Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Psicanálise Na Civilização - Colette Soler (Lacanempdf)
A Psicanálise Na Civilização - Colette Soler (Lacanempdf)
•I
a psicanálise
Tradução
Vera Avellar Ribeiro
Manoel Barros da Motta
Contra Capa
Capa
Revisão da tradução
480 p.; 14 x 21 cm
1998
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
< ccapa@easynet.com.br >
Rua Barata Ribeiro, 370 — Loja 208
22040-000 — Rio de Janeiro — RJ
Tel (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526
Parte i - Escritores
A literatura como sintoma I3
Duas vocações, duas escrituras 21
Rousseau, o símbolo 29
Jean-Jacques Rousseau e as mulheres 63
Constelação familiar de um paranóico genial 87
O filho necessário 93
Joyce: retrato do artista como jovem depreciador 107
Um-pai 117
Parte 2 - Analistas
Homenagem a Jacques Lacan 121
A aposta de Jacques Lacan 129
Por causa de Jacques Lacan... 13 3
O efeito Jacques Lacan 147
Théodor Reik, 1888-1969: um analisante modelo 155
Ferenczi, dernier cri 165
O ato falho de Ferenczi 173
Parte 3 - Mulheres
O não-toda I87
O não-todo do gozo e a sexualidade feminina 199
Mascaradas 205
Posição masoquista, posição feminina 209
A histérica e / Mulher: clínica diferencial 223
Bibliografia
PARTE I
13
14
15
16
17
18
19
20
Duas vocações
21
rar os costumes? •
A conjuntura objetiva é portanto muito simples. Sobre o eixo
imaginário: os dois amigos, Jean-Jacques e Diderot a vítima. Entre
eles o grande Outro da lei que aprisionou Diderot. Não falamos
disto aqui, mas sabemos por outras vias que Rousseau estava muito
emocionado, e mesmo agitado, com o golpe que atingia seu alter-
ego Diderot. Esse Outro da lei implicitamente presente duplica-se
de repente de um Outro do saber, o qual se dirige aos eruditos para
interrogar o valor dos saberes do tempo. Aí Rousseau foi tomado
por esse distúrbio inexprimível que descreveu muitas vezes segui
das, notadamente em Cartas a Malesherbes, e que certos autores, Janet
sobretudo, compararam aos transes dos místicos. Releiam o texto.
À questão do Outro do saber a resposta do sujeito Rousseau é a
revelação íntima, ou seja, a presença de uma verdade que não é pos
ta em palavras senão parcialmente, Rousseau insiste nisso, mas que
é totalmente transformada em emoção como certeza do sujeito.
Esta verdade sem dúvida é recusa da mensagem implícita do Outro
e e inteiramente contestadora. Rousseau permanece no registro da
comunicação, da troca das significações às quais podemos nos identi
ficar, porém o faz para denunciar e consignar uma nova mensagem.
Outro da lei
Outro do saber
irto
Jean-lacques identificação £rt*
Diderot
c
o
u
a verdade emocionada
certeza do sujeito
As Epifanias de Joyce são completamente diferentes. E as coiy
tituem um fenômeno extremamente opaco ao qual com certeza nao
22
23
significante seja referido a outros. E preciso que ele nos diga qUa[ ,
seu objetivo. É a evidência, aquela das significações comuns. As
Epifanias desmontam o Outro do sentido comum, o Outro do dis
curso corrente. Em Rousseau, este Outro não existe para ser des
truído, mas para ser contestado e Rousseau se mantém em seu nível
o da significação. A operação epifania é radical de outro modo: fora
da polêmica, ela quebra a própria linguagem deste Outro.
Eu me interroguei sobre o contexto desta operação. Nela bus
quei os rastros da relação ao semelhante tanto quanto ao grande
Outro. Eu descobri com surpresa que Joyce tomava o cuidado de
nos precisar que seu herói sofria nas mãos de seus colegas. Sobre o
eixo imaginário, seus colegas de colégio lhe são insuportáveis; estes
inclusive o deixam "enojado”, tal como ele o ficará mais tarde com
a surra. E também há um Outro da dissertação. Espantosa coinci
dência, não é? Joyce explica a aplicação de Stephen na redação de
suas composições em inglês: "Ele aí se distingue por um certo tom
original um pouco sumário; ele não se dava a nenhum trabalho de de
senvolver as audácias expressas ou subentendidas em seus escritos .
O Outro da dissertação encarnado pelo pai Butt é o Outro da tra
dição jesuítica na qual Joyce foi educado. Aqui há uma grande dife
rença de Rousseau a Stephen. Rousseau se via como autodidata.
Ele não se emparelha com os eruditos e pensadores da época no
momento em que começa a escrever. Já Stephen é um herdeiro da
tradição, ainda que aí ele seja atípico pela posição de sua família.
Como Descartes que, tendo estudado nos melhores colégios, pôde
traçar uma linha sobre todos os saberes de seu tempo e fazer surgir
seu cogito, Joyce-Stephen, experto em Humanidades, fabrica epifanias
subversivas de toda significação.
Outro da dissertação
nojo
irúo CS
V)
□
revelação epifânica
9 A
Então o que ele busca? Ele o diz: fazer surgir a própria coisa.
Jvlais-alem das significações, fazer aparecer o que ele chama de um
termo tomado de São Tomás, a claritas , de algum modo o ser das
coisas.
Duas escritas
25
27
r 29
Joyce e Rousseau
31
imensos efeitos
e de ressonância e uma influencia
emociona, inflama e sem precedentes
forçando o con-
sobre o esptr^ constrange_o à réplica que adere ou contesta,
sentimento q seu corte)o de apostas cada vez mais
Assim ca a p lêmicas indignadas. Por mais que Rousseau
OU autobiográfica.
Neste sentido, a entrada de Rousseau na carreira das letras
com o famoso Discurso sobre as ciências e as artes, que o levou de manei
ra tao estrondosa à celebridade é exemplar: evidentemente a inspi
ração aí está estruturada como uma réplica; nela Rousseau respon
de ao Outro. E que Outro! — “Uma das mais sábias companhias
da Europa”, a “célebre” Academia de Ciências e de Belas Letras de
Dijon, que propõe para o concurso do prêmio de moral do ano de
I75O nada menos do que a questão seguinte: “O restabelecimento
das ciências e das artes contribuiu para depurar os costumes?”!
O Outro do saber colocando a verdade a prêmio, e ainda por cima
a verdade ética, eis o que galvaniza a eloqüência de Rousseau, até 0
ponto dele se desprender de um só golpe da “feliz obscuridade
para tornar-se o homem mais célebre da Europa. Ele próprio, aliás,
sempre apresentou sua vocação como vinda de fora.
Do desencadeamento de sua primeira inspiração ele fez várias
narrativas nas Confissões, no segundo Discurso, no terceiro Passeio, mas
sobretudo e em primeiro lugar nas Cartas a Malesberbes.
Eu ia ver Diderot então prisioneiro em Vincennes.[-J Ca,°
sobre a questão da Academia de Dijon. [...] Se alguma co
assemelhou a uma inspiração súbita, foi o movim ,^to
produziu em mim esta leitura; de repente sinto o
deslumbrado por mil luzes; multidões de ‘^'^fusão
apresentam ao mesmo tempo com uma força e
34
que cu lhe destino, imaginem se não saberei fazer-me ouvir por ele;
se não lhe saberei tornar agradáveis e caras as qualidades que ele
deve amar. [...] Ora, fornecendo o objeto imaginário, sou o mestre
das comparações e facilmente impeço a ilusão dos objetos reais”
(ibid., p. 656). Confrontado com a tarefa impossível de educar,
lutando contra o problema de todos os poderes, a saber o domínio
da fantasia, Rousseau enuncia a solução ideal: fornecer a ficção que
convém. A imaginação aqui não é mais o nome dos efeitos de
negativação e de irrealização da linguagem, mas o nome de seus
recursos de comando ou de orientação.
Há várias destas ficções ideais na obra de Rousseau. Elas se
repartem com bastante simplicidade. Inicialmente vêm as figuras
anteriores à desordem. São o bom selvagem e Emílio, o homem das
míticas origens e o filho da natureza. A seguir, tendo advindo o mal
social, há, na pior das hipóteses, as figuras da virtude, Julie e Saint-
Preux, Emílio adulto e seu preceptor. Deixo fora da série por ora o
bom Jean-Jacques. Certamente estes produtos de sua imaginação
“visionária” — é o termo que aplica a seu Emílio — estão agora
fora de uso, para nós fora de uso de gozo. Julie nos aparece sobre
tudo como uma princesa de Clèves fastidiosamente tagarela, e o
preceptor como um Sócrates pervertido doutrinando um tolo. Mas
houve uma época em que suas imagens souberam captar a libido
chegando a produzir o enlevo. Através delas Rousseau se tornou
um verdadeiro ídolo, sua correspondência o confirma. Conside
remos, por exemplo, esta insólita super-ficção que foi, após a
publicação de A Nova Heloísa, a troca epistolar com Marie Anne
de la Tour fingindo ser uma Julie, dirigindo-se a um Rousseau-
Saint-Preux que não desdenhou entrar no jogo, e isto durante
mais de um decênio...
A este Rousseau-a-ficção, que não se opõe menos a Joyce-o-
sintoma do que a palavra rousseauniana à letra joyceana, pergunto
como são forjadas suas criaturas.
36
A foraclusão metódica
37
38
39
4i
42
43
44
45
46
47
48
49
50
íntimo, de uma Bejahung de um delito que lhe diria ser ele cu|pado
de sua vida e de seu ser.
Esta hipótese se choca com uma objeção. Como fazer do del
o sentido oculto da obra e a chave da vida de Rousseau um
que ele está por toda parte, à flor do texto e das proposições explí
cito, invasor e, traço decisivo, inteiramente localizado do lado d0
outro? Que Rousseau de fato tenha sido, “ao se constituir vivent ”
a causa da morte de sua mãe e por conseguinte do drama paterno
parece antes tê-lo predisposto a rejeitar esta causalidade, sem dúvida
demasiado objetiva para ser facilmente subjetivável.
Quando ele solenemente clama perante o mundo que era ino
cente, a despeito de toda aparência, quando desafia seja lá quem for
a se declarar melhor do que ele, quando se acusando, ainda assim
ele se absolve, não são nem o tom nem a forma da denegação, ela
que confessaria, negando. São ditos categóricos e fora da dialética.
Mais genericamente, para ele há o sim e o não, o tudo e o nada,
o verdadeiro e o falso, o inocente e o culpado, que não poderiam
flutuar segundo a linha dos Pirineus. O ainda que, o talvez, o por
um lado, o sim-e-não lhe são insuportáveis, como são insuportá
veis todas as formas do meio-dizer da verdade. Assim nós o vemos
— sobretudo tragicomicamente — intimar Saint-Lambert a se pro
nunciar com um sim ou com um não sobre sua amizade, reivindicar
ser tudo para o outro a menos que conclua não ser nada, exigir que
se pertença inteiramente a ele e que também o deixemos entregue a
si próprio, enfim pretender tudo dizer até a famosa transparência .
Ele não quer uma verdade mocha, também lhe é necessário supô-la
escrita no fundo dos corações, como um selo indelével, subtraído
da divisão significante.
Mas um coração “transparente como cristal é um coraçao
maniqueu que nada recalcou, que, tornando absoluta a binaridade
significante, separou sem dialética o bem do mal, e expulsou este
último para os confins da alteridade. Aliás, evidentemente esta par
tição dos contrários, geradora das grandes polaridades conceituais,
52
53
do eque
Ele1 Pnáo ele é acusado,
culpado, ele éfalante
mas sendo está se
porque
acusadonão postula
menos inocente.
separado de
54
55
Um goçp autárquico
57
59
60
63
64
saber que uso dele podemos fazer. De minha parte, considero, sem
justificá-lo aqui, que a paranóia de Rousseau já estava desencadeada
e ativa no momento em que ele começou a escrever suas Confissões.
Certamente existem diferenças segundo os livros, mas o conjunto
do texto esta escrito na perspectiva da perseguição e do arrazoado
que responde a ela. A elaboração que os justificam está presente em
toda parte e não podemos esperar do relato que ele nos dê a exati
dão biográfica lá onde é a verdade paranóica que ressoa. A demons
tração não deve mais ser feita: sabemos, por exemplo, que desde as
primeiras páginas, nas quais Rousseau descreve sua família, seus
pais, o casamento deles, seu nascimento, ele nos apresenta uma his
tória quase mítica em que nada é exato, mas em que podemos reco
nhecer a verdade de sua ficção paranóica.
Tomando-o assim, podemos identificar sem dificuldade
alguns indícios claros de um discreto empuxo-à-mulher.
A página sete evoca o laço da criança Rousseau com seu pai
(vocês sabem que sua mãe morreu no momento de seu nascimento).
Ele diz:
Eu não soube como meu pai suportou esta perda; mas sei
que ele jamais se consolou dela. Ele acreditava revê-la em mim,
sem poder esquecer que eu a tinha tirado dele; jamais ele me
abraçou sem que eu sentisse em seus suspiros, em seus
convulsivos abraços, um lamento amargo que se misturava com
seus carinhos; estes não deixavam de ser mais ternos. Quando
ele me dizia: Jean Jacques, falemos de tua mãe; eu lhe dizia:
pois bem, meu pai, então vamos chorar; e só essa palavra já lhe
arrancava lágrimas. Ah!, dizia ele gemendo: devolve-ma,
consola-me dela; preencha o vazio que ela deixou em minha
alma. Eu te amaria assim se fosses apenas meu filho? Quarenta
anos após tê-la perdido, ele morreu nos braços de uma segunda
mulher, mas com o nome da primeira na boca, e sua imagem
no fundo do coração.
