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DO FUNDO DO OCEANO PARA OS TELÕES:

O TITANIC DE JAMES CAMERON


Cristiane Brand de Paula Gouveia 1

Resumo: O cinema, como bem coloca o teórico Christian Metz (1980), é uma
“linguagem sem língua”, que fala por si só, sendo analisado pelo seu conteúdo e por
sua produção. O filme torna-se então um documento que pode ser utilizado pelos
historiadores como uma importante ferramenta na disseminação dos conhecimentos
históricos, e para análise da sociedade que o assiste, como propomos neste trabalho,
nos utilizando do filme Titanic (1997) de James Cameron. O que pretendemos é fazer
uma análise da narrativa do filme, que será nossa fonte, para podermos compreender
como se dão as relações entre a escrita da história e a sua narração fílmica da
perspectiva do diretor, de sua visão do fato. O que pretendia o autor com a produção
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pode nos levar a analisar o resultado obtido por ele de maneira mais consistente,
afinal, pensaremos os limites do que é proposto e pensando pelo diretor e o que de
fato acontece. Levar em consideração o no público alvo do filme, a indústria
cinematográfica da época e a repercussão do filme, nos permite refletir sobre as
intenções de Cameron, e consequentemente, compreender como o filme pode ter dado
uma ótica diferente do fato histórico que não havia sido alcançada por nenhuma
produção feita anteriormente. Ferro (1992) confirma o filme como um documento e é
assim que o analisaremos, nos utilizando de autores como Cristiane Nova e Paul
Veyne. Pretendemos pensar o cinema como meio de se construir o conhecimento
histórico, pensando a sua análise com um caráter reflexivo e crítico.

Palavras-chave: Cinema. História. Titanic.

1 Orientador: Dr. Jefferson Willian Gohl – FAFIUV.


Da relação Cinema-História

“Todo filme é um documento”

Cristiane Nova

A História se faz de narrativas do passado, sob a visão do


historiador, a partir de perguntas que são feitas a esse passado, que pode
ser observado pelo historiador de diferentes maneiras. Segundo Paul
Veyne (1998), História é tudo aquilo que o historiador decide tornar
História, quando o estuda, questiona, reflete. Na visão do autor, a História 2
é feita pelos historiadores, e consiste em uma narrativa, que não pode
deduzir ou reduzir um acontecimento a uma única causa, um único ponto
de vista. Assim encaramos o fato de que existem diferentes narrativas
históricas a respeito de um mesmo acontecimento, logo, diferentes
produções historiográficas em torno do mesmo. O historiador pode optar
por dar um determinado foco ao seu trabalho e assim, demonstrar o
desenvolvimento da trama que envolve esse acontecimento. Para Veyne,
nisso consiste a história.

Partindo dessa conjectura, consideramos a História fruto


unicamente de uma produção em torno do passado, seja ela realizada por
um historiador, através de um livro, por exemplo, ou um diretor de
cinema, em um filme. Cristiane Nova (1996) considera que a História
pode ser inspiração para diferentes formas de representação, como
epopeias, teatros e o cinema. Logo, “n~o é absurdo considerar que o
cineasta, ao realizar um “filme histórico”, assume a posiç~o de historiador,
mesmo que não carregue consigo o rigor metodológico do trabalho
historiogr|fico” (NOVA, 1996)

A paixão por naufrágios levou Cameron a produzir o filme que foi


sucesso de bilheteria em todo o mundo, quebrando recordes e
emocionando tanto, que até o presente momento ele permanece vivo e
atual. O diretor agora o lançará em formato 3D, e as expectativas para o
lançamento são ainda maiores que da primeira, afinal, quando do
lançamento em 1997, a equipe do filme, bem como os estúdios, não
sabiam ao certo que futuro estava determinado à superprodução. Pode
um filme ter marcado tão fortemente gerações a ponto de o fato histórico,
Titanic, comemorar o seu centenário e ter garantido a atenção de
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milhares de expectadores que se envolvem com essa história?

Atualmente, o grande número de pessoas que faz parte do público


cinematográfico, está tendo acesso à história pelo que tem sido
apresentado a elas pelas telas, e assim, a história tem sido absorvida por
multidões que, em um momento de lazer, são bombardeadas por
informações e representações que podem ou não levá-las a pensar sobre
um determinado fato histórico e podem ou não apresentar-se de acordo
com o que se produziu até então pela historiografia.

Nesse sentido, NOVA (1996) destaca que quando analisamos um


filme, não devemos pretender perceber verdades ou falsas construções, e
sim, ter a percepção do que é ficcional e daquilo que apresenta
verossimilhanças com a História, fazendo assim o observador, uma leitura
histórica do filme, e uma leitura fílmica do acontecimento, como propõe
Marc Ferro (1992).

Ferro considera o cinema como um importante aliado do pensar


histórico, consistindo esse numa narrativa histórica, que encontra-se
desvinculada de instituições, e torna-se assim, uma contra-história, onde
o olhar, a crítica e as pretensões do diretor tornam-se expressas. Por
vezes, no decorrer do tempo, a História fixou seu olhar sob grandes
figuras, ou pelo menos, tornou nomes, grandes e importantes,
considerados dignos de destaque. Essa História que privilegiou uns em
detrimento de outros e que fez-se a custa de grandes acontecimentos,
grandes nomes e datas e documentos oficiais, distanciou-se do ideal
histórico, que prevê reflexão, crítica, pensar historicamente. Assim, a
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contra-histórica, erguia-se como uma possibilidade de fuga desse padrão
que inibia a História e permitiu uma crítica á sociedade, mais e menos
petulante, sem maiores preocupações com essas instituições dominantes.

Quando o cinema adentra a reflexão historiográfica, surgem


opiniões que divergem a respeito do seu uso pela e para a História. Marc
Ferro, como grande precursor e desenvolvedor do pensamento que
relaciona o cinema e a História, faz do filme, uma importante fonte para a
compreensão de uma sociedade, bem como da mentalidade que a
norteava em determinados momentos históricos. Nesse sentido, o filme
nos permite perceber o fato histórico sob um ângulo diferente, com
recortes criativos.
Utilizado pela historiografia, o cinema pode ainda auxiliar no
processo de disseminação da História e assimilação por parte das
pessoas. Nova (1997) aponta que “o grande público tem mais acesso a
História pelas telas do que pela via das leituras e do ensino”.
Consideremos a atual eficiência da História em levar conhecimento e
desenvolver consciência histórica nas pessoas. Cada vez mais as novas
tecnologias adentram as casas, os pensamentos das pessoas e as tiram
daquele ideal de intelectualidade que determina que o conhecimento só
se alcança através da leitura e na educação.

