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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras


(Mario Van Peebles, 1995)
Kássius Kennedy Clemente Batista
Mestrando em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
kk-historia@hotmail.com

RESUMO: O presente artigo analisa alguns elementos fílmicos e um conjunto de críticas


referentes ao filme Panteras Negras, dirigido por Mario Van Peebles. Pretende-se, assim, refletir
sobre o contexto da década de 1960, marcado por várias polêmicas e ações revolucionárias,
sobretudo os movimentos de contracultura. Além disso, vale retomar aspectos próprios do filme
de Van Peebles e, em seguida, tratar da crítica e recepção da obra. Esta é uma maneira de
repensar não somente a relação Cinema/História, mas também o par História/Ficção, buscando
entender o que este filme coloca em evidência e as implicações que isso causa no público
espectador, e na crítica que se ocupa de avaliá-lo, de acordo com os padrões da época.

PALAVRAS-CHAVE: Cinema-História, Panteras Negras, Mario Van Peebles.

ABSTRACT: This article analyses some of the movies' contents and a group of critics about
Panther, directed by Mario Van Peebles. So, is the intention, discuss about the 1960's context,
detaching the revolutionaries moves, especially the counterculture moves. More than this, it's
important to search for characteristics from the own Van Peebles' movie and, after that, threat
about the critic and the work acceptance. This is a way to rethink, not only the relation
Cinema/History, but also the pair History/Fiction, trying to understand what this movie presents
177
and the implications that it causes to the televiewers, and of the critic that is responsable to
evaluate it, according to the period's models.

KEYWORDS: Cinema-History, Panther, Mario Van Peebles.

Introdução

A obra Panteras Negras foi alvo de severas contestações no período de sua exibição nos
cinemas americanos, por se pautar em uma postura política clara e por supostamente utilizar
elementos de ficção para narrar a trajetória do Partido dos Panteras Negras. O diretor, Mario Van
Peebles, valorizou a ação do movimento revolucionário negro e responsabilizou a máquina
estatal, por ser portadora da violência e por ter sido a responsável pelo fim do Partido que havia
sido fundado em Oakland, Califórnia no ano de 1966. Para compreendermos essas contestações
é necessário uma breve revisão de aspectos comuns ao contexto da década de 1960. Várias
questões aqui referidas serão retomadas mais adiante, para efeito de indagação ou
questionamento dos elementos fílmicos da obra.

O Movimento Negro havia ganhado, na década de 1950, uma força significativa, através
da figura carismática de Martin Luther King, que lutou a favor de Rosa Parks e o boicote ao

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sistema de transporte público na cidade de Montgomery, Alabama. A figura do pastor da Igreja


Batista foi fundamental na reivindicação dos direitos civis. A sociedade presenciou um grande
crescimento da mobilização popular, com a entrada dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e o
fortalecimento do movimento estudantil, que se aliou aos negros, às mulheres e aos pacifistas.

Apesar da postura mais rígida por parte do Partido dos Panteras Negras, o início da
década de 1950 foi marcada pela não-violência de Luther King e pelos discursos do então
presidente John Fitzgerald Kennedy. Centenas de milhares de pessoas acompanhavam as
marchas e os discursos do presidente e do líder pacifista, que se admiravam pela postura
democrática e polida com a qual tratavam a questão das minorias nos Estados Unidos, de acordo
com a cultura estadunidense e a carta constitucional. No entanto, ambos não resistiram ao
conservadorismo: John F. Kennedy foi assassinado em 1963, em meados do seu primeiro
mandato, e Luther King teve um destino igualmente trágico, tendo sido assassinado cinco anos
mais tarde.

No mesmo período em que Martin Luther King conquistava o apoio de milhares de


pessoas, outro líder ganhava cada vez maior notoriedade em meio aos estadunidenses. De família
desestruturada e com passagens pela polícia, Malcolm Litle – imortalizado com o epíteto 178
Malcolm X – discursava com agressividade, e culpava “todo homem branco pela pobreza e pela
desigualdade entre os homens”1. O movimento negro se fortalecia com X, ainda que seu discurso
não seguisse o compasso de Luther King. Ao contrário deste, que pretendia conciliar e defender
os valores dos cidadãos americanos, aquele desejava a separação, pois não acreditava na
possibilidade de estabelecer a paz entre brancos e negros. No entanto, seguiu um destino
parecido ao de King, sendo assassinado em 1965 em frente à sua esposa e filhos, enquanto fazia
um discurso para uma pequena platéia em Nova Iorque.

Na medida em que a Guerra do Vietnã se desenvolvia na Ásia, grande parcela da


população contestava a participação de soldados norte-americanos no conflito. A população
americana condenava o envio de tropas, junto ao apoio dos movimentos de contracultura,
especialmente o estudantil. Fatores como este possibilitaram o posicionamento político de
parcela da sociedade, o que torna o momento singular e inaugural.

Foi nesta conjuntura, na qual o movimento negro ganhava força, de luta pelos direitos
civis e grande efervescência cultural e política, que surgiu o Partido dos Panteras Negras em 1966,

1HALEY, Alex. Autobiografia de Malcolm X: com a colaboração de Alex Haley. Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. 2 ed.
Rio de Janeiro: Record, 1992.

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na Califórnia. Se valendo de brechas na Constituição, seus integrantes puderam recorrer a armas e


adotar um discurso radical frente, principalmente, à ação policial nos Estados Unidos. Os
Panteras Negras conseguiram grande visibilidade no cenário nacional e foram fundamentais para
a manutenção da luta política pelos direitos civis, mesmo depois da “Lei de Direitos Civis”,
promulgada no governo do presidente Lyndon Baines Johnson, em 1964.

Dentre as medidas notáveis e eficientes adotadas pelos Panteras Negras, destaque para o
programa de alimentação e educação de crianças, a luta contra a discriminação e contra a postura
do Estado, que não se ocupava e rever os problemas da população negra. Ao eleger
representantes junto ao executivo e o legislativo, muito pôde ser feito pela população, mas para
além dessas conquistas, os Panteras Negras representavam, naquele momento, o caminho
percorrido pelo movimento negro. Depois das mortes de Martin Luther King e Malcolm X, era
no partido que estavam concentradas as forças do movimento.

Na década de 1950, os presidentes americanos tiveram que conviver com dois grandes
problemas, um de natureza externa, e outro de natureza interna: no primeiro caso, trata-se da
polêmica em torno da Guerra o Vietnã, que contava com uma opinião cada vez mais
desfavorável por parte da população, que questionava a morte de seus conterrâneos; no segundo 179
caso, destaca-se a luta pelos Direitos Civis e a contestação frente à discriminação racial,
movimentos que resistiram às empreitadas e censuras do Estado.

Em 1966 na cidade de Oakland, situada no estado da Califórnia, foi criado o Partido dos
Panteras Negras por Huey Newton e seu amigo e líder estudantil Bobby Seale, em conjunto com
outros ativistas dos direitos civis, cujo objetivo era patrulhar guetos negros para proteger os
residentes dos atos de brutalidade da polícia. Huey P. Newton foi nomeado Ministro da defesa e
Bobby Seale o Presidente do partido. Amparados legalmente pela legislação da Califórnia, que
permitia aos cidadãos o porte de armas de fogo em público, os militantes do Partido passaram a
acompanhar e a intervir em assuntos referentes às atividades policiais e eventualmente intervindo
frente a violência policial. Surge daí surge o nome completo da organização: Partido dos Panteras
Negras para Autodefesa.

Os Panteras Negras se envolveram em vários conflitos com a polícia nas décadas de 1960
e 1970, o que resultou em várias prisões - dentre elas a de Huey Newton - e mortes de seus
membros. Além disso, a Assembléia Legislativa do Estado da Califórnia discutia a aprovação da

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Lei Mulford2, que revogava a lei que garantia a todo cidadão cuja integridade física fosse
ameaçada o direito de portar uma arma de fogo e fazer uso dela. O projeto era direcionado sob
medida para desarmar os Panteras Negras.

Nos primeiros anos após sua formação o partido experimentou um crescimento


significativo.Até o final do ano de 1968, os Panteras Negras já haviam recrutados em suas fileiras
mais de cinco mil integrantes3 e também teriam conseguido vender mais de 100.000 exemplares
do seu jornal oficial - Black Panther Party Newspaper. O sucesso foi tamanho que o diretor do FBI
J. Edgar Hoover afirmou que o Partido Pantera Negra era a principal ameaça interna à segurança
nacional4. Essa preocupação fez com que o FBI intensificasse as atividades do chamado
COINTELPRO (Programa de Contra-Inteligência criado pelo FBI em 1956 para neutralizar o
Partido Comunista), que tinha como principais ações os objetivos de investigar, espionar,
coordenar a polícia local e neutralizar as atividades dos Panteras Negras.