Vemos desde estas primeiras linhas, ante o Outro barrado,
evocado precisamente pela expressão “o vazio da alma , Rousseau
66
Jacques, que sonha com o amor como uma mulher, que flana no
campo, que conhece gozos requintados abandonando-se à natureza
ou que trança os laços com as mulheres ao pe da porta. Diferente
mente de Schreber, Rousseau jamais advoga por sua virilidade. Muito
longe de protestar ou de lutar contra a feminilidade, ele antes se
surpreende que lhe tenha chegado a alcançar a estatura do Homem.
Ele comenta sobre um ‘isto não era eu', reconhecendo aí o artifício
de uma sobreposição identificatória tomada emprestada das leituras
de sua infância sobre a Roma antiga.
Afirmando-se feminino, Rousseau diz ter sempre preferido a
companhia das mulheres. De fato, ele amou homens com paixão,
mesmo muitos homens, teve grandes amigos e disso não se defende,
mas sempre protestou que efetivamente entre a companhia de um
homem e a companhia de uma mulher, há nesta última uma coisinha
a mais que não é o amor, mas que se liga ao sexo e que ultrapassa os
encantos da amizade. Certamente esse traço pode receber diversas
interpretações, mas sabemos em todo caso que no final de sua vida
ele tomou o hábito armênio. Ele usava vestido — pretendendo ser
isto mais cômodo em razão dos cuidados necessários com sua
doença na bexiga! — e se ocupava, como as mulheres, com as mulheres,
em trançar laços. Nessa época, ele escreve para uma mulher e essen
cialmente lhe diz: “Eis-me aqui um pouco em seu sexo e eu me
sinto melhor nele do que no meu”.
Podemos ir mais longe. Gostaria de evocar um texto — citado
recentemente por Alain Grosrichard — que nos permite ultrapassar
as declarações explícitas de Rousseau e perceber alguma coisa de
sua posição em relação ao reconhecimento da diferença dos sexos,
ao que são homens e mulheres, sexualmente falando. O texto se
encontra em seu Emílio. Rousseau medita sobre o que deveria ser a
educação sexual ideal. Como o preceptor deveria responder à per
gunta: “De onde vem as crianças?”. A resposta nos é importante,
pois, a partir de Freud, aprendemos que esta pergunta esconde
uma outra: aquela da diferença dos sexos e dos gozos. E eis o
que diz Rousseau: “Conheço a resposta de uma mãe que é admirável”.
67
r 69
70
71
Ora, Rousseau não aprendeu o Édipo com Freud, não é?, e sua
observação tem muito mais valor, valor de verdade.
A partir dai, as relações de Mme de Warens e de Rousseau *ão
se deteriorar, e isto bem antes que ela lhe imponha um rival. Temos
72
73
74
75
76
77
esta dama não partilha da soberba dos grandes, tão odiosa para o
coração do cidadão de Genebra; ela conservou, como o próprio
Jean-Jacques, uma simplicidade bem próxima da natureza.
O segundo encontro, fatídico, foi outra coisa. Nada de sapato
furado, bem longe disto: “Ela estava a cavalo e vestida de homem”.
“Ainda que eu não goste deste tipo de mascaradas”, diz Rousseau,
“fui tomado por seu jeito romanesco”— ainda o traço de romance
e “desta vez foi o amor”. Ele nos descreve Mme. d’Houdetot,
sua figura, seu jeito etc.
78
79
80
82
Mlle. Lambercier. Ela também faz parte das mulheres que infletíram
seu destino. Ela decidiu não sobre seu caráter ou sobre seu ser moral
mas, diz ele: “sobre meus gostos, sobre meus desejos, sobre minhas'
paixões, e a respeito de mim pelo resto de minha vida”. E nas págInas
l6-ss do livro I, ele precisa ter devorado durante muito tempo;
84
85
86
Os filhos dos reis não poderiam ser cuidados com mais zelo
do que eu o fui durante meus primeiros anos, idolatrado por
tudo o que me cercava, e sempre, o que é muito mais raro,
tratado como uma criança querida, jamais como criança
mimada. [...] Meu pai, minha tia, meus pais, minha ama, meus
parentes, nossos amigos, nossos vizinhos, todos os que estavam
à minha volta não me obedeciam, é verdade, porém me amavam,
e eu os amava igualmente (ibid., p. 10).
Esta criança-rei sem dúvida não deve ser psicologizada, pois
aquele que escreveu: “Odeio os grandes anuncia aqui ao mundo
87
que não é necessário ser um dos grandes para ter uma inf«
homem. Contudo o testemunho da felicidade permanece
for a nota de idealização que aí se acrescente. Não é a Sual
,,crnoria d
dilaceramentos e das renúncias subjetivas próprias ao ne ' ■ °S
mas contrariamente uma memória em que nao sao denosiraJ,
< ,r- j . *í aas senão
as imagens do pacifico contentamento da primeira infância De
genitores, de seus primeiros anos, Rousseau jamais se queixa e
quisermos encontrar neste contexto familiar um indício que trad
zisse ao nível dos fenômenos uma deficiência do simbólico é ne
cessário proceder a um decifração.
Qual é a cronologia dos fatos?
Até seus dez anos, o jovem Jean-Jacques foi educado por seu
pai e por sua tia. Em outubro de 1722, seu pai tendo que deixar
precipitadamente Genebra, ele passa para a tutela de seu tio Bernard
que o manda para o campo com seu primo. Ei-lo então em Bossey
na casa do pastor Lambercier “para aí aprender com o latim todo
esse conjunto de pequenas coisas que o acompanham sob o nome
de educação" (ibid., p. 12). Aí ocorrem os dois episódios cruciais
da palmada deliciosa aplicada pela Mlle. de Lambercier e da injusta
correção infligida pelo tio Bernard. Em seguida, após dois anos
passados em Bossey, Jean-Jacques retorna a Genebra para junto de
seu tio e de sua tia.
Se falta alguma coisa neste contexto, isto não é uma mãe.
Rousseau encontrou uma e das mais ternas na pessoa de sua tia e se
esta não foi aquela que o gerou, ao menos ele crê, tendo nascido
quase agonizante, dever a vida a seus cuidados. Desta tia pouco
temos conhecimento; no entanto sabemos que ela consagrou seu
celibato para que pudesse velar por seu sobrinho, e seus último
anos aos cuidados de seu jovem marido alcoólico com quem
casou tardiamente. De Rousseau, sabemos do amor que lhe dedic
jamais desmentido, a marca que dela conservava em sua paixão p^
música, a nostalgia essencial que ele não cessou de associar
lembrança, enfim a reatualização de sua imago quando da g
com aquela a quem chamava de mamãe:
88
90
Apenas uma coisa e certa, a mulher do pai falta, sendo todo o pro
blema o de saber a título de que. Não e uma lógica única que faz
concluir, a partir desse "consola-me dela”, que Rousseau é chamado a
um lugar feminizante.
Também seria possível ler aí a confissão de que a mulher estava
no lugar da criança. Mas não se trata, com efeito, de uma palavra do
desejo, que evocaria um lugar sexuado; antes, de uma demanda de
preencher a falta-a-ser; dito de outro modo: de um apelo do amor
que elide precisamente a dimensão sexuada do objeto.
Aliás não somente os fatos — que Rousseau não ignorava —
mostram um homem pouco obsequioso para dividir a vida com sua
mulher, como também o discurso que evoca esta última a idealiza
demasiado para tornar presente a dimensão propriamente sexuada
do desejo. Para Rousseau, o casal original de seus pais está certa
mente colocado sob o signo do amor, mas de um amor que fala a
mesma língua que o amor parental ou que o amor fraternal.
Que pai foi este tal de Isaac Rousseau?
Seu filho se enternecia com sua lembrança mas os traços que
ele isola são aqueles da falência; e duplamente: por sua negligência
e sua brutalidade para com seu filho mais velho que ele abandonou
à sua mãe deste o nascimento, e que Rousseau se lembra de ter tido
que cobrir seu corpo para protegê-lo dos golpes, mas também por
sua camaradagem totalmente paritária com Jean-Jacques.
A propósito das noites passadas lendo romances, quando não
tinha mais do que seis anos, ele observa:
91
92
93
94
95
menos inefável. Isto não deixa de evocar para nós algo próximo de
certos fenômenos elementares da psicose, embora aqui não tnr<b
de fenômenos elementares porém de uma técnica literária. Ainda
ocorre que Joyce se divirta confundindo os comentadores, pOIS frn
seguida volta a colocar suas epifanias em outro contexto. Tendo-as
tirado de um, coloca-as em outro e desta maneira provoca uma
nova interrogação.
Em resumo, Joyce usa a língua de maneira distinta da habitual
a maneira com que joga com as palavras e com a letra o faz sair do
terreno do chiste. O chiste também é um jogo com a língua e com
a letra, mas que se detém na emergência de uma pequena borbulha
de sentido, ao passo que Joyce aprimora o jogo até o limite em que
já não há nada chistoso. Em sua escrita trata-se unicamente de
matéria da letra, e o que finalmente interessou Lacan foi o fato do
gozo de Joyce estar mais próximo ao do matemático que, assim
como na caligrafia, também faz a seu modo um curto-circuito do
sentido. Essa é a razão pela qual Lacan diz que Joyce põe um ponto
final no sonho. O sonho é a própria literatura; Finncganf Wakc, um
despertar do sonho do sentido.
Assim podemos inicialmente sublinhar que a arte de Joyce é
homogênea aos fenômenos elementares da psicose. Em segundo
lugar — é do que trataremos a seguir — há uma correspondência
entre sua arte e sua especial relação com o corpo. Podemos perguntar
de que modo Lacan teve a idéia de que Joyce era psicótico. Dizer
que Rousseau era paranóico, isso todo mundo sabe, mas Joyce.
psicótico, só um Lacan pode dizer algo assim, exceto nós mesmos,
que o repetimos depois de Lacan. E que a psicose de Joyce tenha
ocorrido a Lacan, nós o explicamos — sem que muito se tenha
revelado sobre isso — pelo fato de que sua escrita expulsa o imagi
nário do sentido e de que é um jogo entre o Simbólico e o Reai-
Pois bem, Lacan define os fenômenos elementares da psicose como
uma interseção direta entre o Simbólico e o Real. "Porca é um
significante que aparece no Real, fora do sentido, e se quisermos
coloca lo no nó borromeano, teríamos que situá-lo entre Real e
96
97
99
100
IOI
102
103
104
105
J“PTtX°.u -"d”" rH *•
P’,enKSes, lovc. PorqueoJana/smo‘onJiS«de«r.omodom
*
, c>;'„ De um modo ou de outro. Joyce nao e um
fabricada, artl 1 Lacan co|o„ o analista do lado do
santo. Isto nos interessa ja du
santo e nos propõe uma nova definição do santo: a scabtaustration
(ibid., p. 3 3) — escabelastração, a castração do escabelo. E uma
condensação cjue cjuer dizer a castração da promoção do ego.
Não sei se em psicanálise chegamos a isso. Não encontro ares
disso. Apesar de tudo, é um Ideal, talvez um ponto no horizonte.
106
107
108
109
110
112
11?
114
115
117
PARTE 2
121
ele o sintoma não era uma falta de uma pretensa normalidade a ser
retificada. Era antes um testemunho do fato de que o desejo é
estruturado em um impasse. Esses pacientes, ele os tratava corno
testemunhos. Isso excluía evidentemente a condescendência.
Testemunhos do que é o destino do "fala-ser”, esse fala-ser em
quem os corpos podem se acoplar sem no entanto fazerem relaçào.
Era um outro modo de ouvi-los, diferente de simplesmente querer
corrigi-los, e todos os que dele se aproximaram foram sensíveis a
ISSO.
Quanto ao sujeito, Lacan o distinguia do indivíduo. A conse
quência disso, consequência prática, foi que ele não escolhia seus
pacientes em função de seus status. Que tivessem cultura, que fossem
ou não do meio da saúde mental, que tivessem ou não recursos,
intenções ou não quanto à análise, pouco lhe importava. Ele sem
pre teve todos os tipos de paciente. E um traço que o diferencia
completamente da maioria dos psicanalistas ditos “experientes", os
quais, mais ou menos, talvez sem o escolherem, terminam sempre por
se especializarem nas análises de cunho didático e nas supervisões.
Minha última observação concerne à própria técnica. E sur
preendente que ela tenha suscitado os mais diversos ecos, e para
isso há uma razão. Lacan o disse, ele não fazia aliança com o eu
(moí), e seu savoir-faire antes ia de encontro aos simples hábitos
que regulam as relações mundanas entre os indivíduos. Não é inco
modando pouco as convenções em que o sujeito pensa encontrar
sua estabilidade que podemos invocar em cada um o sujeito universal
e os impasses particulares de seu desejo e de seu gozo. Sobre este
ponto Lacan foi incansável até o último momento.
Esta coerência com suas próprias teses, Jacques Lacan a mani
festou também na relação com seu próprio ensino. Observo em
primeiro lugar que ele não se julgava o agente de seu ensino mas
seu e eito, e que jamais visou a originalidade, ainda que a tenha
alcançado. O que ele visava, seu caminhar, seus ajustamentos suces
sivos, seu modo de girar em torno o mostram. Ele procura dizer
com precisão, bem dizer ’ sobre a experiência analítica. Em uma
124
126
A psicanálise, freudiana
129
para o tncunu” *
seguinte. Vejo nisso um símbolo
Podemos observar que aqueles que se reagruparam em torno
de Jacques Lacan em sua antiga Escola, nem sempre souberam reto
mar por conta própria o questionamento dos psicanalistas “Outros".
Seus alunos muito frequentemente acreditavam em tudo que ele
dizia, sendo o círculo de suas leituras quase sempre interno ao das
referências de Lacan. Certamente sempre houve psicanalistas que
“viajavam", como se diz em Caracas. Mas como eles o entendiam:
representação do lacanismo ou simples vilegiatura? E muito difícil
dizê-lo, pois essas trocas nunca foram versadas na conta da elabo
ração teórica, e Lacan foi sempre o único a falar publicamente do
ensino que soube tirar de seus contatos estrangeiros: por exemplo,
de sua viagem ao Japão ou aos Estados Unidos.
