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Vida

ACADÊMICA

um novo lugar para a linguagem

Alessandro Rocha
Teologia sistemática no
horizonte pós-moderno
A l e s sa n d r o R o c h a

Teologia sistemática no
horizonte pós-moderno
um novo lugar para a linguagem teológica

V ida
©2007, de Alessandro Rodrigues Rocha
If./
Vida

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Editora Vida

P r o ib id a a r e p r o d u ç ã o p o r q u a isq u e r m e io s ,
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

R o c h a , A lessan d rp R od rig u es
T e o lo g ia sistem á tic a n o h o riz on te p ó s-m o d e r n o : u m n o vo lu g a r p a ra a
lin g u a g e m te o ló g ica / A le ssan d ro R o d rig u e s R o c h a . — S ã o P a u lo : E d ito ra
V id a , 2 0 0 7 .

B ib lio g rafia.
IS B N 978-85-7367-974-8

1. L in g u a g e m - F ilosofia 2. T e o lo g ia - M e to d o lo g ia 3. T e o lo g ia sistem á tic a 1.


T ítu lo .

C D D - 2 3 0 .0 1

índice para catálogo sistemático


1. T e o lo g ia sistem á tic a : F ilo so fia e teo ria : C ristia n ism o 2 3 0 .0 1
A Adriana, que me
acompanhou de perto nas
dores e alegrias da pesquisa
que resultou nesta obra.
A
Clemir Fernandes, Douglas Conceição,
Eduardo Rosa Pedreira, Elcio Sant’Anna,
Haroldo Reimer, Lauro Bayard, Luiz Longuini
N eto , M anoel M oraes, M aria E duarda,
M arlene Gorni (G eni), O lga Sant’Anna,
Renata Portela.
4 C o n clu sã o

Glossário

Bibliografia
Prefácio

Todo professor, como qualquer outro profissional, tem sonhos


e ideais! Como professor de teologia, tenho os meus. Um deles é
não ser mero transmissor de conteúdo, mas encontrar alunos que,
por meio de um diálogo profundo, permitam que as aulas deixem
de ser monólogos chatíssimos, para se transformar em riças e cria­
tivas conversações teológicas. Acontece que, em razão do empo­
brecimento da reflexão teológica mais sólida no âmbito das nossas
igrejas locais e subseqüentemente dos nossos seminários, vai fi­
cando cada vez mais raro encontrar alunos assim (e professores
também!).
Alessandro é uma feliz exceção que infelizmente confirma a
regra! Trata-se de alguém com quem se pode dialogar, pela rique­
za de conteúdo, seriedade acadêmica, brilhantismo de idéias e
abertura de reflexões. Com a ajuda dele, algumas das aulas trans-
formaram-se em ricos colóquios que me fizeram descer do pedes­
tal de professor e me colocar como um igual, um companheiro ao
lado de outro na construção de um saber teológico mais sólido,
porém mais arejado.
O texto que o leitor tem as mãos é o resultado de sua disserta­
ção de mestrado, da qual tive a honra de ser seu orientador. Não
pode ser lido de uma “sentada”; ao contrário, em virtude de seu
pensamento tentacular, de sua linguagem apurada, precisamos
ler e reler alguns parágrafos para captar seu significado. Nem por

11
isso é um texto obscuro, hermético, compreendido apenas pelos
iniciados. Ao contrário, quando vamos chegando ao seu âmago e
compreendendo sua proposta, então vai-se descortinando diante
de nós um novo caminho.
O que aqui se chama de novo caminho é a percepção do autor
de que a nossa Teologia Sistemática tem produzido um discurso
de uma só voz (univocidade), desconsiderando as inúmeras vozes
que nascem dos diferentes contextos dentro dos quais a vida acon­
tece e a teologia também. N a tentativa de tornar a fé cristã mais
inteligível ao mundo greco-romano, os primeiros esforços teoló­
gicos dentro do cristianismo fizeram uso da metafísica grega, ele­
mento que é apontado pelo autor, como responsável por esta
tendência univocizante e universalizante da Teologia Sistemática.
Com a opção radical pela metafísica, a teologia afastou-se radical­
mente do outro pólo da cultura grega, o mito, que nada mais era
do que uma linguagem metafórica e que, por causa das suas imen­
sas possibilidades de interpretação, é por natureza polissêmica, car­
regada de muitas vozes. Usando a linguagem do autor, eu diria que
a sublevação da metafísica na teologia sistemática fez que ela “se es­
quecesse” de que a metáfora é por excelência a linguagem do mis­
tério, mistério pelo qual a teologia deve existir. Obviamente, essa
univocidade trouxe para nossa maneira de fazer teologia um pro­
fundo empobrecimento, por ser seu método um “samba de uma
nota só” e, por isso, deixa de ecoar a riqueza infinita de outras
notas que, quando harmonicamente unidas, sempre produzem
belas e diferentes sinfonias.
De posse dessa percepção, e não querendo ser refém de uma
perspectiva somente crítica que descreve a doença sem preocupa­
ção alguma de apontar remédios, o autor constrói, com o brilhan­
tismo que lhe é peculiar, uma proposta de superação dessa

12
univocidade da teologia sistemática. Revelar neste prefácio que
proposta é essa seria como contar ao leitor o final do filme. Este é
um prazer que deixo reservado a todos os que mergulharem com a
atenção devida neste texto e, então, puderem como eu ter o pra­
zer de dialogar com Alessandro!

E d u a r d o R o s a P e d r e ir a
Doutor em teologia pela PUC-R] e professor de ética corporativa
na Fundação Getúlio Vargas. E pastor da Comunidade
Presbiteriana da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.

13
Introdução

Este estudo sobre a teologia sistemática manualista e seu dis­


curso univocizante tem como ponto de partida a filosofia, passa
pela fenomenologia da religião e pela antropologia, e visa à pro­
posição de uma abordagem que abrigue em seu interior a multipli­
cidade dos locais hermenêuticos.
Nossa preocupação fundamental foi a compreensão da impor­
tância das mediações culturais (v. Glossário, mediação culturai) no
discurso teológico, sobretudo do ponto de vista dogmático. Para
esse fim, valemo-nos do suporte teórico da filosofia, da antropolo­
gia e da fenomenologia numa dupla tarefa: evidenciar a tendência
universalizante (v. Glossário, abordagem totalizante-universalizante)
da teologia sistemática como herança das tradições metafísicas e
propor, em contraposição a essa tendência, uma abordagem teo­
lógica que contemple as vivências regionais da fé, em suas inúme­
ras possibilidades pedagógicas — valorizando sobretudo a
multiplicidade da linguagem metafórica como viabilizadora da
autonomia dos saberes teológicos locais.
Por percebermos que a teologia sistemática manualista (v. Glos­
sário, manualística) vive um momento de esgotamento de senti­
do, em que a fé cristã se restringe à repetição dogmática de reflexões
histórico-sociais do passado, vimos a necessidade de abordar criti­
camente a “gestação” dos métodos e situá-los como construtos
sociais. O resultado desse labor foi, em última instância, este li­
vro, que pode vir a oxigenar a disciplina, possibilitando aborda­

15
gens originais dos temas da fé que contemplem os novos sujeitos
históricos (v. Glossário, sujeito histórico).
As reflexões aqui contidas justificam-se também socialmente,
considerando-se a distância existente entre os postulados da teo­
logia sistemática manualista e as questões vivenciadas pelo povo
de Deus em sua caminhada de fé. Os grandes temas da fé crista
não comunicam sentido existencial, passando a ser seu estudo
tão-somente um exercício apologético de ilustração. Nesse senti­
do, a teologia perde seu caráter dialético profundo e sua dimen­
são encarnacional.
Nas tentativa de reabilitar os saberes locais, buscamos mini­
mizar a distância entre a teologia e os cristãos e, o mais importan­
te, reabilitar o terreno da existência cotidiana como elemento e
ponto de partida para o fazer teológico. Isso porque constatamos
ser o sistema manualista (e seus métodos) inadequado em relação
às questões próprias das realidades locais, fato evidenciado tam­
bém na docência teológica e na catequese. Em suma, propomo-
nos a “dar respostas a perguntas que não estão sendo feitas” .
Toda esta obra baseia-se na seguinte questão central: “Como se
deu a formação do discurso de tendência universalizante utiliza­
do pela teologia sistemática na abordagem dos temas da fé cris­
tã?” . E, com a resposta encontrada, procuramos desenvolver uma
abordagem crítica que permita sua superação.
Em decorrência do problema central, surgiram indagações
pertinentes: “Como verificar e compreender o processo que le­
vou a comunidade cristã antiga a privilegiar o uso da metafísica
em detrimento da metáfora na comunicação dos temas da fé?” ;
“Qual o resultado — sobretudo metodológico — desse proces­
so para o discurso teológico dogmático-sistemático e como
mensurar essa contribuição para a teologia?”; “Como desenvol­

16
ver uma possível crítica a procedimentos metodológicos que
universalizam um local (histórico-social) em detrimento de ou­
tros e quais contribuições se podem receber dos aportes teóricos
assumidos neste estudo?”. Para responder a isso, apoiamo-nos em
dois argumentos:

1) A formação do discurso teológico dogmático deve à filoso­


fia grega os elementos fundamentais de sua elaboração
metodológica.
2) A filosofia grega, contrapondo-se à mentalidade escorada
em mitos, que acentuava a equivocidade (v. Glossário)
hermenêutica e valorizava a metáfora como forma adequada
de expressar as realidades que escapam ao cotidiano, esta-
beleceu-se sobre a necessidade de uma afirmação da univo­
cidade (v. Glossário) da verdade.

O unívoco, porém, só poderia ser afirmado com base em uma


fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que
são equívocas). Somente dessa forma seria possível afirmar uma
resolução de abrangência universal. E a fonte fidedigna que a
filosofia grega elaborou para afirmar a univocidade universal foi
a metafísica.
Dessa hipótese central, surgiram ainda outras, de caráter com­
plementar. Primeira, ao tomar dessa filosofia (ou seja, da media­
ção cultural — v. Glossário) os elementos para a comunicação de
sua experiência de fé, transformando-a em discurso sistemático, a
teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equivo­
cidade e a metáfora, aproximou-se gradativamente da univocidade
e da metafísica. Segunda, como resultado desse processo temos a
dogmatização dos temas da fé, ou seja, a ascensão de compreen-
sões elaboradas na cultura ao status de verdades últimas e funda­
mentais.

17
Diante desse discurso teológico, que potencializa, com base na
metafísica, uma mediação cultural, cristalizando-a e transforman­
do-a em norma de alcance e vigência universais, é imperioso que
se afirme o distanciamento da teologia das vivências históricas e
culturais. Isso é feito na afirmação das mediações culturais como
fator determinante para novas abordagens metodológicas e exigiu
a transferência da elaboração do método do locus (v. Glossário)
metafísico para o âmago dos processos culturais.
Finalmente, como resposta à condição univocizante em que se
encontra a teologia sistemática manualista, causada pela cristali­
zação de uma mediação cultural normatizante, é preciso afirmar o
“local” como princípio de uma nova abordagem metodológica.
Assim, pudemos desenvolver o tema principal em três capítulos.
O primeiro capítulo, de caráter descritivo, versa sobre o proces­
so de sublevação da metafísica (v. Glossário) “em detrimento da
metáfora na comunicação dos temas da fé cristã”. Para evidenciar
esse processo, percorremos a seguinte trajetória:

a) O caminho da univocidade: o surgimento da metafísica na


filosofia grega
Heráclito e Parmênides como possibilidades na construção
de uma teoria do conhecimento
Afirmação de uma possibilidade: a metafísica em Platão e
Aristóteles
b) D a metáfora à metafísica: o caminho da afirmação da
univocidade na teologia cristã
A metáfora no horizonte das vivências e da comunicação
da fé
Aproximação do pensamento cristão à filosofia grega
O caminho da metafísica como instrumento sustentador
da univocidade

18
c) Abordagem metodológica resultante da afirmação metafísica
no interior da teologia dogmático-sístemática

O segundo capítulo, que articula descrição e proposição, trata


da “ascensão, potencialização e evocação: processo de gestação da
univocidade universalizante”.

a) Aproximação ao núcleo do discurso teológico


A experiência de fé e a necessidade/o desafio de cognosci-
bilização (v. Glossário)
Mediação cultural como locus metodológico
Discurso sistemático como produto de uma reflexão sobre
a experiência de fé
b) Abordagem totalizante-universalizante (v. Glossário) como cris­
talização de uma mediação cultural
Desistoricização (v. Glossário) do discurso teológico
Mecanismos de controle do discurso teológico

N o último capítulo, buscamos a elaboração de uma aborda­


gem metodológica que dê conta dos resultados obtidos. Assim,
propomos uma “afirmação do local como princípio de uma nova
abordagem metodológica em teologia sistemática”. O caminho
percorrido para a proposição dessa abordagem metodológica foi o
seguinte:

a) A morte de Deus como ponto de partida para a libertação da


metáfora
Nietzsche, Deus e a metafísica
Vattimo e a libertação da metáfora
b) O “local”como locus metodológico
Reabilitação da mediação cultural ou: reistoricização (v. Glos­
sário) do discurso teológico

19
Contribuições de Geertz com base em sua compreensão
acerca do “local” como espaço hermenêutico de cultura
c) Considerações sobre a possibilidade de uma nova aborda­
gem metodológica para o discurso teológico sistemático

Desse modo, partindo da sensação incômoda da inadequação


do discurso sistemático da manualística protestante às realidades
do “local” , apresentamos uma proposição metodológica (ainda
que embrionária), cujo propósito é reabilitar a multiplicidade
discursiva das comunidades locais em suas mediações culturais.
Para isso, convidamos o leitor a trilhar o caminho que conduz a
uma terra comum, porém desconhecida, que é a própria realida­
de, a própria cultura, a própria fé —;,em suma, aos elementos que
possibilitam a existência da própria teologia.