Através da presença revolucionária criada pelo PPN não fica difícil entender a atração que
os negros sentiram pela organização. Os projetos políticos propostos pelos Panteras Negras
pretendiam promover mudanças profundas na sociedade norte-americana. A título de exemplo, a
distribuição de café da manhã para crianças carentes e policiais negros para população negra . 180
Huey Newton estava convencido que de que os negros norte-americanos nunca iriam destruir o
racismo automaticamente sem destruir o capitalismo. Em suas próprias palavras: não seria possível
destruir o racismo sem limpar a sua base econômica sustentada na exploração excessiva dos trabalhadores negros
por capitalistas brancos5.

O movimento negro consolidou sua força e o Partido Panteras Negras gozaram de uma
rápida ascensão que influenciou a consciência de milhares de pessoas. Contudo, foi justamente
devido a essa grande projeção que os membros do partido foram perseguidos e seus escritórios

2 Lei Mulford de 1967 - Código Penal 12031, capítulo 171 assinado pelo então governador da Califórnia e futuro
presidente dos Estados Unidos da América Ronald W. Reagan. Captado em <http://www.leginfo.ca.gov/cgi-
bin/calawquery?codesection=pen&codebody=&hits=20>. Acesso em: 10/3/2011.
3 ZAPPA, Regina; SOTO, Ernesto. 1968: eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 98.

Cabe ressaltar que esse número varia conforme a fonte. Em muitos locais se utiliza o número de dois mil militantes
em média. O fato é que o consenso que existe é a respeito da descrença na via pacífica para solucionar os problemas
dos direitos civis, ou de acordo com as palavras dos autores: “As organizações que pregavam a não-violência estavam
claramente perdendo a sua influência. Se elas já atormentavam os segregacionistas com seus protestos pacíficos, a
crescente tendência de ‘pagar na mesma moeda’ inquietava também os setores progressistas e liberais da chamada
Nova Esquerda”. ZAPPA, Regina; SOTO, Ernesto. 1968: eles só queriam mudar o mundo, p. 96.
4 "the greatest threat to the internal security of the country" - J. Edgar Hoover citou em U.S. Congress. Senate. Book III: Final

Report of the Select Committee to Study Governmental Operations with Respect to Intelligence Activities, 94th
Cong., 2nd sess., 1976, p. 187.
5 NEWTON, Huey P. Pour une nouvelle constitution. In: TOUT le pouvoir au peuple, a tous les peuples. Paris: Ed Git-

le-Coeur, s.d., p. 54.

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destruídos por todo o território dos Estados Unidos. Outro fator relevante para o declínio do
partido foi inserção de drogas, especialmente a cocaína, que passaram a ser distribuídas e
consumidas em grandes quantidades nos guetos negros e nas regiões onde o partido agia.

É certo também que o desaparecimento dos Panteras também decorreu de algumas


deficiências na própria estratégia política adotada. Por exemplo, o seu principal objetivo, a
autodefesa armada nas comunidades embora corajoso, não poderia em última análise ser capaz de
confrontar um inimigo que possuía mais recursos. O Estado norte-americano detinha inteligência
de guerra e um aparato bélico muito superior, desenvolvido na emergência da Guerra Fria, duas
décadas antes.

Um dos fatores de fundamental importância para o partido foi o lançamento do


programa que foi concebido em dez pontos principais e serviu como um manifesto das
necessidades políticas e sociais imediatas da comunidade negra6. O programa se baseava na defesa
da autodeterminação da população negra, estabelecimento de um bom sistema de ensino,
moradia, emprego, assistência médica, fim da brutalidade policial, isenção do serviço militar
obrigatório, direito à formação de júris compostos por negros para julgarem outros negros, entre
outras questões de importância primária. Huey Newton descreveu o programa como um pacote 181
que ajudaria a aumentar o apoio do partido dentro da comunidade e, assim, ganhar força
suficiente para realizar a revolução contra o racismo e o capitalismo.

Recepção e crítica
O lançamento do filme Panteras Negras foi acompanhado por uma série de ataques tanto
ao filme quanto aos movimentos que pregavam a mudança social na década de 1960. Ao dirigir a
obra, Mario Van Peebles disse à imprensa que desejava inspirar a geração de jovens negros que
viviam em guetos urbanos. Van Peebles acrescenta que as crianças “sabiam apenas coisas
negativas”7 e desconheciam a importância de Huey Newton, ministro da defesa do Partido dos
Panteras Negras. O diretor pretendeu contar a história sobre o movimento Black Power, o que
daria voz às experiências dos ativistas negros e permitiria que uma geração mais jovem de afro-
americanos pudesse identificar o papel que lhes fora legado no passado.

6 NEWTON. Huey P. War Against The Panthers: A Study Of Repression In America (Doctoral Dissertation) - UC
Santa Cruz, 1980. O Programa dos 10 pontos foi escrito primeiramente em 15 outubro de 1966 e depois em 1º de
março de 1972 e foi disponibilizado dentro do próprio partido e depois disponibilizado nas reuniões e discursos
feitos pelos Panteras, inclusive no Jornal “The Black Panther” que entrou em circulação no final da década de 60 –
para horror do FBI.
7 SCHAEFER, S. Panther director is pleased with his statement. The Boston Herald, p. 17, 6 mai. 1995.

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A obra Panteras Negras retratou os negros como agentes de mudanças sociais em


circunstâncias particulares, apresentando indivíduos que defenderam a ação coletiva enquanto
meio de atingir mudanças significativas no âmbito das mudanças estruturais econômicas nos
Estados Unidos. A obra foi capaz de chegar a Hollywood, apesar das pressões impostas pela
indústria cinematográfica, que resistia ou impunha condições no que se refere a narrativas sobre
líderes ou movimentos negros, por tratar-se de produções pouco lucrativas. Na verdade, Van
Peebles lutou contra a indústria de Hollywood para financiar seus filmes, como ele próprio
dissera em entrevista ao Jornal Chicago Sun-Times:
If we were negotiating now, I’m sure [Hollywood producers] would say, ‘Make
one of the lead Panthers white, and get Brad Pitt to star in the film.’ But I
thought about what my dad said, which is that history goes back to the winner,
and you’re surely not winning if you’re not telling your own history. So we held
off until we could make the film our way.8

O diretor, em outras entrevistas, afirmara que lhe foi sugerido o uso de atores brancos
para contar a história dos Panteras Negras, para que o seu filme recebesse um orçamento maior
e, consequentemente, fosse mais rentável, a exemplo do que teria acontecido com a obra
Mississipi em Chamas, de Alan Parker, que alcançou uma boa bilheteria e foi indicado a vários
182
prêmios9.
Segundo o IMDb a obra Panteras Negras teve uma bilheteria de oito milhões de dólares
devido ao reduzido orçamento para produção da película e pela própria recepção que fora
prejudicada muito em função dos críticos de jornais e revistas que apontaram vários problemas
no filme mesmo antes de seu lançamento. É possível perceber que essa ação foi determinante na
recepção da obra. Contudo, esse valor, apesar de não ser tão expressivo se comparado às
produções de maior aceitação popular, nos leva a crer que muitas pessoas se interessavam e
queriam saber mais sobre o movimento Black Power e sua repercussão. Poderíamos concluir isso

8 Tradução livre: Se estivéssemos negociando agora, tenho certeza que [os produtores de Hollywood] diriam: 'Faça
um líderes dos Panteras branco, e pegue Brad Pitt para estrelar o filme.' Mas eu pensei sobre o que meu pai disse, o
que é que a história remonta ao vencedor, e você certamente não ganhará se não contar sua própria história. Então,
nós descartamos até que pudéssemos fazer o filme do nosso jeito. KIM, J. Black History?: Director Peebles Defends
Controversial New Film. Chicago Sun-Times, P. 3nc, 07 mai. 1995.
9 De acordo com o Internet Movie Database, o filme Mississipi em Chamas faturou 34 milhões de dólares. Além

disso, foi vencedor do Oscar de melhor fotografia em 1989 e indicado as categorias de Melhor Ator (Gene
Hackman), Melhor Atriz Coadjuvante (Frances McDomard), Melhor Direção, Melhor Edição, Melhor Filme e
Melhor Som. Foi vencedor do BAFTA de Melhor Fotografia, Melhor Som e Melhor Edição. Vencedor do prêmio
Urso de Prata na Categoria Melhor Ator no Festival de Berlim de 1989 e indicado ao Urso de Ouro. Venceu a
categoria Direitos Humanos do Political Film Society de 1990 e foi ainda indicado ao Globo de Ouro de 1989 nas
categorias Melhor Diretor de cinema, Melhor Roteiro de cinema, Melhor Filme e Melhor atuação de um ator de
cinema (Gene Hackman). Ver: <http://www.imdb.com/title/tt0095647/awards>. Acesso em: 10/02/2011.

