contraria assim,
por consequência, a dinâmica do sujeito. Compensação e obstáculo,
portanto. A isso responde uma concepção do tratamento que obedece,
segundo a expressão de Freud, a um “princípio de abstinência , e que
encontra sua saída em um luto. Ferenczi o ressalta em O problema do
fim da análise” (1928). É a renúncia (Entsagung) que deve resolver as
frustrações (Wrsagiingen) passadas e não o irrealismo da fantasia. E dizer
que se a técnica ativa visa o gozo, ela entretanto não desconhece, longe
disso, a falta a ser e a divisão do sujeito.

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COLETTE SOLER

Refazer o Outro, terno e verdadeiro

Assim era o Ferenczi dos anos 1920. Será o mesmo que dez
anos após, proporá a neocatarse? Quatro artigos se escalonam de
1929 a 1932: “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929)
“Princípio de relaxamento e neocatarse” (1929), “Análise de crianças
com adultos” (1931) e “Confusão de língua entre os adultos e a
criança” (1932b). A reviravolta é total. Todas as proposições de
Ferenczi se inverteram. O “deixar-fazer” substituiu a atividade; o
princípio de realização (Gewahrung) 1 substituiu o de abstinência e a
reparação final tomou o lugar do luto. E que doravante a resistência
é imputada não à fantasia, mas sim aos efeitos insistentes de um
traumatismo do passado.
Ferenczi certamente não chegou a isso de um único golpe.
Dois artigos inicialmentc marcaram o fim de suas primeiras tenta­
tivas. São eles: “Contra-indicações da técnica ativa” (1926) e “Elas­
ticidade da técnica psicanalítica” (1928b). Ele aí confessa os fra­
cassos ou ao menos os limites de sua técnica, e ele a corrige não em
sua finalidade, mas em seus meios. Injunções e proibições sendo
recusadas como procedimentos do mestre, pouco propícios para
sustentar a transferência e nem sempre aptos para desfazer as resis­
tências, Ferenczi retorna nesse momento a uma atitude mais
“expectante”, que fundamenta seus cálculos em uma insistência
maleável e paciente lá onde a interpretação perdeu seus direitos.
Ferenczi justifica a retumbância dos anos 1930 não só pelos
impasses de certos tratamentos, mas também por uma estranha
profissão de fé. Ele se vale, para fundamentar suas novas e às vezes
escabrosas iniciativas, de uma “fé fanática” nas possibilidades de
sucesso da psicanálise, e de uma recusa em admitir a incurabihdade,
ainda que fosse ao preço do conforto do analista (1931)- Como
não perceber a nota de heroísmo ofensivo que vibra nesta curiosa
proclamação e na qual se trai, mais-além do enunciado — inatacá\ el
e a não correspondência de uma enunciação? Mas deixemos 0
I. Cf. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte , p. 80 e Princípio
relaxamento e neocatarse", p. 88.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

que queria dizer o sujeito Fcrenczi, e antes vejamos o que o analista


articula de ensino para nós, seus leitores.
Uma segunda vez, Ferenczi propõe nada menos do que uma
mudança de técnica, fundamentada em uma mudança de hipótese
quanto ao que entrava a marcha da análise e a cura. Ele o explica em
“A criança mal acolhida e sua pulsão de morte”, artigo precioso,
pois nos indica a quais solicitações Ferenczi cedeu. Ele inaugura a
mudança com doentes nos quais ele crê poder identificar uma "cate­
goria mórbida” especial: aquela dos sujeitos acometidos de um "des­
gosto da vida" (1929, p. 78 e 81), de um pessimismo originário, e
de uma tendência direta ou indireta ao suicídio. Esta fratura do elã
vital lhe parece imputável, nos casos considerados, ao contexto de
sua vinda ao mundo como crianças "mal acolhidas” ou “deixadas
caídas" depois de uma acolhida entusiasta. Não contestaremos
Ferenczi sobre tais fatos. Nós aí reconheceremos antes os casos
nos quais os caprichos da biografia tornam particularmente aguda
e legível a questão do sujeito quanto ao seu lugar e ao seu ser,
quanto ao que ele foi “para o Outro em sua construção de vivente”
(Lacan, I9Ó0, p. 682), e a resposta masoquista de um |LLT| (pWOtl
(antes não ser!). É em todo caso a falta a ser do neurótico e seu
apelo a um complemento que ali solicitam o analista. Ferenczi, como
se estivesse aspirado pela demanda desses sujeitos, deixou-se induzir
na esperança de corrigir a experiência deles através da transferência.
Ele quis refazer suas origens, constituir para eles um outro primeiro
encontro; desta vez, o bom.
Isso será o preço das exigências da análise:

Nesses casos de diminuição do prazer de viver, eu me vi pouco a


pouco na obrigação de reduzir cada vez mais as exigências quanto
à capacidade de trabalho dos pacientes. Finalmente, uma situação
se impôs, a qual não podemos descrever de outro modo senão
deste: devemos deixar, durante algum tempo, o paciente agir como
uma criança. [...] Permitimos, propriamente falando, a esses
pacientes gozar pe a primeira vez a irresponsabilidade da infância,
o que eqüivale a introduzir impulsos de vida positivos, e razões
para continuar existindo (1929, p. 80).

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COLETTE SOLER

A neocatarse não é senão a generalização para todos os casos


inclusive análises didáticas (193Ob, p. 111), desta prática e desta
hipótese. Donde o esquema de uma análise que vai se desenrolar do
seguinte modo: dar inicialmente de modo incondicional, não frus­
trar senão em seguida, com prudência, pois aquilo de que os neuró­
ticos precisam, “é de serem verdadeiramente adotados e de que os
deixamos peia primeira vez provar as beatitudes de uma infância
normal”(ibid., p. 97)- Assim Ferenczi terá tentado estar à altura da
demanda efetivamente incondicional do neurótico, sem se deter na
pergunta que Freud lhe coloca: até onde você iria na gratificação?
Verdadeiro enfermeiro da falta a ser, ele, aliás, quer de bom
grado admitir que “mima" seus neuróticos, “sacrificando toda con­
sideração quanto ao seu próprio conforto” (ibid., p. 107). Mas é,
ele o crê, a condição necessária para obter a seguir a atualização do
tempo da frustração e, com este, a reprodução não pode ser senão
revivescência, pois a rememoração tropeça. Revivescência alucinatória,
até o transe da agonia traumática. E Freud revisto por Charcot.
Aliás Ferenczi não dissimulou os extremos a que ele pretendia
conduzir seus pacientes, justificando ao contrário esses trans-
bordamentos: o que não se pode dizer, é preciso agir... para dizê-lo
enfim.
O que então se diz ali? Diz-se, alto e claro, que o mal vem do
Outro. No transe que lhe é dado a ver, Ferenczi decifra isto: o
Outro me mata. De fato, se o seguimos, a palavra do traumatismo
seria a seguinte: uma criança é seduzida e... enganada. Ora, o que
quer a criança? O amor-ternura e a verdade, diz Ferenczi, que não
se interroga sobre sua compatibilidade. Eis-nos de volta portanto
ao paraíso verdejante”. E o que ele encontra no adulto? Um ero­
tismo e uma violência que o visam e que, mais grave ainda, se des
mentem. Gozo e mentira são os dois maus encontros do neurotico,
e tanto pior, diz Ferenczi, se me tratam como histérico. Resta então
refazer o Outro — terno e verídico.
Com certeza, a experiência analítica atesta alguns fatos e prin
cipalmente este: o encontro do sujeito com a sexualidade é sempre

I8o

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

traumático, sempre surpreendente em relação ao discurso, sempre


irruptivo ao campo da percepção e do pensamento; fora do programa,
ou seja, fora daquilo que o simbólico permite prever no mundo.
Mas será isto fato de estrutura ou acidente da história? A quem
acusar a incomensurabilidade do gozo e do significante ou a malig­
nidade do Outro? Sabemos que Freud, durante um tempo suges­
tionado por suas histéricas, era inicialmente partidário da tese da
sedução — falta do Outro, portanto — antes de ali reconhecer a
fantasia e o postulado sobre o Outro que ela implica. Ferenczi faz
o caminho inverso: da fantasia ao traumatismo. A técnica ativa fazia
da fantasia o segredo do sintoma, a própria neocatarse retorna à
heteronomia do traumatismo. A questão não é de saber, é claro, se
existe para os humanos traumatismos reais. É mesmo a evidência.
Inútil, portanto, invocar com o apoio de Ferenczi os horrores da
vida. A questão incide sobre o que é uma neurose, e particularmente
sobre o que causa os sintomas. O postulado da neocatarse é o de
que tudo acontece por falta do Outro. A mentira então mudou de
campo. Ferenczi corrige sua primeira tese; esta, freudiana. Revirando
sua fórmula, ele coloca: “As fantasias histéricas não mentem” (ibid.,
p. 93). Portanto é o Outro que mente sobre o gozo que a criança
interroga.
Desde então há problemas técnicos. Pois como analisar, e portanto
transformar, um traumatismo suposto fora do alcance da eficácia
do sujeito? Um traumatismo que pertence ao passado, que é consi­
derado como tendo atingido o sujeito em sua inocência e que, além
disso, não se diz. Com efeito, os ditos transferenciais que Ferenczi
segue em sua procura da verdadeira origem não trazem senão a
demanda, seja ela reivindicatória ou resignada. O dizer do analisante
é demanda. Mas do momento em que supomos esta insistência
gerada não pela hiância do sujeito, mas pelo acontecimento passado
de uma resposta do Outro que foi inadequada, não resta mais senão
Urna via: vir na transferência no lugar do Outro e de lá tratar de
eorrigir o trauma, ou seja, satisfazer a dupla demanda de amor e de
verdade. Tendo se devotado a preencher a primeira delas, Ferenczi

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COLETTE SOLER

descobriu que não era o bastante. Disso ele conclui que era preciso
nda ser totalmente verdadeiro e portanto confessar satisfações e
fraquezas. Assim o analista toma a falta sobre si e, por uma curiosa
reviravolta, é ele quem se encontra na situação de confessar. Seria
preciso pagar esse "preço ridículo para que seja somente reconhecida
a falta a ser do neurótico?”, pergunta Lacan.

Utna “loucura de transferencia”

Em todo caso, nessa via não há nenhuma chance de fazer da


má fortuna do sujeito um bom encontro. Ferenczi se apercebeu
disso ---- necessariamente. Seu diário o testemunha, este que foi
escrito no próprio ano em que a morte veio selar o impossível de
sua posição.
Com certeza, o neurótico não está enganado: posto contra a
parede para dizer o que ele é, o Outro se cala. Portanto resta inventar,
c é exatamente o que ele faz. Ele imagina que este silêncio encobre
a perversão do Outro, e isso, com muita frequência, na contracorrente
da biograiia, o que Frcud observou há muito tempo.
Ferenczi segue aí os passos da neurose. Não concebendo que
haja o impossível a dizer, como aliás o testemunha sua ambição de
descntocar o próprio recalque originário (ibid., p. 102), ele supõe
o encobrimento e a malignidade do Outro. À questão “o Outro
sabe?”, que ele nem se coloca, Ferenczi já respondeu sim. O que há
de diferente da hipótese da transferência, aquela de um sujeito
suposto saber todo o gozo? Inútil portanto escrutar sua corres­
pondência com Freud, para nele reconhecer a encarnação de um
drama da transferência; ele se estende por toda parte, desde seus
primeiros escritos técnicos. Ferenczi sabia o que dizia quando atri­
buía ao analista o verdadeiro final da análise. Sem dúvida não há,
propriamente falando, sujeito fora da transferência; sem dúvidí
também podemos decifrá-lo da posição da transferência, ma:
Ferenczi, aos nossos olhos, ilustra de modo claro a impossibtlidad
de analisar desta posição, sem que o ato ex-sista a um sujeito supost

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

saber. Esta impossibilidade, Ferenczi a tera pago caro em sua vida e


em suas contribuições.
Inicialmente em sua produção, pois se a técnica ativa dos anos
1920 implicava uma justa intuição da falta a ser do sujeito, e da
parte do ser que ela subtrai da fantasia, aquela dos anos 1930 é
duplamente um ato falho: porque ela é o negativo do ato, o qual
tem efeito de divisão naquilo em que é colmatagem, e também por­
que ela faz sintoma, retorno de verdade quanto à posição na qual
chegou Ferenczi. Assim, naquilo que ele nos deixa, o testemunho
eclipsa o alcance doutrinal.
Na sequência de sua vida, na qual mais do que o ridículo, ele
teve de suportar, com o brado de indignação de seus pares e a repro­
vação de Freud, a acusação de loucura, via Jones o bem intencionado.
Balint, seu analisante e aluno, protesta e se põe sob caução. Mas
por que não diagnosticar, sob as extravagâncias desta técnica deso­
rientada e sem recursos à testemunha das últimas horas e ao segre­
do de sua confidência, alguma coisa como uma “loucura de transfe­
rência”, entre aspas, o que significa dizer nada louco. Esta loucura
nos lembra que a psicanálise não é um jogo no qual podemos impu­
nemente avançar "de peito aberto” (Lacan, 1970, p. 83), ou seja,
sem o saber da estrutura. Ela não exclui, além disso, render a Ferenczi
a homenagem que ele merece, aquela de ter impelido seus erros até
sua extrema consequência em que sua natureza de impasse se veri­
fica e nos ensina.
Não podemos senão regozijar-nos da publicação de seu Diário
e de sua Correspondência Completa com Freud na França. Pois Ferenczi
não merecia ser censurado. Que a questão tenha sido apenas colo­
cada bastou para lhe constituir partidários, que consideram um
Ferenzci vítima sob os olhos da história do ciúme malvado de seus
pares ou das supostas impaciências dogmáticas do mestre. De fato,
a lndústria conjugada de Jones e de Eitington bem teve que obter a
censura de seu texto “Confusão de língua entre os adultos e a criança”
no congresso de Wierbaden em 1932. Esta censura, Freud, em con­
fiança, lhes concede em uma carta a Eitington de 29 de agosto de

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COLETTE SOLER

sem qUe tenha lido o texto. Três dias depois, ele já o leu e
j ’j com o toque lacônico de um telegrama, datado de 2
^setembro, que estigmatiza o texto: “Inofensivo^Bobo”.
Em todo caso, Freud jamais fez mistério de sua opinião.
A técnica ativa primeira versão, ele a aprovou vigorosa e explicita­
mente em seu princípio. O artigo “Linhas de progresso na terap.a
psicanálitica (1918) presta homenagem a Ferenczi e nomeia sua
inspiração: princípio de abstinência. Como se surpreender desde
então que Freud, cuja cabeça não gira com o vento das solicitações
da neurose, não aprove conjuntamente as viradas de orientação que
opera a neocatarse? Deve-se notar, ao contrário, a ponderação de
sua reprovação. Ela foi com certeza imediata e sem reserva — o que
temos de sua correspondência o testemunha — mas a verdadeira
réplica dirigida ao conjunto do movimento analítico não veio senão
em 1937 com “Análise terminável e interminável”. Este tempo para
responder diz bastante a que ponto Freud levou a sério o desafio
técnico de Ferenczi, muito longe de ver aí o único efeito de um
desvio pessoal. Pois a neurose é o osso; sua questão, posta em forma
de demanda na transferência. Lá onde Ferenczi busca a gratificação
que a faria cessar, Freud diz: castração. Era designar um impossível
do qual toda questão é de saber como ele pôde não excluir a “solução"
da análise interminável. E ao que se dedicou Jacques Lacan.

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MULHERES

PARTE 3

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O NÃO-TODA*

Passados quase vinte anos, até que ponto levamos as conseqüên-


cias do que Lacan introduziu em “O Aturdito” (1972), concernindo
ao que acontece com o sexo nos seres que estão sujeitos à linguagem?
As elaborações inovadoras desse texto se faziam acompanhar
de uma denúncia discreta, decente, porém explícita e vigorosa. Lacan
não hesitava em evocar o “escândalo” do discurso analítico, e é
claro que ele não deixa de estar ligado aos preconceitos sexuados,
isto é, ao fato de que nenhum dizer escapa à parcialidade do sexo.

A resposta de Ldipo

Freud construiu o Édipo como uma resposta e como uma


solução. É preciso ver ainda de que pergunta e de que problema.
O sexo diz respeito de modo evidente às diferenciações que não são
apenas subjetivas, mas outras, supostas naturais, aquelas dos orga­
nismos, visíveis nas diferenças anatômicas, antes que a ciência trou­
xesse à luz metabolismos diferenciais segundo os sexos. Ora, a vida
— sabe Deus por quê, o que equivale também dizer ninguém sabe
por quê — a vida mantém a “sexe ratio” entre os viventes: grosso
modo, tantos machos, tantas fêmeas. Constatamos, por outro lado,
que os humanos, por mais fala-seres que sejam, não se atrapalham
tanto em suas “coiterações” (coitérations), e não repugnam reproduzir-se.
Daí a pergunta: como a linguagem que produz o sujeito o dispõe a
realizar as finalidades da vida, e isso apesar do efeito de
desnaturalização instintual que ela engendra, localizado bem cedo
por Freud no despedaçamento das pulsões?
E a esta pergunta que o Édipo freudiano responde. Freud des­
cobre que no inconsciente a diferença anatômica é significantizada

♦ “t
Le pastoute”. Publicado em La Caust Freudicnnt, n. 21, outubro de 1992.
Ant
eriorrnente traduzido para o português em Opção Lacaniana, n. 9.

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COLETTE SOLER

e reduzida à problemática do ter fálico, ao passo que as pulsões


parciais em si próprias ignoram a diferença sexual. Portanto é o
desejo sexuado como tal que se torna passível de uma explicação.
O Édipo freudiano responde a seguinte pergunta: como pode um
homem amar sexualmente uma mulher? Resposta reduzida ao essencial;
não sem ter renunciado ao objeto primordial e ao gozo a este refe­
rido. Sabemos que Freud tentou transpor a explicação para o lado
feminino, não sem encontrar muitas surpresas e desmentidos.
Observo entretanto que, no final, ele reconhece o fracasso dessa
tentativa, pois seu famoso “o que quer a mulher?” o confessa. Pode­
ríamos traduzi-lo assim: o Édipo faz o homem e não faz a mulher.
Lacan formalizou de modo preciso o mais-além do Édipo com
a lógica do não-todo.
Quer isto dizer que Lacan teria refutado o Édipo freudiano?
Ele o questionou, interrogou e criticou, e o resultado nós o sabemos:
ele extraiu do Édipo freudiano a lógica de conjunto do todo. Assim
fazendo, não o refuta propriamente falando, e ele próprio considera
que o mantém. Tudo dele pode ser conservado, diz Lacan, na condição
de aí reconhecermos a lógica por ele afirmada. E ela que faz o
homem. De saída, Lacan também reduz seu alcance, e aí está o passo.
Para o que merece ser dito mulher, trata-se de outra coisa. E não se
trata de um aquém, mas na verdade de um mais-além, pois esta outra
coisa não pertence menos ao “ser da significância”, como Lacan o
exprime. O outro gozo, que longe de excluir a referência ao falo, a ela
se acrescenta, não deixa de ser situável a partir de uma outra lógica, não
de conjunto: a lógica do não-todo.
Portanto, sobre este ponto, Lacan diverge explicitamente de
Freud, e de um modo preciso, ao revogar uma “obrigação quanto ;
castração. Em O aturdito”: “Diferentemente dele, repito, não co
loco para as mulheres a obrigação de ajustar a tarraxa da forma d

I. N. do T. No original, "à sa difference, répété-je, je ne fais pas aux femn


d obltgation d auner au chaussoir de la castration la gaine charmante que.
n élèvent pas au signifiant . Em francês, chaussoir significa a forma com tarri
utilizada pelos sapateiros para ajustar a medida dos sapatos. A autora, ao utili
ogo em seguida a referência ao pé (“le pied ’) no que concerne à castração d

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

caStração para mec^*r a cinta charmosa, que elas não elevam ao


significânte” (1972, p. 21). Acrescente-se que embora a castração
seja recomendada para o que se chama de o pe , deve estar previsto
que dela se possa prescindir.
Algumas conseqüências ao nível das exigências próprias à aná­
lise não se deveriam seguir? Para dizê-lo em poucas palavras, a refe­
rência à castração é de tal modo essencial à análise, e sobretudo à
definição de seu final — em determinado momento, Lacan não
hesitou em situá-la em relação ao horror da castração — que ao
menos podemos deduzir disso uma pergunta a respeito do que Lacan
nomeia com esse novo substantivo: o “não-toda”. E se a clínica do
final da análise está relacionada, ela também, a uma lógica do não-
todo, por que não nos perguntamos como as duas se cruzam?

As manifestações do não-toda

A construção lógica de Lacan não nos dispensa nem da compi­


lação dos fatos nem da construção de uma clínica do não-toda. Ele
próprio evocou o que chama de suas “manifestações”. Ele as quali­
fica como esporádicas, o que é pertinente para opô-las à constância
da função fálica para todo homem. O Seminário, livro zo: mais, ainda
(1972-3) iniciou o seu recenseamento. Os êxtases dos místicos —
e ainda, não de todos — aí convivem com o gozo propriamente
feminino da relação genital, e com o acesso à existência de
Kierkegaard.
Desde então, nós pouco enriquecemos esta série. No entanto,
aqui não mais que alhures na psicanálise, não poderíamos nos con­
tentar em calar o impossível, e em remetermo-nos à lógica única.
Em primeiro lugar, porque se A mulher, escrita com maiuscula, é
impossível de identificar como tal, uma vez que ela não existe, isso

mulheres, parece aludir também à continuação do texto de Lacan que diz: Que
e c ausse-pied s y recommande, s ensuit dès lors, mais qu elles puissent s en
passer doit être prévu ’ (Disso se segue que aí se recomende a calçadeira, mas que
as possam dela passar deve estar previsto).

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COLETTE SOLER

não impede que a condição feminina exista. Não designo com isso
as diversas misérias que a sociedade, ao sabor das épocas, pôde
fazer às mulheres, nem ademais as que elas próprias fazem a alguns
de seus objetos, mas a sorte dos sujeitos chamados a suportar o
peso desse A barrado, do qual Lacan nos propõe a escrita, em sua
diferença, com o Esse segundo lugar, porque a aplicação da lógica
russelliana por Lacan à problemática da mulher em parte alguma
está mais enunciada do que na lei do mestre: seu dizer aí é
questionável. E, do mesmo modo que a lembrança de uma metade
de frango em seu livro de leitura terá fixado, cremos nós, a intuição
originária precedendo sua elaboração da divisão do sujeito, é preciso
também supor que sua idéia primeira do outro sexo terá aqui esta­
do em causa. Portanto interessei-me em todas as fórmulas que,
muito antes de sua invenção do não-toda, Lacan pôde dar da mulher.
Existem muitas. Escolhi uma delas.
Uma observação de Lacan no Seminário, livro 8: a transferência
(I96O-I) me intrigou. Ela me vinha como um ganho inesperado.
De volta a Claudel sob a via de um reexame do Edipo, Lacan observa
de passagem que com seus personagens femininos, Claudel, inábil,
falharia a mulher! Contudo credita-lhe uma exceção em Partage de
Mtdi, na qual, diz ele, com Ysé, Claudel teria conseguido criar uma
verdadeira mulher. Bela ocasião de procurar aí a marca com a qual
ele crê reconhecê-la!
Sem dúvida a peça, assim como a obra de Claudel, é hoje bas­
tante desprezada. Será ele poeta demais, ou cristão excessivamente
fervoroso, ou muito sutil? Não sei. Partage de Midi, da qual sabemos
que para Claudel nem tudo era ficção — e ele a rescreveu três vezes —
e uma peça sobre o impossível do amor, que não é o amor impossível.
Sua construção é ao mesmo tempo muito depurada e muito simbó­
lica. tres atos, tres lugares, três luzes, três homens e uma mulher.
Yse, a esposa, mãe de dois meninos, anuncia: "Eu sou o impossível
(Primeira versão de 1906; 1966, p.IOOO). De Ciz é o marido.
Digamos que esta ocupado: ele parte em busca da fortuna. Almaric,
o homem de um primeiro encontro faltoso, é o realista e o ateu, é

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

aquele que toma mais do que dá. Para Ysé, no ato I, zombando do
sério, que lhe pergunta. Ela se entrega ao senhor, e o que ela recebe
em troca?’’, ele responde:
Tudo isso é demasiadamente delicado para mim. Ao diabo se
fosse preciso que um homem o tempo todo/ Se exaltasse
preciosamente com sua mulher, para saber se realmente ele bem
mediu/ A afeição que merece. Germaine ou Pétronille, verificando
o estado de seu coração, que complicação! (ibid., p. 1008).

Em suma, ele o diz: “Eu sou o Homem” (ibid., p. 995). Em


seguida, há Mésa, que já se contentara em retirar-se do convívio
com os homens, aquele que busca Deus e que encontra a mulher.
Quanto a ela, a bela Ysé — pois, sem dúvida, ela é bela — será que
nos permitirá responder a pergunta: que quer ela, se ela é verdadei­
ramente mulher?

Que quer Ysé?

Já sabemos o que ela tem: o esposo e os filhos, de quem nos


fala o bastante para sabermos que constituem a sua felicidade; de
saída, ela está inscrita na dialética da troca fálica. Somos também
rapidamente informados de que esta felicidade não é o que ela quer:

Ah? Pois bem, se eu me apego a esta felicidade, seja o que for


o que vocês chamem assim,/ Que eu seja uma outra! Que uma
condenação caia sobre mim se eu não estiver pronta a sacudi-la
de minha cabeça/ Como um desses arranjos de cabeça que
desfazemos! (Ibid., p. 998)

Depois, ouvimos ressoar sua demanda: uma demanda premente


que endereça ao esposo no início do ato II. Recém-chegado da China,
ele está prestes a partir de novo, não se sabe para onde, devido a
seus negócios incertos e suspeitos, pois, acredita ele, este é o preço
do sucesso.

Ysé — Não parta não.


De Ciz - Mas eu lhe digo, é absolutamente necessário!
Ysé — Amado, não parta. [...]

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COLETTE SOLER

Eu abrevio. Ela porém insiste, depois suplica, finge ter medo-


Tu me censuravas por ser orgulhosa, por jamais querer dizer
e nada pedir. Fica então satisfeito. Tu me vês humilhada. Não
me deixes mais. Não mais me deixes só.
Gentilmente estúpido, ele nada escuta e crê poder triunfar:

Então
Deve-se de fato confessar, no fim de tudo, que se tem mesmo
assim necessidade de seu marido!, etc.
Nesse momento, ela lhe insinua uma dúvida:
Não confie tanto em mim.
Ele não acredita, e ela deve dizer de modo mais preciso:

Não sei; sinto em mim uma tentação. [...] E rezo para que essa
tentação não me ocorra, pois não se deve [...] (ibid., p. 1017-8).

Eis aí as reticências. Não era contra os perigos da China que


ela pedia socorro, mas contra a Coisa a mais próxima. Em suma, ela
lhe diz: protege-me de mim mesma. Uma passagem, suprimida na
versão para o palco e recolocada na nova versão de 1948 (ibid., p.
Il84), diz mais cruamente ainda para que serve um marido, ao
menos para Ysé:

Afinal de contas, eu sou uma mulher, isso não é tão


complicado.
De que ele precisa?
Que a segurança tal como a abelha ative a colmeia bem
fechada?
E não esta liberdade espantosa? Não me havia eu entregue?
E eu queria pensar que agora estaria bem tranqüila,
Que estava garantida, que haveria sempre alguém comigo
Para me conduzir [...].
Isso não diz o que é a tentação de Ysé. A evidência proporia
que respondêssemos: a tentação de um outro amor, talvez de um
amor outro. É nisso que poderíamos acreditar se interrogásserno
não mais sua demanda, mas sua conduta.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ysé trai por crês vezes e cada um dos três homens. No aro II
ela trai De Ciz, o mando obtuso que nada compreende, com Mesa
o homem do absoluto que ela arrebata a Deus. No ato III ela está
com Amalric, que a tirou de Mesa, a quem por sua vez ela trairá-
deixando-o na ilusão da vida, ela volta, no último epitalàmio para
Mesa e... para a morte. E a presença desta última, sempre ali em
contraponto ao amor traído ou escolhido que impede que se leta
Claudel, se por acaso alguém estivesse tentado, tal como lemos
Marivaux - que, aliás, se lê mal - com a chave das manhas femi-
ninas, sempre muito cômoda, é verdade.
Ysé para Mesa:

Sabes que sou uma pobre mulher e que se [...] me chamares


por meu nome
Por teu nome, por um nome que conheças e eu não, ouvinte,
Há uma mulher em mim que não poderá impedir-se dè
responder-te (ibid., p. 1005).

E ainda, no admirável duo do ato II:

'...] Tudo, tudo e eu!


1 portanto verdade, Mesa, que existo só e eis o mundo
repudiado, e para o que nosso amor serve aos outros?
E eis o passado e o futuro ao mesmo tempo
Renunciados, não há mais família e filhos e marido e amigos,
E todo universo à nossa volta.
Vazio de nós [...] • r 1
Mas isso que desejamos, não é mais criar e sim destruir [...]
(ibid., p. 1026).

Eis, na verdade, dizemos, o voto demasiado conhecido d


única — que aliás se distingue da reivindicação de privilégio, que
pertence ao registro da justiça distributiva e a exaltação do a
pela morte. De fato, o tema não é novo; é até clássico (cf. Denis
Rougemont, 1962).
Claudel-Ysé o eleva apenas à dimensão absoluta não do amor
místico, mas antes de uma mística do amor que vem ali on

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COLETTE SOLER

se retirou. É a tentação de um amor tão total, tão absoluto quanto


irrespirável, que varre não somente as misérias do compromisso
mas que esvazia de sua substância os objetos mais caros; que leva à
morte toda diferença e que se afirma sob a forma de um aniquila,
mento — deve-se distinguir, é claro, da denegação — de todos os
objetos correlatos à função fálica, ou seja, à falta. E precisamente
esta face deletéria que Ysé evoca ao falar de sua tentação:

Compreenda de que raça eu sou! Porque uma coisa é má,


Porque ela é louca, porque ela é ruína e a morte é a minha
perdição e a de todos,
Não será uma tentação a qual mal posso apegar-me? (1966,
p. 101 8).

Mais que o simples apelo ao amor, não será, através dele, o


apelo a alguma coisa de mais radical, a tentação aniquilante por
excelência?

A marca da mulher

Afinal, o que quer Ysé? Seria apressado concluir, a partir de


suas flutuações, que ela não sabe o que quer, como se diz tão
frequentemente das mulheres. Suas flutuações antes traduzem que
ela não ousa querer — no sentido da vontade assumida — o que
ela deseja no sentido do inconsciente, como Outro. Sem dúvida, ela
não sabe o que é, exceto que isso se manifesta sob a forma de uma
tentação, contra a qual ela apela para o esposo e para amores mais
ponderados. Ela não pode evocá-lo senão como esse poder que bar­
ra tudo o que o Outro fez emergir, esta fascinação pelo abismo,
desumana e parente da morte ”2. Assim a esplêndida Ysé, com seu
belo sorriso e toda sua malícia juvenil, nos faz perceber um hori­
zonte antes funesto, no qual reina a aspiração mortal que rompe
todo laço humano, que apaga os homens que ela ama assim como
os filhos que a peça deixa ausentes, porém sobre os quais várias

2. São os termos que Lacan aplica à própria verdade.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

vezes ela diz o quanto lhe eram preciosos, em nome de um voto


propriamente abissal, de uma vertigem do absoluto, da qual o amor
e a morte não são senão os nomes mais comuns, e para os quais o
nome de gozo não seria mal vindo.
Em Ysé, não é a traição que faz a marca própria da mulher.
Certamente ela trai, mas não um objeto com outro, um homem
com outro; ela trai antes todos os objetos que respondem à falta
inscrita pela função fálica em benefício do abismo. Esse traço de
aniquilamento, quase sacrificial, é a marca própria que designa o
umbral, a fronteira da parte não-toda fálica.
Encontro a confirmação dessa hipótese no fato de Lacan, após
ter evocado Ysé na página 3 62 do Seminário, livro 8: a transferência
(1960-1), também referir-se ao livro esquecido de Léon Bloy A
mulher pobre (I9SO), do qual afirma que contém numerosas citações
que deveriam interessar os psicanalistas. Senão vejamos: o romance
quase termina com esta frase concernindo à heroina, e surpreen­
dente para nós que lemos Lacan: “Ela compreendeu inclusive, e isso
não está muito longe do sublime, que a mulher não existe verdadei­
ramente senão na condição de estar sem pão, sem teto, sem amigos,
sem esposo, e sem filhos. E apenas assim ela pode forçar seu senhor
a descer”. A crer no autor, esta assunção da renúncia deixa ainda
duas vias: a da santa e a da puta, segundo as duas modalidades que
ele supõe infinitas, a saber, a beatitude e a volúpia. Compreenderí­
amos com isso que o destino das mulheres deva muito à época e
que aquilo que se refugia nos dias de hoje nos pobres dramas da
vida amorosa — o infinito ao alcance dos cãezinhos de madame,
dizia Céline — tenha podido encontrar um outro campo nos períodos
de fé ardente. Em todo caso, é esse mesmo traço de renúncia, ou
mais exatamente de desligamento a respeito dos objetos, que Lacan
reconhece em Kierkegaard na sua abordagem da ex-sistência.
Sem dúvida podemos fazer valer esse outro gozo pelos prestígios
sempre opacos do lirismo ou pelos mistérios da escrita poética,
porém quero ressaltar que essa marca de aniquilamento a qual me
referi indica uma estrutura a trabalhar. De fato, se o não-toda tem

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COLETTE SOLER

a ver com “um bem no segundo grau", que não é causado por um
a« • notemo-lo — sua diferença não poderia se fazer valer
senão em uma démarche de aspecto subtrativo, que é propriamente
j ararão na qual se afirma uma emancipação anuladora. no
de separa^u, -1 _ j t kt- /
sentido libidinal do termo, em relaçao a todo objeto. Nao e o fur­
tar-se da histérica, tampouco a ambivalência denegadora, pois ambas
descobrem apenas o parêntese vazio em que vêm todos os objetos
do sujeito, ao passo que a outra visada apaga do mesmo modo esse
vazio do qual o objeto se sustenta. De onde, às vezes, posturas que
cremos de liberdade soberana! (cf. ainda Freud).

O não-todo na psicanálise

Daí muitas afirmações da teoria analítica, concernindo às ditas


mulheres, poderiam ser retomadas e esclarecidas de um outro ângulo.
Darei disso, a título de prospecção, algumas amostras.
Inicialmente, a mulher pobre. Tal como Léon Bloy a trata, ela
permitiria renovar um pouco o famoso par da rica e da pobre que
assediava a fantasia do Homem dos ratos e que, graças aos bons cuidados
de Freud, se tornou imortalizado na teoria analítica. Pois não tem o
mesmo destaque assinalar que o traço do ter ou do não ter torna
uma mulher apropriada a fantasia do homem, e advertir-se de que a
pobre, pobre de todos os objetos da serie fálica, pode não obstante
ser rica de um outro bem, como diz Lacan, que não demanda nada
à fantasia do homem. Aí poderíamos verificar, sem excesso de suti­
leza, que a pobre e... a rica de uma outra volúpia ou beatitude. Isso
iria bem com o fato de que Lacan, nas páginas em que evoca essa
mulher pobre de Bloy, observa que o santo é um rico... de gozo, é
claro.
A seguir, a mulher abstinente. Poderia retomar o texto que
Freud consagra à sexualidade feminina em 193 I. Segundo ele. das
orientações prescritas a menina conforme o destino da famosa
pênis, tomamos sobretudo as duas últimas, a saber, o
P xo de masculinidade e o que ele chama de atitude feminina

196

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I- A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

normal. Uma é, na realidade, o falicismo do ter e sua metonímia.


A outra, que conduz à escolha heterossexual do homem como subs­
tituto do pai, se desdobra como um falicismo do ser — cf. “ser o
falo’’ promovido por Lacan com a Bela Açougueira 5 — que torna
a mulher própria para se fazer o fiador objetai da falta fálica. Quanto
àquela que Freud primeiro anuncia, ela consiste, segundo seus ter­
mos, na renúncia completa a toda sexualidade, no sentido das duas
outras vias acima enumeradas. Sem dúvida não dispomos sobre este
ponto de exemplos freudianos, mas o destino de privação que ali é
evocado, essa renúncia ascética como efeito do primeiro despeito, é
ambíguo, pois se ele indica claramente a elisão do desejo sexual —
não apenas em ato, mas inclusive na fantasia — ele deixa perfeita­
mente indeterminada a questão da relação ao gozo outro.
Isso me leva a interrogar uma outra vez o lugar da fantasia
para o sujeito que se alinha do lado feminino e que, não o esqueçamos,
se nos atemos à tese de Lacan, pode ser anatomicamente homem ou
mulher. Se a fantasia é o que tampona a castração através de um
objeto mais-gozar, o sujeito não tem fantasia senão quando inscrito
na função fálica, na lógica do todos castrados. Nesse sentido, o
não-todo como tal poderia ser pensado como sujeito à fantasia.
Não é o que diz Lacan ao enfatizar, no Seminário, livro 2.0: mais, ainda,
que é apenas do lado homem que o objeto a é o parceiro que faz
suplência à falta da relação sexual? Que a fantasia, como aliás as
pulsões parciais, tenha sido descoberta por Freud, a partir dos ditos
das mulheres histéricas, não é uma objeção, pois a histérica como
tal não é do registro do não-todo, mas antes é identificada ao que
está sujeito à castração, ou seja, como diz Lacan, “homossexual ou
fora do sexo4. Aqui se inseriria a questão da criança como objeto, e
de seu lugar no esquartejamento do A barrado, entre a relação ao

N. do E. Cf. neste volume os desenvolvimentos propostos pela autora no


texto ‘A histérica e ^mulher: clínica diferencial”, p. 223-25 3.
4. ngraçado, observa Lacan na p. 80 do Seminário, livro 20: mais, ainda, que Freud
enha no início atribuído o a, como causa do desejo, à mulher: E verdadeiramen-
e Urna confirmação o fato de que, quando se é homem, vemos na parceria aquilo
COrn clue nos suportamos a nós-mesmos

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COLETTE SOLER

falo e o silêncio do S (/(). De um outro> viés, seria preciso dar peso


gundo a qual a mulher não tem um incons-
a afirmação de Lacan, se<_
ciente senão dali de onde o homem a vê, *, o que deixa o inconsciente
se nenhum saber responde a isso, e se
dele num estranho suspense
fax com que ela saiba nada ( I 972- 3, p. 9Oj.
ele ex-siste do Outro que
essencialmente: pediríamos nós a um tal sujeito
Porém, mais
consentir no que a coisa quer dele, um
querer o que ele deseja
desconhecimento desertado de qualquer objeto , mesmo quando o
consentimento à destituição final da análise é condicionado por
um vislumbre do objeto? Creio que na realidade, quero dizer na
prática, os an alistas têm sobretudo c o mo mclinaçao, e talvez como
recurso, sugerir ao sujeito o enganchamento ao todo fálico, sob
suas diversas for m a s ----- disso ha m u 11 a s. A o m enos e assi m que m e
explico sua demasiado evidente e bem intencionada parcialidade
pelo conjugal e pela maternidade. Tenho mesmo algumas razões
para pensar que Lacan não operava de outro modo.
Todavia isso não exclui a questão dos traços diferenciais do
final. A desidentificação e a desfalicização do final da análise não
deixam, em geral, o sujeito desarrimado: quaisquer que sejam as
vacilações que tenha tido para atravessar em seus momentos de
passe, ele rapidamente reencontra uma posição, pois permanece com
o lastro pelo objeto ----- o objeto em sua consistência de gozo. Não
é necessariamente assim para o mais-além de sua importância na
função fálica.

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O NÃO-TODO DO GOZO E
A SEXUALIDADE FEMININA*

O falocentrismo do inconsciente

Quando em 1972. em “O Aturdito”, Lacan produz as fórmu­


las lógicas ditas da sexuação, ele não faz objeção ao falocentrismo
freudiano: ele refuta o Edipo como mito e mesmo comédia do "Pai-
Orango, do perorando-Otango”1 para reduzi-lo à lógica única da
castração e acrescenta que esta lógica não regula todo o campo do
gozo. Há uma parte que não passa para o Um fálico e permanece
real. Dizer que a mulher não existe é dizer que a mulher não é senão
o nome desse gozo real. Quanto às mulheres que existem, aquelas
que a condição civil reconhece em função da anatomia, elas também
não deixam de passar pelo golpe do primado do falo. Dizê-las não-
todas na função fálica, reconhecer-lhes um outro gozo que não aquele
organizado da castração, não é creditar a elas uma “natureza
antifálica” qualquer. Lacan o precisou para deter o mal-entendido.
Na controvérsia do falo, ele se posiciona do lado de Freud, de modo
bastante explícito, para afirmar “com base em fatos clínicos”(l958,
p. 686) o falocentrismo do inconsciente. O semblante fálico é o
significante-mestre da relação ao sexo. Ele organiza a diferença entre
homens e mulheres assim como suas relações.
A abordagem do não-toda e da sexualidade feminina supõe
portanto que os seguintes pontos sejam examinados:

* “Le pastout de la jouissance et la sexualité féminine . Publicado em Ltttrt


Aímm/Zí, n. II2, setembro de 1992.
I. N. do T. No original, “Père-Orang, du pérorant-Outang”. Em francês ha,
por homofonia, em ptrorant um jogo de palavras entre o gerúndio do verbo prrorrr
(perorar) eptrt-orant (pai-orango). Do mesmo modo entre pérorant Outang (pero­
rando otango) eptre Orang-Outang (pai orangotango). Optamos pela manutenção
da forma verbal perorando’ a fim de ressaltar a ação de discursar pretensiosa­
mente, falar sem parar. Lembramos ainda que etimologicamente orangotango
provém do malaio orang-utan (homem da floresta virgem).

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COLETTE SOLER

- como a dialética fálica funciona no nível do desejo sexuado


que condiciona a relação entre os sexos?
- quais são os modos do gozo fálico nas mulheres, uma vez
que dele elas estão muito longe de serem privadas?
- como o gozo suplementar que a feminilidade disfarça e que
a faz não outro sexo, mas Outro absoluto vem incidir na subjetividade?

O desejo feminino

A dissimctria de homens e mulheres em relação à função fálica


é situada por Lacan a partir de uma oposição entre um “ter" e um
‘‘ser o falo”(ibid., p. 694 e 1972, p. 14). A subjetivação do sexo
que a teoria de modo geral abordou em termos de identificação,
imaginários portanto, só se decide de fato no nível da relação à
castração.
Este “ser o falo” designa a mulher uma vez que na relação
sexuada ela é chamada ao lugar do objeto. No amor, pela graça do
desejo do parceiro, a falta a ser da mulher se converte em um efeito dt
ser quase compensatório: ela se torna o que ela não tem. Até então o
objeto que ela é não diz nada dos objetos que ela tem, dos que
causam seu desejo. Evidentemente a questão passa a ser sobre a
posição que a torna apropriada para vir nesse lugar que a faz falo.
“Ser o falo” é uma fórmula desconhecida do vocabulário
freudiano, embora nele ela esteja latente quando Freud insiste sobre
o fato de que a mulher compensa sua falta fálica com o amor do
homem. Sabe-se que Freud inscreve homem e mulher com um ter
ou não o falo, e destina três saídas — renúncia, masculinidade,
feminilidade — para a inveja do pênis, “nostalgia da falta a ter diz
Lacan de modo mais charmoso. Deve-se frisar que o terceiro caso
da evolução dita normal não significa renúncia ao ter fálico. Segundo
Freud, a mulher-mulher se distingue pelo fato de que, contraria­
mente à saída pela masculinidade, o sujeito não se propõe a conse­
guir sozinho o substituto fálico; ela o espera de um homem, espe­
cialmente sob a forma de um filho. Ela não renuncia ao falo porém

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

admite passar por ele pela mediação do parceiro, aquele que tem.
Assim a mulher freudiana é aquela que consente em dizer “muito
obrigada’’. Salta aos olhos que isso implica, embora Freud não o
formule assim, uma subjetivação da falta que supõe sua aquiescência
à injusta distribuição do semblante — sem reivindicação — e seu
consentimento em estar à mercê do encontro do desejo do homem.
As fórmulas de Lacan não fazem objeção a isso; ao contrário,
é o “não ter” feminino que condiciona para a mulher sua posição
de objeto fálico: é a ausência do pênis que a faz falo(l960b, p. 825).
Isso significa que ela não é objeto senão na condição de encarnar
para o parceiro a significação da castração, de se apresentar com o
sinal menos — é por isso que Lacan deu tanta importância para d
mulher pobre (I98o) de León Bloy. A fórmula é generalizável e gene­
ralizada por Lacan, sem dizer respeito à anatomia: é a falta, pênis
ou não, que faz ser objeto — cf. Sócrates (I9óob, p. 825). Portan­
to o caminho está aberto como possibilidade para cada um, homem
ou mulher, de ser uma mulher, a saber, o que se junta ao homem sob
o modo do objeto.
No entanto Lacan se afasta de Freud num ponto. Para este, a
mulher compensa sua falta fálica através do ter um filho; disto
resulta que o desejo propriamente feminino torna-se o desejo de
filho. Há uma sobreposição freudiana da mulher sobre a mãe. Lacan
não cai nessa. De fato, ele faz do filho um possível objeto a para
uma mulher(1972-3), mas situa alhures o mais-gozar propriamente
feminino. O filho intervém como tampão do não-toda e a partir
daí há um hiato entre a mãe e a mulher, cuja clínica esta para ser
desenvolvida. Se a criança fálica é suscetível de tamponar, de fazer
calar a exigência propriamente feminina, vê-se em todo caso que o
dom de um filho que um homem faz a uma mulher esta longe de
ter um sentido unívoco. Aqui também os fatos devem ser recolhidos
na experiência. De todo modo, ainda que a criança como resto da
telação sexual bem possa parcialmente obstruir a falta falica na
tnulher, ela não é a causa do desejo sexuado feminino. É o orgão viril,
transformado em “fetiche” pelo significante fálico, que preenche essa

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COLETTE SOLER

f ~o Dito de outro modo, pela operação do semblante o próprio


óUrX é promovido à posição de mais-de-gozar (195 8, p. 694 e
I97O, p. 90). Eis aí a tese na sua justa proporção: uma vez que o
ozo da cópula é “articulado com um mais-gozar” causa do desejo
para o homem, é o objeto a da fantasia que sustenta esse papel, e o
parceiro permanece Outro absoluto; para uma mulher é o semblante
tornado fetiche, retirado de um parceiro, que se torna amante
castrado. Precisamos ainda demarcar a fronteira entre histeria e
feminilidade.

A mulher e os dois gogos

O gozo fálico como gozo do Um é gozo localizado, fora-do-


corpo, e também limitado. Por esse fato, ele é correlativo da falta a
gozar da castração, e funda o imperativo de gozo do supereu que
mantém a culpa. No campo do erotismo, o gozo masturbatório do
órgão fornece seu paradigma, que se desloca para o homem até o
coração da relação sexual. Para a mulher, acreditou-se encontrar seu
equivalente no gozo clitoridiano. As outras formas estão aí para
serem recenseadas. Desde a penhora de um homem até a seriação
de órgãos anônimos de nossas modernas colecionadoras. O gozo
fálico nao se limita no entanto ao registro do erotismo. Ele subtende
também o conjunto de realizações do sujeito no campo da realidade
e realiza a substância das satisfações que aí se... capitalizam. Daí a
questão do lugar que, para cada sujeito, a economia de conjunto do
gozo fálico deixa para o campo fechado” da relação sexual assim
como do deslocamento da fronteira entre o amor e a cópula aí ope­
rado por aquela. Será que o mapa do Tendre2 e a agenda sobre­
carregada do homem moderno fazem tão bom ménage? Nesse campo
da realidade, posto cada vez mais sob o signo do unissex pela evo­
lução das mentalidades, dos costumes, dos hábitos e dos grupos

2. N. do T. carte du Tendre. Mapa de um país imaginário, alegórico, o país do


Tendre, onde os diversos caminhos do amor foram imaginados por Mlle. de
Scundéry e os escritores de sua roda.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

sociais, as mulheres, cujos gozos foram durante tanto tempo confi­


nados pelo efeito do discurso dominante ao perímetro da casa —
aí incluindo esposo e filho — viram se abrirem todas as portas da
competição falica. Esses remanejamentos próprios da época não
são sem consequências sobre as condutas e os ideais sexuados, nem
sobretudo sem novos efeitos subjetivos, cuja clínica está para ser
feita. Efeitos na maioria das vezes de discordância, a divisão pró­
pria ao sujeito redobrando-se nas mulheres a partir de uma divisão
das visadas de gozo não harmônicas, de onde a culpa e a inibição se
mantêm e se redobram.
Quanto ao outro gozo que não cai sob o golpe da castração,
que nada sabe do falo — eis o forçamento (forçagc) freudiano —
que não é nem o gozo fálico, nem o mais-de-gozar correlativo à
castração, que não passa pelo significante e que faz crer que as
mulheres não dizem tudo porque elas não dizem absolutamente
nada, seria a clínica deste gozo ao menos concebível? É preciso
distingui-lo desde já dos gozos que a teoria situou como pré-genitais
e aos quais a criança, independentemente de seu sexo, é iniciada na
relação com a mãe como Outro e como objeto primordial. Sem
dúvida estes põem em cena o corpo, mas são também fora-do-corpo
e são tão submetidos à estrutura fragmentada do significante quanto
o gozo fálico. A relação ao corpo da mãe não é a chave do gozo
outro. As epifanias deste último na relação sexual — o famoso
gozo dito vaginal — ou alhures — os místicos, por exemplo só
se atestam no nível do que se experimenta sem se inscrever em um
saber. Ele é gozo real que por definição recepta. Dai sua evocação
em uma estrutura que é necessariamente de mat$~alem: mais-alem do
falo, mais-além do objeto, mais-além do dizer, essa estrutura do
mais-além negativando todo o aquém dt. O que se pode estudar, em
contrapartida, são suas consequências subjetivas. O encontro com
um gozo que abole o sujeito, que o ultrapassa (1972, p- 23),
deixando-o entre **uma pura ausência e uma pura sensibilidade
(l 962, p. 73 3), que não pode ser senão re-suscitado (1972,p.23)
sem ser tornado significante, divide o sujeito feminino e dessa forma

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gera defesas, recursos e exigências específicas


— a serem estudadas
— estando em primeiro lugar aquela de ser identificada como a
única.

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mascaradas*

De um modo geral gostamos de baile de máscaras. Deve ser


como a criança que brinca de reproduzir ofort-da ao qual se sujeita.
Lacan se divertia repetindo: no final do baile, não era ele, não era
ela. Mas será que sempre há um final de baile? Não era ele, não era
ela. A distância do semblante ao real aqui não se evoca senão pela
negação, e a própria “bem-aventurada” imaginação teria muitas di­
ficuldades de somente representar um “se fosse ele, se fosse ela”.
Então, viva a comédia, única a ser recíproca entre os sexos.
No baile do Outro, mascarada feminina e parada viril se res­
pondem com precaução. Sem dúvida em benefício do riso, mas sem...
simulação. O recalque do falo, que ordena a relação entre o homem
e a mulher, escava o lugar onde o “parecer” (Lacan, 1958, p. 694)
é mestre. Mas não nos enganemos sobre o parecer: o ser é seu irmão
siamês.
Em 1958 Lacan respondia a questão de saber até onde vai o
reino do semblante na relação entre os sexos: até o ato da cópula.
Nenhum mais-além, portanto. O toque do Outro, do qual se
desnatura a alteridade do sexo, não poupa a intimidade da alcova e
a mascarada não é um traje que se tire atravessada a porta, porque
não há porta além da qual a suposta natureza retome seus direitos.
Como os efeitos de gozo seriam disso poupados? E a tese de Lacan
e ele a ilustra com nada menos do que a frigidez feminina, resultado
de uma defesa concebida “na dimensão de mascarada que a presença
do Outro libera no papel sexual”(l962, p. 732), e com a opção
homossexual pensada como uma resposta à decepção da demanda
(1958, p. 695). E dizer que as identificações, efeitos de um desejo,
são também causa senão do gozo sexual, ao menos das vias que a ele
conduzem.

Mascarades . Publicado em Lettrc Mtnsuellt, n. 116, janeiro de 1993-

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A mascarada, evocada por Lacan como efeito de véu, não dis­


simula. Ela antes trai o desejo que a orienta.' Isso quer dizer que a
interpretação não passa por trás do véu, mas conclui a partir do que
aí se desenha das demandas do Outro ao que as assedia. Todas as
práticas de adereços, no que manipulam o parecer, fazem aparecer a
afinidade do objeto com seu invólucro. Mesmo ao nível da causa do
desejo, o hábito faz o monge. E a ênfase do Seminário, livro 2.0: mais,
ainda (1972-3). O objeto avança sempre mascarado, pois ele só é
objeto à medida que o Outro nele reconhece suas cores. Razão pela
qual Don Juan é um mito.
Não posso dizer o que tu és para mim, diz o sujeito. Acres­
centemos aí, dirigido ao objeto, um: “Mas tu me mostras o que eu
sou”... Felicidade! Não era ele, não era ela, mas era isso mesmo
assim.
A divergência dos sexos a respeito do semblante fálico se re­
percute cm uma dissimetria nos modos macho e fêmea de se dar ao
trabalho, como se diz: um desfila na parada como desejante, o ou­
tro, como desejável, e a língua mantém o traço do umbral onde se
detém o que chamei de unissex, não importa qual seja seu império.
De um lado, a exibição ostentadora com sua nuança de intimidação
defensiva. Do verbo paramentar à parada viril há aliás a mesma
etimologia, a conotação militar não estando longe e o sério, sempre
ali. Do outro lado, a armadilha disfarçada, com sua nota de (fa)lácia,
de astúcia e de... derrisão. Um se paramenta com plumas de pavão,
o outro, ou melhor a outra, se faz camaleoa. Fazer consentir e fazer
desejar têm este preço. As maneiras variam sem dúvida, mas perma­
nece a estrutura que sempre envolve o ponto de falta do sujeito,
não deixando lugar a nenhum novo tratado da sedução.
Compreende-se que seja na mulher, uma vez que ela se junta
ao homem, que a mascarada é mais visível, indo até uma abnegaçao.
uma Verwerfuiig diz Lacan, de seu ser. Sabemos que os psicanalistas,
com dificuldade de apreender a essência da feminilidade, forjaram

I. Tributo a ênfase colocada sobre este ponto ao desenvolvimento que faz J


Miller de uma observação de Lacan sobre a função da máscara em •

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

0 que Lacan qualificou de concepção monstruosa, aquela do maso­


quismo feminino. Como se lhes parecesse inconcebível que um su­
jeito possa oferecer-se como objeto é o caso da mulher em sua
relação com o desejo do homem — sem ser masoquista! Sem dú­
vida o masoquista, na cena de seu cenário, empenha-se em fazer
uma mostração (nwnstration') irônica de um: faz de mim o que te
dá prazer. As mulheres, de seu lado, deploram com alarde o que a
alienação própria à sua posição as faz suportar. A ponto de nos
perguntarmos, com efeito, o que bem pode impeli-las a assumir
esta posição, uma vez que nada as obriga a isso se elas não o querem.
É o que Lacan leva em consideração. Daí também o clamor de algumas
feministas que, levando o extremismo até o querer proscrever toda
relação sexual, interpelam suas confreiras: Mulheres, são vocês
masoquistas?
Não é a ultrapassagem dos limites do princípio do prazer que
faz o masoquismo; é o masoquismo universal do ser falante que
nada tem de especificamente feminino.
O masoquista, o verdadeiro, quase sempre homem, é conhecido:
visa no Outro o ponto onde os semblantes desfalecem, justamente
aquele onde em geral cada um recua, pois ninguém se instala de
bom grado sobre as bordas da angústia pura. O masoquista o sabe,
e funda nisso a segurança tranquila de sua simulação — pelo me­
nos é assim que compreendo Lacan qualificá-lo de farsista. E o
ponto que o neurótico em geral, em especial a histérica, evita com
cuidado uma escolha: aquela do desejo, a fim de se preservar do
real. Vê-se bem então por que as mulheres como tal não são nada
masoquistas. É que elas estão muito longe de visarem mais-alem do
semblante, ao qual seus charmes tanto devem, quase tudo. Sua
derrisão, por ser efetiva, não deixa de ser de superfície. Ela exprime
apenas o protesto contra a alienação de seu ser na mascarada à qual
a estrutura as condena; todavia passar mais-além seria sacrificar o
próprio semblante da mulher. Em sua maioria, a experiência mostra
4Ue disso elas se guardam.

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POSIÇÃO MASOQUISTA, POSIÇÃO FEMININA*

[...] tudo pode ser imputado à mulher já que, na dialética


falocêntrica, ela representa o Outro absoluto (Lacan, 1962,
p. 732).

A questão na qual Freud tropeçou, “o que quer a mulher?”,


continua assediando os discursos. Circulou uma resposta que dizia:
ela quer sofrer. Os enunciados culpáveis desta tese são de Freud,
especialmente em seus dois textos “Uma criança é espancada” (1919)
e “O problema econômico do masoquismo” (1924). A tese não
consiste em dizer que há mulheres masoquistas — há mulheres e
também homens. Ela tampouco se contenta simplesmente em afirmar
que as mulheres sofrem — de fato elas sofrem da falta fálica,
porém não mais que os homens sofrem da ameaça de castração. Ela
sustenta que o desejo feminino é essencialmente masoquista, que
ele visa gozar da dor e mesmo fazer-se mártir do Outro. Preconceito,
diz Lacan, e “monstruoso”. Os analistas pós-freudianos, particu­
larmente as mulheres, foram nisso mais do que complacentes e a
tese se manteve “não discutida, contrariamente à acumulação”
(1962, p. 731) dos fatos clínicos de sentido oposto. Seria essa a
tese de Freud, mais-além se seus enunciados?
As fórmulas de Freud, ao menos se as isolarmos, parecem não
deixar nenhum lugar para a dúvida. Existem muitas; tomarei duas,
as mais surpreendentes. Ao evocar as encenações dos masoquistas
homens, ele diz e repete que “seu masoquismo coincide com uma
posiçãofeminina”(1919, p. 237). Mais radicalmente ainda, quando
Freud introduz a noção de “masoquismo feminino”, distinguindo-o
do masoquismo erógeno ou moral, ele o define como “expressão
do ser da mulher”(1924, p. 289).

Position masochiste, position fémtnine”. Publicado em La CauseFreudienne,


n- 24, 1993

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COLETTE SOLER

Essas fórmulas, Freud as comenta o suficiente para que seu


sentido não deixe dúvidas no contexto. Elas não visam esclarecer o
problema da feminilidade, mas aquele das fantasias e práticas perversas,
especialmente no homem (ibid.). Elas inscrevem a equivalência ima­
ginária que Freud descobre entre o “fazer-se bater’’ do masoquista
e o que ele chama de "papel” feminino na relação sexual. Para se
fazer tratar como o objeto do pai — expressão que Freud faz eqüivaler
a se fazer tratar como uma mulher — o masoquista não tem outro
recurso senão o de fazer-se bater. Vemos que aí o termo de posição
feminina merece ser precisado. Ele não designa de modo direto o
que nomeamos uma posição subjetiva. Ele se refere primeiro a um
lugar no casal sexual em que é o outro, o homem, que é sujeito do
desejo. A insistência de Freud em frisar a ligação da fantasia maso­
quista com o desejo edipiano e a identificação fortemente afirmada
do outro que bate com o pai — mesmo quando na imaginação cons­
ciente do sujeito é a mãe — indicam de modo claro que ele explora
aí uma das versões do casal sexual.
Ele declina: as metonímias das representações de gozo, a saber,
fazer-se amordaçar, amarrar, bater, chicotear, maltratar de um jeito
ou de outro, forçar-se a uma obediência incondicional, desonrar,
rebaixar (ibid.); a ordem e a variedade das pulsões implicadas: orais,
anais, sádicas, segundo se trate de oferecer a si próprio para ser
devorado, batido ou possuído sexualmente (ibid., p. 292); e enfim
a série das encarnações do objeto: a criança dependente, a criança
malvada, a mulher como castrada e submetendo-se ao coito. É visível,
Freud explora metodicamente uma das versões do objeto comple­
mentar do desejo masculino. E ele descobre, sem enunciá-lo abso­
lutamente, para surpresa sua, o que Lacan formulará alguns anos
mais tarde, ou seja, que este objeto é a-sexual. É bem isso o que
Freud diz ao qualificá-lo de “pré-genital”.
Sua definição de a essência do masoquismo”(l9I9> p- 229)
e uma confirmação. O masoquismo substitui, segundo ele, uma
fórmula de gozo por outra, é uma quase metáfora: 'ser batido é
substituído por “ser amado” no sentido genital. Freud qualifica

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

essa situação de “regressiva”, o que se repete na maioria das vezes


sem nisso mais pensar. Porém, com esse qualificativo, ele na verdade
introduz alguma coisa de muito preciso e que permanece quase
sempre despercebido. Para Freud, regressão quer dizer mudança real
no inconsciente. O recalque apaga um desejo da cena, mas o mantém
inalterado, semelhante a ele próprio no inconsciente. A regressão
ao contrário muda o estado das coisas no inconsciente, diz Freud.
O que dizer senão que o desejo e o gozo chamado por aquele se
encontram realmente modificados. Deduzamos: para Freud, ser
objeto sob o modo masoquista e ser objeto na relação sexual são
dois modos de desejo e de gozo diferentes. E certo que Freud
qualifica de “feminino” o masoquismo por ele descoberto nos ho­
mens. Mas ele o faz para marcar que na gênese desse masoquismo
se o sujeito termina por aspirar a ser batido, é para ser como a
mulher do pai. Assim que acrescenta que esta substituição regres­
siva produz uma mudança real no inconsciente, ele indica con­
trariamente a heterogeneidade das aspirações masoquista e
feminina.
Além disso é notável que quando Freud tenta abordar a ques­
tão do desejo feminino em seus textos anteriores “Algumas conse­
quências da distinção anatômica entre os sexos (1925). Sexuali­
dade feminina” (193 I) e “A feminilidade” (1932), ele não recorre
ao masoquismo. A sequência de suas elaborações e extraordinária.
Ele primeiro responde referindo-se à menina: ela quer o falo. Se
perguntássemos “o que quer o homem? , é surpreendente que nisso
ninguém pense, sem dúvida por já ter uma resposta, seria preciso
dizer que ele quer um objeto cujo valor de mais-de-gozar compense o
menos-gozar da castração. Apesar de sua diferença, ei-los portanto
em igualdade por sua referência comum ao falo. Freud não tem
senão uma só bússola para distinguir o homem e a mulher: os
avatares da castração, só uma referência, única verificável. Ele por­
tanto só aborda a especificidade da mulher pela subjetivação da
falta fálica. Notemos ademais que essa falta é precisamente o que abre
para uma mulher a possibilidade de ser objeto sem ser o objeto

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COLETTE SOLER

batido — embora às vezes possa acontecer que ela se faça bater,


quer ela o queira ou não. A sequência dos desenvolvimentos
freudianos terá assim começado por reduzir o Outro ao Um — ele
foi bastante criticado por isso!
Essa crítica não é completamente justificada. Freud afirma o
falocentrismo do inconsciente para todos, mas soube reconhecer
que não estava aí todo o mistério feminino. Desembocando ao final
de suas elaborações na questão “o que quer a mulher?”, ele indica
sem dúvida que percebe a parcialidade de sua solução, no sentido
de parcial e não de partidário. Além disso, as primeiras páginas do
texto “A feminilidade” colocam bem explicitamente que “não cabe
à psicanálise [...] descrever o que é a mulher” pois, diz Freud, é
uma “tarefa irrealizável” (1932, p. I 59). Esta observação vem após
duas outras bem precisas. Na primeira Freud se interroga outra vez
sobre a possibilidade de assimilar passividade e feminilidade. Ele
conclui categoricamente: “Esta concepção é errônea e inútil”(ibid.,
p. 1 5 8). Na segunda, retorna à hipótese do masoquismo. Reafirma
que o masoquismo é feminino, pois “as regras sociais e sua consti­
tuição própria constrangem a mulher a recalcar seus instintos
agressivos” (ibid.), porém recua de afirmar que a mulher seja maso­
quista como tal. Ele ressalta que há também muitos homens ma­
soquistas e extrai uma conseqüência: “Estamos prestes a reconhe­
cer que a própria psicologia não nos dá a chave do mistério femi­
nino”.
Concluo: Freud percebeu que a referência do falo não esgotava
a questão da feminilidade, e não confundiu o mais-além do falo
com a pulsão masoquista. Nesse sentido, a tese “mulher masoquista
não é a tese freudiana. Freud a introduziu e explorou, mas soube
reconhecer que não era... A resposta.
Observo alias que no final de seu artigo sobre a sexualidade
feminina, Freud revê — isso é um caso raro em sua obra — as
diversas contribuições dadas à questão por seus discípulos contem­
porâneos. Ele evoca o artigo de Helene Deutsch sobre o masoquismo
das mulheres (1931, p. 15 3). Seria de esperar que ele tomasse uma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

posição sobre a tese. Mas não. E bastante mordaz vê-lo felicitá-la


por uma coisa inteiramente outra, por ela ter reconhecido a relação
primária, pré-edipiana, à mãe. Assim ele permanece em sua justa
prudência um passo à frente de certos pós-freudianos. Explorando
a fantasia masoquista, ele na verdade descobre... outra coisa. De
início, a função da própria fantasia uma vez que ela transcende as
estruturas clínicas para os dois sexos e em parte permanece isolada
do conteúdo sintomático da neurose. Em seguida, a afinidade com
o sofrimento do que, a partir de Lacan, chamamos de gozo. De
fato, os textos que Freud consagra ao masoquismo, preciosos sob
vários aspectos, não nos ensinam nada da mulher em si, porém
muito ensinam da não-relação sexual e do gozo paradoxal do ser
falante.
As confusões pós-freudianas talvez não mereçam tanto inte­
resse. A retomada da questão por Lacan as rejeita quase aquém do
próprio Freud. A maioria depositou na conta do “masoquismo”
fenômenos muito heterogêneos. Sob essa categoria confundiram
inicialmente a perversão masoquista propriamente dita; a seguir, o
que a atividade da pulsão em si implica do mais-além do princípio
do prazer; e por fim, de modo mais geral, o que cada sujeito paga
por seu desejo, como preço do a mais-de-gozo que sua fantasia lhe
assegura. A fantasia repousa sem dúvida sobre um limite ao gozo,
mas podemos também perceber sem dificuldade, em cada caso, que
a lógica de uma vida se reduz a uma aritmética elementar fundada
pelo a priori da fantasia, e na qual toda questão concerne em passar
por perdas e ganhos dos mais-de-gozar. Entretanto o consentimento
em pagar o preço não faz o masoquista. Senão seria o masoquismo
universal do sujeito e se precisaria dizer: todos masoquistas, e tan­
to mais quanto mais houver um desejo decidido.
Sem dúvida as confusões pós-freudianas não são inocentes,
especialmente quando se trata das mulheres. Por vezes descobrimos
aí divertidas opiniões pré-concebidas nas quais aflora o que Lacan
detectou como idealizante na imputação de masoquismo. Extraio
do livro de Helene Deutsch A psicologia das mulheres um exemplo ao

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COLETTE SOLER

o paradigmático e engraçado. Trata-se de seu tomen-


mesmo tempo para g Carmem. Com um tocante frescor, ela
tário da célebre p“S°"’®pErsonagem comove profundamente cada
nos explica por qw “ Carmern se comporta com o homem como a
mulher. E que >z da qual sabe qUe arrancará as asas.
càdna5mulher é tocada por isso no mais fundo de seu set Que o
seia mas por quê? E eis o impagável comentário de Helene Deutsch;
cada uma reconhece ali o "masoquismo hrper-femmmo (1944. p. 247).
trágico e inconsciente, de Carmern. pois — não haveria por que
enganar-se — destruindo o homem, é seu próprio coração que ela
destrói e sua própria perda que assegura. Surpreendente. Imagine­
mos por um instante o argumento aplicado a todos os atormenta­
dores do mundo, algozes de todo tipo que compõem a história
humana...
Uma clínica diferencial da posição masoquista e da posição
feminina está por ser feita. Parto disto: é necessário que haja alguma
coisa que se preste à confusão para que a tese tenha podido se
sustentar, apelando para alguns fatos clínicos. Entre outros, este:
as próprias mulheres, muito freqüentemente, deploram seu maso­
quismo. O que há então de comum entre um masoquista e uma
mulher: A resposta é simples: um e outro no casal que formam
com o parceiro suposto desejante colocam-se no lugar do objeto.
Esse lugar evoca, e evidente, um terceiro, que é o analista. O maso­
quista, a mulher e o analista fazem série pelo fato de todos três
fazerem semblante de objeto — de modos com certeza bem dife­
rentes, pois nada permite supor que tudo o que faz semblante de
objeto esteja referido ao mesmo desejo. Daí a questão sobre o de­
sejo masoquista, o desejo feminino e o desejo... do analista.
Quando falarmos do ser da mulher, não esqueçamos de que
este é um ser dividido entre o que ela é para o Outro e o que ela é
como sujeito do desejo, entre seu ser complementar da castração
asculina, de um lado, e seu ser como sujeito do inconsciente, do
utro. Lacan observou em dada ocasião que seu lugar no casal sexual
tem como causa direta seu desejo próprio, mas o desejo do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

outro. Para ela, basta que se deixe desejar, no sentido do consenti­


mento. O fenômeno do estupro está aí, o que indica suficientemente
que esse consentimento nem mesmo e uma condição necessária.
Esse ser para o Outro, Lacan, a medida que progredia seu ensino,
designou-o com fórmulas diversas. Três dentre elas são bem
demarcáveis: "ser o falo”, o que ninguém poderia ser em si, "ser o
objeto” e enfim, em 1975, “ser o sintoma”. Com esta série ele se
esforçou em aproximar cada vez mais um mais-além do semblante,
que vai do real da castração ao real do gozo a-sexual, o qual não
pode senão "mentir ao parceiro”(1974, p. 21). Essas fórmula dei­
xam em suspenso a questão do desejo daquela ou daquele que vem
bancar o objeto. E por isto que o desejo do masoquista, o desejo da
mulher e o desejo do analista dão problema.
Resta então para a mulher deduzir seu desejo de sua posição
no casal sexual ou, para dizê-lo melhor com Lacan, encontrar
“o acesso que conduz da sexualidade feminina ao próprio desejo”( 1962,
p. 73 5). Podemos evidentemente supor que o consentimento que
evocava há pouco é o indício de um desejo. O próprio Freud assim
o entende quando desliza do papel erótico — ser possuído geni­
talmente — para a "disposição” subjetiva que é suposta lhe
corresponder, e que ele formula como um almejo: ser amado... pelo
pai.
Eu disse "bancar o objeto”, pois a expressão tem o mérito de
comportar uma nuança de artifício frisando bastante que o ser para
o Outro não poderia realizar-se sem a mediação do semblante.
E verdade da parte do analista que se presta à transferência, como
da mulher, cuja mascarada foi reconhecida antes mesmo que Joan
Rivière a nomeasse. Ao contrário do que se poderia crer, isso é
também verdade da parte do masoquista que só passa ao ato em
Urna cena. Freud ressaltou, com razão, o traço do jogo incluído em
Seu cenário, enquanto Lacan frisou, em diversas ocasiões, que o
Masoquismo, isso não é de verdade: aquele que Lacan qualifica de
ptadista ou de “delicado humorista”(l969-70, p. 75) exalta “por
SUa s*Mulação uma figura demonstrativa”(1967c, p- 58).