20
1
Processo de sublevaçao da
metafísica em detrimento da
metáfora na comunicação dos
temas da fé cristã

T entar segu ir rad icalm en te a lógica n ão-v itim ária e


antimetafísica da revelação cristã significa permanecer pura e
simplesmente sem limites e sem orientações racionais? Talvez
sim, poderíamos afirmar [...] porque confiamos na certeza das
evidências metafísicas mais do que na interpretação que a co­
munidade dos crentes — e cada crente em sua própria liberda­
de — fornece da palavra divina em relação ao mutável porvir
da história? As respostas a esta pergunta podem ser apenas
duas: ou porque acreditamos que Deus é imutável, mas, en­
tão, ele é o Deus da metafísica ao qual seria difícil atribuirmos
a criação do mundo no tempo, e, ainda menos, a criação de
seres livres por amor, ou porque as evidências metafísicas es­
tão em reparo de qualquer eventualidade da liberdade, coloca­
das todas nas mãos da autoridade que é sua depositária para
sempre, e que, aliás, é chamada a impô-las mesmo quando a
livre busca descobre a sua insubsistência. Estas duas respostas
não são alternativas; em vez disso, na história antiga e recente
da Igreja, elas se entrelaçam em um modo difícil de ser des-
trinçado. Por isto, também, a sua prevalência, ainda tão maci­

21
ça no nosso presente, não pode ser atribuída de forma simplista
à astúcia perversa dos clérigos. O que não quer dizer, porém,
que não devamos preparar continuamente a sua superação,
ainda que apenas na forma da Verwindung, com um esforço
de crítica radical.
V a t t im o , Depois da cristandade, p. 149-50.

O que propomos no presente capítulo é percorrer o itinerário


da sublevação da metafísica (v. Glossário) no âmbito da teologia cris­
tã e na construção de seu discurso, apontando o gradativo abando­
no da metáfora como forma adequada de comunicar os temas da fé.
Para tanto, é indispensável conhecer o desenvolvimento da
metafísica na cultura grega, sobretudo pelo fato de que a teo­
logia cristã refez esse mesmo caminho ao aproximar-se do mun­
do greco-romano, na tentativa de tornar compreensível sua
mensagem.
O que se pretende com a indicação de um itinerário seme­
lhante na construção desses discursos — filosóficos e teológicos
— é apontar as conseqüências imediatas na formulação de uma
teoria do conhecimento subjacente a eles. Característica funda­
mental dessa teoria do conhecimento é a afirmação da univocidade
(v. Glossário) que, além de sustentar a metafísica, assenta os fun­
damentos da lógica e seu princípio da não-contradição.1
O itinerário da filosofia grega compartilhado pela teologia cristã
produziu elementos nos âmbitos do conteúdo e do método. De
um lado, acham-se os temas incorporados sincreticamente pela
teologia; de outro, as próprias técnicas de pesquisa que possibili­
tam determinados temas.2

1 Urbano ZlLLES, Teoria do conhecimento, p. 43-61.


2 Nicola A bbagnano , Dicionário de filosofia, p. 668.

22
Neste capítulo objetivamos a discussão do método.3 É funda­
mental, portanto, rastrear o itinerário da metafísica, que estruturou
o discurso teológico-cristão — desde seus primeiros passos, em
Parmênides, até sua construção última, em Aristóteles; das pri­
meiras aproximações de Clemente de Alexandria até Tomás de
Aquino.4 Esse itinerário é, a um só tempo, o da afirmação da
metafísica e o da negação da metáfora; o do abandono da polissemia
pela afirmação da univocidade.

O caminho da univocidade: o surgimento da metafísica


na filosofia grega
A univocidade como forma de linguagem para expressar a rea­
lidade não é o tronco da existência do discurso, mas um ramo que
parte de outro tronco, polissêmico e, portanto, mais voltado à
equivocidade (v. Glossário): o mito.5
Galimberti estabelece a diferença entre o mito e o método cien­
tífico que advém da filosofia, indicando o mito como um cami­
nho com as seguintes peculiaridades:

Por isso é necessário seguir um caminho, mas como não se


indica o lugar a que se deve chegar, não se pode entender o
caminho como simples meio para alcançar a meta que deixa o

3 Não só no primeiro capítulo como em todo o texto, nós nos deteremos,


sempre que possível, na influência metodológica da metafísica grega sobre
a teologia cristã. Com isso, foca-se o presente trabalho no método e deixa-se
a discussão dos conteúdos para etapa posterior ou para outras leituras.
4 Aniceto MOLINARO, Metafísica: curso sistemático, p. 22,3.
5 Nesse caso, a realidade não é sustentada metafisicamente, mas metaforica­
mente. Os discursos estruturantes não dependem tanto de sua capacida­
de uniformizadora, mas antes de sua capacidade de articular a multiplicidade.
A metáfora torna-se aqui a mais relevante forma de produção de discurso.

23
caminho para trás. Este é o motivo por que não há um método
para ler os mitos. Deixando para trás ironia, maiêutica, epoché,
dúvida, numa palavra os métodos do Ocidente, o mito inaugu­
ra aquele encontrar-se o caminho, aquele entreter-se no cami­
nho, sem possibilidade de que o resultado possa se oferecer
como meta alcançada.6

O mito, portanto, na perspectiva desse autor, consiste numa


via que afirma a caminhada mais que a meta, a vivência mais que
a definição, a existência mais que a essência, a possibilidade
desestruturadora da equivocidade mais que as certezas produzi­
das pela univocidade. Para ele, o mito é instaurador de realidades,
e não definidor delas.
O mito, com efeito, nunca é “este” ou “aquele”, no sentido
em que a lógica conecta um predicado a um sujeito. A expres­
são “é” , atribuída ao mito, tem sempre e apenas um significa­
do transitivo. Só se pòde dizer que o mito é isto ou aquilo no
sentido em que a aventua, a faz acontecer. A impossibilidade
de definir o mito com a lógica da razão testemunha a impos­
sibilidade lingüística intimamente ligada à incapacidade da ra­
zão de falar sem suprimir a fonte mesma da linguagem, pelo
que a relação com a linguagem se torna relação privilegiada,
em que o mito vem ou não à luz como fato lingüístico, en­
quanto ocasiona ou não vocábulos, exprime ou não culturas,
institui ou não linguagens.7

Nesse sentido, é necessário relacionar-se com o mito não como


instrumento para desvendar a realidade, mas como palavra que
fala — palavra grávida de sentido existencial.

6 Umberto G alimberti, Rastros do sagrado, p. 48-9.


7 Idem, ibidem, p. 48.

24
É contra essa impossibilidade lógica que o mito se instaura e
que a filosofia se apresenta como discurso acerca da verdade.8 Como
afirma Zilles: “Até certo ponto se pode dizer que, na filosofia, se
expressa a autoconsciência de determinada época. Assim, filosofias
expressam o ser homem em sua história” .9
A autoconsciência expressa na filosofia grega é resultado de um
processo histórico-político-cultural que se foi firmando sobre a
necessidade de emancipar esses elementos do universo mítico, o
qual estruturava uma ordem social que gradativamente foi substi­
tuída. Como diz Vernant:

Advento da pólis, nascimento da filosofia: entre as duas


ordens de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para
que o pensam ento racional não apareça, em suas origens,
solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade
grega.10

A filosofia grega como discurso acerca da realidade é fruto de


uma cultura, sem a qual não pode ser eficazmente compreendida.
Para além da pesquisa sobre o deslocamento do mito em direção à
filosofia (que atende aqui ao propósito de percepção de seus de­
terminantes culturais), importa indicar a complexidade desse
processo, que é a assunção das normas produtoras de discurso
a uma esfera atemporal, legitimadora das falas temporais —
uma fonte de autoridade para as pretensões do discurso unívoco.

8 Há uma discussão entre os historiadores da filosofia se esta nasceu de uma


transformação gradual dos mitos gregos ou de uma ruptura radical (Marilena
Chauí, Introdução à história da filosofia, v. 1; Danilo M arcondes , Introdu­
ção à história da filosofia).
5 Teoria do conhecimento, p. 45.
10 As origens do pensamento grego, p. 141.

25
Importa então compreender o surgimento da metafísica no âmbi­
to da filosofia grega como caminho de afirmação da univocidade.
Para legitimar a possibilidade de um discurso unívoco em
contraposição a outro, de caráter equívoco, próprio da poética
mítica, a filosofia passa a afirmar a unidade como essencial a toda
a existência. Essa unidade é evocada como princípio universal ca­
paz de abarcar toda a multiplicidade. Dessa forma, dizer sobre a
unidade é, ao mesmo tempo, dizer sobre a multiplicidade. O
múltiplo é dito não por ele mesmo, mas por uma pretensa essência
que o antecede e, em última instância, institui-o.
Inaugura-se dessa forma, na dimensão da racionalidade, a
dicotomia entre essência e existência. A existência, num primeiro
momento, é destituída de um núcleo em si mesma e, posteriormen­
te, reduzida à sombra de uma instância superior. E é exatamente
a metafísica que propõe essa abordagem, a qual posteriormente
granjearia para si o status de filosofia primeira.

A metafísica não considera o ente enquanto este ou aquele


ente, não o ente na sua diferença, variedade, diversidade, nos
seus setores ou regiões ou categorias determinadas e particula­
res; ela estuda o ente sob este único aspecto ou ângulo, segundo
o qual o ente simplesmente é ou é ente. Sob este aspecto a
metafísica estuda o ente precisamente naquilo que o determina
como ente, naquilo que faz com que o ente seja ente, naquilo
que faz com que o ente se tome ente. Assim fazendo, a metafísica
estuda o ser do ente: o ser é aquilo pelo qual o ente é ente.11

O ser da existência encontra-se fora dela. Nesse sentido, a exis­


tência é entificada (v. Glossário, existência entificada), estando assim

11 Aniceto M o lin a r o , Metafísica, p. 7.

26
sua compreensão última alienada a üma essência que se identifica
com o próprio ser. Dessa forma, “a metafísica é ciência da totali­
dade do ente visto a partir do ser” .12 E ainda: “Neste caso sendo
a ciência da totalidade do ente, a metafísica é a ciência total: é
ciência da totalidade do ser e é a totalidade da ciência”.13
A filosofia grega, distanciando-se da polissemia geradora de
plurivocidade (v. Glossário), encontra na metafísica um instrumento
adequado, capaz de sustentar um discurso unívoco que, por ser
unívoco, pode ser referido como universal. Uma vez potencializado
e legitimado numa esfera de autoridade a-histórica, ele é evocado
como fundamento último da existência, ou seja, como sua pró­
pria essência. Nesse sentido, discurso e realidade são identifica­
dos como parte de uma mesma coisa. O discurso é a mesma
realidade que anuncia. Por isso, ele acaba identificando-se com a
própria essência da existência que inaugura.

Desse m odo, a investigação metafísica é conduzida pela


preocupação de descobrir as razões supremas da realidade.
Q uem faz metafísica perscruta o mistério do ser dos entes
com a finalidade de descobrir o que lhes dá consistência e os
preenche com a realidade.14

A metafísica está para a filosofia como um método de com­


preensão da verdade. Essa verdade alcançada pela filosofia com
base na metafísica é absoluta, porque se identifica com o ser (funda­
mento último da existência). “Ser e verdade são a mesma coisa, e
a metafísica, enquanto ciência do ser como tal, é ciência da verda­

12 Aniceto M olinaro , Metafísica, p. 7.


13 Idem, ibidem, p. 8.
14 Mareio Bolda da S ilva, Metafísica e assombro: curso de ontologia, p. 30.

27
de como tal”.15 Para completar seu método de produção de co­
nhecimento de caráter unívoco, a filosofia, além da metafísica,
gerou a lógica, que marcaria a impossibilidade da contradição no
âmago de uma proposição que se pretendesse verdadeira.
Embora tenha sido essa a caminhada feita pela filosofia em seu
período clássico, não era ela a única possibilidade. A assunção da
metafísica (e também da lógica) como método de produção de
conhecimento na filosofia grega deu-se com base na afirmação do
pensamento de Parmênides em detrimento do de Heráclito. Im­
porta agora evidenciar a compreensão da realidade que subjaz ao
pensamento desses filósofos, pois, com base nessa compreensão,
torna-se possível entender a construção da teoria do conhecimen­
to em cada um deles.

Heráclito e Parmênides como possibilidade na construção


de uma teoria do conhecimento
Dentro da filosofia pré-socrática, salienta-se a filosofia de
Heráclito e Parmênides. Trata-se de duas construções opostas, situa­
das em dois pontos geográficos extremos: Éfeso, na Grécia asiática,
e Eléia, no Sul da Itália. Essas duas localidades têm em comum o
ponto de partida, herdado dos filósofos jônios: “Existe um princí­
pio único que explique o mundo em seus diversos e múltiplos
aspectos?” . De Éfeso, Heráclito apregoa que os contrários formam
uma unidade; de Eléia, Parmênides afirma que os contrários ja­
mais podem coexistir.16
Tanto Heráclito quanto Parmênides buscam afirmar uma teo­
ria do conhecimento que possibilite ordenar a vida. A diferença
fundamental entre os dois é o ponto de partida para essa tentativa

15 Aniceto M olinaro, Léxico de metafísica, p. 132.


16 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 55.

28
de ordenação e afirmação da verdade. Heráclito parte da experiên­
cia — da existência por assim dizer — , e Parmênides busca afir­
mar a verdade das coisas no plano metafísico, naquele próprio da
essência.