Enquanto alguém assiste a um filme, de cunho histórico, por


exemplo, ele será levado a pensar sobre como o passado é representado
no filme, e pode tomar para si, como real, tudo o que é demonstrado no
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filme, que foi pensado com o desejo de ser fiel à História, ou não. Esse
cuidado é o alvo central do uso do cinema pela História, e por esse motivo,
muitos historiadores descartam a possibilidade de se encarar um filme
como auxiliador, porque ele pode muito mais distorcer o conhecimento
histórico de dado fato, do que levar a uma reflexão fidedigna.

Pois bem, não é a História parcial, com verdades parciais? (VEYNE,


1998, p.48). Logo, podemos entender que o filme não busca, ou não
deveria buscar, apresentar a verdade histórica, porque nem a História
assim pretende, mas demonstra a sua percepção do fato histórico,
carregados de ficção ou não. Compreender esse pressuposto nos permite
analisar um filme pela construção que se pretende de um fato histórico e
não da verdade histórica presente no filme, e nos permite ainda refletir
sobre a visão do diretor sobre esse fato e como ele articula isso em seu
filme.

Assim, o cinema pode ser analisado por historiadores, sob


diferentes perspectivas, como fonte para a compreensão de uma
sociedade, bem como da história do cinema, e por pessoas que não teriam
acesso tão facilmente à História por outros meios. Cabe aos historiadores,
porém, se utilizar de maneira mais efetiva desse meio, para que cada vez
mais, as pessoas possam ser instigadas a uma análise histórica dos filmes.
Por isso, Ferro defende que os historiadores não devem fazer apenas
livros, mas devem fazer filmes.

O filme Titanic será no presente artigo analisado pelo que tem a nos 6
dizer sobre a indústria cinematográfica de 1997, que o produziu com
determinados fins, sobre o público que não só o recebeu, mas o aclamou
como sucesso e sobre a perspectiva dada ao fato histórico pelo diretor,
nos possibilitando pensar a influencia do cinema na sociedade e para a
História. Propomos ainda buscar compreender a escrita da história
realizada pelo diretor, que enxergaremos em certa medida como um
historiador, objetivando refletir sobre as maneiras como ele articula o
fato histórico com a ficção e de que maneira apresenta uma trama
conseguiu reviver o naufrágio e fazê-lo conhecido e lembrado
mundialmente.
Titanic, o plano de fundo do filme

“O Titanic era chamado o navio dos


sonhos, e era, realmente era” Rose DeWitt
Bukkater- Personagem do filme

Em Abril de 1912, em todo o mundo, o olhar de inúmeras pessoas


voltava-se para um dos mais importantes acontecimentos do momento, a
viagem inaugural do maior navio visto até então. O Titanic chamava para
si toda a atenção. Com mais de 46 toneladas, era o grande destaque em
termos de inovações na navegação. Era chamado de Navio dos Sonhos,
Insubmergível (MARRIOT, 1998). Mas foi mais que isso. Ele ergueu-se
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como o símbolo do século XIX, aclamado como o representante do luxo,
da ostentação, da majestade do período. Os homens estavam cada vez
mais confiantes em seus avanços tecnológicos, e cada vez mais certos do
sucesso que lhes esperava o futuro não muito distante. A era do progresso
estava a todo o vapor, assim como o navio, que foi literalmente por água
abaixo, bem como o orgulho daquela sociedade voltada para o espetáculo
que confiara cegamente no poderoso navio.

A forte divulgação feita pela empresa criadora do navio White Star


Line, em torno da viagem inaugural fez com que o Titanic se tornasse
conhecido em todo o mundo. A empresa não o rotulava como o
Insubmergível, mas salientava tanto suas qualidades que as pessoas
passaram a chamá-lo assim, e eles não se preocuparam em negar essas
expectativas em torno do navio. Quanto maior a imagem construída em
torno do Titanic, maior o seu sucesso.

Nesse momento o domínio dos mares está sob disputa de ingleses,


norte-americanos, irlandeses, enfim, muitos países entraram em uma
corrida para ver quem conseguia lançar ao mar o melhor e mais eficaz
navio. O maior concorrente do Titanic no momento era o navio inglês
Mauretania, da Cunard Line. Era o destaque em termos de luxo, rapidez e
segurança. Foi ultrapassado pelo Olympic, irmão gêmeo do Titanic, que
tinha 30 metros de cumprimento a mais que ele. Enquanto que algumas
das principais companhias da época se preocupavam com a rapidez das
viagens e com possíveis quebras de recordes, a White Star Line se
interessava em proporcionar uma viagem agradável, com todo o conforto
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e luxo possível, com o qual seus passageiros estavam acostumados, e com
segurança (MARRIOT, 1998). Este era seu diferencial. Porém, na noite do
naufrágio o navio estava com velocidade superior à planejada. Bruce
Ismay, diretor da empresa, teria sugerido ao capitão Smith que todos
ficariam felizes se o Titanic surpreendesse chegando antes do previsto. O
capitão, que pretendia fazer daquela sua ultima viagem antes de se
aposentar, parece ter dado ouvidos ao diretor.

O Titanic representava no mar a sociedade em terra, onde a


aparência era principal preocupação, e as pessoas queriam pertencer aos
mais altos níveis sociais. Era necessário seguir os padrões de boa conduta
ditados então, para que pudessem fazer parte desse universo particular
tão cobiçado. Todos buscavam acender socialmente, e para isso, estavam
dispostos a entrar no jogo de aparências que garantiria sua posição.
Muitos mais que ser, era necessário aparentar.

O navio dos sonhos oferecia aos mais ricos da sociedade o prazer de


viajar com todo o conforto, e principalmente, com todo o luxo a que
estavam acostumados. Tinham a “sensaç~o se atravessar o oceano a
bordo do maior, e em tese o mais seguro, navio do mundo, dotado de
serviços de bordo estupendos” (MARRIOT, 1998, p.37). O consideravam
insubmergível porque ele havia sido construído para manter-se flutuando
com até quatro dos compartimentos inundados, o que apresentava para a
época, a maior segurança possível. Tamanha era a confiança no navio, que
o número de botes salva- vidas era inferior ao número de passageiros.
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O personagem Cal do filme Titanic (1997) representa bem a visão
que se tinha a esse respeito. “Desperdício de espaço do pavimento, afinal
é um navio inafund|vel” (CAMERON, 1996, cena 96). Essa cena diz
respeito ao número de botes salva-vidas, que, para o personagem, eram
desnecessários, visto a segurança que o navio proporcionava. De fato se
acreditava que nada poderia ser motivo de preocupação quando o
assunto era o Titanic. A confiança do homem em seus grandes feitos se
impunha com força até então.

