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Artigo Consumo Restaurantes
Artigo Consumo Restaurantes
1. Introdução
Uma das marcas do Centro da cidade do Rio de Janeiro, como de diversos centros
urbanos, é a extrema heterogeneidade de pessoas circulando por suas ruas, vindas dos mais
distantes bairros e pertencentes aos mais diversos segmentos sociais. Essa diversidade
também pode ser encontrada na variedade de restaurantes existentes na área. O presente
estudo pretende discutir e apresentar um modo de classificação de restaurantes a partir da
perspectiva do consumidor. Pesquisando os hábitos de consumo na hora do almoço em uma
região do Centro da Cidade, procurou-se alcançar os significados e as motivações envolvidos
nas escolhas por determinados estabelecimentos.
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quilo, típicos, japoneses, etc.). Esse tipo de classificação presente, por exemplo, em guias de
restaurantes e bares, tem como princípio ordenar os estabelecimentos de acordo com a ótica
do produto oferecido (alimento), já que tem como critério o tipo de comida oferecido.
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Seguindo, portanto a tradição de uma abordagem antropológica do consumo, o
presente estudo propõe uma discussão sobre o processo de decisão de consumo (no caso, de
serviços) como uma questão simbólica (Sahlins, 1979), que envolve determinados
significados culturais compartilhados pelos sujeitos investigados. Esses significados podem
revelar alguns dos modos pelos quais os diferentes grupos que formam uma sociedade
específica se distinguem e se comunicam entre si.
3. Metodologia
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após uma consulta no início de seu almoço. Também foram coletadas informações junto aos
donos, gerentes e garçons dos restaurantes, através de conversas informais; esses dados
recolhidos em um clima mais “informal” - e também em conversas informais com clientes -
funcionam como “entrevistas não estruturadas”, se constituindo em um valioso instrumento
de coleta de dados. O trabalho com múltiplas fontes de dados, recolhidos em diferentes
momentos e situações em um mesmo restaurante, fornece densidade à pesquisa, já que o
confronto de informações coletadas em vários contextos permite o acesso a aspectos
ambíguos, contraditórios e inconscientes do comportamento dos informantes, o que muitas
vezes não se revela quando se trabalha apenas no plano de seu discurso consciente.
4. Um Modelo de Classificação
Pode-se observar nestes estabelecimentos uma alta fidelidade por parte dos
consumidores, porque a comida “que sustenta” fornece a energia necessária para enfrentar o
dia a dia desgastante do trabalho. É a comida “de casa”, tradicional, que ajuda a viver na rua
- lembrando aqui da dicotomia casa/rua discutida por Roberto DaMatta em suas análises sobra
a sociedade brasileira (1984). No caso de alguns restaurantes, essa opção por uma comida
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caseira e tradicional está associada à valorização de uma imagem nostálgica do Rio Antigo,
como no modelo representado pelo restaurante Bico Doce, a ser analisado.
Trata-se de um restaurante que serve pratos feitos fartos, pelo preço de R$7,00. O
Gerente da casa definiu bem o estilo do restaurante: “eles (clientes) vem aqui pela comida,
que é boa e sempre quente; não é pelo ambiente, não”. O lugar tem uma decoração antiga e
kitsch – um desenho de Nossa Senhora de Fátima atrás do caixa, um quadro do “Vasco da
Gama tri-campeão”, um grande painel com figura de esquimós - que passa a sensação de que
pouca coisa mudou com o tempo. O restaurante serve uma comida tida como de qualidade e
“honesta”, cujo cardápio se mantém praticamente inalterado desde sua inauguração, além de
uma equipe na cozinha que é a mesma há 41 anos. Esses sinais mostram como o “valor da
tradição” se impõe nesse local.
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pintadas com imagens do Rio antigo, encontra-se a inscrição: “Pessoas na rua, arquitetura
colonial”. O chão, a escada e a grade são de madeira, reforçando o clima nostálgico.