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se levarmos em consideração a mobilização dos críticos que, de certa forma, contribuiu para
propagandear o filme, mesmo que negativamente.
A obra de Mario Van Peebles desafiou certas concepções liberais comuns ao sistema
político norte-americano. Além de promover uma crítica mordaz ao sistema político e econômico
dos Estados Unidos, Panteras Negras acabou adotando um estilo narrativo não convencional,
mesclando noções de história com doses significativas de ficção, sobretudo no que se refere a
elementos comuns ao cinema blaxplotation10 e recursos próprios de documentários. Críticos e
comentadores do filme alegaram que a produção não se afinou à dimensão histórica do
movimento, ao sugerir idéias absurdas como a adoção de medidas ilegais por parte do FBI que,
para minar o sucesso do partido, chegou a recorrer ao tráfico de drogas.
Grande parte das críticas foi desferida na semana que antecedeu a estréia oficial, mas
seguiu-se durante a exibição do filme e, à medida que a rejeição da obra aumentava, os revisores
amplificaram a imagem negativa do filme. Próximo ao dia 03 de maio de 1995, data da estréia do
filme, o jornal The New York Times11 fez uma reportagem dizendo que o diretor negligenciou a
participação de personagens importantes como Elaine Brown, que durante um período presidiu o
partido. No tocante à participação feminina, uma matéria do jornal Los Angeles Times12 criticou o
filme por não ter mostrado Angela Davis como componente do Partido dos Panteras Negras.
183
Um dos maiores críticos do filme Panteras Negras foi David Horowitz, editor da Revista
Ramparts na década de 1960. De acordo com o crítico, o filme não retratava o assassinato que
chocou a comunidade local e que supostamente contou com o envolvimento de alguns membros
dos Panteras Negras, em meados da década de 1970, ignorando, portanto, atrocidades cometidas
por integrantes do partido13. Um mês antes, Horowitz havia colocado páginas inteiras com vários
anúncios sobre a deturpação causada pelo Partido dos Panteras Negras nas revistas Variety e
Hollywood Reporter14. Depois disso, a opinião presente em jornais e revistas tendeu a intensificar a

10 A indústria cinematográfica se deu conta que poderia faturar bastante produzindo filmes para a comunidade negra.
Surgiu uma estética própria da época com cores bastante vivas, perseguições, humor chulo e muita violência. É
importante lembrar que grandes nomes como Halle Barry, Mario Van Peebles, Denzel Washington, Spike Lee - entre
outros, puderem ganhar visibilidade porque muitas portas foram abertas nesse período, inclusive com as trilhas
sonoras de Earth Wind and Fire, Curtis Mayfield e James Brown. Ver: HOWELL, Amanda. Spectacle, masculinity,
and music in blaxploitation cinema. Screening the past, n. 18, 2005. Captado em:
<http://www.latrobe.edu.au/screeningthepast/firstrelease/fr_18/AHfr18a.html>. Acesso em: 20/2/2011.
11 Entrevista concedida a revista Tikkun na publicação de jul/ago 1995. Publicado novamente em artigo da Revista

FrontPageMag.com - edição online de David Horowitz em 17 de fevereiro de 1999. Captado em


<http://archive.frontpagemag.com/readArticle.aspx?ARTID=22287>. Acesso em: 20/2/2011.
12 Entrevista com Mario Van Peebles na Revista Tikkun na publicação de jul/ago 1995.
13 CHARLES, N. [Revisão sem título do filme Panteras Negras]. Daily News, 02 mai. 1995, p. 29.
14 SHERMAN, P. JFK meets Malcolm X in erratic Panther [Review of the motion picture Panther]. The Boston

Herald, p. 11, 15 out. 1995.

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crítica ao filme. Horowitz continuou a se manifestar após o lançamento do filme: em uma de suas
críticas, o escritor referiu-se ao filme como "duas horas de mentira"15.
Outras críticas condenaram o filme de Van Peebles por privilegiar a perspectiva dos
membros do Partido. Persall16 escreveu que privilegiar este aspecto criou um "viés" de
representação dos Panteras Negras. Escrevendo para o jornal San Francisco Chronicle, Stack17
afirma aos leitores que o filme reflete a "busca indiscrinada para definir heróis negros - e
demonizar os brancos". Os revisores também condenaram o retrato que o filme faz do FBI e de
seu diretor, J. Edgar Hoover, como uma "caricatura bizarra"18 e "unidimensional"19, ou seja,
apresentando apenas o viés dos Panteras, desconsiderando as outras personagens e elementos
que o filme apresenta. Percebemos que, nesse conjunto de críticas, a opinião predominante
penaliza o filme, por ter caracterizado o FBI em conluio com a máfia contra o Partido dos
Panteras Negras.
Além das principais críticas que já abordamos, várias outras análises sobre o filme
apontam para problemas no enredo, tratando-o como "um salto grande em particular"20,
"artificial"21, "ultrajante"22, "descontroladamente irresponsável"23, uma "especulação selvagem"24,
"profundamente paranóico"25 e "muito restrito"26. Da mesma forma, a CNN fez uma cobertura
da polêmica criado em torno de Panteras Negras utilizando a crítica de Horowitz, quando
184
descreveu o conjunto da obra como sendo "exageradamente fantástico."

15 LEIBY, R. Black out: what a new movie about the Black Panthers remembers--and what it forgets [Review of the
motion picture Panther]. The Washington Post, p. G01, 30 abr. 1995. Retirado da base de Lexis-Nexis news database.
16 PERSALL, S. Panther shades the facts but is compelling [Review of the motion picture Panther]. St. Petersburg

Times, p. 7, 5 mai. 1995. Retirado da base de Lexis-Nexis news database.


17 STACK, P. Panther Goes for the Mythic: Glossed-over look at radical black group [Review of the motion picture

Panther]. San Francisco Chronicle, p. E1, 3 mai. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.
18 CARROLL, J. Profile of a Panther: The Van Peebleses tell the story of Huey P. Newton. The San Francisco

Chronicle, p. 31, 30 abr. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.


19 FINE, M. Pouncing on Panther: Film incites a storm of criticism. USA Today, p. 1D, 28 abr. 1995. - Retirado da

base de Lexis-Nexis news database.


20 LEIBY, R. Black out; What a new movie about the Black Panthers remembers--and what it forgets [Review of the

motion picture Panther]. The Washington Post, p. G01, 30 abr. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.
21 CARROLL, J. Profile of a Panther: The Van Peebleses tell the story of Huey P. Newton. The San Francisco

Chronicle, p. 31, 30 abr. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.


22 PERSALL, S. Panther shades the facts but is compelling [Review of the motion picture Panther]. St. Petersburg

Times, p. 7, 5 mai. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.


23 CHARLES, N. [Revisão sem título do filme Panteras Negras]. Daily News, p. 31, 2 mai. 1995. - Retirado da base de

Lexis-Nexis news database.


24 ROSS, B. Panther prowls past truth; There's more action than history in this propaganda piece from director

Mario Van Peebles [Review of the motion picture Panther]. Tampa Tribune, p. 16, 5 mai. 1995. - Retirado da base de
Lexis-Nexis news database.
25 BARNES, H. Panthers: Only the name’s been changed [Review of the motion picture Panther]. St. Louis Post-

Dispatch, p. 3E , 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.


26 JAMES, C. They’re movies; Not schoolbooks [Review of the motion picture Panther]. New York Times, p. sec. 2, p.

1, 21 mai. 1995. - Retirado da base de Lexis-Nexis news database.