A sociedade está retratada no filme e as classes ficam em seus


devidos lugares. Ricos acima, pobres bem abaixo. Até mesmo na hora do
naufrágio os ricos tinham prioridade. As mulheres e crianças teriam os
primeiros lugares dos botes salva-vidas, mas, em uma sociedade
corrompida pelo dinheiro, muitos dos homens mais ricos que estavam no
navio, conseguiram comprar um lugar, rumo à salvação, sem se preocupar
com as mulheres e crianças que perderam seus lugares.

Historicamente constatamos que na primeira classe os passageiros


podiam desfrutar de piscina, academia, de restaurantes finos, banhos
turcos, quadra de tênis, bibliotecas, várias salas de leitura e conversa,
decoradas cada uma seguindo um estilo de decoração. O luxo diminuía na
medida que a classe também diminuísse. Passageiros de terceira classe
também tinham bons cômodos, logicamente muito inferiores que os de
primeira classe, mas ainda assim, em alguns casos, melhores do que eles
tinham em terra (MARRIOT, 1998).

Mesmo com o número de botes salva-vidas sendo inferior ao 10


número de passageiros, mas ainda estavam seguindo as leis de navegação,
que calculavam esse número baseando-se em navios muito menores que
o Titanic. No momento do naufrágio, os oficiais, despreparados, não
colocaram tantas pessoas quanto cabiam nos botes e eles foram lançados
ao mar com menos da metade da sua capacidade. Depois do naufrágio, as
leis de navegação de 1912 foram mudadas.

Todos os passageiros tinham coletes salva-vidas, mas a água estava


tão gelada que congelava em menos de vinte minutos. -0,5°C deixaram o
casco de aço do navio tão frágil quanto uma folha de papel. Qualquer
colisão geraria grandes estragos. O capitão havia sido avisado da presença
de icebergs, mas manteve a velocidade acima do planejado para o navio.
Os homens de atalaia estavam sem binóculos, e quando viram o iceberg, já
era tarde. O oficial Murdoch, que estava no comando enquanto o capitão
estava em seus aposentos, ordenou que dessem ré total e que virassem o
leme para estibordo. O navio perdeu força e velocidade e não conseguiu
fazer a curva sem evitar a colisão. Duas horas depois estava indo para o
fundo do oceano.

O navio mais próximo era o Carpathia, que chegou apenas duas


horas depois do naufrágio. Apenas pode ajudar os sobreviventes dos
botes. Nos inquéritos realizados para averiguar as causas do incidente,
surgiram muitas dúvidas e especulações. Por fim, atribuiu-se ao capitão a
responsabilidade pela velocidade acima do considerável aceito e por
ignorar os avisos mandados por outros navios. Também considerada
culpada a empresa por oferecer numero inferior de botes salva-vidas. Era
necessário que os culpados fossem punidos para que a dor fosse de certa
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forma amenizada. O mundo chorava por justiça.

Depois do naufrágio, inúmeras narrativas surgiram sobre o navio. A


era do progresso estava assustada com o desfecho dessa história.
Construções foram feitas da imagem do naufrágio. Uma delas, a primeira,
contou com a atuação de uma sobrevivente do navio. O filme “Saved from
the Titanic”, sob a direç~o de Étienne Arnaud, estreou apenas 29 dias
após o naufrágio e contava, em dez minutos, a história de Dorothy Gibson,
que contava sua história real. A ideia era fazer o filme rapidamente
porque o assunto ainda estava nas manchetes e certamente despertaria
muito interesse e geraria muito lucro. Essa produção teve então o
objetivo de aproveitar a dor ainda recente para levar o público a conhecer
uma das tantas histórias vividas a bordo do Titanic.
O filme Titanic de 1943 foi feito pela Alemanha Nazista, de Hitler,
em plena Segunda Guerra. Teve como produtor executivo Wilty Reiber, e
foi mais um filme de propaganda feita em Berlim, que utilizava o
naufrágio como cenário para tentar construir uma imagem ruim dos
britânicos e americanos. Algumas cenas foram filmadas a bordo do SS Cap
Arcona. Na noite anterior a sua estréia, o cinema onde seria exibido o
filme, sofreu ataque aéreo. O Titanic existia apenas como justificativa e o
contexto era a guerra.

Por fim2, podemos considera a produção de 1996, um ano antes da


de Cameron, que contou com a atuação de Catherine Zeta-Jones, Tim
Curry e Peter Gallagher, entre outros; e apresentou um roteiro que se
diferenciou dos demais filmes produzidos. idealizado para a TV, se tornou
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um filme que contou a história de diferentes personagens cujo destino era
o mesmo, o naufrágio. Um jovem carteirista, Jaime Perse, ganha a
oportunidade de viajar no Titanic, onde estão presentes os mais
importantes membros da sociedade, inclusive a americana Molly Brown.
Também a bordo está Simon Doonan, um criminoso determinado a
assaltar os passageiros da 1ª classe e a trama do filme se desenrola a
partir desses personagens e do romance que conduz os olhares.

2A escolha desses filmes seguiu critérios de seleção baseados na comparação possível


desses com a narrativa de Cameron, sendo utilizados para reflexão do papel
desempenhado pelo navio em cada um deles. Outros filmes, entre tantos, podem ser
aqui citados. O filme de 1953 de Jean Negulesco, Náufragos do Titanic; o de 1958 de
Roy Baker, A night to rebember; e o filme de 1979 de William Hale, SOS Titanic.
Mesmo se utilizando de elementos comuns ao filme de Cameron, o
Titanic de 1996, e os demais, não foram tão incisivos em tornar o fato
histórico mundialmente conhecido e perpetuado. As tantas narrativas não
se impuseram com tanta veemência quanto o Titanic de 1997 o fez. Os
motivos para essa grande popularidade e destaque para o filme de
Cameron, estão presentes e problematizadas a seguir.