No Bico Doce também podemos encontrar uma opção que enfatiza a comida e o modo
como ela é servida. É uma refeição farta, com gosto caseiro ( “comida de vó”, que faz a
pessoa se sentir “em casa”) e “servida quente” (ao contrário dos restaurantes a quilo),
comentam os clientes.
Outros aspectos importantes nesse modelo são a intimidade com os garçons e o clima
de informalidade reinante. Em um momento da observação, foi ouvido de um dos garçons
para um cliente: “a máquina está fora do ar, paga amanhã”. A fidelidade é alta; muitas das
pessoas que entram cumprimentam as que estão almoçando, o que dá ao local um clima
“amigável” e familiar. O público é predominantemente masculino, de diversos segmentos das
classes médias urbanas.
“Nostalgia” seria uma das palavra-chave para se entender o local – aliás, é o título do
texto do primeiro quadro colocado logo na entrada do restaurante. Um freqüentador sintetiza
esse sentimento quanto às mudanças que vem ocorrendo no Centro da cidade:
Uma outra palavra-chave parece ser “confiança”: “a gente tem que ter confiança na
casa, e aqui eles não enrolam até quem vem pela primeira vez”, disse um informante. A
confiança segundo os clientes é evidenciada na postura dos garçons e do gerente, que se
esmeram em servir bebida e comida “sem truques” que ludibriem a clientela, como em outros
lugares.
Os clientes da casa se sentem bem por serem reconhecidos como pessoas que tem
gostos e “jeitos” particulares. Vários relatos foram feitos de como os garçons lembram da sua
singularidade à mesa, como nesse comentário:
Estou tomando canela com café, que eles já sabem que eu gosto. A gente gosta
de vinho chileno e ele já tem o nosso vinho. Se você quer um file com alho e
salsa, que não tem no cardápio, ele traz do seu jeito. (Jorge, fiscal)
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Por não ser um indivíduo anônimo, e sim uma pessoa com um gosto singular, o
freqüentador da casa valoriza o atendimento personalizado que reconhece e atende suas
necessidades particulares.
Aparece aqui, mais uma vez, o contraponto com o modo de refeições “a quilo” – visto
como um estilo padronizado, “sem alma” e personalidade, como fica claro no depoimento de
um informante:
Até vou no kilo, mas não consigo nem gravar o nome. No quilo são as mesmas
coisas prá qualquer um. Eu tô com fome, vou ali, preparo o meu prato e como.
É como uma obrigação alimentar; tem que ir lá, pesar e comer. (Renato,
advogado)
para nós (brasileiros) saber comer é algo muito mais refinado do que o
simples ato de alimentar-se... para nós, nem tudo que alimenta é sempre bom
ou socialmente aceitável. Do mesmo modo, nem tudo que alimenta é comida.
Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva;
comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais
sagradas de comunhão e comensalidade. ( p. 55).
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4.2. “Comida Urbana Brasileira”
...o feijão, que é preto, deixa de ser preto, e o arroz, que é branco, deixa
também de ser branco. A síntese é uma papa ou pirão que reúne
definitivamente arroz e feijão, construindo algo como um ser intermediário,
desses que a sociedade brasileira tamto admira e valoriza positivamente.
Comer arroz-com-feijão, então, é misturar o preto e o branco, a cama e a
mesa fazendo parte de um mesmo processo lógico e cultural... (p. 56)
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processo de inclusão, e nunca exclusão ou seqüenciamento. “Misturar” e “incluir” são dois
processos caros à lógica cultural brasileira, conforme já sugeriu DaMatta em outros trabalhos
(1981, 1985), além do citado anteriormente.
Gosto do preço, é justo. Vale quanto pesa ... E a variedade também é legal. O
meu prato é tico-tico no fubá, samba do crioulo doido...Um pouquinho de
cada coisa... (Emília, aposentada)
4.3. “Oásis”
Isso aqui é um oásis!