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COLETTE SOLER

Podemos tentar uma primeira aproximação dos feitios do objeto


nos três casos: o masoquista se quer objeto rebaixado, ele cultiva a
aparência do rebotalho, banca o dejeto. A mulher, ao contrário,
veste-se de brilhante fálico para ser o objeto agalmático. Quanto ao
analista, segundo o gosto das metamorfoses que a transferência lhe
impõe, ele passa do status de agalma do sujeito suposto saber que é
na entrada ao estado de rejeito em que ele se torna no final. Daí a
questão de saber o que pode incitá-lo a reproduzir este “arranjo” (I967d,
p. 49). Isso não passa portanto de uma primeira aproximação, pois
o objeto agalmático que sujeita o desejo não detém seu poder se­
não da falta que ele inclui. Este fato de estrutura está no funda­
mento do que se pode chamar de uma “mascarada masoquista”.
Sem ela, a tese do masoquista feminino teria sido muito menos
plausível.
A mascarada tem sem dúvida muitas facetas. Amiúde, ela dis­
simula a falta, jogando com o belo ou com o ter para recobri-la.
Mas há uma mascarada masoquista que, em sentido oposto, faz
ostensão da falta ou da dor, ou da dor da falta. Ela chega às vezes a
rivalizar na insuficiência, e até a fomentar falsas fraquezas. Um
exemplo de minha prática a esse respeito permaneceu para mim
memorável: o de uma moça que vivia o que ela chamava de “o inferno
do descoberto . Apesar do equívoco lingüístico do termo, este
descoberto ela o entendia, ela, no sentido bancário mais realista.
O descoberto era objeto de uma fiscalização pelo marido e de
disputas quase cotidianas com ele. Como ela tinha rendimentos
mensais, o descoberto conhecia também um ciclo mensal, passando
da idéia fixa à efetuação, ao passo que as brigas oscilavam das
admoestações às acusações. Compreender-se-á que o marido era
chamado ao lugar do provedor encarregado de reabastecer a conta
bancaria. Ele não se furtava a isso; não sem protestar, fazer-se esperar,
fazer pedir e tudo terminava geralmente em lágrimas... e amor. Esse
jogo já durava há um certo tempo, quando o destino nele se meteu,
uma pequena herança veio preencher o descoberto e... desorganizar
toda a vida do casal. Passo por cima dos detalhes. “Agora você banca

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

a insolente , lhe dizia o marido. Era ele quem doravante se lamen-


cava ("Eu não sirvo mais para nada”), e recusava... suas tentativas
de reconciliação. A paciente terminou por enunciar esta frase um
pouco estranha: "Bem que eu sabia que ele não devia ficar sabendo
sobre meu dinheiro”. Ficou claro então que essa pessoa, desde sua
maioridade, teve sempre duas contas bancarias, sendo apenas uma
das duas conhecida; primeiro do pai, depois do marido. Nesta conta
secreta ela tinha o que chamava de "pequeno travesseiro”, pois
desde seus I 8 anos ela depositava regulamente todo o dinheiro que
podia subtrair aos olhos do Outro, o que lhe permitia, por outro
lado, dissimular o que ganhava e de, a olhos vistos, bancar... a
pobre. Essa mascarada, que chegava até a verdadeira simulação, uti­
lizava o disfarce da falta de dinheiro como metonímia da falta fálica
em seu valor sedutor. A ela não se deve no entanto supor de imedi­
ato um gozo avaro do ter, do qual não dava nenhum indício por
outra via: era sobretudo o caráter secreto deste ter que a encantava.
A lógica da mascarada masoquista não é difícil de apreender:
é, se assim podemos dizê-lo, uma adaptação inconsciente à impli­
cação da castração no campo do amor. Uma vez que o traço da
castração imaginária do objeto é uma das condições da escolha de
objeto no homem, tudo se passa como se o vaticínio do inconsciente
impusesse um quase cálculo: se ele gosta das pobres, façamos a
pobre. Não se deveria crer entretanto, contrariamente ao que deixa
supor meu exemplo precedente, que ali não há senão simulação,
pois a complacência pode chegar até ao sacrifício efetivo. Esta mas­
carada tem em comum com o masoquismo este fato de fazer relu­
zir o avesso do objeto agalmático, a falta que funda sua brilhância,
e que lhe anuncia talvez o destino prometido no amor, a saber, a
redução ao objeto a. Lacan nos dá sua chave ao dizer que o masoquismo
feminino é "uma fantasia do desejo do homem (1962, p. 73 !)• Ele se
produz no cruzamento de dois fatores: de um lado, a forma
erotornaníaca do amor feminino, que visa ser a eleita, e de outro, as
condições do desejo do homem, requerendo que o objeto tenha a
significação da castração. A famosa complacência das mulheres com

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COLETTE SOLER

a fantasia masculina, estigmatizada por Lacan em -

- (----- '•«gnar as tri


bulações daquele que se busca no desejo ou no gozo do Outro.
Excetuando o papel que nela desempenha o semblante, a mas­
carada masoquista difere grandemente do cenário perverso. Na
sarada uma mulher se submete às condições de amor do Outro,
pra que a’fantasia do homem nela encontre •'sua hora de verdade ",
■w X"
[------ --- *'
que der e vier ”, diz Lacan, na falta de saber as molas particulares do
desejo que o inconsciente oculta. Já se vê o que favorece a vertente
masoquista da mascarada: sendo a castração a única condição do
desejo que vale para todos, esta mascarada é a menos audaciosa das
mascaradas. No entanto, também ela permanece à mercê do acasoí
bom ou mau, posto que a própria castração só tem efeito para cada
um sob formas particulares. Quanto ao masoquismo, ele não deixa
nada para a tychê. Ele impõe ao contrário uma relação de gozo sob
contrato. Ele pretende estabelecer, mais do que um direito ao gozo.
um dever de gozo regulamentado, no qual a improvisação está
excluída e do qual ele se faz o senhor. Nada é mais oposto à posição
feminina, sempre na hora do Outro. Na hora da verdade, nenhum

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

semblante. Pois para cada um, devemos distinguir o que ele mostra
daquilo que ele quer. Parece-me haver ai uma oposição simples:
com certeza, não sabemos bem o que uma mulher busca, mas admi­
tamos por ora que ela o busque pelo viés do amor. Ao contrário, o
masoquista procura o sinal da angústia: é muito diferente. Ao fazer
alarde de uma vontade de gozo afirmada, que pretende realizar-se
pela dor, ele de fato realiza um desejo que nao sabe e que visa a
angústia do Outro, o ponto em que as miragens do semblante
declaram forfait. Digamos que ele se faz causa da angústia do
Outro como sinal único do real do objeto mais-além do semblante
que falha em alcançá-lo. Quanto à transgressão de gozo que o ma­
soquista programa, esta permanece nos limites bem sensatos que
não ultrapassam o despedaçamento que lhe impõe o significante.
Para a mulher, colocar suas concessões na conta da mascarada
é marcar o caráter condicional de seus sacrifícios, que não são senão
o preço pago por um benefício muito preciso. Digamos, em resumo,
que uma mulher toma por vezes ares de masoquista, mas isso é para
se dar ares de mulher, sendo mulher de um homem na falta de poder
ser A mulher. O amor, que ela invoca como complemento da castração
para nele assentar seu ser, define o campo de sua sujeição ao Outro
e de uma alienação que redobra a alienação própria ao sujeito. Mas
é também o campo, as feministas nos fariam quase esquecê-lo, de
todos os seus poderes na qualidade de objeto causa do desejo.
Entretanto também há para ela, a olhos vistos, uma visada do mais-
além do semblante. E mesmo mais que uma visada, segundo a tese
de Lacan: um “esforço” — é o termo de seu texto * Diretrizes para
urn Congresso sobre a sexualidade feminina’ (1962)— inclusive
urn acesso (cf. o Seminário, livro 20: mais, ainda, 1973-4) a um gozo
outro que ultrapassa sem dúvida nenhuma as descontinuidades do
gozo fálico. Vê-se que não é apenas um efeito de ser, sempre da
ordem do semblante, que uma mulher ganha no amor. O gozo que
ela obtém por acréscimo e que vai mais-além do semblante permite
9ue tornemos relativo aquilo que sua mascarada a faz renunciar.
Um único inconveniente: os acasos do amor.

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COLETTE SOLER

Daí podemos repensar a posição feminina em relação ao que


Freud inicialmente chamou de masoquismo moral. Se Freud não
sustentou que a mulher é masoquista, em contrapartida descobriu
e afirmou peremptoriamente o masoquismo universal na civilização.
O gosto da dor que parece animar o perverso masoquista só lhe
interessou tanto porque fazia objeção à homeostase do prazer, e
vinha apoiar a hipótese de 1920 sobre o mais-além do princípio do
prazer. Freud a esta retorna em seu Mal-estar na civilização (1950)
para dizer que ela educa o homem para a posição sacrificial. Se há
um sacrifício inerente ao surgimento do sujeito como tal, pois é
preciso que o ser sacrifique ao significante e à perda que ele implica
para que o próprio sujeito surja, a posição sacrificial é outra coisa.
Ela é menos julgada pelos objetos que oferece em sacrifício do que
pela mola do próprio ato, digamos a causa do sacrifício. Na maioria
das vezes, o sujeito sacrifica um mais-gozar por outro. São os
sacrifícios “condicionais”3 impostos pela estrutura. Excluído o gozo
infinito, o fala-ser está condenado aos conflitos... de gozo. Não há
outros conflitos. Assim cada um passa seu tempo a sacrificar: uma
coisa por outra, a família pela ambição, o amor pela profissão, a
felicidade pelo saber, o filho pelo homem amado, a mulher pobre
pela mulher rica etc. Pensemos em Marx e na vida infernal que lhe
custou sua mais-valia, pensemos em Edipo e no preço consentido a
sua paixão. Ha um caso ilustrativo bem conhecido, demarcado na
história da psicanálise: é a desistência feminina em favor do objeto
nos sujeitos que renunciam a qualquer ambição pessoal em benefício
do homem que amam, dedicando-se a sua sustentação. Helene
Deutsch descreveu de modo bastante exaltado este tipo de abnegação,
bastante bem exemplificada em sua vida, apesar de crer reconhecer
aí a verdadeira feminilidade. De qualquer forma, isto não é senão o
sacrifício condicional subordinado à satisfação narcísica de se rea­
lizar por procuração do outro. O homem e a mulher não fazem o

« R!tOm° a<lu* ° terrn° pelo qual Kant isola o campo dos interesses
patológicos do sujeito do imperativo incondicional que confere à lei moral seu
valor universal.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

mesmo uso desses sacrifícios condicionais. Em geral as mulheres


fazem muito barulho pelo preço que pagam... para atingir seus fins.
q$ homens são em geral mais discretos e mesmo pudicos: a queixa não

convém à passada viril, enquanto e propicia a mascarada feminina.


O que Freud descreve em seu capítulo VII do Mal-estar na civi­
lização vai mais longe. E a verdadeira posição sacrificial que eleva o
sacrifício condicional à dignidade de um fim, em uma lógica infernal
a pretender que o “masoquismo do eu”, a saber o gozo tomado do
sacrifício das satisfações pulsionais, alimente e mantenha a feroci­
dade do supereu glutão que comanda. O “Kant com Sade” (196?)
de Lacan faz eco ao Mal-estar de Freud: uma vez sacrificado todo o
patológico da sensibilidade ao universal da lei, resta então o objeto
escondido, que é em suma o próprio sacrifício. Estas astúcias da
renúncia fazem do civilizado um ser apaixonado da falta-a-gozar.
A questão é saber se as mulheres aí concorrem “rivalizando” com o
homem. Não é a tese de Freud, longe disso. Seu “Totem e tabu”
(1913) já apresentava uma sociedade de irmãos em renúncia que
não incluía as mulheres. E quando ele pretende que as exigências do
supereu sejam mais frouxas na mulher, conclui, com boa lógica, que
a mulher é menos inclinada a sacrificar pela civilização e que per­
manece mais enraizada nas pulsões primárias.
No entanto, e como ao contrário da tese freudiana, não teriam
nossas elaborações recentes reatualizado a idéia de um desprezo do
ter propriamente feminino que iria mais-além de seu alcance de
mascarada? Já não frisei o soberbo desprendimento da Yse de Paul
Claudel em Partage de midit Ysé, verdadeira mulher segundo Lacan,
que tudo sacrifica por um absoluto mortal. Evocamos, na serie,
Madeleine, esposa de Gide, em quem Lacan reconhece Medéia.
Todas três têm em comum um ato absoluto, que destroça as meias-
medidas de qualquer dialética. Uma, em seu desassossego, queima
Para sempre as mais belas cartas de amor. Medéia sacrifica ate os
filhos muitos amados para ferir o outro e saciar sua raiva. Quanto
a Ysé, renuncia a tudo, embora não faça série com as outras duas,
^dadeleine e Medéia estão juntas pelo extremismo de sua vingança.

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COLETTE SOLER

Se Lacan reconhece a verdadeira mulher sob a figura ingrata de


Madeleine, não é tanto por ela aceitar perder suas preciosas cartas,
orém por atingir diretamente o coração, ponto de dor lancinante”,
or um ato que atravessa os semblantes. É bem o que Gide ratifica
quando evoca o buraco negro deixado no lugar do coração pelas
cartas perdidas. Com Ysé, trata-se de outra coisa. Ela abandona
tudo mas não sacrifica nada, pois para ela nada mais vale senão o
que encontra de um gozo do amor. Assim como um luto concentra
toda a libido do sujeito e o torna estrangeiro no mundo por um
tempo, seu amor a arrebata do mundo. Essa nadificação tem sua
lógica: se o amor anula por um tempo o efeito castração, e isso
tanto mais quanto absoluto for, correlativamente ele esvazia de seu
valor os objetos que aí respondem. É por esta razão que Lacan,
quando quer evocar o gozo que na mulher não está relacionado ao
falo, recorre à experiência mística. É notorio que o amor extático
do místico o subtrai aos interesses da criatura e a todos os desejos
do comum dos mortais. Nada a ver entretanto com a paixão maso­
quista pelo sacrifício. O místico testemunha que sua renúncia ao
mundo se dá na alegria não pelo gosto da dor, mas por estar cativo
da... Outra coisa: a tentação, o sonho talvez, de abolir-se no gozo
de um amor infinito. Tal é o horizonte longínquo, quase divino, em
que se confina, mais-além de seu alcance de mascarada, o maso­
quismo que sem razão é imputado àquelas a quem Lacan nomeia de
“as apelantes do sexo’.

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A HISTÉRICA E MULHER: CLÍNICA DIFERENCIAL*

Sofremos de uma confusão clínica concernindo à histeria. De


fato, qualquer mulher que se apresente é suposta histérica, a não
ser que pensemos que seja louca. Isso é um erro clínico. A histeria é
uma coisa muito precisa e eu gostaria de tentar abordar detalhadamente
sua estrutura a partir do exemplo da Bela Açougueira.
A título de introdução e para dar o horizonte do desenvolvi­
mento minucioso que farei, apresentarei duas citações de Lacan.
A primeira é esta: A histérica [...] é o inconsciente em exercício,
que põe o mestre contra parede para produzir um saber” (1970, p. 89).
Observem que essa definição, essencial, não especifica a histérica
como mulher. Ela inclusive implica que em todo sujeito há histeria.
Poderíamos revigorar aqui uma noção um tanto antiga na clínica, a
do núcleo histérico da neurose.
A segunda citação, mais tardia, pode ser resumida do seguinte
modo: em matéria de histeria, diz Lacan, o homem tem primazia
sobre a mulher (1979, p. 3 5). O mínimo que se pode dizer é que
este não é o preconceito comum. Será preciso portanto compreen­
dermos por que e como Lacan pode afirmar que o homem tem
primazia sobre a mulher em matéria de histeria. Será também
necessário compreendermos por que a histeria presta-se à confusão
com a feminilidade, ainda que sejam distintas. Se estas são confun­
didas, deve ser, de fato, porque se prestam à confusão.

A Bela Açougueira

Retomarei o comentário do sonho da Bela Açougueira que


Lacan faz no capítulo V de *A direção do tratamento e os princípios

Lhyscérique et pú femme: clinique différentielle . Texto estabelecido a par-


t,r das intervenções feitas nos dias 21, 22 e 23 de maio de 1993 no Seminário
residencial do Instituto Freudiano, Veneza. Publicado em Preliminaire, n. 6

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COLETTE SOLER

de seu poder” (1961), intitulado “É preciso tomar o desejo ao pé


da letra”. Diferentemente das páginas precedentes, Lacan não
polemiza com seus contemporâneos; avança sua própria tese'. Esta
curta passagem, vocês o verão, é uma obra-prima de precisão e den­
sidade: de fato, com um único exemplo Lacan mostra três coisas
muito diferentes e muito precisas.
Em primeiro lugar, ele esclarece o que é o inconsciente em sua
estrutura de linguagem. Através destas poucas páginas de “A dire­
ção do tratamento”, compreendemos sua primeira grande tese, por
ele comentada durante dez anos. Em segundo lugar, Lacan ilustra o
que é o inconsciente não em sua estrutura de linguagem, mas como
desejo inconsciente. Ele ilustra e especifica o que é o desejo incons­
ciente segundo Freud e Lacan. Em terceiro lugar, ele elucida como a
demonstração do que é o inconsciente é estritamente idêntica à
demonstração do que é a histeria.
Retomarei o exemplo de modo detalhado e inicialmente
relembrarei o texto do sonho pelo qual mostrarei, com Freud, que
o sonho é a expressão de um desejo, mesmo quando o enunciado
desse sonho descreve o fracasso de um desejo ou antes o fracasso
de um voto, de um almejo, aquele de oferecer um jantar:

Quero dar um jantar, mas só disponho de um pouco de salmão


defumado. Queria fazer compras, mas me lembro que é
domingo de tarde e que todas as lojas estão fechadas. Quero
telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone está
quebrado. Devo então renunciar ao desejo de dar um jantar
(1900, p. 13 3).

A estrutura de linguagem do sonho

Lacan resume Saussure, eu o relembro, através do materna em


q e escreve que o significado s é produzido pelo significante S, ou
6 o efeito deste. A partir daí, trata-se de precisar como
° S1Sniflcante engendra o significado.

I Cf
P ponto o Seminário de DEA de Jacques-Alain Miller em 1986.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

s
s

Dizer que o significante engendra o significado implica de


saída observem-no, que o significado se distinga radicalmente do
referente, isto é, das próprias coisas, do real que se visa quando se fala.
Lacan precisa as duas operações de engendramento do signifi­
cado: a metáfora e a metonímia (1957, p- 51 5). A metáfora subs­
titui um significante por um outro: faz passar o primeiro significante
para a posição do significado. Seu resultado é o que Lacan chama
de um efeito de sentido positivo, o qual escreve com um sinal mais
no nível do significado.

A metonímia combina dois significantes — trata-se de com­


binação e não de substituição — sem engendrar suplemento no
nível do sentido, o que Lacan escreve com um sinal menos no nível
do significado.

O sonho é uma metáfora

Examinarei agora como o sonho da Bela Açougueira ilustra de


modo admirável esta estrutura de linguagem. Para sua demonstração,
Lacan utiliza, é óbvio, o comentário de Freud que se refere não
apenas ao texto do sonho, mas também aos dados que não estão
presentes no sonho: precisamente, às associações da Bela Açougueira
s°bre seu sonho.

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COLETTE SOLER

A fatia de salmão que aparece no sonho, diz Freud, é uma


alusão à amiga da Bela Açougueira que afirma desejar salmão, ter
muita vontade de comer salmão e proibir-se de come-lo. E a Bela
Açougueira, diz ele, faz a mesma coisa com o caviar, isto é, tem
muita vontade de comer caviar, persuade seu marido disso, mas
insiste para que ele não o compre. Observem que para uma mulher
de açougueiro não é indiferente sonhar com caviar, ou seja, com
uma iguaria que não se vende no açougue; isso já dá acesso a um
outro lugar, ao menos alimentício. E a partir desses dois lados Freud
faz a seguinte dedução: o comportamento destas duas senhoras,
destas duas histéricas emparelhadas, tem como significação o desejo
de ter um desejo insatisfeito.
Lacan não discute essa tese freudiana, mas faz notar que o
desejo de caviar é o significante cujo significado é o desejo de um
desejo insatisfeito. Quer dizer que na estrutura significante/sig-
nificado Lacan escreve o comentário de Freud sobre o comportamento
das duas histéricas: o desejo de caviar significa o desejo de ter um
desejo insatisfeito.
Reparem que Lacan não reduz nesta passagem o significante a
sua definição linguística, ou seja, a ser um elemento da língua.
O desejo de caviar como significante não é evidentemente um ele­
mento da língua. De acordo com a definição simples dada por Lacan,
o significante é um elemento isolável, um elemento discreto
combinavel com outros elementos igualmente discretos e isoláveis.
Na clínica, por exemplo, isso pode ser uma imagem ou um gesto.
Uma bofetada pode ser um significante, desde que entre numa es­
trutura combinatória de representação. Lacan o ilustra em um de
seus textos. Um elemento dito somático, um tipo de dor corporal
por exemplo, pode sê-lo com a condição de que seja isolável e
combinável.
Portanto o caviar não aparece no sonho. O que aparece é o
sa mão. Por conseguinte houve substituição — substituição, aliás,
que Freud afirma ter verificado fora do sonho — ou seja, o salmão
lugar do caviar. O salmão defumado, diz Lacan, é aqui um

226

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

substituto do caviar (1961, p. 622). Ele detecta aí o efeito metá­


fora. O caviar não aparecendo no sonho permite afirmar que o sonho
é uma metáfora. Pode-se escrevê-lo, segundo a fórmula da metáfora,
do seguinte modo:

Salmão
——.------ Salmão f+) s
Caviar K J

“Mas — acrescenta Lacan — o que é a metáfora senão um


efeito de sentido positivo, isto é, uma certa passagem do sujeito no
sentido do desejo?”(ibid.).
A primeira parte desta frase — a metáfora produz um a mais
de sentido no nível do significado — comenta a tese geral sobre a
metáfora. A segunda parte da frase, ao contrário, acrescenta alguma
coisa: ela diz que há uma certa passagem do sujeito no sentido de
desejo, ou seja, ela faz equivaler o a mais de sentido da metáfora ao
desejo, ao que Freud chama de desejo. O efeito de sentido positivo
é equivalente ao desejo. O que então permite a Lacan propor esta
equivalência?

(+) s = desejo

A dificuldade dessa frase reside no fato de Lacan empregar


duas vezes a palavra “sentido” (sins) na mesma frase — o efeito
positivo de sentido é passagem no sentido (sens') do desejo.
Ter o sentido (sens) de alguma coisa, o senso de humor ou sentido
de orientação por exemplo, isto quer dizer que se percebe aquilo de
que se trata, sem que se possa bem dizer como e por quê.
Para avançar na questão colocada por esta frase de Lacan, volto
ao pequeno materna significante/significado do qual desenvolverei
os dois patamares. Aliás, esse materna não funciona senão quando o
desenvolvemos.

227

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COLETTE SOLER

O patamar significante em sua forma desenvolvida é o qUe


Lacan chama de cadeia significante, isto e, a combinação dos
significantes entre si, cuja forma mais simples entra em ação desde
que se fabrique uma frase, desde que se tenha um sujeito, um verbo
e um complemento. Lacan esquematiza a cadeia através de seu fa­
moso S1 e S,. É nesse nível da cadeia desenvolvida que operam a
metáfora e a metonímia.

Quanto ao desenvolvimento do patamar do significado, este


se apresenta de duas maneiras. O primeiro gênero do significado é
a significação que se determina gramaticalmente, é o que se busca
quando se explica um texto. E é sempre possível estar de acordo em
relação à significação de uma frase seguindo sua gramática, seus
termos e sua definição semântica numa língua. Mas não há somente
a significação. Quando concordamos com a significação, resta o
fato de que para toda cadeia significante seu sentido jamais se reduz
à significação. Fulano me diz isso, me transmite tal significação,
mas o que isso quer dizer? Quer dizer que o significado se subdivide
em sentido e significação.

significação
s
sentido

O o que isso quer dizer?” em psicanálise reduz-se em última


instancia a o que isso quer?”. O problema não é tanto o de saber o
que o sujeito quer lhes dizer, mas o que quer esse sujeito ali. Ist0
quer dizer que a psicanálise é uma prática para a qual o sentido é o
sentido do desejo. Isto é freudiano, é até mesmo o bê-á-bá freudiano
do qual Lacan destaca a estrutura de linguagem. Quando ele diz
que esse sonho é uma metáfora e que a metáfora é uma passagem

228

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

no sentido do desejo essa frase que pode aparecer como um


grande enigma — ele de fato fala do cotidiano do exercício da psi­
canálise, sem o quê a palavra interpretação não tem aliás nenhum
sentido. E a decifração freudiana, que conduz à interpretação,
consiste, mais além da significação, em captar o sentido do desejo,
o sentido como desejo.
Até o momento, comentei a parte de “A direção do tratamento”
que faz do sonho da Bela Açougueira uma metáfora, uma substituição
do caviar pelo salmão, que engendra um a mais de sentido o qual
equivale, ele próprio, a uma passagem no sentido do desejo. Ainda
não cheguei ao que diz Lacan quanto ao desejo do sonho, quanto a
seu desejo inconsciente. Certamente um desejo já foi precisado: o
desejo insatisfeito. Para cada uma das duas histéricas, o desejo de
salmão e o desejo de caviar são dois significantes que de fato signi­
ficam o desejo de desejo insatisfeito. Porém, diz Lacan, é preciso
“ir mais além para saber o que um tal desejo [o desejo insatisfeito]
quer dizer no inconsciente”(ibid.). O desejo de desejo insatisfeito,
observa ele, não é um desejo inconsciente; é um desejo pré-cons-
ciente. Ademais podemos muito facilmente deduzi-lo do discurso
explícito da paciente e esta, por menos astuta que seja, pode ela
própria deduzi-lo. Portanto não se trata do desejo inconsciente.
Ora, eu busco o desejo inconsciente como sendo significado pela
metáfora.

A metonímia no sonho

Antes de abordar o desejo inconsciente, distinguirei o desejo


insatisfeito e o desejo de desejo insatisfeito. A respeito disso, ha dois
parágrafos difíceis. Leiamos o primeiro: “Por ora, observemos que se o
desejo é expresso como insatisfeito, ele o é pelo significante caviar ,
conforme este significante o simbolize como inacessível (ibid.).
É um fato cultural que o caviar é um significante que designa
um produto dificilmente acessível, ao menos na Áustria na epoca
em que Freud analisava. Ele significa portanto o desejo insatisfeito

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COLETTE SOLER

. m™-no, o desejo de desejo insatisfeito. Mas, prossegue


' na°’ ° í 1 do momento em que ele [o desejo] desliza como desejo
Lacan,
no [-Jo desejo aec
caviar, é sua metonímla tornada necessária
pela falta a ser a que ele se atem (ibid.). ,
P Portanto o desejo de cav.ar é metomm.a do desejo e não
sua metáfora, por quê? O parágrafo seguinte comenta o que Lacan,
chama de o pouco de sentido da metonímia, ou seja, ele relembra o
"menos” inscrito no nível do significado na fórmula geral da
,■ r>Í7 ele- “A metonímia é, como lhes ensino, este efeito
metonímia.
tornado possível por não haver significação que nao remeta a uma
outra significação, e no qual se produz o seu denommador mais
comum, ou seja, o pouco de sentido (comumente confundido com
o insignificante), o pouco de sentido, digo eu, que se revela no
fundamento do desejo e lhe confere o toque de perversão que é
tentador denunciar na histeria atual (íbid.).
Por ora, deixo de lado o toque de perversão. Preciso compreender
por que o desejo de caviar é a metonímia do desejo insatisfeito.
Escrevo os dois significantes da metonímia com seus significados e
a própria metonímia:

caviar d. de caviar . . , . . . . , .

______________ ; (caviar > d. caviar) —»d. caviar(-)s
d. insatisfeito d. de d. insatisfeito

Observem que nenhum dos termos desaparece na cadeia. Na


metáfora há sempre um termo que não está presente na cadeia, que
está escondido e que é preciso restituir. É o que acontece no sonho
caviar não está nele. Resta salmão, e caviar não retorna senão atra
do desenvolvimento associativo que permite dizer que salmao s
titui caviar. Esse não é o caso quando se passa do caviar ao des
de caviar.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Mas se na verdade trata-se de uma metonímia e não de uma


metáfora, devo mostrar que no nível do significado não há engen-
dramento de um mais de sentido, que não há presença de um desejo
suplementar, mas que não aparece senão um menos de sentido. Ora,
parecia haver alguma coisa a mais entre o desejo insatisfeito e o
desejo de desejo insatisfeito. Qual é esse a mais? De fato, não é a
mesma coisa evocar o caviar que significa algo inacessível, e dizer
"Desejo este inacessível”, o que significa “desejo um objeto que sei
não poder obter”. Por que então, segundo Lacan, não há efeito de
sentido positivo?
Para responder a esta pergunta, retomo a distinção entre o
sentido e a significação no nível do significado. As significações de
desejo insatisfeito e de desejo de desejo insatisfeito diferem.
Ganhou-se portanto um a mais no nível da significação. Mas será
esse o caso ao nível do sentido? O que foi então que se transferiu
no nível do sentido quando se passou da evocação do desejo insa­
tisfeito à evocação do desejo de desejo insatisfeito? Freud utiliza o
termo transferência pela primeira vez, eu lhes recordo, justamente
a respeito do trabalho dos significantes no sonho.
Pois bem, diz Lacan, trata-se da mesma coisa, a saber: a indi­
cação de uma falta inerente a todo desejo. Que se diga desejo insa­
tisfeito ou desejo de desejo insatisfeito, o sentido é o mesmo: falta
alguma coisa ao sujeito. O que responde à definição geral da
metonímia segundo Lacan: que ela é metonímia da falta a ser.
Podemos escrevê-la assim:

caviar d. caviar

d. insatisfeito

sentido da falta ----- .»• sentido da falta

23 I

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COLETTE SOLER

Ao deslizar do desejo insatisfeito para o desejo de desejo insa-


isfeito muda-se portanto de significação mas não de sentido. Este
“sempre o mesmo; é o sentido da falta. E podemos multiplicar
Ltommicamente ao infinito as significações que, todas elas, terão
sentido da falta. No nível metafórico, contrariamente, produz-se
um a mais de sentido, um desejo inconsciente emerge, um desejo
que ninguém sabe antes que ocorra a interpretação no final da deci­
fração da cadeia significante. Veremos que esse desejo inconsciente
equivale ao sujeito do inconsciente.

O sujeito do inconsciente

Sem dúvida o sujeito do inconsciente não é a gentil histérica


que conta seu sonho a Freud em uma dimensão de interpelação
transferencial: “Então, caro professor, o que o senhor tem a dizer
deste sonho? Ao senhor a palavra, ao trabalho! Diga-nos o que isso
quer dizer!” O sujeito do inconsciente, se pudéssemos encarná-lo
— mas não se pode, portanto eu digo no condicional — seria o
agente da substituição, da metáfora.
Dito de outro modo, à questão de saber quem fez essa substi­
tuição, não podemos senão responder: ninguém. O que chamamos
sujeito do inconsciente, não é a pessoa que diz “eu” (jc')t é o que é
determinado por essa metáfora que produz um efeito de sentido,
indicando a presença de um desejo. E esse sentido que se aproxima
como desejo é a primeira definição do que Lacan chama de sujeito
do inconsciente. Como diz Lacan, encontra-se esse sujeito num
fluxo significante cujo mistério consiste no fato de que [ele] não
sabe sequer onde fingir ser seu organizador ”(ibid., p. 623).
Portanto há que se distinguir, por um lado, o inconsciente
como estrutura de linguagem, isto é, a mecânica substitutiva dos
significantes pela via da metáfora e da metonímia e, por outro, o
sentido inconsciente que se transfere ao longo da cadeia significante.
Aquele é o inconsciente como sentido do desejo, como sujeito que
é desejo inconsciente. E Lacan faz equivaler a histérica ao sujeit
do inconsciente como tal.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

O desejo inconsciente do sonho

Após ter considerado a estrutura da linguagem do sonho e


posto em evidência a eqüivalência do mais de sentido — do desejo
inconsciente produzido pela metáfora constituída pelo sonho — e
do sujeito do inconsciente, considerarei agora a questão do desejo
inconsciente do sonho. A resposta de Lacan é bastante simples a
esse respeito e passa pela distinção de três identificações.
É sabido desde antes da psicanálise: o sujeito histérico tem
uma tendência a identificar-se. Entretanto a identificação histérica é
complexa e estratificada, e o interesse do texto de Lacan é mostrá-lo.
A primeira identificação. Partirei do esquema L e nele marcarei as
coordenadas dessa primeira identificação:

Temos assim a paciente histérica e sua amiga. O índice da


identificação à amiga é dado pelo desejo de caviar da paciente que
decalca o desejo de salmão de sua amiga. Caviar e salmão são, como
objetos inacessíveis que a paciente e sua amiga desejam, os
significantes de seu desejo de desejo insatisfeito.
Essa identificação à amiga, eu a escrevo sobre o eixo imaginário.
Não é no entanto uma identificação a um traço visível. E uma

233

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COLETTE SOLER

identificação a um significante, ou melhor, a uma conduta n ■


indica o desejo. E uma identificação a um indício do desejo d0
outro — sem maiúscula. Vocês sabem que Lacan, antes de falar
desejo do Outro, introduziu o desejo como desejo do outro do
semelhante.
No entanto, identificar-se aqui ao desejo do outro, da amiga
não é apreensível senão em relação ao terceiro termo, que escrevo A
neste caso o marido, aquele que deve ser seduzido. Aquele ou aquela
que se quer seduzir está sempre no lugar do Outro, uma vez que
para seduzir, é preciso conseguir situar-se em relação ao desejo
E como o desejo só se baliza a partir da demanda, é preciso de fato
situar-se em relação à demanda.
A estrutura aqui é muito simples, a demanda do marido é bem
explícita. Com efeito, é um homem que pretende saber o que quer:
ele gosta de mulheres carnosas. Ora, acontece que a paciente é
carnuda. Portanto entre ela e seu marido a demanda é satisfeita. Ao
contrário, a amiga é magricela, não responde às condições de satis­
fação sexual do marido. Assim o interesse discreto que o marido
tem pela amiga apresenta-se como um enigma. Um desejo se indica,
porém sob um modo negativo. Quando suas pulsões estão satisfeitas,
resta ainda no marido um lugar para um pequeno interesse outro,
para alguma coisa da qual não poderia se satisfazer.
Do mesmo modo, acrescentaria que podemos ilustrar esta
disjunção entre a demanda e o desejo na Bela Açougueira e em sua
amiga. A amiga tem de fato uma demanda: vir jantar. E essa demanda
tem uma significação e um sentido. A significação é um elogio feito
a Bela Açougueira: “Come-se muito bem na sua casa . Mas nao e
por essa razão que ela demanda vir jantar. O desejo que anima essa
demanda e que lhe dá seu sentido, Lacan o observa muito precis
mente, é um desejo de seduzir o marido, de seduzi-lo com as
lhores intenções. Com efeito, nada indica no material uma
ção de seduzir o marido realmente. Ela apenas percebeu que
dava. É um motivo para ir jantar. Não é que ela queira se
como comestível.

234

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

O sonho da própria paciente se apresenta como um voto que


passa por uma demanda. E uma demanda que responde a uma de­
manda da amiga: que me ajudem a dar um jantar e assim telefona.
Essa demanda tem uma significação e um sentido. A significação:
trata-se de agradar a sua amiga cuja demanda era vir jantar. Mas
contrariamente o desejo que habita o sonho é o de fracassar em sua
intenção de dar um jantar. Significa dizer que seu desejo de não
satisfazer seu voto de dar o jantar é diretamente correlativo ao desejo
do outro, o semelhante, a amiga que queria seduzir seu marido. E a
fórmula desse desejo, poderíamos dizer, é a seguinte: “Você pode
esperar sentada que eu te ajude a seduzir meu marido.'”.
Portanto tem-se uma primeira identificação de nossa histérica
à sua amiga como objeto de desejo — desejo a ser apreendido
aqui apenas como falta — ao passo que ela própria é objeto de
satisfação.
Observem que temos nesse caso uma ilustração minimante,
muito precisa, de uma divisão que é paradigmática da histérica, a
saber a clivagem entre o objeto da satisfação e o objeto do desejo,
entre o objeto-gozo e o objeto-falta. A noção de objeto-causa uti­
lizada por Lacan em determinados momentos de seu ensino condensa
aliás esses dois aspectos do objeto: de fato ele é ao mesmo tempo o
objeto que falta e que assim sustenta o desejo, e o objeto mais-
gozar. Ele tem uma dupla função: ao mesmo tempo ele é o objeto
que tampona a falta e aquele que a causa. É uma condensação. Ora,
na histeria vemos sempre esses dois aspectos do objeto dissociados.

objeto-falta

objeto causa
objeto-gozo

A segunda identificação. O segredo da identificação à amiga, que


°pera no nível imaginário, encontra-se portanto sobre o eixo sim­
bólico da relação do sujeito com o Outro.

235

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COLETTE SOLER

A questão que subentende a identificação imaginária, diz Lacan,


qual seja, “não teria ele também um desejo que lhe permanece
atravessado, quando tudo nele está satisfeito?” (ibid. p. 624) — é
uma questão sobre o desejo do Outro. A Bela Açougueira se identi­
fica ao marido uma vez que ela olha sua amiga do ponto de vista do
marido. Ela interroga o agalma da amiga, o mistério da sedução da
amiga, e o interroga do ponto de vista do homem. Quase poderíamos
figurar isso com um olho. E o que é então esse sujeito, questiona
Lacan, que pensa ser o significado da metáfora do sonho? Resposta:
trata-se do Outro. “E nessa questão que se transforma o sujeito aqui
mesmo. Deste modo a mulher se identifica ao homem, e a fatia de
salmão defumado surge no lugar do desejo do Outro”(ibid.).

Amiga (salmão)

Aqui obtemos então uma primeira precisão: o sujeito é uma


questão, a questão do desejo do Outro — não se esqueçam de que
estamos buscando o sentido da metáfora do sonho, estamos espe­
cificando o mais de significado que faz surgir a metáfora do sonho.
O final da frase é talvez mais difícil de explicar: “ [...] afatia de
salmão defumado surge no lugar do desejo do Outro”. E a primeira
vez que Lacan introduz esse significante no desenvolvimento de
seu texto. Essa fatia” de salmão é de fato uma condensação, um
exemplo de condensação freudiana: a fabricação de um significante
que inclui dois significantes em um único. O salmão é o significante
que vem da amiga, ao passo que a fatia vem do marido; com efeito-
foi ele que falou de um naco de traseiro de uma bela vadia (c
Freud, 1900). Portanto a fatia de salmão é um significante q

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

garante a copulaçao, a reunião do significante que vem da amiga e


do significante que vem do marido. Do mesmo modo, diz Lacan, a
“fatia de salmão” é o significante do desejo do Outro. Vemos que
quando Lacan diz que “a mulher se identifica ao homem” não se
trata de um coelho que ele tira de sua cartola, nem tampouco um
estudo de comportamento, é o resultado da decifração da relação
significante que existe entre salmão-caviar e fatia.
Disso retiro, se vocês o permitem, um preceito clínico para
todos nós: ao falarmos de um sujeito analisante, e especialmente
quando se tratar das mulheres, antes de nos precipitarmos em dizer
que elas se identificam a um homem, produzamos primeiro o
significante pelo qual esta identificação se verifica e digamos do
que ele é significante. E uma questão de método.
Até aqui especifiquei duas identificações: uma primeira à amiga
sobre o eixo imaginário, e uma segunda, a identificação do desejo
da paciente ao desejo do homem. Esta não compromete o imaginário,
ao menos diretamente. A identificação da histérica ao homem, no
nível do sujeito, não impede, de fato está bem longe disso, uma
pantomima de feminilidade sobre o eixo imaginário. E o compor­
tamento de nossa Bela Açougueira a respeito do caviar é sem dúvida
uma mascarada de feminilidade. Ela é, sobre o eixo imaginário, muito
feminina. Seu bancar o homem não quer dizer portanto que ela vá
se apresentar masculinizada. É um bancar o homem no nível
inconsciente do desejo.
A terceira identificação. Se permanecêssemos na segunda identifi­
cação, seríamos levados a pensar o sujeito histérico com uma eterna
questão: ele seria aquele cuja fórmula última, no nível simbólico,
seria uma questão sobre o desejo: do Outro. Ora, essa questão com­
promete seu ser e há um significante que determina essa questão
do ser: é o falo em relação ao qual se realiza uma terceira identificação.
Nesse caso, como diz Lacan, trata-se de “ser o falo, ainda que seja um
falo um pouco magro”. “Não esta aí, prossegue ele, a identificação
última ao significante do desejo?”(1961, p. 627)- Essa identificação
última é uma inscrição do sujeito que o faz sair da unica questão.

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COLETTE SOLER

0
s=?

Observem que o falo, em “A direção do tratamento", é defini-


do como o significante da falta, do desejo, quer dizer, como 0
significante de uma falta de ser. Pouco depois, Lacan o introduzirá
como o significante do gozo e distinguirá essas duas acepções es­
crevendo o falo como significante do desejo com um (p minúsculo
e o falo significante do gozo com um O maiúsculo. E há evidente­
mente um laço, uma passagem entre essas duas acepções já que se
pode passar da falta de ser à falta de gozo — vemos aí a astúcia de
Lacan de ter escrito com esse significante fálico ao mesmo tempo a
falta de ser e a falta de gozo.
Acrescentarei que essa fórmula de uma identificação última
antecipa os desenvolvimentos de Lacan em seu texto “Posição do
inconsciente” (l9óOc) e em O Seminário, livro i i: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (I9Ó4), quando desenvolve o que chama
de eixo da separação no qual o sujeito se identifica não aos
significantes ideais do Outro, mas aos significantes ou objetos de
seu desejo. E trata-se, em relação ao desejo do Outro, de uma ma­
nobra para se fazer ser. O sujeito, se ele falasse “eu” (jef poderia
dizer “eu sou falta a ser, mas pelo menos que eu possa ser o que
falta ao Outro”.

A histérica e mulher

“Ser o falo”, eis portanto a fórmula do desejo. Eu a extraí do


comentário de Lacan sobre o sonho da Bela Açougueira. Ora, se­
gundo Lacan, esta é também a fórmula da posição das mulheres na
relação sexual. Para situar a diferença homem-mulher, ele propoe
distinguir o homem como aquele que tem o falo, e a mulher com
aquela que o é. Ele torna mais complexa a fórmula freudiana segun~
a qual o homem é aquele que tem o pênis e a mulher, aquela 4ue

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

tem. De fato as duas formulas, freudiana e lacamana, podem ser


conectadas. Basta, para isso, acrescentar, como cavilha, a observa­
ção de Lacan segundo a qual para ser o falo, é preciso não o ter.
Portanto há identidade entre a fórmula histérica e a fórmula
feminina. Disso devemos concluir que a histérica é a mulher, que o
sujeito histérico encarna a posição da feminilidade? A resposta de
Lacan é, bem explicitamente, não. Ele o diz em muitos textos. Devo
então explicar a fronteira entre a histeria e a feminilidade.

“Ser o falo”

Distinguirei de modo claro o voto histérico de ser o falo da


afirmação de que uma mulher intervém na relação sexual a título de
ser o falo. Com efeito, essa afirmação não indica que a mulher seja
“em si’ ’ o falo, mas que ela o é na relação sexual: se ela se coloca na
relação sexual, então ela é o falo para o Outro. Isso quer dizer que,
uma vez que ela intervém na relação sexual como o complemento
do desejo masculino, o que ela é para ele só tem um significante: o
falo. E isso aparece claramente se aplicamos à relação sexual a fór­
mula da fantasia — S 0 a. Vemos então que o homem não intervém
na relação sexual senão como sujeito do desejo,^ ao passo que sua
parceira, do mesmo golpe, se inscreve como objeto complementar
de seu desejo, a. Esse objeto a, podemos evidentemente desenvolvê-lo
em imagem de a, em significante de a — há condições significantes
na escolha de objeto — e em gozo de a. De todo modo, ele tira seu
valor de sua eqüivalência à falta fálica do sujeito desejante da relação.
Podemos, é claro, formular a questão de saber o que autoriza
Lacan a colocar como uma evidência — para grande indignação das
feministas — que o homem entra na relação sexual como sujeito e
a mulher como objeto. A resposta é muito simples e concreta, no
nível da relação sexual, ou seja, da cópula, não no nível do amor
como sentimento, nem no nível do interesse como desejo platônico,
mas no nível da relação carnal, o desejo do homem está em posição
de soberania, posto que é ele que dispõe do instrumento que

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COLETTE SOLER

condiciona a copulação. Na falta deste, pode haver todo tipo de


erotismo, todo tipo de coisas muito agradáveis, mas não há cópula.
No nível da cópula portanto é o desejo masculino que comanda e é
nesse nível que uma mulher, não A mulher, intervém como falo. Há
então uma distinção a fazer entre fazer-se amar, fazer-se desejar
platonicamente e... dar tesão.
Uma mulher intervém na relação sexual como falo “para” o
Outro. E observem que isto não nos diz se lhe agrada ou não, se
isso responde ou não ao seu voto. Isso deixa bastante incerto o laço
dessa inscrição na cópula e o desejo próprio da “uma” em questão.
Lacan o observou na época dizendo que a inserção de uma mulher
na relação sexual não passa por seu desejo. E se há alguma coisa que
o prove na clínica mais elementar, não psicanalítica, é o fenômeno
do estupro.
De fato o estupro está aí para indicar, para traduzir nos fatos
que é o desejo do homem que comanda a copulação e que o consen­
timento feminino nem mesmo é necessário. Em geral é verdade que
o consentimento feminino é mesmo assim requerido. Porém con­
sentir não é desejar. Se o homem deseja — diz Lacan — para a
mulher, na relação sexual, basta que se deixe desejar, isto é, que ela
consinta. Daí a questão de saber, mais além do consentimento, qual
é o desejo propriamente feminino.

Desejar, goçar

Há em um texto dos Escritos — “Diretrizes para um Congresso


sobre a sexualidade feminina” — uma frase surpreendente, que apre­
senta uma dificuldade de compreensão. Lacan fala para as mulheres
do acesso que leva da sexualidade feminina ao próprio desejo (1962.
P« 73 5). Quer dizer que a presença de uma mulher na relação sexual
não se decide de seu desejo e que esse desejo, é preciso deduzi lo-
Isso, é claro, não poderia se aplicar ao homem, visto que para ele e
o inverso: partimos de seu desejo e sobre essa base compreendem
sua presença na relação sexual.

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«*"•

A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ora, sabemos pela experiência que as mulheres não são obrigadas a


se inscreverem na relação sexual. Freud já o observara quando, dentre os
três avatares da inveja do pênis, ele distinguia aquele que conduz a
mulher a renunciar completamente à sua inserção na sexualidade.
Ele via aí um avatar patológico da inveja do pênis e considerava não
ser esse o destino de uma verdadeira mulher. Uma verdadeira mu­
lher, para Freud, é de fato aquela que aceita ser a mulher de um
homem, quer dizer, aquela que se volta para o homem, para dele
esperar o pênis sob uma forma substitutiva. A verdadeira mulher,
para Freud, não renuncia o pênis. Ela o espera do homem sob a
forma de seu amor, do filho que ele lhe dá e também do gozo do
órgão. É portanto a mulher de um homem, o que evidentemente
supõe ter aceitado a ausência de pênis.
Sobre este ponto Lacan difere de Freud. Ele diz explicitamente
em seu texto “O aturdito” que, à diferença de Freud, ele não torna
obrigatório para as mulheres passar pela castração(l972, p. 21).
Isso implica que ele não torna tampouco obrigatório que elas se
inscrevam na relação sexual. E é um fato, inclusive um fato maciço
no nível numérico, especialmente nos Estados Unidos, a existência
de movimentos feministas que pregam e praticam a evitação com­
pleta da relação sexual com os homens.
Portanto a experiência mostra, no que concerne às mulheres,
que elas não são obrigadas a se inscreverem na relação sexual. Ela
mostra também que quando elas se inscrevem, podem fazê-lo de
diversos modos, e talvez fosse mais prudente dizer segundo diversos
acentos. Há o modo mulher de relacionar-se com o homem e o
modo histérico, embora se possam combinar: um se refere ao gozo
e o outro ao puro desejo que supõe não satisfazer, real ou fanta-
sisticamente, o gozo — o gozo deve ser entendido aqui no sentido
de gozo sexual pois, é claro, há vários modos de gozo e precisarei
retomar o que é o gozo do sujeito histérico.
Na relação sexual o sujeito histérico conduz uma estratégia de
subtração do gozo, que é muito fácil de exemplificar, A Bela
Açougueira o demonstra de modo muito preciso. De fato, a única

241

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COLETTE SOLER

. , lhe interessa, ela de quetn o açougueiro goza - e não se


coisa que me , q ^ue em seu marido nao está
sabe que «°Z° '/ /““ntifica à amiga, é para tentar insatisfazer a
satisfeito, be eia
5at'S DaOmdesmaUforma.°o caso de Dora, embora diferente, o de-

monstra de modo exemplar. No caso de Dora, ha dots homens, ao


asso que a questão da Bela Açougueira está reuntda num só ho-
mem Há o Sr. K, o homem com o órgão, o homem que quer gozar
de^ua mulher, e há o pai do qual está bem claro que é impotente.
Por certo que ele se interessa pela Sra. K e sem dúvida não é a
troco de nada — porém ele não se interessa, de todo modo, pelo
gozo propriamente fálico do órgão. Isso quer dizer que assim como
há o açougueiro do gozo e o açougueiro do desejo, há para Dora
um homem do gozo sexual e um homem do desejo sexual. E o que
interessa a todas duas não é saber qual é o objeto que faz gozar,
mas qual é a causa do desejo, qual é o objeto que faz desejar.
Essa vontade de insatisfazer o gozo é o bê-á-bá da clínica da
histeria. E o que sem dúvida contribui para desviar os clínicos é
que as histéricas, sobretudo hoje, não se recusam a ir para cama, às
vezes elas até colecionam homens. Entretanto não se deve concluir
que elas queiram o gozo. A clinica psicanalítica faz objeção a isso
com freqüência seja porque aquela que vai para cama termine por
confessar que não goza no sentido sexual, seja por aparecer, caso ela
goze sexualmente, que não é isso que lhe interessa e que há uma
a causa de seu ir para cama . Portanto não se deve confiar no
portamento, mas nos dizeres do sujeito a esse respeito ao
longo da análise. r
• . St°’ nao se deve concluir que o sujeito histérico é um
qUjSe reCUSa a todo g°zo — aliás, esse é o ponto delicado.
Para nã^ ° SU)eit° hlstenco — emprego essa palavra “satisfação”
— seu mais-gozTr $™bl8Uldade com a ^petição de£o<o (jouissance)
na consuma ã d ’ enrem’ íustamente introduzir um menos
dtrobadtf E esse é d^^ SeXUab ° *due l-acan chama de o furtar-se (la
to um gozo, mas não é o gozo que se prende

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

à relação sexual. No furtar-se trata-se de gozar de abster-se ali onde


se é chamado como objeto de gozo. Eis o que define de modo
preciso a posição histérica.
A posição-mulher é outra. Lacan a define, de modo oposto,
pela referência ao gozo. Três passagens são essenciais a esse respeito.
A primeira encontra-se no texto “Diretrizes para um Congresso
sobre a sexualidade feminina”, a segunda em “O aturdito", no qual
ele especifica o gozo feminino como gozo não fálico, como gozo
que ultrapassa o sujeito, e a terceira em O Seminário, livro zo: mais,
ainda (1972-3) em que desenvolve o não-todo e o gozo Outro que
não o fálico.
No primeiro desses textos, Lacan especifica a posição feminina
como "o esforço de um gozo envolto em sua própria contigüidade
para se realizar rivalizando com o desejo que a castração libera no
macho” (1962, p. 73 5). Então isto quer dizer que enquanto o homem
entra na relação sexual como desejante, para Lacan aí a posição-
mulher é querer gozar tanto quanto o homem deseja. Aqui, obser­
vem-no, Lacan fala do gozo dela, e não de um querer fazê-lo gozar,
o homem, ou de um querer fazê-lo desejar.
Nesse texto, Lacan pretende responder à famosa pergunta de
Freud: “Que quer a mulher?”. E ele responde, forçando um termo,
que uma mulher, em última análise, isso quer gozar. Não apenas
isso goza mais, porém isso quer gozar.
Esta resposta muito explícita distingue nitidamente a mulher
da histérica visto que a histérica não quer gozar — aliás, ela
tampouco quer o contrário. O que então ela quer? Podemos dar
aqui várias fórmulas.
Em sua estratégia, a histérica insatisfaz o gozo do Outro.
Portanto ela goza de ser o objeto causa de insatisfação. O benefício
dessa operação, como o exemplo da Bela Açougueira o indica, é um
a mais de ser: trata-se de ser para o Outro o que lhe falta, ou seja,
9Ue ao lado da fórmula que opõe a mulher e a histérica, segundo
uma vise o gozo e a outra, o desejo, poderiamos acrescentar a se
guinte fórmula: uma mulher quer gozar, uma histérica quer ser.

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COLETTE SOLER

de seus textos diz que a histérica exige ser, ser qual-


Lacan em u ° OutrOi não um objeto de gozo, mas o objeto
quer coisa P*™ subcntende o desejo e o amor.
^Tsummdo, escreverei abaixo esses diferentes dados para es-

f, 1 r uma clínica diferencial. Do lado esquerdo, indicarei a


“ulher do lado direito, a histérica - o que não quer dizer que

s dois lados se excluam. Do lado esquerdo indicarei a referência


portanto um sinal mais; do lado direito, a referência ao
desejo um sinal mrnos. Do lado esquerdo, um querer gozar; do lado
direito um querer ser. Precisarei ainda situar o que vem no lugar do
gozo para uma mulher e o que vem no lugar do gozo para o su|eito
histérico Para tal. farei referência aos do1S maternas pelos quais
Lacan escreve o gozo. S($ e o objeto a. que distinguirei. Do lado
esquerdo indicarei o modo como Lacan situa o desejo femmino no
Scmmdno, livro 20; mms, a partir de duas flechas, uma que va,
em direção ao falo, ao homem, e a outra que fica do lado mulher e
vai em direção a esse S (/). Do lado direito, indicarei o discurso da
histérica, com o objeto a no lugar da verdade.

I
Mulher
I Histérica

ref. gozo ref. desejo


+
querer gozar querer ser

O 'A Mulher

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

fazer desejar...

Para avançar
o discurso na distinção flístérica-mulh,r’ conò|derarei agora
da histérica:

3 s'

- s,

A histérica faz produzir saber, o que, no materna do discurso


da histérica, se encontra escrito no lugar da produção. Isso é his­
toricamente verificável: Sócrates, o histérico, fez Platão produzir saber;
as histéricas fizeram Freud produzir saber. O sujeito histérico gos­
taria — eu o indico no condicional para dizer o que é um impossível,
ao menos uma impotência — que houvesse um saber do objeto. Donde
sua vocação em fazer o Outro dizer o que é para ele o objeto mais
precioso. Portanto para a histérica não se trata apenas de fazer o
Outro desejar sexualmente, mas ainda de fazê-lo produzir um sa­
ber sobre o objeto. Porém a definição do objeto no nível da lingua­
gem é um resta a dizer, ou seja, um impossível de diçer, o que a barreira
da impotência inscrita no patamar inferior do discurso histérico
indica. Daí a insatisfação que se mantém na histeria concernindo
ao saber.
“Diz para mim o que eu sou para til” — demanda ela em sua
relação com o homem. E essa questão, que sustenta o discurso
amoroso implica: “Eu sou o que tu ainda não disseste. Faz mais um
esforço para dizer ”. É o lado de supereu da histérica em sua relação
com o discurso do parceiro. Uma mulher também pode se tornar
um supereu penoso, mas não é o mesmo tipo de supereu: trata-se
nesse caso não de um empuxo-ao-saber, mas de um empuxo-a-gozar.
E quanto a isso, não é tão seguro que o sujeito histérico queira um
homem no nível propriamente sexual. O sujeito histérico certa­
mente quer um homem, escrito em seu discurso pelo significante
mestre, mas um homem para saber o objeto, o impossível de saber.

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COLETTE SOLER

É^ndubitável que na história da psicanálise a série dos objetos


parciais foi estabelecida a partir do discurso da histérica. Será que
é possível dizer que esses objetos parciais são aqueles que causam o
desejo da histérica? Certamente não. Lacan o diz de modo explícito
no Seminário, livro 20: mais, ainda em que acentua o fato de que é para
o homem---- do lado esquerdo, no esquema abaixo----- que o objeto
a vem completar a falta do sujeito, ao passo que para a mulher —
do lado direito — os dois termos visados pelo desejo são o falo e o
S(^) (1972-3, p. 80). Portanto o objeto a não é o complemento
do desejo feminino. Mas foi escutando as mulheres, as histéricas, e
isso é o mais belo de tudo acrescenta Lacan, que Freud descobriu os
objetos a. E se acontece considerarmos o objetos como o comple­
mento do desejo feminino, é que na psicanálise, comenta Lacan, o
preconceito sexual comanda: que aí o homem imputa à parceria o
que vale para ele.

Homem Mulher

<D <

Dito isto, pode-se muito bem compreender por que os obje­


tos a foram descobertos no discurso da histérica. O sujeito histérico
de fato interroga o desejo do Outro, do homem; ele tenta durante
a vida fazer o homem falar. Ele faz o mesmo na psicanálise: ele
tenta fazer falar o psicanalista que, por método, lhe relança a palavra.
O resultado disso é que o sujeito histérico em análise desenvolve
um discurso sobre o objeto do desejo, não o seu, mas justamente o
do Outro. Ele lhe diz enfim o que é o objeto do homem ao qual ele

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

próprio se refere, Nao basta portanto, a respeito dos objetos pré-genitais,


que o paciente e’voque o alimento, o excremento, o olhar ou a voz: é
preciso ver ainda de quem é a mensagem.

O amor, feminino

Na perspectiva de precisar a fronteira entre a feminilidade e a


histeria, retomarei agora o amor feminino e partirei do amor ciu­
mento que demanda a exclusividade. Podemos compreender essa
demanda a partir de dois aspectos da experiência, sobre dois eixos.
O amor é ciumento, por um lado, porque ele demanda o ser.
De fato, a demanda de amor é um esforço para corrigir, como o diz
Lacan, a falta a ser sendo a falta do Outro. Eis por que nos momentos
do amor partilhado há como um apagamento temporário do efeito
da falta-a-ser. Nesse sentido, o amor corrige a castração, ele a cura
temporariamente. E isso se vê muito bem quando o amor se desva­
nece. Ele então produz um efeito depressivo no sujeito que vive a
perda de amor como a perda de uma parte dele próprio. Em outras
palavras, o amor é o complemento da castração.
Essa vertente do amor é bastante evidente na experiência. Ela é
acentuada na histeria mas não é sua característica particular. Está pre­
sente, mais ou menos, na maioria dos sujeitos e especialmente nos
femininos. Observem entretanto que não é simétrica no homem pois
neste o amor não tem o mesmo valor no que concerne à castração.
O amor feminino é ciumento, por outro lado, no que ele deriva
das características do gozo sexual feminino. Eis o que é mais inte­
ressante. Seguirei aqui um desenvolvimento propriamente lacaniano
— não o encontramos em Freud — em "O aturdito que, vere­
mos, deve estar em relação com o texto "Diretrizes para um Con­
gresso sobre a sexualidade feminina”. Enquanto em 1958 Lacan
utilizava a propósito do gozo feminino o termo de contigüidade,
em 1972 introduz a idéia de que esse gozo ultrapassa o sujeito
(l972, p. 23), o que desenvolverei duplamente e que nos levará a
questão do amor feminino.

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COLETTE SOLER

írminino ultrapassa o sujeito. Ele o ultrapassa,


Portanto o goz características desse gozo são hetero-
por um lado, sujeito, os quais obedecem a uma estru-
gêneas aos teno rezulados pela natureza do sign.ficante,
7” d7XndesUcontínuo. Isto quer dizer que quando Lacan fala do
: VoTem nino como de um gozo envolto em sua propr.a cont.gü,-
!ade é justamente para acentuar a oposição com os fenomenos

descontínuos do sujeito.
O gozo feminino ultrapassa o sujeito, por outro lado, naquilo
que o gozo não o identifica. O que se compreende muito bem pela
diferença com o homem. O gozo fálico, acessível às mulheres como
aos homens, é de fato um gozo que, por ter a estrutura descontínua
dos fenômenos do sujeito, identifica o homem como homem ou ao
menos é homogêneo à sua identificação. Isso é muito visível na
experiência: os homens se gabam de suas performances falicas e se
reconhecem tanto mais homens, se fazem reconhecer tanto mais
como homens quanto mais acumulam gozo fálico. Isso começa no
princípio da vida e não pára até o seu final. Isso começa na escola
primária quando mostram um ao outro seus órgãos, medem-nos e
se põem a ver quem mija mais longe — o órgão ainda não está
funcionando no plano estritamente sexual, porém o discurso já
advertiu o menino que é em relação a isso que ele vai se medir. Isso
continua em seguida nas conquistas sexuais em que se contabiliza
quanto se é um homem e das quais se gaba. Algumas vezes chega
é a acontecer, e é um fenômeno engraçado, que personagens céle-
não C°nSe^,° seus c°laboradores, ostentem uma amante —
uma amante, mas ostentam-na — evidentemente
faliram Q3 mu^er e amantes posiciona um homem, posiciona-o
mulheres- el dUVlda ^Ue ° 8OZO ^á^co não opera apenas com as
dos poderes do C°^OS °S camPos da realidade, tanto no nível
tico- poder profisXnV noT T P°der geraL P°der po1*'
Cumulações fálicas O h ^mPe‘ro’ os 9uais são outras tantas
isso escá muito ciar ornem pode portanto acreditar identificar-se,
'‘“O' Pe'a aPr°Prução de gozo fáIico.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ao contrário, o ^o feminino não identifica uma mulher como mulher.


É fato que uma mulher não se reconhece ela própria como mulher
nem se faz reconhecer como mulher pelo número ou pela intensi­
dade de seus orgasmos, salvo exceção, é verdade. Está muito longe
de ostentar o orgasmo; com ela acontece dele se esconder. Há um
provérbio que diz, a propósito do gozo feminino, que o homem na
mulher não deixa mais vestígios do que uma gazela sobre um ro­
chedo. Eis um eco no discurso do fato de que o gozo feminino não
se contabiliza, por falta de ser descontínuo. E isso, é bem evidente,
tem consequências subjetivas.
Por serem confrontadas pela estrutura à foraclusão do
significante do gozo feminino, não há de fato para as mulheres
identificação sexuada possível por aquele gozo, o que tem como
resultado acentuar nelas o esforço para se identificar pelo amor.
Em outras palavras, por falta de poder ser “A mulher”, resta às
mulheres ao menos serem “uma” mulher. Mas como uma mulher
não pode se especificar "uma” por seu gozo, resta-lhe “ao menos
ser a mulher de um homem”. Isso quer dizer que a mulher toma
emprestado o “um” do homem. Para assegurar-se de não ser apenas
um sujeito qualquer — o que ela é no momento em que é um ser
falante — porém um a mais de ser uma mulher , isto e, um sujeito
especificado sexualmente, ela passa pelo um do um homem do
qual espera um amor que gostaria exclusivo. Lacan portanto funda
a exigência de exclusividade do amor em uma mulher sobre o fato
de seu gozo ultrapassá-la. Isso quer dizer segundo o caso: angústia,
sentimento de desvario, sentimento de se perder, cujo resultado é o
apelo ao amor identificador.
Acrescentaria aqui uma observação a respeito da questão
Outra mulher que às vezes acarreta erros diagnósticos. Acentuou s
tanto esta questão na histeria que, quando encontramos um suj
que leva em consideração uma outra mulher, pensamos g
uma estrutura histérica. Ora, para cada mulher, tanto na n^ur°^
quanto na perversão e até mesmo na psicose, encontramo Ç
de uma outra mulher. A função da Outra mulher é c ama

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estrutura justamente pelo fato de que não ha' relação sexual, não há
no Outro um significante que permitiria inscrever um gozo que
seria específico dA mulher. E essa falta faz com que, para as mulheres,
a questão da identificação sexuada venho redobrar a questão da
identificação do sujeito, questão que se coloca para todo ser falante.
E precisamente porquanto há essa falha estrutural, as mulheres se
balizam, quando se trata de identificarem seu ser no desejo do Outro
e em outras mulheres. Isso é bem presente na clínica. Para uma
mulher, o teste de sua sedução é sempre verificado por ela junto a
outras mulheres. É a resposta de suas confreiras que lhe indica sua
posição agalmática.
Diferenciarei agora a relação da mulher com o gozo de seu
parceiro da relação com seu próprio gozo. Não é a mesma corsa.
Lacan diz que *o gozo que [um homem] tem de uma mulher a
divide” (ibid.), ou seja, o gozo que um homem tem de uma mulher
vem, para eia, no lugar da causa do desejo dela. Por conseguinte, em
Lacan há uma dupla especificação da posição sexuada da mulher.
Por um lado, há na mulher a oferta de gozar para Outro — obser­
vem aqui uma diferença em relação à histérica que faz a oferta de
desejar. Por outro lado, há o gozo específico da mulher com os
problemas identificatórios que ele lhe coloca. E, com efeito, ocorre
amiúde o fato de haver mulheres que não querem nem fazer gozar
— é o caso da h istérica — nem tampouco gozar. Sem dúvida, o
gozo não é obrigatoriamente desejável.

O go^o fálico e as mulheres

O próprio Lacan diz que o gozo fálico é perfeitamente acessí­


vel às mulheres. Podemos até dizer que o gozo fálico lhes é cada vez
mais acessível, uma vez que este está em jogo não apenas no nível
do poder no amor, mas também no nível dos poderes na sociedade,
na realidade. E patente que aquilo que chamamos de liberação das
mulheres lhes dê cada vez mais acesso a todos os campos do gozo
fálico. Eu me divirto todos os dias recenseando os domínios ínter-

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

ditados nos quais a imprensa nos anuncia que neles enfim adveio
uma mulher. Elas escalam solitárias altas montanhas, elas atravessam
sozinhas os oceanos. Ha alguns meses vimos uma jovem de quatorze
anos disputar um torneio internacional de xadrez; elas entram para
a policia, para o exercito, na política, enfim, por toda parte. E claro
que se o gozo fálico lhes é acessível, o problema é que ele não as
identifica como mulheres. Daí os conflitos subjetivos das mulheres
com o gozo fálico, balizados há muito tempo na psicanálise, a saber:
quanto mais um sujeito feminino se apropria do gozo fálico, mais
ele se inquieta com sua feminilidade por outros motivos.
E e verdade que o sujeito feminino moderno é quase sempre
atravessado por uma forma de drama subjetivo que parece típico de
nossa época, que não é mais aquele da esposa e da mãe das histéri­
cas do tempo de Freud, mas que é o drama de uma mulher bem-
sucedida em sua vida profissional e que é devastada pelo fracasso
do amor. Esperar que o amor as institua como uma mulher — eis
ao que as mulheres estão reduzidas pela estrutura — é efetivamente
uma solução aleatória. O apelo ao amor não pesa o suficiente, ele
depende muito da contingência, da tychê. Em contrapartida, a apro­
priação do gozo fálico é muito menos aleatória.
Concluirei retomando as duas questões pelas quais comecei
este relato. A primeira: por que a estrutura histérica 'e mais frequente nos
sujeitos mulheres? Quero dizer nos sujeitos anatomicamente mulheres
e que, por serem anatomicamente mulheres, o são no nível do direito
civil e caem sob o golpe da pressão do discurso que os convida a
serem mulheres. Embora não se saiba muito bem o que é ser mulher.
O ponto comum, parece-me, é a acentuação da relação ao Outro
e de modo mais preciso a passagem obrigatória pelo Outro barrado.
Quando escrevemos o discurso da histérica, a histeria como
discurso, escrevemos de fato um sujeito que nunca está só, mesmo
quando se isola, um sujeito sempre acoplado na realidade a um
outro que se define do significante mestre e que o sujeito se inter
toga sob uma forma extremamente precisa: trata-se de fazer desejar e
mesmo de fazer desejar o saber, esta é a fórmula do sujeito histé

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COLETTE SOLER.

Ademais, do lado mulher, uma vez que é a inscrição na relação


com um homem que constitui a única solução pseudo-identi-
ficatória, encontramos a mesma relação de uma mulher ao Outro
barrado, cuja fórmula a mais comum é o próprio homem no que ele
deseja e goza. Sem dúvida a fórmula de uma mulher acentua o
“fazer gozar” um homem, porém fazer gozar um homem passa
necessariamente por fazê-lo desejar. Assim o núcleo histérico se
encontra acentuado, mais visível nos sujeitos femininos em geral.
Esse Outro barrado encontra-se então no mais comum da ex­
periência interrogado no nível da relação sexuada sob as espécies do
homem. Mas evidentemente não esquecemos Deus, o Outro barrado
por excelência, aquele que não tem órgão — o órgão sendo o que
limita a barra sobre o Outro, já que ele indica o voto de gozo fálico.
Ou seja, quando Lacan diz no Seminário, livro zo: mais, ainda que
aquilo com que a mulher tem de se haver é Deus, estas proposições
que numa primeira leitura parecem tão enigmáticas, principalmente
quando aplicadas às mulheres modernas, essas proposições são
logicamente compreensíveis. No que uma mulher passa pela refe­
rência obrigatória da barra sobre o Outro, há sempre de fato, mais
além do homem, um Outro mais Outro que o homem. A espe­
cificação fálica do homem faz dele de fato um Outro bem pouco
misterioso, e a convicção de que com a chave fálica dele sabemos o
essencial, e preciso dizê-lo, faz parte do discurso das mulheres en­
tre elas. Alias, e por isso que uma mulher chama em seus votos,
mais além daquele que ela abraça, um homem castrado, diz Lacan
(1962, p. 73 3). Essa formulação de 1958, também um pouco enig­
mática à primeira vista — mas que se compreende muito bem se
pensarmos que o homem castrado representa um Outro cujo enigma
não está todo especificado e limitado pela chave fálica — essa for­
mulação portanto remete, parece-me, ao que diz Lacan no Seminá­
rio, livro 20: mais, ainda, em 1973, quinze anos mais tarde: mais além
do homem há Deus, ou seja, o enigma do gozo não fálico.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

nda e última questão: por que o homem, segundo Lacan, tem


Se^sohre a mulher na histeria? A resposta a esta pergunta, parece-me,
príW<? . |es; o homem histérico tem primazia sobre a mulher
, ■ pcn4uv o
histérica i de fazer desejar
w desejo 7 o saber não está nele
tado pela demanda de ser. Na mulher histérica, o empuxo-ao-
aber imposto ao Outro é limitado pela exigência do amor, ou seja,
rlrmanda de se fazer ser pelo Outro. E nesse caso a demanda
Je amor, que tenta obter do Outro um efeito de ser, é oposta à
exigência de saber. O resultado disso é que nas mulheres histéricas
se há um empuxo-ao-saber, nenhum saber entretanto convém. Quanto
mais o Outro produz saber, mais o sujeito exige de fato o Amor. Há
então uma lógica em dizer que a problemática feminina limita a
histeria do sujeito.
Sócrates, em contrapartida, não quer que o amem, ou mais
exatamente, ele não está nem aí. Ele ama Alcebíades, ele quer arrebatá-lo
em sua dialética, na elaboração do saber filosófico, mas ele de modo
algum busca astutamente obter de Alcebíades um efeito de amor.
Ele o busca tão pouco que quando Alcebíades lhe oferece, ele o
recusa e permanece impávido, o que Lacan, que fazia de Sócrates o
paradigma do homem histérico, acentuou muito bem. Sócrates ilustra
então com clareza um caso de histeria em que a exigência do saber
não está limitada pela busca do amor.