O Titanic de James Cameron

“Bem vindo ao navio dos sonhos. Se


precisar, você encontrará coletes salva- 13
vidas sobre o guarda-roupa”. James
Cameron

A trama de Cameron apresenta elementos comuns aos mais


famosos filmes hollywoodianos. Faz o estilo filme catástrofe, onde são
condicionados elementos que tornam intenso o desenrolar dos fatos,
causando medo, expectativa, tensão, com cenas de ação, pânico e muitos
efeitos especiais. Uma paixão que surge rapidamente, e é devastadora, ao
estilo dos grandes romances de William Shakespeare.

O filme começa com a jogada de sorte de Jack Dawson (Leonardo


DiCaprio), um jovem impetuoso que ganha a oportunidade de viajar a
bordo do transatlântico mais famoso do momento, o Titanic. Ele não tem
nada a perder, e ruma à América sem planos, apenas expectativas e sua
bagagem é composta por algumas roupas, uma porção de desenhos e
alguns cigarros. Contrapondo essa figura, encontramos Rose DeWitt
Bukater (Kate Winslet), a jovem noiva de Cal Hockley (Billy Zane), cujo
casamento iria salvar sua família da falência e vergonha. Ela não se sente
bem atuando no papel que a sociedade lhe impunha, e Jack lhe da
esperança de mudar essa situação. Ele a salva de morrer congelada no
oceano e, posteriormente, do trágico destino a que estava fadada. A trama
ganha movimento quando o navio colide com um iceberg. Eles precisam
correr contra o tempo, contra suas limitações e contra o fim que se
aproximava.

Já se passaram cem anos desde o naufrágio do Palácio Flutuante e


ele ainda é lembrado com pesar e lamento por milhares de pessoas que
encontram-se ansiosas para assistir o lançamento do filme Titanic em 3D.
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O que aproxima aquele navio, que em sua época foi tão importante e que
hoje encontra-se mergulhado no profundo oceano, sem no entanto ter
sido esquecido e abandonado ou fadado a solidão, de tantos espectadores
apaixonados por uma história que teve seu fim decretado a tempos?
Parece que ele ainda se relaciona conosco, age e está presente, através das
imagens apresentadas no filme, do retrato, da porcelana, do espelho; dos
ideais, dos planos, dos desejos, dos sonhos de tanta gente que teve um
trágico fim. O Titanic fala e não só se comunica como aclama para si a
opulência e o destaque que sempre foram seus por direito. A produção do
filme tinha que ser tão faustosa quanto o lançamento do navio no oceano
no dia 10 de Abril de 1912, rumo à sua viagem inaugural.

Compreender o sucesso que teve e tem o filme de Cameron nos


permite refletir sobre sua produção. O que era pretendido pelo diretor e o
que foi concebido no término das produções, bem como a repercussão do
filme, nos apresentam uma reflexão sobre a representação fílmica.

Segundo NICHOLS (2005), todo filme é um documentário, partindo


do pressuposto de que todo documentário explora uma realidade e a
representa, não apenas reproduzindo-a, mas desejando nos convencer de
seus argumentos, Sendo essa representação parcial e subjetiva, o
documentário, por mais próximo da realidade que se apresente, não é a
realidade, mas uma representação que passa pela interferência do
produtor. Os filmes podem então ser documentários de representação
social ou de satisfação de desejos, como define NICHOLS (2005). Assim, a
ficção gera no espectador a projeção de seus sonhos, que tornam-se
realidade na pele dos personagens, sendo dessa maneira acompanhados
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pelos olhos atentos e pela empolgação desse espectador. O cinema se
torna um refúgio, uma maneira de aliviar a humanidade de alguns pesos,
e livrá-los por alguns minutos de seus problemas, fazendo-os adentrar um
mundo onde projetam seus desejos e vivem aquilo que não lhes é
permitido ou não puderam ainda viver, mas esperam.

Um dos gêneros do cinema que mais desperta interesse, o drama,


revela-se como um grande exemplo do poder do cinema em mover
corações, abalar, fazer refletir. Segundo a pesquisa “Tragedy Viewers
Count Their Blessings: Feeling low on Fiction Leads to Feeling High on
Life” da Universidade do Estado de Ohio, Estados Unidos, publicada na
última edição do periódico Communication Research, o drama faz com
que as pessoas se sintam felizes com suas próprias vidas, com seus
romances. Assim, os filmes que despertam uma tristeza momentânea
agradam o público.

Cameron se utiliza desses recursos do cinema em prol de seus


objetivos. Facilmente percebemos que o que evoca o encanto do filme de
Cameron é o romance, que trás os espectadores para dentro do filme,
fazendo-os se sentirem parte da trama. Logo, as expectativas se
acumulam sobre o romance, que passa a ser metaforicamente o destino
do navio que já se conhece, cujo envolvimento toma lugar dentro desse
mundo que passa a ser explorado durante as mais de duas horas do filme.

No prefácio do livro lançado com o filme, escrito por Ed W. Marsh,


Cameron revela seus anseios com a produç~o. “Senti que meu filme 16
deveria ser, antes de tudo, uma história de amor” (MARSH, 1997, p.6). De
fato, o decorrer da trama nos leva a acompanhar o nascimento desse
sentimento e torcer por ele, sendo dirigidos para o momento mais
doloroso, a separação, que vai além de qualquer poder ao alcance deles. O
destino é quem havia traçado o trágico fim.

Eles são separados por circunstancias tão esmagadoras e dolorosas,


que tornam esse romance insolúvel, eterno; o exemplo de amor que
ultrapassa limites. Cameron continua,

“o maior dos amores pode ser medido apenas contra a


maior das adversidades, e o maior dos sacrifícios seria
definido da mesma maneira. O Titanic, em toda a sua
terrível grandiosidade, abre essa possibilidade como
nenhum outro evento histórico”. (MARSH, 1997, p.6)

O romance só é levado ao seu extremo e o amor de fato provado,


quando situações extremas separam duas vidas. A promessa do amor que
é para sempre é tomado como real quando duas pessoas são impedidas
de viverem esse amor. O que os une então, é maior que aquilo que os
separou. O caso dos personagens principais, Rose e Jack, refletem as
aspirações do espectador de deparar-se com aquilo que é eterno.
Cameron utiliza-se desse elemento principalmente porque o amor que 17
surge entre os protagonistas é um típico caso de amor impossível, que
dificilmente aconteceria.

Rose é uma jovem sonhadora, que tem um pensamento diferente


das mulheres da sociedade do século XX, da qual pertence. Ela começa a
ter contato com pensamentos modernos e isso só acentua a insatisfação e
o desejo de mudança que já existe dentro dela.

