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ESPIRITUALIDADE

ou
TEOLOGIA ESPIRITUAL

Pe. João Pereira Gomes, C. Ss. R.

Edição Pdf. de Fl. Castro


2005
INTRODUÇÃO

A Teologia Espiritual ou Espiritualidade é uma ci-


ência teológica muito rica, antiga no judaísmo e no
cristianismo. Iniciando esta síntese, procuramos dar
primeiro uma idéia geral, uma breve metodologia teo-
lógica, a indicação das escolas espirituais, a biblio-
grafia clássica. Procuraremos mostrar a tradição e a
evolução da espiritualidade nestes vinte séculos.
Fizemos uma opção prática: primeiro é tratada a
espiritualidade antiga; numa segunda parte é tratada
a espiritualidade atual, ao menos nos seus elemen-
tos, pois é prematuro ainda tentar uma síntese da
Teologia Espiritual moderna.
IDÉIA GERAL
A Espiritualidade é um dos ramos da Teologia,
como a Dogmática, a Exegese, a Moral, a Liturgia e a
Pastoral. Chama-se também Teologia Espiritual, As-
cética e Mística, Teologia da Perfeição Cristã, Perfei-
ção, Contemplação.
Têm-se tentado várias definições descritivas da
Espiritualidade, todas decalcadas na definição da Te-
ologia em geral, tendo como objeto a perfeição cristã.
O problema é definir o que é perfeição. Alguns exem-
plos de definições:
Garrigou-Lagrange OP: A Teologia Ascética e
Mística é a aplicação da Teologia Moral à direção das
almas, para uma união cada vez mais íntima com
Deus. Supõe tudo o que a doutrina sagrada ensina
sobre a natureza e as propriedades das virtudes e
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dos dons do Espírito Santo, e estuda as leis e as


condições de seu progresso em vista da perfeição.
De Guibert SJ: A Teologia Espiritual é ciência
que, dos princípios revelados, deduz em que consiste
a perfeição da vida espiritual, e de que maneira o
cristão pode tender a ela e consegui-la.
Tanquerey: Define simplesmente a Teologia Es-
piritual como ciência que tem como fim próprio con-
duzir as almas à perfeição cristã.
Schrijvers C.Ss.R: A Teologia Espiritual é ciência
da vida espiritual, que tem por objeto orientar toda a
atividade do cristão em vista da perfeição sobrenatu-
ral.
Notam-se logo dois problemas nessas definições.
Primeiro, certa separação entre as partes da Teologi-
a, principalmente entre Moral e Espiritualidade. Se-
gundo, que significam: santidade, santo, perfeição,
vida cristã? Todo o cristão é ou deve ser santo? To-
dos são chamados à perfeição, inclusive à mística?
Quanto à vocação à santidade, o Vaticano II afirma
que sim; quanto à mística, algumas escolas teológi-
cas sustentam que não.
Consola-nos, contudo, saber que esta ciência
santa é acessível tanto ao teólogo, ao místico, como
à lavadeira, de que falava S. Boaventura. Mas, avi-
sam alguns Mestres, tal ciência, enquanto especulati-
va, implica não só muita vida em Deus, mas conhe-
cimento de outros ramos da Teologia, da Hagiografia,
da História, da Bíblia, da Psicologia e o exercício das
virtudes. Pergunta-se também: Chega-se à santidade
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só com a ascese, sem a mística? Ou, por outra, todos


os santos foram místicos?
BREVE METODOLOGIA
A metodologia espiritual pode usar dois cami-
nhos: primeiro o dedutivo, que parte de princípios re-
velados ou teológicos; segundo, o indutivo, acentua-
do muito pela espiritualidade moderna, que parte da
experiência ou indução. Dando um exemplo bíblico, o
primeiro prefere Jo 1: “No princípio era o Verbo. . . ”.
É usado pelas escolas mais contemplativas. O se-
gundo caminho começa com Gn 1: “No princípio
Deus criou o céu e a terra. . . e Deus criou o homem”.
Um é descendente; o outro, ascendente.
Alguns manuais tentam misturar os dois méto-
dos, como fazemos aqui. Há, ainda os que se conten-
tam com reunir e coordenar regras de perfeição, co-
mo fizeram os Padres do Deserto, Cassiano e S. Jo-
ão Crisóstomo. Outros grandes santos deixaram a-
penas Regras para sua Ordem ou Congregação, ou
monografias espirituais, como S. Bento, Sto. Inácio,
Sto. Afonso.
Alguns, como os da escola jesuíta e redentorista
acentuam a ascese; os mais contemplativos, como os
carmelitas, enclausurados, unem a ascese à mística.
Os modernos começam com a experiência, ao gosto
do século 20.
É costume também falar de espiritualidades, no
plural, visando escolas, tempo etc. Diz-se, por exem-
plo, espiritualidade primitiva, patrística, beneditina,
mendicante, carmelita, inaciana, religiosa, sacerdotal,
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leiga, do século 16, do trabalho, etc. Isto é usual no


século 20, devido à menor unidade teórica.
Há bons tratados acessíveis ao nosso público,
embora poucos, como veremos na bibliografia. Mas
há grande número de monografias, principalmente
nas numerosas revistas religiosas. São úteis os di-
cionários bíblicos, teológicos, espirituais, hoje à dis-
posição de todos. Procure neles os conceitos aqui
emitidos. Todos os movimentos modernos têm uma
espiritualidade própria, que desenvolvem em cursos e
retiros.
Evidentemente deve-se acompanhar este tratado
com a consulta à Bíblia, pois uma exigência do Vati-
cano II é a linha mais bíblica da teologia (DV, n. 24)
Além das siglas próprias das Bíblias, as mais u-
sadas são as do Concílio Vaticano II :
GS: Gaudium et Spes, Constituição sobre o Mundo.
LG: Lumen Gentium, Constituição sobre a Igreja.
DV: Dei Verbum, Constituição sobre a Revelação Divina.
PC: Perfectae Caritatis, Decreto sobre os Religiosos.
A. A.: Apostolicam Actuositatem, Decreto sobre o Aposto-
lado Leigo.
CIC: Catecismo da Igreja Católica, pós-Vaticano II.
As siglas da Bíblia são usadas conforme a con-
venção mais geral.
Para maior informação teológica, aconselho re-
correr a obras práticas como o Dicionário de Teologia
(Ed. Loyola), Teologia para o Cristão de Hoje, Voca-
bulário Teológico (Ed. Paulus), e o chamado Cate-
cismo Holandês. É muito útil consultar um manual de
História da Igreja, para entender o contexto das Esco-
6

las Espirituais. Para entender, por exemplo, a espiri-


tualidade depois do século 16, é preciso conhecer o
contexto dos Concílios Tridentino, Vaticano I e II. A
História da Era Moderna faz entender as respostas
que a Igreja deu ao mundo.
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HISTÓRIA DA ESPIRITUALIDADE

PRIMEIROS SÉCULOS
É evidente que a primeira escola espiritual é a de
Jesus, de Maria, dos apóstolos, discípulos, evangelis-
tas, mártires, virgens, pregadores, carismáticos refe-
ridos no Novo Testamento e na História da Igreja.
Todos eles seguiram de perto as pegadas do Mestre,
cumprindo sua palavra: “Sede perfeitos como o Pai
celeste é perfeito” (Mt. 5, 48). Mas é bom lembrar que
já S. Paulo advertia que, em Corinto, nem todos eram
tão perfeitos (1Cor 5-6; 2Cor 10-11). É a realidade da
Igreja, que reaparecerá nestes vinte séculos.
A IGREJA PRIMITIVA
Na Igreja primitiva surgem santos e escritores,
que não só exercitam mas apontam as exigências do
evangelho no mundo greco-romano. São os mártires,
as virgens, os fundadores de igrejas. Devido às per-
seguições, que logo começam, há dispersão para ou-
tras cidades, e até para os desertos. As igrejas mais
organizadas, como de Roma, Antioquia e Alexandria,
já vão registrando não só as Atas dos Mártires, mas
os escritos espirituais, principalmente cartas, trata-
dos, sermões.
É bom assinalar um fenômeno que mais tarde vai
dar origem ao monaquismo e à vida religiosa: as vir-
gens e os anacoretas (S. Antão, S. Pacômio), mais
tarde monges que “fogem do mundo” e se dedicam à
dura ascese, muitas vezes por necessidade. É preci-
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so lembrar os cristãos que eram condenados ao tra-


balho forçado nas minas. Há o caso curioso dos estili-
tas que viviam sobre colunas. O monaquismo (procu-
ra da vida solitária) espalha-se no Oriente e depois
passa ao Ocidente, com Cassiano. Muitos teólogos
foram inicialmente primeiro, como Cirilo, Teodoro,
Nicetas, Afraat, João Crisóstomo e outros.
Dos autores seguintes, chamados de Santos Pa-
dres, coloco apenas a obra que julgo mais represen-
tativa e interessante.
PATROLOGIA GREGA
S. CLEMENTE ROMANO (s. I-II) escreve a Carta
aos Coríntios. HERMAS (s. II): Pastor de Hermas. S.
INÁCIO de Antioquia (+110): Cartas. S. POLICARPO
(+146): Cartas. S. CLEMENTE de Alexandria (195) :
O Pedagogo. S. ATANÁSIO (+373): Vida de S. An-
tão. S. CIRILO (+386): Catequese. S. BASÍLIO
(+379): Sobre o Espírito Santo. S. GREGÓRIO de
Nicéia e GREGÓRIO de Nazianzo. S. JOÃO CRI-
SÓSTOMO (+407): Homilias; Sobre o Sacerdócio.
DIONÍSIO AREOPAGITA (500): A Mística Teologia.
S. JOÃO CLÍMACO (+649): Escada do Paraíso. DIÁ-
DOCO (s. V): Perfeição Espiritual. S. MÁXIMO
(+662): Livro Ascético. S. JOÃO DAMASCENO
(+749): Paralelos Sacros.
-Ressalto aqui o Pseudo-Dionísio Areopagita,
que foi seguido, comentado por Máximo Confessor e
João Crisóstomo, e teve influência em toda Idade
Média com sua doutrina sobre a mística e os anjos.
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PATROLOGIA LATINA
S. CIPRIANO (+258): escreve Sobre as virgens;
O Pai-nosso; Os lapsos. S. AMBRÓSIO (+397): So-
bre os ministros; Sobre as virgens; Sobre as viúvas.
S. JERÔNIMO (+420): Cartas; Tradução da Bíblia.
STO. AGOSTINHO (+430): Confissões. CASSIANO
(+433): Os Cenobitas; Conferências. S. LEÃO (+461):
Sermões. S. GREGÓRIO (604): Livros Morais; Co-
mentário de Jó. S. ISIDORO de Sevilha (+636): Re-
gra dos Monges. S. BENTO (480-543) deixou sua
célebre “Regra” para seus monges. Com razão é
chamado “Pai dos Monges”, “Patriarca do Ocidente”.
Enfrentou “com a cruz e o arado”, os bárbaros, com o
lema: “Ora e trabalha”. “Nobre que se fez camponês,
fundou a nova Europa”.
IDADE MÉDIA
Séculos 8º-9º : S. BEDA, Venerável (+735): Ho-
milias. S. TEODORO Estudita (+826): Catequese.
JOÃO Aurelianense (+843): Manual para leigos. Ab-
don SMARAGDO (+843): Vida de S. Bento. S. PE-
DRO DAMIÃO (+1072): Cartas e Sermões. SIMEÃO,
o Teólogo: Sermões.
Escola Beneditina: Sistematiza elementos da es-
piritualidade dos séculos anteriores: Sto. ANSELMO:
(+1109): Meditações, Orações. S. BERNARDO
(+1153), da abadia de Cister: Sermões e vários escri-
tos espirituais. Pregador da Segunda Cruzada. Sta.
HILDEGARDA (+1179), Sta. GERTRUDES, Sta. MA-
TILDE, Sta. BRÍGIDA: Revelações. JOÃO DE CAS-
TEL, LUÍS BARBO (+1443).
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Escola de s. Vítor: Herdeira da espiritualidade de


Sto. Agostinho e de Dionísio Areopagita, com ten-
dências platônicas e alegóricas: HUGO DE S. VÍTOR:
(+1141): Hierarquias de Dionísio, Regra de Sto. A-
gostinho. Escreveu sobre os temas: mundo, caridade,
oração, amor dos esposos, meditação.
Escola Cartuxa: Começa no séc. XII, com dois
priores de nome Guido. Depois há vários escritores,
como DIONÍSIO, o Cartuxo (+1471), LANSPÉRGIO
(+1539). Essa escola insiste na vida solitária e con-
templativa.
Escola Dominicana: Conhecida pela boa base
doutrinal, oração litúrgica e contemplação. É a Ordem
dos Pregadores de S. DOMINGOS (+1221), que aco-
lheu S. ALBERTO (+1280): Comentário a Dionísio
Areopagita, Marial. Sto. TOMÁS DE AQUINO
(+1274): Summa Theologica, Comentários à Bíblia,
Dionísio Areopagita etc. MESTRE ECKART: (+1327),
JOÃO TAULER (+1361) e HENRIQUE SUSO
(+1366). Sta. CATARINA DE SENA (+1380): Diálogo.
S. VICENTE FERRER (+1419): Tratado da Vida Espi-
ritual. Sto. ANTONINO (1459): Regra da Vida Cristã.
JERÔNIMO Savonarola (+1498): Tratado da Humil-
dade. DOMENICO CAVALCA: Espelho da Cruz.
TORQUEMADA: Meditações, Questões Espirituais.
BEATA OSANA (+1505): Livro de sua Vida.
Escola Franciscana: Doutrina do amor, da pobre-
za, da abnegação. Ordem Mendicante. S. FRANCIS-
CO (+1226): Opúsculos. Sto. ANTÔNIO (+1231):
Sermões. S. BOAVENTURA (+1274): Itinerário da
Mente a Deus. Com suas obras teve muita influência
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na mística posterior. Beato RAIMUNDO LULLO


(+1315): Livro do Amigo. S. BERNARDINO (+1444):
Sermões; propaga a devoção ao Nome de Jesus. B.
ÂNGELA DE FOLIGNO (+1309): Livro das Visões.
Sta. CATARINA DE BOLONHA (+1463): Revelações,
As sete armas espirituais.
Escola Independente: Acolhe escritores místicos:
RUYSTROECK (+1381): Espelho de salvação e ou-
tras obras. GERARDO GROOT: (+1384), TOMÁS DE
KEMPIS: (+1379): Imitação de Cristo: o livro espiritual
mais lido no mundo. S. LOURENÇO Justiniano
(+1455), reformador: Os graus de perfeição e muitas
outras obras. W. HILTON (+1396), chefe da escola
inglesa: Escada da Perfeição. JOÃO GERSON
(+1429): Livro da vida espiritual e outras excelentes
obras. Sta. CATARINA DE GÊNOVA (+1510): Diálo-
go do Amor Divino.
IDADE MODERNA
Às escolas antigas ajuntam-se novas, que atuali-
zam a espiritualidade e codificam a mística. Adotam o
apostolado ante as novas heresias e novas terras
descobertas. Acolhem uma plêiade de escritores de
renome e muitos santos.
Escola Beneditina: LUÍS BLÓSIO (+1566): Institu-
ição da vida espiritual. GARCIA DE CISNEROS
(+1510): Exercícios da vida espiritual, livro que inspi-
rou Sto. Inácio. ARMANDO RANCÉ (+1700): funda-
dor dos trapistas: Santidade e deveres da vida mo-
nástica. CARDEAL BONA (+1674): O discernimento
dos espíritos. DOMINGOS SCHRAM (+1720): Institu-
ições da teologia mística. D. GUERANGER (+1875):
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reformador da Ordem e da Liturgia: Ano Litúrgico. D.


COLUMBA MARMION (+1923): abade de Mared-
sous, grande autor místico: Jesus Cristo, vida da al-
ma. D. CHAUTARD (+1936): Alma de todo apostola-
do. D. ANSELMO STOLZ (+1942): Teologia da Místi-
ca. D. GERMANO MORIN (1931): O ideal monástico.
Escola Dominicana: Ganhou prestígio com a volta
a Sto. Tomás. Sta. CATARINA de Ricci (+1590): Car-
tas. MELQUIOR CANO (+1560): Vitória de si mesmo.
LUÍS DE GRANADA (+1588): Guia dos pecadores e
outras obras com numerosas edições. BARTOLO-
MEU DOS MARTIRES (+1590), de Braga: Compên-
dio da doutrina espiritual. JOÃO DE STO. TOMÁS
(+1664), o melhor comentarista de Sto. Tomás de
Aquino, principalmente sobre os dons do Espírito
Santo. CONTENSON (+1674): Teologia da mente e
do coração. H. LACORDAIRE (+1861): Vida de S.
Domingos. A. GARDEIL: (+1931): A estrutura da al-
ma. J. ARINTERO (+1928): restaurou os estudos
místicos: Evolução mística; Questões místicas. H.
PETITOT (+1934): Introdução à santidade; Sta. Tere-
sinha. GARRIGOU LAGRANGE: grande autor espiri-
tual moderno: As três idades da vida interior; Perfei-
ção cristã e outras muitas obras. M. PHILIPON: Dou-
trina espiritual de Isabel da Trindade (1937).
Escola Franciscana: Deu muitos missionários pa-
ra as Américas, Oriente, e também muitos escritores
e santos. ALONSO de Madri (+1521): Arte de servir a
Deus. S. PEDRO DE ALCÂNTARA (+1562): Tratado
da oração. Fr. de OSUNA (+1540): Abecedário espiri-
tual, que usou Sta. Teresa. JOÃO DE LOS ANGELES
(+1609), dos maiores místicos franceses francisca-
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nos: Triunfos do amor de Deus. MARIA DE AGREDA


(+1665): Mística cidade de Deus. S. VERÔNICA JU-
LIANI (+1727): Diário. CARDEAL VIVES: Compêndio
de teologia ascético-místico. DENDERWINDEKE:
Compêndio de teologia ascética (1921).
Escola Agostiniana: Inspirada em Sto. Agostinho.
Sto. TOMÁS DE VILA NOVA: (+1555): Sermões. B.
ALONSO de Orozco (1591), místico: Vergel de ora-
ção. TOMÉ DE JESUS (+1582): Trabalhos de Jesus,
obra célebre. TOMÁS RODRIGUEZ e GRACIANO
MARTINEZ: comentam Sta. Teresa. CÉSAR VACA:
Guia das almas. A vida religiosa em Sto. Agostinho.
Escola Carmelita: Espiritualidade do “tudo de
Deus, nada da criatura”. Sta. TERESA (+1582): o
grande nome desta escola. Muitas obras: Caminho
da Perfeição, etc. S. JOÃO DA CRUZ, autor de exce-
lentes obras místicas: Subida do Monte Carmelo,
Chama do Amor, Cântico Espiritual. Vários outros au-
tores: João de Jesus Maria, José de Jesus, Maria da
Encarnação, Ana de S. Bartolomeu, Margarida Acari-
e, Tomás de Jesus, Nicolau de Jesus, Filipe da Ss.
Trindade, Antônio do Espírito Santo, Honorato de Sta.
Maria, José do Espírito Santo. Excelente a coleção
de Teologia de SALAMANCA. Duas grandes santas:
Sta. TERESINHA e ISABEL DA TRINDADE.
Escola Salesiana: inspirada em S. FRANCISCO
DE SALES (+1622), autor de obras de grande influ-
ência: Introdução da Vida Devota, Tratado do Amor
de Deus. Sta. JOANA DE CHANTAL (+1641), funda-
dora da Visitação. Sta. MARGARIDA MARIA ALA-
COQUE (+1690), confidente do Coração de Jesus:
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Autobiografia. S. JOÃO BOSCO (1888): Opúsculos.


J. TISSOT (+1894): A vida interior simplificada. H.
CHAUMONT (+1896): Direções espirituais. F. VIN-
CENT: S. Francisco de Sales.
Escola Francesa: Apresenta uma espiritualidade
muito rica, centrada no Verbo encarnado e na incor-
poração a Cristo. CARDEAL BERULLE (+1629), fun-
dador do Oratório: Discursos das grandezas de Je-
sus. C. CONDREN (+1641): A idéia do sacerdócio. F.
BOURGOING: Verdade de Jesus Cristo. S. VICENTE
DE PAULO (+1660), fundador dos Lazaristas e das
Filhas da Caridade. J. OLIER (+1657), fundador da
Companhia de S. Sulpício, grande mestre espiritual
francês: Catecismo da vida interior. L. BAIL (+1669):
Teologia afetiva de Sto. Tomás. S. JOÃO EUDES
(+1680), devoto dos Sagrados Corações: Vida e rei-
nado de Jesus. S. LUÍS G. DE MONTFORT (+1716):
Tratado da verdadeira devoção à V. Maria. S. JOÃO
B. DE LA SALLE (+17l9), das Escolas Cristãs. Escre-
veu: Explicação do método de oração. P. LIBER-
MANN: escritos sobre oração e vida interior. MONS.
GAY: Vida e virtudes cristãs. J. RIBET: Mística divina.
C. SAUVÉ: Elevações dogmáticas. A. TANQUEREY:
Compêndio de Ascética-Mística, do qual aqui usare-
mos muito.
Escola Inaciana: Originada dos Exercícios Espiri-
tuais, é uma escola de disciplina religiosa, prática,
missionária, ascética e metódica. Sto. INÁCIO
(+1556): Além dos “Exercícios”, deixou Diário, Consti-
tuições, Cartas. S. FRANCISCO XAVIER (+1552):
belíssimas cartas. S. FRANCISCO DE BORJA
(+1572): Meditações, Diário. ALONSO RODRIGUEZ
15

(+1616): Exercícios da Perfeição. Sto. AFONSO RO-


DRIGUEZ: de altíssima contemplação: Opúsculos
místicos. F. SUAREZ (+16l7): Virtude e estado religi-
oso. ALVARES DE PAZ (l620): A vida espiritual. S.
ROBERTO BELARMINO (+1621): Ascensão da men-
te a Deus. LUÍS DE LA PUENTE (+1624): Medita-
ções, Guia Espiritual. L. LALLEMANT: Doutrina espi-
ritual. E. NIEREMBERG : Apreço da divina graça. Jo-
ão SURIN : Fundamentos da vida espiritual. B.
CLÁUDIO DE LA COLOMBIERE (+1682): Diário dos
retiros. P. SEGNERI (1694): Concórdia. . . (contra
Molinos). J. B. SCARAMELLI (+1752): Diretórios. A.
POULAIN (+1918): Graças da oração. R. MAU-
MIGNY: considera a mística como algo extraordiná-
rio, anormal. L. GRANDMAISON: Escritos espirituais.
J. MARECHAL: Estudos sobre a psicologia mística. J.
DE GUIBERT (+1942): Teologia Espiritual Ascética e
Mística.
Autores Independentes: principalmente do clero
diocesano. S. JOÃO D´ÁVILA (+1569): Audi filia. Sta.
Teresa admirava-o muito. S. ANTÔNIO ZACARIAS
(+1539), fundador dos barnabitas: Cartas. S. FILIPE
NÉRI (1595): fundador do Oratório: Cartas. L. ESCU-
POLI (+1610): Combate Espiritual. B. JOÃO DA
CONCEIÇÃO: reformador dos Trinitários: Obras. S.
MIGUEL DOS SANTOS: Breve tratado. MARIA DA
ENCARNAÇÃO, ursulina: Cartas. B. BOSSUET
(+1704): Elevações; Meditações; Sermões. F. FENE-
LON : (+1715): Explicação das Máximas dos Santos.
P. LAMBERTINI, futuro Bento XIV: Beatificação e ca-
nonização. S. PAULO DA CRUZ (1775), fundador
dos passionistas: Cartas. Antônio ROSMINI (+1855):
16

Máximas de perfeição. S. JOSÉ CAFASSO (+1860):


Meditações; Instruções. F. G. FABER: Tudo por Je-
sus. S. JULIÃO EYMARD: O Ss. Sacramento. Sto.
ANTÔNIO CLARET, fundador dos claretianos: Esca-
da de Jacó; Avisos; Regras do Espírito. A. CHEVRI-
ER: O padre segundo o evangelho. F. DUPANLOUP:
Diário Íntimo. Cardeal NEUMANN: Sermões; Apolo-
gia; Meditações. Cardeal MANNING: O sacerdócio
eterno. J. SCHEEBEN: As maravilhas da graça. Car-
deal GIBBONS: O embaixador de Cristo. M.
d´HULST: Retiros sacerdotais. Sta. GEMA GALGANI,
leiga: Cartas e êxtases. C. de FOUCAULD: Escritos
espirituais. Cardeal MERCIER: A meus seminaristas.
E. LESEUR (+1914): Vida espiritual; Diário; Cartas. A.
SAUDREAU, bom autor: Os graus da vida espiritual.
M. GRABMANN: Mística Católica. J. MARITAIN:
Graus do saber; Vida de oração.1
Escola Ligoriana: Sto. AFONSO M. DE LIGÓRIO
(+1787), fundador dos redentoristas, moralista, mes-
tre espiritual de numerosas obras sobre N. Senhora,
o Santíssimo Sacramento, a oração, o amor de Deus,
a Paixão2. J. SARNELLI (+1744): O mundo santifica-
do. MARIA CELESTE CROSTAROSA, mística, fun-
dadora das Irmãs Redentoristas: Autobiografia. A.
DESURMONT (+1898): A caridade sacerdotal e ou-
tras obras. J. SCHRIJVERS (+1945): Os princípios da
vida espiritual. SAINT OMER: Escola da Perfeição

1
Ver A. TANQUEREY, Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Porto,
1932, Ed. Apostolado, p. XIII-XLVIII. ROYO MARIN, Teologia de la Perfectión
Cristiana, Madrid, 1962, BAC. p. 1 – 24.
2
Obras de Sto. Afonso em português: Veja Catálogo da Ed. Santuá-
rio,em http://www.redemptor.com.br/site/index.php?id_secao=26
17

Cristã. No Brasil, tiveram muita influência os livros de


meditação de T. CRISTINI, L. STIX, BRONCHAIN.
JOÃO BETTING, GERALDO PIRES e ISAC LORE-
NA: vários livros espirituais de divulgação.
18

I. PARTE
ASCESE E MÍSTICA

1. D E U S

Sendo que o tema de Deus e da Santíssima Trindade


é evidentemente tratado em toda a Teologia, em es-
pecial na Teologia Bíblica e Dogmática, trataremos
aqui apenas de alguns aspectos que interessam mais
à Teologia Espiritual. Será conveniente, no entanto
reler os tratados “De Deus Uno e Trino” acessíveis,
por exemplo, no bom Catecismo da Igreja Católica,
fruto do Concílio Vaticano II, e em bons manuais. A
espiritualidade supõe certo nível de conhecimento
dogmático, bíblico, conhecimento que os místicos
têm, mesmo sem muita instrução. É bom notar que
cada santo, místico tem preferência por um aspecto
de Deus.
A Santíssima Trindade, o Espírito Santo reapare-
cerão no tratado da mística. Aqui veremos brevemen-
te o aspecto da criação e inabitação, e outros atribu-
tos divinos, ligados principalmente à oração.
O CRIADOR
A chamada teologia da criação, a exemplo do
próprio Jesus, parte da criação do mundo e do ho-
mem e procura ressaltar este aspecto: “Deus viu que
tudo era bom”. Jesus retomou esta idéia: “No princí-
pio não era assim”, disse do casamento. É o mistério
19

do cosmos que até hoje assombra os homens, os sá-


bios, e principalmente os crentes em Deus. A con-
templação das criaturas de Deus sempre tem alimen-
tado a religiosidade e a contemplação, como se pode
ver em S. Francisco e S. João da Cruz (Sl 8; Rm
1,20s).
O tema da criação é noção básica para a fé de Is-
rael e nossa. É base do culto: os Salmos não cessam
de louvar a Deus, pelas maravilhas da criação. S.
Paulo diz que tudo foi criado por Cristo e em Cristo, e
que a obra redentora é uma nova criação. A liturgia
cristã, principalmente a missa, volta sempre a este
tema: “Bendito sejais, Senhor, Deus do Universo. . .”
A volta ao paraíso será sempre o ideal, como vemos
no Apocalipse.
Filosofia e Teologia escolásticas perguntavam-se:
o mundo terá fim ou é infinito? É eterno? Onde termi-
na o universo? Einstein era de opinião que o universo
era curvo, o que resolveria o problema. Os astrôno-
mos explicam a eternidade com a “explosão inicial”
repetida indefinidamente. Aliás, o número também
seria infinito? O que haverá lá onde termina o Univer-
so?3
Vejamos algumas afirmações e teses básicas da
Bíblia e da Teologia.
− Deus fez o homem como rei da criação (Gn
1,26). Jesus Cristo é o vértice da criação e, com Ele,

3
Veja “Leituras”, mais abaixo.
20

o homem criado é recriado: “Domine ... sobre todos


os animais” (Gn 1,26).
− O cristão reconhece a bondade de todo este
mundo criado. Um vínculo profundo une o Criador e
as criaturas. O homem deve reconhecer que Deus é
o Criador e Senhor: “Creio em Deus Pai, criador do
céu e da terra”. Ele enviou seu Filho único ao mundo,
para recriá-lo, resgatá-lo. O Apocalipse mostra os no-
vos céus e a nova terra: “Vi um novo céu e uma nova
terra” (Ap 21,1).
− Ante homens materialistas e ateus, devemos
proclamar a fé no criador, a exemplo do salmista:
“Prostremo-nos ante o Deus que nos criou!” (Sl 94). E
exclamar com Sto. Agostinho: “A beleza mesma do
universo é como um grande livro!” De S. Francisco
escreveu Celano: “Em qualquer objeto admirava o
Autor”.
− A glória de Deus reverte para a glória do ho-
mem, que ele fez à sua imagem. “Vós o fizestes pou-
co menor que os anjos. De honra e glória o coroas-
tes”. “É incurável o otimismo cristão”, observou al-
guém. Podemos responder que é melhor tal otimismo
que o pessimismo ante os males “incuráveis” dos
homens e do mundo.
A PROVIDÊNCIA
A palavra providência corresponde no hebraico à
palavra cuidado (Jó 10,12). O conceito aparece claro
nos acontecimentos bíblicos: Deus manifesta-se na
história, marcha à frente de seu povo, olha dos altos
céus. É causa de tudo, mesmo do mal (Am 3,6). Jó é
21

o protagonista do drama da Providência: que fez e


faz tudo terminar bem.
Deus não criou o mundo para deixá-lo como bola
chutada no meio do campo, comparou alguém. “De
tudo o que Deus criou, com sua Providência ele cuida
e tudo conserva” (Denzinger, 3003). “Caso contrário,
ensina o Catecismo Romano, as coisas recairiam no
nada”. “É a tua Providência, ó Pai, que dirige o leme”
(Sb 14,3).
O mal no mundo é a objeção antiga: Jó discutiu
isso com Deus. Não pretendemos aqui dar as respos-
tas usuais. Em espiritualidade, apontam-se os exem-
plos admiráveis de Jesus e dos santos. S. Francisco
que abençoava o fogo que o cauterizava. Como a-
quela pessoa em doença terminal: “Como Deus é
bom!” Os tratados, tanto de ascese, como de mística,
são férteis neste tema. Veremos oportunamente a
devoção da cruz, que é a resposta final ao eterno
problema do sofrimento: “Afastai de mim este cálice,
contudo não se faça a minha vontade”. Mc 14,36.
A confiança na Providência, em santos como S.
Caetano, aparece ligada à pobreza que os santos
praticaram em grau heróico, como S. Benedito Coto-
lengo. É difícil encontrar santos que não tenham feito,
da criação e da providência divina, tema de sua ora-
ção. Como S. Francisco com seu célebre Cântico do
Sol.
A GLÓRIA
Sto. Inácio era devoto da glória de Deus, e colo-
cou-a como dístico de seu escudo: “Para a maior gló-
22

ria de Deus”. Um tema muito bíblico. A glória enche o


tabernáculo, o templo, e brilha na criação (Sl 19). Je-
sus possuía esta glória e a passou a seus discípulos:
“Que eles estejam comigo, para que contemplem a
minha glória, glória que me destes. . . antes da cria-
ção do mundo” (Jo 17,5.22.24). Ele a manifestou no
Monte Tabor, nos milagres, na ressurreição. A Litur-
gia endossou essa devoção: “Glória a Deus nas altu-
ras!”

Cada espiritualidade escolhe, entre os atributos


divinos, aquele que mais a inspira. Evidentemente
todas têm base na grande devoção de Jesus: o Pai.
S. João destaca isso de modo incisivo. A “Oração
Sacerdotal” e, mais ainda, a sublime oração do Pai
Nosso são pontos altos desta devoção total.

LEITURAS
Sto. Agostinho: “O pôr-do-sol dourava a vastidão
das águas. Perguntei: Ó grande oceano, és tu meu
Deus? E o bramido das ondas responde: - Não sou;
suba mais alto. E as estrelas surgiram a brilhar no
firmamento Perguntei: Sois vós o meu Deus? - Não,
suba mais alto. E vós, bem-aventurados do céu?
Fascinado pergunto: Sois vós o meu Deus? - Não, vai
mais alto. Enfim, chegando ao trono da majestade, da
luz, da felicidade: SOU EU, disse.”
S. Francisco, Cântico do Sol : “Louvado sejas,
meu Senhor, com todas a tuas criaturas, especial-
mente o senhor irmão sol, que clareia o dia. Louvado
23

sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas que


no céu formaste, preciosas e belas. Louvado sejas
pelo irmão vento, pelo ar e nuvens. ”
Ângela De Foligno: “Vi uma coisa verdadeira,
cheia de majestade, imensa. Não sei dizer palavra,
mas, com certeza devia ser o Ser Supremo. Via a Ele
mesmo, a plenitude, o esplendor, como está no céu.
De tanta beleza não sei dizer palavra. Era a suma
Beleza que contém o sumo Bem.”
P. W. Faber: “Em Deus há profundezas de perfei-
ção para as quais os homens não têm palavras. E há
em Deus alturas de beleza e glória que ultrapassam
todo este universo. Perante esta plenitude a criatura
perde a fala”.
Isabel de Lisieux: “Sem nada ver com os olhos,
nem do corpo, nem da alma, eu sentia Deus presen-
te. Sentia seu olhar sobre mim, cheio de suavidade e
bondade. Sentia-me mergulhada em Deus.”
P. J. Betting: “O universo estelar é uma vastidão
sem fim. Indo pelo espaço à velocidade da luz che-
gamos à lua num segundo. Ultrapassamos o último
planeta em 5 horas. Chegamos à estrela mais próxi-
ma em 4 anos. Nossa galáxia acolhe 100 bilhões de
estrelas e mede 80 mil anos-luz. Voamos 2 milhões
de anos-luz até a galáxia mais próxima. Nosso grupo
contém 17 galáxias. O agrupamento de Hércules con-
tém l0.000 galáxias. Ao todo se calculam 10 bilhões
de galáxias, contendo cada uma bilhões de estrelas.
24

Ante tudo isso comenta o P. Brémond: “Sublime bal-


buciar!”4
Jutzi Schulter de Toes (+1292) antecedeu Copér-
nico e Galileu por 200 anos. Esta mística viu do alto a
terra ”pequena como a palma da mão”, ante o céu
estrelado. E cada estrela era grande como a terra.
Beata Alpais (+1211), antes dela, viu a terra sus-
pensa no ar, “redonda como um ovo, rodeada de á-
gua, sendo o sol muito maior”. Ambas precederam o
astronauta Gagárin por mais de 600 anos, comenta o
P. J. Betting, na obra supra, p. 36. Tais revelações
são discutidas na mística.

