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In memoriam

Edmund Cadwalader Evans, 1879-1934

Um bom economista, um dos poucos que


entendem a natureza do Estado.
Seja verdade ou não que o homem é
formado na iniqüidade e concebido no
pecado, é verdade incontestável que o
governo é gerado da agressão, e por
agressão.

Herbert Spencer, 1850

O mais grave perigo que hoje ameaça a


civilização é a intervenção do Estado, a
absorção de todo esforço social espontâneo
pelo Estado; isto é, da ação histórica
espontânea, que no longo prazo sustenta,
nutre e impulsiona os destinos humanos.

Jose Ortega y Gasset, 1922

Ele [o Estado] assumiu grandes quantidades


de novos deveres e responsabilidades;
espalhou seus poderes até que penetrassem
os atos de cada cidadão, por mais secretos
que sejam; ele começou a criar ao redor de
suas operações a grande dignidade e
impecabilidade de uma religião estatal; seus
agentes se tornaram uma casta separada e
superior, com autoridade para ligar e desligar,
e colocar suas mãos em tudo. Mas ainda
permanece, como no início, o inimigo comum
de todos os homens de boa vontade,
trabalhadores e decentes.

Henry L. Mencken, 1926


PREFÁCIO À SEGUNDA
EDIÇÃO
Quando Nosso inimigo, o Estado foi lançado
em 1935, foram seus méritos literários, e não
seu conteúdo filosófico, o que atraiu atenção.
A geração não estava suficientemente
madura para aceitar suas previsões, ainda
menos para o argumento em que essas
previsões se baseavam. A fé no
individualismo de fronteira tradicional ainda
não havia sido abalada pelo curso dos
acontecimentos. Contra essa crença pouco
avançou o argumento de que estavam em
operação as mesmas forças econômicas
que, em todos os tempos e em todas as
nações, impulsionaram a ascensão do poder
político à custa do poder social. Ou seja, o
sentimento de que “isso não pode acontecer
conosco” era um obstáculo que o livro não
podia superar.
Quando a primeira edição se esgotou, o
desenvolvimento dos assuntos públicos
proporcionou um copioso testemunho ao
argumento do livro. Em menos de uma
década ficou evidente para muitos
americanos que seu país não é imune à
filosofia que apreendeu o pensamento
europeu. Os tempos provavam a tese do Sr.
Nock e, por uma irresistível propaganda
boca-a-boca, a demanda pelo livro começou
a se manifestar apenas quando ele já não
estava disponível. E os folhetos informativos
dentro do livro falavam de temas de guerra.

Em 1943, o Sr. Nock pensava em uma


segunda edição. Conversei com ele várias
vezes sobre isso, instando-o a elaborar suas
idéias econômicas, uma vez que elas não me
pareceram desenvolvidas de forma adequada
para o leitor de conhecimento limitado sobre
economia política. Ele concordou que isso
deveria ser feito, mas em um livro separado
ou em uma segunda parte do seu livro, e
sugeriu que eu mesmo o escrevesse. Nada
aconteceu por causa da guerra. Ele morreu
em 19 de agosto de 1945.

Este volume é uma duplicação exata da


primeira edição. O Sr. Nock pretendia fazer
algumas pequenas alterações —
principalmente, como ele disse, na
substituição das ilustrações por outras que
tenham uma carga mais leve para os leitores
mais jovens. Isso terá de ser feito na
seqüência que enfatiza a economia. De
qualquer forma, Nosso inimigo, o Estado não
precisa de nenhum apoio adicional.

Frank Chodorov Nova York, 28 de maio de


1946
CAPÍTULO I1
“Existe um princípio que anula toda
informação, que é prova contra todos os
argumentos e que não falha em manter um
homem em ignorância eterna — esse
princípio é o desdém antes da investigação".

Herbert Spencer

Se olharmos além da superfície dos nossos


assuntos públicos, podemos distinguir um
fato fundamental: uma grande redistribuição
de poder entre a sociedade e o Estado. Isso
é o que interessa ao estudante da civilização.
Seu interesse é secundário em questões
como fixação de preços, fixação de salários,
inflação, políticas bancárias, “ajustes
agrícolas” e temas de política estatal que
enchem as páginas dos jornais e a boca dos
jornalistas e dos políticos. Tudo isso pode ser
agrupado 1 em um único fator. Essas
questões têm uma importância imediata e
temporária, e por essa razão monopolizam a
atenção do público, mas todas se referem à
mesma coisa; ou seja: um aumento do poder
do Estado e uma diminuição equivalente do
poder social.

Infelizmente não se compreende muito bem


que, assim como o Estado não possui seu
próprio dinheiro, ele também não tem poder
próprio. Todo o poder que ele possui é o que
a sociedade lhe concede, além do que ele
confisca de tempos em tempos sob um
pretexto qualquer; não existe outra fonte de
onde o Estado obtém poder. Portanto, todo
aumento do poder do Estado, seja dado ou
apreendido, deixa a sociedade com muito
menos poder. Não existe, nem pode existir,
qualquer fortalecimento do poder do Estado
sem uma diminuição correspondente e mais
ou menos equivalente do poder social.
Além disso segue-se que, com o exercício de
poder do Estado não só diminui o poder
social na mesma medida, mas também a
maneira de exercê-lo. O prefeito Gaynor
surpreendeu toda Nova York quando indicou,
para um jornalista que reclamara da
ineficiência da polícia, que qualquer cidadão
tem o direito de prender um malfeitor e levá-
lo a um magistrado. “A lei da Inglaterra e
deste país”, escreveu, “tomou muito cuidado
de não conferir mais direito a esse respeito
aos policiais e agentes do que confere a
todos os cidadãos”. O exercício desse direito
pelo Estado por meio de força policial foi tão
constante que os cidadãos não só não
estavam dispostos a exercê-lo como,
provavelmente, sequer sabiam que o tinham.

Até agora, neste país, crises repentinas de


infortúnio foram atendidas por uma
mobilização do poder social. Na verdade
(com exceção de certas iniciativas
institucionais, como lares para idosos,
hospícios, hospitais municipais e albergues),
a pobreza, o desemprego, a “depressão” e os
males semelhantes não foram interesse do
Estado — foram aliviados pelo poder social.
No mandato do Sr. Roosevelt, no entanto, o
Estado assumiu essa função, anunciando
publicamente a doutrina, sem precedentes
em nossa história, de que o Estado deve
sustentar seus cidadãos. Os que estudam
política, é claro, viram nisso mera proposta
astuta para aumentar o poder do Estado;
simplesmente o que, já em 1794, James
Madison chamou de “o velho truque de
transformar cada contingência em um
recurso para acumular poder no governo”; e
a passagem do tempo provou que estavam
certos. O efeito disso no equilíbrio entre o
poder do Estado e o poder social é claro, e
também o efeito de um doutrinamento geral
com a idéia de que um exercício de poder
social sobre tais assuntos não é mais
necessário.

É principalmente assim que a conversão


progressiva do poder social em poder do
Estado se torna aceitável.2 Quando ocorreu o
dilúvio de Johnstown, o poder social foi
mobilizado de imediato e aplicado com
inteligência e vigor. Sua abundância, medida
apenas pelo dinheiro, foi tão grande que,
quando tudo foi finalmente colocado em
ordem, restava cerca de um milhão de
dólares. Se tal catástrofe acontecesse agora,
não só o poder social talvez estivesse
esgotado para exercício semelhante, mas o
instinto geral seria deixar o Estado cuidar
disso. O poder social se atrofiou até esse
ponto, e atrofiou-se com ele a disposição de
exercê-lo nessa direção particular. Se o
Estado tomou para si coisas tão importantes
e confiscou o poder social necessário para
lidar com elas, deixe-o lidar com elas.
Podemos obter algum tipo de medida
aproximada dessa atrofia geral por nossa
própria disposição quando somos abordados
por um mendigo. Dois anos atrás,
poderiamos ter a intenção de dar-lhe alguma
coisa; hoje ficamos com vontade de
encaminhá-lo aos programas sociais do
Estado. O Estado disse à sociedade: “Você
não está exercendo o poder suficiente para
enfrentar a emergência, ou o está exercendo
de uma maneira que considero incompetente.
Então, vou confiscar seu poder e prati-cá-lo a
fim de adequá-lo a mim”. Por isso, quando
um mendigo nos pede uma moeda, nosso
instinto é dizer que o Estado já confiscou
nosso dinheiro para benefício dele, e que ele
deveria ir ao Estado recebê-lo.

Toda intervenção positiva que o Estado faz


sobre a indústria e o comércio tem um efeito
semelhante. Quando o Estado intervém para
fixar salários ou preços, ou para prescrever
as condições da concorrência, praticamente
diz ao empreendedor que ele não está
exercendo o poder social da maneira correta
e, portanto, propõe confiscar seu poder e
exercê-lo de acordo com o que o Estado
julgar ser melhor. Então o instinto do
empreendedor é deixar o Estado cuidar das
conseqüências. Como um exemplo simples
disso, um fabricante de um tipo de têxtil
especializado me contou outro dia que
manteve sua fábrica em prejuízo por cinco
anos porque não queria demitir seus
trabalhadores em tempos tão difíceis; mas,
agora que o Estado interferiu para dizer-lhe
como deve dirigir o seu negócio, o Estado
pode muito bem assumir a responsabilidade.

O processo de conversão do poder social em


poder do Estado talvez seja visto de forma
mais simples nos casos em que a
intervenção estatal é diretamente
competitiva. O acúmulo de poder do Estado
em vários países tem sido tão acelerado e
diversificado nos últimos vinte anos que
agora vemos o Estado funcionando como
telegrafista, telefonista, atacadista, operador
de rádio, fundidor de canhão, construtor e
proprietário de ferrovias, operador ferroviário,
vendedor de tabaco por atacado e varejo,
construtor e proprietário de navios, químico-
chefe, fabricante de portos e construtor de
docas, construtor de casas, educador,
proprietário de jornal, fornecedor de
alimentos, revendedor de seguros e assim
por diante em uma longa lista.3

E óbvio que as formas privadas dessas


iniciativas tendem a diminuir à medida que a
força das intervenções estatais sobre elas
aumenta, pois o poder social está sempre em
desvantagem com o poder do Estado, já que
o Estado pode ditar os termos de
concorrência que lhe convêm, até o ponto de
proibir qualquer exercício de poder social; ele
exerce, em outras palavras, um completo
monopólio. As instâncias desse expediente
são comuns: aquele com quem
provavelmente estamos mais familiarizados é
o monopólio do Estado de transportar cartas.
O poder social é impedido por decreto de
aplicar esta forma de empreendimento,
apesar de ser muito mais barato e, neste país
pelo menos, muito melhor. As vantagens
desse monopólio na promoção dos
interesses do Estado são peculiares.
Nenhum outro poderia garantir um volume de
patrocínio tão grande e bem distribuído sob o
disfarce de um serviço público utilizado por
uma grande quantidade de pessoas; ele
estabelece um oficial do Estado em cada
canto do país. Não é, de modo algum, pura
coincidência que um cobrador de impostos
seja, de repente, nomeado diretor-geral dos
correios.

Assim, o Estado “transforma cada


contingência em uma fonte” para acumular
poder, sempre à custa do poder social, e com
isso desenvolve um hábito de aquiescência
no povo. Novas gerações aparecem, cada
uma ajustada de forma temperamental — ou,
como creio que o nosso glossário americano
agora diz, “condicionada” — a novos
incrementos do poder estatal, e tendem a
considerar válido o processo de acumulação
contínua. Todas as vozes institucionais do
Estado se unem para confirmar essa
tendência; se unem para exibir a conversão
progressiva do poder social no poder do
Estado como algo não apenas bastante
ordenado, mas até mesmo saudável e
necessário para o bem público.

II

Nos Estados Unidos, no presente momento,


os principais índices do aumento do poder do
Estado são três. Primeiro, o ponto em que
ocorreu a centralização da autoridade do
Estado. Praticamente todos os direitos e
poderes soberanos das unidades políticas
menores — todos eles bastante significativos
para valer a pena assimilar — foram
absorvidos pela unidade federal; isso não é
tudo. O poder do Estado não só se
concentrou assim em Washington, mas se
concentrou de tal modo nas mãos do
Executivo que o regime existente é um
regime de governo pessoal. E nominalmente
republicano, mas na verdade monocrático;
uma anomalia curiosa, mas muito
característica de um povo pouco dotado de
integridade intelectual. O governo pessoal
não é exercido aqui da mesma forma como
na Itália, na Rússia ou Alemanha, pois não
há interesses do Estado para servir,
enquanto naqueles países os interesses do
Estado são servidos. Mas o governo pessoal
é sempre um governo pessoal. O modo de
seu exercício é questão de conveniência
política imediata e é inteiramente
determinado pelas circunstâncias.

Este regime foi estabelecido por um golpe de


Estado de um tipo novo e incomum,
praticável apenas em um país rico. Efetuou-
se não por violência, como o de Napoleão;
nem por terrorismo, como o de Mussolini;
mas por compra. Apresenta, portanto, o que
pode ser chamado de variante americana do
golpe de Estado.4

Nossa legislatura nacional não foi suprimida


pela força das armas, como a Assembléia
francesa em 1851: a interrupção de suas
funções foi comprada com dinheiro público;
e, como apareceu de forma mais visível nas
eleições de novembro de 1934, a
consolidação do golpe de Estado foi efetuada
pelos mesmos meios; as funções
correspondentes nas unidades menores
foram reduzidas sob o controle pessoal do
Executivo.5

Este é um fenômeno notável: é possível que


nunca tenha acontecido algo parecido; e seu
caráter e implicações merecem atenção
maior.

Um segundo índice é fornecido pela extensão


prodigiosa do princípio burocrático que agora
pode-se observar. Isto é provado prima facie
pelo número de novos conselhos, gabinetes
e comissões criados em Washington nos
últimos dois anos. Segundo relatos, eles
representam algo em torno de 90 mil novos
funcionários nomeados fora do serviço civil, e
dizem que o total da folha de pagamento
federal em Washington é algo acima de três
milhões de dólares por mês.6
Essa, no entanto, é uma questão
relativamente pequena. A pressão da
centralização tendeu a converter fortemente
todo oficial e aspirante político das unidades
menores em um agente venal e complacente
da burocracia federal. Isso apresenta um
paralelo interessante com o estado das
coisas prevalecentes no Império Romano nos
últimos dias da dinastia Flaviana e
posteriormente. Os direitos e práticas do
governo autônomo local, que antes eram
muito consideráveis nas províncias e mais
ainda nos municípios, foram perdidos por
rendição, e não por supressão. A burocracia
imperial, que até o segundo século era um
caso comparativamente modesto, cresceu
rapidamente de tamanho, e os políticos locais
logo viram vantagem em manter relações
amigáveis. Eles foram a Roma com seus
chapéus nas mãos, assim como
governadores, aspirantes ao Congresso e
outros semelhantes agora vão para
Washington. Seus olhos e pensamentos
estavam constantemente fixos em Roma,
porque o reconhecimento e o privilégio eram
assim. E, em seu incorrigível sicofantismo,
eles se tornaram, como diz Plutarco,
hipocondríacos que não se atrevem a comer
ou a tomar banho sem consultar seu médico.

Nota-se um terceiro índice na instituição da


pobreza e mendicância em um ativo político
permanente. Há dois anos, muitas pessoas
estavam em dificuldades; em certa medida,
sem dúvida, sem culpa própria, embora
agora esteja claro que, na visão popular de
seu caso, bem como na visão política, a linha
entre os que merecem e os que não
merecem ser pobres não foi claramente
delimitada. O sentimento popular estava em
alta na época, e considerava-se a miséria
prevalecente com emoção indiscriminada
como evidência de algo injusto feito a suas
vítimas pela sociedade em geral, ao invés da
penalidade natural da ganância, loucura ou
delitos reais; o que, em grande parte, foi. O
Estado, sempre instintivamente
“transformando cada contingência em
recurso” para acelerar a conversão do poder
social em poder estatal, foi rápido para
aproveitar esse estado de espírito. O
necessário para organizar esses infortúnios
em uma propriedade política inestimável era
declarar a doutrina de que o Estado deve
sustentar todos os seus cidadãos; e isso foi
feito. Imediatamente precipitou-se uma
enorme massa de poder de voto subsidiado,
um enorme recurso para fortalecer o Estado
à custa da sociedade.7

III

Existe a impressão de que o aumento do


poder do Estado, que ocorre desde 1932,
seja provisório e temporário, que a
correspondente diminuição do poder social
se dá por meio de um tipo de empréstimo de
emergência e, portanto, não deve ser
investigada tão rigorosamente. É muito
provável que essa crença já não tenha
fundamento. Sem dúvida, nosso regime atual
será modificado de um jeito ou de outro; De
fato, ele deve ser modificado, pois o processo
de consolidação exige isso. Mas qualquer
mudança essencial seria não histórica, sem
precedentes, e, portanto, muito improvável —
por uma mudança essencial refiro-me à
mudança que tenderá a redistribuir o poder
real entre o Estado e a sociedade.8

Na natureza das coisas não há razão para


que tal mudança ocorra, e todas as razões
para que ela não ocorra. Veremos várias
recessões aparentes, compromissos
aparentes, mas a única coisa de que
podemos ter certeza é que nada tenderá a
diminuir o poder real do Estado.

Sem dúvida, podemos ver o grande grupo de


pressão da pobreza politicamente organizada
e a mendicância subsidiada indiretamente em
vez de diretamente, porque o interesse do
Estado não pode acompanhar o ritmo da
imprudente disposição das massas para
assaltar a sua própria tesouraria. O método
de subsídio direto, ou simples compra em
dinheiro, muito provavelmente logo dará lugar
ao método indireto do que é chamado de
“legislação social”; isto é, um sistema múltiplo
de pensões, seguros e indenizações de
vários tipos geridas pelo Estado. Essa é uma
recessão aparente, e, quando ocorrer, sem
dúvida será proclamada como recessão real,
sem dúvida aceita como tal; mas é isso
mesmo? Realmente tende a diminuir o poder
do Estado e aumentar o poder social?
Obviamente não — ao contrário. Ela tende a
consolidar firmemente essa fração particular
do poder do Estado e abre o caminho para
obter um incremento indefinido pela simples
invenção contínua de novos cursos e
desenvolvimentos da legislação social
administrada pelo Estado, que é um negócio
extremamente simples. Pode-se acrescentar
a observação, seja qual for o valor da
evidência, que, se o efeito da legislação
social progressiva sobre a soma total do
poder do Estado fosse desfavorável, ou
mesmo nulo, dificilmente constataríamos que
o príncipe de Bismarck e os políticos liberais
britânicos de quarenta anos atrás adotaram
algo remotamente parecido.

Quando, portanto, o estudante inquiridor da


civilização tem ocasião de observar esta ou
qualquer outra recessão aparente em
qualquer ponto do nosso regime atual,9 ele
pode se contentar com a pergunta: qual
efeito tem sobre a soma total de poder do
Estado? A resposta que ele dá a si mesmo
mostrará de forma conclusiva se a recessão
é real ou aparente, e isso é tudo o que ele
está preocupado em saber.

Existe também a impressão de que, se as


recessões reais não ocorrerem por si
mesmas, elas podem ser provocadas pela
intenção de votar pela vitória de um partido
político e a derrota de outro. Essa idéia recai
sobre certas hipóteses que a experiência
mostrou serem inadequadas; primeiro, que o
poder da votação é o que a teoria política
republicana estabelece, e que, portanto, o
eleitorado tem uma escolha efetiva no
assunto. É fato aberto e notório que isso não
é verdade. Nosso sistema nominalmente
republicano é de fato construído em um
modelo imperial, com nossos políticos
profissionais de pé no lugar dos guardas
pretorianos. Eles se encontram de vez em
quando, decidem o que pode ser “afastado” e
como e quem deve fazê-lo e o eleitorado vota
de acordo com suas prescrições. Nessas
condições, fora da realidade, é fácil fornecer
a aparência de qualquer concessão desejada
do poder do Estado; nossa história mostra
inúmeros casos de resolução de problemas
em políticas práticas muito mais difíceis do
que esse. Pode-se observar, neste contexto,
também a suposição infundada de que as
designações dos partidos conhecem os
princípios e que as promessas do partido
implicam desempenho. Além disso,
subjacente a esses pressupostos e a todos
os outros que a fé na “ação política”
contempla, supõe-se que os interesses do
Estado e os interesses da sociedade são,
pelo menos teoricamente, idênticos;
enquanto que, na teoria, eles se opõem
diretamente, e essa oposição se declara
invariavelmente na prática, à medida que as
circunstâncias o permitem.

No entanto, sem nos aprofundarmos nessas


questões por ora, é provável que seja
suficiente observar aqui que, na natureza das
coisas, o exercício do governo pessoal, o
controle de uma enorme e crescente
burocracia e a gestão de uma enorme massa
de poder de voto subsidiado são agradáveis
a várias classes de políticos.
Presumivelmente, eles interessam a um
republicano ou a um progressista tanto
quanto a um democrata, comunista, socialista
ou tudo o que um político, para propósitos
eleitorais, considere oportuno se chamar a si
mesmo. Isso foi demonstrado nas
campanhas locais de 1934 pela atitude
prática de políticos que representavam
partidos oposicionistas nominais. Agora, isto
é demonstrado pela aceleração desastrosa
que os líderes da oposição oficial fazem em
direção ao que chamam de “reorganização”
de seu partido. Pode-se estar desatento às
suas palavras; suas ações, no entanto,
significam simplesmente que as recentes
conquistas do poder do Estado estão aqui
para ficar, e que eles estão cientes disso.
Sendo esse o caso, eles se preparam para
dispor-se de forma mais vantajosa em uma
disputa por seu controle e gerenciamento.
Isso é tudo que a “reorganização” do partido
republicano significa, e tudo o que deve
significar; e é suficiente para mostrar que
qualquer expectativa de mudança na
essência do regime por meio de uma
mudança de administração do partido é
ilusória. Ao contrário, é claro que qualquer
competição de partido que veremos a seguir
acontecerá nos mesmos termos que até
agora. Será uma competição pelo controle,
gestão, e, naturalmente, em uma
centralização ainda mais próxima, pela
extensão do princípio burocrático e maiores
concessões ao poder de voto subsidiado.
Este curso seria estritamente histórico e,
além disso, a expectativa é que se encontre
na natureza das coisas, onde tão obviamente
está.

De fato, é por isso que alcançar o objetivo


dos coletivistas parece ser mais provável
neste país: eles visam a extinção completa
do poder social por meio da absorção pelo
Estado. Sua doutrina fundamental foi
formulada e investida com uma sanção
quase religiosa pelos filósofos idealistas do
século passado, e entre os povos que a
aceitaram — tanto em termos como de fato
— é expressa em fórmulas quase idênticas
às deles. Assim, por exemplo, quando Hitler
diz que “o Estado domina a nação porque ele
sozinho a representa”, está apenas
colocando em linguagem popular a fórmula
de Hegel, que determina que “o Estado é a
substância geral, da qual os indivíduos são
apenas acidentes”. Ou, novamente, quando
Mussolini diz: “Tudo para o Estado, nada fora
do Estado, nada contra o Estado”, ele está
simplesmente vulgarizando a doutrina de
Fichte, que afirma que “o Estado é o poder
superior, máximo e, acima de qualquer apelo,
absolutamente independente”.

Talvez seja adequado observar aqui a


identidade essencial das várias formas
existentes de coletivismo. As distinções
superficiais do fascismo, bolchevismo e
hitlerismo são a preocupação dos jornalistas
e publicistas; o estudante sério10 vê neles
apenas a raiz da idéia de uma conversão
completa do poder social em poder do
Estado. Quando Hitler e Mussolini invocam
uma espécie de misticismo degradado e
enganador para ajudar a acelerar esse
processo, o estudante imediatamente
reconhece seu velho amigo, a fórmula de
Hegel, que “o Estado encarna a idéia divina
na terra”, e ele não está enganado. O
jornalista e o viajante impressionável podem
fazer o que quiserem da “nova religião do
bolchevismo”; o próprio estudante se
contenta com a observação clara da natureza
exata do processo que esta inculcação se
destina a sancionar.

IV

Este processo — a conversão do poder


social em poder do Estado — não foi levado
tão longe aqui como alhures; como na
Rússia, Itália ou Alemanha, por exemplo. No
entanto, duas coisas devem ser observadas.
Primeiro, que percorreu um longo caminho, a
um ritmo de progresso recentemente
acelerado. O que diferenciou principalmente
seu progresso aqui do seu progresso em
outros países é o seu caráter não
significativo. O Sr. Jefferson escreveu, em
1823, que não havia perigo algum que ele
temesse tanto como “a consolidação [isto é, a
centralização] do nosso governo pela
intervenção silenciosa e, por conseguinte,
não alarmante do Supremo Tribunal”.
Essas palavras caracterizam todos os
avanços que fizemos no engrandecimento do
Estado. Todos foram silenciosos e, portanto,
não alarmantes, especialmente para um povo
notoriamente preocupado, desatento e
negligente. Mesmo o golpe de Estado de
1932 foi silencioso e desanimador. Na
Rússia, Itália e Alemanha, o golpe de Estado
foi violento e impressionante — tinha de ser
—, mas aqui não foi nenhum dos dois. Sob o
disfarce de uma mobilização nacional de
tolice fútil e de uma agitação sem objetivo
conduzida pelo Estado, ocorreu de forma tão
medíocre que a sua verdadeira natureza
deixou de ser percebida, e até agora não é
compreendida de modo geral. O método de
consolidação do regime que se seguiu, além
disso, também era silencioso e desanimador;
era apenas o “entusiasmo do mercado”
prosaico e medíocre, ao qual uma
experiência política longa e uniforme nos
acostumara. Um visitante de um país mais
pobre e parcimonioso talvez consideraria as
atividades do Sr. Farley nas campanhas
locais de 1934 impressionantes ou mesmo
espetaculares, mas não nos causaram a
mesma impressão. Pareciam tão familiares,
tão normais, que se ouviam poucos
comentários sobre elas. Além disso, o hábito
político nos levou a atribuir qualquer
comentário desfavorável que ouvimos ao
interesse tanto partidário quanto monetário —
ou ambos. Consideramos isso o julgamento
invejoso de indivíduos com interesses
pessoais; e, naturalmente, o regime fez o
possível para encorajar essa visão.

A segunda coisa a ser observada é que


certas fórmulas, certos arranjos de palavras,
são um obstáculo à percepção do ponto em
que a conversão do poder social em poder do
Estado realmente chegou. A força da frase e
do nome distorce a identificação de nossas
próprias aceitações e consentimentos.
Estamos acostumados ao ensaio de certas
ladainhas poéticas, e, desde que a sua
cadência seja mantida inteira, somos
indiferentes à sua correspondência com a
verdade e os fatos. Quando a doutrina de
Hegel do Estado, por exemplo, é reafirmada
em termos de Hitler e Musso-lini, é
claramente ofensiva para nós, e nos
felicitamos por estarmos livres do “jugo da
tirania do ditador”. Nenhum político
americano sonharia em entrar em nossa
rotina de ladainhas com qualquer coisa do
tipo. Podemos imaginar, por exemplo, o
choque do sentimento popular que resultaria
da declaração pública do Sr. Roosevelt de
que “o Estado abraça tudo, e nada tem valor
fora do Estado. O Estado cria o direito”. No
entanto, um político americano, desde que
não formule essa doutrina em termos claros,
pode avançar com ela de forma mais prática
do que Mussolini, e sem problemas ou
questionamentos. Suponhamos que o Sr.
Roosevelt defenda seu regime reafirmando
publicamente a sentença de Hegel de que
“apenas o Estado possui direitos, porque é o
mais forte”. E difícil imaginar que o nosso
público aceitaria isso facilmente. No entanto,
até que ponto, de verdade, essa doutrina é
alheia às aceitações reais do nosso público?
Certamente, não muito.

O ponto é que, no que diz respeito à relação


entre a teoria e a prática real dos assuntos
públicos, o americano é o mais não-filosófico
dos seres. A racionalização da conduta em
geral é repugnante para ele — ele prefere
torná-la emocional. Ele é indiferente à teoria
das coisas: desde que possa ensaiar suas
fórmulas e ouvir a pronúncia automática de
suas ladainhas, nenhuma incoerência prática
o perturba — de fato, ele não dá evidência de
considerá-la inconsistente.

O observador mais forte e mais hábil entre os


muitos que vieram da Europa para nos
estudar no início do século passado foi, por
algum motivo, o mais negligenciado, apesar
de valer mais do que todos os Tocquevilles,
Bryces, Trollopes e Chateaubriands, juntos,
em nossas circunstâncias atuais. Foi o
célebre economista político e adepto do
sansimonismo Michel Chevalier. O professor
Chinard, em seu admirável estudo biográfico
de John Adams, chamou a atenção à
observação de Chevalier de que o povo
americano tem “a moral de um exército em
marcha”. Quanto mais se pensa nisso, mais
claramente se vê o pouco que existe no que
os jornalistas gostam de chamar de
“psicologia americana”, que não é
exatamente responsável por isso; é
responsável exatamente pela peculiaridade
que estamos considerando.

Um exército em marcha não tem filosofia, ele


se vê como uma criatura do momento. Não
racionaliza a conduta, exceto em termos de
um fim imediato.

Como Tennyson observou, existe um


entendimento oficial muito rigoroso contra o
fato de ser assim; “a questão de não
raciocinar”. A conduta emocionante é outra
questão, e quanto mais, melhor; é encorajada
por uma elaborada parafernália de etiqueta
vistosa, bandeiras, música, uniformes,
decorações e o cultivo cuidadoso de um tipo
muito especial de camaradagem. Em tudo o
que diz respeito à “razão das coisas”, no
entanto, na capacidade e avidez, como diz
Platão, de “ver as coisas como estão” — a
mentalidade de um exército em marcha é
apenas uma adolescência atrasada;
permanece com persistência, incorrigível e
notoriamente infantil.

As gerações passadas de americanos, como


Martin Chuzzlewit deixou registrado,
elevaram este infantilismo a uma virtude
distinta, e muito se orgulhavam disso como a
marca de um povo escolhido, destinado a
viver para sempre em meio à glória de suas
próprias conquistas inigualáveis wie Gott in
Frankreich. O Sr. Jefferson Brick, o General
Choke e o honorável Elijah Pogram fizeram
um trabalho de primeira classe para doutrinar
seus compatriotas com a idéia de a filosofia
ser totalmente desnecessária e a
preocupação com a teoria das coisas ser
afeminada e inconveniente. Um francês
invejoso e presumivelmente dissoluto pode
dizer o que quiser sobre a moral de um
exército em marcha, mas o fato é que ela nos
trouxe até onde estamos e nos conseguiu o
que temos. Olhemos para um continente
subjugado, vejamos a propagação de nossa
indústria e comércio, nossas ferrovias,
jornais, empresas de finanças, escolas,
universidades — o que for. Se tudo isso foi
feito sem uma filosofia, se tivéssemos
crescido até essa incomparável grandeza
sem qualquer atenção à teoria das coisas,
isso não mostra que a filosofia e a teoria das
coisas são todas futilidades e não valem a
consideração de uma pessoa prática? A
moral de um exército em marcha é boa o
suficiente para nós, e estamos orgulhosos
disso.