Assim, trata-se hoje sobretudo de recomeçar um tipo de troca
científica, iniciada por Lacan, porém por muito tempo em vão re
comendada. Uma Escola não é um Círculo, sua relação íntima a um
ensino fundador não implica nem a exclusividade das referências,
nem mesmo a localização geográfica.
É fato que Lacan, como todos os autores ditos intraduzíveis,
é hoje amplamente traduzido: inglês, alemão, espanhol, italiano,
japonês... imperialismo da tradução talvez. Esta palavra pode fazer
vibrar a sensibilidade muito particularmente lá onde se sofre a
verdade, de imperialismo.
Contra seus tradutores, em nome das línguas nacionais,
podemos inclusive invocar Lacan e sua doutrina do significante.
Uma tese se destaca: a verdade se prende ao texto, ela é sempre
literal. O retorno a Freud é um retorno não no sentido literal, mas
às articulações do texto sempre lá; da mesma forma, é no palavra
por palavra da versão que se decifram os “ditos” do analisante.
O inconsciente, portanto, se enlaça a alíngua (lalangut').
ngue). Mas então
não se deveria concluir, sendo cada língua específica, que o procedi
mento freudiano não se exporta senão ao preço de cair sob o golpe
Ui
O Encontro
132
empre renovada de Neikos, ainda a discórdia, a não ser que esse sorti
légio as cubra com a mortalha de uma inércia mortificante.
Eis a pedra de escândalo da qual se alimenta a perplexidade do
público, as testemunhas. Por vezes isso é usado para o descrédito
da disciplina. Mas isso é concluir, antes de ter compreendido, sobre
um fenômeno do qual seria preciso apreender a lógica interna, e
que sobretudo apela a uma interpretação sobre a causa.
Constato que nunca evocamos esses conflitos sem aí colocar
uma ponta de decepção, e mesmo de indignação, ao menos alguma
coisa parecida com uma lástima em constatar que o psicanalista
mergulha nas paixões que achamos muito comuns, para que não
sonhemos vê-lo delas liberto. Ao mesmo tempo postulamos que
deve haver, de um lado, os psicanalistas e suas pequenas guerras e,
do outro, os verdadeiros problemas da psicanálise. Isso quer dizer
que gostaríamos que a psicanálise, que de fato se distingue dos
psicanalistas, não seja demasiadamente comprometida por eles. Sem
dúvida este é o sinal de algum respeito transferencial. Aliás, é evi
dente que os psicanalistas o mantêm e que estão prontos a deixar
pensar que a instituição concerne não à psicanálise, mas aos psica
nalistas, e que aquilo que conta é a psicanálise! Ora, se levada a
sério, esta tese é insustentáve 1. H á solidariedade entre a instituição
analítica e a psicanálise por uma razão fácil de dizer: a psicanálise
— o estado de sua prática e de sua conceitualização — está subor
dinada ao psicanalista. Quanto ao psicanalista, ele depende da for
mação que recebeu, ao menos em parte, e a própria formação, que
em nenhum caso se reduz ao tratamento, é solidária da instituição
— mesmo quando ela faz falta. Conclusão: o problema da comuni
dade analítica é um problema de psicanálise.
Mesmo assim, perguntamos ainda se não é necessário distin
guir nesses conflitos as questões pessoais dos embates técnicos.
Quando formulados assim, fica de antemão entendido que bater-se
por questões pessoais — passionais — é sempre muito reles, en
quanto é muito nobre ter cu idado com a doutrina! Mediante o que,
aliás, não há torpeza em psicanálise que não se faça em nome de sua
13 5
136 _
"nalisar sob condição de que seu ensino não figurasse nos progra-
’mas — com todas as letras — e de que seus anahsantes nao preten
dessem tornar-se analistas! Continue falando, dizia-se àquele que
fizera sua entrada pelos poderes da fala e a quem se pretendia privar,
porém tarde demais, do poder de transmitir.
Em 1980 as coisas passam entre Lacan e sua Escola: ele aposta
em seu ensino contra esta Escola que, sem recusar nem esse ensino,
nem sua conseqüência maior no que se refere ao passe, deles não
soube fazer uso. Através da dissolução, Lacan, sem dúvida instruído
pelos avatares da obra de Freud, priva sua Escola do monopólio do
rótulo Lacan.
E lógico que a partir daí a Associação Internacional proclame
o fracasso, explique que era um belo ensino porém um fracasso
institucional, e queira fazer crer que hoje exista, de um lado, a
ordem consensual da grande associação e, do outro, a desordem
disruptiva dos lacanianos. Isso tem a simplicidade do maniqueísmo,
mas isso tem também sua falácia. Porque esta ordem é sobretudo
aquela da confusão e porque, por outro lado, a dispersão da EFP
não é a última palavra da aposta institucional de Lacan.
. em torno do ensino de
A verdade é que — Jacques
,—1— Lacan um
------—
. c_: .
passo 01 transposto: as lutas internas do movimento francês che
garam pela primeira vez a questionar o princípio de unificação
. jonal ^Ue ^reud acreditara necessário à sobrevivência da
iormas provocou
Lvuiousempre
boração modificando a prática instituídas,neles novacrise
todauma ela
139
140
142
144
145
Pois é claro que quanto menos eles podem se entreter com seu
saber, mais eles querem se associar. A prova foi dada dez anos após
a dissolução: aqueles mesmos que o amargor, a desolação, sei lá
mais o quê, impulsionaram a ir cada um para seu lado, tal como
gato esfomeado, se agrupam novamente; e por quê, senão para se
reconhecerem entre si, e se fazerem reconhecer? E isso a sociedade
dos analistas: uma máquina de identificar socialmente o psicanalista
na falta de não poder fazê-lo analiticamente. A coletividade dos
analistas é afligida por um tormento secreto que transcende as indi
vidualidades: em seu ato o psicanalista não é identificado, e talvez
isso não seja suportável sem algumas compensações e efeitos de
retorno. Este grande atormentado da psicanálise que foi Ferenczi o
viu bem, ele que muito cedo se interrogou sobre os efeitos da prá
tica analítica... sobre o analista. “O psicanalista só se autoriza de si
mesmo” sim, com certeza, mas ele ainda quer que isso se saiba e
que sua mensagem lhe retorne do Outro. A organização da IPA,
arrogando-se o direito de batizar o analista e lhe impondo sua iden
tificação, mascarava este fato: os psicanalistas aspiram a esta identi
ficação. Eles aspiram a isso tão mais ferozmente quanto mais
estiverem à mercê da investidura da transferência, e sobre a qual
imaginam que ela é condicionada pela identificação — erronea
mente, pois isso não é tão simples. Desde que, graças a Lacan, o ser
não identificado dos analistas foi descoberto, tudo é bom para eles:
a Sociedade dos analistas, é claro, o apelo do Estado para que este
o distinga — é o cúmulo — a mass media a todo o vapor, e isso só
para começar. Temo bastante que aqui, como em cada caso, seja o
erro do julgamento que não perdoe, e que de tanto lisonjear o Outro,
os psicanalistas não venham a se encontrar na sopa dos psi .
O que no momento está em jogo é o seguinte: será a Socieda
de dos analistas ou a Escola de psicanálise. Uma vez mais na história
e desta vez há numerosos nas Escolas do Campo freudiano -
existem aqueles que estão ainda com Lacan, pela Escola de Lacan. E
isso graças à indução de seu ensino, operando doravante mais-além
de sua presença.
146
147
148
149
150
151
r
Digitalizada com CamScanner
COLETTE SOLER.
152
154
155
157
158
159
161
162
163
Suspenso
165
166
Destinado à publicação
167
Apologia e requisitório
168
Lado coração
169
Lado teses
170
I7i
Mudança de discurso
Porém o que não sabíamos antes deste Diário era até que ponto
Ferenczi assinaria as consequências de seu postulado. O que ele
nomeia “uma revisão” impõe-se espetacularmente sobre dois temas
que fazem pedra angular: a sexualidade infantil e a pulsão de morte.
Todo o edifício freudiano é enviado às estrebarias de Augias.
Sexualidade infantil, perversão polimorfa, incesto e norma-
tização edipiana, enfim pulsão de morte, sobre a dupla vertente da
agressão c do masoquismo, não são na melhor das hipóteses, diz
Ferenczi, senão os escombros do traumatismo, enxertos artificiais,
quando não são projeções do próprio analista. Pois a criança verda
deira antes de toda violência não é senão ternura e bondade; a
genitalidade é nativa e primeira enquanto a natureza em geral é
habitada por uma pulsão “de apaziguamento” e de “conciliação”.
Nesta veia rousseauniana — basta citar Ferenczi mais adiante —
poderia se pensar que dele debochamos.
O pássaro de Vénus é cagão, diria Jacques Lacan... Ferenczi
pensava ser mais doce acreditar — ou protestar, talvez — que a
verdade tem o suave perfume das origens, na qual tudo é dom,
apaziguamento e partilha. Uma coisa é certa: técnica e teoricamente.
Ferenczi, no momento de sua morte, tinha saído da via da análise.
De volta à hipnose e à sugestão — que pretende reabilitar — tendo
escolhido, ele o diz, Breuer contra Freud, ele mudou de discurso,
sto seja em nome das boas intenções terapêuticas, não muda
sonhado ser o mestre. Um mestre bom e verídico. Como
> ele o buscou, como analista, ele quis oferecê-lo. Para sua
172
Procurem 0 goço
175
176
177
Assim era o Ferenczi dos anos 1920. Será o mesmo que dez
anos após, proporá a neocatarse? Quatro artigos se escalonam de
1929 a 1932: “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929)
“Princípio de relaxamento e neocatarse” (1929), “Análise de crianças
com adultos” (1931) e “Confusão de língua entre os adultos e a
criança” (1932b). A reviravolta é total. Todas as proposições de
Ferenczi se inverteram. O “deixar-fazer” substituiu a atividade; o
princípio de realização (Gewahrung) 1 substituiu o de abstinência e a
reparação final tomou o lugar do luto. E que doravante a resistência
é imputada não à fantasia, mas sim aos efeitos insistentes de um
traumatismo do passado.
Ferenczi certamente não chegou a isso de um único golpe.
Dois artigos inicialmentc marcaram o fim de suas primeiras tenta
tivas. São eles: “Contra-indicações da técnica ativa” (1926) e “Elas
ticidade da técnica psicanalítica” (1928b). Ele aí confessa os fra
cassos ou ao menos os limites de sua técnica, e ele a corrige não em
sua finalidade, mas em seus meios. Injunções e proibições sendo
recusadas como procedimentos do mestre, pouco propícios para
sustentar a transferência e nem sempre aptos para desfazer as resis
tências, Ferenczi retorna nesse momento a uma atitude mais
“expectante”, que fundamenta seus cálculos em uma insistência
maleável e paciente lá onde a interpretação perdeu seus direitos.
Ferenczi justifica a retumbância dos anos 1930 não só pelos
impasses de certos tratamentos, mas também por uma estranha
profissão de fé. Ele se vale, para fundamentar suas novas e às vezes
escabrosas iniciativas, de uma “fé fanática” nas possibilidades de
sucesso da psicanálise, e de uma recusa em admitir a incurabihdade,
ainda que fosse ao preço do conforto do analista (1931)- Como
não perceber a nota de heroísmo ofensivo que vibra nesta curiosa
proclamação e na qual se trai, mais-além do enunciado — inatacá\ el
e a não correspondência de uma enunciação? Mas deixemos 0
I. Cf. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte , p. 80 e Princípio
relaxamento e neocatarse", p. 88.
178
I8o
181
descobriu que não era o bastante. Disso ele conclui que era preciso
nda ser totalmente verdadeiro e portanto confessar satisfações e
fraquezas. Assim o analista toma a falta sobre si e, por uma curiosa
reviravolta, é ele quem se encontra na situação de confessar. Seria
preciso pagar esse "preço ridículo para que seja somente reconhecida
a falta a ser do neurótico?”, pergunta Lacan.
183
sem qUe tenha lido o texto. Três dias depois, ele já o leu e
j ’j com o toque lacônico de um telegrama, datado de 2
^setembro, que estigmatiza o texto: “Inofensivo^Bobo”.
Em todo caso, Freud jamais fez mistério de sua opinião.
A técnica ativa primeira versão, ele a aprovou vigorosa e explicita
mente em seu princípio. O artigo “Linhas de progresso na terap.a
psicanálitica (1918) presta homenagem a Ferenczi e nomeia sua
inspiração: princípio de abstinência. Como se surpreender desde
então que Freud, cuja cabeça não gira com o vento das solicitações
da neurose, não aprove conjuntamente as viradas de orientação que
opera a neocatarse? Deve-se notar, ao contrário, a ponderação de
sua reprovação. Ela foi com certeza imediata e sem reserva — o que
temos de sua correspondência o testemunha — mas a verdadeira
réplica dirigida ao conjunto do movimento analítico não veio senão
em 1937 com “Análise terminável e interminável”. Este tempo para
responder diz bastante a que ponto Freud levou a sério o desafio
técnico de Ferenczi, muito longe de ver aí o único efeito de um
desvio pessoal. Pois a neurose é o osso; sua questão, posta em forma
de demanda na transferência. Lá onde Ferenczi busca a gratificação
que a faria cessar, Freud diz: castração. Era designar um impossível
do qual toda questão é de saber como ele pôde não excluir a “solução"
da análise interminável. E ao que se dedicou Jacques Lacan.
184
PARTE 3
A resposta de Ldipo
♦ “t
Le pastoute”. Publicado em La Caust Freudicnnt, n. 21, outubro de 1992.