4
J. BETING: Teologia das Realidades Celestes, pg. 21.
25

2. O HOMEM
− Depois de considerar Deus, a espiritualidade
moderna olha logo o homem, destinatário da revela-
ção, objeto da redenção, do amor de Deus. Enfim, é
ele o rei da criação, mesmo com todas as limitações
e misérias. “Ó feliz culpa, que nos mereceu um tal
Salvador”, canta a Liturgia.
Evidentemente, conforme a linguagem antiga,
homem (homo) significa homem (vir) e mulher. Usa-
mos também aqui mais a antropologia tradicional. É
esta imprescindível para entender a espiritualidade
antiga. A espiritualidade atualizada sente dificuldade
com uma antropologia e psicologia eivadas de mate-
rialismo, que nega a alma e professa o evolucionis-
mo, determinismo. Uma aproximação bíblica também
cria dificuldades, pela idéia unitária do semita sobre o
homem, contrário ao dualismo grego tradicional. Com
efeito, na Bíblia, termos como carne, alma e espírito,
embora poucas vezes nomeados, têm um sentido
impreciso para nossa cultura greco-latina.
Também para entender os santos e autores da
bibliografia clássica do início, é preciso conhecer a
antropologia e psicologia da Patrística e da Escolásti-
ca, usadas na filosofia e teologia. Conceitos como
composição, potência, virtude do homem, bem como
aspectos negativos e limitações como: tentação, ví-
cio, pecado, unidade e divisões do homem, e a pró-
pria morte são conceitos estranhos a muitos. Até a
ressurreição fica difícil de explicar e, mais ainda o
que diz o Credo: “Desceu aos infernos”. Fica difícil
também achar um equilíbrio entre otimismo e pessi-
26

mismo, extremos não raros na filosofia e psicologia


modernas. O cristão deve estar atento a idéias pouco
cristãs, freqüentes nos meios de comunicação e na
literatura em geral. Com a falta do espírito, onde fica
a espiritualidade? Vejamos primeiro as principais a-
firmações ou teses tradicionais.
− A alma humana é uma substância espiritual, por
si independente da matéria; mas, unida ao corpo,
serve-se do corpo e dos seus órgãos. O “eu” da pes-
soa é união substancial de alma e corpo – matéria e
forma no jargão escolástico. Assim, a alma é forma
substancial do corpo, segundo o Concílio de Viena. O
homem tem o ser de homem, de animal, de vegetal,
de vivente. Por isso a alma dá ao homem um grau
essencial de perfeição. E mais, é ele como que uma
síntese do universo. Foi dito mesmo: “o homem é o
metro do mundo”. Está entre o universo imenso e o
vírus. Se pensamos bem, o homem é uma maravilha.
Venceu os fatores mais adversos à sua sobrevivên-
cia. Venceu com sua força e inteligência. Mesmo
considerando o evolucionismo, é para admirar como
o homem superou animais muito mais fortes. Mas os
biólogos advertem que ele poderá ser vencido pelos
insetos, micróbios e vírus. . .
Mas a alma não é imediatamente operativa: ne-
cessita de faculdades, da inteligência e da vontade,
necessárias para a vida humana. Estas emanam da
alma sem com ela se confundir. A inteligência tem
por objeto o verdadeiro; a vontade, o bem. Na al-
ma,inteligência e vontade, o homem assemelha-se
27

muito aos anjos e a Deus. Uma santa conta que, ao


ver uma alma, quis adorá-la, maravilhada.
− Radicados no corpo estão os cinco sentidos ex-
ternos: são eles os primeiros meios ou instrumentos
do conhecimento humano. O que eles sentem é obje-
tivamente verdadeiro: os apóstolos viram Jesus, não
um fantasma. Mas a psicologia moderna alerta-nos
para os possíveis erros dos sentidos, e dá exemplos.
As ilusões, pessoais ou coletivas, são um capítulo
importante da psicologia, da ascese-mística e da teo-
logia; é o caso, por exemplo, das visões.
− Também há sentidos internos, analisados na
psicologia: senso comum, memória, fantasia, estima-
tiva. Não é demais alertar para o seu bom uso, tanto
dos sentidos internos, como externos. Pode radicar-
se aí o mal de diversos gêneros, como veremos opor-
tunamente. É bom lembrar ainda que o sentir humano
se diferencia do sentir animal, pois o sentir humano é
informado pela alma racional. Não esquecer que os
antigos falavam de alma animal e de alma vegetal.
Como ato humano, o sentir humano, tanto externo
como interno, pode ser meritório ou pecaminoso.
Basta lembrar o papel da memória e da imaginação
na moral e na ascese.
− O intelecto humano prende-se ao universal, ao
verdadeiro, ao abstrato (que se abstrai do particular),
à essência (oposta ao acidente, ao acidental) que,
por exemplo, é aquilo pelo qual o homem é homem.
− A vontade prende-se ao bem e goza de uma
qualidade essencial: é livre. Isso, mesmo sendo uma
28

bela qualidade, traz ao homem enorme responsabili-


dade. A teologia moral e a teologia espiritual ocupam-
se muito disso.
− A união do corpo e da alma é traduzida em ter-
mos modernos na psicossomática. Esta teoria é im-
portante quando se trata dos distúrbios entre alma e
corpo, aos quais qualquer fiel e qualquer diretor de
almas deve estar atento.
− Há três dimensões na área do conhecimento e
da vontade, envolvendo sentidos e sentimentos, en-
volvendo os outros, a própria pessoa, o universo e
Deus.
A primeira idéia do homem veio de Deus: só a Ele
compete definir, explicar,interpretar sua obra. “E
Deus viu que tudo era bom”. Mas o homem errou.
Deus dotou o homem de dons gratuitos, naturais
e sobrenaturais, mas graça e pecado estão sempre
no seu caminho.
O homem, como criatura humana e filho de Deus,
tem um destino eterno. Sua alma é imortal. Seu ideal
é sempre o Paraíso, síntese suprema do bem, da fe-
licidade. O homem naturalmente crê em Deus. Jesus,
Deus e homem verdadeiro, é o novo Adão, protótipo
do homem.
Relembramos que o abandono destas noções
tradicionais dificulta muito a compreensão de doutri-
nas e fatos da revelação tais como encarnação, a
pessoa de Jesus, sua morte, “descida aos infernos”,
ressurreição, juízo particular e juízo final, nossa res-
29

surreição etc. A própria unidade do homem mal se


explica por funções meramente do cérebro. O que
constitui o “eu” da pessoa?
− Veremos adiante como a antropologia cristã é
fundamental para a cristologia, mariologia e hagiogra-
fia.5

LEITURAS
Gênesis: “Então o Senhor Deus formou o homem
do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vi-
da e o homem tornou-se ser vivo. Deus criou o ho-
mem à sua imagem, macho e fêmea os criou” (Gn 2,7
e 1, 27).
Jó: “Pereça o dia em que nasci. Porque não morri
ao deixar o ventre materno? (3,3). (Mas) sei que meu
Redentor vive e no último dia verei a Deus, meu Sal-
vador” (19,25).
Eclesiastes: “Vaidade das vaidades! Que proveito
tira o homem de todo o trabalho? (1,2-3). Por mais
anos que o homem viva, deve lembrar-se que os a-
nos sombrios serão muitos (11,8). Lembra-te do Cri-
ador, antes que cheguem os dias de achaque (12,1).
Teme a Deus, pois Ele julgará todas as coisas, mes-
mo ocultas” (12,13-14).
Tauler: “Ó alma, apressa-te a voltar para casa.
Esquece tudo que viste cá fora. Vais encontrar Deus

5
R. ZAVALLONI: Le struture umane della vita spirituale, Morcelliana, 1971.
30

lá dentro. Desocupa o lugar: Onde não estás, Deus aí


está!”
Luíza, filha de Luís XV da França, ao ser repre-
endida pela governanta, reclamou : - Não se esqueça
que sou filha do Rei de França! A governanta, retru-
cou: - E eu sou filha do Rei do Céu!. . .
S. Catarina de Gênova viu uma alma na graça
santificante e depois disse: “Se não soubesse que há
um só Deus, pensaria que era outro Deus !”
S. João da Cruz, mostrando a divinização da al-
ma: “Deus comunica à alma seu ser, de sorte que ela
parece ser Deus mesmo, possuir tudo o que Deus
possui. Poder-se-ia dizer que a alma mais parece ser
Deus do que alma” (Subida do Monte Carmelo).
Isabel da Trindade: “Deus nos criou à sua ima-
gem e semelhança. Tal foi o sonho do Criador: poder
contemplar-se em sua obra, ver aí brilhar todas as
próprias perfeições e beleza, como através de um
límpido cristal. Um louvor de glória é uma alma que
permanece em Deus.”
Conclusão: Observe acima o duro realismo da vi-
da, observe a esperança. Também o cristão otimista
e espiritual terá sempre que mediar entre o super-
homem de Schopenhauer e o homem psico-
analizado de Freud, entre o naturalismo de Pelágio e
o pessimismo de Lutero.6

6
Boa bibliografia sobre o homem: ALEJANDRO ROLDÁN: Ascética e Psico-
logia, Livro Ibero Americano, Rio, 1969. LÉON BONAVENTURE: Psicologia e Vida
Mística, Vozes, 1975.
31

3. JESUS CRISTO
Foi no final da Idade Média que os autores espiri-
tuais e os santos começaram a dar uma orientação
mais cristocêntrica à espiritualidade. Começam as
conhecidas devoções ao presépio, Paixão, SS. Sa-
cramento e, tempos depois, ao Coração de Jesus.
Além de indicar tais meios e outras devoções, deve-
se destacar o papel fundamental de Jesus na santifi-
cação dos fiéis. O princípio é a configuração com
Cristo. Seremos santos na medida em que vivemos a
vida de Cristo. São aduzidas três razões: Jesus é
causa meritória da vida espiritual. É também causa
exemplar. Exerce um influxo poderoso no Corpo Mís-
tico.
Os temas cristológicos que interessam à espiritu-
alidade, além de muitos outros que dizem respeito à
cristologia, são os sugeridos por J. Maritain:
A VIDA DE CRISTO
O primeiro passo é conhecer bem, pela leitura
freqüente, os evangelhos. Ler atentamente os outros
livros do Novo Testamento, principalmente as cartas
de S. Paulo, onde se pode descobrir as interpreta-
ções teológicas da Igreja Primitiva sobre os fatos
principais da vida de Jesus: em Belém, Nazaré, vida
pública, Jerusalém, Judéia, Galiléia, Samaria e final
de sua vida. Aí veremos seu peregrinar, sua missão.
Entre muitas interpretações, Paulo vai falar do
“sacramento escondido. Do mistério de Cristo... no
qual habita a plenitude da divindade”. Fala da “exce-
lência do conhecimento de Cristo Jesus”. Pedro e Jo-
32

ão vão demonstrar sua fé, seu amor. Sua alegre es-


perança aparece na sua escatologia e no apocalipse.
2. CAMINHO, VERDADE E VIDA
Esta foi uma das definições que Jesus deu de si
mesmo, além das figuras: luz, água, pão. “Ninguém
vai ao Pai senão por mim”, afirmou categoricamente.
Eis a base de toda espiritualidade.
Jesus é a causa meritória, pois mereceu-nos to-
das as graças, santificante e atuais, para a nossa
salvação e santificação.
Jesus é a causa satisfatória, como nos lembram o
batismo, penitência e o sacrifício eucarístico.
É causa exemplar pois é modelo vivo e perfeito,
tanto que S. Paulo vai ordenar: “Sede meus imitado-
res como eu sou de Cristo”. Seguindo este princípio
Tomás de Kempis vai escrever sua célebre “Imitação
de Cristo”. Os autores espirituais, aliás, demoram-se
em explicitar as virtudes praticadas por Jesus em
grau máximo: pobreza, obediência, paciência, fortale-
za, caridade, perdão, pureza, amor aos pobres e aos
pecadores, oração, veracidade. Todas elas têm e-
xemplos marcantes nos evangelhos.
S. Agostinho, em sua grande experiência, escre-
veu: “Mas se o amas, segue-o" (i.é Cristo).
“Eu o amo, dizes tu, mas por onde o seguirei? -
Queres conhecer o caminho? O próprio caminho veio
ao teu encontro!”
33

3. CABEÇA DO CORPO MISTICO


Jesus, o Rabi, queria ser seguido, não só de per-
to por apóstolos e discípulos, mas pelo povo, pela
multidão. Basta ler o sermão da montanha, as bem-
aventuranças. É, por vezes exigente: na caridade, no
perdão, no levar a cruz: “Quem quiser ser meu discí-
pulo, tome a sua cruz e siga-me”. “Este é o meu
mandamento”... A espiritualidade sempre esteve a-
tenta a isso. Os primeiros cristãos eram exigentes
nestes preceitos.
4. A VONTADE DO PAI
Jesus várias vezes mostrou-se determinado em
cumpri-la, tanto que ensinou-nos a rezar: “Seja feita a
vossa vontade...” E na Paixão: “Não se faça a minha
vontade mas a vossa”. Em muitos santos fica clara
esta fé decidida: fazer a vontade de Deus. Viam em
todos os acontecimentos da vida um sinal desta von-
tade, “beijando a mão que os feria”.
5. A IMITAÇÃO DE CRISTO
Desde o início, seguir e imitar Cristo tem sido a
tônica de todas as escolas de espiritualidade, a partir
do martírio e do deserto. A devoção do presépio, a
dedicação à vida apostólica, o amor à cruz, à Euca-
ristia. A virgindade, o celibato, a renúncia ao mundo
foram as tônicas da vida religiosa inicial. A obediência
levava a ver na vontade dos diretores espirituais e
dos superiores a vontade de Deus.
Os leigos talvez sintam dificuldades em imitar, no
mundo, tais exemplos de vida. Mas não faltam, nos
últimos séculos, exemplos de santos leigos: Frederico
34

Ozanam, Domingos Sávio, Contardo Ferrini, Gema


Galgani, Ana Taigi, os Videntes de Fátima, Elisabeth
Leseur, Edel Quin, sem citar os muitos mártires da
África, Ásia e até no Brasil. Mas os leigos também
são chamados à santidade, como acentua o Vaticano
II no Decreto sobre os Leigos, n. 4. Tudo isto mostra
que é possível esta “união com o Cristo de sua vida”.
CONCLUSÃO: Jesus é o caminho, verdade e vi-
da, também no que se refere à perfeição cristã: “Eu
sou a videira e vós, os ramos. Quem fica em mim
produz muitos frutos”. Jesus é a garantia: “Pai, aque-
les que me deste... estejam comigo, para que vejam
a minha glória”. Todos os que seguimos de perto o
Cordeiro estaremos na multidão dos eleitos.
35

4. O ESPÍRITO SANTO
Falar de espiritualidade é falar do Espírito Santo.
Nas primeiras páginas da bíblia “um vento impetuoso
soprava sobre as águas”.
Jesus logo afirma que “o Espírito sopra onde
quer”. Esta ação muito subtil e poderosa vai esten-
der-se na História, desde a Igreja primitiva até nossos
dias, com uma ação privilegiada nas almas místicas.
Remeto à dogmática e ao CIC quanto às doutri-
nas fundamentais.
Um motivo, talvez, da dificuldade do Espírito San-
to sejam as imagens muito subtis usadas: a pomba –
que lembra o Gênesis − e o vento tempestuoso, o
ruído, as línguas de fogo, fenômenos próprios das
teofanias. A renovação carismática trouxe de volta o
Espírito Santo, com seus carismas, seus dons de o-
ração, de línguas, de cura. As Igrejas Orientais têm
em grande conta o Espírito Santo. Vejamos alguns
pontos importantes, inclusive para a mística.
S. Paulo, citando Is 32,15 diz aos Coríntios que
todo cristão tem o Pneuma e seus dons (1Cor 12)
Cita os efeitos extraordinários dos quais dá exem-
plos. Toda a força da comunidade depende dele. Le-
va o fiel a clamar: Abbá, Pai! Dá testemunho que Je-
sus é Filho de Deus (Gl 4,6; Rm 8,14). Sua ação mo-
ve a missão. E ressalta: “O Senhor é o Espírito”. O
Senhor opera pela força do Pneuma. A unidade dos
membros é operada por Ele.
36

O Espírito Santo, tão importante na teologia ori-


ental, ficou em segundo plano na teologia ocidental.
O pentecostalismo, tanto evangélico como católico,
trouxe de volta não só a atenção ao Espírito Santo,
mas também aos seus dons e carismas: dom de ora-
ção, de cura, de línguas. Este movimento ensina a
oração no Espírito e a ler a Bíblia.
SUA FUNÇÃO
Além da célebre questão da processão, do Pai
pelo Filho ou do Pai e do Filho, discute-se a função
do Espírito Santo na economia da salvação. Pergun-
ta-se: a ação da Terceira Pessoa da Santíssima Trin-
dade, na Igreja e em cada pessoa, é exclusiva dele
ou é comum às Três Pessoas, e atribuída ao Espírito
Santo? Esta opinião é mais aceita na teologia ociden-
tal
A doutrina da inabitação do Espírito Santo é pací-
fica, pois escreve S. Paulo: “Não sabeis que sois
templos de Deus e que o Espírito Santo habita em
vós?” (1Cor 3,l6; 6,19).
Já a ação santificadora é explicada de duas ma-
neiras: o Espírito Santo atualiza a ação salvífica de
Cristo na Igreja e em cada cristão, mas Ele o faz por
uma ação própria, de causa eficiente, que produz um
efeito, ou pelo modo expresso com a imagem da ina-
bitação: o Espírito, que se comunica, é dado pelo Pai
e pelo Filho.
É surpreendente quantas vezes o AT refere-se
ao Espírito de Javé. É mais surpreendente ainda a
importância dada por Jesus e pelo NT ao Espírito
37

Santo revelando-o como Pessoa. Os textos bíblicos


falam mais claramente da divindade do Espírito Santo
do que de sua “personalidade”. É uma força ativa pe-
la qual o Pai e o Filho realizam o plano salvífico.
SUA AÇÃO
A teologia da graça e da justificação fala de um
dom não criado, que é a inabitação, e de um dom cri-
ado, nova realidade e qualidade permanente no ínti-
mo do homem, que é a graça santificante.
Mateus e Marcos sublinham mais o lado extraor-
dinário: o Espírito é força de Deus. Frisam o aspecto
neotestamentário: Jesus possui o Espírito. O Senhor
ressuscitado dá a força do Espírito, que aparece no
dom das línguas, nas profecias, no anúncio. S. Paulo
mostra o Espírito com base na vida cristã: determina
a sua existência.
O termo Pneuma tem sentido heterogêneo: é de
Deus, do Cristo, do Senhor, é Espírito Santo. Toda a
força da comunidade depende dele. Ele leva o fiel a
clamar Abbá, Pai! Dá testemunho que Jesus é Filho
de Deus (Gl 4,6; Rm 8,14). Sua ação move a missão.
Os frutos do Espírito são normais no cristão (Gl 5,22).
João fala do Espírito da verdade (Jo 14,17). Co-
mo Jesus, também o Espírito é enviado pelo Pai para
ensinar, testemunhar, dar vida (Jo 7,36). O Paráclito,
Advogado, Intercessor, é chamado de outro Paráclito
(Jo 14,16). Jesus, que era o Intercessor, envia outro
Consolador. João ainda alude ao Espírito quando cita
os “rios de água viva” que jorram de Cristo. Um teó-
logo comenta: “O que Jesus foi para os discípulos, o
38

Espírito é para a Igreja”. Outro acrescenta: “Jesus foi


para o céu e deixou Igreja e mundo para o seu divino
Espírito operar”.
O Espírito é identificado com o Amor: “Deus é
amor e o que vive no amor permanece em Deus e
Deus nele" (Jo 14,23). Deus habita dentro da alma
em graça. Esta é uma verdade que tem ocasionado
lindas páginas dos melhores escritores espirituais.
Pelos dons da sabedoria, ciência, inteligência faz ele
dos místicos verdadeiros sábios, mesmo sem estudo,
como aconteceu com S. Geraldo, Sta. Teresinha e
muitos outros santos.
OS DONS DO ESPÍRITO
Este tratado interessa sumamente à mística, que
trata especialmente dos dons. O Espírito Santo é
chamado Dom do Deus Altíssimo no hino “Veni, Cre-
ator”. Mas ele próprio dá seus sete dons, cumprindo a
profecia de Isaías cap 11: “Sairá um rebento do tron-
co de Jessé. Repousará sobre ele o Espírito do Se-
nhor, espírito de sabedoria e discernimento, espírito
de conselho e fortaleza, espírito de conhecimento e
temor do Senhor”.
Deve-se notar que, embora o texto seja messiâ-
nico, a Tradição estende-o aos fiéis em Cristo. Toda
a perfeição em Cristo encontra-se nos seus mem-
bros, se é algo comunicável. Os dons serão tratados
especialmente na mística.
AS BEM-AVENTURANÇAS
São mais perfeitas que os frutos: são o ponto
culminante do Sermão da Montanha. Foram elas cer-
39

tamente que inspiraram a vida religiosa, principal-


mente a monacal, pois, para quem se acha fraco nes-
te mundo, o melhor é afastar-se dele, fugindo se ne-
cessário da ocasião próxima do pecado, como manda
a Moral. A só leitura das oito bem-aventuranças insi-
nua isso e o grau de perfeição que elas exigem.
“Bem-aventurados os pacíficos. . . os puros de cora-
ção. . . os que choram. . . os pobres de espírito, os
misericordiosos, os mansos, os que têm fome e sede
de justiça, os perseguidos” (Mt 5, 3-10).
Sto. Tomás faz admirável exposição das bem-
aventuranças na sua Summa Theologica, I II, 69, 3-
4. Mostra como correspondem às virtudes teologais e
morais. E diz que a oitava bem-aventurança, a dos
perseguidos, é a mais perfeita, pois abarca as outras
no meio das maiores dificuldades.

OS FRUTOS
Os frutos distinguem-se dos dons, como os frutos
dos ramos. São estudados com relação às virtudes,
como veremos logo. Sto. Tomás (II-II, 8, 7) estuda
detalhadamente os frutos, relacionando-os com as
bem-aventuranças e dons. Assim, a fé e a alegria
correspondem ao entendimento e à segunda bem-
aventurança, à qual corresponde também o dom da
ciência. À terceira bem-aventurança correspondem o
dom do temor e os frutos da continência e castidade.
E assim Sto. Tomás vai tecendo um nexo muito razo-
ável das bem-aventuranças, dons e frutos, mostrando
também os vícios opostos.
40

Os doze frutos são: fé, alegria, continência, cas-


tidade, caridade, gozo espiritual, paz, bondade, be-
nignidade, mansidão, paciência e longanimidade. Os
teólogos mostram a diferença entre eles, indicando
os correspondentes em grego, ou latim. Nem sempre
as línguas atuais dão a acepção exata dos termos
originais.
O AMOR
“Deus é amor”, proclama Primeira Carta de João.
E o amor é justamente atribuído ao Espírito Santo.
Tudo o que se diz do amor diz-se também do Divino
Espírito, inclusive o Hino da Caridade de 1Cor 13:
“Aspirai aos dons mais altos. Ainda que eu fale a lín-
gua dos homens e dos anjos. . . se não tivesse a ca-
ridade eu nada seria. Agora permanecem fé, espe-
rança e caridade. A maior delas, porém, é a caridade”
Vendo, nos Documentos Autobiográficos, o belo tes-
temunho de Sta. Teresinha sobre este tema, vê-se
bem como, iluminada pelo Espírito Santo, descobriu o
caminho certo e ensinou-o aos doutores, tornando-se
ela mesma Doutora. “Eu serei o Amor”, proclamou
ela.
Terminando, a piedade tradicional faz muito em
ensinar-nos a rezar sempre: “Vinde, Espírito Santo,
enchei o coração dos vossos fiéis” ou: “A nós descei,
Divina Luz, em nossas almas acendei o amor de Je-
sus”. Uma simplicidade que muito nos ensina.
41

LEITURAS
Os Santos Padres, principalmente orientais, têm
constantes e excelentes testemunhos sobre a Santís-
sima Trindade e o Espírito Santo presentes em nós.
Sto. Inácio de Antioquia chama os cristãos de
theóphoroi, ou portadores de Deus. Sta. Luzia: “As
palavras não podem faltar àqueles que têm em si o
Espírito Santo”. S. Basílio: “O Espírito Santo, por sua
presença, torna-nos mais e mais espirituais e con-
formes à imagem do Filho Único.” Sto. Ambrósio diz
que o recebemos no batismo. Sto. Agostinho: “Não
só a graça, mas Deus nos deu o Santo Espírito e
seus sete dons. Sto. Epifânio: “O Espírito Santo, que
falou nos apóstolos e habita nos santos...”7
Sto. Tomás: “Os dons distinguem-se das virtudes:
estas realizam atos de um modo humano; os dons,
de modo sobrenatural. Assim, os dons são superiores
às virtudes: agem de modo mais alto. Os dons me-
dem-se por regra distinta daquela da virtude humana:
a divindade, participada pelo homem, para que não
opere humanamente, mas por Deus. O dom não é
mais perfeito em todas as condições, mas no modo
de operar” (III das Sentenças, d. 34, q. 1 e seguintes).
Leão XIII: “O justo, que vive da vida da graça e
opera pelas virtudes, tem absoluta necessidade dos
sete dons. Por eles o espírito do homem fica elevado
e apto para obedecer com mais facilidade e presteza
às inspirações e impulsos do Espírito Santo. São eles

7
GARRIGOU-LAGRANGE, Les trois âges . . . , cap. IV, pg. 129s.
42

de tal eficácia que conduzem ao mais alto grau de


santidade: permanecerão integralmente no céu” (Di-
vinum illud Munus, final)
Paulo VI: “À cristologia e à eclesiologia do Concí-
lio devem suceder um novo estudo e um novo culto
do Espírito Santo”. (Audiência de 6-6-1973)
Cardeal Suenens: “Creio chegada a hora para
nós, latinos, pormos em relevo o lugar e função do
Espírito Santo, porque os orientais sempre deram im-
portância a esta doutrina. ” (O Espírito Santo, nossa
Esperança, pg. 15)
43

5. A IGREJA
Este tema, muito rico, geralmente é remetido para
a Eclesiologia, parte da Teologia Dogmática. Aqui
entendemos por Igreja tanto a Igreja universal, como
a particular, local e mesmo as comunidades.
Na vida concreta, tanto cristã como espiritual, a
idéia de Igreja é a pedra de toque para a vida cristã e
espiritual. Assembléia, esposa, mãe, mestra, escola
de fé, amor e muita esperança, e fonte de todas as
virtudes, tem chamado a atenção do mundo. Talvez
bastasse ler a “Lumen Gentium”, a Constituição sobre
a Igreja, mas cito um exemplo: J. Maritain, que era
conhecido na Igreja, recolheu-se como leigo na hu-
milde comunidade dos Irmãozinhos de Jesus. São
dele as teses que seguem, sobre a Igreja.
1. Os membros da Igreja, nesta terra, são todos
pecadores, mas a Igreja é sem pecado.
2. A Igreja tem personalidade: é uma pessoa.
3. É infalível.
4. É a plenitude do Cristo: o pléroma.
5. É penitente e sofredora.
6. A Igreja está no tempo e na glória.
7. Pedro é a autoridade espiritual e temporal.
8. A Igreja tem uma estrutura.
9. Tem presença visível e invisível.
10. A pessoa da Igreja é indefectível; as pessoas,
não.
11. Ela tem uma História.
12. Deve-se distinguir entre Igreja e pessoas da
Igreja.
44

Dentro destas teses estão as experiências positi-


vas e negativas de cada um e da História. Quer quei-
ramos ou não, é dentro dela que temos nossa salva-
ção e santificação: “Fora da Igreja não há salvação!”
É a nova Arca no dilúvio deste mundo.
Talvez alguém se sinta rejeitado, mal amado na
Igreja: não se esqueça das rejeições clássicas, a co-
meçar com Jesus. Santa Joana d‘Arc foi condenada
pelo tribunal eclesiástico e pelo bispo. Galileu foi
condenado pelo Santo Ofício. S. Afonso foi excluído
da sua Congregação pelo Papa.
Que leigo ou clérigo não se sentiu excluído na
sua comunidade ? Quem não encontrou pessoas que
apontam erros na comunidade como causa do seu
afastamento ? A própria eucaristia, que é o ápice da
unidade, não é causa de separação ? Comunidade
de santos e pecadores! Problemas análogos se de-
ram com os Papas do último século.
A exemplo dos santos, a única atitude de quem
aspira à perfeição é demonstrar respeito e amor pe-
los que dirigem a Igreja. S. Paulo pede aos tessaloni-
censes “consideração pelos superiores e guias no
Senhor... amor especial por causa de seu trabalho” (1
Ts.5,l2s). A obediência é virtude do próprio Cristo.
Vimos o exemplo de S. Afonso acima. Sua resposta:
“Vontade do Papa, vontade de Deus!” É assim que
procediam os santos.
45

6. MARIA
MARIA, EXEMPLO DE PERFEIÇÃO.
A Mariologia trata dos aspectos teológicos bási-
cos de Maria, como os privilégios da Imaculada Con-
ceição e da Maternidade Divina, das virtudes, da in-
tercessão, do culto. Aqui trataremos apenas de dois
aspectos: Maria, como modelo de perfeição e culto
mariano. Isto é, veremos como Maria se reflete em
nossa vida e como podemos responder com nossa
devoção.
Maria, por assim dizer, está entre Jesus e os san-
tos, como exemplo de mulher simples de Nazaré,
mas mulher cheia de fé em Deus, e de confiança em
Jesus, seu filho. A Mariologia, em seus princípios, foi
tratada com especial atenção no célebre capítulo VIII
da Constituição Lumen Gentium e, assim, inserida no
conjunto da Igreja. O culto mariano foi objeto da exor-
tação de Paulo VI, Marialis Cultus, de 1974. 8
Em que sentido Maria é exemplo de santidade e
perfeição para nós? A pergunta é muito pertinente
pois, se olharmos Maria como Mãe de Deus, Imacu-
lada, Sempre Virgem, Perfeitíssima, Assunta aos
Céus, sua vida e exemplos podem parecer inacessí-
veis. A Lumen Gentium tratou indiretamente desta
questão quando fala da missão de Maria na econo-

8
É enorme a bibliografia mariana, nem sempre acessível em portu-
guês. Indicamos: SANTO AFONSO: Glórias de Maria Santíssima, Ed. Santuário.
RANIERO CANTALAMESSA: Maria, um espelho para a Igreja, Ed. Santuário,
1992. CARLOS IGNACIO GONZÁLES: Maria, evangelizada e evangelizadora, Ed.
Loyola, 1990. RENÉ LAURENTIN: A questão marial, Ed. Paulistas, Lisboa, 1966.
JOSÉ CEGALLA: Maria, exemplo do cristão, Ed. Santuário, 1976.
46

mia da redenção e na Igreja. Daí que certamente ela


realizou esta missão com excelentes exemplos de
sua vida de fé e virtudes, embora filha humilde do
Povo de Israel.
Mostra-se isso:
− Num sentido muito humano, como mulher sim-
ples e pobre, Maria é exemplo de virgem, esposa e
mãe e, podemos acrescentar, de viúva, depois da
morte de José.
− Não é difícil mostrar que foi exemplo de fé e
confiança, como na Anunciação, no Calvário, onde
mostrou também sua esperança e caridade, como na
Igreja nascente.
− As virtudes morais brilharam em sua vida: a
humildade, que ela demonstrou no “Magnificat”, sua
fortaleza. Foi mulher sábia, prudente e justa: “Porque
fizeste assim conosco?” Seu amor materno aparece
na cena em que procura Jesus, e na cruz.
− Como se isso não bastasse, podemos ressaltar
aqui gestos, palavras, atitudes suas, no sentido bíbli-
co e, especialmente, evangélico.
Maria é a cheia de graça, que nos ajuda a encon-
trar a graça. Como disse S. Bernardo: “Senhora, a-
chaste graça não só para ti, mas para todos nós”. Es-
ta graça ela foi logo levar a João Batista e Isabel.
Maria, com os anjos em Belém, dá glória a Deus:
ali está o Messias, o Salvador, o Príncipe da Paz que
Ela veio trazer aos homens “a quem Deus quer bem”.
É a oração de louvor sempre em seus lábios.
47

Proclamada “bendita entre as mulheres”, “sua al-


ma engrandece ao Senhor” que “olhou a humildade
de sua serva”, canta, repetindo o cântico da mãe de
Samuel, onde aparece a mensagem da libertação, do
goel libertador.
Aquela que acreditou, mesmo nas ocasiões mais
difíceis de sua vida: por isso é proclamada feliz. A
devoção mariana traz paz, felicidade a seus devotos.
“Conceberás e darás à luz um filho”: quis ela rea-
lizar-se apenas como virgem, um ideal único em Isra-
el: Deus a fez realizar-se também como esposa e
mãe. Nisso tudo é exemplo cabal “entre as mulhe-
res”. Seus filhos tornam-se também pais e mães espi-
rituais.
“Meu filho!”: belo título que Maria dirigiu a Jesus,
que lhe indicou logo a “vontade do Pai”. Assim se re-
vela a missão de Jesus e de Maria, mais importante
que a vida em Nazaré, onde vão mostrar obediência
e trabalho. De onde certamente irão “todos os anos”
em romaria a Jerusalém, como observantes da Lei. É
ali que, durante trinta anos, Maria nos ensina a mis-
são de esposa e mãe.
“Quem é minha mãe?”, pergunta Jesus. E logo
responde: “Aquele que ouve minha palavra e a põe
em prática”, o que vale perfeitamente a Maria. Não
dissera ela: “Faça-se em mim segundo a tua pala-
vra”?
“Junto à cruz”: foi o seu sacrifício máximo. A nova
Eva não podia estar longe da árvore da cruz e, em
vez de dialogar com a serpente, ouvir as filiais pala-
48

vras: “Eis aí tua mãe!” Da árvore da cruz colhe o


“bendito fruto” da salvação. Ela, primeiro que os dis-
cípulos, “toma a cruz” e segue Jesus na via-sacra.
“Mulher”: uma palavra rica em significado bíblico
na boca de Jesus. Adão é homem; Maria é mulher,
que colhe os frutos da vida e se torna mãe espiritual
de todos nós.
Mãe da esperança: o evangelho não conta, mas
certamente, como toda mãe que perdeu um filho vio-
lentamente, vigiou duas noites, esperando a ressur-
reição: “ao terceiro dia eu ressuscitarei”.
“Perseverante na oração”, com os apóstolos, com
a Igreja nascente. Recebe o Espírito Santo, segundo
a promessa: “O Espírito Santo descerá sobre ti e o
poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. Co-
bre-a agora com a luz das línguas de fogo. Cheia de
graça, ficará ela cheia do Espírito do Altíssimo.
Assunta ao céu. Embora não esteja definido que
Maria morreu, ou adormeceu, é certo que foi levada
ao céu, como um novo Elias. Como Jesus, ela nos
mostra o caminho.
CULTO MARIANO
Foi muito bem estabelecido pela Exortação “Culto
Mariano”. Logo no início, Paulo VI descreve o culto
oficial da Igreja, com suas numerosas festas, sinais
seguros da antigüidade e legitimidade deste culto. E
diz: “A devoção a Maria é elemento da genuína pie-
dade cristã”, segundo o princípio: “a lei de orar é a lei
de crer”. E repete, em parte, o que dissemos acima:
49