(de uma informante)
Em primeiro lugar, o restaurante deve ter um ambiente “charmoso” que faça esquecer
o “caos urbano” característico do Centro da cidade. Esse “charme” e “estilo” pode estar
associado a estabelecimentos que estão localizados em centros culturais ou livrarias, como é o
caso do Centro Cultural Banco do Brasil, da Casa França Brasil, ou do Café Rodrigues, anexo
a uma Livraria. Pode ainda ter um charme tido como “tipicamente carioca”, como o
restaurante Gula-Gula, bastante citado como um lugar “da moda”, em que “as pessoas que
freqüentam são interessantes”. Ou ainda, em restaurantes que associam “ambiente
interessante” – compreendido como uma soma de ambiente “físico” e pessoas que freqüentam
– atendimento personalizado e comida de qualidade. Em outros casos, os estabelecimentos
são um espaço privilegiado para um almoço de negócios, em um ambiente tipicamente
executivo. Analisemos, a seguir, cada uma dessas opções.
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A gente quer esquecer do trabalho; o meu tá muito chato...venho aqui, que é o
meu lazer... (Sérgio, engenheiro)
Esse último ponto, de “ser conhecido” pelo dono e pelos garçons, recebendo um
tratamento personalizado, foi bastante destacado nas entrevistas:
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A escolha por uma “comida saudável” é bastante destacada pelos consumidores desse
restaurante. Principalmente as mulheres entrevistadas chamaram atenção para a comida “leve”
ali oferecida, que vai de encontro a suas constantes preocupações com dietas:
Aqui eu posso fazer um refeição leve, saudável, seguir minha dieta...; eles tem
a maior coisa com higiene – lavam as saladas de um jeito muito higienizado,
com todos aqueles mata-bactérias... (Eliane, arquiteta)
Venho aqui porque é distante do meu trabalho, não encontro nenhuma cara
conhecida. O melhor daqui é que não tem barulho nenhum. Também vou no
Rancho Inn, porque não tem barulho. (Márcia, engenheira)
A opção pelo restaurante Gula-Gula, por sua vez, revela a importância de freqüentar
um lugar em que o ambiente é fundamentalmente marcado e qualificado pelo público
presente. O local é percebido como um “lugar da moda”, em que se encontram “pessoas
interessantes”, e onde se reconhece um certo ar “Zona Sul” dominando a casa ( na Zona Sul
da cidade vive a maior parte das classes sociais mais favorecidas economicamente, e é onde
são criados a maioria dos “modismos”). Vive-se, dessa forma, uma experiência de
pertencimento a um segmento “jovem e chique” da cidade. Nesse contexto, também aparece a
valorização do “ser conhecido” pelo dono/a, como um sinal de “fazer parte” dessa
selecionada “tribo”.
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Nessa categoria de restaurantes, mais do que nunca, o atendimento, o serviço e o
ambiente são elementos fundamentais para os freqüentadores. Espera-se encontrar um local
sofisticado, com decoração de extremo bom gosto, público de alta renda, predominantemente
executivo e comida refinada. O atendimento e o serviço são prioritariamente valorizados - é
preciso que sejam “impecáveis” , fazendo com que a pessoa se sinta alguém “especial”.
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Seguindo a sugestão de Veblen e Mauss, um cliente que peça no almoço um vinho no
valor de R$ 5.000,00 está pondo em prática um modo de consumo potlachiano, celebrando a
troca entre as partes. Ele está não apenas enfatizando a própria riqueza, mas também
prestigiando seu parceiro na relação que tenha sido selada no restaurante.
Bourdieu acredita que as classes sociais tem modelos de consumo distintos que são
continuamente reproduzidos de geração em geração. Os processos de educação e socialização
contribuem para a inserção dos indivíduos em determinada classe com uma específica
quantidade de capital cultural, produzindo gostos e práticas de consumo específicas. Saber
escolher e degustar um bom vinho, surge, portanto, como um aspecto de um gosto de classe,
que identifica e distingue o detentor desse conhecimento como um membro das elites. No
caso, o restaurante percebe a necessidade dos clientes em mostrarem um certo expertise no
assunto. Conforme comentou a gerente, o sommelier da casa procura não confrontar o seu
saber especializado com as opções dos clientes. O cuidado é para que as sugestões sejam
feitas de modo “suave” , sem que haja uma desqualificação da opinião dos consumidores, que
querem mostrar seu “bom gosto” e conhecimento no assunto – ou em termos da análise de
Bourdieu, seu “capital cultural”.