A geração atual não fala com esse tom de


certeza robusta. Parece, no mínimo, menos
abertamente desdenhosa da filosofia. Dá até
mesmo sinais de que suspeita que, em
nossas circunstâncias atuais, valeria a pena
considerar a teoria das coisas, e é
especialmente em direção à teoria da
soberania e da governança que essa nova
atitude de hospitalidade parece estar se
desenvolvendo. A condição dos assuntos
públicos em todos os países, especialmente
no nosso, fez mais do que levar em
consideração a mera prática atual da política,
o caráter e a qualidade dos representantes
políticos e os méritos relativos a esse ou
àquele tipo ou modo de governo. Ela serviu
para sugerir atenção à única instituição de
que todas essas formas ou modos são
apenas as várias manifestações, e, do ponto
de vista teórico, indiferentes. Isso sugere que
a finalidade não é da consideração das
espécies, mas da classe; não é da
consideração das marcas características que
diferenciam o Estado republicano, o Estado
monocrático, o constitucional, o coletivista, o
totalitário, o hitleriano, o bolchevista, o que
quisermos — isso está na consideração do
próprio Estado.
V

Parece existir uma curiosa dificuldade em


exercer um pensamento reflexivo sobre a
natureza real de uma instituição na qual certo
indivíduo e os seus ancestrais nasceram.
Aceita-se como se aceita a atmosfera; seus
ajustes práticos são feitos por um tipo de
reflexo. Pouco se pensa sobre o ar até que
se perceba alguma mudança, favorável ou
desfavorável, e então o pensamento
dedicado a ele passa a ser especial —
pensa-se em ar mais puro, ar mais leve, ar
mais pesado, nãosobre o ar. E assim com
certas instituições humanas. Sabemos que
elas existem, que nos afetam de várias
maneiras, mas não perguntamos como
vieram a existir, quais eram suas intenções
originais ou qual função principal estão
cumprindo de fato; e, quando nos afetam tão
desfavoravelmente que nos rebelamos contra
elas, cogitamos substituir nada além de
alguma modificação ou variante da mesma
instituição. Assim, a América colonial,
oprimida pelo Estado monárquico, importa o
Estado republicano; a Alemanha renuncia ao
Estado republicano pelo Estado hitleriano; a
Rússia troca o Estado monocrático pelo
Estado coletivista; a Itália troca o Estado
constitucionalis-ta pelo Estado “totalitário”.

E interessante observar que, no ano de 1935,


a atitude negligente do indivíduo médio em
relação ao fenômeno do Estado é
precisamente a sua atitude para o fenômeno
da Igreja em, digamos, 1500. O Estado era
então uma instituição muito fraca; a Igreja,
muito forte. O indivíduo nasceu na Igreja,
como seus antepassados por gerações,
precisamente no modo formal e
documentado em que ele agora nasce no
Estado. Ele era tributado por sustentar a
Igreja, como agora é tributado por sustentar o
Estado. Ele deveria aceitar a teoria e a
doutrina oficiais da Igreja para se adequar à
sua disciplina e, de maneira geral, fazer o
que ela lhe dizia; mais uma vez,
precisamente como as sanções que o Estado
hoje lhe impõe. Se fosse relutante ou
recalcitrante, a Igreja gerava problemas para
ele, como faz agora o Estado. Apesar de tudo
isso, parece não ter ocorrido ao cidadão da
Igreja daquela época, como não ocorre ao
cidadão do presente, perguntar que tipo de
instituição reivindicou sua fidelidade. Ali
estava ele; aceitou sua própria percepção
dela, assumiu-a do jeito que era e em sua
própria avaliação. Mesmo quando se
revoltou, cinqüenta anos depois,
simplesmente trocou uma forma ou modo de
Igreja por outra, a romana pela calvinista,
luterana, o zwingliano, ou outros —
novamente, assim como o cidadão do Estado
moderno troca um modo do Estado por outro.
Ele não examinou a própria instituição, e o
cidadão do Estado hoje tampouco a examina.

Meu propósito em escrever é levantar a


questão se o enorme esgotamento do poder
social que presenciamos em todos os lugares
não sugere a importância de saber mais do
que sabemos sobre a natureza essencial da
instituição que absorve tão rapidamente esse
volume de poder.11 Um amigo afirmou há
pouco que, se as empresas de utilidade
pública não corrigissem suas maneiras, o
Estado assumiría seus negócios e as
operaria. Ele falou com um ar curiosamente
reverente de finalidade. Dessa forma, pensei,
um cidadão da Igreja, no final do século XV,
talvez tenha falado sobre alguma iminente
intervenção da Igreja; e me pergunto se havia
uma teoria do Estado mais informada e mais
próxima do que o seu protótipo tinha da
Igreja. Francamente, estou certo que não.
Seu pseudo-conceito residia somente na
aceitação, sem reflexão alguma, do Estado
em seus próprios termos e em sua própria
avaliação; e nessa aceitação não se mostrou
nem mais nem menos inteligente do que toda
a massa dos cidadãos do Estado em geral.

Parece-me que, com o ritmo atual de


esgotamento do poder social, o cidadão do
Estado deve se aproximar da natureza
essencial da instituição que está acarretando
esse esgotamento. Ele deve perguntar a si
mesmo se tem uma teoria do Estado e, em
caso afirmativo, se pode assegurar-se que a
história o apóia. Ele não deve considerar uma
questão que possa ser resolvida de maneira
improcedente, mas precisa de uma boa
investigação e de um exercício rígido do
pensamento reflexivo. Ele deveria perguntar,
em primeiro lugar, como o Estado se originou
e por que — deve ter surgido de alguma
forma, e para algum propósito. Esta parece
uma pergunta extremamente fácil de
responder, mas ele não vai pensar assim.
Então ele deve perguntar o que a história
afirma continuamente como a principal
função do Estado; e então, se acha que “o
Estado” e “o governo” são termos
estritamente sinônimos. Ele os usa como tal
— mas são? Existem marcas características
invariáveis que diferenciam a instituição do
governo da instituição do Estado? Então,
finalmente, ele deve decidir se, pelo
testemunho da história, o Estado deve ser
considerado, essencialmente, uma instituição
social ou anti-social.

Está claro agora que, se o cidadão da Igreja


de 1500 tivesse em mente questões tão
fundamentais como essas, sua civilização
poderia ter tido um curso muito mais fácil e
mais agradável; e o cidadão do Estado de
hoje pode aprender com essa experiência.

1 É preciso lembrar que o Sr. Nock escreveu


este livro pouco depois do golpe de Estado
de Roosevelt e dos democratas do New Deal
— o que ele viu, aconteceu. Estamos muito
mais próximos, ao entramos no século XXI,
de um Estado socialista ditador [nota da
edição inglesa de 1946].
2 O resultado de uma pesquisa publicada em
julho de 1935 mostrou 76,8% das respostas
favoráveis à idéia de que é dever do Estado
providenciar emprego a todos que querem
trabalhar; 20,1% era contra e 3,1% estava
indeciso.

3 Neste país, o Estado atualmente fabrica


móveis, mói farinha, produz fertilizantes,
constrói casas; vende produtos agrícolas,
produtos lácteos, têxteis, produtos enlatados
e aparelhos elétricos; operam agências de
emprego e hipotecários; financiamento de
exportações e importações; financiamento da
agricultura. Também controla a emissão de
valores mobiliários, comunicações por fio e
rádio, taxas de desconto, produção de
petróleo, produção de energia, concorrência
comercial, produção e venda de álcool e uso
de vias navegáveis e ferrovias.

4 Existe um precedente na história romana,


no caso de a história ser verdadeira em seus
mínimos detalhes. Parece que o exército
vendeu o imperador a Didius Julianus por
algo equivalente a cinco milhões de dólares.
O dinheiro foi usado para lubrificar as
engrenagens de um golpe de Estado, mas a
compra legal é desconhecida, penso, exceto
nessas duas instâncias.

5 No dia em que escrevi isso, os jornais


diziam que o presidente estava prestes a
bloquear os fundos de ajuda para Louisiana,
com a finalidade de chegar a um acordo com
o Senador Long. No entanto, não vi nenhum
comentário que demonstrasse esse
procedimento.

6 Um amigo que trabalha no teatro me disse


que, do ponto de vista da arrecadação das
bilheterias, Washington é agora a melhor
cidade para teatro, para espetáculos e para
entretenimento em geral nos Estados Unidos,
muito melhor do que Nova York.

7 O uso do fundo de ajuda — quatro bilhões


de dólares — disponibilizado ao presidente
para ser distribuído é uma característica da
próxima campanha de 1936 que interessará
ao estudante da civilização.

8 Não se deve esquecer que há um


movimento de marés nesses assuntos, e que
o movimento ondulatório é de pouca
importância, relativamente. A invalidação do
Supremo Tribunal da Lei de Recuperação
Nacional, por exemplo, em nada conta para
determinar a condição real do governo
pessoal. A verdadeira questão não é o
quanto o governo pessoal foi reduzido em
relação à situação anterior a essa decisão,
mas o que cresceu em relação a 1932 e nos
anos anteriores.

9 Por exemplo, a invalidação oficial da Lei de


Recuperação Nacional.

10 Este livro é uma espécie de esquema ou


resumo de algumas conferências para
estudantes de história e políticas americanas
— principalmente alunos de pós-graduação
— e, portanto, pressupõe um pouco de
conhecimento do tema. As poucas
referências que dei, no entanto, servirão ao
leitor para documentar e aprofundar o
assunto de forma satisfatória.

11 Uma idéia inadequada e parcial do que


esse volume representa está na noção de
que a renda obtida pelo Estado americano
por meio dos impostos equivale a cerca de
um terço da renda total do país. Isso leva em
consideração todas as formas de impostos,
diretos e indiretos, locais e federais.
CAPÍTULO II
I

Se examinarmos o desenvolvimento da
civilização, ela apresenta dois tipos diferentes
de organização política. É uma diferença de
tipo — não de grau. Não é para considerar o
tipo único como simples marcador de uma
ordem inferior da civilização e outra mais
elevada; é comum que sejam considerados
assim, mas isso é um erro. Ainda menos se
faz para classificar ambos como espécies do
mesmo gênero — para classificar ambos sob
o nome genérico de “governo” — embora
isso também, até muito recentemente,
sempre tenha sido feito, e sempre gerou
confusão e mal-entendidos.

Thomas Paine fornece um bom exemplo


desse erro e seus efeitos. No início de seu
panfleto chamado Common sense (Senso
comum), Paine faz uma distinção entre
sociedade e governo. Enquanto a sociedade
em qualquer estado é uma bênção, ele diz: “o
governo, mesmo em seu melhor estado, é
apenas um mal necessário; em seu pior
estado, um mal intolerável”. Em outro
momento, ele fala do governo como “um
modo que se tornou necessário pela
incapacidade da virtude moral para governar
o mundo”. Ele prossegue então para mostrar
como e por que o governo é criado. A sua
origem está no entendimento comum e no
comum acordo da sociedade; e “o desígnio e
a finalidade do governo”, diz, é “liberdade e
segurança”. Teleologicamente, o governo
implementa o desejo comum da sociedade,
primeiro, pela liberdade, e segundo, pela
segurança. Além disso, ele não contempla
uma intervenção positiva sobre o indivíduo,
apenas uma intervenção negativa. Na opinião
de Paine, parece que o código de governo
deveria ser o do lendário Rei Pausole, que
prescreveu apenas duas leis para os seus
súditos — a primeira: não prejudique
ninguém; e a segunda: então faça o que
quiser. Assim, tudo o que o governo deveria
fazer é simplesmente constatar se o código é
cumprido.

Até agora, Paine parece simples. Ele


continua, no entanto, a atacar a organização
política britânica em termos logicamente
inconclusivos. Não devemos nos queixar
disso, pois ele escrevia como um panfletário,
um debatedor especial com um argumento
ad captandum a fazer, e como todos sabem,
ele o fez com êxito. No entanto, continua o
ponto em que, quando fala sobre o sistema
britânico, eie se refere a um tipo de
organização política essencialmente diferente
do que acabara de descrever — diferente na
origem, na intenção, na função primária e na
ordem de interesse que reflete. Não se
originou no entendimento comum e no
acordo da sociedade; originou-se na
conquista e confisco.1
Sua intenção, longe de contemplar “liberdade
e segurança”, não contemplava nada desse
tipo. Contemplava principalmente a
exploração econômica contínua de uma
classe por outra e se preocupava com a
liberdade e segurança na medida em que era
consistente com essa intenção primária; e
era, de fato, muito pouco. Sua principal
função ou exercício não foi através das
intervenções puramente negativas de Paine
sobre o indivíduo, mas por meio de
intervenções positivas inumeráveis e mais
onerosas, todas com o objetivo de manter a
estratificação da sociedade em uma classe
proprietária e exploradora e outra classe
dependente sem propriedade. A ordem de
interesse que refletia não era social, mas
puramente anti-social; e aqueles que o
administraram, julgados pelo padrão comum
de ética ou mesmo pelo padrão comum de
direito aplicado a pessoas privadas, eram
indistinguíveis de uma classe criminosa
profissional.
Claramente, então, devemos considerar dois
tipos distintos de organização política; e, de
modo claro também, quando suas origens
são consideradas, é impossível entender que
essa é mera perversão da outra. Portanto,
quando incluímos ambos os tipos sob um
termo geral como o governo, entramos em
dificuldades lógicas; dificuldades das quais a
maioria dos que escreveram sobre o assunto
estavam vagamente conscientes, mas que,
dentro do último meio século, nenhum tentou
resolver. O Sr. Jefferson, por exemplo,
observou que as tribos caçadoras de índios,
com as quais fez um bom acordo no
passado, tinham uma admirável ordem social
muito organizada, mas eram “sem governo”.
Comentando sobre isso, ele escreveu a
Madison que “é um problema obscuro em
minha mente que [esta] condição não seja a
melhor”, mas ele suspeitava que era
“inconsistente com qualquer posição social
da população”. Schoolcraft observa que os
ojíbuas, embora vivendo em uma ordem
social profundamente organizada, não
possuíam um governo “regular”. Herbert
Spencer, referindo-se aos bechuanas,
araucanianos e koranna hottentots, diz que
não têm um governo “definitivo”; enquanto
Parkman, em sua introdução a The
Conspiracy of Pontiac, relata o mesmo
fenômeno e se mostra francamente intrigado
com suas aparentes anomalias.

A teoria do governo de Paine concorda


exatamente com a teoria estabelecida pelo
Sr. Jefferson na Declaração de
Independência. A doutrina dos direitos
naturais, explícita na Declaração, está
implícita em Common Sense;2 e a visão de
Paine sobre o “desígnio e fim do governo” é
precisamente a visão da Declaração, de que,
“para garantir esses direitos, os governos são
instituídos entre os homens”. Além disso, a
visão de Paine sobre a origem do governo é
que “obtém seus poderes justos pelo
consentimento dos governados”. Agora, se
aplicamos as fórmulas de Paine ou as
fórmulas da Declaração, é bastante claro que
os índios da Virgínia tinham governo; as
próprias observações de Jefferson mostram
isso. Sua organização política, tão simples
como era, atendeu ao seu propósito. Seu
mecanismo de código basta para garantir
liberdade e segurança ao indivíduo e para
lidar com tais transgressões nas
circunstâncias da sociedade que o indivíduo
pode encontrar — fraude, roubo, assalto,
adultério, assassinato. O mesmo é verdade
clara para os vários povos citados por
Parkman, Schoolcraft e Spencer.
Certamente, se a linguagem da Declaração
significa alguma coisa, todos esses povos
tinham governo, e todos esses relatores
fazem que pareça ser um governo bastante
competente ao seu propósito.

Portanto, quando o Sr. Jefferson diz que seus


índios estavam “sem governo”, deve-se
interpretar que eles não tinham o tipo de
governo que ele conhecia; e quando
Schoolcraft e Spencer falam do governo
“regular” e “definitivo”, suas palavras de
qualificação devem ser interpretadas da
mesma maneira. Este tipo de governo, no
entanto, sempre existiu e ainda existe,
respondendo perfeitamente às fórmulas de
Paine e às fórmulas da Declaração; embora
seja um tipo que nós, também — a maioria
de nós — raramente tivemos a chance de
observar. Talvez não seja posto como marca
de uma raça inferior, pois a simplicidade
institucional não é em si uma marca de
atraso ou inferioridade; e demonstrou-se
suficientemente que, em certos aspectos
essenciais, os povos que têm esse tipo de
governo estão, por comparação, em
condições de fazer um bom acordo para si
por conta de um caráter civilizado. O próprio
testemunho do senhor Jefferson sobre esse
ponto vale a pena ser observado, e também
o de Parkman. Esse tipo, no entanto, embora
documentado pela Declaração, é muito
diferente do tipo que sempre prevaleceu na
história e ainda prevalece no mundo hoje.
Por uma questão de clareza, os dois tipos
devem ser separados pelo nome, como o são
por natureza. São tão diferentes, em teoria,
que fazer uma distinção nítida entre eles é
provavelmente o dever mais importante que a
civilização deve à sua própria segurança.
Portanto, não é de modo algum um processo
arbitrário ou acadêmico dar ao primeiro tipo o
nome de governo e chamar o segundo tipo
simplesmente de Estado.

II

Aristóteles, confundindo a idéia do Estado


com a idéia de governo, pensava que o
Estado se originou do agrupamento natural
da família. Outros filósofos gregos, lidando
com a mesma confusão, anteciparam
Rousseau ao encontrar sua origem na
natureza social e na disposição do indivíduo;
enquanto uma escola oposta, que
considerava o indivíduo naturalmente anti-
social, como que antecipou Hobbes,
encontrando-o em uma harmonização
forçada entre as tendências anti-sociais dos
indivíduos. Outra visão, implícita na doutrina
de Adam Smith, é que o Estado se originou
na associação de certos indivíduos que
mostraram superioridade acentuada nas
virtudes econômicas da diligência, da
prudência e da economia. Os filósofos
idealistas, aplicando de forma variada o
transcendentalismo de Kant ao problema,
chegaram a conclusões ainda diferentes; e
umas outras opiniões, talvez um tanto menos
plausíveis do que qualquer uma das
anteriores, foram divulgadas.

A raiz do problema de todos esses pontos de


vista não é precisamente o fato de serem
conjeturais, mas de serem baseados em
observações incompetentes. Eles não
percebem as marcas características
invariáveis que o sujeito apresenta. Até
recentemente, por exemplo, todas as
opiniões sobre a origem da malária não
pensavam na participação invariável do
mosquito, ou as opiniões sobre a peste
bubônica não consideravam a marca
invariável do parasita de ratos. Foi somente
no último meio século que o método histórico
foi aplicado ao problema do Estado.3 Esse
método segue o fenômeno do Estado na sua
primeira aparição documentada na história,
observando suas marcas características
invariáveis e extraindo inferências conforme o
indicado. Existem tantas insinuações claras
desse método em escritores no passado —
encontra-se até mesmo em Strabo — que se
pergunta por que sua aplicação sistemática
foi adiada por tanto tempo; mas, em todos
esses casos, como com a malária e o tifo,
quando a marca característica é determinada
de uma vez, fica tão óbvio que sempre se
pergunta por que essa determinação
demorou tanto. Talvez, no caso do Estado, o
melhor que se possa dizer é que a
cooperação do Zeitgeist era necessária, e
que não poderia ter sido feita antes.

O testemunho positivo da história é que o


Estado teve sua origem na conquista e
confisco. Nenhum estado primitivo conhecido
pela história se originou de qualquer outra
maneira.4 Do lado negativo provou-se, além
disso, que nenhum Estado primitivo poderia
ter tido outra origem.5 Além disso, a única
característica invariável do Estado é a
exploração econômica de uma classe por
outra. Nesse sentido, todo Estado conhecido
pela história é um Estado-classe.
Oppenheimer define o Estado, em relação à
sua origem, como uma instituição “imposta
sobre um grupo derrotado por um grupo
conquistador, com o único objetivo de
sistematizar o domínio dos conquistados
pelos conquistadores e salvaguardar-se
contra a insurreição interna e o ataque
externo. Essa dominação não tinha outro
propósito final além da exploração econômica
do grupo conquistado pelo grupo vitorioso”.

John Jay, estadista americano, realizou o


feito respeitável de comprimir toda a doutrina
da conquista em uma única frase. “Nações
em geral”, disse ele, “entrarão em guerra
sempre que houver uma perspectiva de
conseguir algo por isso”. Qualquer
acumulação econômica considerável ou
qualquer corpo considerável de recursos
naturais é um incentivo à conquista. A técnica
primitiva era o assalto aos bens cobiçados,
apropriando-se deles por inteiro,
exterminando os possuidores ou
dispersando-os para além do alcance
conveniente. Bem no início, no entanto,
considerou-se em geral mais rentável reduzir
os possuidores à dependência e usá-los
como motores trabalhistas [escravos
econômicos]; e a técnica primitiva foi
modificada. Em circunstâncias especiais,
onde essa exploração era impraticável ou
improdutiva, revive-se agora a técnica
primitiva, como os espanhóis na América do
Sul ou nós mesmos contra os índios. Mas
essas circunstâncias são excepcionais; a
técnica modificada foi utilizada quase desde
o início e em todos os lugares a sua primeira
aparição marca a origem do Estado. Citando
as observações de Ranke sobre a técnica
dos tropeiros invasores, os hicsos, que
estabeleceram seu Estado no Egito em torno
de 2.000 a.C., Gumplowicz observa que as
palavras de Ranke resumem muito bem a
história política da humanidade.

Na verdade, a técnica modificada nunca


varia.

“Em todos os lugares, vemos um grupo


militante de homens ferozes que invadem a
fronteira de pessoas mais pacíficas,
instalando-se ali e estabelecendo o Estado, e
eles mesmos se colocam como aristocracia.
Na Mesopotâmia, a irrupção sucede irrupção,
o Estado sucede Estado, babilônios,
amoritas, assírios, árabes, medos, persas,
macedônios, partos, mongóis, seldshuks,
tártaros, turcos; no vale do Nilo, hicsos,
núbios, persas, gregos, romanos, árabes e
turcos; na Grécia, os estados dóricos são
exemplos específicos; na Itália, os romanos,
ostrogodos, lombardos, francos, alemães; na
Espanha, cartagineses, visigodos, árabes; na
Gália, romanos, francos, borgonheses,
normandos; na Grã-Bretanha, saxões,
normandos”.

Em todo lugar encontramos a organização


política que procede da mesma origem e
apresenta a mesma marca de intenção: a
exploração econômica de um grupo
derrotado por um grupo conquistador.

Há uma única exceção significativa. Sempre


que a exploração econômica, por qualquer
motivo, foi impraticável ou não lucrativa, o
Estado nunca surgiu — o governo existia,
mas o Estado, nunca. As tribos de caça
americanas, por exemplo, cuja organização
desconcertava nossos observadores, nunca
formaram um Estado, pois não há como
reduzir o caçador à dependência econômica
e fazê-lo caçar por você.6 A conquista e o
confisco eram, sem dúvida, praticáveis, mas
não se obteria nenhum ganho, pois o
confisco não daria aos agressores nada
muito além do que já tinham, e o máximo que
podería resultar disso seria a satisfação de
algum tipo de disputa. Por razões
semelhantes, os camponeses primitivos
nunca formaram um Estado. As acumulações
econômicas de seus vizinhos eram muito
leves e perecíveis para serem
interessantes,7 e, com a abundância de
terras livres, a escravização de seus vizinhos
seria impraticável, mesmo que apenas pelas
questões policiais envolvidas.8

Agora pode-se perceber a grande diferença


entre a instituição do governo, conforme
entendido por Paine e a Declaração de
Independência, e a instituição do Estado. O
governo provavelmente se originou do modo
como Paine pensava, ou Aristóteles, ou
Hobbes, ou Rousseau; enquanto que o
Estado não se originou de nenhuma dessas
maneiras, e nunca poderia ter se originado. A
natureza e a intenção do governo, tal como
alegavam Parkman, Schoolcraft e Spencer,
são sociais. Com base na idéia de direitos
naturais, o governo assegura esses direitos
ao indivíduo por uma intervenção
estritamente negativa, tornando a justiça sem
custo e com fácil acesso; para além disso ele
não vai. O Estado, por outro lado, tanto na
sua gênese quanto na sua principal intenção,
é puramente anti-social. Não se baseia na
idéia de direitos naturais, mas na idéia de
que o indivíduo não possui direitos, exceto os
que o Estado pode provisoriamente lhe
conceder. Ele tornou a justiça sempre
dispendiosa e de difícil acesso, e
continuamente se manteve acima da justiça e
da moralidade comum sempre que pudesse
se beneficiar ao fazê-lo.9 Longe de incentivar
um desenvolvimento integral do poder social,
invariavelmente, como Madison disse, ele
transformou cada contingência em um
recurso para esgotar o poder social e
aumentar o poder do Estado.10
Como Sigmund Freud observou, sequer
pode-se dizer que o Estado tenha mostrado
qualquer disposição para reprimir o crime,
mas apenas para proteger seu próprio
monopólio criminoso. Na Rússia e na
Alemanha, por exemplo, vimos recentemente
que o Estado se moveu com grande
prontidão contra a violação de seu monopólio
por indivíduos privados, ao mesmo tempo em
que exerce esse monopólio com crueldade
inconcebível. Levando o Estado a todo lugar,
invadindo sua história em qualquer ponto,
não se pode diferenciar as atividades de seus
fundadores, administradores e beneficiários
dos que pertencem a uma classe criminosa
profissional.

III

Esses são os antecedentes da instituição que


está em todo lugar de modo tão hábil
transformando o poder social
indiscriminadamente no poder do Estado.11
Seu reconhecimento percorreu um longo
caminho para resolver a maioria das
aparentes anomalias, se não todas, que a
conduta do Estado moderno exibe. É de
grande ajuda, por exemplo, considerar o fato
claro e notório de que o Estado sempre se
move lentamente e de má vontade em
relação a qualquer propósito que provém
vantagem à sociedade, mas se move
rapidamente e com alacridade em direção a
quem acumula para vantagem própria; nem
sempre se move para fins sociais por sua
própria iniciativa, mas apenas sob forte
pressão, enquanto o seu movimento em
direção a fins anti-sociais surge de si mesmo.

Os ingleses do século passado observaram


esse fato com justificável ansiedade ao notar
o rápido esgotamento do poder social pelo
Estado britânico. Um deles foi Herbert
Spencer, que publicou uma série de ensaios
posteriormente reunidos em um volume
chamado The Man versus the State. Com os
nossos assuntos públicos do jeito que são, é
impressionante que nenhum jornalista
americano tenha aprimorado a possibilidade
de reproduzir esses ensaios textualmente,
simplesmente pela substituição de ilustrações
tiradas da história americana pelas que
Spencer tira da história inglesa. Se fosse feito
corretamente, seria uma das obras mais
relevantes e úteis que se poderia produzir
nesta época.12

Esses ensaios são dedicados a examinar os


vários aspectos do crescimento
contemporâneo do poder do Estado na
Inglaterra. No ensaio chamado Over-
legislation, Spencer observa o fato tão
notoriamente comum em nossa
experiência13 que, quando o poder do
Estado é aplicado a fins sociais, sua ação é
“lenta, obtusa, extravagante, não adaptável,
corrupta e obstrutiva”. Ele dedica vários
parágrafos a cada contagem, montando uma
série completa de provas. Quando termina, a
discussão se encerra; simplesmente não há
nada a dizer. Ele mostra ainda que o Estado
sequer cumpre com eficiência o que chama
de “deveres inquestionáveis” à sociedade;
não é eficiente ao julgar e defender os
direitos elementares do indivíduo. Assim — e
conosco também é uma questão de
experiência notoriamente comum —, Spencer
não vê razão para esperar que o poder do
Estado seja aplicado de modo eficiente a fins
sociais secundários. “Se tivéssemos, em
suma, provado sua eficiência como juiz e
defensor, em vez de considerá-lo traiçoeiro,
cruel e ansioso a ser evitado, haveria algum
incentivo para esperar outros benefícios de
suas mãos”.

No entanto, observa, é essa esperança


monstruosamente extravagante que a
sociedade tolera continuamente; e tolera a
evidência diária de que é ilusório. Ele aponta
para a anomalia que notamos ser tão
regularmente apresentada pelos jornais.
Pegue um jornal, diz Spencer, e
provavelmente encontrará um editorial
importante “expondo a corrupção, a
negligência ou a má administração de algum
departamento do Estado. Lance sua atenção
à próxima coluna, e não é improvável que
você leia propostas para uma extensão da
supervisão do Estado [...].14 Assim,
enquanto todos os dias relata um fracasso,
todos os dias reaparece a crença de que o
Estado precisa de um ato parlamentar e uma
equipe de oficiais para efetuar qualquer
finalidade desejada.15 Em lugar algum se
pode ver melhor a fé perene da humanidade”.

É desnecessário dizer que as razões que


Spen-cer dá para o comportamento anti-
social do Estado são válidas, mas agora
podemos ver de que modo são
energicamente reforçadas pelas descobertas
do método histórico; um método que não
havia sido aplicado quando Spencer
escreveu o que escreveu. Nessas
descobertas é manifesto que a conduta de
que Spencer se queixa é estritamente
histórica. Quando os comerciantes urbanos
do século XVIII afastaram os proprietários de
terra pertencentes à nobreza do controle do
mecanismo do Estado, eles não alteraram o
caráter do Estado; simplesmente adaptaram
seu mecanismo aos seus próprios interesses
especiais e fortaleceram-no de maneira
incondicional.16 O Estado mercantil
permaneceu uma instituição anti-social, um
puro Estado de classe, como o Estado da
nobreza. Sua intenção e função
permaneceram inalteradas, exceto pelas
adaptações necessárias para se adequar à
nova ordem de interesses a que deveria
servir a partir de então. Portanto, em seu
flagrante desentendimento de fins sociais que
Spencer denuncia, o Estado agia de modo
estritamente típico.

Spencer não discute o que ele chama de


“crença perene da humanidade” na ação do
Estado, mas se contenta em elaborar a
observação sentenciosa de Guizot, que “uma
crença no poder soberano da maquinaria
política” é nada menos que “um engano
grosseiro”. Esta crença é principalmente um
efeito do imenso prestígio que o Estado
construiu com diligência em um século ou
mais, uma vez que a doutrina do governo de
jure divino enfraqueceu. Não precisamos
considerar os vários instrumentos que o
Estado emprega na construção de seu
prestígio. A maioria deles é bem conhecido, e
seus usos, bem compreendidos. Há um, no
entanto, que em certo sentido é peculiar ao
Estado republicano. O republicanismo
permite ao indivíduo persuadir--se de que o
Estado é a sua criação, que a ação do
Estado é a sua ação, e que, quando o Estado
se expressa, ele se expressa; e quando é
glorificado, é glorificado. O Estado
republicano incentiva essa persuasão com
toda a força, consciente de que é o
instrumento mais eficiente para aumentar o
próprio prestígio. A frase de Lincoln, “do
povo, pelo povo, para o povo” foi
provavelmente a jogada de marketing mais
eficaz já feita em nome do prestígio do
Estado republicano.