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

A crítica ainda não considerava o filme como fonte confiável para quem desejava
conhecer a história dos Panteras Negras. Muitas análises concluíram que o filme apresentou uma
história "simplista"27, "burlesca"28 e "insuficiente"29, não servindo portanto para compreensão dos
fatos. Essas avaliações sugerem que o enredo do filme era ilegítimo e inaceitável, uma distorção
da história do partido. À revelia destas concepções, pretendemos analisar mais detidamente o
conteúdo do filme e refletir sobre o papel das personagens e sobre o enredo da obra. Pretende-se,
assim, mobilizar elementos que ajudem a compreender o viés das críticas e as possíveis
implicações que tangenciam a produção fílmica.
Devemos lembrar que Panteras Negras é produzido na década de 1990, quando mais uma
vez a sociedade presenciou um caso nacional envolvendo a questão racial. O espancamento do
taxista negro Rodney King30 em 1992 e a absolvição dos policiais acusados de tal violência
geraram uma onda de confrontos entre a população, causando dezenas de mortes, milhares de
feridos e um prejuízo de milhões de dólares. Muito embora o julgamento sobre Rodney King seja
apontado como o estopim para a Revolta de Los Angeles, outros fatores são considerados como
parte do descontentamento da população. Os Estados Unidos estavam sendo governados por
republicanos há vários anos e, principalmente os dois últimos mandados (o segundo de Ronald
W. Reagan e o de George H. Bush), voltaram a atenção dos cidadãos norte-americanos para as
185
questões externas, com um grande aumento na produção bélica e intervenção tanto na América
Latina quanto no Oriente. Isso proporcionou uma forte recessão econômica no final da década
de 1980 e um elevado nível de desemprego, principalmente nos bairros negros de Los Angeles.
A revolta chamou a atenção da opinião pública do país e, como desdobramento, esteve
presente também em diversos meios midiáticos, principalmente nas várias referências
cinematográficas, televisivas, e musicais, para não falar no caso de Rodney King enquanto
elemento de implicações políticas. No mesmo ano do caso do taxista negro, o candidato do
Partido Democrata Bill Clinton venceu as eleições para presidente dos Estados Unidos. O novo

27 FINE, M. Pouncing on Panther: Film incites a storm of criticism. USA Today, p. 1D, 28 de abr. 1995.
DENERSTEIN, R. Panther growls, at least for awhile. Rocky Mountain News, p. 11D, 3 mai. 1995. - Retirado da base
de Lexis-Nexis news database
28 MURRAY, S. Panther [Review of the motion picture Panther]. The Atlanta Journal and Constitution, p. 7B, 3 mai.

1995.
29 MASLIN, J. How the Black Panthers came to be, sort of [Review of the motion picture Panther]. New York Times,

p. C18, 3 mai. 1995.


30 Detido sob a acusação de dirigir em alta velocidade, o taxista Rodney King foi violentamente espancado por

policiais brancos. A cena foi registrada pelas lentes do cinegrafista amador George Holliday e percorreu o mundo
sendo exibido milhares de vezes. Um júri composto por 10 brancos, 1 negro e 1 asiático absolveu os policiais
acusados. A revolta principalmente de negros e latino americanos foi quase instantânea, levando a uma das maiores
revoltas do Estado da Califórnia.

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presidente, apesar de enfrentar um conflito externo, voltou seu governo principalmente para os
problemas econômicos internos, devolvendo a estabilidade para os Estados Unidos.
A produção de Panteras Negras, a exemplo dos filmes produzidos na década de 1970,
trouxe à tona a questão dos Direitos Civis, retratando a década de 1960 - período no qual uma
minoria lutava em prol desses direitos, dialogando com uma sociedade do final do século que
ainda sofria com as diferenças raciais. Certamente seria uma obra que ganharia visibilidade se
assumisse uma postura que defendesse a tendência de sua época, sendo uma boa oportunidade
inclusive para exaltar os líderes de outrora. Cinema e História nesse momento se confundem.
Além disso, a década de 1970 para o cinema foi marcada pela exploração da imagem do negro e,
apesar de algumas vezes utilizar os acontecimentos da década anterior, não tocaram em temas
para promover a denúncia social.
O cinema, portanto, em busca de maiores bilheterias, acompanhou as mudanças de seu
tempo. Se no início do século D. W. Griffith impressionou seu público e a crítica, e consolidou
os símbolos da linguagem cinematográfica com O Nascimento de Uma Nação (1915), tanto pela
técnica utilizada quanto pelo sucesso que alcançou entre o público que dialogava com a história
do filme, o curso da história do Cinema nos mostra as diferentes participações do negro, em
momentos e circunstâncias igualmente distintas. A academia premiou Hattie McDaniel com o
186
Oscar de melhor atriz coadjuvante em... E o Vento Levou (1939) de Victor Fleming, interpretando
o papel de uma caricatural empregada doméstica negra, mas também consagrou Sidney Poitier
em vários trabalhos, mesmo tendo golpeando um branco em plena década de 1960 no filme
intitulado No Calor da Noite (1967), de Norman Jewison. Não podemos nos esquecer do sucesso
angariado pelo diretor negro Spike Lee no filme Malcolm X (1992), que retrata a vida e os dramas
de um líder negro impopular, com uma bela atuação do protagonista e direção que garantiu
renome a Lee.

Análise do enredo
Mario Van Peebles recorre a elementos estéticos pouco usuais em filmes de caráter
histórico. Os escritos de Jorge Nóvoa e José D’Assunção Barros sobre os gêneros fílmicos
prestam alguns esclarecimentos que ajudam a pensar o lugar e as técnicas presentes na obra
Panteras Negras:
‘filmes históricos’ – entendidos aqui como aqueles filmes que buscam
representar ou estetizar eventos ou processos históricos conhecidos, e que
incluem entre outras as categorias dos ‘filmes épicos’ e também dos filmes
históricos que apresentam uma versão romanceada de eventos ou vidas de

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

personagens históricos. Em outro caso, será possível destacar ainda aqueles


filmes que chamaremos de ‘filmes de ambientação histórica’, aqui considerando
os filmes que se referem a enredos criados livremente mas sobre um contexto
histórico bem estabelecido.31

O filme Panteras Negras é compatível com os “filmes de ambientação histórica”. Dentre os


principais elementos adotados pelo diretor que não foram aceitos por parte da crítica, podemos
destacar a utilização de cenas ora coloridas, ora em preto e branco, sem seguir uma regra ou
padrão para utilização, e a legenda para explicar tanto os eventos que ocorreram quanto os que
foram criados pelo diretor. Também gerou controvérsias a utilização de personagens fictícias
enquanto protagonistas da obra e a insinuação de que o FBI se aliou aos traficantes de drogas
para desestruturar o partido. As revistas e sítios especializados em cinema definem o gênero da
obra de Van Peebles como drama. Contudo, com essa mescla, não raro se encontra o termo
“docudrama” para definir o filme Panteras Negras, por tratar da exploração da imagem do negro,
tão comum no cinema da década de 1970.
A utilização de imagens em preto e branco é comum no cinema clássico, para designar
um fato passado. Como a televisão em cores é posterior ao cinema, não é raro um filme utilizar
cenas registradas antes da década de 1950 (nos Estados Unidos), sobretudo provindas de 187
documentários. A tendência é diminuir essa utilização de fonte primária que necessariamente seja
monocromática32 pelo próprio desenvolvimento da tecnologia, restando apenas como opção
estética nas obras.
Na obra Panteras Negras a utilização de cenas coloridas e em preto e branco confundem o
espectador, e certamente essa é uma opção considerada por Van Peebles. No início do filme,
aparece um jogo de cenas durante uma narração que começa em preto e branco para, depois,
recorrer às cores - ambas são cenas reais referentes a manifestações pelos direitos civis e à
violência policial. Luther King, John Kennedy e Malcolm X são apresentados dessa forma. Em
seguida, a narração já é feita pelo ator Kadeem Hardison mostrando um cartaz do Partido dos
Panteras Negras para Auto-Defesa com os atores Courtney B. Vance e Marcus Chong. A
impressão que se tem é que essa cena, por estar em preto e branco, existiu de fato.

31 BARROS, José D’Assunção; NÓVOA, Jorge (org.). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. 2
ed. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 44
32 O filme monocromático, também conhecido como filme preto e branco, possui apenas tons de cinza, variando do

branco até o preto. Como exemplo, produz fotos em preto e branco e filmes em preto e branco. Antes, as obras
primárias eram utilizadas, muitas vezes, por necessidade, mas que depois acabou se tornando uma opção, adotada
por filmes específicos que, mesmo podendo fazer uso de imagens coloridas, opta por não fazê-lo tendo em vista ora
o gênero fílmico, ora o conteúdo, ora as técnicas mais eficazes.