A doutrina de Heráclito pode se resumir nos princípios


seguintes: 1) O elemento primordial é o vir-a-ser. Tudo se acha
em perpétuo fluxo, a realidade está sujeita a um vir-a-ser con­
tínuo. O único princípio estável da realidade é a lei universal
do próprio devir [...] 2) O vir-a-ser é antítese, luta, revezar-se
de vida e de morte [...] 3) A unidade do real está na lei dialéti­
ca, racional, do vir-a-ser; a causa da diferenciação das coisas
está no devir.17

O devir, mobilismo como princípio fundador, é o centro do


pensamento de Heráclito. Os fragmentos de sua obra possibili­
tam essa compreensão. O fragmento 8 registra: “Tudo se faz por
contraste, da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”.18
O 49A apresenta: “Descemos e não descemos para dentro dos
mesmos rios; somos e não somos” .19 O 91 expõe: “Não se pode
entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e se junta novamen­
te, aproxima-se e se distancia”.20 E o 53 acrescenta: “A guerra (gr.
polemos) é o pai de todas as coisas”.21
Em Heráclito, deve-se entender o devir desde seu ponto de
partida cognoscitivo. Heráclito parte do dado da experiência: o
fluxo incessante das coisas e do sujeito cognoscente. “Ao fluxo da

17 Umberto Padovani & Luis C astagnola, História da filosofia, p. 101.


18 Danilo M arcondes, Textos básicos de filosofia,'p. 15.
19 Ibidem, p. 16.
20 Ibidem, p. 17.
21 Ibidem, p. 16.

29
experiência Heráclito opõe a exigência da razão e a necessidade
religiosa da unidade permanente. A fé e a autoconsciência, segun­
do ele, permitem descobrir, no homem e nas coisas, a razão eter­
na, harmonia oculta e identidade dos contrários”.22
Partindo da experiência (“Prefiro tudo aquilo que se pode
ver, ouvir, e entender.”23), Heráclito afirma poder encontrar “no
homem e nas coisas” a verdade. Essa verdade realiza-se no devir,
ou melhor, faz-se e refaz-se no devir, no espaço próprio e concre­
to da existência. Uma teoria do conhecimento advinda do pen­
samento de Heráclito consagra a concretude da vida como espaço
único da afirmação e compreensão da verdade, não como coisa
acabada, mas como um processo (devir contínuo), por assim
dizer, equívoco.
Parmênides, ao contrário de Heráclito, tenta eliminar tudo o
que seja variável e contraditório. Ele contrapõe os conceitos de
opinião (doxa) e verdade (gr. alétheiá). Descarta o conhecimento
por meio dos sentidos como meras opiniões e opta pela certeza
que a razão produz por meios lógicos e dedutivos.
Sua obra principal, o poema Sobre a natureza, expõe, no frag­
mento 8, essa separação ao propor a existência de dois caminhos,
o da opinião e o da verdade. “A decisão sobre este ponto recai
sobre a seguinte afirmativa: ou é ou não é. Decidida está, portan­
to, a necessidade de abandonar o primeiro caminho, impensável e
inominável (não é o caminho da verdade); o outro, ao contrário, é
presença e verdade.”24
Analisando a contraposição de opinião e verdade no poema de
Parmênides, Chauí comenta:

22 Urbano Z illes , Teoria do conhecimento, p. 56.


23 Danilo M arcondes, Textos básicos de filosofia.
24 Idem, ibidem, p. 13.

30
É sintomático que o poema-fale em duas vias ou dois cami­
nhos que correspondem à palavra inspirada (a verdade como
não-esquecimento do que foi contemplado no invisível) e à
palavra leiga das assembléias (a verdade como decisão e opi­
nião compartilhada nas discussões públicas). Alétheia e d o xa P

O simples enunciado de dois caminhos revela uma tendência


à afirmação das categorias de verdadeiro e falso. Uma delas será
tão-somente o depositório de todos os vícios que não se encon­
tram na outra. N a teoria do conhecimento, advinda do pensa­
mento de Parmênides, isso está amplamente evidenciado.

E agora vou falar; e tu, escuta as palavras e guarda-as bem


pois vou dizer-te dos únicos caminhos de investigação conce­
bíveis. O primeiro diz que o ser é e que o não-ser não é; este
é o caminho da convicção, pois conduz à verdade. O segundo,
que não é, é, e que o não-ser é necessário; esta via digo-te, é
imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é —r
isto é impossível — , nem expressá-lo em palavras [...] afasta,
portanto, o teu pensamento desta via de investigação, e nem te
deixes arrastar a ela pela múltipla experiência do hábito.26

A distinção que Parmênides faz entre verdade e opinião, ser e


não-ser, imobilismo e mobilismo aponta para a necessidade de afir­
mação de um único aspecto, um único caminho como correspon­
dente à realidade. Algumas questões, no entanto, impõem-se a esse
pensamento. Como afirmar o uno em meio ao múltiplo? Como
falar de imobilismo num ambiente marcado pela mobilidade? Do
ponto de vista do método de produção de conhecimento, quais
instrumentos podem ser utilizados nesse intento?

25 Marilena C hauí, Introdução à história da filosofia, p. 89.


26 Danilo M a r co nd es , Textos básicos de filosofia.

31
O pensamento de Parmênides inaugura na filosofia grega um
método de conhecimento da verdade. Se esta não pode ser
verificada na multiplicidade das interpretações nem na mobilida­
de (aparências) das coisas sensíveis, é necessário buscá-la em ins­
tâncias outras, com instrumentos capazes de aferi-la em meio às
opiniões. Nesse sentido, Parmênides é considerado o primeiro a
formular os princípios da lógica e da metafísica.27
Tanto a lógica (com seus princípios de identidade e não-con-
tradição) quanto a metafísica (em sua identificação da verdade
como não-esquecimento do contemplado no invisível) permitem
que Parmênides afirme a univocidade da verdade, a qual se funda
não no interior da existência, mas em outra dimensão, própria da
essência. “Para encontrar a verdade, o filósofo deve fixar-se no ser
além de toda multiplicidade.”28
O caminho da univocidade encontra na inauguração da
metafísica as condições necessárias à sua afirmação. A metafísica
passa a ser um instrumento de conservação da verdade única que
se estabelece na negação de toda multiplicidade. Dessa forma, o
pensamento de Parmênides apresenta-se fundador. Molinaro afir­
ma a respeito de Parmênides:

Relativamente à multiplicidade, todo outro diferente do ser


deve ser negado: a planta é outro diferente do ser, e assim por
diante. Toda diferença, diversidade, variedade, enquanto ou­
tro diferente do ser, decai na negação, porque decai na anula­
ção do ser, ou seja, no não-ser: afirmar a multiplicidade das
coisas eqüivale a afirmar que o não-ser é. Se, portanto, o não-
ser não pode ser e se a multiplicidade é necessariamente, pelo

27 Marilena C hauí, Introdução à história da filosofia, p. 90-5.


28 Aniceto M o linaro , Metafísica: curso sistemático, p. 23.

32
menos no plano do rigor lógico e lingüístico, não ser é forçoso
negar a multiplicidade: ela não passa de opinião, ilusão.29

A univocidade lógico-metafísica de Parmênides, para não dizer


o ser (essência), precisa negar a existência. “Multiplicidade, mu­
dança, nascimento e perecimento são aparências, ilusões dos sen­
tidos.”30
Tanto Heráclito quanto Parmênides propõem uma teoria do
conhecimento. Ambos se apresentam com possibilidades à filoso­
fia. O pensamento de Parmênides, porém, sobretudo a lógica e a
metafísica, será aquele que a influenciará em seu período clássico.

Afirmação de uma possibilidade: a metafísica em


Platão e Aristóteles
Interessa neste momento não uma exposição exaustiva das obras
de Platão e Aristóteles, mas a afirmação do pensamento de
Parmênides, principalmente a metafísica, no interior da filosofia
grega clássica em seus dois principais representantes.31 Além de
trabalhar a continuidade de Parmênides, importa também evi­
denciar a teoria do conhecimento (método) formulada por esses
pensadores.
Platão (428-347 a.C.), em sua teoria do conhecimento, apro­
xima num primeiro momento o pensamento de Heráclito ao de
Parmênides. N a metafísica platônica, há lugar para o ser estático

29 Idem, ibidem, p. 23.


30 Marilena C hau Í, Convite à filosofia, p. 212.
31 Dada a extensão dos textos desses dois autores e de um interesse específico
deste trabalho, as citações deste tópico serão, quase sempre, de comentaris­
tas, e não dos próprios autores, para evitar transcrições muito longas, que
desvirtuariam nosso foco, tornando este texto, além de enfadonho, extenso
demais. Na Bibliografia, o leitor encontrará todas as obras pesquisadas.

33
de Parmênides e para o mundo em devir de Heráclito.32 Isso,
contudo, não significa a assunção da existência ao status de digni­
dade, mas a organização da existência e da essência.

Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refe­


re ao mundo material e sensível, mundo das imagens e das
opiniões. A matéria, diz Platão, é por essência e natureza algo
imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas
[...] o mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável
[...] e, por isso, dele só nos chegam as aparências das coisas e
sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias.
Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que
a filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com
o mundo verdadeiro, invisível aos sentidos e visível apenas ao
puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico
a si mesmo, eterno, imperecível, puramente inteligível.33

Platão toma o pensamento de Heráclito e Parmênides e arru-


ma-os num edifício de dois andares. Atentando para o erro de
Parmênides em desconsiderar o devir, identificando-o com o não-
ser,34 Platão afirma que o devir é legítimo de ser considerado,
porém próprio da dimensão da existência em que as coisas são
imperfeitas. As perfeições ou essências, que Parmênides identifica
com o ser, estão em outra dimensão da realidade, em outro mun­
do, numa dimensão superior.
Essa proposição de dois mundos que Platão apresenta em seu
diálogo, A República, revela sua compreensão acerca da apreensão
da verdade e como e onde ela é possível.

32 Batista M o n d in , Curso de filosofia., p. 63, v. 1.


33 Marilena C hauí, Convite à filosofia.
34 Gabriel Garcia M o ren te , Fundamentos da filosofia, p. 220.

34
O mundo das idéias é o mundo do ser, o objeto do conhe­
cimento verdadeiro, universal e necessário, isto é, a sede da
verdade [...] nosso mundo sublunar é uma simples sombra do
mundo das idéias, ou seja, não tem ser, é mera aparência, ou
seja, objeto de um conhecimento que não passa de doxa (opi­
nião). Com a teoria das idéias, Platão sustenta, pois, que o
sensível só se explica mediante o recurso ao supra-sensível, o
relativo mediante ao absoluto.35

A verdade só é possível com base na essência, nunca na existên­


cia. A essência é forma que comunica sentido à existência. Mas
como é possível entrar em contato com o mundo das idéias para
tomar delas a compreensão da verdade?
Esse parece ser um problema para a demonstração do mundo
das idéias (mundo inteligível) e para uma relação epistemológica
que se possa ter com ele. Como o homem que se encontra preso
no mundo das sombras (mundo sensível) pode falar da existência
de uma dimensão que ele desconhece? Platão trabalha essa ques­
tão principalmente em dois de seus diálogos: República (com o
mito da caverna) e Mênon, nos quais desenvolve o argumento da
reminiscência ou anamnese.36 “Temos Idéias de verdade, de bon­
dade, de igualdade, a Idéia universal de homem, etc. Ora, estas
Idéias nós não tivemos da experiência; logo, o conhecimento atual é
recordação de uma intuição que se deu em uma outra vida.”37

35 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 71.


36 Reminiscência (ou anamnese) é o mito platônico que diz que a alma é imortal
e, portanto, nasce e renasce muitas vezes, de tal modo que já viu tudo neste
mundo e no outro, pelo que pode lembrar, em certas ocasiões, o que já sabia.
“E como toda a natureza é congênese e a alma aprendeu tudo, nada impede
que quem se recorde de uma só coisa (que é aquilo que se chama de aprender)
encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que
buscar e aprender não são mais que reminiscência” (Mênon, p. 80-1).
37 Batista M ondim , Curso de filosofia, p. 60.

35
O necessário é, portanto, aprender a recordar. H á no argu­
mento de Platão uma espécie de inatismo da verdade. A alma
preexistia no mundo das idéias, tendo-as contemplado. Por uma
sentença condenatória, foi unida ao corpo no mundo das som­
bras. Como conseqüência dessa queda, a alma já não mais recorda
as idéias que contemplou, porém ainda as traz em si. O argumen­
to da reminiscência garante a possibilidade do conhecimento da
verdade por imagens ou simulacros.

Se aprender é recordar, a ocasião, para isso, é o encontro


com as coisas deste mundo. As quais são cópias das idéias. N o
sistema de Platão, a doutrina da reminiscência exerce três fun­
ções: a) fornece uma prova dá pré-existência, da espiritualidade
e da imortalidade da alma; b) estabelece uma ponte entre a
vida antecedente e a vida presente; c) dá valor ao conhecimen­
to sensitivo, reconhecendo-lhe o mérito de despertar recorda­
ções das idéias.38

Novamente, é possível perceber a aproximação que Platão pro­


move entre o pensamento de Heráclito e o de Parmênides. Os
dois sistemas são valorizados hierarquicamente, produzindo uma
teoria do conhecimento que parte das imagens para as idéias, da
existência para as essências, das opiniões e crenças para a ciência.
Marilena Chauí, em Introdução à história da filosofia, reproduz
sistematicamente a teoria do conhecimento de Platão, dividindo-a
em duas partes: os objetos do conhecimento e os modos de co­
nhecimento aplicáveis aos objetos.39

38 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 74.