Assim, o senso do indivíduo acerca de sua


própria importância tem forte inclinação a
ofender-se com a insinuação de que o
Estado é, por natureza, anti-social. Ele olha
suas falhas e transgressões com os olhos de
um pai, dando-lhe o benefício de um código
de ética especial. Além disso, sempre existe
a esperança de que o Estado aprenda com
seus erros e faça melhor. Admitindo que a
sua técnica com os fins sociais é torpe,
imoral e viciosa — admitindo, até mesmo
como o funcionário público que Spencer cita,
que, onde quer que exista Estado, existe
perversidade — ele não vê motivo algum
para duvidar, com um aumento de
experiência e responsabilidade, que o Estado
vai melhorar.

Essa parece ser a suposição básica do


coletivis-mo: que apenas o Estado confisque
todo o poder social, e seus interesses se
tornarão idênticos aos da sociedade. Ao
admitir que o Estado é de origem anti-social,
e que portou um caráter uniformemente anti-
social ao longo de sua história, subtrai-se
completamente o poder social e seu caráter
mudará. Ele se fundirá com a sociedade e,
assim, se tornará o órgão eficiente e
desinteressado da sociedade. O Estado
histórico, em suma, desaparecerá, e apenas
o governo permanecerá. É uma idéia
atraente. A esperança de isso ser, de alguma
forma, traduzido na prática é o que, há
poucos anos, tornou “o experimento russo”
tão irresistivelmente fascinante para os
espíritos generosos que se sentiam
irremediavelmente dominados pelo Estado.
Um exame mais aprofundado das atividades
do Estado, no entanto, mostrará que essa
idéia, por mais atraente que seja, se desfaz
perante a lei de ferro da economia
fundamental, que anuncia que o homem
sempre procura satisfazer suas necessidades
e desejos com o menor esforço possível.
Vejamos por quê.
IV

Existem dois métodos ou meios, e apenas


dois, nos quais as necessidades e desejos do
homem podem ser satisfeitos. Um deles é a
produção e troca de riqueza — este é o meio
econômico.17 O outro é a apropriação não
compensada de riqueza produzida por outros
— este é o meio político. O exercício primitivo
dos meios políticos foi, como vimos, pela
conquista, confisco, expropriação e a
introdução de uma economia de escravos. O
conquistador dividiu o território conquistado
entre os beneficiários, que desde então
satisfaziam suas necessidades e desejos
explorando o trabalho dos habitantes
escravizados.18 O Estado feudal e o Estado
mercantil, onde quer que se encontrem,
simplesmente assumiram e desenvolveram
sucessivamente a herança de caráter,
intenção e aparelho de exploração que o
Estado primitivo lhes transmitiu; eles são, na
essência, apenas integrações mais elevadas
do Estado primitivo.

O Estado, então, primitivo, feudal ou


mercantil, é a organização dos meios
políticos. Agora, uma vez que o homem
sempre procura satisfazer suas necessidades
e desejos com o menor esforço possível,
empregará os meios políticos —
exclusivamente, se possível — sempre que
puder; de outra forma, em associação com os
meios econômicos. Ele, no momento
presente, recorrerá ao aparelho moderno de
exploração do Estado; o aparelho de tarifas,
concessões, monopólio de aluguel e
similares. E uma questão de observação
habitual este ser o seu primeiro instinto. Por
conseguinte, enquanto

a organização dos meios políticos está


disponível — enquanto o Estado burocrático
profundamente centralizado levantar-se
principalmente como distribuidor de
vantagem econômica, árbitro de exploração
— esse instinto se afirmará efetivamente. Um
Estado proletário iria simplesmente, como o
Estado mercantil, mudar a incidência da
exploração, e não há fundamento histórico
para a presunção de um Estado coletivista
ser, em qualquer aspecto essencial, diferente
dos seus predecessores.19 Como
começamos a ver, “o experimento russo” fez
erguer um Estado burocrático centralizado
nas ruínas de outro, deixando todo o aparato
de exploração intacto e pronto para uso. Por
isso, em vista da lei da economia
fundamental supracitada, parece ilusória a
expectativa de que o coletivismo altere de
maneira apreciável o caráter essencial do
Estado.

Assim, as descobertas do método histórico


apoiam completamente o imenso corpo de
considerações práticas trazidas por Spencer
contra as incursões do Estado sobre o poder
social. Quando Spencer conclui que “nas
organizações do Estado a corrupção é
inevitável” o método histórico mostra
abundantemente por que, na natureza das
coisas, isso deve ser esperado — vilescit
origine tali. Quando Freud comenta sobre a
chocante disparidade entre a ética do Estado
e a ética privada — e suas observações
sobre este ponto são mais profundas e mais
minuciosas — o método histórico fornece as
melhores razões pelas quais essa
disparidade deve ser buscada.20 Quando
Ortega y Gasset diz que “o estatismo é a
forma mais elevada tomada pela violência e
ação direta, quando estas são configuradas
como padrões”, o método histórico nos
permite perceber de imediato que sua
definição é precisamente aquilo que se faria
a priori.

O método histórico, além disso, estabelece o


fato importante de que, como no caso de
doenças tabéticas ou parasitárias, a depleção
do poder social pelo Estado não pode ser
verificada após chegar a certo ponto de
progresso. A história não mostra uma
instância, uma vez que esteja além deste
ponto, em que essa depleção não terminou
em colapso completo e permanente. Em
alguns casos, a desintegração é lenta e
dolorosa. A morte estabeleceu sua marca em
Roma no final do segundo século, mas ela
saiu de uma existência lamentável por algum
tempo depois dos antoninos. Atenas, por
outro lado, desabou rapidamente. Algumas
autoridades pensam que a Europa está
perigosamente perto desse ponto, se não
estiver além dele; mas a conjectura
contemporânea provavelmente não tem
muito valor. A América talvez tenha
alcançado esse ponto, ou não; novamente, é
impossível saber — há, de qualquer maneira,
argumentos plausíveis. De duas coisas, no
entanto, podemos ter certeza: a primeira é
que o ritmo da abordagem da América nesse
ponto está muito acelerado; e o segundo é
que não há evidências de qualquer
disposição para retardá-lo, ou qualquer
apreensão inteligente do perigo que essa
aceleração indica.

1 Paine estava, naturalmente, bem ciente


disso. Ele diz: “Um bastardo francês, que
chega com um grupo de mercenários, e se
proclama rei da Inglaterra sem o
consentimento dos nativos, é em termos
claros um autêntico patife desprezível”.
Contudo, ele não insiste nesse ponto, nem
em vista desse propósito, embora se
esperasse que o fizesse.

2 Em Rights of Man, Paine é tão explícito


nessa doutrina quanto a Declaração; e em
múltiplos pontos ao longo de seus panfletos
ele afirma que todos os direitos civis se
baseiam em direitos naturais e procedem
deles.
3 Por Gumplowicz, professor em Graz; e,
depois dele, por Oppenheimer, professor de
política em Frankfurt. Eu os segui ao longo
dessa seção. As descobertas desses
Galileus são tão prejudiciais para o prestígio
construído pelo Estado para si em todos os
lugares que a autoridade profissional em
geral tem sido muito cautelosa em se
aproximar deles, preferindo naturalmente
evitá-los; mas, a longo prazo, isso é uma
questão sem muita importância. Exceções
honoráveis e distintas são Vierkandt, Wilhelm
Wundt, e o venerado patriarca dos estudos
econômicos alemães, Adolf Wagner.

4 O novo Estado de Manchoukuonos dá um


excelente exemplo de prática primitiva
realizada pela técnica moderna, e outra surge
como resultado das operações do Estado
italiano na Etiópia.

5 A matemática dessa demonstração é


extremamente interessante. Um sumário se
encontra no tratado de Oppenheimer, Der
Staat, cap. I, e é abordado na íntegra em sua
Tbeorie der Reinen und Politischen
Oekonomie.

6 Exceto, é claro, se tivesse prioridade sobre


os terrenos em posse do Estado, mas, por
razões de ocupação, não valeria a pena se
aventurar nisso com uma tribo de caçadores.
Bicknell, o historiador de Rhode Island,
sugere que os problemas sobre os tratados
indígenas surgiram do fato de que os índios
não entendiam o sistema estadual de posse
da terra, já que nunca tiveram nada parecido;
eles consideravam que os brancos podiam
compartilhar o uso da terra. É interessante
notar que as tribos pescadoras a noroeste
formaram um Estado. Sua ocupação tornou a
exploração econômica praticável e rentável, e
eles recorreram à conquista e confisco para
introduzi-la.

7 E estranho que se preste tão pouca


atenção à imunidade singular de alguns
povos pequenos e pobres em meio a grandes
colisões de interesse do Estado. Durante a
última guerra, por exemplo, a Suíça, que não
possuía nada que valha a pena roubar, nunca
foi assaltada ou perturbada.

8 O capítulo de Marx sobre a colonização é


interessante a esse respeito, especialmente
por sua observação de que a exploração
econômica é impraticável até que a
expropriação de terra tenha ocorrido. Neste
ponto, ele está totalmente de acordo com a
linha de economistas fundamentais, de
Turgot, Franklin e John Taylor até Theodor
Hertzka e Henry George. No entanto, parece
que Marx não se deu conta que sua
observação o deixou com um problema nas
mãos, pois não faz mais que registrar o fato.

9 John Bright afirmou saber que o


Parlamento britânico fazia algumas coisas
boas, mas nunca soube que fez uma coisa
boa apenas por ser uma coisa boa.

10 Reflections, 1.
11 Neste país, a condição de várias
empresas de grande valor social parece, no
momento, ser um índice bastante claro desse
processo. As intervenções positivas do
Estado reduziram tanto o poder social que,
segundo consta, essas aplicações
particulares estão a ponto de não ser mais
praticáveis. Na Itália, o Estado absorve agora
50% da renda nacional total. Parece que a
Itália está representando sua história antiga
em algo maior que puro sentimentalismo,
pois, no final do século II, o poder social foi
transformado em poder do Estado, então
ninguém podia fazer negócio algum. Não
havia poder social suficiente para pagar as
dívidas do Estado.

12 Parece difícil de acreditar que neste


século não tenha sido produzida uma
apresentação intelectualmente respeitável na
América do caso completo contra os
confiscos progressivos do poder social do
Estado; uma apresentação, isto é, que
tivesse a marca de uma história consistente e
uma filosofia sólida por trás. A simples
promoção interesseira de um “individualismo
feroz” e um discurso afetado sobre a
constituição são tão enganosos, tão sem
escrúpulos, que se tornaram desprezíveis.
Em conseqüência, o coletivismo obteve o
melhor do ponto de vista intelectual, e os
resultados agora são evidentes. O
coletivismo até mesmo teve êxito em impor o
seu glossário de definições arbitrárias sobre
nós; todos consideramos nosso sistema
econômico, por exemplo, como “capitalista”,
embora nunca tenha existido, nem possa ser
concebido, um sistema que não seja
capitalista. Em contrapartida, quando o
coletivismo britânico se comprometeu a lidar,
digamos, com Lecky, Bagehot, professor
Huxley e Herbert Spencer, conseguiu uma
conversão total por seu dinheiro. Qualquer
passo que a Grã-Bretanha tenha tomado em
direção ao coletivismo, ou ainda pode tomar,
pelo menos teve toda a chance no mundo de
saber exatamente aonde se dirigia, coisa que
não tivemos.
13 Ontem passei por um curto trecho da
estrada nova construída pelo poder estatal,
por meio de uns grotescos tentáculos
alfabéticos da nossa burocracia. Custou US$
87.348,56. O poder social, representado pela
figura do empreiteiro em licitação competitiva,
o teria construído por US$ 38.668,20, uma
diferença, aproximadamente, de cem por
cento.

14 Todos os comentários do jornal que li


sobre os recentes desastres

15 Pode-se pensar que nossas experiências


recentes com a proibição teriam considerado
essa crença pretensiosa, mas aparentemente
esse não foi o caso.

16 Esta questão é debatida pelo filósofo


espanhol Ortega y Gasset no cap. XIII o
homem-massa de fato crê que ele seja o
Estado, e tenderá cada vez mais a fazê-lo
funcionar por qualquer pretexto, e a esmagar
com ele toda minoria criadora que o perturbe;
que o perturbe em qualquer instância; na
política, nas idéias, na indústria”. Ortega y
Gasset, A rebelião das massas, cap. XIII, p.
199. VIDE Editorial, Campinas, 2016.

17 Oppenheimer, Der Staat, cap. I. Os


serviços também são, naturalmente, um
assunto de troca econômica.

18 Na América, onde os caçadores nativos


não eram exploráveis, os beneficiários — a
Companhia da Virgínia, a Companhia de
Massachusetts, a Companhia Holandesa das
índias Ocidentais, os Calverts, etc. —
seguiram o método tradicional de importação
de material humano explorável, escravizado,
da Inglaterra e da Europa, e também
estabeleceu a economia de propriedade de
escravos por importações da África. A melhor
exposição desta fase da nossa história se
encontra em Rise of American Civilization, de
Beard, v. I, pp. 103-109. Em um período
posterior, enormes massas de material
explorável importaram-se pela
imigração;Valentine’s Manual para o ano de
1859 diz que no período de 1847-1858,
2.486.463 imigrantes passaram pelo porto de
Nova York. Esta competição debilitou a
economia de escravidão nos setores
industriais do país e a substituiu por uma
economia salarial. Vale ressaltar que o
sentimento público nessas regiões não se
opôs à economia escravocrata até que não
pôde mais mantê-la de forma rentável.

19 Supondo, por exemplo, que o Sr. Norman


Thomas e um sólido Congresso coletivista,
com um sólido Tribunal Supremo coletivista,
sejam agora herdeiros de um poderoso
aparelho de exploração; não se precisa de
grande imaginação para prever o resultado.

20 Em abril de 1933, o Estado americano


emitiu meio bilhão de dólares em títulos de
pequenos valores para atrair investimentos
de pessoas pobres. Prometeu pagar-lhes,
tanto o montante como os juros, em ouro do
valor existente. Em três meses, o Estado não
cumpriu a promessa. Se um indivíduo tivesse
feito isso, como diz Freud, seria uma desonra
para sempre e o caracterizaria como um
vilão. Feito por uma associação de
indivíduos, seriam classificados como
criminosos profissionais.
CAPÍTULO III
I

Ao considerar o desenvolvimento do Estado


na América, é importante ter em mente que a
experiência americana foi maior durante o
período colonial do que durante o período de
independência; o período de 1607-1776 foi
maior que o período de 1776-1935. Além
disso, os colonos chegaram aqui com
maturidade, e já tinham uma experiência
considerável de Estado na Inglaterra e na
Europa antes disso. Para fins de
comparação, isso prolongaria o período
anterior por alguns anos — pelo menos
quinze. E provavelmente seguro dizer que os
colonos americanos tinham uma experiência
do Estado vinte e cinco anos mais longa que
os cidadãos americanos tiveram.
Sua experiência não era só mais longa, mas
também mais variada. O Estado britânico, os
Estados franceses, holandeses, suecos e
espanhóis foram todos estabelecidos aqui.
Os dissidentes ingleses separatistas que
desembarcaram em Plymouth viveram sob o
Estado holandês, bem como sob o Estado
britânico. Quando James I fez da Inglaterra
um lugar muito desconfortável para viver,
eles foram para a Holanda; e muitas das
instituições que posteriormente criaram na
Nova Inglaterra, e que depois foram
incorporadas ao corpo geral do que
chamamos de “instituições americanas”,
eram na verdade holandesas, embora quase
sempre as credenciemos à Inglaterra. Eram
na sua maioria romano-continentais em
origem, mas trazidas aqui da Holanda, e não
da Inglaterra.1 Não existiam tais instituições
na Inglaterra naquela época, e, portanto, os
colonizadores de Plymouth não poderíam tê--
las encontrado ali; poderíam ser vistas
apenas na Holanda, onde de fato existiam.
Nosso período colonial coincidiu com o
período de revolução e reajuste na Inglaterra,
referido no capítulo anterior, quando o Estado
mercantil britânico substituiu o Estado feudal,
consolidando sua própria posição e mudando
a incidência da exploração econômica. Essas
medidas revolucionárias deram origem a uma
ampla revisão da teoria geral sobre a qual o
Estado feudal atuava.

Os primeiros Stuart governavam por meio da


teoria da monarquia pelo direito divino. Os
beneficiários econômicos do Estado deviam
prestar contas apenas ao monarca, que
teoricamente devia prestar contas apenas a
Deus. Ele não tinha responsabilidades para a
sociedade em geral, exceto as que ele
escolhia, e isso apenas enquanto quisesse.
Em 1607, o ano da chegada da colônia da
Virgínia em Jamestown, John Cowell,
professor régio de direito civil na
Universidade de Cambridge, estabeleceu a
doutrina de que o monarca “está acima da lei
pelo seu poder absoluto, e, embora para o
bem e o progresso no momento da
promulgação de leis, admita os três
estamentos ao conselho, não o faz por
obrigação, mas por bondade ou pela
promessa feita no momento de sua
coroação”.

Esta doutrina, elaborada minuciosamente na


extraordinária obra Patriarcha, de Sir Robert
Filmer, estava bem definida, desde que a
linha da estratifica-ção da sociedade fosse
clara, direta e bem-traçada. Os beneficiários
econômicos do Estado feudal eram
praticamente uma corporação privada, um
corpo compacto constituído por uma
hierarquia da Igreja e um grupo de
proprietários herdeiros de grandes
propriedades. Em relação aos interesses,
este corpo era extremamente homogêneo, e
seus interesses, poucos em número, eram de
caráter simples e facilmente descritíveis.
Com o monarca, a hierarquia, uma nobreza
fechada acima da linha de estratifica-ção e
uma população indiferenciada abaixo dela,
essa teoria da soberania era aceitável;
atendia aos propósitos do Estado feudal
como qualquer outra.

Mas o resultado prático desta teoria não se


encaixava aos propósitos da crescente
classe de comerciantes e financiadores, e
nem podia. Eles desejavam introduzir um
novo sistema econômico. Sob o feudalismo,
a produção, em termos gerais, caiu nas mãos
do campesinato. O Estado nem sempre
estava fora do comércio, mas não adotou a
idéia de que o principal motivo da sua
existência era, como se diz, “estimular os
negócios”. Os comerciantes e financiadores,
no entanto, tinham precisamente essa idéia
em mente. Eles viram as possibilidades
atrativas de produção com fins lucrativos,
desviando gradualmente o foco da
exploração para o proletariado industrial. Eles
também viram que, para pôr em prática todas
essas possibilidades, o mecanismo do
Estado deveria trabalhar de forma sutil e
eficaz do lado dos “negócios”, como
trabalhava do lado da monarquia, da Igreja e
dos proprietários de grandes terras. Foi isso
que os levou a tomar o controle desse
mecanismo, e, assim, alterá-lo e adaptá-lo
para dar-lhes o mesmo acesso livre aos
meios políticos que os antigos beneficiários
desfrutavam. Isso se deu por uma trajetória
marcada pela Guerra Civil, o destronamento
e a execução de Carlos I, o protetorado
puritano e a revolução de 1688.

Esta é a verdadeira essência do que se


conhece como o movimento puritano na
Inglaterra. Tinha uma motivação quase
religiosa — falando estritamente, tinha uma
motivação eclesiológica —, mas a principal
finalidade prática à qual se inclinava era uma
repartição do acesso aos meios políticos. É
um fato significativo, embora passe
despercebido, que o único princípio com que
o puritanismo pretendia evangelizar tanto o
mundo inglês cristão como o não-cristão é
seu princípio do trabalho, sua doutrina que o
trabalho é, por desejo expresso e mandato
divino, um dever; e se não o primeiro, o mais
importante dos deveres seculares do homem.
Essa elevação do trabalho em uma virtude
cristã per se, esse revestimento do trabalho
com uma sanção religiosa especial, foi uma
invenção do puritanismo; Era algo que nunca
se ouvira falar na Inglaterra antes do
surgimento do Estado puritano. A única
doutrina anterior a essa apresentava o
trabalho como meio para um fim puramente
secular; como dizem os teólogos de Cranmer,
“para que eu possa aprender e trabalhar para
conseguir meu sustento”. Não há indícios de
que Deus considera ruim se alguém preferir
trabalhar pouco e levar uma vida pobre, com
o intuito de usar o seu tempo de outra forma.
Talvez o melhor testemunho do caráter
essencial do movimento puritano na
Inglaterra e na América seja a profundidade
com que se tratou da doutrina do trabalho
nas duas literaturas, desde as cartas de
Cromwell até o panegírico de Carlyle e os
versos de Longfellow.
Mas o estado mercantil dos puritanos era
como qualquer outro; seguia o modelo
padrão. Originou-se na conquista e confisco,
tal como o Estado feudal a que substituiu; a
única diferença é que sua conquista foi por
uma guerra civil e não uma guerra
estrangeira. Seu objetivo era a exploração
econômica de uma classe por outra; com o
objetivo de a nobreza poder explorar os
servos feudais, propôs-se apenas substituir a
exploração de um proletariado por
empreendedores. Como seu antecessor, o
Estado mercantil era puramente uma
organização dos meios políticos, uma
máquina para a distribuição da vantagem
econômica, mas com seu mecanismo
adaptado às exigências de um tipo mais
numeroso e distinto de beneficiários; uma
classe social que, além disso, não se veria
limitada em números por questões de
herança ou por capricho do rei.

O processo de estabelecimento do Estado


mercantil, no entanto, necessariamente
provocou mudanças à teoria geral da
soberania. A simples doutrina de Cowell e
Filmer não servia mais. No entanto, qualquer
nova teoria tinha de conseguir aprovação
divina, pois o hábito das mentes dos homens
não muda de repente, e a aliança do
puritanismo entre interesses religiosos e
seculares era bastante firme. Não se pode
dizer que os comerciantes empreendedores
usaram o fanatismo religioso para resgatá-los
de suas dificuldades — os religiosos tinham
suas próprias dificuldades para cuidar.
Tinham muitos disparates raivosos para
responder, muita hipocrisia amarga, muito
fanatismo vicioso. Quando pensamos no
puritanismo britânico do século XVII,
pensamos em Hugh Peters, de Praise-God
Barebones, dos iconoclastas de Cromwell
“esmagando os anjos poderosos no vidro”.
Mas, por trás de toda essa perturbação,
havia nos religiosos um corpo de sã
consciência, indignado profunda e
justamente; e sem dúvida, embora misturada
com uma intolerável quantidade de ganância
inescrupulosa, havia por parte dos
empreendedores mercantis a certeza de que
o que era bom para os negócios era bom,
também, para a sociedade. Tomando a
consciência de Hampden como modelo, dir-
se-ia que funcionava sob certas limitações
impostas pela natureza sobre o típico
cavaleiro robusto de Buckinghamshire; a
consciência mercantil também estava mal-
informada, e também se seguiu com uma
dura e persistente obstinação provinciana.
Ainda assim, a aliança dos dois grupos de
consciência não existia sem certa
respeitabilidade. Sem dúvida, por exemplo,
Hampden definia o episcopado controlado
pelo Estado até certo ponto como anti-bíblico
em teoria, e uma ferramenta do anticristo, na
prática. Sem dúvida, também, a consciência
mercantil, com a visão perturbadora de
William Laud em vista, podería ter
questionado o episcopado controlado pelo
Estado em outros aspectos além dos que
realmente interessam.
A lógica política do Estado mercantil teve de
responder à pressão de um individualismo
crescente. O espírito do individualismo surgiu
na segunda metade do século XVI.
Provavelmente tais origens tão obscuras
sejam conseqüência do ressurgimento
continental que colocava a aprendizagem no
centro ou, talvez, especificamente a
conseqüência da reforma protestante na
Alemanha. No entanto, demorou para
conquistar força suficiente para ter peso
político. O Estado feudal não poderia ter em
conta esse espírito: seu regime austero de
status só funcionava quando não havia
interesses econômicos distintos a entrar em
consenso, e onde a soma do poder social
permanecia praticamente estável. Sob o
estado feudal britânico, os interesses dos
proprietários de grandes terras eram
semelhantes, assim como os interesses dos
bispos ou clérigos. Os interesses da
monarquia e da corte não eram muito
diversificados, e a soma do poder social
variava apenas um pouco, de tempos em
tempos. Por isso, era fácil manter uma
solidariedade econômica entre as classes
distintas. Subir de classe social era
praticamente impossível, tanto que foram
necessárias poucas intervenções positivas do
Estado para manter as pessoas, como
dizemos, em seu lugar; ou, como Cranmer
previu, para que cumpram com seu dever no
lugar onde Deus os colocou. Assim, o Estado
podia cumprir seu propósito principal e ainda
se manter relativamente fraco. Normalmente,
isso poderia permitir uma exploração
econômica profunda com pouca legislação ou
pessoal.2

O Estado mercantil, por outro lado, com o


regime de contrato conseguinte, teve de
enfrentar o problema causado por um rápido
desenvolvimento do poder social e uma
multiplicidade de interesses econômicos.
Ambos tendiam a fomentar e estimular o
espírito do individualismo. A gestão do poder
social fez com que o empreendedor mercantil
se sentisse tão importante como qualquer
pessoa e valorizasse a ordem geral de
interesse que ele representava e — em
particular, sua própria parcela desse
interesse — como o mais respeitável, algo
que até então não tinha sido. Em suma,
como indivíduo, ele tinha uma grande estima
por si mesmo, que poderia justificar sem
hesitação. O desprezo aristocrático de seus
objetivos e respectivo estigma de
inferioridade, que, por tanto tempo, fixou-se à
“base mecânica”, contribui positivamente
para aumentar esse sentimento e exacerbar
seu sentido de assertividade, em seus
melhores e piores momentos, e a exagerar
as virtudes e defeitos característicos de sua
classe, agrupando-os em uma nova categoria
de virtudes sociais — igualando sua dureza,
crueldade, ignorância e vulgaridade com sua
integridade comercial, sua astúcia, diligência
e parcimônia. Assim, o tipo de comerciante-
empreendedor-financiador totalmente
desenvolvido executaria todas as graduações
psicológicas entre os irmãos Cheeryble em
um extremo da balança, e o Sr. Gradgrind,
Sir Gorgius Midas e o Sr. Bottles, no outro.

Esse individualismo promoveu a formulação


de certas doutrinas que, de uma forma ou de
outra, encontraram seu caminho na filosofia
política oficial do Estado mercantil. Entre as
principais, destacam-se as duas que a
Declaração de Independência considera
fundamentais: a doutrina dos direitos naturais
e a doutrina da soberania popular. Em uma
geração que trocou a autoridade de um papa
pela autoridade de um livro — ou ao menos a
autoridade para interpretar um livro de forma
privada e sem restrições — não
apresentaram grandes dificuldades em
encontrar uma ampla justificação bíblica para
ambas as doutrinas. A interpretação da
Bíblia, como a interpretação judicial de uma
constituição, é meramente um processo pelo
qual, como um contemporâneo do Bispo
Butler disse, qualquer coisa pode significar
qualquer coisa; e, na ausência de uma
autoridade coerciva, papal, conciliar ou
judicial, qualquer interpretação é aceita se
chega a um acordo. Assim, o episódio do
Éden, a parábola dos talentos, a ordem
apostólica contra a “preguiça no trabalho”
constituíram a garantia necessária para
fundamentar a doutrina puritana do trabalho,
fazendo que as Escrituras e o interesse
econômico se colocassem em plena sintonia,
unindo o religioso e o mercador-
empreendedor por meio de um objetivo
comum. Assim, mais uma vez, a visão do
homem feito à imagem de Deus, feito apenas
um pouco inferior aos anjos, o sujeito de uma
transação tão augusta como a expiação,
corroborou a doutrina política de seu talento
com certos direitos inalienáveis por seu
Criador, pela Igreja ou pelo Estado. Enquanto
o mercador-empreendedor pode afirmar com
o Sr. Jefferson que a verdade dessa doutrina
política é evidente, seu apoio bíblico ainda
era de grande valor, pois implicava a
dignidade da natureza humana, que
reforçava seu individualismo mais ou menos
reservado e constrangido; e a doutrina que
tanto o dignificou poderia facilmente ser
concebida como dignificadora de seus
objetivos. De fato, o endosso da doutrina do
trabalho e a doutrina dos direitos naturais da
Bíblia era realmente seu impulso para
reabilitar o “comércio” contra o desânimo que
o regime de status impôs e para revesti-lo
com o mais resplandecente brilho da
respeitabilidade.

Do mesmo modo, a doutrina da soberania


popular poderia se apoiar em um campo
bíblico impenetrável. A sociedade civil era
uma associação de crentes que perseguiam
objetivos seculares comuns, e seu direito de
autogoverno em relação a esses propósitos
foi dado por Deus. Se, no lado religioso,
todos os crentes eram sacerdotes, do lado
secular todos seriam soberanos. A noção de
um monarca interveniente jure divino era tão
repugnante para a Escritura como a de um
papa interveniente jure divino — testemunho
da comunidade israelita em que a monarquia
foi castigada explicitamente como uma
punição pelo pecado. A legislação civil
deveria interpretar e particularizar as leis de
Deus segundo eram reveladas na Bíblia e
seus administradores eram responsáveis
perante a congregação em suas capacidades
religiosas e seculares. Onde a lei revelada
era silenciosa, a legislação deveria ser
guiada pelo seu espírito geral, conforme o
mais conveniente. Esses princípios,
obviamente, deixaram um amplo espectro de
escolha; mas, hipoteticamente, o alcance da
liberdade civil e religiosa tinham um limite
comum.

A aprovação religiosa da soberania popular


era agradável ao empreendedor mercantil:
combinou com o seu individualismo,
elevando consideravelmente o seu sentido de
dignidade pessoal. Ele agora podia
considerar-se por direito de nascimento não
apenas um cidadão livre de uma comunidade
celestial, mas também um eleitor livre em
uma comunidade terrena — o mais próximo
possível do modelo celestial. O alcance da
liberdade que recebia em ambos os aspectos
era satisfatório, pois podia justificar seus
projetos dali em diante com as Escrituras nas
mãos. No que diz respeito às preocupações
deste mundo terreno, sua doutrina do
trabalho era bíblica, sua doutrina de mestre e
servo era bíblica — até mesmo o serviço de
escravidão, até mesmo o serviço de
vassalagem era bíblico; sua doutrina de uma
economia salarial, de empréstimos de
dinheiro — contra a parábola dos talentos —
ambas eram bíblicas. O que especialmente
recomendou a doutrina da soberania popular
em seu aspecto secular, no entanto, foi a
imensa força para expulsar o regime de
status para dar lugar ao regime de contrato.
Em poucas palavras: substituir o Estado
feudal e introduzir o Estado mercantil.