Ant
eriorrnente traduzido para o português em Opção Lacaniana, n. 9.
187
188
As manifestações do não-toda
mulheres, parece aludir também à continuação do texto de Lacan que diz: Que
e c ausse-pied s y recommande, s ensuit dès lors, mais qu elles puissent s en
passer doit être prévu ’ (Disso se segue que aí se recomende a calçadeira, mas que
as possam dela passar deve estar previsto).
189
não impede que a condição feminina exista. Não designo com isso
as diversas misérias que a sociedade, ao sabor das épocas, pôde
fazer às mulheres, nem ademais as que elas próprias fazem a alguns
de seus objetos, mas a sorte dos sujeitos chamados a suportar o
peso desse A barrado, do qual Lacan nos propõe a escrita, em sua
diferença, com o Esse segundo lugar, porque a aplicação da lógica
russelliana por Lacan à problemática da mulher em parte alguma
está mais enunciada do que na lei do mestre: seu dizer aí é
questionável. E, do mesmo modo que a lembrança de uma metade
de frango em seu livro de leitura terá fixado, cremos nós, a intuição
originária precedendo sua elaboração da divisão do sujeito, é preciso
também supor que sua idéia primeira do outro sexo terá aqui esta
do em causa. Portanto interessei-me em todas as fórmulas que,
muito antes de sua invenção do não-toda, Lacan pôde dar da mulher.
Existem muitas. Escolhi uma delas.
Uma observação de Lacan no Seminário, livro 8: a transferência
(I96O-I) me intrigou. Ela me vinha como um ganho inesperado.
De volta a Claudel sob a via de um reexame do Edipo, Lacan observa
de passagem que com seus personagens femininos, Claudel, inábil,
falharia a mulher! Contudo credita-lhe uma exceção em Partage de
Mtdi, na qual, diz ele, com Ysé, Claudel teria conseguido criar uma
verdadeira mulher. Bela ocasião de procurar aí a marca com a qual
ele crê reconhecê-la!
Sem dúvida a peça, assim como a obra de Claudel, é hoje bas
tante desprezada. Será ele poeta demais, ou cristão excessivamente
fervoroso, ou muito sutil? Não sei. Partage de Midi, da qual sabemos
que para Claudel nem tudo era ficção — e ele a rescreveu três vezes —
e uma peça sobre o impossível do amor, que não é o amor impossível.
Sua construção é ao mesmo tempo muito depurada e muito simbó
lica. tres atos, tres lugares, três luzes, três homens e uma mulher.
Yse, a esposa, mãe de dois meninos, anuncia: "Eu sou o impossível
(Primeira versão de 1906; 1966, p.IOOO). De Ciz é o marido.
Digamos que esta ocupado: ele parte em busca da fortuna. Almaric,
o homem de um primeiro encontro faltoso, é o realista e o ateu, é
190
aquele que toma mais do que dá. Para Ysé, no ato I, zombando do
sério, que lhe pergunta. Ela se entrega ao senhor, e o que ela recebe
em troca?’’, ele responde:
Tudo isso é demasiadamente delicado para mim. Ao diabo se
fosse preciso que um homem o tempo todo/ Se exaltasse
preciosamente com sua mulher, para saber se realmente ele bem
mediu/ A afeição que merece. Germaine ou Pétronille, verificando
o estado de seu coração, que complicação! (ibid., p. 1008).
Então
Deve-se de fato confessar, no fim de tudo, que se tem mesmo
assim necessidade de seu marido!, etc.
Nesse momento, ela lhe insinua uma dúvida:
Não confie tanto em mim.
Ele não acredita, e ela deve dizer de modo mais preciso:
Não sei; sinto em mim uma tentação. [...] E rezo para que essa
tentação não me ocorra, pois não se deve [...] (ibid., p. 1017-8).
192
Ysé trai por crês vezes e cada um dos três homens. No aro II
ela trai De Ciz, o mando obtuso que nada compreende, com Mesa
o homem do absoluto que ela arrebata a Deus. No ato III ela está
com Amalric, que a tirou de Mesa, a quem por sua vez ela trairá-
deixando-o na ilusão da vida, ela volta, no último epitalàmio para
Mesa e... para a morte. E a presença desta última, sempre ali em
contraponto ao amor traído ou escolhido que impede que se leta
Claudel, se por acaso alguém estivesse tentado, tal como lemos
Marivaux - que, aliás, se lê mal - com a chave das manhas femi-
ninas, sempre muito cômoda, é verdade.
Ysé para Mesa:
193
A marca da mulher
194
195
a ver com “um bem no segundo grau", que não é causado por um
a« • notemo-lo — sua diferença não poderia se fazer valer
senão em uma démarche de aspecto subtrativo, que é propriamente
j ararão na qual se afirma uma emancipação anuladora. no
de separa^u, -1 _ j t kt- /
sentido libidinal do termo, em relaçao a todo objeto. Nao e o fur
tar-se da histérica, tampouco a ambivalência denegadora, pois ambas
descobrem apenas o parêntese vazio em que vêm todos os objetos
do sujeito, ao passo que a outra visada apaga do mesmo modo esse
vazio do qual o objeto se sustenta. De onde, às vezes, posturas que
cremos de liberdade soberana! (cf. ainda Freud).
O não-todo na psicanálise
196
197
198
O falocentrismo do inconsciente
199
O desejo feminino
200
admite passar por ele pela mediação do parceiro, aquele que tem.
Assim a mulher freudiana é aquela que consente em dizer “muito
obrigada’’. Salta aos olhos que isso implica, embora Freud não o
formule assim, uma subjetivação da falta que supõe sua aquiescência
à injusta distribuição do semblante — sem reivindicação — e seu
consentimento em estar à mercê do encontro do desejo do homem.
As fórmulas de Lacan não fazem objeção a isso; ao contrário,
é o “não ter” feminino que condiciona para a mulher sua posição
de objeto fálico: é a ausência do pênis que a faz falo(l960b, p. 825).
Isso significa que ela não é objeto senão na condição de encarnar
para o parceiro a significação da castração, de se apresentar com o
sinal menos — é por isso que Lacan deu tanta importância para d
mulher pobre (I98o) de León Bloy. A fórmula é generalizável e gene
ralizada por Lacan, sem dizer respeito à anatomia: é a falta, pênis
ou não, que faz ser objeto — cf. Sócrates (I9óob, p. 825). Portan
to o caminho está aberto como possibilidade para cada um, homem
ou mulher, de ser uma mulher, a saber, o que se junta ao homem sob
o modo do objeto.
No entanto Lacan se afasta de Freud num ponto. Para este, a
mulher compensa sua falta fálica através do ter um filho; disto
resulta que o desejo propriamente feminino torna-se o desejo de
filho. Há uma sobreposição freudiana da mulher sobre a mãe. Lacan
não cai nessa. De fato, ele faz do filho um possível objeto a para
uma mulher(1972-3), mas situa alhures o mais-gozar propriamente
feminino. O filho intervém como tampão do não-toda e a partir
daí há um hiato entre a mãe e a mulher, cuja clínica esta para ser
desenvolvida. Se a criança fálica é suscetível de tamponar, de fazer
calar a exigência propriamente feminina, vê-se em todo caso que o
dom de um filho que um homem faz a uma mulher esta longe de
ter um sentido unívoco. Aqui também os fatos devem ser recolhidos
na experiência. De todo modo, ainda que a criança como resto da
telação sexual bem possa parcialmente obstruir a falta falica na
tnulher, ela não é a causa do desejo sexuado feminino. É o orgão viril,
transformado em “fetiche” pelo significante fálico, que preenche essa
201
202
203
204
205
206
207
209
210
211
212
213
214
215
216
217
semblante. Pois para cada um, devemos distinguir o que ele mostra
daquilo que ele quer. Parece-me haver ai uma oposição simples:
com certeza, não sabemos bem o que uma mulher busca, mas admi
tamos por ora que ela o busque pelo viés do amor. Ao contrário, o
masoquista procura o sinal da angústia: é muito diferente. Ao fazer
alarde de uma vontade de gozo afirmada, que pretende realizar-se
pela dor, ele de fato realiza um desejo que nao sabe e que visa a
angústia do Outro, o ponto em que as miragens do semblante
declaram forfait. Digamos que ele se faz causa da angústia do
Outro como sinal único do real do objeto mais-além do semblante
que falha em alcançá-lo. Quanto à transgressão de gozo que o ma
soquista programa, esta permanece nos limites bem sensatos que
não ultrapassam o despedaçamento que lhe impõe o significante.
Para a mulher, colocar suas concessões na conta da mascarada
é marcar o caráter condicional de seus sacrifícios, que não são senão
o preço pago por um benefício muito preciso. Digamos, em resumo,
que uma mulher toma por vezes ares de masoquista, mas isso é para
se dar ares de mulher, sendo mulher de um homem na falta de poder
ser A mulher. O amor, que ela invoca como complemento da castração
para nele assentar seu ser, define o campo de sua sujeição ao Outro
e de uma alienação que redobra a alienação própria ao sujeito. Mas
é também o campo, as feministas nos fariam quase esquecê-lo, de
todos os seus poderes na qualidade de objeto causa do desejo.
Entretanto também há para ela, a olhos vistos, uma visada do mais-
além do semblante. E mesmo mais que uma visada, segundo a tese
de Lacan: um “esforço” — é o termo de seu texto * Diretrizes para
urn Congresso sobre a sexualidade feminina’ (1962)— inclusive
urn acesso (cf. o Seminário, livro 20: mais, ainda, 1973-4) a um gozo
outro que ultrapassa sem dúvida nenhuma as descontinuidades do
gozo fálico. Vê-se que não é apenas um efeito de ser, sempre da
ordem do semblante, que uma mulher ganha no amor. O gozo que
ela obtém por acréscimo e que vai mais-além do semblante permite
9ue tornemos relativo aquilo que sua mascarada a faz renunciar.
Um único inconveniente: os acasos do amor.
219
« R!tOm° a<lu* ° terrn° pelo qual Kant isola o campo dos interesses
patológicos do sujeito do imperativo incondicional que confere à lei moral seu
valor universal.
220
221
222
A Bela Açougueira
223
I Cf
P ponto o Seminário de DEA de Jacques-Alain Miller em 1986.
224
s
s
225
226
Salmão
——.------ Salmão f+) s
Caviar K J
(+) s = desejo
227
significação
s
sentido
228
A metonímia no sonho
229
caviar d. de caviar . . , . . . . , .
♦
______________ ; (caviar > d. caviar) —»d. caviar(-)s
d. insatisfeito d. de d. insatisfeito
250
caviar d. caviar
d. insatisfeito
23 I
O sujeito do inconsciente
233
234
objeto-falta
objeto causa
objeto-gozo
235
Amiga (salmão)
256
237
0
s=?
A histérica e mulher
238
“Ser o falo”
239
Desejar, goçar
240
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO
241
242
243
I
Mulher
I Histérica
O 'A Mulher
fazer desejar...
Para avançar
o discurso na distinção flístérica-mulh,r’ conò|derarei agora
da histérica:
3 s'
- s,
245
Homem Mulher
<D <
246
O amor, feminino
247
descontínuos do sujeito.
O gozo feminino ultrapassa o sujeito, por outro lado, naquilo
que o gozo não o identifica. O que se compreende muito bem pela
diferença com o homem. O gozo fálico, acessível às mulheres como
aos homens, é de fato um gozo que, por ter a estrutura descontínua
dos fenômenos do sujeito, identifica o homem como homem ou ao
menos é homogêneo à sua identificação. Isso é muito visível na
experiência: os homens se gabam de suas performances falicas e se
reconhecem tanto mais homens, se fazem reconhecer tanto mais
como homens quanto mais acumulam gozo fálico. Isso começa no
princípio da vida e não pára até o seu final. Isso começa na escola
primária quando mostram um ao outro seus órgãos, medem-nos e
se põem a ver quem mija mais longe — o órgão ainda não está
funcionando no plano estritamente sexual, porém o discurso já
advertiu o menino que é em relação a isso que ele vai se medir. Isso
continua em seguida nas conquistas sexuais em que se contabiliza
quanto se é um homem e das quais se gaba. Algumas vezes chega
é a acontecer, e é um fenômeno engraçado, que personagens céle-
não C°nSe^,° seus c°laboradores, ostentem uma amante —
uma amante, mas ostentam-na — evidentemente
faliram Q3 mu^er e amantes posiciona um homem, posiciona-o
mulheres- el dUVlda ^Ue ° 8OZO ^á^co não opera apenas com as
dos poderes do C°^OS °S camPos da realidade, tanto no nível
tico- poder profisXnV noT T P°der geraL P°der po1*'
Cumulações fálicas O h ^mPe‘ro’ os 9uais são outras tantas
isso escá muito ciar ornem pode portanto acreditar identificar-se,
'‘“O' Pe'a aPr°Prução de gozo fáIico.
248
estrutura justamente pelo fato de que não ha' relação sexual, não há
no Outro um significante que permitiria inscrever um gozo que
seria específico dA mulher. E essa falta faz com que, para as mulheres,
a questão da identificação sexuada venho redobrar a questão da
identificação do sujeito, questão que se coloca para todo ser falante.
E precisamente porquanto há essa falha estrutural, as mulheres se
balizam, quando se trata de identificarem seu ser no desejo do Outro
e em outras mulheres. Isso é bem presente na clínica. Para uma
mulher, o teste de sua sedução é sempre verificado por ela junto a
outras mulheres. É a resposta de suas confreiras que lhe indica sua
posição agalmática.
Diferenciarei agora a relação da mulher com o gozo de seu
parceiro da relação com seu próprio gozo. Não é a mesma corsa.
Lacan diz que *o gozo que [um homem] tem de uma mulher a
divide” (ibid.), ou seja, o gozo que um homem tem de uma mulher
vem, para eia, no lugar da causa do desejo dela. Por conseguinte, em
Lacan há uma dupla especificação da posição sexuada da mulher.