39 P. 249-257, v. 1.

36
Os objetivos do conhecimento Os modos do conhecimento
M U N D O INTELIGÍVEL M U N D O SENSÍVEL
Bidos (do gr., formas, idéias) Zóa (do gr., coisas vivas e
Noésis (do gr., intuição coisas visíveis)
intelectual): episteme Pistis (do gr., crença) e Doxá
Ta mathéma (do gr., objetos (do lat., ópinião)
matemáticos) Eikones (do gr., imagens)
Diánoia (do gr., raciocínio Eikasia (do gr., “imaginação”,
dedutivo) simulacros)

Com base nessa sistematização, é possível compreender como


o conhecimento da verdade se dá na filosofia platônica. De baixo
para cima, os graus de conhecimento vão se tornando mais com­
plexos. Ao mundo sensível — das imagens, coisas vivas e visíveis
— eqüivalem os simulacros, as crenças e opiniões acerca da verda­
de. Ao mundo inteligível aplica-se o raciocínio dedutivo e a intui­
ção intelectual como forma de apreensão da verdade em sua
essência. O mundo sensível é tão-somente um simulacro do inte­
ligível. Aquele só é legítimo como ponte para alcançar este.
Dessa forma, Platão estabelece um paradigma na filosofia gre­
ga no que diz respeito à teoria do conhecim ento.40 Nesse
paradigma, o mundo inteligível é a forma de toda existência no
mundo sensível. A verdade só pode ser dita por meio das essên­
cias. A multiplicidade das coisas visíveis ganham unidade em sua
essência. Assim, o múltiplo só pode ser dito com base em sua
unidade, que se encontra fora dele. Todo conhecimento com esse

40 Paradigma: “modelo” ou “exemplo”. Platão emprega essa palavra no primeiro


sentido ( Timeu, 29b, 48e) ao considerar paradigma o mundo dos seres eter­
nos, do qual o mundo sensível é imagem (Nicola A bbagnano , Dicionário de
filosofia, p. 752).

37
paradigma privilegia as essências de tal forma que as identifica
com o real. O real não é o visível, mas o invisível. Não é o sensível,
mas o inteligível. O realismo platônico é, portanto, estritamente
metafísico.
Em Aristóteles (384-322 a.C), a metafísica ganha sistematiza-
ção em seu nível mais complexo. Envolvido na busca do verdadei­
ro, ele afirma ser a metafísica a ciência capaz de dizer o ser como
ser. N a opinião dele, a metafísica é:

Uma ciência que investiga o ser como ser e os atributos


que lhe são próprios em virtude de sua natureza. Ora, esta
ciência é diversa de todas as chamadas ciências particulares,
pois nenhuma delas trata universalmente do ser como ser.
Dividem-no, tomam uma parte e dessa estudam os atribu­
tos: é o que fazem, por exemplo, as ciências matemáticas. Mas,
como estamos procurando os primeiros princípios e as causas
supremas, evidentemente deve haver algo a que eles perten­
çam como atributos essenciais. Se, pois, andavam em busca
desses mesmos princípios aqueles filósofos que pesquisaram
os elementos das coisas existentes, é necessário que esses se­
jam elementos essenciais e não acidentais do ser. Portanto, é
do ser enquanto ser que também nós teremos de descobrir as
primeiras causas.41

Essa ciência (episteme) à qual aspirava Aristóteles em toda a sua


obra expressa um “saber fundado” ,42 um saber ciente de que ne­
cessariamente é sempre assim, já que conhece a razão daquilo que
é conhecido, seu fundamento último, sua causa.

41 Umberto Padovani & Luis C astagnola , História da filosofia, p. 125.


42 Mareio Bolda da S ilva, Metafísica e assombro, p. 74.

38
O próprio lugar da verdade é 0 ser assim como é. Nesse sen­
tido, a metafísica, como fdosofia primeira,43 será impreterivel-
mente uma filosofia do ser. Ela responde à necessidade de
conhecer o verdadeiro, à radical necessidade de averiguar o por­
quê último.
O pensamento de Aristóteles, no que diz respeito à metafísica,
não consiste numa ruptura com seus antecessores pré-socráticos,
sobretudo Heráclito e Parmênides, muito menos com Platão. Há
uma complexidade crescente da metafísica desde Parmênides até
Aristóteles. Assim como Platão, que havia aproximado Heráclito e
Parmênides e sistematizado a teoria desses filósofos em sua com­
preensão da realidade (mundos sensível e inteligível), Aristóteles
também o faz, porém observa que Platão, com seus mundos, ins­
taurava um dualismo entre essência e existência, que destinava
toda a compreensão da verdade a uma instância separada da
intelecção humana.
É nesse sentido que o pensamento aristotélico atinge seu maior
grau de complexidade: todo o edifício metafísico que vinha sendo
construído de Parmênides a Platão, no sentido da afirmação da
essência como elemento fundador de toda a existência, agora é

43 “Poder-se-ia perguntar se a Filosofia Primeira é universal ou se trata de um


gênero, isto é, de uma espécie de ser, pois nem mesmo as ciências matemá­
ticas são todas iguais a esse respeito — tanto a Geometria [quanto a] Astro­
nomia estudam uma espécie particular de ser, enquanto a Matemática
universal se aplica igualmente a todos. A isto respondemos que, se não
existe substância além das que são formadas pela Natureza, a Física será a
ciência primeira; mas, se existe uma substância imóvel, a ciência que a
estuda deve ser anterior, e essa será a Filosofia Primeira, universal no sentido
de ser a primeira. E a ela competirá a consideração de ser enquanto ser —
tanto da sua essência como dos atributos que lhe pertencem enquanto ser”
{Metafísica VI, 1026a, p. 25-30).

39
introjetado no próprio ser humano. Essência e existência não ha­
bitam dimensões distintas nem longínquas: elas coexistem num
mesmo “espaço” . O dualismo externo de Platão é internalizado
com Aristóteles.
É na coisa44 que estão, na compreensão de Aristóteles, a existên­
cia e a essência, que ele identifica como matéria e forma. A “matéria
é o elemento de que as coisas da natureza, os animais, os homens,
os artefatos são feitos”.45 A matéria tem como principal característi­
ca o “possuir virtualidades [...] possibilidades de transformação, isto
é, de mudança”.46 Já a forma “é o que se individualiza e determina
uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares”.47 A
particularidade da forma “é ser aquilo que uma essência é”.48
Partindo dessa compreensão, o dualismo externo platônico só
se diferencia do dualismo interno aristotélico no tocante ao “lu­
gar” para onde se dirige a pergunta pelo ser — se para fora ou
para dentro das coisas. Permanece, contudo, o dualismo, assim
como a hierarquização da essência (forma e existência)/matéria,
na medida em que forma é “essência necessária ou substância das
coisas que têm matéria. Nesse sentido, que está presente em
Aristóteles, forma não só se opõe à matéria, mas a pressupõe”.49
À matéria e forma correspondem, na teoria do conhecimento
de Aristóteles, os conceitos de particular e universal (v. Glossário).
O particular/matéria é próprio da dimensão das sensações e opi­
niões, enquanto ao universal/forma corresponde a razão científica.

44 Nicola A bbagnano , Dicionário de filosofia, p.149-151. “Coisa” é o objeto


natural, também denominado “corpo”.
45 Marilena C hauí, Convite à filosofia, p. 220.
46 Idem, ibidem.
47 Idem, ibidem.
48 Idem, ibidem.
49 Nicola A bbagnano , op. cit., p. 468.

40
O conhecimento científico, a um só tempo, opõe-se às sensações,
valorizando a razão. Matéria, portanto, é espaço da opinião (doxa),
enquanto forma é digna de ciência (episteme).
Assim como Parmênides valoriza o imobilismo em detrimen­
to do mobilismo, que Platão hierarquiza, elevando ao absoluto a
essência sobre a existência, Aristóteles elege como necessário o
universal em relação ao particular.

Por universal, Aristóteles entende o que pertence a todos e


a cada um por si e porquanto tal. Portanto, o universal não é
só o que é comum a todos, mas o que pertence a todos e a
cada um por essência. Por isso, quando Aristóteles diz: “Não
há ciência senão do necessário”, pode dizer igualmente: “Não há
ciência senão do universal”.50

O ser que é objeto da filosofia primeira de Aristóteles (aquele


que vem antes da física) é a forma/ universal que dá sentido à maté­
ria/particular. Toda ciência que queira conhecer a verdade deverá
dirigir-se ao ser/forma/universal e não ao ente/matéria/particular.
Voltar-se ao universal e não ao particular permite, no que tange à
produção de conhecimento, dizer o discurso unívoco sobre a
multiplicidade. Todo múltiplo, a particularidade, encontra sua
unidade no universal, assim como todo ente encontra sua essência
no ser. Qualquer discurso que trilhe a senda da equivocidade, vol­
tando-se ao particular, não é ciência, é apenas opinião.
Em Aristóteles, o caminho da univocidade sustentado pela
elaboração da metafísica, iniciado em Parmênides, encontra-se em
seu momento de maior sofisticação. A filosofia grega clássica encon­
tra-se sistematizada. Embora haja uma tentativa de superação em

50 Urbano Z illes, Teoria do conhecimento, p. 84.

41
cada uma dessas escolas, é possível afirmar um princípio comum
a elas: a separação de essência e existência e a identificação da
essência como lugar próprio do ser. O que se diz de verdadeiro é
dito com base no ser.
Sobre essa compreensão funda-se o conceito de ciência, capaz
de conferir confiabilidade a um discurso. Essa ciência é a metafísica,
então apresentada como paradigma na busca da verdade. Poste­
riormente, esse paradigma seria expandido para além das linhas
limítrofes da Grécia e atingiria outras terras, até mesmo aquelas
que viam brotar a teologia cristã.51

Da metáfora à metafísica: o caminho da afirmação da


univocidade na teologia cristã
Após ter evidenciado o caminho da metafísica na filosofia gre­
ga clássica e sua contribuição para a afirmação de uma teoria do
conhecimento sustentadora de univocidade, só alcançável na di­
mensão da essência e nunca na multiplicidade da existência con­
creta, interessa neste momento a tarefa de evidenciar a similaridade
do caminho trilhado pela teologia cristã comparado ao grego.
A filosofia grega clássica expandida no helenismo, somada
sincreticamente a outras práticas filosóficas e religiosas do mun­
do romano, constituiu o suporte cultural do discurso teológico-
cristão. Não há determinismo cultural nessa teologia, e sim uma
forte influência, sobretudo na dimensão da teoria do conheci­
mento, que só é possível com a linguagem. “A linguagem teológica
do teísmo cristão nasce do encontro da mensagem profético-

51 O paradigma metafísico, próprio da filosofia grega, seria expandido no


período da filosofia chamado helenístico ou greco-romano, que durou do
final do século III a.C. até o século IV d.C. Nesse longo período, a teologia
dos padres da Igreja seria amplamente influenciada.

42
evangélica da divina monarquia cõm o mundo da cultura grega,
especialmente com a filosofia do platonismo”.52
O encontro da mensagem evangélica com a cultura grega pre­
cisa ser compreendido, diferentemente das religiões de iniciação
com base no caráter missionário do cristianismo e de sua tendên­
cia apologética.

Ao encontrar o mundo grego, o cristianismo tinha diante


de si a tarefa de demonstrar que o Deus revelado da aliança
era também o Deus desconhecido e misterioso, objeto trans­
cendente do sentimento religioso universal, coincidindo inclu­
sive com o princípio último da realidade (archè), buscado na
ontologia grega. Assim, os apologetas do cristianismo pensa­
ram encontrar na filosofia grega da religião, particularmente
no platonismo, estoicismo e neoplatonismo, uma linguagem
adequada para descrever o caráter extático da experiência reli­
giosa.53

A teologia cristã encontra na filosofia grega o instrumental


teórico capaz de lhe permitir comunicar sua experiência de fé de
forma cognoscível. Para além dos conteúdos intercambiados nessa
aproximação,54 é fundamental perceber a apropriação das estru­

52 Félix Alexandre P astor , A lógica do inefável, p. 11-2. Também Tillich


discute a influência da filosofia grega na teologia cristã ao longo de todo o
primeiro capítulo de sua História do pensamento cristão. Küng, em A Igreja
católica, afirma: “Os apologistas, que escreviam todos em grego, foram as
primeiras figuras literárias a apresentar o cristianismo como crível a todo
grupo interessado empregando termos, visões e métodos helenísticos que
podiam ser entendidos por todos, p. 52. Libânio, em Introdução à teologia,
volta a esse tema repetidas vezes — por exemplo, quando discute a teologia
patrística e suas características, p. 115-26.
53 Op. cit., p. 13.
54 V. nota 3.