Porém, apesar de essas doutrinas serem


interessantes, sua aplicação real era uma
grande dificuldade. Do ponto de vista
religioso, a doutrina dos direitos naturais teve
de levar em conta o heterodoxo.
Teoricamente, era fácil descartá-los. Os
separatistas, por exemplo, como os que
usavam o Mayflower, perderam seus direitos
naturais na queda de Adão e nunca fizeram
uso dos meios designados para recuperá-los.
Tudo estava muito bem, mas a extensão
lógica deste princípio na prática era uma
questão bastante conturbada. Havia muitos
dissidentes com amplos conhecimentos dos
direitos naturais, o que causou problemas;
assim, quando se disse tudo o que se tinha
de dizer, a doutrina ficou consideravelmente
comprometida. Em relação à soberania
popular, então, estavam os presbiterianos. O
calvinismo era monocrático ao máximo; de
fato, o presbiterianismo coexistia com o
episcopado na Igreja da Inglaterra no século
XVI, e só foi abandonado muito
gradualmente.3 Eles eram um grupo
numeroso, e, segundo as Escrituras e a
história, tinham muito a dizer de suas
circunstâncias. Assim, a tarefa prática de
organizar uma comunidade espiritual colidiu
tanto com a lógica da soberania popular
como com a lógica dos direitos naturais.

A tarefa da organização secular foi ainda


mais problemática. Pode-se conceber
facilmente uma sociedade organizada em
conformidade com esses dois princípios —
uma organização como Paine e a Declaração
contemplada, por exemplo, a partir de um
acordo social que se limitava a manter a
liberdade e segurança do indivíduo —, mas a
tarefa prática de realizar essa organização é
outra questão. Por motivos gerais, sem
dúvida, os puritanos considerariam isso
impraticável; se, de fato, havia uma época
propícia para isso, não era a deles. A maior
dificuldade, no entanto, era que o
empreendedor mercantil não queria essa
forma de organização social; de fato,
tampouco se pode assegurar que os próprios
religiosos puritanos o desejassem. A raiz do
problema era, em suma, que não havia
maneira viável de evitar um embate
destruidor entre a lógica dos direitos naturais,
a soberania popular e a lei econômica de que
o homem sempre procura satisfazer suas
necessidades e desejos com o mínimo
esforço.

Essa lei caracterizava o empreendedor


mercantil e o resto da humanidade. Não
defendia uma organização que se dedicava
única e exclusivamente a manter liberdade e
segurança, mas uma que deveria redistribuir
o acesso aos meios políticos e se preocupar
com liberdade e segurança apenas para
manter esse acesso aberto. Ou seja, era
completamente contra a idéia de governo e
bastante a favor da idéia do Estado, como
hierarquia e nobreza. Não era a favor de
nenhuma transformação essencial no caráter
do Estado, apenas de uma repartição das
vantagens econômicas que o Estado confere.

Assim, a política mercantil equivale a uma


tentativa mais ou menos dissimulada de
reconciliar temas irreconciliáveis. As idéias
dos direitos naturais e da soberania popular
eram, como vimos, bastante aceitáveis para
todas as forças aliadas contra a idéia feudal;
mas, embora essas idéias possam ser
facilmente conciliáveis com um sistema de
governo simples, esse sistema não
respondería ao propósito. Somente o sistema
estatal faria isso. A questão era, portanto,
como manter essas idéias na vanguarda da
teoria política e, ao mesmo tempo, impedir
que sua aplicação prática debilitasse a
organização dos meios políticos. Era um
problema difícil. O melhor que poderia ser
feito com ela era efetuar certas alterações
estruturais no Estado, o que lhe daria a
sensação de que estavam sendo postas em
prática, mesmo que não fosse verdade. A
mais importante dessas mudanças
estruturais foi a introdução do chamado
sistema representativo ou parlamentar, que o
puritanismo trouxe ao mundo moderno e que
recebeu grandes elogios como um avanço à
democracia. Esse louvor, no entanto, é
exagerado. A mudança foi apenas de
formato, e sua influência na democracia foi
praticamente nula.4

II

A migração de ingleses para a América


apenas transferiu esse problema para outro
lugar. O debate sobre teoria política
prosseguiu vigorosamente, mas a filosofia
dos direitos naturais e da soberania popular
surgiram sobre a prática nos mesmos lugares
que na Inglaterra. Aqui, novamente, um
grande acordo foi feito do espírito
democrático e no temperamento dos
imigrantes, especialmente no caso dos
separatistas que chegaram em Plymouth,
mas os fatos não o confirmaram, exceto em
relação ao princípio congregacionista
descentralizador da ordem eclesial. Esse
princípio de alojar a autoridade final na
unidade menor em vez da maior — na
congregação local, em vez de um sínodo ou
conselho geral — era democrático, e sua
aplicação minuciosa em um esquema
eclesiástico representaria algum avanço real
em direção à democracia e daria
reconhecimento à filosofia geral dos direitos
naturais e da soberania popular. Os
colonizadores de Plymouth conseguiram algo
aplicando esse princípio em questões
eclesiásticas, e por isso merecem crédito.5

No entanto, aplicá-lo em matéria de ordem


civil era outra história. O mais provável é que
os colonos de Plymouth possivelmente
contemplavam algo do tipo e que por um
tempo praticaram uma espécie de
comunismo primitivo. O acordo a que
chegaram a bordo se pode considerar
evidência de sua disposição democrática,
embora não fosse em nenhum sentido um
“marco de governo”, como o de Penn, ou
qualquer tipo de documento constitucional.
Os que se referem a isso como nossa
primeira constituição escrita se antecipam
muito, pois era apenas um acordo para fazer
uma constituição ou “marco de governo”
quando os colonos chegassem à terra e
analisassem a situação. Aqui fica difícil ver
como esses objetivos poderíam ter ido mais
longe — na verdade, que a constituição
proposta estava além da sua natureza
provisória — quando se considera que esses
migrantes não navegavam por vontade
própria. Eles não navegavam sozinhos, nem
eram guiados a um território imprevisto onde
pudessem estabelecer uma soberania
provisória e uma ordem civil adequada a
essas circunstâncias. Eles se dirigiam à
Virgínia, a fim de se estabelecer na jurisdição
de uma companhia de empreendedores
mercantis ingleses, então em pouco
crescimento, e logo seriam substituídos pela
autoridade real e seu território convertido em
uma província real. Foi graças aos erros e
acidentes de navegação que infelizmente,
para os propósitos da colônia, os colonos
chegaram à costa firme e rochosa de
Plymouth.
Muito provavelmente, de muitas maneiras,
esses colonos não eram nem melhores nem
piores do que os demais colonos que
encontraram o caminho à América. Foram
criados pelo que avançava na Inglaterra
como “classes inferiores”, de gente sóbria,
trabalhadora e capaz, e sua residência sob
as instituições continentais na Holanda lhes
deu a base das idéias político-religiosas e
hábitos de pensamento que os separou
consideravelmente do resto de seus
compatriotas. No entanto, não há mais do
que um interesse anedótico em determinar
até onde realmente acreditavam nessas
idéias. Talvez tenham contemplado um
sistema de total democracia religiosa e civil,
talvez não. Eles talvez considerem suas
práticas comunistas de acordo com suas
idéias de uma ordem social sólida e justa, ou
talvez não. O ponto é que, embora
aparentemente eles fossem livres o suficiente
para fundar uma instituição religiosa tão
democrática, não eram livres para fundar
uma democracia civil ou qualquer coisa
remotamente parecida com uma, pois
estavam presos à vontade de uma
companhia inglesa de comércio. Até sua
liberdade religiosa era permissiva — a
companhia de Londres não se importava com
isso. As mesmas considerações governavam
suas práticas comunistas;
independentemente dessas práticas se
adequarem às suas idéias, foram obrigadas a
adotá-las. Seu acordo com os
empreendedores mercantis londrinos os
obrigava, em troca de transporte e roupa, a
cumprir sete anos de serviço, durante os
quais deveríam trabalhar em um sistema de
cultivo de terra comum, armazenar sua
produção em um armazém comunitário e tirar
seu sustento dessas reservas comuns.
Assim, se eram ou não comunistas em
princípio, sua prática real do comunismo lhes
era imposta.

O fato fundamental a ser observado em


qualquer análise do desenvolvimento inicial
do Estado americano é aquele cuja
importância foi observada pela primeira vez,
creio, pelo Sr. Beard: que a comitiva de
comércio — a corporação comercial para a
colonização — era, na verdade, um Estado
autônomo. “Como o Estado”, diz o Sr. Beard,
“ele tinha uma constituição, uma ata
constitutiva emitida pela Coroa [...] como o
Estado, tinha uma base territorial, uma
concessão de terras muitas vezes maior do
que uma série de principados europeus [...]
poderia fazer avaliações, cunhar moedas,
regular o comércio, dispor de propriedade
corporativa, cobrar impostos, administrar um
tesouro e providenciar meios de defesa.
Assim [e aqui é a observação importante, tão
importante que me arrisquei a colocá-la em
itálico] todos os elementos essenciais que se
encontram no governo dos Estados Unidos
apareceram na corporação licenciada que
iniciou a civilização inglesa na América”.

De modo geral, o sistema de ordem civil


estabelecido na América era o sistema
estatal dos “países maternos” do outro lado
do oceano. A única coisa que os distinguia
era que a classe explorada e dependente
estava a uma distância incomum da classe
proprietária e exploradora. A sede do Estado
autônomo estava de um lado do Atlântico, e
seus subordinados, no outro.

Essa separação deu origem a dificuldades


administrativas de vários tipos; e para
preveni-las — talvez por outros motivos
também — uma companhia inglesa, a
Massachusetts Bay Company, se trasladou
completamente em 1630, trazendo com ela
sua declaração de direitos e a maioria de
seus acionistas e criou, assim, um Estado
autônomo real na América. Deve-se observar
que o Estado mercantil foi estabelecido
completamente na Nova Inglaterra muito
antes de ser criado na Inglaterra antiga. A
maioria dos imigrantes ingleses em
Massachusetts chegaram entre 1630 e 1640;
e nesse período o Estado mercantil inglês
estava ainda no início das mais difíceis lutas
pela supremacia. James I morreu em 1625, e
seu sucessor, Charles I, continuou seu
regime absolutista. A partir de 1629, ano em
que a Bay Company foi criada, até 1640,
quando o Long Parliament foi convocado, ele
governou sem um parlamento, suprimindo
efetivamente os poucos vestígios de
liberdade que haviam sobrevivido às tiranias
Tudor e Jacobina; e durante esses onze anos
as perspectivas de alcançar um Estado
mercantil inglês estavam em baixa.6 Ainda
era preciso enfrentar as distrações da Guerra
Civil, as anomalias que atrasaram o estado
democrático, a restauração e a repetição do
absolutismo tirânico sob James II, antes de
conseguir estabelecer-se firmemente através
da revolução de 1688.

Por outro lado, os líderes da Colonia Bay


eram livres desde o início para estabelecer
uma política estatal de concepção própria e
para criar uma estrutura do Estado que
deveria expressar essa política sem
compromisso. Não havia uma política
concorrente para eliminar, nenhuma estrutura
rival para remodelar. Assim, o Estado
mercantil surgiu em um campo claro meio
século antes de atingir a supremacia na
Inglaterra. Ele nunca teve concorrência ou a
possibilidade de competição de qualquer tipo.
Uma questão importante a se considerar é
que o Estado mercantil é a única forma de
Estado que existiu na América. Sob a regra
de uma empresa comercial, de um
governador provincial ou de uma legislatura
representativa republicana, os americanos
nunca conheceram outra forma do Estado.

A esse respeito, a colônia da Baía de


Massachusetts é diferenciada apenas por ser
o primeiro Estado autônomo já estabelecido
na América e o exemplo mais completo e
conveniente para fins de estudo. Não havia
diferenças no princípio. O Estado na Nova
Inglaterra, Virgínia, Maryland, os Jerseys,
Nova York, Connecticut — em todos os
lugares — era puramente um Estado de
classe, com o controle dos meios políticos
nas mãos do que agora chamamos, de
maneira geral, o “homem de negócios”.

Nos onze anos do absolutismo tirânico de


Charles, os imigrantes ingleses se juntaram à
colônia da Baía, cerca de dois mil por ano.
Sem dúvida, no início, alguns dos colonos
tinham a idéia de se tornarem especialistas
agrícolas — como na Virgínia — e de manter
certos vestígios, ou melhor, imitações, da
prática social semi-feudal, como as que eram
possíveis sob essa forma de indústria
operada por uma economia escravocrata ou
uma economia arrendatária. Contudo, isso se
revelou impraticável: o clima e o solo da
Nova Inglaterra estavam contra ele. Uma
economia arrendatária era instável; em vez
de trabalhar para um patrão, o agricultor
imigrante preferia invadir a terra ilícita e
trabalhar para si mesmo. Em outras palavras,
como Turgot, Marx, Hertzka e muitos outros
demonstraram, ele não poderia ser explorado
até que suas terras fossem expropriadas. Os
invernos longos e difíceis reduziram a
produtividade do trabalho escravo no campo.
No entanto, os colonos de Bay
experimentaram isso e tentaram escravizar
os índios, o que não conseguiram pelas
razões que já mostrei. Na sua ausência, os
colonos decidiram aplicar a velha técnica de
extermínio e pilhagem, sua crueldade
implacável é igualada apenas aos colonos da
Virgínia.7

Os colonos escravizaram muitos, e também


se dedicaram ao comércio de escravos; mas
essencialmente tornaram-se, no início,
pequenos agricultores, construtores de
navios, navegadores, empresários marítimos
de peixes, baleias, melaço, rum e cargas
diversas; e, atualmente, agiotas. Seu
sucesso notável nessas atividades é bem
conhecido. Vale a pena mencionar aqui, a fim
de explicar muitas das complicações e
colisões de interesse que se seguem à
doutrina fundamental do Estado mercantil,
principalmente que a função principal do
governo não é manter a liberdade e a
segurança, mas “ajudar nos negócios”.

III

Procurar qualquer sugestão a favor da


filosofia dos direitos naturais e da soberania
popular no Estado mercantil é inútil. O
sistema comercial provincial não abriu
espaço para isso, e o único Estado autônomo
estava contra ele de modo intransigente. A
Companhia de Bay trouxe sua ata
constitutiva para atuar como constituição da
nova colônia e, de acordo com suas
estipulações, o Estado era uma oligarquia
pequena e fechada. O direito de voto foi
concedido apenas aos acionistas, ou
“homens livres” da corporação, no rigoroso
princípio do Estado que John Jay
estabelecería anos após “os que possuíam o
país devessem governá-lo”. Um ano mais
tarde, a colônia da Baía era composta de
cerca de duas mil pessoas; e com certeza
não chegaram a vinte, provavelmente não
mais do que uma dúzia, dos que tinham
alguma coisa a dizer sobre seu governo.
Esse pequeno grupo constituiu-se de uma
espécie de diretoria ou conselho, nomeando
seu próprio órgão executivo, que consistia
em um governador, um tenente e meia dúzia
ou mais de magistrados. Os oficiais não
tinham responsabilidade em relação à
comunidade em geral, mas apenas à
diretoria. De acordo com os termos do
estatuto, o diretor mantinha o cargo em
perpetuidade. As vagas seriam preenchidas e
a equipe aumentaria se ele achasse
oportuno; e, seguindo uma linha semelhante
à que posteriormente foi recomendada por
Alexander Hamilton, seriam admitidas
apenas pessoas ricas e influentes para a
tarefa de estabelecer uma frente sólida em
tudo o que demonstrasse sinais de soberania
popular.
Os historiadores escreveram muito sobre a
influência da teologia calvinista em abraçar a
atitude fortemente antidemocrática da Bay
Company. A história é de leitura agradável e
interessante — muitas vezes divertida —,
mas a essência é tão simples que pode ser
percebida imediatamente. O princípio da
ação da companhia era a este respeito o que,
em circunstâncias semelhantes, durante uma
dúzia de séculos motivou o Estado. A frase
marxista “a religião é o ópio do povo” é uma
confusão ignorante ou descuidada de termos,
para que não possam ser repreendidos com
dureza. A religião nunca foi assim e nunca
será; mas o cristianismo organizado, que não
é o mesmo que a religião, foi o ópio do povo
desde o início do século IV, e nunca esse
ópio foi empregado por razões políticas tão
habilmente quanto durante a oligarquia da
Baía de Massachusetts.

No ano de 311, o Imperador Romano Cons-


tantino emitiu um édito de tolerância a favor
do cristianismo organizado. Ele apoiou
fortemente o novo culto, dando-lhe presentes
caros, e até adotou o lábaro como seu
estalão, que era um gesto muito distinto e
sem nenhum custo. A história do sinal
celestial que aparece antes de sua batalha
crucial contra Magêncio pode ser notada ao
lado das aparições antes da batalha do
Marne. No entanto, ele nunca se juntou à
Igreja, e a crença de que tenha se convertido
ao cristianismo é duvidosa. A questão é que
as circunstâncias daquela época tornaram o
cristianismo uma figura considerável:
sobreviveu ao desprezo e à perseguição e
tornou--se uma influência social que
Constantino percebeu estar destinada a
chegar longe o suficiente para que valesse a
pena cortejar. A Igreja poderia se tornar uma
ferramenta muito útil para o Estado, e era
necessária uma quantidade muito moderada
de estadistas para atingir esse objetivo. O
entendimento, sem dúvida tácito, baseava-se
em um quid pro quo simples: em troca de
reconhecimento e patrocínio imperial — e
doações suficientes para manter uma alta
respeitabilidade —, a Igreja teve de deixar o
seu desagradável hábito de criticar a política;
em particular, deveria abster-se de
comentários desfavoráveis sobre a
administração dos meios políticos pelo
Estado.

Estes são os termos invariáveis —


novamente digo, sem dúvida, tácitos, já que
raramente é necessário reivindicar contra a
mão que o alimenta — de todos os acordos
feitos desde a época de Constantino entre o
cristianismo organizado e o Estado. Estes
também foram os termos dos acordos
estabelecidos na Alemanha e na Inglaterra
da Reforma. O pequeno principado alemão
tinha sua igreja estatal, como também tinha
seu teatro estatal; e, na Inglaterra, Henrique
VIII estabeleceu a Igreja do modo como a
conhecemos hoje como uma seção do
serviço civil, assim como os correios. O
acordo fundamental em todos os casos era
que a Igreja não deveria interferir ou
menosprezar a organização dos meios
políticos; e, na prática, como é natural, a
Igreja foi mais longe, e foi cúmplice desta
organização muito habilmente.

O Estado mercantil na América chegou a


esse acordo com o cristianismo organizado.
Na colônia da Baía, a Igreja se tornou em
1638 uma sucursal estabelecida do Estado,8
apoiada pelos impostos. Manteve um credo
estatal, promulgado em 1647. Em outras
colônias também, como na Virgínia, a Igreja
era um ramo do serviço estatal, e, onde não
estava realmente estabelecido como tal, o
mesmo acordo era alcançado por outros
meios, igualmente satisfatórios. Na verdade o
Estado mercantil, tanto na Inglaterra como na
América, logo ficou indiferente à idéia de uma
instituição, com a percepção de que o
mesmo modus vivendi poderia ser alcançado
sob o voluntarismo e que este último tinha a
vantagem de satisfazer praticamente todos
os tipos de credos e cerimônias, liberando
assim o Estado da tarefa problemática e não
lucrativa de ter de mediar disputas sobre
questões de doutrina e credo.

O voluntarismo puro e simples foi criado em


Rhode Island por Roger Williams, John
Clarke e seus associados, que foram banidos
da colônia da Baía quase trezentos anos
antes, em 1636. De modo geral, esse grupo
de exilados é considerado fundador de uma
sociedade baseada na filosofia dos direitos
naturais e na soberania popular em relação à
ordem eclesiástica e a ordem civil, e iniciador
de um experimento em democracia. Isso, no
entanto, é um exagero. Os líderes do grupo
estavam indubitavelmente cientes dessa
filosofia, e, no que diz respeito à ordem
eclesiástica, suas práticas eram
semelhantes. Do lado civil, tudo o que se
pode dizer é que sua prática era semelhante
desde que soubesse como fazê-lo; e afirmo
isso fazendo grande concessão. O mínimo
que se pode dizer, por outro lado, é que a
sua prática estava por um tempo muito à
frente da prática prevalecente em outras
colônias — tanto que Rhode Island passou a
ter má reputação com seus vizinhos em
Massachusetts e Connecticut, que foi
diligentemente propagada por todo o
território, com os conseqüentes exageros e
adições. No entanto, ao aceitar o sistema
estatal de posse de terras, a estrutura política
de Rhode Island foi estatal desde o início,
contemplando a estratificação da sociedade
em uma classe proprietária e exploradora e
uma classe dependente sem propriedades. A
teoria do Estado de Williams era a do acordo
social alcançado entre os iguais, mas a
igualdade não existia em Rhode Island, e o
resultado era um puro estado de classe.

Na primavera de 1638, dois líderes indígenas


deram a Williams cerca de cinqüenta
quilômetros quadrados de terra, além de
outras que comprara dois anos antes. Em
outubro, ele formou uma “patente” para
compradores que compraram doze terços da
concessão indígena. Bicknell, em sua história
de Rhode Island, cita uma carta escrita por
Williams para o vice-governador da colônia
da Baía, que expressa com franqueza que o
plano dessa patente contemplava a criação
de duas classes de cidadãos: uma,
constituída de chefes de família proprietários
de terra; e a outra, de “jovens solteiros”
desprovidos de terra, e, como diz Bicknell,
“sem voz ou voto perante os oficiais da
comunidade ou as leis a que eram chamados
a obedecer”. Assim, a ordem civil em Rhode
Island era essencialmente uma ordem estatal
pura, tanto quanto a da colônia da Baía, ou
qualquer outra na América; e, na verdade, a
franquia de propriedade de terras durou
muito pouco em Rhode Island,
permanecendo ali mesmo depois de ter sido
abandonada na maioria dos outros países da
América.9

Para resumir, basta dizer que em nenhuma


parte da América colonial havia qualquer
rastro de democracia. A estrutura política era
sempre a do Estado mercantil — os
americanos nunca conheceram outro
sistema. Além disso, a filosofia dos direitos
naturais e da soberania popular nunca foi
apresentada à prática política americana
durante o período colonial, desde o primeiro
assentamento, em 1607, até a revolução de
1776.

1 Entre essas instituições estão o nosso


sistema gratuito de educação pública;
autogoverno local originalmente estabelecido
no sistema do município; nosso método de
transmissão de terras; quase todo o nosso
sistema de eqüidade; grande parte do nosso
código penal e nosso método de
administração de propriedades.

2 Em toda a Europa, de fato, até o final do


século XVIII, o Estado era bastante fraco,
mesmo considerando o desenvolvimento
relativamente moderado do poder social e a
quantidade moderada de acumulação
econômica disponível para seus propósitos
predatórios. O poder social na França
moderna poderia pagar os impostos anuais a
Luís XIV sem senti-lo, e não visava nada
além de mudar a arrecadação do Estado
republicano nessas condições.

3 Durante o reinado de Elizabeth, a disputa


puritana, liderada por Cartwright, era o
equivalente à teoria do presbiterianismo jure
divino. O establisbment em geral tomou a
posição do arcebispo Whitgift e Richard
Hooker de que os detalhes da política
eclesial eram indiferentes e, portanto,
devidamente sujeitos à regulamentação do
Estado. A doutrina da High Church do
episcopado jure divino foi estabelecida mais
tarde pelo sucessor de Whitgift, Bancroft.
Assim, até 1604, os presbiterianos poderíam
ser questionados por motivos seculares e,
posteriormente, por motivos seculares e
eclesiásticos.
4 Assim eram as mudanças caleidoscópicas
na França após a revolução de 1789.
Durante o Diretório, Consulado, Restauração,
os dois Impérios, as três Repúblicas e a
Comuna, o Estado francês manteve seu
caráter essencial intacto; conservou sempre
a organização dos meios políticos.

5 Em 1629, a colônia da Baía de


Massachusetts adotou o modelo de
autonomia congregacional da colônia de
Plymouth, mas se constatou que seu
princípio era inconsistente com o princípio do
Estado, o que quase imediatamente anulou
sua ação. Manteve, no entanto, o nome de
congregacionismo. Este modo de
dissimulação é facilmente reconhecível como
um dos expedientes mais úteis do Estado
moderno para manter a aparência das
coisas. O nome dos nossos dois maiores
partidos políticos aparecerá de imediato
como um exemplo de capital. Em dois anos,
a colônia da Baía estabeleceu uma igreja
estadual, nominalmente congregacionista,
mas na verdade um ramo do serviço civil,
como na Inglaterra.

6 Provavelmente foi uma previsão dessa


situação, bem como uma enorme vantagem à
administração, o que fez com que a Bay
Company se deslocasse com tudo para
Massachusetts no ano seguinte à emissão da
ata constitutiva.

7 Thomas Robinson Hazard, o Rhode Island


Quaker, em seu fantástico Jonnycake
Papers, diz que o Great Swamp Fight de
1675 foi “instigado contra os legítimos donos
do solo, apenas pelos criminosos puritanos
de Massachusetts e seus aliados do inferno,
os presbiterianos de Connecticut, que,
embora a caridade seja minha especialidade,
não consigo pensar sem me sentir como
todos os habitantes de Rhode Island [...] e,
como a velha Miss Hazard quando
agradeceu a Deus na reunião de oração de
Connecticut que ela poderia agüentar a
maldade por quarenta anos”. Os colonos de
Rhode Island negociaram com os índios os
direitos sobre a terra e se tornaram amigos
deles.

8 O Sr. Parrington (Principais correntes no


pensamento americano, v. I, p. 24) cita as
sucessivas etapas para alcançá-lo da
seguinte forma: a lei de 1631, restringindo a
franquia aos membros da Igreja; de 1635,
obrigando todas as pessoas a participarem
dos serviços religiosos; e de 1636, que
estabeleceu um monopólio virtual do Estado,
exigindo o consentimento da autoridade da
Igreja e do Estado antes que uma nova igreja
pudesse ser criada. Roger Williams observou
de forma perspicaz que uma instituição
estatal de cristianismo organizado é “uma
invenção política do homem para manter o
Estado civil”.

9 Bicknell afirma que a formação da


propriedade de Williams era “um esquema de
venda de terras, propriedade de terras,
trabalho de terras, sem finalidade moral,
social, civil, educacional ou religiosa”; e sua
discussão sobre os primeiros lotes de terra
no local onde agora está a cidade da
Providência deixa bem claro que “os
primeiros anos da Providência são uma
disputa gananciosa por terra”. Bicknell não
está precisamente contra Williams, embora
sua história seja declarada ex parte para a
tese de que o verdadeiro expositor da
liberdade civil em Rhode Island não era
Williams, mas Clarke. Esta afirmação é
imaterial para o presente propósito, no
entanto, pois o sistema estatal de posse de
terras prevaleceu no acordo de Clarke em
Aquidneck, como ocorreu no acordo de
Williams mais adiante na Baía.
CAPÍTULO IV
I

Depois da conquista e do confisco, e depois


de estabelecer o Estado, a primeira
preocupação é com a terra. O Estado
assume o direito de controle sobre a sua
base territorial, em que cada proprietário
torna-se, em teoria, inquilino do Estado. Em
sua qualidade de proprietário máximo, o
Estado distribui a terra entre os seus
beneficiários nos seus próprios termos. Deve-
se ter em conta que, com o sistema estatal
de posse de terra, cada operação original
confere dois monopólios completamente
distintos, pois um tem a ver com o direito de
propriedade como fonte de trabalho e o outro
com propriedade do ponto de vista jurídico.
Um é o monopólio do valor da terra; o outro,
o monopólio da renda econômica da terra. O
primeiro dá o direito de impedir que outras
pessoas usem a terra em questão, ou a
atravessem sem permissão, e o direito à
posse exclusiva dos lucros que produz —
lucros produzidos pelo exercício dos meios
econômicos sobre a propriedade. O
monopólio da renda econômica, por outro
lado, dá o direito exclusivo aos lucros
decorrentes do desejo alheio de possuir tais
propriedades; lucros que aumentam
independentemente de qualquer exercício
dos meios econômicos do proprietário.1

A renda econômica aumentará se, por


qualquer motivo, duas ou mais pessoas
aspirarem à posse do mesmo terreno, e
aumentará proporcionalmente ao número de
candidatos. Toda a ilha de Manhattan foi
comprada originalmente por um grupo de
holandeses de um grupo de índios por
bugigangas no valor de vinte e quatro
dólares. O subseqüente “aumento dos
valores da terra”, como chamamos, foi
provocado pelo afluxo constante de
população e a conseqüente alta demanda de
parcelas da ilha; e esses valores resultantes
foram monopolizados pelos proprietários.
Eles aumentaram muito de tamanho e os
proprietários se aproveitaram disso. As
propriedades de Astor, Wendel e da Trinity
Church sempre foram exemplos clássicos
para o estudo do sistema estatal de
propriedade de terra.

Se considerarmos que o Estado é a


organização dos meios políticos — que sua
principal intenção é permitir a exploração
econômica de uma classe por outra — vemos
que ele sempre atuou com base no exemplo
acima, que expropriação precede exploração.
Não há outra maneira de tornar eficazes os
meios políticos. O primeiro postulado da
economia fundamental é que o homem é um
animal terrestre, cuja subsistência depende
inteiramente da terra.2 Toda a sua riqueza é
produzida através da aplicação do trabalho e
do capital na terra; não existe outro método
conhecido de produção de riqueza. Assim, se
o livre acesso à terra é cancelado por
exigência legal, o indivíduo pode usar seu
trabalho e capital apenas com o
consentimento do proprietário do terreno e
nos termos dele; em outras palavras, é neste
ponto que essa exploração torna-se
praticável.3 A primeira preocupação do
Estado deve ser, portanto, invariavelmente,
estabelecer regras sobre a propriedade da
terra.

Refiro-me a essas questões elementares tão


brevemente quanto posso. O leitor pode
facilmente encontrar uma exposição mais
desenvolvida em outro lugar.4 O que me
preocupa é mostrar por que o sistema estatal
de posse da terra surgiu e por que a sua
preservação é necessária para a existência
do Estado. Se esse sistema fosse rompido,
obviamente o motivo da existência do Estado
desapareceria, e o próprio Estado
desapareceria com ele.5 Com isso, é
interessante observar que, embora todas as
nossas políticas públicas pareçam estar em
processo de exaustiva revisão, ninguém tem
nada a dizer contra o sistema estatal de
posse da terra. Isso, sem dúvida, é a maior
prova de sua importância.6

Sob o estado feudal, não havia grande


quantidade de tráfego em terra. Quando
William, por exemplo, estabeleceu o Estado
normando na Inglaterra após a conquista e o
confisco em 1066-76, seu grupo de foragidos
— entre os que repartiu o território confiscado
— não fez nada para desenvolver suas
participações e nada para contemplar o
ganho com o incremento dos valores de
aluguel. Na verdade, o aluguel econômico
não existia. Seus beneficiários não estavam
apenas no mercado, e a população
despojada não representava qualquer
demanda econômica. O regime feudal era um
regime de status, segundo o qual as grandes
extensões de terra dificilmente deixaram
rendas, e possuíam um valor de uso
moderado, mas ofereciam um enorme valor
em termos de status. A terra era mais
característica da nobreza, em vez de bens
ativos. Possuir terras era característica de
pertencimento à classe exploradora, e o
tamanho de suas propriedades parece ter
sido mais importante do que o número de
seus subordinados explorados.7 A violação
da propriedade privada por parte do Estado
mercantil alterou essas circunstâncias. A
importância dos valores de aluguel foi
reconhecida, e a negociação especulativa de
terras tornou-se geral.