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POLÍTICA

PARTE 4

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INCIDÊNCIA política do psicanalista*

Meu título encontra sua razão em uma tese de Lacan que, na


época eu o recordo, havia me estomagado e restara para mim como
uma pedra de espera1. Ele a avança em Televisão (1974), com um toque
discreto e no entanto muito forte, indicando que o passe do
psicanalista poderia operar “a saída do discurso capitalista”. Nada
menos.
Além disso, Lacan não cessou jamais de afirmar que a psicaná­
lise tem de fato um alcance político e que ganharia esse alcance se
os psicanalistas consentissem em dimensioná-la, consentissem em
não esquecer por que eles são feitos, e a que os chama o discurso
analítico. Busquemos esse fio ao longo de seu ensino! Nós o en­
contraremos notavelmente constante. Certamente a tese variou,
chegando até a inverter-se: “Função e campo da fala e da linguagem
em psicanálise” (1966) chama o psicanalista para uma “função de
intérprete na discórdia das linguagens”; já a “Terceira” (1975), ao
contrário, lhe consigna a missão de “ir de encontro ao real” próprio
ao discurso moderno, mas de uma ponta a outra — sobretudo na
“Proposição de 1967 para o psicanalista da Escola” e textos conexos
comoTelevtsão (1974) ou “Radiofonia” (1970) —é a mesma insistência
marcando o que se poderia chamar de o ser-para-seu-tempo do
psicanalista.
Portanto, para interrogar de que modo a psicanálise é suficien­
temente importante na realidade, parto de uma evidência: a invenção
da prática analítica abriu em nossa realidade de civilizados um novo

Incidence politique du psychanalyste”. Publicado em La Cause Freudienne, n. 19,


novembro de 1991,
j1' N. do T. No original, pierre d’attente. Termo figurativo da arquitetura que
subsf3 L'(j1 e^emento Provisório, destinado a ser completado ou suprimido e

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COLETTE SOLER

campo de exper.ência, no qual fatos novos surgtram. Freud os


inventariou e os colocou por conta de uma realidade outra, recente­
mente explorada, que nomeia, de modo preciso, como “realidade
' ■ ’’ Não há nada de excessivo em falarmos de uma realidade
ouuapois tenho por sabido, com Lacan, que as realidades são plu-
rais, uma vez que não há realidade senão de discurso, ou seja, de
uma ordem que opera no real, e que esse real, por assim dizer, a
acomoda.
A incidência política desta nova diçmensão (dit-mension) da reali­
dade psíquica é imediatamente perceptível: no discurso primeiro,
aquele que organiza a realidade de nosso mundo, apelamos para a
realidade e suas evidências como alguma coisa diante da qual todos
se devem inclinar, alguma coisa, portanto, com que todos deveriam
concordar. A realidade psíquica, ao contrário, impõe-se não apenas
como dissimulada, mas como pura diferença de um a outro; logo,
não possível de ser coletivizada. De golpe, salta aos olhos retroati­
vamente que a promoção do que chamamos no discurso primeiro
de o sentido das realidades responde a uma operação, ao menos a
uma tentativa, mais ou menos bem-sucedida, de universalizar o
sujeito e de fazer funcionar um “para todos”... ao preço de uma
exclusão. Esta exclusão, Freud a situou com o termo de dessexua-
lização. Digamos: exclusão do impossível de universalizar. Além
disso, essa fórmula geral elucidaria o fracasso daquele que promoveu
o sujeito da ciência, Descartes, quando se trata de conceber, entre
pensamento e extensão, a mínima substância libidinal; e também a
sublime confusão do universal e do desejo de que Spinoza se fez
apóstolo. Ora, esse real que designo de modo aproximativo como o
impossível de universalizar é insuportável ao político uma vez que
ele quer governar. Mas é também o real que incita à aposta no passe
do psicanalista. Temos assim bastante razão, como diz Lacan, de
olocar a psicanálise a frente da política. É de fato o que sempre se
fez, tanto a esquerda quanto a direita.
O sintoma institui a ordem da qual se verifica nossa política .
psicanálise revela que o sintoma é um gozo que se faz valer

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

apesar do comando e do consentimento. Estamos então fundamen­


tados para opor o sintoma à adaptação a realidade, a qual não passa
je adaptação a demanda de um discurso. Essa oposição vigorosa e
clássica tem sua evidencia clinica. Mas ela faz esquecer que se a
falta a gozar gerada pela linguagem está presente em todo discurso,
a compensação não o esta menos, e a dita adaptação satisfaz também
ao gozo, mas sob um outro modo. Por conseguinte, se o sintoma é
"fixção” (fixion) de gozo, podemos chamar de sintoma não a par­
ticularidade da atipia, mas o modo de suplência-tipo que um discurso
instaura no lugar da falta de relação sexual. Neste sentido a política
é igualmente gestão de sintoma. Ela visa regrar os modos de gozar
os quais não se realizam somente na vida amorosa — a fim de
que não façam o impossível do laço social. Para Joyce o único, Lacan
fez ressoar o homem que se escuta no sintoma, retomando a antiga
ortografia da palavra: sinthom(m)ez. Eu poderia também, por via sim­
plesmente homofônica fazer vibrar aqui o “on” de omnitudc: a polí­
tica trabalha pela sintomnitude. Para governar o gozo, orientá-lo e
contê-lo, o discurso do qual se engendra nossa realidade fabrica
semblantes a gozar para todos. Isso nunca é inteiramente alcançado,
já se sabe, e é bem por essa razão que esta não poderia abster-se de
uma polícia (em sentido lato) que ponha os recalcitrantes à sombra,
se não em cemitérios, ao menos nas masmorras, e também de um
corpo de terapeutas chamados a retificar, a reduzir o sintoma. Tal
como Freud observou com os neuróticos de guerra, do ponto de
vista do político, o insubmisso e o doente são o mesmo:
contraditores de gozo.
Portanto a política é bem passível de uma interpretação. O Mal-
estar na civilização (1930) é um começo desta interpretação. Em 1970,
Lacan, ao escrever a estrutura do discurso capitalista como uma
modificação introduzida pelos efeitos da ciência no discurso do
mestre antigo, reajusta o relógio desta interpretação pela sintomnia
contemporânea. Falar de discurso capitalista é evidentemente

2. N. do E. A grafia utilizada aqui pela autora é ligeiramente diferente. Cf nota


l.p. B.

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COLETTE SOLER

tomar emprestado de Marx. Passados uns vinte anos, deveríamos


pensar, pelo fato da mensagem marxista ter ido à falência, que a
tese de Lacan caiu em desuso? Não o creio ao menos por duas
razões. Primeiro, porque o marxismo não se reduz a sua promessa
evangélica de amanhãs felizes. Segundo, o que Lacan tomou preci­
samente de Marx não foi seu evangelho, mas somente a função
"econômica” da mais-valia, que generaliza em mais-gozar. Não são
as recentes efervescências do Leste, os clamores do que Lacan se
permitiu designar impagavelmente com o termo “militantes de
carteirinha como baby-sitter da história”, que aí farão objeção. Muito
ao contrário, pois não se pode duvidar, pelo andar da carruagem,
que elas assinalam às avessas o aumento generalizado das imposições
do mercado, doravante mundial. A interpretação renovada de Lacan
soube reconhecer que, nos imperativos da insaciável produção
capitalista, operava a mesma lógica que nos mandamentos do supereu
freudiano. Disso ele dá uma fórmula minimante em seu Seminário,
livro 16: d’un Autre à l’autre (1968-9): gozar da renúncia ao gozo.
Sem dúvida a ciência forneceu aí novos meios que conseguiram
subverter nossa realidade. O destino dos sujeitos e o estado dos
laços sociais se encontram mudados: tal como o fogo que convoca
“a urinação primitiva” em que se exalta o júbilo fálico, os novos
produtos postos no mercado, mais utilitários que as ficções de
Bentham, são novas matérias para fazer sujeito”, parceiros prontos-
a-gozar3, válidos para qualquer um, como se diz, e dos quais se
remaneja o conjunto dos laços sociais.
O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens de Jean-Jacques Rousseau mereceria alguns suplementos. Seria
preciso primeiro colocar Freud com Rousseau e às duas fontes de
desigualdade física e social distinguidas por este acrescentar aquela
a qual o inconsciente preside, e que torna cada um parecido com
ninguém. Mas para levar em consideração o mal-estar capitalista
seria preciso abrir o capítulo da origem da igualdade entre os homens,

3. N. do T. No original,pttts-à-joMír. A autora faz aqui alusão à modapr«í'®'Pwí<r’

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ja igualdade forçada que o reino do empuxo-à-consumação instaura


e que faz de cada indivíduo... um proletário, casado com produtos
através dos quais ele é instrumentado. Todos proletários portanto.
^as isso não quer dizer todos iguais. O ser proletário do sujeito
moderno não reduz as diferenças sempre flagrantes e mesmo ber­
rantes: ele as instala no nível do ter. Quando os semblantes entram
em falência, não resta senão a quantidade para inscrever a diferença,
o mais e o menos, o muito e o não o bastante. Se o supereu diz:
goza, poderíamos completar sua fórmula moderna,^goza emulando.
A nós a tarefa de estudar seus efeitos, que penso diferenciais, sobre
as diversas estruturas clínicas, especialmente a histeria e a obses­
são, já que podemos supor quase a priori que o sujeito entesourador
e o sujeito anoréxico, por exemplo, não responderão do mesmo
modo. O registro da quantidade acompanha a foraclusão da singu­
laridade e seu retorno no real. Fatos diversos e atualidades políticas
nos informam quotidianamente sobre essas falências repetidas da
sintomnitude (sintomtude) que fazem do homem de hoje, como o
diz Michel Leiris, um excessivamente civilizado para não ser... um
selvagem.
Como então o passe do psicanalista anunciaria uma saída do
discurso capitalista?
Observo de início que a saída não quer dizer ruína. Se a ciência,
desde seus primeiros balbucios na epistéme grega, trazia a ruína do
mestre antigo, está excluído que a psicanálise possa ser a ruína do
discurso capitalista. Mas, uma vez que ela tem por vocação mudar
alguma coisa na economia do gozo, não poderia a psicanálise pre­
tender ao menos emancipar o sujeito — não digo as massas — dos
impasses da versão capitalista do supereu?
A psicanálise por certo trata o sintoma no que este faz objeção
a Slnt°nia, indo todavia em sua contra-vertente, ou seja, não para
retornar a ela. A sintonia encontra sua condição no fato de que o
desejo é dialético, portanto sugestionável, e que podemos lhe
preparar armadilhas (imagens, significantes, objetos) próprias a
CaPturá-lo, portanto dirigi-lo. É assim que doravante a “ciência

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COLETTE SOLER

comanda nossos desejos”. A psicanálise não comanda o mais-gozar;


ela busca elucidá-lo. Ela pode muito bem corrigir o sintoma, tal
como as terapias, mas é por uma via de revelação, de trazer à lUz
elementos inconscientes que fixam — seria melhor dizer que fixavam
__ Seu gozo. E se a psicanálise utiliza a dialética do desejo, é para ir
ao encontro daquilo que do desejo não é dialético: a condição abso­
luta, o “isso e nada mais”, o objeto que não tem equivalente, qUe
não se pode coletivizar, pois este não vale por nenhum outro. Por
conseguinte, o psicanalista, no sentido do psicanalisado, é aquele
que assume com conhecimento de causa seu impossível de
universalizar. Apesar disso ele não sai do mundo, mas é através
disso que ele se separa das injunções do discurso corrente e se faz
uma causa desta separação. Sua própria prática faz objeção ao con­
sentimento à proletarização contemporânea dos sujeitos. No final,
ela subtrai o sujeito às somações da justiça distributiva que enrai­
vece cada vez mais. Posso então arriscar a fórmula: o psicanalista... /
— o psicanalista como produto transformado de uma análise —
não é um proletário.
Estaria ele então contra os direitos do homem, inteiramente
ocupado em cultivar uma nova desigualdade não de natureza ou de
sociedade, mas de inconsciente? É claro que não é disso que se
trata. O psicanalista não tem nada a objetar contra a ascensão da
ideologia dos direitos do homem. Esta é estritamente correlativa
das devastações da civilização moderna; tenta colocar aí alguns diques
e não podemos senão aquiescer. É um sobressalto, uma formação
reativa contra a potência da “perversão kantificada” (pervcrsion kantifiít)
tornada industrial, pois hoje, observem bem, a máxima de Sade:
Eu tenho o direito de dispor do teu corpo etc.” parece bastante
artesanal.
— A psicanálise não é uma formação reativa fazendo barragem a
uma vontade de gozo; é a causa eventual de um desejo outro. Mas
este desejo só se pode sustentar como uma causa a ser defendida,
justamente porque a psicanálise não está em condições de derrubar
aquele que habita o discurso capitalista. Se, retomando o vocabulário

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

do Outro, então nos interrogamos sobre os direitos e deveres do


sicanalisante e do psicanalista, será preciso dizer em primeiro lu­
gar que os direitos do analisante não são nem os direitos do ho­
mem nem os do consumidor, tampouco o contrário. Quanto ao
analista, ele deve enfrentar uma urgência: aquela, diz Lacan, de pro­
duzir a satisfação do final. Não é a mesma que aquela da entrada:
esta apega-se à miragem da verdade, a outra põe nisso um termo em
benefício de um certo saber do impossível. O dever maior do psica­
nalista é então um dever de... passe. Entenda-se como essencial o
dever de não deixar em suspenso (en souffrance') o ponto de encer­
ramento da experiência analítica, no qual se maneja a mudança quanto
aos fins. Não se deve crer que esta visada seja para a elite. Ela é, ou
deveria ser, para cada analisante.

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A HISTERIA NO DISCURSO DA CIÊNCIA*

O casa formado pelo mesrre e a hisrér.ca atravessa a históna


porém escolhi o tema dessas jornadas sobre a histeria no mal estar’

da civilização como um convite para discernir sua configuração atual


Isso supõe tanto quanto possível, algo como um diagnóstico do
estado atual dos discursos.

História

Deste estado, a histeria não deixa de ser “historicamente” res­


ponsável. Com efeito, a histeria é o "inconsciente em exercício” e
não é de hoje que ele insiste na história, uma vez que o inconsciente
se liga ao fato de ser falante. Sem dúvida os sujeito histéricos não
são os únicos a lhe emprestarem voz, porém, mais do que outros,
propiciam o leitmotiv. A eficácia dessa insistência está na origem do
desejo que fez nascer a ciência. E no mínimo a tese que Lacan de­
senvolveu em seu Seminário, livro ij: o avesso da psicanálise (1969-70),
assim como em “Radiofoma” (1970). Ela não deixa nenhuma chance
à dialética hegeliana do senhor e do escravo, e faz da ciência a res­
posta final1: isso acontece de Sócrates a Newton, de Anna O. a Freud.
0 discurso do mestre “retira sua razão do discurso da histérica”,
diz Lacan. O mestre antigo confia no saber artesão do escravo para
produzir um mais-gozar que tampona a hiância sexual — ao preço
de todo desejo de saber. Terá sido necessário Sócrates, puro histé-
nco, para lhe insuflar o desejo de saber do qual surgiu a ciência,
com a mutação de saber que ela suporta, de um saber artesão a um
saber universalizável, formalizado, no qual prevalece o aparelho

Lhystérie dans le discours de la science". Publicado em Quarto, abril de 1992.


esta ° OnS’na^ etfai* d* science la ríponse du hergerà la bergère. Em francês,
expressão significa a resposta que termina uma discussão.

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matemático. Que sucesso para a histérica! Esse ricochetear do desejo


produz o saber novo que opera no real, mas não deixa menos em
suspenso o sujeito confrontado com o impasse sexual, pois, mais
ainda do que o discurso antigo, a ciência o exclui de sua consideração-
“a ciência é uma ideologia da supressão do sujeito”. Nada surpre­
endente que com isso a histeria pós-científica estivesse em chamas
mais uma vez na história, como sintoma, tendo como pano de fundo
o fracasso do Iluminismo, e tendo como resultado a emergência da
psicanálise, através da qual Freud faz objeção à foraclusão médica
do sujeito.
Então a questão é saber o que se torna a histeria após o apare­
cimento da psicanálise na ciência, uns cem anos depois de Freud ter
aceito o desafio de tomar a seu cargo, ao mesmo tempo prática e
teoricamente, sua solicitação e de ter conseguido inscrever o enclave
de sua prática na regulação do gozo pelo discurso dominante.
E portanto a histeria na ciência, todavia com a psicanálise, que
interrogamos.

Repercussões da ciência

Lacan o frisou, há 25 anos: as repercussões da ciência em nosso


mundo se manifestam no plano dos laços sociais por um efeito de
universalização. Este é hoje reconhecido por toda parte e quase
sempre deplorado. Ele vai junto com a regência nova dos produtos
da economia moderna na vida dos sujeitos, e a questão que se coloca
é a de saber em que medida ele é seu efeito. Seja como for, esse
duplo resultado, universalização e regência dos produtos, interessa
ao casal sexual, sendo ele próprio tudo o que apaixona a histérica.
Doravante, a mortificação que a linguagem veicula passa para
o real... dos instrumentos. Estes nos instrumentam a tal ponto que
o esquecemos no cotidiano, e é preciso algum acidente ou as
fantasmagorias da science-fiction para nô-lo lembrar. O que chamamos
de nossa vida, quero dizer aquela que emprestamos ao nosso corp
é hoje totalmente aparelhada. Porém há mais. Lacan observava,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

final de seu ensino, que ter um corpo é poder fazer alguma coisa
com; particularmente, o uso de gozo. Há muitas maneiras: um corpo,
isso se empresta, isso se vende, isso se oferece e se recusa etc. No
discurso capitalista, um novo avatar apareceu: nossos corpos
doravante estão a serviço da grande máquina de produção. O fenô­
meno não é em si inédito, embora o seja no nível de sua extensão de
massa, muito além do círculo dos proletários no qual Marx o
circunscrevia. Em todos os níveis do trabalho social, os corpos, já
instrumentados, são eles próprios instrumentos. Aliás, quem não
vê que os mantemos assim como o fazemos às máquinas: check-up,
regime, ginástica, estética... Tudo isso não deve ser atribuído ao
narcisismo. De fato, calcula-se a resistência do material: os boletins
de saúde de nossos dirigentes não têm outro sentido. Por que Yeltsin,
falando na televisão francesa nesses últimos dias, acreditaria que
seria bom nos fazer saber sobre sua ducha fria pela manhã, seu
esporte favorito e suas horas de sono senão para nos certificar do
instrumento com que dirige o leme? Doravante o corpo faz parte
do capital para todos e nós o tratamos como tal. Como isto não
seria em detrimento do gozo, se a própria definição do capital é a
de lhe ser subtraído? Nisso o amor perde, com certeza. Por exemplo,
o amor cortês, ou os mapas do Tendre, sua paciência, sua indústria
eram para os ociosos, pessoas que não tinham agendas nem secre­
tárias eletrônicas! Dá para imaginar um trovador com um fax?
Enquanto os laços familiares se tornaram autônomos da transmissão
dos bens, o próprio amor é falado cada vez mais em termos de ter:
contam-se as ocorrências, os produtos, os ganhos, calcula-se por
antecipação as perdas e lucros, e a legislação ratifica. Assim a capi­
talização do corpo vai junto com uma depreciação generalizada —
e não apenas neurótica — dos problemas do amor.
Esse novo realismo é acompanhado de um efeito mais notável
ainda, até então inédito, que chamarei de efeito unissex, generali­
zando a expressão que a publicidade aplica de preferência às
estimentas pelas quais, com efeito, a diferença sexual mais do que
Manifestar, às vezes se encobre. Cremos de bom grado que

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COLETTE SOLER

caminhamos para esse travestismo generalizado em nome da igUa[


dade dos homens e das mulheres. Sem dúvida, mas por um contra
golpe inexorável do efeito de universalização: é que a ciência tem
por correlato o sujeito em sua definição cartesiana que ignora
diferença sexual, e que por isso ela se contenta muito bem em reduzir
todos os sujeitos ao trabalhador universal. O resultado imediato é
especialmente sensível para as mulheres que durante séculos viram
seus gozos confinados ao perímetro da casa, seja qual for sua forma
aí estando incluídos o homem e o filho. O mercado de trabalho
emancipou-as deste campo fechado, não sem aliená-las aos impera­
tivos da produção. Donde, aliás, as hesitações do movimento femi­
nista, que oscila entre uma reivindicação de igualdade e uma reivin­
dicação contrária, de diferença, na qual se exprime o protesto da
particularidade. O que é certo é que hoje não há mais domínio no
qual as mulheres não tenham acesso. Esse movimento, apesar de
não estar totalmente concluído, não deixa de estar se generalizando
e me parece irreversível. Marguerite Yourcenar foi bem-sucedida ali
onde Marie Curie tinha fracassado... na Academia Francesa. Ficamos
sabendo nesses últimos meses da primeira mulher na Fórmula Um,
a primeira a fazer sozinha uma tal escalada difícil e ainda uma pri­
meira de quatorze anos em um campeonato de xadrez... Restam,
sem dúvida, alguns baluartes. A recente candidatura de uma mulher
para pertencer a uma CRS2 provocou, há pouco tempo, forte
indignação entre estes! Será preciso esperar um pouco mais! O psica­
nalista como tal não tem que tomar partido sobre essa evolução.
Entretanto ele não pode desconhecer suas consequências... para os
dois sexos.
Como formular o impacto subjetivo desses dois remanejamentos
da civilização? Eles concernem ao próprio gozo fálico, visto q
este não tem seu campo apenas no quadro da relação sexual, m
suporta o conjunto da relação à realidade. Esse gozo fálico é o go

d' Sícuritt (Companhias Republicanas de Segurança)


2. Compagnits Rtpuhlicaints
unidades móveis de polícia ligadas ao Ministério do Interior france

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

capitalizável. O unissex quer dizer: gozo fálico igualmente oferecido


a todos. Não que as mulheres tenham sido algum dia dele privadas,
mas durante muito tempo, e salvo exceção, nos únicos limites dè
seu destino de esposas e mães. E esta restrição, para não dizer este
interdito, que explodiu em benefício de uma competição também
generalizada. Não consideremos como obra do acaso o momento
histórico em que Freud enfatizou esta pedra de escândalo que foi
sua fase fálica, com o que ela implica de uma desigualdade dos
sexos no inconsciente. Sua descoberta tem como contexto a ideo­
logia dos direitos do homem e os ideais da justiça distributiva, que
repercutem a universalidade do sujeito da ciência no campo da ética.
É preciso bem dizer, com Freud e todo o discurso comum, pois
ambos estão do mesmo lado sobre esse ponto, que meninos e me­
ninas estão longe de nascerem “livres e iguais em direitos”: há um
que, pela graça do discurso, se engaja na vida com um pequeno
capital a mais: o ter do significante fálico. E lógico, desde então,
que a outra, a mulher, se sinta pobre e, como consequência, sonhe
— é tudo o que Freud descobre ao explorar o inconsciente feminino!
— em enriquecer-se. Houve um tempo em que isso não podia ser
senão de um marido, portador do órgão, e depois de filhos como
substitutos. Hoje, ao lado dessas realidades atraentes, todo o campo
do que Lacan chama de “as realizações mais efetivas” lhe está aberto:
os bens, o saber, o poder etc. E um fato: a civilização da ciência
mudou a realidade das mulheres. O analista o constata e não é forço­
samente para sua felicidade: angústia, inibição, culpa, sentimentos de
inobservância fazem parte do cortejo. As primeiras psicanalistas,
Joan Rivière sobretudo, supuseram que se elas se sentem às vezes
como interditadas ao gozo fálico, e que temeriam perder ai sua
essência feminina. Não seria antes por que o gozo fálico em si
mesmo engendra a culpa — do mesmo modo nos homens, embora
sob formas diferentes? Como gozo limitado que obedece à estru­
tura discreta dos significantes, o gozo fálico esta sempre em falta e
Se presta a manter o imperativo do supereu: sempre mais.

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Histeria e feminilidade

Nesse contexto, a questão histérica sobre o sexo não pode


senão mudar de modo, a ponto de, sabemos, tornar-se desconhecívd
ao que nos resta de psiquiatria. Mas tampouco seria necessário qUe
sob o pretexto de não errar seu alvo, o psicanalista a reconhecesse
em toda parte, confundindo-a simplesmente com a feminilidade
Lacan sempre insistiu no sentido oposto, distinguindo duas posi­
ções e precisando que a histeria não é privilégio da mulher, que há
também o homem histérico e inclusive que neste assunto ele tem
primazia sobre a mulher! Se assim o é, devemos evidentemente com­
preender o que se presta à confusão.
De Freud a Lacan, gostaria de marcar um deslocamento da
problemática feminina. A partir de sua descoberta da fase fálica que
revela o significante único respondendo pela diferença sexual no
inconsciente, Freud distinguiu os dois sexos pelo ter: um tem e o
outro não tem. Seguem-se diferenças subjetivas: para aquele que
tem, medo da perda; para aquele que não tem, vontade ardente de
adquirir. Lacan o traduz facilmente, suprimindo o termo de vontade
ardente. Ele diz: “ameaça ou nostalgia da falta a ter’’. De um lado
portanto, estratégia de proteção, defensiva; do outro, muitas estra­
tégias possíveis. Freud desenhou a paleta das diversas posições das
mulheres. Uma consiste em elidir completamente o sexo; outra,
combativa, desmente a falta fálica na esperança de adquirir um subs­
tituto, o que ele nomeia complexo de masculinidade; uma terceira,
enfim, consente e renuncia em razão do amor do pai, considera
Freud, e com a esperança do filho compensatório. E também uma
posição de espera, mas que passa pela mediação do homem, para
dele receber o substituto fálico sob a forma do amor ou do dom do
filho. Assim, para Freud, a verdadeira mulher é aquela que, aceitando
sua privação, quer também dizer “obrigada”; já a outra, a do complexo
de masculinidade, que pretende adquiri-lo por si própria, recusaria
de preferência com um “não, obrigada” que, em última instância,

rejeita o homem em sua inutilidade.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Lacan, contrariamente a Freud, acentuou inicialmente a dimen­


são do ser, ou antes da falta a ser, que de saída está para todos,
homens e mulheres, como efeito da fala. Na questão do sexo a pro­
blemática do ter se combina com aquela do ser. Poderíamos seguir
as variantes desses dois temas entrelaçados ao sabor dos textos.
Eles conduzem Lacan a distinguir homem e mulher um pouco dife­
rentemente de Freud, embora no total ele não conteste de modo
algum seu falocentrismo. Digamos que o homem, se é posicionado
por ter o falo, compensa a falta a ser pelo ter e pelo benefício de
gozo fálico. A mulher, no início, conjuga ao contrário a falta a ser e
a privação do órgão. Porém essa falta, de algum modo redobrada,
lhe abre, segundo Lacan, a via de uma solução que consiste em tirar
um efeito de ser de sua relação ao homem. Daí a formulação possível
da diferença dos sexos pela oposição de um ter a um ser: de início,
ter ou ser o falo; mais tarde, ter ou ser um sintoma. As duas fórmu­
las não são eqüivalentes. Sendo o falo uma função negativa de falta,
e o sintoma, uma função positiva do gozo, estas duas fórmulas são
sobretudo opostas. E a tal ponto que o querer “ser o falo”, do qual
Lacan em determinada época estigmatizava a histérica, significa
exatamente não querer ser o sintoma. Sem mais desenvolver, refiro-me
aqui à segunda conferência sobre Joyce de 1979, na qual Lacan
diferencia explicitamente a posição da histérica daquela da mulher.
Uma mulher se especifica por ser um sintoma. Não é o caso da his­
térica que se caracteriza “por se interessar no sintoma do outro”, e
que não é portanto sintoma último, mas apenas “penúltimo”. Ser o
sintoma único, ao menos para Um, não é propriamente falando a
exigência histérica, nós o sabemos desde Dora. Isso se traduz na
experiência pelo fato de que, mesmo tête-à-tête, o sujeito histérico
não faz casal, mas ao menos triângulo e às vezes mais. A dificuldade
clínica é que a recíproca não é verdadeira. Uma mulher, seja ela
obsessiva, fóbica e mesmo psicótica, pode também ter de se haver
o que eu poderia chamar de suas rivais no sintoma, sem que
h tretanto estas tenham o papel que a outra mulher representa na
eria’ Além disso, o homem obsessivo também tem seu triângulo

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COLETTE SOLER

quando sustenta seu desejo através daquele de um alter ego. Para a


histérica, em todo caso, interessar-se pelo sintoma do outro qUer
dizer não consentir em ser sintoma. Mas tampouco é ter um sintoma
idêntico ao do homem. Contrariamente ao que imaginam os espíritos
apressados, o que não é uma mulher nem por isso é um homem.
Aliás, a respeito de Sócrates, Lacan observa que ele não é um homem.
É uma terceira posição: ter um sintoma, por assim dizer, por pro­
curação de um homem. E isso não implica o corpo a corpo, precisa
Lacan. Poderíamos seguir no ensino de Lacan todas as fórmulas
pelas quais ele progressivamente abordou esta afirmação. Primeiro,
as que indicam a recusa ou a impossibilidade da histérica de acei­
tar-se como objeto. Seria preciso colocar também na lista a noção
de furtar-se (de'robade') que designa a estratégia pela qual o sujeito se
subtrai ao gozo a-sexual da relação entre os sexos, e ainda as fórmulas
da identificação histérica à falta do desejo por oposição ao objeto
do desejo. Sem dúvida, Dora se interessa pela Sra. K como sintoma,
porém não quer ser a Sra. K — cf. a bofetada quando se lhe propõe
esse lugar; a Bela Açougueira, com seu pequenino sonho de desafio
a Freud, mostra mais nitidamente ainda — desde que ela suporta
na realidade as assiduidades de seu marido, o homem com o órgão
— que não sonha senão em deixar o lugar do sintoma e, como diz
Lacan no Seminário, livro iy: o avesso da psicanálise, de deixar o caro
açougueiro para uma outra. Quanto a Sócrates é bem evidente que
ele não quer ser o sintoma de Alcebíades, mas que ele se interessa
por Agatão, já que este se mantém no lugar deste sintoma.
Percebemos por que a histérica se presta à confusão com a
posição feminina. A feminilidade implica a relação ao Outro, o
homem, para se realizar como sintoma. Passando seu ser de gozo
pela mediação deste Outro, podemos conceber o interesse que ela
tem menos por este Outro, homem ou deus, do que por seu desejo,
pelo vies do qual ela chega a encarnar seu gozo. A histérica passa
pela mesma mediação do Outro, mas com fins diferentes e não para
se realizar como seu sintoma. Seu desejo se sustenta do sintoma do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Outro a ponto de que poderíamos quase dizer que ela disso faz
urna causa, mas uma causa de... saber. Não que o desejo de saber a
anime, mas porque ela gostaria de inspirá-lo ao outro.
Como então situar o "bancar o homem" da histérica? A ex­
pressão toma vários sentidos. De início, ela designa o desafio histé­
rico: "Prova que tu és um homem , no sentido do "guerreiros, um
passo a frente" e também no da identificação ao homem. No entanto
essa identificação não é uma qualquer, e é aí que nos enganamos
com frequência. Pode ser identificação ao seu saber fálico ou então,
ao contrário, à sua falta. As duas podem, aliás, avizinharem-se no
mesmo sujeito, mas a identificação propriamente histérica, tal como
a encontramos em Dora, na Bela Açougueira, tal como Lacan a re­
toma em seu texto “Introdução para a edição alemã dos Escritos"
(1973), é a de identificar-se ao homem uma vez que ele não é
repleno, que também ele está insatisfeito e que seu gozo é castrado.
O clínico se perde facilmente aí, pois as conseqüências desta iden­
tificação podem se apresentar na fenomenologia da experiência sob
a forma de hiperfeminilidade. Vejam a Bela Açougueira: no nível
imaginário, visível, ela banca a mulher rivalizando com sua amiga.
Mas essa mascarada resulta do fato de que no nível simbólico, como
sujeito, ela se identifica ao homem em sua falta. Um outro resultado
prático é que a histérica se faz o agente ativo da castração do
Outro.

Hoje e amanhã

Uma vez especificada essa posição, retorno às figuras atuais


da histeria. O estado de nossa civilização, eu o disse, se faz cúmplice
da identificação sempre possível das mulheres ao ter masculino.
Graças aos recursos da metonímia, o caminho está aberto para todos,
tanto para nossas histéricas modernas quanto para outras, e a elas
nã° ^a^a talento. Mesmo assim é preciso dizer o resultado clínico
4Ue a análise atesta sob todas as formas: contrariamente ao que
maginamos às vezes, quanto mais a histérica é bem-sucedida na

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conquista fálica, menos ela pode gozar disso e mais cresce seu sen­
timento de desapropriação. Ela pode empenhar-se nas diferentes
competições que se oferecem; mal acaba de fazer suas provas, 0
ganho se desvanece, sua verdadeira questão passando alhures, no
campo fechado, como diz Lacan, da relação sexual. E somente aí
que a diferença sexual, recalcada em qualquer outro lugar pelo regime
do unissex, permanece não eliminável. Poderia sem dúvida dizer
que ela aí faz reinar o unissex da castração, mas é porque não a
interessa senão o gozo que é seu correlato e que ela exalta. Neste
ponto, a subversão sexual da época lhe deve, sem dúvida, tanto
quanto a ciência.
E com respeito a isso, a psicanálise é verdadeiramente o que a
histérica precisava, já que seu dispositivo aceita reconhecer o enigma
do sexo e tomá-lo a seu encargo. Vejam a diferença com Charcot,
por exemplo. Ele imaginou de modo um tanto parvo, deve-se dizer,
que aquilo que a histérica precisava era de um artesão do sexo.
E bem o que está implicado na fórmula que tanto chocara Freud, e
que prescrevia como remédio para todos os males da histérica,
o pênis de ação repetida. O mesmo eco se encontra, aliás, na expressão
chula “mal comida”. Ela é de fato menos chocante do que simples­
mente mal pensada. O que a histérica busca não é o artesão do sexo,
um que faria bem o amor; é um sábio do sexo, um que saberia
dizer qual o gozo que a mulher tem mais-além daquele do órgão.
Na falta de que este gozo seja dito, não podemos marcar seu lugar
senão ao insatisfazer o último: o sem fé da histérica não é sem
lógica. Freud aceitou o desafio e inventou um dispositivo que jus­
tamente exclui o artesão do sexo, proibindo o corpo a corpo, e que
obriga o Outro a responder, a produzir um saber homogêneo àquele
da ciência no qual a lógica desempenha um papel maior. De fato, a
psicanálise satisfez bastante à solicitação histérica de um saber sobre
o sexo. Só que este é um saber surpreso sobre a aspiração que 0
originou, pois ele não é feito senão de “negatividade de estrutura
segundo a expressão de Lacan, e deixa portanto insatisfeito 0 '°
histérico: ele esperava que o inconsciente consignasse uma ciên

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

do gozo como gozo sexual, e ele descobre que „ •


conhece senão o gozo fálico, a-sexual, e que o outro
cinge senão pela lógica, e não aborda o seu reJ^nS° °
real senão pelo impossível
de dizer.
Portanto permanece em suspenso para o futuro a questão de
saber se a h.ster.a se contentará com esta resposta árida. Nio estaria
ela antes tentada a msptrar um ressurgimento da religião> Sabemos
que Lacan se preocupava com isso, mas é preciso dizer que uma
parte do descaminho analítico se presta a isso também, visto que
em matérta de gozo, a psicanálise também fez valer que a última
palavra não e a castração para todos, que não somente há o mais-
gozar que a tampona, como há também do Outro... gozo que faz
objeção ao unissex. O analisante, sem dúvida, consome gozo fálico,
mas o analista encarna o que resta irredutível ao um fálico. É muito
sensível que esse irredutível se preste a diversos usos... subjetivos.
O gozo suplementar da mulher sobretudo, recentemente tido como
limite do saber por Lacan e a lógica da qual ele se arma, esta nova
aliança com Tirésias, já engendra no campo do discurso analítico
novos fatos clínicos: uma questão, sem dúvida, mas também uma
inveja, senão nova ao menos recentemente desenvolvida, rival da
inveja do pênis, inveja do... outro gozo, igualmente um temor e até
uma denúncia. Que busquemos seus traços tanto nos homens quanto
nas mulheres, e que balizemos seu uso divertido, a fim de renovar
os recursos da mascarada que faz a mulher. O culto de seu mistério
bem poderia fazê-la existir, tal como se fez com o deus-pai.
Concluo. A civilização da ciência assim como a universalização
que ela promove engendram o unissex. Nesse contexto, as histéricas
inspiraram a psicanálise, que mantém aberta a questão do sexo e
que lhes responde. Porém elas bem poderiam, no futuro, não querer
sua resposta de pura lógica e a ela preferir a religião da mulher.
Isso se dará segundo o discurso histérico ceda ou não ao discurso
analítico.

275

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A IDENTIDADE FREUDIANA DA PSICANÁLISE*

É fato que os psicanalistas se qualificam a si próprios. Eles se


dizem freudianos, kleinianos, lacanianos. Todos exceto Freud o
criador da prática analítica. Este todos inclui o próprio Lacan. Em
seu debate com os psicanalistas ele se utilizou de um famoso retorno
a Freud, que não foi uma simples reverência porém dez anos de
comentário minucioso e de reconstrução metódica. No fim, em
I98O em Caracas, ele o subscreve dizendo: eu sou freudiano.
Sem dúvida podemos pensar que se os psicanalistas só se anun­
ciam ao mundo sob uma proteção ilustre, isto ocorre por adaptação
ao que eles sabem da transferência, para se apoiarem em um nome
próprio, em um sujeito suposto saber que lá se encontra. O con­
traste com a ciência — não digo com a matemática — é impressio­
nante; a ciência, do mesmo modo que sua história, esquece os nomes
próprios, pois mesmo quando nomeia uma lei ou teorema, disso
não se vale, uma vez que seu saber passa ao universal e com ele ao
anonimato. Seja como for, o plural das referências da psicanálise
coloca uma dupla questão: o que nos justifica dizer a psicanálise no
singular, e como esta psicanálise permanece ligada ao nome de Freud?
Há uma tese de Lacan desenvolvida em seu texto “La
psychanalyse dans ses rapports avec la réalité” de 1967- Ela diz o
seguinte: a psicanálise em seu conjunto é freudiana às custas do proce­
dimento. A identidade efetiva da psicanálise domina as declarações
de pertencimento dos psicanalistas, quaisquer que sejam, e os faz
freudianos em ato, com a única condição de que eles engagem o
sujeito no procedimento que Freud inventou, o qual designamos
com o nome de associação livre. O psicanalista não é somente aquele

Lidentite freudienne de la psychanalyse”. Texto apresentado nas Jornadas da


scola Européia em Milão, 6 e 7 de junho de 1992.

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COLETTE SOLER

que convida a falar, como se diz por vezes, pois a oferta de escuta é
velha como o mundo. Ele convida o sujeito a uma palavra transfor­
mada, palavra não mais livre, porém visando se livrar do que a orienta
no discurso dominante. Como uma palavra sem intencionalidade,
que idealmente iria ao encontro do fluxo dos pensamentos que habi­
tam cada um e que todos também aprenderam a calar. Esta restrição,
que vale por suas impossibilidades, repercute no analista e comanda
seu modo de intervenção, quer ele o saiba ou não, também não o
deixando livre para flutuar a seu bel-prazer. Isto significa dizer que
a intervenção do analista se encontra, ao menos em parte, progra­
mada pelo fato de ordenar que o analisante se associe livremente a
seus próprios significantes. Mais precisamente, a relação livre ao
significante do lado do analisante implica a relação forçada do ana­
lista ao analisante. Tal é a tese.
Poderíamos seguir ao longo de todo o ensino de Lacan as vá­
rias fórmulas consignando ao analista um lugar que é função do
lugar do analisante. Se este último é definido como o produtor do
“material”, como se dizia, ou dos significantes, como dizemos, a
intervenção do analista, mesmo o menor ruído, ressonará obrigato­
riamente, sem que tenha que decidi-lo, como intervenção signi­
ficante.
Assim, ao analisante que associa responde o analista decifrador
e intérprete, assim como ao analisante que demanda, o analista que
deseja; ao analistante sujeito, o analista objeto.
Pode-se ilustrar este automatismo do dispositivo que se im­
põe ao analista através do exemplo do debate sobre a possibilidade
de interpretar a transferência, que foi aberto no movimento psica-
nalítico a partir de 1914 em seguida ao texto de Freud “Recordar;
repetir e elaborar . Sendo a questão saber como convém tratar o
amor de transferência em sua dimensão de resistência, o que faz o
analista que tenta interpretá-la como repetição, crendo assim se­
guir ao pé da letra as indicações de Freud? Pode ele fazer de outra
maneira para interpretar esta repetição ou pode somente extrair os
indícios significantes que permitem identificar o parceiro a que diz

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

respeito? Assim, pensando interpretar a transferência, ele não faz


nada menos que decifrar o inconsciente em sua estrutura de linguagem
É um ponto que Michel Silvestre tinha feito valer bastante em seu
tempo. É preciso então dizer que ele faz bem o que pensa mal.
posto que decifra bem o inconsciente crendo erroneamente inter-
pretar a transferência.
O eixo freudiano da psicanálise se atém então a restrição do
procedimento. Ela nao e nada mais que a restrição da estrutura do
próprio discurso, no qual a associação livre, como estrutura de lin­
guagem, não é senão a porta de entrada. Como resultado, os pró­
prios desvios não são anárquicos; eles guardam, como Lacan o
enfatiza em ‘‘A direção do tratamento e os princípios de seu poder”
(1961), uma coerência imposta pela estrutura, e que aliás confirma
esta última.
Esta tese tem sua consistência. Ela traça uma linha divisória
no campo de tudo o que se pretende como análise: é freudiano
aquilo que faz par com a associação livre; ela teve uma função
dialética no debate de Lacan com seus contemporâneos uma vez
que lhe permitiu polemizar, às vezes de modo incisivo, sem recusar
a coletividade que ele contudo questionava. Além disso, esta tese
tem um alcance político: afirmar a psicanálise como uma face ante
o discurso do mestre.
Disso não se pode evidentemente concluir que basta prescrever
a associação livre para ser analista. Isto seria dar ao analista uma
definição minimante, não desdobrada, que reduziria o desejo do
analista a não ser senão o significado da demanda de associação
livre feita ao paciente, o que poderíamos escrever:

D (associação livre)

As coisas não são tão simples, evidentemente. Duas objeções


indo-se às limitações da tese se apresentam. De saída há um

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COLETTE SOLER

fato: todas as inovações na psicanálise trouxeram algo novo na res


posta do analista. Melaine Klein acrescenta novas chaves para a in
terpretação, das quais ela faz sistema; Ferenczi, Balint, Winnicott
acrescentam à própria interpretação a gratificação suposta necessária
da demanda; A Psicologia do ego modifica a dosagem entre inter­
pretação e sugestão; o próprio Lacan, logo que começa a construir
a teoria do laço analítico, é levado a modificar o que os ingleses
chamam de setting, grosso modo as respostas do analista a propósito
da presença, do tempo, do ritmo, do preço etc. Todos, em suma,
são levados a reinventar: não o analisante, que mantém sua defi­
nição freudiana original, mas o analista, o qual certamente a estru­
tura restringe, mas não o determina todo e a ele deixa algumas
escolhas.
Além disso, tornando absoluta a tese, desembocaríamos em
um círculo, pois se o procedimento impõe seus pressupostos, é
necessário ainda que alguém faça a escolha deste procedimento e
não é preciso mais que isto para a questão de saber o que o deter-
mina se apresente e para que se possa quase revirar a formulação:
não é a associação livre que faz o analista, é o analista que condiciona
o uso da associação livre, a qual não vai sozinha; ela supõe que
alguém por seu modo de resposta, dela torne-se a causa. Sem dúvida
é preciso distinguir dois níveis do desejo do analista e aí introduzir
um desdobramento.
No seio do discurso analítico o desejo do analista é um operador.
Ele se ocupa do desejo que assedia a demanda de interpretar.
Uma vez que o desejo é desejo do Outro, ele pode se fazer suporte
do x de sua questão em todas as suas intervenções que visam fazer
aparecer a resposta à questão de: o que isso quer em tudo o que isso
diz? E ha mais: assim fazendo, ele próprio se coloca no lugar da
condição libidinal de todo o processo. É o que nós dizemos quando
falamos do analista como causa do desejo. O analista se faz causa
da metonímia analisante. Esta ao mesmo tempo satisfaz e não sa­
tisfaz o sujeito. Que o satisfaça é palpável na experiência quando
ele se deleita da associação livre. Ele quer crer que é seu gosto pela

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

verdade que o impele, como também Lacan ínicialmente afirmou,


antes de reconhecer que nesta suposta caça à verdade que é a meto-
nímia, é o gozo que circula. Ela no entanto não reduz a insatisfação
pois vai junto com a falta a gozar constitutiva do sujeito que fala, o
qual por consequência convoca o analista para o lugar do mais de
gozar complementar. E a que o analista se recusa para se manter no
lugar da causa perdida. Assim o desejo do analista designa antes de
tudo o fato de que na sua técnica ele faz operar a causa que refende
o sujeito: a —»
Saber qual é o desejo que é preciso para assumir este ato é
outra questão. Este desejo, nós supomos ser o resultado de uma
psicanálise no que ela modifica — metamorfoseia diz Lacan — o
próprio ser. Daí a questão sobre “o ser do analista”. Lacan introdu­
ziu sua expressão desde seu texto sobre “A direção do tratamento”
(I9ÓI, p. 642), no qual reconstrói toda a clínica analítica a partir
da distinção entre demanda e desejo. O texto termina com uma
notável página sobre o ser de Freud. Um elogio de Freud, homem
de desejo, no qual Lacan, tal como um Bossuet leigo, eleva o estilo
até as ressonâncias que evocam... a oração fúnebre. Não podemos
escrever assim senão sobre um morto. Terão sido necessários muitos
anos para Lacan pôr explicitamente em questão o desejo de Freud e
para distingui-lo, como o faz em sua “Nota aos italianos”, do que
deve ser o analista em sua pessoa. Do que ele deve ser para que o
relevo do discurso analítico ao qual Lacan se dedicou perdure.
Através de sua função o analista toma lugar no procedimento
que Freud inventou. O importante aí não é a descoberta do incons­
ciente mas o procedimento no qual “o real modifica o real (1973b, p. 6),
diz Lacan. O que significa, creio, que o real, que se verifica na es­
trutura de linguagem pelas impossibilidades lógicas que ele veicula,
modifica o real do gozo como gozo do um em que a relação sexual
falta. Quando Lacan evoca o ser de rebotalho do analista e o desejo
de saber que lhe seria preciso, ele pleiteia um analista do qual o ser
seria na justa medida de sua função. Talvez seja necessário distinguir
ai dois Freud: inicialmente Freud criador do procedimento e coletor

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COLETTE SOLER

dos primeiros resultados, o que permite Lacan propor seu aforismo


"não há relação sexual” como o próprio dizer de Freud, que se
deduz de todos os seus ditos, e que ele lhe restitui. E em seguida o
Freud, usuário do procedimento, que se ateve às conseqüências das
quais Lacan nos faz aparecer a parcialidade. Freud não foi além das
ficções da verdade. Seu mito de Edipo e mais ainda seu “Totem e
Tabu” permanecem homogêneos às elucubrações do analisante, que
sofre da ausência de algo, e fazem as vezes de “organismo parasita”,
sob o ponto de vista do dizer da falha da estrutura que eu evocava
há pouco e da qual Lacan, em “O Aturdito” (1972), afirma que
condiciona toda verdadeira formação do analista.
A psicanálise permanece freudiana porque Freud inventou o
procedimento analisante e dele colheu os primeiros resultados.
Desde que um sujeito entra em sua tarefa analisante, a sombra de
Freud, tal como um anjo da guarda, lá está. O analisante como tal é
sempre freudiano. Esta é a condição primeira. Talvez não seja Freud,
mas com certeza Lacan, que inventou o analista não do modo em
que ele funciona mas em seu ser sem garantia. Assim concluo: o
passe, se ele ocorre, quando ele ocorre, é também, a cada vez, um
passe de Freud a Lacan.

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OS DIREITOS DO SUJEITO*

Se nos perguntamos “por que a psicanálise?” como a uma certa


época nos perguntávamos “por que os filósofos?”, nós a reportamos
geralmente a um vício radical em uma civilização marcada pela
ciência. Esse vício deve-se ao fato de que a ciência ignora o sujeito.
É uma foraclusão. Daí a idéia de que a psicanálise está aqui a título
de antídoto, fazendo valer o que chamei na ocasião de os direitos
do sujeito. Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta à ciência.
Mas é muito claro que a ciência quer, como o dizia Lacan em
"Radiofonia" (1970), que a verdade se f... A ciência avança cega­
mente, e é fato que a psicanálise não conseguiu minimamente inquietar
o discurso científico.

De encontro ao sintoma social

Esse discurso, aparentemente nada pode inquietá-lo. Nem


mesmo as angústias dos sábios, que permanecem sem efeito sobre
a inexorável démarche da produção de saber, e não há comitê de
ética que funcione para deter o que, de tempos em tempos, treme­
mos de ver sair dos laboratórios. Então, por falhar em pará-lo, Lacan
introduziu em Televisão (1974) a idéia de disso excetuar-se, evocando
a saída do discurso capitalista”, a qual só será um progresso se for
uma saída em massa, digna da civilização de massa que é a nossa.
Com essa tese, não se está do lado de uma psicanálise dialo­
gando com a ciência, e não se está tampouco do lado da psicanálise
elitista, reservada para alguns sujeitos. É antes a idéia de uma via
outra que, para os sujeitos, deveria fazer pesar o antídoto ante o
discurso da ciência e de suas conseqüências sobre as distribuições
do gozo- Dito de outro modo, seria preciso que a psicanálise fosse

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COLETTE SOLER

um sintoma outro, suscetível de ir de encontro aos sintomas do


tempo. Lacan emprega a expressão em 1975, no discurso que fez
em Roma e que se intitula “A Terceira” (1975). Vê-se ali qUe ele
jamais cessou de insistir sobre o que ele chama de a incidência po­
lítica da psicanálise, encarregada de ir de encontro ao real que causa
o sintoma, respondendo aí de algum modo por uma resistência a
esse sintoma.
Ousando uma distorção do vocabulário marxista que na época
estava mais em voga do que hoje, Lacan situa a única coisa que
podemos qualificar de sintoma social como uma proletarização
generalizada, designando todo indivíduo como proletário uma vez
que “ele não tem nada para fazer laço social”. Dizer indivíduo não
é dizer sujeito, mas antes designar o sujeito completado por seu
mais-gozar. Aquele de hoje, se ele nada tem para fazer um laço
social, é que os mais-gozar modernos não são tomados do laço
social, como era o caso, por exemplo, para o discurso do mestre
antigo.
O discurso capitalista, Lacan (1972b) o escreveu uma vez a
partir de uma modificação do discurso do Mestre, a qual consiste
em inverter os lugares do sujeito e do significante mestre; consiste
portanto em marcar a passagem do sujeito à posição do agente —
ponto de analogia com o discurso histérico. Uma outra modificação
crucial está inscrita pelas flechas, mostrando que esse sujeito,
aparentemente em posição de comandar o mais-gozar pela mediação
do saber S7, não deixa de estar, por sua vez, comandado pelo mais-
gozar.

$ s
Discurso capitalista
t x-t
S a

O S2, nesse discurso, é um saber marcado pela ciência. Estamos


longe de Alcebíades, o mestre antigo, e de seu “mais-gozar em
liberdade e de consumação mais rápida”. O mais-gozar no mundo

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

que as recaídas da ciência nos fazem não e um mais-gozar em liber­


dade; é um mais-gozar assujeitado ao saber e às técnicas que se
deduzem dos saberes, um mais-gozar de consumação, digamos...
demorada. O que trazem esses mais-gozar senão o que Lacan chama,
em “Radiofonia”, de os produtos? As latusas do mercado que nossa
produção industrial gera em massa, para as quais o indivíduo pro­
letariado sacrifica menos do que é sacrificado, e às quais portanto,
mais que ao mestre, ele deveria pedir explicações da exploração —
ainda o vocabulário marxista — que ele sofre.
É que não apenas consumação e produção se encadeiam num
ciclo infernal — produz-se para consumir, porém para consumir é
preciso produzir — mas também as formas do trabalho produtivo
passam cada vez mais pela mediação dos saberes especializados.
E de uma só vez cada indivíduo, como instrumento do mercado,
torna-se de algum modo eqüivalente a esses meios de saber e de
savoir-faire. É todavia um fato patente, cada vez mais a adentrar
pelos olhos, que na sociedade moderna se vale o que vale o saber
que se tem para vender. Donde o problema, e mesmo a obstinação,
nos estudos, na formação, na “seteira” que cada um busca e onde
disporia de uma exclusividade para vender. Evidentemente, quanto
mais um savoir-faire ou um saber é raro, mais ele vale. Estaria o
saber dos especialistas em posição de dominar... o que então: o
mundo? “Tornar-me mestre e possuidor da natureza”, dizia Des­
cartes. De certa forma, a ciência foi bem sucedida no projeto de
Descartes, embora com alguns volteios inesperados, pois não é ape­
nas o mundo que é dominado, são também o sujeito e sobretudo
sua fantasia que toda uma indústria erótica orienta. L’Ant consagrou
a isso todo um dossiê. Não se faz somente comércio dos produtos
de consumo para a sobrevivência, faz-se também comercio dos
objetos do desejo. Toda uma imprensa vive disso, filmes... Então,
esse sujeito que, de certo modo, comanda o mais-gozar, pelo fato de
c°rnandá-lo através de seus meios de saber, é um sujeito cujo desejo
Se esgota sem se satisfazer na produção intensiva dos mais-gozar
pelos quais nossa sociedade espera tamponar a hiancia do sujeito.

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COLETTE SOLER

O sacrifício da singularidade

Há algo de um Leibniz revisitado em nosso tempo: o sonho


do melhor dos mundos possíveis, no qual nada mais haveria para
desejar. É um tema de sciencefiction. Lacan o evoca justamente em
seu “A Terceira”. A science-fiction é a ficção do mundo em que
chegaríamos ao fim do desejo, satisfazendo uma urgência de gozo.
Então, o que se deve bem observar é que o sujeito moderno é con­
vidado a ceder de sua diferença em benefício do mais-gozar produ­
zido nas vias prescritas pelo saber do tempo. O resultado é que essa
vontade não faz senão manter, correlativamente, a “falta-a-gozar ”.
O discurso do capitalismo, pela produção intensiva que prescreve,
mantém a impotência desta produção e dos próprios produtos para
estancar o ciclo infernal das aspirações sempre multiplicadas. Pro­
duzir sempre mais, produzir sempre melhor se sustenta da impo­
tência para satisfazer, a qual relança o ciclo sem limite.
Examinemos nessa idéia qual é o destino do sujeito. É um
sujeito que já cedeu de seu desejo, para retomar uma velha expressão do
Seminário, livro j: a ética da psicanálise (1959-60), ou seja, que ele sa­
crificou sua diferença aos logros do tempo — porque, depois de
tudo, esses produtos são também logros, logros do gozar — e é
também um sujeito que vale o que valem seus meios, seu ter com
que saber. Ora, há um saber impossível de amoedar: o saber incons­
ciente, o saber inconsciente próprio a cada um, aquele que não se
presta à industrialização.
Esse sujeito-mestre, que também é vítima, no que podemos
ver sua mestria? Poderíamos retomar o que Lacan evocava nos Escritos,
a saber, a ideologia da livre empresa, que tomou desde Guizot uma
outra extensão. Essa ideologia diz a cada um, um por um: corre,
rnexa te, vai em busca do sucesso. Estamos no tempo dos self~made-men
° Próprio Lacan se reconhecia como oself-tnade -man da psicanálise,
ma raridade. É um ideal do tempo. Esse sujeito-mestre, impelido
para o delírio da liberdade, e que se crê tanto mais livre quanto
mais liberado está dos ideais clássicos em benefício daqueles da

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

cOmpetitividade individual, convida que interroguemos o alcance


dos direitos do Homem. Evidentemente devemos abordar esse tema
com prudência. Ainda assim, os direitos do Homem não seriam a
tradução idealizada do direito à proletarização, tal como Lacan a
define? Em todo caso, eles avançam junto à dissolução dos laços
sociais, e o fora-do-laço não é o fora-da-massa; ao contrário, ele é
bem compatível com a multidão dispersa. A questão que se coloca é
a de saber: os direitos do Homem, desenvolvidos com muita legiti­
midade contra o mestre-tirano e as espoliações das massas, o que

de necessidades de artifício?
O sujeito-mestre do discurso capitalista é um sujeito
desarrimado em multidão, e o Um que faz sua verdade — já que o
S é aqui passado para debaixo da barra no lugar da verdade — é
essencialmente o Um do Um sozinho, do um entre outros, e nem
mesmo o Um do ideal coletivizante. Lacan, desde seu ‘Ato de Fun­
dação”, evocara a fragmentação dos grupos sociais. S/Sj escreve
essa fragmentação das comunidades sob o efeito da ciência, tendo
feito forfait os semblantes suscetíveis de fazer traço unário . Pode­
ríamos passar em revista todos os fenômenos que disso são sinto­
máticos.
Assistimos a morte dos reagrupamentos ideológicos, a sua dis­
persão. Talvez vejamos menos, ainda que caminhe em velocidade
com V maiusculo a falência da família em nossas sociedades. Penso
que, nesse ponto, os EUA estejam na nossa frente, embora a Europa
não esteja tão mal colocada se olharmos as estatísticas sobre os
casamentos, divórcios, nascimentos... Fragmentação da família, já
reduzida ao casal sexual, ao contrário do que eram antigamente as
grandes famílias”, todavia ainda mais à mercê dos atrativos e suas
flutuações, já que no fundo, entre as novas gerações, é uma prática
comum: a gente se agrada, a gente se aproxima; a gente não se agrada
mais, bye-byc. Afinal isto nem sempre é um drama. Vemos também,
specialmente nos EUA, a reprodução disjunta não só da família
nao Preciso estar em família para ter filhos — mas disjunta

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COLETTE SOLER

inclusive do casal sexual. É preciso ainda assim ler a imprensa de lá


sobre o assunto, com todos esses fenômenos de crianças adotadas
ou engendradas seja por pessoas sozinhas, seja por casais homossexuais.
Lá, a legislação corre atrás das invenções dos sujeitos. Pensem na
seguinte configuração, ela não é fictícia: tenho uma amiga homos­
sexual, eu sou um homossexual, ela vai fazer um filho com um
homem heterossexual, a não ser que ela se faça inseminar, e eu,
homem homossexual, vou adotar a criança que criaremos a três
com sua parceira... Algumas vezes é um pouco alucinante. Essas
crianças sem pai, talvez sem mãe, sem família, sem casal e que, ao
saber dos dramas de uns e outros, passam de mão em mão, que
sujeitos eles serão? Não há nada aí para ser denunciado, mas vemos
que a própria noção de “carência paterna” já está bastante ultrapassada.

Ser sem par

Já constatamos que, na nossa época, os sujeitos estão à prova


desse desarvoramento patente, imagem do Um por Um, e que de
um golpe as urgências às quais os psicanalista deve fazer face mudam.
Há algum tempo houve um programa na televisão sobre a psicaná­
lise. Perguntava-se a um psicanalista de orientação diferente da nossa
que tipo de pessoas ele recebia. Ele observava, e isso é uma banali­
dade, que não se vê mais os grandes sintomas dos primeiros pacien­
tes de Freud, mas que, em contrapartida, via-se muitas pessoas com
problemas “narcísicos”, quer dizer, segundo ele, dificuldades de
sucesso social, profissional, de inserção no mundo. Ele dizia aí algo
justo, ao menos no nível descritivo. Ele dizia o que os americanos
expressaram um pouco antes, de outro modo, com seu borderlinc.
Era talvez um nome do sujeito moderno oscilando entre o afasta­
mento e a fixação ao mais-de-gozar. Em todo caso, esse sujeito tem
identificações instáveis, o que se vê pelo fato dos deveres o serem
também — já que toda identificação implica deveres, não é? Alguns
o deploram futilmente, pois trata-se apenas de estabelecer uma
constatação. Restam no entanto obrigações, e sobretudo a obrigação

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r

A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

de ganhar sua vida, porque lhe é bem necessário sustentar sua exis
tência. Para muitos, o único arrimo do sujeito no mundo reduz-se
cada vez mais ao que lhe permite ganhar a vida, isto é, participar na
produção extensiva dos logros sobre o mais-gozar. E mais: isso não
é para todos, pois há os excluídos, cada dia mais numerosos. Então,
se vocês o permitirem, direi que o sujeito de hoje é um sujeito que
não está tanto na "dívida” quanto no déficit bancário: as letras de
câmbio a pagar no lugar da dívida simbólica que lhe daria deveres
éticos são uma supíência.
Esse sujeito tem também tentações, e mesmo uma tentação
quase incoercível, estrutural: ele gostaria de se distinguir, ser Um < f.
sem par. Esse sujeito, que a civilização libera do Um paterno da
tradição, é coagido, caso queira fazer algo de modo próprio, a dis-
tinguir-se. Isso é diferente de ser o melhor em seu gênero. Mas
como se distinguir na massa? Penso que o "desejo da diferença
absoluta” ao qual se devota o psicanalista é suportado, no espírito
do tempo, pela necessidade para os sujeitos um por um de se extraírem
do lote para não desaparecerem no um entre outros, sempre anônimo.
Vemos bem que a psicanálise está ligada à ciência de muitos modos,
e não apenas pelo tipo de saber: com a ênfase colocada sobre a
singularidade subjetiva, ela responde à indiferenciação que nossas
sociedades promovem. Isso se lê nos fenômenos.
Como reagimos, fora da psicanálise, à fragmentação dos grupos
sociais e ao anonimato favorecido por ela? Reagimos buscando fa-
bricar fora do par, e para isso há todo tipo de maneiras. Ao sujeito
que não conseguir agarrar um pedaço de saber técnico ou intelectual
resta, por exemplo, a aventura ou a exploração a realizar: escalar
uma montanha, atravessar os mares etc. As explorações patrocinadas
ou mediadas são também compensatórias. Alguém se lança na aven­
tura, depois escreve biografias e faz com que sejam lidas. O boom
das biografias, que também partiu dos Estados Unidos, deve ser
compreendido como a busca do fora do par que faz traço. É um
modo de inscrever no que se deposita em memória das poucas per­
sonalidades que conseguiram sair do Um entre outros. De resto,

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COLETTE SOLER

, coerente com o que, na filosofia, se desenvolve de um novo


individualismo, como se diz hoje, o que o Times Literary Supplcmcnt
chamava recentemente de the me&neration, para zombar do que resta '
de filosofia na França. .
Aliás, em “Radiofonia”, quando enfatizava a tirania dos pro­
dutos da ciência, Lacan destacava correlativamente a função do “alguém”
(juelqu’"")- Vocês conhecem a ambigüidade do termo que oscila
entre o um qualquer (quelconquT) e o fora do par (horspair). Cito a
página 67: “Quando se reconhecer o tipo de mais-gozar que leva a
dizer ‘isso, é alguém’, se estará na via de uma matéria dialética mais
ativa do que os militantes de carteirinha como baby-sitter da história.
Esta via, o psicanalista poderá elucida-la com seu passe . Foi antes
do final do Partido, é claro, não se está mais lá, pois não é mais
tanto pelo recrutamento político do partido que tratamos hoje dos
desarvoramentos da carne para consumo. Para coletivizar os Uns
quaisquer, temos atualmente os nacionalismos renascendo dos des­
moronamentos do Partido, com maiúscula, os fanatismos religio­
sos, os racismos: nada mais tranquilizador, portanto. Resta entre­
tanto a oposição crucial entre os gozos standard que fabricam o
mesmo, um qualquer portanto, e as singularidades de gozo ordenadas
no inconsciente, que fazem o alguém.
Então a psicanálise como saída do discurso capitalista, por
mais exorbitante que isso possa parecer, Lacan estava autorizado a
evocá-lo em Televisão... A nós a tarefa de dar-lhe um prosseguimento
efetivo.

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o PSICANALISTA E SUA INSTITUIÇÃO*

O psicanalista e sua instituição é meu título. Instituição está no


singular. Ainda que existam em quantidade, esta dispersão nao exclui
o fato de que exista uma problemática comum à instituição analítica.
Dito de outro modo, postulo que podemos estudar as variações
concretas dos grupos analíticos em função de uma estrutura: a do
próprio discurso analítico em suas relações com outros discursos.
Não só disse sua instituição como também o psicanalista. No sin­
gular, um singular não segregativo. Não disse o verdadeiro psicanalista
nem tampouco o psicanalista lacaniano. Tomo a prática analítica em
sua amplitude. Falando do psicanalista, Lacan precisa: “aquele que
se diz como tal e eu o admito por este fato”. E verdadeiramente
muito amplo. Em primeira instância o psicanalista se define pelo
único traço de que aceita entrar no dispositivo freudiano, que por
si só determina o que Lacan chama de “o eixo do procedimento”.
Há também uma multiplicidade de instituições de psicanalistas.
Existe uma dupla singularidade e além disso existe, como sa­
bemos, uma divisão, na verdade uma multiplicação de instituições.
Cada uma deve encontrar seu nome. Entre estes nomes — alguns
dos quais são, deve-se dizer, um pouco extravagantes — privilegio
três que me parecem merecê-lo. Estes três conformarão para nós
um pequeno triângulo.
O primeiro, ao menos no tempo, é a Associação Internacional,
que Lacan tão gentilmente discriminou com a sigla SAMDCA
(Sociedade de Assistência Mútua contra o Discurso Analítico), a
fim de assinalar que o efeito de grupo põe em alto risco o efeito de
discurso. Esta é sua tese.

Fe psychanalyste et son institution”. Conferência pronunciada em Bordeaux


ern *8 de janeiro de I987.

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COLETTE SOLER

Em seguida tivemos a Sociedade Psicanalítica, que deve ser


pensada segundo o modelo de uma sociedade científica. Implicava
deslocar o acento do aspecto comunitário, corporativo que existe
em “associação” com o problema do saber. Era melhor, mas a difi­
culdade é que na psicanálise há uma aporia do saber e, além disso
nem tudo é saber.
O terceiro termo é, certamente, Escola: mantém o acento sobre a
problemática do saber, porém o desloca em direção a sua elaboração
e aos problemas da formação. Uma escola faz referência a um ensino
Sabe-se que neste ponto Lacan busca um modelo nas escolas
' filosóficas da Antiguidade; estas não só pretendiam uma elabora­
ção do saber como também supunham o itinerário subjetivo junto
a um mestre — o mestre é aquele capaz de conduzir um ensino.
Se me contento com este triângulo — Associação, Sociedade,
Escola — é preciso nele colocar um adendo a Escola. A Escola que
nos interessa situa-se no que chamamos um campo, o Campo
freudiano. Associação, Sociedade e Escola, estes três termos e o
que conotam — confraternidade, saber e formação — demarcarão
nossas perguntas de hoje sobre a instituição analítica.
Não obstante partirei de muito mais longe: da questão do
grupo em geral e da função dos coletivos humanos. Estou autori­
zada já que o tema de vocês deste ano é o Mal-estar na civilização.
Tornei a lê-lo antes de falar. É cativante neste texto a ênfase coloca­
da no problema do grupo. A questão fundamental de Freud concerne
ao gozo. Ele se esforça para dar conta de uma insuficiência de gozo,
de uma falta de gozar do homem civilizado, mas ao mesmo tempo
se inquieta com um possível retorno do gozo. E um dos pontos
importantes deste texto; não obstante notem que entre civilização
e gozo — os dois termos fundamentais do texto — o termo mediador
é o grupo. Para Freud a questão consiste em saber o que junta os
homens e o que logo os separa. Ou seja, o que faz laço social-
O problema é compreender como o fala-ser — obviamente teu
não o chama assim, escreve o homem — pode consentir nesta pe
de gozo que é uma condição da civilização. Como pode renun

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

como pode sacrificar são seus termos exatos. É aí que recorre à sua
idéia de grupo. Sua tese, à luz do ensino de Jacques Lacan, parece-me
a seguinte: o grupo trata A Coisa pela identificação.
Observem que coloco o termo Coisa ali onde Freud usa Trieb
(pulsão). Pulsão que ele desdobra em Eros — o deus da união
e Tanatos — o deus negro da destruição, aquele que preside, segun­
do ele, a indestrutível hostilidade primária do homem pelo homem
(cf. 1930, p. 65 e 68).
Nós não cremos na natureza humana posto que Lacan nos
ensinou que as particularidades do fala-ser são efeito da linguagem
sobre o vivente. Mas isto não os torna menos irredutíveis, assim
como mais pensáveis.
Para Freud o laço social implica um sacrifício, mesmo em um
casal sexual. Como vocês sabem, Freud distingue dois tipos de grupo:
por um lado o par erótico, que é o de dois, e por outro os conjun­
tos mais amplos que nos fazem entrar no coletivo. Opera com o
um, o dois e o múltiplo. O um individual, o dois do grupo, o múlti­
plo dos coletivos. Se tomamos o par erótico — o sacrifício de gozo
não é evidente e sem impedimento — no que chamamos amor e
mesmo gozo sexual, Freud situa um duplo sacrifício, uma dupla con­
tenção pulsional: a contenção, ao menos parcial, do componente agres­
sivo e o sacrifício da parte de pulsões pré-genitais que não se integram
à cópula. Para nosso tema, o que nos interessa não é o casal.
O esquema de Freud é muito simples. E o que aparece em
'Psicologia de grupo e análise do ego (1921) quando se refere à
estrutura do grupo. Na origem do grupo coloca um ideal do eu —
para nós, um significante que escrevemos Sj — que, por ser co­
mum aos diferentes eus (moí) que compõem o grupo, possibilitara
sua identificação recíproca e a constituição do conjunto.
A identificação se dá aqui em dois níveis, por menos que esse
significante ideal se encarne na essência do chefe.
Lacan retoma tal qual este esquema do grupo. Ha muitos textos
de Lacan que se referem ao grupo. Em Observação sobre o relatório
de Daniel Lagache ”, falando do ideal do eu, diz o seguinte. Freud

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COLETTE SOLER.

nos mostrou como um objeto reduzido a sua realidade mais estúpi­


da, porém colocado por um certo número de sujeitos em uma fun­
ção de denominador comum, que confirma o que diremos de sua
função de insígnia, é capaz de precipitar a identificação do eu ideal
até esse poder débil da desventura (má-sorte) que revela ser em seu
fundo” (1960, p. 677)- Que bonita expressão, não é? “Esse poder
K débil de desventura” para designar algo que não se sublinha o sufi­
ciente: a coalescência do significante, sempre aturdido, e a contin­
gência estúpida de um objeto. Lacan continua: “Será preciso lem­
brarmos, para tornar inteligível a importância desta questão, a fi­
gura do Führer e os fenômenos coletivos que deram a este texto
seu peso de vidência no cerne da civilização?” Aqui é novamente
evocado o mal-estar na civilização.
Podemos fazer um pequeno esquema desta estrutura. Entre o
líder e seus comandados a identificação ao traço ideal (que Lacan
chama de traço "unário”) cria um laço que não é de identidade; é
mais um laço de diferença. Em troca, como denominador comum
permite a união entre os membros do grupo.