Cameron explica que

“Jack tinha que ser alguém inesquecível. A conexão


entre eles, em um nível emocional, é o que transforma
Rose, de um tipo de gueixa inglesa da primeira classe,
que está morrendo por dentro, em uma jovem
espirituosa no inicio de uma nova vida”. (MARSH,
1997, p.85)

Quando eles chegam ao navio, ela exclama: “N~o parece muito


maior que o Mauretania” (CAMERON, 1996, cena 34). A atriz Kate Winslet
revela: “Todo mundo est| t~o animado com o navio, e o personagem que
interpreto o esnoba completamente”. (MARSH, 1997, p. 44). No filme, as
câmeras apontam para a agitação do momento do embarque. Muita gente
andando, falando, chorando. Conforme mencionado no roteiro,
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“no cais, veículos, cavalos, automóveis e caminhões


movem-se lentamente através da multidão densa. A
atmosfera é de excitação geral e tontura. As pessoas se
abraçam em despedidas lacrimosas, e gritam boa
viagem aos amigos e parentes nas plataformas acima”.
(CAMERON, 1996, cena 34)

Quase mil figurantes dividiram a cena com 25 cavalos e uma dúzia


de carros antigos para compor esse cenário. As notícias circulavam o
mundo todo. Milhares de pessoas estavam ansiosas a espera do grande
acontecimento que era a viagem inaugural do Titanic, mas no roteiro
notamos a pretensão de apresentar a imagem inicial de Rose como uma
jovem indiferente a tudo isso. Rose aparenta ser uma garota mimada, mas
no decorrer do filme revela-se uma garota espirituosa e com sonhos
diferentes daqueles que seu destino lhe reservara. “Rose est| afundando
antes mesmo do Titanic zarpar, agonizando frente às restrições de gênero
e classe que a cercam. Ela quer explorar o mundo inteiro, mas sabe que
isso nunca irá acontecer porque ela está noiva de Cal e está sendo
pressionada a entrar no mundo limitado do noivo, que a obriga a agir de
maneira apropriada e adequada” (MARSH, 1997, p. 51). É assim que ela se
vê, e por isso se sente atraída por Jack. A fala da personagem demonstra
exatamente como ela sentia frente ao mundo que pertencia.
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“Eu vi minha vida inteira como se eu já tinha vivido
isso. Um desfile interminável de roupas, jogos de iates
e polo. Sempre o mesmo estreito de pessoas e
conversas irracionais. Eu senti como se estivesse em
pé em um grande precipício, sem ninguém para me
puxar de volta, ninguém que se importasse, ou mesmo
que tivesse notado” (CAMERON, 1996, cena 61).

Jack era um aventureiro que não tinha medo do futuro


desconhecido, incerto, ainda a conquistar. Lutava por seus ideais. Era
livre. Sua visão de mundo conquista Rose, e muito mais que isso, ele a
conquista. Jack a ouvia, procurava saber de seus sentimentos, de seus
anseios. Dava espaço para ela, o espaço que ela tanto almejava.

Cameron apresenta no decorrer do filme elementos sutis que nos


levam a compor a imagem final de Rose. Começa com a garota indiferente,
depois revela que ela na verdade não se sente parte daquela realidade e
aponta para o seu encontro com a Rose decidida e disposta a libertar-se.
Como já mencionado, nesse momento as mulheres faziam parte de um
ritual no qual os homens se gabavam por suas belas esposas, as
mostrando como troféus para a sociedade. Não eram mais que isso, salvo
raros casos. Não havia espaço diferente que esse para elas dentro dessa
sociedade preocupada com a aparência. Nesse sentido, elas eram
ensinadas desde cedo a portar-se com decência para que os homens da
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família não fossem envergonhados. A imagem delas refletia na honra e no
nome de toda a família (CAMERON 1997).

Percebemos que a primeira característica apresentada por


Cameron, que difere Rose das demais mulheres é a sua roupa. Com cortes
mais retos, ela é vista pela primeira vez com um tailleur, que pouco tempo
depois seria uma forte tendência na moda europeia, em especial em Paris,
onde Rose tinha feito suas ultimas compras. Durante o dia as mulheres se
vestiam mais discretamente, já à noite, seus vestidos exibiam belos
decotes. O luxo e a ostentação nos jantares começava pelas roupas. Esse é
o momento da história que mais se gastou dinheiro com roupas do que
com qualquer outra coisa (MARRIOT, 1998).
Nesse universo Rose é apresentada como uma garota de bom gosto
que não tem medo de ousar. A moda que começava a se modificar, trazia
para a mulher mais leveza, e as características físicas eram cada vez mais
valorizadas, com vestidos mais justos e que davam mais forma ao corpo,
moldando a silhueta. Rose veste uma roupa com traços masculinos, como
a gravata e os botões. Logo, percebemos que havia recebido muito bem as
inovações no mundo da moda.

Quando está em seu camarote, um dos mais luxuosos do navio, Rose


revela mais um traço de sua personalidade, o gosto por obras de arte. O
mais importante em relação a esse detalhe que passa rapidamente na
cena 47 (CAMERON, 1996), é que as obras de arte que Rose aprecia são de
artistas que revolucionam o seu tempo. Cameron escolheu o cubismo de
21
Pablo Picasso e o impressionismo de Edgar Degas para compor o gosto
artístico de sua protagonista. As obras que Rose usa para decorar seu
camarote são Portrait, de 1912 e Les Demoiselles d’ Avignon, de 1907,
ambas de Picasso e A primeira bailarina de Degas, que fazia crítica à
sociedade.

O último elemento que Cameron apresenta antes de Rose decidir


que daria chance para o romance com Jack, é revelado no almoço, na cena
59, quando está com sua mãe e seu noivo, ao lado de Molly, Ismay e
Andrews. A cena começa com um close em Ismay que fala sobre o navio.
Rose acende um cigarro e sua mãe, em sinal de desaprovação, fala
discretamente que não gosta daquilo. Indiferente, Rose continua, quando
Cal tira seu cigarro e apaga. A garota mimada começa a aparecer como
aquela que não se sentia parte do mundo em que vivia e que já não tinha
uma boa relação com sua mãe, que a inseria nesse mundo do qual ela
queria fugir.