Maria é modelo de Igreja; a Virgem que sabe ouvir,


orante, operante, fecunda em vida espiritual.
A piedade mariana deve ter três notas; deve ser
trinitária, cristológica, eclesial. O culto deve ter cunho
bíblico, litúrgico e ecumênico. Eis aí os modelos.
Maria é exemplo de mulher: mulher de hoje e e-
terna, como virgem, esposa e mãe. Mulher de carida-
de, serviço, discipulado perfeito de Cristo.
Se é possível escolher entre tantas orações mari-
anas, apontam-se, como exemplos, o “Anjo do Se-
nhor” e o Rosário. Poderia também apontar a oração
tradicional, antiga de dezessete séculos, pelo menos:
“Debaixo de vossa proteção”, que prova a fé na inter-
cessão de Maria.
CONCLUSÃO
Todo o exposto acima indica claramente Maria
como caminho de salvação e santificação. “A piedade
para com a Mãe do Senhor torna-se, pois, para o fiel,
ocasião de crescimento na graça divina”. “Esta graça
(vinda de Maria) reveste o homem e torna-o conforme
à imagem do Filho de Deus”, “auxílio poderoso para a
conquista da própria plenitude” (n. 57). É evidente
que a mediação de Maria é subalterna à mediação do
único intercessor: Maria é caminho para Jesus. Com
razão escreveu Santo Afonso: “O devoto de Maria
não se perde nunca!” Poderíamos acrescentar: “O fiel
devoto sempre se santifica”.
50

7. OS SANTOS
QUE É SANTIDADE
Eis um tema que lembra Abraão: “Olha para o
céu e conta as estrelas se fores capaz!” (Gn 15,5).
Fácil para nós, católicos; difícil para um evangélico.
Aqui já lembro a delicadeza do tema ante a exigência
do ecumenismo. (Vat.II, UR, 5s)
Acho que os santos foram aqueles que acultura-
ram, em sua vida e em seu tempo o evangelho, e
praticaram perfeitamente o que aqui se expõe. Na
Bíblia é fácil achar o termo santo ou um correspon-
dente. Santo é aquilo que está afastado, separado do
impuro ou profano, reservado para o serviço de Deus.
Deus é Santíssimo por estar nos altos céus: “Santo,
Santo, Santo”. Jesus é santo porque é o Verbo En-
carnado. No Monte Tabor mostrou ele sua glória, ao
mesmo tempo que conversava com os santos Moisés
e Elias. Os três santos apóstolos, separados dos ou-
tros, entenderam a glória e a paixão só depois da
ressurreição.
Os cristãos freqüentemente são chamados san-
tos porque, pelo batismo, foram consagrados a Cristo
(Rm 1,7; 1Cor1,2).
O Vaticano II diz que “Cristo, com o Pai e o Espí-
rito Santo, é o único santo” e que “todos são chama-
dos à santidade”. Os teólogos explicam, distinguindo
a santidade ontológica, que é de todos fiéis, e a san-
tidade moral, que é a dos Santos, principalmente os
reconhecidos pela Igreja.
51

A santidade é uma, mas diferencia-se segundo a


vocação e a situação de cada um: há santos de todos
os tempos, idades, ofícios, continentes. Os santos
reconhecidos, não se sabe por que, costumam flo-
rescer mais entre os religiosos e em certos países.
Hoje procuram-se muito santos nos países do Tercei-
ro Mundo, entre os leigos, casados e operários. Nem
todos são apóstolos, profetas, mártires.
Podem-se ver três dimensões ou linhas na santi-
dade:
Linha do seguimento que lembra a espiritualidade
dos tempos apostólicos: “o caminho”.
Linha da parusia ou escatológica, dos discípulos
que esperavam a volta de Cristo: “Estai prepara-
dos...”. O que faziam nas vigílias, olhando para o Ori-
ente, donde surgiria o Sol da Justiça.
Linha eclesial: de Igreja, comunidade, caridade.
CULTO DOS SANTOS
Uma questão estudada e questionada é a do cul-
to aos santos. São clássicos os três modos de cultu-
ar: veneração, invocação e imitação. A hagiografia,
desde os apóstolos, está repleta de exemplos: “Sede
meus imitadores como eu sou de Cristo”. Nem sem-
pre o povo humilde segue as normas do culto e, no
modo popular de dizer, “adoram os santos”. Mesmo
os bons religiosos devem precaver-se contra certa
forma de infantilismo e até superstição.
O Vaticano II, depois de tratar da vocação univer-
sal à santidade (LG, 39s), lembra os princípios: Bí-
52

blia, confissão e vida em Cristo. Penso ser dispensá-


vel aqui lembrar que Jesus é o nosso único mediador
(1Tm 2,5; Hb 8,6; 9,14s.). Nem se fale na justa medi-
da que se deve ter no culto das relíquias e das ima-
gens.
O culto de imitação também oferece seus percal-
ços: é uma das objeções dos que propugnam uma
espiritualidade moderna, atualizada. Nem tudo po-
demos imitar nos santos: Sto. Antão no deserto, S.
Luís, rei de França, os mártires... Seja como for, a
Igreja manda buscar nos santos “o exemplo de suas
vidas, o consórcio na comunhão e o auxílio na inter-
cessão” (LG. 51)
O capítulo das devoções é grande na religiosida-
de popular, como sabemos. Há críticos que ironizam:
a religião católica resolveu a tentação primordial do
politeísmo com a corte de Jesus, com Maria, anjos e
santos.
Uma devoção imemorial é a leitura da vida dos
santos. As Atas dos Mártires atestam isso. Sto. Ata-
násio escreveu a vida de Sto. Antão. Sto. Agostinho
escreveu sua autobiografia, uma análise psicológica
do caminho da fé. Dele ficou a célebre frase: “Se es-
tes e estas puderam, porque não tu?” Certamente no
céu um belo encontro será com aqueles que nos aju-
daram na conversão e na fé. A Carta aos Hebreus
cita a fé exemplar dos Patriarcas (Hb 11). Junto com
o Cordeiro cento e quarenta e quatro mil que traziam
na fronte o nome do Cordeiro e seu Pai: “Seguem o
Cordeiro para onde quer que vá”: são imaculados (Ap
14,1.4s.).
53

8. HOMEM DIANTE DE DEUS


Depois de tratar de princípios tão elevados, vol-
tamos ao chão da terra. Veremos agora o homem, ao
contrário dos santos, muito frágil, lento no caminho
de Jesus. Vimos as qualidades de sua alma; obser-
vamos agora seus defeitos, empecilhos, vícios. A Te-
ologia Moral tem tratados sobre tudo isso, terminando
no tratado sobre o pecado. Supõe-se aqui que, os
que aspiram à perfeição, tenham meio caminho an-
dado e tenham já meios de vencer com certa facilida-
de os obstáculos graves. Como muitos de nós ainda
estamos na via purgativa, aqui vão algumas conside-
rações.
Primeiro é bom lembrar-se que a graça não des-
trói a natureza e que, mesmo regenerados pela gra-
ça, continuam os instintos primordiais de conserva-
ção própria e conservação da espécie, que não po-
dem ser completamente anulados.
Partimos da afirmação: “Tudo o que há no mun-
do: concupiscência da carne, dos olhos e orgulho da
vida, não vem do Pai, mas procede do mundo” (1Jo
2,16). E adianto que os três votos religiosos procuram
obviar a estes obstáculos.
CONCUPISCÊNCIA DA CARNE
Trata-se do prazer que não é mau em si mas que,
com o mau uso, afasta de Deus e leva ao pecado.
Pode ser o prazer sensual da comida ou bebida, uso
dos outros sentidos, pode ser o prazer sexual. Não
esquecer que os sentidos protegem nossa seguran-
ça, por exemplo, o ouvido ou os olhos.
54

− Já vimos como entramos no contato com o


mundo pelo sentidos externos: não se cansam eles
de ver, ouvir, tatear. Quanto aos internos, então, a
memória, a fantasia e outros aguçam nossa sensibili-
dade, emotividade e afetividade, que a melhor ascese
não pode ignorar. É velha história: “Cresceu a malda-
de dos homens e os projetos do seu coração tendem
para o mal” (Gn 6,5). Daí a célebre seqüência: pen-
samentos, desejos, ações, aos quais se pode acres-
centar as omissões, os sentimentos.
− Os livros de ascese, antigos e modernos, estão
cheios de conselhos sábios nesta delicada matéria,
hoje com a ajuda da psicologia e até da sociologia.
Os métodos não são infalíveis, e histórias recentes
mostram surpresas entre bons elementos da Igreja
ou da comunidade que se extraviaram. A ampla liber-
dade hoje protege mal. A força de persuasão do
mundo, a mudança do sentido do pecado, a espiritua-
lidade muito aberta, os problemas até de fé: tudo leva
à defecção. “Quem está de pé veja que não caia”.
Todos podemos contar muitos casos a respeito. “Eras
tu, meu companheiro, com quem conversava no tem-
plo de Deus!”
CONCUPISCÊNCIA DOS OLHOS
Trata-se da curiosidade doentia e do amor desor-
denado dos bens terrenos. Não se refere à sã curio-
sidade, à qual é atribuída a origem da filosofia, das
ciências. “Os olhos não se cansam de ver, nem o ou-
vido não se farta de ouvir” (Ecl 1,8). Tal problema se
estende hoje a todos os meios de comunicação: to-
dos temos experiência disso. O Decreto Inter Mirifica
55

do Vaticano II, n. 3, manda “pregar com o recurso


também dos instrumentos de comunicação social”, o
que se subentende sua produção e uso. Sem eles
ficaria muito difícil a vida social hoje. Onde achar o
meio termo? O tratado da consciência, na Moral, e a
ascese vão dar os meios. A conversão contínua de-
verá corrigir os muitos desvios, dos quais nem um
anacoreta está livre.
− O amor desordenado do dinheiro é outro capítu-
lo difícil na vida moderna, que gira em torno ao di-
nheiro, sem o qual não se vive hoje na civilização ur-
bana. O capitalismo domina de tal maneira que é im-
possível ignorá-lo. Ficam longe os tempos em que o
monge era expulso por ter guardado uma mísera mo-
eda. O esforço de desapego, no entanto, sempre se
impõe. Ainda vale o mandamento do Senhor: “Dá
conta da tua administração!” (Lc 16, 2). E mais: “Tive
fome e não me deste de comer!” A fome das riquezas
leva à dureza do coração, à usura, à ganância, ao
vício capital da avareza, impedindo o repartir os bens.
Na Segunda Parte veremos o problema da riqueza e
da pobreza social, um problema moderno quase inso-
lúvel. A brecha entre ricos o pobres se alarga cada
ano mais.
SOBERBA DA VIDA
Orgulho, o primeiro vício capital. “O orgulho é a
depravação mais profunda”, sentencia Bossuet. A
magnificência raia no desprezo: pessoas sensatas
abominam os soberbos. Jesus insiste na humildade.
Mas o inimigo é insidioso, neste mundo que admira o
poder e a fama. Esta, é claro, não pode chegar ao
56

extremo de destruir a auto-estima, mas daí autovalo-


rizar-se raia na mentira. É o pecado dos anjos maus:
“Não servirei”, e de Adão: “Sereis como deuses”.
“Deus resiste aos soberbos”, diz Tiago 4,6.
Todos os Mestres da espiritualidade tocam neste
tema básico na moral e vida espiritual. Antigos Mes-
tres estão atentos na área do orgulho, e têm mesmo
palavras candentes. Aliás Jesus foi duro quanto ao
orgulho farisaico. Os remédios são: Dar sempre a
Deus toda glória. Atribuir-lhe as próprias qualidades:
“Que tens que não recebeste?” (1Cor 4,7). A obedi-
ência do religioso é antídoto certo. “Se queres cons-
truir alto, rebaixa bem os fundamentos”, aconselhava
S. Bernardo.
OS INIMIGOS EXTERNOS
Como se não bastasse a concupiscência radica-
da no interior do homem, sobram-lhe inimigos exter-
nos: a própria pessoa, o mundo, o demônio. Esta é a
tríade clássica da antiga ascese.
− Do homem de certa forma já tratamos acima.
Mas vale sublinhar o dito de Jesus, citando Miquéias
7,6: “Os inimigos do homem serão seus próprios fa-
miliares” (Mt. 10,36). Os inimigos estão dentro de ca-
sa, dentro do próprio eu, no fato de ser homem. A
história de Adão mostra isso. Aqui volta toda a histó-
ria da salvação, desde Adão, a história de todas as
fraquezas do homem e da humanidade. “Não chega-
mos ao pessimismo de Lutero que afirmava a total
corrupção do homem”, escreve A. Tanquerey. O ho-
mem pode fazer algum bem, com o concurso natural
57

de Deus, mas é preciso o auxílio preternatural para


observar toda a lei e repelir todas as tentações gra-
ves. Veremos esta teoria na secção da graça e dos
méritos.
− O mundo é outra realidade contraditória. Obra
maravilhosa de Deus, pode ser uma via para chegar
ao seu conhecimento. Mas já Isaías 13,11s. distin-
guia o mundo sujeito à corrupção. S. João tem sua
posição marcante sobre o mundo e deixa para o ou-
tro mundo a solução (Jo 13,1; 1Jo 5,19 e Apocalipse;
1Jo 5,19).
O leigo, hoje imerso neste mundo onde se mistu-
ram coisas boas e más, como deve proceder? Fugir
do mundo no estilo monástico e anacorético? Lem-
brar-se que Sto. Antão deixou o deserto para ir con-
firmar os irmãos na fé, em Alexandria. João, cAp 17,
põe na boca de Jesus a fórmula: Estão no mundo
mas não são do mundo. Voltaremos a este tema ao
tratar da espiritualidade moderna.
A clausura dos antigos mosteiros e conventos ti-
nha muito que ver com as duas primeiras tentações.
A nova espiritualidade tem reformulado estes aspec-
tos.
− O demônio passa a ser a personificação das
forças do mal. Hoje meio esquecido, volta ele de ou-
tras formas, inclusive em religiões e seitas que lhe
dão muita atenção. “Rezo ao diabo: ele é poderoso e
ajuda muito”, disse alguém num terreiro. A religião dá
meios suficientes para anular o demônio: é só saber
usá-los.
58

Alguém disse: “O demônio é um leão: na jaula; é


só não facilitar com ele”. Combine-se isto com o que
diz Pedro: “Eis que o vosso adversário, o diabo, vos
rodeia como um leão” (1Pd 5,8). O que mostra bem
as manhas e a violência deste inimigo ancestral. Os
meios para afugentá-lo não mudaram desde os tem-
pos primitivos da Patrística, embora um tanto suavi-
zados hoje. Já Sto. Antão o enfrentava diariamente
no deserto que é o seu habitat bíblico. Disse alguém
que maior manha do demônio é fazer que se esque-
çam dele.
Lembro que o povo não abandona o medo antigo
do espírito das trevas: o exorcismo ainda faz parte do
arsenal dos cristãos. A bênção das casas, da água
benta ainda lembra isso. Sta. Teresa, com toda sua
sabedoria, não se dedignava de recomendar a água
benta.
O PECADO
Eis outro tema que parece mais próprio da Teolo-
gia Moral, mas que interessa muito à área da ascéti-
ca e mística. Supõe-se que os que entraram na vida
ascética e na via purgativa já tenham abominado todo
o pecado mortal e pecado venial deliberado; mas
nem o progresso espiritual os livra de provações e
mesmo tentações, principalmente na noite dos senti-
dos e na noite do espírito. A fuga das menores faltas
depende de um combate sem tréguas, como alertam
os Mestres espirituais. Os entendidos alertam para o
perigo do escrúpulo, que exige um diretor espiritual
capacitado.
59

LEITURAS
Sta. Teresa fala do pecado venial deliberado: “É
como se alguém dissesse: Senhor, apesar de esta
ação vos desagradar, não deixarei de a fazer. Não
ignoro que vós a vedes, sei que vós não a quereis,
mas eu prefiro a minha fantasia e a minha inclinação.
E seria coisa de nada proceder desta sorte? Quanto
a mim, por mais leve que seja a falta em si mesma,
acho, pelo contrário, que é grave e muito grave”.9
Sta. Catarina de Gênova: “Se a alma descobrisse
outro purgatório mais terrível, nele se precipitaria, im-
pelida pela impetuosidade do amor entre Deus e ela,
a fim de se livrar rapidamente de tudo o que a separa
do Sumo Bem”.10
Pe. Lallemant: “A ruína das almas vem da multi-
plicação dos pecados veniais, que causam a diminui-
ção das luzes e inspirações divinas, das graças e
consolações interiores, do fervor e coragem para re-
sistir aos ataques do inimigo. Donde se segue a ce-
gueira, a fraqueza, as quedas freqüentes, o hábito, a
insensibilidade, porque, contraída a enfermidade, pe-
ca-se sem sentimento do próprio pecado”.11

9
Caminho da Perfeição, cap. 41.
10
Purgatório cap. 9.
11
A Doutrina Espiritual, 3º. princípio, cap. II.
60

9. A GRAÇA

Depois de ver a realidade do homem diante de


Deus, principalmente no aspecto negativo, veremos
como enfrentar tantos e tão fortes obstáculos.
Embora, nos métodos dedutivos, se coloque a
graça entre os primeiros princípios, decorrente que
ela é através de Cristo, aqui a graça faz um nexo en-
tre o homem frágil e pecador e os meios de recupe-
ração.
Não se trata aqui de toda a questão da graça,
que tem sido discutida através dos séculos, desde
Sto. Agostinho; para nós que cremos na graça divina,
tocaremos nos temas: obstáculos, pecado, conver-
são, sacramentos.
Graça é termo que traduz aproximadamente a pa-
lavra hebraica hesed ou misericórdia, traduzida no
grego pelos Setenta por cháris, em latim gratia: signi-
fica vários gestos de Deus ou dos reis demonstrando:
olhar, ternura, coração, generosidade, gratuidade. Na
área social é favor que alguém faz ou recebe, pas-
sando por cima das conveniências até das leis. Na
área religiosa é o homem que atrai o olhar bondoso
de Deus, o que ele consegue pela oração, sacrifícios,
penitência, purificação.
Neste sentido pode-se dizer que é um dom so-
brenatural, que Deus concede à criatura racional, por
Jesus Cristo e segundo o modelo de Cristo, como um
presente de amor e para a participação na vida trini-
tária de Deus. Vê-se como essência do estado de
61

graça a participação do homem, em estado de graça,


no Reino de Deus instaurado em Jesus Cristo.12
Para os tomistas, a graça é chamada princípio
formal da vida sobrenatural, participação acidental da
natureza de Deus. “Qualidade sobrenatural inerente à
nossa alma, que nos dá uma participação física e
formal da natureza mesma de Deus." Cita-se o texto
clássico de S. Paulo: “Somos filhos de Deus e, sendo
filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus e
co-herdeiros de Cristo” (Rm 8,16).
De fato, é no NT que se revela a graça no senti-
do estrito. São muitas as expressões que mostram a
graça de Jesus. O termo cháris aparece em Lucas,
Atos, João e principalmente em Paulo (110 vezes!).
Pedro e Apocalipse usam, mas poucas vezes, este
termo. Pode significar benevolência, favor, magnani-
midade, riqueza de dons, contato sobrenatural, ilumi-
nação, reação do que a recebe. Graça aproxima-se
de carisma, dom que o Espírito opera.
DIVISÕES DA GRAÇA
Há várias, indicando riqueza e os modos da gra-
ça: graça criada e incriada (esta é o próprio Deus).
Graça interna e externa. Graça elevante e graça me-
dicinal. Graça justificante e graça de ofício (“grátis
data”). A divisão mais usada e útil é graça habitual
(ou santificante) e atual.

12
M. SCHMAUS: Teologia Dogmática, V, pg. 21.
62

Tal diversidade de graças apenas mostra seu


mistério, sua riqueza, as relações Deus-povo-homem
desde o paraíso terrestre até o paraíso celeste.
GRAÇA SANTIFICANTE
O NT, de começo ao fim, aponta sinais da bene-
volência de Deus. “Ave, cheia de graça!” é o primeiro
sinal de esperança. João Batista e Jesus depois con-
vocam: “Convertei-vos: o reino de Deus está perto!”;
“Convertei-vos e crede no evangelho!” Este é o con-
ceito capital da fé cristã, em vista da participação no
reino de Deus.
Algo acaba no homem e algo novo começa. Essa
existência nova é o estado de graça. Este novo tem-
po foi anuncia por Jeremias. Jesus mesmo é o ho-
mem novo, o novo Adão. É o “vinho novo” proposto
nas Bodas de Caná, símbolo do novo casamento-
aliança. “Eis que faço novas todas as coisas (Ap
21,5). O Santos Padres gostavam desta novidade.
A novidade é a renovação da vida: pelo fato de o
homem participar na vida em Cristo glorificado, Deus
é a sua vida mesma. Essa vida revelou-se em Cristo,
e o fiel pode captá-la (1Jo 1,2). Mas a vida de Cristo
não esteve separada da humanidade, pois ele é a
cabeça de tudo (At 3,15). Essa vida tem vários ele-
mentos:
− Elemento objetivo que implica a libertação do
pecado ou a justificação.
63

− Elemento pessoal que é a união com Cristo e fi-


liação divina. A participação no Reino de Deus acon-
tece na comunidade com Cristo.
O apóstolo que mais explicitou idéias concatena-
das e organizou comunidades que eram cenáculos
da graça, foi S. Paulo. Vejamos algumas conseqüên-
cias :
− “O Espírito Santo habita em vós”. Ele se une ao
homem justificado de modo semelhante ao modo
como o Logos (Verbo) se uniu à natureza humana.
− Amizade de Deus: “Os justos são amigos de
Deus” (Concílio de Trento). A amizade é amor recí-
proco entre duas pessoas. Erige-se sobre a unidade,
diz Sto. Tomás. E S. Francisco de Sales afirma que é
encontro de duas pessoas que se confiam no amor.
Outros mencionam a abertura do eu ao tu. Ou falam
do risco que isso representa, e do que acontece entre
Deus e o homem. Jesus mesmo arriscou-se por nós.
“Amigo, a que viste?”, disse ele a Judas. Também o
homem − o apóstolo − arrisca-se na amizade com
Deus que promete e é fiel: “Deus é fiel”.
− Filho de Deus: como define Trento, “O homem
nasce filho do primeiro Adão; pela justificação e esta-
do de graça nasce do segundo Adão”. A idéia de filia-
ção é importante tanto nos mitos como na revelação.
− Herdeiro do céu: como também define o Concí-
lio de Trento. S. Paulo diz que, ao converter-se, o
homem faz-se co-herdeiro de Cristo, irmão de Cristo,
filho de Deus, pois Cristo, ao ressuscitar, fez-se her-
deiro de todos os bens de Deus.
64

A graça até aperfeiçoa a natureza humana, pois a


graça não faz violência, nem se intromete na nature-
za. Só no milagre Deus suspende as leis naturais.
A GRAÇA ATUAL
− Graça atual criada é uma ajuda sobrenatural e
transitória concedida por Deus para uma ação sobre-
natural.13 Aqui, de novo, se vê a riqueza desta graça,
nas suas várias intervenções.
− Graça operante e graça cooperante. Graça ex-
citante e adjuvante. Graça antecedente, concomitante
e subseqüente. Graça suficiente e eficaz.
Deus move o homem com a graça atual, de modo
que é agente no conhecimento, vontade e amor. Mui-
tos lugares da Bíblia atestam esta atuação. A própria
Liturgia louva a Deus pela iluminação, conhecimento,
bom pensamento,abertura à verdade, consolo, reve-
lação, inspiração, gozo, alegria, bom desejo
− A graça atual atua elevando e curando. É medi-
cina para a concupiscência, para a fraqueza. Ela, e-
videntemente, é necessária, pois a humanidade de-
caída não pode salvar-se por si mesma. Diz Trento
que, para todo ato salutar, é necessária a atuação
interior e divina da graça. “Sem mim nada podeis fa-
zer”, disse Jesus (Jo 15,5).
− Ato salutar é a ação que está ordenada para a
salvação. Para a realização de tal ato não só é ne-
cessária a graça atual, mas nenhum esforço, oração

13
M. SCHMAUS: ibid. p. 253.
65

ou sacrifício é capaz de alcançar a salvação, se Deus


não a concede. A prova está nos Evangelhos e Car-
tas do NT. Tal doutrina é também a dos Santos Pa-
dres.
− Embora seja um mistério, a graça está tão liga-
da à vida do cristão que tem inspirado belas páginas
da espiritualidade, como veremos. Não esquecer que
toda a mística está envolvida nesta questão. Sendo
interessante uma questão: afinal, a vida mística é
graça oferecida a todos ou é graça especial e extra-
ordinária?
LEITURAS
Jesus mesmo explicou a graça santificante, com-
parando-a com a videira e seus ramos: a circulação
da seiva. S. Paulo usou a comparação do enxerto
(Rm 11).
Sta. Catarina de Sena viu um grupo com bela
veste nupcial. – Quem são estes?, perguntou. – Eles
são um outro Eu, respondeu Jesus.14
Sta. Teresa: Comparou a alma ao bicho da seda.
“Come dia e noite sem parar, depois se encasula.
Passado um tempo, surge a borboleta a adejar de flor
em flor, alimentando-se com o néctar. Para nós o ca-
sulo é Cristo: a nossa vida está escondida em Deus.
Sai uma mariposa: que diferença!”
Santos Padres: Empregam três comparações
preferidas: Retrato: a nossa alma fica como uma i-

14
J. BETTING, o. c. p. 37s.
66

magem viva da Trindade. Ferro em brasa: O ferro,


metido na fornalha ardente, adquire o brilho, o calor e
maleabilidade do fogo. Enxerto divino na árvore sil-
vestre da natureza, segundo a comparação de S.
Paulo. A união de Deus com a alma seria como a u-
nião da alma com o corpo. Outros comparam essa
união da graça com a união hipostática em Cristo,
apesar das diferenças.
Sto. Agostinho: “Congratulemo-nos, pois torna-
mo-nos não somente cristãos e sim Cristo. Entendes-
tes, irmãos? A graça de Deus sobre nós, a graça da
cabeça. Tornamo-nos Cristo, pois Ele é a cabeça e
nós os membros. Homem todo: Ele e nós”.
67

10. SACRAMENTOS

Trataremos agora dos Sacramentos, nos aspec-


tos importantes para a Teologia Espiritual. Para situar
este tratado, lembro que ele, principalmente devido à
Reforma, está ligado à questão da justificação e do
mérito das boas obras: o homem pode merecer algo?
e como? Um resumo da doutrina de Sto. Tomás en-
contra-se no final deste capítulo (Leituras).
Entre os meios para conseguir a graça estão, em
primeiro lugar, os sacramentos. Toda a nossa vida
cristã, por exemplo, decorre do batismo: “É preciso
nascer de novo”, disse Jesus (Jo 3,7). Esquecendo
as diferenças com os irmãos separados, nossos sa-
cramentos são sete. Nossa teologia afirma :
− Os sacramentos contêm a graça que significam,
e conferem-na a todos que não lhe opõem obstáculo.
E mais: não dependem só das disposições pessoais,
mas agem por força própria (“ex opere operato”).
− Na linguagem escolástica, Deus é a causa prin-
cipal do efeito dos sacramentos; Cristo é a causa me-
ritória; o sacramento é a causa instrumental.
− Cada sacramento produz, além da graça habi-
tual e atual, a graça sacramental própria; por exem-
plo, a graça de estado, como veremos.
68

Uma teoria mais completa encontra-se em livros


acessíveis, ou Novo Catecismo da Igreja Católica.15
A GRAÇA SACRAMENTAL
É a graça própria de cada sacramento.
− O batismo dá a graça da regeneração: o nascer
de novo, purificando a fonte de todo o pecado, que é
o pecado original. Dá a graça primeira que nos torna
santos.
− A confirmação, ou crisma, dá força para pro-
fessar generosamente a fé. É o sacramento do cres-
cimento espiritual, o sacramento do Espírito Santo.
− A penitência ou confissão lava nossos pecados
e faltas. É o remédio necessário e eficaz contra pe-
cados, tentações e vícios.
− A eucaristia é entendida como sacrifício e co-
munhão, e dá-nos o próprio Cristo. A devoção ao
Santíssimo Sacramento é notória entre os santos e
os místicos.
− A unção dos enfermos perdoa pecados, confor-
ta na doença e até cura, seguindo a recomendação
de S. Tiago.
− A ordem dá os três graus do sacerdócio: diaco-
nado, presbiterado e episcopado, e a graça de exer-
cê-los dignamente.

15
Veja, por ex., M. M. PHILIPON: Os Sacramentos na Vida Cristã, Ed. A-
gir, 1959.
69

− O matrimônio constitui o casal, é importante na


formação das famílias e comunidades.
− Com tanta riqueza de graça, a pergunta é: co-
mo usufruir plenamente dos sacramentos? Por que
não ficamos santos recebendo-os até diariamente?
Essa pergunta introduz a questão das disposições
exigidas pelos sacramentos.
DISPOSIÇÕES
Destas tratam todos os manuais de moral e de
espiritualidade. Os frutos dos sacramentos dependem
de Deus e de nós. Vale o princípio das boas obras:
você deve fazer tudo, como se tudo dependesse de
você e, depois, deixar para Deus, como se tudo de-
pendesse de Deus.
Os sacramentos exigem disposições mínimas pa-
ra a sua validade, mas exigem disposições máximas
para terem maior fruto de santificação. Os mestre ex-
plicam que, para maior mérito, para aumentar o méri-
to e a santidade, é preciso ter uma disposição interior
maior que a habitual. (Veja Leituras).
REMÉDIOS
Lembrar primeiro que Deus é livre em dar suas
graças. A pessoa deve afastar todos os obstáculos à
graça, como o pecado venial deliberado e a tibieza, e
chegar ao estado que chamamos de fervor.
-Este fervor dilata a alma, conforme o Sl 118: “Di-
lataste meu coração”. Há um meio que nos é ensina-
do por Salomão a pedir sabedoria (1Rs 8). Todos os
outros atos piedosos podem aumentar o mérito,
70

quando feitos no amor e na caridade. Sta. Teresinha


deixou-nos bela doutrina sobre isso.
CONFISSÃO
− Purifica-nos do pecado, se feita com contrição e
bom propósito. Quem se confessa freqüentemente,
deve cuidar sempre da melhor disposição, principal-
mente quanto aos pecados habituais. Supõe-se, ali-
ás, que a pessoa piedosa já tenha superado o pro-
blema do pecado mortal.
− A confissão é ótimo meio de cumprir o mandato
do Senhor e de João Batista: “Convertei-vos, o Reino
de Deus está perto!”; “Convertei-vos e crede no e-
vangelho”.
− É ótimo remédio contra o orgulho, além de ser
belo testemunho de humildade e conversão.
− A confissão particular e o aconselhamento são
de muita importância , também como direção espiri-
tual. O exame de consciência diário, no melhor estilo
antigo, ajuda muito a emenda.
− Há pessoas espirituais que se impõem uma pe-
nitência quando fraquejam.
− S. Geraldo, como já dissemos, confessava-se
todos os dias. Nós comungamos todos os dias. Por
que essa diferença entre nós e os santos?
71

EUCARISTIA
É o sacramento e a devoção por excelência dos
santos, místicos. Seria exceção rara encontrar no úl-
timo milênio um santo, principalmente místico, que
não tivesse devoção eucarística.
− Sto. Afonso escreveu suas célebres Visitas ao
Santíssimo Sacramento: um liturgista criticou-as co-
mo um empecilho para a reforma litúrgica. Também
os santos e místicos têm suas razões e seus limites.
− Tanto a preparação para a comunhão como a
ação de graças têm caído em desuso: é bom lembrar
o que se disse do “maior fervor” exigido nos sacra-
mentos.
− Interessante ver como uma santa teve tanta in-
fluência na devoção eucarística: a festa de Corpus
Christi foi criada por inspiração da Beata Juliana, no
século 13; para essa festa Sto. Tomás de Aquino
compôs belíssimos hinos.
MATRIMÔNIO
É hoje um sacramento muito valorizado. O Concí-
lio Vaticano II dedicou-lhe um capítulo na Gaudium et
spes (n. 47ss.). Também a nova visão e dinamização
do apostolado leigo tem levado os leigos e suas as-
sociações a olhar mais a espiritualidade do sacra-
mento, que é “princípio e fundamento da sociedade”
(A.A. 11). Na segunda parte, ao se tratar da espiritua-
lidade moderna, voltará o tema do apostolado leigo e
do matrimônio.
72

LEITURAS
Sto. Tomás (+1274) e sua doutrina sobre o méri-
to:
− Mérito é o valor de uma obra que se faz digna
de recompensa.
− O homem não pode, só com suas forças natu-
rais, fazer obras meritórias para a vida eterna. O mé-
rito supõe a graça.
− O justo pode merecer, por suas obras, o au-
mento da graça e dos dons e virtudes, que levam à
vida eterna e aumento de glória.
− Não importa a classe de obra que se faz, mas o
motivo e modo. A obra mínima, feita com grande a-
mor, para agradar a Deus, é mais meritória que gran-
de empresa com menor caridade ou mesclada de
motivos imperfeitos.
− Para aumento efetivo da caridade é necessário
um ato mais intenso que o habitual.
− Ninguém pode merecer a primeira graça e a
graça da perseverança, mas pode merecer para os
outros.
− A dificuldade de uma obra boa não aumenta o
mérito a não ser indiretamente.
− É ilusão o cristão, que peca gravemente, pen-
sar que, com a penitência, vai recuperar todos os mé-
ritos, ou no mesmo grau.
73

− Os méritos, mortificados pelo pecado mortal,


revivem ao recuperar-se a graça, mas não no mesmo
grau anterior.
Sto. Tomás: “O Pão Angélico fez-se pão dos ho-
mens, o pão do céu põe término às figuras. Oh! ma-
ravilha: a carne do Senhor é dada ao pobre e humil-
de”. “Tão sublime Sacramento, adoremos neste altar,
e o antigo Testamento dê ao novo o seu lugar. Venha
a fé por suplemento os sentidos completar”. (Hinos
Panis Angelicus e Tantum, ergo)
“Deus eterno, eis que me aproximo do Sacramen-
to de vosso Filho: como um doente do médico. Corro
à fonte. Cego venho à luz. Pobre, ao Senhor do céu e
da terra. De vossa imensa liberalidade imploro cura
para minhas enfermidades, pureza para minhas man-
chas, luz para minhas trevas, riqueza para minha mi-
séria, vestes para a minha nudez. Concedei-me a
graça de receber o corpo de vosso Filho com tal fer-
vor que possa ficar-lhe intimamente unido e ser con-
tado entre os membros de seu Corpo Místico”.
S. Gertrudes (+1301) sentia-se, certa vez, mal
preparada para a comunhão. Jesus aparece-lhe, la-
va-lhe as mãos em sinal de purificação. Em seguida
tira todos os seus próprios ornatos e enfeita com eles
a santa, significando com isso que lhe passava seus
próprios méritos. (S. Gertrudes, Revelações)
74