5. Considerações finais
Vale lembrar, mais uma vez, que a fundamentação teórica que orientou o presente
estudo etnográfico foi baseada na argumentação de que o desvendamento do fenômeno do
consumo nas sociedades industriais contemporâneas deve ser conduzido prioritariamente não
no plano onde os bens são produzidos, mas sim nos contextos onde eles adquirem significado.
Trata-se de uma tradição construída por diversos autores da Antropologia do Consumo,
alguns deles citados aqui, como Veblen, Mauss, Bourdieu e Mary Douglas. Essa opção pela
procura de significados da ação social em contextos “reais”, defendida no campo das Ciências
Sociais desde a obra do sociólogo Max Weber e presente em toda tradição antropológica
atualizada por Clifford Geertz (1978), pode ser sintetizada nas palavras do antropólogo
Marshall Sahlins: “uma casa vazia não é uma casa” (1979).
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A primeira categoria, “Valor da Tradição” , enfatiza o fato de se trabalhar no Centro
do Rio, uma região histórica, “maltratada”, mas onde ainda “resistem” valores tradicionais, o
que confere aos estabelecimentos um certo ar de nostalgia. É a valorização da comida caseira,
“quente”, “com gosto”, com a “feita em casa”. Aqui é importante “ser conhecido”, sendo o
contato com gerentes e garçons marcado pela intimidade e familiaridade.
O significado das escolhas dos consumidores pode ser buscado, assim, em questões
que não se expressam em opções ligadas ao produto oferecido (como na dicotomia “quilo” e
“à la carte”), mas a valores como, por exemplo “ser reconhecido pelo dono”, “ quebrar o
ritmo do trabalho” ou “comer uma comida que sustenta, à moda antiga”,
A questão da personalização das relações, que evidencia a procura por não ser tratado
de forma anônima, de ser reconhecido pelo garçon ou pelo dono ou de ser atendido em seu
gosto pessoal, apresenta, no entanto, algumas nuances. Nos restaurantes mais sofisticados,
esse aspecto parece estar fortemente ligado à questão de status - ter um lugar social de
destaque dentro da sociedade, o que pôde ser relacionado à teoria vebleniana do “consumo
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conspícuo”. Nos restaurantes mais populares, essa questão está mais relacionada à valorização
de uma certa sociabilidade que privilegia ambientes familiares onde todos se conhecem e
onde as particularidades são reconhecidas - como na “casa”, onde cada um tem seu lugar e
gostos próprios, que devem ser respeitados e atendidos.
Sabendo, como lembra DaMatta, que a comida “ajuda a estabelecer uma identidade,
definindo, por isso mesmo, um grupo, uma classe ou uma pessoa” (1984, p.55), pode–se
perceber aqui como o ato de eleger determinado restaurante no horário de almoço expressa
classificações que articulam pessoas de um lado, com gostos e estilos de vida, de outro. Como
já haviam argumentado Sahlins(1979) e Rocha(1985), o consumo nas sociedades capitalistas
modernas pode ser compreendido como um amplo sistema totêmico em que diferentes grupos
marcam fronteiras e se reconhecem através delas. O presente estudo revelou, portanto,
contextos sociais em que o consumo aparece como um grande sistema classificatório que traz
consigo um universo de distinções, transformando indivíduos anônimos em seres humanos
particulares.
6. Referências bibliográficas
DAMATTA, Roberto. O ofício do etnólogo, ou como ter “anthropological blues”. In: NUNES
(Org.). A Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 23-35.
DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. The world of goods. Middlesex: Penguin, 1978.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas.
In: Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU, 1974.
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A idéia do restaurante a quilo como um “fast-food brasileiro” foi sugerida pela antropóloga
Lívia Barbosa em uma palestra sobre “Marketing Etnográfico” realizada na Escola Superior
de Propaganda e Marketing – RJ (ESPM-RJ), em 2001.
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