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Classificação de Restaurantes a partir da Visão do Consumidor: um Estudo Etnográfico

Autoria: Carla Fernanda Barros

Resumo: O presente estudo propõe-se a apresentar um modelo de classificação de


restaurantes a partir da ótica do consumidor. O enfoque da abordagem está centrado no
desvendamento de significados de consumo que orientam as escolhas dos sujeitos sociais. A
opção por uma abordagem antropológica implica na adesão a uma visão de consumo como
um ato simbólico, coletivo e cultural, e na utilização do método etnográfico como via
privilegiada de acesso a visão de mundo dos pesquisados. A partir de um trabalho de campo
realizado no Centro do Rio de Janeiro, elaborou-se uma classificação que compreende três
grandes categorias de restaurantes. As observações oriundas do estudo revelam de que
maneira os hábitos de consumo, nesse contexto, expressam um esquema classificatório que
distingüe pessoas e modos de vida, e evidenciam determinados aspectos da cultura brasileira,
como a tendência à personalização das relações.

1. Introdução

Uma das marcas do Centro da cidade do Rio de Janeiro, como de diversos centros
urbanos, é a extrema heterogeneidade de pessoas circulando por suas ruas, vindas dos mais
distantes bairros e pertencentes aos mais diversos segmentos sociais. Essa diversidade
também pode ser encontrada na variedade de restaurantes existentes na área. O presente
estudo pretende discutir e apresentar um modo de classificação de restaurantes a partir da
perspectiva do consumidor. Pesquisando os hábitos de consumo na hora do almoço em uma
região do Centro da Cidade, procurou-se alcançar os significados e as motivações envolvidos
nas escolhas por determinados estabelecimentos.

A aproximação entre Administração e Antropologia, em especial dentro da área de


Marketing, é cada vez mais notável, como já foi observado em alguns levantamentos e
estudos sobre caminhos “promissores” para a pesquisa sobre o consumo (Rossi e Hor-Meyll,
2001; Barros, 2002; D’Angelo, 2003;). Desde a década de 80, diversos artigos em Journals de
Marketing norte-americanos e europeus chamavam atenção para a importância de se
incorporar o saber antropológico dentro do campo de pesquisas de Comportamento do
Consumidor. A Antropologia tem a oferecer ao estudo do consumo uma abordagem que
chama atenção para a dimensão cultural e simbólica inscrita em qualquer relação humana. O
consumo, nessa perspectiva, deve ser tratado como um fenômeno coletivo que possibilita a
comunicação e classificação de indivíduos e objetos. Além da perspectiva teórica sobre o
consumo, a Antropologia desenvolveu um método – a etnografia – através do qual pretende-
se chegar à lógica interna que orienta a vida do grupo pesquisado. Em um grande esforço para
“deslocar nossa própria subjetividade” (DaMatta, 1978, p. 35), a viagem antropológica parte
do pressuposto de que a compreensão dos significados das ações sociais deva partir da
perspectiva dos próprios sujeitos, e não da visão de mundo do pesquisador.

O estudo aqui apresentado, portanto, se inscreve na tradição antropológica de


desvendamento da visão de mundo do universo pesquisado a partir de um mergulho no seu
dia a dia via trabalho de campo etnográfico.

Parte-se, então, de um problema específico que é o questionamento de classificações


de serviços a partir do produto oferecido (em termos de restaurantes, poderia ser: à la carte,

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quilo, típicos, japoneses, etc.). Esse tipo de classificação presente, por exemplo, em guias de
restaurantes e bares, tem como princípio ordenar os estabelecimentos de acordo com a ótica
do produto oferecido (alimento), já que tem como critério o tipo de comida oferecido.

A perspectiva adotada nesse trabalho, ao contrário, procura encontrar um modelo de


classificação de restaurantes a partir da visão dos consumidores, buscando alcançar os
significados de suas escolhas e um ordenamento de categorias de estabelecimentos a partir
dessa ótica. Poderíamos dizer, portanto, que estamos confrontando um modelo que enfatiza a
lógica do produto versus um outro que privilegia a lógica do consumidor. Mesmo que a ida a
um restaurante se constitua em um serviço, a discussão em pauta pretende questionar um
modo de classificação que considera como critério de diferenciação o produto oferecido – no
caso, o tipo de comida comercializado no estabelecimento.

2. A interpretação antropológica do consumo

A abordagem antropológica do consumo propõe a idéia de que essa atividade vai


muito além do processo de selecionar, comprar e usufruir da utilidade de um bem ou serviço.
O consumo também pode ser visto como uma combinação de elementos tangíveis e
intangíveis em que a individualidade dos atores está contextualizada no conjunto de relações
sociais e na cultura em que estão inseridos. O pressuposto de que o consumo deve ser
compreendido, antes de tudo, como um fato social, está presente na obra de autores seminais
na formação da Antropologia do Consumo como Marcel Mauss, Thorstein Veblen, Mary
Douglas, Marshall Sahlins, Jean Baudrillard, Colin Campbell e Pierre Bourdieu, entre outros.
A procura de significados dos usos de bens e serviços pode, portanto, revelar a hierarquia de
valores que constrói o sentido de diferentes visões de mundo e estilos de vida.

Marcel Mauss, autor de uma obra fundamental na constituição de uma visão


antropológica do consumo, o Ensaio sobre a Dádiva (1974), ensina que não é o “interesse”
individual que está em jogo no consumo, mas sim o ganho simbólico atualizado no eterno
circuito de dar, receber e retribuir. Mauss revela como os objetos não são fins em si mesmos,
ou seja, não tem valor intrínseco nem são consumidos a partir de uma perspectiva de aplacar
supostas necessidades básicas. Sua análise propõe, ao contrário, que as coisas consumidas são
meios simbólicos para construção de relações sociais.