(eu — eu = eu)

Teríamos mesmo que escrever uni-ão1 (mhí-oh) com duas pala­


vras, separadas por um hífen. O traço unário é condição do uníssono,
de todos os se no seio de um grupo, os se de “todos iguais , da
multidão unida. O que não constitui ouniano. Ao contrário, é o que
significa o grande tema da solidão na multidão. Mas sigamos a
língua. Esta união (union') é justamente o que manifesta o uni­
forme. A língua acolhe bem o uniforme como vestimenta no nível
da forma visível da envoltura, a homogeneização dos eus (mois),

I. N. do T. Em francês o pronome indefinido on guarda o sentido de agente,


e também pode ser usado comosr, pronome indefinido, índice de indeterminaç
do sujeito.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

sua uniformidade, sua conformidade. Vestidos da mesma maneira


estão ainda mais na omnitude que vestidos de forma diferente. Po­
deríamos refletir também sobre o laço entre a moda e a ciência. Quanto
mais esta última impulsiona para o anonimato da uniformidade,
mas a moda trabalha na diferença, no look distintivo. É uma reação
que não faz mal a ninguém, que inclusive favorece o comércio,
porém implica uma contradição pois como moda é veículo de sugestão
e homogeneização. Nela repercutem os imperativos do momento.
Pensem na moda “unissex”... Freud havia notado que o poder de
identificação dos eus em um grupo é tal que chega a apagar a dife­
rença entre os sexos, a fabricar eus assexuados. Não é por acaso que
em nossa época, aquela do boom da ciência e das técnicas, este
“unissex” se realize precisamente no nível da roupa.
O grupo trata A Coisa pela identificação. Mas no que é neces­
sário tratar A Coisa? O acento posto por Freud carece de equívoco:
trata-se de conter e de regular o gozo pois ameaça ao outro — é o
que o torna nocivo e anarquizador. A Coisa de Lacan me parece
mais complexa. Digo A Coisa de Lacan ainda que A coisa seja um
termo de Freud retomado por Lacan — de início para pensar outro
termo de Freud, o inconsciente, e logo para pensar o gozo. Condenso I
aqui rapidamente o que foi desenvolvido na Seção Clinica durante I
este ano. Primeiro situamos A Coisa a partir de sua topologia, por I
sua tópica, no cerne do universo psíquico, da realidade psíquica. I
Pois bem, se tratamos de responder a questão de saber o que e, e I
não a questão de saber onde situá-la, então daremos inicialmente 1
uma definição negativa: é diferente da realidade psíquica se entendemos, i
com Freud, o que Freud chamou de Vorstellung e Vorstellungreprasentanç, I
que podemos assimilar grosso modo ao imaginário por um lado e 1
ao simbólico por outro. |
Uma vez que esta Coisa está fora do imaginário e do simbólico, I
consideramo-la real. I
É um real que podemos especificar duplamente. Parece-me I
que é o que Lacan fez em diferentes momentos. Podemos especificá-lo I
primeiro como vazio, como um furo no Outro, o próprio furo do

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COLETTE SOLER

sujeito; portanto como pleno, pleno de gozo. Por isso há um des­


dobramento da questão em relação à Coisa no que concerne à
função da identificação no grupo.

Grupo e narcisismo

O grupo é um campo de fenômenos narcisistas maciços. Lacan


o enfatizou em várias oportunidades. Insiste em 1967 em um texto
contemporâneo de “Proposição sobre o psicanalista da Escola"
intitulado “Razões de um fracasso” (I967d): “O narcisismo que
domina o regime do grupo” chega até à obscenidade imaginária
definida como o momento em que o sexual ultrapassa os limites do

Não se deve crer no entanto — como muito se disse e sem


razão — que as apostas da vida de grupo são imaginárias. Por exem­
plo, pode-se fazer rir com o narcisismo para denunciá-lo. Há uma
canção que Jacques Dutronc cantava há alguns anos sobre um texto
de Jacques Lanzmann e que se chamava "Et moi, et moi, et moi”, “Cin-
qüenta milhões de pequenos chineses e eu, e eu, e eu”, “Tantos
milhões de africanos e eu, e eu, e eu”; “E eu, e eu, e eu” é o grito
irrisório do narcisismo. Não obstante tem suas apostas de sujeito.
Perguntemo-nos agora pelo ganho narcisista que se busca na
pertinência ao grupo e perguntemo-nos por suas diversas peripécias.
Creio que a chamada vida de grupo põe em jogo as misérias do
sujeito em suas relações com o Outro. Neste laço do sujeito com o
Outro do significante, Lacan isola uma dupla necessidade que ar­
remata com duas expressões: incluir-se e subtrair-se. O incluir-se
realiza-se claramente nos grupos — é o problema das admissões,
instituídas ou formais. “Peço ser admitido” é pedir para ser repre­
sentado pelo significante do grupo, incluir-se, aquilo que os anuá­
rios materializam. A aspiração a estar ali, cujo efeito mais impor­
tante é a bem conhecida angústia de exclusão, imediatamente se
mescla com outra preocupação: a titulo de quê?

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Pois ao ser representado por um significante qualquer, ao ser


admitido como um entre outros, o sujeito não pode menos que
sentir sua diferença aplainada e então aspirar a distinguir-se. /
Há muitas maneiras de fazê-lo, tanto proveitosas como
impeditivas, mais ou menos singulares. E há uma que não é como
as outras: renunciar, em alguns casos se fazer admitir para renunciar.
Consiste em subtrair-se e é uma tentativa de separação, guardadas
as distâncias, análoga ao suicídio. Em um momento recente da his­
tória da psicanálise houve como que uma epidemia: todos os dias
Empédocles dava cria. Este fenômeno da renúncia, para sermos exa­
tos, não existe nas sociedades analíticas. Vocês podem — o caso
não é fictício — se apresentar na Escola X — e, uma vez que são
recebidos brilhantemente, dizer que não se trata de trazer posto o
uniforme porque não está de acordo com seus ideais de singulari­
dade. Vocês então imediatamente renunciam já que, de todas as
maneiras, não seriam admitidos se não portam o uniforme. Parece-me
um bom exemplo da dialética do sujeito e o Outro: estar aí —
inclusão — distinguir-se — tentativa de separação interna — sub­
trair-se — para aí deixar seu vazio.
Mas o grupo não encarna somente o Outro do significante —
que não existe e no qual o sujeito deve alojar-se. Encarna também o
Outro do gozo — que pqde existir. Neste caso não se trata da
dimensão do "estar aí”, mas da dimensão do “eu estava ali ao vivo e
a cores”. É um segundo aspecto dos benefícios narcisistas do grupo:
incluir um gozo que ao mesmo tempo dissimula. Certamente não
se copula com o grupo — fato do qual provém esse sentimento de
despossessão tão frequente e esta ilusão de que outros gozam me­
lhor, que têm uma parte melhor de sua agalma.
Não obstante o mais-gozar encontra a maneira de realizar-se:
acaso o fazer-se ver” não está com frequência à superfície do fenomeno?
Quantos senhores Músculo da pulsão escópica poderiamos citar!
Poderíamos também ilustrar o "fazer-se alimentar , o fazer-se chu-
Par >o fazer-se cagar ”, o "fazer-se escutar’, pois nem tudo e saber nos
templos. Seio, fezes, olhar e voz encontram aí seu espaço.

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COLETTE SOLER

O narcisismo do grupo

Passo agora do narcisismo no grupo ao narcisismo do grup0


ao narcisismo coletivo. E o que predomina na segregação.
Este termo é muito importante em “O mal-estar na civilização” de
Freud. Tem também certa atualidade na França. Freud é categórico
a respeito. Para ele, o grupo identifica, coletiviza e contém o gozo
destrutivo. Tem, pois, um efeito humanitário, porém é um efeito
interno e parcial. A certeza de Freud é que toda renúncia se paga
com um retorno do gozo. No grupo, o contido no interior retorna
ao exterior. Esta análise responde a uma estrutura muito precisa:
um conjunto identificado por um significante que opera uma certa
regulação interna do gozo. Inscrevam como Outro o que não está
ali, o que não se inscreve como Sr A certeza de Freud é que entre os
dois a luta está estruturalmente programada, ou seja, que o
significante mestre pacifica apenas localmente e leva de maneira
correlata à guerra. Faço-os notar que aí utiliza o termo narcisismo
das pequenas diferenças ao evocar as rivalidades entre povos vizi­
nhos, entre países vizinhos, entre o norte e o sul. A idéia subjacente
é que desde que haja o um, há o outro e entre os dois não há har­
monia possível. Alguns desenvolvimentos deste texto merecem ser
assinalados e anunciam o que Lacan condensou em um expressão
forte: o racismo em relação ao gozo do Outro. Freud situa a justiça
como reivindicação, reivindicação de que todos paguem o mesmo
preço de gozo. E uma aspiração para universalizar a falta de gozar.
E por isto que Lacan pode dizer que o psicanalista, assim como o
santo, exime-se da justiça distributiva”. Além disso há a idealização
dos modos de gozo em relação ao que está fora, seja o desprezo,
desprezo por aquele que não sacrificou na mesma medida, seja o
proselitismo, que significa “façam como nós”, seja enfim a perse
guição, este zelo que não faz senão saciar o kakon fundamental que
não e domesticável. Freud considera com a maior determinação qu
esta estrutura é irredutível. Isso implica que a civilização e se
valores humanitários não são universalizáveis, que não podem

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

senão locais, que lhes falta um Outro — ou seja, nada como um


bom inimigo. Não se pode dizer que até o momento a história o
tenha desmentido. Com sua extraordinária ironia, Freud conclui
que a civilização deveria estar agradecida aos judeus não por eles
terem contribuído em suas obras, mas por se terem deixado perse­
guir, por se terem consagrado a derivar a pulsão destrutiva. Segundo
se diz, Freud era pessimista. Lacan o é ainda mais, uma vez que
desenvolve os amanhãs que não vêm sobre a estrutura e sobre o
estado dos discursos.2 Perguntemo-nos no que esta uniformização
caminha para o sentido do impasse. E a uniformização dos gozos
de massa, exemplificada por Zizek com o significante coca-cola
que reina hoje no mundo.’ É um mais-gozar modesto mas que tam­
bém torna presente o imperativo “todos iguais”. A uniformização
de que fala Lacan está aqui em um impasse, pois é correlata a uma
foraclusão, foraclusão das diferenças, no sentido preciso de exclu­
são do simbólico. Desta foraclusão das singularidades há retornos
no real que vão dos mais inofensivos aos menos inofensivos. Um,
benigno, é a busca de cor local, o gosto pelo exotismo, no que se
imagina encontrar um mais-gozar em liberdade, oposto ao mais-
gozar encadeado às leis do mercado fabricado pela ciência. M. Sazaki
está aqui, vem do Japão e lhes falará amanhã. Talvez o Japão seja
para nós franceses um pouco exótico, mas encontrar um âmbito
distinto”, que não seja mais ou menos o mesmo, é cada vez mais
difícil e logo será impossível. No início está a exaltação das parti­
cularidades e reivindicações regionalistas. A questão do regionalismo
é muito complexa e minha observação, parcial; mas o fato de que o
regionalismo tenha sido um tema de De Gaulle é dizer que tenha
sido tomado pelo poder de Estado e deveria nos deixar com a pulga
atrás da orelha: o gosto pelo exotismo da ocupação a todo um ramo
do comércio; caso se queira um “âmbito distinto”, o teriam programado

2. CE Televisão e “Proposição de 1967", em que evoca “os impasses crescentes


de nossa civilização ’ e “as modificações que impõem aos grupos sociais não
como efeitos de uma política mal feita, mas como efeitos da ciência e da unifor-
ndzação que introduz.
L Cf seu artigo em L’Âne.

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COLETTE SOLER

com todos seus pormenores. A reivindicação regionalista é então


um retorno da diferença foracluída, uma de suas compensações.
O Estado pode orquestrá-lo uma vez que está em nome da paz
interna. Ocorre o mesmo com os esportes. Uma vez que o esporte
é uma sublimação da violência (no caso de algumas modalidades),
então se está autorizado a destruir o outro dentro das regras.
No extremo teríamos que evocar os campos de concentração, causa
da frase de Lacan que li há pouco. Para Lacan é “a reação do precur­
sor em relação ao que irá se desenvolvendo”; “reação de precursor”
quer dizer a resposta em ato à universalização em questão.

O grupo analítico

Após esta longa digressão volto ao grupo analítico. Este se


origina no discurso analítico. O discurso analítico é o laço social
criado por uma análise. É o laço entre duas pessoas ainda que haja
quatro termos no discurso. O grupo analítico é um conjunto, uma
massa que vai do pequeno grupo à vastidão internacional. A ques­
tão é saber se há alguma incidência do discurso analítico na insti­
tuição dos que se consagram a este discurso. O profano postularia
de bom grado que entre os analistas, estejam ou não em grupo,
deve haver mais sabedoria ou, ao menos, mais saúde que em qual­
quer outro grupo. A tese de Lacan, tomada de Freud, é a inversa:
não ha mais, haveria muito menos. Freud verificou que os analistas
não materializam em si próprios o modelo de humanidade que gos­
tariam para seus analisantes. Lacan ratifica esta afirmação e nela vê
um efeito do discurso analítico. Creio que se pode transpor esta
avaliação à instituição analítica.
Uma cascata de rupturas segregativas marcou desde o inicio a
história da psicanálise. Isso não começou com Lacan — a historia
da psicanálise é uma história de cisões. Os grupos lacanianos não
capam a esta lógica. Antes da dissolução da Escola Freudiana ja se
avia formado um Quarto Grupo e depois desta houve uma multi-
P ação de pequenos grupos à margem da grande Ecolc dc la Caust.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Não insisto. A tendência disruptiva, desagregativa da instituição


analítica parece-me suficientemente manifesta. O elemento narci­
sista é também mais evidente que em outros grupos pois talvez
esteja menos encoberto por ideais coletivos.
Mas se os impasses próprios do coletivo são mais intensos
nos grupos analíticos, trata-se de dar conta deles da única maneira
plausível, como o fez Lacan com o psicanalista. Lacan vê no psica­
nalista uma repercussão da própria experiência analítica e a refere à
posição do analista.
Em suma desenvolveu o seguinte: o grupo se ocupa em geral
do caráter não identificado do sujeito. Para o analista esta proble­
mática da não identificação do sujeito parece-me reduplicada pela
falta de identificação do psicanalista. Se falamos de identificação
do psicanalista, temos que conservar a ambigüidade da expressão,
seus dois sentidos: que o analista se identifica ou que é identificado,
como dizemos identificar um suspeito. A tese é a seguinte: a posi­
ção do saber no discurso analítico instaura a necessidade da insti­
tuição analítica e ao mesmo tempo a ameaça.
Que o analista só se autoriza de si mesmo quer dizer que não
se autoriza no Outro. Não se autoriza no saber do Outro não por
recusar submeter-se, mas por falta, porque o Outro falta. Isto é o
que se pôs à prova na cura.
E se não há sujeito suposto saber do analista, quem dirá, na
particularidade de cada caso, o que é e o que deve ser? Como iden­
tificar o analista? É o tormento da instituição.
Para o médico a coisa é diferente — talvez não em sua totali­
dade, mas em grande parte. Há um saber transmissível com o qual
se pode testar sua competência, ainda que não garanta sua prática.
O mesmo ocorre com os professores, com as técnicas que emergem
de um campo de saber efetivamente elaborado. Tampouco se pode
identificar o analista por seus produtos como e feito com os artistas,
por exemplo. Para o artista também não há um saber depositado no
Outro. A norma do saber igualmente falta para tudo que provém

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COLETTE SOLER

do artesanato à arte. A diferença consiste no fato de que têm seus


produtos: as obras, que satisfazem ou não por seu uso utilitário no
caso do artesanato ou pelo gozo que produzem quando da arte.
Portanto existe para o artista um Outro que responde no real com
seu gozo no ponto em que está disposto a pagar por ele. Na falta de
um sujeito suposto saber há ao menos um, cujo gozo se comprova.
Nada disso para o analista.
O analista ex-siste ao saber do outro e o sabe. Esta ex-sistência,
escrevam-na com duas palavras, como Lacan, para aludir ao lugar.
E o que o discurso analítico escreve quando no lugar do agente põe
o objeto a simbólico, que o analista encarna com seu saber fazer.
O analista não se distingue somente por ex-sistir ao saber do Outro,
mas por ex-sistir ao saber. Por saber isto distingue-se dos demais.
Cito: “é um saber impossível de produzir pois nenhum saber pode
ser produzido apenas por um”.
Por isso se associa com os que compartem esse saber que não
podem intercambiar. Os psicanalistas são os sábios de um saber
com o qual não podem dialogar. Sublinho a relação de consequência,
de causa e efeito que Lacan estabelece neste texto entre o saber do
analista e o fato do grupo. Estamos longe da problemática
corporativista ainda que não estejamos na sociedade científica.
Estamos frente a uma necessidade estrutural que comporta impli­
cações subjetivas para o analista. Um saber que não se pode trocar
é um certo paradoxo. Esta expressão substitui o termo não-saber
que Lacan utiliza por um certo período, pois havia muitas facilidades
às confusões dos analistas e era demasiado heterogêneo à ciência.
Mas ao propor a impossibilidade de dialogar com o saber, Lacan
distancia-se de fazer um apelo ao inefável. Seria contrário à orien­
tação racionalista de seu ensino e de seus esforços em delimitar o
que distingue a psicanálise das práticas de iniciação e dos conheci­
mentos distintos. Todavia como entender esse saber rebelde à
dialética da interlocução?
Não pode ser senão um saber não inscrito no outro. E o caso
do analista que só o é em sua prática. Em ato, pois. Então em seu

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

ato o analista não pensa. Não e sujeito como no diálogo. Pode-se


alternar o eu não penso do ato e o eu penso” do sujeito, mas é
um ou outro. O ato não carece de saber, ao menos da estrutura, mas
é um ponto limite que poderiamos chamar, conforme Lacan, tanto
de “saber absoluto” como de “ponto zero do saber”. Este saber não
dialético aglutina os analistas sem ser suficiente para sua identifi­
cação, nos dois sentidos. Sem dúvida, há analisantes e podemos
dizer: não há analisantes sem analistas que os causem, mas isto não
indica, como notou Lacan, onde está e quem é o psicanalista.
É evidente que este problema atormenta não só as instituições mas
também aos analistas, um por um — não há Outro do Outro. Di­
zemos com facilidade mas creio que adoece os analistas. Lacan dá
um nome a esta doença profissional que engendrou este ponto zero
do saber: a suficiência. O ter que serem suficientes para o ato sem
o Outro os torna também suficientes — mas desta vez no sentido
z
do desconhecimento. O desconhecimento necessita do Outro. E o
que o grupo fornece em geral e em particular ao analista. Pois a
falta de identidade pode encontrar nele a maneira de produzir-se,
no sentido da pulsão.
Existe outra via para sustentar este saber que não se pode
sujeitar. Lacan a denomina Escola. A psicanálise é um discurso sem
palavras. Se o psicanalista não se contenta com manter-se no calor
da instituição e quer obter seu saber do silêncio do ato, sem
transformá-lo em melindre ou afronta, será preciso inventá-lo. Se
este saber é rebelde ao Outro, somente a letra, idêntica a si própria,
será apropriada para escrevê-lo. Mas esta é outra questão e me atenho
àquela da instituição.
Em geral a instituição encobre e tampona a posição insusten­
tável do psicanalista. Por isso este se aferra àquela, ainda que sua
suficiência fomente até à obscenidade os efeitos do grupo.
Trata-se agora de saber se a própria instituição pode e deve
fazer semblante do Outro que não existe. Esta questão concerne
principalmente à política da instituição. Deve-se poder localizar o
analista, mesmo que seja apenas para saber que porta bater. Esta e

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COLETTE SOLER

amiúde a obsessão do analisante: teme equivocar-se ou haver con­


fundido a direção. De sua parte o analista chega mesmo a temer
ue não se encontre sua porta, pois por ex-sistir ao saber, não lhe
basca pagar com sua chave (com dinheiro ou títulos) para habitar
sua própria casa. É uma necessidade a que a instituição deve res-

P°n<Temos uma solução da IPA. É um propósito por identificar,

no sentido force do termo, o saber e o saber fazer do analista. Em


sua or.gem este esforço foi legítimo. Para Freud foi também um
anseio científico. A impossibilidade de responder a este ansem con­
duziu seus seguidores a identificar o saber com os conceitos imu­
táveis de Freud. Para pensar a psicanálise, pensá-la como Freud.
Lacan concede a esta ortodoxia o mérito de haver ao menos conser-
vado a letra de Freud. Mas isto não resolve o problema da formação
do analista. A solução da ortodoxia foi muito simples: identificaro
saber fazer do analista com o de seu próprio analista, o qual por
sua vez teve o seu. Este movimento recorrente conservaria o espíri­
to de uma filiação com o saber fazer do próprio Freud. Esta gestão
se explicitou na IPA com a tese da identificação ao analista como
final da análise, o que implica por sua vez uma identificação à téc­
nica e em especial ao enquadre. A solução da IPA não foi pouco
razoável, poderíamos inclusive dizer que foi sensata, uma vez que
repousa sobre o mesmo princípio, a saber, a sugestão, cuja idéia é
de que o Outro já está ali. Transforma-se assim em um parapeito
da conformidade. O problema é que o ato não é conforme e que em
sê-lo demasiado pode tornar-se impossível.
Coloca-se agora a questão de saber o que fez Lacan com a
instituição analítica.
Temos a tese de Elisabeth Roudinesco em seu livro d história da
psicanálise na França (1986). Evidentemente, sua obsessão é estar
sugestionada pelo que Lacan disse sobre o tema: ela não quer s
deixar enganar. Em uma instituição, diz ela, há duas possibilida e
a democracia e a autocracia. Observa que nenhuma das duas
em harmonia com a psicanálise — esta frase é de grande

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j*'--

A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

simplicidade intelectual. Enfatiza que a democracia — cuja ideolo­


gia é neste momento a tendência a minimizar os males dos princí­
pios coletivos — não é harmônica ao inconsciente, que não torna
os homens livres e iguais. Ao contrário, há uma desigualdade origi­
nal e irredutível no destino que forja o inconsciente. A democracia
com seu esforço de colocar cada um em pé de igualdade — se
conjuga melhor com o sentido de afirmar os eus igualitários em
detrimento do inconsciente — que não o é. De fato, a exigência
democrática surge da justiça distributiva na qual o psicanalista não
repara (cf. Lacan, 1974)• Não repara porque se dedicou ao que está
mal repartido. O modelo autocrático é o que funciona com um
chefe no sentido freudiano, quer dizer um chefe amado e obedecido
por seu saber idealizado. É o modelo da Internacional. Aí Elisabeth
Roudinesco está de acordo com a tese de Lacan. Há dois tipos de
chefe. Há Freud, o chefe que não exerce o poder, o chefe que quis
manter-se à margem. Isto não é falso. Temos indícios precisos de
que Freud em sua sabedoria procurou delegar para outros a gestão
de sua instituição; temos indicações precisas de que queria delegar
seu papel a um não judeu. E há também Lacan, um chefe que quis
manter o leme.
Dito de outra maneira, a tese é que da Internacional à Escola
de Lacan não há uma diferença fundamental. Esta se funda no fato
de que em um caso o chefe se apropria do poder e no outro, o
delega. Eis como se explicariam as desgraças da velha Escola: have­
ria uma antinomia entre a posição do analista e a posição insti­
tucional de Lacan. Vê-se de que maneira esta problemática cliva as
questões epistêmicas da questão da instituição.
A tese de Lacan é outra, pois Lacan tem uma tese e até um
balanço sobre seu agir: fracasso. Porém o que lhe interessa de modo
prioritário não é tanto a instituição como a psicanálise. Em I9Ó7
diz. Fracassei em despertar o pensamento analítico”. Correlaciona
este $°nho da razão com a estrutura, com o horror do ato — que
riga a preferir o sujeito suposto saber. A instituição reforça, por
VCZes até a diferença delirante, a intimidação própria do sujeito

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COLETTE SOLER

suposto saber. Tanto mais quanto mais próxima está de uma igreja.
Assim o grupo se transforma em guardião do narcisismo coletivo.
Esta avaliação de Lacan deve ser concluída com outra posterior em
que observa seu êxito em dar aos analistas desejos de existir. Não
contradiz a primeira, porém seu acento é diferente, já que evoca
não um campo epistêmico mas um desejo. Quando este desejo é de
existência, seu grito só pode ser de uma fórmula de exceção, até de
exceção em suspenso, posto que do desejo à efetivação há um passo.
É o que Lacan chama de “ao menos eu” dos analistas. Opõe-se à
evidência, ao “eu também”, que daria uma fórmula do desejo oposta
ao desejo de existir, a saber, a vontade de ser conforme. Mas como
fazer um grupo com exceções? Parece impossível, porém é inevitável
pois o analista não pode sustentar-se sozinho.
Nós temos hoje, entre tantas vicissitudes, uma Escola e um
Campo freudiano. Farei duas observações breves. Escola quer dizer:
manter a referência ao saber e tornar prioritária sua elaboração.
Nada a ver com a aprendizagem. Campo freudiano é um significante
que funda um grupo inédito na psicanálise. Pode ser de extensão
mundial — tal é o caso — mas não constituirá uma nova Interna­
cional, se este significante restar como indício não de um traço
comum empuxo-à-identificação, mas de uma referência comum —
o que é diferente visto que uma referência não identifica.
Para terminar, trata-se de saber se Lacan conseguiu que os
analistas que já existem não só ex-sistam mas também que se façam
historicizar-se4 de si próprios. Enquanto o analisante se historiciza
do sujeito suposto saber, historicizar-se de si próprio é a fórmula
do passante que elabora uma migalha de saber transmissível. Tal é a
aposta.

de bysttrit (histe-
4- N. do T No original hystorier. Há no francês a condensação
ria) e bistorier (historiar e também enfeitar, adornar).

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FINAIS DE ANÁLISE

PARTE 5

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QUE FINAL PARA O ANALISTA?*

O final de uma análise é o final de um amor. É um par engra­


çado este do analista e do analisante. Ainda ontem de manhã, en­
contrei em uma apresentação de pacientes no hospital uma jovem
mulher que fizera uma longa análise — era um sujeito neurótico
— e que me disse respondendo a uma questão: “Eu não via como
isto podia acabar... então eu parei”. Se a desnudamos das evidências
da compreensão, uma estranha fórmula que nos introduz aos para­
doxos do amor de transferência.
Lacan o notou bem cedo, trata-se de um amor verdadeiro. Não
há razão alguma para considerá-lo como um amor artificial sob o
pretexto de que o dispositivo analítico é um artifício. Além do mais,
trata-se de um amor que acaba por dizer a verdade sobre o amor —
e isto é raro — ou seja, que ele se desdobra num tal procedimento
que no final ele consigna uma idéia sobre o que é o amor. Neste
sentido, trata-se sem dúvida de um novo amor, como Lacan o dizia
em um determinado momento.
Qual é então esta verdade sobre o amor que se revela na trans­
ferência e que alhures não é senão suspeitada? Esta verdade é a de
que o parceiro esconde um outro. Não é que ele apenas seja um
substituto como Freud o percebera, mas sim que o real — entendam
o mais-gozar — mente ao parceiro. Portanto seria necessário dizer:
parceiro aparente. Tal é, vocês o sabem, o drama do amor. Donde a
graciosa fórmula muitas vezes retomada por Lacan: “Não era ela,
não era ele”, ou ainda mais radicalmente, o enunciado freudiano:
Eu não o amo”, ele ou ela. Poderíamos dizer que este verdadeiro
amor que diz a verdade sobre o amor é esclarecido? Seria um termo
tentador já que Lacan muitas vezes se referiu ao Iluminismo para

Quelle fin pour lanalyste?”. Publicado em Quarto, n. 3 5. 1989

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inserir a experiência analítica na racionalidade. Seria este amor o


único que não é cego e que alcança a lucidez a que somente o ódio
se aproxima? Por ora, deixo esta questão em suspenso; retornarei a
ela.
Observem que se trata de um amor que inverte as aspirações
do amor comum. Este último, quaisquer que sejam os traços
programáticos que ele comporta, começa pelo encontro — tykhê —
e aspira ao necessário. Ele aspira a isto sob a forma de um voto que
habita o elã amoroso e que se diz: “para sempre”. Ele visa o “não cessar”.
Por seu turno, o amor de transferência inverte absolutamente esta
repartição. De um lado, muito longe de estar à mercê do encontro,
ele é desencadeado quase autenticamente pelo artifício do disposi­
tivo. É o irmão gêmeo da associação livre. Ainda é necessário, dirão
vocês, encontrar um psicanalista. Certamente e há aí de fato um
elemento de contingência; porém, sendo assim, o amor de transfe­
rência, quaisquer que sejam as variantes de seu estilo em cada caso
— é exatamente isto o que embasbacava Freud — está quase asse­
gurado. Trata-se então de um amor que se produz não por encon­
tro, mas por necessidade. De outro, bem longe de aspirar ao “para
sempre”, ele aspira ao “que isto cesse”, e se questiona sobre o seu
fim. E um fato clínico que desde a entrada o analisante vise a saída,
por vezes até à idéia fixa, e à medida disto que o cativa.
Como compreender as particularidades deste amor? É um amor,
diz Lacan, que se endereça ao saber — é necessário acrescentar: ao
saber suposto; não confundi-lo com o desejo de saber. Vocês conhe­
cem a tese final de Lacan: não há nenhum desejo de saber, e isto
especialmente no analista. Uma vez colocado, nos apercebemos que
o fato da humanidade não ter desejo de saber se impõe quase a olho
nu; bem considerado, isto poderia ser mais surpreendente no ana­
lista, porém é a seu respeito que Lacan evoca, mais que um não-
desejo, um horror de saber. Não há desejo de saber porque o sujeito
já sabe de tudo o que tem para saber. Para quê? Para as finalidades
de seu gozo. No entanto o trabalho de transferência faz emergir

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

alguma coisa que se assemelha ao desejo de saber, alguma coisa,


digamos, que dele faz semblante, no sentido banal da expressão.
Isto se deve ao fato de que o sujeito que vem à análise representado
por seu sintoma, representado pelo que claudica para ele, represen­
tado por um Sjt pois bem, este sujeito não pode senão se dirigir
para o S2 em razão da estrutura significante, da própria estrutura
da linguagem. E por isto que Lacan pode dizer que a transferência
tem como motivo o traço unário. Este é o bastante para que a operação
analítica se dirija para seu complemento — de início, o saber — S2.
Não todo o saber, certamente — existe o recalque originário —
mas uma parte. Um sujeito representado por um significante que
se endereça ao saber — isto é a estrutura da transferência —
produz pedaços de saber.
Mas qual é então a verdade deste amor que faz semblante de
“desejo de saber”? Resumindo: é uma demanda, uma demanda de
ser. O sujeito procura seu ser pelo viés forçado da elaboração de
saber, mas não é o saber o que ele procura. A pessoa de quem Jean-
Guy Godin nos falou, com seu “Eu não sou nada”, o ilustra de
maneira absolutamente fulgurante, parece-me, mostrando que o
tempo da elaboração desemboca num protesto que desvela sua de­
manda latente, que não foi satisfeita. Estaríamos então enganados
em falar do amor de transferência como um amor esclarecido. Não
mais que qualquer outro, ele não vai até o desejo de saber e, como
todos, é ávido de ser. Se ele produz saber, é por um forçamento;
porque a operação analítica obriga a demanda de ser a passar pela
associação livre. Numa psicanálise, pela virtude, não do Espírito
Santo como se diz, mas pela virtude do desejo do analista, há um
forçamento do “eu não quero saber nada disso que e operado.
A moeda do amor, a interpretação substitui por uma outra. Neste
sentido, o analista é verdadeiramente um parceiro inédito na história,
absolutamente novo, que tem “chance de responder . No entanto,
e necessário observar que este “não quero saber nada disso univer­
sal tem suas variantes individuais, que devem ser consideradas em

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uma psicanálise. Aliás, isto se vê desde a entrada em analise. a


sujeitos, por exemplo, que se apresentam habitados por um senti­
mento de medo. Eles têm medo do que irão descobrir. De modo
oposto, há outros que estão à espera, por vezes até entusiasta, do
que descobrirão. Talvez vocês possam chamá-los de inocentes ou
de inconscientes; não é este o problema. O que aí se indica é uma
diferença que varia de sujeito a sujeito quanto ao saber.
Eis agora a questão: se a análise permite um forçamento do
“eu não quero saber nada disso”, qual é a medida deste forçamento,
mais precisamente qual é seu devir no final de uma psicanálise?
Perguntamo-nos se há um final de análise. Eu lhes direi que eu não
me pergunto isto aqui — não somos obrigados a colocar todas as
questões — ao menos, metodologicamente.
Parto da tese lacaniana: há uma finitude do processo analítico,
e desde então, como acabam de observá-lo tanto Annie Tardits como
Jean-Guy Godin, o término de uma análise pode ser avaliado em
função de sua coincidência ou de sua não coincidência com o ponto
de finitude do processo. A castração não contradiz este ponto de
finitude. Quanto ao impasse freudiano, o que evoca o texto “Análi­
se terminável e análise interminável” (19 3 7), ele não é identificável
pelo fato da castração, uma vez que a castração não conhece "cessa”.
Não é um impasse sobre a castração mas um impasse sobre uma
posição do sujeito em relaçao a castração. Aí é necessário ler o texto.
Aliás, ele termina com a afirmação de que "se deixe ao sujeito a
decisão , e ate mesmo a escolha de sua posição. Ele descreve dois
tipos de posição de impasse, mas não universaliza o impasse. De
resto, é fato que Lacan considera, em "A direção do tratamento e os
princípios de seu poder , que a solução da análise interminável’ é
ada por Freud em seu último texto inacabado sobre a clivagem do
ego . Isto para dizer que me parece dever ser nuançada a oposição
entre o impasse freudiano e o passe lacaniano.

('LQ4.or^a Trata-se de Freud, S. A divisão do ego no processo de defesa


k [19 3 8]). Em; Obras completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro, Imago, 1980.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Há portanto um final de análise. Podemos questioná-lo a par­


tir de vários pontos de vista. Podemos questioná-lo sobre sua se-
qüencia de saída. Como se apresenta a seqiiencia final, o momento
que se estende do que Lacan chama de o momento do passe, como
momento, como metamorfose do sujeito, ao fim. Não é o que eu
farei. Podemos questioná-lo sobre seus resultados, quando se avaliam
os lucros, quando se faz o balanço. Podemos questioná-lo sobre
seus ganhos terapêuticos, por exemplo, seus ganhos de saber. Tam­
bém não me interrogarei sobre este propósito. Ao contrário, eu me
interrogarei sobre o que o sujeito, no final, faz do que adquiriu. Se a
análise de fato lhe consigna a chave de sua divisão, o que ele faz com ela
ao tê-la em mãos? Da chave do enigma, o sujeito dela se servirá para
abrir ou para fechar a porta de acesso ao saber? Dito de outro modo, o
que acontece no final com um desejo de saber do analista?
O que seria fechar a porta? Creio ser exatamente este final aí
aquele evocado por Lacan em seu “Nota aos italianos” (1973b, p. 9),
há pouco citado por Annie Tardits, e do qual gostaria de comen­
tar um pouco detalhadamente uma passagem, se vocês o permitirem.
Este texto aos italianos data de 1973, sete anos após “A Proposição
de I9Ó7 , ou seja, após seis anos de experiência do dispositivo do
passe. Eis o que Lacan diz: “Eu agora articulo as coisas para aque­
les que me escutam” — suponhamos que estamos entre estes que
escutam:

Há o objeto a. Ele agora ex-siste pelo fato de tê-lo construído.


Suponho que conheçamos suas quatro substâncias episódicas,
que saibamos para que ele serve: ser cingido pela pulsão, através
do que cada um mira o coração e não o atinge senão como um
tiro que erra seu alvo. Isto dá suporte às realizações as mais
efetivas, assim como às realidades as mais atraentes. Se isto é
o fruto da análise, reenviem o dito sujeito para seus caros
estudos. Ele ornará com alguns adereços postiços suple­
mentares o patrimônio admitido produzir o bom humor de
Deus. Que se ame crê-lo ou que isto revolte, o preço é o mesmo

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para a árvore genealógica em que subsiste o inconsciente


O garotão ou a marafona em questão aí fazem o relé conveniente2

Em todo caso, eis uma passagem que nos descreve um final


um final que não é um falso final e que no entanto, aos olhos de
Lacan, não constitui o final que deve ser aquele da análise. É um texto
que não deixa de ter dificuldades e achei bom explicá-lo para mim.
“Há o objeto”. Evidentemente este “há” está em ressonância
com o "não há relação sexual”; é um balanceamento e faz pendant
também ao "há o Um” que Lacan formulara um pouco antes. Há o
Um que não tem alma irmã; há o Um que não tem parceiro sexual;
há o Um que não tem ninguém com quem falar exceto o intérprete,
se ele o encontra. Mas para este Um sem par, mesmo assim, “há o a”
que existe.
“Suponho que conheçamos suas quatro substâncias epi­
sódicas”. Uma substância múltipla e que pode se eclipsar, eis o
que dá um toque de novidade ao velho conceito filosófico. Eu não
me perco aí. A substância quádrupla, que não é nem una, nem eterna,
vocês nela reconhecem os quatro modos de gozo que a pulsão vei­
cula, segundo o objeto se faça seio, excremento, voz ou olhar. Mas
este objeto nele próprio não se confunde com suas encarnações —
aproximadas na teoria analítica como “pré-genitais”. Se não “existe
senão por ter sido “construído”, é porque ele é um topos, equivalente
à falha no Outro. É o que formula explicitamente o Seminário, livro 16:
de um outro ao Outro; trata-se de um objeto que se situa no Outro

2. N. do T. No original. “Le ga(r)s et la garce en question y font relais congru .


Gars — rapaz, cara, garotão — é o antigo caso sujeito degarçon — menino, rapaz —
sendo este o antigo caso regime degars\ garce, até o séc. XVI, era apenas o femini­
no de gars. Gradativamente, ganhou o sentido pejorativo de ‘megera , marafona .
Por analogia,garce é usado no que concerne a algo desagradável; por exemplo, cette
garce de vie — esta vida detestável’. Caso sujeito: forma tomada, sobretudo no antigo
francês, por nome, pronome ou adjetivo quando ele é o sujeito, ou substitui, ou
qualifica o sujeito de um verbo em um modo pessoal; caso regime: forma tomada
por um nome ou pronome assim como por seus qualificativos quando regidos
por outra palavra.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

como parte incomensurável em relação ao Um do significante. Neste


sentido, ele vem exatamente no lugar do -I e encontra na pulsão
aquilo com que se preencher, com que se substancializar de um
"mais-gozar”. “Suponho que saibamos que ele ex-siste” — como
topos, portanto — “que dele conheçamos as quatro substâncias
episódicas’ — como mais-gozar — “que saibamos para que ele
serve". E a questão de sua função na economia do sujeito. Não sei
se vocês já pensaram que o objeto a servia para alguma coisa. É uma
fórmula forte.
Retomo: “que saibamos para que ele serve: ser cingido pela
pulsão através do que cada um mira o coração e não o atinge senão
como um tiro que erra seu alvo”. Eis aí o uso, ao menos um uso:
visar o coração. Visar o quê, senão o ser? O ser que nos conduz à
demanda transferencial da qual sou parte, que de fato põe em jogo
a pulsão. Que a pulsão tenha uma relação com a procura do ser não
é uma idéia nova para o Lacan de 1973- Vocês já a encontram em
“A direção do tratamento e os princípios de seu poder”(1961, p. 658)
em que ele observa que a pulsão leva a demanda até aos limites do
ser, e em “Posição do inconsciente” (I960c) em que esta visada do
ser define precisamente o ser separador da pulsão em relação à alie­
nação significante. Reencontramos aí esta dupla vertente: buscar
seu ser e... errar seu alvo. “Retomar”, portanto compensar sua perda
e ao mesmo tempo “restaurá-la”. Mas se a própria pulsão não recu­
pera o objeto, contrariamente, por exemplo, às realizações da arte,
ela dá suporte “às realizações as mais efetivas, assim como as reali­
dades as mais atraentes”. “As realizações as mais efetivas” designa
as obras” em geral e não apenas aquelas da arte. Os produtos de
uma vida. Isto que se chamou num momento de as obras, e vocês
sabem que houve na história correntes de pensamento para quem
as obras” eram fonte do mal. Digamos de modo mais banal: os
produtos do trabalho. Quanto “às realidades as mais atraentes”,
pois bem, são aquelas que atraem, e eu o entendo de um modo
muito bobo, no sentido do amor e do interesse. O que abre, ao lado
do trabalho e de suas obras, o campo do amor e de seus logros.

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Há portanto um final de análise que consiste em ter aprendido


uma espécie de saber fazer aí com seu mais-de-gozar para fazer
servi-lo. Para quê? Para o que eu vou chamar, em uma fórmula que
evoca aquela da pulsão, de: “se fazer ser” por suas obras e seus
amores. Lacan, notem, disso fala com uma pequena observação de
derrisão pejorativa. Os adereços postiços do patrimônio são para
serem colocados em série com o seu termo de publixar’. Não há
apenas livros na lixeira. Há tudo aquilo com que se sustenta a árvore
genealógica, a saber tudo aquilo com que se realça o nome que se
recebeu. Tudo aquilo através do que, ilustrando-se na linhagem,
nós fazemos um nome que relega o pai. “Posição do inconsciente"
dizia: “se fazer um estado civil”; “Joyce o sinthoma” dirá: “fazer-se
um escabelo”34. Este final pelo “se fazer ser”, gostaria de situá-lo e
esclarecê-lo através de duas expressões vizinhas: o “melhor não ser"5
e o “se fazer ao ser” (sefaire à être'), que é algo inteiramente diverso.
Qual é o benefício do final pelo “se fazer ser”? Evidentemente,
ele toma seu sentido e seu peso da falta-a-ser. O sujeito, que se
experimentou como falta-a-ser e como divisão na experiência, chega a,
ou então encontra uma posição de ser que cuida de sua falta-a-ser.
Com “Um” estado civil, ele cuida de seu estado de ser sempre "dois’
na cadeia significante. Pequeno parêntese: falamos com frequência
da virulência do narcisismo que sevicia nos grupos analíticos. Do
exterior alguns se espantam com o fato de que “os” que fizeram
uma análise não sejam mais sensatos, sejam tão ásperos ou tão
vindicativos quando se trata de situar-se aí. Vejo aí uma manifesta­
ção do final pelo “se fazer ser”, pelo que podemos chamar de o
narcisismo do ser, e esta não é a única forma. E afinal de contas, um
sujeito pode de fato tê-lo aprendido de uma análise.

3. N. do E. Cf. nota I, p. 125.


4. N. do E. Cf. nota 2, p. 103.
5. N. do E. Esta fórmula retoma a última fala de Édipo, após a realização de seu
destino: |1T| (pWOtl. Sobre este ponto, cf os comentários de Jacques Lacan em
seu O seminário, livro j: a ética da psicanálise, cap. 23, "Os fins morais da psicanálise .
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Para o neurótico, é certo que esta posição é um progresso, em


todo caso uma mudança. Talvez dele se abuse por vezes, mas é de
qualquer forma um progresso porque a neurose é uma doença da
falta e da pergunta. Mais exatamente, a neurose eleva a falta ao
estado de doença. E uma doença da falta-de-gozar tanto quanto da
falta-de-saber que o neurótico experimenta como sua própria im­
potência. Com certeza todo sujeito é sujeito à falta e cai sob o
golpe da castração, mas nem todo sujeito é neurótico; nem todo
sujeito organiza a castração como doença. E é bem por isso que
Lacan opõe ao neurótico a personagem de Alcibíades, o desejante
por excelência, que de sua falta faz mais-gozar, tão longe quanto se
pode. Ao contrário, o neurótico sofre daquilo de que Alcibíades faz
uso de gozo. Este sentimento de falta-a-ser do neurótico sem dúvida
dissimula alguma coisa. Dissimula seu correlato: a posição do su­
jeito com relação à castração. Eu a formulo com a expressão do
Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60): “Melhor não ser”.
Melhor não ser do que servir ao gozo do Outro. E a posição do
neurótico. Neste sentido, podemos dizer que o sacrifício para o
qual a aposta de Pascal convida os homens, o neurótico já o fez, já
o escolheu: melhor não viver do que servir ao gozo do Outro. E é
bem por isso que o vemos carregar tão dolorosamente o peso, o
sentimento, de que ele não existe verdadeiramente ou de que já está
morto. Sem dúvida, há aí um narcisismo, mas um narcisismo da
falta-a-ser totalmente diverso do narcisismo do ser do qual falava
há pouco. Narcisismo da falta-a-ser que aliás explica por que a exi­
gência do amor é tão acentuada no neurótico. Não é que ele seja tão
amante e capaz de amar; é que ele não cessa de apelar ao amor. Ele
0 chama porque precisamente o amor, o verdadeiro amor, traz um
complemento de ser. Mas não de qualquer forma. O amor, isto faz
Ser com a falta-a-ser. Via totalmente oposta ao gozo.
Em seu narcisismo da falta-a-ser e em sua demanda de amor, o
neurótico resiste à destituição subjetiva, e isto pelo fato de que a
destituição subjetiva é antinômica do narcisismo da falta-a-ser e do
apelo ao Outro que ele sustenta. Tomem a este respeito os tres

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exemplos propostos por Lacan para a clínica da destituição subjetiva,


a saber o homem da Belle Epoque que retornaria no mundo moderno,
o guerreiro aplicado de Paulhan, e ele próprio fazendo seu seminá­
rio enquanto se ocupavam em negociar sua ejeção da IPA. Nestes
três exemplos, o traço comum — sem comentar bastante cada pon­
to — é termos precisamente sujeitos que, sob um fundo de catás­
trofe, não deliberam mais sobre o Outro, por vezes com um tom
estóico, e mesmo um implícito alea jacta tst. A fórmula de sua posi­
ção antes seria o “se fazer ao ser” com a nota de consentimento que
aí ressoa e que nada tem a ver com a nuança industriosa do "se
fazer ser”. Pois bem, se a posição do neurótico é a de fazer narcisismo
da falta-a-ser, fazê-lo passar do “melhor não ser” do que consentir
a servir ao Outro — já que ele acredita que o Outro quer dele se
servir — ao “se fazer ser”, é um progresso. É um progresso
terapêutico de final de análise quando o neurótico chega a sair de
seu “eu não sou” para concretizar seu ser em algumas realizações.
Não é necessário que sejam grandes obras. Um deles dizia: “Agora
eu consigo me ocupar de ‘minhas coisas ”. Por terra-a-terra que
seja, isto é um “se fazer ser”. Podemos dizer que quanto a isto
Joyce constitui um progresso em relação à maldição, sobre o J1T]
(pWOCl de Sade e sua recusa de aumentar o patrimônio. Pois Joyce.
ele, está do lado do “se fazer ser”. Quem mais do que ele quis ornar
de adereços postiços suplementares o patrimônio, contribuir para
sustentar a árvore genealógica, e ilustrar seu nome? Mas não é nem
a destituição subjetiva nem o passe do analista. Lacan é categórico
sobre este ponto: o “se fazer ser” não é um final para o analista.
Isto não é um final para o analista, é no máximo um final para a
doença da neurose. Não é o que há de melhor para o analista, longe
disso. E neste sentido Joyce não é um progresso em relação a Sade.
Se Lacan pode tomar Joyce como modelo do que de melhor se
pode obter no final de uma análise, é naquilo que ele ilustra uma
separação — rejeição — do inconsciente. Quando se trata do passe
do analista, não é Joyce mas São Tomás e... o santo em geral. E São
Tomás e a varredura dada nas obras: sicut palea, “como esterco .

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

O santo não se faz ser , ele não faz um nome para si. E verdade
que se dá um a ele, mas geralmente quando está morto. Foi por isso
que em 1979 Lacan ainda opõe Joyce e o Santo. Joyce que se faz
“escabelo" de sua arte, e o Santo que ao contrário cai sob o golpe
da “escabelastração", ou seja, a castração do escabelo. Para ele, nada
de levitação do nome. Para o analista, se ele se vota ao “se fazer
ser", “que ele não se torne analista”, diz Lacan. Por quê? Resposta:
não terá tempo de contribuir para o saber. Sendo o tempo contado
como os esforços, é um ou outro. Se ele se encarniça em um, não se
encarniçará em outro; além do mais, ter um nome não é uma vanta­
gem para a tarefa analítica, ao contrário.
Contribuir para o saber — notem a modéstia deste termo —
não é escrever tratados. Contribuímos para o saber, por pouco que
seja, desde que saiamos disso que Lacan chama de proliferação da
tagarelice. Este tem certamente sua eficácia na análise, sua eficácia,
sua seriedade, seu efeito terapêutico, mas a invenção do saber é
outra coisa. E a questão é sem dúvida a de saber se quando o
analisante recebeu a chave de sua divisão, ele dela se serve para
fechar a porta do saber. É no que consiste o “se fazer ser”. Com
certeza, este final pelo “se fazer ser” não é sem ligação ao saber; ele
supõe que houve aquisição de saber na análise. Nesta, a elaboração
de saber se apresenta sob a forma muito simples da construção da
história — tão boba quanto isto. Assim fazendo, o analisando veri­
fica a causa de seu desejo. O que inicialmente quer dizer que ele
experimenta uma falha estrutural no saber e que através disso ele
adquire um saber do impossível, um saber do que, quaisquer que
sejam os significantes, as palavras produzidas, seu “enxame’6 não
reduzirá jamais o “menos um” que lhes existe — o que Freud cha­
mou de “recalque originário” e do qual Lacan elaborou a estrutura
lógica: não há “todos os significantes” sem um a menos. Mas em
segundo lugar este saber não é a última palavra da psicanálise, que

6- N. do T. No original, “essain”, jogo de palavras possível entre tssain (enxame) e

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não tem uso “doutrinal”. Ele não é a última palavra, e se não h'
todos os significantes, há o objeto a, que vem no lugar onde o
signifícante não responde. O saber adquirido é duplo: saber do
impossível, mas também saber da singularidade. O analisante ad­
quire um vislumbre, toma uma espécie de panorâmica sobre o que o
distingue, sobre sua maneira própria de aí fazer com sua falta c de
compensá-la. E um saber separador, que tampona a culpa e a inibi­
ção e que descerra a impotência neurótica. Disso o sujeito é livre
para servir-se e para sustentar-se no mundo e na árvore genealógica.
Portanto o final por “se fazer ser” tem de fato uma relação com o
saber elaborado na análise.
Mas o sujeito irá mais longe? Há um desejo de saber que pode
nascer no final de uma análise? Digamos que Lacan o chamava de
seus votos em uma exortação... bastante necessária, talvez desespe­
rada. Por duas razões é muito difícil insuflar aos analistas um desejo
de saber. Não apenas porque a via do “se fazer ser ” lhe está aberta,
mas porque em sua prática o analista se deve dobrar a um “não
pensar”, ele se deve impor esta estrita disciplina de encarnar no
semblante o objeto causa. A posição do analista no tratamento ex­
clui a elaboração de saber, que é deixada ao analisante. E por isso
que por vezes se tem o sentimento que ele ganha sua vida sem fazer
nada — caso se possam alternar, a elaboração de saber e o ato ana­
lítico são antinômicos. A própria interpretação, segundo o que dela
dizem os analistas — se bem que Freud fale de construção e Lacan,
de cálculo do sujeito — é mais da ordem do dito impetuoso oracular.
Em suma, a prática analítica impõe ao analista um manejo de um
tipo de inércia de pensamento que não vai na direção da paixão de
saber, do gosto pelo saber. Aos meus olhos, estes obstáculos lan­
çam uma luz sobre o dispositivo do passe e dão uma parte de seu
sentido.

E uma exortação quando Lacan evoca o desejo de saber, mas
sem dúvida Lacan era por demais realista para ater-se aí, e creio que
o passe foi um dispositivo inventado para forçar o desejo de saber.
Com efeito, com este dispositivo, para aí “se fazer ser’ sob a forma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

de “aí ser nomeado’’, pois bem, é necessário passar pela elaboração


de saber. Aí está uma astúcia do dispositivo: servir-se do voto de
ser que habita todo sujeito sem exceção — ser na genealogia, e aqui
na lista dos AEs — para fazer elaborar algo de saber. Produzir
saber, na falta de uma causa, uma condição. Por que não? O passante
testemunha, é a expressão de Lacan, ele que pesa sempre seus ter­
mos. A testemunha, num dos sentidos da palavra, significa o mártir,
ou seja, aquele que padece assim como aquele que recolhe os fatos.
E devemos conservar estes dois componentes: o passante testemu­
nha sobre a experiência que foi sua análise. Um testemunho preciso
constitui o primeiro passo de uma elaboração de saber e há segura­
mente testemunhos mais ou menos precisos. Dar testemunho da
experiência supõe uma decantação, uma separação do patbos e da­
quilo que nela se deposita de saber. Quanto ao passador, sua tarefa
é bem difícil já que ele não deve ser nem um gravador — que registra
tudo e não entende nada — nem uma tela para o testemunho. Isto
supõe efetivamente uma posição particular, uma posição, parece-me,
em que o vazio do sujeito não seja colmatado pela consistência de
sua singularidade. Não é necessário que ele esteja por demais cheio
de sua própria particularidade, a saber, inteiramente habitado por
sua própria fantasia, nem também por demais cheio de convicções
sobre o que é o passe, a fim de que ele possa oferecer um vazio, um
espaço para que o testemunho se deposite. Quanto aos cartéis, de­
les se espera uma elaboração e o dispositivo aí acrescenta uma se­
creta incitação: Lacan, modificando o antigo dispositivo, concebe
dois cartéis no lugar de um só júri. Ele o precisa, dois cartéis traba­
lhando separadamente, ou seja, a emulação, pois desde que vocês
têm “dois”, têm a emulação. Não se trata de dois cartéis compa­
dres; trata-se antes de dois cartéis que elaboram, digamos, compe­
tindo. Enfim, a duração limitada do título do AE, Analista da Es­
cola, por três anos. Isso é duro para o que seria a exigência do se
fazer ser”. Isto separa o “ser nomeado” e o nome, o titulo. Alem
disso, isto introduz a função da pressa. Eis aí, parece-me, artifícios
de funcionamento que visam um efeito de forçamento do horror

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COLETTE SOLER

dc saber O “se fazer nomear , a emulação, a pressa, tantos a mais


ao desejo de saber faltoso.
Mas o que está em jogo? Por que esta nota de desprezo sobre
as "realizações” efetivas, sobre o "se fazer ser” e o apelo a um desejo
de saber? O começo de "Nota aos Italianos” o indica: trata-se da
sobrevivência da psicanálise. Lacan pensou que a psicanálise não
poderia sobreviver a não ser que ela chegasse a seduzir o mundo
moderno. Da mesma maneira que o mestre antigo se deixou seduzir
pelo saber do escravo até o ponto de elaborar a E7tl^Tiq|Jliq. Mas a
época da ciência não é suscetível de ser seduzida senão pela única
elaboração de um saber consistente. Portanto é a idéia de que este
discurso não poderia se manter senão habitado por um desejo pró­
prio à época da ciência.
As exortações proferidas por Lacan em 197 3 estão à nossa
mercê. Eu lhes deixo juízes de sua sorte. Quanto a mim, não tenho
a impressão de que hoje a psicanálise tenha muitas chances de seduzir
o mestre moderno ---- não há mais o mestre antigo, é evidente
,mas apenas algumas figuras que sustentam os ideais da ciência. Por
outro lado ---- e a história me parece ir mais nesta direção — a
psicanálise talvez tenha uma chance de seduzir os escravos modernos.
Eles são evidentemente tão diferentes dos escravos antigos quanto
o mestre moderno e diferente do mestre antigo. Os escravos mo­
dernos são todos os sujeitos que a ciência e seus produtos destituem.
Efetivamente, talvez haja aí uma chance de seduzir essas vítimas
que somos igualmente cada um de nós. Mas estas vítimas da paixão
cega do saber que habita a ciência, preferirão elas a religião, e inclu­
sive fazer da psicanálise uma religião? Eis onde estamos.

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ANTECIPAÇÕES DO FINAL*

Para começar uma análise, bom... é necessário escolher um


analista. E necessário escolher um dentre alguns que se propõem
como possíveis. Como sabemos, esta é uma escolha grave que tem
consequências incalculáveis. Todo mundo o sabe — não apenas os
psicanalistas e não apenas os analisantes. Todo mundo o sabe, a
começar pelos parceiros do analisante em potencial. Alguém pode
muito bem lhe dizer que não acredita na análise, mas se ele é o
amante ou o marido, se ela é a amante ou a esposa, e mesmo o pai
ou a mãe do analisando potencial, desde que está em questão o fato
deste analisando entrar em análise, o parceiro mostra que sabe que
o analista é rival, rival como objeto. Certamente ele o mostra de
maneiras diversas, seja por um afeto de desamparo, de abandono
ou de traição, seja por seus protestos, mas em todos os casos ele
responde à entrada em análise do seu parceiro. Vejo aí uma prova de
que a “consciência comum” sabe que a análise muda alguma coisa
no amor ou, mais freudianamente, na libido. Para terminar estas
Jornadas, me interessarei pela escolha deste novo objeto, e me per­
guntarei com vocês como essa escolha prepara a decaída final.
Para começar, noto que a decaída final não se vê da entrada. Se
a cura em anamorfose no momento de saída, da qual Jacques-Alain
Miller falava ontem, faz aparecer a cabeça da morte no quadro, o
final visto da entrada é uma miragem. A geometria da entrada, por
ilusão de ótica, produz um final de miragem que, lá onde o luto
está por advir, faz cintilar uma promessa. Esta toma para cada um a
forma singular de suas esperanças, mas qualquer que seja a variedade
das expectativas e das aspirações de entrada, podemos dizer que
todas são esperanças de recuperação — também poderíamos dizer

Anticipations de la fin”. Publicado emActesdelaEcoledeLa Cause Freudienne, n. 16,


maio de 1989.

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de restauração. Na verdade, esta recuperação se divide segundo as


duas vertentes em que se desdobra o sintoma. Este oscila — para
dizê-lo de forma condensada — da impotência ao forçamento, de
um “eu não posso lá chegar” a um “eu não posso me impedir”.
É bastante sensível que o fim da miragem, erguido na entrada da
psicanálise, sonhe em inverter essa impotência e reduzir esse
forçamento. Neste sentido, quando existe a dita aliança terapêutica,
não vejo como isso seria algo diverso de uma aliança contra o
inconsciente.
Sem dúvida é necessário levar em conta aqui a ambiguidade da
demanda de análise. Não é o sintoma que demanda. Digamos que o
paciente demanda contra seu sintoma. Com efeito, não nos esque­
çamos de que este paciente é um sujeito dividido, o que quer dizer
que ele é constituído de duas partes. Umas de suas partes, aquela
que sofre, recorre ao analista e à análise contra a outra parte, a que
faz sofrer. Esta formulação, em sua simplicidade, parece-me dar
conta da vinda ao analista. De fato, é bastante certo que o analisante
se enderece a vocês a partir do que o atormenta, a partir do que
Lacan num determinado momento chamava de suas “obliqüidades”,
ou seja, o que se põe em oposição às suas visadas, e por que não
dizer, às visadas do seu eu.
Podemos aqui — é um ponto que não desenvolverei mas que
evoco de passagem — perguntar de que partido é o analista. Aquele
da aliança terapêutica no-lo diz: ele é do partido do eu (moí). Quer
isto dizer que o que é freudiano ou autenticamente lacaniano é do
partido do sintoma? Isto não é tão simples; por parti pris, por
axioma do dispositivo, o analista é do partido de um terceiro que é
o dizer, o qual elimina a escolha forçada: ou o eu (moí) ou o sintoma.
Como a divisão da demanda na entrada marca a escolha do
analista? Detenhamo-nos inicialmente na fabricação do objeto
analítico. É um objeto novo. Não somente é uma escolha nova de
objeto mas é a escolha de um objeto novo. Parto disto que é evidente,
o objeto analista é aquele ou aquela a quem nos endereçamos. Voces
vêem logo que não posso dizer — como Lacan o diz do estilo e

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

o homem a quem nos endereçamos. Sou logo obrigada a introduzir


a distinção do sexo: aquele ou aquela. Isto já é uma complicação.
É aquele ou aquela a quem nos dirigimos não para qualquer coisa,
e nem mesmo simplesmente para conversar. O sujeito se endereça
ao analista para “se dizer”. Pois bem, o que constitui a consistência
do analista-objeto é a transferência do se do “se dizer” na dupla
componente significante e libidinal. Primeiro ponto, portanto: o
objeto analista é constituído pela operação do dispositivo, que Freud
situava com o par associação livre e interpretação, que podemos
traduzir em palavra e silêncio ou, como Jacques-Alain Miller o evo­
cava ontem, nos termos do dizer: tudo dizer, nada dizer. Que o
objeto analista seja constituído pela operação do dispositivo, quer
dizer que ele se torna objeto ao sabor da revelação analítica, que seu
status de objeto está subordinado ao fato de que ele é “o testa de
ferro do sujeito suposto saber”. Senão não veríamos a diferença
entre uma paixão de transferência e uma paixão comum, e isto muda
tudo devido ao fato de que o analista se vende como objeto.
Observem, quanto a isto, que o analista é o único objeto que
não demanda que o amemos por ele próprio. Aquele que se autoriza
de si mesmo não busca ser amado por si próprio. Não apenas ele
não o busca, como também ele consente a que o amemos como um
outro, e especialmente por seu uso no dispositivo. Isto é tão verdade
que quando o analista é eleito como objeto fora do dispositivo, e
antes da demanda de análise — isto ocorre — isso não deixa de
causar problemas para o tratamento. Também evocarei aqui as con­
siderações que Freud fazia, dirigindo-se aos jovens médicos para
ressaltar a distinção que eles teriam que fazer entre o amor que se
endereçava a sua pessoa e o objeto que eles são na transferência. Se
o amor de transferência é um amor banal — é o amor — o objeto
da transferência não é inteiramente um objeto banal, pois de modo
preciso é solidário do sujeito suposto saber. Aliás, nós também o
vemos nisto: o analista não se rende à contemplação de sua figura,
contrariamente a Madona de Dora e de algumas outras que estão aí
para isto. Deitar o paciente tem também este sentido. O objeto

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analítico inicialmente não é senão o suporte do que se transfere


para ele, e ele é feito desta transferência. Se é por exemplo o Homem
dos ratos, evocando sua obsessão na segunda e na terceira sessões de
seu encontro com Freud, eis o analista que se tornou “meu capitão’’
expressão que o Homem dos ratos deixa escapar em sua confusão
e atrás do qual se perfila o significante do pai. Mas, de um
golpe, rotulado com este primeiro nome de objeto, Freud o analista
torna-se tão caro para o Homem dos ratos quanto lhe custou a confissão
de sua obsessão. Se eu tomasse Dora como exemplo, seria uma
prova a contrário. Tendo Freud cometido o erro de falar levianamente
— é ele quem o diz — o acting out de Dora contemplando a Madona
o admoesta: errar quanto ao objeto. Subitamente eis Freud, desta
vez desinvestido, e Dora, que vai embora. Do mesmo modo pode­
ria evocar o caso que Hervé Castanet nos propunha no começo
destas Jornadas em que o arroubo de paixão lateral por uma mulher
repele o analista.
O analista é o único objeto para quem não se pode dizer “Por­
que era ele, porque era eu”. Dele será necessário dizer: “Ele” não é
senão pela transferência do que é “eu” (moí), ou em mim. Evidente­
mente o analista faz “figura de alguém” no lugar do objeto; e este
alguém deve ser tomado não apenas no sentido do alguém um-
analista, mas também no sentido forte em que se diz: “Isso é al­
guém! para evocar o peso de sua singularidade, o peso de seu ser.
Mas se o analista é certamente alguém, e mesmo alguém único para
o paciente, o peso deste alguém é por empréstimo. Empréstimo
duplo: primeiramente, se ele tem uma aparência, é um ser de mil
faces, ao sabor da transferência como repetição; em segundo lugar
e de modo mais fundamental, se ele torna presente o sem rosto da
libido, e aquele do mais-de-gozar analisante.
Segundo ponto: qual é a incidência do ser do analista na cons­
tituição deste objeto novo? Qual é a incidência de sua pessoa no ser
que irá receber por empréstimo da transferência? Que peso deve­
mos dar na eleição dos traços que o distinguem? Há aqui dois pro­
blemas possíveis. Um concerne ao impacto das singularidades do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

analista sobre seu ato e sobre sua capacidade de se prestar à trans­


ferência. Há no ensino de Lacan discretas indicações sobre esta
questão. Por exemplo, ele evoca de passagem o fazer semblante do
objeto a: isso absolutamente não é fácil; é necessário ser dotado
para fazê-lo. Lacan situa aí uma diferença entre os sexos para notar
que, contrariamente ao que se poderia imaginar, é mais difícil para
as mulheres. Por hoje deixarei de lado este aspecto da questão, para
me interessar apenas pela eleição do analista.
Observem que o analista é objeto de endereçamento antes de
estar investido como objeto da transferência. Se posso dizer que o
analista qualquer torna-se objeto único porque o analisando a ele
se endereça no dizer transferencial, devo então acrescentar que não
posso me dirigir seja a quem for na entrada. Não posso me dirigir
a qualquer analista. E aí, de fato — a experiência mais simples o
mostra — a figura própria, e não a figura de empréstimo do analista,
a que não é um produto do dispositivo, conta. Vemo-lo nas idéias
sustadas que o analisante potencial por vezes tem concernindo a
seu analista virtual. Se o analisante pensa nele, de preferência o
quererá homem ou mulher — grande diferença, não é? — eventual­
mente casado, formal, com filhos ou, ao contrário, mais fantasista
e marginal. Ele vai querê-lo experimentado ou novato, notório ou
obscuro, sapiente ou não. Uma série de traços é assim requerida
como condição da confidência. Estes traços nós os qualificamos
um pouco rapidamente como imaginários. Em todo caso, não há
por que fazer objeção a estes requisitos.
Mas por vezes ocorre que o analisante, de surpresa, pelo acaso
dos encontros —tychê — escolha seu analista precisamente « rowfnírto
de seus requisitos. Esta eleição imprevista, ainda que ela não seja a
mais freqüente, introduz uma questão: o que em cada caso faz pega-
transferência assim como se diz pega-rapaz? Aí uma alternativa está
presente. O analisante escolhe do lado do mesmo, do lado do
narcisismo ou do lado do Outro, do estranho, do indigesto? Estas
fórmulas fazem eco, ainda que de forma deslocada, aos termos
freudianos da escolha de objeto: escolha narcisica ou escolha por

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COLETTE SOLER

apoio. Para dizê-lo ainda de outro modo, a escolha é comandada


pelo grande I do ideal ou — com certeza misteriosamente, de ma­
neira sempre um pouco enigmática e opaca — pelo que chamamos
de o Outro barrado? Afinal, existe em Freud uma evocação precisa
que poderíamos lançar no dossiê desta questão e que se encontra
em seus textos sobre a transferência. É a distinção que ele estabelece
entre o que ele chama de transferência erótica e de transferência
terna, esta favorecendo a análise e aquela contrariando-a. É isto o
que eu ressalto: a escolha do analista — aquele e não um outro
estaria a serviço do recalque ou do que se satisfaz no sintoma? Esta
questão tem sua importância; aí eventualmente se decide a parte
que permanecerá subtraída das elaborações da transferência, aí se
introduz uma limitação potencial em relação à qual o ato não tem
todo poder.
O que é o trabalho da análise? Com certeza dizemos que é a
associação dos significantes, mas esta associação não vai sem uma
despesa1 de libido. Isto é, o dispêndio necessário para se esvaziar de
seus pensamentos inconscientes. A ponto de que poderíamos escre­
ver: despe (n)sa. Despesa então dos pensamentos produzidos. Des­
pesa também do tempo que é necessário. Despesa ainda implicada
nos afetos que seguem e também no dinheiro que isto custa. Com
efeito, o analista é um objeto que conta. Inclusive podemos dizer
com exatidão o que ele custa. Ele custa para seu analisante exata­
mente tanto quanto este despendeu de libido. Então nos apercebe­
mos que por vezes o analista é escolhido de tal maneira que nem
tudo será despensado — o que a princípio quer dizer: não dizer tudo.
Existem escolhas de analistas guiadas por um princípio de econo­
mia! No final, apercebemo-nos então — Lacan o diz em um deter­
minado momento — que o essencial ou que uma parte não passou

I. N. do T A autora utiliza aqui o verbo dépenser, que significa gastar, despen


consumir. Todavia, na seqüência do texto promove uma escansão, procu
fazer valer o sentido que aí se coloca de deixar de pensar, de esvaziar e p
mento (dé-penser). Em português, isto poderia ser ressaltado com a mc
verbo pensar no verbo despender — despe (n) sa — que será utilizada ogo em

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

pela barra. Há um outro caso particular interessante. O caso do


sujeito que muito despendeu. Isto faz do analista um objeto tão
caro — com o equívoco que ressoa neste termo — tão caro em
libido e tão caro em apego — o que não quer dizer que ele ame seu
analista, isto pode querer dizer que este lhe inspire horror — então
isto faz do analista um objeto tão caro que o sujeito não quer mais
se desfazer dele, ou seja, do objeto que se tornou capital, ele pre­
tende se capitalizar. Por uma reviravolta de valor a “desaificação”
(ílésaification), a qual o ato preside, se inverte. É um caso particular
da análise interminável, ou antes imprevisível, pois não é incompa­
tível com um investimento verdadeiro, autêntico do trabalho analí­
tico, e se decide apenas no término, nesta recusa de renunciar à
libido, que no entanto já foi despendida.
Se o analisante consente em sua falência, ou seja, se ele faz o
luto de seu aporte, o que é a mesma coisa do que deixar este objeto
que se tornou tão caro, o que dele advirá? E uma questão impor­
tante, que foi colocada ontem. Pois bem, eu observo que a libido
jamais está desempregada: nada de desemprego para ela. Bem mais,
a miragem da entrada uma vez dissipada — e aí está uma das mara­
vilhas da análise — contrariamente ao que se passa com as verda­
deiras miragens, não desemboca na agonia da sede, porém antes,
curiosamente, em novos oásis. Existe aí um paradoxal quem-perde-
ganha da libido. O fim do momento eventualmente depressivo da
fase final promete uma satisfação. O final da análise não é o luto
perpétuo. Este antes assinalaria uma paixão contínua da castração.
Então, no final, a este sujeito, o que vai lhe acontecer? Ei-lo aliviado
do que lhe pesava, e além do mais edificado — ele aprendeu alguma
coisa. Uma vez passado o luto, ele poderá se levantar, sacudir a
poeira e dizer, como no fim de Tintin e Milou: “Pé na estrada para
novas aventuras.’”. Maneira mais alegre de designar alguma coisa
rnuito séria: “a potência da pura perda”.