Em seguida Cal faz o pedido do almoço para o garçom, no lugar de


Rose. O destaque para a cena nesse momento é a dinâmica dos olhares
entre os personagens e a fala de Molly, “Ent~o, você vai cortar a carne
para ela também Cal?”. O sorriso sem graça de Cal fecha esse primeiro
momento da cena. Cameron quer despertar o publico para as tensões que
já existem no relacionamento de Cal e Rose e o quanto Rose se sente
reprimida. Cal é tipificado como o estilo de homem de 1912. Aquele que
acredita na submissão da mulher e no seu poder de agir por ela.

Para finalizar, a conversa caminha para outro rumo. Ismay fala 22


sobre a pretensão por trás do nome do navio, que segundo o personagem,
significa estabilidade, segurança, fazendo alusão ao tamanho do navio.
Rose parece impaciente e rapidamente questiona: “Você conhece o Dr.
Freud? Suas ideias sobre a preocupação masculina com o tamanho pode
ser de particular interesse para você, Sr. Ismay”. O arremate est| dado.
Rose está lendo obras que geram nela novos pensamentos, a frente de seu
tempo. Rose definitivamente não se adequava, e é na viagem que ela
encontra motivos para dar um basta nessa situação.

O enorme abismo entre as classes, que inclusive muito bem


representa o próprio Titanic, não parecia ser maior que o desejo do jovem
casal de viver esse amor. A primeira troca de olhares entre os
personagens dimensiona esse abismo. “Rose se vira de repente e olha
direto em direção a Jack. Ele é pego olhando, mas ele não desvia o
olhar. Ela faz, mas depois olha para ele. Seus olhos se encontram no
espaço do convés, bem através do abismo entre os mundos” (CAMERON,
1996, cena 61).

A jovem que já tinha seu futuro escrito pelas mãos de sua mãe,
agora se via possibilitada de alcançar objetivos outrora inalcançáveis. A
força de um amor comove mais que a morte. Aliados, o amor que rompe
limites, com o poder devastador da morte, temos uma das chaves do
sucesso do filme, o elemento que comove e faz o espectador vibrar, o
sentimento.

Cameron toma para seu romance elementos da sociedade da época,


machista, opressora, preocupada essencialmente com o luxo, do qual o 23
Titanic é fruto. O navio e sua história eram plano de fundo ideal para esse
romance, porque ele dava possibilidade de Cameron se utilizar de
elementos indispensáveis para um verdadeiro drama e que misturava o
real e o ficcional. Essa mescla nos aponta outro fator crucial para o
sucesso do filme. Nós somos levados hora a acreditar que tudo aquilo foi
real, hora a pensar até que ponto o filme é ficção. A figura de Rose já
velha, contando a história permite ao diretor passear entre o real e a
ficção e utilizando-se de algumas filmagens do navio, no fundo do oceano,
transporta o espectador novamente para fora do filme e nos lembra que o
Titanic de fato existiu, levando-os a um nível ainda maior de
envolvimento com a trama. “Saindo da escurid~o, como uma apariç~o
fantasmagórica, surge a proa de um navio” (CAMERON, 1996, cena 102).
Somos levados a um passeio com o diretor pelo fundo do oceano, e assim
como ele, vibramos quando eles se deparam com os restos do navio dos
sonhos, em meio à escuridão. Todos os elementos estão lançados para
que nosso desejo de descobrir o fim da história cresça com o filme. A
busca pelo colar tão cobiçado, o coração do oceano, surge ainda como um
atraente ingrediente que prende o espectador à trama. Fascinados com a
possibilidade do romance também ter sido real, rendem-se aos encantos
do filme.

Milhares de pessoas realmente morreram. Quantos romances não


tiveram seu fim determinado assim como o próprio Titanic? Todos eles
são representados na pele de Jack e Rose.

24
“Para experimentar plenamente a tragédia do Titanic,
para ser capaz de compreendê-la no aspecto humano,
parecia necessário criar uma tocha emocional para
guiar o publico, apresentando dois protagonistas que o
conquistassem, e depois levá-los ao inferno”. (MARSH,
1997, p. 7)

Esse casal seria responsável por dimensionar a tragédia, afinal, a


morte de mais de 1500 pessoas parece muito distante do espectador,
sendo muito abstrata para comover o coração, afinal são histórias
desconhecidas, que não dizem mais ao publico do que sua morte. Já a
história do casal possibilitava o cumprimento do desejo do diretor: “Eu
quis colocar o publico no navio, nas suas últimas horas, para que vivesse o
tr|gico evento em sua terrível e fascinante glória” (MARSH, 1997, p. 6).

O drama faz o espectador pensar em suas situações. Em uma série


da Fox, intitulada Titanic, Cameron fala que um dos objetivos dele com o
filme era justamente demonstrar a emoção daquela noite, através do
casal, da grandiosidade do navio, da dinâmica das cenas. O olhar
desesperador dos personagens devia fazer-nos pensar sobre nossas vidas,
segundo o diretor.

Fundamentais para o sucesso do filme, os atores escolhidos, Kate


Winslet e Leonardo DiCaprio, tinham a difícil tarefa de fazer essa conexão
entre o espectador e o jovem casal, e principalmente, em dar um “coraç~o 25
vivo para o filme”. O público que se apaixona pela história deles passa a
ver as cenas a partir deles, “através de seus olhos”. O navio volta { cena
para fazer sua ultima atuação, que define o fim do romance. É ele o
começo, o plano de fundo, mas também é o desfecho da história.
“Sentindo o medo, a perda e o sofrimento de Jack e Rose, no final
acabamos vivendo o sentimento daquelas 1500 pessoas” (MARSH, 1997,
p. 7).

Pensar sobre uma produção fílmica requer que compreendamos


também os fatos cinematogr|ficos que “designam tudo o que é exterior ao
filme; sua técnica de fabricação, seu sistema de produção, sua exploração
e sua recepç~o pelo público”. (MIR, 2009, p.106). Para compreendermos o
contexto que envolve a produção do filme, faz-se necessário que
reflitamos também sobre a indústria cinematográfica no momento da
produção desse filme.

Butcher (2004) defende que a partir de 1950, Hollywood se


reinventa e logo o cinema também sofre transformações. Quando o
cinema surge, ele alcança de imediato o centro das atenções. Constituiu-se
como a distração, o entretenimento, o lazer das pessoas. O momento de
fuga dos problemas, da correria do dia-a-dia, onde o espectador se
permitia apenas de divertir, com amigos ou com a família. Era um
programa extremamente barato e possibilitava que as massas
desfrutassem de alguns momentos de distração. Com a chegada da
televisão, o cinema viu-se passando por sérios problemas, visto que as
pessoas já não precisavam mais sair de casa para assistir um bom filme.
26
Hollywood então trás inovações em relação ao cinema. Era preciso lutar
contra a decadência à que estava destinada.