Por um lado, há na mulher a oferta de gozar para Outro — obser
vem aqui uma diferença em relação à histérica que faz a oferta de
desejar. Por outro lado, há o gozo específico da mulher com os
problemas identificatórios que ele lhe coloca. E, com efeito, ocorre
amiúde o fato de haver mulheres que não querem nem fazer gozar
— é o caso da h istérica — nem tampouco gozar. Sem dúvida, o
gozo não é obrigatoriamente desejável.
250
ditados nos quais a imprensa nos anuncia que neles enfim adveio
uma mulher. Elas escalam solitárias altas montanhas, elas atravessam
sozinhas os oceanos. Ha alguns meses vimos uma jovem de quatorze
anos disputar um torneio internacional de xadrez; elas entram para
a policia, para o exercito, na política, enfim, por toda parte. E claro
que se o gozo fálico lhes é acessível, o problema é que ele não as
identifica como mulheres. Daí os conflitos subjetivos das mulheres
com o gozo fálico, balizados há muito tempo na psicanálise, a saber:
quanto mais um sujeito feminino se apropria do gozo fálico, mais
ele se inquieta com sua feminilidade por outros motivos.
E e verdade que o sujeito feminino moderno é quase sempre
atravessado por uma forma de drama subjetivo que parece típico de
nossa época, que não é mais aquele da esposa e da mãe das histéri
cas do tempo de Freud, mas que é o drama de uma mulher bem-
sucedida em sua vida profissional e que é devastada pelo fracasso
do amor. Esperar que o amor as institua como uma mulher — eis
ao que as mulheres estão reduzidas pela estrutura — é efetivamente
uma solução aleatória. O apelo ao amor não pesa o suficiente, ele
depende muito da contingência, da tychê. Em contrapartida, a apro
priação do gozo fálico é muito menos aleatória.
Concluirei retomando as duas questões pelas quais comecei
este relato. A primeira: por que a estrutura histérica 'e mais frequente nos
sujeitos mulheres? Quero dizer nos sujeitos anatomicamente mulheres
e que, por serem anatomicamente mulheres, o são no nível do direito
civil e caem sob o golpe da pressão do discurso que os convida a
serem mulheres. Embora não se saiba muito bem o que é ser mulher.
O ponto comum, parece-me, é a acentuação da relação ao Outro
e de modo mais preciso a passagem obrigatória pelo Outro barrado.
Quando escrevemos o discurso da histérica, a histeria como
discurso, escrevemos de fato um sujeito que nunca está só, mesmo
quando se isola, um sujeito sempre acoplado na realidade a um
outro que se define do significante mestre e que o sujeito se inter
toga sob uma forma extremamente precisa: trata-se de fazer desejar e
mesmo de fazer desejar o saber, esta é a fórmula do sujeito histé
251
252
253
PARTE 4
257
258
259
260
261
262
263
História
265
Repercussões da ciência
266
final de seu ensino, que ter um corpo é poder fazer alguma coisa
com; particularmente, o uso de gozo. Há muitas maneiras: um corpo,
isso se empresta, isso se vende, isso se oferece e se recusa etc. No
discurso capitalista, um novo avatar apareceu: nossos corpos
doravante estão a serviço da grande máquina de produção. O fenô
meno não é em si inédito, embora o seja no nível de sua extensão de
massa, muito além do círculo dos proletários no qual Marx o
circunscrevia. Em todos os níveis do trabalho social, os corpos, já
instrumentados, são eles próprios instrumentos. Aliás, quem não
vê que os mantemos assim como o fazemos às máquinas: check-up,
regime, ginástica, estética... Tudo isso não deve ser atribuído ao
narcisismo. De fato, calcula-se a resistência do material: os boletins
de saúde de nossos dirigentes não têm outro sentido. Por que Yeltsin,
falando na televisão francesa nesses últimos dias, acreditaria que
seria bom nos fazer saber sobre sua ducha fria pela manhã, seu
esporte favorito e suas horas de sono senão para nos certificar do
instrumento com que dirige o leme? Doravante o corpo faz parte
do capital para todos e nós o tratamos como tal. Como isto não
seria em detrimento do gozo, se a própria definição do capital é a
de lhe ser subtraído? Nisso o amor perde, com certeza. Por exemplo,
o amor cortês, ou os mapas do Tendre, sua paciência, sua indústria
eram para os ociosos, pessoas que não tinham agendas nem secre
tárias eletrônicas! Dá para imaginar um trovador com um fax?
Enquanto os laços familiares se tornaram autônomos da transmissão
dos bens, o próprio amor é falado cada vez mais em termos de ter:
contam-se as ocorrências, os produtos, os ganhos, calcula-se por
antecipação as perdas e lucros, e a legislação ratifica. Assim a capi
talização do corpo vai junto com uma depreciação generalizada —
e não apenas neurótica — dos problemas do amor.
Esse novo realismo é acompanhado de um efeito mais notável
ainda, até então inédito, que chamarei de efeito unissex, generali
zando a expressão que a publicidade aplica de preferência às
estimentas pelas quais, com efeito, a diferença sexual mais do que
Manifestar, às vezes se encobre. Cremos de bom grado que
267
268
Histeria e feminilidade
270
272
Outro a ponto de que poderíamos quase dizer que ela disso faz
urna causa, mas uma causa de... saber. Não que o desejo de saber a
anime, mas porque ela gostaria de inspirá-lo ao outro.
Como então situar o "bancar o homem" da histérica? A ex
pressão toma vários sentidos. De início, ela designa o desafio histé
rico: "Prova que tu és um homem , no sentido do "guerreiros, um
passo a frente" e também no da identificação ao homem. No entanto
essa identificação não é uma qualquer, e é aí que nos enganamos
com frequência. Pode ser identificação ao seu saber fálico ou então,
ao contrário, à sua falta. As duas podem, aliás, avizinharem-se no
mesmo sujeito, mas a identificação propriamente histérica, tal como
a encontramos em Dora, na Bela Açougueira, tal como Lacan a re
toma em seu texto “Introdução para a edição alemã dos Escritos"
(1973), é a de identificar-se ao homem uma vez que ele não é
repleno, que também ele está insatisfeito e que seu gozo é castrado.
O clínico se perde facilmente aí, pois as conseqüências desta iden
tificação podem se apresentar na fenomenologia da experiência sob
a forma de hiperfeminilidade. Vejam a Bela Açougueira: no nível
imaginário, visível, ela banca a mulher rivalizando com sua amiga.
Mas essa mascarada resulta do fato de que no nível simbólico, como
sujeito, ela se identifica ao homem em sua falta. Um outro resultado
prático é que a histérica se faz o agente ativo da castração do
Outro.
Hoje e amanhã
conquista fálica, menos ela pode gozar disso e mais cresce seu sen
timento de desapropriação. Ela pode empenhar-se nas diferentes
competições que se oferecem; mal acaba de fazer suas provas, 0
ganho se desvanece, sua verdadeira questão passando alhures, no
campo fechado, como diz Lacan, da relação sexual. E somente aí
que a diferença sexual, recalcada em qualquer outro lugar pelo regime
do unissex, permanece não eliminável. Poderia sem dúvida dizer
que ela aí faz reinar o unissex da castração, mas é porque não a
interessa senão o gozo que é seu correlato e que ela exalta. Neste
ponto, a subversão sexual da época lhe deve, sem dúvida, tanto
quanto a ciência.
E com respeito a isso, a psicanálise é verdadeiramente o que a
histérica precisava, já que seu dispositivo aceita reconhecer o enigma
do sexo e tomá-lo a seu encargo. Vejam a diferença com Charcot,
por exemplo. Ele imaginou de modo um tanto parvo, deve-se dizer,
que aquilo que a histérica precisava era de um artesão do sexo.
E bem o que está implicado na fórmula que tanto chocara Freud, e
que prescrevia como remédio para todos os males da histérica,
o pênis de ação repetida. O mesmo eco se encontra, aliás, na expressão
chula “mal comida”. Ela é de fato menos chocante do que simples
mente mal pensada. O que a histérica busca não é o artesão do sexo,
um que faria bem o amor; é um sábio do sexo, um que saberia
dizer qual o gozo que a mulher tem mais-além daquele do órgão.
Na falta de que este gozo seja dito, não podemos marcar seu lugar
senão ao insatisfazer o último: o sem fé da histérica não é sem
lógica. Freud aceitou o desafio e inventou um dispositivo que jus
tamente exclui o artesão do sexo, proibindo o corpo a corpo, e que
obriga o Outro a responder, a produzir um saber homogêneo àquele
da ciência no qual a lógica desempenha um papel maior. De fato, a
psicanálise satisfez bastante à solicitação histérica de um saber sobre
o sexo. Só que este é um saber surpreso sobre a aspiração que 0
originou, pois ele não é feito senão de “negatividade de estrutura
segundo a expressão de Lacan, e deixa portanto insatisfeito 0 '°
histérico: ele esperava que o inconsciente consignasse uma ciên
274
1
Digitalizada com CamScanner
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO
275
277
que convida a falar, como se diz por vezes, pois a oferta de escuta é
velha como o mundo. Ele convida o sujeito a uma palavra transfor
mada, palavra não mais livre, porém visando se livrar do que a orienta
no discurso dominante. Como uma palavra sem intencionalidade,
que idealmente iria ao encontro do fluxo dos pensamentos que habi
tam cada um e que todos também aprenderam a calar. Esta restrição,
que vale por suas impossibilidades, repercute no analista e comanda
seu modo de intervenção, quer ele o saiba ou não, também não o
deixando livre para flutuar a seu bel-prazer. Isto significa dizer que
a intervenção do analista se encontra, ao menos em parte, progra
mada pelo fato de ordenar que o analisante se associe livremente a
seus próprios significantes. Mais precisamente, a relação livre ao
significante do lado do analisante implica a relação forçada do ana
lista ao analisante. Tal é a tese.
Poderíamos seguir ao longo de todo o ensino de Lacan as vá
rias fórmulas consignando ao analista um lugar que é função do
lugar do analisante. Se este último é definido como o produtor do
“material”, como se dizia, ou dos significantes, como dizemos, a
intervenção do analista, mesmo o menor ruído, ressonará obrigato
riamente, sem que tenha que decidi-lo, como intervenção signi
ficante.
Assim, ao analisante que associa responde o analista decifrador
e intérprete, assim como ao analisante que demanda, o analista que
deseja; ao analistante sujeito, o analista objeto.
Pode-se ilustrar este automatismo do dispositivo que se im
põe ao analista através do exemplo do debate sobre a possibilidade
de interpretar a transferência, que foi aberto no movimento psica-
nalítico a partir de 1914 em seguida ao texto de Freud “Recordar;
repetir e elaborar . Sendo a questão saber como convém tratar o
amor de transferência em sua dimensão de resistência, o que faz o
analista que tenta interpretá-la como repetição, crendo assim se
guir ao pé da letra as indicações de Freud? Pode ele fazer de outra
maneira para interpretar esta repetição ou pode somente extrair os
indícios significantes que permitem identificar o parceiro a que diz
278
D (associação livre)
280
281
282
285
$ s
Discurso capitalista
t x-t
S a
284
285
O sacrifício da singularidade
286
de necessidades de artifício?
O sujeito-mestre do discurso capitalista é um sujeito
desarrimado em multidão, e o Um que faz sua verdade — já que o
S é aqui passado para debaixo da barra no lugar da verdade — é
essencialmente o Um do Um sozinho, do um entre outros, e nem
mesmo o Um do ideal coletivizante. Lacan, desde seu ‘Ato de Fun
dação”, evocara a fragmentação dos grupos sociais. S/Sj escreve
essa fragmentação das comunidades sob o efeito da ciência, tendo
feito forfait os semblantes suscetíveis de fazer traço unário . Pode
ríamos passar em revista todos os fenômenos que disso são sinto
máticos.
Assistimos a morte dos reagrupamentos ideológicos, a sua dis
persão. Talvez vejamos menos, ainda que caminhe em velocidade
com V maiusculo a falência da família em nossas sociedades. Penso
que, nesse ponto, os EUA estejam na nossa frente, embora a Europa
não esteja tão mal colocada se olharmos as estatísticas sobre os
casamentos, divórcios, nascimentos... Fragmentação da família, já
reduzida ao casal sexual, ao contrário do que eram antigamente as
grandes famílias”, todavia ainda mais à mercê dos atrativos e suas
flutuações, já que no fundo, entre as novas gerações, é uma prática
comum: a gente se agrada, a gente se aproxima; a gente não se agrada
mais, bye-byc. Afinal isto nem sempre é um drama. Vemos também,
specialmente nos EUA, a reprodução disjunta não só da família
nao Preciso estar em família para ter filhos — mas disjunta
287
288
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO
de ganhar sua vida, porque lhe é bem necessário sustentar sua exis
tência. Para muitos, o único arrimo do sujeito no mundo reduz-se
cada vez mais ao que lhe permite ganhar a vida, isto é, participar na
produção extensiva dos logros sobre o mais-gozar. E mais: isso não
é para todos, pois há os excluídos, cada dia mais numerosos. Então,
se vocês o permitirem, direi que o sujeito de hoje é um sujeito que
não está tanto na "dívida” quanto no déficit bancário: as letras de
câmbio a pagar no lugar da dívida simbólica que lhe daria deveres
éticos são uma supíência.
Esse sujeito tem também tentações, e mesmo uma tentação
quase incoercível, estrutural: ele gostaria de se distinguir, ser Um < f.
sem par. Esse sujeito, que a civilização libera do Um paterno da
tradição, é coagido, caso queira fazer algo de modo próprio, a dis-
tinguir-se. Isso é diferente de ser o melhor em seu gênero. Mas
como se distinguir na massa? Penso que o "desejo da diferença
absoluta” ao qual se devota o psicanalista é suportado, no espírito
do tempo, pela necessidade para os sujeitos um por um de se extraírem
do lote para não desaparecerem no um entre outros, sempre anônimo.