43
turas interiores do pensamento grego, identificadas aqui, princi­
palmente, como metafísica e lógica. A primeira, em sua ênfase na
afirmação do ser como essência dos entes e na negação do múlti­
plo e conseqüente afirmação do uno, identifica a verdade em sua
única possibilidade, em sua condição unívoca. A segunda, com
sua lei de não-contradição, oferece os elementos de coerção/exclu-
são, capazes de manter a univocidade dos discursos.
Falar sobre a similaridade das trajetórias da filosofia grega e da
teologia cristã é, portanto, propor que ambas tenham percorrido
o caminho da afirmação da metafísica como método adequado
na construção da univocidade da verdade. Essa afirmação cons-
trói-se sobre os escombros de outra compreensão acerca da reali­
dade — uma compreensão mais consciente de sua equivocidade,55
manifesta sobretudo no amplo uso da metáfora como forma aproxi-
madora do real.
Existe aqui uma contraposição entre metáfora e metafísica que
precisa ser explicada. N o ambiente da filosofia grega, ambas estão
intimamente relacionadas.56 O uso da metáfora constitui o dis­
curso alegórico, próprio do mundo sensível. Ele é necessário diante
da impossibilidade de os não-filósofos compreenderem as idéias
puras.57 A metáfora é válida à medida que não se identifica com
as idéias, mas é sempre um instrumento necessário em relação à
incapacidade da existência concreta e múltipla, que não pode co­
nhecer a verdade, mas apenas opiniões e crenças.
Ela é, portanto, um instrumento pedagógico necessário, mas
não ideal. A metafísica é que pode apresentar a realidade. Ela

55 V. nota 5.
56 Até Platão, a metáfora é trabalhada ao lado da metafísica. Ela tem o papel de
comunicar significados mais profundos, próprios do mundo das Idéias. Já
Aristóteles destina o uso da metáfora à dimensão da poética.
57 Francisco Garcia B a z á n , Aspectos incomuns do sagrado, p. 33-6.
pode falar do ser, das idéias perfeitas — em suma, da verdade.
Isso se dá porque o ser, a perfeição, a verdade estão fora da existên­
cia concreta. Nesse sentido, a metáfora oferece sempre um simu­
lacro, enquanto a metafísica desvela a verdade que não está no
múltiplo apreendido em instância metafórica, mas no um encer­
rado na essência.
H á na qualificação da metáfora uma desqualificação da
multiplicidade. N a filosofia, seu uso não é mais aquele da dimen­
são mítico-religiosa, mas apenas um passo para seu abandono, o
que em Aristóteles se evidenciará. N a trajetória cristã, isso pode
ser verificado num processo muito semelhante, já que, ao tomar
dessa filosofia os elementos para a comunicação de sua experiên­
cia, transformando-a em discurso sistemático sobre a realidade, a
teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equi­
vocidade da metáfora (embora a mantivesse como elemento pos­
sível ao seu discurso), aproximou-se gradativamente da univocidade
da metafísica.
Falar sobre essa trajetória da teologia não consiste aqui em
outra coisa senão na tentativa de compreender a teoria do co­
nhecimento construída pelo discurso teológico-cristão em sua
relação com a filosofia grega. Em suma, como a compreensão
unívoca acerca da verdade, tão acentuada na teologia dogmática,
pôde surgir numa religião marcada tão fortemente pelo uso da
linguagem metafórica.

A metáfora no horizonte das vivências e da


comunicação da fé
“A metáfora é, a serviço da função poética, a estratégia de dis­
curso pela qual a linguagem se despoja de sua função de descrição
direta para aceder ao nível mítico no qual sua função é libera­

45
da.”58 Como diz Ricoeur, a metáfora é uma “estratégia de discur­
so”, na qual a linguagem está despojada de sua condição descriti­
va e conceituai. Por isso ela é tão cara à experiência religiosa, que
se articula sobre a subjetividade. A experiência religiosa é indizí-
vel do ponto de vista conceituai e, mesmo assim, é chamada a
comunicar-se. Como, então, dizer o indizível? Certamente, no
âmbito conceituai da linguagem isso não pode ser feito. Nesse
sentido, a metáfora apresenta-se como instrumento fenomeno-
lógico para a compreensão das experiências religiosas, com suas
vivências e sua comunicação.
A pertinência da metáfora no discurso teológico (sistematiza-
ção de experiências religiosas) acha-se nas palavras de Boff: “As
metáforas não falam de uma equivalência formal e essencial, mas
sim de uma equivalência funcional e dinâmica”.59 Sua relevância
está na capacidade de produzir significado no interior de grupos
que partilham os mesmos signos e comungam de um mesmo
universo de significação. Dentro desse universo, a metáfora per­
mite a elaboração de discursos que, mesmo partilhados, já que os
signos são comuns, podem ser reelaborados à medida que os sig­
nificados se tornam literais, perdendo o sentido existencial e pas­
sando a ser compreensões padronizadas, conceituais. Depois que
as expressões são dicionarizadas, elas perdem alcance simbólico, e
nega-se a elas a polissemia.
O uso metafórico da linguagem contrasta com seu uso literal,
que é simplesmente o uso-padrão em vigor dentro de uma comu­
nidade lingüística e emprega palavras para transmitir sentidos
convencionados, adequados ao registro em dicionário. Assim, os
sentidos literais de uma palavra são, em termos aproximados, seus

p. 376.
58 R ic o eu r , Metáfora viva,
59 Teoria do método teológico, p. 332.

46
sentidos lexicais — e “falar literalmente” eqüivale a pretender que
nossos enunciados sejam compreendidos em seu sentido-padrão
ou dicionarizado. Em contraste com isso, a metáfora é uma forma
de discurso não literal, isto é, figurativa. O discurso metafórico,
portanto, é uma forma de linguagem em que o sentido emprega­
do pelo falante difere daquele constante do dicionário.60
A contraposição entre linguagem literal e metafórica e seu uso
no discurso teológico têm como pano de fundo uma questão
epistemológica. Por um lado, a linguagem literal pretende um
discurso unívoco fundado numa perspectiva essencialista das coi­
sas. Por outro, a linguagem metafórica permite uma equivocidade
no discurso teológico, que se fundamenta na existência múltipla
das coisas. Em suma, para ser relevante e verdadeiro, o discurso
teológico deve fundamentar-se na essência ou na existência? Se na
essência, a linguagem deve ser literal, capaz de identificar o dis­
curso com a realidade, produzindo a univocidade da verdade. Se
na existência, a linguagem será metafórica, compreendendo a teo­
logia como ciência hermenêutica aberta à equivocidade e, por
assim dizer, ao caráter provisório de seu discurso.
Ao comentar a condição hermenêutica da teologia e de sua
relação com a semiótica (v. Glossário), Croatto aponta para a im­
portância da polissemia, que aqui pode ser “metaforicamente”
identificada com a equivocidade.

N a semiótica, diz-se que o sentido não é algo “objetivo” e


palpável que está no texto em estado puro, de modo que o
exegeta pudesse “encontrá-lo” graças a sua habilidade técnica e
seus recursos filológicos e históricos. Assim, quando há mui­
tas interpretações, todas menos uma estariam erradas. A deci­

60 John H lCK, A metáfora do Deus encarnado, p. 136-7.

47
são sobre qual é a verdadeira viria de uma autoridade extra-
textual [...] E o que é pior: a mensagem resulta atrofiada e não
se pode depreender em novas leituras criativas. Talvez até dei­
xe de ser mensagem.61

Embora Croatto esteja tratando do assunto no âmbito da


exegese, sua reflexão é bastante apropriada a esta discussão. Quando
ele afirma que, ao julgar haver um só sentido verdadeiro, a mensa­
gem fica atrofiada, ou seja, destituída da possibilidade de novas
leituras, coincide com o que se afirma aqui acerca da capacidade
de literalizaçãó (v. Glossário) da metáfora, que apresenta o discur­
so teológico unívoco. Seja na exegese, seja na dogmática, o encer­
ramento da polissemia pretendido pela univocidade serve ao
empobrecimento de sentido e à irrelevância da teologia.
Embora o argumento para a fixação de discursos histórico-
culturais seja a necessidade da preservação da verdade doutrinária
contra as heresias, Hick declara que, “na verdade, a heresia básica
sempre foi a de tratar a metáfora religiosa como metafísica lite­
ral”.62 Aqui é possível identificar um problema fundamental. A
metáfora religiosa, isto é, o discurso teológico resultante das expe­
riências religiosas das primeiras gerações cristãs, foi transmutada
em metafísica literal no processo de sistematização e de proselitismo
resultante da aproximação da cultura helênica com sua filosofia.
A univocização do discurso teológico tem sua gênese: não é
de forma alguma ontológica. As primeiras gerações cristãs não a
conheciam, como fica evidente na linguagem utilizada na época.
Desde o uso da metáfora poética nas parábolas neotestamentárias,
da linguagem equívoca das cartas paulinas, da escatologia e do
gênero apocalíptico até os escritos pós-apostólicos, amplamente

61 Hermenêutica bíblica, p. 23.


62 A metáfora do Deus encarnado, p. 145.

48
voltados para a dinâmica da comunidade e para a função litúrgica
nela presente, o que se constata é a polissemia teológica, não como
fragmentação destrutiva, mas como instrumento estruturador das
múltiplas experiências de fé com o Cristo e a necessária comuni­
cação delas.63
Faz-se necessário neste momento precisar a gênese da univo-
cização da polissemia presente nos discursos das primeiras gera­
ções cristãs.

Aproximação do pensamento cristão à filosofia grega


O processo de univocização do discurso teológico-cristão con­
funde-se com sua aproximação ao pensamento filosófico grego pre­
sente no helenismo, a qual é fortemente marcada pela aceitação
da filosofia platônica apresentada no médio-platonismo.64 O pen­
samento platônico, sobretudo sua metafísica, serviu ao discurso
teológico-cristão em seu estágio até então mais elaborado.65

63 Esse tema pode ser aprofundado no estudo da literatura patrística feita por
Hubertus R. Drobner em seu Manual de patrologia. Especificamente sobre o
tema do uso das parábolas no NT, o texto de As parábolas de Jesus, de Joaquim
Jeremias, trata com profundidade a importância da metáfora. No que diz res­
peito ao uso da metáfora na elaboração do discurso teológico, em A metáfora do
Deus encarnado, de John Hick, discute-se no âmbito do dogma a necessidade de
rever o papel fundador da metáfora, ofuscado pela univocidade metafísica.
64 “Este termo designa a corrente de pensamento platônico dominante nos dois
séculos do tempo imperial, destinada a desaguar no século III, no neoplatonismo
[...] É justamente esse tipo de filosofia que exerce uma influência determinante
nos apologetas gregos do século II d.C. (Atenágoras, Justino Mártir, Clemente
de Alexandria e Orígenes). As apreciações sobre as várias escolas filosóficas, a
admiração por Platão, os elementos característicos da doutrina da transcendên­
cia de Deus, a doutrina das idéias como pensamentos de Deus contidos em sua
inteligência e em seu logos, a concepção do nascimento do universo pela impo­
sição das formas e da ordem sobre a matéria não gerada...” (Médio-platonismo,
Dicionário patristico e de antiguidades cristãs, p. 920,1).
65 Paul T illich , História do pensamento cristão, p. 44.

49
A Igreja, que recebera o mandato de tornar presente a mensa­
gem do evangelho até as extremidades da Terra, para poder esten­
der-se, tinha de traduzir seu conteúdo religioso em termos racionais,
para que fosse acessível ao pensamento e à tradição gregos. No
segundo século, iniciou-se a helenização do ensinamento cristão e
da linguagem teológica, nascida desse encontro. Preparou-se des­
se modo a expansão do cristianismo.66
As condições histórico-culturais daquele momento são funda­
mentais para a compreensão desse movimento teológico, chama­
do “apologética”.67 O encontro do cristianismo, com sua literatura
amplamente marcada por traços metafórico-poéticos e destinada
à liturgia e à catequese, com a cultura grega presente no helenismo
e no Império Romano, bastante contrária às narrativas mitológi­
cas já contrapostas à teoria da transcendentalidade de Deus, pro­
duziria uma adaptação um tanto sincrética daquela a esta, gerando
um discurso teológico bastante peculiar.
O cristianismo que, no dizer de Tillich, “teve que se expressar
em forma de respostas a certas acusações particulares [...] que
ameaçava o império romano e que era, do ponto de vista filosófi­
co, pura tolice, não mais que superstição misturada a fragmentos

66 Fernando Antônio F ig u e ir e d o , Teologia da igreja primitiva:o homem na


visão histórica do mártir Justino, p. 17-20.
67 Tillich, na introdução à sua Teologia sistemática, discute a compreensão
mais adequada que se deve ter da apologética. Ele diz que a teologia
apologética, “que teve posição tão elevada na igreja primitiva, caiu em
descrédito por causa dos métodos empregados nas tentativas abortivas
para defender o cristianismo contra ataques do humanismo moderno,
do naturalismo e do historicismo. Tentou descobrir lacunas em nosso
conhecimento histórico e científico para encontrar um lugar para Deus
e suas ações dentro de um mundo de outra forma completamente cal­
culável e imanente [...] Esse procedimento indigno desacreditou tudo
que é chamado apologética” (p. 45).

50
filosóficos”,68 precisou dialogar, explicando sua experiência de fé
para ser entendido e aceito naquela cultura.
Aquilo que na literatura teológica pós-apostólica era dito pela
perspectiva metafórica, ou seja, que transbordava a capacidade
delimitadora da palavra, passaria a ser submetido gradativamente
à necessidade de definição, tendo a palavra, como recipiente dos
sentidos, de abrigar todos eles. O dizer metafórico aberto à
equivocidade seria substituído pelo dizer metafísico gerador de
conceitos unívocos. Nesse sentido, há uma subtração dos elemen­
tos propriamente religiosos e um impedimento às interpretações
espontâneas e populares.
Para evidenciar essas aproximações e a conseqüente sublevação
do pensamento platônico,69 e com ele sua metafísica, impõe-se a
necessidade de verificar seus principais interlocutores no interior
do cristianismo.70
O primeiro deles é, sem dúvida, Justino Mártir. Nascido de
pais pagãos, estudou filosofia antes de se converter ao cristianis­
mo. Em suas obras, transparece o esforço de adaptação de um ho­
mem formado segundo a filosofia grega e depois convertido para
apresentar a fé aos seus contemporâneos. Por causa de sua teoria do
logos espermáticos,71 foi-lhe possível afirmar que “não só não existe

68 História do pensamento cristão, p. 45.


69 A influência platônica estendeu-se até a plena recepção teológica do
aristotelismo filosófico pela escola dominicana, em que Tomás de Aquino se
destaca como principal sistematizador.
70 O pensamento filosófico não foi acolhido pela unanimidade dos teólogos,
tampouco aceito de forma passiva. Homens como Taciano e principalmen­
te Tertuliano opuseram-se a tal aproximação. Famosa é a sentença deste
último: “Que tem [que ver] Atenas e Jerusalém? Que tem [que ver] a acade­
mia e a igreja?”.
71 Justino afirma que “em todos os homens está o esperma tou logou. Este não
é só a capacidade ou aptidão para apreender a verdade, mas é a própria
verdade ínsita no homem [...] O ponto alto destas manifestações são os

51
oposição entre filosofia e cristianismo, mas pode-se afirmar até
uma substancial identidade entre a primeira e a segunda”.72
Justino busca na filosofia o método capaz de lhe permitir o
desenvolvimento da tarefa de defender o cristianismo ante o “de­
safio” — externo e interno — que este experimentava. Esse desafio,
do ponto de vista interno, consistia em combater as heresias73 e, do
ponto de vista externo, superar a crítica que o considerava “pura
tolice [...] superstição misturada com fragmentos filosóficos”.74
O impacto da filosofia platônica sobre sua formação foi tão
grande que ele confessou: “Eu exultava principalmente com a con­
sideração do incorpóreo. A contemplação das idéias dava asas à
minha inteligência”.75 E ainda: “Que obra maior devemos reali­
zar senão a de mostrar como a idéia dirige todas as coisas? Conce­
bida em nós, e deixando-nos conduzir por ela, podem os
contemplar o engano dos outros e ver que em suas ocupações não
há nada de são, nem de agradável a Deus”.76
Sob essa influência, o discurso teológico-cristão, representa­
do em Justino, volta-se para a metafísica, distanciando-se das
fontes de reflexão teológica pós-apostólicas. Os espaços de pro­

profetas e os filósofos” (Fernando Antônio FIGUEIREDO, Curso de teologia


patrística I, p. 120). Para Justino, a verdade está no logos, portanto externa
à cultura e dada aos homens por sua reta ordenação. Assim, do ponto de
vista da teoria do conhecimento, Justino alcança a verdade pela metafísica.
Nisso ele se assemelha à teoria da intuição intelectual de Platão.
72 Médio-platonismo, Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs, p. 920,1.
73 O termo “heresia” é bastante questionável. Seu uso é veiculado em
contraposição ao que se denomina “ortodoxia”. Aqui, deve-se entender
“heresia” como pensamento teológico que se coloca ou é colocado à margem
da interpretação teológica oficial.
74 V. nota 64.
75 Justino M ártir , Diálogo com Trifão, p. 112.
76 Ibidem, p. 114.