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A cena prossegue em preto e branco até o momento em que aparece Tiny, o garoto de
bicicleta. Ao passar para as imagens em cores, tem-se a idéia de atualidade. É nesse momento que
o personagem Judge conta a sua versão sobre o surgimento dos Panteras Negras. Quando essa
personagem diz que a história dos Panteras Negras teria começado no quintal de sua mãe, acaba
retirando parte da responsabilidade de Van Peebles em contar a história real.
A próxima cena em que o filme nos auxilia com a legenda, é o momento em que o grupo
de Oakland vai até San Francisco combinar com o outro grupo também denominado Panteras a
escolta de Betty Shabazz, viúva de Malcolm X. Nesse caso a legenda é apenas para orientar o
espectador e não necessariamente porque eles foram a uma sede específica ou em uma data
específica.
A legenda seguinte sinaliza o local em que estão atuando para angariar fundos para o
partido. Na legenda aparece o nome da Univesidade de Berkeley também para não deixar o
espectador perdido. Apesar de realmente terem vendido o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung e
terem atuado em Berkeley tanto como espaço de discussão da contracultura, como lugar de
venda - a direção de Van Peebles não deixou entender que eles estiveram em um dia exato na
porta da universidade para venderem livros.
O episódio que sucede a compra de armas efetuada por integrantes dos Panteras Negras
188
de um vendedor supostamente chinês (não há qualquer menção à nacionalidade do vendedor,
contudo ele apresenta traços orientais. Um dos panteras, ao se deparar com a imagem de Mao
Tsé-Tung ao fundo da loja, acaba associando o vendedor à revolução, valendo-se de suas
impressões prévias) é em preto e branco e, em sua maioria, fictícia, e mais uma vez algumas
poucas imagens reais foram colocadas em meio às cenas fictícias, levando o espectador à
confusão e contribuindo para as críticas dos revisores. Marcus Chong e Courtney Vance são
mostrados ora em preto e branco, ora coloridos. A narração de Kadeem Hardison e o jogo de
cenas transmitem a idéia do tempo a passar.
Curiosamente, a cena seguinte dos Panteras Negras armados e trajados de jaquetas e
boinas pretas ocorreu de verdade, e não há qualquer indicação de data ou local, nem mesmo uma
retratação em preto e branco. Esse acontecimento foi narrado pelo próprio Bobby Seale no
documentário Todo Poder ao Povo e está em seu livro The Black Panther Party - Reconsidered. Não há
motivo aparente para não aparecer uma legenda, contudo há vários motivos para ela ser colorida.
O cinema blaxploitation utiliza cores fortes, cenas de ação e engrandecimento do negro em
detrimento do branco. O giroflex do carro da polícia aparece em evidência e a câmera várias
vezes a captura, estando ele presente em toda a cena; as roupas dos rapazes que saem da casa

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

noturna é lilás além do próprio nome do estabelecimento, que é focado no início da cena; há uma
luz azul no fundo do carro da polícia e uma mesma luz azul ao fundo da imagem onde os
panteras chegam armados. Da casa noturna é emitida uma luz vermelha. Além disso, a música
nos prepara para um grande acontecimento (que é o enfrentamento com a polícia e a vitória
moral dos Panteras) além de ser a primeira vez em que o filme apresenta os integrantes do
Partido caracterizado como eles são conhecidos, reforçando a imagem poderosa dos Panteras na
cena. Para contribuir com a cena, os policiais são mostrados bem caricatos: obesos, violentos,
arrogantes. Um deles masca chiclete com a boca aberta.
Diferentemente das outras legendas, a cena da chegada de Betty Shabazz mostra logo no
início a informação “21 de Fevereiro de 1967” e a câmera enquadra perfeitamente o Aeroporto
Internacional de São Francisco. A intenção do diretor aqui é clara: informar-nos que um
acontecimento real está sendo incorporado no filme.
Após o recrutamento de Jamal e Alma, segue uma cena com uma série de imagens que
alterna entre preto e branco e imagens coloridas. Mais uma vez a alternância aparentemente não
obedece a nenhuma regra. Apenas duas imagens de todas no conjunto de cenas são reais: a foto
de Tommie Smith e John Carlos nas olimpíadas de 1968 e o vídeo de alguns membros do partido
próximos a um trem. Várias imagens de atores do filme apareceram em preto e branco e a foto
189
dos atletas estava colorida - apenas para exemplificar que não há critério, aparentemente. A cena
também começa sendo narrada por Judge.
A próxima cena que analisaremos é bastante relevante. Começa com a legenda de um
relato verídico - "Richmond, California - 1º de abril de 1967". Trata-se de um evento histórico, o
assassinato de Denzil Dowell. A construção da rápida cena de ação em que Denzil foi baleado
segue o padrão utilizado por Van Peebles - exploração das luzes, música e policiais violentos. As
imagens seguintes também remontam a um ocorrência não-fictícia, um comício realizado pelo
Partido dos Panteras Negras que reuniu pessoas da comunidade para protestarem contra a
brutalidade policial. O filme inseriu um discurso bastante enfático de Huey defendendo a
inocência de Denzil e continua com o enfrentamento com o chefe de polícia. Van Peebles
aproveita a cena para contrapor a ação organizada dos panteras, os gritos de ordem e a presença
marcante, com a personagem do reverendo Slocum que, mais uma vez, pede para todos baixarem
a cabeça e rezar. Pequenas intervenções como esta valorizam a ação dos Panteras Negras e o
espectador é levado a crer que o método utilizado por eles é o mais recomendado para a situação.
Para finalizar, os panteras, liderados por Huey, vão conversar com o chefe de polícia. Na ocasião
ele utiliza a receita do cinema clássico para que o espectador separe o mocinho do bandido sendo

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que, neste caso, o papel de vilão recai sobre o policial. A cena mostra o oficial de polícia obeso e
dá um close-up para focar seu rosto. Ele é feio, arrogante e mal educado, grita ao final da cena,
além de ser o único sentado na sala além da mãe de Denzil. A construção do policial obedeceu às
regras do cinema clássico para que fosse mal visto por quem assistisse ao filme. Vale lembrar que,
apesar de a morte de Denzil ser um acontecimento histórico, nenhuma imagem apareceu em
preto e branco, a exemplo da construção de cenas anteriores, o que sugere que o diretor utiliza
elementos do cinema clássico para enfatizar cenas específicas.
A cena que inicia com a legenda "Sacramento, Califórnia no dia 02 de maio de 1967"
narra um dos acontecimentos mais conhecidos dos Panteras Negras: a entrada no capitólio para
protestar contra a Lei Mulford, que proibiria os cidadãos do estado da Califórnia de portar armas.
A cena mescla cenas coloridas e em preto e branco. O inicio da cena mostra o governador
Ronald Reagan dando entrevista e atendendo a algumas crianças, assim como no dia 02/05/1967.
Ao mostrar Reagan, a imagem aparece em preto e branco e, ao voltar aos Panteras marchando
sobre o jardim, a cena fica colorida. Mais alguns instantes e os Panteras Negras são mostrados em
imagens em preto e branco. A cena prossegue até eles entrarem e procurarem a Assembléia
Legislativa. A música sugere um momento solene e significante, e os Panteras continuam
marchando, com imagens coloridas, até o último corredor onde aparece algumas cenas em preto
190
e branco, e encerra dessa forma. A cena prossegue com várias imagens de jornais noticiando o
ocorrido. Há uma mistura de imagens de jornais criadas, com foto dos atores do filme e imagens
de jornais que circularam na época, inclusive fora do país.
A cena seguinte é uma das que mais chamam a atenção, pois inicia sugerindo que o FBI
tomará atitude perante os Panteras. Acontece uma reunião entre alguns agentes, dentre eles o
diretor Hoover e sua famosa paranóia comunista. Logo no início a câmera foca na porta do
escritório do FBI, como se alguém realmente tivesse conhecido o que supostamente ocorreu
naquela ocasião. Em seguida, o que assistimos é muito mais parecido com uma cena de mafiosos
em negócio: um ambiente pouco iluminado, muita fumaça de cigarro, Hoover disparando a frase
"Antes de esmagar esses ingratos, procure o chefe deles". E, para encerrar esses elementos, a
câmera mostra um cão horrendo. A cena se encerra com o barulho de uma máquina de
datilografar e a legenda “Memo/Cointelpro: CLASSIFIED – Black Panther Party activities
unacceptable. Identify real leadership. Intensify phase one. Washington”.33 Na seqüência, Van
Peebles faz referência a uma famosa foto do movimento, em que Huey Newton aparece sentado

33 Tradução: Mensagem Cointelpro: Confidencial: Atividades dos Panteras Negras inaceitáveis - Identificar líder
intensificar fase um. Washington.