11. AS V I R T U D E S
Eis aí um tratado muito valorizado nos manuais
tradicionais de teologia moral e espiritual, mas hoje
meio esquecido: abandono da ética do tipo grego.
Mas, para se entender a espiritualidade tradicional,
este tratado é imprescindível. Basta conferir a biblio-
grafia do início. Difícil é abarcar aqui as cinqüenta
virtudes assinaladas por Sto. Tomás. Veremos aqui
apenas alguns tópicos.
Parece-me que a pedagogia antiga se baseava
na aquisição das virtudes através da repetição dos
atos. Os psicólogos modernos andam meio descren-
tes disto. Dê-se espaço para as inclinações naturais,
dizem. Toda pressão prejudica.
Para lembrar a história, foi a cultura grega que
começou a sistematizar a teoria da dínamis. Com Pi-
tágoras, Platão, Aristóteles aparecem as virtudes
cardeais, teoria que os Santos Padres aceitaram, A-
gostinho e Tomás de Aquino comentaram. Este últi-
mo relacionou as virtudes com as bem-aventuranças
e os dons. Nos séculos 18-19 tentou-se substituir a
antiga teoria ética pela teoria do homem do dever, de
Kant, do homem novo de Marx e muitas outras teori-
as. Veremos este assunto na Segunda Parte; aqui
ficamos com a ética tradicional.
Pela virtude o homem é inclinado a fazer o bem:
“o bem deve ser feito”; é o imperativo da consciência.
É um hábito que nos leva a fazer com facilidade o
que é bom. Aperfeiçoa o ato: é o que chamavam de
potência (dínamis). É algo próprio da criatura racio-
75

nal, tanto que nem Deus nem os animais têm potên-


cia ou virtude.
AS VIRTUDES NATURAIS
São virtudes que podem ser adquiridas pelo es-
forço e exercício. Seu princípio é a vontade guiada
pela razão: “Isto é bom: logo devo fazê-lo”. A razão
visa um fim natural. Bons filósofos pagãos tiveram
boa teoria e prática de virtudes.
VIRTUDES TEOLOGAIS
São claramente atestadas pelas Escrituras: fé,
esperança e caridade: “O amor de Deus derramou-se
em nossos corações pela virtude do Espírito Santo
que nos foi dado” (Rm 5,5). “Sem fé é impossível a-
gradar a Deus” (Hb. 11,6). “Agora permanecem estas
três coisas: fé esperança e caridade” (1Cor 13,13)
As virtudes teologais são princípios operativos
com os quais nos ordenamos direta e imediatamente
a Deus como fim último sobrenatural. A fé radica-se
no entendimento; a esperança e a caridade, na von-
tade.
VIRTUDES CARDIAIS
São virtudes morais especiais que têm matérias
próprias. A prudência regula a inteligência; a justiça,
a vontade; a fortaleza, o apetite irascível; a tempe-
rança, o apetite concupiscível. Sto. Tomás, engenho-
samente, coordena todas as virtudes morais segundo
o esquema das virtudes cardeais. Veja-se na Summa
Theologica, II-II, 47-141. Algumas virtudes têm no-
76

mes hoje incompreensíveis para nós. O santo trata


também dos vícios opostos.
− Prudência e suas derivadas:
a) Partes integrais: memória, entendimento, doci-
lidade, sagacidade, razão, providência, circunspec-
ção, precaução.
b) Partes subjetivas : Prudência monástica, rei-
nante, política, econômica, militar. c) Partes potenci-
ais: eubulia, sínesis, gnome.
Vícios opostos: precipitação, inconsideração, in-
constância, prudência da carne, dolo,fraude, solicitu-
de excessiva.
− Justiça:
a) fazer o bem, fazer o mal.
b) justiça legal, justiça distributiva, comutativa.
c) religião, piedade, dulia, obediência, gratidão,
justo castigo, fidelidade, simplicidade,afabilidade, li-
beralidade, equidade ou epiquéia.
Vícios opostos: homicídio, mutilação, flagelação,
cárcere, furto, juízo (tribunal), contumélia, difamação,
murmuração, irrisão, maldição, fraude, usura.
Contra a religião: superstição, idolatria, adivinha-
ção, vã observância, perjúrio, sacrilégio, simonia, im-
piedade, amor excessivo. Desobediência, ingratidão,
crueldade, mentira, hipocrisia, jactância, ironia, adu-
lação, litígio, avareza, prodigalidade, farisaísmo lega-
lista.
77

− Fortaleza:
Martírio, magnanimidade, magnificência, paciên-
cia, longanimidade, perseverança, constância.
Vícios opostos: Timidez, impassibilidade, audá-
cia, presunção, vanglória, pusilanimidade, avareza,
desperdício, insensibilidade, impaciência, inconstân-
cia, pertinácia.
− Temperança:
a) vergonha, honestidade
b) abstinência, sobriedade, castidade, virgindade
c) continência, mansidão, clemência, humildade,
estudiosidade, modéstia corporal, eutrapelia, modés-
tia no ornamento.
Vícios opostos: Insensibilidade, intemperança,
gula, embriaguez, luxúria, incontinência, ira, cruelda-
de, soberba, curiosidade, negligência, afetação, rusti-
cidade, alegria néscia, austeridade excessiva, luxo,
desalinho.
Esse é o cortejo que acompanha sempre a graça
santificante. Com essas virtudes todas as energias do
homem ficam elevadas. Tal cortejo majestoso de cin-
qüenta virtudes não deixa de preocupar: será alguém
capaz de observá-las todas? Note-se que o cortejo
sombrio dos vícios também é preocupante, mas não
deixa de oferecer um amplo material para um bom
exame de consciência e para a nossa humildade.
Note-se, porém, que não há motivo para desâ-
nimo. 1) As virtudes são comunicantes entre si. 2)
78

Uma vez hierarquizadas nas quatro virtudes cardeais,


ficam elas mais inteligíveis e razoáveis. Quem é justo
de verdade pratica a justiça em todos os aspectos. 3)
Sempre há o perdão e “a caridade cobre a multidão
dos pecados”. 4) Não há dúvida que, num mundo
pouco amigo das virtudes, que exalta os vícios, torna-
se mais difícil ser virtuoso. Era o que os cristãos dos
primeiros séculos deviam sentir. 5) A fé deve ser mui-
to forte para tudo superar. 6) Aí está a esperança que
não decepciona. Bem superiores são as virtudes teo-
logais.
Enfim, resta-nos olhar os exemplos de Jesus, de
Maria e dos santos. Não à toa muitos destes se en-
clausuraram na vida religiosa, em mosteiros. A seguir
veremos outros meios adequados para alcançar a
perfeição.
79

12. MEIOS GERAIS


Vimos, até agora, alguns meios considerados es-
senciais para a perfeição; veremos a seguir outros
não menos importantes. Na verdade tudo são meios,
instrumentos. Alguns meios são os antigos, tradicio-
nais; outros são mais recentes. Alguns são internos,
outros são externos. Aqueles procedem do interior da
alma, são mais psicológicos; estes, do meio em que
vivemos, das condições externas. Alguns afetam a
inteligência; outros, a vontade.
Resumimos aqui o que os tratados explicam mais
detalhadamente. As devoções da Igreja e do povo
serão tratadas à parte. A ordem, que seguimos, é
mais prática que lógica.
DESEJO DE PERFEIÇÃO
Sto. Tomás, perguntado o que se tinha de fazer
para chegar à perfeição, respondeu: “Querer!”. Natu-
ralmente, na escola tomista, para querer a vontade
deverá ser movida pela inteligência. Mas há, como
atestam muitos exemplos, outros meios psicológicos.
Não esquecer que inteligência e vontade vão alter-
nando-se nos atos. Mais tarde o desejo de perfeição
terá de ser iluminado, e muito bem, pela reflexão.
O irmão do menino Bernardo, deixando a família,
disse-lhe mostrando o castelo: “Olhe, tudo isso é seu:
eu vou para o mosteiro”. E Bernardo retrucou: “Isso
não vale: você me deixa um castelo e leva o céu!”.
Mais tarde também Bernardo partiu para Claraval,
para fundar a Ordem Cisterciense.
80

Como se lê na vida dos santos, na fase da con-


versão, Deus usa dos mais variados meios para os
chamar à vida cristã e perfeita. Muitas vezes se cai
do cavalo: desilusões, perdas, sofrimentos, doenças,
mortes etc. O desejo é uma ação combinada da von-
tade com a graça. “Tu não me procurarias, se já não
tivesses encontrado”, sugere Pascal. Sto. Agostinho
descreveu magistral e psicologicamente o processo
de conversão: “Toma e lê!”
Tal passo, do velho homem para a vida nova, é
um caminho árduo, que exige muita reflexão e deci-
são: “Se estes puderam, porque não tu, Agostinho?”
O primeiro passo é logo seguido dos meios necessá-
rios para a total conversão. Mesmo os que vão entrar
na vida consagrada, vida matrimonial ou qualquer
vocação, sabem disto.
Os Mestres especificam, dentro do desejo de
perfeição, três meios para excitar o desejo da perfei-
ção : a) pedir a Deus este desejo; b) renová-lo fre-
qüentemente: até a vida toda; c) meditar os motivos
para querer a perfeição. Um desses motivos: todos
são chamados à vida mais perfeita. Veremos logo
como as leituras e conferências podem afervorar este
desejo.
EXERCÍCIO DA PRESENÇA DE DEUS
É um exercício clássico desde Abraão: “Anda na
minha presença e sê perfeito” (Gn 17,1). Nos antigos
mosteiros e conventos, lia-se freqüentemente a ins-
crição: “Deus te vê”. Este exercício, bem praticado,
muito ajuda a manter a alma no espírito de oração,
levando-a à contemplação.
81

Um exemplo: um monge achegou-se ao pequeno


Tomás de Aquino, que se ficava silencioso, meditati-
vo num canto e perguntou: -“Como vai?” -“Quem é
Deus?”, respondeu o futuro Doutor Angélico. Ele já
exercitava a presença de Deus.
Na verdade, estamos sempre na presença de
Deus. Existe a presença de imensidade. Outra é a
presença de inabitação. Outras ainda são as presen-
ças: sacramental, hipostática e de manifestação. Vê-
se que temos muitos modos e meios de exercitar-
nos. Tal exercício necessariamente nos leva a procu-
rar evitar a menor falta, como agiam os santos, le-
vando sempre à maior perfeição e à modéstia. Au-
menta ainda o vigor na luta e na ascese.
Consegue-se tal presença de Deus pelo recolhi-
mento, representando-nos que Deus nos olha. Meio
simples é contemplar demoradamente imagens de
Cristo, belas pinturas ou mesmo um pôr do sol, o
mar, a natureza enfim.
CONFORMIDADE COM A VONTADE DE DEUS
Conformidade é a submissão total à vontade de
Deus, tanto a que assinala o que devemos fazer, co-
mo a que se manifesta nos acontecimentos. Exemplo
do primeiro caso temos nos mandamentos, preceitos
e deveres de estado; exemplo do segundo são os
fatos, alegres ou tristes que marcam nosso caminho.
Em tudo que acontece, dizemos com os santos:
“Bendita seja a vontade de Deus”.
Sto. Afonso compôs belo cântico sobre a vontade
de Deus, Ao escutar um mendigo tocar essa melodia
82

na pobre flauta, S. Geraldo entrou em êxtase. Os


santos faziam atos até heróicos, quando atingidos
pela mão de Deus. Como aquele padre, pouco antes
de morrer: “Como Deus é bom!”.
Os Mestres espirituais aconselham-nos a fazer
atos de conformidade nas pequenas contrariedades,
para que o façamos com decisão nos grandes sofri-
mentos, até na morte.
EXAME DE CONSCIÊNCIA
A ascética dá muita importância ao exame de
consciência. Era uma forma de autocontrole espiritu-
al. Sto. Inácio, nos Exercícios Espirituais, ensinava
um método que vale até hoje. Distinguia exame geral
e exame particular, sugerindo pontos a serem exami-
nados, e também os melhores horários: de manhã,
ao meio dia e à noite. Tal método foi adotado por reli-
giosos e leigos.
A finalidade destes exames é formar uma consci-
ência delicada. E prevenir futuros erros, pois muitos
erram porque não pensam, não medem as conse-
qüências. Evidentemente o exame de consciência é
importante para a Penitência e Confissão. Infelizmen-
te nós nos conscientizamos pouco do mal de certas
atitudes e de certas omissões. Muitas belas vocações
perderam-se por falta de um bom exame: “Correste
bem mas fora do caminho!” Davi teve a sorte de en-
contrar um profeta que o alertou: “Tu és este ho-
mem!”. Regredindo mais ainda, Deus mesmo fez e-
xame em Adão: “Porque fizeste isto?”
83

Autores há que colocam a retificação do caráter


como um meio de santificação. As falhas de gênio e
de caráter prejudicam muito a vida familiar e comuni-
tária. Um bom auto-policiamento em tudo o que se
diz, fala ou sente ajudaria muito a melhoria psicológi-
ca.
DIREÇÃO ESPIRITUAL
A direção espiritual, método hoje meio esquecido,
ajuda muito tanto no exame de consciência como no
desejo de perfeição. Quem, neste mundo desarvora-
do, não precisa de um bom conselho, de um ombro
amigo para desabafar? Os profetas davam a direção
certa aos reis e ao povo. Davi encontrou Natan. Acab
teve Elias e Eliseu. Herodes encontrou João Batista.
Pilatos encontrou Jesus. Tantos encontraram seu
“profeta”. Graças a Deus ainda há profetas neste
mundo!
É fácil encontrar na Bíblia preceitos a este respei-
to: “Segue o conselho dos prudentes” (Tb 4, 18). “Se
um cai, outro o levanta: ai do que está só. Não faças
nada sem conselho” (Ecl 4,10; 32,23). “Somos em-
baixadores de Cristo” (2Cor 5,20).
Sobre este tema escreveram Cassiano, S. João
Clímaco, S. Bernardo, S. Francisco de Sales e todos
os tratadistas. Estes lembram que os diretores nos
ajudam a fazer um bom planejamento espiritual, e
aconselham sobre a vocação.
Antigamente havia diretores como que oficiais.
Hoje o sistema é mais informal. O mundo aconselha-
nos mal: temos de encontrar pessoas sábias e pru-
84

dentes que nos ajudem a fazer discernimentos, que


podem ser até vitais para nós. Muitas vezes o acon-
selhamento é pedido na confissão auricular, o que
nem sempre é fácil. Os confessores hoje sabem co-
mo fazem falta os bons conselheiros.
Alguns acham melhor consultar o Espírito Santo.
É ótimo, mas lembre-se de Saulo que Jesus mandou
consultar Ananias, e de Cornélio que foi enviado a
Pedro.
Um aspecto peculiar da direção espiritual é a di-
reção por cartas. Graças a esta tradição bi-milenar –
basta pensar nas cartas do NT − pode-se resgatar e
avaliar a espiritualidade de muitos santos e autores
espirituais, até o último século. Basta conferir a bibli-
ografia clássica do início deste estudo para descobrir
as epístolas ou cartas de vários como: S. Jerônimo,
Sto. Agostinho, Sta. Catarina, Sto. Inácio, Sta. Tere-
sa, S. Francisco Xavier, S. João da Cruz, S. Vicente
de Paulo, Olier, Sto. Afonso, S. Geraldo, Sta. Teresi-
nha, S. Pio X, e dos papas do século 20. Nas cartas
os santos revelam o íntimo do seu coração, seu lado
humano.
LEITURAS E CONFERÊNCIAS
São dois meios excelentes, principalmente o pri-
meiro que é mais acessível a todos. Ambos são tradi-
cionais. A leitura lembra o próprio Jesus lendo Isaías
na sinagoga, o ministro etíope lendo Isaías no seu
carro. Aí começaram, num o anúncio da realização
da profecia; noutro, a interpretação da profecia reali-
85

zada. As conferências espirituais lembram as céle-


bres Collationes do Sto. Padre Cassiano (+435).
As leituras estão ao alcance da maioria das pes-
soas. Cada um deve dispor de seus próprios livros
espirituais ou, ao menos, dispor de uma biblioteca
acessível. É muito grande a diversidade de publica-
ções. O que é preciso é dispor de tempo. Hoje muitos
se desculpam com a falta de tempo. Nossos maiores
usavam os domingos e dias santos para a leitura das
vidas de santos. Acho má desculpa alguém dizer que
não tem tempo nem para ler um pequeno trecho dos
Evangelhos.
A Bíblia deve ser nosso livro de cabeceira. Leia-
se ao menos o Novo Testamento. Quanto ao AT, co-
meçar pelos salmos, seguindo depois os livros sapi-
enciais, históricos, proféticos, e afinal o Pentateuco.
Manuais de espiritualidade também são aconse-
lháveis: dão uma visão unificada dos temas e ques-
tões da vida espiritual. As monografias sobre um te-
ma específico também são utilíssimas: veja-se como
aparecem na bibliografia clássica do inicio deste es-
tudo.
Vidas dos santos: sua leitura é tradicional na Igre-
ja, nos mosteiros e conventos. Sto. Inácio converteu-
se lendo tais vidas dos santos. Há coleções de vidas
abreviadas, principalmente dos santos do calendário
litúrgico.
Há boas revistas, principalmente de associações
e movimentos religiosos, que procuram dar uma vi-
são ampla e atualizada em todos os aspectos. Ge-
86

ralmente são especializadas em certo tipo de espiri-


tualidade.
Um bom diretor espiritual poderá orientar as lei-
turas dos seus dirigidos.
ORAÇÃO
Embora essencial na vida espiritual, pois não e-
xiste pessoa espiritual sem oração, dada a extensão
e a complexidade do tema, restringimo-nos aqui a
alguns pensamentos. Há, aliás, muitas e boas mono-
grafias sobre o assunto. Sto. Afonso escreveu O
grande meio da oração, um opúsculo que ele dizia o
mais importante, e que gostaria de dar a cada habi-
tante da terra. Dizia: “Quem reza, se salva”. Poderí-
amos plagiar: “Quem reza muito, se santifica”. Ele se
referia mais à oração vocal, principalmente de peti-
ção.
Oração vocal: É a mais usada pelo povo, e por
nós mesmos. Sta. Teresinha conta que, quando sua
oração mental não ia bem, voltava humildemente à
oração vocal. Jesus ensinou-nos o Pai Nosso, oração
vocal, mas que leva à mais alta contemplação. O anjo
começou a ensinar a Ave Maria: uma oração vocal
celestial. A Liturgia é oração vocal.
Quase todas as devoções, mormente populares,
são meramente vocais. Há muitos livros, populares
ou não, que oferecem modelos de oração vocal.
Oração mental: Também chamada meditação, ou
oração interior, é um passo a mais para uma oração
mais perfeita ou até contemplativa. É uma espécie de
conversação interior com Deus. S. Paulo dá o exem-
87

plo: “Rezarei com o espírito, mas orarei também com


o entendimento” (1Cor 14,15). Sta. Teresa, Sto. Iná-
cio, Sto. Afonso ensinam seus métodos.
Há bons livros de meditação. Quem lê livros espi-
rituais ou os Evangelhos sabe que pode transformá-
los facilmente em meditação. Importantes são os afe-
tos e os bons propósitos, que se formulam no final da
meditação. As pessoas que lêem bons livros espiritu-
ais, fazem meditação naturalmente.
E mais: num lugar silencioso e adequado, no alto
de um monte, à beira-mar, qualquer um fará uma ó-
tima oração mental. Até mesmo no silêncio, no escu-
ro do seu quarto.
RELAÇÕES SOCIAIS.
Aqui visamos situações peculiares como família,
amizades, trabalho, associações, apostolado. São
campos muito diversificados para a espiritualidade.
Restringimo-nos aos mais comuns em nossa socie-
dade atual, lembrando o quanto são importantes para
o apostolado leigo.
A FAMÍLIA: Não é preciso insistir muito; é a célula
da Sociedade, da Igreja, é a pequena Igreja. É o pri-
meiro objeto do apostolado leigo, objeto hoje da mai-
or solicitude da Igreja.
Devido, porém, às grandes dificuldades e até
ameaças à família (é preciso destruir esta instituição
burguesa, disse alguém ), toda pastoral e espirituali-
dade familiar deve ser estudada em forte associação.
Aí estão, por exemplo, as Equipes de Casais. Ante a
pressão dos meios de comunicação, que formam a
88

opinião pública, de pouco valem as opiniões pessoais


hoje. Separação, divórcio, homosexualismo etc. estão
na ordem do dia.
O LUGAR DE TRABALHO é o segundo habitat
do homem moderno. É aí que se pode exercer uma
espiritualidade difícil. Conhecem-se altos funcionários
que cometem tal proeza. Imaginem os Ministérios, os
altos escalões, a alta política, os centros militares,
científicos onde atuam leigos conscientizados, espiri-
tualizados: quanto bem podem fazer. Quem nos dera
santos operários, santos artistas.
SOCIEDADES E AMIZADES: são um outro capí-
tulo interessante. Os clubes ampliam as relações so-
ciais, as amizades. Quanto bem fizeram os Vicenti-
nos, o Círculo D. Vidal, a Liga Católica, as Congrega-
ções Marianas, por exemplo. Fico sempre impressio-
nado quando vejo jogadores fazendo o sinal da cruz
em pleno campo, na TV. Muito cristão tem vergonha
de demonstrar suas convicções. Lembro aqui: Rotary
Club, Maçonaria, problema à parte.
Aqui são de se lembrar as associações mais an-
tigas e os novos movimentos que têm adaptado e a-
culturado a vida espiritual: serão melhor tratados na II
Parte.
Nestes ambientes se realiza a vocação do leigo
cristão: liderança, justiça social, honestidade, patrio-
tismo, diálogo: tudo isso pode ser discutido, adapta-
do. A Igreja nestes 20 séculos sempre fez isso com
maestria. Quem se lembra que o Natal era festa pa-
gã?
89

O MUNDO: S. Paulo deixou princípios para o re-


lacionamento com a cultura greco-romana em suas
cartas. O que não podemos é perder as lideranças no
mundo moderno e pós-moderno. Preocupação hoje
apresentam a política, a economia, os cientistas.
Até o século 18 a Igreja, os países católicos ainda
gozavam de liderança no mundo; hoje são os países
protestantes, comunistas. É verdade que os Papas
do século passado gozaram de muito prestígio moral.
Stálin perguntava de quantas divisões dispunha o
Papa Pio XII: não imaginava no futuro as muitas “di-
visões” na URSS. Com mais de 1 bilhão de católicos
no mundo, é de se perguntar qual a liderança que
ainda goza a Igreja. (Veja. Leituras).
APOSTOLADO
O apostolado é hoje uma exigência, diante da si-
tuação do mundo. Pergunta-se: O apostolado leva à
santidade? Um mestre responde: Depende. Aposto-
lado é carisma, é graça “gratis data”, graça externa
em favor do próximo. Assim, não reverte automati-
camente em santificação do apóstolo.
Há exceções para o apostolado sacerdotal. O
sacerdote, administrando sacramentos, recebe au-
mento da graça santificante, dentro das condições.
Por exemplo, celebrando tantas missas, atendendo
numerosas confissões, dando milhares de comu-
nhões com piedade, recebe um aumento de graça
proporcional à caridade que exerce. Supõe o que foi
dito na questão dos méritos.
90

Há ainda o elemento psicológico: observar o tra-


balho da graça, as conversões, o crescimento dos
devotos na perfeição, tudo isso inflama o amor no
coração sacerdotal. Acresce o sacrifício feito neste
trabalho de muita dedicação. S. Francisco Xavier, por
exemplo, contava em carta que seu braço se cansava
de tantos batizados.
Mas a razão formal é o amor de Deus e do pró-
ximo. Neste ponto podemos afirmar que o apostolado
santifica os agentes leigos, como a B. Edel Quinn, S.
Madre Paulina e outros santos modernos. Ainda mais
quando o apóstolo, mesmo fatigado, se entrega à
contemplação, do que há muitos exemplos. O aposto-
lado, unido aos outros meios, evidentemente santifi-
ca. Daí que Charmot SJ pôde definir a espiritualidade
apostólica: Revestir-se de Cristo: -vendo Cristo em
tudo e em todos; –viver em sua familiaridade; agir
como instrumento de Cristo e ser dócil ao Espírito
Santo.16
Na II Parte voltaremos ao tema do apostolado
nos tempos modernos.
O GRANDE MEIO DA CRUZ
A cruz tem sido o grande meio de santificação.
Ela não costuma ser colocada entre os meios acima
descritos, porque ela abarca toda a vida espiritual,
toda a vida cristã que é unir-se a Cristo Crucificado.
Basta lembrar: “Quem quiser ser meu discípulo tome
sua cruz e siga-me”.

16
P. J. BETTING: Teologia das Realidades Celestes, 182s.
91

Os exemplos começam com o próprio Cristo, logo


acompanhado pelo Bom Ladrão. Todos os mártires,
começando com S. Estêvão, podiam dizer com S.
Paulo: “Longe de mim gloriar-me senão na cruz de N.
S. J. Cristo”. Nesta linha vão os atos de mortificação,
muitas vezes heróicos, dos Padres do Deserto, ana-
coretas, cenobitas, monges e mesmo os santos que
viviam nas cidades mas ”estão no mundo mas não
são do mundo”.
Se passarmos, então, aos santos místicos, é e-
norme a Sociedade da Cruz. Começa com S. Paulo:
“Os que são de Cristo crucificaram seu corpo” (Gl
5,24; Rm 6,6), passando por S. Pedro, S. André que
abraçaram a cruz. Toda a tradição patrística, desde
Orígenes, fala no mesmo sentido. Começando com
S. Francisco, os santos estigmatizados foram ima-
gens vivas de Cristo crucificado. Os livros das “Reve-
lações” que constam na bibliografia estão cheios de
exemplos de união à Paixão, de aceitação da dor e
até da morte. (Veja. Leituras).
A esta espiritualidade da cruz está ligada a idéia
de expiação: pelos pecados próprios, os dos pecado-
res e do mundo. Esta idéia aparece muito clara nos
escritos espirituais.
Na II Parte vamos ver que a espiritualidade atua-
lizada tem idéias peculiares.17
-Terminando o capítulo dos meios, lembro que
há outros meios aqui não analisados, pois são espe-

17
P. J. BETTING, op. cit. , pg. 90-100.
92

cíficos: martírio, vida religiosa e consagrada, votos.


As devoções veremos logo.
LEITURAS
CARTA A DIOGNETO (Séc. II): “Os cristãos não
se diferenciam dos outros, nem pela pátria, nem pela
língua, nem por um gênero de vida especial. Não mo-
ram em cidades próprias e sua vida não tem nada de
extraordinário. Sua doutrina não procede da imagina-
ção de espíritos exaltados.
Moram em cidades gregas ou bárbaras, seguem
os costumes da terra, no vestir, alimentos mas seu
modo de viver é admirável. Habitam em suas pátrias,
mas de passagem. Todo país é sua pátria e toda pá-
tria é para eles estrangeira. Casam-se como todos e
criam filhos, mas não rejeitam recém-nascidos. Têm
em comum a mesa, mas não o leito.
São de carne, porém não vivem segundo a carne.
Moram na terra, mas sua cidade é o céu. Obedecem
às leis, mas com o modo de vida superam as leis.
Amam a todos e por todos são perseguidos. São po-
bres mas enriquecem a muitos. São desprezados,
mas enchem-se de glória. Amaldiçoam-nos e eles
abençoam. Praticam o bem e são castigados. Sofrem
afrontas e pagam com honras. Ao serem castigados
eles se alegram.
Numa palavra, os cristãos são no mundo o que a
alma é no corpo. A alma habita no corpo mas não
vem do corpo: os cristãos estão no mundo, mas não
são do mundo. A alma está encerrada no corpo, mas
93

é ela que contém o corpo: os cristãos estão detidos


no mundo.
A alma habita uma tenda mortal: os cristãos vi-
vem em moradas corruptíveis, esperando os céus
que não se corrompem. A alma aperfeiçoa-se com a
mortificação; os cristãos, mortificados, vêem seu nú-
mero crescer dia a dia. Deus os colocou em posição
tão elevada que lhes é impossível desertar”.
JOÃO DE LA PIRA, apóstolo moderno: “Nestes
tempos tristes, nada é mais eficiente do que uma al-
ma capaz de amar a Deus perdidamente. O amor não
se acende e não se irradia sem uma vida interior. É
preciso ter a coragem de ficar aos pés do Salvador,
sem pressa.”
S. INÁCIO: “Já existem muitos mosteiros con-
templativos. Cada qual tem sua vocação, mas a nos-
sa é o apostolado”.
S. TERESA: “Sinto desejo imenso de que Deus
tenha almas que o sirvam. Desejaria a alma meter-se
pelo mundo adentro a ver se poderia conseguir que
uma alma sequer louvasse mais a Deus. Tenho
grande inveja dos que são livres para publicar quem
é este grande rei”.
S. AMBRÓSIO: “Como o fermento invade a mas-
sa, assim o luto, a prece, a dor da Igreja aproveitam
ao pecador arrependido”.
MARIANA: Foi uma senhora que ficou 40 anos
paralítica na cama: mal movia a cabeça.
94

Era tal a sua paciência e até alegria, que o vigário


mandava às pessoas revoltadas:”Vá visitar a Maria-
na!” e todos voltavam consolados. Ao celebrar 40 a-
nos de cruz, mandou ela imprimir santinhos com um
agradecimento a Deus.
95

13. DEVOÇÕES
Entramos aqui num capítulo pastoral e prático: as
devoções. Estas se vêem tanto nos meios populares,
como entre os maiores santos. Encontram-se tam-
bém devoções imperfeitas, viciadas,
Sto. Tomás diz que a devoção é “prontidão do
ânimo para entregar-se às coisas que são de Deus”.
É, como a oração, um ato interno, um ato de religião.
Há devoções essenciais como as dirigidas à San-
tíssima Trindade, a Jesus, a Maria, aos Santos, mas
elas podem tomar uma feição própria da chamada
religiosidade popular, como no caso da devoção ao
Divino Pai Eterno, ao Espírito Santo, ao Bom Jesus.
Toda devoção, como ensina Sto. Tomás, deve
terminar na prontidão e disponibilidade ao serviço de
Deus, ao culto divino. Há dezenas delas que procu-
ramos resumir aqui. Qualquer coordenador de comu-
nidade tem conhecimento deste fenômeno. Aqui ve-
mos as devoções como um meio de santificação. Não
esquecer a história de S. . João Vianey e o sitiante.
Qualquer vigário do interior, ou missionário já teve
surpresas com pessoas simples.
DEVOÇÃO A DEUS
Embora muitos sintam dificuldade em rezar dire-
tamente a Deus, com exceção daqueles que rezam
salmos ou seguem a liturgia, a devoção a Deus apa-
rece em muitos gestos simples: o nome do Pai, o tirar
o chapéu ao nome de Deus, no “se Deus quiser”, no
olhar para o céu.
96

Já a devoção à Trindade é rara, sendo surpreen-


dente no Santuário do Divino Pai Eterno, em Trinda-
de GO, onde curiosamente a imagem venerada no
altar é de N. Senhora coroada pela Santíssima Trin-
dade.
Outro fato curioso é narrado por Hans Staden
que, nas horas perigosas no seu cativeiro em Ubatu-
ba, orava à Santíssima Trindade. Por sinal ele era
luterano. Talvez, entre nosso povo, o “Pai Nosso” não
tenha despertado para o que a devoção a Deus, à
Trindade significa, de fato.
DEVOÇÂO A JESUS
É devoção mais comum: é o Menino Jesus, o
Bom Jesus, a Paixão, o Senhor Morto, o Coração de
Jesus, o seu sangue milagroso, os milagres eucarís-
ticos, a Santa Cabeça, a Santa Cruz. o Santo Sudá-
rio, pregos e coroa de espinhos. A devoção central é
a Semana Santa. Todas estas devoções substituem,
de certo modo, aquele Jesus dos evangelhos que o
povo não conhece bem. Duas devoções especiais: as
5 Chagas e a Sagrada Face.
A devoção eucarística, apoiada pela Igreja e pela
Liturgia nas diversas formas, sendo as mais solenes
a de Corpus Christi –que deu nome até a uma cidade
nos EUA- bem como as bênçãos do Santíssimo. Nas
últimas décadas o movimento carismático tem esti-
mulado muito devoções eucarísticas, até com a ajuda
da televisão. A comunhão diária, as adorações do
Santíssimo , adoração perpétua, a Irmandade do
Santíssimo , a comunhão dos doentes são outras tan-
tas formas.
97

Os vários Santuários do Bom Jesus atestam a


devoção colonial.
O ESPÍRITO SANTO
É devoção arraigada no Brasil desde o descobri-
mento: veja-se a fundação da capitania do Espírito
Sto. , vejam-se as Festas do Divino, os cânticos ao
Espírito Santo. A ligação desta devoção é dirigida à
imagem em forma de pomba, o que não deixa de
preocupar.
NOSSA SENHORA
Merece uma atenção maior: curiosamente chega
a sua devoção a superar as anteriores. Para ilustra-
ção, ler Atos, 19, 23-40.
Há devoções referentes a praticamente todos os
dogmas, títulos, privilégios, aparições, milagres, no-
mes de Maria. A questão é sempre como se enten-
dem todos estes itens e como são cultuados, sem
mescla com espiritismo nem superstições. N. Senho-
ra da Conceição que o diga.
Em muitos casos a devoção está ligada a uma
imagem, como a de N. S. Aparecida, N. S. da Penha,
N. S. do Perpétuo Socorro e muitas outras. Muitas
devoções foram trazidas da Europa, ou de países da
América, como Nossa Senhora. de Copacabana.
Destaco devoções ligadas a aparições antigas e
modernas: a do Escapulário, do Rosário, Lourdes,
Fátima, Medalha Milagrosa, Medjugori, etc. Rosários,
terços, escapulários, bentinhos são devoções entra-
nhadas na vida do povo.
98

Outra devoção antiga e arraigada é a de N. Se-


nhora das Dores. Aqui lembro o costume antigo de
pôr nomes marianos nas crianças: Dores, Fátima,
Aparecida, Conceição, Penha, Assunção, Anunciação
etc.
Quanto ao rosário, lembro a aprovação que lhe
deram tantos Papas, principalmente Paulo VI na “Ma-
rialis Cultus”.
As romarias marianas são um capítulo à parte na
espiritualidade. Vale aqui um velho ditado: “Das mui-
tas romarias poucos trazem virtudes”, dito citado pelo
P. Bernardes. Se isso for verdade, é uma preocupa-
ção para a espiritualidade de que tratamos. Mas, es-
pero que nosso bom clássico Bernardes se tenha en-
ganado, porque, falar de romarias é falar de Apareci-
da.
As irmandades marianas foram uma das rique-
zas do Brasil passado: Filhas de Maria, Legião de
Maria e outras tantas associações, confrarias, arqui-
confrarias do Rosário, de N. S. P. Socorro e de todas
as devoções marianas.
Um caso curioso das imagens de Maria, são as
várias imagens negras: N. S. Aparecida, de Altötting,
de Chestokowa, sem citar as africanas. Algumas de-
las imagens são Padroeiras regionais e até nacionais.
ANJOS
É uma devoção que vem da Bíblia, foi muito in-
centivada por Pseudo Dionísio Areopagita, que teve a
honra de ser muito comentado por Sto. Tomás Devo-
ção que ultimamente voltou com muita força. Os an-
99

jos são amigos dos místicos, das aparições. O Anjo


da Guarda é velha devoção. S. Miguel é boa ajuda na
sua luta contra o Dragão. S. Gabriel brilha na Anunci-
ação. Nos tempos perigosos em que vivemos, com
tantos assaltos, desastres, a devoção aos Anos bem
que ajuda muito.
SANTOS
Como a devoção a Maria, é questão com os cren-
tes. É, porém, devoção querida da religiosidade po-
pular. O papa atual, com as numerosas beatificações
e canonizações das últimas décadas, veio trazer con-
solo para os países emergentes, faltos de santos na-
cionais. Curioso: nosso povo parece crer mais em
santo estrangeiro. Outro fato curioso é a pouca devo-
ção às relíquias. Certa vez um vigário trouxe da Itália
a veste de S. Benedito: a qual suscitou pouco inte-
resse do povo devotíssimo do santo.
A devoção aos santos suscita muitas perguntas
nos pastores. Uma preocupação é certa identificação
entre santo e imagem. Penso também que o povo
imagina o santo como alguém, semelhante aos anjos,
que quase não pisa o pó da terra. Daí fica mais difícil
a imitação.
AS ALMAS
Ou Santas Almas praticamente entram no es-
quema dos Santos.
Não há cristão católico que não tenha esta devo-
ção, ou ao menos não se preocupe com as almas,
suas possíveis aparições. É só observar o Dia de Fi-
nados. Junto vão a devoção aos cemitérios, o terço
100

das almas, as missas infindáveis para as benditas


almas.
Evidentemente a parte afetiva interfere: apego
aos entes queridos que faleceram. Um pouco de sen-
timento de culpa na doença, velhice também é moti-
vação possível.
. A tudo isso se acrescente a grande devoção à
Santa Cruz, ligada ao sofrimento do nosso povo e
também às conquistas coloniais. “Bendita e louvada
seja!. . . ”, cantamos para a cruz e os cruzeiros.
OUTRAS DEVOÇÕES
Enfeitam nossa religiosidade e tentam também
levar o povo a maior perfeição cristã: novenas, trí-
duos, imagens, bênçãos, água-benta, exorcismos, sal
bento, oratórios, procissões, andores, bentinhos.