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UM POR UM*

Novembro de 1989- Marco uma escansão: seis anos de funcio­


namento do dispositivo do passe para a Escola, dois anos para o
que foi minha participação em um de seus cartéis.
Os “resultados devem ser comunicados”. Este imperativo sem
equívoco, enunciado por Lacan em 1967, está mais do que nunca
na ordem do dia, pois subtraiam-no, e o passe retornará à mistagogia
ou à antiga Escola lá deixada.
Eu lhe trago meu consentimento e então presto contas. Cor­
rendo meus riscos. Não farei segredo da disposição com que eu o
abordo. Está claro que eu o imponho a mim não sem nisso me
sentir impelida pelo contexto presente e pelo que se chama de um
necessário retorno às finalidades primeiras. Neste movimento não
posso desconhecer que me é necessário forçar uma espécie de re­
ticência, de obstáculo subjetivo, em que logo reconheço o movimento
de recuo que tantas vezes retém o sujeito aquém do umbral, no
exato momento em que ele dá o passo para suspender uma
indeterminação. É no exato momento em que este passo lhe pro­
mete um ganho de saber, que ele se salda por uma perda. Acrescen­
tando-se a isso que do grão de saber adquirido, nada permite espe­
rar que ele seja agradável. Não ignoro que a colocação em fórmulas
opere a redução dos prestígios da experiência não articulada, e tomo
então o risco de uma prova de verdade.
A dificuldade se reduplica do fato de que nela implico algu­
mas outras: tenho o direito de evocar passantes que serão reconhe­
cidos a despeito de aí se reconhecerem? Mas, tendo se prestado ao
dispositivo, eles já não me autorizaram a isto, sendo minha a tarefa
de retirar tanto quanto possível as coordenadas que identificariam
0 sujeito e o fariam conhecer mais-além do que ele já consentiu

^ne par une’. Concluído em novembro de 1989-

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COLETTE SOLER

munho? A precisão é perdida aí, eu o sei, e o


pelo fato de seu' “’“™ncon„a esmaecido, porém toda clínica tem
toque do partieu a , se transmitir através do puro
que pagar es p S r
materna. tomo um a um. Não pretendo glosar sobre
OS texEtosequê Lac’an consagrou a este passe e sobre a estrutura que
X a. construiu. Eu os pressuponho, e abordo os resultados em
auestão no nível do caso por caso, sem mesmo pr.v.leg.ar aquele do
único passante nomeado pelo cartel, pots de cada um podemos apren-

der alguma coisa. ~ i z


Um por um é o que convém uma vez que nao ha passe-tipo e
que a estrutura, que certamente vale para todo sujeito (Vx, universal
portanto), não exclui que a singularidade de cada um aí se insira.
Freud já o percebera visto que sustentava conjuntamente o famoso
preceito de considerar cada analise sempre como a primeira, e a
afirmação que um so caso bem explorado deveria, ao menos de di­
reito, tudo nos ensinar.
De fato, não é uma palavra vã dizer de cada passe que ele é
único. Eu o sabia, mas mesmo assim... fui tomada por isso. É de fato
a singularidade sempre incomparável que ressoa aí, e que marca com
um acento próprio cada testemunho. Cada um é uma “pérola”, como
se diz, e que reluz com um brilho a nenhum outro comparável.
Mas tudo o que brilha nos ameaça de hipnose, se um desejo
decidido não impele ao despertar. Assim eu nos vi, os membros do
cartel, todos aplicados em anotar as considerações transmitidas pelos
passadores, aí retornar em seguida incessantemente, obsedar-nos
o, escrutá-los com excessiva minúcia, por escrúpulo e por ho-
de, é claro, mas não sem sermos conduzidos aí por alguma
Ç~o eu o sei por tê-lo discretamente experimentado —
r ~ °.3 Prova* mas presos ao texto pela capt ura do agalma.
a*s para passar ao recolhido” de experiência, e recolhido
zer recolhido já elaborado, pois o cartel, se ele não se deixou
hipnotizar, tampouco deve ser o analista do passante.

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--

A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Eu disse um por um , mas não todos e tampouco inteira­


mente. Dos oito escutados eu retenho apenas os cinco em que se
poderia perceber a perspectiva de conjunto da análise com suas di­
ferentes fases, da entrada à saída: pois como situar um momento
sem a seqüência na qual ele se insere, um giro sem seus pontos
cardeais? E em cada um eu me detenho no mais específico, no ponto
de focalização própria, sob a condição ainda de que a leitura pareça
suficientemente assegurada pelo conjunto do testemunho.
Pode ocorrer que este permaneça insondável — o que não
deve ser confundido com a hiância necessária de todo discurso —
que sejam trazidos enunciados erráticos impossíveis de ordenar,
ditos contraditórios ou inconsistentes nos quais o traço do sujeito
se perde. Seria inconseqüência do passante, obnubilação dos passa­
dores, falta de entendimento do cartel? De minha parte, não espe­
culo sobre o indefinível, extraindo ao contrário o provado; eu pró­
pria visando a legibilidade, atenho-me apenas aos testemunhos que
deixam aparecer como que em filigrana a lógica do sujeito, sabendo
bem que, para a maioria, o momento em que o testemunho lhes foi
tomado deixa em aberto remanejamentos futuros de sua posição
ou de sua possibilidade de transmitir.

Número 1: Um sujeito por empreitada

O sujeito nos surpreende por entrar no dispositivo como su­


jeito da associação livre. E mesmo uma associação livre bastante
decidida para que ele recuse deixar-se interromper, canalizar ou mes­
mo questionar. Aqui já se introduz uma observação. Admite-se
cornumente que o passante é o analisante de sua experiência. Que o
seja. Mas será a mesma coisa testemunhar sobre o percurso, sobre a
aposta e sobre a saída de uma análise, e sobre nela estar engajado?
Será a mesma coisa transpor a montanha com os olhos cravados no
passo a passo de sua progressão e descobrir a perspectiva no final
do caminho? Ou a associação livre não é o que acreditamos, ou o
Passante não é sujeito da associação livre. Aliás, disso duvidávamos,

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COLETTE SOLER

desde que Lacan situava seu Seminário com um “fazer o passe”.


Ora, quem reconhece aí a associação livre?
Volto ao nosso passante, sujeito da associação livre. No dis­
positivo, o efeito sobre os passadores é imediato: cada um à sua
maneira direi qual — encontra-se estruturalmente impulsionado
a tornar presente o outro termo da estrutura, o “a" heterogêneo.
É a oportunidade para o cartel de ver isoladas sob uma forma muito
pura as restrições de uma estrutura que de fato dispensa o consen­
timento dos sujeitos, e de medir diretamente que os efeitos ocasi­
onados pelo passe sobre os passadores vão mais longe do que os
afetos variados aos quais eles podem ou não se sentirem assediados.
O primeiro passador responde com uma passagem ao ato na
qual se opera uma espécie de operação selvagem. Sentindo-se por
seu “horror ” e seu “acabrunhamento”1, aspirado nos deslizamentos
de uma cadeia que não conhece o cessar, ele sai de cena, deixa a
análise e emigra durante meses para milhares de quilômetros de
distância (d- a).
Num segundo tempo, este forçamento de um gesto separador
se inverte em um efeito de espelho subjetivo muito marcante.
O passador de início horrorizado, que respondeu com um ato à
indeterminação do sujeito, torna-se em seguida um passador antes
identificado, e ele escreve uma parte de seu testemunho no próprio
estilo através do qual o seu passante anteriormente o desconcertara.
O segundo passador não é menos capturado pela posição deste
passante, que ele diz afogado’ na difluência de suas formulações.
De saída, ele o aborda como um momento de urgência subjetiva, e
encontra-se por isso impelido a assumir a posição do analista
Ele apresenta desde então o curso do testemunho como uma se­
quência de análise, o maneja como tal e permite avaliar seu efeito
de produção: duas identificações aí serão denunciadas, ao passo
que se isolará um significante através do qual o sujeito se identifica
ao Outro materno do qual ele não acabou de se descoser. Este

1. As aspas indicam os termos citados.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

efeito não deixa de reatualizar, sempre renascente e sempre aguda, a


questão que o sujeito endereça ao Outro nos cenários da vida coti­
diana ou no enquadre analítico, numa busca do ser em que a de­
pressão o disputa sob protesto. O luto separador permanece por
vir.

Número 2: Uma fantasia realojada

No começo, começo sintomático, há um sujeito que se diz


“em guerra com o Outro” e que a angústia petrifica. Fascinado e
aterrorizado pela demanda obscura deste Outro — feminino —
ele se congela na inibição ou erra entre o sono e o tédio.
Uma primeira análise lhe deixa a fórmula de uma “solução”:
“bancar a criança”, a ser lido como: dispensado do dever sexual.
Dela ele sai estabelecido, como se diz, com o título de analista, mas
sempre petrificado: ele pensa no grito, mas está sem voz como a
boca escancarada do esqueleto que assombra sua imaginação, cer­
cado pelos muros de um silêncio que o pavor e a impotência de
dizer impõem.
Uma segunda análise opera um realocação. O sujeito encontra
a saída da alternativa: ser ou bem a criança, ou bem o homem pro­
vedor e portanto ameaçado. Ele dá o cenário que inscreve o para­
digma de sua nova posição.
É eia, diz ele, que o fundamenta como o analista e que ele põe
em ato em sua prática. Ela consiste em deixar demandar... em vão, o
c]ue ele figura da boca aberta do Outro ante seu grito. Dito de
outro modo: manter a expectativa.
Sem dúvida a localização da castração na fantasia foi tocada.
Clinicamente, o sujeito passou da petrificação para uma estratégia
do furtar-se assumida. Trocou a cadaverização obsessiva pelo modo
histérico em um movimento que não é tanto de travessia, quanto
de alojamento da fantasia. Este efeito de histerização tardio não é
desprovido de efeitos terapêuticos: a inibição e a angústia se

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COLETTE SOLER

temperam, o sujeito reencontra a palavra, para se assegurar da


descompletude do Outro — com um mínimo de entusiasmo. Ele
tem fórmulas estranhas: “deixar a questão em aberto” ou ainda
"divã aberto”, e isto... “até a morte”. Tais são as palavras de sua
solução, e ele se tranquiliza de que a morte do analista e especial­
mente o desaparecimento de Lacan garantiriam contra toda emer­
gência-surpresa de uma resposta.
A posição do sujeito em relação ao gozo regula sua visada no
ato, ao menos se lhe damos crédito: longe de se dedicar em restituir
ao analisando a “chave de sua divisão”, ele se faz uma disciplina
explícita e assumida — de tirá-la dele e de eternizar a indeterminação
do sujeito. “É um trabalho”, diz ele. Sem dúvida, mas como daí
chegar ao “ponto de fechamento” da experiência que é o passe?

Número 3: Paixão

Três análises sucessivas não reduziram neste sujeito sua pai­


xão pela castração, elas a fizeram prosperar. Após o Outro primor­
dial, após a mulher, o psicanalista é doravante seu parceiro. Por
uma transposição sem remanejamento, a matriz da luta mortal que
se desenrolou para este sujeito em torno da demanda anal, volta a
atuar com o psicanalista — no singular. O sujeito aí se viu como
“o humilhado”, à semelhança do próprio Outro materno. Sua recusa,
seu ódio e também seu terror do sacrifício sempre tantalizante se
alojam na convicção de ser “vítima”, mas revoltado. A fantasia é
aqui legível como desnudada porém não atravessada. O sujeito aí
não reconhece nem sua colocação, nem a “amostra” que ele põe em
jogo no próprio dispositivo. O que ele experimenta como o
impasse de sua vida e de sua análise, disso ele pretende fazer a
testemunha de acusação da falha do ato analítico, vertendo desde
então todas as suas desgraças — hélas, bastante reais — no dossiê
de seu processo de um Outro — analista notadamente — jamais
a altura de liberá-lo de sua castração e de uma devastação que
lhe é insuportável.

336

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

De fato, o sujeito não obteve da psicanálise o único benefício


que dela se pode esperar, o que Lacan chamou de o “benefício
passional”. Alguns efeitos terapêuticos obtidos num primeiro tem­
po foram rapidamente varridos (reação terapêutica negativa?) por
seu embate de vida e morte com o Outro. Protestando com um “já-
por-demais-pago", ele disso faz uma causa e se congela numa pose
de defesa dos direitos de sua subjetividade. Seria identificação ao
sintoma ou sintoma que a análise teria nutrido? Uma cessão resta
por vir.

Número 4: Um luto a verificar

Para este sujeito, o analista entrou como um astro em sua vida


deserta. No final, um autêntico efeito de desligamento é atestado.
O sujeito desperta deste amor numa vivência de estranheza e de­
pressão; ele diz: “acabou e nada posso dizer sobre isso”. Esta pala­
vra em si própria não seria incompatível com um fim verdadeiro,
pois este não implica o tudo saber. O cartel pede então àquele que
testemunha de lhe dizer, ao menos de lhe permitir cingir, de qual
colocação subjetiva este objeto era feito. E aí que ele permanece
com sua questão.
O testemunho deixa assegurado os seguintes pontos:
a) O analista foi substituto de um primeiro parceiro perdido,
do qual ele tem alguns traços, e do qual reproduziu sem o querer o
gesto do primeiro encontro. Ele é eleito no curso de um velho luto
já de alguns anos, mas que permaneceu em suspenso, como
foracluído: experimentado, ele o foi, mas o sujeito não o pode rati­
ficar com um enunciado e se espanta de fazer dele a primeira pala­
vra de sua demanda, ainda que ele não deixe de ter outros sintomas,
diversos, que vão no sentido, digamos, de uma certa licença.
b) Ele é escolhido fora da análise. “A enamoração primaria
precede aqui a demanda. É uma transferência de amor antes de ser
Urna transferencia de saber e, na entrada, o fechamento do inconsciente
manifesto, porquanto obturado por um objeto a ver e a ouvir.

JJ7

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COLETTE SOLER

c) Uma oportuna manobra do analista opera um deslocamento


e chega a induzir a colocação em jogo da fala de associação livre.
d) Além disso, um efeito terapêutico; disso resta no final uma
cartografia da genealogia, e dos sonhos, muitos sonhos.
Resto incerto: a aposta singular da demanda, os enunciados
muito pulverulentos do passante não impõem o mais importante
de uma enunciação. Não por isso é um sujeito senhor da lingua­
gem, o efeito terapêutico o testemunha, mas a perspectiva não está
construída onde a causa se deixaria perceber. Será uma falha de
efetuação ou falta a transmitir? De resto, o próprio sujeito qualifica
sua palavra analisante como “maníaca” ou “sem valor” e ele entra
no dispositivo do passe com um voto: “falar de sua vida pela pri­
meira vez” e talvez chorar por ela.
O luto do analista é atestado, mas não verificado. Aliás, o
sujeito saiu da análise após uma viagem de reencontros com suas
origens: uma história de dores e de misérias por demais reais na
qual se enraíza talvez alguma idealização de sua diferença.

Número Um fim

Foram necessárias para este sujeito três análises e mais de dois


decênios para resolver — se ao menos o cartel o entendeu bem —
o que lhe despertava paixão. Na saída, o testemunho faz aparecer a
perspectiva da análise, seus tempos, suas viradas, os sintomas que
nela recobriam o que estava em jogo e que aí se remanejam — da
neurose da infância e ao que dela resta mais-além do terapêutico — o
Outro do qual o sujeito se fazia parceiro, os desejos cruzados dos
quais ele traz a marca, as fórmulas fantasísticas de seu ser alienado,
de onde se infere sua causa última.
Não me permito aqui dar vida, por pouco que seja, aos termos
da estrutura exatamente em razão da nomeação deste sujeito para o
título de AE, que o designa para um público grande demais.
Mas direi inicialmente alguma coisa sobre o estilo da trans­
missão. A certeza afirmada e sensível para o auditor no entanto nao
se veste de serenidade. Ela aqui parece antes parente da precipitação,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

e de uma pressa, que pode ir de um estado febril à angústia. Ela


tampouco toma o tom de uma segurança de saber. Conserva algu­
ma coisa da busca que tateia na direção de sua resolução, sem ex­
cluir as sinuosidades e os desvios, alguma coisa de uma afirmação
que se impõe por recortes e por retoques, mais do que por uma
pontaria direta. O fato de que a posição de certeza do sujeito —
inegável na saída do trajeto — não se confunda com o tom declara­
tivo sempre um pouco impessoal, mas que traga a marca do estilo
próprio — aqui mais embaraçado — em que a verdade procede
para um sujeito, apareceu antes como uma garantia.
Quanto ao momento de saída, o momento do “no final das
contas”, ele deixa perceber ao sujeito, num quase espanto, as poucas
palavras — e quase derrisórias — a que se reduz sua longa travessia
e seus pavores. Traço singular, o luto se efetua entre uma arrancada
e um desligamento. Num sobressalto — quase defensivo — que se
sustenta por um “isso basta”, o sujeito se arrancou do divã, depois
do consultório do analista, e é no movimento de reapreender uma
última vez, na urgência de acabar, o fio secreto que encadeia as
fórmulas sucessivamente elaboradas de seu ser alienado, movimento
em que as velhas angústias e os velhos demônios queimam uma
última vez, que o desligamento se instala, numa temporalidade que
não é de esgotamento progressivo, mas de queda descontínua, em
um momento de realizar, como se diz, que não foi aliás desprovido
de precursor, e no qual se verifica de um só golpe a deflação do
Outro, que ele cessou de fazer consistir. O efeito de abrir os olhos
com respeito ao tempo em que os temores que duraram decenios se
desligam dele como velhos ouropéis o deixa quase incrédulo, alivi­
ado, e já virando as costas. Resta o olhar da morte, sempre lá a
apressá-lo.

Alguns comentários agora

Vemos que a variedade da experiência não e aleatoriamente


dispersa. Desde então, concebemos que casos particulares muito

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COLETTE SOLER

diversos possam ser postos em série, como Lacan o evocava, por


pouco que a acumulação da experiência não se mostre impossível.
P Entre estes cinco já aparece uma gradação. O número I é o
sujeito “desaificado” (dcsaifif) ainda na empreitada. Os casos de
número 2 e 3 mostram a segurança redobrada da fantasia $0 a).
A astúcia defensiva do sujeito é reassegurada para o primeiro $/ a)(
o impasse estrutural do sujeito se confirma pela densificação da
fantasia para o segundo.
Os casos de número 4 e 5 são dois lutos de saída. Um não
liberou sua chave e o sujeito permanece enigma (/ = ?). O outro
se assegura com uma destituição que tem valor de certeza (^= fl).
Estilhaçamentos, paixões e lutos desenham assim uma paleta
de posições subjetivas que têm seguramente seus correlatos afetivos.
São, ainda na ordem, o afeto da suspensão da resposta (espera,
abatimento, pressa etc.); uma discreta jubilação; o peso da dor e do
ódio; enfim dois modos do desligamento: um nuançado de um es­
panto questionador; o outro, com lastro de conclusão.
Estes passes, dos quais todos os sujeitos são analistas — eles
se declaram e funcionam como tais — estes passes nos dizem alg uma
coisa da junção entre a análise do sujeito e o ato analítico?
Com freqüência o observamos, os passantes quase não falam
da decisão — ja que é uma — que os leva a ocupar o lugar de
analista. Não devemos nos surpreender, pois ela é em todo o caso
uma solução de continuidade. Lacan o observava, eu creio: isso é
um salto. Ele muda alguma coisa no real, mas ele é sem razões. Não
há razões boas ou más para ser analista. E um ato causal, mas não
causado. De golpe, quando ocorre que o paciente queira falar "disso ,
seja que ele próprio torne a se analisar, seja que ele descreva a
fenomenologia de um momento, tal como este sujeito, que desig­
nado passador, não tem certeza de querer assumir a tarefa e que
finalmente decide através de um "eu sou analista” que ele profere
pela primeira vez e que não será talvez uma palavra vã se o ato se segue,
mas que não diz nada do desejo que aí é preciso. E que está excluído
analisar o desejo do analista. Isto não impede que ele seja condicionado,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

tornado possível pela análise, mais ou menos, e portanto suscetível de


uma “correção . E o termo de Lacan. Desta junção, o dispositivo do
passe permite algumas vezes recolher sinais muito convincentes.
Dou um exemplo. Um sujeito se engajou na experiência antes
do tempo. Ele próprio o reconhece muito honestamente, ainda que
sua análise até então não tenha feito muito mais do que aliviá-lo de
seu narcisismo ferido, realojando o laço com a personagem ideali­
zada com a qual ele sustenta seu eu ideal. As necessidades da estru­
tura podem fazer supor, quase a priori, que apenas a segurança da
fantasia poderá neste caso fazer suplência à certeza do ato, e que os
pacientes não deixarão de aí se inscreverem de algum modo. Mas
são os fatos que dão a prova e que confirmam.
Um objeto novo aparece na vida de uma paciente — ela está
grávida — este objeto do Outro reativa logo a questão do sujeito
analista: “Sou eu esta criança?” e o reconduz à análise. Mais surpreen­
dente ainda: quando uma mulher significativa entra na vida deste
analista, seus pacientes saem. Ele os deixa. Uma redistribuição da
libido, um transporte (report') sobre um outro objeto terá portanto
sido suficiente para ejetá-los. Daí depreendemos que posto ocupavam.
De forma mais geral, a experiência dos primeiríssimos analis­
tas em torno de Freud, os que começaram com algumas semanas,
alguns meses, ou mesmo alguns pequenos anos, deve bem nos deixar
supor que foram analistas sem passe. Para estes pioneiros não
bastava nem mesmo responder que eles se autorizavam de Freud,
pois qualquer que tenha podido ser o peso de seu acordo ou de seu
apoio, o que está em questão é a autorização em ato no instante de
responder à demanda e à investidura da transferência. Daí a questão:
de que o analista se autoriza, quando não é de seu passe?
Tomo emprestada uma pista de Lacan. Em I974> no momen­
to da criação do Departamento de Psicanálise, ele evoca o analista
médio que não se autoriza senão de seu extravio (Ornicar?, n.T, p-5).
A fórmula é eloqüente e imediatamente sentimos sua conexão
com a experiência, mas o que é de fato autorizar-se no extravio?
Certamente o que se extravia é sempre o sujeito. Não saber onde

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COLETTE SOLER

ele está na estrutura da linguagem é aquilo que ele experimenta no


curso de sua análise, pois o artifício do procedimento desidentifica.
Tendo se entregue na análise ao infinito da metonímia associativa
S _S ... ele se separará das identificações que o orientavam segun­
do um significante mestre (S^ e será talvez aliviado — ao menos
parcialmente — do que o oprimia efeito terapêutico da fuga na
cadeia, insistente, ele terá sem dúvida avaliado que a metonímia
gira em círculos, sem jamais dizer o que ela encerra em suas voltas,
a saber o objeto localizador (a), ao qual o analista empresta sua
presença... sem o saber. Pois o ser deste objeto não é feito de saber
mesmo quando ele é verificado, e o analista também pode não saber
que é seu lugar. Por menos que ele aprenda topologia, nem assim
ele recuperará o saber... impossível.
No entanto o não-saber é uma coisa, dele se autorizar é uma
outra. Não é dele se contentar, ou seja, ao mesmo tempo aí deter-se
e aí encontrar-se à vontade? O equívoco aqui bem o indica que
renunciar, ainda que à segurança de uma impotência, de fato garan­
tia, é uma escolha do sujeito. Sempre haverá portanto ao menos
dois usos do não-saber: um que desencoraja o desejo, outro que o
sustenta; um que tampona, outro que causa. Mais fundamentalmente,
os não-saberes não se equivalem. Cada um só vale o que vale o
saber do qual ele se assegura. Quem sonharia, por exemplo, que o
não-saber de Jacques Lacan vale aquele de Senhora X ou do Senhor Y.
Isto é verdade para a doutrina do analista, e o é igualmente no
tratamento. Se o amor, que sempre se empenha em falar, diz quan­
do profere sua ultima palavra: ' Não posso dizer o que tu és para
mim , o analista fica numa boa quando se contenta com um: * Diga
para mim , com o qual estimula o analisante sem isso buscar, por
vezes mesmo, como o vimos, sem disso querer resposta, simples­
mente esperando que o sujeito receba o que lhe cabia, como se diz.
O fato de se extraviar também pode ser decidido.
Quando o de si mesmo do qual o analista se autoriza não
está em extravio, ou seja, o próprio sujeito barrado, o que será ele,
se ele não é ainda aquele que finalmente se "fez a ser” (a)?

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ele poderá de fato ser o assegurado pela fantasia (/O «). O


fato de dizê-lo não significa insultar o analista, porém levar em conta
alguns fatos do tipo daqueles que o dispositivo permite recolher. Além
disso, não é uma novidade. Desde o Seminário, livro ti: os quatro conceitos
fundamentais da análise (1964), Lacan ressalta a incidência, na psica­
nálise, do que o analista quer que se faça dele . Ele inclusive observava
o efeito de produção de saber, cada um, diz ele, tendo contribuído com
sua pedra à teoria da transferência, ao sabor de sua fantasia.
Cremos, por exemplo, que a grande Melanie Klein teria trazi­
do à luz as angústias infantis ligadas às fantasias de despedaçamento
do corpo da mãe, se ela própria não estivesse, ainda e sempre, às
voltas com a figura de um Outro materno terrível? (cf. sua biografia).
Podemos acreditar que ela chegou ao final da travessia de sua fantasia
ao publicar seu primeiro caso — o de seu filho — após uma curta
psicanálise com Ferenczi? Mas não é também daí, a saber do postu­
lado pelo qual ela realoja sua castração, que brota a arrogância com
a qual ela consigna um saber novo sobre as fantasias infantis? Quanto
a Ferenczi, pude mostrar2 que sua virada dos anos 1930 é inteira­
mente decifrada em sua relação transferencial com Freud na qual
arde a pura paixão da castração, fazendo-nos lembrar que a auten­
ticidade sempre tem seu preço.
Em todos estes casos não se trata do lapso do ato , ou seja,
do ato mal dito ou dito de lado, com que Lacan estigmatiza
Winnicott, porém antes do ato falho: falho e imediatamente repa­
rado pelo acting-out da fantasia que vem em socorro do puro desejo
do analista ainda não advindo.
A prática nem por isso se encontrará inoperante, somente
parcializada. Determinado demais em seu ato por seu postulado, o
analista reencontrará sem dúvida casos de incompatibilidade, na
particularidade dos quais, quer ele os desembarace ou não, ele per
manecerá fechado. Dito de outro modo: ele não poderá trabalhar
'bern todos os casos da demanda”(I967b, p-M)-

N- do E. CE neste volume o texto "O ato falho de Ferenczi , p. 173 84-

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COLETTE SOLER

Para concluir

Vem agora algumas respostas para algUmas


mente formuladas na Escola. ^«tões recente-

o fiasse é prematuro? Resposta: se ele o i hoje e|e


sempre. E por tsso que o que é "esperado não deve ser „ °
, Este passe já é um fracasso? A questão í mais K
varias respostas. aa e ha
Primeira: não. o passe não é um fracasso. Ele não pode «í I
po.s )á teve êxito. Talvez ainda não o vejamos, mas ele já deu <2
em parte por seus próprios fracassos — ao pôr em causa os
psicanalistas tais como são, tão freqüentemente casados com sua*
enfatuação e com sua preguiça mental. Terá sido bastante que Lacan
deduza da construção da estrutura o ponto de finitude da análise,
para que os analistas não possam mais nem se desembaraçarem desta
crença de serem indispensáveis’, nem se bastarem pelo fato de exis­
tirem. Mesmo se isso não passasse de um ponto de ideal — e isso
não é o caso — ele já teria preenchido sua função de voz que inco­
moda e que prescreve aos psicanalistas se fazerem analisantes, de
não se estabelecerem em todas as coisas sobre seu “eu não penso” a
fim de que eles pensem a psicanálise, a sua própria em primeiro
lugar, e às vezes para saber se devem eventualmente prossegui-la.
Sena preciso bem entendido esperar que reagissem as como­
didades do patológico — aquele de Kant — e que aparecessem
porta-vozes do conforto ameaçado. Foi do próprio seio do disposi
tivo que na EFR durante dez anos, um silencio de chumbo
ouvir e que, protegendo o coração agalmático do mistério, d
minhava o passe. Na ECF, em que está proscrita a cautela dosi^en-
cio, é do mesmo lugar que um anúncio se faz ouvi q .
saber novo dos AE. Outro descaminho: toda tentativa pa» je
zar institucionalmente o saber nos remete para antes a
tilizada por
3. N. do T. A autora utiliza aqui a expressão mouche^uc** inu„|.
La Fontaine em sua fábula O «tfc alus.va a algue q
mente, pretendendo trazer uma ajuda preciosa.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Lacan e querer constituir os AE em conjunto vai no sent.do oposto


ao do passe. “
Acrescento portanto uma segunda resposta: o passe terá êxito
ou não segundo satbamos aí trazer... o espírito de razão ao qual o
desejo do psicanalista está bem longe de contradizer, pois dele é
uma forma extrema. Quanto o quererão é o que se verá no debate
que se abre para a Escola. Isto supõe no mínimo que consintamos
em medir a análise pelo saber da estrutura e que o suportemos
Eis por que me permiti evocar o que Lacan teria chamado de
os casos felizes, em que “passe falhado" deixa esperança. Estes tam­
bém contam, e por menos que deles possamos tirar algum ensino
eles terão pago seu tributo à Escola e à sua elaboração de saber. Já é
o bastante para que eles mereçam nosso respeito.

J45

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TRÊS FINAIS*

O tema escolhido para estas VII Jornadas de estudos da Fun­


dação do Campo freudiano na Espanha Identificação e passe não é da
ordem da questão de curso. Ele circunscreve um problema interno
a cada análise e que repercute no nível do conjunto da coletividade
analítica. Este problema e sempre atual; longe de remeter apenas a
um debate entre Lacan e a Associação Internacional, está intrinse­
camente ligado à questão da Escola hoje.
I. Gostaria de colocá-lo em perspectiva na história que nos
precede. Nesta evocarei três datas que não tomo ao acaso mas que
tampouco justificarei.
Comecemos em 1920, com o texto famoso “Psicologia de grupo
e análise do ego". Freud descobre, vocês o sabem, que a identifica­
ção não é menos constitutiva no nível do indivíduo que o é no nível
dos grupos. Interrogando a libido do laço social, ele põe em série
fenômenos aparentemente diversos tais como a fascinação hipnóti­
ca e a relação de todos e de cada um ao chefe nestas grandes organi­
zações que são a Igreja e o Exército, construindo a estrutura que
lhes é comum. Podemos designá-la resumidamente comp amor do
Um — confusão do ideal e do objeto, diz Freud. Na multidão,
colocado em posição de mais-um, ele é elevado à função do traço
unário que constitui a multidão como conjunto e que a liga.
Assim Freud discernia, evidentemente sem formulá-lo nestes
termos, que o grupo obedece a lógica do para todos . Está por
demais claro que ele concebeu a Associação Internacional sob o
modelo do grupo... normal, mas escrevamos o termo em duas pala­
vras como o fez Lacan, para fazer aparecer aí, usando da ressonância,
4ue este para todos” é sobretudo “norme-mâle (norma mascula).

Trois fins . Intervenção nas VII Jornadas do Campo freudiano na Espanha


em 24 de fevereiro de 1990. Publicado em Quarto, 44/45, 1991-

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COLETTE SOLER

O problema começa aí, quando se trata de coletivizar os psicanalistas,


uma vez que o universal do psicanalista é mais que problemático.
No entanto, se Freud mancou em relação à instituição analítica,
como o admitimos hoje, especialmente à luz das aventuras de Lacan
com a Internacional, no que diz respeito à psicanálise não penso
que ele tenha alguma vez transposto o passo que consiste em con­
fundir o laço transferencial como amor do Um. Este passo foi dado
posteriormente. O artigo de Strachey sobre “A natureza da ação tera­
pêutica de psicanálise” (1934) constitui uma data a este respeito.
Strachey acredita encontrar a mola da operação analítica na
introjeção do analista como ideal do eu (moí). Reconhecemos aí a
própria definição da hipnose, incrementada com um toque kleiniano
através do termo introjeção. E a confusão explícita do laço
transferencial e da hipnose — digamos, do discurso do mestre e do
discurso analítico — o desconhecimento e a anulação completa —
que se sistematizará cada vez mais na continuação do movimento
analítico — da especificidade da interpretação freudiana: rebate­
mos esta confusão sobre uma correção não do recalque, mas das
identificações que o determinam, e rebaixamos a psicanálise para o
nível da reeducação.
1964 será minha terceira data. Eu a escolhi menos por ser o
ano de fundação da Escola freudiana de Paris nos desdobramentos
imediatos da excomunhão do que por ser o ano do Seminário, livro 1l:
os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, no qual, desde antes de
A Proposição de 196? sobre o psicanalista da Escola”, se encon­
tram estabelecidas as coordenadas do passe que constitui o psica-
lista e portanto também as condições de uma Escola de psicana
^se. Este passe supõe a definição da transferência como amor não
m, mais do dois amor do saber, diz Lacan — e ao passo que
do um gera a mesmidade e com ela a homogeneidade, 0
o saber visa a singularidade do sujeito, preservando assim aS
íções da diversidade, e isso ainda que o amor em si próprio
^mpu sione para a identificação. Podemos escrever como metáfora
bstituições operadas por Lacan tanto no nível da saída da

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

análise quanto do agrupamento dos analistas: passe/identificação e


escola/sociedade. Elas são uma e outra logicamente solidárias, se
bem que tenham sido produzidas em dois tempos e estejam marcadas
por duas datas distintas: 1964 e 1967.
A Escola é a aposta de um grupo analítico modificado pelo
passe de um grupo que não decorreria não-todo da norma máscula,
a saber o inverso — o avesso — da aposta freudiana sobre o
significante mestre. Esta aposta é sempre a nossa, mais-além da
dissolução da EFR

II - O procedimento do passe desemboca numa seleção: opera-se


aí uma escolha daqueles que serão ditos Analistas da Escola. Desde
o início, nós o sabemos, esta decisão final causou embaraços. Há
para isto uma razão maior. Como momento de virada em uma psi­
canálise — utilizo aqui uma distinção introduzida por J.A. Miller
há muito tempo entre o passe como procedimento institucional e
como momento do tratamento — o passe implica que há algo do
ser que não se inscreve sob nenhum significante, portanto impossí­
vel de dizer. Ora, o que se transmite a este terceiro que é o júri (cf.
a dritte Person do chiste) é por excelência o significante. Sem dúvida
aí está o que motiva Lacan para utilizar a expressão “autenticar” o
passe. Ele não diz identificar o psicanalista, mesmo no sentido de
reconhecê-lo. A lógica do “não-todo” própria ao analista, se tal
como a mulher ele não existe, inquieta e trabalha o grupo analítico.
Eu o evoquei em Paris por ocasião do Colóquio organizado por
Ornicar? sobre a dissolução; há no grupo dos analistas alguma coisa
como o famoso “mulheres entre elas” com o qual Antonioni faz o
título de um filme. Tomem como exemplo este traço: a convicção
reivindicada, tão frequente entre os psicanalistas, a despeito de todas
s suas incertezas próprias e mais-além de sua suspeita tão ma-
I festa em relação aos outros psicanalistas, de serem... psicana-
tas. E bastante próximo da exigência feminina de ser a úni-
• a unica ao menos para um, um dos que podem se dizer ser
•• homem. Este ao menos eu” dos psicanalistas não seria alguma

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COLETTE SOLER

coisa como uma tentativa de identificação paródica a “ao menos


um”?
Mas Lacan no-lo ensinou com relação as mulheres, o ser não
identificado, que não poderia passar ao universal, pode ao menos se
contar. E de fato o “se contar”, com as nuanças que tem esta ex­
pressão em francês, não é uma dimensão que esteve muito presente
em certos momentos da história da análise? Em resumo, um anuá­
rio, com suas listas, o que é ele senão um recenseamento? Todavia
para os psicanalistas há uma questão: como contar?
A agenda dos grupos analíticos, pela qual alguns gastam al­
guma energia atualmente em Paris, conta os grupos, as revistas etc.
O próprio Serge Leclaire mencionou que se ressentia, como uma
necessidade do momento, de contar os deslocados, todos os que
não têm lugar analítico. Para nós, quando inscrevemos AP, ana­
lista praticante, em nosso anuário, contamos aqueles que se declaram
psicanalistas. Isto não diz o que eles são nem o que fazem. Pode-se
também contar aqueles a quem creditamos os benefícios da experi­
ência, ou seja, aqueles que têm anos de prática regular: são os AME.
Segundo algumas opiniões, o AME não é nada mais do que o ana­
lista experimentado, se vocês me permitem a expressão, pela
transferência. Como a Deus, nos ditos de Lacan, pode-se provar ao
analista que ele existe, amando-o e principalmente indo consultá-lo.
E a prova pela constância dos amores de transferência, na fieira dos anos.
O passe é uma tentativa para cessar de contar sempre outra
coisa, lá onde não se sabe dizer o que é o analista. Para contar de
outro modo, de uma maneira que leve em conta a experiência do
inconsciente e que seja compatível com o espírito da ciência, a des­
peito da falha do saber.

III - Não há meio de situar este passe sem levar em conta a


visada da transferência como amor do saber, e a decepção a qual sua
elaboração necessariamente conduz. Preciso: nem tudo aí é decepção.
Pela decifração e a interpretação, a espera do sentido que habita o
analisante encontra em parte sua satisfação. Lacan o observa ainda

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

em 1973; experiência de uma análise consigna àquele que eu


chamo de analisante [...] o sentido de seus sintomas" (So/í^í 5, p. 14).
Isto não impede que o sentido, que pelo viés da interpretação dá
seu termo à decifração, não reduza o enigma do inconsciente.
O sujeito trabalhando a fim de se dizer põe em ação sua divisão
sem reduzi-la; donde a qualificação que Lacan utiliza em “A Propo­
sição de 1967” para caracterizar o saber como “saber vão de um ser
que se furta”, não podendo tudo se dizer. O saber adquirido —
possivelmente — na análise e que não é vão, é o saber assegurado
pelos próprios limites da estrutura de que Lacan declina as ocor­
rências em “O Aturdito' (1972, p. 5), o saber do impossível que
tem como correlato o real da castração — sendo o problema preci­
samente apreender como uma prática da fala pode passar da impo­
tência que se experimenta ao impossível que se demonstra — mas não
é um saber que responda às esperanças da demanda de transferência.
Este impasse estrutural do impossível não deixa de ser tradu­
zido em afetos para o sujeito. Os casos particulares são diversos,
mas acontece que a decepção de transferência faça mudar o amor
do saber, que não é uma forma menos ilusória do que as outras, em
rejeição confirmada do saber, ou seja, em um horror de saber refor­
çado, que remete ao recalque primeiro. Se acreditamos em Lacan,
este destino não poupa o analista.
Suponhamos então um sujeito que tenha chegado ao final do
processo, que explorou em ação as hiâncias da estrutura, que fará
ele com suas descobertas? Vários caminhos se abrem aqui. Pode
muito bem haver aí um automatismo do procedimento analítico
em sua entrada; no nível do passe não há nenhum. Pode-se certamente
supor que o trabalho da transferência atualize necessariamente o
universal da castração — o que não é verdade senão sob a condição
que o sujeito não se detenha em alguma sutura terapêutica
mas no final é a opção do sujeito que está em jogo. Ora, ela é não
dedutível e incalculável. Esta opção não poderia deixar de ser leva-
a em conta no dispositivo do passe quando se trata de dizer quem
Será 0 analista da Escola.

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COLETTE SOLER

Disso distinguirei três opções. Lacan evoca duas delas em “O


Aturdito ”, que me pareceram encontrar ilustração, ao menos em
parte, na experiência que dele pude ter.
A primeira é a escolha do belo. A via estética, portanto. Ela
não supõe, penso, que o analista se converta em artista, mas antes
que ele seja conduzido na via de Antígona, no espaço do entre-duas
mortes em que a mortificação simbólica se isola da morte real.
O que quer isso dizer? Esta via consiste, como o faz Antígona, em
se fazer um destino do Outro, ou antes a se identificar com, a
assumir a fatalidade do desejo opaco do Outro. Retornarei a isso.
A segunda opção é a escolha da verdade: o sujeito se fiará
então, diz Lacan, apenas ao meio-dizer. Ele será, à sua medida sem
dúvida, profeta da verdade, o que também quer dizer suporte do
não saber em uma tonalidade talvez messiânica. Esta via não é tal­
vez incompatível com a precedente, mas tampouco é a mesma coisa.
Fazer-se pitonisa da falta, exaltar a barra sobre o Outro, é algo
diverso de consentir nas vias obscuras do Outro, e de se inscrever
sob as insígnias de sua fatalidade. No entanto as duas posições são
parentes da histeria, e dela dificilmente se distinguem, pois o que
estas fazem valer como resto da operação analítica é o puro sujeito.
De fato há, ao menos me parece tê-lo aprendido no trabalho dos
cartéis do passe, alguma coisa como uma histeria de saída da análise,
e não apenas em casos de histeria mas também nos casos de neurose
obsessiva. Uma quase histeria final no lugar e posição da destituição
subjetiva, o que quer dizer que o sujeito mais do que aí renunciar,
torna absoluta sua diferença subjetiva, manifestamente a título de
defesa última. E que nada obriga o sujeito a consentir na destituição;
ao contrário, ele pode tentar anulá-la, ou seja, tanto se coagular
como emblema do Outro quanto se eternizar como o grito de sua
verdadeira dor não renunciada, seja qual for a maneira, pelo gesto
ou pela vociferação, tratar-se-á sempre, eu o direi, de gozar do ser-
sujeito.
Ha uma outra maneira de responder na via da aposta que Lacan
faz com o passe, que não é simplesmente de se deixar destituir e

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

que íimplica
não uma novanem
nem Antígona, aposta de saber,mas
a Pitonisa, bastante distinta « m°del°
sim o diseur/'
uma vez que aí as invenções surgem dos impasses da f maternát,co-

Quando Lacan evoca, em oposição ao amor do saber


saber no
certo fmaldedarenuncia
modo análise (c£ "Nota aos
subjetiva, umaItalianos'")
passagem ma.s-Xd^

protestos d; verdade, dos quais, para dizer a verdade, o próprio


Lacan nos deu o exemplo de não ceder diante dos impasses da teo a
anal.ttca, e de fazer materna inclusive do furo no saber Isto não á
totalmente
jj • r evidente;
; j.nem. o,.ggesto do dpcr.™
dest,no> nem a canção da ver­
dade inefável, mas a discip ma da estrutura
De nossa própria experiência, não antecipemos o que virá. Que
me baste ter indicado várias escolhas possíveis de final de análise,
para que, eu penso, se torne evidente que no dispositivo do passe
também várias escolhas são possíveis. E, por exemplo, preferir o
defensor do culto da verdade ou do belo ao defensor do desejo de
saber, se ele existe. Assim talvez seja inevitável que o que está em
jogo no passe introduza lutas e debates para saber se queremos e
podemos sustentar a aposta de Lacan.

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VISLUMBRES DO FINAL DE UMA ANÁLISE*

De que lugar podemos falar do final da análise? Uma vez que


não existe metalinguagem, e que sempre falamos de um ponto de
vista determinado, temos de recensear as perspectivas do que é pos­
sível sustentar sobre a análise.
Falando da análise, os psicanalistas sempre oscilaram entre o
discurso normativo e o discurso realista. Por exemplo, Balint.
Ele define o final através de duas variáveis: a identificação ao
analista e o luto, logo precisando que no fundo não há senão uma
pequena porcentagem de casos que realizam o modelo descrito
por ele. A própria noção de travessia da fantasia introduzida por
Lacan funciona como norma estrutural em relação a qual avaliamos
os itinerários particulares.
O dispositivo do passe, uma vez que abre uma indagação so­
bre os finais tais como ocorridos, acentua mais a investigação rea­
lista do que a norma, porém esta nem por isso é eliminada. De fato,
é necessário que a estrutura determine quase a priori a ordem pos­
sível dos fenômenos e seu termo, para que uma avaliação seja pos­
sível, permitindo situar o que falta a cada final e o que cada um
ensina, sem qualquer referência a um ideal.
Este dispositivo, vocês o sabem, recolhe o testemunho do pró­
prio analisante sobre sua própria análise, para apresentá-lo à avalia­
ção da comunidade pelo viés do cartel. Uma vez que supomos que
a análise produz uma metamorfose do analisante, é lógico fazer
falar o metamorfoseado para avaliar a mudança. Como resultado há
urn excluído do dispositivo: o próprio analista, cuja opinião não é
requerida, salvo exceção. Estaríamos nós temendo sua implicação
excessiva, seu parti pris, sua enfatuação, para deixá-lo juiz do re­
sultado da operação que ele presidiu? Talvez, e a consideração da

per$us sur la fin d une analyse”. Intervenção no Seminário hispano-hablante


e aracas em 30 de julho de 1992.

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COLETTE SOLER

história da psicanálise não incitaria necessariamente uma maior co


fiança. Mas creio que há uma razão muito mais fundamental- este
dispositivo quer privilegiar o efeito de transmissão, e este exige o
reconhecimento por outros. O dispositivo repousa sobre
disparidade dos pontos de vista e espera alguma coisa de sua con
vergência, pois é de fato necessário, para que um AE seja nomeado
que a análise vista pelo cartel e os vislumbres feitos pelo passante
venham a se encontrar, e inclusive a se confirmar. Com efeito a
questão não é somente saber o que operou numa análise, mas o que
dela foi percebido pelo próprio interessado.
Verifica-se na experiência que os passantes não falam de si
próprios como os analistas falam de um caso. Especialmente quan­
do o que está na berlinda é o final da análise. A fala do passante tem
como seu vector uma intenção precisa, que a distingue de todos os
relatos de tratamento que podemos ler alhures: a intenção de de­
monstrar que ele acabou e disso convencer o cartel. Por ela própria
esta intenção exclui o fato de que o passante se atenha a uma sim­
ples descrição e o induz a uma posição de argumentação, ao menos
implícita, que afirma a validade deste final. Os fatos o mostram,
constatamos que se engajam no dispositivo sujeitos que não estão
tão seguros de sua análise, menos ainda de seu final, e que estão em
busca da confirmação do outro, mas por ora deixo estes casos de lado,
assim como aqueles cujo testemunho embaralha as linhas de força do
processo, deixando-o na indeterminação. Quando o sujeito concluiu,
quando a parada da análise corresponde à certeza do final que o sujeito
oferece à sanção do Outro, o que pode aí fundamentar o cartel na
contestação deste final? Ele é efetivo desde o momento em que o
sujeito o assume e que ele sem sombra de dúvida saiu da análise.
Em nome de quê, responder então com um não1? Um não que poderá
querer dizer muitas coisas: não, você não nos convenceu; não este final
não é o final; não, você poderá pretender um outro final etc. A questão
do que é demandado pelo cartel está latente no dispositivo.
1. N. do T. Vale observar que em francês há uma homofonia entre nom (nom )
e non (não)

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Ele exigiria a identificação ao sintoma? Uma objeçzo que de­


corre da definição desta expressão imediatamente se apresenta. Com
efeito, se definimos o sintoma como a fixação de gozo própria a
uni sujeito, então não há sujeito sem sintoma, residindo a diferença
entre os seres no que chamamos de sua posição. Esta se define
através do que cada um aceita saber e admitir desta fixação. Disso
podemos deduzir que a saúde, o que assim chamamos de saúde,
consiste em desconhecer bastante seu gozo para com ele estar em
sintonia; que o neurótico é aquele que não está em solidariedade
com seu gozo, ao passo que o cínico o assume sem forçosamente
sondar seus arcanos. A análise dele faz uma questão à qual submete
o sujeito. No término da análise, designamos o fim da questão pela
identificação ao sintoma: o fato de que o sujeito deixa de fazer
desta fixação a causa de seu recurso ao Outro. O sintoma torna-se
evidentemente inanalisável e devido a isso o sujeito se encontra
repelido do trabalho de transferência. No entanto isto não é um
princípio de seleção no dispositivo do passe por uma razão muito
simples: esta condição é preenchida em todos os casos de saída do
laço transferencial. Que o sujeito se satisfaça doravante com sua
fixação de gozo ou que, ao contrário, ao mesmo tempo em que
continua a deplorá-lo, disso somente se resigne através de um “é
assim” — este gozo aí e não outro, nem mais nem menos — nos
dois casos a identificação ao sintoma está garantida, ao menos na
definição restrita que acabo de dar: alto lá com seu questionamento,
e consentimento ao “eu sou isso”. Contente ou não, quando o su­
jeito assim se detém, ele leva em conta no mínimo uma impotência
terapêutica. Isto não é mais do que uma impotência, pois o deslo­
camento eventual do sintoma não é jamais, estritamente falando,
um impossível, porém, do lado do sujeito, é uma decisão e um
julgamento que o fecha ao artifício analítico.
O critério de certeza não é o melhor. No entanto, a certeza é
seguramente um indício de saída, não apenas uma presunção mas
um verdadeiro sinal. Quando o sujeito pode sustentar um aca­
bou , temos o índice de um final, incontestável. Ela põe um termo

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COLETTE SOLER

à indeterminação analisante, e assinala uma queda ao menos parcial


do Outro, sob a forma de uma exclusão do interlocutor. A certeza
não se confunde com a asserção, ela própria é categórica, sem réplica,
pois sem Outro. Ela é uma saída do modal da demanda. Isto quer
dizer que não devemos pensá-la apenas no nível da convicção.
Ela implica uma mudança no nível da libido que sustentava a fala,
porque põe fim à metonímia do gozo em jogo nas associações do
analisante. No entanto o “eu não penso’’ da certeza não é o próprio
do analisado. Existem aqueles, pré-analíticos, da psicose e do ato, e
nos será necessário distinguir o “eu não penso mais” do final. No
entanto isto não será ainda suficiente se, como acabo de dizê-lo, o
“eu não penso mais” está presente em todo fim, e a aposta do dis­
positivo é a de selecionar os analistas da Escola.
A questão do passe não é a questão do final da análise. O pro­
blema não é que o sujeito tenha concluído: de fato, todos, um dia
ou outro, acabam por concluir. Trata-se de saber a partir do que ele
concluiu. O que anteriormente se transformou do sujeito e de seu
gozo; o que disso o sujeito sabe — no sentido de apropriação de
saber — e o que disso ele deixa perceber sem o saber? Todas estas
questões podem se colocar em uma análise bem antes do fim, em
cada uma de suas fases e inclusive desde sua entrada. É assim
inclusive porque não há nenhum paradoxo no fato de que um sujei­
to possa testemunhar sem estar no término de sua análise, assim
como aquele que está no término pode não poder dar conta do
percurso.
Gostaria de lhes falar do que pude constatar sobre os vislum­
bres que o sujeito sustenta sobre sua análise. Duas questões aí es­
tão misturadas: o que mudou para ele e o que disso ele depreendeu.
O vislumbre feito pelo paciente sobre a metamorfose analítica é
geralmente focalizado sobre um efeito maior. O cartel por vezes se
surpreende e o fenomeno merece reflexão. Será que esta centralidade
faz objeção às exigências que Lacan em 1966 fazia valer a respeito
do que ele então chamava de a construção” do sujeito? Ele evocava os
diversos deslocamentos e refendas” (1966, p. 23 5) do sujeito para

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

designar não somente seu deslizamento na estrutura de linguagem


como também a função do objeto como sendo relativa ao ponto de
inserção de seus dizeres, colocando assim a exaustão do percurso
— os dois termos são dele — como possível. Exaustão e focalização
se excluem? Eu não o creio.
A focalização que constatamos pode ser devida a um efeito de
transfinitização, a saber ao fato de que o sujeito chega a perceber o
termo ou um dos termos que governavam secretamente a série de
seus ditos. Em si própria esta série é infinita pois sempre podemos
acrescentar um dito a mais. O dito último falta tanto quanto falta
o maior dos números na série dos números inteiros. Não há outro
ponto final nesta série senão a parada da análise ou... a morte real.
No entanto esta série aparentemente aleatória está ordenada em
segredo, sendo toda a questão para o sujeito a de encontrar a lei da
série. O que Lacan chamou significante mestre e que ele escreve S; é
um tal princípio de ordem, que não figura na série dos ditos, mas
que dele se deduz como chave desta série. Podemos escrever: Sj [I, I, I...J
figurando entre colchetes a série dos ditos com uns. Este termo
que governa a série dos ditos foi abordado na teoria analítica com a
noção de identificação fundamental, que eu quase poderia chamar
de identificação mestra, se não temesse reintroduzir a confusão
entre imaginário e simbólico que a expressão de significante mestre
justamente elimina.
Destes princípios de ordem que regulam para um sujeito dado
os ditos possíveis e impossíveis, podem haver vários, poucos em
geral, e sua série não é infinita. A análise os recenseia e por vezes
podemos percebê-los fora da análise. E o que Lacan evoca de ma­
neira muito simples quando, falando das biografias, ele observa
que por menos qualidade que tenham, o psicanalista as vezes pode
aí depreender a frase secreta que orienta toda uma vida.
No entanto o semblante está longe de ser causa única ou der­
radeira. Que na análise o sujeito decline seus significantes mestres
e perceba o que foi sua regência secreta, que fazendo isto ele se
enc°ntre aliviado de sua pressão, não há dúvida alguma. Isto ainda

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COLETTE SOLER

não é a última palavra. Aquele que interroga o inconsciente espera


«que ele diga por quê”. Ora, as limitações, as alienações trazidas
pelos significantes mestres ocultam uma outra inércia: aquela do
objeto, chamada por Lacan de objeto causa. O discurso analítico
consiste em “submeter à questão do mais-gozar [...] a passagem do
sujeito ao significante do mestre” (1970, p. 98). Mas como pode­
mos, e quem pode, responder a esta questão, uma vez que o objeto
a não tem outro status lógico que o do impossível de dizer?
Os Sp em sua presença contingente quase arbitrária, não existem
sem estarem ligados ao desejo, portanto também ao Outro, e con­
cernindo sempre ao querer; notadamente ao querer ser do sujeito.
Tal ou qual realiza, como se diz, aquilo a que se dedicou. Por exem­
plo, ser o filho reparador de um pai-filho fracassado — para uma
mulher isto não é evidente — ou a exceção heróica etc. Toda a
história dos antecedentes, dito de outro modo, o desejo do Outro,
aí está implicada. Lacan o dizia em 1964: ”as identificações se
motivam do desejo”, e o que chamamos de a queda de uma identi­
ficação é sempre solidária de um outro percebido correlativamente
realizado sobre o desejo e a estratégia do sujeito para com o Outro.
Esta dialética não deixa de pôr em jogo o objeto mais-gozar. A aná­
lise é possível precisamente pelo fato de que o desejo é dupla­
mente articulado: ao Outro e ao objeto a. Assim podemos dizer:
para um sujeito identificado, parceiro identificado — se nos auto­
rizamos a chamar, por analogia, os traços que condicionam a esco­
lha do parceiro de identificação de objeto; sendo toda identificação
um fator de restrição e de coerção nas escolhas, compreendemos o
que constatamos, a saber que o desvelamento das identificações
libera o sujeito e alarga a gama de suas opções. Isto ainda não diz a
causa, impossível de ser toda dita; ela que não pode ser senão inferida
como razão da série que os S constituem: a [S ,S ...1. Mas a quem
cabe a tarefa?
Eu poderia evocar um exemplo pelo qual a distância de leitura
entre o passante e o cartel foi particularmente manifesta.

36o

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

O sujeito, no caso uma mulher, após um longo trabalho de


quase dez anos, não duvida ter chegado ao termino. Ela percebeu
que desde o começo de sua vida sustentava uma posição particular
expressa com uma frase: “ser uma pequena exceção”. Preciso que
ela não se vangloria e que não é apenas no seu imaginário que ela o é,
mas sem dúvida na realidade de sua vida. O que lhe dá um estilo um
pouco excêntrico. Ela depreendeu as coordenadas desta escolha, que
permitem perceber, com a mola da identificação em questão, os
benefícios que dela extrai.
Seu pai foi um verdadeiro herói, quase poderia dizer um herói
oficial, reconhecido como tal pela sociedade. Morreu de uma doença
quando ela tinha aproximadamente cinco anos. Mas não se diz para
a criança que ela era, que ele morrera. Para ela dizem que ele partira
para uma país longínquo a serviço de sua causa. Este desapareci­
mento suposto heróico deixou-a entregue às mulheres, junto de
uma mãe devotada a um culto mortífero que a internou em um
clima de silêncio e de luto. Ela percebeu a estranha obrigação que
realizou: ser a digna filha do herói à altura da memória deste pai
inatingível. Como ela o diz, foram necessários dez anos de análise
para enterrá-lo e depositar o fardo. Pensa agora ter saído da mor­
talha paterna”, tudo se encontra mudado, principalmente o laço
transferencial de sua análise que aí se quebra. Portanto a análise
acabou de fato e os comentários da passante estão todos ordenados
em torno da queda desta posição. Nem por isso sua causa esta
isolada. No que lhe concerne, ela a supõe dedicada ao olho do
morto — é sua interpretação de sua própria posição.
Da parte do cartel, não se deixa de poder supor, a partir dos
avatares da vida amorosa e da incidência do que apareceu do gozo
da mãe no momento crucial da infância, que é esta última que de­
tém a chave. A passante entrega, meio en passant, um certo numero
de elementos, aos quais não parece dar grande importância mas
4ue contudo são essenciais. Eu os resumo rapidamente. De saí­
da, observa-se que sua vida amorosa gira em torno das mulheres.

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COLETTE SOLER

Os homens, ela não os vê. Viveu muitos anos com uma mulher,
numa ligação mais de amor do que de gozo — aparentemente não
/ lésbica mas não faz sintoma deste fato. As fantasias mastur-
batórias da infância também convocam a homossexualidade: uma
pobre garotinha perdida no frio e na neve, abandonada por uma
mulher má, é salva por uma outra, o gozo surgindo no preciso
momento em que o olhar desta última se coloca sobre ela.
A partir disso, não parece excessivo supor que tanto a posição
heróica quanto a posição amorosa encontram sua mola no desejo
desta mãe plena da memória do morto... seu rival. Mas esta inci­
dência, se acreditamos no seu testemunho, não está no cerne da
elaboração e das conclusões que conduzem a passante até a saída da
análise.
Esta distância entre o que a passante percebe e o que o cartel
lê no testemunho coloca, de modo mais geral, a questão de saber
até onde podem ir as deduções que permit.nam ao sujeito cingir a
causa de suas posições fundamentais.

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I

DOS FINS... DO AMOR*

Eu anunciara como título: “Dos fins”. Eu completo: “Dos


fins... do amor”. A ambigüidade da expressão está aí para me per­
mitir interrogar os efeitos da operação analítica não em sua totali­
dade, mas somente no nível do amor.
A estratégia do analista está submetida a seus fins, a saber o
que Lacan designa como sua política. Produzir um analisado a par­
tir do analisante é o que se pode esperar de uma análise. Esta trans­
formação não é inefável e, seguindo “A Proposição de 1967”, tem
seu materna: aquele que escreve a equivalência lógica do X e do
objeto a. A questão pode então ser assim precisada: do analisante
ao analisado qual é a diferença quanto ao amor? E se o analisante,
como nós o sabemos, é sobretudo enamorado, deveríamos supor
que o analisado estará curado do amor?
A estratégia da transferência não é a totalidade da ação analí­
tica, nós o sabemos. Desde seu “Para-além do ‘Princípio de realidade ”
(1936), Lacan distinguira aí um duplo nível, que designava através
da oposição entre “a elucidação intelectual” e “a manobra efetiva .
Este primeiro binário, aproximativo, encontra-se retraduzido na
distinção entre os dois eixos da transferência: o do sujeito suposto
saber em que a revelação analítica é esperada, e o da instalação da
realidade sexual do inconsciente” em que a mudança libidinal esta
em questão. Por serem conceitualmente distintos, seus dois eixos
não deixam de estar menos articulados na experiencia graças ao
analista.
O primeiro passo da estratégia do analista é precisamente o
de oferecer o semblante do sujeito suposto saber ao amor, de pro­
duzir, para dizê-lo em outras palavras, um enamoramento... analítico.

Les fins... de 1 amour", Intervenção em Caracas, julho de 1992.

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COLETTE SOLER

Sem dúvida ele é tão verdadeiro quanto um outro qualquer, mas


tem sua especificidade. O enamoramento na entrada em análise não
é um mistério tão grande. Sabe-se muito bem que a simples acolhida
da queixa é suficiente em muitos casos para produzi-lo no que diz
respeito a qualquer auditor que se ofereça para escutar — conse­
lheiro, terapeuta, padre etc. — pois por si só a escuta implicita­
mente significa para o sujeito que ele é digno de interesse. Na aná­
lise, a oferta da associação livre reduplica este primeiro efeito. Ela
indica para o sujeito que, mais-alem da possibilidade de tudo dizer,
tudo o que ele vai dizer, besteiras, inconveniências, absurdos, coi­
sas sem sentido, valerá alguma coisa ou que, no mínimo, disso sairá
alguma coisa que valha. Não é preciso mais do que isso para credi­
tar o analisante de qualquer misterioso agalma que o constitua como
erotnènos. E o agalma do inconsciente suposto se emitir por sua boca
ato de caridade, diz Lacan —- e prometido à revelação pela ofer­
ta de interpretação. Mas por uma outra jogada a associação livre
transforma também este primeiro efeito, mobilizando a falta-a-ser
inerente à palavra, induzindo então o recurso ao Outro, ela engen­
dra a metáfora do amor que faz do éromènos um érastès, do amado um
amante, do objeto um sujeito. Esta conversão do analisante se re­
percute evidentemente sobre o analista, que assim se encontra ele­
vado à dignidade do objeto de amor. Portanto a entrada em análise
corresponde à produção quase sintomática e sem que nenhuma re­
petição a esta se misture do... enamorado.
Esta estratégia que deve ser dita como sendo de sedução na
entrada, não deixa de ter analogia com aquela da histérica. Não é
por acaso que Lacan encontra na conduta de Sócrates — perfeito
histérico — que consegue cativar Alcebíades — o homem do gozo
— na sedução do amor, a antecipação da oferta transferencia .
Ao contrário, o uso que o analista faz do amor é totalmente inédito.
O uso comum, espontâneo do amor visa produzir um efeito de se
que é chamado como compensação da falta-a-ser do sujeito,
dúvida este efeito de ser tem seus inconvenientes e seus limite
constituem os dramas da vida amorosa, porém por mais a*e

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

alienante e obscurantista que seja, ele não e menos efetivo. O ana-


lista é o único a fazer do amor um uso desinteressado. O analista
se ele o é — não espera o seu ser da transferência — razão pela
qual é necessário que ele esteja curado de sua falta-a-ser — e ele se
lixa tanto do efeito de ser que a transferência lhe outorga quanto
da justiça distributiva. Este efeito de ser não o concerne e ele o
sabe por outras vias prometido ao des-ser. O analista tenta fazer
servir o amor não ao ser, mas ao saber, à produção de um pedaço de
saber.
O resultado disto é que a transferência é um campo de bata­
lha; uma luta secreta a habita. Não é o “tu ou eu” de nossos amores
cotidianos, dos quais a língua deixa rastros ao traduzir no vocabu­
lário guerreiro do domínio, da conquista, da vitória, da submissão,
da redução à mercê etc., as proezas amorosas as mais efusivas.
É uma luta em que se manifesta a disparidade das duas estratégias
da transferência em jogo em uma análise. A do analisante é uma
estratégia de apropriação. “As ciladas do amor de transferência não
tem como fim senão obter...”, diz Lacan em “A Proposição de 1967”;
obter o que o analista é suposto deter, seja qual for o nome que a
isso se dê, falo, agalma, mais-gozar; obtê-lo nas formas particulares
ou típicas que caracterizam os sujeitos ou as estruturas, pelo cerco
obsessivo ou o tornar-se-ausente histérico por exemplo. De seu
lado, o analista desenvolve uma estratégia que não se pode simples­
mente dizer de recusa. Sem dúvida ele recusa o amor mas ele tam­
bém dá: a interpretação e a presença. É antes uma reserva — é o
termo de Lacan — reserva sustentada, metódica e instrumental.
Ela reduplica a frustração própria da associação livre e tem como
fim e como horizonte a programação de um luto. Vê-se o contra-
senso daqueles que na história da psicanálise acreditaram que era
necessário antes gratificar a demanda de transferência do que a
SUestão do saber. O dispositivo programa o amor, o analista pro­
grama o luto; o amor infeliz, se quisermos... e se outros existirem.
a face de logro deste dispositivo quanto à esperança primeira:
Uscitar o amor e decepcioná-lo, metodicamente. Ainda é necessário

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COLETTE SOLER

que este luto, também ele, seja inédito, que não seja uma mágoa de
amor como outra. Mais precisamente, que não seja uma simples
repetição do luto de origem. Pois o luto, o sujeito em análise já 0
encontrou. De fato, isso é tudo o que descreve o período dtto
edipiano: o luto do objeto primordial; e todo um pedaço da neurose
infantil narra a perda de gozo e a impotência do amor em
preenchê-la.
Esta guerra é empreendida em vários tempos. Lacan evoca três
em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1961)
que é nosso texto de consulta quando falamos de estratégia da trans­
ferência: enamoramento primário, regressão, satisfação própria à
neurose de transferência, tão difícil de resolver, acrescenta ele. Com
efeito, a primeira batalha é empreendida contra o enamoramento
da transferência. Este não é o amor, mas um de seus estados. Há
um paradoxo do enamoramento. E que a falta, sem a qual nenhuma
forma de amor seria sequer pensável, não é experimentada aí como
insuficiência dolorosa, mas ao contrário sob o modo de uma elação
de completude, de um arrebatamento, e mesmo de uma quase cer­
teza. Seria necessário recensear as explicações propostas por Freud
e Lacan sobre este fato; observo simplesmente que ele indica que o
enamoramento é em si um gozo. Na análise, trata-se de reduzi-lo,
de não satisfazê-lo, sem por isso reduzir o amor de transferência,
pois é este que condiciona e mantém o sujeito no dispositivo.
A queda do enamoramento, ou ao menos sua diminuição, acen­
tua evidentemente o lado mendigante do amor. Mas é necessário
dizer mais: o analista ao se recusar a reciprocidade do amor, entre
silêncio e interpretação, introduz o vazio no qual o sujeito vai loca­
lizar, o quê? A própria repetição. Certamente a transferência não é
a repetição. Insistimos neste ponto, com justa razão. E inclusive a
condição para que seja permitido operar no nível da repetição.
A transferencia não é a repetição, mas ela a isso conduz. Lacan o
mostra repetidas vezes no Seminário, livro 11: os quatro conceitos funda
mentais da psicanálise (1964), precisamente após haver introduzido a
distinção de seus conceitos. É aliás o que a teoria clássica percebe

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

com a noção de regressão analítica, e com a homologia muitas vezes


ressaltada da neurose de transferência e da neurose infantil. Há
mais: em “nossa prática do dizer" — eu cito aqui “O Aturdito” —
a repetição “não é deixada a si própria”: “esta prática a condiciona”
(1972, p- 43)’ corno Lacan também o fez notar sobre o inconsci­
ente. Que a transferência não seja a repetição não deve portanto
nos induzir a abandonar a repetição na transferência.
A fenomenologia da experiência analítica permite constatar da
forma mais simples que a abstenção do analista gera e entretém a
demanda. Assim ele reenvia os dramas do passado à memória e rea­
nima no espaço da análise o que não cessa de se escrever, a anankè, a
grande necessidade. Isto não é a troco de nada. Na análise, o amor
decepcionado é o que permite interrogar o luto primeiro, suas coor­
denadas imaginárias e simbólicas, seus efeitos a longo prazo sobre
as escolhas amorosas, seus estigmas ao nível das condutas, e as so­
luções fantasísticas que o terão tornado suportável. Assim a análise
constrói a neurose infantil, bem longe de apenas fazê-la aparecer
do momento em que ordena e restitui sua lógica nos destroços da
lembrança. Assim fazendo, ela revela que o próprio amor é repetitivo.
Esta foi a descoberta de Freud: entre o homem e a mulher, mas
também entre o analista e o analisante, a sombra dos objetos pri­
mordiais se perfila. É também o que o sujeito por vezes percebe
quando experimenta que, ao sabor dos encontros os mais imprová­
veis, verifica-se repetitivamente para ele esta diabólica coerção que
3 língua nomeia destino, quando constata que a diversidade das
circunstâncias é atravessada pelo mesmo, pela aparição de alguma
coisa que por ser de surpresa, não é menos desde sempre como se
fosse antecipada. No que lá o sujeito não faz senão pressentir, a
análise demonstra que a necessidade está em ação. O primeiro amor
e SemPre o segundo e no final do baile de máscaras: não era ele, não
era ela, como Lacan gostava de repeti-lo. Vemos a conseqüência e o
Hconveniente. É em negar o: “eu o amo”— não apenas na psicose
orno o colocou Freud — e em reconhecer que o fala-ser está fe-
o 3o encontro pela constância do modo singular de gozo que

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COLETTE SOLER

para ele responde ao universal da castração, que nos aproximamos


do real.
O analista, eu o disse, programa a decepção do amor. Ele está
fundamentado em fazê-lo porque verifica-se que a própria decep­
ção não é acidental, programada que é... pela repetição. A repetição
concerne ao gozo e supõe o traço unário que produz o estigma do
encontro primeiro, e que, repetido três vezes, engendra a repetição
da perda. O tempo I fixa o traço memorial do encontro. No tempo
II, a redescoberta do traço consome a perda do gozo primeiro.
Entropia portanto. O tempo III é a perda do tempo II que se reitera
como encontro faltoso... ad infinitum. O resultado é a re-petição a ser
escrita em duas palavras, como Lacan o faz em “O Aturdito” para
marcar aí a reiteração da petição ou do mesmo modo do apetite, já
que o verbo latim peto ressoa numa e noutra palavra. A análise é o
lugar desta re-petição como reiteração do dizer da demanda (1972,
p. 24, 44, 50).
Digamos então o resultado da análise sobre o amor. Ele não é
simples.
A análise toca ao amor como repetitivo de maneira indireta
porém lógica. Com efeito, o trabalho da análise modifica as identi­
ficações do sujeito, as quais não deixam de ter laços com suas esco­
lhas de objeto. Deve-se a conexão ao fato de que as identificações
são motivadas pelo desejo, como Lacan o diz em “Posição do in­
consciente” (1960c). O sujeito, quando ele se dá conta, como se
diz, do que presidia a suas condutas ou a seus dizeres na análise,
quando ele descobre o termo que o regrava a seu despeito, pode ao
mesmo tempo perceber como e em relação a que desejo ele estava
situado. Ora, os objetos libidinais carregam traços, condições de
amor, que não são necessariamente aquelas dos objetos primordiais,
mas que são correlatas aos traços dos objetos primordiais. Pode­
mos então dizer: a um sujeito identificado, objeto identificado
se nomeio identificação do objeto ao menos os traços de repetição
que ele traz. Desidentificar o sujeito é também liberá-lo das restri
ÇÕes que a repetição impunha a suas escolhas de objeto e abrir para

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

ele uma maior variedade de encontros. Este efeito


constatável e verificado na análise. Isto não resolve aindaT '
de saber se ele se estende ao modo de gozo que o amo/veLT^0
A análise não esclarece apenas as escolhas de objeto Ela per
mite perceber que na re-petição que recorre ao Outro como a um
sujeito suscetível de corrigir a falta - faka a ser> faka a saber
a gozar — alguma coisa se retira em silêncio de uma satisfação da
pulsão. Sem dúvida o analisante consome o gozo fálico, ou seja, o
gozo do um implicado no ciframento. Ele consome do mesmo modo,
correlativamente, o que permanece de impossível a cifrar e que o
analista encarna. Foi por isto que Lacan pode dizer também que ele
“consumia” o analista. Uma vez superadas as condições repetitivas
do amor, resta o que na instituição do parceiro se verifica em curto-
circuito sobre o Outro da linguagem, que opera diretamente a partir
da pulsão. O arroubo de paixão, sem mesmo a passagem pela análise,
encarna esta possibilidade, e já trai o segredo da famosa “relação de
objeto”, revelando o que há de mais real no amor: a felicidade do
sujeito. O que Lacan designa assim em Televisão (1974) não é nada
mais que, mais-além das faltas e através das tribulações de cada um,
esta satisfação que não demanda nada e que desde sempre se auto­
riza de si mesma. Que a análise o revele ao sujeito, e talvez assim ela
o fará renunciar a deploração de sua falta. Isto já seria resolver a re­
petição como estando endereçada ao Outro.
Permanece, para concluir, a questão: se o amor está duplamente
sustentado, do lado dos semblantes mas também do ládo da cons­
tância do modo de gozo, se o Outro é matriz com dupla entrada,
aquela do um e aquela do mais-gozar, a análise, que opera segura­
mente no primeiro nível — o que com freqüência evocamos como
queda do Outro — conseguiria ela também negativar a “felicidade
do sujeito?