Por isso, em um estudo sobre o Estado


mercantil — como apareceu em grande
escala na América — é muito importante
lembrar que, desde o primeiro assentamento
colonial até agora, a América foi considerada
um campo praticamente ilimitado para
especulações em valores de aluguel.8 Pode-
se dizer sem medo de errar que todo
empresário colonial e proprietário após a
época de Raleigh compreendia o aluguel
econômico e as condições necessárias para
aprimorá-lo. As empresas comerciais suecas,
holandesas e britânicas entenderam isso.
Endicott e Winthrop, do Estado mercantil
autônomo na Baía, o compreenderam; assim
como Penn e os Calverts; como os
proprietários carolinianos, a quem Charles II
concedeu uma ilustre faixa territorial ao sul
da Virgínia, que se estendia do Atlântico ao
Pacífico; e, como já vimos, Roger Williams e
Clarke entenderam perfeitamente. De fato, a
especulação da terra pode ser apresentada
como a primeira grande indústria
estabelecida na América colonial. O
professor Sakolski chama a atenção para o
fato de a especulação estar crescendo no sul
antes que a importância comercial de negros
ou de tabaco fosse reconhecida. Esses dois
elementos básicos se desenvolveram
completamente em torno de 1670 — o tabaco
talvez um pouco mais cedo, mas não muito
— e, antes disso, a Inglaterra e a Europa
receberam intensa propaganda sobre os
proprietários do sul, anunciando aos
colonos.9

O Sr. Sakolski deixa claro que pouquíssimos


empresários originais em títulos de renda
americanos obtiveram grande lucro com seus
negócios. Vale ressaltar aqui que o que
aumenta a renda econômica é a presença de
uma população ativa imersa em meios
econômicos, ou então, como geralmente
dizemos, “trabalhando para viver” — ou,
ainda, em termos técnicos, que busca
trabalho e capital nos recursos naturais para
a produção de riqueza. Não há dúvida que,
para Carteret, Berkeley e sua nobreza
associada, o fato de serem proprietários de
uma província do tamanho das Carolinas era
muito digno, mas, se não houver habitantes,
não há como produzir riqueza pelos meios
econômicos — obviamente não rendería um
centavo de aluguel, e a chance dos
proprietários de exercer os meios políticos
seria, portanto, nula. Os proprietários que
usaram de modo mais lucrativo os meios
políticos foram aqueles — ou melhor, falando
estritamente, seus herdeiros — como os
Brevoorts, Wendels, Whitneys, Astors e
Goelets, que possuíam terreno em um centro
urbano real ou futuro, e conservavam isso
mais por investimento do que por
especulação.

A atração dos meios políticos na América, no


entanto, deu origem a um estado de espírito
que vale a pena analisar. Sob o Estado
feudal, permitia-se viver da política apenas
por nascimento ou, em alguns casos
especiais, por um favor pessoal. Quem não
pertencia a essas categorias não tinha a
menor chance de viver fora dos meios
econômicos. Não importa o quanto tenham
desejado exercer a política ou o quanto
tenham invejado os poucos privilegiados que
poderíam exercê-la; a questão é que eles
não poderíam. O regime feudal era baseado
estritamente na posição social. Sob o Estado
mercantil, pelo contrário, a política estava
disponível a qualquer pessoa —
independentemente do nascimento ou
posição — que tivesse a sagacidade e a
determinação necessárias para exercê-la.
Nesse sentido, a América

apareceu como a terra de oportunidades


ilimitadas. O efeito disso foi produzir uma
raça de pessoas cuja principal preocupação
era aproveitar essa oportunidade. Tudo o que
lhes interessava era abandonar os meios
econômicos o mais rápido possível, mesmo
sob o custo de sacrificar sua própria
consciência ou caráter e viver a política.
Desde o início, essa determinação tem sido
universal, que equivale à monomania.10 Não
precisamos nos preocupar aqui com o tipo de
vantagens gerais que surgiram quando o
sistema feudal foi substituído pelo sistema
mercantil. Podemos observar apenas que
certas virtudes e integridades foram criadas
pelo regime de status, ao qual o regime do
contrato parece ser adverso, até mesmo
destrutivo. Ainda há vestígios deles entre os
povos com uma longa tradição de regime de
classe social, mas na América, que não teve
tal experiência, eles não aparecem. Quanto
aos tipos de compensações derivadas da sua
ausência, ou mesmo se podem ser
considerados adequados, repito: não
precisam nos preocupar. Observemos
apenas o simples fato de que não se
enraizaram na constituição do caráter
americano em geral, e não poderão se
enraizar.

II

Foi dito na época, creio, que as causas reais


da revolução colonial de 1776 nunca seriam
conhecidas. As causas atribuídas por nossos
livros escolares são descartadas como
triviais; e as várias visões parciais e
propagandistas dessa luta e suas origens
podem ser consideradas incompetentes.
Uma longa tradição de legislação comercial
adversa exercida pelo Estado britânico a
partir de 1651 é considerada de grande
importância, especialmente a parte que foi
promulgada após o firme estabelecimento do
Estado mercantil na Inglaterra como
conseqüência dos acontecimentos de 1688.
Esta legislação incluiu os atos de navegação,
os atos comerciais, os atos que regulam a
moeda colonial, o ato de 1752, que regula o
processo de cobrança tributária e os
procedimentos que levaram ao
estabelecimento da Câmara de Comércio em
1696.11 Estes afetaram diretamente os
interesses industriais e comerciais nas
colônias, ainda que não se saiba até que
ponto, embora seja suficientemente profundo
para causar grande ressentimento.

Além disso, no entanto, se o leitor se voltar à


paixão vigente da época, apreciará
imediatamente a importância desses dois
aspectos que, por algum motivo, escaparam
da atenção dos historiadores. O primeiro
deles é a tentativa do Estado britânico de
limitar o exercício dos meios políticos em
relação aos valores de aluguel. 12 Em 1763,
proibiu os colonos de ocupar terras a oeste
de qualquer rio navegável no Atlântico. O
prazo fixo foi definido para isolar o direito de
compra preferencial à metade da Pensilvânia
e da Virgínia e tudo o que se estendia para o
oeste. Isso foi grave. Com a mania de
especulação tão elevada, com a consciência
de oportunidade, real ou imaginada,
tornando-se tão específica e tão geral, essa
decisão afetou todos. Pode-se ter uma idéia
do seu efeito ao imaginar o estado de espírito
de nosso povo em geral se tivesse sido
proibido jogar no mercado de ações no início
do último grande boom em Wall Street há
alguns anos.

Nessa época, os colonos começaram a


perceber sensivelmente os recursos
ilimitados do país a oeste; aprenderam o
suficiente para disparar sua imaginação e
sua avareza. O litoral já estava quase
completamente ocupado, o proprietário
fazendeiro estava perdendo terreno, a
população estava aumentando
constantemente, as cidades marítimas
estavam crescendo. Nessas condições, as
“terras ocidentais” tornaram-se a atração
principal. Os valores de aluguel dependiam
da população, a população estava destinada
a expandir-se e a única direção em que
poderia expandir era para o oeste, onde
havia um rico território à espera de ser
explorado. Era, portanto, bastante natural
que os colonizadores desejassem pôr as
mãos em suas terras e explorá-las sozinhos
e em seus próprios termos, sem risco de
interferência arbitrária do Estado britânico.
Essa necessidade significava independência
política. Não é preciso muita imaginação para
ver que alguém nessas circunstâncias teria
se sentido assim e que o ressentimento
colonial contra a limitação arbitrária imposta
pelo decreto de 1763 sobre o exercício dos
meios políticos deveria ser enorme.
O estado real da especulação da terra
durante o período colonial pode dar uma
idéia justa das probabilidades no caso. A
maior parte foi feita no sistema empresarial.
Vários aventureiros se uniam, asseguravam
uma concessão de terra, examinavam-na e
depois a vendiam o mais rápido possível.
Seu objetivo era um rápido volume de
negócios. Em geral, não contemplavam a
posse da terra, muito menos estabelecer-se
nelas — em suma, era uma aposta pura em
valores de aluguel.13 Entre essas empresas
pré-revolucionárias estava a Ohio Company,
formada em 1748 com uma doação de meio
milhão de hectares; a Loyal Company, que,
como a Ohio Company, era composta de
cidadãos da Virgínia, Transilvânia, Vandalia,
Scioto, Indiana, Wabash, Illinois,
Susquehannah e outros, cujas explorações
eram menores.14 É interessante observar os
nomes das pessoas envolvidas nessas
empresas — não se pode ignorar o
significado dessa conexão em vista de sua
atitude em relação à revolução e sua carreira
posterior como estadistas e patriotas. Além
de seus empreendimentos individuais, por
exemplo, o General Washington era membro
da Ohio Company e um dos principais
motores na organização da Mississippi
Company. Ele também concebeu o esquema
da Potomac Company, projetado para
aumentar o valor de aluguel das terras a
oeste, oferecendo uma saída para sua
produção por canal e transporte pelo rio
Potomac, e dali para o litoral. Esta empresa
determinou o estabelecimento da capital
nacional em sua situação atual mais precária,
a rota do canal terminava nesse ponto.
Washington tomou alguns lotes na cidade
que leva seu nome, mas, em comum com
outros especuladores iniciais, não ganhou
muito dinheiro com eles. Foram avaliados em
cerca de US$ 20.000 quando ele faleceu.

Patrick Henry era um monopolizador de terra


inveterado e voraz, que ultrapassava o limite
estabelecido pelo Estado britânico. Mais
tarde, se envolveu nos assuntos de uma das
notáveis empresas da Yazoo, na Geórgia.
Parece que ele não tinha escrúpulos. As
participações de sua empresa na Geórgia, no
valor de mais de dez milhões de acres,
deveríam ser pagas em títulos da mesma
companhia, que tinha sido desvalorizada.
Henry comprou todos os certificados que
conseguiu com dez centavos de dólar e
obteve um grande lucro com o aumento de
valor quando Hamilton impôs a regra de que
o governo central deveria assumir a dívida
que representavam. Sem dúvida, foi essa
característica da avareza desenfreada que
lhe valeu a aversão do Sr. Jefferson, que
disse, com bastante desdém, que ele era
“insaciável com o dinheiro”.15

A mente econômica de Benjamin Franklin


abraçou o projeto da Vandalia Company e ele
atuou com sucesso como promotor na
Inglaterra em 1766. Timothy Pickering,
secretário de Estado nos mandatos de
Washington e John Adams, registrou em
1796 que “tudo o que eu possuo hoje, se
deve às especulações de terras”. Silas
Deane, emissário do Congresso Continental
na França, interessou-se pelas Companhias
Illinois e Wabash, assim como Robert Morris,
que geriu as finanças da revolução; como
James Wilson, que se tornou juiz da
Suprema Corte e um homem poderoso na
conquista pós-revolucionária de terras.
Wolcott, de Connecticut; e Stiles, presidente
do Yale College, mantiveram ações na
Susquehannah Company; assim como
Peletiah Webster, Ethan Allen e Jonathan
Trumbull, o “Irmão Jonathan”, cujo nome era
uma alcunha para o americano típico —
ainda em uso. James Duane, o primeiro
prefeito da cidade de Nova York, realizou
alguns empreendimentos especulativos
bastante consideráveis, e, embora se relute
em aceitar a idéia, o mesmo fez o “Pai da
Revolução”: Samuel Adams.
O senso comum nos diz que uma
interferência do Estado britânico no livre
exercício dos meios políticos era uma forma
de incitar revolução na esfera econômica, por
meio dos atos de navegação e dos atos
comerciais, com um livre exercício dos meios
econômicos. Na natureza das coisas seria
uma incitativa maior, tanto porque afetou uma
classe mais numerosa de pessoas como
porque a especulação em valores da terra
representava dinheiro fácil. Junto a isso está
o segundo tema que me parece ter grande
importância e que nunca foi devidamente
abordado, até onde sei, nos estudos sobre a
época.

Parece ser a coisa mais natural do mundo


para os colonos perceber que a
independência não só proporcionaria acesso
livre a esse modo de política, mas também
abriria caminho a outros modos que o status
colonial tornou indisponíveis. O Estado
mercantil existia nas províncias reais,
completo em estrutura, mas não quanto às
funções, pois não dava acesso a todos os
modos de exploração econômica.

As vantagens de um Estado que seria


totalmente autônomo neste aspecto deviam
estar claras para os colonos, e deveria tê-los
impulsionado fortemente ao projeto de
estabelecer um.

Mais uma vez, é puramente uma visão de


bom senso das circunstâncias que levam a
esta conclusão. O Estado mercantil na
Inglaterra emergiu triunfante do conflito, e os
colonos tiveram muitas chances de ver o que
poderíam fazer para distribuir os vários meios
de exploração econômica e seus métodos de
aplicá-los. Certas empresas inglesas, por
exemplo, se ocupavam do comércio entre
Inglaterra e América, para as quais outras
companhias inglesas construíram navios. Os
americanos podiam competir nessas duas
linhas de negócios. Se o faziam, as tarifas de
transporte seriam reguladas pelos termos
desta competição; caso contrário, seriam
reguladas pelo monopólio, ou, na nossa frase
histórica, seriam tão altas quanto o tráfego
pudesse suportar. As transportadoras
inglesas e os construtores de navios fizeram
causa comum, dirigiram-se ao Estado e
pediram-lhe para intervir, o que foi feito
proibindo que os colonos enviassem
mercadorias em navios que não fossem
construídos e operados por ingleses. Uma
vez que o frete tem impacto nos preços, a
conseqüência dessa intervenção foi permitir
que os carregadores britânicos mantivessem
a diferença entre as taxas de monopólio e de
mercado — isto é, permitiu-lhes explorar o
consumidor empregando os meios
políticos.16 Intervenções semelhantes
também foram feitas a pedido de fabricantes
de pregos, fabricantes de chapéus,
siderúrgicas, etc.

Essas intervenções tomaram a forma de


proibição simples. Outro modo de
intervenção apareceu nas tarifas
alfandegárias impostas pelo Estado britânico
ao açúcar e melaço estrangeiros.17 Agora,
provavelmente todos sabemos muito bem
que a principal razão para se fixar uma tarifa
era que isso permitia a exploração do
consumidor doméstico por um processo
inconfundível de roubo absoluto.18 Os
demais pontos são discutíveis, mas este não,
pois os propagandistas e lobistas nunca o
mencionam. Os colonos estavam bem
conscientes disso e a melhor evidência que
temos é que, muito antes de a União ser
estabelecida, os empresários mercantis e
industrialistas se aliaram para estabelecer a
nova administração formada com um pedido
organizado de uma taxa.

Não há dúvida de que, levando-se em conta


a natureza das coisas, as intervenções do
Estado britânico nos meios econômicos
provocariam um grande ressentimento entre
os interesses diretamente envolvidos e teriam
outro efeito totalmente significativo, senão
mais, para fazer com que esses interesses se
orientassem à idéia de independência
política. Dificilmente não teriam visto tanto a
vantagem positiva como a negativa que
resultaria da criação de um Estado próprio, o
que lhes favorecería. Não é necessária
grande imaginação para reconstruir a visão
que tiveram de um Estado mercantil,
revestido de pleno poder de intervenção e
discriminação, um Estado que tinha como
princípio e fim “auxiliar nos negócios” e que
deve ser administrado por simples agentes,
por pessoas facilmente gerenciáveis ou, no
seu caso, por pessoas com interesses
semelhantes aos seus. Não se pode presumir
que os colonos, em geral, não fossem
inteligentes o suficiente para enxergar isso,
ou que não fossem determinados o suficiente
para correr o risco de perceber quando a
ocasião era propícia; e no fim eles
aproveitaram a oportunidade mesmo antes
dela estar madura.19 Podemos discernir uma
linha distinta de propósito comum unindo os
interesses do empreendedor mercantil com
os do especulador ativo ou potencial em
valores de aluguel — unindo os Hancocks,
Gores, Otises, com os Henrys, Lees,
Wolcotts, Trumbulls e conduzindo
diretamente para o objetivo da independência
política.

A conclusão principal, no entanto, em relação


à qual essas observações se inclinam, é o
estado de espírito geral entre os colonos com
referência à natureza e função primária do
Estado. Esse estado de espírito não era
peculiar a eles, mas era compartilhado
também com os beneficiários do Estado
mercantil, na Inglaterra, e com os do Estado
feudal tanto quanto a história do Estado pode
ser verificada. Voltaire, examinando os
resquícios do Estado feudal, disse que, em
essência, o Estado é “um mecanismo para
tirar dinheiro de alguns bolsos e colo-cá-lo
em outros”. Os beneficiários do Estado feudal
compartilham desse ponto de vista e
legaram-no assim, inalterado e sem
modificações, para os beneficiários reais e
potenciais do Estado mercantil. Os colonos
consideravam o Estado um instrumento
primário com o qual se pode ajudar a ferir
outros; isto é, em primeiro lugar,
consideraram-no como a organização dos
meios políticos. Não se teve outra opinião do
Estado na América colonial. O romance e a
poesia foram usados para dar peso ao
assunto de maneira tradicional; mitos
glamurosos se propagaram com a intenção
habitual, mas, quando se espalhavam por
toda parte, não havia lugar na América
colonial onde as relações práticas reais com
o Estado fossem determinadas por qualquer
outra visão além da que descreví.20

III

A ata constitutiva da revolução americana foi


a Declaração de Independência, que se
baseou na dupla tese de direitos naturais
“inalienáveis” e de soberania popular. Vimos
que essas doutrinas eram teóricas, ou, como
dizem os políticos, “em princípio” compatíveis
com o espírito do empresário mercantil
inglês, e podemos ver que, na natureza das
coisas, seriam ainda mais agradáveis ao
espírito de todas as classes na sociedade
americana. Uma população esparsa e
dispersa para um mundo tão amplo diante de
seus olhos, com territórios tão grandes e
cheios de recursos ao alcance, antecipação e
exploração que apoiariam expressivamente
os direitos naturais, como os colonos fizeram
desde o início; e a independência política
abriria as portas para tal consideração. Essas
circunstâncias consolidaram o empreendedor
mercantil, agrário, monopolizador e industrial
em um individualismo econômico ciumento,
intransigente e firme.

Assim também se sucedeu com a doutrina da


irmã da soberania popular. Os colonos
passaram por longas e vexatórias
intervenções do Estado que limitaram seu
uso dos meios políticos e econômicos. Eles
também tiveram oportunidades de ver como
essas intervenções foram gerenciadas e
como os grupos econômicos ingleses de
gerenciamento se beneficiaram às suas
custas. Por isso, não havia lugar em suas
mentes para qualquer teoria política que
desestimasse o direito à livre expressão na
política. Na medida em que a situação tendia
a transformá-los em individualistas
econômicos natos, eles também os
converteram em republicanos natos.

Assim, o preâmbulo da Declaração supôs


uma unanimidade cordial. Suas duas
principais doutrinas podem ser interpretadas
como justificação de um pseudo-
individualismo econômico ilimitado por parte
dos beneficiários do Estado e um exercício
judiciosamente administrado de livre
expressão política pelo eleitorado. Sendo ou
não uma interpretação mais livre do que uma
construção estrita das doutrinas, sem dúvida,
era a interpretação mais comum delas. Na
história americana há muitos casos em que
grandes princípios, em seu entendimento
comum e aplicação prática, foram reduzidos
ao serviço de fins muito insignificantes. O
preâmbulo, no entanto, refletia um estado
mental geral: por mais incompetentes que
fossem suas doutrinas, e quaisquer que
fossem os motivos desse raciocínio, o
espírito geral do povo estava a seu favor.

Havia uma unanimidade completa também


sobre a natureza da nova instituição política
independente que a Declaração estabelecia
como função “do povo”. Havia uma grande
dissensão sobre sua forma, mas não sobre
sua natureza. Deve ser, em essência,
sucessora do Estado mercantil existente. A
idéia de criar o governo não foi contemplada
— a instituição puramente social sem outro
objetivo além de, como a Declaração afirmou,
garantir os direitos naturais do indivíduo; ou,
como disse Paine, que não deve contemplar
nada além da manutenção da liberdade e da
segurança — a instituição que não deve fazer
qualquer intervenção positiva de qualquer
tipo no indivíduo, mas que se envolvería
exclusivamente em intervenções negativas
para preservar a manutenção da liberdade e
da segurança. A idéia era perpetuar um tipo
de instituição completamente diferente, o
Estado, a organização dos meios políticos —
e assim foi feito.

Nesta observação não há nada degradante,


pois, motivos à parte, nada mais era de se
esperar. Ninguém conhecia outro tipo de
organização política. Entendeu-se que os
motivos do descontentamento americano
foram devidos à má administração, mal
intencionada e culpada, e não à natureza
essencialmente anti-social da instituição
administrada. A insatisfação foi dirigida
contra administradores, não contra a
instituição. Ocorreu aversão violenta à forma
da instituição — a monarquia — mas sem
desconfiança ou suspeita de sua natureza. O
caráter do Estado nunca foi submetido a
escrutínio; era necessária a cooperação do
espírito da época para isso, o que ainda não
havia sido alcançado.21 Pode--se ver aqui
um paralelo com os movimentos
revolucionários contra a Igreja no século XVI
— e, de fato, com os movimentos
revolucionários em geral. Eles são instigados
por abusos e erros mais ou menos
específicos e sempre secundários, e sua
intenção não deixa de ser retificada ou
vingada, geralmente pelo sacrifício de bodes
expiatórios visíveis. Não se examina a
filosofia da instituição que desempenha
esses atos ilícitos, o que os faz recorrer a
outras formas e auspícios,22 ou, se não o
fizerem, seu lugar é ocupado por outros de
caráter semelhante. Assim, o evidente
fracasso da reforma e dos movimentos
revolucionários de longo prazo pode ser
devido à sua superficialidade incorrigível.

Houve uma mente que, de fato, foi capaz de


se aproximar o bastante dos pontos básicos
do tema, não por meio do método histórico,
mas por um tipo de raciocínio caseiro,
auxiliado por um instinto sólido e sensível. A
visão comum do Sr. Jefferson como defensor
do rigoroso princípio dos “direitos dos
Estados” é incompetente e enganosa. Não há
dúvida de que ele acreditava nos direitos dos
Estados, mas foi muito mais longe: os direitos
dos Estados eram apenas um incidente no
seu sistema geral de organização política.
Ele acreditava que a unidade política final, o
repositório e fonte de autoridade e iniciativa
política, deveria ser a unidade menor — não
a unidade federal, a unidade estatal ou a
unidade do condado — mas o município, ou,
como chamou, o “distrito eleitoral”. O
município, e apenas ele, deve delegar poder
para o condado, o Estado e as unidades
federais. Seu sistema de descentralização
extrema é interessante e talvez mereça um
mínimo de atenção, pois, se a idéia do
Estado é sempre substituída pela idéia de
governo, parece provável que a expressão
prática dessa idéia seja muito parecida.23
Provavelmente não há necessidade de dizer
que essa substituição envolve um campo de
visão desordenado com os resquícios de um
número desanimador não apenas de nações,
mas de civilizações inteiras. No entanto é
interessante lembrar que, há mais de cento e
cinqüenta anos, um americano conseguiu
ficar abaixo da superfície das coisas e que
provavelmente, até certo ponto, antecipou o
julgamento de um futuro imensamente
distante.

Em fevereiro de 1816, o Sr. Jefferson


escreveu uma carta a Joseph C. Cabell na
qual expôs a filosofia por trás de seu sistema
de organização política. O que foi, ele
questiona, que

“destruiu a liberdade e os direitos do homem


em todos os governos que já existiram sob o
sol, generalizando e concentrando todos os
cuidados e poderes em um só organismo,
independentemente dos autocratas da
Rússia ou da França, ou dos aristocratas do
Senado veneziano?”.
O segredo da liberdade se encontra no
indivíduo

“que se torna depositário dos seus próprios


poderes, na medida em que os aplique bem,
e delegando apenas o que está além de sua
competência, por um processo sintético, a
categorias cada vez mais superiores de
funcionários públicos, a fim de diminuir o seu
poder à medida que os conselheiros se
tornam cada vez mais oligárquicos”.

Essa idéia baseia-se em uma observação


precisa, pois todos sabemos que não só a
sabedoria do homem comum, mas também
seu interesse e sentimento, têm um raio de
operação muito curto: eles não podem ser
estendidos a uma área maior do que o
tamanho do município, e é absurdo supor
que qualquer homem ou grupo de homens
possa, arbitrariamente, exercer sua
sabedoria, interesse e sentimento com
sucesso em uma área nacional ou estatal.
Portanto, quanto maior for a área de
exercício, menores e mais claramente
definidas devem ser as funções
desempenhadas. Além disso, “delegando o
que ele próprio supervisionaria”, ele se
protege da usurpação de funções.

“Onde cada homem participa na direção da


sua república, ou de qualquer unidade
principal, e sente que participa de assuntos
governamentais não só nas eleições uma vez
por ano, mas todos os dias [...] ele deixará
que lhe arranquem o coração antes que um
César ou um Bonaparte lhe usurpe o poder”.

Contudo, nenhuma idéia dessa soberania


popular apareceu na organização política
estabelecida em 1789 — longe disso. Ao
projetar sua estrutura, os arquitetos
americanos seguiram as especificações
estabelecidas por Harington, Locke e Adam
Smith, que podem ser consideradas um
compêndio de política sob o Estado
mercantil. De fato, se alguém quisesse ser
um pouco descortês ao descrevê-los, embora
não injustamente, pode-se dizer que eles são
o mecanismo de defesa do Estado
mercantil.24 Harington expôs o importante
princípio de que a base da política é
econômica: que o poder segue a
propriedade. Ao debater o conceito feudal,
colocou ênfase especificamente sobre a
propriedade de terra. É claro que logo
perceberia o comportamento do sistema
estatal em relação à posse de terras com
exploração industrial, e nem ele nem Locke
perceberam a diferença entre a propriedade
que surge por lei e a propriedade criada pelo
trabalho — nem mesmo Smith percebeu isso
claramente, embora pareça ter tido
ocasionais vislumbres. De acordo com a
teoria de Harington sobre o determinismo
econômico, a realização da soberania
popular é uma questão simples. Uma vez que
o poder político procede da posse da terra,
uma simples difusão da propriedade da terra
é todo o necessário para garantir uma
distribuição de poder satisfatória.25 Se todos
possuírem terra, todos governam. “Se as
pessoas têm três quartos do território”, diz
Harington, “é claro que não pode haver uma
única pessoa ou nobreza capaz de disputar o
governo com eles. Nesse caso, portanto, a
menos que a violência exerça a mediação,
eles governam a si mesmos”.

Locke, escrevendo meio século depois,


quando a revolução de 1688 terminou,
preocupou-se mais particularmente com as
expropriações do Estado sobre outros modos
de propriedade. Estas haviam sido
freqüentes e vexatórias e sob os Stuarts
tomaram um rumo irresponsável. A idéia de
Locke, portanto, era insistir na doutrina da
propriedade sagrada a fim de colocar um
ponto final para sempre nessa situação. Por
isso, afirmou que a primeira tarefa do Estado
é manter a inviolabilidade absoluta dos
direitos gerais de propriedade, pois
transgredi-los seria contra sua função
primária. Assim, na visão de Locke, os
direitos de propriedade prevaleceram sobre
os da vida e da liberdade; e, se a situação
demandar, o Estado deve fazer sua escolha
em conformidade.26

Assim, enquanto os arquitetos americanos


concordavam “em princípio” com a filosofia
dos direitos naturais e a soberania popular,
que representava para eles uma espécie de
incentivo à auto-estima, sua interpretação
prática o deixava bastante paralisado. A
preocupação inicial não era estabelecer um
princípio consistente; seu interesse prático
nessa filosofia parou no ponto que já
observamos — da sua hipotética justificação
de um pseudo-individualismo econômico
inflexível e de um exercício de auto-
expressão política pelo eleitorado geral que
deveria ser organizado para ser, em todos os
aspectos essenciais, inútil. Nesse sentido,
eles seguiram o modelo dos expoentes e
praticantes ingleses dessa filosofia. O próprio
Locke, que vimos exaltar os direitos naturais
de propriedade acima dos da vida e da
liberdade, era igualmente discriminatório em
sua idéia de soberania popular. Ele não
acreditava no que chamou de “uma
democracia em massa”, e não contemplou
uma organização política que admitisse algo
desse tipo.27 O tipo de organização que ele
tinha em mente reflete-se na extraordinária
constituição que criou para a província real
da Carolina, que estabeleceu uma ordem
básica de servidão politicamente inarticulada.
Uma organização como essa representou o
melhor que o Estado mercantil britânico
poderia alcançar, em termos práticos, a favor
da doutrina da soberania popular.

Foi também a melhor coisa que a


contrapartida americana do Estado mercantil
britânico poderia fazer. A questão é que,
embora a filosofia dos direitos naturais e a
soberania popular ofereçam um conjunto de
princípios que uniram todos os interesses, e
que praticamente todos se uniram com o
objetivo de garantir a independência política,
não ofereceu um conjunto satisfatório de
princípios em que se fundou o novo Estado
americano. Quando a independência política
foi assegurada, a doutrina rigorosa da
Declaração foi suspensa, sobrevivendo
apenas uma simulação distorcida de seus
princípios. Os direitos à vida e à liberdade
foram reconhecidos por uma mera
formalidade constitucional aberta a
interpretações evisceradas, ou, por qualquer
motivo, considerados supérfluos, a uma
simples indiferença executiva; e qualquer
consideração dos direitos que trataram da
“busca da felicidade” foi reduzida a uma
aceitação total da doutrina de Locke dos
direitos preeminentes sobre a propriedade,
em que a propriedade, por lei, foi colocada no
mesmo nível que a propriedade que é fruto
do trabalho. No que diz respeito à soberania
popular, o novo Estado teve de ser
republicano na forma, já que nenhum outro
se adaptaria ao caráter geral do povo, e,
portanto, sua tarefa peculiar consistiu em
preservar o republicanismo real, mas apenas
na aparência. Para fazer isso, conquistou o
aparelho que vimos o Estado mercantil inglês
adotar diante de uma situação similar — o
sistema representativo ou parlamentar.
Melhorou, também, o modelo britânico,
adicionando três mecanismos auxiliares que
se mostraram eficazes ao longo do tempo.
Estes foram, em primeiro lugar, o mecanismo
de termo fixo, que regula a administração do
nosso sistema por meio de considerações
astronômicas, e não políticas — pelo
movimento da Terra ao redor do Sol e não
pela demanda política; em segundo lugar, o
mecanismo de revisão e interpretação
judicial, que, como já observamos, consiste
em um processo em que qualquer coisa pode
significar qualquer coisa; em terceiro lugar, o
mecanismo de exigir que os legisladores
residam no distrito que representam, o que
aumenta o valor da subordinação e
venalidade e, portanto, é o melhor
mecanismo para construir rapidamente um
imenso corpo de patrocínio. Pode-se
perceber imediatamente que todos esses
mecanismos tendem a funcionar
harmoniosamente em direção a uma grande
centralização do poder do Estado, e que seu
funcionamento nesta direção pode ser
acelerado indefinidamente com um esforço
mínimo.