CONCLUSÕES: Evidentemente as devoções são


fórmulas que traduzem a religião do povo, com as
imperfeições a que os pastores devem estar atentos.
E estes já trataram deste delicado tema nas Con-
ferências do CELAM de Medellin, Puebla e Santo
Domingo.
As Conferências trataram especificamente deste
assunto: Medellin, c. 6,2-4;
6,10. Santo Domingo, n. 53s. Puebla: 444-453.
Maria: Puebla, 444-453; Medellin, 6. 2-6. 4. Santos:
Puebla, 7, 217, 263, 265. Jesus: Puebla 171-172.
101

Nunca é demais, também, para os mais adianta-


dos no caminho espiritual, ouvir as observações de
um teólogo: “Quanta devoção mal entendida, quanta
gente iludida nas devoções”. E cita a rotina, a repeti-
ção interminável. É de se acrescentar o lado muito
humano que nelas aparece, o exagero nas imagens,
a reza para todos os santos, a falta de hierarquia nas
devoções, as muitas cruzes e medalhas, e bentinhos.
De certo Jesus falou algo a este respeito: “Quando
orardes, não digais muitas palavras como os pagãos”
(Mt 6, 7).
E alertou também quanto aos filactérios (Mt 23,5).
Ele olhava o espiritual
Como se pode ver, é um tema delicado, ainda
mais que envolve o ecumenismo e sensibilidade das
culturas. Uma pergunta que fica: as devoções santifi-
cam?

LEITURAS
S. JOÃO VIANNEY conta: Observou na igreja
que, logo cedo, um lavrador: depois de encostar a
enxada na porta, se assentava num banco e fica
tempo olhando para frente. O Santo perguntou o que
fazia, já que nem mexia a boca para rezar. “Não faço
nada, não sei rezar”, respondeu o sitiante, “mas eu
olho para Ele e Ele olha para mim”. E o santo elogiou
tal oração tão elevada.
102

LUMEN GENTIUM: “Qualquer testemunho autên-


tico de amor que oferecemos aos bem-aventurados
se dirige a Cristo e, por Cristo, a Deus" (LG, 50).
MEDELLIN: “A religião popular é um elemento vá-
lido na América Latina.
Não se pode prescindir dela. Entretanto, impõe-
se uma revisão e um estudo para purificá-la de ele-
mentos que a tornam inautêntica e para valorizar os
elementos positivos, para evitar formas ambíguas,
inadequadas”: c. 8,2.
PUEBLA: “A piedade popular apresenta aspectos
positivos como marcada piedade mariana” (913). “A
religião do povo, em sua forma cultural, é ex-pressão
da fé católica: é um catolicismo popular. É uma forma
ativa com que o povo se evangeliza,” n. 444, 450.
“Percebe-se uma enorme reserva de virtudes autenti-
camente cristãs. Podemos assinalar a presença trini-
tária, o sentido da Providência, Cristo celebrado na
encarnação, crucifixão, na eucaristia, no Sagrado Co-
ração, o amor a Maria. Tem a capacidade de celebrar
a fé, capacidade de sofrimento e heroísmo, o culto
dos santos e defuntos.” N. 454. .
“Apresenta aspectos positivos como: senso do
sagrado, disponibilidade para a Palavra de Deus, pi-
edade mariana, capacidade para a oração, amizade,
caridade, união familiar, para sofrer, para a resigna-
ção, desprendimento” 912.
STO. DOMINGO: “Dever-se-á dar especial aten-
ção à piedade popular, que encontra expressão na
103

devoção à Santíssima Virgem, nas peregrinações aos


santuários e nas festas religiosas” n. 53.
SANTIDADE: “Na Igreja todos são chamados à
santidade, que se realiza mediante a imitação do Se-
nhor por amor. Pelo batismo o cristão iniciou sua con-
figuração com Cristo e irá crescendo até a idade per-
feita. Cada um procurará a santidade segundo as ca-
raterísticas próprias do seu estado” Medell. 12,1.
104

14. OS 3 DEGRAUS DA MÍSTICA


Já fiz referências nas leituras e nos capítulos an-
teriores sobre a mística. Para entender a vida e dou-
trinas dos santos místicos é imprescindível, ao me-
nos, a leitura deste capítulo 14. Evidentemente o re-
comendável ler algum livro especializado neste as-
sunto, acessível em português ou espanhol, como
Tanquerey, Sta. Teresa, S. João da Cruz, Garrigou-
Lagrange.
Pretende-se aqui, apenas, dar uma idéia elemen-
tar sobre esta difícil e misteriosa teoria. Releia, po-
rém, acima o testemunho de S. João Vianney, que
mostra como as pessoas mais simples podem ter ex-
periência deste assunto. Relembro a história de S.
Boaventura. Um simples irmão sem instrução elogiou
o santo: “Ó frei Boaventura, você que é feliz: com sua
sabedoria pode amar muito a Deus!” E o santo: “Está
vendo aquela lavadeira? Ela pode amar a Deus mais
do que eu e ser muito mais sábia!” Aí está o exemplo
de muitos santos místicos, sem muita instrução esco-
lar, que deram lições nos teólogos. S. Geraldo, Sta.
Teresinha, S. Gema Galgani, Domingos Sávio são
exemplos. Mesmo hoje, no meio do nosso povo, é
possível descobrir tais irmãos nossos privilegiados.
Tenho por mim que a renovação carismática tem en-
trado muito na linha mística, principalmente na ora-
ção no Espírito Santo.
Valho-me aqui dos tratados substanciosos acima
citados. Acrescendo um livro acessível: de Léon Bo-
naventure: Psicologia e vida mística, Vozes, 1975,
embora tenha ele recebido algumas críticas. Lembro
105

também o ótimo manual do Frei Antonio Royo Marin


OP: Teologia de la Perfección Cristiana, BAC, 1962,
901 p. , apresentado também como “livro de forma-
ção espiritual para seculares cultos”. Já foram publi-
cadas, no Brasil, as obras completas de Sta. Teresa
e S. João da Cruz.
Para os que têm possibilidade, aconselho as o-
bras de De Guibert, Gabriel de Santa Madalena, A-
gostinho Poulain, acessíveis em boas bibliotecas.
Entrando na história, que, sem falar dos evange-
lhos, vem de S. Paulo e 2 Pe 1,5, passando pelos
Santos Padres como Macário, Cassiano, vê-se que
vários tentaram sistematizar esta matéria em graus
de perfeição. Já Clemente de Alexandria (ano 195)
falava dos graus de temor, esperança e amor. Isaac
de Nínive distinguia noviços, medianos e perfeitos.
Pseudo Dionísio já cita a purificação, iluminação e
perfeita união. Sto. Agostinho prefere: caridade que
nasce, se alimenta e chega à perfeição. S. Boaventu-
ra: via purificadora, iluminativa e unitiva. Sto. Tomás
divide em 3 idades: principiantes, proficientes, que
progridem e perfeitos na caridade. Já Sta. Teresa, no
célebre Castelo ou Livro das Moradas, descreve as 7
fases de crescimento, nas diversas moradas.
MÍSTICA
Qual a sua essência?, perguntam os teólogos.
Há uma grande variedade de fórmulas entre os
autores avisa Garrigou-Lagrange.
E dá muitos exemplos, seguindo as várias esco-
las de espiritualidade.
106

D. Cuthber Butler oferece-nos a opinião de alguns


Santos Padres Ocidentais: Intuição intelectual direta
da realidade transcendente. Relações conscientes
com o Absoluto. União da alma com o absoluto en-
quanto possível nesta vida. Percepção experimental
da presença e ser de Deus na alma.
Beneditinos: A mística é uma contemplação so-
brenatural, infusa e passiva onde Deus faz sentir sua
presença à alma por um modo inefável (Lehodey). –
Um conhecimento puríssimo que Deus dá de si
mesmo e de suas perfeições e amor intenso (Marmi-
on). Captação experimental da presença de Deus e
sua operação na alma (Stolz).
Dominicanos: -Percepção quase experimental de
Deus em nós (Gardeil). –Mística experimental é um
conhecimento amoroso e saboroso de todo sobrena-
tural, infuso, que só o Espírito Santo pode dar-nos e
que é prelúdio da visão beatífica (G. Lagrange). –Ao
menos o sentimento da realidade divina parece existir
sempre na vida mística (Joret). Predomínio dos dons
na psicologia sobrenatural ou o proceder baixo a al-
tíssima moção e direção do Espírito Santo (Arintero).
–Predomínio da graça nas ações que faz perceptível
nelas o próprio modo sobrenatural e divino (Menen-
dez-Reigada).
Carmelitas: -A contemplação infusa é o fato sali-
ente do domínio da mística (Gabriel de S. Maria Ma-
dalena). –Como prática, é o desenvolvimento da gra-
ça e está essencialmente constituída pelo conheci-
mento e amor infusos (Crisógono). –Contemplação
infusa é a operação mística por excelência: conheci-
107

mento experimental das coisas divinas produzido por


Deus na alma (Congresso de Madri).
Jesuítas: -Deus dá de sua presença um conheci-
mento intelectual experimental, faz-nos sentir que en-
tramos realmente em comunicação com Ele (Poula-
in). –É a intuição imediata de Deus pela alma (Maré-
chal). –O estado místico está constituído pela consci-
ência do sobrenatural em nós (Bainvel). –Sensação
ou sentimento de entrar em contato imediato, sem
imagem, sem discurso, embora não sem luz, com a
Bondade infinita (Grandmaison).
Outros: -É um conhecimento infuso experimental
e amoroso de Deus produzido pelos dons intelectuais
do Espírito Santo (Mohon). –Um certo sentido de
Deus produzido na alma por Deus mesmo (Cayré). –
Conhecimento intuitivo, junto com amor intensíssimo
de Deus, por infusão divina, i. é, por meios extraordi-
nários da divina Providência (Naval). –Conhecimento
superior de Deus que, embora geral e confuso, dá
uma idéia de suas incompreensíveis grandezas, e
amor intenso que Deus mesmo comunica (Ribet). –
Parte da ciência espiritual que tem por objeto a teoria
e prática da vida contemplativa (Tanquerey). –-O es-
tado místico se constitui pelo predomínio da ação dos
dons (Maritain).
-Vendo a variedade e riqueza de tantas e varia-
das definições, a mística continua um mistério por
envolver Deus mesmo. Mas há elementos constan-
tes: Fato psicológico, experiência divina, passiva, que
só o Espírito Santo pode produzir pelo influxo e atua-
ção de seus dons. (Royo Marin, pg. 239).
108

A PRIMEIRA IDADE ou grau –de purificação- é


mais fácil de entender, ainda mais para quem já se
está iniciando esta via. Já as fases de iluminação e
união são mais difíceis, mas o diretor espiritual e
mesmo um líder de comunidade deve conhecê-las.
Sta. Teresa se queixava de Ter sido prejudicada por
diretores mal formados nesta área.
Mas também lê a Bíblia, observo que aparecem
fenômenos que só se explicam pela intervenção do
Espírito: a convivência com Deus, dos Patriarcas, os
sonhos, os anjos, Moisés, Davi, e principalmente os
Profetas com suas visões e profecias.
No NT, sem falar em Jesus, Maria, José, que
conversavam com anjos e tiveram sonhos, citam-se
de modo especial S. João, com seu Apocalipse, sua
visão teológica do Verbo. S. Paulo que subiu ao ter-
ceiro céu. Os Atos citam vários carismas das comu-
nidades primitivas.
A história posterior pode-se ver na bibliografia ini-
cial.
Uma questão que está subjacente aqui e que in-
fluencia muito não só na disposição da matéria, mas
na própria teologia espiritual é se todos são chama-
dos à mística. Por outras palavras, todos podem atin-
gir as 3 vias, incluindo a unitiva? Na prática, todos os
santos foram místicos? Muitos teóricos acham que
não. As escolas que afirmam costumam citar aquilo
de Jesus: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito”, a que as outras escolas revidam: “O que
prova demais nada prova”, pois ninguém pode ser
perfeito como Deus.
109

VIA PURGATIVA OU DA PURIFICAÇÃO


Esta é a via que, decerto, todos iniciamos, via
dos principiantes que procura, pela purificação, a uni-
ão íntima com Deus. Supõe o estado de graça, certa
união com Deus mas que ainda tem limites, como
veremos.
Nesta via ou idade, Sta. Teresa distingue os me-
nos generosos e os mais generosos, como se pode
ler na primeira e segunda morada.
Há 5 fases ou meios nesta via: oração, penitên-
cia, mortificação, luta contra os pecados capitais e
tentações. Aqui se repete o que diz a teologia moral.
Vejamos brevemente.
A ORAÇÃO: já passa do nível vocal para a medi-
tação. Funda-se ela na necessidade da graça atual
pois, sem esta graça, estamos na impotência da sal-
vação e santificação.
Comentando Mt 26,41: “Vigiai e orai. . . ”, Sto.
Tomás diz que toda confiança, que não se funda na
oração, é presunçosa. Completando: a oração supõe
graça, humildade, confiança, atenção e perseveran-
ça.
Deve-se escolher as melhores horas do dia para
a meditação: de manhã, à tarde. Muitos santos e mís-
ticos passavam a noite em oração. Também o local, a
posição corporal, o tipo de grupo que reza, ou a ora-
ção isolada, o tempo que se reza influenciam muito
na meditação. A oração de joelhos, como antigamen-
te, em grande grupo, costuma dificultar muito.
110

A meditação deve ser preparada de véspera; por


isso os manuais de meditação já põem no início um
resumo da meditação do dia seguinte.
Os temas são variados, sempre seguindo o ano
litúrgico, as festas. Há manuais antigos acessíveis
como os livros de meditação de Cristiani, Stix, Bron-
chain, B. Goebel, L. Bertsche, Sabóia Medeiros e ou-
tros. As Ordens e Congregações religiosas costumam
ter seus próprios livros de meditação. De Sto. Afonso
temos a Preparação para a Morte, escrito nos moldes
do tempo.
Hoje têm rareado tais livros de meditação, substi-
tuídos por livros em forma de pequenos artigos que
também se prestam à meditação, como os dos mo-
vimentos modernos, como o do Cursilho, Focolare,
TLC, Equipes de N. Senhora, Catecumenato, Movi-
mento de Renovação Carismática, Comunhão e Li-
bertação já nos moldes da espiritualidade atual, leiga.
Usando deles, vê-se que muitos leigos hoje são cha-
mados e entram nas vias da perfeição.
MÉTODOS mais tradicionais são o de Sto. Inácio
e o de S. Sulpício.
O método inaciano dá os seguintes passos: Pre-
lúdio ou olhar o tema, compor o lugar, pedir a graça
de uma boa meditação. Segue o corpo da meditação
com exercícios da memória, entendimento, vontade.
Conclusão: colóquios, revisão.
O método sulpiciano contém: idéia-mãe: união
com o Verbo encarnado. Atos essenciais: adoração,
111

comunhão, cooperação. A cooperação consiste em


considerações e reflexões práticas.
A PENITÊNCIA, depois da oração, é o meio mais
eficaz para purificar a alma. Supõe-se que a alma pi-
edosa já tenha superado a fase do pecado mortal,
dos vícios mas que ainda devem estar atentos ao “vi-
giai e orai para não cairdes em tentação, pois a carne
é fraca." E mais: “Quem está de pé veja que não cai-
a”.
A luta contra os pecados veniais, principalmente
deliberados, é o próximo passo.
Pecado venial deliberado: é preciso diminuir-lhe o
número pela vigilância rigorosa, nas palavras, gestos
e omissões.
S. Francisco de Sales , porém, adverte que é
preciso estar alerta contra o desalento, desânimo e
despeito como “aqueles que se zangam por terem se
zangado”.
Sta. Teresa alerta para a malícia do pecado veni-
al deliberado, com palavras fortes: “Quanto a mim,
por mais que seja leve a falta, acho que é grande”.
Ela e todos os Mestres dão a razão: Tais pecados
diminuem a glória de Deus, são uma ingratidão, têm
efeitos danosos, merecem o purgatório.
A prática da penitência estende-se a vários atos:
a lembrança dos pecados, a confusão diante deles, o
temor salutar. As obras de penitência podem ser: o
recitar o “Miserere” ou salmo 50, a contrição, a con-
fissão, as penitências pessoais: jejum, abstinência, o
112

suportar o desconforto da vida, a esmola, as obras de


caridade, as mortificações espontâneas.
A MORTIFICAÇÃO purifica as faltas passadas.
Há várias espécies: mortificação dos sentidos exter-
nos, internos, paixões e faculdades superiores. A vida
dos santos e servos de Deus dá muitos exemplos
que seria fácil referir.
Hoje a cultura do usufruir, do prazer generaliza-
do, as objeções da psicologia fazem clara oposição
às mortificações, como se qualquer atleta, artista, ci-
entista não tivesse também de sujeitar-se a muitas
privações por amor à sua profissão, à sua carreira. S.
Paulo fala disso: “Castigo meu corpo e o reduzo à
servidão para que não me torne réprobo” (1Cor 9,
27).
PECADOS CAPITAIS: é grande e permanente o
esforço de superar as fontes do pecado: orgulho, a-
vareza, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça. Já Cassia-
no citava esta luta em suas célebres Colações ou
conferências. Seria longo demais comentar cada ví-
cio, como fazem os manuais mais alentados, mas é
bom lembrar que o orgulho é apontado como a raiz
de todos os vícios. Os psicólogos defendem a auto-
estima como essencial para a personalidade da pes-
soa, mas os espirituais vêem nela como que a es-
sência do pecado: “Não servirei” ou “Sereis como
Deus”! A criatura que se põe no centro do Universo.
A primeira forma do orgulho está em considerar-se o
homem como primeiro princípio.
São muitos os pecados e vícios derivados de ca-
da pecado capital. Basta lembrar as muitas formas de
113

ira, de injustiça. A preguiça é fonte de todos os peca-


dos de omissão.
A LUTA CONTRA AS TENTAÇÕES, que são so-
licitações para o mal como já alertava Tiago 1,13.
Nelas os Mestres distinguem a freqüência, as fa-
ses, sinais e graus. E apontam remédios :
Prevenir. Resistir. Não demorar demais no exa-
me, para evitar o perigo de novas tentações.
Previnem contra tentações dos principiantes: ilu-
sões, inconstância, fervor indiscreto e escrúpulos.
DEFEITO DOMINANTE: É uma orientação cara
aos mestre espirituais antigos. Tal defeito seria o que
prevalece sobre os outros e, por isso, incide numa
maneira de sentir, julgar, simpatizar, querer e agir.
Tem relação íntima com nosso temperamento: mole-
za, indolência, preguiça, gula, sensualidade. Outros
são levados pela cólera, orgulho. É chamado de “ini-
migo doméstico”: “E seus inimigos são seus domésti-
cos”.
Uma consideração psicológica: uns são mais in-
clinados à contemplação, meditação, à vida de Maria;
outros seguem Marta: são mais ativos, dedicados ao
apostolado, trabalho. É preciso vigiar para que o de-
feito dominante não venha a afogar nossa principal
qualidade. Não esquecer que os místicos são raros
entre os muito ativos, o que nos admira em Sta. Te-
resa, tão ativa e tão mística.
114

O defeito dominante é o ponto fraco que o inimigo


bem pode conhecer e dele aproveitar-se. Como des-
cobrir tal defeito?
É mais fácil nos principiantes que são sinceros,
mas tende ele a esconder-se, mesmo sob a capa de
bem ou qualidade. O orgulho torna-se magnanimida-
de. A ira, valentia. A humildade disfarça a pusilanimi-
dade, a covardia, o medo, a timidez.
Conselho: pedir as luzes de Deus para descobrir
o defeito dominante, tarefa que não é fácil e que exi-
ge muito exame de consciência. Examinar-se séria e
sinceramente. Pedir ajuda ao diretor espiritual ou ou-
tras pessoa timoratas. Um meio é anotar as preocu-
pações mais ordinárias. Quais as causas de minhas
tristezas e alegrias? Estar atento ao que os outros
falam, suas correções e alerta. A psicologia também
muito ajuda como, por exemplo, a identificação do
próprio caráter, gênio. Infelizmente há pessoas até
religiosas que carregam a vida toda certo defeito, às
vezes notório e até pouco suportável. É aquele defei-
to que você conhece há décadas no seio da família
ou da comunidade e que nunca se conseguiu corrigir.
Outro fato: alguns nunca conseguem identificar o tal
defeito.
Um problema pode ser o método de exame de
consciência: sobre as virtudes, os defeitos, os man-
damentos, os pecados, os vícios capitais, os votos
religiosos. É muito humilhante aceitar algum defeito
que apontam em nós. Sei de uma pessoa da qual um
psicólogo disse que ela era muito sensual: a pessoa
apontada nunca se conformou com isso.
115

TERMINANDO, as purificações ativas que vimos


têm um limite: não tornam a alma perfeitamente pura.
Este esforço será aperfeiçoado na via iluminativa, pe-
lo exercício positivo das virtudes morais e teologais.
A REGULAGEM DAS PAIXÕES refere-se aos
movimentos do apetite sensitivo, provindos da repre-
sentação de um bem sensível ou de um mal. Difere
do apetite racional.
Distinguem-se o apetite concupiscível e o apetite
irascível. No primeiro, com respeito ao bem sensível
que atrai, há 3 paixões : Amor do bem sensível, dese-
jo de um bem ausente e alegria do bem presente. No
irascível, i. é, o bem difícil de se obter, temos a espe-
rança e o desespero. A respeito do mal a afastar, há
a audácia, o medo e a cólera.
Discute-se a moralidade das paixões. A moral do
prazer diz que as paixões são boas, por serem muito
humanas, pois são expansões da natureza. Os estói-
cos condenavam radicalmente as paixões. Sto. To-
más, com a escolástica, diz que as paixões ou emo-
ções não são boas nem más, dependendo se são
movidas por reta razão e reta vontade.
Assim, as paixões desregradas tornam-se vícios:
luxúria, inveja, ciúme, temeridade, lassidão. A ascéti-
ca ensina a discipliná-las, dominá-las. Aqui há todo
um longo esforço, longo e penoso trabalho. O auxílio
de Deus, alcançado pela oração, sendo as falhas sa-
nadas pela penitência, é de vital importância.
Os Mestres lembram ainda outras faculdades
que devem ser purificadas: a) Os sentidos, a sensibi-
116

lidade, a sensualidade. b) A irascibilidade. c) A imagi-


nação e a memória. A imitação de Cristo leva a es-
quecer as criaturas para encontrar o Criador. A medi-
tação dos novíssimos, a preocupação dos negócios.
d) Fazer a purificação da inteligência, da vã- curiosi-
dade, do orgulho de espírito, do racionalismo. Purifi-
cação da vontade: do egoísmo, do utilitarismo, do
quietismo.
TERMINANDO, não há um limite claro entre a pri-
meira e segunda via, como não há entre a via purga-
tiva e o estado precedente. Como avisam os Mestres,
apesar de todo esforço, vão elevar-se na parte inferi-
or da alma terríveis tentações, excitadas pelo mundo,
pela natureza, pelo demônio. Sem perder o ânimo, a
alma lutará pelo tempo que for necessário.
Acrescente-se ainda que as purificações ativas
que descrevemos não bastam para tornar a alma per-
feitamente pura. Este trabalho continuará na via ilu-
minativa, pelo exercício positivo das virtudes. E não
será completo senão quando vierem, na via unitiva,
as purificações passivas, que dão à alma a pureza de
coração perfeita, necessária à contemplação (Tan-
querey, p. 602).
VIA ILUMINATIVA
Ao iniciar fase dos que já progridem no caminho
da perfeição, Garrigou-Lagrange em “Les trois ages”,
vl. II, dá importantes informações sobre a linguagem
dos místicos, a qual é diferente da dos teólogos.
Comparada com a linguagem dos teólogos, a lingua-
gem dos místicos parece muito simbólica, metafórica,
além de radical, exigente. Já tem acontecido serem
117

eles até suspeitos de heresias, beirando o panteísmo,


por exemplo.
Há conceitos que não se eqüivalem. “Natureza”
para os teólogos e filósofos aristotélicos tem um sen-
tido positivo; para os místicos, lembrando os neo-
platônicos, tem sentido muito negativo. “A natureza
está cheia de artifícios e se tem por seu próprio fim”,
diz a Imitação (III, 54). Ao contrário, Sto. Tomás: “A
graça não destrói a natureza”. Corpo e alma perten-
cem à mesma natureza criada por Deus. A alma é
forma do corpo, que não é prisão.
Isso não significa que a natureza não tenha sido
ferida pelo pecado original e sofra as conseqüências.
Os teólogos argumentam: se a matemática, a fí-
sica e outras ciências podem ter acepções próprias
para seus termos particulares, porque a mística não
pode tê-las?
Quando se fala de Deus, há termos com sentido
próprio e sentido metafórico. Há ainda as analogias.
Fala-se da ira em Deus, mas num sentido metafórico,
num antropomorfismo como a Bíblia menciona as
mãos de Deus, seus olhos misericordiosos, seus pés,
sua voz.
Ao ler os Profetas logo se percebe como usam de
metáforas, hipérboles, antropomorfismo, atribuindo a
Deus analogicamente atitudes e gestos de um grande
rei, de um pai, de um guerreiro, no melhor estilo ori-
ental. Jeremias 4,23 escreve: “Olhei para a terra e ei-
la vazia e disforme; para os céus e não tinham luz”,
na linguagem apocalíptica de Is 24,1.
118

Mas vejamos exemplos da história moderna. “A


criatura é um nada”, escreve S. João da Cruz -que
era teólogo. Queria ele indicar apenas o nada da cria-
tura. Criatura, por si mesma não é nada: por Deus é
tudo. Fala de “noite escura, grandes trevas” que ex-
primem “a luz inacessível onde Deus habita”. S. Pau-
lo já falava da “loucura da pregação”. Jesus mesmo
disse: “A água que eu der será nele uma fonte que
jorra para a vida eterna” Jo 4,14. E mais: “Quem não
nascer da água e do Espírito Santo, não pode entrar
no Reino dos Céus” (3,5).
“Esponsais espirituais” é pura linguagem bíblica:
lembram as “Bodas de Caná”. S. João é Mestre na
linguagem simbólica e de sinais, como se vê no Apo-
calipse, por exemplo
S. Ângela de Foligno escreveu: “Eu não vejo na-
da e eu vejo tudo”, num antagonismo de idéias, com
afirmações contraditórias. Lembra S. Paulo: “Nada
tendo e tudo possuindo”
Sobre símbolos e sinais em Sta. Teresa pode-se
ler com proveito Léon Bonaventure: Psicologia e vida
mística, II parte. Ela mesma confessava que não ti-
nha estudo teológico, mas sabia usar magistralmente
o bom senso e a velha cultura ibérica.
Como já foi dito acima, não esquecer a influência
nos místicos, principalmente depois de Agostinho e
Pseudo Dionísio da influência milenar de Platão e do
neo-platonismo. A teoria platônica do conhecimento
partia do mundo das idéias, das idéias inatas, da cé-
lebre caverna, da sua teoria da alma no cárcere do
corpo. Este mundo é um reflexo ideal do outro mundo
119

verdadeiro. A comunicação nossa com o mundo, pes-


soas, santos é através de Deus, lá onde estão as ver-
dadeiras idéias - protótipos. Em filosofia antiga cha-
ma-se idealismo, teoria persistente até nossos dias.
SEGUNDA VIA OU IDADE: Agora, depois deste
esclarecimento, e lembrados das definições de místi-
ca no início deste capítulo, podemos iniciar a via ilu-
minativa.
Sta. Teresa descreve esta fase da mística na
terceira morada do seu célebre castelo, purificadas a
1a. e 2a. moradas das “servandijas” e demais empe-
cilhos, entrando a alma no progresso espiritual, almas
“que têm grande desejo de não ofender a Divina Ma-
jestade e evitam os pecados veniais, com a penitên-
cia, têm horas de recolhimento e exercitadas na cari-
dade. Tudo nestas pessoas “em progresso” está re-
gulado: palavras, hábitos, “o governo de suas casas”.
São 3 as condições:
-Alcançar certa pureza do coração. –Ter mortifi-
cado as paixões. –Ter adquirido, pela meditação,
convicções firmes sobre as grandes verdades da fé.
Na 1a. e 2a. via há esforço e luta; agora progride-
se, adornando a alma com a virtudes de Cristo.
O início desta 2a. via está a chamada 2a. CON-
VERSÃO. Jesus refere-se a esta conversão em Mc 9,
32, Mt 18,3. S. Paulo insiste nela em Ef 4, 23.
Vários santos convertidos falam desta conver-
são, descrevendo o caminho percorrido, até com mui-
ta psicologia, como Sto. Agostinho. Assim S. Bento,
120

S. Catarina de Sena, Henrique Suso, Tauler, Sta. Te-


resa, S. João da Cruz. Sto. Afonso teve sua conver-
são da vida cristã no mundo dos tribunais, para ou-
tros tribunais do espírito.
P. Lallemant (+1635) escreve: “Há, de ordinário,
duas conversões na maioria dos religiosos e religio-
sas que procuram a perfeição: um quando se devo-
tam ao serviço do Senhor, outra quando se dão intei-
ramente à perfeição”. É um passo decisivo, um perí-
odo penoso, cheio de “penas interiores”. “O meio de
adquirir a ciência dos santos não é tanto o recurso a
livros, como a humildade interior, a pureza do cora-
ção, o recolhimento, a oração”.
O fim proposto é a via iluminativa: conformar-se
com Jesus Cristo, fazendo dele o centro de sua vida.
Como programa, pratica a virtude, em Jesus Cristo,
centrando nele o pensamento: na missa, comunhão,
nas leituras piedosas que levam à doutrina do Mes-
tre.
Este conhecimento leva ao amor: Jesus torna-se
o centro dos afetos todos, como os três discípulos no
Monte Tabor: pessoas que não entendem bem, mas
se extasiam ante o esplendor de Jesus ressuscitado.
Meditam este amor na encarnação, redenção, euca-
ristia. Bem que cantou Sto. Tomás, no ofício de Cor-
po de Deus: “Nascendo fez-se companheiro; na ceia,
alimento. Morrendo fez-se nosso preço: reinando fez-
se prêmio!”
Aqui o amor leva à imitação. Copia-se o que se
ama. Jesus é o centro das ações. Os meios que se
devem usar junto com a oração afetiva: -As virtudes:
121

teologais, cardeais e morais. Adiante veremos tam-


bém as diferenças entre elas. Há dois modos de or-
dená-las: pela ordem dignidade, como estão acima,
ou pela ordem psicológica, do menos perfeito ao mais
perfeito.
Há duas categorias de pessoas na 2ª via: Primei-
ro as almas piedosas, de boa vontade, que fazem
sérios esforços para evitar as faltas deliberadas, mas
ainda têm defeitos, pouca energia, pouca constância.
Um segundo grupo é das almas generosas e mais
humildes, confiadas em Deus, e não em si. São mais
enérgicas, constantes. Mas sua virtude não está ain-
da confirmada. Progrediram no amor de Deus, mas
têm ainda muito do que desapegar-se, para maior
união com Deus.
Alguns bons autores colocam na 2ª via a “noite
dos sentidos” ou as “purificações passivas” que evi-
tam a sensualidade espiritual, a preguiça espiritual ou
acédia e o orgulho espiritual. Colocam também aqui a
oração de quietude. Outros acham melhor colocá-las
todas no início da contemplação infusa, como vere-
mos mais tarde.
Os Mestres previnem: a purificação dos sentidos
pode confundir-se com a neurastenia que aparece na
fadiga, dor de cabeça, insônia, dificuldades na vonta-
de e inteligência, impressão exagerada. O bom Dire-
tor deve saber distinguir.
Para fazer de Jesus o centro da própria vida, de-
ve-se dar quatro passos:
122

-Oração afetiva: Continuando os exercícios espiri-


tuais, deve-se aumentar o número e duração das o-
rações habituais, aplicando-se aos afetos, em que
predomina a vontade. Os que já têm convicções pro-
fundas, podem diminuir os discursos, reflexões, o-
lhando mais a beleza, amor de Deus, com piedosos
afetos ao Criador e Redentor.
-Meios: Exercitar a caridade, dirigir o coração pa-
ra o amor e admiração das perfeições divinas, com
louvor e complacência. Meditar o que Deus fez por
nós: a inabitação e incorporação em Cristo. As mais
belas orações vocais procurar rezá-las com senti-
mento.
-Finalidade: União íntima e habitual com Deus,
aumento da caridade, consolo espiritual, para chegar
à oração de simplicidade, que pode começar aqui.
-Dificuldades: Cansaço pela tensão do espírito.
Orgulho e presunção: ilusão de fervor. –A procura de
consolações.
-MÉTODOS: São dois na oração afetiva: Método
de Sto. Inácio: -Contemplar o objeto da oração pau-
sadamente, com gosto, admiração, amor. Ver as
pessoas, Jesus: escutar as palavras, ações, gestos.
Aplicar os 5 sentidos.
Método de S. Sulpício: Começar com saborear
as principais orações vocais continuando, assim, o
método usado na primeira via. Passos: adoração,
comunhão, breves considerações, colóquios, coope-
ração.
123