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

em uma poltrona segurando duas armas. Essa foto foi para a primeira edição do Black Panther
Party Newspaper e foi reproduzida várias vezes posteriormente, principalmente na campanha para a
sua libertação. A foto estampada no vídeo foi a de Marcus Chong.
O diretor utiliza outra referência histórica: a manifestação anti-guerra realizada dos dias 16
a 20 de outubro de 1967. Van Peebles utilizou apenas o dia 20, momento no qual Huey Newton
foi convidado a pronunciar algumas palavras. Conforme demonstra os jornais34 da época35, havia
em torno de 10 mil manifestantes36, e ocorreram vários confrontos no qual muitos foram
detidos37. Aqui o do diretor não dá ênfase a essas no volume de pessoas e na proporção do
acontecimento, o que poderia valorizar ainda mais o movimento e ressaltaria a opressão do
Estado numa manifestação pacífica. Ao invés disso, ele fez apenas uma referência à violência
policial e montou uma cena de ação conjugando o discurso de Huey e a perseguição de Brimmer
a Judge. A cena foi bem construída, e mostra vários manifestantes apoiando a luta pelo fim da
Guerra do Vietnã, entre eles hippies, brancos, negros e a presença organizada dos panteras
negras.
Uma das técnicas do diretor é utilizar recursos comuns a documentários, se valendo de
informações públicas. No filme, o FBI monta um QG em Oakland, para tratar dos Panteras de
forma mais próxima. A partir desse momento, imagens em preto e branco mostram policiais
191
atacando vários escritórios pelo país, com troca de tiros e bombas para ressaltar a violência
utilizada. Por ser bastante conhecida essa perseguição aos escritórios dos Panteras, o espectador é
levado a pensar que as imagens podem ser reais, mas de fato não são. Foram utilizados dois
depoimentos a respeito desses ataques promovidos pela polícia: o primeiro é de Kathleen Cleaver
com imagens coloridas (que não é citada no filme, mas a mulher que aparece algumas vezes com
Anthony Griffith interpretando Eldridge Cleaver sugere que seja ela, uma vez que eles se casaram
no final de 1967) e o outro de Fred Hampton em preto e branco - grande liderança dos Panteras:
foi assassinado pela polícia enquanto dormia. Entre as duas falas, o filme utiliza cenas em preto e
branco das personagens Alma, Jamal, Tyrone e Gene McKinney, que falam para outros panteras,
sugerindo também proximidade com a realidade.
A projeção seguinte foi construída com base no acontecimento que levou à prisão de
Huey Newton. Na legenda aparece “Oakland, October 28, 1967”. Mais uma vez Van Peebles
34 Police Rout 3,000 At Oakland Protest; 3,000 Routed in Coast Antiwar Protest. Los New York Times, p. 1, 18 out.
1697.
35 Demonstration Fails to Close Oakland Army Induction Post. Los Angeles Times, p. 1, 21 out. 1967.
36 Thousands Reach Capital To Protest Vietnam War. New York Times. p. 1, 21 out. 1967.
37 Antiwar Demonstrations Held Outside Draft Boards Across U.S.; 119 Persons Arrested on Coast. New York Times,

p. 3, 17 out. 1967.

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busca elementos de filmes policiais para construir a cena. A noite está muito chuvosa, aparecem
duas viaturas de polícia. O áudio capta bem o barulho da sirene do primeiro veículo e o giroflex
dos dois automóveis da polícia. Há uma luz vermelha que sai de trás do primeiro carro de polícia
e uma luz azul constante que vêm do alto, mas sua fonte não é focada pela câmera. A cena é
propositalmente confusa e não nos permite identificar quem começa o tiroteio, que leva à morte
um dos policiais. Entre as cenas de ação, o giroflex do carro da polícia aparece na tela duas vezes,
entre um tiro e outro. Ao final, Huey Newton está baleado no chão. Em seguida, nos é
apresentada mais uma legenda controversa: Memo;Cointelpro: CLASSIFIED – Newton
survived. Imprisioned and indicted. Seale released. Oakland – Bobby Seale vai caminhando em
direção a saída e mais uma legenda: Memo;Cointelpro: CLASSIFIED – Results phase one
insufficient. BPP membership increasing. Intensify operations. Washington38. Mais uma vez, o
filme dá a entender que o diretor teve acesso direto às informações e aos papéis do FBI.
No momento seguinte, o diretor se remete a uma referência histórica sem utilizar
legendas ou imagens monocromáticas. Quando estão reunidos na casa de Judge, Little Bobby
Hutton, Judge e sua mãe, uma notícia na TV anuncia o assassinato de Martin Luther King, no dia
04 de abril de 1968. Logo a câmera segue Judge até o canto da sala e o espelho que há no local se
torna uma janela para os acontecimentos que se seguem. A primeira cena é fictícia e aparece em
192
cores. Na seqüência, nos deparamos com uma sucessão de imagens igualmente coloridas de
cidades que tiveram verdadeiras ondas de violência em virtude do assassinato do pastor da Igreja
Batista. Aqui também aparentemente não foi adotado nenhum critério considerando o cinema
clássico americano, a exemplo que já vinha acontecendo durante todo o filme o que leva os
desavisados a recepcionar a primeira cena como real.
A próxima legenda mostra "Oakland April 6, 1968" - tratando-se também de um evento
que ocorreu: o assassinato de Little Bobby Hutton. Devido à radicalização do movimento e à
morte de King, alguns Panteras liderados por Eldridge Cleaver partiram para a ofensiva, que
resultou na morte de Hutton. Apesar de não ter sido nenhuma cena de época, a motivação da
nova postura adotada por Cleaver foi bem adaptada para o filme. Além disso, mais uma receita
do cinema clássico foi utilizada para a morte de Bobby Hutton. Nas cenas imediatamente
anteriores o filme privilegiou mais a fala da personagem interpretada por Wesley Jonathan, além
de mostrar uma relação carinhosa dele para com Cleaver e mostra ainda uma cena doméstica com
Judge e seu inconformismo com a morte de King. Esse recurso é utilizado para o caso do

38
Tradução: Mensagem Cointelpro: Confidencial: Huey sobreviveu. Indiciado. Seale Libertado. Oakland. Mensagem
Cointelpro: Confidencial: Resultados Insuficientes. Panteras aumentando. Intensifiquem operações. Washington.

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

espectador ser “lembrado” de que a personagem é carismática, para que no final você sinta a
perda dele. Nenhuma cena em preto e branco é utilizada.
O próximo episódio analisado é um dos principais alvos de crítica. Ele mostra ordens
diretas de Edgar Hoover para que se recorra ao “último recurso”. A legenda que se segue é
“CLASSIFIED – Activate ultimate contingency immediately. Oakland to serve as nationwide
model. Cooperation of local authority preterred”39. Washington. Em seguida aparece Pruitt,
Rodgers e Dorsett negociando com um traficante. É uma mensagem construída de forma
agressiva para que o espectador fosse levado a pensar que o FBI não mediria esforços para
destruir o Partido dos Panteras Negras. É uma acusação severa de Mario Van Peebles e, apesar
de já ter sido dito várias vezes por militantes dos direitos civis e por ex-membros dos Panteras,
não há como comprovar tal fato.
Com exceção do julgamento de Huey Newton que, apesar de não ter legendas nem
imagens históricas, sabemos que ocorreu - as cenas que se seguem são resoluções dos conflitos
criados pelos e para os personagens fictícios de Mario Van Peebles. O primeiro desses conflitos a
se resolver ocorre quando Alma e Tyrone finalmente acreditam em Judge. Em seguida vão juntos
destruir um armazém cheio de drogas a serem distribuída pelo Gueto. Já no depósito, ocorre a
resolução de mais um conflito quando Judge tem sua vingança e mata Sabu. Quando Tyrone foi
193
baleado por um traficante, ele heroicamente convence Alma e Judge a sair do depósito sem ele. A
imagem final do filme foca em Tyrone, que acendeu o armazém em chamas quando a polícia
crivava seu corpo de balas, concluindo assim o último conflito criado por Mario Van Peebles.
Essas cenas, notadamente violentas, contando com disputas armadas entre facções rivais,
usam de episódios noturnos e imagens chocantes, de maneira que a escuridão da noite contrasta
acentuadamente com o brilho das explosões e vidros quebrados brilhando sob o luar. As imagens
dramáticas de edifícios que estão sendo destruídos e corpos sendo feridos por tiros foram
intensificadas pela música dramática da orquestra. Muitas cenas de ação e mesmo as cenas ditas
“históricas”, comum em filmes de ficção anteriores de Van Peebles, tornaram difícil para o
público distinguir narrativas ficcionais de acontecimentos reais na história do Partido dos
Panteras Negras. O público que não se identificasse com os protagonistas negros dos filmes do
gênero blaxploitation poderia ter interpretado a ações dos Panteras Negras como criminosas, ao
invés de culpar o sistema político e econômico para reforçar o racismo.