52
dução teológica vão-se deslocando 'do interior das comunidades
de fé, de sua liturgia e da ação pastoral na direção de outros cen­
tros, de reflexão mais conceituai. Os próprios agentes dessa refle­
xão irão diminuir, cedendo espaço gradativamente a especialistas.
Esse deslocamento da teologia que na metáfora se comunica
numa dimensão mais funcional e dinâmica para outra, de ten­
dência mais conceituai, encontra em Justino seu primeiro
interlocutor. Ele mesmo declara: “Filosofia é a ciência do ser e do
conhecimento da verdade, e a felicidade é a recompensa dessa
ciência e desse conhecimento”.77
N a tarefa de aproximar o discurso teológico-cristão da filosofia
grega, sobretudo a platônica, para além das contribuições de
Justino, estão aquelas dadas pela escola de Alexandria, representa­
da por dois nomes da maior relevância. O primeiro é Clemente.
Filho de pais gentios, nascido provavelmente em Atenas por volta
do ano 150. Convertido ao cristianismo, estudou com diversos
professores até conhecer Panteno, em Alexandria, onde iria desen­
volver seu ministério.78
“Em Clemente a veneração por Platão e a influência do
platonismo contemporâneo assumem uma dimensão ainda mais
ampla e desenvolvimentos ainda mais ricos do que em Justino.”79
Em Protréptico, Clemente pede a Platão que se torne seu compa­
nheiro na busca de Deus.80
Longe de ser obra do demônio, dizia ele, a filosofia grega é, ao
contrário, um bem. A ela coube a tarefa propedêutica de condu­
zir os gentios a Cristo. O que a Lei fora para os judeus, a filosofia

77 Justino M ártir, ibidem, p. 114.


78 Phototheus B oehner & Etiene G ilson , História da filosofia cristã, p. 33.
79 Platonismo e os padres, Dicionário patristico e de antiguidades cristãs, p.
1157-1170.
80 Ibidem, p. 1157-1170.

53
foi para os gentios.81 Boehner e Gilson citam Clemente nas
Stromatas nos seguintes termos:

A fé em Cristo, a que agora se pretende restringir o alcance


da razão humana, não existiu antes do advento do Salvador,
quando se dispunha apenas da lei e da filosofia grega. A lei era,
indubitavelmente uma expressão da vontade de Deus [...] Tam­
bém os gregos, a despeito de todas as diferenças, encontravam-
se numa situação semelhante. Não possuíam nem a lei nem a fé;
a verdade lhes vinha do uso da razão natural [...] Isso se pode
colher sem dificuldade da leitura de Platão [...] Não que Deus
lhes falasse diretamente; mas nem por isso deixou de guiá-los
indiretamente pela razão, que é também uma luz divina. De
forma que a razão era para os pagãos o que a lei era para os
judeus.82

N a compreensão de Mondin, “com a doutrina da função


propedêutica da filosofia para a revelação, Clemente teve o mérito
de ter superado a antinomia entre pensamento humano e verdade
cristã e de ter dado assim o direito de cidadania, no seio do cristia­
nismo, à filosofia grega e com ela a tudo o que pertence à razão e
à natureza humana”.83
O outro grande nome da escola de Alexandria foi Orígenes.
Nascido no Egito, por volta do ano 185 d.C., foi educado pri­
meiramente pelo pai e, logo depois, em Alexandria, tornou-se dis­
cípulo de Clemente, vindo mesmo a superá-lo. Como dizem Boehner
e Gilson: “Com Orígenes, a escola catequética de Alexandria atin­
ge o seu ponto mais alto [...] Orígenes supera Clemente em todos

81 Phototheus B oehner & Etiene G ilson , História da filosofia cristã, p. 35.


82 Idem, ibidem, p. 35-6.
83 Curso de filosofia, p. 124.

54
os pontos de vista, e sobretudo pela penetração especulativa. So­
bre os fundamentos lançados por Clemente pôde erguer o pri­
meiro edifício sistemático doutrinai”.84
Com isso também concorda BofF, ensinando que “a primeira
escola de teologia sistemática foi o Didaskaleion de Alexandria,
fundado no fim do Século II. Orígenes, seu maior representante,
nos dá a primeira síntese dogmática, em Dos Princípios" .85
Da mesma forma que Justino e Clemente, Orígenes mantém
proximidade com a filosofia grega, principalmente a platônica,
como mediação cultural (v. Glossário) no processo de produção
teológica. Eusébio menciona-o, bem como sua relação com Platão,
afirmando: “Ele vivia em trato contínuo com Platão”.86
Sendo impossível, como já afirmamos, mensurar a influência
dessas aproximações do ponto de vista dos conteúdos, é evidente
que elas marcam profundamente o método de construção do dis­
curso teológico-cristão, tanto em seu caráter apologético devedor
das leis da não-contradição quanto em sua tarefa, ainda incipiente
em Orígenes, de sistematização dos temas da fé.
Seria necessário dizer que essa tarefa apologética, mesmo le­
vando em consideração as observações feitas por Tillich,87 consis­
te na eliminação da pluralidade epistemológica. A polissemia é
encarada como ameaça à verdade, pois esta não se encontra na
dimensão das opiniões ou das crenças (que seriam admitidas como
heresias), mas na dimensão da episteme, da ciência das idéias. E
daqui ela há de ser afirmada, para além de toda multiplicidade,
em sua univocidade.

s4 História da filosofia cristã, p. 48.


85 Teoria do método teológico, p. 628.
86 História Eclesiástica, p. 209.
87 Ver nota 67.

55
Tudo fica muito claro naquelas que serão as instâncias últimas
da apologética: os concílios.88 Neles, está presente a objetivação
mais radical da influência da filosofia grega sobre o pensamento
cristão, tanto na linguagem construtora das sentenças dogmáticas,
tão estranhas ao mundo bíblico, quanto na formulação dos anáte-
mas, amplamente devedora dos princípios da não-contradição.
Nos concílios, as perguntas são pela essência das coisas, na
clara intenção de delimitar e definir o discurso teológico, aten­
dendo às exigências de justificação racional dos temas da fé em
relação ao m undo greco-rom ano. Subm ete-se, portanto, a
multiplicidade das experiências de fé, geradoras de narrativas
polissêmicas, às exigências de categorias unívocas. Neles se esta­
belece uma hierarquia que é a um só tempo epistemológica e po­
lítica. Ao definir, isto é, ao afirmar conceitualmente os temas da
fé, cria-se um princípio hermenêutico único, administrado pelo
centro de controle dos sentidos hermenêuticos: a Igreja.
N a continuação do momento apologético do discurso teoló-
gico-cristão, está o momento dialético. O discurso teológico
dialético, já presente em Orígenes, em sua obra Dos princípios,
tem como ênfase não só articular respostas pontuais a temas em
conflito, mas propor uma sistematização dos temas da fé em for­
ma de tratados. Esse fato cumpre o intento de sistematização da
univocidade epistemológica, já presente de forma incipiente no
discurso apologético. Como afirma Zilles:

Os primeiros padres cristãos não fizeram filosofia ex pro­


fesso. Só recorriam a ela quando lhes ajudava a compreender

88 Fundamentais sio os quatro primeiros concílios (Nicéia I, Constantinopla I,


Éfeso e Calcedônia), nos quais foram discutidos os principais temas da fé e
elaborada a linguagem teológica apologético-dogmática (Justo C ollantes,
A fé católica: documentos do magistério da Igreja).

56
melhor a revelação cristã ou para defender-se contra os pa­
gãos. Agostinho de Hipona, chamado ò mestre do Ocidente e
o gênio do cristianismo, contudo elabora uma filosofia junto à
teologia. A filosofia patrística representa o esforço de munir a
fé de argumentos racionais. Entre os padres cristãos, Agosti­
nho leva mais longe a conciliação entre a fé e a razão.89

Se Justino, Clemente e Orígenes foram os primeiros interlocu­


tores da filosofia no interior do cristianismo, para se produzir uma
teoria do conhecimento capaz de introduzir o discurso teológico-
cristão no ambiente greco-romano, é Agostinho quem o fará de
forma mais complexa, erigindo um sistema epistemológico de in­
fluência definitiva sobre a teologia cristã.
Agostinho90 procede da tradição platônica, da qual é herdeiro
por intermédio do neoplatonismo de Plotino.91 Mas ele a in­

89 Teoria do conhecimento, p. 99.


90 Agostinho nasceu em Tagaste, em 354, de mãe cristã e pai ainda pagão, que
recebeu o batismo em 371, pouco antes de morrer. A primeira educação de
Agpstinho foi estritamente humanística, feita de gramática e retórica. Tendo iniciado
os estudos em Tagaste, foi completá-los em Cartago, onde, depois da leitura do
Hortênsio (uma introdução à filosofia), de Cícero, começou a interessar-se tam­
bém pela filosofia. Em Cartago, a filosofia então dominante era a maniquéia.
Agostinho não tardou em fazer-se ardoroso defensor desse sistema, para grande
desgosto de sua mãe. Aos 19 anos, começou a ensinar retórica em Cartago, rodea­
do por um grupo de discípulos inteligentes e por muitos amigos, mas também
por alunos indisciplinados. O comportamento destes e o desejo de fáma levaram
Agostinho a transferir-se para Roma. Assim, depois de dez anos de ensino em
Cartago, deixou a cidade (em 383) e foi para Roma. Por esse tempo, seu entusias­
mo pelo maniqueísmo foi diminuindo lentamente. Em Roma, abandonou-o
definitivamente para abraçar, por um breve período, o ceticismo da Academia.
Depois de um ano em Roma, foi para Milão, onde Sfmaco lhe ofereceu a faculda­
de de retórica. Em Milão, leu Plotino e sentiu-se fascinado pelo seu ensinamento
sobre a incorporeidade de Deus e a imortalidade da alma. Assim, de cético,
tomou-se logo neoplatônico. Mas a leitura de Paulo e os contatos com Ambrósio,
bispo de Milão, convenceram Agostinho de que a verdade não estava nos livros
dos filósofos, mas no evangelho de Jesus Cristo.
91 Agostinho dedica quase toda a sétima seção do primeiro tomo de A cidade de
Deus à importância de Platão e à influência de Plotino, tanto em sua formação

57
corpora no contexto cristão e, por esse motivo, transforma-a pro­
fundamente, ao mesmo tempo que a completa e aprimora, nela
corrigindo o que havia de mais discutível.

Agostinho não admite, com efeito, nem o universo inteli­


gível das idéias subsistentes, nem o ineísmo platônico. Mas
estas duas opiniões errôneas lhe pareciam envolver magníficos
pressentimentos da verdade. Pois é de fato verdade que deve
existir um mundo inteligível ou mundo das idéias, uma vez
que o nosso pensamento procede por meio das idéias eternas e
necessárias e por meio de referências a normas absolutas e
imutáveis, que não descobriremos, evidentemente, no univer­
so da percepção móvel, mutável e essencialmente múltiplo.
Unicamente este mundo das idéias é a razão divina com a qual
é preciso que estejamos de algum modo em comunicação, pois
é unicamente por esta via que se conseguirá explicar que pen­
samos e julgamos segundo normas que transcendem o espaço
e o tempo.92

E exatamente esse ponto — o da teoria do conhecimento —


também salientado por Jolivet, que precisa ser aprofundado aqui.
Como e onde a verdade pode ser alcançada? “Sua contribuição à
crítica do conhecimento foi a de fornecer as linhas gerais de uma
justificação metafísica da verdade”.93
Para Agostinho, o conhecimento humano observa três opera­
ções: os sentidos, a razão inferior e a razão superior. A estes eqüi­
valem três grupos de objetos a serem conhecidos: qualidade dos
corpos, leis da natureza e verdades eternas.94 Aos sentidos, cabe o

intelectual quanto na necessária compreensão e utilização deles no pensa­


mento teológico-cristão.
92 Régis J ouvet , Metafísica, p. 44.
93 Idem, ibidem, p. 46.
94 Batista M o n d in , Curso de filosofia, p. 136-40.