Mary Douglas em um outro importante trabalho (1978), argumenta que o consumo


pode ser entendido como algo “bom para pensar”, já que através dele se expressa uma
operação classificatória constitutiva da vida social, que fornece sentido às relações dos
homens entre si. O ato de consumir, compreendido como um modo privilegiado de
comunicação, pode funcionar como “pontes ou barreiras” entre os diversos grupos sociais.

De um modo geral, autores da Antropologia do Consumo como os já citados Mauss e


Douglas, além de Veblen, Campbell, MacCracken, Baudrillard, entre outros, enriqueceram as
discussões sobre o fenômeno do consumo em pelo menos dois importantes aspectos. Em
primeiro lugar, deslocaram a análise do nível individual, seja ele econômico ou psicológico,
para o nível da ação social e da elaboração coletiva de significados. Em seguida, promoveram
um outro deslocamento fundamental ao tirar o foco de investigação da produção para o
consumo, pois é nessa esfera que se reconhece o modo pelo qual a sociedade se classifica, se
distingue e se comunica.

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Seguindo, portanto a tradição de uma abordagem antropológica do consumo, o
presente estudo propõe uma discussão sobre o processo de decisão de consumo (no caso, de
serviços) como uma questão simbólica (Sahlins, 1979), que envolve determinados
significados culturais compartilhados pelos sujeitos investigados. Esses significados podem
revelar alguns dos modos pelos quais os diferentes grupos que formam uma sociedade
específica se distinguem e se comunicam entre si.

Do mesmo modo que Veblen e Mauss constituíram a Antropologia do Consumo


negando as abordagens utilitaristas, individualistas e economicistas, que enfatizavam a ótica
da produção, é necessário, no presente trabalho, se afastar da visão focada no produto – no
caso, uma classificação de restaurantes que tivesse como critério o tipo de comida oferecido –
e adotar uma outra que enfatize o plano do consumo do serviço, procurando o sentido das
práticas a partir da visão de mundo dos consumidores.

3. Metodologia

A investigação sobre os hábitos de consumo no horário de almoço no Centro do Rio


foi conduzida a partir de uma etnografia, método desenvolvido pela Antropologia desde a
clássica obra de Malinowski, Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1984) . O trabalho de
campo do antropólogo se caracteriza por uma viagem ao mundo do “outro”, à procura da
“teia de significados” (Geertz, 1978) inscrita em toda ação social. A pesquisa etnográfica
pressupõe uma observação direta do comportamento social dos “informantes” (jargão
antropológico) e tem como objetivo produzir uma “descrição densa”, conforme propôs
Geertz. Essa descrição revelará os valores que orientam os comportamentos dos indivíduos e
que constróem uma “hierarquia de estruturas significantes” que fornece sentido às práticas
sociais.

O método etnográfico implica na imersão do pesquisador no dia a dia do grupo


pesquisado, no contexto onde o fenômeno social acontece, a fim de compreender como se
estrutura o chamado “ponto de vista nativo”. Suas principais premissas são, além da procura
do ponto de vista nativo, a descrição densa, a observação participante e a escuta ativa, que são
em grande parte definidoras do saber antropológico e que fazem da etnografia mais que um
método, a própria tradução da atitude dessa disciplina – compreender a visão de mundo do
outro em seus próprios termos. Trata-se de conhecer a “visão de dentro”, ou seja, o mundo de
significados que orienta e dá sentido às ações dos consumidores. A pesquisa se desenvolve,
em campo, com a prática da observação participante associada à realização de entrevistas em
profundidade. Nesse tipo de observação, o pesquisador observa e participa, o máximo
possível, de situações que ocorram dentro do cotidiano do grupo estudado.

A etnografia apresentada nesse trabalho foi realizada durante 6 meses de pesquisa em


restaurantes do Centro do Rio, entre os meses de setembro de 2003 a março de 2004. A
observações direta nos restaurantes incluiu o almoço nos diversos estabelecimentos, em um
primeiro momento, sem que houvesse a apresentação da pesquisa junto à gerência.
Posteriormente, o projeto foi apresentado aos donos dos restaurantes, para que houvesse uma
concordância de sua parte quanto à realização de entrevistas junto aos clientes da casa. Foram
então realizadas entrevistas em profundidade com clientes homens e mulheres, de diversos
segmentos sociais, a partir de um roteiro semi-estruturado, o que somou o total de 36
entrevistas. Todas elas foram gravadas, para possibilitar a análise posterior, e realizadas,
normalmente, ao final da refeição dos clientes que concordavam em participar do trabalho,

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após uma consulta no início de seu almoço. Também foram coletadas informações junto aos
donos, gerentes e garçons dos restaurantes, através de conversas informais; esses dados
recolhidos em um clima mais “informal” - e também em conversas informais com clientes -
funcionam como “entrevistas não estruturadas”, se constituindo em um valioso instrumento
de coleta de dados. O trabalho com múltiplas fontes de dados, recolhidos em diferentes
momentos e situações em um mesmo restaurante, fornece densidade à pesquisa, já que o
confronto de informações coletadas em vários contextos permite o acesso a aspectos
ambíguos, contraditórios e inconscientes do comportamento dos informantes, o que muitas
vezes não se revela quando se trabalha apenas no plano de seu discurso consciente.

Em um primeiro momento, foram feitas visitas a vários restaurantes; posteriormente,


alguns deles foram escolhidos para dar continuidade à pesquisa. Esses estabelecimentos foram
os que melhor representavam os significados de consumo identificados em cada categoria de
restaurantes dentro da classificação geral. Por essa razão, a discussão de cada categoria
contém a análise de, ao menos, um estabelecimento em particular, que foi escolhido por
apresentar de modo claro os aspectos característicos de seu segmento.

4. Um Modelo de Classificação

Conforme comentado no início do artigo, o Centro do Rio se caracteriza pela enorme


heterogeneidade de pessoas circulando em suas ruas. Essa diversidade, sem dúvida, se reflete
na oferta de opções para o almoço, que vai dos chamados “pé-sujos” a estabelecimentos
sofisticados, voltados para o público executivo.