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ENTRE PALAVRA E LÓGICA*

Durante esses anos, constatamos que o dispositivo do passe


funciona verdadeiramente. Pela mediação dos passadores, os cartéis
estão em condição de perceber o que o testemunho do passante
recolheu de uma análise e, às vezes, de modo mais amplo, de uma
vida inteira. Esse dispositivo constitui sem sombra de dúvida um
belvedere do qual é possível se instruir sobre o percurso e o final
das análises. Assim, ele descortina um realismo dos resultados: daí
é possível construir uma clínica dos finais efetivos e não ideais, e de
desenvolver seus aspectos diferenciais segundo as estruturas e se­
gundo os sexos. Mas não é sobre este ponto que incidirão minhas
observações de hoje.
Direi inicialmente algumas palavras sobre a função desse dis­
positivo na Escola. Ele não poderia ser concebido como uma en­
grenagem de garantia entre outras.
A primeira razão disso é que a existência do dispositivo tem
uma função institucional que começou a ser utilizada esses dois
últimos anos: é a entrada na Escola pelo viés de um testemunho
recolhido no dispositivo do passe. O passante, ao prestar contas de
sua própria análise, ainda que inacabada, pode fazer aí reconhecer
autenticamente o que funda sua relação com a causa analítica. Nesta,
a natureza das admissões encontra-se evidentemente mudada.
Há uma segunda razão, mais essencial: o dispositivo tem tam­
bém efeitos analíticos mais-além das pessoas que nele se engajam, e
inclusive talvez mais-além do perímetro de nossa instituição. De
fato, o passe, tão somente por sua existência, faz pesar sobre cada
analisante da Escola ou fora da Escola a seguinte questão, o que tu
podes dizer de tua análise? Esta questão tem um alcance transferencial

Entre parole et logique”. Testemunho dos membros dos cartéis do Pas$


Caracas, 27 de julho de 1992. Traduzido anteriormente em português em p(ao
Lacaniana, n. 5, 199 3.

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COLETTE SOLER

com repercussões nas próprias análises, efeito, diria eu, de empuxo


à elaboração. Não creio excessivo dizer que ela tem na coletividade
um lugar homólogo ao lugar que o desejo do analista ocupa no
tratamento.
Falei deste dispositivo como um belvedere sobre a análise
Acrescento que é em si próprio ensinante, e gostaria de extrair al­
gumas lições de seu funcionamento. Este dispositivo é atravessado
por tensões que não se ligam às pessoas mas à estrutura, e que
devem ser situadas. A primeira diz respeito à fala; a segunda, à
natureza da destituição final.
Para dizê-lo do modo mais simples: o passante quer conven­
cer do que tem certeza, a saber, segundo os casos, da validade de
uma análise em percurso ou de seu final. O cartel, por razões que
restam ser precisadas, não é tão fácil de ser convencido.
A tarefa do passante é inédita. Rude também. Não somente
devido a todo seu ser que está em jogo, e todos relatam o impacto
dessa prova, mas também porque o contexto de fala no qual se lhe
pede para integrar-se é muito particular. Ele deve falar sem modelo,
e isso é uma raridade. Por todos os lugares onde falamos, falamos
em relação a formas prévias do discurso em que se filtra tudo o que
se diz; em relação portanto aos modelos de gênero, seja para respeitá-los,
seja para transgredi-los. O Outro, a partir do fato de que tem sua
retórica, se não é todo transparente, tampouco é jamais inteira­
mente opaco. E evidente por toda parte, na política, na universidade,
em família e no próprio amor: a fala é sempre pré-codificada.
Mesmo em psicanálise, o analisante tem sua regra, embora paradoxal,
e as produções analíticas têm seus precedentes. Por exemplo, toda
vez que expomos um caso o modelo dado por Freud lá está. Os
aportes de estrutura feitos por Lacan não o modificam; podería­
mos mesmo dizer que deles remetem ao Outro da racionalidade.
Ora, no que concerne ao passante, não há Outro para lhe dar o
modelo de testemunho (única exceção talvez, e bastante relativa,
aquela dos passantes que foram passadores). O próprio chiste, ao
qual Lacan se referiu como modelo para seu passe, não dá senão o

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

modelo da disposição dos diversos parceiros — passante, passador,


carteI — e não do testemunho do passante. Para este, ele deixa
somente saber, tal como o humorista que com suas histórias engra­
çadas faz rir um Outro do qual tudo ignora, e com o qual ele não
tem em comum senão a linguagem, ele, passante, deve acertar na
mosca o Outro com o qual ele não tem em comum, além da lingua­
gem, senão a experiência analítica, justamente o que está em questão.
Daí o problema do sujeito suposto saber no passe.
Dizemos de bom grado que a tarefa do passante é a tarefa
analisante — o que nos remete a um terreno comum. Sem dúvida
não uma tarefa qualquer, uma vez que ela não tem nem regra, nem
modelo. Não é preciso mais que isso para que seja uma verdadeira
aventura. Ora, a performance do passante condiciona o que se trans­
mite no dispositivo, e portanto a resposta do cartel. É por isso que
a considero digna de ser distinguida e estudada em si própria.
Propor-lhes-ei então alguns elementos de uma clínica do passante...
em ato no dispositivo. Em razão do contexto deste vasto Encontro
de Caracas, falarei de um modo geral, deixando implícitos os exem­
plos particulares que estão na origem de minhas observações e con­
clusões.
O dispositivo me parece verificar de modo nítido e claro, se
isso fosse necessário, que nenhuma palavra atinge a metalinguagem,
e que seu meio-dizer permanece desigual em relação à estrutura do
discurso. O passante é convidado a falar de sua análise, de sua expe­
riência, e ele não pode fazer nada mais do que simplesmente falar,
rateando o referente, tanto quanto um outro. Nenhum testemunho
de passante se iguala à própria coisa, e cada um então permanece
sernpre insuficiente em relação ao que o discurso inclui de mais
real. Este obstáculo de estrutura habita a fala dos passantes. Ele se
modula diferentemente, segundo o caso, entre dois polos extre­
mos. do passante, que ensaia uma quase metalinguagem que o leva
a tentar falar de si como de um outro numa posição de desaprumo,
Suele que, por tanto se remeter ao meio-dizer, deixa na sombra o
esultado, a saber: o que se depositou e se construiu de sua analise.

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COLETTE SOLER

Este obstáculo é também experimentado pelo cartel. Ao me


nos é assim que eu me explico um fato que pude constatar muito
regularmente no decorrer destes últimos quatro anos: o cartel se­
guidamente se surpreende com um afeto às vezes de quase decepção
pelo fato disso não ser exatamente isso, como se diz, mas somente
na melhor das hipóteses, quase isso. Para dizê-lo de outro modo: o
cartel continua com sua fome e constata que é preciso que ele dê
algo de si, no duplo sentido da boa vontade e do trabalho de
complementação lógica.
Este limite da fala operando no dispositivo deve ser localizado,
cercado, sem o que ele seria imputado ao passante, que não tem a
seu encargo senão o modo como dele se utiliza. É exatamente o que
chamei de clínica do passante: sua maneira específica de responder
às aporias de sua tarefa.
Chego ao segundo ponto. O sujeito conclui ter chegado ao
final quando julga — pois é um julgamento — que não tem mais
nada a dizer ou então que nenhum novo efeito ou nova percepção
devem ser esperados de seu dizer. O final definido por Lacan como
destituição corresponde a um estado do sujeito que é inédito para
o analisante, pois é um estado de certeza. O que quer dizer não
somente rejeição do analista como causa, mais rejeição do inconsci­
ente que eclipsa a função do Outro. Sem Outro, a certeza não po­
deria ser tagarela. As vezes o que condicionou esta certeza pode
inclusive ser esquecido por ela. A tal ponto que se pode dizer: quanto
mais o sujeito se encontra no estado do analisado, mais lhe é difícil
ser passante. Neste aspecto, o passe é um dispositivo de forçamento;
já tive a oportunidade de enfatizá-lo, ele coage o analisado a retornar
a analisante. Caso se dobre, não poderá se contentar de uma asserçao
de certeza... advinda. A ele será necessário reinstituir o Outro, con­
sentir em se dar o trabalho de ensinar alguma coisa ao cartel, sub­
meter-se ao esforço de recortar sua nova posição, de precisar a qual
percurso ela põe um termo final, a que questão ela soluciona, de
que gozo ela tempera os impasses. De fato, sem as condições que a
fundam, como distinguir a certeza da segurança da fantasia que,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

nós o sabemos, não espera a análise para lastrear o sujeito’ E


tensão entre o laconismo da certeza e o esform rU ’
1z * j t Ç do passante para
retomar a lógica do percurso manifesta-se, seoundo nr, H
dois polos extremos: ou o sujeito não quer falar senão de sua no
posição, que por vezes ainda o deslumbra, ou ele quer tanto justificá h
dar sua chave, que novamente se despista em sua procura da causa’
Esta tensão interna ao testemunho se repercute no cartel e às vezes
como efeito de frustração. Pois o cartel, no fundo, sabe o que quer
no dispositivo. Ele espera que se o diga, ou antes que se o deixe
perceber o que justamente ele não sabe: o modo singular com que o
sujeito se deslocou no campo da linguagem para chegar lá onde ele
diz estar, a partir do que a lógica do conjunto pode ser inferida. Se
do lado do analisante podemos evocar o clarão, como o fez Lacan,
será preciso discernir o flash focado em close — que lança seus
contornos para a sombra — do clarão que ilumina a perspectiva.

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apostar*

Em 1967 Lacan introduziu algo do novo na seleção dos ana­


listas. A novidade consistia no fato de que a garantia coletiva fosse
doravante fundada sobre a psicanálise em intensão. A questão de
Madrid, que por sua vez se inspira em “Nota aos italianos” (1973b),
propõe acrescentar aí algo do novo na seleção dos membros da Es­
cola, fazendo do passe uma das portas de entrada na instituição,
não sendo este novo modo de entrada, bem entendido, exclusivo e
portanto, não obrigatório.
Eu sou favorável a esta inovação. De forma resoluta; direi bre­
vemente duas razões. Creio que, com relação ao que Lacan pode
denunciar ao longo dos anos, fomos libertos — ainda o vocabulá­
rio militar — do que ele chamava de “os grandes ineptos da técnica
reinante” e também de os idólatras da escuta que seviciavam em
1967. Sem dúvida produzimos um novo estilo, que eu chamarei do
“praticante... aplicado”. No que me concerne, não tenho nenhum
desprezo pelo praticante. Ele pode ter sua dignidade. Simplesmente,
ela é um pouco curta e isto não basta para uma Escola de psicaná­
lise.
E também podemos talvez esperar que esta proposição nos
permita repensar a questão do passe e do final de análise. Evoca­
mos um sim ao passe como modo de entrada com a condição que se
trate de passe-passe. Mas o que sabemos desse passe e quem ousa­
ria aí se apresentar como suposto saber? Ao contrario, remetamos
ao canteiro de obras a questão do que é o passe, do que se pode
apreender da idéia que dele tinha Lacan a partir do conjunto de
seus textos. O problema do “como fazer funcionar? não me parece
nem prioritário, nem mesmo especialmente espinhoso. Por outro
lado, é necessário conduzir a um bom termo uma elevação prévia,

Parier . Colóquio Omicar? sobre o passe, 19 de janeiro de 1991. Anterior


mente traduzido em Opção Lacaniana, no. 4, 1992

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COLETTE SOLER

dc alcance coletivo, em que sejam precisadas nossas razões de nos


atermos ao passe em que sobretudo se discirna o alcance da nova
resposta que um cartel do passe terá eventualmente sido levado a
dar: o que vai autenticar a proposição de um passante ao título de
membro da Escola, e qual será a retroação desta resposta sobre a
demanda de passe? Trata-se de colocar na ordem do dia as respos­
tas a estas questões, e através de um trabalbo de conjunto. Na falta
do que as respostas dos cartéis se arriscariam a serem por demais
contigentes, por demais dependentes dos pontos de vista particu­
lares para que a execução não roce o arbitrário. Esta primeira etapa
deve permitir a criação das condições para que o dispositivo em sua
nova modalidade funcione de modo justo e regrado. Entre “A pro­
posição de 1967” e “Nota aos italianos” há vários avanços e não
apenas aquele que desloca a definição do analista.
Há um no nível da própria seleção dos analistas da Escola. "A pro­
posição” distingue dois modos do gradus: um autentica o funcio­
namento reconhecido do praticante através do título de AME; o
outro autentifica o próprio analista, o desejo que o define, através
do título de AE. “Nota aos italianos” não retém senão o segundo.
Sem dúvida há razões conjunturais para que o primeiro seja deixa­
do de lado. Lacan o precisa, o grupo italiano não estando em condi­
ções de dar este título; este deslocamento não discute portanto 0
título de AME em si próprio; contudo seu afastamento acentua a
disjunção entre a produção do analista e sua autorização de prati­
cante que “Nota aos italianos” introduz de outra forma.
Um outro deslocamento é notável no nível do alcance insti­
tucional do passe e da relação entre seleção dos analistas e seleção
dos membros. As disposições de “A proposição” fazem da reunião
dos dois conjuntos dos AE e dos AME um subconjunto do conjunto
dos membros. “Nota aos italianos” confunde num único conjunto
o conjunto dos membros e aquele dos AE. Já assinalamos 0 extre­
mismo desta solução.
Mais essencialmente, entre “A proposição” e * Nota aos italia­
nos” alguma coisa muda no nível do que explica a emergência do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

analista. Admite-se que para fazer um analista seja necessária uma


análise. Temporalmente, é portanto no término da análise que se
encontrara o analista. Mas a analise, condição necessária, será ela
condição suficiente do analista? Sobre este ponto, não podemos
dizer que os dois textos divergem, mas “A proposição” é mais
interrogativa, menos categórica que “Nota aos italianos”. Ela usa
da pergunta e dosr. Ela propõe por exemplo verificara na destitui­
ção subjetiva adveio de fato o desejo do psicanalista. Evocando a
ingenuidade dos dois casos de passes finais que Lacan retém —

representou por sua própria evacuação — ela demanda se isto é uma


garantia na passagem ao desejo do analista. Esta nota hipotética de
fato exclui toda idéia de uma produção automática do analista pela
análise, mas tampouco resolve sobre a casualidade. “Nota aos itali­
anos” afirma: a análise é uma condição necessária mas não suficien­
te. É preciso então alguma coisa a mais para produzir este desejo
inédito que fará do sujeito um drop out da humanidade, que o fará
divergir quanto aos fins (buís) desta, fins fantasísticos, até o ponto
de ser um rebotalho Çrebut')' que não faz coro, que não clama, nem
suspira com a humanidade.
Se a análise não basta, se é preciso ainda outra coisa, de onde
virá então a graça? A graça é o nome que séculos de cristianismo
deram à causa. Foi por isso que nosso debate a respeito do analista

z . ✓
notadamente a respeito da graça suficiente. E precisamente no sé­
culo em que surgiu a ciência, o século XVII, que o jansenista um
augustiniano como vocês sabem — se insurgiu para dar um novo e
último brilho a este debate secular e para dizer que a salvação de
v°cês, tanto quanto os méritos através dos quais o molinista imagina

L N. do E. No texto original segue-se a seguinte observação da autora: rrtaí


v,ent debut. Ou seja, em português literalmente teríamos: ‘rebotalho vem de alvo ,
não corresponde à indicação anotada no francês. No entanto, poderíamos
entar forjar a tradução de rebut por “moscaria ’, no sentido de algo entregue às
foscas, decantando-se mosca, como encontrado na expressão "acertar na mosca .

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COLETTE SOLER

que vocês o ganharão, não está à mercê senão da graça suficiente


seja ou não do agrado de Deus concedê-la a vocês. É dizer qUe à
contingência da misericórdia divina — ou seja, para nós o enigma
insondável do Outro e de seu querer que não haja razão de supô-l0
bom — determina o destino de vocês. Com certeza o psicanalista
não crê na predestinação, mas sim no inconsciente. E se a análise
não basta, será necessário que seja também um pouco pela graça do
inconsciente que se engendre o desejo do analista, pela graça das
contingências do inconsciente — designo com isso os diversos
encontros que a resposta do sujeito inscreve em determinações e
que constituem o que se convencionou chamar de sua sorte ou seu
destino. Assim “Nota aos italianos” contém aos meus olhos uma
nota por assim dizer mais jansenista do que “A Proposição”. E aí
não esqueço que esta nota é mais do que compatível com a dimen­
são da aposta (cf. Pascal).
Seja como for, na prática é no término da análise que a ques­
tão da emergência do analista se coloca. Se colocarmos a disposição
dos cartéis do passe uma resposta suplementar que lhes permita
responder a um passante não apenas se ele é ou não AE, mas tam­
bém se ele pode ser membro, se ele é digno ou não de entrar numa
Escola que se pretende de psicanálise, ainda que ele talvez não te­
nha terminado sua análise e que ele não seja necessariamente pra­
ticante, trata-se de saber o que esta nova resposta vai autenticar.
E uma questão que devemos examinar. Avanço aqui apenas algumas
considerações a título puramente exploratório e sem decidir ainda
quanto às conclusões.
Uma tese simples seria dizer: o título de AE homologando o
analista, o título de membro autenticará um “houve análise . E se
houve análise, haverá chance para o analista ao menos advir.
Esta expressão “há análise” é comumente empregada.
Utilizamo-la em geral para dizer que houve mais do que apenas a
entrada em análise, e mesmo mais do que o simples exercício da
associação livre. Ela implica que a “tagarelice” não se desenrolou
em vão, ou seja, não apenas para o gozo que a ela se liga, mas que

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

tenha permitido produzir um efeito estruturalmente apreensível.


propriamente falando, o discurso analítico não conhece senão um
único efeito de produção: o que designamos como queda dos
significantes mestres; extração fora da cadeia do blablablá de um
dos semblantes que comandavam o sujeito, extração sempre acom­
panhada de fortes ressonâncias subjetivas, e até mesmo destes efei­
tos de despersonalização dos quais Lacan dizia, em seu texto “Ob­
servação sobre o relatório de Daniel Lagache” (I96O), que são sig­
nos de ultrapassagem, e que não deixam de, reatualizando o enigma
do sujeito, solicitar a posição da qual ele responde. E mais do que
uma simples mudança terapêutica, a qual engendra muitas vezes
apenas o deslizamento das significações; é uma mudança do sujeito.
Tão longe quanto se leve a análise, não se obtém outro efeito de
produção até a destituição do final da partida e, de resto, os sem­
blantes em questão não são tão numerosos assim para cada um.
O enxame Çessain')2 *é antes magro.

Sim. Sem dúvida ele está em descontinuidade com o processo.


Mas, além do hiato, seria também preciso por à luz a articulação,
insistir sobre a junção que vai da extração do significante mestre à
destituição, na falta do que não se veria de que modo o processo
condiciona a virada final. De fato o significante mestre não deixa
de ser correlato à castração, portanto ao cingir’ o horror que a ela
se liga, e à fantasia que a cobre. É aí talvez que justamente se revele
o que condiciona “o vislumbre” através do qual o sujeito sabe ser
um rebotalho, como diz Lacan em “Nota aos italianos , como a
coragem de Rodrigo4 que não espera o número dos anos. Se o ser
próprio analista não se revela apenas pelo passe-ao-ato (passe-a-Pacte')
ruas também na resposta que ele dá ao horror da castração, não está

2- N. do T. Cf. nota 6, p. 319.


N. do T. No original: au cernage de 1’horreur. Em francês, cernage ou cerrwment
S1gnifica a ação de fazer incisões na casca de uma árvore, visando sua transformação.
ç,4. N. do T. Alusão da autora à personagem Rodrigo, herói da tragédia El Cid de P

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COLETTE SOLER

excluído que ele possa se reconhecer em sua vtrtualidad


virada final. E ao menos uma hipótese a explorar caso C
Conceder o título de membro da Escola a um 3 C3S0’
então como uma aposta — aposta esclarecida pelo
passante — sobre o analista por vir. *Sa^°

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OS POSTULADOS DA EXPERIÊNCIA*

O que prova o analista? Que ele funcione, que se "experimente


analista” como dizia Lacan, não prova nada e o deixa apenas provável.
Por mais que ele avance sob a bandeira do Ato maiúsculo, ele pode­
ria não se distinguir do psicoterapeuta. Eis a razão do dispositivo:
para se assegurar do psicanalista. Pois não esqueçamos que o passe
é “uma prova de capacidade”. Sei que esta expressão de Lacan é
pouco agradável para certas orelhas. Ela evoca, é verdade, menos a
entronização do que o certificado de conclusão dos estudos. Aliás,
seria necessário dizer, se bem o entendemos, o início dos estudos já
que não é a capacidade de exercer mas a capacidade de transmitir,
como promessa de um trabalho por vir, que aí se faz reconhecer. Há
portanto uma questão sobre o que pode valer como prova neste
domínio em que o meio-dizer da verdade não está excluído. Mais
precisamente, perguntemos aos cartéis do passe que tenham o que
dizer: para vocês, o que vale como prova?
Alguns se insurgem contra o que quiseram chamar de uma
clínica dos passantes, mas percebam que ao colocar esta questão
para os cartéis como tais, poder-se-ia muito bem supor que eu avanço
em direção a uma clínica... do dispositivo da dupla comissão do
passe, uma clínica dos cartéis, e por que não dos passadores. Não
haveria aí paradoxo algum — aliás, cada um pode nisso se lançar
desde que tudo que fala está sujeito a ser clinicado , se a expressão
não é por demais forçada. A clínica do passe e a clinica do que se
diz no dispositivo em seus diferentes níveis.
Mas, vocês me dirão, o dispositivo fala? Em todo caso, é certo
que a estrutura da fala e da intersignificância disso não está ausente.
Permitam-me animá-lo e pôr em enunciados dialogados, como ficção,
0 que não é certamente jamais enunciado como tal, mas que e o
Iniplícito do que chamarei de as posições do dispositivo.

* “Les postulats de 1’expérience”. Publicado em La Causefreudúnnt, n. 18, junho


de 199!

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COLETTE SOLER

O passante avança sobre o princípio de um: “Eu sou”


subentendido, AE — que ele sopra ao passador. Asserção, portanto
Mas desde o momento em que ele espera uma resposta, o assertivo
se torna modal da demanda feita ao cartel. Eu a formulo assim-
“Diga-me que o sou”. A certeza era presumida.
O passador diz ao cartel: “Ele diz que ele o é”. Mas acrescenta
aí como comentário diversamente modulado, em surdina ou com
fanfarra, a indicação do que dele reconheceu de sua parte.
O cartel responde: que ele nomeia, e então aquiescerá em um:
“Tu o disseste”; que não nomeia e então reenvirá ao passante um:
“Foste tu que o disseste”.
O que advém nesta estrutura do “poder discricionário” do
auditor? Ele é sem dúvida desdobrado pois repassado pelos passa­
dores, mas o “todo poder” da resposta da mesma maneira retorna
sem divisão ao cartel. E aí que surge, com o Outro absoluto, o
problema de seu controle, e que a imisção da Escola se impõe. Ela
demanda ao cartel — na EFP era ao júri — de explicar suas razões,
o que fundamenta suas decisões. Devo então completar minha ficção.
Á resposta do cartel, a Escola dobra a aposta com um: “O que é que
te fez dizê-lo?”. Esta exigência de Escola foi inicialmente portada
pela voz do próprio Lacan. Esta nos falta doravante, mas ela pró­
pria foi impotente para obtê-la. Por isso talvez seja necessário que
a demanda se faça premente até a notificação. Mas compreendam
que hoje não se trata mais da notificação de alguns sobre outros,
tal como isto não era na EFP a notificação de Lacan a seus alunos.
A Escola não é a vontade de uma ou de algumas pessoas, mesmo se
obviamente são necessárias pessoas e instâncias. A Escola é antes o
nome de nossas finalidades, do que supomos ter como objetivos co­
muns quanto à coisa analítica. E por isto, através da voz de cada um.
mas especialmente de suas instâncias, que ela pode, ela deve pergunta
aos cartéis: ”O que vocês querem ouvir de seu AE?
Neste ponto, podemos interrogar: sera a boa pergunta,
será necessário antes perguntar: “Que recolheram voces da «Pcr^
ência que permita, como dizia Lacan, uma seriação e uma ac

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

dos resultados? . Sem duvida. Mas é preciso igualmente questionar


o cartel sobre seus pressupostos, pois o que e a verdade de cada um,
o é para ele: o que ele é suscetível de acolher é função do que ele
busca, mais precisamente do que ele procura ouvir. E que não se
responda precipitadamente com o "saber novo”. Esta expressão do
“saber novo" rapidamente chamou atenção e se tornou um novo
cega-rega, um novo chocalho1. Aí sem dúvida é Molière que nos
falta. Observo que um saber não pode ser novo senão diferencial­
mente, por relação a um antigo, tanto se ele o renova, como se ele aí
acrescenta e faz recuar as bordas do não-sabido. No caso presente,
o que deve ser elucidado, para todos, é o saber já lá, sobre cujo
fundo será recebido o testemunho novo do passante.
Chamo para um trabalho de elucidação por parte dos analis­
tas que participam das decisões. Nós não deveríamos nos recusar a
isso, nós que fazemos profissão de um desejo de análise, ou seja, de
um desejo que visa resolver os segredos do inconsciente e suspen­
der o mistério da fantasia. Que os membros dos cartéis retirem da
sombra, tanto quanto se possa, as opções que presidem suas esco­
lhas fundamentais e tudo o que elas pressupõem do que deve ser o
analista da Escola. Digo o que ele deve ser e não o que ele é. Com
efeito, não sendo um produto necessário da análise mas apenas um
produto contingente, o que quer dizer concretamente que nem toda
análise, mesmo terminada, produz um AE — cf “Nota aos italianos”
(1973b)— trata-se de re-conhecê-lo. Deixo em suspenso as consi­
derações que aqui se imporiam sobre o papel dos passantes, para
insistir sobre a função dos pressupostos dos cartéis. Eles estão no
lugar de quase-axiomas da experiência e condicionam tudo o que
dela pode resultar.

I. N. do T. No original. "Cette expression du ^^,,"^n7flcV“guhzo’’ e “hochct”,


un nouvtau hochct Em francês,
homvmu grelot, 0 QU rul'do produzido
"chocalho”. Alusão ao aspecto repetitivo de um mesmon - “chamar a
por estes objetos. Vale lembrar que a expressão Ja,rl s0 , jc ‘allachtr legrelot",
atenção sobre si fazendo barulho — é provave mente
cuja origem está na fábula Conselho dos ratos de La ont

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COLETTE SOLER

A experiência não é a experimentação. Esta é a questão colocada


ao que chamamos geralmente de a natureza, antes digamos o real.
Ela antecipa uma resposta que o real confirmará ou não. Ao contrá­
rio, a experiência, ao menos se a tomamos no sentido forte do termo,
como eu o faço aqui, é... reencontro. Manifestação de alguma coisa
sempre em surpresa sobre as antecipações que, para cada sujeito,
constituem sua realidade. Como se na experiência verdadeira o real
respondesse sem ser interrogado. Donde a fórmula muito simples
de Lacan: a experiência é o que não se imagina. Uma psicanálise é
verdadeiramente uma experiência. Isto quer dizer que aí o encontro
sempre decepciona as expectativas e as faz aparecer como miragens;
seja porque ela dá mais, seja porque dá menos, seja por dar algo
inteiramente diverso. Segundo o que eram as antecipações de entrada,
diversos casos particulares se apresentam. Aliás, disto resulta,
observem-no, que o homem dito experimentado porque o supo­
mos ter muito recebido da experiência é também aquele que é o
menos suscetível de ser por ela surpreendido. A tal ponto que seria
necessário concluir paradoxalmente que o mais experimentado é
também o mais fechado à experiência.
Scilicet, tu podes saber — talvez aí seja necessário ser mais
prudente: tu deverias poder saber — o que preside a escolha dos
cartéis. O que dizer? Não se trata, assim questionando, de discutir
a escolha das nominações. Um tal questionamento comprometeria
radicalmente a possibilidade de fazer funcionar o dispositivo, e não
sei de ninguém que tenha se engajado nesta via desde o início da
experiência. Ninguém pode se colocar em um sobre-cartel, Outro
do Outro. Quanto ao passante, nomeado ou não, ele é suposto
estar tanto mais em condições de suportar a resposta e suas conse­
quências, quanto mais ele tiver verdadeiramente passado na sua ana­
lise para o lado onde o ato sem Outro é possível. Em compensação, é
necessário saber o axioma fundamental dos cartéis quanto ao AE.
Então que direi eu ao me defrontar com a questão colocada?
Espero do passante que ele faça saber, no duplo sentido do subs­
tantivo e do verbo, como se diria fazer rir ou fazer passar ao verbo,
que ele faça saber o que sabe do que sua psicanálise dele fez. Que

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

diga — aí não esqueço que seu dizer não será direto, que deverá
atravessar os passadores, e que esta travessia aí está sem dúvida
condicionada por uma outra, a da fantasia — que ele diga então o
que se produziu de mudança e de saber, o que se tornou para ele o
saber suposto, a parte de que ele pode se apropriar, que ele "obteve"
deste saber, diz Lacan. Que diga o que descobriu — não digo inven­
tou, por ora — de suas identificações, como da cifra de seu sintoma,
de traço unário a traço de perversão. Mas que também deixe perce­
ber o que ele delimitou do que fundamentava suas evidências vitais,
como elas se esvaziaram até o ponto de lhe fazer se aperceber ao
mesmo tempo em que se distanciou, um momento ao menos, do
segredo que presidia a estratégia oculta de sua vida.
Eu resumo. Que diga ou deixe perceber:
— o que ele “inventariou” do saber inconsciente. Acrescento
que se ele o faz, não teremos mais de lhe pedir provas de seu não-
saber, como se o não-saber fosse uma performance, quando ele é
um destino, um destino de castração que a linguagem faz ao fala-
ser. Se ele o faz, ele necessariamente saberá do engano do sujeito
suposto saber, e que do saber não existem senão "pedaços”.
— o que foi ventilado do que povoava seu vazio, aí no duplo
sentido do termo "ventilado” Çéventf) que designa ao mesmo tempo
o segredo suspenso e o aroma perdido. Se ele assim testemunha
que à experiência de enganar-se ele soube acrescentar o que eu cha­
marei por analogia de desligar-se2, se o saber consignado vai de fato
do inventariado ao ventilado, saberemos sem dúvida que ele forçou
seu próprio horror de saber.
Vocês o percebem, eu penso, estes requisitos implicam muito
saber pressuposto, já lá. E isto não pode ser de outra forma, pois e
uma necessidade de estrutura. Portanto não finjamos ignorar o que
sabemos, o pouco que sabemos, para pretender abordar a experiencia
c°m um espírito virgem. Este saber prévio não é novo, ele e inclusive

N. do T. A autora utiliza aqui um jogo de palavras entre méprist (engano,


c_Cl 1V0c°> confusão) edíprist (desprendimento, desligamento, soltura), que pro-
mos manter aproximadamente com o uso de tnganar-sc e desligar-se.

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COLETTE SOLER

velhusco. Ele data de 1967, mais de vinte anos! Além disso, ele é
pedido emprestado, tomado do Outro dos textos da “Proposição”
Não é que desde 1980 nada se tenha produzido de novo, longe
disso. Houve um vasto trabalho de explicitação, uma nova apropri
ação do saber que Lacan nos consignou como oculto, e com ela um
novo efeito de transferência. Neste sentido, um revezamento foi de
fato efetuado, mas ele não nos autoriza a fazer do saber novo um
clichê — o que é aliás um paradoxo.
Retorno ao fazer saber do passante, para precisar sua forma
minimante. Eu o vejo modesto, discreto, dissertando pouco. Faço
notar que aquilo que Lacan chamou de “um justo testemunho”
evita tanto a dissimulação do não-sabido quanto os adereços postiços
do saber suposto novo. Caso encontre sua fórmula própria, um
vislumbre tomado da experiência não tem, por definição, precedente.
Pois bem, é já um traço — clínica do traço a desenvolver — que
assinala o desejo de saber. Não o desejo de saber vindouro e o ensino
futuro do AE por vir, nem tampouco o desejo de saber suposto,
mas o desejo de saber já lá, atestado com o que ele implica de sepa­
ração para com o Outro. Por quê?, dirão vocês. Porque a queda da
demanda de saber feita ao Outro é a condição para que o sujeito
possa — contingência — acrescentar ao saber já lá no inconsciente
que esta demanda lhe terá permitido soletrar algumas fórmulas de
sua lavra. Vocês o sabem, não está absolutamente cozido5. Se isto
ocorre, o sujeito terá acrescentado um pedaço de invenção ao que estava
por ele inventariado e ventilado, e aí veremos um signo de que ele
mudou de causa. Este traço permitirá desde então esperar que ele irá
mais-além para fazer avançar a psicanálise. E é o que está em jogo.
Concluo sem esquecer o horizonte da psicanálise em exten­
são. Por que querer fazer avançar a psicanálise quando o próprio
psicanalista permanece sentado, sempre no mesmo lugar? Alguns,

3. N. do E. Há aqui uma conhecida oposição simbólica entre cru (cru), presente


na expressão dc son cru (de sua lavra, intenção, colheita), ecuit (cozido), que e, por
exemplo, um dos temas da Série Mitológicas de Claude Lévi-Strauss, espec*a
mente o volume O cru c 0 colido. São Paulo, Brasiliense, 1989-

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

OS mal intencionados, deixam entender que é um voto de mal ana­


lisados, outros, mais sutis, que é para tratar o psicanal sta de sua
sorte. Esta última hipótese não é tola, mas no entanto não é a res­
posta. Há para o discurso analítico uma escolha forçada: ou avan­
çar, ou desaparecer. É por isto que o psicanalista, se ele o é, não
pode ser um “para-que-adiantista”4, como diz a canção de Serge
Gainsbourg. O desejo do psicanalista tem uma incidência no nível
do coletivo, e Lacan sempre marcou seu lugar.
Todo discurso não trata senão de um problema: como tornar a
vida suportável ao fala-ser? A psicanálise faz quanto a isto uma
contra-oferta na civilização. Que vocês a suponham ser sociedade
de consumo ou de comunicação, nos dois casos a psicanálise tem
algo a redizer aí. Ao “nada-de-diálogo” a análise impõe limite e
responde de outra forma ao “clamor” da “pretensa humanidade”.
0 analista “se oferece ao consumo”, diz Lacan. Mas é uma oferta
outra, a do objeto que falta no conjunto prolífero dos objetos pos­
tiços com que a indústria do desejo nos cumula, do único objeto
que não pode cumular porque ele falta. Eu retomo: ele se oferece ao
consumo5 dos logros do desejo em proveito de sua causa. Aí é preciso
o suporte de um saber consistente. Na falta disto, poderá de fato
ocorrer que a prática analítica não passe de “autismo a dois” e que
a coletividade dos analistas permaneça presa no visgo do que Lacan
se permitiu um dia chamar... “a barafunda psicanalítica’ 6. Não se
detenham nas ressonâncias do termo, ele conota originalmente o
disfarce de carnaval, ou seja, de modo mais íntimo, a mascarada que
ameaça o analista por toda parte em que ele se recuse a fornecer
suas provas.
4. N. do T. No original, “à-quoi-boniste ", neologismo resultante da adjetivação da
expressão à quoi bon ’, que significa "para que serve , de que adianta .
5- N. do T. No original, consummation. Condensação entre consomtnation (consu-
IT'°) £ SUmmum (sumo> auge, apogeu).
N’ do T. No original, “la chimlitpsychanalytique”. O termo cbienlit alcançou uma grande
são a partir de seu uso por De Gaulle em relação aos acontecimentos de maio de 1968.
templo, Alors ces étudiants, toujours la chienlit”, apud. JOFFRIN, Laurent, Mai 68:
^‘^disevcnmmts. Paris, Seuil, 1998, p. 184. Por outro lado, a palavradxinlit evoca o verbo
’ ej110 significa evacuar ’ e também "cagar”.

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AMAR SEU SINTOMA?*

Pode verdadeiramente a psicanálise, quando ela chega a seu


termo, pretender produzir um sujeito inédito? A pergunta incide
menos sobre a conclusão da sequência analítica do que sobre o su­
jeito que dela resulta. Lacan não hesitou e mais de uma vez evocou
esse sujeito transformado pela análise com o termo, muito forte,
de metamorfose. Freud, que de bom grado cremos numa posição
um pouco recuada quanto às ambições a consignar a todo trata­
mento terminado, tampouco recuou diante desta questão.
Em seu texto “Análise terminável e análise interminável”, in­
terrogando o resultado possível de uma análise, evoca a transfor­
mação que o sujeito deve sofrer para que se possa dizê-lo “analisado”,
no particípio passado: “Não está nossa teoria reivindicando justamen­
te a instauração de um estado que jamais está presente de modo espon­
tâneo no eu, e cuja criação original constitui a diferença essencial entre
o homem analisado e aquele que não o é?”(l937, p- 242).
De Freud a Lacan os enunciados divergem muito e às vezes até
parecem antinômicos. Ali onde Freud assinala, no início do mesmo
capítulo III, a intenção “de chegar a um esgotamento radical das
possibilidades de doença”, Lacan anuncia a produção do incurável e
lança a expressão de identificação final ao sintoma, bastante estra­
nha quanto aos efeitos terapêuticos dos quais a análise merece ser
creditada. Mas por pouco que não se trate as fórmulas como a
arvore que esconde a floresta, e que se restitua a cada passo sua
lógica, talvez possamos ver essa divergência reduzir-se muito.

^ma posição revisada

Na data em que publica “Análise terminável e análise intermi-


navel , em 1937, Freud, idoso e doente, sabe que vai morrer. Ele

em S°n syrnPt°me’ ”' Concluído em 26 de fevereiro de 1994 e publicado


em n _ause FreuJienne. n. 27, 1994- Anceriormente traduzido para o português
Píao Lacaniana, n. 12, 1995.

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COLETTE SOLER

faz o balanço de alguns cinqüenta anos de experiência, nos consig­


nando ali um tipo de testamento teórico no qual se delineiam as
tarefas do futuro. Ele reanima por um instante algumas figuras do
passado como outros tantos antigos tormentos: Fliess e suas teorias
sexuais, Adler e o “protesto viril”, que se acreditava esquecido, e
sobretudo Ferenczi, a censura viva — embora nessa data ele já esti­
vesse morto — quanto à sua análise inacabada. Suas respostas se­
rão as últimas e elas guardam para nós toda sua importância.
A questão que Freud coloca não incide tanto sobre as peripé­
cias da análise, suas inércias, e mesmo seu eventual obstáculo final,
quanto sobre seu resultado, sobre a possibilidade de produzir ou
não um sujeito para quem a causa geradora de eventuais novos sin­
tomas estaria esgotada.
Ora, a tese princeps, solidária desde a origem da descoberta
freudiana, propõe que é o recalque das pulsões que condiciona seu
retorno no sintoma. Freud opera ali com dois termos: a pulsão
como exigência de gozo específico, e olch como princípio de defesa
e rejeição no que concerne a essa exigência... inconciliável. A ques­
tão é portanto a do destino do recalque durante e depois da análise.
Quando ele fala de tomada de consciência ou de elucidação (idem,
p. 23 5), enfatiza o aspecto epistêmico do processo, o ganho de
saber que se espera de uma análise, um “eu sei”. Mas quando
evoca paralelamente, tal como ele o faz, a possibilidade de “revisar
esses antigos recalques” (ibid., p. 242), de chegar a uma “correção
só-depois do processo de recalque originário” (ibid.), trata-se
de algo completamente diferente. Não estamos mais no eixo da
revelação analítica, mas naquele de sua capacidade operativa e
das mudanças que ela é suscetível de produzir no nível da defesa
para com as pulsões, no nível de um “eu quero” ou “eu não quero
do sujeito.
Freud distingue aí dois modos de transformações possíveis,
entre os recalques “alguns são destruídos” — portanto, admissão
da pulsão — “outros reconhecidos, porém recentemente
construídos com material mais sólido” (ibid.) — por conseguinte,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

rejeição confirmada. E evidente, Freud não sonha com um sujeito


que teria cessado de se defender contra todo o real do gozo pulsional
(seria, em suma, um ser inassimilável a qualquer laço social), mas
antes com uma defesa que, ali onde o gozo permanece inaceitável
para o sujeito, teria cessado de gerar recalque com o retorno do
sintoma que aí se encontra implicado.
Portanto os dois obstáculos ao tratamento possível da pulsão
pela psicanálise estão explicitamente indicados: de um lado, o fa­
moso “fator quantitativo” e a ameaça sempre presente de um even­
tual “reforçamento pulsional”; do outro, a incompleta “transfor­
mação do mecanismo de defesa”(ibid., p. 245) do Ich.
Resultado, diz Freud: “a análise, com sua pretensão de curar
neuróticos assegurando a dominação sobre as pulsões, tem sempre
razão na teoria, mas nem sempre na prática” (ibid.). Tal é a conclu­
são em que ele consegue realizar a aliança notável de uma exigência
conceituai, que afirma categoricamente, com um realismo pragmá­
tico que abraça os contornos da experiência.
Freud, eu o observo, não considera em nenhum momento nesse
texto que a análise modifica a exigência pulsional em si mesma. Eu
creio até que o termo de sublimação, que sempre designa em Freud
um processo de transformação da pulsão, e mesmo de transforma­
ção socializável, aí não é encontrado. Em contrapartida, o que a
análise modifica, a seguir esse texto, é o que bem posso chamar
de tratamento da pulsão pelo recalque. Resta então para o sujeito,
uma vez esclarecido pela decifração analítica, operar uma nova
escolha. Assim Freud, tão freqüentemente acusado de operar
como mestre, deixa todo seu lugar para uma decisão renovada do
sujeito.
Esse mesmo traço é reencontrado, aliás de modo muito explí
cito, no que se refere ao famoso fator de impasse que Freud intro„
duz em seu último capítulo, a castração como "rochedo de origem
(ibid., p. 268). O fato de que ele a situe como “resistências de
transferência” (ibid., p. 267) bastante nos diz que o impasse aqui
ev°cado não poderia reduzir-se ao temor de uma mutilação corporal,

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COLETTE SOLER

e que as imagens recenseadas por Freud que ali pululam são apenas
a tradução no imaginário de um processo diferente. Este não é ima­
ginário, a saber, o efeito de perda que implica a relação ao Outro, e
cuja ameaça se reedita a cada aproximação deste Outro — aqui
aproximação transferencial.
Sabemos a última palavra de Freud sobre esse ponto: "Dizer
se e quando fomos bem sucedidos em dominar esse fator num tra­
tamento analítico será difícil. Nós nos consolamos com a certeza
de que ocasionamos ao analisado toda a incitação possível para revi­
sar e modificar sua posição no que concerne a esse fator’’(íbid., p. 268).
Mestre gaiato, esse que deixa escolher! Sem dúvida se dirá que é
um liberalismo de impotência — o que de fato conota bastante a
evocação da consolação — mas não se pode negar que a palavra
final e a saída última caibam aqui ao sujeito, ou antes à “insondável
decisão do ser”(Lacan, 1946, p. 177)-
Em suma, o sujeito transformado pela análise se definirá por
uma nova relação com a castração e com a pulsão.
É a própria tese que Lacan retoma a partir de 1964, embora
com outras formulações e através da qual ele completa a ênfase
colocada inicialmente, e durante dez anos, sobre a terraplanagem
de um linguajar do conjunto da experiência do sujeito. Da afirmação,
no Seminário, livro 1i: os quatro conceitosfundamentais da psicanálise (1964),
de um sujeito para quem, no final, a fantasia se reduz à pulsão, até
a evocação mais tardia de uma identificação final ao sintoma, isto é
a mesma questão de uma relação inédita ou não com pulsão, e de
modo mais geral, do tratamento possível do gozo a partir do
inconsciente como linguagem.
Lacan, ao proferir que, no final de uma análise, identificar-se
ao seu sintoma é o que o sujeito pode fazer de melhor, surpreendeu
porque sem dúvida ele foi mal seguido até então. Evidentemente
tudo se deve à definição do sintoma, aqui implícita, e que faz dessa
afirmação uma expressão quase criptografada. Poderíamos inclusive
pensá-la carregada de alguma provocação irônica. O analisante, de
fato, se dirige à analise em nome de seu sofrimento, porque nele

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

há1 um sintoma. E o psicanalista lhe prometeria que no final ele


poderá dizer: “Meu sintoma, eu o som!”. Curiosa terapêutica, essa
passagem do ter ao ser... o sintoma. Evidentemente, é preciso supor
que não se trata do mesmo, de sintoma, e que nessa distância, o
efeito terapêutico poderá encontrar lugar, mas ainda é preciso
elucidar o que quer dizer identificação ao sintoma e a que proble­
ma a expressão responde.

Um paradoxo'1

Falar de identificação ao sintoma parece curioso. De fato, a


identificação toma emprestado do Outro, ao passo que o sintoma
inscreve uma singularidade.
Os psicanalistas de todas as linhas concordariam com isso: a
identificação é um estigma sobre o sujeito das influências do Ou­
tro, inclusive dos outros sem maiuscula, os semelhantes. Ela retira
deste Outro, com ou sem maiúscula, um elemento, traço unário,
que vai doravante marcar o sujeito, orientá-lo, determiná-lo ao
menos parcialmentc, e que assinala seu caráter educável, aberto à
influência. Em toda identificação se pode perguntar: de quem o
sujeito tomou emprestado e qual traço? O sujeito identificado é
sempre um sujeito influenciado, quer ele o saiba ou não. Na maio­
ria das vezes ele o ignora, a não ser que a psicanálise lhe revele, e às
vezes ele até acredita em sua autonomia! Foi bem por isso que Lacan,
desde o início de seu ensino, pôde enunciar: “Eu é um outro (Je est
un autre). Lembramo-nos também de Freud, de seu Psicologia de
grupo e análise do ego” (1920), que faz da identificação a mola da
relação da cada um com seus semelhantes como à figura de exceção.
O sintoma é totalmente o oposto. Se a identificação cria o
mesmo, o sintoma cria a diferença. Sempre singular, rebelde à
universalização, ele é princípio de dissidência, para usar um termo

! • N. do T. No original,para qu’il a un symptômt. Homofonia entre ila un symptômt


' e tem um sintoma) e ily a un symptômt (há um sintoma), além de por em relevo
através da grafia o objeto a.

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COLETTE SOLER

de ressonância política que, aliás, Lacan aplica à pulsão. Essa dissi


dência do sintoma é tão manifesta que a história das sociedades
registrou no Leste, não há tanto tempo assim, uma definição de
sintomatologia que recobria as divergências políticas. Isso não é
nenhum acaso, isso tem sua lógica: o sintoma nunca anda a passo
cadenciado; mesmo quando é inofensivo, ele se insurge contra os
mandamentos do significante mestre. Impossível de homogeneizar
ele tem alguma coisa de real: não seria excessivo falar de automatismo
do sintoma, já que ele faz objeção a todo diálogo. É verdade que o
sintoma histérico parece distinguir-se neste ponto. De fato, ele toma
emprestado do Outro (cf. a tosse de Dora) e assim parece fazer um
uso tornado coletivo do sintoma. Isso não passa de uma falsa obje­
ção, já que seu traço é retirado do próprio sintoma do Outro.
Portanto, numa primeira aproximação, a identificação e o sin­
toma se opõem como princípio de universalização de um lado, e
fonte de desvios, do outro. Daí o paradoxo da expressão “identifi­
cação ao sintoma”. Certamente ela designa uma mudança na ma­
neira com que o sujeito se relaciona com seu sintoma, que deve ser
definida.

Duas identificações de final

Ali onde os analistas da Psicologia do Ego — especialmente


os americanos, mas também toda a escola inglesa e por osmose o
conjunto da IPA — exaltaram, para reduzir esse desvio do sintoma,
um final de análise pela identificação ao analista, num eco irônico
Lacan propõe ao sujeito identificar-se antes a sua singularidade sin­
tomática. Esta resposta que dá o assunto por encerrado não é um
fiau-fiau2. Ela tem sua lógica, que permite, além disso, perceber a
qual necessidade obedeciam aqueles que sustentavam a identificação
ao analista.

2. N. do T. No original, cette réponse du bergtr à la btrgèrc n'e$t pas un pied dt ntç. Hm


francês, fairt un pitd dt ne^ designa o gesto convencional de derrisão: a ponta do
polegar encostada na ponta do nariz com os outros dedos afastados.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

A função da identificação para o ser falante não é bem perce­


bida senão a partir do status do sujeito tal como Lacan o cons­
truiu: como efeito de linguagem. Esse sujeito suposto em toda ar­
ticulação significante não tem outra essência senão sua diferença
com a cadeia que o representa ocultando-o, e ele não afirma sua
presença senão por uma dinâmica de deslocamento e de corte: um
vazio em movimento, de algum modo. Este sujeito é uma espécie
de fantasma (fantônu) — Lacan chegou a chamá-lo de furão — e
sem dúvida é por isso que existem fantasmas (fantômes') no seu ima­
ginário. Ele assombra a casa da linguagem com sua presença de
enigma, sem forma e impossível de fixar residência. A identificação
é justamente o que lhe dá rosto e lugar.
Ela é princípio de parada, dc fixação do ser. E evidentemente
ao preço de uma ocultação, pois desde logo a máscara invade a cena,
e o ‘‘eu sou” (Je suis') no qual se instala o sujeito se paga com o “não
pensar” (ne pas penser). Este eventualmente não impedirá nosso su­
jeito identificado de ser um intelectual. Apenas, ele pensará em tudo
exceto no que ele/como sujeito do inconsciente. Mas seja qual for
a contrapartida, as identificações, por mais diversas que sejam, e
até a "identificação última” (Lacan, 1961, p. 627) ao significante
da falta do Outro, o falo, as identificações vestindo o vazio do
sujeito, garantem uma determinação do ser.
Assim, o estado normal do sujeito — não digo o sujeito nor­
mal — é um “eu sou” (Je suis') que não pensa naquilo que ele é.
O homem são” evocado por Freud em seu texto de 1937 sobre o
final da análise, aquele que não precisaria de análise, é tal qual: um
, ou seja, o próprio sujeito, posto na forma de Eu (Mot) pela
identificação.
Ora, o sujeito só se dirige à análise, salvo exceções, a partir de
uma manifestação sintomática de sua divisão que põe suas identifi-
caS°es em xeque. Assim acontece com o Homem dos ratos quando ele
faz um apelo a Freud. É um sujeito o mais identificado possível
°m os ideais de retidão e bravura militares, decidido a servir de
exemplo aos oficiais de carreira! Infelizmente, esse belo e bom oficial

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COLETTE SOLER

está atormentado por fenômenos estranhos: inibição no trabalho


bastante incômoda para seus estudos, e depois finalmente a obsessão
dos ratos e o pânico que ela lhe inspira. Eis aí alguma coisa com a
qual ele não pode identificar-se, um sintoma que lhe inspira o que
Freud chama de horror, e é esta a questão: é possível identificar-se
à coisa horrível? É claro que a divisão do sujeito não se manifesta
no início sempre sob a forma de um sintoma tão consistente.
Ela pode tomar ao contrário, de modo eletivo na histeria, a for­
ma de uma inconsistência sofrida que deixa o sujeito numa do­
lorosa incerteza sobre o que pensa, o que quer, sobre seu próprio
lugar.
A análise, ao engajar o sujeito na associação livre, que não deve
nem pensar, nem calcular, nem julgar, é um questionamento do ser,
no duplo sentido da expressão: ela quer produzir a resposta dentro
de um prazo e também quer suspender suas garantias. Portanto ela
primeiro introduz num tempo de espera um estado de suspensão
metódico. Entretanto, passadas as suspensões necessárias à elabo­
ração na qual se revelará ao sujeito o que o dividia sob a carantonha
do sintoma, é preciso que a análise reenvie o sujeito a um “eu sou”
(jc suis') de um outro tipo. Sobre esse ponto, não obstante as for­
mulações muito opostas, parece-me que o conjunto do movimento
analítico converge. Ora, o significante mestre da identificação e o
sintoma têm em comum o fato de serem as inércias que fixam e
determinam o ser.
De golpe, percebe-se um primeiro nível da lógica implícita na
teorização da Psicologia do Ego: o que se buscará restaurar no su­
jeito é a normalidade a-sintomática sendo pensada em termos de
identificação. Seu ser conforme tendo sido perturbado pelo sintoma,
visar-se-á restabelecer no final um efeito de identificação melhorada.
E onde encontrar essa melhor identificação senão no analista to­
mado como modelo? Delineiam-nos ali uma análise que iria de um
fracasso da identificação normativizante à sua saída bem-sucedida
pela identificação ao analista. A objeção salta aos olhos: a análise

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

torna-se, neste caso, uma segunda educação, que retifica e reforça


as marcas identificatórias deixadas pelo Outro. Não há por que
inventar a psicanálise para isso, isso e a confusão entre o discurso
do mestre e o discurso analítico.
A noção de identificação ao sintoma é coerente com a necessi­
dade de reatar o nó, no final de uma análise, com o efeito de ser:
obter um sujeito novamente determinado quanto ao que ele quer e
quanto ao que ele é, mas... não pela via de identificação ao Outro.
Esta é a tese de Lacan desde sempre. Já em seu “Estádio do espelho”
(1936b), ele evocava um termo em que o sujeito se reúne com o
limite extático de um “tu és isso”. A palavra extático estando ali
para dizer que é antes a resposta do ser não representável aquela
esperada, e por uma razão muitíssimo simples: é que a identifica­
ção não pode perpetuar senão a regência do Outro. O ser que ela

poderia tornar-se o cúmplice disso. A identificação do sintoma, no


outro extremo do ensino de Lacan, designa a finalidade primeira da
análise, qual seja, reunir-se em um “eu sou” (je suis) que não seja
semblante. Ela indica o esforço por uma técnica que no entanto é
apenas uma fala, para atingir o que no sujeito não é do registro
simbólico mas do real, que zomba daquilo que se pensa e do que se
julga, e até mesmo de se pensar e se julgar, “se” (on) não sendo aqui
nada além que um nome do Outro, do sujeito suposto saber.
O sintoma representa justamente um tal real.

A opção lacaniana

Embora as fórmulas paralelas da identificação ao significante


mestre ou ao sintoma visem uma função homóloga, elas designam
no entanto dois processos totalmente heterogêneos: a primeira fixa
0 vazio do sujeito, ao passo que a segunda fixa o gozo.
A identificação tem por correlato o efeito mortificante do
Slgnificante, digamos a castração do gozo. De fato, não basta que

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ela dê como artifício ao sujeito falto de identidade seus represen­


tantes e suas figuras, fornecendo invólucro do que há de
irrepresentável na roupa talhada à moda do Outro. Deve-se tam­
bém frisar que esse vazio do sujeito não é apenas falha de represen­
tação. É um vazio que não é inerte, porém dinâmico e cuja atividade
se nomeia, com Freud na memória, defesa. Defesa contra o gozo.
Totalmente oposto, o sintoma em sua definição freudiana é
um modo de gozo. Todas as colaborações sucessivas que dele Lacan
pôde propor no decorrer de seu ensino visaram conceber de que
modo nele se articulam o elemento de linguagem, necessário supor
para dar conta do fato de que ele seja decifrável e que ele ceda à
decifração, e o elemento de gozo que aí se faz valer em detrimento
do sujeito. A definição mais importante do sintoma como função
do significante, estruturado como uma metáfora, implicava o gozo
na combinatória significante pela incidência do “significante enigmá­
tico do trauma sexual” (19 57, p- 518) como memorial de um encontro
intrusivo de gozo. No mesmo filão, Lacan pôde distinguir “o invólu­
cro formal” (1966b, p. 66) do sintoma de seu núcleo de gozo.
A última definição dada por ele no Seminário, livro 22: R.S.L
(1975), como função da letra, responde à mesma necessidade, mas
introduz algo novo. Dizer que o sintoma é gozo da letra não é
dizer simplesmente que a letra representa o gozo a título de
memorial. É dizer que ela própria é objeto e que portanto o gozo
infiltra de uma parte a outra o próprio campo da linguagem, con-
fund indo a fronteira habitualmente traçada entre a linguagem
mortificante e o gozo vivificante. Mas nesse campo da linguagem,
por assim dizer gozado — gozo de decifrar é também * goza-de-
sentido ’ (joui-sens') (1974, p. 22) — o sintoma se distingue como
uma fixidez que “não cessa de se escrever”, sendo a própria letra
definida pela identidade a si mesma, ao passo que o significante
comporta sempre a diferença. O inconsciente como linguagem tra­
balha, dizia Freud. Trabalhador ideal, jamais em greve, acrescentava
Lacan. Pois bem, o sintoma é o inconsciente passado ao real: um
grevista, em suma.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Concluo então: mais além de sua função homóloga de fixação,


o final por identificação ao analista e o final por identificação ao
sintoma são antinômicos. O primeiro enfatiza a defesa contra o
real: o segundo, em posição oposta, supõe encarar esse real singular.
A queda das identificações aos significantes do Outro, como efeito
de separação de onde se descobre o vazio constitutivo do sujeito, é
condição prévia. Todavia é apenas uma condição necessária, mas
não suficiente. A opção de Lacan consiste aí em preconizar a iden­
tificação ao sintoma. E bem isso o que ele faz, embora muito dis­
cretamente, ao especificar ser isso o que sujeito pode fazer de melhor
(grifo nosso). A expressão por si só basta para indicar que há uma
alternativa possível.

A função do sintoma

Essa opção é solidária de uma nova visão de conjunto sobre a


função sintoma que a generaliza e dela reduz a conotação patológica.
É muito pouco dizer simplesmente, como Freud o fazia, que o sin­
toma é o substituto anômalo de uma satisfação sexual. Uma vez
que esta última não se inscreve senão no inconsciente, na lingua­
gem, através das pulsões parciais — descoberta freudiana — que
ignoram a diferença dos sexos, é preciso dizer que a satisfação que
se prende à relação sexual é em cada caso sintomática: se a relação
sexual não é inscritível na estrutura de linguagem, o que demons­
tram, sem enunciá-lo no entanto, todas as elaborações de Freud, é
sempre o sintoma em sua singularidade que garante a cópula do
sujeito e de seu gozo. O sintoma é portanto o que em todos os
casos faz suplência à ausência de uma relação sexual inscritível. Disto
resulta que não há sujeito sem sintoma, e que o próprio parceiro
vem nesse lugar.
Esse fato obriga, de modo irrefutável, a distinguir por um
lado os estados diversos do sintoma; por outro, as relações variadas
do sujeito àquele, e a perguntar em qual estado desses estados é
possível identificar-se e em que sentido.

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As variações do sintoma aparecem a flor dos fenomenos, pois


existem, é patente, os mais ou menos incômodos. Uns são intolerá­
veis pelo gozo deletério que incluem, outros demasiadamente bem
tolerados — que se pense, por exemplo, na droga ou ainda numa
mulher como sintoma, nem sempre tão desagradável; no caso, não
o bastante! Alguns são parcialmente desconhecidos, permanecendo
o sujeito cativo de condutas de gozo não percebidas como tais, não
subjetivadas, até que a análise faça com que ele os dimensione. E
depois, há o efeito terapêutico que reduz tal ou qual de suas formas
que atenuam fobias ou somatizações, como também faz desaparecer
a obsessão do Homem dos ratos. Mas não importa qual for a sua ex­
tensão, este efeito sempre deixa um resto de sintoma, irredutível a
qualquer análise terminada, no qual se fixa para cada um o gozo
que faz suplência à falta da relação sexual.

Identificar-se ao insuportável?

Do mesmo modo a experiência demonstra que já se pode dis­


tinguir dois casos particulares, segundo o que reste no final das
distribuições do gozo seja mais ou menos tolerável para o sujeito.
Não é em todos os casos, nós o sabemos, que a análise será bem-
sucedida em reduzir as fixações dolorosas da neurose e em reconci­
liar o sujeito com as pulsões. Consideremos a reação terapêutica
negativa, na qual o sofrimento perpetuado como um fênix encon­
tra sua causa essencial menos numa fixação de gozo impossível de
reduzir (pois isso vale para qualquer sujeito) do que na manutenção,
e mesmo no reforço do que se apresenta como defesa subjetiva (aque­
la, por exemplo, que imcialmente gera para o Homem dos ratos o hor­
ror que sua obsessão lhe inspira). Nesse caso, a análise só pode se
achar prolongada, e quando ela chega finalmente a seu termo, é
antes por renúncia.
Se, em tal caso, quisermos falar ainda assim de identificação ao
sintoma, seríamos tentados a confundi-la com uma simples aceitação:

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

cansados da guerra, reconhecermos e admitirmos o que resta no


final impossível de transformar. Mas esta definição um tanto frou­
xa mal permitiria distinguir a identificação da simples resignação. Se a
identificação ao sintoma consistisse em apenas "acostumar-se” (se
fairt) ao que não se pode evitar — aliás, é o modo de escapar disso?
— a expressão não mereceria tanta atenção. Suportar com os den­
tes cerrados pode ter suas vantagens, mas não é um mérito senão na
ética estóica. Para a psicanálise, isso não será um progresso, se não
for o correlato de uma mudança mais radical. Revisão de posição,
dizia Freud. Ora, entre o sintoma recusado na entrada e o sintoma
aceito no final há um terceiro estado do sintoma que define sua
inserção na transferência.

Crer ou não crer

O sintoma como tal, eu o disse, ex-siste ao inconsciente. No


entanto todo sintoma pode ser posto em discussão, interrogado
sobre seu sentido e sobre sua causa. Ato gratuito sem dúvida, mas
sempre possível. Se Lacan emprega o termo letra para designar o
elemento que se goza no sintoma, é precisamente para incluir em
sua definição a junção sempre possível ao inconsciente. A letra tor­
nada objeto, idêntica a ela própria, não é qualquer um : ela perma­
nece suscetível de conexões e seu fora-de-sentido (hors~sens') pode
sempre retornar ao inconsciente em um trajeto que vai do real ao
simbólico. Assim o sintoma, esse grevista, esta sempre pronto a
retomar o trabalho... na análise.
O sujeito que vem à análise crê em seu sintoma. É completa­
mente diferente de identificar-se a ele. Ele crê que aquilo que o
estorva, aquilo que ele sofre como constrangimento e afeto, é ca­
paz de dizer alguma coisa”(Lacan, 1975. aula de 21 de janeiro, p.
110). Crer no sintoma é acrescentar-lhe, como se fossem pontos
de suspensão”(idem, p. 109), dizia Lacan, um “a seguir do qual se
interroga a não-relação. É crer que o “um’ da letra pode retornar

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ao “dois” da cadeia, fiar-se na substituição dos signos de que o


sintoma tira o sentido. Dito de outro modo, é crer no “isso fala”.
Daí podemos dar uma definição mais precisa da identificação
ao sintoma que não se reduz a simplesmente assumir — quer se
queira quer não, pouco importa — o que resta da inércia sintomá­
tica no final de uma análise e a reconhecer aí o modo de gozo cen­
tral, privilegiado do sujeito. A expressão não designa, segundo Lacan,
um final de impotência própria a um sujeito dado. Ela antes designa
um final compatível com o impossível, do qual o sujeito se assegu­
rou na análise pelo trabalho do simbólico. Isso pode ser dito assim:
impossível de articular qualquer coisa na linguagem sem implicar a
castração. Desde então, identificar-se ao sintoma supõe que o su­
jeito tenha cessado de esperar que da tradução dos pontos de sus­
pensão surgisse... o termo complementar. Ele pode agora se
desabonar do inconsciente, como Joyce. E já que falamos da queda
das identificações no decorrer da análise, falemos também de uma
queda da crença. É um outro tipo de queda de final de análise que
faz retornar ao fora-de-sentido. Após o grande desdobramento, a
grande busca de sentido que foi a análise, ela apaga, no fim, os
pontos de suspensão do sintoma e coloca o ponto final do silêncio.
Eis aí um traçado de percurso: na entrada, a crença no sinto­
ma que o conecta com a cadeia significante do inconsciente —
transferência. Na saída, a descrença, que o desconecta da cadeia
inconsciente — fechamento do inconsciente. Retorno, portanto, a
um eu não penso , que não é o da identificação ao analista, e que
antes é o que Lacan designou como um efeito de “contrapsicanálise’.
A identificação ao sintoma e, com o ato, o segundo modo de um
ateísmo de final de análise, sem profissão de fé, o que seria uma
contradição nos termos. O ato não crê no inconsciente — embora
o analista deva se fazer enganado pela estrutura da linguagem — a
identificação ao sintoma tampouco o crê. São dois pontos de falha
da transferencia a que pode conduzir a análise, e são pontos de
silêncio.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Conversão de gozos

Podemos no entanto questionar a crença de entrada tanto quan­


to sua queda sobre sua verdadeira mola. O que é que faz crer?
O que autoriza supor que no inconsciente há significantes
que podem responder pelo fora-de-sentido do sintoma? Devemos
dizer que se crê nisso gratuitamente, antes de verificá-lo, sem ga­
rantia. É um ato de fé. Na psicanálise, verifica-se que essa crença
não era gratuita — não se o verifica sempre, é bem esse o problema
— entretanto, antes de verificá-lo, às vezes nela se entra.
Que na psicanálise a fé preceda à prova, esse é um inconve­
niente certo do ponto de vista da exigência científica. No entanto,
contrariamente ao que se crê, não é uma particularidade: apesar das
aparências, na ciência se passa do mesmo modo. Só que na psicaná­
lise pode acontecer que esta fé faça obstáculo à produção da prova.
Aliás, na opinião comum há, apesar da notoriedade crescente
da psicanálise, uma suspeita que pesa tanto sobre seu fundamento
de racionalidade, quanto sobre as comunidades analíticas, conside­
radas com freqüência como seitas, agrupamentos não partilhando
senão crenças. Essa suspeita encontra seu fundamento parcial, não
digo sua justificação, justamente no fato de que nelas só se entra
sob a condição de crer que o sintoma será dócil e supondo-se que
haverá um saber para respondê-lo — transferência. E a postulação
de entrada, presente de modo implícito, quando alguém considera
que aquilo que não lhe vai bem é um sintoma: a partir desse mo­
mento, ele crê ser isso algo decifrável e que isso diz alguma coisa
dele. Suspeita-se que crer é sempre mais do que crer.
É certo que se pode formular, como Lacan o fez, o recurso à
análise em termos de questão que busca sua resposta. O sujeito
ultrapassado pelo gozo de seu sintoma o monta como enigma e
apela para o sujeito suposto saber, de quem espera a resposta pelo
V1ês da interpretação: ele crê em seu sintoma e ao mesmo tempo
espera que a resposta do simbólico vá operar sobre o real. So que,
eu o disse, falar de gozo da letra desloca a fronteira. Deve-se

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portanto dizer que ali onde o sujeito crê e aparentemente espera


uma resposta, ali onde ele pensa ser em um registro puramente
epistêmico, vazio de gozo, ali mesmo ele já permutou um gozo por
um outro. Pois entrar na associação livre é operar uma conversão de
gozo que metonimiza aquele que estava fixado no sintoma, desdo­
brando-o de um mesmo golpe em um gozar da decifração e um
gozar do sentido. O que Lacan formula em “A terceira”: o “Eu
penso, portanto se goza”(l975, p. 179).
No final, o sujeito que, identificado
/
a seu sintoma, cessa de
crer, rompe de fato com esse modo. E uma reconversão... de gozo.
Os adiamentos do final na análise interminável têm assim o sentido
de uma escolha de gozo. Não é uma escolha qualquer: é paradoxal­
mente a de um gozo tomado de um uso do desejo que insiste na
demanda. Mas, valendo esse desejo e essa demanda como falta a
gozar, trata-se de um gozo da própria falta-a-gozar, digamos, uma
satisfação tirada da perpetuação da defesa. Compreende-se que se
há uma alternativa à identificação do sintoma, ela se encontra deste
lado, e esta defesa deve ter sido atravessada para que a identificação
final ao sintoma advenha. Porém o sintoma ao qual o sujeito possi­
velmente se identifica no final é um sintoma transformado, mais-
além da travessia da fantasia. Tendo entregue suas chaves, ele fica
como desabitado de sua mentira significante — “Proton pseudos” (189 5,
p. 3 63) dizia Freud, “falsus” (1970, p. 80) retomava Lacan, o equí­
voco com o "caído'' (cbu) que deriva da etimologia, indicando de
modo preciso sua redução. Este sintoma não é uma formação de
compromisso, pois ele cessou de incluir o (-1) da defesa. A partir
de então, a letra do sintoma recobre o vazio do sujeito que se des­
faz da questão do ser e da elucubração de saber a ele referida: não se
fala mais.
Questão: este sujeito doravante casado com seu sintoma, que
lugar, para não dizer que chance, ele deixa ao laço social e, muito
particularmente, ao laço do amor? Tomo a questão pelo lado homem,
o único em que se pode predicar por todos.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Amar seu sintoma?