39Tradução: Mensagem Cointelpro: Confidencial: Ativar último recurso imediatamente. Oakland servirá como
modelo nacional. Cooperação com a autoridade local preferencialmente. Washington.

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Nos minutos finais do filme, a voz de Judge narra um trecho que também aparece na
legenda: "Em 1970, haviam 300.000 viciados nos Estados Unidos. Ontem, havia 3 milhões. A
forma como eu vejo isso, a luta continua. Este filme é dedicado a todos os Panteras Negras, que
deram suas vidas na luta". Aparecem ainda sete imagens: a de crianças beneficiadas pelo
programa social do partido; a do movimento "Free Huey" em que asiáticos aparecem apoiando a
campanha; uma com as principais lideranças do partido; a de Edgar Hoover; a de um negro na
prisão (provavelmente se trata de Mumia Abul Jamal); a famosa foto de Huey tirada por Eldridge
Cleaver para a primeira edição do Black Panther Party Newspaper e a de um cartaz do Partido dos
Panteras Negras onde aparecem Bobby Seale e Huey Newton (essa foto foi adaptada no início do
filme com os atores que interpretaram os líderes).
A Cena de encerramento do filme reforçou o papel contra-hegemônico de Panteras Negras.
Diferentemente da maioria dos filmes que valorizam o sistema de leis e a ordem, incluindo os
filmes sobre os direitos civis, a obra de Van Peebles o culpa pela pobreza dos guetos negros e
pelo uso de drogas no interior das cidades de maioria negra denunciando a conivência das
autoridades federais e estaduais. De acordo com Panteras Negras, o aumento do uso de drogas
entre os negros americanos foi uma conseqüência dos esforços do Estado para encerrar o
ativismo coletivo e o desenvolvimento da comunidade entre os negros pobres urbanos. O uso de
194
táticas ilegais pelo FBI para destruir o movimento está bem documentado em textos históricos e
até governamentais, mas não há nenhuma evidência direta de que o FBI trabalhou com a máfia
para distribuir narcóticos em Oakland. Assim, a narrativa do filme destaca táticas ilegais e brutais
do FBI que batem com esta documentação, bem como outras que não podem ser comprovadas.
Além disso, o compromisso narrativo do filme com o gênero blaxploitation pode ter
inibido o público de ter lido a obra como versão fidedigna de um movimento social que buscava
erradicar as injustiças raciais e econômicas contra negros americanos. Especialmente para o
público com pouco conhecimento de táticas ilegais da COINTELPRO contra organizações
ativistas durante a década de 1960, todo o filme poderia ser lido como uma história implausível e
sensacional.

Considerações Finais

A obra Panteras Negras, de Mario Van Peebles, não se integrou à memória popular, isto é,
não conseguiu ser incorporada, tampouco se sobressaiu perante versão oficial difundida. Ao
privilegiar uma narrativa mais agressiva e de muita ação, sem abandonar um víeis educativo e
informativo no que tange à organização social das massas – conteúdo pouco tratado pela mídia –,

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

o filme angariou uma sucessão de críticas negativas, por parte principalmente de um grupo
conservador que tinha em pouca conta o movimento sobre o qual trata o filme. Atento a estes
fatores, faremos umas poucas ressalvas referentes à obra.

Panteras Negras retrata a história do partido entre os anos de 1966 a 1969, e não seria
possível, devido às escolhas do diretor, narrar acontecimentos que ocorreram na segunda metade
da década de 1970, como supostos assassinatos cometidos por militantes dos Panteras Negras,
como sugeriu David Horowitz ao registrar como ficou o partido durante a presidência de Elaine
Brown, crítica também adotada pela escritora do The New York Times. Algumas críticas, quando
analisadas de perto, acabam se mostrando infundadas.

Dizer que a obra não privilegia aspectos da história do Partido dos Panteras Negras é uma
crítica um tanto quanto exagerada. Apesar das personagens ficcionais e do drama criado entre
elas, os momentos mais relevantes do período escolhido foram apresentados e, ao que parece,
sem grandes exageros, como a viagem ao Capitólio, a participação no assassinato de Denzil
Dowell, o julgamento de Huew Newton, dentre outros eventos. Nestes episódios, mesmo as
personagens fictícias tiveram uma expressão, talvez até maior, se comparada aos protagonistas
que representavam as personagens históricas. 195
Ao recorrer a elementos comuns ao gênero documentário, o diretor parece recontar uma
história com a intenção de torná-la oficial ou, se não tanto, ao menos de apresentá-la perante as
versões então existentes. Ao fornecer imagens aparentemente autênticas de ativismo pelos
direitos civis e contra a injustiça racial, o filme sugere que o seu conteúdo deve ser recepcionado
como fidedigno à história dos negros americanos em sua luta por justiça dentro do movimento
Black Power, como se fosse uma extensão do ativismo pelos direitos civis. É necessário ter
cuidado ao analisar seu conteúdo, pois, como demonstramos, os critérios adotados no que se
refere às legendas e às imagens monocromáticas não são evidentes, sugerindo diferentes leituras
por parte do espectador Um olhar desatento ou despreparado pode facilmente associar episódios
e personagens fictícias à história do movimento, o que certamente não é desconsiderado pelo
diretor.

Dentre as críticas abordadas no filme, destaque para a imagem criada do FBI e de sua
relação com o tráfico. Não é de se estranhar que o filme tenha gerado polêmicas, uma vez que
órgãos que deveriam zelar pela segurança dos cidadãos norte-americanos estavam, na verdade,
associados ao crime, sobretudo ao tráfico de drogas. Contudo, devemos considerar também que

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há muito, paira certo descrédito em torno dessas organizações do Estado como o FBI e a CIA.
Há muito tempo denúncias são feitas, casos são revelados e, por isso, a conduta promovida
nesses setores é mais facilmente averiguada. Dizer que, no filme, a personagem Edgar Hoover foi
caricata não é necessariamente uma crítica, uma vez que ele próprio ajudou a formar essa imagem
lutando contra o comunismo nos Estados Unidos. O Macartismo40 havia criado uma onda
anticomunista nos Estados Unidos. Muitos sequer sabiam o que significava ser comunista, mas,
ainda assim, o preconceito era latente. Na década de 1960, período em que a “caça as bruxas” já
não era tão intenso, grande parte dos esforços foram mobilizados para deter e desestruturar os
Panteras Negras que, inclusive, eram chamados de comunistas, ainda que a inclinação do partido
apresentasse outras tendências que não esta. Neste caso, a associação do termo ao partido pode
ser entendida como uma maneira de ampliar o preconceito, de forma a deixar claro para a
população que a organização dos Panteras Negras era igualmente subversiva. É nesse contexto
Hoover se destaca mais dentro do FBI onde foi diretor por 48 anos:

J. Edgar Hoover na direção do FBI, cantando em prosa e versos, em livros,


filmes, e séries de televisão, ao mesmo tempo em que movia uma incansável
guerra secreta contra a liberdade política no país. Não é preciso aceitar sem
discussão a afirmação do senador McCarthy, feita desde o primeiros momentos
de sua carreira de caçador de subversivos, de que obtinha todas as informações
196
par as suas denúncias diretamente de agências como o FBI, para reconhecer
que o Bureau intocável de Hoover desempenhou papel-chave durante a histeria
macartista.41
Podemos concluir, com base em outras revisões da época, que grande parte dos
comentários negativos direcionados aos Panteras Negras, são criados por fontes bastante
conservadoras, como é o caso de Horowitz, que encabeçou as críticas à obra de Van Peebles.
Ross, do jornal Tampa Tribune, demonstra uma preocupação especial para com o público jovem,
que poderia ser facilmente manipulado pelo filme. "A parte triste, é claro, é a maioria dos
espectadores jovens não eram nascidos quando os Panteras Negras surgiram - não sabem o
quanto da história é pura invenção".42 Há, aqui, uma preocupação em retomar a memória mais
largamente difundida e desacreditar a versão retratada no filme.