A partir do estudo etnográfico realizado, foi possível elaborar uma classificação


composta por três grandes categorias – incluindo algumas subdivisões - que compreende
desde restaurantes mais “populares”, como os analisados na primeira, até os mais “elitizados”,
apresentados na terceira categoria. Como dito no tópico anterior, na fase inicial da pesquisa
foi possível agrupar alguns restaurantes em uma mesma categoria; a partir daí, um ou mais
foram escolhidos como representantes do modelo.

4.1. “Valor da Tradição”

O restaurante a quilo matou o (lado) pessoal


(de um informante)

A primeira categoria de restaurantes dentro do modelo de classificação proposto será


denominada de “Valor da Tradição”. Os consumidores, nesse caso, enfatizam a qualidade da
comida oferecida - uma refeição caseira, “com sabor”, farta, quente, “que alimenta”. Como o
“feijão com arroz” de todo o dia, essa opção valoriza a refeição propriamente dita e o que ela
oferece em termos de “sustento” do organismo.

Pode-se observar nestes estabelecimentos uma alta fidelidade por parte dos
consumidores, porque a comida “que sustenta” fornece a energia necessária para enfrentar o
dia a dia desgastante do trabalho. É a comida “de casa”, tradicional, que ajuda a viver na rua
- lembrando aqui da dicotomia casa/rua discutida por Roberto DaMatta em suas análises sobra
a sociedade brasileira (1984). No caso de alguns restaurantes, essa opção por uma comida

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caseira e tradicional está associada à valorização de uma imagem nostálgica do Rio Antigo,
como no modelo representado pelo restaurante Bico Doce, a ser analisado.

Dois dos restaurantes pesquisados foram escolhidos como representantes dessa


categoria .

4.1.1. Restaurante Esquimó

Trata-se de um restaurante que serve pratos feitos fartos, pelo preço de R$7,00. O
Gerente da casa definiu bem o estilo do restaurante: “eles (clientes) vem aqui pela comida,
que é boa e sempre quente; não é pelo ambiente, não”. O lugar tem uma decoração antiga e
kitsch – um desenho de Nossa Senhora de Fátima atrás do caixa, um quadro do “Vasco da
Gama tri-campeão”, um grande painel com figura de esquimós - que passa a sensação de que
pouca coisa mudou com o tempo. O restaurante serve uma comida tida como de qualidade e
“honesta”, cujo cardápio se mantém praticamente inalterado desde sua inauguração, além de
uma equipe na cozinha que é a mesma há 41 anos. Esses sinais mostram como o “valor da
tradição” se impõe nesse local.

O público, predominantemente masculino (mulheres não se sentem muito confortáveis


no lugar) se caracteriza por pessoas pertencentes às classes médias baixas e populares, e é
formado por jornalistas, advogados, comerciários, bancários, funcionários públicos, entre
outros. Os clientes se espalham ao longo do balcão e tudo acontece com muita rapidez – a
chegada da comida ao prato, o almoço propriamente dito, o pagamento da conta. A conversa
amigável dos clientes com os garçons demonstra um conhecimento de tempos. Os
entrevistados enfatizam a importância de “ser conhecido” e da relação de intimidade dos
freqüentadores entre si e destes com os garçons.

Os clientes estabelecem um contraponto entre esse modelo de restaurante onde os


principais ingredientes são a intimidade, o “sentir-se em casa” e a comida caseira com sabor, e
o modelo dos restaurantes a quilo. Os informantes se referem a estes últimos como lugares
padronizados, onde, muitas vezes, a comida é servida fria. O pior aspecto, aos seus olhos,
seria a “frieza” das relações dominante nestes estabelecimentos - como sintetizou um
informante: “O restaurante a quilo matou o (lado) pessoal”.

Como uma “comida de macho”, pesada e nutritiva, o modelo do restaurante Esquimó


revela uma escolha pelo lado “instrumental e prático” do almoço – literalmente, sua
capacidade de alimentar. Essa “refeição que alimenta” revela o apreço pela comida de
antigamente, farta e caseira, servida em um estabelecimento que faz questão de mostrar o
empenho em manter sua própria tradição, reconhecida pelos freqüentadores. Aqui, o valor
maior é a permanência.

4.1.2. Restaurante Bico Doce Uisqueria

O restaurante Bico Doce também é representativo da categoria “Valor da Tradição”. A


casa tem dois andares – no de baixo, o clima é de uisqueria, com iluminação bem escura. No
andar de cima, o almoço toma conta, e o ambiente é mais iluminado. O estabelecimento é
antigo – 1895 – e preserva o tampo de mármore nas mesas e assento de palhinha nas cadeiras.
Rui Barbosa costumava a circular no restaurante, conta a história. O espaço do andar de cima
é pequeno, com clima aconchegante, de se sentir “em casa”, dizem os clientes. Nas paredes,

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pintadas com imagens do Rio antigo, encontra-se a inscrição: “Pessoas na rua, arquitetura
colonial”. O chão, a escada e a grade são de madeira, reforçando o clima nostálgico.

No Bico Doce também podemos encontrar uma opção que enfatiza a comida e o modo
como ela é servida. É uma refeição farta, com gosto caseiro ( “comida de vó”, que faz a
pessoa se sentir “em casa”) e “servida quente” (ao contrário dos restaurantes a quilo),
comentam os clientes.

Outros aspectos importantes nesse modelo são a intimidade com os garçons e o clima
de informalidade reinante. Em um momento da observação, foi ouvido de um dos garçons
para um cliente: “a máquina está fora do ar, paga amanhã”. A fidelidade é alta; muitas das
pessoas que entram cumprimentam as que estão almoçando, o que dá ao local um clima
“amigável” e familiar. O público é predominantemente masculino, de diversos segmentos das
classes médias urbanas.