São realizadas grandes campanhas publicitárias em torno de cada


filme produzido. O sucesso de um filme dependia exclusivamente do
número de bilhetes vendidos quando estreava. Foram gastos milhões em
propaganda, tornando cada lançamento de um filme imperdível. Os
cinemas deixam de ter apenas uma sala grande, e passam a ser divididos
em varias outras salas, onde diferentes filmes poderiam ser vistos ao
mesmo tempo. Essa inovação possibilitava o melhoramento da qualidade
do som, das acomodações, do ambiente, enfim, e fazia o público desejar
sair de casa para assistir o filme tão comentado e esperado, com conforto
e qualidade que eles não teriam em casa, assistindo esse filme
posteriormente na televisão. Não apenas iam assistir ao filme, mas iam ao
cinema, como um novo programa para o fim de semana.

Desde a segunda Guerra Mundial, a indústria cinematográfica


hollywoodiana voltava seu foco para os grandes filmes catástrofe, como
Independence Day (1996). Cenas de ação acompanhadas de efeitos
especiais que davam dimensão de realidade foram as grandes máquinas
de fazer dinheiro. Cameron se apropria desse ideal e escolhe um grande
naufrágio para dar ao público o filme que marcaria a história do cinema. O
ator Billy Zane declara que o Titanic “era o |pice de qualquer fantasia
hollywoodiana”.3 A produção saiu mais cara que o próprio navio teria sido
a seu tempo. A escolha dos atores também foi resultado das necessidades
de cortas gastos, visto que os protagonistas tinham uma carreira ainda em
27
ascensão. Com inacreditáveis 3 horas e 14 minutos de duração, essa super
produção superou as expectativas dos estúdios. Milhões gastos na
produção, milhões gastos com a divulgação. Seu lançamento era esperado.
O sucesso do filme dependia da estreia. A produção já havia excedido o
valor estipulado pelo estúdio, mas Cameron esperava que o lançamento
compensasse os gastos, e de fato compensou, tendo arrecadado mais de
US$ 1 bilhão e 800 milhões de dólares.

Outro aspecto interessante é a preocupação do diretor em ser o


mais coerente com a verdadeira história quanto possível. “Existem
responsabilidades ao trazer um assunto histórico à tela, mesmo que meu

3
Disponível em
http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=TAuzzIAYI7k
primeiro objetivo, como diretor de cinema, fosse entreter o publico”
(MARSH, 1997, p. 13). O cuidado com os detalhes, que vão das roupas até
as lareiras, tornam o filme ainda mais próximo do Titanic real. Cameron
utilizou fotos do irmão gêmeo do Titanic, o Olympic, para reproduzir a
escadaria, a academia, e até mesmo os turcos usados para baixar os botes
salva-vidas. Foram utilizados carros como os que estavam no Titanic, e se
dá destaque para o Renault de passeio de Willian Carter, que se tornou
cenário da cena de amor entre Rose e Jack, cujo interior foi reproduzido
baseado nas imagens conseguidas por Cameron no fundo do oceano e por
documentos históricos. Atenta-se ainda para o cuidado com a reprodução
das acomodações, dos espaços, da decoração. Mas nada disso seria tão
real se os atores não entendessem o comportamento que cada pessoa
tinha que ter dentro de sua classe social. Pensando nisso, os atores
28
tiveram aulas de etiqueta, para saber como andar, falar e portar-se. Tudo
devia estar impecável para parecer o mais natural possível. Os penteados
e as roupas foram inspiradas em fotografias de pessoas da época. Até
mesmo a comida servida no jantar tinha de ser impecável. Os atores
comeram caviar e os pratos foram servidos com tanto requinte como
acontecia no Titanic.

As dimensões de tudo devia acompanhar o tamanho da tragédia.


Para tanto, o navio foi praticamente reconstruído e depois afundado. Os
efeitos tinham que ser tão intensos que fizessem o público sentir o quão
dramático o momento foi. As cenas do naufrágio foram gravadas parte no
mar, parte nos estúdios, parte em uma enorme piscina. Só assim o filme
de Cameron se diferenciaria dos demais filmes produzidos até então.
MARSH (1997) aponta que os outros filmes feitos sobre o Titanic
montavam a cena a partir dos olhos cheios de lágrimas dos sobreviventes.
Logo, o filme que Cameron pretendia, devia passar tanta realidade quanto
possível. Os gestos, os olhares, o desespero, tudo devia parecer real.
Cameron utiliza a imagem de alguns personagens em específico, por vezes
repetidas, para que, segundo ele, “o público ficasse comovido ao vê-los
repetidamente enquanto o navio afunda” (MARSH, 1997, p. 88). Era uma
forma de criar um pequeno laço de envolvimento entre outros
personagens e o público, o que aumentaria o grau de consternação.

No início do filme, as imagens gravadas no fundo do oceano revelam


a face de uma boneca de porcelana, fazendo alusão a boneca encontrada
nos destroços do navio, por Robert Ballard, em 1986. Essa boneca
aparece no filme, nos braços de uma criança chamada Cora. A menina é
29
uma das imigrantes irlandesas que encontram-se no convés da terceira
classe. Cameron conta que “ela cria uma resson}ncia com a história”
(MARSH, 1997, p. 102), demonstrando mais uma vez seu apelo para a
relação entre ficção e realidade.

Um dos momentos mais esperados do filme é o do primeiro beijo


entre os personagens principais, que acontece na cena 100. Ele está
cercado de pequenos movimentos da câmera em torno do casal e de
detalhes que se acentuam no roteiro.

Eles se beijam com a cabeça dela inclinada para trás,


rendendo-se a ele, à emoção, ao inevitável. Eles se
beijam lenta e intensamente, e depois com paixão
crescente. Enquanto Jack e Rose se abraçam na proa,
vão se dissolvendo lentamente, deixando apenas a
imagem das ruínas da proa dos restos do navio
naufragado (CAMERON, 1996, cena 100).