As pessoas com aridez espiritual podem sentir di-


ficuldade nos afetos: Conservar a tranqüilidade, dizer
a Deus que quer amá-lo, ser-lhe fiel, ficar na sua pre-
sença.
VIRTUDES INFUSAS: São princípios de ação
que Deus infunde em nós, para desempenhar o papel
de faculdades sobrenaturais e tornar-nos capazes de
praticar atos meritórios. Diferem das virtudes natu-
rais, que são como que a base.
As virtudes infusas crescem através dos atos de
religião, “pela posse mais ativa e mais perfeita da vir-
tude”, como diz Sto. Tomás. Podem também diminuir,
perder-se. Elas estão conexas entre si, informadas
pela caridade. São numerosas, como já vimos, mas
são conexas com as quatro virtudes cardeais. Todos
os bons manuais comentam mais detalhadamente as
virtudes principais. Segue uma explicação prática de
Garrigou-Lagrange (o c. II, p. 93), usando a compara-
ção com um edifício :
Todo o edifício da perfeição se constrói sobre
Cristo, sobre a base da humildade.
Os pilares principais são a fé, esperança e cari-
dade, esta sustentando a abóbada, que é iluminada
pelos dons da sabedoria, inteligência e ciência.
As 4 paredes estão solidamente construídas com
as virtudes da prudência, justiça, temperança e forta-
leza.
Os dons do conselho, piedade, força, temor de
Deus, com as virtudes anexas: previdência, circuns-
pecção, constância, religião, penitência, obediência,
124

força, paciência, magnanimidade, longanimidade,


castidade, virgindade, doçura, pobreza evangélica
protegem as portas do edifício. Esta comparação
lembra bem o castelo de Sta. Teresa.
É bom notar que nela o teólogo já estabelece
uma hierarquia nas virtudes.
Nesta via dos proficientes, o modo de praticar
tais virtudes é mais perfeito que na via purgativa,
porque não se limitam eles ao que exige a Teologia
Moral, mas aprofundam as virtudes, inspirados pelas
bem-aventuranças e pelos sete dons do Espírito San-
to.
Os meios deste aperfeiçoamento são estes: -
Referir todos os juízos e decisões ao fim último so-
brenatural. –Os proficientes, além da salvação, visam
a glória de Deus. Por isso perguntar-se sempre como
faziam os santos: Que significa isto para a eternida-
de? (“Quid hoc ad aeternitatem?”) Mais que desem-
baraçar-se dos defeitos, os que querem progredir:
estudam as palavras e ações de Jesus para descobrir
suas verdades mestras; -seguem a palavra de Cristo:
“Buscai primeiro o Reino de Deus. . . ” Na prática,
sempre há uma palavra de Jesus mostrando a impor-
tância das virtudes fundamentais.
AS VIRTUDES, enfim, seguem a inspiração do
Espírito Santo, como mostra a teologia.
A JUSTIÇA aparece naquilo: “bem-aventurado
aquele que tem fome e sede de justiça. . . ”
É fácil ver como ela é muito valorizada na Bíblia,
e no evangelho: “Se vossa justiça não for maior que a
125

dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos


céus”. Está ligada ao termo justo (“José, sendo um
homem justo. . . ”) e à própria justificação.
TEMPERANÇA: é até hoje uma virtude aprecia-
da, desde os tempos bíblicos. Está unida à paciência,
doçura (“A caridade é benigna”), à castidade, à hu-
mildade, à sobriedade nos alimentos e bebidas (je-
jum), à fecundidade espiritual. Jesus pôs-se até como
exemplo: “Aprendei de mim que sou manso e humilde
de coração”). E o fez até o heroísmo: “Aniquilou-se,
assumindo a condição de escravo. . . ”
A POBREZA evangélica é louvada por Jesus: os
pobres de espírito. É objeto de um voto religioso.
Bem sabemos como o ideal da pobreza é difícil num
mundo que louva a riqueza. Hoje reaparece a pobre-
za efetiva nas Ordens, Congregações: na Igreja inse-
rida entre os pobres, nas fraternidades, na teologia
da libertação, na atenção dada ao III Mundo, como
veremos na II Parte.
A OBEDIÊNCIA também é difícil neste últimos
séculos de libertação e liberdade. Na psicologia a au-
to-estima, auto-realização fazem objeção. E Cristo?
“Ele se fez obediente até a morte. . . por isso Deus o
exaltou”.
É uma virtude ligada à vontade de Deus, humil-
dade, paciência, força de vontade. Ante as objeções
da psicologia moderna fica a pergunta: que sentido
tem a obediência religiosa, a obediência à Igreja hoje
?
126

A SIMPLICIDADE, ligada à prudência, é reco-


mendada por Jesus: “Se teu olho for simples, todo
teu corpo será lúcido" (Mt 6,22). Vão contra ela vícios
desagradáveis como mentira, duplicidade, simulação,
hipocrisia, jactância, farisaísmo. Ela agrada a Deus,
como veremos na oração de simplicidade.
CONFIANÇA em Deus: unida à esperança, é
uma virtude louvada na Bíblia: “Os que confiam no
Senhor são como o monte Sião” (Sl 125,1)Jó foi e-
xemplo heróico de confiança: “Mesmo que Ele me
mate, esperarei nele” (Jó 13,15). O Concílio de Tren-
to, por isso, mandou “confiar no socorro de Deus”,
confiar na graça. Os santos foram exímios nesta vir-
tude, nos sofrimentos.
CARIDADE fraterna é virtude teologal, lembram
os teólogos. É virtude essencialmente cristã, dado
que Cristo tanto a recomendou, como se vê na Última
Ceia, e João fez dela sua mensagem, como se lê nas
suas cartas. Mas é uma virtude fácil de praticar com
os amigos e familiares; difícil com as outras pessoas.
“Quem é meu próximo?” Num mundo de concorrên-
cias, às vezes até violentas, é difícil amar a todos. E
o amor aos inimigos? A vida de comunidade e até de
família exigem aprender a perdoar e a ser perdoado.
“A palavra de Jesus é exigente e profética: “Não
há maior amor que dar a vida pelos amigos” . E Jesus
deu a vida até pelos inimigos. A caridade é sinal do
cristão: “Vede como eles se amam!”, mas é também
sinal de contradição (1Jo 3,11; Jo 15,18).
NO FINAL da segunda via, como adverte S. João
da Cruz, pode haver um recrudescimento dos pro-
127

blemas anteriores, dos vícios capitais: nova inclina-


ção para o orgulho, gula e até luxúria espiritual, certa
avareza, tibieza. Os remédios são os mesmo: ache-
gar-se a Jesus que avisa no Apocalipse: “Aconselho-
te a comprar ouro acrisolado no fogo para te enrique-
ceres, e roupas brancas para te vestires, colírio para
teus olhos. Porque eu repreendo e corrijo aqueles
que eu amo. Eis que estou à porta e bato” (Ap 3, 18-
20).
S. INÁCIO, tratando do DISCERNIMENTO, dá al-
gumas regras preciosas, para que os proficientes não
se desviem nos meandros do caminho da perfeição:
- Só Deus pode dar a verdadeira consolação,
sem outra causa que a possa produzir.
- Pois a consolação nesta via pode provir do anjo
bom ou do anjo mau.
- Nos altos desejos e projetos ver se o princípio,
meio e fim tendem para o bem.
- O inimigo introduziu-se no projeto? Refazê-lo
para ver onde ele penetrou.
- Distingue-se o proceder do bom e mau espírito:
o 1º age suavemente; o 2º ruidosamente.
- Cautelas: querer perfeição intempestiva, virtu-
des espalhafatosas, desprezar coisas . . pequenas,
gostar de reflexões lisonjeiras sobre nós mesmos.
- Queixar-se, desanimar no meio de provações e
aridez é sinal de espírito muito humano.
128

Lembrar-se que, principalmente os diretores de


almas: estar atentos a estes sinais.
Concluamos com o Pe. Tanquerey: “No decurso
de nossas ascensões para Deus, estejamos certos
de que não hão de faltar contra-ofensivas do inimigo.
Mas as almas vigilantes, apoiadas em Jesus Cristo,
repelem estes assaltos, aproveitam-se deles, para se
confirmarem na virtude, e assim se preparam para as
provações e alegrias da vida unitiva” (op. c. p. 797).
VIA UNITIVA
Esta parte é muito especializada, interessando
muito aos Diretores Espirituais. Mas nós, leigos no
assunto, podemos e devemos inteirar-nos desta inte-
ressante matéria, principalmente por aparecer na vida
e escritos dos santos místicos. Hoje este tema tem
voltado à baila, com o movimento carismático. Trata-
se, de fato, de carismas. No final deste capítulo, aliás,
serão tratados os fenômenos espirituais extraordiná-
rios.
O FIM da vida unitiva é a união íntima e habitual
a Deus por Jesus Cristo: viver unicamente para Deus,
para a Trindade que habita em nós. Para tanto temos
de unir-nos a Cristo Jesus, caminho para o Pai.
OS CARATERES desta união: a alma vive sob o
olhar de Deus, contemplando-O no seu próprio cora-
ção. Mas vale a regra: Andar com Deus dentro e não
se prender com coisa alguma fora.
O amor de Deus torna-se a única virtude: as ou-
tras virtudes passam a ser atos de amor. Por isso são
praticadas facilmente.
129

Há uma simplificação na oração, que já pode até


começar antes. Há também uma simplificação na pró-
pria vida: o que inclui a pobreza em todo sentido.
Mas há condições exigentes: pureza de coração,
domínio de si mesmo, pensamento habitual em Deus.
PURIFICAÇÃO passiva dos sentidos: é a oração
de simplicidade, que alguns teóricos colocam já na
segunda via. Já referimos nesta via os 3 defeitos que
soem acontecer: orgulho espiritual, sensualidade es-
piritual e preguiça espiritual, e um resto dos sete ví-
cios capitais. O adjetivo “espiritual” é importante aqui.
A sensualidade refere-se à procura imoderada
de consolações espirituais. Procuram-se coisas san-
tas em lugar do Deus Santo. Procura-se o apostolado
exterior, por ele mesmo.
A preguiça espiritual: cai-se na impaciência e
certo desgosto no trabalho de santificação. Sto. To-
más chama isto de “acédia”, que leva ao torpor, fra-
queza, dissipação.
O orgulho espiritual leva a pessoa a fugir do
Mestre que não aprova sua própria idéia e seu espíri-
to desviado: procuram quem seja favorável aos seus
gostos. Isto leva a certa hipocrisia farisaica.
Estes 3 defeitos podem ser seguidos por outros:
curiosidade, auto-suficiência, inveja, pressões para
se tornar o centro, atrair almas a si ou ao próprio gru-
po.
S. João da Cruz adverte para outros defeitos:
distração, hebetude ou torpor, simpatias muito huma-
130

nas, rudeza, impaciência, presunção, ilusão. Vejam


quantos escolhos se anteparam nesta via.
Todos estes defeitos podem ser prevenidos pela
vigilância, e controlados pela mortificação externa e
interna. Há mais: Deus se encarrega de mandar a
purificação passiva da noite escura, a cruz que com-
pleta a purificação, segundo o dito: “Quem quiser se-
guir-me renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-
me." Não há 3a. via sem a “via crucis” !
SINAL de entrada nesta via unitiva: não se en-
contra consolo sensível nas coisas de Deus. Reco-
mendação: Lembrar-se de Deus com solicitude e
despreocupar-se com aquilo que O não serve. Outro
sinal é a incapacidade de meditar ou de raciocinar
com a ajuda da imaginação.
A causa é uma ação especial e purificadora de
Deus, como começo da contemplação infusa. Come-
ça com o dom da ciência, do temor filial e da força
dos que têm “fome e sede de justiça”. A dificuldade
de meditar vem do dom da inteligência. Diz Sto. To-
más: “o dom da inteligência tem uma ação purificado-
ra, elevando o espírito acima das imagens sensíveis
e dos erros”.
PROVAÇÕES: À purificação dolorosa ajuntam-se
tentações, principalmente contra a castidade e paci-
ência. Mas os efeitos são preciosos, quando se as
vence: a pessoa entra no conhecimento de si mesma
e se prepara para entrar de vez na via unitiva.
Os santos falam desta purificação passiva. Assim
Sta. Teresa na quarta morada. S. Vicente de Paulo
131

passou quatro anos nesta prova dolorosa, com cons-


tantes tentações contra a fé, a ponto de levar ele uma
cópia do Credo junto ao coração para incentivar atos
de fé. Também o Cura d´Ars, Ângela de Foligno, que
a chamava “grandes trevas”. É “a luz inacessível on-
de Deus habita", de que fala S. Paulo (1 Tm 6, 16). S.
João da Cruz, citando pensamento de Hugo de S.
Vítor, escreve: É “a luz divina que purifica a alma e a
dispõe à união perfeita”
OS DONS DO ESPÍRITO SANTO, já citados a-
trás, na 2ª via, diferenciam-se das virtudes, não pelo
objeto material que visam, mas pelo modo diferente
de operar na alma: é um modo superior, pois o Espíri-
to toma a iniciativa, através de uma graça operante.
Melhor: A prática das virtudes precedem e preparam
os dons. Podemos definir:
Dons são hábitos sobrenaturais que dão às nos-
sas faculdades tal docilidade que obedecem pronta-
mente à graça.
Depois de combater o espírito do mundo, adver-
so ao espírito de Deus, tem-se, depois do recolhi-
mento interior, boa disposição para as menores inspi-
rações do Espírito Santo, ao qual procuramos invo-
cando-0.
DONS: Veja-se como os dons aperfeiçoam as
virtudes principais:
O Dom do conselho aperfeiçoa a prudência.
O Dom da piedade aperfeiçoa a religião, anexa à
justiça.
132

O Dom da fortaleza aperfeiçoa a virtude da forta-


leza.
O Dom do temor aperfeiçoa a temperança.
O Dom da ciência e entendimento aperfeiçoam a
fé.
O Dom do temor está em conexão com a espe-
rança.
O Dom da sapiência liga-se à caridade.

Alguns dons têm mais influência na contempla-


ção: conselho, piedade, fortaleza, temor, entendimen-
to, sabedoria e, por isso, devem ser pedidos com in-
sistência.
Esta influência resume-se: acrescem luz à luz
das virtudes para facilitar a oração, abrandam a alma
para torná-la mais sensível à ação do Espírito Santo.
Auxiliam na contemplação com uma intuição amorosa
da verdade. Na contemplação infusa, dão flexibilida-
de à alma para torná-la apta para o estado místico.
ORAÇÃO DE SIMPLICIDADE, também chamada
de oração de recolhimento, oração de simples olhar,
contemplação adquirida, é colocada por muitos auto-
res aqui. Bossuet aponta nela dois atos: -Olhar e a-
mar. Tem três simplificações: 1. Diminuição e supres-
são dos raciocínios. 2. Depois de poucos minutos de
reflexão, acontece um olhar intuitivo da inteligência.
3. Logo a simplicidade se estende a toda vida: missa,
orações, exame de consciência, estudos, trabalhos,
ações comuns do dia. “Tudo é vosso, vós sois de
Cristo e Cristo é de Deus!”
133

Pode parecer que tal simplicidade favoreça a o-


ciosidade. Sta. Teresa já respondeu a tal objeção.
Também não há perigo de tensão demasiada, se a
pessoa estiver bem preparada para esta fase, e bem
dirigida espiritualmente.
Não há propriamente um método para esta ora-
ção. Os mestres aconselham:
-Fixar os sentidos em algum objeto piedoso, ima-
gem, sacrário, por exemplo.
-Representar-se a si próprio uma cena do evan-
gelho.
-Percorrer suavemente um texto bíblico, uma ora-
ção.
-Fazer atos de vontade, por exemplo, de amor a
Deus.
Estes exercícios são benéficos e ajudam a evitar
as distrações voluntárias ou não.
Alguns afirmam que a oração de simplicidade é
uma contemplação adquirida e, por isto a posicionam
na via unitiva. Afirmam que é uma ótima disposição
para a contemplação infusa (Alguns teólogos não dis-
tinguem contemplação adquirida e infusa).
Sta. Teresa, no Livro de sua Vida, capítulo 13,
oferece ótimo exemplo de sua experiência.
A CONTEMPLAÇÃO INFUSA
Este tema é muito complexo e profundo, pois en-
volve o mistério de Deus: é que chamam fazer expe-
riência de Deus. Lembro que até religiões orientais
vão nesta linha. Todavia uma noção de contemplação
134

ajuda a entender santos que passavam a noite em


oração.
Uma história ajuda a entender. Um professor de
exegese contou uma experiência, recontada por um
professor de mística. Aprofundava-se ele numa ques-
tão exegética que exigia altos conhecimentos cultu-
rais, até de línguas orientais. Prolongou-se o estudo
pela noite. A certa hora admirou-se ele, olhando pela
janela, de um clarão no horizonte: era o clarão da au-
rora! Assim deve ser esta oração dos místicos, arre-
matou o outro professor.
A CONTEMPLAÇÃO infusa é uma vista simples,
intuitiva de Deus e das coisas divinas, a qual procede
do amor e tende para o amor, diz Sto. Tomás.
“É uma atenção amorosa, simples e permanente
do espírito às coisas divinas", diz S. Francisco de Sa-
les.
“Um simples vista intelectual, acompanhada dum
amor suave às coisas divinas, que procede de Deus,
ao qual aplica a inteligência e a vontade, para conhe-
cer e amar” (Bento XIV).
DEUS é quem chama a alma à contemplação.
Sta. Teresa chama esta oração de sobrenatural. E
faz graciosa comparação: “Deus compraz-se primeiro
em fazer a alma subir até Ele, degrau por degrau; em
seguida, toma sua pombinha e coloca-a no ninho pa-
ra lá repousar”.
Vejamos:
135

É Deus que escolhe o momento e modo de con-


templação.
Atua no que os místicos chamam fina ponta da
alma, o cimo da alma, o fundo íntimo.
É neste centro da alma que Deus produz, ao
mesmo tempo, conhecimento e amor.
A ALMA deixa-se levar para Deus, como uma cri-
ancinha (Sta. Teresinha fala disso).
É passiva, mas não ociosa.
Deus aparece sob um aspecto novo, com uma
realidade viva, que se apreende por um conhecimen-
to experimental, que nossa linguagem não pode ex-
primir.
A alma ama muito mais do que conhece: é a con-
templação seráfica: difere da querúbica.
Na contemplação infusa há uma mistura de gozo
e de angústia.
Permanece ela inefável e inexprimível.
Na linguagem mística é a treva divina ou “misteri-
osa obscuridade” conforme Ps. Dionísio.
Fala também de uma santa ignorância. Sto. To-
más diz que a própria noção de ser, como a conce-
bemos, é muito imperfeita para aplicar-se a Deus.
Torna difícil uma descrição da contemplação o fa-
to que é um amor ardente que se goza e que não se
sabe exprimir. Aliás, quem pode definir o amor?
136

A vantagem é que Deus é mais glorificado; a al-


ma mais santificada.
VOCAÇÃO: A quem Deus concede a contempla-
ção: é um mistério. Mas alguns teólogos acham que
todos são chamados à contemplação, como são
chamados à glória do céu.
Contudo: a contemplação continua sendo um
Dom gratuito de Deus, que Ele concede a quem quer,
segundo seu beneplácito. Mas, pode-se afirmar que
Ele a concede às almas que se dispõem e se prepa-
ram para esta graça. Mas há uma exceção: às vezes
Deus dá esta graça a almas sem virtude, como e-
xemplifica Sta. Teresa. Há místicos que tentaram fu-
gir. . .
Às vezes Deus dá contemplação até a crianças,
como aconteceu com S. Rosa de Lima, S, Teresinha
e outros santos.
Há os que fazem progressos rápidos; outros, pro-
gressos lentos, difíceis.
S. João da Cruz apresenta três sinais desta vo-
cação :
- Não poder meditar com a imaginação.
Quando não dá vontade de pôr a imaginação
nem o sentido em outras coisas particulares, nem ex-
teriores, nem interiores.
Se a alma gosta de estar a sós, com atenção
amorosa em Deus, sem particular consideração.
137

FASES DA ORAÇÃO:
-De quietude: árida e suave.
-De união plena.
-De união transformante ou matrimônio místico.
QUIETISMO
Antes de concluir, vejamos duas formas aberran-
tes nesta área :
MOLINOS (1628-1696) foi o promotor da heresia
do quietismo que, entre outras afirmações, ensinava:
-A via da contemplação passiva como única via pos-
sível, que se adquire por si mesmo, com a graça co-
mum. –O ato da contemplação pode durar anos ou
toda a vida. –Dispensam-se todos os atos explícitos
de virtude. –É necessário estar indiferente a tudo, até
à própria salvação. –Não é preciso resistir às tenta-
ções.
O quietismo foi condenado pela Igreja.
Fenelon defendeu um semi-quietismo ou quietis-
mo suavizado, sendo combatido por Bossuet. Seu
erro principal foi inculcar disposições de passividade
em pessoas de pouco progresso espiritual, tentando
simplificar a vida espiritual, a oração. Favorecia o
amor desinteressado, prejudicando a esperança. In-
sistia demais em deixar agir Deus em nós, o que fa-
zia desmerecer o lado humano, as boas obras, na
ótica luterana. Também havia falhas quanto aos mei-
os de santificação. (Fenelon se retratou destas opini-
ões, mais tarde).
138

Por aí se vê como são necessárias a sabedoria e


prudência na vida espiritual.

CONCLUSÃO: Pelo que vimos, parece boa a de-


finição da contemplação infusa como tomada de pos-
se progressiva da alma por Deus, com o livre consen-
timento desta.
A união transformante ou matrimônio místico é o
ponto alto da mística, atingido por grandes místicos,
com efeitos maravilhosos. A alma se esquece de si
mesma. Daí :
Entrega total nas mãos de Deus: a alma é indife-
rente a tudo.
Tem um desejo imenso de sofrer, em perfeita
conformidade com Deus.
A ausência de desejos e penas interiores: grande
desprendimento.
Ausência de arroubamentos: grandíssimo silêncio
(Castelo Interior).
Zelo ardente, mas moderado, da santificação das
almas.
A seguir veremos os efeitos extraordinários desta
via unitiva.18

18
JUAN MARTÍN VELASCO: Doze Místicos Cristãos, Ed. Vozes, 2003.
139

FENÔMENOS MÍSTICOS EXTRAORDINÁRIOS


Entramos, assim, na parte, por assim dizer, mais
interessante e mais polêmica e, porque não dizer,
mais milagrosa, pois “miraculum” é algo maravilhoso
que se vê.
Quem lê vida dos santos, ato piedoso milenar na
Igreja, quem lê na Bíblia os milagres de Moisés, Eli-
as, Eliseu e do próprio Jesus já vislumbra por onde
anda a mística. Se a vida mística é normal na vida de
um cristão, como opinam alguns, os milagres também
o serão?
Os carismáticos vão nesta linha.
Santos houve que brincavam com o Menino Je-
sus e com milagres, como S. Geraldo.
Outros houve que não deram sequer sinal de fe-
nômenos místicos, como S. Clemente.
Veremos que esta matéria é um tanto complica-
da, como se pode ver no velho Tanquerey.
Veremos primeiro os fenômenos intelectuais; de-
pois os psico-fisiológicos.
AS REVELAÇÕES privadas distinguem-se das
públicas –que se fazem para toda Igreja- por implica-
rem apenas a pessoa particular, como é a maioria
das revelações. Existem na vida dos santos, como se
podem ver nos processos de canonização e nas suas
biografias. São reputadas como possíveis e críveis.
Algumas já apareceram neste estudo. Dividem-se em
visões, palavras e toques.
140

-As visões podem ser sensíveis, imagináveis e in-


telectuais. As visões são as populares aparições, por
exemplo. Curioso que N. S. Aparecida não é propri-
amente uma aparição, a não ser que a entendamos
do descobrimento da imagem.
A visão sensível ou aparição pode ser do corpo
mesmo, mas só de uma forma sensível, como acon-
tece com aparições do Menino Jesus.
As aparições de Lourdes, Fátima os teólogos ex-
plicam como formas luminosas. É Sto. Tomás que
diz: “O corpo de Cristo não pode –na própria espécie-
ser visto a não ser num lugar, no qual se contém de-
finitivamente” (Tudo isso no jargão tomístico).
Visões imaginárias são, por exemplo, vistas em
sonhos como o de S. . José, Sta. Teresa. A visão de
falecidos ou benditas almas parece ser da mesma
espécie, já que não têm corpo.
Às vezes percorrem-se, em visão, regiões longín-
quas: como o vôo orbital da Beata Arpais e Schulter
de Toes que viram a terra redonda cercada de água.
Visão intelectual: o espírito percebe uma realida-
de espiritual como, por exemplo, da Santíssima Trin-
dade, através de “espécies infusas”, na terminologia
escolástica.
Algumas visões podem reunir os dois ou três mo-
dos anteriores: assim a visão de S. Paulo no caminho
de Damasco: foi sensível, imaginativa e intelectual.
141

A visão de Jesus ressuscitado foi natural pois os


discípulos viram o corpo de Jesus, tanto que Tomé
quis tocá-lo.
As palavras sobrenaturais são manifestações do
pensamento divino que se fazem ouvir aos sentidos
externos, internos e até inteligência. Podem ser auri-
culares, imaginárias e intelectuais. S. João da Cruz
fala delas na Subida do Monte Carmelo, II, 26-29.
Os chamados toques divinos são sentimentos
espirituais, num contato divino, acompanhados de
viva luz para a inteligência. São as faculdades que
percebem estas impressões, no chamado vértice do
espírito.
Ensinam os Mestres que não se deve desejar
nem pedir tais favores: não são meios necessários
para a união divina, antes podem ser obstáculo. S.
João da Cruz alerta para o perigo de ilusões, vãos
fantasmas, falta de humildade e de conformidade
com Deus.
Os entendidos dão várias regras de discernimen-
to para as visões e revelações. Mentira e histeria po-
dem acontecer, como no célebre caso de Madalena
da Cruz, no séc. XVI. Também Sta. Teresa cita mui-
tas pessoas “que se embebem de tal maneira na i-
maginação, que tudo quanto pensam, claramente
lhes parece que o vêem”. (Moradas sextas, 9).
É bom lembrar-se que as visões e revelações do
Coração de Jesus, Guadalupe, Lourdes, Fátima,
Medjugorje não são de fé, mesmo que tenham festa
142

litúrgica, embora se devam acatar e prestar piedosa


atenção, seguindo o exemplo dos Papas.
Há casos controvertidos como de S. Catarina, a
quem N. Senhora teria dito que não era imaculada;
revelações com inúmeros detalhes como de Catarina
Emmerich, Maria de Agreda, nem sempre condizen-
tes com os evangelhos ou outras revelações. Há pro-
fecias que não se cumpriram ou foram mal interpre-
tadas como a do Profeta Jonas, de S. Joana d´Arc,
de S. Norberto, S. Vicente Ferrer.
Conclusões: Imitar a prudência e reserva da Igre-
ja e dos santos. Não se pronunciar com certeza sobre
visões e revelações privadas, sem provas convincen-
tes. Ao receber confidências sobre tais fatos não
mostrar admiração. Tratar com doçura tais pessoas.
Examinar com muito cuidado quando se trata de fun-
dação de instituições. O vidente deve submeter visão
e revelação a um diretor prudente, instruído.
GRAÇAS DADAS gratuitamente para a utilidade
pessoal, transitórias, que S. Paulo chama de caris-
mas: palavra de sabedoria, palavra de ciência, dom
da fé, de curas, de operar milagres, de profecia, de
discernimento, de línguas e de interpretação (1Cor
14).
FENÔMENOS PSICO-FISIOLÓGICOS
LEVITAÇÃO: um fenômeno que impressiona mui-
to na hagiografia, com muitos casos: S. Estêvão da
Hungria, S. Filipe Néri, S. Francisco Xavier, S. Pedro
de Alcântara, S. José de Cupertino, S. Geraldo Maje-
143

la. Tem-se tentado explicar racionalmente tais fenô-


menos.
EFLÚVIOS LUMINOSOS: auréola de luz na ca-
beça ou no corpo. Há psicólogos que citam a aura do
corpo, que algumas pessoas dotadas conseguem
ver.
SUTILEZA: Pela qual o corpo do santo imita Je-
sus ressuscitado, passa por outros corpos como por-
tas, paredes. É célebre o caso de S. Raimundo de
Peñafort.
BILOCAÇÃO: É um dos fenômenos mais surpre-
endentes. Conta-se de S. Antônio, Sto. Afonso e de
outros oito santos.
EFLÚVIOS ODORÍFEROS: Santos que antes
ou depois da morte exalam perfumes, como é o caso
de S. Francisco de Paula, S. Ludvina, S. Catarina, S.
Rosa de Viterbo, S. Gema Galgani, S. João da Cruz,
S. José Cupertino, S. Geraldo. Este fenômeno é mui-
tas vezes citado em Servos de Deus, Santos. Como
nos casos antecedentes, Bento XIV dá sábias instru-
ções para a averiguação, reproduzidas nos bons ma-
nuais. Os maiores perfumistas não têm conseguido
identificar tais odores, como no caso de S. Maria de
Los Angeles. Dos túmulos destes e outros santos
também têm exalado perfumes misteriosos.
ABSTINÊNCIA prolongada: santos que viveram
quase sem alimento, ou só com a comunhão. S. Ân-
gela de Foligno passou 12 anos sem alimento; S. Ca-
tarina de Sena, 8 anos; S. Ludovina, 28 anos; Rosa
Andriana, 28 anos. A abstinência quase total de sono
144

também tem exemplos, como o S. Pedro de Alcânta-


ra (48 anos).
ESTIGMAS: são os casos conhecidos e impres-
sionantes, de S. Francisco de Assis, até os mais re-
centes como Teresa Neumann, B. Frei Pio. São ca-
sos que têm intrigado médicos e cientistas, porque
podem ser examinados por muitos anos e não encon-
tram explicação.
OUTROS fenômenos: Lágrimas, suor de sangue,
agilidade, incêndio de amor. A levitação e verdadei-
ros vôos são também fenômenos impressionantes.
CURAS: Os milagres de cura de doenças graves
e até casos de ressuscitar mortos que aparecem na
história dos santos são até hoje debatidos, estudados
exaustivamente, como em Lourdes, nas beatificações
e canonizações, sem explicação científica atual , co-
mo acentuam os incrédulos. Quanto aos cristãos, ao
menos as curas de Jesus e Apóstolos são inegáveis.
EXPLICAÇÃO: Esta parte da espiritualidade é a
mais interessante, mas também a mais impugnada.
Uma objeção que se faz a todos os fenômenos acima
relatados é que eles podem ter uma explicação de
natureza mórbida: psico-neuroses, histeria. Um indí-
cio em certos fenômenos é a incidência maior entre
mulheres. Mas, por enquanto, é impossível dar expli-
cação natural para levitação, profecias, jejum absolu-
to, curas de certos tipos.
-Com razão a apologética tem usado destes fatos
extraordinários como provas da fé cristã.
145

OS FENÔMENOS diabólicos são outros fatos de-


batidos. Aqui entra toda a questão bíblico-teológica
dos demônios e sua ação nos homens e no mundo,
principalmente nas tentações.
Mas aqui interessam sobretudo os fenômenos de
obsessão e possessão.
Quanto à obsessão, chama-se assim uma série
de tentações violentas, duradouras. Podem ser inter-
nas e externas, sendo estas raras. Podem atuar so-
bre os sentidos externos, sendo as mais citadas as
visões demoníacas.
Podem atuar sobre os sentidos internos: imagina-
ção, memória, paixões. Há casos citados na vida dos
santos e de outras pessoas. O P. Schram dá, em cer-
tos casos, a explicação de alucinações, superexcita-
ção nervosa. Podem ser também provações passi-
vas, acima citadas.
Nos casos moralmente certos, pode-se usar dos
exorcismos privados.
Quanto à possessão, a situação é mais rara e
debatida ainda. Contam-se inúmeros casos de pos-
sessão diabólica, sendo difícil a averiguação, salvan-
do-se os casos dos evangelhos.
Algumas religiões atribuem muitos casos à pos-
sessão e expulsam demônios até de modo espetacu-
lar. A Igreja tem sido nos últimos séculos muito pru-
dente.
Comprovada a possibilidade de possessão, o re-
curso é o exorcismo, com a devida delegação do Or-
146

dinário. O novo Ritual de Bênçãos omite o exorcismo,


que foi retirado também do rito do batismo. Uma nova
visão teológica.
CONCLUSÃO: Seja, embora, quase impossível
dizer a última palavra em ascese e mística – pois “o
Espírito sopra onde quer”- encerra-se aqui este pe-
queno tratado de espiritualidade tradicional. Na II Par-
te, que vem a seguir, faz-se uma tentativa de síntese
da espiritualidade moderna ou atual.
Nesta segunda parte vai-se perceber uma mu-
dança de direção da espiritualidade, que sublinha no-
vos valores, desvalorizando-se idéias antigas como
virtude, mística.
No atinente à mística, nota-se pouco entusiasmo
em parte da Igreja, e uma volta à mística em alguns
Ordens e Congregações e nos movimentos carismá-
ticos. Nota-se também no Brasil um aumento das re-
ligiões orientais e pentecostais, que vão na direção
mística. Também o espiritismo, como se sabe, leva
seu espírito neste sentido. Por sinal, bem nestes me-
ses de maio - junho de 2003 acontecem dois fatos:
Encontro na USP sobre medicina e espiritualidade, e
o IV Congresso da Associação Médico-Espírita sobre
o mesmo tema, prevendo-se 2. 500 participantes.
(Veja “Isto É”, 28/5/03).
A experiência milenar da Igreja sabe que a Espiri-
tualidade é a mola propulsora do Espírito na Igreja e
no mundo e, como toda mola, quanto mais se com-
prime, maior é a reação.
147

LEITURAS
A mística é rica em textos de valor. Aqui reúno
frases lapidares, curtas, meio ao acaso. Foram tira-
das da "Teologia das Realidades Celestes", do P. Jo-
ão Betting.
-Deus comunica à alma o seu ser, de tal sorte
que a pessoa parece ser Deus mesmo. Poder-se-ia
dizer que a alma mais parece ser Deus do que alma.
(Sta. Teresa, Subida 2,5).
-A alma vê a SS. Trindade por uma visão intelec-
tual, vê a distinção entre as Pessoas divinas. As 3
Pessoas comunicam-se e falam à alma. Sta. Tere-
sa, Moradas, 7.
-Santa Teresa, uma santa desabrida: Nas funda-
ções, numa difícil travessia de um rio, a santa se
queixa a Jesus, que diz: -“É assim que trato os meus
amigos". –E a santa: “Por isso é que os tem tão pou-
cos!"
-Orígenes era filho de Leônidas que, a caminho
do martírio, beijou o coração do filho, dizendo: Aqui
mora Deus! O mesmo Orígenes escreveu: Ó cristão,
tu és um céu e tu irás ao céu! Id. op. cit. 32.
-Deus nos criou à sua imagem e semelhança. Tal
foi o sonho do Criador: contemplar-se em sua obra,
ver aí brilharem todas as suas perfeições. Isabel da
Trindade, Carta.
-Congratulemo-nos e demos graças a Deus, pois
nos tornamos não somente cristãos e, sim, Cristo.
148

Entendestes, irmãos? A graça de Deus sobre nós!