Percebe-se nesse estabelecimento características presentes em vários outros


restaurantes do Centro do Rio (como o Bar Luiz e o Villarino, por exemplo): o clima
“tipicamente carioca”, que mistura uma nostalgia do Rio Antigo com um certo ar boêmio-
intelectual. Por isso, o “valor da tradição” está aqui presente, como se pouca coisa tivesse
mudado desde o tempo das crônicas de Machado de Assis, ou ao menos, as coisas que
“realmente importam” – boa comida, farta, caseira, em um clima de “amizade e confiança”,
onde se é reconhecido pelos garçons, que podem até desculpar a falta de pagamento.

“Nostalgia” seria uma das palavra-chave para se entender o local – aliás, é o título do
texto do primeiro quadro colocado logo na entrada do restaurante. Um freqüentador sintetiza
esse sentimento quanto às mudanças que vem ocorrendo no Centro da cidade:

Os restaurantes que eu gostava, na Rua do Rosário, fecharam. Agora virou


tudo quilo. Antigamente a gente sentava lá, até via na hora e escolhia o peixe
que ia comer. (Renato, advogado)

Freqüentar o Bico Doce, assim, é um modo de compartilhar com outros de um Rio de


Janeiro idílico, onde se tinha tempo para comer, degustar e “saborear” – tanto o alimento
quanto a vida.

Uma outra palavra-chave parece ser “confiança”: “a gente tem que ter confiança na
casa, e aqui eles não enrolam até quem vem pela primeira vez”, disse um informante. A
confiança segundo os clientes é evidenciada na postura dos garçons e do gerente, que se
esmeram em servir bebida e comida “sem truques” que ludibriem a clientela, como em outros
lugares.

Os clientes da casa se sentem bem por serem reconhecidos como pessoas que tem
gostos e “jeitos” particulares. Vários relatos foram feitos de como os garçons lembram da sua
singularidade à mesa, como nesse comentário:

Estou tomando canela com café, que eles já sabem que eu gosto. A gente gosta
de vinho chileno e ele já tem o nosso vinho. Se você quer um file com alho e
salsa, que não tem no cardápio, ele traz do seu jeito. (Jorge, fiscal)

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Por não ser um indivíduo anônimo, e sim uma pessoa com um gosto singular, o
freqüentador da casa valoriza o atendimento personalizado que reconhece e atende suas
necessidades particulares.

Aparece aqui, mais uma vez, o contraponto com o modo de refeições “a quilo” – visto
como um estilo padronizado, “sem alma” e personalidade, como fica claro no depoimento de
um informante:

Até vou no kilo, mas não consigo nem gravar o nome. No quilo são as mesmas
coisas prá qualquer um. Eu tô com fome, vou ali, preparo o meu prato e como.
É como uma obrigação alimentar; tem que ir lá, pesar e comer. (Renato,
advogado)

Podemos fazer referência, nesse momento à distinção entre “comida” e “alimento”


sugerida por DaMatta (1984) – o “alimento” é algo biológico, mas a “comida” é social por
excelência:

para nós (brasileiros) saber comer é algo muito mais refinado do que o
simples ato de alimentar-se... para nós, nem tudo que alimenta é sempre bom
ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que alimenta é comida.
Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva;
comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais
sagradas de comunhão e comensalidade. ( p. 55).

A distinção proposta por DaMatta é bastante elucidativa e nos permite compreender o


contraponto em que o restaurante a quilo é percebido como um local que levou a uma
padronização na alimentação que retiraria o “encanto” da alimentação. Para os informantes,
seu modo de refeição preferido – o restaurante caseiro, farto e tradicional – é a verdadeira
comida, humanizada e “batizada” socialmente. O restaurante a quilo seria, de maneira oposta,
um simples e rotineiro modo de servir um alimento. Por estar fora da esfera de humanização e
sociabilidade características dos restaurantes tradicionais do Centro, o quilo seria o lugar do
indivíduo autônomo, sem laços, que precisa apenas de ingerir algo que o “mantenha em pé”.
O quilo é visto aqui, de modo crítico, como o destino do homem sem humanidade – limitado
a “pesar, sentar e comer” – sem as interações sociais que dão “cor e sabor” às refeições e
fazem o ato de comer um exercício de personalização (o registro da marca e do gosto pessoal
de cada um) e socialização (a celebração do “estar junto” e “ser reconhecido”). Ao contrário,
a refeição que verdadeiramente alimenta tem um gosto da “casa”, é personalizada, e acontece
em um ambiente onde todos se conhecem.

Comer de maneira padronizada e “robotizada”, como nos restaurantes a quilo,


significa ser identificado como um “indivíduo”, nos termos propostos por DaMatta (1981) –
nesses locais, “todos são tratados das mesma forma”, como declarou um informante. Nos
restaurantes tradicionais, é possível ser uma “pessoa”, com jeito, gostos e personalidade
próprios. O aspecto fortemente relacional e personalista da sociedade brasileira, enfatizado
por autores clássicos como Sérgio Buarque de Hollanda (1995), Gilberto Freyre (1987) e o já
citado DaMatta, fica aqui evidenciado.

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4.2. “Comida Urbana Brasileira”

Moço, hoje eu vou querer


A comida mais estranha
A que menos se pareça comigo

(“O Prato do Dia”, de Fernanda Takai e John)

Uma segunda categoria da classificação foi aqui denominada de “Comida Urbana


Brasileira”, pois é usualmente identificada com o ritmo “acelerado” da vida nos grandes
centros urbanos. Os restaurantes a quilo constituem essa categoria, sendo percebidos, de um
modo geral, como modelos de refeição rápida, onde o auto-serviço possibilita uma diminuição
do tempo de almoço. Nesse tópico a análise está voltada para os restaurantes a quilo populares
(em contraponto ao “quilo sofisticado”, que será analisado posteriormente).