Em 1975, na mesma lição de 21 de janeiro em que introduz a


definição do sintoma como função da letra, Lacan avança a seguinte
fórmula: “Transponho um passo — para quem é embaraçado pelo
falo, o que é uma mulher? E um sintoma”(1975, p, 107).
A Bíblia colocava a mulher dentre os bens, entre o asno e o
boi. Eis o que a coloca em série com a obsessão, a fobia, o próprio
fetiche, inclusive c ate mesmo, para completar a série das estrutu­
ras clínicas, com as vozes do automatismo mental.
Entretanto percebemos a lógica que conduz a essa afirmação
aparentemente estranha: a linguagem acasala, é certo, o homem e a
mulher como significantes c o discurso lhes prescreve as normas de
suas condutas, mas na hora da verdade da copulação dos corpos,
quando não é mais o semblante que responde e sim o gozo real, não
há nada no inconsciente para inscrever uma relação dos gozos sexuados.
Daí o eterno mistério do casal amoroso que a psicanálise desde Freud
pretende elucidar na via racional da decifração do inconsciente.
Não há dupla inscrição dos gozos no inconsciente, mas sim
para cada sujeito a inscrição — representante da representação,
dizia Freud — a marca dos primeiros encontros de gozo... a repetir.
Assim o investimento do objeto se encontra duplamente determi­
nado: a castração é sua condição primeira, como menos-gozar ine­
rente ao sujeito e que permite transferir sobre o objeto um valor de
gozof através do que o parceiro vem representar, quase metaforizar
o gozo do próprio sujeito; mas é preciso ainda que esse objeto
traga através do encontro — acaso do amor — a marca vinda do
inconsciente do sujeito. Que ela seja sintoma e não apenas objeto
anônimo e intercambiável, quer dizer que a “uma em questão porta
dguns sinais enigmáticos dela desconhecidos, e na maioria das ve-
Zes próprio sujeito, que a colocam em afinidade com seu in-
c°nsciente. Senão como conceber o caráter imperativamente eletivo
Ç" f"• OS desenvolvimentos do Seminário, livro 14.: a lógica da fantasia.

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do amor através do qual um homem se imagina poder dizer a uma


mulher: "Tu és minha mulher”? Mentira que o tempo se encarrega
de denunciar? Sem dúvida, mas não é mentira do sujeito. É o “real
que, por não poder senão mentir ao parceiro, inscreve-se como neu­
rose, perversão ou psicose”(l974, p. 21). Assim, o todo do amor
vem a se sustentar do verbo, seja na palavra do sedutor cuja função
é menos de seduzir do que de constituir seu objeto, na missiva de
amor que substitui o parceiro pela carta — deve-se desconfiar do
apaixonado muito devotado às suas cartas — ou no sintoma que o
realiza, o verbo.
Vale dizer que uma mulher, tanto quanto uma obsessão, uma
fobia, ou ainda... uma voz, permite ao sujeito gozar de seu incons­
ciente, de um termo retirado de seu inconsciente. Nada a ver com a
questão de saber se isso agrada ou não a ela. Se ela goza — recipro­
cidade — ou não, é um problema completamente diferente, aquele
de seus objetos ou de seus sintomas próprios. Lacan uma vez ob­
servou essa questão surpreendente: julga-se um homem por sua
mulher e a recíproca não é verdadeira! Preconceito, crença, oráculo
ou sabedoria de experiência? Antes, lógica inevitável: se uma mulher
para um homem é sintoma, ou seja, realização do inconsciente, então
nela vemos aparecer o inconsciente exteriorizado, o inconsciente na
superfície — como, aliás, em cada caso e contrariamente ao que se crê.
De fato, às vezes ela parece muito com uma obsessão; entre o
rato do Homem dos ratos e uma mulher pode haver as maiores analo­
gias! Isso aparece desde os fenômenos e em primeiro lugar no fato
de que o amor, não um vago sentimento mas o amor verdadeiro, é
um forçamento inesperado, sensível ao encontro, com freqüência
em contradição com as opções do sujeito. Além disso, uma mulher
pode obcecar de um modo devastador. A expressão francesa diz “ele
a tem na pele”4. Na verdade, devemos constatar que na grande
4. N. do T. No original, il l*a dans la peau. Expressão do final do séc. XIX,
significando estar apaixonado por. Trata-se de um cruzamento entre na pele, expres­
sando a identificação quanto à forma, e locuções em que a pele representa o
corpo desejado. Cf. também a definição cínica do amor dada por Nicolas de
Chamfort (1740-1794) como “contato de duas epidermes".

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

das vezes um homem antes tem uma na cabeça e não


maioria « , ■ \ .
ode fazê-la sair de seu espirito. As vezes isso se acompanha de
fobia' ele não pode se aproximar, ou seja, aproximar-se de todas
exceto dela, para evocar a fórmula “tudo menos isso” que Lacan
lica à mulher de Sócrates. Isso tampouco exclui a fetichização:
esta e nenhuma outra, condição vital, absoluta, sem a qual o sujeito
crê estar à beira da morte.
Um caso me pareceu bem ilustrativo do valor de sintoma de
uma mulher: vê-se nele uma seqüência que indica a equivalência
desta com a condição fantasística de gozo; em seguida, quando se
interrogam as particularidades da escolha de objeto, os traços que a
conectam com o próprio inconsciente do sujeito, de um modo quase
fetichista.
É um rapaz inteiramente votado às práticas masturbatórias
qUe portanto nunca se aproximou carnalmente de uma mulher
com precisas técnicas que as acompanham e que consistem em
utilizar fotos publicitárias nas quais o traço distintivo é o fato do
corpo não estar inteiro. Ele escolhe pedaços de corpo, ele não pre­
cisa ver senão um pedaço para que seja erótico; ou então, gravações
de casais copulando — eis aí, portanto, a maneira pela qual este
rapaz consome sua energia na masturbação. Eis que encontra “uma”
mulher. A partir do momento em que ele está com essa pessoa, há
uma desaparição-milagre de todos os cenários masturbatórios.
Podemos já deduzir que ele permutou uma condição de gozo por
uma outra e que ela está situada no próprio lugar das condições
fantasísticas que ele utilizava até então. Porém a prova vai muito
mais longe: a jovem o deixa, ei-lo sozinho... Poderíamos supor que
ele retornaria aos seus cenários, mas... não imediatamente. Durante
Um b°m tempo ele lhe escreve, escreve-lhe cartas injuriosas, amea-
$as. todo tipo de coisa. Enquanto ele lhe escreve, nada de
Masturbação, nada de cenários. Uma manobra da moça conduz à
Mterrupção das cartas e aí, isso é bem demonstrativo, apenas ele
SS
e escrever, recomeça com as mesmas pequenas fotos, as mes-
gravações. Dito de outro modo, não somente se vê de modo

409

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concreto uma mulher vir no lugar da satisfação como também se vê


que apenas escrever-lhe — não sei de modo exato o que havia nas
cartas, mas são necessariamente significantes — apenas o manejar
endereçado a essa mulher de um certo número de palavras, direta­
mente surgidas de seu inconsciente, pois bem, isso satisfazia ao
gozo, se assim posso dizer, a ponto disso dispensá-lo de seus cená­
rios.
Será preciso ainda verificar que ela é uma produção das parti­
cularidades de seu inconsciente? Ele a notou pela primeira vez numa
destas administradoras onde muitos escritórios se avizinham na
mesma peça, separadas por divisórias móveis. Eram divisórias fei­
tas em treliça, portanto desenhando losangos de vazios. No mo­
mento em que falava com a pessoa que o atendia, um barulho cha­
ma sua atenção e, com o rabo de olho, ele percebe furtivamente; no
enquadramento de um desses losangos, um tornozelo e o começo
de um sapato com tiras de couro. Ele sente uma perturbação estra­
nha, que o surpreende. Por ocasião de uma segunda visita, ele repe­
te a experiência, desta vez intencionalmente, e então se segue a busca
e o encontro da moça. Que ela tenha sido escolhida por sua conve­
niência, adaptada de modo específico, o que o é ainda mais às con­
dições fantasísticas do sujeito, isso é claro. O acaso faz com que,
além disso, ela tenha o mesmo nome e a mesma data de nascimento
que a mãe dele, exceto a diferença de vinte anos entre as duas. E o
elemento de repetição. Todavia há mais, a saber: uma lembrança
encobridora que insere a própria mãe na condição de despedaçamento
do objeto presente nos cenários. Sua mãe costurava amiúde à
máquina, muito orgulhosa de não usar motor elétrico, e sim uma
dessas velhas máquina a pedal hoje encalhadas em ferros-velhos.
Um dia, quando ele tinha três anos, estava sentado no chão, do
outro lado da máquina, quase nada via de sua mãe, exceto, entre os
suportes da máquina, o pé... apoiado sobre o pedal no próprio rit­
mo do barulho da máquina, do qual espreita as interrupções e reto­
madas. Lembrança de uma satisfação profunda. Podemos figurar
até que ponto a eleição amorosa concerne pouco à subjetividade da

410 '

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

amada
do e muito aos traços de identificação do nk.Ç..
sujetto! b,et° n° insciente

f”
sentido &«/«).
embaraça ne.ee
o sujeito; niss0m
mrs,nto , como er, uma Je
a-mu|bcm _rora do
fobia ou qualquer outro sintoma, mr ni!s„ consiste J""30, Uma
escolha amorosa é decifrável. Foi o que fez Fr J Pcnsar que a
l ij x *S breud ao considerar o
podendo, mais
que parecenão rebelde
obstante, serà decifrada
razão, isto é a nai ~
rac.onalmenteVtTnJo liberai

sua chave exatamente como o sintoma. No momento em que de


escreve sobre a ps.cologia da vida amorosa, ele faz a opção de cr
msso. ou seja, de postular que se pode fazer o inconsciente respon­
der a questão: Por que ela>, e é também o que faz o analisante na
análise.
Há muito tempo uma observação de Lacan me surpreendeu.
Em sua única lição sobre os Nomes-do-Pai, desenvolvendo a idéia
de que para não errar o psicanalista deve se fazer ludibriado pelo
inconsciente, ele insere uma pequena observação sobre uma citação
de Chamfort, dizendo: “Nunca se é totalmente pateta de uma mu­
lher enquanto ela não for a sua”5. A sua de mulher ou a sua de
pateta? Questão. Vemos entretanto o deslizamento operado do
inconsciente a uma mulher.

Nela crer (la croire)

Que o sujeito interrogue ao inconsciente sobre seus amores é


uma coisa; contudo que a resposta lhe venha da uma em questão
é uma outra. Não é mais crer nisso, mas sim nela crer . Um risco,
diz Lacan, aquele do amor. Ai está a diferença da obsessão, da fobia
etc. É que uma mulher fala sem que se lhe pergunte. Nela crer não
é apenas supor que ela seja a eleita do inconsciente, é também con­
fundir sua fala com a verdade deste inconsciente, reconhecer aí o

5. N. do T. No original, “On nest jamais tout ax faír substantivo


, duoe feminino,
dune femme tant
quelle nest pas la vôtre”. Como, em francês, P proposta em seguida
traduzimo-lo por “pateta” a fim de mantermos a questão p
pela autora.

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COLETTE SOLER

proferimento de um: “tu és” de interpretação. É colocar seus ditos


no lugar dos pontos de suspensão do sintoma, lá onde deveria vir a
decifração. A realidade clínica deste fato é inteiramente indubitável.
Daí uma divertida variante do imperativo bíblico: amar sua próxima
como a voz de seu inconsciente!
Sabemos o peso na experiência do “Magister dixit”. Na análise,
às vezes devemos pôr na balança o “Minha mulher diz que”. Mui­
tos dos fatos clínicos se esclarecem a partir daí, e sobretudo este:
que uma mulher possa às vezes ter um papel quase perseguidor,
como voz que buzina nas orelhas. Com certeza isso não vai bem
com a harmonia do cotidiano, pois as mulheres gostam, ao contrá­
rio, que se lhes fale e quase sempre na vez delas... pagam com o
exemplo. Constatamos também que na falta de reduzi-la ao silên­
cio, a solução para o homem às vezes é escutar muitas, tocar suas
sinfonias, porque quando ele não tem senão verdadeiramente uma
para crer é, como se diz, a loucura...
Na alucinação, o sujeito é identificado pela mensagem ouvida;
por isso Lacan pôde dizer: ele crê nelas, suas vozes. Pois bem, crer
em sua mulher não é muito diferente. Porém uma nuança: tal como
para as vozes, isso não quer dizer submeter-se a elas! Observem
Schrebcr: ele recebe do outro uma mensagem que se poderia for­
mular assim: “Tu não és um homem!”. E ele crê nas vozes, mas
protesta e luta até encontrar um compromisso. “Minha mulher diz
que” tem a estrutura da perseguição, e não é por capricho que Lacan
coloca: o cômico do amor é o cômico da psicose, a saber, que se
creia nela, como uma voz. Todavia há esta diferença: se a paranóia
identifica o gozo no lugar do Outro (Lacan, 1966c, p. 74), o amor
aí coloca antes de tudo a mensagem da verdade.
Daí este voto, bem masculino: “Feche o bico!” Dito de outro
modo: Sê bela e cale a boca!” Não se deve imaginar que são os
critérios de estética que a dominam. O peso incide sobre o “cale a
boca . Como se lhe dissessem: “Não vá lá onde está o inconsciente .
Na análise, lá onde isso era, eu devo advir”, mas no amor, quando
lá onde isso era, advém sua fala”, pois bem, estamos numa estrutura

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

discretarnente paranoizante, que constitui uma grande parte da tra-


gicomédia do casal. É que com a verdade, venha ela de onde vier,
não há senão uma única relação segura: a castração.
Eu conheci o caso de um homem que, por trinta anos, todos
os dias, anotava em suas agendas o que ela havia dito, como se seu
ser ali estivesse em jogo! Por outro lado conhecemos, em casos
menos extremos, os fenômenos de fiscalização conjugal que certos
homens exercem sobre aquela que não é forçosamente sua esposa,
mas enfim que é a “uma” em questão. Conhecemos essas mulheres
consignadas à residência no lar, porque é preciso ao menos circuns­
crever o perigo — é um mecanismo equivalente ao que se produz
na fobia. Nesta, localizamos uma ameaça sob um significante e
estamos tranqüilos em todo lugar onde ele não estiver. Pois bem,
para alguns, quando a mulher está em casa, o homem pode aplicar-se,
dedicar-se tranquilamente às suas ocupações do lado de fora. Mas
se ela chega a se mover e a se pronunciar em público, isso pode se
tornar mais perigoso. Há também o tipo do homem inquisidor: ele
gostaria de ter dela sua última palavra! Por que não evocar ainda o
fenômeno das mulheres espancadas: ele é sem dúvida sobre-
determinado, mas aqui também evocarei um caso. Ela não é
espancada quando abre a boca para falar coisas e loisas, mas quando
quer dizer alguma coisa sobre eles dois. Aí o tempo fecha.
Considerando esta estrutura, poderíamos repensar a depreciação
da vida amorosa reconhecida por Freud.
Comenta-se com justa razão essa clivagem entre o amor e o
desejo, assim como a ambivalência para com a mulher amada, essa
mistura de idealização, de agressividade nociva, de propensão a ator­
mentar o objeto, pela implicação da castração no amor. De fato, se
amar é confessar sua falta e poder amá-la por aquilo que ela não
tern- concebemos que o amor possa provocar, especialmente no
^°mem, alguma coisa como uma defesa, uma espécie de protestação
mil contra o amor. A mulher rica e a mulher pobre, não devemos
Per>sar que isso tenha a ver apenas no nível do porta-níqueis, pois
te pode valer como metonímia da castração. Há um tipo de

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COLETTE SOLER

necessidade para que ela seja desejada, a fim de que volte a ser ob
A depreciação o favorece, pois depreciar o objeto é lhp Jor 7’
, - é a o sentid0
da castraçao. E uma estratégia do sujeito homem Dara ■>
— o termo e de Lacan em A subversão do sujeito na dialética do
desejo” (1960b) — a castração imaginária de um termo a outro do
casal.
Esse primeiro desenvolvimento pode ser completado obser­
vando que “nela crer” não se situa ao nível do ter, mas do ser: crer
em sua mulher é crer que o que ela profere não fala apenas dela, mas
de você. E claro, há a palavra de amor, da qual a mulher é suposta
deter o requintado manejo, e que... embeleza aquele a quem ela se
endereça. Só que há também a palavra de verdade, a que nos inte­
ressa aqui e esta é sempre outra coisa.
A palavra de verdade nunca é uma palavra de amor — isso não
quer dizer que o amor não seja verdade, ele pode sê-lo, porém quando
um sujeito diz a verdade, parecia que o amor mentia. Não é esta
uma das múltiplas razões pelas quais as mulheres são tão acusadas
de mentir? Elas que manejam preferencialmente a palavra de amor,
quando vem a palavra de verdade o engano explode. A língua traz o
vestígio de que verdade e amor não fazem um tão bom ménage:
“Dizer a alguém suas quatro verdades”, isso está mais relacionado
com uma mensagem de castração. Isso se parece muito ao que
Schreber escuta de suas vozes: “Tu não és um homem", não o bas­
tante. Resultado: crer em uma mulher é não apenas instalá-la no
lugar de um supereu feroz, mas também colocá-la em competição
com a articulação do inconsciente. Muitas coisas se deduzem disso:
primeiro, que uma mulher em quem se crê não é um sintoma
analisável, que a fiscalização exercida por certas mulheres sobre a
análise de seu homem tem sua lógica, exatamente como os estra-
os silêncios que as vezes observamos nos testemunhos dos
P santes a respeito de uma mulher que, a olhos vistos, conta, e da
qual nada se diz.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Utn amor ateu?

O que dizer então da identificação ao sintoma quando o sin­


toma é uma mulher? A questão da incidência de uma análise con­
cluída sobre o casal homem-mulher aí está em jogo. Seria por de­
mais simples autorizar-se do não ha relação sexual para nos fa­
zermos um destino de um vago isso nunca vai bem (?), quando a
analise busca dizer não apenas o porquê que vale para todos, mas
também o de que modo próprio a cada um.
Identificar-se ao sintoma é, nesse caso como em qualquer ou­
tro, cessar de crer nisso e após tê-lo reduzido ao indecifrável, colo­
car uma suspensão definitiva à questão que ele suscitava. Para uma
mulher, será cessar de interrogar: “Por que ela?”. Vê-se o benefício
em relação à dúvida do neurótico. Isso não a repele forçosamente
de seu lugar, mas isso faz passar a escolha do sujeito à certeza e... ao
silêncio. Quem perde aí? O amor sem dúvida aí deixará seus pontos
de suspensão; ele será assim menos tagarela, mas nem por isso menos
real. Em contrapartida, o discurso amoroso aí deixará as plumas,
isso não deixa dúvidas!
Talvez um amor ateu separado da fala. Pois para o que é do
nela crer, é certo que o trabalho de análise faz sua queda. Ele não
pode senão operar uma separação para com o oráculo da fala Outra.
Inquietamo-nos com os efeitos, isso é conhecido. Mas quer isso
dizer que ao cessar de tomá-la pelo Outro, o sujeito substituirá
por um desenvolto: “Continue tagarelando’ ? Pode haver disso, mas
não será obrigatoriamente para o pior, pois não é necessário estar
separado da fala do Outro para poder escutar a diferença?

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EXPERIÊNCIA no dispositivo do passe*

I. Questões de me'todo

Começo este trabalho com algumas considerações meto­


dológicas, levando em conta a perspectiva da instituição do dispo­
sitivo do passe na Escola de Caracas.

Julgar

O que resta no final de uma análise? Se a pergunta se referisse


a uma análise particular, tratar-se-ia na clínica de um final peculiar,
mas se nos referimos à análise em geral, a coisa muda. É certo que,
no dispositivo do passe, trata-se de um juízo; cada saída de análise
é posta em julgamento e para cada caso é necessário conhecer coi­
sas diferentes. A saída do discurso analítico pode ser avaliada desde
diferentes pontos de vista.
No cartel podemos perguntar pelos resultados: que tipo de
mudanças a análise produziu no sujeito? Há ou não algo novo e
isto em que medida? No nível não da metamorfose, porém epis-
têmico a pergunta é sobre qual foi a conclusão. Falar de conclusão
evoca o eixo do saber, o caráter didático da análise.
Se consideramos o transcurso da análise, podemos então per­
guntar pela “conjuntura sequencial da saída”1, e interrogar o con­
texto transferencial de cada saída, ainda que prematura, posto que
não se trata necessariamente de uma saída de final de análise e o
que interrogamos é o momento transferencial da dita saída.

t-xpeuencia en el dispositivo dei pase Seminário proferido em Caracas nos


*as 28, 29 e 30 de novembro de 1993.
I F ~
xpressao proposta por Jacques-Alain Miller.

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COLETTE SOLER

Pois bem, se no dispositivo do passe cada saída de análise é


posta em julgamento, podemos perguntar: Com que se julga? Qual
é o padrão de medida? Perguntas estas que me conduzem a um
desenvolvimento da transferência no dispositivo do passe, ou me­
lhor do sujeito suposto saber no dito dispositivo. Todavia o essen­
cial de nosso trabalho consistirá em interrogar não o próprio dis­
positivo, mas os finais de análise.

O dispositivo e a suposição de saber

Como introdução, desenvolverei a localização do saber no


dispositivo, começando com um testemunho pessoal: o acaso me
permitiu trabalhar durante quatro anos em dois cartéis do passe, e
ocupar duas vezes o secretariado.
A partir de conversas com meus companheiros de cartel, pude
verificar que quando ouvimos os primeiros testemunhos de
passantes, sentimos surpresa e às vezes inclusive desamparo. De
fato surpreende descobrir que o dispositivo funciona, que em um
testemunho podemos perceber mais ou menos o que se passou.
Mas também é como se existisse um hiato referente às expectativas
de cada um como analisante, como analista, como teórico e às vezes
há surpresas por não encontrarmos o que se esperava. São surpresas
diferentes porém sempre presentes.
O dispositivo institui um Outro, instaura uma outra vez o
sujeito suposto saber na forma de um sujeito capaz de julgar, um
sujeito que pode dizer ou não: “Tu mereces ser AE”. Claro que a
solicitação de testemunhar no dispositivo constitui, como disse
Lacan, uma demanda de autorizar-se como AE. O dispositivo por­
tanto distancia-se muito da suposição de um sujeito livre de trans­
ferência; ao contrário, impulsiona a um esforço maior de trabalho.
De fato, trata-se de um trabalho diferente daquele que se produz
durante a análise, mas que também reconhece a um Outro a capaci­
dade e o direito de uma contestação radical.
Sem forçarmos as coisas, podemos escrever o testemunho com
o materna da transferência. Se escrevemos todo o testemunho do

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

passante como S,. este exige estruturalmente S,. A diferença em


relação ao dispositivo analítico está no fato de que no passe o
significante a quem se dirige o testemunho está desdobrado, ou
melhor, tornado presente de maneira desdobrada, entre os passadores e
o cartel porém, neste momento, deixarei de lado essa interpo­
sição dos passadores entre aquele que testemunha e o cartel em
posição de jurado.
Por um lado, podemos perguntar pelo saber do passante e, por
outro, pelo saber do Cartel. Sobre o saber do passante podemos
dizer diversas coisas e talvez não todas na mesma direção. Podemos
dizer, por exemplo, que quando se testemunha sobre a própria aná­
lise, pretende-se saber, sem que isto seja pejorativo, algo sobre a
dita análise naquilo que é oferecido com modéstia à validação do
Outro. Essa pretensão de saber não é da ordem da certeza psicótica,
que dispensa buscar uma validação; é simplesmente querer dizer
desde o próprio ponto de vista o que ocorreu na análise, e dizê-lo
desde a perspectiva que lhe foi dada por seu processo analítico.
Mesmo quando o sujeito se apresenta ao passe para entrar na
Escola, já existe uma pretensão de saber. Ainda que ele pense que
não terminou sua análise, o fato de crer que o processo analítico se
iniciou e que produziu efeitos de mudança, e mesmo de dissolução,
isoláveis já implica uma pretensão de saber. O sujeito suposto saber
está presente porque, como disse Lacan, qualquer saber que o
sujeito elabore, por mais modesto que seja o que pretenda, o faz
aparecer como sujeito suposto saber, já que a pergunta para saber o
lugar que antes ocupava é de imediato colocada. Em “O equívoco
do sujeito suposto saber” (1967) Lacan afirma que “não há ne­
nhum sujeito nesse lugar de ser ” e que esse lugar de ser é o que se
chama sujeito suposto saber, o próprio Deus; Deus, o sujeito su­
posto saber latente em toda elaboração significante. Nenhum saber
e pode sustentar porsí próprio, como disse Lacan, e a pretensão de
her do passante necessita autenticação.
Quando falei de modéstia no passante fui benévola, uma vez
4 e não se trata realmente de modéstia, mas do fato de que nenhum

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COLETTE SOLER

saber se sustenta sozinho. Em todo saber — no que este se articula


com o significante há uma bipolaridade — o sujeito só pode produzir
um dos pólos, e para tanto necessita de Outro, necessita do sujeito
suposto saber no dispositivo.
Podemos discordar do saber do passante, não estar de acordo
com ele, pode haver matizes. Em “A proposição de 1967”, Lacan
não fala do saber do passante. Em ”0 Aturdito” (1972) evoca um
saber sobre o final de análise, mas em ‘A proposição de 1967”
utiliza a palavra testemunho. No entanto um testemunho sempre
implica um saber, ainda que o saber implícito no testemunho não
seja necessariamente percebido por quem o emite: o Outro o per­
cebe. Testemunhar sobre a própria análise não significa construir
uma teoria de seu final de análise.
Na experiência podemos observar grandes diferenças entre os
passantes. Alguns procuram explicar o que se passou, seu antes e
seu depois; outros tentam ordenar melhor seu testemunho, inclu­
sive teorizá-lo. Cada passante tem a possibilidade de eleger — por­
que se elege — o que quer dizer a seus passadores, fazer ou não
teoria, dissimulá-la, melhorá-la, dissimular a experiência por trás
da teoria: existem todas as possibilidades e cada passante tem sua
própria idéia sobre o final de análise. Não há ingenuidade total;
apenas seus graus. Cada passante cria uma ficção sobre seu final de
análise e em geral não conta, como relatamos as férias de verão, mas
argumenta, procura convencer os passadores de que realmente se
trata de uma saída de final de análise, de uma saída capaz de produzir
um analista.
Como chamar esta ficção teórica sempre presente? Saber ou
verdade? Poderíamos chamá-la de saber se considerássemos que 0
passante aprendeu algo que não sabia no início e especialmente algo
que o permitiu sair. Todavia a presença dos passadores implica que
se diga algo um pouco diferente do transmitido pelo passante; quando
se trata de algo que é somente saber, por exemplo os números
transfinitos que Lacan considerava como ‘‘somente saber , podemos
transmiti-lo diretamente a qualquer um que o entenda. Quando

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

falamos do chiste, que se transmite e que Lacan


de transmissão no passe, verificamos que seu t ° moc^cío
que não é somente saber e que se manifestado^0 3lg°
pertence ao que Kant chamava de pato/ógtco. Cr",o X'oÍ'i°
há no passe algo que se deve entender — entend^ ~
simplesmente em receber um saber a|on „ 7 030 Consiste
j r & se deve reconhecer
e que de fato se transome a partir de signifieantes m
não se reduz
1967" apenas
ao af.rmar quea um saber. Lacan
necessttamos o md.ca
dos passadores, „
em XcommaS'

tenças em relaçao ao Cartel, para autent.car a pos.ção sub,et,va do


passante.

O que não é saber

A posição subjetiva não consiste no saber do passante; trata-se


de outra coisa. Lacan, ainda em “A proposição de 1967’’, disse que
isto tem algo a ver com a posição depressiva, e diferencia claramente
o que o passante articula como seu saber do que dá a entender ou
do que deixa aparecer.
Assim, temos o saber do passante e sua nova posição que,
segundo Lacan, é impossível de fingir; dela não é possível um sem­
blante. Como diagnosticar esta nova posição? Lacan diz que pode­
mos fazê-lo a partir do efeito produzido nos passadores; são eles,
se corretamente designados, aqueles que podem autenticá-lo posto
que se encontram em um momento de virada final que lhes permite
perceber algo de uma semelhança não imaginária, algo que concerne
à sua experiência e que não é somente saber, é uma prova do sujeito.
Comentamos bastante em Paris que esta é a razão pela qual, em
Mota aos italianos” (1973 b), Lacan utiliza a palavra congênere ;
reconhecer um congênere é diferente de reconhecer um saber, supõe
algo de saber mas não é o mesmo. Cabe aqui algo sobre a ingenui­
dade. há pouco disse que o passante ao testemunhar quase nunca é
'ngênuo, já teve sua ficção de final. Em “A proposição de 1967
bacan nos apresenta os casos de dois ingênuos. Um deles e o caso

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COLETTE SOLER

de alguém que recebeu as chaves do mundo na fenda do impúbere


de quem o analista não deve esperar mais do que um olhar, e que se
converte em uma voz. Não nos descreve um passante, descreve-nos
um final visto do lado do analista, desde a perspectiva do analista
que acompanha o analisante e avalia sua análise; a perspectiva do
analista construindo o caso de seu analisante e nos desvelando o
momento de passe na seqüência analítica.

Ingenuidade

Quando Lacan afirma que são dois ingênuos quer dizer que
não sabem o que fazem, que o fazem sem sabê-lo. A palavra ' inge­
nuidade” não tem o matiz de tontice mas o de autenticidade. São
sujeitos que atravessam uma experiência pela primeira vez, e por­
tanto sem saber exatamente o que está ocorrendo. Mas o passante
que se apresenta no dispositivo nem sempre é ingênuo; houve tempo
para deixar de sê-lo. Talvez por isso tenha Lacan preferido que ele
se apresentasse justo no momento de terminar sua própria experi­
ência, quando ainda é ingênuo, antes de pensar sobre o ocorrido,
justo com o impacto da experiência.
Em todo caso, quero ressaltar que tanto o que recebe as cha­
ves do mundo como o que vê seu representante representativo na
irrupção através do jornal, com o qual seu pai dissimulava o campo
de estrumeira de seu pensamento, põem em ação alguma coisa no
final sem que nada indique que eles próprios saibam do que se
trata. Põem em ação a separação em ato de um analista que se tor­
nou eqüivalente ao objeto de suas próprias fantasias. Já não se trata
de uma elucubração do que o sujeito foi para o Outro, mirão ou
excremento, mais do que cada um deles, conectado com esse objeto,
deixa ao analista atrás de si como olhar ou como merda, quer o
saiba ou não. E aí o ponto em que Lacan evoca a ingenuidade como
índice da aparição do desejo do analista.
Onde vemos aparecer este desejo? Vemos o efeito de separaçao
que opera a redução do analista a objeto a; sua presença objetai,

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

assim como a travessia, nos casos descritos, não operam no nível


do imaginário senão em ato. Nestes dois exemplos, vemos a separação
que se produz entre o sujeito e o objeto complementar, esse objeto
que obturou sua falta-a-ser. Assim podemos entender que caia do
lado do sujeito o mero desejo, desejo não cumulado. E o desejo do
analista é precisamente um desejo sem lastro da fantasia.
Concluindo sobre o saber do passante, digamos que sabe algo,
que há um saber depositado em seu testemunho. No entanto creio
que a idéia de Lacan não era a de haver teóricos, mas antes ingênuos.
Corrijo-me: na conceitualização de Lacan, o passe como momento
é um momento de ingenuidade, ou seja, não é um momento de
saber porém uma efetividade em ato, que talvez possa ser concei-
tualizada no só-depois.
Então, na sequência analítica que se inicia com a instituição
do sujeito suposto saber, podemos distinguir um momento especial,
que Lacan nomeou momento de passe e que marca a finitude do
processo, momento de ingenuidade e não de saber. Evidentemente
não coincide com o momento de saída; é apenas a entrada na fase
de saída. Há outro momento que continua até a saída e o problema
está em saber o que se trama durante este período. Lacan disse que
esse momento de passe é um momento de travessia da fantasia, que
existe uma solidariedade entre momento de passe e travessia da
fantasia, que ocorre uma metamorfose no sujeito, o qual neste
momento efetivamente se torna mero desejo; o sujeito barrado se
separa de a. Disse também que a paz não sela essa metamorfose,
mas antes a localiza na saída finalmente realizada. Podemos
visualizá-lo:

Entrada > momento de passe > saída

e um sujeito testemunha imediatamente após seu momento


Passe, ele o fará de maneira ingênua, explicará o sucedido com

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COLETTE SOLER.

um grande impacto. Mas se o faz depois, no momento da saída, já


haverá um efeito de só-depois e não será tão ingênuo, pois verá um
pouco mais-além. Lacan considera que se o sujeito testemunha dez
anos após, já terá esquecido toda comoção, mas se o faz pouco
depois, terá tido tempo de construir sua ficção, de reconstruir a
sequência tal como a verá logo após tê-la processado.
A partir do dispositivo devemos perguntar o que a Escola quer
de seus AE. Há o seguinte problema: o Cartel terá que nomear AE
todo sujeito que possa testemunhar um momento de passe ou exi­
girá condições adicionais? Suponhamos que o momento de passe
deva ser uma condição necessária mas não suficiente para nomear
um AE.
“Nota aos italianos” tem o propósito de pôr os pingos nos is
e assinalar que não basta o momento de passe para ser um analista,
que se necessita algo mais. De fato, o conjunto da Escola deve ela­
borar uma concepção coletiva do que se deseja como condição adi­
cional, pois provavelmente a ela os ingênuos não bastarão. Deverá
saber, antes de nomear um AE, o que este fará a partir de sua expe­
riência, que desejos manifestou, quais indicadores existem do uso
que o sujeito, tornado mero desejo no momento do passe, fez de
sua experiência. Existe um saber do passante, uma posição e talvez
esta seja determinante em sua nomeação. A ingenuidade é uma po­
sição que, como disse Lacan, não dura, passa rapidamente; o im­
portante é saber o que o sujeito fará depois.
Como se constitui o saber do Cartel? O Cartel está em posi­
ção de saber uma vez que deve julgar. Não devemos fechar os olhos
quanto a este saber e esperamos que não seja um obstáculo à
receptividade, impedindo-nos de entender o que os passadores
transmitem. As vezes o saber é obstáculo à transmissão, impe­
dindo a boa parte da surpresa: reconhecer a autenticidade quando
esta não esta estruturada nos termos de um saber já elaborado.
Existe uma dificuldade no trabalho do cartel do passe: cada um
de seus membros sabe algo, mas este saber não deve funcionar
como um obstáculo.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

o saber dos cartéis

Como declinar os modos de saber do Cartel? Lacan fala do


saber do analista, mas o saber do Cartel não se reduz a isso, se
definimos o saber do analista como o que condiciona o ato analítico.
Em “A psicanálise e suas relações com a realidade” (1967c), Lacan
evoca o saber do analista como algo do que não se pode falar com
os colegas. Isto constitui um paradoxo porque se tomamos o saber
como um substantivo, temos que sempre designar um conjunto de
significantes, algo que permita sua transmissão, discussão ou colo­
cação à prova. Mas quando Lacan se refere a um saber que não se
presta ao intercâmbio com o outro, refere-se a um saber no sentido
do verbo e não do substantivo. Sabe-se algo que não é um saber e
por isso Lacan utiliza esta espantosa fórmula de algo como um
saber absoluto.
Lacan desenvolve todo seu ensino como uma denúncia da idéia
de um saber absoluto, noção promovida especialmente por Hegel:
o materna do sujeito barrado significa impossibilidade do saber
absoluto. No entanto, no caso do analista, fala de um ponto de
saber absoluto, um saber que não vai em direção ao Outro, ou seja,
um saber sem bipolaridade, que destitui a suposição de transferência
e não institui um sujeito suposto saber. Corrige-se então e fala de
algo como um saber absoluto, ou melhor, um ponto zero do saber.
Não há outro saber absoluto que o ponto zero do saber, ou seja, o
ponto de onde não se inscreve símbolo algum.
Em alguma parte Jacques-Alain Miller desenvolveu a idéia de
que não existe um ponto zero da transferência, referindo-se impli­
citamente, suponho, a esse texto de Lacan sobre o ponto zero do
saber do lado do analista. Não há ponto zero da transferência para
quem fala, mas em seu ato, em sua posição como posição eficaz, o
analista se instala em um ponto zero do saber. Este ponto zero do
saber é uma maneira de traduzir o não penso do analista que
Aplica um sou . Segundo Lacan, isto se acompanha do fato de
^Ue o analista o sabe.

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COLETTE SOLER

Geralmente o sujeito não sabe que deve oscilar entre um "não


penso” e um “não sou”. Ao contrário, o analista em sua operação se
instala em um "sou” que implica um “não penso”, mas o sabe que é
uma maneira de pensá-lo; pensa bastante para chegar a sabê-lo.
Temos então que somente no ato analítico existe um ponto
zero do saber, ponto zero de silêncio que não se presta ao discurso,
mas antes o causa. Por isso Lacan conecta este ponto zero com a
enfatuação do analista. Esta repousa sobre o ponto zero do saber.
Lacan fala de enfatuação porque neste ponto não se chama nenhum
Outro para autenticar esse saber; é o único ponto que não implica
o sujeito suposto saber, nem é bipolar.
Enfatuação significa não pedir nada a ninguém. Certamente
durante o ato o analista não pede nada a ninguém; não o pode. Este
ponto zero de saber que define o ato analítico, que não fala porém
faz falar, se transborda de seu justo lugar, faz da enfatuação uma
enfermidade profissional do analista. Não é fácil lutar contra ela.
Cada vez que o analista deve eleger o que dizer ou fazer ele se
autoriza de si mesmo e pode seguir fazendo-o depois que sai do
consultório. Pensando nesta enfatuação, evoquei a modéstia do
passante não por benevolência, mas antes em razão de que este não
se enfatuou e se permite a difícil prova de se dirigir a um Outro,
concedendo-lhe a onipotência da resposta.
O saber do analista no Cartel não se confunde com o ponto
zero de saber no ato. Evidentemente existe também o saber da es­
trutura e podemos dizer que os textos de Freud e Lacan constituem
em grande parte o Outro do Cartel. Não há Outro do Outro, mas
cada um pode instituí-lo na transferência. Certamente no Cartel os
analistas julgam a partir de seu saber, com o que entenderam ou
não do ensino de Lacan. Isso faz com que se reproduza no disposi­
tivo algo que ocorre na análise. Um analista sabe por antecipação
em que consiste um processo analítico: início, evolução, término,
se este último é possível; todavia este saber sobre a estrutura não o
impede de receber cada caso como se nada soubesse, ou seja, utilizar

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

o saber sobre a estrutura não como um Outro do Outro, mas como


o que delineia as possíveis vias da experiência.
Quando Lacan assinala em A proposição de 1967" que o u
rado deve precisar os graus da experiência analítica, também se re­
fere à variedade das séries. Quando falamos de graus, definimos
uma hierarquia, a possibilidade de dizer que alguém foi mais-além.
Não se pode falar de graus sem o desenho da sequência ideal
espero que isto não se preste a mal-entendidos — no sentido das
matematicas que não tem nada a ver com o ideal; necessitamos o
desenho de uma seqüência estruturalmente programada.
Quando Lacan se refere a um final de análise, trata-se da se­
qüência ideal matematizada e ele não quer dizer que toda análise vá
até um final. Existem análises que não têm fim; mesmo no mundo
lacaniano existe por vezes o impasse final efetivo.
A diferença entre Freud e Lacan consiste em que aquele dese­
nhava a seqüência da análise tendo um impasse final, enquanto o
outro a desenhava com um passe. Se todas as análises terminassem
em impasse, sem fim, bastaria uma que chegasse ao fim para que a
seqüência ideal se tornasse verificada como possível; para tanto, a
seqüência ideal se constrói na estrutura, algo que não impede falar
de graus. Lacan não só fala de graus que implicam o mais e o menos
seqüencial, como também fala da variedade das séries, o que é outra
coisa. Sugere que a variedade não está tão dispersa, que está orde­
nada em séries.
Quando falamos de graus, supomos um ponto ideal de fecha­
mento em relação ao qual podemos graduar os finais efetivos. Falar
das séries das variedades implica a existência de diversos tipos pos­
síveis que devemos estudar.

o juízo dos cartéis

Resumindo, podemos dizer que na avaliação estrutural de um


final devemos considerar: primeiro, o saber adquirido que Lacan
4uahfica em O Aturdito” como um saber do impossível. É neces­

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COLETTE SOLER

sário ver, em cada caso, como se apresenta o saber do impossível na


experiência. Todavia deve-se avaliar, no eixo epistêmico, o vislumbre
— diferenciemos saber e vislumbre — palavra utilizada por Lacan
em “A proposição de 1967” e que se refere ao que o sujeito percebe-
este tem a ver mais com o campo da visão que com o do saber como
substantivo. Lacan utilizou bastante este termo em relação ao passe
quando falou deste como um relâmpago: não se refere ao saber mas
à luz que aclara uma paisagem; um saber propriamente dito mas
também um vislumbre do que não é saber, do que poderíamos cha­
mar de adversidades do gozo do sujeito em sua vida e em sua expe­
riência. Quando percebemos, é como um matiz em que a tragédia
cai; é mais cômico que trágico.
Segundo, no outro eixo que não é epistêmico, porém ético
a ética define as relações do sujeito com o real e particularmente
com o gozo — o Cartel deve avaliar, perceber, também ele, através
do testemunho dos passadores, a posição do sujeito, o tipo de su­
jeito produzido no processo analítico. Talvez neste nível não seja o
saber do Cartel o que opera, não se trata do saber de cada analista
trabalhando no Cartel, mas do que Lacan chama, a propósito do
próprio analista, de “o juízo mais íntimo”; ou seja, do lado do Cartel,
ainda que este esteja em posição de saber da experiência, da estru­
tura, existe o juízo mais íntimo que opera e que não se pode eliminar,
e que não é somente saber, porém juízo: algo absoluto. Por isso o
passante necessita de ânimo para entrar no dispositivo.

II. O momento do passe

Lacan afirma a existência de um momento de passe e, mais


ainda, tenta construir sua lógica. O papel do Cartel do passe con­
siste, entre outros, em encontrar nos ditos do passante alguma prova,
indício, que o verifique, e talvez fosse melhor introduzir uma res
trição dizendo: que verifique a idéia que cada um de seus membr
tem sobre o processo. Posso testemunhar discussões sobre^
ponto em Cartéis nos quais se afirmava não se ter encontra

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

momento do uu passe. A rprimeira vez que ocorre se \pode pensar que


unla analise inacabada, mas logo, quando isto acontece
se trata u
„,rivamente, surgem interrogações: saberao os analistas
repc j í
hecê-lo ou se tratará de algo que raras vezes ocorre? ‘Final de
faco ou ficção’ é o título de um colóquio futuro dos AEs na

França.

Umbral de saída

É necessário que comprovemos se a construção lógica feita


por Lacan pode se confirmar na experiência. Ele insistiu muito na
existência de um umbral de entrada e nossos trabalhos permitiram
situar uma clínica lacaniana deste umbral com a colocação em jogo
do sujeito suposto saber na entrada. Certamente o problema agora
consiste em estabelecer o umbral de saída, algo que é menos fácil
de entender, e construir a diferença entre a própria psicanálise e
todas as psicoterapias que utilizam a palavra. Lacan chama esse
umbral de saída de o momento do passe, e este não necessariamente
coincide com o momento de interrupção definitiva da análise, já o
disse. Parece que o umbral de saída abre para um vestíbulo, como se
entre a porta do consultório e a porta de saída existisse um
passadouro.
Permitam que eu desenvolva as metáforas de Lacan a respeito
de portas e janelas. Quando em “A proposição de 1967” evoca o
passo de analisante a analista (1967b, p. 25), afirma que há uma
porta que tem de se abrir para poder sair; imediatamente acrescenta:
na virada em que o sujeito vê soçobrar a segurança que lhe dava
Sua fantasia e onde se constitui para cada um sua janela sobre o
teal . A porta de saída se abre quando o que se via através da janela
é modificado.
p
ç stas metáforas tópicas e não topológicas — com um dentro
a el °ra me fazem lucubrar sobre portas e janelas; com relação
e poderia escrever textos literários. Porta e janela são enquadres
HUe separam d • j 7
r uois domínios com uma diferença: a porta, em sua

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COLETTE SOLER

definição utilitária, serve para passar enquanto a janela é feita para


olhar. É certo que também deixa passar algo, a luz, mas em geral
não está feita para se passar por ela. Ademais, pode-se colocar alg0
que vele o que está do outro lado; por exemplo, uma cortina.
Certamente vocês viram algumas construções modernas com
janelas falsas e paisagens pintadas sobre elas; é o uso da janela não
como quadro vazio, mas como quadro pleno, e efetivamente podemos
dizer que a fantasia é uma janela falsa com algo desenhado sobre ela.
A fantasia dá segurança ao sujeito. Devemos entender como
se manifesta na clínica esta segurança e como se distingue da certeza
final. Temos nos dois pólos da análise: antes da travessia, uma se­
gurança baseada na fantasia (cf. ‘A proposição de 1967”) e, no
final, um sujeito certo de saber, e não de qualquer saber, mas de um
saber sobre o impossível (cf. “O Aturdito”). Claro está que a segu­
rança fornecida pela fantasia não é sinônimo de tranqüilidade no
sentido da confiança. É simplesmente a tranqüilidade de encontrar
sempre o mesmo; o eterno reencontro com o que faz sofrer, com a
dor, com o que não se pode suportar.

O que sempre vê a mesma coisa

Se nos perguntarmos como diagnosticar os indícios da fantasia


fundamental, encontraremos que as fantasias do paciente se dis­
tanciam muito de indicar a via que permitiria percebê-lo. Existe
toda uma gradação que vai desde o sonhar acordado — as belas
histórias que o sujeito se conta e que, como se pode comprovar, a
análise elimina — até as que condicionam o gozo masturbatório
ou sexual, como em “Bate-se numa criança” (Freud, 1919). que
asseguram ao sujeito um orgasmo sem necessidade de passar por
uma relação com o outro.
Geralmente podemos ver aparecer a incidência da fantasia no
sujeito neurótico em um nível que parece, à primeira vista, ter me
nos a ver com a fantasia, ou seja, quando este não duvida. Toda vez
que o neurótico deixa de duvidar, podemos afirmar que a fantasia ai

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

está em jogo, pois o neurótico em si próprio sempre duvida. Quando


deixa de fazê-lo, quando tem uma convicção inamovível — que não
chamaremos de certeza — podemos assegurar que a fantasia está aí
latente. Em geral, sua convicção não costuma ser em relação a si
próprio — quando se trata de seu próprio desejo, de seu gozo, do
que quer ou fará, ignoramos se sabe algo. Sua convicção costuma
ser em relação ao Outro ou em relação aos outros que encarnam
esse Outro, e costuma ser pouco favorável, a antecipação de um
mau trato, de algo negativo que se poderia resumir como uma
intenção de gozo do Outro.
A fantasia então faz com que o sujeito veja sempre o mesmo
quaisquer que sejam os acontecimentos de sua vida; inclusive po­
demos desenhá-lo. Como o desenho é imaginário, não se sai da
fantasia — inclusive quando Lacan constrói a topologia da banda
de Moebius, afirma que não se sai da fantasia. Desenha a janela ante a
qual está o sujeito, a janela da fantasia, aquela que o faz ver sempre a
mesma coisa, vedando-lhe o que figuramos do outro lado, o real.
Os exemplo que Lacan dá em “A proposição de 1967” são
impactantes e incluem a estrutura da janela; no primeiro, o sujeito
não olha através de uma janela mas do olho da fechadura; furo de
fechadura ou janela dá no mesmo. No segundo, o sujeito olha seu
pai através de um jornal aberto; um jornal aberto tem a mesma
forma quadricular de uma janela e podemos pensar que seja algo
propício para apresentar o texto do Outro, do discurso comum
assim como do desejo do Outro barrado, o pai, dissimulado pelo
jornal. Quando lhes propunha diferenciar o objeto que o sujeito é
para o Outro, a fantasia como desejo do Outro, referia-me ao
escrito sobre a cortina da fantasia; por isso, para localizar o objeto
que se faz de verdadeiro “parceiro”, deve-se passar para o outro
lado, abrir a janela.

o objeto fictício

Na tela temos o que chamo de objeto fictício da fantasia e por trás


dela, o objeto impensável, não fictício, esse que designamos como real.

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COLETTE SOLER

Nesta figura que nos propõe Lacan, a travessia da fantasia se


realiza no momento em que a janela se abre e o sujeito vê algo
distinto de tudo o que havia lucubrado em relação ao desejo do
Outro e a respeito de si próprio, isso que havia antecipado do lado
das respostas de seu “parceiro”: aí então aparece o gozo que causava
toda a dimensão fantasística. Essa redução do imaginário mostra
que o responsável não era o Outro, mas algo próprio do sujeito,
isso que escrevemos objeto a, seu próprio mais-gozar, o qual não
quer dizer que necessariamente o sujeito seja capaz de dar uma
fórmula desse mais-gozar.
Quando o sujeito consegue perceber a dimensão fantasística
disso que desde sua infância lhe pareceu tão evidente, que ordenava
seu mundo e suas relações, podemos dizer que há um efeito de
travessia. Significa dizer que a segurança se dissolve ou ao menos
vacila, não sem efeitos. Entre outros, que a porta de saída se abre.
A possibilidade de formulação dos passantes tem seus graus e
às vezes a travessia da fantasia simplesmente se manifesta através
de uma queda da demanda ao Outro. Quando o sujeito se dá conta
da dimensão fantasística de sua segurança prévia, cai evidentemente a
possibilidade de manter o mesmo cenário com o outro, e o que foi sua
verdade muda de cara. Esta famosa verdade tão valorizada e inflada
para alguns, querida com paixão, se desinfla, reduzindo-se a pouco:
uma convicção fantasística vetor de um gozo desapercebido.
No princípio de seu ensino, Lacan enfatiza o lugar da verdade na
psicanálise até construir uma separação entre ciência e psicanálise: de
um lado, está a ciência que aparentemente nada quer saber da verdade e,
de outro, a psicanálise como disciplina desta. Era esse o momento de
exaltação da verdade que J-A. Miller comentou de maneira preciosa e
que em Lacan se conclui em uma virada de desvalorização da mesma,
até formular um jogo de palavras difícil de ser traduzido: a travessia da
fantasia e uma maneira (façon) de apagar (effaccr) a verdade, uma vez
que verdade e fantasia participam do imaginário e não podem se ho­
mologar à verdade conectada ao real senão através de sua lógica,
único acesso a um universal mais-além das particularidades.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Reconhecer o passe?

Então a travessia da fantasia produz um efeito de desprendi­


mento, desprendimento de suas paixões por parte do passante.
E sucede por vezes que quando o passante descreve esse autêntico
efeito de passe, os membros do Cartel reconhecem apenas um efeito
terapêutico. E é verdade que o passe tem consequências na vida que
se parecem com um efeito terapêutico especial, efeito de despren­
dimento, mesmo de indiferença. Gerar um pouco de indiferença
nas efervescências do neurótico é um feito que torna a vida mais
fácil. Por isso Lacan, que nunca enfatizou muito a harmonia, utiliza
com relação ao final a palavra “paz”. A deflação fantasística produz
frieza, deixa aparecer algo de uma frieza lógica, se podemos assim
dizê-lo, e isso não é algo fácil de obter.
Há pouco disse algo que também poderia produzir mal­
entendidos. Disse que o sujeito que abre a porta, após ter aberto a
janela, separa-se do gozo que esteve implicado na construção de
sua história, da paixão por si próprio, do narcisismo fálico se o
querem, existente na dita construção. Na experiência, é fácil perce­
ber na forma como cada um gosta de falar de si próprio — evocar
sua infância, seu país de origem, sua língua materna — que nela há
um gozo implícito, uma patente satisfação na construção desta his­
tória; quando o sujeito, antes de se separar do analista, separa-se,
para seu proveito, dessa satisfação, poderia se perguntar se o que
chamei de sujeito mero desejo ou puro desejo seria uma assunção
da falta-a-ser. Desde Lacan, a resposta é: não.
Lacan fala da assunção da castração, jamais da assunção da
falta-a-ser. Ao contrário, quando o sujeito abre a janela se produz uma
destituição subjetiva e a destituição subjetiva é um efeito de ser, não de
falta-a-ser. O sujeito não destituído é o sujeito sujeitado à cadeia, su­
jeito dividido pelo significante, que corre sob a cadeia, impossível de
apreender, como um espectro. É aquele que padece da falta-a-ser e que
se COr>ecta ao Outro na forma da demanda e do desejo. Aqui encontra-
mos o que se poderia chamar de combustível do processo analítico.

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COLETTE SOLER

No momento do passe, como suponho que o entenda Lacan,


o sujeito tem um vislumbre do gozo, que não deixava de estar im.
plicado em toda esta libido de falta, e ali reconhece seu próprio ser.
Isso ocorre, na concepção de Lacan, e às vezes na experiência, na
temporalidade de um instante: relâmpago, disse Lacan, algo como
uma iluminação. Portanto não se deve crer que a fantasia, a estabi­
lidade fantasística do sujeito, desaparecerá para sempre. Trata-se
de uma estrutura temporal que Lacan realiza no instante: instante
de fantasia, momento de travessia.
Retomando a imagem, direi que abrir a janela tem o efeito de
tornar impossível a continuação da análise. Obviamente, antes o
que se constata com mais freqüência é a impossibilidade de conse­
guir sair. No processo de uma análise ocorre geralmente um mo­
mento em que o sujeito quer sair mas a coerção de transferência o
impede, e mesmo quando pensa que já leva muitos anos, que é cus­
toso, que perde muito tempo, que ainda falta muito, que é desa­
gradável ou qualquer outra razão, este não encontra uma que o permita
sair. Creio que a travessia da fantasia, ao contrário, produz um su­
jeito que antes não pode continuar, e às vezes até o lamenta.

A queda da transferência

Aqui encontramos novamente o problema relacionado ao que


permite a saída. A coerção da transferência é reconhecida inclusive
por aqueles que não trabalham com a psicanálise. Em alguns países,
especialmente nos Estados Unidos, quando um paciente recorre
ante um tribunal contra seu terapeuta de tipo analítico, queixa-se
de que este durante anos o fez fazer coisas que não queria e, na
maioria das vezes, parece ser convincente. Ou seja, no senso co­
mum existe a percepção da coerção de transferência, inclusive em
países em que se cre na liberdade individual e não se crê na psicanálise.
Então quais seriam as condições para que esta coerção desapareça?
Penso que existe um materna da saída final que consiste na
ruptura da sutura fantasística: o objeto, por ser percebido, deixa de

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

funcionar como causa de desejo. O analista deixa de ser causa de


desejo do analisante quando este deixa atrás de si sua história e sua
causa fantasística. Evidentemente devemos distinguir esta conjun­
tura de fim das rupturas prematuras do laço analítico, que não to­
cam à consistência fantasística, porém retiram o analista do lugar
da causa fantasística.
Manuel Kizer evocou em sua fala, que muito me agradou, o
caso Dora, no qual existe também uma saída, ainda que tenha havido
pouca analise. Dora entrou, mas não teve tempo para fazer muito,
já que Freud realizou uma manobra que o destituiu rapidamente de
sua posição como causa de desejo. Qual foi o erro de Freud? Com
toda segurança, algo relacionado a sua forma de intervir e interpretar.
Tentou dar a Dora as fórmulas de seu desejo de mulher, seu amor
pelo Sr. K etc. Como J-A. Miller ressalta, o desejo deixou de ser
suposto. Freud, em seu esforço em explicitar, deixou aparecer seu
próprio desejo não como incógnita, x, mas como desejo de saber,
desejo teórico. Dora, como boa histérica e considerando que neste
momento a psicanálise recém-começava e a credibilidade de Freud
era ainda vacilante, deixa a análise. Um homem que manifesta inte­
resse somente pelo saber não poderia lhe cair bem. Se recorremos
ao discurso histérico, vemos que Freud, sem sabê-lo, tentou preen­
cher o hiato entre o saber articulado e o inefável do ser do sujeito,
hiato ao qual o sujeito histérico concede muito valor.
Podemos nos perguntar, com o próprio Freud, se teria sido
melhor manifestar um maior interesse por Dora. Lacan disse que
afortunadamente não o fez; ao contrário, pensa que Freud tinha
demasiado interesse nela. Evoca o caso Dora com uma frase muito
bonita: “Uma princesa de Clèves, presa de uma mordaça infernal .
De seu ponto de vista, Freud a amava demasiado e se houve um erro
não foi por indiferença, antes o contrário. Penso que tinha razão.
não se tratava de que mostrasse mais interesse por ela, mas de que
0 interesse pelo tratamento devesse ser demonstrado de outra ma­
neira; sua interpretação expunha uma suposta verdade do inconsci-
ente de Dora que constitui um erro porque sem sombra de duvida

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COLETTE SOLER

mata o desejo histérico. Se Freud quisesse manter sua paciente


e não sei se teria sido possível, porém não esqueço que estam 1

realizando uma análise fictícia do caso — teria que fornecer


interpretação mais equívoca, menos explícita, e deixar algo na sombr
onde Dora teria podido alojar-se fantasisticamente o tempo neces
sário. O que tornou possível a saída de Dora foi então a saída de
Freud do lugar da causa.

III. As conclusões

Falarei agora das conclusões, precisando o modo como a fan­


tasia nelas se encontra implicada. Se condensamos o que cai de uma
análise, temos, de um lado, as colclusões no nível epistêmico, que
podem ser muito diferentes de uma análise para outra; de outro, no
nível das mudanças subjetivas do analisante, o modo específico,
eventualmente novo, de se relacionar com o gozo.

O texto da experiência

O que se faz em uma análise? O analisante vem para “dizer-se”,


afirma Lacan. Para consegui-lo, fala de seu passado, especialmente
dos começos de sua vida, de sua infância. Faia também do que
lhe ocorre agora, e com cautela do que lhe passa no consultório.
O analisante, então, procede à realização do que Lacan chama de
rehistorização, assim como o questionamento de seus afetos de
transferência. Simplesmente fala do que se passou e do que se passa;
o problema consiste em que não sabe nada sobre isso que diz, ou
seja, que o inconsciente se interpõe entre o que pode articular e as
respostas que busca.
Aí radica a importância da associação livre, modalidade de pa
lavra que suspende a afirmação. A regra de associar consiste em
dizer todos os pensamentos, quaisquer que sejam, tolos, injuriosos,
não importa, pois se considera que dentro do contexto da ana is
não terão as consequências que poderiam ter no discurso comu
Pois bem, se a análise passa por um processo que provisoriam

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

suspende a afirmação, é somente para chegar à outra resposta que


leve em conta o inconsciente. Podemos dizer então que o analisante
não faz mais que estabelecer o texto de sua experiência.
O que resta da experiência do passado se ordena entre encon­
tros e respostas do sujeito. Reconhecemos cenas, imagens das pou­
cas lembranças importantes; isto é, os chamados significantes dos
encontros ocorridos no passado, que permitem tanto ao analisante
como ao analista ver isolarem-se as figuras do Outro, e não só as
figuras do Outro, mas os significantes que o identificam e tam­
bém, por outro lado, as primeiras fixações de gozo. Também as
respostas do sujeito podem ser isoladas: queixas — referidas essen­
cialmente a dois casos: o que lhe falta e o que não suporta — as
perplexidades, as expectativas, as angústias fundamentais. No en­
tanto tudo isso não conforma um texto, constitui nada mais que
uma dispersão de significantes e de marcas. Como bem disse Lacan,
o inconsciente como conjunto de significantes, de semblantes —
para incluir as imagens — não conclui: é o evasivo. Por isso, para
colocá-lo no nível de uma afirmação, há necessidade de algo mais.
Construir o texto não só consiste em declinar as recordações como
também construir a frase que afirma o sucedido com seu ponto de
basta. Uma recordação em si própria não diz o que se passou, uma
cena tampouco.

Consistência

Qual é o elemento adicional que se necessita para concluir?


Podemos responder que se trata da fantasia ou antes do gozo. Dito
de outra maneira, cada vez que se assume uma afirmação (S(), cada
vcz que se isola um termo que determina um “eu sou” do sujeito, a
consistência lógica do objeto está operando. Lacan o diz de diversas
formas e em diferentes lugares. No final do texto "De um silabário
a posteriori (1966), por exemplo, afirma na última frase: Não se
P°de fundamentar uma identificação a não ser sob a condição de
1ue algo complete a medida para dirimi-la”. Isto se pode dizer de

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COLETTE SOLER

toda identificação e em qualquer momento da análise. Assim


exemplo, de Blanca — a paciente mencionada nas Jornadas que
cederam a este Seminário — que não é mulher mas sim filha de^'
pai. Dela, só se pode dizer que está inscrita sob o signifícante^a
virgem, que é um dos nomes do falo; trata-se de uma identific
que se deve interrogar para fazer aparecer a consistência lógica^0
permite fixá-la. 8 ^Ue
A incidência do gozo na fixação de cada conclusão está escrita
no Grafo do desejo: no lado esquerdo está o lugar onde cada cadeia
encerra sua significação. A cadeia superior, que inscreve à direita a
demanda silenciosa de ser na atividade pulsional fazer-se ver
fazer-se chupar etc.— inscreve à esquerda o significante de uma falta
no Outro, que dá à dita demanda sua única significação de gozo,
enquanto a flecha que desce do nível superior até a identificação ideal
do sujeito inscreve a incidência da significação de gozo sobre a própria
fantasia (^><>a), as mensagens s(A), e as identificações fundamen­
tais, ideais, do sujeito I(A). Ou seja, a flecha da esquerda inscreve a
determinação de cada afirmação do sujeito, a incidência da fantasia e
do gozo em cada conclusão. Portanto este Grafo já nos permite ler o
nó entre o nível epistêmico e o nível patético do gozo no significante.
Obvíamente deve-se definir a consistência ou bem lógica ou
bem corporal. Lacan introduz a expressão de consistência lógica do
objeto a, se não me engano, no Seminário, livro 14: a lógica da fantasia e
em “Nota aos italianos” dá uma indicação de como articulá-la com
a consistência pulsional do objeto a.
Na lógica um sistema simbólico é consistente quando se pode
demonstrar a verdade ou falsidade de cada proposição deduzida no
dito sistema. Dizê-lo assim implica a distinção de Frege entre o
enunciado da proposição e sua afirmação. Lacan se refere
distinção no Seminárto, livro 1 j: o avesso da pstcanalise (1969 70), q ~ *
do diz, contra Wittgenstein, que a verdade é exterior à propos ç
Espero que se note a estreita relação destas referencias ogicas c

2. Éric Laurent evocou este ponto no Colóquio Si.... Entonces

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

a psicanálise. Sem distinguir a proposição e sua afirmação, como


entender que a negação seja, segundo Freud e Lacan, a única forma
je afirmação do inconsciente na palavra do paciente, ainda que o
roblema da negação necessite de outra referência a mais? À definição
Ja consistência devemos acrescentar o que sabemos agora: que a
consistência não se pode assegurar sem uma incompletude irre­
dutível, esquecida desde Gõdel. Este demonstrou que toda con­
sistência supõe proposições especiais que não podem ser demonstradas
no sistema, nem decididas se verdadeiras ou falsas, e que recebem o
nome de postulados. Isto implica que quando um crê deduzir ne­
cessariamente uma conclusão, engana-se a respeito da necessidade
universal de sua conclusão.
Na psicanálise a consistência lógica do objeto a como um im­
possível de dizer5 (hiato da estrutura) pode-se conectar a uma con­
sistência corporal dc gozo, que funda toda certeza do sujeito na
particularidade. Ela permite escapar ao ceticismo, sair da dúvida ou
incerteza neurótica que suspende toda afirmação e que a associação
livre favorece durante um tempo, para finalmente permitir sua re­
dução. Então podemos dizer que construir o texto da experiência é
construir um texto consistente em que se consegue, com a ajuda da
interpretação, um “sim, é assim” ou “não o é”.
Quando Lacan propõe a fantasia como um axioma, indica que
este funciona como uma proposição que se afirma a si própria e
portanto permite ao sujeito opinar em cada caso “segundo seu desejo”.
Por isso comecei com fantasia e identificação, conceitos que de
certa maneira se opõem, ainda que tomando a fantasia não só como
imaginária, mas em seu nível mais real que inclui o gozo; isso permite
a escolha em jogo em cada eleição, em cada afirmação do sujeito.
Na base do texto da experiência que cada sujeito constrói em
análise existe um axioma fundamental. Através dele a fantasia, ape­
sar de seus elementos imaginários, funciona como real no simbólico,
como constante, sempre presente, que insiste silenciosamente e

P°nto desenvolvido por J-A. Miller.

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COLETTE SOLER

funda em última instância tudo o que diz o analisante. A regra da


associação livre impõe ao analisante subtrair toda intenção de seu
discurso; todavia quando mais quer obedecer à regra, mais repara
que não pode dizer qualquer coisa, e que sempre retorna ao mesmo,
indicação suficiente da presença de outra intencionalidade, se posso
dizê-lo, que regula o discurso. O trabalho da análise consiste preci­
samente em induzir o axioma único, irredutivelmente particular,
do qual todo o discurso e toda a conduta do paciente também são
deduzidos.
A travessia da fantasia consiste em ter um vislumbre deste
axioma. Consequentemente aparece também o caráter imaginário,
fictício da fantasia: o neurótico constrói sua fantasia fazendo, ao
nível do imaginário, consistir o Outro, especialmente figurando-se
vítima desse Outro, quando na realidade trata-se apenas de sua fi­
xação de gozo —ftxção disse Lacan. Se na experiência analítica se
fala tanto de masoquismo, isto não ocorre devido a abundância
deste fenômeno, mas porque a fantasia neurótica inclui a castração
e a imaginariza de seu lado, permitindo-se assim cultivar a fantasia
de um Outro castrador, de um Outro que quer sua castração.
O amor de transferência não só faz existir o Outro nele situando o
objeto, como situando a castração do lado do sujeito. A isso Lacan
chama de paixão pela castração do neurótico, que evoca com a pai­
xão de Cristo, célebre na cultura ocidental, por ser a vítima de um :
pai que abandona seu filho ao suplício e à morte. Lamentavelmente,
é certo que a fantasia da consistência imaginária do Outro se inter­
põe entre o sujeito neurótico e os outros que existem na realidade,
e que, na tela de sua fantasia, o neurótico vê um Outro que quer
causar dano; vemo-lo nas instituições psicanalíticas e nos leva a
concluir que a neurose não se cura totalmente.

A queda do Outro
l
A travessia da fantasia como vislumbre do gozo do sujeito,
quando ocorre, deveria deixar de fazer consistir o Outro e certa
I

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

mente raz^ cair a ímaginarizaçao


o de_ um Outro castrador.
_ Isso se
econhece na experiencia como detlaçao da convicção neurótica. Em
“A proposição de 1967”- Lacan diz: na virada do passe, acontece de
"a tomada (prise') do desejo não é nada senão des-ser”, mas
acrescenta em seu “Discurso à EFP” que, na virada do passe, o
golpe do des-ser não cai sobre o analisante mas sobre o analista.
Seus alunos de então não o entenderam de imediato; escutaram
“des-ser" e como estavam acostumados a “falta a ser” e ao senti­
mento de falta do neurótico, pensaram que afinal se descobria, mais
do que nunca, a falta a ser do neurótico, evocada agora com uma
palavra diferente. Lacan foi obrigado a corrigi-los, a pôr os pingos
nos is, precisando que “des-ser” tem a ver com o Outro, que aqui
quer dizer o analista.
Algo muito lógico: na transferência entre o sujeito e seu “par­
ceiro" analista, a falta a ser certamente está do lado de quem fala,
assim como a pergunta sobre o ser. Do lado do Outro, instituído
pela transferência, está o agalma do sujeito suposto saber, ou seja,
o modo imaginário e simbólico do objeto. O “parceiro” do analisante
é um Outro a quem se supõe conter algo que Lacan ilustra, a partir de
0 Banquete, com o agalma de Sócrates. O que supostamente contém o
analista? No nível epistêmico ele tem a chave da resposta ao “Quem sou?”
e também o suposto complemento da falta do sujeito analisante,
motivo pelo qual este não cessa de lhe pedir que lhe dê o que tem e que
a ele falta. Portanto a transferência faz ser a esse “parceiro”.
Lacan diz que, no giro final, quando se percebe que o desejo
não é mais que “des-ser”, o único que pode des-ser é aquele que
antes estava. Não pode des-ser sem antes haver sido. Temos que
acrescentar que a “tomada do desejo” estava do mesmo lado, do
lado do outro, do agalma do sujeito suposto saber. Isto Lacan de­
senvolveu antes de “A proposição de 1967”- n° Seminário, livro 8: a
' “nsferência (1960-1). Aí mostra que Sócrates, sujeito suposto saber,
0 sujeito a quem se supõe o desejo, como o analista que com sua
^anobra se distingue do Outro completo, feito ser pela transfe-
Cla> e se manifesta somente com o x do desejo.

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COLETTE SOLER

A transferência transforma o “parceiro” do desejo em agalma


do sujeito suposto saber. Sua operação consiste em fazer ser o "par­
ceiro” do desejo e o giro do passe, em produzir a aparição de um
“des-ser” no Outro constituído na dita transferência.