Da mesma forma que se pode colocar uma


data para tal evento, a rendição em Yorktown
marca o desaparecimento súbito e completo
da doutrina da Declaração da consciência
política da América. O Sr. Jefferson residiu
em Paris como ministro da França de 1784 a
1789. Quando chegou o momento de seu
retorno à América, ele escreveu ao coronel
Humphreys que esperava em breve “me
aborrecer novamente, falando com meus
compatriotas, com seu espírito e idéias. Só
conheço os americanos do ano 1784. Eles
me dizem que são muito diferentes dos de
1789”. E assim foi. Ao chegar em Nova York
e retomar seu lugar na vida social do país,
ficou muito deprimido quando descobriu que
os princípios da Declaração foram
completamente integrados pelo conselho.
Ninguém falou de direitos naturais e
soberania popular; parecia que nunca se
tinha ouvido falar deles. Pelo contrário, todos
eles falaram da necessidade urgente de uma
forte autoridade coerciva central, capaz de
rever as incursões que poderíam incitar “o
espírito democrático” sobre “os homens de
princípio e propriedade”.28 O Sr. Jefferson
escreveu desanimado sobre o contraste entre
tudo isso e o que ele ouviu na França que
acabara de deixar “no primeiro ano de sua
revolução, com o fervor dos direitos naturais
e desejo de mudança”. No processo de
imbuir novamente o espírito e as idéias de
seus compatriotas, ele disse: “Não posso
descrever a surpresa e a mortificação que me
inundaram nas reuniões”. Claramente,
embora a Declaração possa ter sido a carta
da independência americana, não foi, de
modo algum, o novo Estado americano.
1 A renda econômica da propriedade da
Trinity Church, na cidade de Nova York, por
exemplo, seria tão alta quanto agora, mesmo
que os detentores nunca tenham trabalhado
nela. Os proprietários de terras “para
aumento” geralmente a deixam ociosa ou a
melhoram apenas na medida necessária para
se livrar dos impostos. O tipo de construção
conhecido como “contribuinte” é comum em
todos os lugares. Vinte e cinco anos atrás,
um membro da Comissão de Impostos da
Cidade de Nova York me disse que, em uma
estimativa cuidadosa, havia terra disponível
dentro dos limites da cidade para alimentar
quase toda a população, assumindo que
fosse arável e cultivada intensivamente.

2 A terra, usada como um termo técnico em


economia, inclui todos os recursos naturais: a
terra, o ar, a água, o sol, a madeira e os
minerais in situ, etc. A falta de compreensão
desse termo induziu seriamente alguns
escritores ao erro, particularmente o Conde
Tolstói.

3 Por conseguinte, na verdade não existe um


“problema do trabalho”, pois nenhuma
transgressão dos direitos de trabalho ou
capital pode ocorrer até que todos os
recursos naturais ao alcance tenham sido
planejados. O que chamamos de “problema
do desemprego” não é, de modo algum, um
problema, mas uma conseqüência direta do
monopólio criado pelo Estado.

4 Por razões bastante óbvias, eles não têm


lugar nos cursos convencionais seguidos em
nossas escolas e universidades.

5 A escola francesa de fisiocratas, liderada


por Quesnay, du Pont de Nemours, Turgot,
Gournay e le Trosne (geralmente
considerados como fundadores da ciência da
economia política) esboçou a idéia de
destruir esse sistema pelo confisco de renda
econômica; e essa idéia foi trabalhada em
detalhes alguns anos atrás, na América, por
Henry George. No entanto, nenhum desses
escritores parecia estar ciente do efeito que
seu plano produziría sobre o próprio Estado.
O coletivismo, por outro lado, propõe em
grande medida fortalecer e consolidar o
Estado por confisco do valor de uso e renda
da terra, eliminando a propriedade privada.

6 Se não se estivesse ciente do caráter tão


delicado desse tema, seria difícil de acreditar
que, há três anos, ninguém se atrevería a
escrever uma história da especulação de
terra na América. Em 1932, a empresa
Harpers publicou uma excelente obra do
professor Sakolski, sob o título barato e
frívolo de The Great American Land Bubble.
Não creio que se possa ter uma
compreensão competente de nossa história
ou do caráter do nosso povo sem um estudo
sério deste livro. Ele não pretende ser mais
do que uma abordagem preliminar para o
assunto, uma espécie de caminho para o
tratado exaustivo que alguém, de preferência
o próprio Professor Sakolski, deveria realizar;
mas é perfeito para seus fins. Estou fazendo
uso abundante dele nesta seção.

7 Considerar este valor de insígnia ou valor


de símbolo da terra tem sido algo recorrente.
O surgimento do Estado mercantil, que
suplantava o regime de status pelo regime de
contrato, abriu o caminho para que homens
de todos os tipos e condições ascendessem
a escada social e pertencessem à classe
exploradora; e os novos recrutas mostraram
uma inquietação para alcançá-la, mesmo que
o aumento dos valores de aluguel tenha
tornado esse desejo cada vez mais caro.

8 Se o nosso desenvolvimento geográfico


tivesse sido determinado de forma natural,
pelas exigências de uso em vez da
especulação, nossa fronteira ocidental ainda
não estaria perto do rio Missis-sippi. Rhode
Island é o membro mais densamente
povoado da União, mas pode-se dirigir de um
extremo a outro em uma de suas rodovias e
quase não ver sinal de ocupação humana.
Todas as discussões de “superpopulação” de
Malthus para baixo baseiam-se na premissa
de ocupação legal em vez de ocupação real
e, portanto, são totalmente incompetentes e
sem valor. O cálculo de Oppenheimer, feito
em 1912, ao qual já me referi, mostra que, se
a ocupação legal fosse abolida, todas as
famílias de cinco pessoas possuiríam cerca
de vinte hectares de terra e ainda deixariam
cerca de dois terços do planeta
desocupados. O exame de Henry George
sobre a teoria da população de Malthus é
bem conhecido, ou, pelo menos, é de fácil
alcance. Vale a pena mencionar que os
valores de aluguel exagerados são
responsáveis pelos problemas perenes do
agricultor americano. Curiosamente, esse
fato foi descrito no relatório de um mapa
agrícola, publicado pelo Departamento de
Agricultura há cerca de cinqüenta anos.

9 O Sr. Chinard, professor na Faculdade de


Literatura de Johns Hopkins, publicou
recentemente uma tradução de um pequeno
livro, quase não mais do que um panfleto,
escrito em 1686 pelo refugiado huguenote
Durand, em que descreveu a Virgínia
segundo a informação de seus companheiros
exilados. Parece que o leitor moderno
interpreta ser muito favorável à Virgínia, e se
diverte lendo que os proprietários que haviam
persuadido Durand a ter um negócio
pensaram que ele não tinham conseguido e
ficaram muito chateados. O livro é muito
interessante; vale a pena adquiri-lo.

10 Foi a base da observação de Chevalier de


que os americanos tinham “a moral de um
exército em marcha” e seus comentários
igualmente notáveis sobre a regra suprema
da conveniência na América.

11 Para uma discussão admirável sobre


essas medidas e suas conseqüências, cf.
Beard, op. cit., vol. I, pp. 191-220.
12 A princípio, isso foi feito antes: por
exemplo, algumas das primeiras concessões
de terras reais reservaram direitos minerais e
direitos de madeira à Coroa. O Estado
holandês reservou o direito acasacos e
outros materiais de pele. Na verdade, no
entanto, essas restrições não constituíam
muita coisa, e não houve reclamação geral,
pois esses recursos haviam sido pouco
explorados.

13 Havia algumas exceções, mas não


muitas, principalmente no caso das
propriedades de Wadsworth no oeste de
Nova York, que foram mantidas como
investimento e locações. Em uma, pelo
menos, das operações do General
Washington, parece que tinha esse método
em vista. Em 1773, ele publicou um anúncio
em um jornal de Baltimore, afirmando ter
obtido uma concessão de cerca de vinte mil
hectares nos rios Ohio e Kanawha, que
ofereceu aos colonos para alugar.
14 Sakolski, op. cit., cap. I.

15 É estranho que entre os nomes mais


ilustres da época, quase os únicos sem
vínculos com invasores ou trabalhadores da
terra, estejam dois grandes antagonistas,
Thomas Jefferson e Alexan-der Hamilton. O
Sr. Jefferson detestava se beneficiar de
qualquer forma dos meios políticos; ele
nunca foi além de patentear suas inúmeras
invenções. Hamilton não se importava com
dinheiro. Suas medidas enriqueceram a
muitos, mas ele nunca pediu nada em troca.
Em geral, parece que tinha pouco escrúpulo,
ainda que, em meio à onda da ganância e da
maldade que o impulsionou tanto, ele tenha
caminhado dignamente. Mesmo suas tarifas
profissionais como advogado eram
absurdamente pequenas, e ele permaneceu
bastante pobre por toda a vida.

16 As exportações coloniais de matéria-prima


foram elaboradas na Inglaterra e
reexportadas para as colônias a preços
elevados, convertendo desse modo a política
em um sistema efetivo sobre os colonos.

17 Beard, op. cit., v. I, p. 195, cita a


observação típica na Inglaterra na época, que
setenta e três membros do Parlamento que
impuseram essa tarifa estavam interessados
em plantações de açúcar das índias
Ocidentais.

18 Deve-se observar, no entanto, que o livre


comércio é impraticável por tanto tempo,
porque a terra está fora da livre concorrência
com a indústria no mercado de trabalho.
Debates das políticas rivais sobre livre
comércio e proteção sempre deixam essa
limitação fora de questão, portanto, são
insignificantes. Holanda e Inglaterra,
geralmente considerados países de livre
comércio, nunca o foram de fato; eles só
tinham tanta liberdade de comércio na
medida em que precisavam disso em
situações econômicas especiais. Os livre
comerciantes americanos do século passado,
como Sumner e Godkin, não eram realmente
livres comerciantes: eles nunca quiseram ou
foram capazes de acolher a questão crucial
porque, se o livre comércio era bom, as
condições do trabalho não eram melhores na
Inglaterra de livre comércio do que, por
exemplo, na Alemanha protecionista — eram,
de fato, piores. A resposta é, claro, que a
Inglaterra não tinha território desocupado
para absorver mão-de-obra deslocada ou
para manter uma competitividade contínua
com a indústria do trabalho.

19 A imensa quantidade de trabalho


envolvido em fazer a revolução e mantê-la
não é exatamente algo corrente na história
americana, mas começou a ser bem
compreendida, e os vários mitos que a
rodeiam foram explorados pelas
investigações de historiadores
desinteressados.

20 A influência desta visão sobre o


surgimento do nacionalismo e a manutenção
do espírito nacional no mundo moderno,
agora que o Estado mercantil superou de
forma geral o feudal, percebe-se
imediatamente. Não creio que tenha sido
minuciosamente discutido, ou que o
sentimento de patriotismo tenha sido
examinado com cuidado em busca desse
ponto de vista, embora se possa supor que
essa tarefa seria extremamente útil.

21 Mesmo agora, a cooperação não parece


ter chegado muito longe em círculos
profissionais ingleses e americanos. O último
expoente inglês do Estado, o Professor Laski,
ressalta o mesmo conjunto de distinções
elaboradas entre o Estado e o oficialismo que
se buscaria se estivesse escrevendo há
cento e cinqüenta anos. Ele parece
considerar o Estado essencialmente uma
instituição social, embora suas observações
sobre este ponto não sejam claras. Uma vez
que suas conclusões tendem para o
coletivismo, no entanto, a inferência parece
admissível.
22 Como quando um partido político deixa o
cargo, e outro o assume.

23 Na verdade, a única modificação que se


pode prever quando necessário é que a
menor unidade deve reservar a força de
tributação estritamente para si mesma. As
unidades maiores não devem ter qualquer
poder de tributação direta ou indireta, mas
devem apresentar seus requisitos para os
municípios, a serem cumpridas por cota. Isso
reduziría as organizações das unidades
maiores em sua mínima expressão e relutaria
vigorosamente em assumir quaisquer
funções além das que lhes foram atribuídas,
o que, sob um regime estritamente
governamental, seriam muito poucas, e, para
a unidade federal, seriam escassas. É
interessante imaginar a supressão de todas
as atividades burocráticas em Washington
hoje que têm relação com a manutenção e
administração dos meios políticos e ver o
pouco que restaria. Se o Estado fosse
substituído pelo governo, provavelmente
todas as atividades federais se alojariam no
prédio do Senado — e possivelmente
sobraria espaço.

24 Harington publicou o Oceana em 1656. Os


tratados políticos de Locke foram publicados
em 1690. O inquérito de Smith sobre a
natureza e as causas da riqueza das nações
surgiu em 1776.

25 Esta teoria, com o resultado de que a


democracia é essencialmente mais
econômica que política, é extremamente
moderna. Os fisiocratas na França e Henry
George, na América, modificaram as
propostas práticas de Harington, mostrando
que os mesmos resultados poderíam ser
obtidos pelo método mais conveniente de
confisco local de renda econômica.

26 Locke afirmou que, em tempo de guerra,


cabia ao Estado recrutar as vidas e as
liberdades de seus súditos, mas não a sua
propriedade. E interessante observar a
persistência desta visão na prática do Estado
mercantil no momento presente. Na última
grande colisão de interesses concorrentes
entre os Estados mercantes, há vinte anos, o
Estado em todo o mundo interveio
indiscriminadamente sobre os direitos da vida
e da liberdade, mas foi cauteloso em relação
aos direitos da propriedade. Uma vez que o
princípio do absolutismo foi introduzido em
nossa constituição pela reforma dos
impostos, fizeram-se várias tentativas para
reduzir os direitos da propriedade, em tempo
de guerra, a um nível aproximadamente igual
aos da vida e da liberdade. Porém, até agora,
sem sucesso.

27 Vale a pena passar pela literatura do final


do século XVII e início do século XVIII para
ver como as palavras “democracia” e
“democrata” aparecem exclusivamente como
termos de contestação e repreensão. Eles
serviram esse propósito por muito tempo
tanto na Inglaterra quanto na América, como
os termos “bolchevismo” e “bolchevista”
fazem agora. Eles subseqüentemente se
tornaram o que Bentham chamou de “termos
impostores”, em nome da atual ordem
econômica e política, como sinônimo de um
republicanismo puramente nominal. Agora
são usados regularmente desta maneira para
descrever o sistema político dos Estados
Unidos, mesmo por pessoas que deveríam
conhecê-lo melhor — mesmo, curiosamente,
por pessoas como Bertrand Russell e Sr.
Laski, que têm pouca simpatia pela ordem
existente. Às vezes, perguntamo--nos o que
os nossos antepassados revolucionários
fariam se pudessem ouvir uma acusação
política arrogante por terem fundado “a
grande e gloriosa democracia do Ocidente”.

28 Essa curiosa distribuição de atributos


pertence ao general Henry Knox, secretário
de guerra de Washington e especulador ativo
de terra. Ele usou isso em uma carta a
Washington, na ocasião da Rebelião de
Shays, em 1786, na qual suplicava criar um
forte exército federal. Na literatura do
período, é interessante observar como se
associa regularmente uma superioridade
moral à posse de propriedade.
CAPÍTULO V
I

Todo mundo sabe que a persistência de uma


instituição se deve unicamente à opinião que
prevalece em relação a ela, ou à forma como
os homens habitualmente pensam sobre ela.
Enquanto — e apenas enquanto — esses
termos são favoráveis, a instituição vive e
mantém seu poder; e quando, por qualquer
motivo, os homens deixam de pensar desse
modo, a instituição enfraquece e torna-se
inerte. Tempos atrás, foi a concepção sobre o
lugar que o homem ocupa na natureza que
atribuiu ao cristianismo organizado o poder
suficiente para controlar a consciência dos
homens e direcionar sua conduta. E esse
poder diminuiu até quase desaparecer pois
os homens, em geral, deixaram de pensar
desse modo. A persistência do nosso sistema
econômico instável e perverso não se deve
ao poder do capital acumulado, à força da
propaganda ou a qualquer força ou
combinação de forças geralmente apontadas
como causa. Deve-se apenas à forma como
os homens pensam sobre o direito ao
trabalho — eles o consideram algo dado. A
única maneira de pensar sobre isso é
pressupor que a oportunidade de aplicar o
trabalho e o capital aos recursos naturais
para a produção de riquezas não é, em
nenhum sentido, um direito, mas uma
concessão.1 Isso é o que mantém nosso
sistema vivo. Quando os homens deixarem
de pensar dessa maneira, o sistema
desaparecerá, e não antes disso.

Parece bastante claro que as mudanças no


modo de pensar que afetam uma instituição
não acontecem diretamente. Elas ocorrem de
maneiras obscuras e tortuosas, auxiliadas
por uma série de circunstâncias que, à
primeira vista, não pareciam relacionadas, e
seu efeito erosivo ou solvente é, portanto,
bastante imprevisível. Um impulso direto para
efetuar essas mudanças não leva a lugar
algum ou atrasa o processo, na maioria das
vezes. Esses são o resultado do trabalho
dessas agências imperturbáveis e sem
impedimentos a que o príncipe de Bismarck
respeitou tanto — ele as chamou de
imponderabilia — que qualquer esforço para
ignorá--los ou afastá-los violentamente irá, a
longo prazo, retornar para malograr seus
frutos.

É isso que tentamos fazer neste rápido


estudo sobre o progresso histórico de certas
idéias: encontrar a origem da atitude mental,
do modo de pensar que praticamente todos
têm sobre o Estado, e então considerar as
conclusões a que esse fenômeno psíquico
nos conduz. Em vez de reconhecer o Estado
como “o inimigo comum de todo o homem
trabalhador e de bem”, o indivíduo, com raras
exceções, o considera não só uma entidade
final e indispensável, mas também, e
principalmente, benéfica. O homem-massa,
sem saber nada da sua história, define sua
predisposição e seu caráter como o de um
ser social e não anti-social; e nessa crença
ele está disposto a colocar à sua disposição
um crédito indefinido de desones-tidades,
mentiras e maus julgamentos para que seus
administradores possam usá-los a bel-prazer.
Em vez de mostrar desgosto e ressentimento
diante da absorção progressiva do poder
social pelo Estado, como seria o esperado
diante das atividades de organização
criminosa profissional, o homem o apóia e o
glorifica na crença de ser, de alguma forma,
identificado com o Estado. Portanto, ao
concordar com sua glorificação, passa a ser
parte de algo muito maior, engrandecendo-se
a si mesmo. O professor Ortega y Gasset
analisa esse estado mental de modo muito

acertado. O homem-massa, diz ele, ao


confrontar o fenômeno do Estado,

“o vê, o admira, sabe que está ali. [...] Além


disso, o homem das massas vê no Estado
um poder anônimo, e, como ele próprio se
sente anônimo também, acredita que o
Estado lhe pertence. Suponhamos que na
vida pública de um país surjam dificuldades,
conflitos ou problemas. O homem das
massas pedirá ao Estado que intervenha
imediatamente e encontre uma solução
urgente fazendo uso dos seus meios e
recursos inesgotáveis. [...] Quando a massa
sofre um infortúnio, ou simplesmente deseja
algo com fervor, agarra-se à possibilidade de
ter algo seguro e obtê-lo sem esforço, luta,
dúvida ou risco, simplesmente pressionando
um botão e colocando a grande máquina do
Estado em movimento”.

É a origem dessa atitude, desse estado de


espírito e das conclusões inevitáveis que
tentamos esclarecer nesse estudo. Talvez
essas conclusões possam ser brevemente
avançadas aqui para que o leitor que, por
qualquer motivo, não queira se entreter,
possa tomar nota e fechar o livro neste
momento.
A manutenção inquestionável, determinada e
mesmo hostil da atitude que o professor
Ortega y Gasset descreve de modo
admirável, é, obviamente, a vida e a força do
Estado; e não há dúvida de que também se
trata de algo tão habitual e difundido que se
pode chamá-lo livremente de universal, uma
atitude que nada nem ninguém pode mudar
ou esperar esclarecer. Essa atitude só pode
ser enfraquecida no curso de uma
experiência inesgotável, um caminho
marcado por calamidades e repetidos
desastres. Quando o predomínio dessa
atitude em qualquer civilização torna-se a
norma, como aconteceu na América, tudo o
que pode ser feito é deixar que siga seu
curso e cumpra seu objetivo. O filósofo da
história pode se contentar em apontar e
elucidar claramente suas conseqüências,
como fez o professor Ortega y Gasset,
consciente de que, depois disso, não há mais
nada que se possa fazer.
“O resultado dessa tendência”, diz ele, “será
fatal. A ação social espontânea será rompida
sucessivamente pela intervenção do Estado,
nenhuma nova semente será capaz de
frutificar.2 A sociedade terá de viver para o
Estado, o homem, para a máquina
governamental. No fim de tudo é apenas uma
máquina, cuja existência e manutenção
dependem dos suportes vitais que os
cercam,3 o Estado, depois de sugar a própria
essência da sociedade, permanecerá sem
sangue, um esqueleto, morto e coberto pela
ferrugem da máquina, que é uma morte mais
assustadora do que a morte de um
organismo vivo. Este foi o destino lamentável
da civilização antiga”.

II

A revolução de 1776-1781 transformou as


treze províncias, praticamente no mesmo
lugar em que nasceram, em treze unidades
políticas autônomas, completamente
independentes, e assim continuaram até
1789, formalmente unidas, como uma
espécie de liga, pelos artigos da
Confederação. Para nossos propósitos, o
ponto a ser observado sobre esse período de
oito anos, 1781-1789, é que a administração
da política não foi centralizada na federação,
mas nas várias unidades que formaram a
federação. A assembléia federal, ou
Congresso, não era mais que um corpo
deliberativo de delegados eleitos pelas
unidades autônomas. Não tinha poder de
fixar impostos nem poder coercivo. Não podia
gerir fundos para realizar atividades
favoráveis à federação, mesmo em caso de
guerra. Tudo o que podia fazer era alocar a
soma necessária, esperando que cada
unidade atinja sua quota. Não havia
nenhuma autoridade federal coerciva sobre
essas questões, ou sobre qualquer assunto:
a soberania de cada uma das treze unidades
federadas estava completa.
Assim, o corpo central dessa associação livre
de soberania não tinha muito a dizer sobre a
distribuição dos meios políticos. Sua
autoridade estava nas diferentes unidades
que a compunham. Cada unidade tinha
jurisdição absoluta sobre seu território,
dividia-a conforme achasse viável e poderia
manter o sistema de posse de terra que
escolhesse.4 Cada unidade impôs suas
próprias regras de comércio. Cada uma
recolheu as próprias taxas, uma contra a
outra, em nome dos próprios beneficiários
escolhidos para esse fim. Cada um tinha sua
própria moeda, e a manipulava à vontade,
para beneficiar indivíduos ou grupos
econômicos com poder para acessar a
legislatura local. Cada um organizou seu
próprio sistema de recompensas,
concessões, subsídios e franquias, e o fez
com a intenção de promover qualquer
interesse privado. Em suma, não se tratava
de um mecanismo político nacional.
A federação não era um Estado, nem de
longe. Não era um único Estado, mas treze.
Em cada uma dessas unidades, portanto,
assim que a guerra acabou, começou
imediatamente uma disputa geral para obter
acesso aos meios políticos. Nunca se deve
esquecer que em cada uma dessas unidades
a sociedade era fluida: o acesso estava ao
alcance de qualquer pessoa que tivesse a
sagacidade e a resolução necessárias para
alcançá-lo. Conseqüente-mente, os
interesses econômicos, um após o outro,
exerceram pressão e influência sobre as
legislaturas locais, até que o poder
econômico de cada unidade estivesse contra
todo mundo. O princípio da “proteção”, que já
vimos e analisamos, foi levado a terrenos
comparáveis com o comércio internacional
hoje, e pelos mesmos motivos de exploração
e assalto do consumidor doméstico. O Sr.
Beard observa que a legislatura de Nova
York, por exemplo, exerceu tal pressão sobre
o princípio que governa a tarifação que
chegou ao ponto de cobrar impostos sobre
lenha trazida de Connecticut e as couves de
Nova Jersey — um paralelo bastante próximo
ao octroi, tão fácil de se encontrar nas portas
das cidades francesas.

O monopólio primário — isto é, o monopólio


do aluguel econômico —, fundamental para
todos os outros, foi o mais procurado.5 A
base territorial de cada unidade agora incluiu
as vastas propriedades confiscadas pelos
britânicos, e a proibição estabelecida pelo
Estado britânico de 1763 contra a
apropriação de terras ocidentais foi
suprimida. O professor Sakolski observa com
ironia que “a antiga ânsia por terra que os
colonos herdaram de seus antepassados
europeus não diminuiu pelo espírito
democrático dos pais da revolução”. E claro
que não. As transferências de terras pelos
legisladores locais eram tão regulares como
em tempos anteriores sob a dinastia Stuart e
os governadores coloniais, e a obsessão de
trabalhar a terra andou de mãos dadas com a
obsessão de conquistar a terra.6 Entre os
homens mais interessados nessas

atividades estavam os que vimos


identificados com elas na época anterior à
revolução, como os dois Morrises, Knox,
Pickering, James Wilson e Patrick Henry; e
com seus nomes aparecem os de Duer,
Bingham, McKean, Willing, Greenleaf,
Nicholson, Aaron Burr, Low, Macomb,
Wadsworth, Remsen, Constable, Pierrepont e
outros que agora não são tão conhecidos.

Certamente, não será preciso seguir o rastro


de esforço repulsivo em busca de outros
meios políticos. O que dissemos sobre as
tarifas e monopólio de valores de aluguel é,
sem dúvida, suficiente para ilustrar de
maneira satisfatória o espírito e a atitude
mental em relação ao Estado durante os oito
anos que se seguiram imediatamente à
revolução. Toda a história da briga insensata
para conseguir vantagem econômica por
parte do Estado não é muito animadora, e
nem nos interessa. Isso pode ser lido em
detalhes em outras fontes. O que realmente
nos interessa é observar que, durante os oito
anos da federação, os princípios de governo
estabelecidos por Paine e a Declaração
continuaram em absoluta inatividade. Não se
tratava apenas de toda a questão da filosofia
dos direitos naturais e a soberania

popular,7 como quando o Sr. Jefferson


lamentou o seu desaparecimento, mas a
idéia de governo como instituição social
baseada nessa filosofia também foi ignorada.
Ninguém pensou em uma organização
política instituída “para garantir esses
direitos” por processos de intervenção
puramente negativos, instituídos, isto é, com
o objetivo único de manter a “liberdade e
segurança”. A história do período de oito
anos da federação não mostra vestígio algum
de qualquer idéia de organização política
diferente da idéia do Estado. Ninguém tinha
outra idéia sobre esta instituição, além de
uma organização dos meios políticos, um
motor todo-poderoso que sempre estaria
pronto e disponível para a promoção
irresistível desse ou de outro interesse
econômico e do irremediável desserviço aos
outros; que, por sua vez, por qualquer
estratégia ou curso de ação, talvez obtivesse
o domínio de suas máquinas.

III

Pode-se repetir que, enquanto o poder do


Estado estava bem centralizado sob a
federação, não estava centralizado na
federação, mas na unidade federada. Por
várias razões, algumas muito plausíveis,
muitos cidadãos importantes, especialmente
nas unidades mais ao norte, consideravam
essa dis

tribuição de poder insatisfatória; e um grupo


considerável e compacto de interesses
econômicos que buscava se beneficiar da
redistribuição naturalmente aproveitou esses
motivos. É bastante certo que a insatisfação
com a ordem em vigor não era geral, pois,
quando a redistribuição ocorreu, em 1789, foi
efetuada com grande dificuldade e somente
através de um golpe de Estado, organizado
por métodos que, se empregados em
qualquer outro campo que não fosse a
política, seria imediatamente considerado
não apenas ousado, mas inescrupuloso e
desonroso.

Para simplificar, os interesses econômicos


americanos se partiram em duas grandes
divisões, e os interesses especiais de cada
uma se uniram em uma causa comum com o
objetivo de capturar o controle dos meios
políticos. Uma divisão abrangeu os
interesses especulativos, industriais-
comerciais e de credores, com seus aliados
naturais do setor jurídico, do púlpito e da
imprensa. A outra incluía principalmente os
agricultores e os artesãos e a classe dos
devedores em geral. Desde o primeiro
momento essas duas grandes divisões se
chocaram bruscamente por todas as partes
em várias unidades; a colisão mais séria
ocorreu nos termos da constituição de
Massachusetts de 1780.8 O Estado em cada
uma das treze unidades era um Estado-
classe, como todos os Estados conhecidos
pela história; e assegurou-se de incluir em
suas funções a possibilidade de exploração
econômica de uma classe por outra.

As condições gerais nos artigos da


Confederação eram bastante boas. O povo
se havia recuperado dos transtornos e
misérias da guerra, e havia a perspectiva de
que a idéia de Jefferson de uma organização
política, que deveria ser nacional em
assuntos estrangeiros e externa em assuntos
domésticos, podia ser considerada praticável.
Alguns ajustes com os artigos pareciam
necessários — na verdade, era o esperado
— mas nada que pudesse transformar ou
prejudicar seriamente o esquema geral. O
principal problema foi com a debilidade da
federação em vista da chance de guerra e
em relação a dívidas a credores estrangeiros.
Os artigos, no entanto, já previram a sua
própria melhoria, e verificou-se que tais
alterações que a circunstância exigia eram
realmente viáveis. De fato, quando as
primeiras tendências revisionistas
apareceram, como aconteceu imediatamente,
parece que nada mais foi contemplado.

Mas o esquema geral, em si, era de todo


questionável perante os interesses
agrupados na primeira grande divisão. Os
motivos de sua insatisfação são mais que
óbvios. Quando se tem em mente a grande
perspectiva continental, é preciso usar pouca
imaginação para perceber que o esquema
nacional era, de longe, mais conveniente a
esses interesses, porque permitia uma
centralização maior do controle sobre os
meios políticos. Tirando o privilégio de um
único órgão central controlador de tarifas em
vez de doze, por exemplo, qualquer industrial
podería ver a grande vantagem de poder
ampliar suas operações de exploração em
uma área nacional de livre comércio,
protegida por um sistema de tarifas — quanto
mais acessível a centralização, maior a área
a ser explorada. Qualquer especulador de
valores de aluguel não tardaria a ver a
vantagem de trazer essa oportunidade em
um sistema centralizado.9 Qualquer
especulador de terrenos desvalorizados seria
totalmente a favor de um sistema que lhe
permitisse utilizar os meios políticos para
recuperar o seu valor nominal.10 Nenhum
armador ou comerciante estrangeiro
demoraria muito para ver que as vantagens
estavam precisamente do lado de um Estado
nacional que, organizado da maneira correta,
poderia ceder o uso dos meios políticos por
meio de subsídios ou apoio a empresas
lucrativas, mas de reputação duvidosa, por
meio de “representações diplomáticas” ou
meras represálias.
Os agricultores e a classe devedora em
geral, por outro lado, não estavam
interessados nessas considerações, mas
eram totalmente a favor de deixar as coisas
permanecerem como estavam, na maioria
das vezes. A preponderância nas legislaturas
locais deu-lhes um controle satisfatório dos
meios políticos, o que podiam usar, e
usavam, em detrimento da classe de
credores, sem medo de perdê-la. Eles
concordaram com a modificação dos artigos,
na medida em que não se afastassem muito
desses objetivos, embora carecessem do
interesse de criar uma réplica nacional 11 do
Estado mercantil britânico, o que eles
perceberam ser precisamente o que as
classes agrupadas na outra grande divisão
desejavam. Essas classes visavam introduzir
o sistema britânico de economia, política e
controle judicial em escala nacional, e os
interesses agrupados na segunda divisão
temiam que, neste caso, a exploração
econômica fosse dirigida contra eles. O
exemplo poderia ser obtido com a recente
mudança ocorrida em Massachusetts após a
adoção da constituição local de John Adams
de 1780. Naturalmente, eles não se
preocupavam em ver como isso foi realizado
em escala nacional e, portanto, eram contra
qualquer tentativa de fazer desaparecer os
artigos. Quando Hamilton, em 1780, opôs-se
aos artigos na forma como foram arranjados
e propôs a convocação de uma convenção
constitucional, viraram-lhe as costas, assim
como fizeram com a carta de Washington aos
governadores locais três anos depois, em
que advertiu-se sobre a necessidade de uma
forte autoridade central coerciva.