As ofertas de almoço em um restaurante de comida a quilo no Centro são numerosas, e


vem substituindo muitos estabelecimentos que serviam pratos “à la carte”, sendo uma opção
bastante forte entre o público de classe média que circula por suas ruas. Estamos chamando de
“quilo popular” os restaurantes em que os consumidores procuram, em primeiro lugar, uma
boa relação custo-benefício – a percepção é que pode-se comer o que quiser, pagando um
preço “justo”. Aliado a isso, fica evidenciado o aspecto de “praticidade” do serviço deste tipo
de restaurante, bem afinado com o ritmo acelerado do Centro da cidade. Mesmo que com
algumas filas, o fato de o cliente poder se servir garante um tempo rápido de almoço para os
mais apressados. Esse almoço “prático” não enfatiza atendimento e ambientação, mas sim a
própria forma como o serviço foi projetado para o consumidor – uma refeição rápida, com
variedade e preço médio.

Tentando compreender mais a fundo a lógica dos restaurantes a quilo - os “fast-foods


brasileiros”1 - podemos pensar nesses estabelecimentos como locais que fornecem um tipo de
refeição bastante adequada ao modo brasileiro de se alimentar. É a idéia do “tudo ao mesmo
tempo agora”, ou seja, de um refeição que pode juntar em um mesmo prato uma certa
variedade de comidas. Roberto DaMatta (1984) já havia chamado atenção para a importância
da mistura na culinária nacional. Enquanto que nas culinárias francesa e italiana, por
exemplo, os pratos vão sendo consumidos em seqüência (saladas, carnes e massas são
servidas separadamente), no Brasil preferimos misturar os vários tipos de alimentos. Pratos
típicos como a feijoada e o cozido, por exemplo, se caracterizam por uma mistura do sólido
com o líquido, e o prato brasileiro “básico”, o feijão-com-arroz, também se constitui em uma
transformação de dois elementos separados em um terceiro:

...o feijão, que é preto, deixa de ser preto, e o arroz, que é branco, deixa
também de ser branco. A síntese é uma papa ou pirão que reúne
definitivamente arroz e feijão, construindo algo como um ser intermediário,
desses que a sociedade brasileira tamto admira e valoriza positivamente.
Comer arroz-com-feijão, então, é misturar o preto e o branco, a cama e a
mesa fazendo parte de um mesmo processo lógico e cultural... (p. 56)

O quilo, assim, se encaixaria plenamente nesse universo alimentar em que diferentes


tipos de comidas podem ser consumidas em um mesmo prato, ao mesmo tempo, num

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processo de inclusão, e nunca exclusão ou seqüenciamento. “Misturar” e “incluir” são dois
processos caros à lógica cultural brasileira, conforme já sugeriu DaMatta em outros trabalhos
(1981, 1985), além do citado anteriormente.

O restaurante a quilo Água na boca é um perfeito exemplar dessa categoria. Em um


sobrado tradicional do Centro, circula pelos dois grandes salões decorados de modo simples e
discreto, um público equilibradamente masculino e feminino de diversos segmentos das
classes médias urbanas. Um dos depoimentos coletados resume os aspectos ressaltados nesse
tópico sobre a opção pelos restaurantes a quilo:

Gosto do preço, é justo. Vale quanto pesa ... E a variedade também é legal. O
meu prato é tico-tico no fubá, samba do crioulo doido...Um pouquinho de
cada coisa... (Emília, aposentada)

4.3. “Oásis”
Isso aqui é um oásis!
(de uma informante)

A idéia presente nas opções de um grupo de consumidores de fazer uma quebra no


ritmo do trabalho e da “rua” está fortemente representada na terceira categoria, denominada
de “Oásis”. Esses clientes - um público mais sofisticado pertencente às elites e às classes
médias com nível universitário – valorizam em especial, mais que a própria comida, a
ambientação e o atendimento que recebem na hora do almoço.

Em primeiro lugar, o restaurante deve ter um ambiente “charmoso” que faça esquecer
o “caos urbano” característico do Centro da cidade. Esse “charme” e “estilo” pode estar
associado a estabelecimentos que estão localizados em centros culturais ou livrarias, como é o
caso do Centro Cultural Banco do Brasil, da Casa França Brasil, ou do Café Rodrigues, anexo
a uma Livraria. Pode ainda ter um charme tido como “tipicamente carioca”, como o
restaurante Gula-Gula, bastante citado como um lugar “da moda”, em que “as pessoas que
freqüentam são interessantes”. Ou ainda, em restaurantes que associam “ambiente
interessante” – compreendido como uma soma de ambiente “físico” e pessoas que freqüentam
– atendimento personalizado e comida de qualidade. Em outros casos, os estabelecimentos
são um espaço privilegiado para um almoço de negócios, em um ambiente tipicamente
executivo. Analisemos, a seguir, cada uma dessas opções.

4.3.1. Almoço “cultural”

Será usado o caso do restaurante Café Rodrigues como um representante dessa


categoria. O Café é um local instalado em um espaço que compreende também a Livraria da
Travessa e uma filial da loja Papel Craft, que comercializa produtos de papelaria sofisticados
e com grife. São servidos no local lanches e refeições no horário de almoço – saladas, quiches
e risotos. A clintela é formada por homens e mulheres de nível universitário, que valorizam o
clima “cultural” do lugar.

A importância da “quebra do ritmo” do trabalho e da rua fica clara nos depoimentos de


três freqüentadores:

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A gente quer esquecer do trabalho; o meu tá muito chato...venho aqui, que é o
meu lazer... (Sérgio, engenheiro)

Gosto daqui porque é tão bucólico, olha a livraria... (Regina, funcionária


pública)

Isso aqui é um oásis! (Ana, produtora cultural)

O tempo do trabalho e da rua são dominados pelo ritmo e a urgência do dinheiro. O


trabalho pode ser visto como enfadonho, como expresso em um dos depoimentos, e mesmo
que não seja, aparece muitas vezes como sinônimo de atividade desgastante (ainda que possa
trazer satisfação). A opção pelo almoço em restaurantes como o Café Rodrigues aparece
como uma forma de contrapor a esse universo do trabalho uma pausa, um corte, freqüentando
um estabelecimento “charmoso”, com “pessoas refinadas” e onde se é reconhecido e atendido
de forma “especial”.