A cena tem seu desfecho com a senhora Rose observando essa


imagem em um monitor de vídeo. É a ligação entre o casal e o presente. O
espectador é levado mais uma vez a confundir ficção e realidade, e se
comover com a história de amor. A emoção expressa no olhar melancólico
de Rose, na cena seguinte, reforça a dramaticidade do momento 30
retratado, e levo o espectador a sentir o que a senhora Rose sente. “Rose
pisca, parecendo voltar ao presente. Ela vê o naufrágio na tela; o navio
fantasma triste no fundo do abismo”. (CAMERON, 1996, cena 101).
Cameron consegue “estender os limites dos efeitos visuais a serviço da
história” (MARSH, 1997, p. 113). Os efeitos especiais empregados no
filme, que eram inovadores em sua época, nos dão noção do
acontecimento, mas para além disso, nos fazem sentir as dores, ouvir os
gritos, sofrer com as mortes, as separações, os amores não vividos, os
corações partidos. É como se o público pudesse voltar no tempo e
descobrir o que aconteceu de fato naquele dia, por mais que esse romance
seja totalmente fictício, mesclando-se com personagens reais como o
capitão Smith, por exemplo. O acontecimento passa a ser observado
apenas sob a perspectiva deles, quando na verdade, para
compreendermos um pouco melhor a magnitude daquela noite, teríamos
de pensar na visão de cada um dos passageiros, cujos olhares apontam
para direções diferentes.

Alguns pensavam em mudar sua vida, indo para a América, a terra


de novas oportunidades. Famílias inteiras objetivando ser enfim livre de
sua situações, de seus problemas, de sua pobreza. Almejavam encontrar
um lugar dentro da sociedade melhor do que aquele que ocupavam. O
ator Brian Walsh salienta, “o grupo de irlandeses que estava no navio
despediu-se com lágrimas de sua terra natal. Você pode imaginar o misto
de tristeza e esperança que estes imigrantes deviam sentir?” (MARSH,
1997, p. 96). Outros, no entanto, faziam uma viagem como tantas outras,
que tinha um caráter muito mais de status do que necessidade. Nesse
período, as viagens turísticas de famílias ricas era comum, desejável.
31
Também lembremos dos tantos que trabalhavam para o sucesso do
Titanic, para que ele alcançasse o seu destino. Pessoas que acreditavam
fazer parte de um momento histórico, que marcaria o século, e de fato,
assim aconteceu. Por fim, outros tantos viviam lindas histórias de amor, e
não escreveram o fim delas, porque foram impedidos. Laços, histórias,
sentimentos que não nos cabe conhecer.

É através de Jack e Rose que somos então levados a pensar sobre as


desastrosas ultimas horas de vida de tantas pessoas. Cameron atribui a
Rose mais velha, a função de fazer-nos desejar conhecer essas histórias. O
que desperta o interesse do publico é a busca de um pirata moderno,
Brock Lovett, pelo coração do oceano. O Titanic era para ele apenas o
lugar de onde poderia se tirar o raríssimo diamante azul. Esse pirata
representa os valores da sociedade de 1912 na contemporaneidade.
A crítica apresentada por Cameron vem sendo posta desde o
começo do filme. Surge na postura de Rose, que rejeita uma vida de
aparências, que tem contato com pensamentos que contrariam essa lógica
e que está disposta a dar um basta nisso tudo. É articulada nos grandes
jantares no navio, onde os homens se orgulham de seus grandes feitos e
onde têm a oportunidade de demonstrar uns aos outros o tamanho de seu
poder de aç~o política e econômica. “Eles entram em uma nuvem de
fumaça e parabenizam uns aos outros por serem os senhores do
universo” (CAMERON, 1996, cena 81). Revelada na figura de Jack, que não
se encaixa nos padrões do novo mundo capitalista que busca lucros a
qualquer custo, de uma classe burguesa preocupada com a opulência. Fica
expressa no momento do naufrágio, onde qualquer lógica de piedade e
consternação são abandonadas, onde cada um lutava por sua própria
32
sobrevivência, salvos alguns casos, como são conhecidos os de homens e
mulheres que cederam seus lugares, casais que decidiram morrer juntos,
da orquestra que tentou manter a calma e dos oficiais que organizaram os
botes. A crítica de Cameron leva por fim à reflexão em torno do pirata, em
busca do diamante, deixando de lado toda a história que o navio possuiu.
Nossa sociedade atual, embora diferente da sociedade de 1912, apresenta
traços marcantes do capitalismo avassalador que outrora fez parte do
cenário do Titanic.

Nesse momento do filme, Rose entra em cena e faz com que ele e
todo o publico perceba que há uma história por detrás disso, e é essa
história que, passa a ser explorada. O filme é contado por ela, que
diferente de Brock Lovett vê significado ímpar nos destroços do navio.
Rose faz-nos pensar sobre a possibilidade de resgatar uma memória.
Para HALBWACHS (2004, p.75), “a lembrança é em larga medida
uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do
presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em
épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem
alterada. Nesse sentido, podemos criar representações do passado
baseados na memória individual de outros e na memória histórica que se
tem do fato que para nós é desconhecido. Surge então uma nova narrativa
de um acontecimento marcante. O filme Titanic (1997), consegue fazer a
lembrança do naufrágio permanecer na memória histórica, tornando o
fato conhecido a pessoas que não o presenciaram.

O Titanic é revivido primeiramente na memória de Rose e depois na


memória coletiva. Ela tem um encontro com seu passado e nos conduz
33
para dentro de suas lembranças, para dentro do navio, para dentro do seu
romance.

“O Titanic está ancorado na memória da humanidade”

Irina Bokova - Diretora geral da UNESCO


REFERÊNCIAS:

BUTCHER, disponível em:


http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_03/contemporanea_n03_02_
butcher.pdf

CAMERON, J. Titanic. Los Angeles, 20th Century Fox, 1996. [Roteiro]

CAMERON, J. Titanic. Los Angeles, 20th Century Fox, 1997. [Película]

FERRO, M. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 34


2004.

HOBSBAWM, E. J. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Ed. Perspectiva,


1977.

NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2004.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução: Mônica Saddy


Martins. Campinas, SP: Papirus, 2005.

NOVA, C. O cinema e o conhecimento da história. In: O olho da história,


n.3. Salvador:
MARRIOTT, Leo. Titanic, O naufrágio. Rio de janeiro: Record, 1998.

MARSH, ED W. Titanic de James Cameron. São Paulo: Manole, 1997.

MIR, N.M. Linguagens imbricadas: São Bernardo, romance e fita.


Brasília, 2009.

VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a História; Foucault revoluciona


a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

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