40 "Termo utilizado frequentemente para designar procedimentos de perseguição e caça aos comunistas e
subversivos, atentados contra a liberdade de expressão e de pensamento, intolerância ideológica, repressão política,
acusações irresponsáveis e sem provas. É comum acompanhar também a expressão 'caça às bruxas' - uma alusão
óbvia, de cunho claramente pejorativo, à perseguição e eventual queima de feiticeiras nas fogueiras da Inquisição.
Ver: FERREIRA. Argemiro. Caça às bruxas. Macartismo: uma tragédia americana. Porto Alegre: LP&M. 1989, p. 25.
41 FERREIRA. Argemiro. Caça às bruxas. Macartismo: uma tragédia americana, p. 28.
42 ROSS, B. Panther prowls past truth; There's more action than history in this propaganda piece from director

Mario Van Peebles [Review of the motion picture Panther]. Tampa Tribune, p. 16, 5 mai. 1995.

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

Para outros revisores, o filme foi particularmente prejudicial pelo seu potencial em
influenciar negros americanos, que poderiam se identificar com os protagonistas do filme.
Partindo do pressuposto de que o filme representou um retrato ilegítimo do Partido dos Panteras
Negras, vários dos mais rigorosos críticos do filme, associaram o filme a propagandas ou agitação
de radicais ativistas negros. Vincent, do jornal The Times-Picayune, observou que o filme "retrata os
Panteras como idealistas e os policiais como nazistas. É um incentivo para os negros do centro da
cidade"43. É possível averiguar certo temor por parte de grupos da sociedade norte-americana
referentes às contestações comuns à década de 1960, o que justifica boa parte das críticas
direcionadas ao filme de Van Peebles.

Estas críticas, que apelam para a distinção entre a ficção e a realidade, redirecionaram a
atenção contra o racismo e a desigualdade social, questões primárias e, portanto, centrais na obra
de Van Peebles. Estas opiniões simultaneamente condenaram elementos ficcionais presentes na
obra e advertiram os espectadores a respeito da possíbilidade de o filme incentivar os negros
americanos a protestarem contra as condições de pobreza inflingidas a eles. Sendo assim, a crítica
afirmou ao público que os movimentos contra o racismo no país poderiam ser resultantes da
mobilização de espectadores, facilmente enganados por ficção dramática disfarçada de história.
197
Grande parte dos defensores da obra de Van Peebles associaram Panteras Negras à arte, e
não à ficção. Segundo esses autores, se os diretores se preocupassem com a precisão histórica,
iriam restringir e prejudicar o valor artístico da obra, pois faltaria ousadia. James escreveu, no The
New York Times, que "por sua própria existência [filmes polêmicos como Panteras Negras] podem
incentivar os espectadores a pensar em filmes, para contestar as teorias de cineastas, para julgá-los
do jeito que julgaria qualquer trabalho sério de arte que mistura realidade e imaginação"44.
Graham, do jornal The Boston Globe, disse em sua análise que "cineastas não tem o desejo e nem a
aptidão para retratar a verdade" e citou a ex-Pantera Negra e estudiosa Kathleen Cleaver, que lhe
disse em entrevista: "eu não estou convencida de que os filmes dramáticos são o lugar para a
exatidão histórica... Um filme é um filme, um filme não é história... A história é apresentada pelos
estudiosos, e eu não acho que alguém vai dizer que Hollywood é um celeiro de estudiosos"45.

Toda a crítica direcionada à obra antes de sua estréia (que nesse sentido podem ser
consideradas reacionárias), influencionou de forma determinante a distribuição do filme. As

43 VINCENT, M. Panther protested, praised. The Times-Picayune, p. E1, 6 de mai. 1995.


44 JAMES, C. They’re movies; Not schoolbooks [Review of the motion picture Panther]. |New York Times, p. sec. 2,
p. 1, 21 mai. 1995.
45 GRAHAM, R. An ex-Panther defends Panther. The Boston Globe, p. 63, 5 mai. 1995.

| vol. 3 n. 2. Agosto/Dezembro de 2011 – ISSN: 1984-6150 |


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pessoas foram bombardeadas de críticas negativas e o filme ficou poucas semanas em cartaz.
Muitas salas sequer receberam a cópia do filme pois as distribuidoras foram levadas a inibir a
comercialização. Poucas locadores de vídeo estavam com cópias disponíveis para locação46.

A obra de Mario Van Peebles é plausível: historiadores e ativistas já publicaram obras de


inúmeros relatos de esforços do FBI para reprimir o movimento, muitas vezes usando táticas
ilegais para realizá-lo47. Contudo, a crítica selecionou alguns elementos de ficção que poderiam ser
contestados e associou o filme todo a uma grande farsa, prejudicando, assim, a aceitação da obra.
Nenhum dos críticos apontaram ou investigaram as ações do FBI ou da polícia local, e suas
tentativas de desestruturar os Panteras Negras. A ação dos críticos foi a de realmente tirar
qualquer mérito que o filme pudesse alcançar. Ao tornar a obra ilegítima enquanto fonte de
informação, a crítica fez com que a memória a respeito do movimento Black Power ou mesmo dos
Panteras Negras fosse prejudicada. Dessa forma, a realidade política e econômica do período
demonstrado no filme, reconhecida como verdadeira por estudiosos, não puderam ser
amplamente difundidas por um meio de comunicação de massa, como o cinema.

O filme, portanto, mais uma vez mostra que cumpre seu papel de intervenção na
socidade, tantas vezes demonstrada por estudiosos da relação entre Cinema/História. Sobre os 198
filmes históricos, Alcides F. Ramos já havia apontado que:

Suas percepções tentam adequar-se à vastidão e ambigüidade dessa


manifestação artística. Neste sentido, o filme histórico é aquele que, olhando
para o “passado”, procura interferir nas lutas políticas do “presente”48.
Essa intervenção gera outras consequências, como a possível recusa por parte da
sociedade, que acaba não recepcionando bem a obra. No caso de Panteras Negras, as críticas
muitas vezes omitem a violência histórica que o negro sofreu nesse período, as drogas que, de
alguma forma, foi injetada nos guetos e gerou milhões de viciados nos Estados Unidos, e a ação
do FBI, que se infiltrou nas organizações daquele período. Essas análises contribuíram para
reforçar a nebulosa visão que muitos americanos tinham do Partido dos Panteras Negras para
Autodefesa, visão essa que Van Peebles queria combater, conforme vimos no segundo capítulo
desse trabalho. O filme poderia ter servido, também, para denunciar quantos negros americanos
na mesma década de lançamento do filme estavam lutando para superar as condições de pobreza,

46 SHERMAN, P. JFK meets Malcolm X in erratic Panther [Review of the motion picture Panther]. The Boston
Herald, 15 out. 1995.
47 CHURCHILL, Ward; WALL, Jim Vander. The COINTELPRO Papers: Documents from the FBI’s secret wars

against domestic dissent. Boston: South End Press, 1990.


48 RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos fracos: cinema e história do Brasil. Bauru: EDUSC, 2002, p. 32.

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Crítica e elementos fílmicos da obra Panteras Negras

sendo constantemente vítimas de abuso da polícia, como no caso de Rodney King. Entendemos
que este fator é compatível com aquilo que Herbert Marcuse49 chamou de “contrarrevolução
como método preventivo”.

Dessa forma, a mídia não se preocupou em fazer ressalvas sobre a obra, que contém
vários pontos de relevância histórica. Não tentou mostrar o que estava em jogo, tampouco se
ocuparam em argumentar sobre a história do movimento negro, que sequer foi mencionada.
Assim como os Panteras foram alvos do FBI, o filme também recebeu todo tipo de crítica,
mostrando a natureza ilusória da liberdade de expressão, que é capaz de delimitar caminhos pela
suposta ameaça da ordem social do país que jornalistas e intelectuais enxergaram.

Entendemos que essa tema é bastante rico sendo impossível sua conclusão com esse
trabalho. O cinema ganha cada vez mais espaço na medida em que a tecnologia o torna ainda
mais sedutor. As questões volta e meia aparecem e a intervenção consciente no presente e a
utilização das experiências do passado, um dos grandes méritos do ofício do historiador
contribuem para a análise dos conflitos sociais também no campo cultural. O grande desejo é que
esse trabalho leve a novos questionamentos e novas leituras dos acontecimentos aqui
selecionados. É preciso ponderar sobre a riqueza da obra de Van Peebles, que é complexa e 199
singular, e sobre a possibilidade de continuar a explorá-la, uma vez que estas considerações finais
apenas apontam para novos caminhos a serem traçados posteriormente.

Recebido: 02/05/2011
Aprovado: 29/08/2011

49Para um estudo mais aprofundado, ver: MARCUSE, Herbert. Contra-Revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar,
1981.

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