Esse último ponto, de “ser conhecido” pelo dono e pelos garçons, recebendo um
tratamento personalizado, foi bastante destacado nas entrevistas:

Ele (o dono) faz a nossa vontade. (Rosa, advogada)

Aqui (Café Rodrigues) e no (restaurante) Gula-Gula – lá a gente já é bem


conhecida, é uma coisa superpersonalizada, mesmo - os donos nos conhecem
pelo nome (Regina, funcionária pública).

Nesse contexto, sair do “anonimato” da rua é fundamental. Em uma sociedade como a


brasileira, que lida de forma ambígua com os valores do individualismo e igualitarismo
(DaMatta,1981,1985), almoçar em um local em que se é reconhecido como um ser único e
merecedor de um tratamento diferenciado, revela a importância da personalização das
relações para esses consumidores, também presente em muitos outros contextos sociais.

4.3.2. Almoço com “charme, estilo e saúde”

Como no “almoço cultural” visto no tópico anterior, observa-se aqui a importância de


se “quebrar” o ritmo do trabalho, seja pela opção do “quilo sofisticado”, onde se busca uma
alimentação saudável, associada à tranqüilidade e ao charme do ambiente, seja pela escolha de
um almoço com “charme e estilo”.

A primeira possibilidade é a do “quilo sofisticado”. A procura por uma comida leve,


com saladas, mostra uma preocupação em seguir uma dieta ou simplesmente fazer uma
refeição mais saudável. É uma opção mais forte entre mulheres, camadas médias urbanas,
com maior poder aquisitivo. Ao lado da ênfase no tipo de comida, existe também a
importância do ambiente e atendimento. O restaurante Delight se encaixa perfeitamente nesse
modelo. Trata-se de um espaço com três andares onde se oferece um buffet a quilo ( a casa
também se apresenta como um “bistrô”), com pratos classificados em três cores que indicam
as calorias e algumas opções de sobremesas dietéticas.

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A escolha por uma “comida saudável” é bastante destacada pelos consumidores desse
restaurante. Principalmente as mulheres entrevistadas chamaram atenção para a comida “leve”
ali oferecida, que vai de encontro a suas constantes preocupações com dietas:

Aqui eu posso fazer um refeição leve, saudável, seguir minha dieta...; eles tem
a maior coisa com higiene – lavam as saladas de um jeito muito higienizado,
com todos aqueles mata-bactérias... (Eliane, arquiteta)

Associada à questão da alimentação, surge o aspecto do ambiente. O lugar é tido como


um espaço “tranqüilo” (uma entrevistada chamou atenção da ótima acústica do local, que não
deixa o barulho da rua entrar), bem decorado e com um atendimento “atencioso” por parte dos
funcionários.

Compõem ainda essa categoria de “chame, estilo e saúde” alguns estabelecimentos


que oferecem “algo especial além da comida”. Dois exemplos são os restaurantes Sagrada
Família e Gula-Gula.

Nesses restaurantes a comida não aparece em primeiro plano no discurso dos


entrevistados. O que se valoriza, primordialmente, é a “experiência do almoço” – “Comer
aqui é uma experiência”, disse um freqüentador do Sagrada Família - proporcionada pelo
ambiente levemente sofisticado, tanto em termos de espaço físico (decoração), quanto pela
tipo de pessoas que freqüentam os locais.

Os clientes do Sagrada Família enfatizam o atendimento e o “charme” do local, um


espaço com dois ambientes, decorado com reproduções de conhecidos artistas plásticos.
Podem assim quebrar o ritmo do trabalho, comendo lentamente, bebendo vinho e recebendo
um atendimento “especial”.

Como é característico da categoria “Oásis”, os clientes valorizam a distância do


mundo da rua, do caos urbano, e do espaço do trabalho, como fica claro em um dos
depoimentos, onde a ausência de “barulho” expressa a interrupção com o mundo “lá fora”:

Venho aqui porque é distante do meu trabalho, não encontro nenhuma cara
conhecida. O melhor daqui é que não tem barulho nenhum. Também vou no
Rancho Inn, porque não tem barulho. (Márcia, engenheira)

A opção pelo restaurante Gula-Gula, por sua vez, revela a importância de freqüentar
um lugar em que o ambiente é fundamentalmente marcado e qualificado pelo público
presente. O local é percebido como um “lugar da moda”, em que se encontram “pessoas
interessantes”, e onde se reconhece um certo ar “Zona Sul” dominando a casa ( na Zona Sul
da cidade vive a maior parte das classes sociais mais favorecidas economicamente, e é onde
são criados a maioria dos “modismos”). Vive-se, dessa forma, uma experiência de
pertencimento a um segmento “jovem e chique” da cidade. Nesse contexto, também aparece a
valorização do “ser conhecido” pelo dono/a, como um sinal de “fazer parte” dessa
selecionada “tribo”.

4.3.3. Almoço “VIP”

Em um restaurante, uma pessoa é e não é observada.


(David Mamet)

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Nessa categoria de restaurantes, mais do que nunca, o atendimento, o serviço e o
ambiente são elementos fundamentais para os freqüentadores. Espera-se encontrar um local
sofisticado, com decoração de extremo bom gosto, público de alta renda, predominantemente
executivo e comida refinada. O atendimento e o serviço são prioritariamente valorizados - é
preciso que sejam “impecáveis” , fazendo com que a pessoa se sinta alguém “especial”.

Estes restaurantes são caracterizados fortemente pelo aspecto de lugares de negócios.


É importante circular por esses lugares, como uma forma de evidenciar o pertencimento ao
mundo dos executivos – trata-se do “ver e ser visto”. Ao mesmo tempo, valoriza-se ao
máximo a discrição, o “não ser interrompido”. Os clientes querem, ao mesmo tempo, serem
reconhecidos e permanecerem “invisíveis”.