Finalmente, convocou-se uma convenção


constitucional para revisar os artigos com o
único objetivo de, como Hamilton disse
astutamente, “adaptá-los às exigências da
nação”, entendendo-se que as treze
unidades deveríam concordar com as
emendas antes de elas entrarem em vigor
para validar o método de emenda
estabelecido nos artigos. Nenhum desses
objetivos se cumpriu. A convenção foi
constituída inteiramente por homens que
representam os interesses econômicos da
primeira divisão. A grande maioria,
possivelmente quatro quintos deles, era de
credores públicos; um terço era de
especuladores de terra; alguns eram agiotas;
um quinto era de industriais, comerciantes,
navegadores... E muitos deles advogados.
Eles planejaram e executaram um golpe de
Estado, simplesmente jogando os artigos da
Confederação no lixo e elaborando uma
constituição de novo, com a disposição
audaciosa de que deveria entrar em vigor ao
ser ratificada por nove unidades, em vez de
treze. Além disso, com a mesma audácia,
determinaram que o documento não fosse
apresentado ao Congresso nem às
legislaturas locais, mas que deveria ir direto
para uma votação popular.12
Os métodos sem escrúpulos empregados
para garantir a ratificação não devem ser
abordados aqui.13 Não nos interessa a
qualidade moral das ações que criaram a
constituição, mas apenas a demonstração de
sua instrumentalidade em estimular uma
idéia geral do Estado e suas funções e uma
atitude geral correspondente em relação ao
Estado. Observamos, portanto, que, para
garantir a ratificação das nove unidades
necessárias, o documento deveria cumprir
certos requisitos muito precisos e rigorosos.
A estrutura política que ele contemplava tinha
de ser republicana, mas capaz de resistir ao
que Gerry chamou com afeto de “o excesso
de democracia” e o que Randolph definiu
como “excessos e tolices”. A tarefa dos
delegados era precisamente análoga à dos
primeiros arquitetos que projetaram a
estrutura do Estado mercantil britânico, com
seu sistema de economia, política e controle
judicial. Eles tinham de planejar algo que
tivesse a aparência de soberania popular,
apesar de não ser real. Madison definiu sua
tarefa explicitamente ao dizer que o propósito
da convenção era “garantir o bem público e
os direitos privados contra o perigo dessa
facção [isto é, uma facção democrática] e, ao
mesmo tempo, preservar o espírito e a forma
do governo popular”.

Nessas circunstâncias, a tarefa foi árdua; e a


constituição foi criada como deveria ser:
como um documento de compromisso, ou,
como o Sr. Beard define com precisão, “um
mosaico de segundas chances”, que não
satisfazia nenhuma das partes opostas. Não
era forte e definido o suficiente em qualquer
direção para agradar a qualquer um. Em
particular, os interesses que compõem a
primeira divisão, liderados por Alexander
Hamilton, viram que não bastava colocá-los
numa posição permanente de poder para
explorar continuamente os grupos da
segunda divisão. Para fazer isso —
estabelecer o grau de centralização
necessário para os seus propósitos —
deveriam definir certas linhas de gestão
administrativa que, uma vez estabelecidas,
seriam permanentes. A outra tarefa, portanto,
segundo Madison, era “administrar” a
constituição de um modo tão absoluto que
asseguraria a supremacia econômica, por
meio do livre uso dos meios políticos nas
mãos dos grupos que constituíam a primeira
divisão.

Isso foi feito em acordo. Durante os primeiros


dez anos de existência, a constituição
permaneceu nas mãos de seus criadores
para a administração em direções mais
favoráveis aos seus interesses. Para uma
compreensão melhor das tendências
econômicas do novo sistema, não se pode
enfatizar demais que, durante esses dez
anos críticos, “o mecanismo do poder
econômico e político foi dirigido
principalmente pelos homens que o
conceberam e estabeleceram”.14
Washington, que tinha sido o moderador da
convenção, foi eleito presidente. Quase
metade do Senado era composta de homens
que haviam sido delegados, e a Câmara dos
Deputados foi em grande parte formada por
homens que tinham relação com a redação
ou a ratificação da constituição. Hamilton,
Randolph e Knox, que estavam bastante
envolvidos na divulgação do documento,
ocuparam três dos quatro cargos no
gabinete; e todos os tribunais federais, sem
exceção, foram ocupados por homens que
tiveram participação na redação, na
ratificação, ou em ambas. De todas as
medidas legislativas promulgadas para
implementar a nova constituição, a melhor
medida para garantir um progresso rápido e
constante na centralização do poder político
foi a Lei do Judiciário de 1789.15 Esta
medida criou um Supremo Tribunal Federal
de seis membros (posteriormente ampliado
para nove) e um Tribunal Distrital Federal em
cada Estado, com seu próprio pessoal e um
aparelho completo para fazer cumprir seus
decretos. A Lei estabeleceu o controle federal
sobre a legislação estatal pelo dispositivo já
familiar de “interpretação”, em que a
Suprema Corte pode anular ações estatais
legislativas ou judiciais que, por qualquer
razão, considere inconstitucional. Uma das
características da Lei que vale a pena
mencionar em vista dos nossos propósitos é
que ela permitiu que esses juizes federais
fossem nomeados sem passar por eleições e
para um cargo vitalício, o que os distanciou
ostensivamente da doutrina da soberania
popular.

O primeiro juiz do Supremo era John Jay, “o


culto e gentil Jay”, como Beveridge o chama
em sua excelente biografia de Marshall.
Homem de extrema integridade, ele esteve
longe de fazer qualquer coisa a favor do
princípio aceito de que est boni judieis
ampliare jurisdictionem. Ellsworth, que veio
depois, também não fez nada a esse
respeito. A sucessão, no entanto, depois que
Jay se recusou a ser reeleito, caiu para John
Marshall, que, além do controle estabelecido
pela Lei Judicial sobre a autoridade
legislativa e judicial do Estado,
arbitrariamente ampliou o controle sobre os
Poderes Legislativo e Executivo da
autoridade federal,16 efetivamente
centralizando o poder e de acordo com os
diferentes interesses envolvidos na formação
da constituição.17

A partir desse resumo que qualquer um pode


expandir e particularizar, devem ficar claros
quais tipos de circunstâncias foram os que
enraizaram uma idéia concreta de Estado na
consciência geral. Essa idéia foi apresentada
tanto no período constitucional como nos dois
períodos examinados anteriormente — o
período colonial e os oito anos após a
revolução. Em nenhum momento da história
do período constitucional encontramos a
menor sugestão da doutrina dos direitos
naturais na Declaração; e sua doutrina da
soberania popular não só continua em
suspenso, como é anulada de forma
constitucional. Em nenhum lugar
encontramos vestígio da teoria do governo
presente na Declaração — pelo contrário, ela
parece repudiada. O novo mecanismo
político foi uma réplica fiel do antigo modelo
britânico desativado, porém melhorado e
fortalecido por uma questão de eficiência,
apresentando atração maior no momento de
apoderar-se dele e exercer controle.
Conseqüentemente, é nesse contexto que
encontramos, mais firmemente implantada do
que nunca, a mesma idéia geral do Estado
que temos observado até agora — a idéia da
organização de meios políticos, uma agência
irresponsável e poderosa sempre pronta para
funcionar ao serviço dos interesses
econômicos de alguns contra outros.

IV

Desta idéia surgiu o que agora conhecemos


como o “sistema partidário” da organização
política, em vigor desde então. Nossos
propósitos não exigem que examinemos sua
história em detalhes em busca de evidências
que nos falem sobre sua origem bipartite,
uma vez que isso é algo conhecido. Em seu
segundo mandato, o Sr. Jefferson descobriu
a tendência para o bipartidarismo18 e ficou
consternado e perplexo ao mesmo tempo. Já
apontei19 sua curiosa incapacidade de
entender como o poder coeso da pilhagem
pública é direcionado ao bipartidarismo
político. Em 1823, encontrando os que se
proclamavam republicanos em favor da
política de planejamento federalista central,
referia-se a eles de uma forma bastante
desconcertante como “pseudo-republicanos,
mas verdadeiros federalis-tas”. Porém,
naturalmente, qualquer republicano que
tenha visto uma oportunidade de se
beneficiar com os meios políticos reteria o
nome e, ao mesmo tempo, resistiria a
qualquer tendência dentro do partido que
prejudicasse o sistema geral que tinha essa
perspectiva como meta.20 Dessa forma,
surge o bipartidarismo. As designações do
partido tornam-se puramente nominais, os
assuntos entre os partidos tornam-se cada
vez mais triviais e ambos são abertamente
mantidos com o objetivo de não examinar a
identidade dos interesses de ambos os
partidos.

Foi assim que o sistema de partido tornou-se


imediatamente um elaborado sistema de
fetiches, que, para serem críveis o suficiente,
foram modelados em torno da constituição e
colocados em exibição como “princípios
constitucionais”. A história de todo o período
pós-constitucional, de 1789 até hoje, é uma
demonstração instrutiva e cínica do destino
desses fetiches quando enfrentam o único
princípio real de ação partidária — o princípio
de manter o livre acesso aos meios políticos.
Quando o fetiche de “interpretação estrita”,
por exemplo, entrou em confronto com esse
princípio, sempre se preferiu mudar de lado e
descartar o princípio. O partido anti-
federalista tomou posse em 1800 como
partido da interpretação estrita; no entanto,
uma vez em funcionamento, malbarateou a
constituição em nome dos interesses
econômicos especiais que representava.21
Os federalistas eram nominalmente a favor
da interpretação livre, no entanto, se
opunham a todas as medidas que não eram
apoiadas por uma forte interpretação por
parte da oposição — “o embargo”, a tarifa
protetora e o banco nacional. Eram, como
vimos, nacionalistas constitucionais do tipo
mais extremo. No entanto, no seu centro e
fortaleza, Nova Inglaterra, eles mantiveram a
ameaça de secessão por todo o país durante
período da chamada “guerra de Madison”, a
guerra de 1812, que foi, de fato, uma
aventura puramente imperialista após a
anexação do território da Flórida e do
Canadá, em nome do rígido controle agrário
dos meios políticos. Mas quando, em 1861,
os interesses do Sul fizeram a mesma
ameaça, eles voltaram a ser nacionalistas
fervorosos. Essas amostras de fetichismo
puro, sempre cínicas em sua franqueza
transparente, compõem a história do sistema
partidário. A reductio ad absurdum é agora
vista como praticamente completa — não se
pode ver como ela pode avançar — com a
atitude do Partido Democrata em relação aos
seus princípios históricos de soberania
estatal e interpretação rigorosa. Algo
semelhante, no entanto, foi evidente em um
discurso feito há pouco para diferentes
grupos de interesse dentro do ramo de
exportação e importação pelo prefeito de
Nova York — sempre conhecido como
republicano na política — defendendo a
doutrina democrática da tarifa baixa!

Ao longo do período pós-constitucional, não


há registro, tanto quanto sei, de uma única
instância de adesão partidária a um princípio
fixo, qua princípio, ou a uma teoria política,
qua teoria. Na verdade, as próprias
caricaturas sobre o assunto mostram como
foi amplamente aceito que as plataformas do
partido, com seu “jargão”, são nada mais que
charlatões, e as promessas da campanha
são mera conversa fiada. A prática prosaica
da política tem sido invariavelmente
oportunista, ou, em outras palavras, sempre
adaptável à função primária do Estado; e é
em grande parte por essa razão que o
serviço do Estado exerce a sua atração mais
poderosa sobre as camadas inferiores e
sôfregas da sociedade.22

A manutenção desse sistema de fetiches, no


entanto, aprimora a visão atual do Estado em
geral. Deste ponto de vista, o Estado se
apresenta como preocupado, profunda e
desinteressadamente, com os grandes
princípios de ação. Portanto, além da sua
reputação como instituição pseudo-social,
adquire o prestígio de uma espécie de
autoridade moral, descartando assim o último
vestígio da doutrina dos direitos naturais ao
estendê-la com a lima viva do legalismo —
tudo o que o Estado sanciona é correto. Esse
duplo prestígio é assiduamente inflacionado
por muitas agências; por um sistema de
educação estatal, por um púlpito
deslumbrado pelo Estado, por uma imprensa
vendida, por uma exibição caleidoscópica
constante de pompa e por todos os inúmeros
mecanismos de campanha eleitoral. Estes
últimos, invariavelmente, assumem uma
posição com base em algum princípio de
aparência, testemunhas do clamor
agonizante que se ouve aqui e ali, em favor
de um “retorno à constituição”. Tudo isso não
passa de “clamor interessado” e “sofismas”, o
que significa nada mais, nada menos do que
quando a constituição não tinha ainda cinco
anos, e Fisher Ames observou com desdém
que entre todas as medidas e propostas
legislativas em destaque na época, não
conhecia uma que não sofrerá o mesmo
lamento — “nada além de propostas de
suspensão”.

De fato, esses modos populares de atração


em plena campanha eleitoral são o que
Jeremy Bentham chamou de modos
impostores, e seu uso revela uma única
coisa: um estado de apreensão, medo ou
expectativa, conforme o caso em relação ao
acesso aos meios políticos. Como vemos
agora, uma vez que se ameaça limitar ou
interromper esse acesso, os interesses sob
ameaça imediatamente trazem à luz o
contagioso e glorioso passatempo dos
“direitos do Estado” ou “um retorno à
constituição”, e sujeita-os aos movimentos
galvânicos. Deixe a incidência de exploração
mostrar o menor sinal de mudança que
ouviremos imediatamente o clamor de “clãs e
sofismas interessados” que a “democracia”
está em perigo e que as excelências
incomparáveis de nossa civilização se
realizaram somente pela política de
“individualismo feroz”, realizado em
condições de “livre concorrência”, enquanto
que de outra fonte ouvimos que as
imensidades do laissez-faireesmagaram os
pobres e os impediram o acesso à vida mais
abundante.23
O resultado geral de tudo isso é que vemos
políticos de todas as escolas e tipos que se
comportam com a depravação obscena de
crianças degeneradas. Como bandos que
infestam os estaleiros ferroviários e os
arredores das casas de gás, cada grupo
tenta culpar o outro por suas tolices públicas.
Em outras palavras, nós os vemos se
comportar de maneira estritamente histórica.
A distinção moral complexa do professor
Laski entre o Estado e o oficialismo carece
de fundamento. O Estado não é, como ele
diria, uma instituição social administrada de
modo anti-social. E uma instituição anti-
social, administrada como uma instituição
desse tipo pode ser administrada e pelo tipo
de pessoa que, dada a situação, melhor se
adapte a esse serviço.
1 Consideremos, por exemplo, a situação
atual. Nossos recursos naturais, embora
muito esgotados, ainda são ótimos; nossa
população é muito escassa, algo em torno de
vinte ou vinte e cinco por milha quadrada; e
alguns milhões dessa população estão no
momento “desempregados”, e provavelmente
permanecerão assim porque ninguém quer
ou pode “dar-lhes trabalho”. O ponto não é
que os homens geralmente se submetam a
essa situação, ou que a aceitem como
inevitáveis, mas que não vejam nada de
irregular ou anômalo nela devido a sua idéia
fixa de que o trabalho é algo a ser dado.

2 A paralisia atual da produção, por exemplo,


deve-se unicamente à intervenção do Estado
e ao temor de outra intervenção futura.

3 Parece ser mal-entendido que o custo da


intervenção do Estado deva ser pago com a
produção, sendo esta a única fonte de
pagamento. A intervenção retarda a
produção; então a severidade e
inconveniência resultantes permitem uma
intervenção adicional, que, por sua vez, ainda
retarda a produção; e este processo continua
até que, como em Roma, no terceiro século,
a produção cesse completamente, e a fonte
de pagamento seque.

4 De fato, todas as treze unidades apenas


continuaram o sistema que existia durante
todo o período colonial — o sistema que deu
ao beneficiário o monopólio dos valores de
aluguel, bem como os valores de uso.
Nenhum outro sistema já foi conhecido na
América, exceto no estado efêmero de
Deseret, sob a política mórmon.

5 Para um resumo brilhante da especulação


de terras após a revolução, cf. Sakolski, op.
cit., cap. XI.

6 O Sr. Sakolski observa com razão que a


obsessão pelo trabalho da terra foi
estimulada pela ação das novas unidades na
oferta de terras por meio da liquidação de
suas dívidas públicas, o que levou a uma
grande dúvida nas diversas questões de
“garantias territoriais”. A lista de nomes
famosos envolvidos neste empreendimento
inclui Wilson C. Nicholas, que mais tarde se
tornou governador da Virgínia; “Light Horse
Harry” Lee, pai do grande comandante
confederado; General John Preston, de
Smithfield; e George Taylor, cunhado de
Marshall, presidente do tribunal. Lee, Preston
e Nicholas foram processados na instância
de alguns especuladores de Connecticut, por
uma transação alegada como fraudulenta;
Lee foi preso em Boston, na véspera de
embarcar para as índias Ocidentais. Eles
haviam transferido uma extensão de terreno
que afirmaram ser de 300 mil hectares, a dez
centavos de dólar por hectare, mas, ao ser
vistoriado, o terreno não chegava nem à
metade desse tamanho. Fraudes desse tipo
eram extremamente comuns.

7 As novas unidades políticas continuaram a


prática colonial de restringir o sufrágio aos
contribuintes e proprietários de terra, e
ninguém, exceto homens de grande riqueza,
podia aspirar cargos públicos. Assim, o
exercício da soberania era uma questão de
direito econômico, não de direito natural.

8 Essa foi a revolta conhecida como Rebelião


de Shays, ocorrida em 1786. A divisão de
credores em Massachusetts adquiriu o
controle dos meios políticos e fortificou seu
controle ao estabelecer uma constituição feita
tanto para a divisão agrária como para a
devedora, que deu lugar a uma insurreição
armada seis anos depois, liderada por Daniel
Shays, com o objetivo de anular suas
onerosas disposições e transferir o controle
dos meios políticos para o último grupo. Esse
incidente oferece uma visão impressionante
da natureza e da teleologia do Estado. A
rebelião teve um grande efeito na
consolidação da divisão de credores e em
dar credibilidade à sua contenção para que
fosse estabelecido um forte Estado nacional
coercivo. O Sr. Jefferson falou com desdém
desta contenção como “clamores
interesseiros e sofismas da especulação,
rasurando e amontoando instituições”; e da
mesma rebelião observou a Sra. John
Adams, cujo marido ajudou a elaborar a
constituição de Massachusetts: “Gosto de
uma pequena rebelião de vez em quando [...]
O espírito de resistência ao governo é tão
valioso que desejo que seja sempre mantido.
Muitas vezes, será exercido de forma
equivocada, mas é melhor do que nada”. Ao
escrever para outro correspondente na
mesma época, disse ele com sinceridade:
“Deus não permita que fiquemos vinte anos
sem rebelião”. Obiter dieta desta natureza,
espalhados pelos escritos do Sr. Jefferson,
têm interesse em mostrar a proximidade que
seu instinto o levou a uma compreensão
clara do caráter do Estado.

9 O professor Sakolski observa que depois


que os artigos da Confederação foram
substituídos pela constituição, os esquemas
de especulação da terra “multiplicaram-se
com energia renovada e intensificada”.
Naturalmente, pois, como ele diz, o novo
esquema de um Estado nacional recebeu
forte apoio desta classe de aventureiros
porque previram que os valores de aluguel
“aumentariam nas mãos de um governo
federal eficiente”.

10 Mais da metade dos delegados à


convenção constitucional de 1787 eram
investidores ou especuladores nos fundos
públicos. Provavelmente, sessenta por cento
dos valores representados por esses títulos
eram fictícios e considerados assim pelos
seus proprietários.

11 Pode-se observar que neste momento a


palavra “nacional” era um termo de calúnia,
carregando as mesmas implicações que a
palavra “fascista” em alguns lugares hoje.
Nada é mais interessante do que a história
dos termos políticos em sua relação com o
equilíbrio oscilante da vantagem econômica
— exceto, talvez, a história dos movimentos
partidários que representam, considerados
no mesmo ponto de vista.

12 O motivo óbvio para isso, como se


demostrou, era que os interesses agrupados
na primeira divisão tinham a vantagem de ser
relativamente compactos e de fácil
mobilidade. Os da segunda divisão,
principalmente agrícolas, eram soltos e
despreocupados, com comunicação lenta e
difícil mobilização.

13 Várias autoridades se deram conta


recentemente, e são exibidos em totalidade
na monumental obra do Sr. Beard:
Interpretação econômica da Constituição dos
Estados Unidos.

14 Beard, op. cit., p. 337.

15 As principais medidas em relação à


distribuição de meios políticos foram as
elaboradas por Hamilton em termos de
financiamento e aceitação, para criar uma
tarifa protetora e um banco nacional. Isso deu
uso praticamente exclusivo de meios políticos
às classes agrupadas na primeira divisão, e o
que ficou para os demais foram as patentes e
os direitos autorais. Beard discute essas
medidas com sua característica lucidez e
profundidade. Op. cit. cap. VIII. Também vale
a pena ler algumas observações no meu livro
Jeffersoti, cap. V.

16 A autoridade do Supremo Tribunal foi


desconsiderada por Jack-son e negada por
Lincoln, convertendo assim o modo do
Estado temporariamente de uma oligarquia a
uma autocracia. E interessante observar que
essa contingência foi prevista pelos autores
da constituição, em particular por Hamilton.
Aparentemente, estavam conscientes da
facilidade com que, em qualquer período de
crise, um modo quase republicano do Estado
se torna uma tirania executiva.
Curiosamente, o Sr. Jefferson, ao mesmo
tempo, considerou anular os Atos de Sedição
e Estrangeiro por ação executiva, mas não o
fez. Lincoln anulou a opinião do juiz do
Supremo Taney, de que a suspensão do
habeas corpus era inconstitucional e, em
conseqüência, o modo do Estado, até 1865,
era um despotismo militar monocrático. Na
verdade, a partir da data de sua proclamação
de bloqueio, Lincoln governou
inconstitucionalmente ao longo de seu
mandato. A doutrina dos “poderes
reservados” foi marcada ex post facto como
uma justificativa de seus atos, mas, no que
diz respeito à intenção da constituição,
obviamente era pura invenção. Na verdade,
um caso bem elaborado para apoiar as ações
de Lincoln resultaram em uma mudança
radical permanente em todo o sistema de
“interpretação” constitucional — e, desde
então, “interpretações” não foram
interpretações da constituição, mas
simplesmente de política pública. Ou então,
como nosso crítico social profundo e
perspicaz afirmou, “a Suprema Corte segue
os ‘raios de ilusão’”. Um constitucionalista
estrito pode dizer que a constituição morreu
em 1861, e teria de se pensar bem para
refutá-lo.

17 Marshall foi nomeado por John Adams no


final de seu mandato presidencial, quando os
interesses agrupados na primeira divisão se
preocupavam muito com a oposição que se
desenvolvia contra eles entre os interesses
explorados. Uma carta escrita por Oliver
Wolcott a Fisher Ames dá uma boa idéia de
que posição a doutrina da soberania popular
ocupava. Sua referência às medidas militares
é particularmente impressionante. Ele diz:
“Os homens firmes no Congresso tentarão
ampliar o departamento judicial, e espero que
suas medidas sejam muito firmes. E
impossível neste país tornar o exército um
motor de governo e não há como combater a
oposição estatal, a não ser por uma
organização eficiente e ampla de juizes,
magistrados e outros oficiais civis”. Seguiu-se
a nomeação de Marshall, e também a criação
de vinte e três novos juizes federais. As
decisões principais de Marshall foram feitas
nos casos de Marbury, de Fletcher, de
McCulloch, do Dartmouth College e de
Cohens. Talvez não se entenda geralmente
que, como resultado dos esforços de
Marshall, o Supremo Tribunal tornou--se não
só o mais alto órgão de interpretação da lei,
mas também o mais alto órgão legislativo. Os
precedentes estabelecidos por suas decisões
têm a força do direito constitucional. Desde
1800, portanto, o modo real do Estado na
América é normalmente o de uma pequena e
irresponsável oligarquia. O Sr. Jefferson,
considerando Marshall com bastante justiça
como “um juiz astuto que refina a lei em sua
mente por meio de seu próprio raciocínio”,
fez, em 1821, a profecia muito notável de que
“nosso governo está agora tomando um
curso estável para mostrar por qual caminho
passará à destruição, a saber: pela
consolidação primeiro, e depois a corrupção,
sua conseqüência necessária. O mecanismo
de consolidação será o Judiciário federal, os
outros dois ramos dos instrumentos
corruptores e corruptos”. Outro comentário
profético sobre o efeito da centralização foi
que, “quando devemos esperar que
Washington nos diga quando semear e
quando colher, logo iremos querer pão”. Um
levantamento de nossas circunstâncias
políticas atuais considera essas profecias
supérfluas.

18 Ele observou isso no Estado britânico


alguns anos antes, e falava disso com
vivacidade. “O ofício era pequeno demais
para que todos se abraçassem de uma vez, a
disputa é eterna sobre quem ficará de fora.
Para esse fim, eles são divididos em duas
partes, os que estão dentro e os que estão
fora”. A razão de não ter conseguido ver que
o mesmo aconteceria no Estado americano
como um efeito de causas idênticas às do
Estado britânico, é um enigma para os
estudiosos. Aparentemente, no entanto, ele
não viu, apesar do instinto sólido que o fazia
suspeitar dos partidos, e sempre o mantinha
livre de alianças partidárias. Como escreveu
a Hopkinson em 1789, “nunca submeti todas
as minhas opiniões ao credo de qualquer
grupo de homens, seja na religião, na
filosofia, na política ou em qualquer outra
coisa que eu fosse capaz de pensar por mim.
Vício semelhante é a última degradação de
um agente livre e moral. Se eu não pudesse
ir ao céu caso não fosse afiliado de um
partido, não iria para lá de jeito nenhum”.

19 Jefferson, p. 274. O grupo econômico


agrário-artesão-devedor que elegeu o Sr.
Jefferson assumiu o nome de Partido
Republicano (posteriormente renomeado de
Democrata) e o grupo opositor se chamou
pelo antigo título pré-constitucional de
Federalista.

20 Um exemplo digno de nota, apenas por


ser incomumente conspícuo, observa-se no
comportamento dos senadores democratas
no que diz respeito à tarifa sobre o açúcar, na
segunda administração de Cleveland. Desde
esse incidente, um dos jornais de
Washington usou o nome “Senador
Sorghum” em seus parágrafos humorísticos,
para designar o típico ocupante mercenário.

21 O Sr. Jefferson foi o primeiro a reconhecer


que sua compra do território da Louisiana era
inconstitucional; mas acrescentou milhões de
acres à soma do recurso agrário e uma
imensa força de votação prospectiva ao
controle agrário dos meios políticos, contra o
controle dos interesses financeiros e
comerciais representados pelo partido
federalista. O Sr. Jefferson justificou-se
unicamente com base na política pública,
uma interessante antecipação da auto-
justificação de Lincoln em 1861, por
confrontar o Congresso e o país com um fait
accompli — desta vez, no entanto, executado
em nome de interesses financeiros e
comerciais em oposição ao interesse agrário.

22 Henry George fez um comentário muito


interessante sobre a degradação difícil de
acreditar que ele viu ocorrer
progressivamente no funcionalismo do
Estado. Talvez seja mais conspícuo na
Presidência e no Senado, embora
continuepari passu em todos os cantos.
Quanto à Câmara dos Deputados federal e
aos órgãos legislativos estaduais, é só ver
para crer.