58
conhecimento dos corpos; à razão inferior, as leis da natureza; à
razão superior, as verdades eternas.
Como diz Mondin: “Agostinho tem realmente a convicção de
que a alma é absolutamente superior ao corpo e de que, por isso,
não pode depender dele em nenhuma de suas atividades, nem
mesmo na sensitiva” .95 Agostinho assume o dualismo platônico,
remetendo à instância externa toda a possibilidade de conheci­
mento da verdade, que reside no mundo das idéias.
Não sem razão Zilles afirma: “Já que as idéias que regulam a
verdade dos nossos juízos transcendem a mente humana, elas de­
vem existir independentemente da alma humana. Deve existir
uma espécie de mundo das idéias eternas que, como princípio
absoluto e metafísico, garante a veracidade dos nossos conheci­
mentos”.96 Isso significa que o fundamento do conhecimento
humano e, portanto, teológico está fora da existência concreta.
Mesmo as operações dos sentidos e da razão inferior precisam de
um auxílio externo para serem realizadas.
A teoria de Agostinho guarda inúmeras semelhanças com a
idéia platônica do conhecimento. Para Platão, o conhecimento
dá-se por intuição intelectual, só possível por causa de sua doutri­
na da reminiscência.97 Agostinho, não podendo concordar com
esta, propõe a doutrina da iluminação, que consiste no auxílio
divino que torna compreensíveis as “verdades eternas”.

O conhecimento das verdades eternas é obtido por meio de


iluminação divina e não por meio da reminiscência. Agostinho,
como Platão, está convencido de que as verdades eternas não
podem vir da experiência, seja por causa da contingência do

55 Ibidem, p. 138.
96 Teoria do conhecimento, p. 105.
57 V. nota 36.

59
objeto conhecido, seja por causa da contingência do sujeito que
conhece. Mas como ele não admite a preexistência das almas no
Hiperurânio, não lhe é possível explicar o conhecimento das
verdades eternas pela doutrina da reminiscência como fizera
Platão; recorre, por isso, à doutrina da iluminação.98

A doutrina agostiniana da iluminação consagra a metafísica


como instrumento adequado de conhecimento da verdade no in­
terior do discurso teológico-cristão. A contingência do objeto e
do sujeito do conhecimento negativos, para Agostinho, legitima a
exterioridade dualística da verdade. É negada à teologia qualquer
identificação da relevância nas vivências concretas da fé no inte­
rior da comunidade cristã.
Para além das vivências da fé, o discurso teológico deve partir
de uma iluminação que lhe permita dizer a verdade sobre os te­
mas da fé. Essa verdade não admite contradição, pois não parte da
multiplicidade, na qual idéias contraditórias são possíveis, antes
afirma-se na univocidade decorrente da unidade que lhe oferece a
idéia perfeita. Assim, tem-se pronta uma teoria do conhecimento
capaz de produzir um discurso teológico complexo, amplo e
sistematizador.
Assim, ao processo de sublevação da metafísica no interior da
teologia cristã resta somente um único passo, possível de ser iden­
tificado no aristotelismo tomista. Tomás de A quino" empresta

98 Batista M ondin , Curso de filosofia, p. 139.


95 Tratamos aqui do pensamento de Tomás de Aquino somente em relação à
teoria da iluminação de Agostinho, uma vez que consideramos aqui a
metafísica presente na teologia sistemática protestante (ou dogmática) emi­
nentemente platônico-agostiniana e devemos ao pensamento aristotélico-
tomista apenas a disposição lógica e estética. Isso se acentua, sobretudo, pelo
fato de nosso olhar situar-se no âmbito protestante da reflexão teológica, que,
com Lutero e Calvino, dá total notoriedade ao agostinianismo em detrimento

60
do pensamento agostiniano a teoria da iluminação e torna-a abso­
lutamente sua. A certeza, diz ele, “é em nós uma participação da
luz divina. O humano não pode possuir, por si só, a regra infalível
da verdade, embora a possua em si mesmo, a saber, à luz do inte­
lecto agente, do qual procede toda a certeza”.100
Tomás, no entanto, fxel às análises de Aristóteles, afasta-se de
Agostinho quanto à maneira de conceber o modo de iluminação.
Como afirma ele próprio, “se é verdade que nós conhecemos todas
as coisas nas razões eternas, isto não requer nenhuma luz especial
distinta da luz da inteligência” .101 Enquanto para Agostinho a
alma recebe uma luz que a informa extrinsecamente, para Tomás
a alma possui em si mesma a regra infalível da verdade, dando-se
esta intrinsecamente na inteligência humana, que é o fórum apro­
priado ao seu conhecimento.
Aquino faz, em relação a Agostinho, o mesmo caminho que
Aristóteles trilhou em relação a Platão. Ele toma o dualismo externo
da tradição platônica assumido por Agostinho e interioriza-o. A ver­
dade, que só podia ser encontrada “no mundo das idéias” e alcançada
por intuição intelectual, agora está na mente humana, e pode ser
conhecida pela inteligência, ela própria um dom de Deus.

O caminho da metafísica como instrumento sustentador


da univocidade
A formação do discurso teológico dogmático deve à filosofia
grega os elementos fundamentais de sua elaboração metodológica.

do tomismo. Uma contribuição tomista para nós é, sem dúvida, sua teolo­
gia natural e, principalmente, suas provas teístas amplamente encontradas
no sistema manualista. E até mesmo esse tema acha-se circunscrito na valo­
rização da inteligência como instrumento capaz de conhecer a verdade.
100 Régis J olivet, Metafísica, p. 47.
101 Idem, ibidem, p. 47.

61
Essa filosofia, em contraposição à compreensão mítica, que acen­
tuava a equivocidade hermenêutica e valorizava a metáfora como
forma adequada às realidades que escapam ao cotidiano, estabe­
leceu-se sobre a necessidade de afirmação da univocidade da ver­
dade.
O unívoco, porém, só poderia ser afirmado com base numa
fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que são
equívocas). Negando dessa forma toda multiplicidade e conside­
rando-a apenas sombra de uma realidade fundamental (não-ser),
seria possível afirmar uma proposição de abrangência universal. A
fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a
univocidade foi a metafísica.
Isso se explica de forma relativamente simples. N a multipli­
cidade, não há um princípio que possa ser usado como instru­
mento para afirmar o unívoco. A multiplicidade é geradora de
interpretações: qualquer leitura que se faça dela produzirá
polissemia hermenêutica. A criação da metafísica é, portanto, a
maneira mais adequada de afirmar a univocidade. Fora do espaço
físico, múltiplo na mais singela observação, é possível conceber
uma essência que corresponda às coisas múltiplas e encerre a ver­
dade acerca de todas as representações concretas, todos os simula­
cros. O discurso que parte da essência é suficiente para expressar
as representações. Nesse sentido, o discurso unívoco de abrangência
universal é plenamente possível.
Não é a metafísica, portanto, que cria a univocidade que possi­
bilita a universalização do discurso, mas a necessidade de negar o
múltiplo, embutida na afirmação do unívoco e por ele gerada. É
da insegurança desestabilizadora dos discursos científicos e reli­
giosos, que temem a convivência com a multiplicidade de falas
sobre a realidade, que surge a metafísica como forma de sustentar
a univocidade epistemológica, de caráter filosófico ou religioso.

62
O discurso teológico-cristão, sobretudo o de corte dogmático,
trilhou o mesmo caminho da filosofia grega. Nesse sentido, o fórum
autorizado da verdade doutrinária não está na multiplicidade das
interpretações, fruto das múltiplas experiências de fé, que em úl­
tima instância são identificadas como “heresias” (palavra religiosa
equivalente à “opinião” ou “crença”), mas numa dimensão que
transcende o entendimento, identificando-se por vezes com o pró­
prio Deus. Quem é capaz de dizer a verdade só o pode fazer por
uma assistência direta da Divindade. Seu discurso, então, não é
seu: é apenas a reprodução da fala divina.
E exatamente nesse aspecto que se fundamenta a legitimidade
de um discurso universal sobre qualquer realidade cultural. O dis­
curso dito não é de um homem que deseja sobrepor etnocen-
tricamente sua perspectiva em relação a outras, mas é tão-somente
o desvelamento das verdades eternas ditas com base na iluminação
divina. O discurso teológico dogmático cristalizado e potencializado
para além de seu tempo cultural só é possível por meio da metafísica,
que se apresenta como seu elemento sustentador.
Essas primeiras conclusões precisam ainda ser aprofundadas,
propriamente na dimensão do método utilizado pela teologia
dogmática, visto que exatamente nessa instância é que se dá a
possibilidade de sua subsistência.

Abordagem metodológica resultante da afirmação


metafísica no interior da teologia dogmático-sistemática
Do processo de sublevação da metafísica na comunicação dos
temas da fé cristã, resulta um método, ou seja, “um procedimen­
to investigativo organizado, repetível e autocorrigível, que garan­
ta a obtenção de resultados válidos”.102

102 Nicola A bbagnano, Dicionário de filosofia, p. 668.

63
O processo que até aqui se buscou descrever só poderia resul­
tar numa perspectiva metodológica: aquela que, partindo “em sua
reflexão desde os princípios universais da fé e por dedução ia ex-
plicando-os, aplicando-os a outras realidades” .103 Trata-se, por­
tanto, de um método que parte de cima para baixo, que impõe o
dogma sobre a multiplicidade de situações concretas, sendo, nesse
sentido, apriorístico. As respostas já estão elaboradas, antes mes­
mo de as perguntas serem feitas. Reproduz-se dessa forma, na
dimensão metodológica, a superposição da essência sobre a exis­
tência concreta.
Esse é o método dedutivo que trabalha “de modo especial,
com o silogismo. Parte de afirmações universais, dos princípios da
fé (maior), estabelece uma afirmação de natureza filosófica (me­
nor) e conclui por dedução uma afirmação teológica”.104 Para
exemplificar esse processo, Libânio oferece o seguinte exemplo
acerca da cristologia: “Jesus é verdadeiro homem (maior: afirma­
ção de fé de Calcedônia); ora, um verdadeiro homem tem uma
liberdade e consciência humanas (menor: verdade filosófica), logo
Jesus tem uma liberdade e consciência humanas” .105
A utilização do método dedutivo é uma característica da teolo­
gia dogmático-sistemática, que alcança na alta escolástica seu ponto
de maior vigor. Suas principais ênfases estão em “sistematizar,
definir, expor e explicar as verdades reveladas”,106 não só visando
a “mostrar o que estava incluído no universo da fé, mas também
a excluir as posições doutrinárias em oposição à fé, condenando
os erros, resolvendo as dificuldades, refutando as falácias dos

103 João Batista L ibânio , Introdução à teologia, p. 101.


104 Idem, ibidem, p. 101.
105 Idem, ibidem, p. 101.
106 Ibidem, p. 101.

64
adversários” .107 Ou, em outras palavras, afirmando a univocidade
da verdade teológica.
Essa abordagem metodológica, com sua forte ênfase apologética
a serviço da ortodoxia, criou um corpo doutrinário, um sistema
totalizador dos temas da fé que, num primeiro momento, possi­
bilitou o diálogo da teologia cristã com a cultura à sua volta. Mas
foi lentamente perdendo o impulso, à medida que ia-se tornando
reativa, ou seja, que ia-se limitando à defesa de seus postulados
sem os colocar em contato com novas realidades.
Falando sobre esse momento da teologia com relação ao méto­
do dedutivo, ou teologia dedutiva, Libânio prossegue:

Ele, que respondeu certamente de maneira excelente aos


questionamentos da igreja em dado momento de sua história,
foi-se enrijecendo, assumindo caráter abstrato, a-histórico for­
mal e autoritativo. Transformou-se em poderoso instrumento
da autoridade, coibindo a liberdade de pesquisa, perdendo
sensibilidade aos novos problemas e temas que surgiam. Sua
proximidade com o magistério eclesiástico foi tal que ela assu­
miu certo ar de oficialidade, imutabilidade, universalidade.108

Essa relação de identidade entre o método dedutivo e a teologia


dogmático-sistemática estendeu-se até as portas da modernidade.109

107 Ibidem.
108 Introdução..., p. 102-3.
109 No caso da tradição católica, a teologia dedutiva vigorou com muita força e,
mesmo com a hegemonia, até o Concilio Vaticano II, quando se buscou
uma aproximação maior com as realidades concretas trabalhadas no interior
da modernidade. No caso do protestantismo, a história é diferente. A Re­
forma, sobretudo em Lutero, buscou questionar o sistema teológico medie­
val e seu método grandemente endividado com a metafísica, abrindo espaço
para a subjetividade hermenêutica com o livre exame das Escrituras. Já em
sua segunda geração, porém, a Reforma sofreu um processo de enrijecimento
de sua teologia, resultante do enrijecimento metodológico.

65
Passada a primeira geração do protestantismo, um ensaio de sub­
jetividade hermenêutica, instalou-se sobre a ortodoxia protestante a
mesma tendência da teologia medieval, ou seja, a produção de ma­
nuais de caráter totalizadores do conjunto dos temas da fé e de ten­
dência universalizante. Seguiu-se, portanto, o mesmo caminho de
enrijecimento da pesquisa e distanciamento dos problemas e propo­
sições da modernidade, bem como do caráter apologético da teologia
ortodoxa clássica. Acerca desse assunto, Mackintosh comenta:

Era uma época de amplos sistemas dogmáticos, da qual se


costuma falar com um tom um tanto depreciativo, que resulta
tão ignorante quanto absurdo. Não há dúvida de que é fácil
impacientar-se com as limitações e a falta de flexibilidade de
uma época que levou até seus extremos a doutrina da inspira­
ção verbal e plena das Escrituras."0

Ele prossegue:

Nesse processo surgiu a ortodoxia tradicional — um fenô­


meno histórico claramente distinto, que se caracteriza pela ten­
dência de conceder valor absoluto às fórmulas dogmáticas, de
considerar que a fé e o assentimento de um credo são um e a
mesma coisa, de insistir nos termos da confissão ou do cate­
cismo, sem ir sempre, mais além do som das palavras.111

Essa teologia vai-se distanciando exponencialmente da cul­


tura, travando com ela uma batalha para preservar sua interpre-

Esse período é identificado como escolástica protestante ou ortodoxia pro­


testante. A teologia sistemática atual (protestante) é devedora e por vezes
dependente dessa ortodoxia e de sua tendência de produção de manuais
totalizadores e universalizantes.
110 Teologia moderna, p. 18.
111 Ibidem, p. 19.