Sto. Agostinho, Sermão.
-Ó almas, criadas para as grandezas, com que
bagatelas perdeis tempo. S. João da Cruz Cântico
39, 7.
-O bicho da seda vive comendo, dia e noite, as
folhas verdes. Depois se encasula: na casa de seda
que construiu, onde há de morrer. Morra, morra este
verme! Vai sair uma mariposa branca, transformada!
Nascer-Ihe-ão asas para voar. Sta. Teresa, Relação
18.
-Gertrudes Maria ouviu de Jesus: Não quero mais
que te ocupes contigo: quero que te esqueças. De-
vemos ser como gêmeos tão parecidos que se julgue
ver a mim.
-Permanecer pequena é reconhecer o seu nada e
esperar tudo de Deus. É não se afligir demais com as
próprias faltas. Significa não se atribuir a si mesmo as
virtudes que pratica. É não desanimar com as pró-
prias falhas; afinal, as crianças caem muito. Sta. Te-
resinha
-Antigamente exigiam-se vítimas puras e sem
mancha, mas, agora, vale a lei do amor. E o amor
escolheu para holocausto a mim, criatura fraca e im-
perfeita. Sta. Teresinha.
-Ó minha filha, templo meu, ama-me, porque eu
te amo muito, mais que tu a mim. Amo com imenso
amor a alma que me ama. Ângela de Foligno, em vi-
sita a Assis.
149

-Em meio aos maiores sucessos, eu retomava do


palco com uma tristeza indizível. Às vezes até chora-
va. Uma voz perseguia-me: Eva, tu não foste feita
para isso. Às vezes desesperava-me: pensei até em
suicidar-me (Depois ficou carmelita). Eva Lavalliere.
-Eu não tenho mais nenhum desejo a não ser o
de amar Jesus até à loucura. Sta. Teresinha, Últimas
Palavras.
-Nunca teria julgado fosse possível sofrer tanto.
Jamais, jamais. Só posso explicar pelos desejos ar-
dentes que tive de salvar almas. Sta. Teresinha.
-Deus não te proíbe amar as criaturas, mas só de
afeiçoar-te a elas como última felicidade. Podes a-
preciá-Ias e louvá-Ias para amar o Criador. Sto. A-
gostinho.
-Ordenas-me amar o próximo. Ora, eu não posso
amar senão a Ti. E Jesus: -Quem me ama, ama tudo
o que eu amo! S. Catarina de Gênova.
-Ao entardecer da vida sereis julgados sobre o
amor! S. João da Cruz. Aviso 57.
-Quando o homem pensa em Deus, sente doce
emoção no coração, o que demonstra que Deus é o
Deus do coração humano. O amor é a bandeira do
exército das virtudes: todas estas vêm enfileirar-se
atrás dela. S. Francisco de Sales.
-Um camponês vende sua cabana ao rei que, no
lugar dela, constrói um castelo. O camponês vai pro-
curar, em vão, sua antiga palhoça. Marie des Valées.
150

-Estando triste, abatido, basta ajoelhar-me aos


pés do sacrário e dizer: Senhor, tu és infinitamente
feliz e nada te falta. Então eu também sou feliz e na-
da me falta. Carlos de Foucauld (+ 1916).
-A oração do justo é a chave do céu. Sobe a pre-
ce, desce a misericórdia. E por sua bondade excessi-
va, o Senhor dá sempre mais do que foi pedido. Sto.
Agostinho.
-Quem reza se salva; quem não reza se condena.
Todos os condenados se perderam por não rezar.
Sto. Afonso.
-S. Francisco não rezava: era ele todo oração!
Celano, Vida de S. Francisco.
-Deus dá a graça da fé, mas a da perseverança
só dá aos que rezam. Sto. Agostinho.
-Há dias em que a gente vai à oração como à
guerra; outras vezes como ao baile. S. Nicolau de
Flue.
-Passar rapidamente à oração afetiva, sem se
demorar muito nas reflexões da meditação. S.
Francisco de Sales.
-Prestai atenção, espíritos intelectuais: o corcel
mais rápido para conduzir à perfeição é o sofrimento.
Mestre Eckehart.
-Os dois pés, com os quais caminhamos na via
da perfeição, são mortificação e amor a Deus. Aquele
é o pé esquerdo; este, o direito. Sta. Teresa.
151

-Aspiro chegar ao céu, não somente pura como


um anjo, mas transformada em Jesus Crucificado.
Isabel da Trindade.
-Quanto mais abraçamos a cruz, mais abraçamos
Jesus. Carlos de Foucald.
-O monge não tem o oficio de doutor, mas de pe-
nitente, chorando sobre o mundo e sobre si mesmo,
S. Jerônimo.
-Nosso coração nunca se farta, porque o bem in-
finito não tem limites. Gregório de Nissa.
-O que me atrai no céu? Felicidade? Só o amor,
amar e ser amada. Sta. Teresinha.
-A violência da dor não me deixa falar. Reza para
que minha alma não se perca nesta terrível provação.
B. Pio de Pietralcina (depois dos estigmas.)
- Vi o Coração de Jesus com todo o fulgor em lu-
gar do meu coração. P. Reus (+1947)
Obs. Os textos acima tocam em vários temas
próprios da mística : Deus, SS. Trindade, Criador,
Cristo, graça, inabitação, amor de Deus, amor do
próximo, dor, reparação, vítima, estigmas, céu, ora-
ção, Coração de Jesus, noite do espírito, humildade,
perseverança Mortificação, julgamento, conversão. A
maioria dos textos denotam a via unitiva.
CONCLUSÃO: Seja, embora, quase impossível
dizer a última palavra em ascese e mística - pois "o
Espírito sopra onde quer" - encerra-se aqui este pe-
queno tratado de espiritualidade tradicional. Na II Par-
152

te, que vem a seguir, faz-se uma tentativa de síntese


da espiritualidade moderna ou atual.
Nesta segunda parte vai-se perceber uma mu-
dança de direção da espiritualidade, que sublinha no-
vos valores, desvalorizando-se idéias antigas como
virtude, mística.
No atinente à mística, nota-se pouco entusiasmo
em parte da Igreja, e uma volta à mística em alguns
Ordens e Congregações e nos movimentos carismá-
ticos. Nota-se também no Brasil um aumento das re-
ligiões orientais e pentecostais, que vão na direção
“mística”. Também o espiritismo, como se sabe, leva
seu espírito neste sentido. Por sinal, bem nestes me-
ses de maio - junho de 2003 acontecem dois fatos:
Encontro na USP sobre medicina e espiritualidade, e
o IV Congresso da Associação Médico-Espírita sobre
o mesmo tema, prevendo-se 2.500 participantes. (Ve-
ja "Isto É", 28/5/03).
A experiência milenar da Igreja sabe que a Espiri-
tualidade é a mola propulsora do Espírito na Igreja e
no mundo e, como toda mola, quanto mais se com-
prime, maior é a reação.
153

II PARTE
ESPIRITUALIDADE ATUAL
Vimos na primeira parte a espiritualidade antiga,
tradicional; tenta-se visualizar agora a espiritualidade
ainda em formação, da segunda metade do século
20, pós Vaticano II.
Um autor moderno resumiu muito bem toda a
questão, como mostro a seguir. Acho que, para en-
tender toda a problemática, é bom estar atento à I
Parte, para entender a evolução.19

INTRODUÇÃO
A espiritualidade ou teologia espiritual, nas últi-
mas décadas, passou por uma fase de crise, questio-
namentos, atualização de seus fundamentos teóricos
e práticos como, aliás, toda a teologia.
Os nossos leigos eram bons cristãos, com algum
apostolado, praticavam a oração, as devoções, rece-
biam os sacramentos e as decisões do padre sem
muitas perguntas. Pertenciam, os mais ativos, à Ação
Católica, Apostolado da Oração, Congregação Mari-
ana, Legião de Maria, Vicentinos e a outras associa-
ções paroquiais, à catequese.
Nas últimas décadas, depois do Vaticano II, e
mesmo antes, a espiritualidade que servia de suporte
à piedade e à pastoral, começou a ser questionada.

19
SEGUNDO GALILEA: O caminho da espiritualidade, EP, l985.
154

As fontes deste questionamento foram os movimen-


tos: bíblico, litúrgico, cristológico, eclesiológico, marial
que começaram dar uma nova visão. Também o so-
cialismo, muito forte e militante, obrigou a Igreja, des-
de Leão XIII, a refletir sobre o socialismo cristão, apa-
recendo então a célebre sociologia religiosa.
Todas estas idéias foram dar no Concílio Vatica-
no II que deixou exatamente documentos sobre os
temas acima, com grande influência, como veremos,
na leitura da Bíblia, Igreja, comunidade, vida religio-
sa, mariologia, visão do mundo, hierarquia e até e-
cumenismo.
Tudo isso teve grande repercussão na espirituali-
dade: só cito a Lumen Gentium, a renovação do culto
mariano, da vida religiosa.
Nos anos 70 aconteceu uma renovação institu-
cional e pastoral que iria desaguar nas CEBs ou co-
munidades eclesiais de base, na opção pelos pobres.
Também os ministérios, a pastoral, os religiosos co-
meçaram a atualizar-se. Fundaram-se instituições
como a CNBB, CRB, CELAM que coordenam a pas-
toral até hoje, principalmente nas Assembléias, como
as de Medellin, Puebla, Santo Domingo. Já então se
tocava no problema da espiritualidade encarnada,
como se pode ver nos documentos finais. Acontece-
ram também os Sínodos em Roma, que tocaram em
temas atuais, que foram depois temas de Cartas A-
postólicas.
Na década de 80, procurou-se uma espiritualida-
de coerente com estas correntes na Igreja, principal-
mente a da pastoral, da missão que exigiam uma teo-
155

logia espiritual adaptada. Surgiram então as idéias de


inserção, missão a partir dos pobres, teologia da li-
bertação, as Cebs que se espalharam por toda a
América Latina. Estas procuraram uma espiritualida-
de própria, como se pode ver em obras de G. Gutier-
rez, J. Sobrino, S. Galilea, C. e L. Boff, Moreno Rejón
e muitos outros. As revistas religiosas tocam muito
nestes temas, como se poderá ver na bibliografia, na
adenda das Leituras. Daí a busca de uma mística do
seguimento do Jesus histórico, do “Jesus Libertador”,
do serviço ao empobrecido, da comunidade, do ecu-
menismo. Modificou-se o modelo de Igreja. O método
a partir das bases, da experiência implantou-se na
pastoral e, por conseqüência, na espiritualidade.
Em muitos grupos chegou-se a uma crise de rup-
tura, com a perda dos enquadramentos tradicionais.
Na experiência pastoral e religiosa houve dois fatos:
a urgência das tarefas de libertação social, evangeli-
zação das realidades, e a acentuação no processo de
secularização, originando-se daí um impacto religio-
so-cultural. Há quem desse preferência ao social,
mesmo ante o aspecto religioso: uma passeata torna-
se mais importante que uma missa. Isto levou a um
questionamento mais sério na área de espiritualida-
de. Qual a identidade do cristão? Qual deve ser a luta
pelos ideais humanos? Para que servem oração e
sacramentos? Que significam para nós mundo, po-
breza, violência, capital, vida social?
Fala-se, então, de uma nova Igreja, nova Pasto-
ral, , nova missão, nova espiritualidade, encarnadas
no compromisso político-social, nas lutas do povo.
Muda-se o ideal de santidade e de cristão. Daí a a-
156

bandonar a espiritualidade tradicional foi um passo.


Para quem fez cursos de atualização neste tempo
tais questionamentos são conhecidos.
A reação também fez-se sentir com novos movi-
mentos espirituais, nem sempre bem recebidos, ba-
seados numa teoria desencarnada, na oração, na
pastoral familiar, quando não em devoções ultrapas-
sadas, alheias à realidade, pietistas. Contra as muitas
mudanças, feitas nem sempre de modo muito demo-
crático, a reação dos tradicionalistas foi grande, che-
gando até ao cisma.
Também as congregações religiosas sofreram
forte impacto e até divisões, que bem conhecemos.
Mas tal confronto se amainou bastante depois da
queda da URSS e no longo pontificado atual.
Nas áreas de comunidades urbanas e rurais, nos
cursos de pastoral e atualização, na volta às fontes
de muitas ordens e congregações tem havido muita
reforma prudente e sábia, assim como novos movi-
mentos espiritualizados na Igreja.

Ainda é cedo para se fazer uma avaliação de tu-


do isto mas, aproveitando tudo o que passou e tudo
que restou, tenta-se aqui colocar os elementos mais
importantes de uma teologia espiritual atualizada, se-
guindo uns poucos compêndios que se editaram Ou-
tras idéias vão aparecer no texto e nas leituras.20

20
Dicionário de Espiritualidade; SECONDIN-GOFFI: Curso de Espirituali-
dade.
157

BIBLIOGRAFIA ELEMENTAR
Dicionários Bíblicos e Teológicos: León-Dufour, J.
McKenzil, Van den Born.
Dicionário de Espiritualidade, EP, 1989.
B. Secondin-T. Goffi (Edit): Curso de espirituali-
dade, Paulinas, 1994.
Thomas Merton: Contemplação num mundo de
ação, Ed. Vozes, 1975.
Diário: Viagem da Ásia, Ed. Vega, 1978.
Segundo Galilea: O caminho da espiritualidade,
EP, 1985.
Romano Zavalloni: Le strutture umane della vita
spirituale, Morcelliana, 1971.
CNBB: Espiritualidade presbiteral hoje, EP, 1974.
René Voillaume: Com Cristo Jesus, EP. 1972.
Vitorio Morero: Concílio e vida interior, EP. 1971.
Chiara Lubich: L’ attrativa del tempo moderno,
Città Nuova, 1978.
Albert Nolan OP: Espiritualidade do serviço aos
pobres, EP, 1992.
Bernhard Häring: Vida em Cristo plenificada, Ed.
Santuário, 1998.
J. B. Libânio: Discernimento espiritual, Ed. Loyo-
la, 1983.
158

Marcelo C. Azevedo: Oração na vida e Dom, Ed.


Loyola, 1988.
Inácio Larrañaga: Mostra-me teu rosto, EP. 1975.
Cardeal Suenens: O Espírito Santo, nossa espe-
rança, EP, 1975.
D. Helder : Renovação no Espírito e serviço do
homem, EP. , 1979.
João Mohana: O mundo e eu, Agir, 1989. Plenitu-
de humana, Ed. Globo, 1977.
Espiritualidade e teologia da libertação, Ed. Lo-
yola, 1987.
D. Luís Martínez: O Espírito santificador, EP.
1975.
Vassula Ryden: A verdadeira vida em Jesus, Ed.
Boa Nova, 1992.
Carlos Carreto: Deserto na cidade, Ed. Paulinas,
1978.
REVISTAS RELIGIOSAS: Todas tratam também
da espiritualidade: Revista Eclesiástica Brasileira, A-
tualização, Grande Sinal, Unidade e Carisma, Pers-
pectivas de Comunhão, Revista dos Religiosos, Ulti-
mato, Communio, Mílite, Gen´s, Família Cristã. Legi-
ão de Maria. E todas as revistas próprias das Associ-
ações, Congregações e Ordens Religiosas.
Recomenda-se consultar a “bibliografia clássica”
no início da I Parte.
159

LEITURAS

BESNARD escreveu: “Uma coisa é captar a re-


novação da espiritualidade; outra é definir-lhe os con-
tornos, esboçar suas perspectivas, descobrir-lhe as
tendências. Às vezes são meros slogans, idéias es-
parsas em artigos, monografias. Falta uma sistemati-
zação”.
CONSTANTES: Encontrei em livros e revistas de
espiritualidade estes temas que denotam as preocu-
pações constantes dos últimos decênios:
Leigos. Realidades terrestres. Engajamento. Ju-
ventude. Liberdade e libertação. O pobre. Direitos
humanos. Secularização. Natureza. Mundo dessacra-
lizado. O homem. Aparições. Modernização. Ação
católica. Ação social. Família. Ecumenismo. Fenô-
menos místicos. Movimento Familiar Cristão. Equipes
de N. Senhora. Mundo Melhor. Padres operários.
Progresso. Quietismo. Retiros.
Questão social. Diálogo. Espiritualidade conjugal.
Homem abstrato. Cristão maduro. Ecologia. Experi-
ência de Deus. Religiões não-cristãs. Corpo, psique. .
Política. Mulher. Carisma. Trabalho e técnica. Cultu-
ra. Saúde. Revelações. O sagrado. Eros e espirituali-
dade. Violência. Ateísmo. Heroísmo. Amizade. Sexu-
alidade. Amor. Terapia. Virgindade. Música. Silêncio.
Fé e política. Opção pelos pobres, feminismo. Dro-
gas. Comunicações.
UM CONGRESSO de Espiritualidade, em 1980,
resumiu: “A espiritualidade, que queremos revitalizar,
160

pretende enfatizar o amor de Deus, que chama para


seguir Jesus, e que se revela no pobre. Na luta, no
dom de si mesmo, no martírio do povo, Jesus é se-
guido até o sacrifício da cruz, mas também até sua
ressurreição libertadora.
Faz da opção solidária pelos pobres e pelos o-
primidos uma experiência do Deus de Jesus Cristo.
Isto exige de nós um constante êxodo interior e uma
mudança de caráter social e cultural”.
Eis aí uma boa tentativa de descobrir as idéias -
mestras da espiritualidade.
SANTO DOMINGO: “A nova evangelização exige
uma renovada espiritualidade que, iluminada pela fé
que se proclama, anime, com a sabedoria de Deus, a
autêntica promoção humana e seja o fermento de
uma cultura cristã”. N. 45.
161

1. EXPERIÊNCIA RELIGIOSA.
“Em Deus descobrem-se novos mares, quanto
mais se navega”, escreveu Frei Luís de León. A ex-
periência espiritual, seja na Bíblia, seja na vida, é
uma aventura, como dizia Orígenes: “Fiar-se numa
pequena tábua num oceano de mistérios”! É o que
tentamos fazer aqui: “Navegar é preciso!”
A EXPERIÊNCIA DE DEUS é feita de dois mo-
dos: lendo nas Escrituras as maravilhosas experiên-
cias que, desde Adão e Eva, os Patriarcas, Moisés,
Profetas e até Reis fizeram, do Deus de Israel, aque-
le que marchava com seu povo. Desta experiência
trataremos a seguir.
O segundo modo é o caminho da razão. Com a
ajuda de Platão, seu mundo das idéias, chegou-se,
numa prova, baseada na ordem do mundo, da exis-
tência de um Demiurgo ou Deus. Já Aristóteles, com
sua metafísica e seus princípios de causa e efeito,
fim, ordem, chegou à causa das causas. Ambas filo-
sofias dominaram a Idade Média, na chamada Esco-
lástica, chegando, com o tomismo, até nossos dias.
Acontece que Descartes (“Penso, logo existo”)
estabeleceu a experiência psicológica. Bacon estabe-
leceu a ciência positiva ou do concreto, introduzindo
as observações, matéria das induções, as experiên-
cias. Kant vai colocar alma e Deus nos postulados da
razão prática. Os idealistas posteriores, materialistas
e existencialistas vão negar qualquer experiência –
mesmo psicológica- ou postulado de Deus.
162

Tanto a filosofia como a teologia aristotélico-


tomista não aceitam a possibilidade de uma experi-
ência de Deus. De fato, o conceito de experiência é
complexo na sua ideologia e método. Há postulados
como o de K. Rahner que escreveu: “Deus, com sua
graça, chega também lá onde não lhe foi ereto ne-
nhum altar”.
Teólogo houve, no séc. 19, que tentou chegar a
Deus apenas pela fé, caindo no chamado fideísmo,
que a Igreja não aceitou.
Há quem hoje tente o caminho da experiência,
que também a mística advoga de 4 MODOS: -Senso
comum, quer da pessoa, quer de conjunto de pesso-
as, na História. É um argumento usado pela apologé-
tica, quanto à religião e culto.
A razão humana é o 2º modo aduzido; não tanto
a razão discursiva, mas a intuitiva.
O 3º modo é o seguimento de Jesus, seu teste-
munho do Pai, de Deus, testemunho de sua vida.
O 4º modo são os frutos do Espírito: amor teolo-
gal, o amor do próximo, o amor provocativo.21

21
SECONDIN-GOFFI: Curso de Espiritualidade, c. I, p. 47s.
163

2. EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL
BÍBLIA E CULTURA.
Para uma racionalização da espiritualidade hoje
não podem faltar a fonte que é Bíblia, nem a exigên-
cia histórica que é a inserção na cultura.
Uma volta à Bíblia é sempre o melhor caminho
para uma atualização: volta às fontes, como pediu o
Vaticano II. Mas, já no século 11, avisava o sábio Ba-
hia Ibn Pakuda: “É loucura extrair da Bíblia um senti-
do, omitindo o outro”, pois é grande a tentação de ser
unilateral.
De fato, o A.T. não tem um termo para espiritua-
lidade e mesmo religião mas, na sua linguagem sim-
bólica, indica muito bem o modo de o povo de Deus
devoto cultuar a Deus. Já começa com a Torah, lei,
doutrina.
A Bíblia não demonstra que Deus existe: para
aquele povo era evidente: ante toda a criação, ante o
êxodo. É uma idéia “a priori”. A experiência de Deus
começa no paraíso, e prossegue em toda sua Histó-
ria. A palavra de Deus é a água, chuva e neve que
“descem do céu e para lá não voltam sem fecundar a
terra e fazê-la germinar” (Is. 55, 10).
Outro simbolismo é o da luz que aparece logo no
início da criação. Aparece também o espírito, pairan-
do sobre as águas. Ezequiel evocará este símbolo:
“Vou fazer que sejais penetrados pelo Espírito e vive-
reis” (Ez. 37,5).
164

A comunicação de Deus com pessoas-chave do


AT é uma experiência contínua: Abraão, Jacó, Moi-
sés, Josué, Davi, os Profetas.
Com os reis aparece a idéia de um Deus-juiz,
goel, vingador dos pobres.
Aparece, em lugar dos méritos pessoais, a obra
da graça divina, a salvação. “Eu sou o primeiro e o
último” (Is. 41,4; 44,6).
A experiência é dinâmica: experiência de crer,
buscar, retornar a Deus. São palavras de esperança,
fidelidade, temor, amor.
As palavras têm uma conotação sensível: ver,
saborear, provar, aderir. São corporais as experiên-
cias espirituais. “Aquele que busca a Deus” , buscar o
rosto de Deus. A práxis resolve o problema da fé e
obras.
A espiritualidade bíblica alimenta-se da vida: fala
de liberdade, de lâmpada para os passos, fogo, água,
delito-castigo, justiça-prêmio, caminho. A entrega da
Lei tem uma encenação digna dos melhores palcos e
até de um filme. O homem é carne;
Em resumo, Deus como que se encarna no meio
do seu povo pela palavra, sonhos, visões, sinais, ma-
ravilhas, e também castigos. É rei soberano. O NT.
vai retomar todos estes símbolos, dando-lhe Jesus
interpretação mais elevada.
O culto é muito aderente à cultura do tempo, ao
homem. A oração evoca prostração, incisões, julga-
mento. Há suspiros, gemidos, altas vozes, choro, la-
165

mentos, sussurros, silêncio. Divide-se o culto em ri-


tos, súplicas, louvor, perdão.
O homem espiritual é indicado por símbolos: A-
braão dispõe-se a sacrificar seu filho. Jó aceita o
despojamento total. Davi é o rei ideal, mas o pobre
também encontra lugar nesta espiritualidade: o ebjôn,
o anawîm, os ptochói dos quais Deus é o go’el, o de-
fensor. Encontram-se o pessoal e o social.
A Bíblia apresenta-se como texto de clara espiri-
tualidade. Basta ver os salmos, os livros sapienciais.
O próprio Pentateuco, a Torah, se examinarmos bem,
contém alta espiritualidade. A tradição eloísta parte
de Abraão, e vai até o Sinai, onde aparece o tema do
temor de Deus. A tradição sacerdotal pensa a identi-
dade de Israel, contra a mistura de outras culturas e
religiões. Lê a criação na linha sabática. O texto sa-
cerdotal fixa-se na Terra Prometida, a promessa divi-
na, terra santa. Fala de ritos, sacrifícios, tenda da re-
união, sacerdotes. “Sede santos porque eu sou san-
to!” repete o Levítico. (Lv 19).
A espiritualidade do Pentateuco está ao redor da
Aliança, que estende a toda a humanidade (Gn. 9). O
culto se entende na dimensão sacral. Logo aparecerá
o templo, com todo o seu ritual, já figurado na Tenda
da Reunião. Na Jerusalém celeste não haverá tem-
plo: “seu templo é o Senhor” (Ap 21,22)
A espiritualidade profética, então, é mais explíci-
ta: os profetas foram enviados para converter, purifi-
car o povo de Deus: “E´ o amor que eu quero, e não
sacrifício”, vai proclamar Oséias (Os 6,6). As virtudes
da justiça, solidariedade, ante as muitas opressões
166

que acontecem, visam defender o pobre, o oprimido.


Delineiam-se as promessas messiânicas: Deus virá e
salvará o seu povo. Jeremias é símbolo do povo so-
fredor, exilado: Isaías fala do redentor: “Abri no de-
serto o caminho para o Senhor!” (Is 40, 3).
A espiritualidade nos salmos é evidente: falam
eles do sabor de Deus, que é “luz de uma lâmpada
para meus passos”. O salmista proclama: amo o Se-
nhor, meu rochedo. Dá espaço e tempo para a pre-
sença divina. Procura a face de Deus.
Os livros sapienciais procuram a verdadeira sa-
bedoria, tão ao gosto grego. Parecem Jesus ensi-
nando: “Uma só coisa é necessária!”. Ensinam os fi-
éis de Javé, a viver no meio às vezes adverso, às ve-
zes complacente dos gregos. Ensina até boas manei-
ras, “para aprender a sabedoria e a disciplina” (Pr
1,2).
Parece-nos ouvir mestres cristãos, quando lemos:
“Filho, escuta a advertência de teu pai. . . então com-
preenderás a justiça e o direito”. E mais: “Eu vou der-
ramar o meu espírito sobre vós” (Pr 1,8 e 23). Os li-
vros de Jó, e do Eclesiástico parecem uma pura as-
cese , com seu rol de virtudes.
É interessante a evolução da teologia social, se
assim podemos dizer, dos judeus: de um isolamento
na Palestina, obrigados ao exílio, aprendem a convi-
ver com outra civilização avançada e, após uma volta
aos ideais antigos com os Macabeus, enfrentam a
alta civilização dos gregos e romanos, como no tem-
po de Jesus e de Paulo. A dispersão pela diáspora
ensinou-os a subsistir até tempos de hoje. As lutas da
167

Palestina atual, depois de 50 anos, não prometem


chegar ao fim depois de milênios de embates.
“Quando virá, Senhor, o dia?”, pergunta Isaías.
ESPIRITUALIDADE E CULTURA.
É difícil falar de experiência em religião e mesmo
cultura, pois, ao contrário do empirismo empregado
nas ciências exatas, as experiências da cultura e reli-
gião são experiências já interpretadas: formam um
todo indissociável. Assim, a experiência espiritual não
vive no isolamento em relação à experiência humana.
A “Gaudium et Spes”, Igreja no Mundo, do Vati-
cano II tratou do tema da cultura e descreveu-a: “Cul-
tura, i. é, cultivar os bens e valores da natureza.” “In-
dica as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e
desenvolve a variadas qualidade da alma e do cor-
po”. E nomeia o conhecimento, trabalho, vida social,
família, progressos, instituições, experiências, aspira-
ções de todo o gênero humano.
Como se vê, uma idéia que envolve muitas idéi-
as. Poderíamos resumi-las nos termos: vida, história,
herança, religião.
Mas a cultura hoje enfrenta condições adversas
com a secularização, a modernidade, a globalização,
e até a violência que não respeita culturas. Discute-
se se haverá alguma cultura que resista. Há quem
aponte as culturas do Oriente médio e extremo orien-
te como resistentes àqueles impactos, pelo fato de
estarem muito unidas a uma religião, o que não acon-
tece no Ocidente.
168

Alguns acham que o grande progresso das ciên-


cias exatas são uma ameaça para as culturas.
Considere-se a relação religião e cultura. O Con-
cílio na GS 57-62. Trata longamente da relação fé e
cultura, mas frisa a cultura integral: “Há inúmeros vín-
culos entre salvação e cultura”, diz (n. 58). Mas, lem-
brando que muitos governos gozam de autonomia e
poder, avisa que “a cultura desviada do seu próprio
fim, não seja forçada a sujeitar-se aos poderes políti-
co-econômicos”.
Esta advertência mostra que as ameaças à cultu-
ra não são imaginárias. Os exemplos do século 20
mostram fatos muito concretos.
É importante o apoio firme da religião, da espiri-
tualidade à cultura, pois as três se apóiam mutua-
mente. A história do povo judeu e do povo cristão,
nestes mais de 3 milênios, parece demonstrar clara-
mente isto. Basta lembrar o embate entre o paganis-
mo greco-romano com a cultura judaica e nascente
cultura cristã. Hoje é a cultura cristã, católica que se
defronta com a cultura globalizada, cujo futuro mal se
pode imaginar. Um caminho seria o dos Macabeus e
dos mártires; outro seria de inculturação muito calcu-
lada, onde não se sabe se a espiritualidade e as pró-
prias religiões poderão sobreviver.
Acresce a força que o ateísmo está adquirindo no
mundo: haverá reação?
Parece-me, como mostra a História, o Espírito,
mais uma vez, vai sair indene.
169

CONCLUSÃO: Os dois parâmetros: cultura bíbli-


ca e cultura moderna, parecem de difícil união e solu-
ção, tanto isoladamente como em conjunto.
Não se pode voltar à Palestina de 2-3 milênios a-
trás, nem tentar a volta ao judaísmo, como tentam
radicais judeus.
Nem mesmo é possível restaurar a cultura roma-
na, medieval e sequer a moderna pós-tridentina, para
nalguma destas culturas basear uma espiritualidade.
Seria cair num fundamentalismo total.
Não temos mais uma filosofia geralmente aceita
que ponha as bases de uma reflexão e de decisões.
Como sempre acontece, uma cultura e uma espiritua-
lidade danificadas, destruídas dificilmente poderão
ser reconstituídas.
Falta a base para identificar o que é importante,
decisivo, essencial. Só para refletir: No século 12 S.
Bernardo pregava a cruzada contra os maometanos;
no século 21, Bin Laden prega cruzada contra os infi-
éis cristãos americanos. . .
Como conciliar a cultura oriental e ocidental, am-
bas unidas a religiões?

LEITURA
Haveria textos célebres a flux que tratam de
Deus. Cinjo-me a dois. o primeiro de um grande san-
to convertido, na versão de outro convertido, Giovan-
ni Papini.
170

“AGOSTINHO continuava a chorar e a bradar: ‘A-


té quando, Senhor, até quando estarás irado contra
mim?’"
Mas o amor terrestre, essa culpa amadíssima,
retinha-o ainda, prolongava sua hesitação. ‘Quando
me salvarei? Será sempre amanha? Por que não se-
rá agora?’
E, enquanto continuavam a brotar as lágrimas de
seu coração, ele ouviu de improviso elevar-se em
uma casa vizinha uma voz de criança : ‘TOMA E LÊ’,
dizia essa voz doce e infantil.
Agostinho mudou de expressão, prestou ouvidos.
Era o estribilho de alguma cantiga dos pequenos? Ele
ergueu-se de um pulo, correu aonde estivera sentado
com Alípio e onde deixara o livro de São Paulo. Agar-
rou o livro, abriu-o ao acaso, e ante seus olhos surgi-
ram estas palavras da Epístola aos Romanos: ‘An-
demos honestamente como de dia: não em glutoneri-
as, nem em bebedeiras, não em desonestidades e
dissoluções, não em contendas e inveja. Mas revesti-
vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da car-
ne em suas concupiscências”. Bastou-lhe este versí-
culo, adequado ao seu caso”.
CASIMIRO DE ABREU: “Eu me lembro! Eu me
lembro! – Era pequeno e brincava na praia; o mar
bramia e, erguendo o dorso altivo sacudia a branca
espuma para o céu sereno.
E eu disse à minha mãe nesse momento: ‘Que
dura orquestra! Que furor insano! Eu pode haver
171

maior do que o oceano, ou que seja mais forte que o


vento?!
Minha mãe a sorrir olhou p’ros céus e respon-
deu: “Um Ser que nós não vemos: é maior do que o
mar que nós tememos. Mais forte que tufão! meu fi-
lho, é –DEUS!- (dezembro de 1858).
(Nesta poesia, vemos o argumento perfeito de
Sto. Tomás: uma das cinco vias para provar, pela bo-
ca de mulher simples, a existência de Deus: efeito e
causa, a criação do mundo e Deus.)
172

3. PROBLEMAS ATUAIS DA ESPIRITUA-


LIDADE
Tenta-se fazer aqui uma síntese dos principais
problemas concretos, onde se diferenciam ideais an-
tigos e modernos, ascese e vida cristã, clero e leigos,
ecumenismo e identidade religiosa, mundo e Igreja,
interiorização e apostolado. vida consagrada e vida
no mundo. Enfim, santidade e vida cristã “normal”.
Como vêem, uma tarefa árdua, extensa, ainda mal
definida.
Tais problemas são de teologia dogmática, moral
, mas envolvem a espiritualidade. Lembro que, dado
o ecumenismo nos países que sofreram a divisão en-
tre católicos e protestantes - crentes, os problemas
acima refletem divergências antigas, por exemplo en-
tre a Igreja e os luteranos.
No Brasil, o crescimento das denominações cren-
tes, está trazendo os mesmos problemas, embora
menos dramáticos. Nossa cultura ainda é católica.
Há felizmente boas monografias que tratam des-
tes assuntos, que citaremos.
TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Entre outras escolas de teologia, por exemplo, as
que seguem a filosofia existencialista, outros filósofos
modernos, a Teologia da Libertação (TdL) é bem es-
truturada, seguindo a filosofia hegeliana e até marxis-
ta. Mas há nela diferentes linhas, desde as mais mo-
deradas, até as mais extremadas. Em todas elas for-
mam-se as célebres comunidades eclesiais de base
173

(CEBs), que são influenciadas, ora pela Igreja, ora


pela análise sociológica.
Distinguem-se 3 tipos de evangelização, segun-
do o Sínodo de 1974, com relação à libertação. 1.
Tendência espiritualista e dualista: o Reino de Deus é
transcendente, sem relação com os problemas do
homem e da sociedade. 2. Tipo temporalista: a pro-
moção humana deve preceder à evangelização. Os
homens dividem-se em opressores - oprimidos.
A raiz desta situação é o capitalismo. A Igreja é
conivente com os dominadores. 3. Tipo marxista: Há
cristãos, semelhantes aos do grupo anterior, que op-
tam pelo marxismo militante, que é o método de aná-
lise sócio-político-econômica. O socialismo é a solu-
ção. Até certa leitura radical do evangelho favorece
esta visão.
Há o que tentam uma 4ª posição, numa síntese:
verdadeira relação evangelização – libertação. Esta
parece ser a linha do Fr. Camilo Maccice no Dicioná-
rio de Espiritualidade.
Aqui apresento um resumo da teoria de Gustavo
Gutiérrez, um dos corifeus da TdL, em sua conhecida
“Teologia da Libertação”, ed. 1985.
G. GUTIÉRREZ ensina: Nas últimas décadas do
século 20, descobriu-se o outro : o pobre, a classe
explorada. Logo se chegou à conclusão da necessi-
dade de um poder popular, contra a propriedade pri-
vada dos meios de produção. Exigiu-se a apropriação
social da gestão política, da liberdade, enfim.
174

O que se visava neste processo revolucionário


era conseguir para os pobres um modo novo de ser
homem e crente, de viver e pensar certo a fé, de ser
igreja.
Mas há vários graus de radicalidade nesta ação
ou práxis. Caminhando se abre caminho.
A PRÁXIS: A comunidade libertada e libertadora
é fruto de um processo. Um exemplo é seguir as exi-
gências da práxis histórica de libertação na América
Latina (A . L.).
Durante séculos de colonização e “independên-
cia”, os cristãos da A . L. viveram despreocupados. O
seu mundo religioso, ligado ao mundo profano, domi-
nado pelos ricos e poderosos, vivia no irreal. A vida
eterna era prometida àqueles que carregavam a cruz
com muita paciência. Aconteceu assim a dominação
de classes. Os grupos dominantes apoiavam-se na
assim dita civilização cristã.
Contra tudo isso começou a democracia, na polí-
tica, com as repúblicas. Na economia a reação foi do
socialismo, mais tarde. No âmbito religioso, foi a “a-
ção social”, ante a miséria, resultado da industrializa-
ção que começa então, empobrecendo as áreas agrí-
colas.
Começa-se a falar das injustiças sociais, desco-
bre-se a análise sócio-econômica. Aprende-se a ter
uma visão mais científica da realidade. Pergunta-se:
Como ser cristão numa tal situação?
Alguns países da A . L. despertam mais rápidos
que outros, contra a injustiça. Havia surgido, então, o
175

célebre humanismo cristão, inserido no programa de


partidos de inspiração cristã, como o PDC. Mas não
tardou a partir para a radicalização, como a dos parti-
dos trabalhistas, socialistas.
A revolução em Cuba foi um marco histórico.
Aparecem as figuras de Fidel Castro, Che Guevara,
Camilo Torres, que se tornam padrões de libertação.
A Assembléia do Celam em Medellin preocupou-
se com a situação violenta e alertou para a “violência
institucionalizada”, pois, grupos radicais tomavam po-
sição revolucionária. Em alguns países, como o Bra-
sil, começou a repressão.
Por volta de 1966, começam a aparecer estudos
e reflexão sobre evangelho e violência. Aparece até
uma teologia da revolução ou da violência. Insinua-se
a luta de classes. Adota-se a análise socialista e até
marxista.
Na Igreja aparece esta linha: O pobre não é um
dado fatal, não é neutra sua existência, nem política,
nem eticamente. O amor do próximo é um compro-
misso essencial. Não se
pode isolar o pobre: no evangelho: ele é o próxi-
mo por excelência.
Começa-se a utilizar a exegese de Jesus históri-
co, diferente do Jesus pascal. Seria Ele o go´el, o
vingador, o libertador dos oprimidos. L. Boff escreveu
então: “Jesus Libertador”.
Volta-se ao antigo “Que fazer?” dos socialistas
do século 19 e parte-se para a práxis. libertadora.
176

Procura-se uma nova inteligência da fé, não em cate-


gorias gregas, mas em novas categorias culturais,
hegelianas, históricas (tese, antítese, síntese).
Na Igreja, o novo sentir de Igreja concretiza-se
nas CEBs, a igreja do povo, onde não importam tanto
a hierarquia, os cristãos, as pessoas, a liberdade, a
fraternidade, junto com o anúncio e denúncia. Exige-
se uma opção real pela luta pelos pobres. Situar-se
neste “lugar” significa ruptura radical com o modo de
viver, pensar, comunicar a fé antiga.
A filiação à CEB faz-se na História: lutar contra a
injustiça, exploração e viver, testemunhar o amor do
Pai, aqui e agora.
Nesta ação decidida não faltam mártires: Henri-
que Pereira Neto, Penido, Nestor Paz, Heitor Gallego
e muitos outros, cujos nomes enfeitam as bandeiras
da T. d. L. Os grupos anunciam profeticamente uma
Igreja de serviço, onde a esperança faz “esperar con-
tra toda esperança”
As CEBs se espalham por toda a América Latina
e pelo Brasil. Encontra-se mais dificuldade de erigi-
las no centro das cidades. As CEBs. celebram as-
sembléias anuais, nacionais, que são marcos na sua
história.
Duas observações: Rejeitada a antiga espirituali-
dade, ainda não se criou uma nova, adaptada aos
ideais e à teologia da libertação. Vamos ver mais tar-
de que até a teologia espiritual adaptada aos tempos
atuais ainda se está elaborando. Com a queda da
URSS, exemplo de libertação de vários países comu-
177

nistas, esfriou-se um tanto a T d. L. Mas isto não quer


dizer que a T.d.L não continue válida; enfim libertador
é outro nome para redentor.22
Sobre a espiritualidade da T.d.L podem-se ler
com proveito duas obras, uma da África do Sul, outra
do Brasil: Albert Nolan, Espiritualidade do serviço dos
pobres, EP, 1992, 62 p. e João Mohana: Espirituali-
dade e Teologia da Libertação, Ed. Loyola, 1987, 92
p. A primeira é mais teológica; a segunda, mais jorna-
lística. No aspecto moral veja-se: Marciano Vidal: Mo-
ral de Atitudes, III, Moral Social, 4a. ed. , 1995, Ed.
Santuário.
ESPIRITUALIDADE NÃO-CRISTÃ
O princípio ecumênico manda olhar mais o que
nos une, do que nos separa. É neste sentido que se
pode perguntar se há uma espécie de espiritualidade
nas religiões não-cristãs e se ela nos une ou separa.
Um problema grave é que em algumas delas não
existe o conceito de espírito; noutras existe mas des-
toante do conceito cristã. Há as que acreditam nas
“almas” mas também na sua transmigração, reencar-
nação. No judaísmo tardio aparecem corpo, alma,
espírito, mas com sentido não muito definido. “Deus
inspirou o espírito da vida”, diz-se no Gênesis. Que
espírito? Só mais tarde se passa a acreditar numa
espécie de retribuição futura, como vemos no Livro
dos Macabeus: “O Rei do Universo nos ressuscitará
para uma vida eterna. . . é desejável passar para a

22
C. O. RIBEIRO: A teologia da libertação morreu? REB, abril/2003,
p.320s.
178

outra vida. . . Ele mesmo é quem os dará novo espíri-


to e a vida” (2 Mc, 7, 9- 14- 23). No islamismo o sol-
dado morto em luta ficará num lugar feliz, com muitas
uris.
No hinduísmo, budismo, xintoísmo a afinidade é
menor ainda. No “Diário da Ásia”, Thomas Merton
registra seus diálogos, impressões numa longa via-
gem pelo Oriente, procurando contato com os líderes
religiosos, monges, com resultados surpreendentes,
mas com grande dificuldade de entender os concei-
tos, idéias de religiões milenares, que mais parecem
filosofias. Infelizmente Thomas Merton não teve tem-
po para as conclusões desta aproximação ecumêni-
ca. Sabe-se que é grande a atração de uma possível
espiritualidade indiana, japonesa, chinesa. É célebre
a tentativa de aproximação dos jesuítas com os chi-
neses. Mesmo o conceito de Deus é muito discutível,
não obstante a admiração do nosso Humberto Roh-
den, que fez estágio no Tibet.