23 De todos os termos impostores em nosso


glossário político, estes talvez sejam os mais
insolentes, e seu emprego, talvez, o mais
infame. Vimos que nada remotamente
parecido com a democracia já existiu aqui;
nem tem nada parecido com a livre
concorrência, pois a existência de livre
concorrência é, obviamente, incompatível
com qualquer exercício dos meios políticos,
mesmo o mais fraco. Pelo mesmo motivo,
nenhuma política de individualismo feroz já
existiu. A maioria desse individualismo feroz,
para se distinguir, tem recorrido ao Estado
para alguma forma de vantagem econômica.
Se o leitor tiver alguma curiosidade sobre
isso, deixe-o procurar o número de empresas
comerciais americanas que fizeram sucesso
sem ajuda dos meios políticos, ou o número
de fortunas acumuladas sem essa ajuda.
Laissez-faire tornou-se um termo de puro
opróbrio; os que o usam nem sabem o que
significam, ou também o perverteríam.
Quanto às excelências incomparáveis de
nossa civilização, talvez seja suficiente dizer
que as estatísticas de nossas empresas de
seguros agora mostram que quatro quintos
de nossas pessoas que atingiram a idade de
sessenta e cinco anos se mantêm graças à
ajuda de seus parentes ou por alguma outra
forma de caridade.
CAPÍTULO VI
/

Essa tem sido nossa experiência desde o


início, e esses são os termos em que sua
rigorosa uniformidade nos levou a formar
uma idéia sobre o Estado. Essa uniformidade
também explica muito o desenvolvimento de
uma prostração moral peculiar em relação ao
Estado, equivalente ao que prevaleceu em
relação à Igreja na Idade Média.1 A Igreja
controlou a distribuição de certos privilégios e
imunidades, e, se a abordasse corretamente,
benefícios poderíam ser obtidos. Era algo a
se recorrer em caso de emergência, temporal
ou espiritual, para satisfazer a ambição e a
ganância, bem como às garantias menos
convincentes que oferecem contra várias
formas de medo, dúvida e tristeza. Enquanto
fosse assim, as anomalias derivadas do seu
auto-engrandecimento foram mais ou menos
consentidas; e, dessa forma, uma prostração
moral crônica, muito negativa para se chamar
de cínica, desenvolveu-se a partir de suas
intervenções e extorsões, e para a vasta
edificação de sua estrutura material.2

Uma prostração semelhante, e por razões


semelhantes, é difundida em nossa
sociedade em relação ao Estado. Isso afeta
especialmente aqueles que tomam as
pretensões do Estado ao pé da letra e
consideram-no uma instituição social cujas
políticas de intervenção contínua são justas e
necessárias; e isto também afeta a grande
maioria que não tem uma idéia clara do
Estado, mas simplesmente o aceita como
algo que existe, sem nunca pensar nele
exceto no caso de uma intervenção
desfavorável aos seus interesses. Não há
necessidade de se preocupar em excesso
pelo grande impulso de auto-
engrandecimento que recebeu desse modo o
Estado, ou para mostrar em detalhes como
essa apatia promove a política firme de
intervenção, exação e edificação do Estado.3

Toda intervenção do Estado provoca outra, e


esta, por sua vez, outra, e assim por diante,
indefinidamente; e o Estado está sempre
pronto e ansioso para realizá-las, muitas
vezes por iniciativa própria, tornando-se
plausível pela sugestão capciosa de pessoas
interessadas. Às vezes, o assunto em
questão é simples, necessário do ponto de
vista social e desprovido de qualquer caráter
político.4 Por conveniência, no entanto,
surgem outras complicações que também
são exploráveis imediatamente, o que se faz
uma vez, e de novo, até que as rivalidades e
conflitos de interesse causem uma desordem
quase geral. Quando isso acontece, o
aspecto lógico, obviamente, é recuar e deixar
que a desordem se acalme de maneira lenta
e menos problemática, embora com eficácia,
deixando as leis naturais seguirem seu curso.
Mas, em tais circunstâncias, não se
considera uma mudança em nenhum
momento. A menor sugestão seria
considerada pura loucura. Em vez disso, os
interesses desfavorecidos — talvez pouco
conscientes de que o remédio é pior que a
enfermidade, ou, em todo caso, pouco
preocupados com isso — imediatamente
pedem que o Estado intervenha
arbitrariamente entre a causa e o efeito e
solucione o problema.5 O Estado então
intervém, impondo outros tipos de
complicações sobre as primeiras. Essas
complicações, por sua vez, são fáceis de
explorar, e surge outra demanda, e com ela
outro tipo de complicações, ainda mais
complexas, que são impostas às duas
primeiras;6 e assim por diante até que o
transtorno recorrente torna-se agudo o
suficiente para abrir o caminho às trapaças
de um oportunista político, sempre alegando
“necessidade, o argumento do tirano”, para
organizar um golpe de Estado.7
No entanto, o mais normal é que o assunto
em questão seja resolvido por meio de uma
intervenção original do Estado, uma
distribuição original dos meios políticos. Cada
redistribuição, como já vimos, representa
uma tentativa de assalto à mão armada, uma
licença para apropriar os produtos do
trabalho de outros. Portanto, é lógico que, na
natureza das coisas, o Estado apóie esse
tipo de licenças quando essas se apresentem
por meio de uma série indefinida de
intervenções para sistematizar e “regular” o
seu uso. As constantes e intermináveis
intrusões do Estado registradas na história
das tarifas, sua idiossincrasia impudente e
desagradável e o enorme e prodigioso
aparelho necessário para realizá-las ilustram
claramente o ponto em questão. Outro
exemplo é fornecido pela história da
regulamentação ferroviária. Atualmente é
moda, mesmo entre aqueles que deveríam
estar mais informados, culpar o
“individualismo feroz” e o laissez-faire
responsável pela diluição do capital,
reembolso, corte tarifário, falências
fraudulentas e similares que prevaleceram
em nossa prática ferroviária após a Guerra
Civil, mas eles não tinham nada que ver com
isso mais do que tinham que ver com a
precessão dos equinócios. O fato é que
nossas ferrovias, com poucas exceções, não
cresceram em resposta a qualquer demanda
econômica real. Elas eram empreendimentos
especulativos habilitados pela intervenção do
Estado, mediante a atribuição de meios
políticos sob a forma de subsídios e
concessões de terra, e, de todos os males
atribuídos a nossa prática ferroviária, não há
um que tenha esta intervenção primária como
origem.8

O mesmo acontece com o transporte. Faltava


uma demanda econômica válida de
especulação no comércio de transportes; de
fato, toda consideração econômica sensata
era totalmente contra ela. Foi feita por
intervenção do Estado, instigada pelos
construtores navais e seus interesses
relacionados; e a bagunça gerada pela
manipulação dos meios políticos é agora a
desculpa necessária para exigir maior
intervenção coercitiva. O mesmo acontece
com o que chamamos de agricultura,9 devido
a um giro inconsciente da linguagem.
Normalmente, existem poucas complicações
relacionadas a essa forma de empresa, a
menos que estejam relacionadas à
intervenção primária do Estado e ao seu
sistema de posse de terras com base no
monopólio dos valores de aluguel e seu uso;
e, enquanto esse sistema estiver em vigor,
inúmeras ações coercivas são necessárias
para sustentá-lo.10

II

Assim, vemos como a ignorância e a ilusão


quanto à natureza do Estado se combinam
com a extrema debilidade moral e o egoísmo
míope — o que Ernest Renan chama
acertadamente la bassesse de 1’bomme
intéressé — para permitir a conversão
acelerada do poder social no poder estatal
desde o início da nossa independência
política. Trata-se de uma anomalia curiosa. O
poder do Estado tem um histórico ininterrupto
de ser incapaz de fazer qualquer coisa de
forma eficiente, econômica, desinteressada
ou honesta. No entanto, quando surge a
menor insatisfação com qualquer exercício
de poder social, pede-se imediatamente o
auxílio do agente menos qualificado. O poder
social administra mal a prática bancária
nesse caso, ou em instâncias especiais —
então deixemos que o Estado, que nunca se
mostrou capaz de evitar que as suas próprias
finanças se afundem no lamaçal do abuso de
poder, desperdícios e corrupção, intervenha
para “supervisionar” ou “regular” todo o
sistema bancário, ou mesmo controlá-lo por
completo. O poder social, neste ou no outro
caso, é o negócio da gestão ferroviária —
então deixemos o Estado, que prejudicou
todos os negócios que teve em suas mãos,
intervir na “regulação” da operação
ferroviária. O poder social de vez em quando
envia um navio não apto a navegar para o
desastre — então deixemos o Estado, que
inspecionou e permitiu o Morro Castle, dispor
de maior liberdade no controle do comércio
marítimo. Se o poder social exerce um
monopólio opressivo sobre a geração e
distribuição de energia elétrica — então
deixemos o Estado, que permite e mantém
os monopólios, entrar e intervir com um
esquema geral de fixação de preços que
causará mais tristezas do que glórias, ou, de
outro modo, competirá livremente; ou, como
exigem os coletivistas, deixemos que exerça
o monopólio em pessoa. “Desde que a
sociedade existe”, diz Herbert Spencer, “a
frustração tem reinado. ‘Não confie na
legislação’, e ainda assim a confiança na
legislação não parece ter diminuído”.

Mas a quem podemos recorrer para nos


livrarmos dos abusos do poder social, se não
ao Estado? Que outro recurso temos? Se
admitimos que, sob nosso modo existente de
organização política, não temos nenhum
outro recurso, devemos ressaltar que essa
questão se baseia no velho erro típico de
apreensão da natureza do Estado, quando se
presume que o Estado é uma instituição
social, enquanto que é uma instituição anti-
social. Ou seja, a questão baseia-se no
absurdo.11 É verdade que a função do
governo de manter a “liberdade e segurança”
e “garantir esses direitos” é recorrer a uma
justiça gratuita, fácil e informal; mas o
Estado, pelo contrário, preocupa-se
principalmente com a injustiça, e sua função
é manter um regime injusto; portanto, como
vemos diariamente, sua tendência é separar
a justiça tanto quanto possível e torná-la
dispendiosa e inacessível. Pode-se dizer que,
embora o governo, dada a sua natureza,
esteja preocupado com a administração da
justiça, o Estado está, por sua natureza,
preocupado com a administração da lei, que
o próprio Estado projeta para seus próprios
fins. Portanto, nem adianta apelar ao Estado
baseando--se na justiça,12 pois qualquer
ação que o Estado puder tomar em resposta
seria condicionada por seus interesses mais
primordiais e o resultado seria, portanto, uma
grande injustiça, tão grande como a que
pretende corrigir, ou, como de costume, ainda
maior. A questão supõe, em suma, que o
Estado possa, ocasionalmente, ser
persuadido a agir de modo diferente; e isso é
leviandade.

Deixando essa questão para trás e


considerando-a de um ponto de vista mais
geral, vemos que ela realmente representa
um apelo à interferência arbitrária na ordem
da natureza, um atalho para evitar a punição
que a natureza impõe em face do erro,
premeditado ou não, voluntário ou
involuntário — e a verdade é que nenhuma
tentativa de seguir esse caminho foi fácil.
Qualquer violação da lei natural, qualquer
alteração da ordem natural das coisas, deve
ter suas conseqüências, e a única maneira
de escapar disso comporta conseqüências
ainda piores. A natureza não distingue entre
intenções boas e más; a única coisa que não
tolera é a desordem, e ela é muito particular
ao lucrar por qualquer tentativa de criar
desordem. Ela consegue isso às vezes por
métodos indiretos, freqüentemente por
formas sinuosas e imprevistas, mas sempre é
bem-sucedida. “As coisas e as ações que
fazemos são o que são, e as conseqüências
serão o que devem ser; por que, então,
queremos ser enganados?”. Parece que
nossa civilização é intensamente dada a esse
vício infantil — muito dada a persuadir-se de
que pode encontrar alguns meios que a
natureza tolerará, um mundo onde se pode
ter tudo; e ressente-se profundamente do fato
irrefutável de que essa opção não existe.13

Está claro, para quem se preocupa em refletir


sobre esse tema, que, sob um regime de
ordem natural, isto é, sob o governo, que não
faz intervenções positivas no indivíduo, mas
apenas intervenções negativas em favor da
simples justiça — não lei, mas justiça — os
abusos do poder social poderíam ser
corrigidos; enquanto sabemos por
experiência que as intervenções positivas do
Estado não os corrigem. Sob um regime de
individualismo real, livre concorrência real e
laissez-faire real — um regime que, como já
vimos, não pode coexistir com o Estado —,
um abuso sério ou contínuo do poder social
seria praticamente impossível.14

Não vou me deter nesses pontos porque, em


primeiro lugar, isso já foi feito por Spencer em
seus ensaios intitulados The Man versus the
State-, e, em segundo lugar, porque o que
mais quero é evitar a sugestão de que o
regime sob essas condições é viável, ou que
estou instigando secretamente alguém a
pensar de tal modo. Talvez, em um futuro
mais ou menos distante, se o planeta ainda
for habitável, se decrete que os benefícios
decorrentes da conquista e confisco custam
muito; podendo assim substituir o Estado
pelo governo, suprimir os meios políticos e os
fetiches que imprimem no nacionalismo e no
patriotismo esse caráter execrável. Mas isso
parece tão remoto e improvável que nos leva
a considerá-lo fátuo, e a considerar inútil
qualquer preocupação a esse respeito. Uma
medida aproximada desse futuro pode ser
estimada a partir das forças que operam
contra ele. A ignorância e o erro, que são
aquilo no que o Estado se apóia para
aumentar seu prestígio, estão contra ele; la
bassesse de Vhomme intéressé, que coloca
seus propósitos diante de si da maneira mais
desprezível, está contra ele. A depressão
moral, que conduz firmemente a um ponto de
insensibilidade absoluta, está contra ele.
Pode-se imaginar uma combinação mais
poderosa de influências, e o que pode ser
feito a respeito dessa combinação?

Junto a tudo isso, que pode ser chamado de


“influências espirituais”, pode-se acrescentar
a força física exagerada do Estado, pronta
para entrar em ação contra qualquer afronta
ao seu prestígio. Poucos percebem o alcance
e a velocidade com que nos últimos anos o
Estado construiu todo o seu aparato militar e
forças policiais. O Estado aprendeu a lição
estabelecida por Septimius Severus em seu
leito de morte. “Permaneçam unidos”, disse
ele aos seus sucessores, “paguem os
soldados e não se preocupem com mais
nada”. Agora qualquer pessoa inteligente
sabe que não pode haver uma revolução
enquanto esse conselho for seguido; de fato,
não houve nenhuma revolução no mundo
moderno desde 1848 — toda a chamada
revolução foi apenas um golpe de Estado.15
Tudo o que se diz na América sobre a
possibilidade de uma revolução é, em parte,
ignorância, mas sobretudo mentira. Trata-se
simplesmente “dos clãs e sofismas
interessados” de indivíduos e seus interesses
pessoais. Mesmo Lênin reconheceu que uma
revolução não é possível em lugar algum
enquanto as forças militares e policiais
estejam insatisfeitas; o que indica que a
América é provavelmente o pior lugar onde
procurar. Todos já testemunhamos
manifestações de uma população
desarmada, ou as armas rudimentares de
conflito local, e também vimos como eles
terminaram, como em Homestead, Chicago e
os distritos mineiros de West Virgínia, por
exemplo. O exército de Coxey marchou em
Washington — e os manteve à distância.

Somando a força física do Estado à força das


poderosas influências espirituais que o
sustentam, uma vez mais se pergunta: o que
pode ser feito contra o crescimento do
Estado? Simplesmente nada. Longe de
aspirar ao inalcançável, quem estuda o
homem civilizado não chegará a qualquer
conclusão além de que nada pode ser feito.
Ele só pode contemplar o curso da civilização
na mesma medida em que pode contemplar
o destino de um homem preso em um barco
na parte inferior do Niágara — como um
exemplo da intolerância inquestionável da
natureza e, no final, um exemplo da punição
que inflige todas as tentativas de interferir
com a ordem natural das coisas. O fato de
que, inicialmente, nossa civilização
conseguiu adotar o estatismo, seja por
ignorância, seja deliberadamen-te, não
importa. A natureza não se importa com o
motivo ou a intenção, ela só está interessada
na ordem, punindo quem ignora seu
desagrado pela desordem e assegurando
que a ordem natural dos acontecimentos, no
final, siga o seu curso. Emerson, em um de
seus grandes momentos de inspiração,
personificou a causa e o efeito como “os
ministros de Deus”; e a experiência mostra
que a tentativa de anular, desviar ou invadir
sua ordem tem suas próprias conseqüências.

“Tal foi o destino lamentável da civilização


antiga”, diz o professor Ortega y Gasset.
Uma dúzia de impérios terminaram o curso
que começou o nosso há três séculos. O leão
e o lagarto mantêm os vestígios de sua
passagem sobre a Terra, vestígios de
cidades que, nos seus dias, eram tão
orgulhosas e poderosas quanto a nossa —
Tadmor, Persépolis, Luxor, Baalbek —,
algumas de fato esquecidas por milhares de
anos e trazidas de volta à memória graças à
escavadeira, como os maias e os que foram
enterrados nas areias do Gobi. Os locais que
agora ocupam Narbona e Marselha alojaram
quatro civilizações anteriores, cada uma
delas, como diz São Tiago, como um vapor
que aparece por pouco tempo e, depois,
desaparece. O curso de todas essas
civilizações foi o mesmo. Conquista, confisco,
a construção do Estado; então, as
seqüências que rastreamos no decurso da
nossa própria civilização. Então, a agitação
derivou de algum evento do qual a fraqueza
da estrutura social não podia superar e era
desorganizada demais para ser recomposta;
e depois o fim.

Nosso orgulho se ofende ao pensar que as


grandes rodovias da Nova Inglaterra estarão
um dia debaixo de camadas profundas de
vegetação, como as principais rodovias
romanas da Inglaterra antiga, e que apenas
um grupo de colinas espessas permanecerá
para chamar a atenção do arqueólogo para
as ruínas de nossos arranha-céus. No
entanto, sabemos que a nossa civilização
chegará a isso; e nós a conhecemos porque
sabemos que nunca houve, não há e não
pode haver, qualquer desordem na natureza
— porque sabemos que as coisas e as ações
são o que são, e as conseqüências delas
serão o que serão.

Mas não nos desanimemos diante das


circunstâncias prováveis de um futuro tão
distante. O que nós e nossos descendentes
imediatos veremos é que um progresso
constante no coletivismo levou a um
despotismo militar severo; a uma maior
centralização; uma burocracia crescente; ao
aumento do poder e da fé do Estado em seu
poder crescente; à perda da fé no poder
social e sua decadência. O Estado absorve
uma proporção cada vez maior da renda
nacional; a produção definha, o Estado, em
conseqüência, assume uma sucessiva
“indústria essencial”, administrando-a com
corrupção, ineficiência e desperdício cada
vez maiores, e, finalmente, recorrendo a um
sistema de trabalho forçado. Então, em
algum momento desse progresso, surgirão
alguns conflitos de interesse estatais, ao
menos tão intensos e gerais como os de
1914, o que levará a uma reviravolta
industrial e financeira muito severa para a
estrutura social suportar. A partir disso, o
Estado estará nas mãos da “morte
enferrujada da máquina”, e as forças
anônimas que irão forçar sua dissolução
serão insuperáveis.

III

Mas pode-se questionar, adequadamente, se


nós, como resto do mundo ocidental,
tivéssemos sido arrastados para o estatismo
inevitável, qual é a utilidade de um livro que
simplesmente mostra o inevitável? De acordo
com essa hipótese, este livro é inútil. O mais
provável é que não consiga alterar a opinião
política de ninguém e nem mudar a nossa
atitude prática em relação ao Estado. Se o
fizesse, se levarmos em conta as próprias
premissas do livro, que bem ele poderia
fazer?

Certamente não espero que este livro mude


as opiniões políticas de ninguém, pois essa
não é a intenção. Pode ser que um ou dois,
aqui e ali, sejam atormentados pela dúvida e
decidam investigar algo mais sobre o assunto
por conta própria, e, portanto, talvez suas
opiniões percam um pouco de firmeza, mas
isso é o máximo que poderia acontecer. Em
geral, eu também seria o primeiro a
reconhecer a inutilidade prática de um livro
desse tipo, e, ainda que alguém escrevesse
outro muito mais convincente que o meu —
de nada adiantaria; no máximo poderia
interromper o progresso do Estado em
tamanho e, portanto, modificar as suas
conseqüências negativas, e assim modificaria
as conseqüências do curso do Estado. No
entanto há duas razões, uma geral e outra
particular, que apoiam a publicação de um
livro deste tipo.

A razão geral é que, em qualquer


departamento de pensamento, quando uma
pessoa tem, ou pensa que tem, uma idéia
clara sobre a ordem inteligível das coisas,
deve torná-la pública, sem pensar nas
conseqüências práticas — ou na falta delas
— que podem resultar do seu ato. Pode-se
sentir obrigada a empreender a tarefa como
um tipo de dever abstrato, não para propagar
ou impor a sua visão — longe disso — mas
simplesmente para expor a idéia. Isto, que
pode ser considerado um dever diante da
verdade das coisas, e que acima de tudo é
um direito, é totalmente admissível.

A razão particular tem a ver com o fato de


que, em todas as civilizações, por mais
prosaicas ou de curta duração que sejam na
avaliação dos assuntos humanos, sempre há
espíritos alheios que, embora aparentemente
aceitem os requisitos sociais que os cercam,
mantêm uma preocupação desinteressada
pela lei inteligível das coisas,
independentemente de qualquer fim prático.
São pessoas com curiosidade intelectual, às
vezes imbuídas de emoção em relação à
ordem augusta da natureza. Essas pessoas
ficam impressionadas com a contemplação
da natureza e gostam de saber tudo sobre
ela, mesmo em circunstâncias desfavoráveis
às suas melhores esperanças e desejos. Por
isso, um trabalho como este, embora em
geral seja impraticável, não é inútil; e aqueles
que o lerem perceberão que foi escrito única
e exclusivamente para eles.

FIM

"Não há nada escondido que não será


revelado"
1 Pouco tempo atrás, o professor Laski
comentou sobre a prevalência dessa
prostração entre os nossos jovens,
especialmente entre nossa população
estudantil. Há várias causas que contribuem
para isso, mas, penso, é principalmente pela
uniformidade invariável de nossa experiência.
As pretensões do Estado foram tão
extravagantes, a disparidade entre eles e sua
conduta tão manifesta, que dificilmente se
poderia esperar outra coisa. Provavelmente o
protesto contra o imperialismo no Pacífico e
no Caribe, após a Guerra Espanhola, marcou
o último grande esforço de uma decadência
impotente e moribunda. As comparações do
Sr. Laski com os estudantes na Inglaterra e
na Europa perdem força quando se lembra
que os mecanismos de um termo fixo e um
Executivo irresponsável tornam o Estado
americano particularmente insensível ao
protesto e inacessível à censura efetiva.
Como disse o Sr. Jefferson, o único recurso
do impeachment é “nem sequer um
espantalho”.

2 Como exemplo dessa construção maciça,


no início do século XVI um quinto da terra da
França era de propriedade da Igreja; e era
mantida principalmente por instituições
monásticas.

3 Pode-se observar, no entanto, que o


simples uso não interferirá com a nossa visão
da estrutura original do Estado americano,
com seu sistema de jurisdições sobrepostas
e funções reduzidas. Atualmente, um cidadão
mora em meia dúzia de jurisdições
sobrepostas ou mais, federal, estadual,
condado, distrito, municípios, bairros, distrito
escolar, ala, distrito federal. Quase todos
estes têm poder para cobrar impostos direta
ou indiretamente, ou ambos, e como todos
sabemos, o único limite para o exercício
desse poder é o que pode ser obtido por ele;
e, portanto, chegamos ao princípio formulado
com certa ingenuidade pelo último senador
de Utah e, às vezes, considerado
ironicamente como “lei do governo de Smoot”
— o princípio, como ele disse, de que o custo
do governo tende a aumentar de ano para
ano, não importa qual partido esteja no
poder. Seria interessante conhecer a
distribuição exata do peso dos empregados e
dos políticos mendicantes aderentes — pois
não se deve esquecer que os
“desempregados” subsidiados são agora um
corpo permanente de patrocínio — entre os
cidadãos receptores de renda. Contando
impostos indiretos e contribuições
voluntárias, bem como impostos diretos,
provavelmente não está longe da realidade
dizer que cada dois cidadãos carregam um
terceiro.

4 Por exemplo, os processos básicos de


troca são necessários, apolíti-cos e tão
simples como qualquer outro no mundo. O
mais humilde ianque que troca ovos por
bacon no armazém ou um dia de trabalho por
batatas no campo de um vizinho, entende-os
completamente e administra-os com
competência. Sua fórmula é: bens ou
serviços em troca de bens ou serviços. Não
existe, nunca existiu e nunca existirá uma
única transação em qualquer parte do
domínio do “negócio” — não importa qual
seja sua magnitude ou complexidade
aparente — que não seja diretamente
redutível a esta fórmula. Por conveniência em
facilitar o intercâmbio, no entanto, o dinheiro
foi introduzido; e o dinheiro é uma
complicação, e também as outras evidências
de dívida,, como cheques, saques, notas,
contas, títulos, certificados de ações, que
foram introduzidos pelo mesmo motivo.
Essas complicações foram consideradas
exploráveis; e o conseqüente número e
alcance das intervenções do Estado para
“regular” e “supervisionar” a sua exploração
parece infinito.
5 É uma das coisas mais extraordinárias do
mundo que os interesses que aborrecem e
temem o coletivismo são os que mais
exortaram o Estado a tomar cada um dos
passos sucessivos que levam diretamente ao
coletivismo. Quem pediu para formar a
Comissão Federal de Comércio; expandir o
Departamento de Comércio; formar a
Comissão de Comércio Interestadual e o
Federal Farm Board; passar as leis anti-trust;
construir rodovias, escavar canais, fornecer
serviços de via aérea, subsidiar o transporte
marítimo? Se esses passos não levam
diretamente ao coletivismo, a que caminho
levam? Além disso, quando os interesses
que levaram o Estado a fazê-lo ficaram
horrorizados com o surgimento do
comunismo e a ameaça dos vermelhos, quais
são seus protestos?

6 O texto da lei bancária proposta pelo


Senado, publicado em Io de julho de 1935,
quase preenchia quatro páginas do Wall
Street Journal. Realmente agora — agora
mesmo — pode-se conceber algo mais
absurdo?

7 Como aqui em 1932; na Itália, Alemanha e


Rússia ultimamente; na França após o
colapso do Diretório; em Roma após a morte
de Pertinax e assim por diante.

8 A ignorância não conhece limites. Quando


se ouve que nossas empresas ferroviárias
são chamadas de espécimes de um
individualismo feroz, é preciso considerar se
a sanidade do falante deve ser questionada
— ou sua integridade. Nossas empresas
transcontinentais, em particular, dificilmente
podem ser chamadas de empresas
ferroviárias, uma vez que o transporte era
puramente acessório para o seu verdadeiro
negócio, o da especulação de terras e a
busca ao subsídio. Lembro-me de ter visto a
declaração há alguns anos — não garanto
isso, mas não pode estar longe do fato —
que, no momento da redação, o valor atual
dos recursos políticos atribuídos à Northern
Pacific Company permitiría construir quatro
linhas transcontinentais e, além disso,
construir uma frota de navios e mantê-la no
serviço ao redor do mundo. Se esse tipo de
coisa representa um individualismo feroz, que
os futuros lexicógrafos se encarreguem
disso.

9 Um agricultor, propriamente falando, é um


proprietário que dirige suas operações,
primeiro, para a formação de uma família, na
medida do possível, uma unidade
independente, economicamente autônoma. O
que ele produz além desse requisito se
converte em uma cultura comercial. Há um
segundo tipo de agricultor, que não é um
fazendeiro, mas um fabricante, como o que
fabrica têxteis de lã, algodão ou sapatos de
couro. Ele tem apenas um tipo de colheita —
leite, milho, trigo, algodão ou o que quer que
seja — apenas para fins comerciais; e, se o
mercado cair abaixo do custo de produção,
ele tem a mesma sorte do fabricante de
automóveis ou sapatos ou calças, que produz
mais do que seu tipo de bens do que o
mercado suportará. Sua família não é
independente; ele compra tudo de que
precisa em sua casa; seus filhos não podem
viver com algodão ou leite ou milho, assim
como os filhos do sapateiro não podem viver
de sapatos. Ainda temos de distinguir um
terceiro tipo, que exerce a agricultura como
uma espécie de subsidiária contribuinte para
a especulação em valores de terras
agrícolas. São principalmente as duas
últimas classes que clamam pela
intervenção, e muitas vezes de maneiras
ruins; mas não é a agricultura que leva a
isso.

10 O próprio limite da particularidade neste


curso de intervenção coercitiva parece ter
sido alcançado, de acordo com relatórios de
imprensa, no estado de Wisconsin. Em 31 de
maio, o relatório diz que o governador La
Follette assinou um projeto de lei exigindo
que todos os restaurantes públicos sirvam
queijo e manteiga feitos em Wisconsin, e
cada refeição deve custar mais de vinte e
quatro centavos. Para combinar isso com a
particularidade, teríamos de recorrer a alguns
dos atos comerciais britânicos do século
XVIII, e mesmo assim seria difícil encontrar
uma correspondência exata. Se isso
acontecer de acordo com a cláusula do
“devido processo da lei” — se os
restaurantes pagarem esses suprimentos ou
passarem seu custo ao consumidor — não se
pode fazer nada para evitar que a legislatura
de Nova York, por exemplo, exija que cada
cidadão compre anualmente dois chapéus
feitos pela Knox e dois ternos feitos pela
Finchley.

11 Se admitimos que o cordeiro na fábula


não tivesse outra opção além do lobo, pode-
se ver que o seu apelo ao lobo era uma
perda de tempo.

12 Isso agora é tão bem compreendido que


ninguém vai a um tribunal em busca de
justiça; vai por interesse ou vingança. E
interessante observar que alguns filósofos da
lei agora dizem que a lei não tem relação
com a justiça e nem pretende ter. Na sua
opinião, o direito representa apenas um
registro progressivo das formas em que a
experiência nos leva a acreditar que a
sociedade pode funcionar. Pode-se hesitar
em aceitar a noção do que é a lei, mas é
preciso valorizar sua afirmação sincera do
que não é lei.

13 Esse ressentimento é muito notável.


Apesar de fracassarmos no experimento
ambicioso da intervenção do Estado, ouso
dizer que ainda havia um grande
ressentimento contra a famosa observação
do Professor Sumner de que, quando as
pessoas conversavam em lágrimas sobre “o
pobre bêbado na sarjeta”, não perceberam
que a sarjeta pode ser o lugar certo para ele
estar; ou contra a declaração do bispo de
Peterborough de que preferia ver a Inglaterra
livre do que sóbria. No entanto, ambas as
observações simplesmente reconhecem a
grande verdade que a experiência mostra
todos os dias, que as tentativas de interferir
na ordem natural das coisas estão
predestinadas, de uma forma ou de outra, a
sair mal.

14 Os horrores da vida industrial da Inglaterra


no século passado são um bom exemplo
para os que se dedicam à intervenção
positiva. Trabalho infantil e trabalho feminino
nos moinhos e minas; Coketown e o Sr.
Bounderby; salários de fome; horas
excessivas de trabalho; condições penosas e
perigosas de trabalho; navios como caixões
dirigidos por rufiões — tudo isso é
deslumbrado pelos reformadores e
publicistas para um regime de individualismo
feroz, competição irrestrita e laissez-faire.
Isso é claramente absurdo, pois nunca houve
regime semelhante na Inglaterra. Eles
ocorreram devido à intervenção primária do
Estado pela qual a população da Inglaterra
foi expropriada da terra; porque o Estado
substituiu o fornecimento de mão-de-obra do
campo para a indústria. Nem o sistema de
fábrica nem a “revolução industrial” tinham a
ver com a criação dessas hordas de seres
miseráveis. Quando o sistema da fábrica
entrou em vigor, aquelas hordas já estavam
lá, expropriadas, e entraram nos moinhos em
busca do valor que o Sr. Gradgrind e o Sr.
Plugson de Undershot lhes dessem, porque
não tinham escolha senão implorar, roubar ou
morrer de fome. Sua miséria e degradação
não estavam à porta do individualismo; eles
não ficam em lugar algum, mas à porta do
Estado. A economia de Adam Smith não é a
economia do individualismo, é a economia
dos latifundiários e dos moleiros. Nossos
fanáticos de intervenção positiva fariam bem
em ler a história dos cercamentos ingleses e
o trabalho dos Hammonds e ver o que podem
aprender com eles.

15 Quando Sir Robert Peel propôs organizar


a força policial de Londres, os ingleses
disseram abertamente que meia dúzia de
degolados em Whitechapel todos os anos
seria um preço baixo a pagar por manter o
instrumento de potencial tirania fora das
mãos do Estado. Todos começamos a
perceber agora que há muito a ser dito sobre
o assunto.
Sobre o autor

Albert Jay Nock


(1870 - 1945)

foi um escritor, editor, pedagogo e critico


social americano, um dos primeiros a se
autoproclamar “libertário", ferrenhamente
contrário ao New Deal, e que serviu de
inspiração para os movimentos conservador
e libertário dos Estados Unidos. Seus
trabalhos mais conhecidos são este Nosso
inimigo, o Estado e Memoirs of a Superfluous
Man.

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