Vemos bem que a psicanálise está ligada à ciência de muitos modos,
e não apenas pelo tipo de saber: com a ênfase colocada sobre a
singularidade subjetiva, ela responde à indiferenciação que nossas
sociedades promovem. Isso se lê nos fenômenos.
Como reagimos, fora da psicanálise, à fragmentação dos grupos
sociais e ao anonimato favorecido por ela? Reagimos buscando fa-
bricar fora do par, e para isso há todo tipo de maneiras. Ao sujeito
que não conseguir agarrar um pedaço de saber técnico ou intelectual
resta, por exemplo, a aventura ou a exploração a realizar: escalar
uma montanha, atravessar os mares etc. As explorações patrocinadas
ou mediadas são também compensatórias. Alguém se lança na aven
tura, depois escreve biografias e faz com que sejam lidas. O boom
das biografias, que também partiu dos Estados Unidos, deve ser
compreendido como a busca do fora do par que faz traço. É um
modo de inscrever no que se deposita em memória das poucas per
sonalidades que conseguiram sair do Um entre outros. De resto,
289
290
291
292
como pode sacrificar são seus termos exatos. É aí que recorre à sua
idéia de grupo. Sua tese, à luz do ensino de Jacques Lacan, parece-me
a seguinte: o grupo trata A Coisa pela identificação.
Observem que coloco o termo Coisa ali onde Freud usa Trieb
(pulsão). Pulsão que ele desdobra em Eros — o deus da união
e Tanatos — o deus negro da destruição, aquele que preside, segun
do ele, a indestrutível hostilidade primária do homem pelo homem
(cf. 1930, p. 65 e 68).
Nós não cremos na natureza humana posto que Lacan nos
ensinou que as particularidades do fala-ser são efeito da linguagem
sobre o vivente. Mas isto não os torna menos irredutíveis, assim
como mais pensáveis.
Para Freud o laço social implica um sacrifício, mesmo em um
casal sexual. Como vocês sabem, Freud distingue dois tipos de grupo:
por um lado o par erótico, que é o de dois, e por outro os conjun
tos mais amplos que nos fazem entrar no coletivo. Opera com o
um, o dois e o múltiplo. O um individual, o dois do grupo, o múlti
plo dos coletivos. Se tomamos o par erótico — o sacrifício de gozo
não é evidente e sem impedimento — no que chamamos amor e
mesmo gozo sexual, Freud situa um duplo sacrifício, uma dupla con
tenção pulsional: a contenção, ao menos parcial, do componente agres
sivo e o sacrifício da parte de pulsões pré-genitais que não se integram
à cópula. Para nosso tema, o que nos interessa não é o casal.
O esquema de Freud é muito simples. E o que aparece em
'Psicologia de grupo e análise do ego (1921) quando se refere à
estrutura do grupo. Na origem do grupo coloca um ideal do eu —
para nós, um significante que escrevemos Sj — que, por ser co
mum aos diferentes eus (moí) que compõem o grupo, possibilitara
sua identificação recíproca e a constituição do conjunto.
A identificação se dá aqui em dois níveis, por menos que esse
significante ideal se encarne na essência do chefe.
Lacan retoma tal qual este esquema do grupo. Ha muitos textos
de Lacan que se referem ao grupo. Em Observação sobre o relatório
de Daniel Lagache ”, falando do ideal do eu, diz o seguinte. Freud
293
(eu — eu = eu)
294
295 ll -
Grupo e narcisismo
296
297
O narcisismo do grupo
298
299
O grupo analítico
300
301
302
303
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO
305
suposto saber. Tanto mais quanto mais próxima está de uma igreja.
Assim o grupo se transforma em guardião do narcisismo coletivo.
Esta avaliação de Lacan deve ser concluída com outra posterior em
que observa seu êxito em dar aos analistas desejos de existir. Não
contradiz a primeira, porém seu acento é diferente, já que evoca
não um campo epistêmico mas um desejo. Quando este desejo é de
existência, seu grito só pode ser de uma fórmula de exceção, até de
exceção em suspenso, posto que do desejo à efetivação há um passo.
É o que Lacan chama de “ao menos eu” dos analistas. Opõe-se à
evidência, ao “eu também”, que daria uma fórmula do desejo oposta
ao desejo de existir, a saber, a vontade de ser conforme. Mas como
fazer um grupo com exceções? Parece impossível, porém é inevitável
pois o analista não pode sustentar-se sozinho.
Nós temos hoje, entre tantas vicissitudes, uma Escola e um
Campo freudiano. Farei duas observações breves. Escola quer dizer:
manter a referência ao saber e tornar prioritária sua elaboração.
Nada a ver com a aprendizagem. Campo freudiano é um significante
que funda um grupo inédito na psicanálise. Pode ser de extensão
mundial — tal é o caso — mas não constituirá uma nova Interna
cional, se este significante restar como indício não de um traço
comum empuxo-à-identificação, mas de uma referência comum —
o que é diferente visto que uma referência não identifica.
Para terminar, trata-se de saber se Lacan conseguiu que os
analistas que já existem não só ex-sistam mas também que se façam
historicizar-se4 de si próprios. Enquanto o analisante se historiciza
do sujeito suposto saber, historicizar-se de si próprio é a fórmula
do passante que elabora uma migalha de saber transmissível. Tal é a
aposta.
de bysttrit (histe-
4- N. do T No original hystorier. Há no francês a condensação
ria) e bistorier (historiar e também enfeitar, adornar).
306
PARTE 5
309
310
311
312
313
314
315
316
317
3i8
O santo não se faz ser , ele não faz um nome para si. E verdade
que se dá um a ele, mas geralmente quando está morto. Foi por isso
que em 1979 Lacan ainda opõe Joyce e o Santo. Joyce que se faz
“escabelo" de sua arte, e o Santo que ao contrário cai sob o golpe
da “escabelastração", ou seja, a castração do escabelo. Para ele, nada
de levitação do nome. Para o analista, se ele se vota ao “se fazer
ser", “que ele não se torne analista”, diz Lacan. Por quê? Resposta:
não terá tempo de contribuir para o saber. Sendo o tempo contado
como os esforços, é um ou outro. Se ele se encarniça em um, não se
encarniçará em outro; além do mais, ter um nome não é uma vanta
gem para a tarefa analítica, ao contrário.
Contribuir para o saber — notem a modéstia deste termo —
não é escrever tratados. Contribuímos para o saber, por pouco que
seja, desde que saiamos disso que Lacan chama de proliferação da
tagarelice. Este tem certamente sua eficácia na análise, sua eficácia,
sua seriedade, seu efeito terapêutico, mas a invenção do saber é
outra coisa. E a questão é sem dúvida a de saber se quando o
analisante recebeu a chave de sua divisão, ele dela se serve para
fechar a porta do saber. É no que consiste o “se fazer ser”. Com
certeza, este final pelo “se fazer ser” não é sem ligação ao saber; ele
supõe que houve aquisição de saber na análise. Nesta, a elaboração
de saber se apresenta sob a forma muito simples da construção da
história — tão boba quanto isto. Assim fazendo, o analisando veri
fica a causa de seu desejo. O que inicialmente quer dizer que ele
experimenta uma falha estrutural no saber e que através disso ele
adquire um saber do impossível, um saber do que, quaisquer que
sejam os significantes, as palavras produzidas, seu “enxame’6 não
reduzirá jamais o “menos um” que lhes existe — o que Freud cha
mou de “recalque originário” e do qual Lacan elaborou a estrutura
lógica: não há “todos os significantes” sem um a menos. Mas em
segundo lugar este saber não é a última palavra da psicanálise, que
319
não tem uso “doutrinal”. Ele não é a última palavra, e se não h'
todos os significantes, há o objeto a, que vem no lugar onde o
signifícante não responde. O saber adquirido é duplo: saber do
impossível, mas também saber da singularidade. O analisante ad
quire um vislumbre, toma uma espécie de panorâmica sobre o que o
distingue, sobre sua maneira própria de aí fazer com sua falta c de
compensá-la. E um saber separador, que tampona a culpa e a inibi
ção e que descerra a impotência neurótica. Disso o sujeito é livre
para servir-se e para sustentar-se no mundo e na árvore genealógica.
Portanto o final por “se fazer ser” tem de fato uma relação com o
saber elaborado na análise.
Mas o sujeito irá mais longe? Há um desejo de saber que pode
nascer no final de uma análise? Digamos que Lacan o chamava de
seus votos em uma exortação... bastante necessária, talvez desespe
rada. Por duas razões é muito difícil insuflar aos analistas um desejo
de saber. Não apenas porque a via do “se fazer ser ” lhe está aberta,
mas porque em sua prática o analista se deve dobrar a um “não
pensar”, ele se deve impor esta estrita disciplina de encarnar no
semblante o objeto causa. A posição do analista no tratamento ex
clui a elaboração de saber, que é deixada ao analisante. E por isso
que por vezes se tem o sentimento que ele ganha sua vida sem fazer
nada — caso se possam alternar, a elaboração de saber e o ato ana
lítico são antinômicos. A própria interpretação, segundo o que dela
dizem os analistas — se bem que Freud fale de construção e Lacan,
de cálculo do sujeito — é mais da ordem do dito impetuoso oracular.
Em suma, a prática analítica impõe ao analista um manejo de um
tipo de inércia de pensamento que não vai na direção da paixão de
saber, do gosto pelo saber. Aos meus olhos, estes obstáculos lan
çam uma luz sobre o dispositivo do passe e dão uma parte de seu
sentido.
✓
E uma exortação quando Lacan evoca o desejo de saber, mas
sem dúvida Lacan era por demais realista para ater-se aí, e creio que
o passe foi um dispositivo inventado para forçar o desejo de saber.
Com efeito, com este dispositivo, para aí “se fazer ser’ sob a forma
320
321
3 22
323
324
325
326
327
329
331
332
A PSICANÁLISE NA CIVILIZAÇÃO
333
334
335
Número 3: Paixão
336
JJ7
Número Um fim
338
3 39
340
341
342
343
Para concluir
344
J45
347
348
349
350
352
que íimplica
não uma novanem
nem Antígona, aposta de saber,mas
a Pitonisa, bastante distinta « m°del°
sim o diseur/'
uma vez que aí as invenções surgem dos impasses da f maternát,co-
353
355
356
357
358
359
36o
Os homens, ela não os vê. Viveu muitos anos com uma mulher,
numa ligação mais de amor do que de gozo — aparentemente não
/ lésbica mas não faz sintoma deste fato. As fantasias mastur-
batórias da infância também convocam a homossexualidade: uma
pobre garotinha perdida no frio e na neve, abandonada por uma
mulher má, é salva por uma outra, o gozo surgindo no preciso
momento em que o olhar desta última se coloca sobre ela.
A partir disso, não parece excessivo supor que tanto a posição
heróica quanto a posição amorosa encontram sua mola no desejo
desta mãe plena da memória do morto... seu rival. Mas esta inci
dência, se acreditamos no seu testemunho, não está no cerne da
elaboração e das conclusões que conduzem a passante até a saída da
análise.
Esta distância entre o que a passante percebe e o que o cartel
lê no testemunho coloca, de modo mais geral, a questão de saber
até onde podem ir as deduções que permit.nam ao sujeito cingir a
causa de suas posições fundamentais.
362
363
364
365
que este luto, também ele, seja inédito, que não seja uma mágoa de
amor como outra. Mais precisamente, que não seja uma simples
repetição do luto de origem. Pois o luto, o sujeito em análise já 0
encontrou. De fato, isso é tudo o que descreve o período dtto
edipiano: o luto do objeto primordial; e todo um pedaço da neurose
infantil narra a perda de gozo e a impotência do amor em
preenchê-la.
Esta guerra é empreendida em vários tempos. Lacan evoca três
em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1961)
que é nosso texto de consulta quando falamos de estratégia da trans
ferência: enamoramento primário, regressão, satisfação própria à
neurose de transferência, tão difícil de resolver, acrescenta ele. Com
efeito, a primeira batalha é empreendida contra o enamoramento
da transferência. Este não é o amor, mas um de seus estados. Há
um paradoxo do enamoramento. E que a falta, sem a qual nenhuma
forma de amor seria sequer pensável, não é experimentada aí como
insuficiência dolorosa, mas ao contrário sob o modo de uma elação
de completude, de um arrebatamento, e mesmo de uma quase cer
teza. Seria necessário recensear as explicações propostas por Freud
e Lacan sobre este fato; observo simplesmente que ele indica que o
enamoramento é em si um gozo. Na análise, trata-se de reduzi-lo,
de não satisfazê-lo, sem por isso reduzir o amor de transferência,
pois é este que condiciona e mantém o sujeito no dispositivo.
A queda do enamoramento, ou ao menos sua diminuição, acen
tua evidentemente o lado mendigante do amor. Mas é necessário
dizer mais: o analista ao se recusar a reciprocidade do amor, entre
silêncio e interpretação, introduz o vazio no qual o sujeito vai loca
lizar, o quê? A própria repetição. Certamente a transferência não é
a repetição. Insistimos neste ponto, com justa razão. E inclusive a
condição para que seja permitido operar no nível da repetição.