Este problema com o conceito de Deus existe,


tanto na China, como no hinduísmo, e entre nossos
índios, para os quais Tupã pode ser deus ou trovão.
Não esquecer que Theós, Zeus e Deus provavelmen-
te têm a mesma etimologia. Em todo caso, o que im-
pressiona os ocidentais é a cultura milenar que con-
tém formas de culto, monges, faquires, posturas e
sobretudo orações, numa sintonia de filosofia e religi-
ão, que nós, ocidentais perdemos.
Nas religiões semitas a proximidade é maior: Alá,
Maomé, o profeta, Alcorão são esquemas conheci-
179

dos. No hinduísmo há os livros sagrados: Vedas, U-


panishad. No budismo há o Buda, o iluminado;
Dharma, as 4 verdades; Sangha, a comunidade dos
santos. Quem imaginaria que Fátima, a filha predileta
de Maomé, daria nome ao lugar das aparições de Fá-
tima? A China tem seu santo e fundador em Confú-
cio, que goza até do privilégio de um templo. São cul-
turas milenares que sustentam religiões rudimenta-
res.
NOVA CULTURA – NOVA ESPIRITUALIDADE.
Parece claro que uma atualização pastoral, espiri-
tual deve ir em direção à cultura, ou novas culturas,
ainda em formação ou em mudança. É fácil constatar
que nossas culturas estão mudando face à moderni-
dade, “uma nova época da história humana, uma
transformação social e cultural que repercute na vida
religiosa” (GS. 4).
O Sínodo dos Bispos de 1980 já apontava uma
“interpenetração de uma civilização universal e uni-
forme com um pluralismo de formas em cada cultura”.
O fenômeno da globalização veio confirmar isto.
A idéia de inculturação, lançada na década de
1970, indica a direção que toma a Igreja: o interior
das culturas e tradições religiosas. É a hora de per-
guntar: Qual, afinal, é a originalidade do cristianismo?
Como deve ser a sua “desocidentalização”? O que é
essencial ou mais importante: práticas, ritos, lingua-
gem, símbolos, evangelho?
Se aqui se trata de evangelização, requer-se
também a renovação espiritual. Mas, deve-se evitar a
180

todo custo uma espécie de esquizofrenia: opções no-


vas x velha espiritualidade. “Quando uma mística não
alimenta a experiência humana, perde ela o seu sig-
nificado”, diz Segundo Galilea. “Do mesmo modo, a
espiritualidade alheia e estranha ao modelo eclesial
que se vive, conduz a uma esquizofrenia cristã”.
Tem de haver uma osmose entre espiritualidade
e cultura. Cada modelo deve ser compreendido no
contexto histórico, numa época, cultura. O próprio
Verbo de Deus conformou-se com as culturas judai-
cas e galilaicas e até romanas do primeiro século.
A GS 38 diz: “A Igreja, no decorrer dos tempos,
usou os recursos das culturas”. E lembra as culturas
greco-romanas do tempo de Paulo. Mais tarde vieram
as culturas bárbaras, germânicas, francas, hispânicas
e quantas mais aconteceram. Hoje, com tanta evolu-
ção, é oportuno perguntar e localizar nossas culturas
brasileiras e continentais.
O problema é a crise de significados, o subjeti-
vismo, a superficialidade. Por exemplo, há um medo
apocalíptico atrás de muita devoção, há religiões-
farmácia, há religião de supermercado, implicando
produtos como orações, novenas, bênçãos, curas,
milagres, aparições, receitas de felicidade e até do
céu garantido.
É verdade que, numa sociedade cada vez mais
secularizada, procuram-se ou sustentam-se antigas
fórmulas de fé. São, como num rio que atravessa-
mos, pedras colocadas para firmar os pés. Elas dão
segurança, no dizer de Bruno Secondin.
181

É delicada e difícil esta passagem: antigo-novo,


cultura-renovação. Um coordenador de CEBs conta-
va: depois de tentar renovar a religião e espiritualida-
de de uma comunidade, o povo reclamou: “Padre,
temos tanta saudade daquelas procissões com nos-
sos santos!”
Apontam os teólogos alguns caminhos: Nova
compreensão, vivenciar as mudanças, cultivo de uma
cultura de esperança, discernimento espiritual, acei-
tação do provisório, proceder por fragmentos.
IGREJA + MUNDO
Não à toa o Concílio Vaticano II publicou as
Constituições sobre Igreja e Mundo. Eis aí uma dupla
que vem se atritando desde o tempo de Pedro-Paulo,
desde Samuel-Saul. Este relacionamento difícil é co-
mo o de outra dupla: corpo-alma.
Os históricos atritos Igreja e Império Romano,
Constantino, até chegar a um razoável entendimento
medieval, voltando a separação e até divórcio na ida-
de moderna, mostram o realismo deste fato, a gravi-
dade desta questão. Vai a Igreja abandonar o mun-
do?
Vamos relevar os tempos bíblicos e neotesta-
mentários, quando este atrito levou a êxodos, exílios,
perseguições e até ao sacrifício de Cristo. Todos sa-
bemos que o conceito de mundo implica alternada-
mente rejeição e inserção, tanto no judaísmo como
cristianismo, tanto na teoria como na prática. O mun-
do ora é obra saída das mãos de Deus, que viu que
tudo era bom, ora “o mundo não vos conheceu”. É
182

um mundo vulnerado pelo pecado que espera “os no-


vos céus e a nova terra”.
O relacionamento dos cristãos vai desde o rela-
tado pela Carta a Diogneto: “Moram em cidade gre-
gas ou bárbaras, habitam em suas pátrias”, até a fu-
ga para o deserto, da qual se originou a clássica “fu-
ga do mundo”, que chegou até São João da Cruz e
nossos dias. Foi aliás Jesus que mandara “fugir para
outras cidades” à aproximação inimiga.
A Igreja do Vaticano II encetou o diálogo inter-
rompido com o mundo, inaugurando nova espirituali-
dade na secularização. Refletimos assim :
O sagrado não se estrutura mais como algo autô-
nomo, colocado junto ao profano. O sentido evangéli-
co deve realizar-se junto ou dentro do profano. Tal
inserção espiritual pode dar-se de 2 modos: reconhe-
cendo que o progresso humano é o objetivo e critério
do espiritual, ou que a vida espiritual é qualificação
singular da própria atividade profana, segundo aquilo:
“Não vos escrevo um mandamento novo. . . no entan-
to, é um mandamento novo que vos escrevo” (1Jo
2,7).
O primeiro esquema afirma que a verdadeira es-
piritualidade se legitima exclusivamente segundo
perspectivas profanas, e não segundo motivações
religiosas abstratas. Assim o próprio homem sente-se
libertado do estado de menoridade, sente-se respon-
sável.
Esta mentalidade espiritual secularizada é proce-
dimento evangélico autêntico? Ela estimula o serviço:
183

“O verdadeiro culto a Deus é o serviço à humanida-


de”. Como diz um “lógion” atribuído a Jesus: “Viste o
irmão, viste a Deus”. Mas ela deve em tudo vincular-
se a Cristo, fonte de vida total: “Eu sou o caminho. . .

Tudo isso parece o velho desentendimento Igre-
ja-Estado, desde Gregório VII levando Henrique IV
agora a melhor. A diferença é que, agora, são líderes
crentes e até comunistas que assumiram a liderança
do mundo !
Aqui entra a importância, ante certo anticlerica-
lismo, do papel do leigo, como veremos. A comuni-
dade, a CEB introduz o fermento na massa, na ex-
pressão de Jesus: “Não peço que os tires do mundo,
mas que os guardes do mal” (Jo 17, 15). Façamos
nossa a “oração sacerdotal” para que esta separação
de 2 séculos entre Igreja e Mundo tenha final feliz.
O Concílio Vaticano II deu um grande passo nes-
ta importante questão, com o cap. IV da Gaudium et
Spes, ou a Igreja no Mundo. Diz primeiro que “o que
foi dito da dignidade da pessoa humana, vale para a
grande comunidade dos homens e é fundamento das
relações da Igreja com o mundo, base do diálogo”.
A Igreja foi fundada no mundo como sociedade:
“Deste modo a Igreja se manifesta como assembléia
visível e comunidade espiritual e caminha junto com a
humanidade inteira. Experimenta a mesma sorte ter-
rena, é fermento e alma da sociedade humana”.
E termina: “Esta compenetração da cidade ter-
restre e celeste não pode ser percebida senão pela
184

fé. . . . Através de cada um de seus membros e de


toda a sua comunidade, a Igreja pode ajudar a tornar
mais humana a família dos homens e sua história”.
(n. 40).23

23
B. SECONDIN – T. GOFFI: Curso de Espiritualidade.
185

4. QUESTÕES DE ATUALIZAÇÃO.

Muitas são as questões e lugares sensíveis na


atualização. Veremos os temas principais.
Depois de refletir sobre dois critérios básicos: Bí-
blia e cultura, temos aí dois parâmetros de atualiza-
ção espiritual: “O Espírito sopra onde quer”, avisa-nos
Jesus.
Sendo que, depois de séculos unida à teologia
moral, a teologia espiritual separou-se, mas há pro-
blemas e questões atinentes às duas disciplinas, por
exemplo, as virtudes, pecado, mandamentos etc. O
problema das virtudes pouco aparece na Moral atual,
tanto que um manual de Moral atualizada dedica só 5
páginas à virtude (aristotélica) e 605 pgs. à moral do
amor e sexualidade. Sinal dos tempos!
Outro critério que influencia muito é o ecume-
nismo. Os crentes não têm santos, melhor, depois do
batismo todos são santos. Nossa espiritualidade é
mais gradual e dinâmica. Além disso, a teologia cren-
te é bastante rudimentar, além de não adotar nossa
Tradição e conceito de Igreja.

Sendo virtude eminentemente bíblica, nem se
pode imaginar santo sem fé mas, veja- se bem, não
se trata da fé fiducial dos luteranos, mas a nossa fé.
Fé (fides) tem variedade no hebraico: aman, ba-
tah, em grego elpis, pistis, é a velha fé de Abraão.
Transpondo os tempos, a fé é matéria prima de nos-
186

sa cultura brasileira. Palavra tão pequena e que inva-


de toda a vida cristã e a espiritualidade. E uma virtu-
de tão desacreditada pelos sem-fé. É quase impossí-
vel encontrar um brasileiro normal sem ela, mesmo
se não tem muita moral (Sei de um chefe de trafican-
tes que veio cumprir promessa em Aparecida: esca-
para de muitos tiroteios com a polícia. Por via de dú-
vidas, veio armado. . . )
Por aí se vê o problema: a fé na religiosidade po-
pular, que pode muitas vezes cair na crendice e até
na superstição.
Um vocabulário teológico recente (J. L. Idigoras)
explica a fé: “É essencial não só campo religioso,
mas também nas relações interpessoais”. “A fé é a-
desão fiducial ao outro”. E define: “A fé significa não
conhecer com os próprios olhos, mas com os olhos
da pessoa amada. Toda a Bíblia é história de fé. O
mundo anda muito necessitado de fé. A cultura tecno-
lógica é cada vez mais pragmática e utilitarista”. Está
aí uma idéia de fé, um tanto longe do velho catecis-
mo.
É comum ouvir pessoas que não vão nunca à i-
greja, se justificarem: “Mas eu tenho muita fé!” No
critério da cultura, como inculturar nossa idéia teoló-
gica da fé? É um bom trabalho também para os san-
tuários, missões populares e Cebs. Parece evidente
que a fé precisa ser sempre depurada.
Mandamentos e virtudes: São dois temas mal
questionados na moral e espiritualidade modernas, e
nalguns manuais atuais. Se, como vimos, as três vias
da mística supõem seguir os mandamentos e virtu-
187

des, este hiato é uma lacuna. Uma justificativa é que


a ética aristotélica é elitista, para pequeno número de
pessoas, classista e, baseando-se na teoria, despre-
za a práxis; além do mais, não evita o egoísmo, di-
zem.
Mandamento e virtude: temas polêmicos na moral
e espiritualidade hoje, pouco tratados nos manuais. O
motivo aduzido é que a ética do tipo grego, aristotéli-
co é elitista, classista, teórica, sem a devida práxis,
pouco evitando, assim, o egoísmo. É coisa sabida,
que já no século 19, alguns pensadores menospreza-
vam a virtude. Alguns filósofos propuseram outros
conceitos.
Kant, em lugar das virtudes, propôs o homem do
dever, como o ideal do homem culto e ilustrado, o
homem autônomo. Marx propôs o homem novo como
ideal do homem revolucionário.
Tenho a impressão que, os modernos, impressio-
nados com as 50 virtudes propostas, se atemoriza-
ram, esquecendo-se da hierarquia estabelecida por
Sto. Tomás há 700 anos: as virtudes cardeais e virtu-
des teologais.
Em todo caso, nosso povo simples ainda reco-
nhece a pessoa caridosa, paciente, trabalhadeira,
sincera, moderada e de outras virtudes essenciais da
vida social e religiosa. E entende bem o que disse
Habacuc: “O justo vive da fé!”
Conclusão: Sabemos que psicólogos e pedago-
gos hoje não gostam muito de falar de mandamentos,
preceitos, virtudes cristãs. Mas, como salvar as quali-
188

dades necessárias para a vida familiar e social, como


o ser veraz nas palavras e atitudes? Como transmitir,
em palavras modernas, o companheirismo, o traba-
lho, a fidelidade. a veracidade e outras qualidades
sociais? Como formar para o amor verdadeiro, que
não faz ninguém objeto de sua paixão? A cultura po-
pular e do bom senso vai salvar as virtudes mais a-
preciadas.

A ética moderna anda à procura de novos pa-


drões. É um esforço de substituir a velhas e desvirtu-
adas virtudes. Le Senne, por exemplo, em seu “Tra-
tado de Moral” apresenta 10 retratos, decalcados em
grandes líderes, num esforço ecumênico:
-O libertado vivente, de Buda. –O cidadão filóso-
fo, de Aristóteles.
-O estóico, de Epitecto. –O homem cristão, de
Agostinho.
-O homem sob a conduta da razão: Espinosa. –O
utilitarista de Bentham.
-O homem do dever, de Kant. –A felicidade pela
arte, segundo Ruskin.
-O homem no qual se considera a vontade, de
Schopenhauer.
-O homem do conformismo e espiritualidade, de
Bergson.
Eis aí umas boas sugestões. Faltou apenas o
homem virtuoso de Tomás de Aquino. Para quem
189

não aceita Sto. Tomás e a cultura milenar , ficam os


10 modelos acima, apregoados por éticos antigos e
modernos.
SACRAMENTOS
São outros meios, considerados essenciais na
ascese e mística, hoje relegados à teologia moral, ou,
ao menos, restringidos a poucos sacramentos, como
o batismo, eucaristia. Moderno curso de espiritualida-
de de 1989 nem averba os sacramentos, talvez por
considerá-los meramente da área da teologia moral
ou dogmática. O que procura a perfeição terá supe-
rado o patamar moral, supõe.
De fato, é difícil imaginar os fiéis da Igreja primi-
tiva assistindo missa ou comungando todos os dias,
freqüentando a igreja, casando ante o bispo, confes-
sando-se individualmente, rezando como nós hoje.
Nem seria para exigir de S. Antão, S. Pacômio, S.
Paulo Eremita todas estas boas obras.
Mas há dois sacramentos, tão caros à espirituali-
dade, que, depois de séculos e até quase dois milê-
nios, são tradicionais aos santos: penitência e euca-
ristia.
Depois de um Sínodo, João Paulo II dedicou, em
1984, uma Exortação Apostólica à reconciliação e
penitência, onde toca no problema do pecado.
Já o batismo, futuramente, deverá ser repensado
na forma de batismo de adultos. São tão poucos os
batizados que progridem para a crisma, primeira eu-
caristia, matrimônio, que não freqüentam a igreja, que
há muito que repensar e replanejar. Hoje, com a in-
190

sistência na vida de comunidade, não dá para admitir


cristãos avulsos.
IGREJA
Na I Parte tratamos da Igreja tradicional; aqui se
tenta uma visão da Igreja pós-Vaticano II.
Vem já da Idade Media a idéia de uma Igreja Es-
piritual, no lugar da Igreja institucional, hierarquizada.
O Vaticano II preocupou-se com a nova idéia de Igre-
ja e deixou-nos a Lumen Gentium, a Constituição
mais importante, dados os questionamentos moder-
nos. Não à toa esta começa com o “Povo de Deus”,
logo no capítulo I. Há vários questionamentos pen-
dentes.
Primeiro incomoda a muitos o sistema hierárqui-
co da Igreja, advogando-se uma abertura para a de-
mocracia, como é da cultura da maioria dos povos
hoje.
Há vários temas debatidos: autoridade do Papa,
dos bispos, Conferências Episcopais, Sínodos. Há
debates sobre vida religiosa, celibato, sacramentos,
ecumenismo, pastoral, ação social, libertação etc.
Todas as revistas eclesiásticas têm debatido pro-
blemas de eclesiologia, defendendo muitos um go-
verno democrático, descentralizado. Outro postulado
é deixar maior espaço aos leigos. A renovação ca-
rismática tem pedido e conquistado espaço ao Espíri-
to.
191

Tem-se questionado o sistema de paróquias, ao


menos no sentido geográfico, advogando-se as paró-
quias pessoais, ou um sistema de diaconias.
COMUNIDADES, é do que se fala hoje, por mui-
tas vantagens que a psicologia de grupo conhece,
pelas relações interpessoais que se estabelecem.
Estimulam os serviços, diaconias, o prestígio dos lei-
gos, o diálogo, as lideranças.
As CEBs têm trabalhado muito nesta linha.
CLERO: Problema conhecido: escassez de clero,
de vocações. A tendência é substituí-lo, em parte,
pelo laicato, de que trataremos a seu tempo. Movi-
mentos modernos de boa espiritualidade já ajudam
muito na santificação, aconselhamento. Já se pode
assistir a muitos cultos, casamentos, batizados, en-
comendações, estudos, grupos de oração dirigidos
por leigos e leigas.
MULHER : sua presença nas igrejas é uma ca-
racterística dos tempos modernos. Vai longe o tempo
em que se declarava pecado a presença de uma mu-
lher no presbitério ou falar na assembléia, segundo
1Cor 14, 35.
Já há boas monografias sobre o feminismo na i-
greja. Hoje são boas ministras da palavra, da eucaris-
tia, além da tradicional catequista. O Papa João Pau-
lo II dedicou à mulher a Carta Apostólica ”A dignidade
da mulher”, 1988. Trata ali não só da vocação, mas
da espiritualidade própria da mulher.
COMUNICAÇÕES: é um meio em que é difícil
imaginar um santo. Admiro, por isso, o beato Tiago
192

Alberione, que tão bem se saiu de sua vocação de


comunicador. Sem incluir aqui muitos santos que se
dedicaram à imprensa, como Sto. Afonso, um cam-
peão na imprensa, com 105 obras, com mais de
17.125 edições !
O grande problema é que os investimentos na á-
rea das comunicações são altíssimos e nem sempre
condizentes com o espírito de pobreza, com a exibi-
ção de luxo inevitável, além de ser área de poder e
dominação conhecida. Bem que os antigos Mestres
distinguiam as grandes obras da Ordem da pobreza
pessoal. Mas hoje até esta distinção está difícil.
Conta-se que nossos missionários, em Goiás,
ainda andavam a cavalo, sendo que os pastores a-
mericanos andavam de carro, barco, e até avião. Até
quando nossos novos apóstolos andarão a pé, a ver
navios?
MISSÕES: Foi outro setor que andou em crise,
por vários motivos teológicos, pastorais, vocacionais.
Muitas ordens e congregações religiosas investiram,
no passado, nas missões externas e internas. O
Concílio procurou tirá-las da crise, com o Decreto
“Aos Povos” (AG), onde anima as missões exteriores
e, indiretamente, as missões populares ou santas
missões. Ninguém nega que estas muito ajudaram a
formação religiosa, moral, espiritual do nosso povo.
As missões mereceram a Encíclica de João Pau-
lo II: “A Missão do Redentor”, de 1990, onde trata da
espiritualidade, inculturação missionárias.
193

Um detalhe: muitas vocações religiosas e sacer-


dotais surgiram nas santas missões ou missões po-
pulares.
ASSOCIAÇÕES RELIGIOSAS: Há séculos elas
promovem a santificação dos leigos: Ordens Tercei-
ras, confrarias, irmandades, conferências, envolven-
do grandes santos como S. Francisco, S. Domingos,
S. Margarida Alacoque, Beato Colombière, Beato
Ozanan. Quem não conhece os Irmãos do Santíssi-
mo, a Liga Católica, Damas da Caridade, Congrega-
ção Mariana, Filhas de Maria ?
O Decreto AA. sobre o Apostolado Leigo deu
pleno apoio a tais associações, ao recomendar: “To-
dos os agrupamentos de apostolado merecem esti-
ma, sobretudo as organizações internacionais” (n.
21).
Evidentemente alguns destes agrupamentos po-
dem ter entrado em decadência, desorganização e
até criar problemas como as irmandades donas de
igrejas, como aconteceu no Brasil. O perigo de infil-
tração de elementos estranhos é sempre possível,
como mostra a História.
Várias irmandades antigas foram, nas paróquias,
substituídas com vantagem por movimentos mais a-
tualizados.
Religiosidade Popular: Pastoral discutida, apoia-
da nas Assembléias de Medellín, Puebla, Santo Do-
mingo, mas tema sempre controverso. As célebres
devoções continuam a ser um tema delicado. A pas-
toral exigente, ecumênica procura sempre cerceá-Ias,
194

como alienantes, espiritualistas. Mesmo as Ordens


ligadas ao rosário, bentinho, via sacra, retiros titubei-
am. Um problema sério são objetos e práticas que
facilitam as superstições, "Observais os dias, meses,
as estações, os anos" (GI 4, 10)
É um fato que o apego exagerado a santos e i-
magens, bênçãos e rezas repetidas pode afastar do
"único necessário", como disse Jesus à generosa
Marta. A centralização em Cristo, no significado ba-
tismaI tem de sobrepor-se a tudo mais: Jesus nos
leva ao Pai. Mas, como disse S. Paulo, muitas vezes
teremos de oferecer leite, em lugar do alimento sóli-
do, para os irmãos mais fracos. Vejam a hemorroís-
sa: tocou as vestes de Jesus e foi curada.
AÇÃO SOCIAL
Vimos as críticas feitas à ação social, como inó-
cua, pela T.d.L., mas é o remédio caseiro e rápido.
Não se pode esperar o feijão nascer, crescer, dar va-
gens para alimentar o faminto. Aí está o programa
Fome Zero, lançado pelo PT. Programa de urgência.
Algo tem de ser planejado a longo prazo.
A Igreja, através de muitos órgãos, é benemérita
na ação social de todo tipo: alimento, vestuário, re-
médio, casa, estudo esmola.
Desde a "Rerum Novarum" (Das coisas novas) de
Leão XIII até a Encíclica "Laborem Exercens" (Exer-
cendo o trabalho) de João Paulo II a vigilância e de-
dicação da Igreja tem sido constantes no último sécu-
lo. Se voltarmos aos tempos primitivos, temos S. Es-
têvão com os diáconos.
195

Temos tido tantos santos, exemplos no setor da


caridade. Tivemos, nestas últimas décadas, o alerta
da Teologia da Libertação, que não deixa de ser uma
voz profética, inclusive inscrevendo mártires em suas
bandeiras.
Para mostrar a conexão com a Teologia Moral,
leia-se o III volume da "Moral de Atitudes" de Marcia-
no Vidal, sobre a Moral Social, onde se evidenciam
as categorias da justiça e caridade na Igreja.

O TRABALHO, está unido ao tema anterior, des-


de os tempos dos carpinteiros José e Jesus, dos
pescadores Pedro, Tiago e João. Não precisa outra
prova do valor espiritual do trabalho, quando se tem a
reta intenção.
Pois, como alertam documentos da Igreja, o tra-
balho pode também desviar-se do caminho: "Come-
rás o pão com o suor do teu rosto".
Felizmente o trabalho em si agrada a gregos e
troianos, embora tenha sido o pivô de grandes revo-
luções socialistas. Hoje, regulamentado em todos os
países civilizados, é tão valorizado, que uma onda de
desemprego representa uma catástrofe.
Certamente muitos santos foram trabalhadores
braçais, embora raros os operários no sentido mo-
derno. Coisa rara: um Papa e um Presidente que fo-
ram operários. Certamente João Paulo II tinha expe-
riência para escrever a "Laborem Exercens".
196

D O R: Último, mas não menos importante, é o


tema da dor, do sofrimento, da doença, da morte.
Nem toda a ciência moderna pode anulá-Io.
João Paulo II, de novo grande experiente, soube
expor a esperança da dor na Carta "A Dor Salvífica",
de 1984. Falou do que sabe.
Se alguém duvidar da força santificadora da dor −
dor física, moral − bastaria olhar para a cruz. Dispen-
sável é mostrar os testemunhos dos santos. Na mís-
tica há um estágio onde uma verdadeira fome de so-
frimento assalta o viajante da 3a. via ou via unitiva:
"Ou sofrer, ou morrer!", exclama a vítima na "noite do
espírito".
Aqui vale o mesmo princípio: não é porque po-
breza e dor santificam, que nós vamos deixar os ir-
mãos nestes "ótimos meios de perfeição". Mas a dor
é inevitável. Os materialistas procuram a fuga no de-
sespero, na eutanásia
Quantos sofrem injustamente, sem necessidade.
Não disse Jesus: “vinde a mim, vós todos que sofreis
e eu vos aliviarei”? Ele mesmo tentou evitar a cruz.
Mas depois orou: “Contudo não se faça a minha von-
tade mas a vossa”.
Jesus, o novo Jó, ressuscitou, venceu a morte.
PROFISSÕES: Há um meio de santificação pró-
pria e do mundo, geralmente pouco tratado nos ma-
nuais de espiritualidade: as profissões chamadas li-
berais. Geralmente as profissões são citadas nas á-
reas sócio-econômicas. Mas são importantes quando
197

se trata do apostolado leigo no mundo, pois são


grandes líderes da vida sócia-política e econômica.
Formam associações poderosas e comandam a soci-
edade, como os políticos. Algumas têm até Padroei-
ros, no melhor estilo das corporações medievais.
Há profissões que são consideradas mais eleva-
das na sociedade. Aqui me refiro às profissões libe-
rais, não braçais.
A Conferência do CeIam em Medellín referiu-se
indiretamente a este tema, dizendo que "a moderni-
zação transparece nos setores mais dinâmicos da
América Latina, com crescente tecnização e aglome-
ração urbana."
Aponta fatos: mobilidade, socialização, divisão
de trabalho (associações), o que aumenta a impor-
tância dos grupos, segundo o trabalho, profissão".
E recomenda: "As novas condições de vida o-
brigam os leigos ao desafio da presença, adaptação
e da criatividade".
"Exercendo o próprio oficio, guiada pelo espírito
evangélico, a modo de fermento, contribuam (os lei-
gos) para a santificação do mundo" (c. 1 O, 1, 11).
Já muitas profissões, com subdivisões cada vez
mais especializadas. Sem querer ser completo, aqui
estão as mais tradicionais:
Políticos, economistas, professores, banqueiros,
esportistas, artistas, médicos, comerciantes, industri-
ais, comunicadores, funcionários, advogados, cientis-
tas, militares, pilotos, fazendeiros, empresários, fi-
198

nancistas, juristas, administradores. Não se incluem


os que têm "profissão" de padre, religioso, embora se
constituam classes às vezes numerosas.
A "Lumen Gentium" é pródiga em louvar a ativi-
dade humana no mundo e o progresso (n. 33s.), o
que vale para os profissionais, que estão incluídos no
cap. IV da LG.: Os Leigos. E também o capítulo IV da
"Gaudium et Spes": Função da Igreja no Mundo.
CONCLUSÃO
Haveria outros aspectos que se deveriam explici-
tar: Espiritualidade do Vaticano II, por exemplo. O tra-
tado do pecado, embora muito atual, remetemos para
a Teologia Moral.
Espera-se que, neste ponto, os que tendem à
perfeição, já tenham superado a fase dos vícios capi-
tais, pecado mortal e até do pecado venial, faltas,
como vimos nas 3 vias da mística.
Seria de se perguntar como observar hoje, mes-
mo por parte dos leigos, a castidade, pobreza e obe-
diência?
Poderíamos também perguntar: como enfrentar
hoje e no futuro problemas prementes da família, ju-
ventude, sexo, drogas, violência, morte? Como visua-
lizar hoje a ascese, que é treino, a mística, que não
pode faltar?
Como encontrar modelos válidos para antigos e
novos valores: santos, mestres, gurus, modelos cultu-
rais, líderes mundiais, artistas?
199

Terminando, aproveito os conselhos de dois Mes-


tres, que nos nortearam até aqui, projetando o fu-
turo.
a) No nosso mundo tão cheio de experiências,
vivências que querem antecipar o futuro, procurar
discernir bem e qualificar dentro da fé (passado), ca-
ridade (presente) e esperança (futuro).
b) Num mundo sem uma filosofia fixa, aceitável
à maioria, tomar a cultura como um parâmetro que
todos respeitam, que encarna as tradições do povo,
frente ao pluralismo reinante e a evolução contínua.
c) Evitar o puro fideísmo: só Deus resolve tudo.
Deixar um pouco para o homem, neste mundo que
Deus fez com leis próprias. Lembrar-se que já K.
Rahner avisava contra o perigo do puro cultual, puro
sacramental, legalismo, eclesialidade de convenção,
de conformismo. "À Igreja incumbe a tarefa de tornar
a todos participantes do mistério de Cristo entre todos
os povos".
-A competência cultural dos cristãos hoje exige
investimento e coragem: para não deixarmos a antiga
tradição da Igreja.
- Vivenciar as mudanças. A identidade cristã deve
estar encarnada no pluralismo das instituições. Não
podemos contentar-nos com ser apenas notários das
ações e perturbações alheias.
-Promover a cultura da esperança, num tempo
de muitos desencantos, ilusões, num vazio de verda-
des e valores.
200

Viver no real, promovendo o novo. Projetar-se


como discípulos e intérpretes de Cristo, no meio dos
homens. Lembrar-se que "o homem é caminho quoti-
diano da Igreja", como disse João Paulo II.
Ser testemunhas e construtores de comunhão.
-Fazer o discernimento: imaginar o futuro, não
temer a utopia, lançar sementes de esperança. Estar
abertos ao Espírito Santo, pela contemplação.
-Colocar-se no dinamismo da Igreja, sequiosa do
Absoluto, chamados à santidade. Somente uma boa
espiritualidade pode dar-nos lucidez para responder
às expectativas históricas de nosso tempo, com valo-
res novos: amor e não violência, solidariedade, parti-
lha, serviço. Este é o caminho.
-Aceitar o provisório: da vida, da história. Daí:
proceder por partes, dando passos, que podem ser
revistos. A evolução contínua, o progresso exigem
contínua revisão hoje. E o fim será o compromisso
cultural, ligado aos grandes problemas históricos.24
O mundo evolui muito rápido: não podemos dar-
nos ao luxo de ficar parados no tempo e no espaço.

24
B. SECONDIN - T. GOFFI (ed.): Curso de Espiritualidade, 1994, p.670.
Às páginas 677-689 encontra-se bibliografia de 246 obras de espiritualidade.

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