Construção e travessia

O problema está em saber se, em cada caso, a travessia da


fantasia é um fato ou uma ficção. Constatei, de forma coletiva, que
existem muitos casos de análise que terminam com um reforço da
fantasia. Ilustrei este fato em meu texto intitulado “Um por um”4.
Podemos nos perguntar se, como foi dito muitas vezes, cons­
truir a fantasia e atravessá-la são fatos eqüivalentes. Isto foi discu­
tido e tudo depende da definição que se utilize. A construção da
fantasia na análise é coextensiva ao trabalho de transferência.
A construção do texto é um processo durante o qual a fantasia está
sempre em jogo; quanto mais se precisa o texto e as conclusões do
sujeito sobre sua vida, sobre o Outro e sobre si próprio, mais legível,
dedutível se torna a fantasia. A pergunta é se uma fantasia legível é
uma fantasia atravessada.
Penso que podemos falar de fantasia reforçada mais que atra­
vessada quando em sua construção analítica o sujeito não reconhece
o que Lacan chamou de aposta. Por exemplo, um homem que cons­
truiu em sua análise o texto de uma vida, na qual foi vítima de um
Outro que não cessa de causar-lhe danos — a mãe, o pai, o irmão,
as mulheres e finalmente seus vários analistas — e que termina
pensando-se vítima da análise. Digo que é um texto porque este
sujeito em sua infância foi muito feliz, a idéia de ser uma vítima
não era uma idéia sempre presente. A relação transferencial produ­
ziu uma intensificação de sua posição passional e da satisfação nela
implicada. Este sujeito continua gozando de sua verdade, mostrando-a,
mas sem sabê-lo. Oferece sua posição de vítima ignorando o que

4. N. do E. Cf. a tradução deste texto nas páginas 3 31-345 do presente volume.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

resulta óbvio para quem o escuta, ignorando que brilha como o que
Se deixa ver.
Quer fazer saber ao mundo que há algo que não vai bem no
Outro: é o denunciante dos erros. A fantasia deste sujeito, analista
há muitos anos, se vê à primeira vista. Poderia sem dúvida retomar
a análise e mudar, mas no momento dá testemunho de uma análise
que não conduziu a travessia alguma e que reforçou a convicção
fantasística sem lhe deixar suspeitar o objeto em jogo em sua pró­
pria manobra para fazer-se ser a si próprio.
Outro exemplo é o de uma mulher que após estabelecer o tex­
to de sua experiência se encontra no final com o mesmo que havia
na entrada e que resumiu em duas fórmulas que desdobram o Outro.
A primeira é: "Ela me odeia’. Com esta fórmula o sujeito concretiza
a posição de sua mãe a seu respeito; é uma proposição que não
identifica o sujeito mas sim o Outro materno. A outra fórmula:
“Ele me esquece" está do lado do homem. Na vida deste sujeito se
pode observar o contínuo acting-out da fantasia, ou seja, passa ao ato
em seus laços com os homens como “parceiros” que terminam esque­
cendo-a, e em seus laços com as outras mulheres que terminam
odiando-a — certamente consegue se fazer odiar por elas e de acordo
com seu próprio relato é bastante irritante. Neste caso, percebe­
mos bastante nitidamente o papel de tela da fantasia, já que ela não
pode encontrar homens que não a esqueçam ou mulheres que não a
odeiem. É claro que isto não é totalmente exato, existe um outro
eixo, que não desenvolverei por não ser central e no qual existe um
laço com uma figura de mulher.
Este sujeito com suas duas fórmulas sobre o outro considera
que terminou. Se permanecer neste momento, restara com a forte
convicção de ter um destino. Destino que tem a cara de um outro
que a odeia ou que a esquece. Não tem a menor ideia de sua impli­
cação na afirmação destas fórmulas. Poderíamos escrevê-lo no
esquematismo de Frege ou dizer que confunde as proposições
Aduzidas com o postulado, e que não reconhece que elege suas
eonclusões.

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COLETTE SOLER

Sua posição final é aceitar um destino infeliz. É certamente


uma solução que modifica algo. Em vez de um sujeito que sofria, se
queixava, protestava, se debatia, esperava encontrar outra coisa, te­
mos um sujeito que diz: “E meu destino e não se pode fazer outra
coisa senão aceitá-lo”. Talvez, na realidade, sofra mais do que mani­
festa; às vezes o sujeito se queixa mais do que sofre e em outras,
sofre muito e o dissimula, subtraindo uma parte de gozo. Em todo
caso, o nome da conclusão deste sujeito é “destino”, paciência.
Primeiro passo da sabedoria, mas não da travessia da fantasia.
Há algum tempo escrevi um texto intitulado “Três finais”5,
sem referência a esta paciente, ainda que a idéia do texto se encaixe
com seu esquema. Evocava ali um final do tipo Antígona; tomei a
idéia do texto de Lacan "O Aturdito” em que ele afirma que no
final de uma análise o sujeito poderá fazer coisas diversas com o
aprendido durante seu transcurso e, entre outras, tem a possibili­
dade, caso se trate de um sujeito sensível à beleza, de instalar-se
entre duas mortes. Esta é uma alusão precisa a Antígona, um sujeito
identificado a seu destino. Talvez este seja um modo de identificação
com o sintoma, mas seguramente não se trata de uma travessia da
fantasia, se assim chamamos o processo no qual o sujeito reconhece
sua própria conclusão, reconhece o que funda suas próprias afir­
mações, o processo que faz aparecer a ficção em suas duas versões
de escrita, ou seja, a ficção como elucubração própria do sujeito,
determinada por ele e não pelo Outro, e a fixação de gozo.
Portanto é necessário diferenciar não só a construção da fan­
tasia de sua travessia, como também esta diferenciação de um proble­
ma de precisão nas definições. A construção da fantasia nos
exemplos anteriores não faz desconsistir o Outro, não o faz des-ser.
Ao contrário, a travessia permite observar que o gozo não está
no Outro; o gozo está conectado ao sujeito. Dizer que “o Outro
não existe quer dizer que o Outro não goza, e isso supõe a
travessia da fantasia.

5. N. do E. Cf. a tradução deste texto nas páginas 347-3 5 3 do presente volume.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

IV A identificação ao sintoma

A identificação ao sintoma c uma expressão utilizada por Lacan


no final de seu ensino. Não diz que temos que nos identificar com
0 sintoma, não dá um imperativo, mas algo mais matizado: no final
de uma análise, o melhor que se pode fazer é identificar-se com o
sintoma. “O melhor que se pode fazer” não é um imperativo, mas
algo que matiza a expressão “identificação com o sintoma”.
A expressão não se refere ao transcurso da análise, mas a um
resultado, e nos coloca ante a tarefa de entendê-la e de averiguar a
relação com a travessia da fantasia e as implicações no nível de algo
muito importante para cada analisante: o amor, ou melhor, posto
que essa palavra produz mal-entendidos, as relações entre homem e
mulher.

Uma identificação outra

A expressão “identificação ao sintoma” inclui um paradoxo


no qual Lacan faz alusão, talvez um tanto ironicamente, à expressão,
célebre no movimento psicanalítico, de “identificação ao analista”,
promovida pela IPA como final de análise. Também há algo de hu­
mor, talvez involuntário, em relação ao que se espera de uma análi­
se, uma vez que esta é procurada com a esperança de obter um
alívio do sintoma. Prometer sair da análise a partir de uma identifi­
cação com o dito sintoma poderia parecer em alguns casos uma
provocação. A expressão torna-se paradoxal e surpreendeu porque a
identificação em seu sentido habitual implica a alienação ao Outro,
já que um sujeito identificado está, saiba-o ou não, sob a influência
do Outro.
Evidentemente o que permite que o ser falante seja educável,
dócil ao laço social, é sua possibilidade de identificação, sua capa-
C1dade para aceitar as ordens do significante. Portanto a identificação
benante é também um princípio de coletivização. Freud o desen-
Volve em Psicologia de grupo e análise do ego” (1921) ao descrever

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COLETTE SOLER

a suscetibilidade do ser falante a identificar-se com a condição d0


grupo. O próprio Winnicott, com sua noção de falso sdf nomeia a
parte identificada do sujeito, diferenciando-a do verdadeiro self
seu núcleo inalcançável, não identificado.
Falar de identificação com o sintoma constitui um paradoxo
uma vez que o sintoma, em sua definição última, é um princípio de
separação do Outro. O sintoma é princípio não de alienação e con­
formidade, mas de diferenciação e singularidade e mesmo de dissi­
dência — Lacan fala da dissidência da pulsão — posto que a parte
sintomática de um sujeito é precisamente aquela que não se identi­
fica com o Outro.
Nos países que formavam a União Soviética havia uma confu­
são entre sintoma e dissidência política. Para aqueles que defendem
os direitos humanos é um escândalo existir um país em que se afir­
me que quem não pensa de modo igual ao do senhor está enfermo,
que é um esquizofrênico que merece ser internado em um hospital
psiquiátrico; todavia isto ocorreu, e existe um fundamento estru­
tural do fato: que cada um, em seu sintoma, se diferencia da ordem
prescrita de gozo pelo discurso.
Se colocamos a identificação do lado do simbólico e o sintoma
do lado do real, encontraremos que a noção de identificação com o
sintoma inclui, em si própria, uma dificuldade.
Para matizar esta oposição lembremos do sintoma histérico.
O sintoma histérico tem um uso coletivizante uma vez que o sujeito
histérico se caracteriza por sua conexão direta com o Outro barrado
e por sua propensão a identificar-se pela via do sintoma. Isto se
observa em Dora, identificada com o desejo castrado do pai através
de seu sintoma; em sua tosse o que vemos funcionar é uma identi­
ficação com o sintoma do Outro. Na histeria existe um uso do
sintoma que aparentemente não a separa do Outro; ao contrário, a
conecta com este. Mas creio que quando Lacan se refere à identifi­
cação ao sintoma não o faz em seu uso histérico; é a identificação
ao sintoma como real, como Um sem o Outro.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

o efeito de ser

Gostaria de interrogar tanto a lógica que conduziu a IPA a


falar de identificação com o analista, como a que conduziu Lacan a
falar de identificação ao sintoma.
Quando Freud fala em “Análise terminável e interminável”
(1937) de sujeito são”, refere-se ao sujeito que não necessita re­
correr a uma análise; trata-se de um sujeito sobre o qual a operação
do discurso atua como limitação e ordenamento de gozo, permi­
tindo a ele manter-se de modo suportável, tanto para si como para
a coletividade.
Quando o sujeito pede uma análise, ele o faz porque surgiu
um sintoma que deixa em evidencia o fracasso da defesa em relação
ao gozo. Este fracasso da operação de controle de gozo nos pro­
porciona a lógica da entrada. A lógica da saída estará no ganho do
dito controle. Então a tese de identificação ao analista consiste em
que na entrada tínhamos um sujeito com um sintoma que fazia
objeção, e na saída um sujeito que logrou a coerção necessária sobre
o gozo, postulando que isso se faz através da identificação.
No mesmo texto, Freud se pergunta se no final da análise po­
deríamos obter algo mais do que se pode encontrar em um sujeito
são e tem suas dúvidas: pessimista, responde que provavelmente
não, mas, um pouco mais adiante, diz que talvez no final se possa
alcançar algo que chama de um estado inédito do sujeito e que nunca
seria produzido fora do processo analítico.
A respeito de como situar o final em relação à entrada, Lacan
permite entender o início da análise não a partir do próprio sintoma,
naas a partir de sua conexão com o sujeito a quem se supõe o saber.
A entrada no trabalho de transferência altera o estado natural do
U,eit0- sua fixação de ser, seu “sou”. Isto o faz entrar na falta a ser
culada na palavra6. Necessariamente este processo reclama um
P nto de detenção de onde se restaura o efeito de ser, uma suspensão

acan* J. O Seminário, livro 14: a lógica da fantasia (1966-7)-

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do deslocamento, da incerteza, da indecisão do sujeito e um 1


de ser, formulado por Lacan desde o início de seu ensino com
"Tu és isso”. A identificação ao sintoma se refere a um efeito de
SCT,
de fixação de gozo que separa do Outro. Trata-se de um efeito real
que sai do simbólico.
Posso dizê-lo de outra maneira caso utilize a definição de Lacan
em “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946), antes de
"Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise” (1953)
Ele diz: “A identificação consiste na modificação ocorrida no sujei­
to como conseqüência de haver assumido uma imagem”. Se retira­
mos a palavra "imagem” e deixamos um vazio, resta que “a identi­
ficação consiste na modificação ocorrida no sujeito como conseqü­
ência de haver assumido...”. Neste vazio podemos colocar primeiro
“uma imagem”, logo, como dirá mais tarde, “um significante” e
finalmente "um sintoma”. Aparentemente podemos colocar em série
as três fórmulas e observar que em cada caso o termo utilizado
recobre ou determina o conjunto vazio do sujeito.
A diferença entre estas três fórmulas reside no fato de que
tanto a imagem como o significante são sempre tomados do Outro,
ou do outro semelhante ou do Outro simbólico, barrado, quando
“as identificações se motivam pelo desejo”. Pois bem, quando falamos
de identificação ao sintoma, em seu sentido último, encontramos
um termo separado do Outro, já que não se trata da identificação
como uma insígnia qualquer do Outro mas de uma fixação de gozo.
O que nos permitiria quase dizer que um sintoma é uma identifica­
ção de gozo, mas para evitar ambiguidades é melhor falar de fixaçao
de gozo.

Sintoma para todos

Para perceber o alcance da frase de Lacan observemos que existe


uma solidariedade entre o sintoma e a não-relação sexual — ponto
implícito e demonstrável em Freud. Lacan esclarece que o sintoma
é uma forma de gozo que substitui a proporção do gozo que falta à

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

relação entre os sexos, o modo de gozo que surge onde falta a pro­
porção sexual. Isto quer dizer que não existe sujeito sem sintoma: o
sintoma é universal. Não consiste na infelicidade que alguns supor­
tam, mas antes em uma estrutura que faz suplência à relação sexual.
0 sintoma não deve ser confundido com um processo patológico;
ao contrário, é um efeito de linguagem sobre o ser falante. Eviden­
temente esta definição de sintoma difere da definição psiquiátrica
em que o sintoma e considerado como uma anomalia e não como
um processo universal.
Uma vez definido o sintoma como uma fixação de gozo pró­
pria a cada sujeito, podemos imediatamente ver que o dito sintoma
ocupa o lugar do “parceiro” sexual do sujeito. Certamente uma
obsessão, por exemplo, não é o modo mais freqüente e mais cômodo
de fazer suplência à relação sexual, mas podemos afirmar que uma
obsessão conecta o sujeito com um “parceiro" de gozo.
No Seminário, livro 22: R.S.I (1975) há mais um passo, quando
Lacan afirma que uma mulher é sintoma para um homem e vice-
versa. Com isso quer dizer que nas relações entre os seres huma­
nos, no amor, especificamente na relação erótica que obviamente
implica o corpo, o outro “parceiro” é somente o suporte de um
termo que fixa o gozo do sujeito. Se podemos afirmar que o par­
ceiro” é também o sintoma, temos então que a identificação com o
sintoma, colocada por Lacan no final da análise, deve vincular-se
estritamente a um efeito no nível do amor.
A definição do sintoma como real em sua definição na estru­
tura da linguagem merece ser precisada.
Após definir o sintoma como uma função do significante, ou
seja, como uma metáfora decifrável — cf. A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud” (1957) — Lacan passa a
defini-lo como função da letra, o que se pode traduzir como um
significante feito objeto, fora-de-sentido, idêntico a si próprio.

7- Cf. Lacan, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1975). Esta nova definição do sinto-
°i amplamente comentada por Jacques-Alain Miller em seu curso.

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Dizer que o sintoma é função da letra não o separa inteiramente da /


linguagem, uma vez que qualquer termo do inconsciente, da lin '
guagem, pode tornar-se letra de gozo. Ou seja, o sintoma através
do gozo pode fixar, fazer existir um termo do inconsciente fora
deste. Neste sentido, o inconsciente como conjunto da linguagem
está situado do lado do simbólico; mas no sintoma existe um termo
tomado do inconsciente que se fixa como um real sob o gozo e que
em sua consistência é idêntico a si próprio.

Crer nisso I

Uma letra não é qualquer real, uma letra é sempre passível de


ser reconectada ao inconsciente como cadeia e isso é o que ocorre
em uma psicanálise em que o sintoma se decifra. Fora-de-sentido,
real, pode se conectar com outro significante que lhe dá sentido.
A psicanálise consiste assim em fazer falar o sintoma, conectando-o
com o sujeito a quem se supõe o saber.
Temos então duas caras do sintoma: uma fixada ao gozo, fora-
de-sentido, fora do inconsciente, e outra que sempre pode alcançar
um sentido na associação significante; é esta cara que Lacan formula
tardiamente, quando afirma que o sintoma não só existe mas que
também “se crê nele”, outra maneira de falar da transferência. Isto
significa que quando um sujeito apresenta um sintoma para alguém é
porque crê que esse sintoma pode dizer algo sobre ele.
Retornando ao ponto do “parceiro” como sintoma, temos que
no caso da mulher, esta não pode ser qualquer mulher. E a “uma de
um homem. Ressalto o “uma” para indicar que não é qualquer, é a
eleita para tornar presente o um sintomático, o que é diferente de
dizer que uma mulher se faz de objeto para um homem. Ainda que
se diga que na relação erótica o homem se une não com uma mu­
lher, mas com o objeto parcial e que entre um homem e uma mu­
lher sempre está o objeto a, a mulher-sintoma introduz algo mais,
o elemento inconsciente, letra, que causa a eleição de objeto. No
Seminário, livro IO: mais, ainda (1972-3), Lacan, ao afirmar que uma

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

mulher e um sintoma, não enfatiza tanto sua função anônima de


mais-gozar, como sua unicidade. A "uma” é esta, e não a vizinha.
De Beatriz, Dante só obtém um olhar, mas o objeto olhar tem que
ser dela, quase tem seu nome. O olhar em si próprio é uma função
anônima, pode vir de qualquer lado, mas o olhar de Beatriz é único,
o objeto olhar se eleva assim ao nível da unicidade. Por isso digo
que a função sintomática une o mais-gozar com o um da letra. Esta
"uma” apresenta um traço que a liga ao inconsciente do sujeito, a
faz suporte do um do inconsciente. Assim uma mulher, para um
homem, quase constitui o inconsciente exteriorizado, o que é coe­
rente com a definição deste que Lacan nos dá ao afirmar que o
inconsciente nunca está no profundo; ao contrário, ele está na su­
perfície. Em uma mulher se vê o inconsciente de um homem, mes­
mo quando não se o pode decifrar, e talvez por isso Lacan tenha
dito que se pode julgar um homem por sua mulher, acrescentando
que isto não é recíproco, não se julga uma mulher por seu homem.
Curiosidade que deixo no momento em suspenso.
0 inconsciente fixado no exterior existe como gozo e significa
que entre uma mulher e uma obsessão há pouca diferença; sabemos
que uma mulher pode tornar obssessivo um homem. Vemos tam­
bém muitas vezes uma alternativa: um homem ou uma mulher que
tem obsessões (falo de uma mulher para um homem, e não do caso

Nela crer

Com certeza entre uma obsessão e uma mulher há uma dife-


rença patente: a mulher fala e isso cria um problema suplementar
^Ue ^az não só com que alguém creia nela como um sintoma, mas
4ue nela possa crer. Se escrevo o sintoma como fixação de gozo,
Sempre passível de conectar-se com outro significante do inconsci-
te que lhe dará sentido, isto permite decifrá-lo na analise; ou
Se)a- quando se conecta sua letra com outro significante durante o
P esso, surge seu sentido. Quando uma mulher é sintoma de um

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homem o risco está em nela crer, diz Lacan. E um risco porque isto
quer dizer que seu dito completa a letra fora do sentido do sintoma.
Então nela crer consiste exatamente em situá-la não tanto no lugar
do sintoma, mas no da alucinação mental: quando ela fala, o ho­
mem pode crer que fala dele como seu próprio inconsciente.
Se há um tnagister dixit, a experiência analítica revela também
um “minha mulher disse”. Entende-se portanto que seus ditos po­
dem tomar um papel persecutório e que quando estigmatizam o
ser, funcionam muito bem como eco, como uma voz que lhe fala
dele, embora não necessariamente que dele fale mal. Poderíamos
quase retraduzir o “Wo es war soll ich werden” de Freud: lá onde o
inconsciente opaco estava aí advém a palavra da “uma” que é supos­
ta dizer a verdade.
Com isto entendemos muitos traços das relações entre os
homens e as mulheres. Por exemplo, esse anseio tão profundo de
que a mulher se cale. O famoso “Seja bela e cale-se” participa evi­
dentemente da auto-proteção, uma vez que quando ela fala é como
se o inconsciente tivesse falado no real — estrutura parecida com a
da alucinação mental.
Poderíamos também falar da vigilância sobre a “uma”, que em
alguns casos vai mais-além dos ciúmes, posto que se torna conveniente
saber onde está um ser que foi colocado no lugar do inconsciente.

Mutação

Entre os modos de definir a identificação ao sintoma, existe


uma fraca e outra forte. A definição mais fraca diz que identificar-se
ao sintoma é consentir no que não se pode modificar. E uma defi­
nição que se situa no nível da resignação, do consentimento por
impossibilidade ou impotência para modificar algo que é difícil de
suportar. Assim definida, não tem muito interesse, ao menos para
situar o final de análise, pois para aceitar o inevitável não há neces­
sidade de uma análise. Muitos conseguem suportar e se resignar
com seu modo de gozo, com sua forma de se relacionar com o

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

“parceiro” de gozo. Se observarmos os que não se analisam, poderemos


ver claramente que eles, como todo mundo, têm sintomas nem sempre
cômodos, porém muitos conseguem concluir: “Lamentavelmente sou
assim mas me agüento”. Tomam o próprio sintoma como um destino
inamovível e não como uma responsabilidade própria. Talvez haja algo
assim em um final de análise em relação ao resto impossível de transfor­
mar. mas não creio que essa tenha sido a idéia principal de Lacan.
Tento dar a identificação ao sintoma uma idéia mais forte,
uma definição que possa funcionar somente no verdadeiro final de
análise. Observo que a expressão de Lacan sintoma está escrita no
singular ainda que existam diferentes tipos de sintoma. Para con­
cluir diretamente, creio que a identificação final ao sintoma é uma
identificação a qualquer sintoma, porém um sintoma transformado.
Qual é a transformação que o sintoma sofre durante a análise?
A elaboração do trabalho de transferência, elaboração simbó­
lica, modifica o que Lacan chama de invólucro formal do sintoma.
A identificação final é então a um sintoma despojado de seu invó­
lucro, imaginário e significante, reduzido a seu núcleo mais real, a
sua letra última. Posso dar uma fórmula precisa: identificar-se ao
sintoma não é apenas aceder a suportar; consiste em deixar de se crer
nele. No início entramos crendo que o sintoma dirá algo, o como e o
por quê. Quando se entra em análise por causa de um “parceiro”
sintoma, espera-se expressar, no trabalho de transferência, qual é o
segredo deste estorvo.
No final, deixar de “se crer nele quer dizer, de um lado, dei­
xar de interrogá-lo: queda da pergunta e da espera de resposta, já
4ue a resposta estava por antecipação. A análise consiste em sub­
meter o sujeito à pergunta sobre o mais-gozar. No final, deixa-se
cair a pergunta, deixa-se de esperar que diga algo mais. Não é outra
coisa senão a queda da atividade de decifração e de produção
correlativa de sentido.
A identificação ao sintoma, assim definida, e idêntica à saída
do trabalho de transferência. Poderíamos dizer que se a transferência
conecta o trabalho do sujeito suposto saber com a fixação do sin­

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COLETTE SOLER

toma, a identificação final ao sintoma desconecta o sintoma do


inconsciente como cadeia. É um retorno, mais-além do trabalho de
transferência, a um novo “não penso”, um novo "sou”, que destitui
o sujeito do pensar. Neste sentido, a identificação ao sintoma designa,
ao lado do ato analítico, outro ponto fora de transferência.

“O amor mais digno”

Qual será o resultado da redução sintomática no nível do amor,


o efeito na relação do casal sexual?
Se crer nisso consiste em identificar-se a sua mensagem, e no
final a identificação ao sintoma é um rechaço do inconsciente, então
a identificação ao sintoma longe de ser uma identificação a ela, será
a identificação dela ao gozo sintomático, ao que o ser falante tem
de mais real. Seria como uma palavra final, nunca pronunciada: “Tu
és meu gozo”. Na Bíblia encontramos que a mulher é colocada em
série com o asno, o boi e o resto dos bens, das propriedades do ho­
mem. Não digo que a psicanálise redobre a delimitação da mulher nos
bens que um homem possa possuir, mas que a situa no gozo sintomáti­
co, que nada possui e do qual antes se encontra possuído. Isso implica
deixar de crer nisso, deixar de identificar a mensagem de seu inconsciente
no que ela diz, o que representa uma queda do peso dA palavra dela sobre
o homem. Seguramente o romantismo perde algo com isso.
Amar é um trabalho desde que o sintoma não esteja reduzido
a seu núcleo real e uma vez que alguém o tome como um campo em
que se deve crer e ser crido. Quando Lacan diz que a psicanálise
poderia fazer o amor mais digno, acrescenta que pode fazê-lo mais
digno do que a “proliferação da tagarelice”. Significa que a palavra
de amor não é senão revestimento mentiroso. Por isso diz que a
última palavra é “não o quero”, a frase que Freud usava para situar
a estrutura psicótica e que Lacan retoma em Televisão (1974). gene-
ralizando-a para a psicose, a neurose e a perversão: “Não o quero
quer dizer não era ela, não era ele, mas era a figura de meu gozo.
E a redução da dimensão sentimental ou romântica do amor
ao laço do sujeito com seu gozo. Perguntei-me durante muito tempo

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

por que Lacan tratava os clássicos como entaramelados. Suponho


que fosse em função do engano. Considera que Dante fica contra­
riado com esse olhar obtido de Beatriz, ou seja, denuncia a mentira
do discurso amoroso, que em si próprio nunca diz a verdade, pois
vela o real, e até se substitui ao real. Quando se diz “eu te amo” ou se
está mentindo sobre o objeto de gozo ou se goza do discurso amoroso
em si próprio — porque falar de amor já é um gozo.
Poderíamos ter a preocupação de saber se identificar-se ao sin­
toma não será deixar de escutar o outro no sentido de um: diga o
que diga, não importa. Não o creio. Que o sujeito dissocie o que diz o
outro de sua própria mensagem inconsciente, talvez seja a melhor con­
dição para escutar-se bem (s’entendre é ouvir-se e entender-se), para re­
duzir o que possa haver de persecutório no laço entre os sexos.
Como se relacionam a identificação ao sintoma e a travessia
da fantasia? A definição forte que utilizei para a identificação ao
sintoma supõe uma travessia uma vez que a fantasia constitui em
sua dimensão simbólico-imaginária o segredo de todo o sentido
que se possa interpretar no trabalho de transferência. O segredo do
sentido se encontra sempre deste lado, portanto reduzir o sintoma
à estrutura de gozo da letra supõe a travessia do sentido, a travessia
das formações de semblante imaginárias e simbólicas. O exemplo
que Lacan toma, paradoxal por estar fora da análise, é o de James
Joyce. Este consegue, sem análise, através de seu manejo das letras
e da literatura, curto-circuitar o sentido fantasístico; por estrutura,
se desprende do que o apega ao sentido.
A resposta a se pode haver identificação ao sintoma sem travessia
da fantasia depende das definições que damos da dita identificação.
Lacan desejava de forma radical, no final da análise, conectar o menos
sujeito com o um da letra de gozo sem sentido, ou seja, pôr um
ponto final na pergunta, na dúvida, na incerteza e em todas as
ibulações do sujeito da falta a ser; pôr um ponto final no gozo do
tido. Mas também no gozo da decifração. Decifrar sem cair na ar­
madilha dn 'J ' z *
mas senticio está próximo sem dúvida do gozo do matemático,
gozo da decifração também se conecta com o sem fim possível.

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COLETTE SOLER

Creio que Lacan ressalta a identificação final ao sintoma pre­


cisamente para definir ou talvez buscar a solução de um impasse
que não é o impasse freudiano do medo da castração, mas de outro
tipo, o da fixação de gozo no nível do gozo do sentido e da decifração.
Isso que chama de dar preferência total ao inconsciente quer dizer
dele gozar. É certo que em alguns sujeitos existem problemas para
desconectá-los do inconsciente; por isso Lacan fazia votos pelo
que chama de “contrapsicanálise”: após a viagem simbólica que cons­
titui o trabalho de transferência, é necessário realizar um movimento
inverso para encontrar um ponto real fora do sentido, fora do simbó­
lico, que nos permita formular o passe em direção ao real.

V. Conclusões

Nesta última parte tratarei das conclusões na análise.


Crer no sintoma permite conectá-lo como S] assemântico com
outros significantes S2; porém quando não se crê nele, este perma­
nece somente como um desconectado da dimensão do sujeito su­
posto saber e do próprio saber. Estruturalmente a transferência “se
motiva do traço unário”, disse Lacan em seu resumo do Seminário,
livro ij: o ato psicanalítico. Todavia para pôr a trabalhar essa transfe­
rência, para fazer falar um sujeito, necessita-se algo mais que esse
traço unário, necessita-se do que chamo o ato de fé transferencial.
Necessita-se crer que esse Sp qualquer que ele seja, pode dizer algo,
e isso constitui um ato de fé.
Recentemente li no Time Magazine a descrição que faz um jor­
nalista da convicção que têm as pessoas que se submetem a uma
análise: algo não vai bem em suas vidas, vão ao analista, deitam-se
num divã, falam e com isso crêem que assim o que não ia bem se
modifica. O jornalista comenta que se trata de pura superstição.
Poder-se-ia pensar que os norte-americanos, com seu rechaço à psi­
canálise, são tolos, mais ainda que fosse o caso, trata-se realmente
de uma fé. Podemos observar sujeitos que não são tolos, ao menos

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

não mais que outros, nem mais doentes, e que não entram no pro­
cesso de transferência. São sujeitos que não creem que valha a pena
fazer o esforço de construir a cadeia de termos do inconsciente. Esse
ato de fé, como todo ato, por exemplo, o ato de criação do qual falava
há pouco, é algo irredutível. Além disso seria interessante construir a
série dos irredutíveis necessários para dar conta de uma análise.
Uma vez que a psicanálise supõe o ato de fé transferencial,
Lacan fala de religião. Ato de fé é um termo religioso. Não é por
acaso que Lacan afirma que o sujeito suposto saber constitui um
dos nomes de Deus — do Deus dos filósofos, ao menos — que é o
mesmo que dizer que a transferência, como trabalho, supõe um ato
de fé. O problema está em saber se esta prática, que supõe um ato
de fé na entrada, permite em todos os casos a saída da dita fé, ou
seja, um ato de incredulidade decidida. Falei em um ocasião do
“acteísmo” (acteísme') do analista justamente para referir-me ao fato
de que o ato analítico implica a redução da fé transferencial. Falar
de rechaço final do inconsciente diz o mesmo, pois se trata de de­
tenção da construção da cadeia em proveito do “um” fora do senti­
do e fora do inconsciente. O final consiste em não crer mais nisto,
em “desabonar-se” do inconsciente.

Enganados e crentes

Neste ponto encontramos um matiz sutil um tanto corretivo


de Lacan, quando afirma que o autêntico analista deve de fato ser
enganado” (être dupe) pelo inconsciente — Les noti-dupes errent&.
Podemos distinguir o enganado do crente. A crença, o ato de fé
transferencial, introduz o sujeito na dimensão do sentido. Ao
eontrário, ser enganado não tem nada a ver com crer ou não crer.
0 enganado não pertence ao registro da convicção, mas ao de uma
disciplina de decifração que constitui cuidadosamente as series dos
s’gnos sem saber a direção. Além disso, o enganado pode estar do
0 d° analista que decifra o lado do analisante que articula os

■ do E. Nome do Seminário, livro 21 de Lacan.

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COLETTE SOLER

Creio que Lacan ressalta a identificação final ao sintoma pre­


cisamente para definir ou talvez buscar a solução de um impasse
ue não é o impasse freudiano do medo da castração, mas de outro
tipo, o da fixação de gozo no nível do gozo do sentido e da decifração.
Isso que chama de dar preferência total ao inconsciente quer dizer
dele gozar. É certo que em alguns sujeitos existem problemas para
desconectá-los do inconsciente; por isso Lacan fazia votos pelo
que chama de "contrapsicanálise”: após a viagem simbólica que cons­
titui o trabalho de transferência, é necessário realizar um movimento
inverso para encontrar um ponto real fora do sentido, fora do simbó­
lico, que nos permita formular o passe em direção ao real.

V. Conclusões

Nesta última parte tratarei das conclusões na análise.


Crer no sintoma permite conectá-lo como St assemântico com
outros significantes S2; porém quando não se crê nele, este perma­
nece somente como um desconectado da dimensão do sujeito su­
posto saber e do próprio saber. Estruturalmente a transferência “se
motiva do traço unário”, disse Lacan em seu resumo do Seminário,
livro ij: o ato psicanalítico. Todavia para pôr a trabalhar essa transfe­
rência, para fazer falar um sujeito, necessita-se algo mais que esse
traço unário, necessita-se do que chamo o ato de fé transferencial.
Necessita-se crer que esse S(, qualquer que ele seja, pode dizer algo,
e isso constitui um ato de fé.
Recentemente li no Time Magazine a descrição que faz um jor­
nalista da convicção que têm as pessoas que se submetem a uma
análise: algo não vai bem em suas vidas, vão ao analista, deitam-se
num divã, falam e com isso creem que assim o que não ia bem se
modifica. O jornalista comenta que se trata de pura superstição.
Poder-se-ia pensar que os norte-americanos, com seu rechaço à psi­
canálise, são tolos, mais ainda que fosse o caso, trata-se realmente
de uma fé. Podemos observar sujeitos que não são tolos, ao menos

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

não mais que outros, nem mais doentes, e que não entram no pro­
cesso de transferência. São sujeitos que não crêem que valha a pena
fazer o esforço de construir a cadeia de termos do inconsciente. Esse
ato de fé, como todo ato, por exemplo, o ato de criação do qual falava
há pouco, é algo irredutível. Além disso seria interessante construir a
série dos irredutíveis necessários para dar conta de uma análise.
Uma vez que a psicanálise supõe o ato de fé transferencial,
Lacan fala de religião. Ato de fé é um termo religioso. Não é por
acaso que Lacan afirma que o sujeito suposto saber constitui um
dos nomes de Deus — do Deus dos filósofos, ao menos — que é o
mesmo que dizer que a transferência, como trabalho, supõe um ato
de fé. O problema está em saber se esta prática, que supõe um ato
de fé na entrada, permite em todos os casos a saída da dita fé, ou
seja, um ato de incredulidade decidida. Falei em um ocasião do
“acteísmo” (acteísme') do analista justamente para referir-me ao fato
de que o ato analítico implica a redução da fé transferencial. Falar
de rechaço final do inconsciente diz o mesmo, pois se trata de de­
tenção da construção da cadeia em proveito do um fora do senti­
do e fora do inconsciente. O final consiste em não crer mais nisto,
em “desabonar-se” do inconsciente.

Enganados e crentes

Neste ponto encontramos um matiz sutil um tanto corretivo


de Lacan, quando afirma que o autêntico analista deve de fato ser
enganado Çêtre dupe') pelo inconsciente — Les non-dupes errent3.
Podemos distinguir o enganado do crente. A crença, o ato de fé
transferencial, introduz o sujeito na dimensão do sentido. Ao
contrário, ser enganado não tem nada a ver com crer ou não crer.
0 enganado não pertence ao registro da convicção, mas ao de uma
disciplina de decifração que constitui cuidadosamente as series dos
§n°s sem saber a direção. Além disso, o enganado pode estar do
do analista que decifra o lado do analisante que articula os

$ Nj
E* Nome do Seminário, livro 21 de Lacan.

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COLETTE SOLER

pensamentos que vão aparecendo, sem saber para onde vai. Seguir uma
série não implica nenhuma direção, tal como o Pequeno Polegar ao
seguir as pedrinhas brancas não sabia para onde ia, ainda que avançasse.
Lacan precisa algo sobre os não enganados, que inicialmente
me pareceu enigmático, mas agora creio entender: “Os não engana­
dos crêem na viagem”, comentando ainda que isso os conduz a crer
no “desenvolvimento”. Se opomos o enganado pela decifração e o
que crê no sentido, vemos que a alternativa está ou em deixar-se
enganar pela série das letras ou em ficar preso no sentido que sempre
tem uma direção: posição teleológica que faz existir o ponto final
de chegada como causa final.

Parênteses

Se evoco o enganado do deciframento, quero deter-me um


momento sobre uma pergunta que me fizeram ontem. Qual é o
laço entre o desejo do analista e o desejo de decifrar? Não se trata
do mesmo: o desejo de decifrar está muito próximo do desejo do
matemático e Lacan o diferencia do desejo do analista. Não desen­
volverei muito este ponto mas posso dizer, sem que exista nisso um
paradoxo, que o desejo de decifrar não constitui todo o desejo de
saber, mas uma parte deste: não é contraditório com ele uma vez que
se submete à série dos elementos do saber; por outro lado, a vocação da
decifração implica uma parte de não querer saber, já que nem tudo é
significante. Dedicar-se exclusivamente a decifrar foraclui o indecifrável,
e é então uma forma de rechaço do desejo de saber. O desejo do analista
implica um desejo de saber mais-além do decifrável, aponta para
saber o que não se decifra mas que rege a série da cifra.
Caberia perguntar pela semelhança entre o enganado do in­
consciente e o crer em uma mulher sintoma. Com relação a meu
desenvolvimento anterior, não posso deixar de assinalar que Lacan,
em seu Seminário, livro 21: les non-dupes errent, cita uma frase do
humorista francês Alphonse Aliais sobre o homem: Nunca se é
totalmente pateta de uma mulher enquanto ela não for a sua •

9. N. do E. Cf. nota 5, página 411.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Nessa frase não fica claro ao que se refere a palavra "sua”: se é a


“sua” de pateta ou a “sua” de mulher; creio que se trata da “sua” de
mulher. A idéia de que uma mulher seja o que torna um homem
enganado não é nova. E interessante o fato da mesma palavra — enganado
ser utilizada para designar a relação com o inconsciente e com uma
mulher, o que me parece confirmar a equivalência que indicava há pouco.

Saídas e conclusões

Gostaria de evocar a variedade de conclusões existentes na


experiência do dispositivo analítico, situáveis nas próprias estrutu­
ras e que permitem a passagem para a incredulidade.
Antes de mais nada devemos diferenciar saída e conclusão.
A saída designa a interrupção do laço com o analista, a mudança de
discurso, ou antes de posição no discurso, porque sair para tornar-se
analista não significa sair por completo do discurso analítico.
Podemos interrogar a saída sobre sua conjuntura, suas condições,
seu momento etc. Inclusive podemos questionar sua oportunidade,
mas o que não podemos questionar é sua realidade. Não se pode
dizer a alguém que tenha saído de análise: “Não, não saiu”.
A conclusão é outra coisa. Pertence a outro registro, mais ló­
gico. Pode-se perguntar sobre sua fórmula, sobre o que a funda,
sobre sua validade e então discuti-la. Na realidade, o termo conclu­
são pertence a vários registros. No nível da lógica, por exemplo, a
conclusão se caracteriza por ser necessária quando se a obtém por
via dedutiva, ou provável quando o é por via indutiva. Do lado da
retórica vemos que em literatura se fala da conclusão de um relato,
de uma novela e neste campo o que torna interessante uma conclu­
são não é precisamente sua necessidade mas, ao contrário, sua capa­
cidade de invenção, seu caráter surpreendente. Uma novela que ter-
mina como esperávamos é sempre decepionante. Há também o uso
d° termo conclusão” já não lógico ou retórico, mas no nível da
a$ão, na decisão. Neste caso podemos falar da conclusão ja não
Orno neccssaria mas, apesar de todos os cálculos de estratégia, como
nfingente, ou seja, à mercê dos acidentes da conjuntura.

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Quando nos referimos à conclusão na análise, não pensamos


no sentido de uma novela mas essencialmente no sentido lógico da
palavra e talvez também no sentido decisório, na implicação do ato
que sofre toda conclusão, seja ela intelectual ou não. Além disso,
Lacan não tem dúvidas em acentuar mais o sentido matemático que
o lógico para a conclusão na análise. E o que faz em “A proposição
de 1967", quando se refere ao final da análise como a resolução de
uma equação, a equação do desejo. A incógnita, que como em toda
a equação escrevemos x, certamente se refere ao próprio desejo do
qual trata-se, em um cálculo quase matemático, de determinar os
valores possíveis. Precisando que a constante é o agalma, Lacan nos
deixa deduzir que a variável não pode ser senão o saber suposto
com suas formas particulares para cada sujeito.
Que se conclua por via de lógica ou de cálculo, em todos os
casos o dispositivo do passe permite julgar a saída pela conclusão.
A oportunidade da saída pode ser avaliada em função de sua maior
ou menor coincidência não só com as metamorfoses ocorridas no
sujeito, mas com as conclusões produzidas no simbólico. Na avaliação
da saída elas também se incluem. Não o comentarei agora posto
que a saída se julga segundo a conclusão que a funda.

Três tipos de conclusão

A conclusão põe um ponto final à demanda de transferência


conduzida pela incógnita do desejo e que não tem outro objetivo, con­
forme Lacan em “A Proposição de 1967”, senão o de “obter” o agalma.
Mas sabemos que não se o obtém. O analisante o vive como uma priva­
ção e como uma impotência que se perpetua durante o tempo da trans­
ferência sob a forma de um “não consigo” expresso de diversas manei­
ras por cada um. Essa impotência se apresenta como uma forte realida­
de clínica que cada analisante experimenta e racionaliza de diversas
maneiras segundo sua posição subjetiva. As vezes com um: ainda não ,
ou com você não”, ou “para mim não” etc. Também se colore de afetos
de diversos tipos: depressão, tristeza, raiva, por vezes ferozes reivindi­
cações. Como pôr um final a um “não consigo” irredutível?

46o

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

Na análise se espera a boa vontade do sujeito. Somente a suficiente


ra que produza o trabalho de transferência que permite produzir o
P vcrdadeiramente é esperado: as respostas a partir do simbólico.
A primeira resposta consiste em uma ficção de verdade. Posso
exernplificá-la com os exemplos que dei anteriormente. Quando a
análise não termina com um sintoma reduzido a seu fora de sentido
mais-além da travessia, costuma terminar com a “ficção” fantasística,
ou seja, a fixação de uma frase que captura o gozo, no sentido do
que Lacan chama de “jouis-sens", ou seja, gozo-de-sentido. E, por exem­
plo, o caso do sujeito que termina com o que descrevi: a crença decidida
de um “me humilham”. Outro exemplo de uma fórmula de verdade é a
pessoa que termina com um “me odeia ou me esquece”. Nestes casos o
simbólico produz como conclusão uma convicção fantasística reforçada.
Esta crença forte, subtraída da dúvida, permite não obstante pôr um
ponto final uma vez que, com isso, o sujeito pensa ter a última palavra, o
último ponto de basta, e então não perguntará mais. Esta frase fantasística
pode ser escrita como o é o Sf de seu sintoma, todavia de um sinto­
ma que inclui a convicção fantasística.
Podemos ver que há algo parecido com a identificação ao sin­
toma, já que aceitar uma verdade — além disso desagradável para o
sujeito — seria uma identificação à verdade. Identificar-se a sua verdade
é uma posição na vida. De acordo com minha experiência, os sujeitos
que eu poderia situar nessa posição são aqueles que se apresentam
como heróis de sua verdade”, que longe de deixarem-na atrás deles,
sentem-se bem em continuar falando dessa verdade e pedem que se
acredite que chegaram a isso a partir de sua própria, verdadeira experi­
ência analítica. São sujeitos que não estão separados da paixão por sua
'erdade, que tornam presente menos o divórcio que o matrimônio da
erdade e do gozo, posto que a identificação à verdade e gozo da verdade
arninham juntos. Nestes casos em que falta a última palavra (menos
)• o sujeito termina colocando a palavra-chave de sua verdade.
a segunda posição final o sujeito conclui assumindo a impo-
cons^ Para COnC^U‘r Nã° se detém em um alcance de verdade, porém
e’ resignado, em algo como um “não consigo”. De modo geral

461

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COLETTE SOLER

0 sujeito termina por aceitar sua impotência a fim de encontrar a


última palavra. Neste caso, o menos-um, recorrente em toda arti­
culação significante e que o sujeito experimentava como impotên­
cia conduz a um “basta” em ato. Este modo de concluir, assumin­
do uma indeterminação, aparece na forma relativamente indepen­
dente dos benefícios terapêuticos obtidos na análise; pode se dar
tanto em análises com grandes benefícios terapêuticos como na­
quelas em que estes foram menos patentes e em que o consenti­
mento ao incurável será de maior grau. Mas a conclusão em função
da indeterminação é algo diferente do balanço que pode ser feito
do benefício terapêutico; é como se o sujeito, ao constatar que não
conseguiu obter esta última palavra, renunciasse a ela e terminasse
se calando. Estas são análises que às vezes terminam por cansaço.
A terceira conclusão é a assinalada por Lacan como a virada da
impotência à impossibilidade. Neste caso surge ao sujeito uma conclusão
de impossibilidade. Não é o mesmo não poder alcançar algo e formular
um “era impossível"; em geral a conclusão pela impossibilidade alivia
o sentimento de impotência. Vejamos dois exemplos de conclusão a par­
tir de uma afirmação de impossibilidade, para então qualificá-la.
Temos o caso de um sujeito que conclui a partir da impossibi­
lidade de algo que se apresentou como uma ficção imaginária do -I.
É claro que normalmente os passantes não falam do -I, eu extraio
esta estruturação do que ele afirma. Trata-se de um homem de quem
posso dizer, resumindo o testemunho de toda uma vida, após uma
longa análise, que grande parte de sua história e de sua subjetividade
está ordenada e vectorizada em função da reprovação do pai, apoiada
em dados de sua biografia, de sua infância com o pai e com figuras
substitutivas deste, que nele repercutem no nível de sua própria
inquietude em relação a ele próprio ser pai. Um sonho o diz de
maneira patente: “O pai não sabia”. Deste sonho, ficção que o pôs
a pensar durante meses, conclui um tempo depois: “Então era im­
possível obter o que pedia para o pai. Era impossível obtê-lo por­
quanto o pai não o possuía. Temos portanto uma ficção de impos­
sibilidade construída a partir de um sonho.

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

No segundo exemplo, de uma mulher, também há um sonho. Ela


sonha que tem um livro incompleto e o Outro também. Neste sonho
se põe em função o -I, o que lhe permitira concluir com a impossibili­
dade de obter. Poderia evocar muitos outros exemplos de conclusão
por impossibilidade. Um deles, a partir de um acontecimento na análise:
um anaiisante pede uma resposta a seu analista e considera que ela lhe
deve ser dada por ser muito simples; ao não obtê-la e frente ao silêncio
de seu analista conclui — evidentemente é um salto — com um: “Se
não responde é por ser impossível”. Em outro caso, uma mulher, de
quem podemos dizer que não só em sua fantasia como em sua vida
recusou todas as posições possíveis para uma mulher — ser a outra
mulher, a que mantém, a solitária, a grávida, a que aborta — conclui
que é impossível encontrar uma posição que permita a relação.
Evoco isso rapidamente, ainda que pareça evidente nestes exem­
plos que uma conclusão por impossibilidade não tem o mesmo
estatuto em análise que em lógica pura, quando nos sentamos para
escrever uma demonstração e chegamos a um impasse da escrita.
Na análise a conclusão de impossibilidade não parece ir mais-além
de presunção de impossibilidade. Passa-se de uma conclusão de
impossibilidade fundada na impotência, mas há um salto uma vez
que na análise não é um procedimento de demonstração. Ainda mais,
quando Lacan dá suas fórmulas das modalidades, por exemplo “o im­
possível é o que não cessa de não se escrever”, são fórmulas que
incluem o tempo: o que “não cessa de não se escrever” não diz nada
3 respeito do futuro, deixa em aberto os efeitos de produção do tempo
porvir; introduz então uma confusão entre impotência, sempre factual,
e lrnpossibilidade, que se deveria demonstrar logicamente. E portanto
uma definição que não vai mais-além de uma presunção.

Graus nas conclusões

Estes três tipos de conclusão — ficção de verdade, impotência


P r3 concluir e conclusão por impossibilidade — não são equiva-
es em seus efeitos. Talvez possamos hierarquizá-las, dizendo
e ^rminar com uma ficção de verdade pode ser um autêntico,

46?

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verdadeiro e definitivo fim, mas não permite perceber a incompletude


da estrutura e então dissimula o gozo como último segredo da
consistência da conclusão. Neste sentido concluir pela impotência
constitui um passo a mais já que não se desconhece a presença do
menos um. Pois bem, a conclusão a partir do impossível, ainda quando
seja apenas uma presunção de impossibilidade, tem outra eficácia
Existe uma eficácia do impossível uma vez que afirmar autentica­
mente a impossibilidade estrutural faz com que todas as conclu­
sões sucessivas, postas em série em uma análise, apareçam como
consistências fantasísticas. Isto significa que concluir a partir do
impossível implica a separação do objeto a. Ainda que não signifi­
que que o sujeito saiba seu gozo, posto que a definição lógica do
objeto a é um impossível de dizer.
Situemos o problema em um nível mais clínico. Como o obje­
to a, que não tem nenhuma imagem ou que perdeu todas as que o
envolviam, sendo aquilo que não há idéia e tampouco significante,
pode se fazer presente? Como se pode fazer presente algo impossível
de perceber e de dizer? Creio que se faz presente — e é uma maneira
de formulá-lo — como o irmão gêmeo do impossível, algo que se
deduz do impossível, ou melhor, que é deduzido entre a impossibi­
lidade e a necessidade, já que há também na experiência o que não deixa
de incidir na forma do um insistente da repetição, e também sob a
forma da pressa, na qual o sujeito sempre vai além de suas intenções,
fazendo-se presente algo não sabido porém operante. E também deve­
mos ainda acrescentar com Lacan, a sublimação, o misterioso ponto de
emergência de fórmulas que surgem ao sujeito quando este tenta falar
do mais desconhecido de si próprio. O objeto a impossível de dizer
não deixa de se manifestar na experiência como o que se deve deduzir
como causa última, da qual o sujeito pode ter um vislumbre, mas que
resta, como tal, não sabido. Além disso, com todos os ganhos obtidos
. ✓
sobre a ignorância, o não sabido não se reduz totalmente 1SSO e
seguro — mas o sujeito pode ter um indício não do objeto a, mas
de sua presença, de sua eficácia na vida. Trata-se de um alcance
epistêmico que não é o alcance de um todo saber.

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, qUE POSSO esperar”... de uma psicanálise*

Reconheçam no título a pergunta de Emmanuel Kant oue sem


pre merece ser colocada para a psicanálise, uma vez que, ao menos
virtualmente, todo sujetto pode pensar em dirigir-se a um psieana
lista. Além disso é uma pergunta que todo psicanalista deveria sa
ber responder já que. quando acolhe a demanda, deve saber o que
pode prometer. Com a demanda refiro-me ao que se pede justo
antes de entrar, quando se está batendo na porta, pois depots as
coisas mudam e essa demanda então tem suas condições coletivas
em função do discurso e do modo de apresentação da psicanáltse
em lugar e tempo determinados.

Entre terapêutica e descobrimento

O que é demandado depende do que o discurso põe no haver


da psicanálise. Certamente existem grandes diferenças segundo o
país. Assim, nos Estados Unidos é difícil definir completamente a
situação, mas existe um discurso contra Freud, como nos mostra
um dos últimos números do Time Magaçine com o título: “Freud
está morto?’’ e ao mesmo tempo o fato de que à psicanálise se
demanda qualquer coisa, até mesmo curar a esquizofrenia, o mal-
estar existente na cultura, assegurar os bons costumes etc. Por ou­
tro lado, existe um país como a Argentina em que temos uma Escola
e numerosos colegas com um desenvolvimento da prática analítica
sem precedentes na história. Na França, que obviamente conheço
melhor, fala-se bastante da psicanálise tanto na imprensa como na
televisão; no teatro, é exibida este mês uma obra sobre Freud. Pode-
m°s pensar que quanto mais se fala, mais se desfaz o mal-entendido,
P°tem aí, graças ao ensino de Lacan, suponho que haja um certo
peito. As pessoas não se dirigem à psicanálise pedindo qualquer

ern r, Pued° esperar?... de un psicoanálisis ”. Conferência pública pronunciada


aracas em novembro de 1993.

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coisa; têm uma idéia mais exigente, sabem que para solicitá-la não
basta uma pequena dificuldade na vida, que se trata de algo sério
que até dá medo.
De todo modo, quaisquer que sejam as diferenças e o lugar
em que ela seja produzida, podemos dizer que, mais-além das de­
mandas plurais, pede-se algo que, mais ou menos, poderíamos cha­
mar de tratamento do sofrimento, do que vai mal. Mas não qual-
quer tratamento; de uma psicanálise pede-se também algo como
uma elucidação que torne claro o por que há algo que vai mal.
Assim a demanda prévia a uma psicanálise é algo ambíguo en­
tre uma demanda de um pouco mais de felicidade e um pouco mais
de saber, de entendimento: algo que se situa entre terapêutica e
descoberta do segredo. O que pode prometer a psicanálise?

Felicidade?

Em 1958 Lacan dizia algo surpreendente: “A psicanálise não


se recusa a prometer a felicidade” — isso não é o que atualmente
consideram os lacanianos; eles acham que a felicidade não se deve
prometer — e em 1975, nos Estados Unidos, afirmava que uma
análise não deveria ir muito longe, que aquele que já se sente satis­
feito com sua vida deveria deixar sua análise. Algo também surpre­
endente para quem conhece a psicanálise lacaniana de hoje. Poderí­
amos levar em conta de que falava nos Estados Unidos e de que
considerava as idéias dominantes neste país; talvez fosse uma men­
sagem invertida em relação à mensagem do Outro, ainda que disso
duvide, pois Lacan nunca foi um homem dócil ante seu público.
Se antes de falar de gozo, falamos de felicidade, evidentemente
devemos relativizar esta noção porque hoje em dia ninguém sabe o
que ela significa. Podemos pensar que na época de Aristóteles havia
uma disciplina coletiva da felicidade. Hoje se diz “sinto-me bem
— ou me sinto mal — em meu corpo”, fórmula esta sem sombra de
transcendência e reduzida à consideração do indivíduo, verdadeiramente
sintomática de nosso tempo. Portanto creio que ninguém pode chegar

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

pedir, nem
amal-estar, oumesmo Felicidad
desaparecimentoa do
seja, o implicitamente, sintoma d°

Freud nos legou uma frase de um realismo e de


mo terríveis: No fim a psicanálise não faz mais d P“s,mis-
infelicidade neurótica em uma infelicidade banal" É T' ’
frase não resume todo o pensamento freudtano.' ^"m
contexto, porem delim.ta um alcance da prática analít.ca. Devo Les

centar que de modo algum é essa a pos.ção de Lacan, que tinha


mais ambições em relação a esta prática. Lacan não pensava que a
psicanálise faça com que alguém se livre da infelicidade comum
mas sim que da infelicidade neurótica se pode conseguir algo inédito,
impossível de ser alcançado sem a prática analítica.
Diferenciemos a infelicidade universal das contingentes, que
dependem do tempo, do lugar, do contexto e das pessoas. A infeli­
cidade universal advém de dois fatores. O que a tradição religiosa
creditou à finitude da criatura, nós creditamos ao efeito da lingua­
gem sobre o vivente.
A linguagem, longe de ser um instrumento de expressão, é um
operador que introduz a presença de uma falta no que podemos
chamar de o real, se assim chamamos ao fora do simbólico. O efei­
to de linguagem para todo ser falante é o efeito de perda do que
agora chamamos de gozo. Freud o evocou com a noção paradoxal
de um objeto primordialmente perdido desde sempre, perdido ainda
que nunca possuído, o que significa dizer que em cada vida humana,
desde o início, já existe um perda presente. A contribuição de Lacan
neste ponto consiste em identificar a linguagem como a causa pti-
mordial da dita perda. <
O segundo fator, ligado à linguagem, superposto a esta,
mamos de discurso. A noção de discurso designa as formas
culturais, que se impõem à infelicidade do ser falante, er ,
a infelicidade do pecador medieval, sua forma de desgraça,
rente daquela do homem moderno. Não sei se podemos
que cria a infelicidade universal dos sujeitos modernos.
gere o sem sentido do trabalho forçado ao qual a Ç

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submete cada um de seus membros e que se torna impotente para


acalmar a falta de gozo com os produtos que obtém. Além disso
sabemos que quando este trabalho forçado falta, devido ao desem­
prego, a coisa se torna ainda pior.
A civilização inventou doutrinas e práticas terapêuticas para
tratar no nível coletivo as infelicidades inerentes à condição humana
como dizia Albert Camus. A religião é uma delas e, de modo mais
geral, todas as ideologias da promessa o são. O marxismo, em um
de seus aspectos, foi uma ideologia da promessa. Lacan o qualifi­
cou não de religião, mas sim de evangelho porque falava de um
porvir encantador. Também o são todas as práticas que poderíamos
chamar com uma palavra, proposta séculos atrás por Pascal, de
“diversão”, e que simplesmente consistem em fazer com que o ho­
mem não pense nem em seu ser nem em seu destino. Talvez o traba­
lho também pertença à diversão.
Estamos em um tempo em que as terapias da infelicidade
universal fracassaram um pouco e não por acaso apareceram justa­
mente as psicoterapias que as substituem. Elas não pretendem soluci­
onar a infelicidade universal, mas sim, mais modestamente, a indi­
vidual. A psicanálise se situa neste contexto.

Astúcias da infelicidade

Qual destino a psicanálise pode oferecer à infelicidade chamada


por Freud de neurótica?
Se pensamos que ela promete a remissão da neurose ou do
sintoma — e não se pode negar que a psicanálise tenha efeitos
terapêuticos — temos que observar que ter um poder terapêutico
não é privilégio da psicanálise. Existem efeitos terapêuticos também
nas psicoterapias, sobretudo naquelas que utilizam a palavra, porque esta,
em si própria, já tem algum efeito terapêutico. Inclusive basta dirigir-se a
um psicoterapeuta para que se produza um alívio do mal-estar.
O mais importante que pode produzir uma psicanálise não e o
efeito terapêutico. Alem disso, este parece um pouco mais com­
plicado que a simples supressão do sofrimento, pois existe uma astúcia

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

do sujeito. Hcgel fala da astúcia da razão na história para dizer que


nesta a razão progride de forma dissimulada, mas que o final da
história será o triunfo da razão em todo seu esplendor. Um peque­
no delírio filosófico de Hcgel. Não cremos na razão da astúcia na
história, mas sim no que posso chamar de astúcia da intencionalidade
neurótica, que não é de modo algum uma astúcia da razão mas sim
uma astúcia da pulsão.
Toda infelicidade neurótica é uma “felicidade” que se desco­
nhece, uma felicidade que não se reconhece como tal. Lacan afirma
que o sujeito está condenado a ser feliz, tese surpreendente, que
deve ser esclarecida, e que também foi uma idéia de Freud, ainda
que formulada de outra maneira. Freud considera que algo se satis­
faz no sintoma por mais doloroso que este seja e sem que o sujeito
o saiba; para Freud, há algo satisfatório no sintoma. Isto se com­
preende quando vemos a concepção freudiana do sintoma, desen­
volvida ao longo de sua obra, desde “As psiconeuroses de defesa”
(l894). O próprio título indica sua concepção do sintoma como
um resultado da repressão de uma pulsão, a qual, ainda que repri­
mida, consegue fazer valer sua exigência de satisfação.
O sintoma aparece como satisfação da pulsão, mas satisfação
disfarçada a fim de enganar as defesas subjetivas ante a pulsão.
A grande idéia de Freud é que o ser humano nunca renuncia a nada,
e quando o faz, consegue, com rodeios, compensar sua renúncia.

Os paradoxos da pulsão

Gostaria de ressaltar as características paradoxais do gozo


pulsional assinaladas por Freud e retomadas por Lacan. Constatamos
que não há nada mais plástico que a pulsão, a qual pode tomar diversas
formas: disfarçar-se, mudar de figura, de objeto, de via, até alcançar a
Satisfação. Esta plasticidade condiciona todas as realizações humanas,
ao mesmo tempo existe um aspecto oposto nas pulsões em que ja
ao e esta plasticidade que o destaca, mas sim sua inércia,
-p ^st0 P°de ser ilustrado a partir de qualquer uma das pulsões.
Ornemos, como exemplo, a pulsão oral, universalmente difundida.

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Ela não tem nada a ver com a fome, com a necessidade de


para viver. Ela se gera sob o efeito da demanda do Outro posto^
o Outro oferece tanto a comida como os significanrpç n..-
j • l •j i • r S clue 3 Apre­
sentam; todavia nenhuma comida pode satisfazer a pulsão oral
segue insaciável, independentemente da comida que se ofer^
Então, de um lado, podemos dizer que nenhuma comida satisfaz3
pulsão oral mas ao mesmo tempo que qualquer coisa pode satisfazê-la
parcialmente. Constatamos que se satisfaz na bulimia quando
alguém não pára de comer, assim como na anorexia, quando o sujeito
se fixa no não comer. Coma-se ou não, a pulsão se satisfaz, inclusive
lendo o menu do restaurante, como dizia Lacan. Todas as formas
de voracidade se referem à pulsão oral, ainda que não se trate neces­
sariamente de comida, de algo digerível. Pode-se comer o saber
comer o livro, diz o Apocalipse de São João. Neste sentido, ouvir
uma conferência se assemelha de algum modo a estar em um res­
taurante: “Tragam palavras”.
Parece existir então um deslizamento infinito do gozo pulsional
na metonímia do discurso e das atividades que se ordenam através
deste discurso. Lacan dá um belo exemplo, tomado da novela de
Guy de Maupassant Bei ami. Procura mostrar aí o deslizamento do
gozo pulsional oral que sustenta a relação de Bei Ami com uma
mulher a quem tenta seduzir, dizendo: “A ostra por comer, evocada
pela orelha que Bei Ami trata de seduzir, libera o segredo de seu
gozo de cafetão” (1977, p. 34). Quer dizer que para seduzir a
mulher não só se tem que lhe falar, como também pagar com a
parte de libido necessária para que o homem realize seu trabalho e
sedução, e que somente com a metonímia há o deslocamento da

ostra por comer para a orelha por seduzir.


ulsional sustenta
Podemos generalizar: a metonímia do gozo p^
toda a realidade humana. Todas as buscas, os «forS°S" T.

profissional ou no campo do amor, todas se gera j 0


na, mas se sustentam positivamente com o os
pulsional na metonímia. O que também quer ^Iheres, em
objetos são postiços, tanto nos homens como

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

todas as atividades: todos são postos no lugar em que uma parte de


gozo foi perdida e reencontrada em um objeto sempre postiço.
Certamente ninguém pede realmente o tratamento de suas
pulsões, mesmo quando delas se horroriza, já que estas satisfazem.
Antes, alguém se dirige a análise para tentar mudar algo das conse-
qÜências de suas pulsões incoercíveis porque às vezes a satisfação
pulsional se realiza de uma maneira menos inocente que a do Bei
Ami seduzindo sua amiga. O que motiva uma demanda de análise é
antes o sintoma.

A escolha do sujeito

O sintoma se distingue da pulsão de uma maneira precisa. Por


um lado, porque o sintoma não desliza; é uma fixação que dissimula
o que Freud chamou de uma repressão, um propósito de rechaço de
gozo. Uma defesa que não vem da própria pulsão mas do sujeito,
que quer fazer oposição a um gozo quando já este gozo se lhe
apresenta como traumático. O que descobriu Freud foi que o pri­
meiro encontro com o gozo sexual — o gozo em jogo entre os
sexos — é em si próprio sempre traumático. O sujeito responde a
este encontro de maneira aversiva — histeria — ou de maneira
cativante — neurose obsessiva.
A única forma de reduzir o trauma é a que realiza o sujeito:
fazer desaparecer a memória do encontro, ou seja, fazer desapare­
cer o que podemos chamar de o significante que inscreve a memó­
ria do encontro com um gozo insuportável. Então a repressão que
funda o sintoma na realidade não modifica a pulsão. Freud o diz de
nianeira bastante explícita: reprimir ou suspender uma repressão
não modifica a pulsão, modifica a memória, a inscrição da recorda­
ção, fazendo aparecer outro significante no lugar do traço unario
do encontro. Por isso Lacan pode dizer que a repressão freudiana
obedece à estrutura de substituição da metáfora.
O exemplo mais simples que pude encontrar o tomei de Freud.
E aquele da jovem histérica que não podia entrar em lojas. Não só

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não podia entrar, como também não podia deixar de pensar nelas
Não era um fobia simples e era quase uma obssesão. Temos então
loja como significante de seu medo. Freud produz, a partir de suas
associações, recordações de outro significante, o do homem, não o
do homem em geral, mas de seu gozo sexual. Assim o medo das
lojas dissimulava o medo do encontro com o sexo.
É um exemplo simples e demonstrativo que permite entender
por que Freud diz que o sintoma mente, pois mente uma vez que há
substituição de significante. Onde na realidade há um grande temor
do encontro sexual com o homem, o sintoma indica temor das lojas, o
que aparentemente não tem sentido. O sintoma mente, mas ao mes­
mo tempo torna presente a verdade que pode ser encontrada através
da decifração. Decifrar um sintoma é sempre fazer aparecer o encontro
de gozo que esse sintoma memorizava. Assim a psicanálise antes de se
preocupar em curar o sintoma, procura revelar seu segredo.
Como se situa o tratamento em relação à revelação deste segredo?
Podemos dizer que a jovem histérica fica curada quando se
revela seu sintoma? Sim e não. Quando decifra que seu medo das
lojas é medo do encontro com os homens, o medo das lojas pode
desaparecer — efeito terapêutico — mas não necessariamente o
medo dos homens. A jovem já sabe que o segredo estava em seu
medo dos homens, e claramente poder entrar nas lojas é uma gran­
de comodidade, mas não um grande feito terapêutico até que se
cure de seu rechaço sexual.
Podemos dizer que ocorre o mesmo com a obsessão do Homem
dos ratos, mais grave que o medo da histérica das lojas porque o
impede de trabalhar, porque produz horror para ele. Para ele, quan­
do desaparece a obsessão há um grande feito terapêutico, consis­
tente, importante, mas o sujeito não está curado. Perguntamo-nos
onde pararão suas pulsões agressivas em relação a seus objetos, e o
que Lacan chamou de matrimônio com a morte.
Diferenciamos entre curar um sintoma em seu sentido
fenomenológico — fazer desaparecer o fenômeno patologico, fobia e
obsessão — e curar o sujeito, ou seja, reduzir a negação que tenta

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A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO

opor ao gozo. Curar o que poderíamos chamar na histeria de seu


rechaço do g°zo ^o Outro, o rechaço do gozo do homem, muito
bem indicado no caso de Freud: não é somente o desejo sexual o
que ela rechaça, como também a evocação da mímica, do esgar de
gozo dos homens que encontrou nas lojas. É também o rechaço do
Homem dos ratos do gozo cruel, o seu ou o do Outro.
Com estes exemplos espero ao menos fazer ver que não existe
somente um segredo do sintoma e um gozo nele implicado, mas
também uma responsabilidade do sujeito, uma vez que a posição
tomada frente ao gozo é determinante para a fabricação de um sin­
toma. A tese de Freud, ainda válida, é a de que na base do sintoma
existe um rechaço ao encontro com um gozo, ou seja, que o sujeito
é responsável por seu sintoma. Em vez de ser uma vítima, como
pensava quando veio se queixar ao psicanalista de que algo o opri­
mia e contra o qual nada podia, o sujeito, apesar de seus esforços,
torna-se, no transcurso do trabalho, responsável.

Um desejo novo

O problema consiste em saber se com uma análise se pode


obter uma mudança de posição em relação ao gozo que se rechaçava.
Mudar de posição é uma fórmula de Lacan, mas posso provar que
também o encontramos em Freud. Em Análise terminavel e inter­
minável” (1937), ele o diz de maneira mais explícita. Examina três
possibilidades após a psicanálise ter conseguido que se reconheça a
defesa subjetiva ante a exigência pulsional: ou o sujeito muda de
posição e corrige seu rechaço fundante do sintoma e Freud pre­
cisa que isto se consegue mais facilmente quando se trata de uma
neurose traumática; ou o sujeito se mostra capaz de suportar a
insatisfação da pulsão sem repressão; ou procede a uma nova
repressão mais forte e desta vez alcançada, a fim de que não se
produza outro sintoma. Ou seja, que o sujeito renuncia à sua inten
ção repressiva ou a torna mais forte. Em todo caso, o que está em
jogo é uma mudança de posição subjetiva.

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Quando Lacan sugere que no final de uma análise o sujeito


talvez possa identificar-se ao sintoma, ele se refere, entre outras
coisas, a uma aceitação do gozo implicado no sintoma. Isto está
muito próximo do que disse Freud em relação a corrigir o rechaço
de gozo que define o sujeito
Dito de outra maneira e nos termos de Lacan, trata-se de saber
se em uma análise podemos mudar ou não a covardia neurótica.
Lacan toma do Homem dos ratos o termo “covardia” e chama de
“covardia no neurótico” não qualquer falta de ânimo, mas sim a
distância que este tenta manter das exigências pulsionais e, mais
precisamente, a distância que tenta manter ante o gozo do Outro,
olhando-o com óculos.
A expressão afirma claramente como o neurótico se mantém
afastado, como usa a distância como medida de proteção. Lacan se
pergunta se no final da análise ele não se animará um pouco, para
ver mais de perto esse gozo que teme. Temos que recordar que cada
um teme algo específico, que não se trata de um temor generalizado,
pois cada um tem suas figuras de gozo temidas. Conseguir um
pouco de ânimo pode ser uma forma de aliviar a tristeza, tristeza
irmã da covardia, que marca o neurótico, ainda que às vezes possa
ser um arlequim e fazer rir. Se conseguisse se animar, obteria um
outro tipo de benefício terapêutico, não mais o da desaparição do
sintoma, mas um efeito no nível da tristeza.
Concluo: a promessa analítica vai bastante mais-além do que
levar o sujeito à infelicidade banal. Ela conjuga um efeito sobre a
posição do sujeito, ou seja, sobre seu desejo com o benefício de
saber algo sobre seu inconsciente. Em Televisão (1974), Lacan afir­
ma que de uma análise se pode esperar saber algo sobre o inconsci­
ente que determina o sujeito. Correlativamente, a análise lhe pode
dar a possibilidade de uma nova escolha ante o núcleo que lhe pro­
duzia horror — isto era a idéia de Freud. Dar a alguém uma nova
possibilidade de escolha é algo raro e valioso. Por isso, podemos evo­
car a possibilidade não sei se posso dizer de um novo desejo, mas ao
menos de um novo efeito de desejo. E uma grande promessa.

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EXEMPLAR N°

i 950

Esta obra foi impressa na cidade do Rio de Janeiro pela


Imprinta para a Contra Capa Livraria em dezembro de 1998.

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