A transferencia não é a repetição, mas ela a isso conduz. Lacan o
mostra repetidas vezes no Seminário, livro 11: os quatro conceitos funda
mentais da psicanálise (1964), precisamente após haver introduzido a
distinção de seus conceitos. É aliás o que a teoria clássica percebe
366
567
368
369
372
373
374
377
378
z . ✓
notadamente a respeito da graça suficiente. E precisamente no sé
culo em que surgiu a ciência, o século XVII, que o jansenista um
augustiniano como vocês sabem — se insurgiu para dar um novo e
último brilho a este debate secular e para dizer que a salvação de
v°cês, tanto quanto os méritos através dos quais o molinista imagina
382
383
384
385
386
diga — aí não esqueço que seu dizer não será direto, que deverá
atravessar os passadores, e que esta travessia aí está sem dúvida
condicionada por uma outra, a da fantasia — que ele diga então o
que se produziu de mudança e de saber, o que se tornou para ele o
saber suposto, a parte de que ele pode se apropriar, que ele "obteve"
deste saber, diz Lacan. Que diga o que descobriu — não digo inven
tou, por ora — de suas identificações, como da cifra de seu sintoma,
de traço unário a traço de perversão. Mas que também deixe perce
ber o que ele delimitou do que fundamentava suas evidências vitais,
como elas se esvaziaram até o ponto de lhe fazer se aperceber ao
mesmo tempo em que se distanciou, um momento ao menos, do
segredo que presidia a estratégia oculta de sua vida.
Eu resumo. Que diga ou deixe perceber:
— o que ele “inventariou” do saber inconsciente. Acrescento
que se ele o faz, não teremos mais de lhe pedir provas de seu não-
saber, como se o não-saber fosse uma performance, quando ele é
um destino, um destino de castração que a linguagem faz ao fala-
ser. Se ele o faz, ele necessariamente saberá do engano do sujeito
suposto saber, e que do saber não existem senão "pedaços”.
— o que foi ventilado do que povoava seu vazio, aí no duplo
sentido do termo "ventilado” Çéventf) que designa ao mesmo tempo
o segredo suspenso e o aroma perdido. Se ele assim testemunha
que à experiência de enganar-se ele soube acrescentar o que eu cha
marei por analogia de desligar-se2, se o saber consignado vai de fato
do inventariado ao ventilado, saberemos sem dúvida que ele forçou
seu próprio horror de saber.
Vocês o percebem, eu penso, estes requisitos implicam muito
saber pressuposto, já lá. E isto não pode ser de outra forma, pois e
uma necessidade de estrutura. Portanto não finjamos ignorar o que
sabemos, o pouco que sabemos, para pretender abordar a experiencia
c°m um espírito virgem. Este saber prévio não é novo, ele e inclusive
387
velhusco. Ele data de 1967, mais de vinte anos! Além disso, ele é
pedido emprestado, tomado do Outro dos textos da “Proposição”
Não é que desde 1980 nada se tenha produzido de novo, longe
disso. Houve um vasto trabalho de explicitação, uma nova apropri
ação do saber que Lacan nos consignou como oculto, e com ela um
novo efeito de transferência. Neste sentido, um revezamento foi de
fato efetuado, mas ele não nos autoriza a fazer do saber novo um
clichê — o que é aliás um paradoxo.
Retorno ao fazer saber do passante, para precisar sua forma
minimante. Eu o vejo modesto, discreto, dissertando pouco. Faço
notar que aquilo que Lacan chamou de “um justo testemunho”
evita tanto a dissimulação do não-sabido quanto os adereços postiços
do saber suposto novo. Caso encontre sua fórmula própria, um
vislumbre tomado da experiência não tem, por definição, precedente.
Pois bem, é já um traço — clínica do traço a desenvolver — que
assinala o desejo de saber. Não o desejo de saber vindouro e o ensino
futuro do AE por vir, nem tampouco o desejo de saber suposto,
mas o desejo de saber já lá, atestado com o que ele implica de sepa
ração para com o Outro. Por quê?, dirão vocês. Porque a queda da
demanda de saber feita ao Outro é a condição para que o sujeito
possa — contingência — acrescentar ao saber já lá no inconsciente
que esta demanda lhe terá permitido soletrar algumas fórmulas de
sua lavra. Vocês o sabem, não está absolutamente cozido5. Se isto
ocorre, o sujeito terá acrescentado um pedaço de invenção ao que estava
por ele inventariado e ventilado, e aí veremos um signo de que ele
mudou de causa. Este traço permitirá desde então esperar que ele irá
mais-além para fazer avançar a psicanálise. E é o que está em jogo.
Concluo sem esquecer o horizonte da psicanálise em exten
são. Por que querer fazer avançar a psicanálise quando o próprio
psicanalista permanece sentado, sempre no mesmo lugar? Alguns,
388
389
391
392
393
e que as imagens recenseadas por Freud que ali pululam são apenas
a tradução no imaginário de um processo diferente. Este não é ima
ginário, a saber, o efeito de perda que implica a relação ao Outro, e
cuja ameaça se reedita a cada aproximação deste Outro — aqui
aproximação transferencial.
Sabemos a última palavra de Freud sobre esse ponto: "Dizer
se e quando fomos bem sucedidos em dominar esse fator num tra
tamento analítico será difícil. Nós nos consolamos com a certeza
de que ocasionamos ao analisado toda a incitação possível para revi
sar e modificar sua posição no que concerne a esse fator’’(íbid., p. 268).
Mestre gaiato, esse que deixa escolher! Sem dúvida se dirá que é
um liberalismo de impotência — o que de fato conota bastante a
evocação da consolação — mas não se pode negar que a palavra
final e a saída última caibam aqui ao sujeito, ou antes à “insondável
decisão do ser”(Lacan, 1946, p. 177)-
Em suma, o sujeito transformado pela análise se definirá por
uma nova relação com a castração e com a pulsão.
É a própria tese que Lacan retoma a partir de 1964, embora
com outras formulações e através da qual ele completa a ênfase
colocada inicialmente, e durante dez anos, sobre a terraplanagem
de um linguajar do conjunto da experiência do sujeito. Da afirmação,
no Seminário, livro 1i: os quatro conceitosfundamentais da psicanálise (1964),
de um sujeito para quem, no final, a fantasia se reduz à pulsão, até
a evocação mais tardia de uma identificação final ao sintoma, isto é
a mesma questão de uma relação inédita ou não com pulsão, e de
modo mais geral, do tratamento possível do gozo a partir do
inconsciente como linguagem.
Lacan, ao proferir que, no final de uma análise, identificar-se
ao seu sintoma é o que o sujeito pode fazer de melhor, surpreendeu
porque sem dúvida ele foi mal seguido até então. Evidentemente
tudo se deve à definição do sintoma, aqui implícita, e que faz dessa
afirmação uma expressão quase criptografada. Poderíamos inclusive
pensá-la carregada de alguma provocação irônica. O analisante, de
fato, se dirige à analise em nome de seu sofrimento, porque nele
394
Um paradoxo'1
395
396
397
398
A opção lacaniana
399
400
A função do sintoma
401
Identificar-se ao insuportável?
402
40?
404
Conversão de gozos
405
406
407
408
409
410 '
amada
do e muito aos traços de identificação do nk.Ç..
sujetto! b,et° n° insciente
f”
sentido &«/«).
embaraça ne.ee
o sujeito; niss0m
mrs,nto , como er, uma Je
a-mu|bcm _rora do
fobia ou qualquer outro sintoma, mr ni!s„ consiste J""30, Uma
escolha amorosa é decifrável. Foi o que fez Fr J Pcnsar que a
l ij x *S breud ao considerar o
podendo, mais
que parecenão rebelde
obstante, serà decifrada
razão, isto é a nai ~
rac.onalmenteVtTnJo liberai
411
412
413
necessidade para que ela seja desejada, a fim de que volte a ser ob
A depreciação o favorece, pois depreciar o objeto é lhp Jor 7’
, - é a o sentid0
da castraçao. E uma estratégia do sujeito homem Dara ■>
— o termo e de Lacan em A subversão do sujeito na dialética do
desejo” (1960b) — a castração imaginária de um termo a outro do
casal.
Esse primeiro desenvolvimento pode ser completado obser
vando que “nela crer” não se situa ao nível do ter, mas do ser: crer
em sua mulher é crer que o que ela profere não fala apenas dela, mas
de você. E claro, há a palavra de amor, da qual a mulher é suposta
deter o requintado manejo, e que... embeleza aquele a quem ela se
endereça. Só que há também a palavra de verdade, a que nos inte
ressa aqui e esta é sempre outra coisa.
A palavra de verdade nunca é uma palavra de amor — isso não
quer dizer que o amor não seja verdade, ele pode sê-lo, porém quando
um sujeito diz a verdade, parecia que o amor mentia. Não é esta
uma das múltiplas razões pelas quais as mulheres são tão acusadas
de mentir? Elas que manejam preferencialmente a palavra de amor,
quando vem a palavra de verdade o engano explode. A língua traz o
vestígio de que verdade e amor não fazem um tão bom ménage:
“Dizer a alguém suas quatro verdades”, isso está mais relacionado
com uma mensagem de castração. Isso se parece muito ao que
Schreber escuta de suas vozes: “Tu não és um homem", não o bas
tante. Resultado: crer em uma mulher é não apenas instalá-la no
lugar de um supereu feroz, mas também colocá-la em competição
com a articulação do inconsciente. Muitas coisas se deduzem disso:
primeiro, que uma mulher em quem se crê não é um sintoma
analisável, que a fiscalização exercida por certas mulheres sobre a
análise de seu homem tem sua lógica, exatamente como os estra-
os silêncios que as vezes observamos nos testemunhos dos
P santes a respeito de uma mulher que, a olhos vistos, conta, e da
qual nada se diz.
414
415
I. Questões de me'todo
Julgar
417
418
419
420
421
Ingenuidade
Quando Lacan afirma que são dois ingênuos quer dizer que
não sabem o que fazem, que o fazem sem sabê-lo. A palavra ' inge
nuidade” não tem o matiz de tontice mas o de autenticidade. São
sujeitos que atravessam uma experiência pela primeira vez, e por
tanto sem saber exatamente o que está ocorrendo. Mas o passante
que se apresenta no dispositivo nem sempre é ingênuo; houve tempo
para deixar de sê-lo. Talvez por isso tenha Lacan preferido que ele
se apresentasse justo no momento de terminar sua própria experi
ência, quando ainda é ingênuo, antes de pensar sobre o ocorrido,
justo com o impacto da experiência.
Em todo caso, quero ressaltar que tanto o que recebe as cha
ves do mundo como o que vê seu representante representativo na
irrupção através do jornal, com o qual seu pai dissimulava o campo
de estrumeira de seu pensamento, põem em ação alguma coisa no
final sem que nada indique que eles próprios saibam do que se
trata. Põem em ação a separação em ato de um analista que se tor
nou eqüivalente ao objeto de suas próprias fantasias. Já não se trata
de uma elucubração do que o sujeito foi para o Outro, mirão ou
excremento, mais do que cada um deles, conectado com esse objeto,
deixa ao analista atrás de si como olhar ou como merda, quer o
saiba ou não. E aí o ponto em que Lacan evoca a ingenuidade como
índice da aparição do desejo do analista.
Onde vemos aparecer este desejo? Vemos o efeito de separaçao
que opera a redução do analista a objeto a; sua presença objetai,
422
42 3
424
425
426
427
428
França.
Umbral de saída
430
o objeto fictício
431
432
Reconhecer o passe?
433
A queda da transferência
434
435
III. As conclusões
O texto da experiência
436
Consistência
437
438
439
A queda do Outro
l
A travessia da fantasia como vislumbre do gozo do sujeito,
quando ocorre, deveria deixar de fazer consistir o Outro e certa
I
440
Construção e travessia
442
resulta óbvio para quem o escuta, ignorando que brilha como o que
Se deixa ver.
Quer fazer saber ao mundo que há algo que não vai bem no
Outro: é o denunciante dos erros. A fantasia deste sujeito, analista
há muitos anos, se vê à primeira vista. Poderia sem dúvida retomar
a análise e mudar, mas no momento dá testemunho de uma análise
que não conduziu a travessia alguma e que reforçou a convicção
fantasística sem lhe deixar suspeitar o objeto em jogo em sua pró
pria manobra para fazer-se ser a si próprio.
Outro exemplo é o de uma mulher que após estabelecer o tex
to de sua experiência se encontra no final com o mesmo que havia
na entrada e que resumiu em duas fórmulas que desdobram o Outro.
A primeira é: "Ela me odeia’. Com esta fórmula o sujeito concretiza
a posição de sua mãe a seu respeito; é uma proposição que não
identifica o sujeito mas sim o Outro materno. A outra fórmula:
“Ele me esquece" está do lado do homem. Na vida deste sujeito se
pode observar o contínuo acting-out da fantasia, ou seja, passa ao ato
em seus laços com os homens como “parceiros” que terminam esque
cendo-a, e em seus laços com as outras mulheres que terminam
odiando-a — certamente consegue se fazer odiar por elas e de acordo
com seu próprio relato é bastante irritante. Neste caso, percebe
mos bastante nitidamente o papel de tela da fantasia, já que ela não
pode encontrar homens que não a esqueçam ou mulheres que não a
odeiem. É claro que isto não é totalmente exato, existe um outro
eixo, que não desenvolverei por não ser central e no qual existe um
laço com uma figura de mulher.
Este sujeito com suas duas fórmulas sobre o outro considera
que terminou. Se permanecer neste momento, restara com a forte
convicção de ter um destino. Destino que tem a cara de um outro
que a odeia ou que a esquece. Não tem a menor ideia de sua impli
cação na afirmação destas fórmulas. Poderíamos escrevê-lo no
esquematismo de Frege ou dizer que confunde as proposições
Aduzidas com o postulado, e que não reconhece que elege suas
eonclusões.
443
444
IV A identificação ao sintoma
445
446
o efeito de ser
448
relação entre os sexos, o modo de gozo que surge onde falta a pro
porção sexual. Isto quer dizer que não existe sujeito sem sintoma: o
sintoma é universal. Não consiste na infelicidade que alguns supor
tam, mas antes em uma estrutura que faz suplência à relação sexual.