Em uma entrevista com a gerente de Marketing do Café Laguiole, um representante


exemplar dessa categoria, essa dialética ficou pela primeira vez evidenciada – não seria
possível fazer entrevistas durante o almoço, pois os clientes não deveriam ser interrompidos,
segundo a filosofia da casa. Se, por um lado, os clientes iam ao restaurante para “verem e
serem vistos”, por outro não gostavam de qualquer “incômodo” na hora do almoço (as
entrevistas do Café Laguiole, inclusive, foram realizadas nos locais de trabalho dos clientes).
Esse cuidado da gerência em não interferir no almoço, preservando ao máximo sua
privacidade, encontra eco nas entrevistas com os clientes:

Eu gosto do ambiente do Laguiole, é um ambiente gostoso, tranqüilo,


aconchegante. Você consegue conversar com as pessoas sem barulho. O
atendimento é correto; o que vale muito é o ambiente, é um ambiente legal,
tranqüilo prá você conversar sem ser interrompido. Tem uma coisa assim: os
garçons sabem lidar com gente que tá ali prá conversar sobre negócios, não
interrompem... você percebe que eles tem esse treinamento. (Fernando,
executivo)

Nesse ambiente de almoço de negócios fazem parte não só executivos e pessoas de


status social elevado, mas também quem queira pertencer a esses grupos. Lembrando aqui da
clássica obra de Veblen (1965), podemos referir esse comportamento ao que este autor
denominou de “consumo conspícuo”. Para Veblen, o consumo conspícuo, de ostentação,
surge como um modo de se exibir riqueza frente ao outro, ou seja, de se buscar a legitimação
e reconhecimento de que se ocupa um determinado lugar de prestígio dentro da comunidade.
O consumo seria, nessa perspectiva, um modo de competição com os pares, de fazer com que
estes reconheçam a “marca da força pecuniária da pessoa” ( p. 17), através da exibição de
riqueza, prestígio e poder. Essa forma de consumo de ostentação pode chegar, ainda segundo
Veblen, a um modo potlachiano, nos moldes do que foi descrito por Marcel Mauss (1974).
Mauss analisa o potlach como uma forma de troca social em que o prestígio é medido pela
capacidade de se “destruir” a própria riqueza. Quanto mais ofereço ao outro, mais poder
exerço sobre ele, já que o coloco em posição de grande dependência em relação a mim,
devido a exigência de retribuição.

No contexto dos sofisticados restaurantes executivos, se torna bastante claro a


existência do consumo conspícuo analisado por Veblen. Freqüentar esses lugares é um modo
de exibir status, de ser reconhecido como pessoa que ocupar um lugar de prestígio na
comunidade, comportamento que vale também para quem queira entrar nesse circuito.

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Seguindo a sugestão de Veblen e Mauss, um cliente que peça no almoço um vinho no
valor de R$ 5.000,00 está pondo em prática um modo de consumo potlachiano, celebrando a
troca entre as partes. Ele está não apenas enfatizando a própria riqueza, mas também
prestigiando seu parceiro na relação que tenha sido selada no restaurante.

O consumo nesse modelo de restaurante também evidencia o que Bourdieu mostrou


em seu estudo La Distinction (1979) sobre a elaboração social do gosto. O sociólogo frances
argumenta neste trabalho que as escolhas dos objetos de consumo refletem uma espécie de
hierarquia simbólica determinada e mantida pelas classes superiores economicamente para
reforçar sua distinção de outras classes sociais. O gosto, então, seria uma elemento que define
e separa a alta classe dos camadas trabalhadoras, se expressando nas escolhas de comida,
bebida, cosméticos, música, literatura, etc.

Bourdieu acredita que as classes sociais tem modelos de consumo distintos que são
continuamente reproduzidos de geração em geração. Os processos de educação e socialização
contribuem para a inserção dos indivíduos em determinada classe com uma específica
quantidade de capital cultural, produzindo gostos e práticas de consumo específicas. Saber
escolher e degustar um bom vinho, surge, portanto, como um aspecto de um gosto de classe,
que identifica e distingue o detentor desse conhecimento como um membro das elites. No
caso, o restaurante percebe a necessidade dos clientes em mostrarem um certo expertise no
assunto. Conforme comentou a gerente, o sommelier da casa procura não confrontar o seu
saber especializado com as opções dos clientes. O cuidado é para que as sugestões sejam
feitas de modo “suave” , sem que haja uma desqualificação da opinião dos consumidores, que
querem mostrar seu “bom gosto” e conhecimento no assunto – ou em termos da análise de
Bourdieu, seu “capital cultural”.

5. Considerações finais

Vale lembrar, mais uma vez, que a fundamentação teórica que orientou o presente
estudo etnográfico foi baseada na argumentação de que o desvendamento do fenômeno do
consumo nas sociedades industriais contemporâneas deve ser conduzido prioritariamente não
no plano onde os bens são produzidos, mas sim nos contextos onde eles adquirem significado.
Trata-se de uma tradição construída por diversos autores da Antropologia do Consumo,
alguns deles citados aqui, como Veblen, Mauss, Bourdieu e Mary Douglas. Essa opção pela
procura de significados da ação social em contextos “reais”, defendida no campo das Ciências
Sociais desde a obra do sociólogo Max Weber e presente em toda tradição antropológica
atualizada por Clifford Geertz (1978), pode ser sintetizada nas palavras do antropólogo
Marshall Sahlins: “uma casa vazia não é uma casa” (1979).

Procurou-se nesse estudo pesquisar os sentidos do consumo a partir do ponto de vista


dos sujeitos sociais. A proposta foi a de criar uma classificação que tivesse significado para
os que consomem, e não para os que produzem bens ou criam um serviço. Um modelo de
segmentação de restaurantes que tenha como critério principal o tipo de comida oferecida é
estabelecido a partir de uma ótica do produto (alimento) oferecido, que não necessariamente
corresponde ao modo pelo qual os consumidores processam suas escolhas. A investigação
seguiu, portanto, o caminho de buscar o modo de agrupamento de restaurantes a partir da
lógica do consumidor, o que permitiu a elaboração de um modelo de classificação de
restaurantes que compreendeu três grandes categorias: “ Valor da Tradição”, “Comida Urbana
Brasileira” e “Oásis”, com algumas subdivisões.