0 sintoma não deve ser confundido com um processo patológico;
ao contrário, é um efeito de linguagem sobre o ser falante. Eviden
temente esta definição de sintoma difere da definição psiquiátrica
em que o sintoma e considerado como uma anomalia e não como
um processo universal.
Uma vez definido o sintoma como uma fixação de gozo pró
pria a cada sujeito, podemos imediatamente ver que o dito sintoma
ocupa o lugar do “parceiro” sexual do sujeito. Certamente uma
obsessão, por exemplo, não é o modo mais freqüente e mais cômodo
de fazer suplência à relação sexual, mas podemos afirmar que uma
obsessão conecta o sujeito com um “parceiro" de gozo.
No Seminário, livro 22: R.S.I (1975) há mais um passo, quando
Lacan afirma que uma mulher é sintoma para um homem e vice-
versa. Com isso quer dizer que nas relações entre os seres huma
nos, no amor, especificamente na relação erótica que obviamente
implica o corpo, o outro “parceiro” é somente o suporte de um
termo que fixa o gozo do sujeito. Se podemos afirmar que o par
ceiro” é também o sintoma, temos então que a identificação com o
sintoma, colocada por Lacan no final da análise, deve vincular-se
estritamente a um efeito no nível do amor.
A definição do sintoma como real em sua definição na estru
tura da linguagem merece ser precisada.
Após definir o sintoma como uma função do significante, ou
seja, como uma metáfora decifrável — cf. A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud” (1957) — Lacan passa a
defini-lo como função da letra, o que se pode traduzir como um
significante feito objeto, fora-de-sentido, idêntico a si próprio.
7- Cf. Lacan, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1975). Esta nova definição do sinto-
°i amplamente comentada por Jacques-Alain Miller em seu curso.
449
Crer nisso I
450
Nela crer
homem o risco está em nela crer, diz Lacan. E um risco porque isto
quer dizer que seu dito completa a letra fora do sentido do sintoma.
Então nela crer consiste exatamente em situá-la não tanto no lugar
do sintoma, mas no da alucinação mental: quando ela fala, o ho
mem pode crer que fala dele como seu próprio inconsciente.
Se há um tnagister dixit, a experiência analítica revela também
um “minha mulher disse”. Entende-se portanto que seus ditos po
dem tomar um papel persecutório e que quando estigmatizam o
ser, funcionam muito bem como eco, como uma voz que lhe fala
dele, embora não necessariamente que dele fale mal. Poderíamos
quase retraduzir o “Wo es war soll ich werden” de Freud: lá onde o
inconsciente opaco estava aí advém a palavra da “uma” que é supos
ta dizer a verdade.
Com isto entendemos muitos traços das relações entre os
homens e as mulheres. Por exemplo, esse anseio tão profundo de
que a mulher se cale. O famoso “Seja bela e cale-se” participa evi
dentemente da auto-proteção, uma vez que quando ela fala é como
se o inconsciente tivesse falado no real — estrutura parecida com a
da alucinação mental.
Poderíamos também falar da vigilância sobre a “uma”, que em
alguns casos vai mais-além dos ciúmes, posto que se torna conveniente
saber onde está um ser que foi colocado no lugar do inconsciente.
Mutação
452
453
454
455
V. Conclusões
456
não mais que outros, nem mais doentes, e que não entram no pro
cesso de transferência. São sujeitos que não creem que valha a pena
fazer o esforço de construir a cadeia de termos do inconsciente. Esse
ato de fé, como todo ato, por exemplo, o ato de criação do qual falava
há pouco, é algo irredutível. Além disso seria interessante construir a
série dos irredutíveis necessários para dar conta de uma análise.
Uma vez que a psicanálise supõe o ato de fé transferencial,
Lacan fala de religião. Ato de fé é um termo religioso. Não é por
acaso que Lacan afirma que o sujeito suposto saber constitui um
dos nomes de Deus — do Deus dos filósofos, ao menos — que é o
mesmo que dizer que a transferência, como trabalho, supõe um ato
de fé. O problema está em saber se esta prática, que supõe um ato
de fé na entrada, permite em todos os casos a saída da dita fé, ou
seja, um ato de incredulidade decidida. Falei em um ocasião do
“acteísmo” (acteísme') do analista justamente para referir-me ao fato
de que o ato analítico implica a redução da fé transferencial. Falar
de rechaço final do inconsciente diz o mesmo, pois se trata de de
tenção da construção da cadeia em proveito do “um” fora do senti
do e fora do inconsciente. O final consiste em não crer mais nisto,
em “desabonar-se” do inconsciente.
Enganados e crentes
457
V. Conclusões
456
não mais que outros, nem mais doentes, e que não entram no pro
cesso de transferência. São sujeitos que não crêem que valha a pena
fazer o esforço de construir a cadeia de termos do inconsciente. Esse
ato de fé, como todo ato, por exemplo, o ato de criação do qual falava
há pouco, é algo irredutível. Além disso seria interessante construir a
série dos irredutíveis necessários para dar conta de uma análise.
Uma vez que a psicanálise supõe o ato de fé transferencial,
Lacan fala de religião. Ato de fé é um termo religioso. Não é por
acaso que Lacan afirma que o sujeito suposto saber constitui um
dos nomes de Deus — do Deus dos filósofos, ao menos — que é o
mesmo que dizer que a transferência, como trabalho, supõe um ato
de fé. O problema está em saber se esta prática, que supõe um ato
de fé na entrada, permite em todos os casos a saída da dita fé, ou
seja, um ato de incredulidade decidida. Falei em um ocasião do
“acteísmo” (acteísme') do analista justamente para referir-me ao fato
de que o ato analítico implica a redução da fé transferencial. Falar
de rechaço final do inconsciente diz o mesmo, pois se trata de de
tenção da construção da cadeia em proveito do um fora do senti
do e fora do inconsciente. O final consiste em não crer mais nisto,
em “desabonar-se” do inconsciente.
Enganados e crentes
$ Nj
E* Nome do Seminário, livro 21 de Lacan.
pensamentos que vão aparecendo, sem saber para onde vai. Seguir uma
série não implica nenhuma direção, tal como o Pequeno Polegar ao
seguir as pedrinhas brancas não sabia para onde ia, ainda que avançasse.
Lacan precisa algo sobre os não enganados, que inicialmente
me pareceu enigmático, mas agora creio entender: “Os não engana
dos crêem na viagem”, comentando ainda que isso os conduz a crer
no “desenvolvimento”. Se opomos o enganado pela decifração e o
que crê no sentido, vemos que a alternativa está ou em deixar-se
enganar pela série das letras ou em ficar preso no sentido que sempre
tem uma direção: posição teleológica que faz existir o ponto final
de chegada como causa final.
Parênteses
458
Saídas e conclusões
459
46o
461
462
46?
464
coisa; têm uma idéia mais exigente, sabem que para solicitá-la não
basta uma pequena dificuldade na vida, que se trata de algo sério
que até dá medo.
De todo modo, quaisquer que sejam as diferenças e o lugar
em que ela seja produzida, podemos dizer que, mais-além das de
mandas plurais, pede-se algo que, mais ou menos, poderíamos cha
mar de tratamento do sofrimento, do que vai mal. Mas não qual-
quer tratamento; de uma psicanálise pede-se também algo como
uma elucidação que torne claro o por que há algo que vai mal.
Assim a demanda prévia a uma psicanálise é algo ambíguo en
tre uma demanda de um pouco mais de felicidade e um pouco mais
de saber, de entendimento: algo que se situa entre terapêutica e
descoberta do segredo. O que pode prometer a psicanálise?
Felicidade?
466
pedir, nem
amal-estar, oumesmo Felicidad
desaparecimentoa do
seja, o implicitamente, sintoma d°
467
Astúcias da infelicidade
468
Os paradoxos da pulsão
469
470
A escolha do sujeito
471
não podia entrar, como também não podia deixar de pensar nelas
Não era um fobia simples e era quase uma obssesão. Temos então
loja como significante de seu medo. Freud produz, a partir de suas
associações, recordações de outro significante, o do homem, não o
do homem em geral, mas de seu gozo sexual. Assim o medo das
lojas dissimulava o medo do encontro com o sexo.
É um exemplo simples e demonstrativo que permite entender
por que Freud diz que o sintoma mente, pois mente uma vez que há
substituição de significante. Onde na realidade há um grande temor
do encontro sexual com o homem, o sintoma indica temor das lojas, o
que aparentemente não tem sentido. O sintoma mente, mas ao mes
mo tempo torna presente a verdade que pode ser encontrada através
da decifração. Decifrar um sintoma é sempre fazer aparecer o encontro
de gozo que esse sintoma memorizava. Assim a psicanálise antes de se
preocupar em curar o sintoma, procura revelar seu segredo.
Como se situa o tratamento em relação à revelação deste segredo?
Podemos dizer que a jovem histérica fica curada quando se
revela seu sintoma? Sim e não. Quando decifra que seu medo das
lojas é medo do encontro com os homens, o medo das lojas pode
desaparecer — efeito terapêutico — mas não necessariamente o
medo dos homens. A jovem já sabe que o segredo estava em seu
medo dos homens, e claramente poder entrar nas lojas é uma gran
de comodidade, mas não um grande feito terapêutico até que se
cure de seu rechaço sexual.
Podemos dizer que ocorre o mesmo com a obsessão do Homem
dos ratos, mais grave que o medo da histérica das lojas porque o
impede de trabalhar, porque produz horror para ele. Para ele, quan
do desaparece a obsessão há um grande feito terapêutico, consis
tente, importante, mas o sujeito não está curado. Perguntamo-nos
onde pararão suas pulsões agressivas em relação a seus objetos, e o
que Lacan chamou de matrimônio com a morte.
Diferenciamos entre curar um sintoma em seu sentido
fenomenológico — fazer desaparecer o fenômeno patologico, fobia e
obsessão — e curar o sujeito, ou seja, reduzir a negação que tenta
Um desejo novo
473
474
BLOY, Léon
(198O). La/emme pauvrre. Paris, Gallimard.
CLAUDEL. Paul
(1966). Théâtre 1. Paris, Gallimard.
DEUTSCH. Helene
(1944)- La psychologie desfemmes. Paris, PUF, 1974.
FERECNZI. Sándor
(1908-1912). Psychanalyse 1. Paris, Payot, 1990.
(191 3 -1919) • Psychanalyse z. Paris, Payot, 1990.
(1919).”Difficultés techntques d une analyse dhystérie”. Em:Psychanalyse 19/9-1 çz6.
Paris, Payot. 1990.
(I92O). “Prolongements de la technique active”. Em: Psychanalyse j, 1919-/926. Op. cit.
(1924). “Les fantasmes provoqués”. Idem.
(1926). “Contre-indications de la technique active”. Idem.
(1928). "Le problème de la fin de 1 analyse”. Em: Psychanalyse 4, 192.7-1933- Paris,
Payot, 1990.
(1928b). “Elasticité de la technique psychanalytique”. Em: Psychanalyse 4, 1927-1933.
Op. cit.
(1929). “Lenfant mal accueilli et as pulsion de mort ’. Idem.
(1929b). “Principe de relaxation et néo-catharsis”. Idem.
(19? I). “Analyse d enfant avec des adultes ’. Idem
(1932) Journal clinique, janvier-octobre J931, Paris, Payot. 1990.
(1932b). “Confusion de langue entre les adultes et les enfants . Idem.
FREUD, Sigmund
(1895). De l esquisse d un psychologie scientihque . Em: Naissance de la
psychanalyse. Paris, PUF, 1979.
(1900). Linterprítation des reves. Paris. PUF, 1967-
(1909). L’ Homme aux rats. Paris, PUF, 1994-
(1911) Le prísident Schreber. Paris, PUF, 1995.
(I9I3). Totem et tabou. Paris, Payot, 1989.
THomme aux loups. Paris, PUF. 1990.
(I919). Un enfant est battu”. Em: Névrose, psychose etperversion. Paris, PUF, 197 3 •
(1920). Psychologie des foules et analyse du moi . Em: Essais de psychanalyse.
Paris, Payot, 1993.
(1924). Le problème économique du masochisme”. Em: Nívrose, psychose etperversion. Op. cit.
(1925). Quelques conséquences psychiques de la différence anatomique entre
^es sexes . Em: La vie sexuelle. Paris, PUF, 1969.
475
Paris, Gallimard.
JOYCE, James
(1962). Lettres 1. Paris, Gallimard.
(1973)- Lettres z. Paris, Gallimard.
(1981). Lettres 3. Paris, Gallimard.
(1986). Lettres 4. Paris, Gallimard.
(1991). Stephen Hero. London, Paladin, Harpercollins.
(1992). A portrait ofthe artist as a young man. London, Penguin Books.
(1995). Oeuvres 2: Ulysse. Bibliothèque de la Plêiade. Paris, Gallimard.
(1996). Oeuvres i: Oeuvres. Bibliothèque de la Plêiade. Paris, Gallimard.
LACAN, Jacques
(1936). “Au-delà du “Príncipe de realité”. Em: Écrits. Paris, Seuil, 1966.
(1936b). “Le stade du miroir”. Idem.
(195 3). “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse . Idem.
(1946). “Propos sur la causalité psychique”. Idem.
(195 5). “Variantes de la cure type”. Idem.
(1957). “Linstance de la lettre dans 1’inconscient ou la raison depuis Freud . Idem.
(1958). “La signification du phallus”. Idem.
(1959-60). Le Séminaire, Livre VII: L’Éthique de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1986.
(1960). “Remarques sur le rapport de Daniel Lagache . Em. Ecrits. Op.
(1960b). “Subversion du sujet et dialectique du désir . Idem.
(I960c). “Position de Finconscient ’. Idem.
(f96O-V). Le Séminaire, livre VIII: Le transferí. Paris, Seuil, 199L z . n cit
(1961). “La direction de la cure et les príncipes de son pouvoir . Em: Ecrits. p-
476
477
i 950