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A primeira categoria, “Valor da Tradição” , enfatiza o fato de se trabalhar no Centro
do Rio, uma região histórica, “maltratada”, mas onde ainda “resistem” valores tradicionais, o
que confere aos estabelecimentos um certo ar de nostalgia. É a valorização da comida caseira,
“quente”, “com gosto”, com a “feita em casa”. Aqui é importante “ser conhecido”, sendo o
contato com gerentes e garçons marcado pela intimidade e familiaridade.

Ao entrar na análise da segunda categoria, “Comida Urbana Brasileira”, vemos como a


visão dos freqüentadores em relação à comida a quilo enfatiza a possibilidade da mistura, tão
característica da cultura brasileira, fazendo do quilo um modelo de “fast-food brasileiro” que
tem alcançado, inclusive, grande expansão em termos de empreendimento comercial.

A terceira categoria de restaurantes foi denominada de “Oásis”, por representar uma


pausa no ritmo frenético da rua e do trabalho. Interromper a vida “lá fora” no horário de
almoço significa eleger alguns aspectos ou valores importantes como “ausência de barulho”,
“preservação da intimidade”, “tranqüilidade”, “aconchego” e “não ser interrompido”. Alguns
restaurantes chegaram a ser definidos como “bucólicos”, em uma significativa contraposição
à “selva de pedra” característica do Centro da Cidade. O mergulho em um outro tempo e
espaço, através dessa opção, pode seguir diversos caminhos – o do almoço saudável, de
negócios, ou com “ares culturais”. Em todos esses casos, o importante é o sentido de “quebra”
do ritmo “acelerado” dos mundos da rua e do trabalho.

O significado das escolhas dos consumidores pode ser buscado, assim, em questões
que não se expressam em opções ligadas ao produto oferecido (como na dicotomia “quilo” e
“à la carte”), mas a valores como, por exemplo “ser reconhecido pelo dono”, “ quebrar o
ritmo do trabalho” ou “comer uma comida que sustenta, à moda antiga”,

Os resultados da pesquisa mostraram que os sentidos de consumo no horário de


almoço podem ser relacionados a algumas questões relevantes para o entendimento da cultura
brasileira, especialmente as levantadas por Roberto DaMatta em alguns trabalhos
(1981,1985). Chama atenção aqui a dicotomia “casa” (aconchego, familiaridade) versus “rua”
(tempo do trabalho, do indivíduo e do dinheiro) e a importância da personalização das
relações sociais. As opções por determinados restaurantes podem mostrar uma procura pela
comida “caseira”, “que alimenta”, ou ainda, pelo ambiente tranqüilo e charmoso capaz de
proteger do mundo agitado da rua. Conforme argumenta DaMatta, a sociedade brasileira vive
seu “dilema” entre os universos da ideologia individualista e o dos valores hierárquicos – o
primeiro, é o lugar do “indivíduo” e da “rua” e o segundo, da “pessoa”, da “casa” e dos
valores tradicionais da família e da amizade. Em uma sociedade fortemente relacional como a
nossa, valoriza-se em primeiro lugar as formas de relação personalizadas, em que a “pessoa”
tem um lugar complementar aos outros que compõem a totalidade social. Ser um “indivíduo
anônimo” se constitui muitas vezes em uma ameaça, pois significa “estar solto” das relações
sociais, no “árduo” mundo da rua e do trabalho. Esses aspectos culturais brasileiros se
revelam nos inúmeros depoimentos que valorizam a comida “de casa”, o “ser reconhecido”, a
“pausa” no tempo desgastante da rua e do trabalho e a rejeição ao anonimato e
despersonalização presentes nos restaurantes a quilo.

A questão da personalização das relações, que evidencia a procura por não ser tratado
de forma anônima, de ser reconhecido pelo garçon ou pelo dono ou de ser atendido em seu
gosto pessoal, apresenta, no entanto, algumas nuances. Nos restaurantes mais sofisticados,
esse aspecto parece estar fortemente ligado à questão de status - ter um lugar social de
destaque dentro da sociedade, o que pôde ser relacionado à teoria vebleniana do “consumo

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conspícuo”. Nos restaurantes mais populares, essa questão está mais relacionada à valorização
de uma certa sociabilidade que privilegia ambientes familiares onde todos se conhecem e
onde as particularidades são reconhecidas - como na “casa”, onde cada um tem seu lugar e
gostos próprios, que devem ser respeitados e atendidos.

Sabendo, como lembra DaMatta, que a comida “ajuda a estabelecer uma identidade,
definindo, por isso mesmo, um grupo, uma classe ou uma pessoa” (1984, p.55), pode–se
perceber aqui como o ato de eleger determinado restaurante no horário de almoço expressa
classificações que articulam pessoas de um lado, com gostos e estilos de vida, de outro. Como
já haviam argumentado Sahlins(1979) e Rocha(1985), o consumo nas sociedades capitalistas
modernas pode ser compreendido como um amplo sistema totêmico em que diferentes grupos
marcam fronteiras e se reconhecem através delas. O presente estudo revelou, portanto,
contextos sociais em que o consumo aparece como um grande sistema classificatório que traz
consigo um universo de distinções, transformando indivíduos anônimos em seres humanos
particulares.

6. Referências bibliográficas

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brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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15
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VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. São Paulo: Pioneira, 1965.


____________________________________

1
A idéia do restaurante a quilo como um “fast-food brasileiro” foi sugerida pela antropóloga
Lívia Barbosa em uma palestra sobre “Marketing Etnográfico” realizada na Escola Superior
de Propaganda e Marketing – RJ (ESPM-RJ), em 2001.

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