66
taçao particular das Escrituras e dá própria teologia. Não é ne­
cessariamente em defesa das Escrituras, mas de uma interpreta­
ção cristalizada de suas palavras, elevadas à condição de verdade
absoluta.
Ademais, a polêmica doutrinai tornou-se em sua marca
registrada, e a atividade apologética, sobretudo em seu caráter
popular, tem conseqüências nefastas para o sentido da verda­
de. O que se tem em mente é a obtenção de pólvora e munição
para a controvérsia; o propósito do campeão é destruir seu
adversário mais do que convencê-lo.112

N a perspectiva do impacto da ortodoxia protestante sobre a


teologia bíblica, Ladd afirma:

Os resultados obtidos pelos estudos históricos da Bíblia,


realizados pelos reformadores, logo se perderam no perío­
do imediatamente após a Reforma, e a Bíblia foi mais uma
vez utilizada sem uma perspectiva crítica e histórica, para
servir de apoio à doutrina ortodoxa. A Bíblia foi conside­
rada não somente como um livro isento de erros e contra­
dições, mas também como sem desenvolvimento ou
progresso.113

Embora não haja unanimidade sobre as contribuições da orto­


doxia protestante para a teologia em geral nem para a sistemática
em particular,114 pode-se claramente perceber seu forte caráter

112 M ackintosh , Teologia moderna, p. 20.


113 Teologia do Novo Testamento, p. 14.
114 Para Tillich, “a ortodoxia clássica protestante relaciona-se com uma grande
teologia. Poderíamos chamá-la de escolástica protestante, com todos os refi­
namentos e métodos que a palavra escolástica inclui”. E também: “É a
consolidação das idéias da Reforma, desenvolvidas em contraste com a
contra-reforma” (História do pensamento cristão, p. 251). E ainda: “A ortodoxia

67
reprodutor da teologia dogmática clássica, principalmente as ten­
dências totalizadoras e universalizantes, que, em última análise,
estruturam o discurso teológico unívoco.115

protestante era construtiva [...] os teólogos ortodoxos trabalharam objetiva


e construtivamente, procurando apresentar a doutrina pura e completa de
Deus, do homem e do mundo” (Perspectivas da teologia protestante nos
séculos X IX e XX, p. 36). Também Maia, em Raízes da teologia contemporâ­
nea, dedica uma sessão inteira para salientar o caráter positivo e construtivo
da ortodoxia protestante (p. 233-54).
115 A presença da continuidade metodológica que há entre a teologia ortodoxa
clássica e a protestante é também identificada na manualística contemporâ­
nea (que de contemporânea pouco tem, visto que os principais textos foram
escritos no final do século XIX e no início do século XX), basta perceber o
que diz essa manualística em seu conceito de método, com base em seus
mais ilustres representantes (traduzidos em língua portuguesa). Strong afir­
ma: “... que adotamos neste compêndio, é o mais comum e mais lógico de
pôr em ordem os tópicos da teologia. Parte da causa para o efeito [...] começa
com os mais elevados princípios [...] e destina-se ao homem ( Teologia siste­
mática, p. 89, v. 1). Berkhof relata: “Há boas razões para começar com a
doutrina de Deus, se partimos da admissão de que a teologia é o conheci­
mento sistematizado de Deus de quem, por meio de quem, e para quem são
todas as coisas. Em vez de surpreender-nos de que a dogmática comece com
a doutrina de Deus, bem poderíamos esperar que seja completamente um
estudo de Deus, em todas as suas ramificações, do começo ao fim"{Teologia
sistemática, p. 21). Langston diz: “Explicar o universo do ponto de vista de
Deus é relativamente fácil, mas explicar Deus do ponto de vista do universo
é absolutamente impossível. Eis a razão por que adotamos em nosso méto­
do a ordem que parte da revelação cristã, reforçando-a depois com o que se
acha revelado no universo” (Esboço de teologia sistemática, p. 18). Falando
da tendência totalizadora e harmônica da teologia sistemática, Grudem
explica: “Essa definição indica que a teologia sistemática envolve compilar e
entender todas as passagens relevantes da Bíblia sobre vários tópicos e então
sintetizar claramente o seu ensino de tal modo que saibamos em que crer
acerca de cada tema [...] Mas o núcleo da teologia sistemática permanece
diferente, concentrando-se na compilação e, depois, na sistematização do
ensino de todas as passagens bíblicas sobre um assunto específico [...] Na
verdade, o adjetivo sistemática na teologia sistemática deve ser compreendi­
do como algo semelhante a cuidadosamente organizada por tópicos’, en-
tendendo-se que os tópicos estudados se ajustam uns aos outros de um
modo coerente e incluirão todos os principais temas doutrinários da Bíblia”
(Teologia sistemática, p. 1-4). Ainda sobre a perspectiva harmonizadora,

68
Essa abordagem metodológica contribuiu e ainda contribui
para a sustentação do discurso unívoco próprio do sistema
manualista (v. Glossário, manualística), à medida que permite sua
reprodução em ambientes cada vez mais afastados da realidade
concreta. Partindo de cima, do universal em direção ao particular,
a teologia sistemática manualista garante a irredutibilidade de
sua fala, bem como sua univocidade.
E o que se pretende trabalhar no próximo capítulo, buscando-
se evidenciar os caminhos que permitiram e ainda permitem a
reprodução desse discurso, bem como sua cristalização e posterior
ascensão ao status de normaprescritiva (v. Glossário).

Erickson ensina: “É importante aprender o que um autor bíblico fala, em


diferentes contextos, acerca de determinado assunto. A doutrina, no entan­
to, é mais que uma simples descrição do que Paulo, Lucas ou João disseram;
e, portanto, precisamos juntar esses testemunhos, formando algum tipo de
todo coerente [...] Esse esforço, é claro, já pressupõe uma unidade e coerên­
cia entre os vários materiais e testemunhos bíblicos [...] Depois que o mate­
rial doutrinário foi juntado de modo a formar um todo coerente, devemos
buscar seu verdadeiro sentido” (Introdução à teologia sistemática, p. 21).
Somente Hodge admite assumir o método indutivo em seu manual. Todos
os indícios da utilização do método dedutivo, porém, estão ali presentes.
Desde a arrumação dos temas, que partindo de Deus (universal) chega-se
ao homem (particular), até a tendência harmonizadora, do ponto de vista
interno, e apologética que a tradição manualista dedutiva tanto preza.

69
2
Ascensão, potencialização e
evocação: processo de
gestação da univocidade
universalizante

Mundo metafísico — É verdade que poderia existir um


mundo metafísico; dificilmente podemos contestar a sua pos­
sibilidade absoluta. Olhamos todas as coisas com a cabeça
humana, e é impossível cortar essa cabeça; mas permanece a
questão de saber o que ainda existiria do mundo se ela fosse
mesmo cortada. Esse é um problema puramente científico e
não muito apto a preocupar os homens; mas tudo o que até
hoje tornou para eles valiosas, pavorosas, prazerosas as suposi­
ções metafísicas, tudo o que as criou, é paixão, erro e auto-
ilusão; foram os piores, e não os melhores métodos cognitivos,
que ensinaram a [se] acreditar nelas. Quando esses métodos se
revelaram o fundamento de todas as religiões e metafísicas
existentes, eles foram refutados. Então resta ainda aquela pos­
sibilidade, mas com ela não se pode fazer absolutamente nada,
muito menos permitir que felicidade, salvação e vida depen­
dam dos fios de aranha de tal possibilidade. Pois do mundo
metafísico nada poderia se afirmar além do seu ser-outro, um
para nós inacessível, incompreensível ser-outro. Ainda que a
existência de tal mundo estivesse bem aprovada, o conheci­

70
mento deie seria o mais insignificante dos conhecimentos: mais
ainda do que deve ser, para o navegante em meio a um perigo­
so temporal, o conhecimento da análise química da água.
N ie t z sc h e , Humano, demasiado humano, p. 20.

Neste segundo capítulo, propomo-nos evidenciar as influências


da sublevação da metafísica (v. Glossário) no interior do discurso
teológico-cristao, do ponto de vista metodológico, preponderan­
temente em seu corte sistemático-dogmático.
Como resultado dessas influências, observa-se, em primeiro lu­
gar, a dogmatização dos temas da fé, instrumentalizados no âmbito
da univocidade (v. Glossário) discursiva própria da teologia
apologética. Em seguida, esses temas dogmatizados são sistemati­
zados em forma de tratados, para logo após serem circunscritos no
âmbito da manualística, como vimos de tendência marcadamente
universalizante.1
Esse processo é construído com a ascensão de compreensões
elaboradas no interior de uma cultura específica ao status de ver­
dades últimas e fundamentais. Diante dessa afirmação, duas con­
siderações tornam-se necessárias. Em primeiro lugar, é preciso
salientar que o diálogo com a cultura grega (filosofia/metafísica)
constituiu um passo importante para a teologia cristã,2 porque

1 Os passos mencionados — dogmatização, instrumentalização, apologética,


proposição de tratados e sistematização manualística — compõem (pelo
menos na nossa compreensão) o longo caminho da sublevação da metafísica,
discutido no primeiro capítulo. A esse processo somam-se as contribuições
do pensamento platônico-agostiniano, principalmente no que diz respeito à
teoria do conhecimento e da iluminação, e do aristotelismo-tomista, na di­
mensão da sistematicidade e da lógica (com seu princípio de não-contradição)
e ainda da proposição de uma teologia natural, só possível pela compreensão
da inteligência humana como participante do intelecto divino.
2 Félix Alexandre Pastor, em duas importantes obras, Semântica do mistério e
A lógica do inefável, evidencia quanto a linguagem teológica é devedora à

71
significava um diálogo daquela religião com os valores culturais
que representavam o ethos que a envolvia. No dizer de Tillich, esse
diálogo pressupõe uma “base comum” entre a vivência religiosa
cristã e a cultura que lhe era própria.3
Em segundo lugar, é preciso perceber que essa aproximação,
que no início pode ter significado a valorização da cultura na re­
flexão teológica, foi cristalizada, e a experiência religiosa e a cultu­
ra foram identificadas como elementos de um mesmo evento, a
Revelação. Isso se deve em grande medida à natureza daquela cul­
tura interlocutora da religião cristã, ou seja, era um risco inerente
à aproximação entre o discurso cristão e a metafísica. Aquilo que
poderia ter constituído um caminho dialogai entre fé e cultura
tornou-se a ascensão de “uma cultura” específica como padrão
metodológico de caráter unívoco e de alcance universal.
Nesse sentido, a permanência da metafísica como padrão
metodológico para a teologia sistemático-dogmática negava seu
valor primeiro quando se apresentava como elemento cultural ca­
paz de comunicar sentido a homens e mulheres de uma época.
Continuar assumindo a metafísica no discurso teológico é perma­
necer afirmando anacronicamente a superioridade de uma cultu­
ra em detrimento da nossa, constituída de homens e mulheres
concretos e históricos.
E provável que essa ascensão cristalizadora de “uma cultura”
em detrimento das demais tenha partido de um instrumento
metodológico manipulado tecnicamente por um corpo de espe­
cialistas. Esse “corpo de especialistas” pode ser chamado também

cultura grega, sobretudo à linguagem filosófica platônica. Também Paul Tillich


aponta positivamente para o diálogo da religião cristã com a cultura grega, tanto
em sua Teologia sistemática quanto na História do pensamento cristão.
3 Teologia sistemática, p. 15-6.

72
“sociedade de discurso”, como o identifica Foucault.4 No interior
desse corpo-sociedade, a cristalização/univocização/universalização
é reproduzida com o auxílio direto de seu instrumento meto­
dológico.
Com essas primeiras observações, torna-se necessária uma apro­
ximação mais criteriosa ao interior do processo dè elaboração da
univocidade universalizante no âmbito do discurso teológico siste-
mático-dogmático. Para tanto, buscar-se-á de início a compreensão
daquilo que seja o núcleo do discurso teológico para, logo após,
observar os mecanismos que promovem sua cristalização.

Aproximação ao núcleo do discurso teológico


Todo discurso teológico5 tem um núcleo gerador de sentido,
sobre o qual é possível tecer-se uma dinâmica hermenêutica. Esse
núcleo é a experiência cognoscibilizada de fé.6
Por experiência cognoscibilizada de fé entende-se o processo
em três movimentos que se põe na origem de toda a teologia:

4 A 01'dem do discurso, p. 39.


5 Quando se fala de “todo discurso teológico”, não se pretende identificação
alguma com a multiplicidade de discursos no interior da fé cristã. Antes,
assume-se a autonomia de todos os credos religiosos como plenamente com­
petentes para produzir teologia. Contudo, mesmo nessa perspectiva, é possí­
vel identificar um núcleo comum. Isso não significa a relativização dos
elementos característicos de cada religião, tampouco da religião cristã, mas a
percepção de reações ao sagrado comuns a todas elas. Essas “reações comuns”
à presença manifesta do sagrado é amplamente estudada no campo das ciên­
cias da religião: Rudolf Otto em O sagrado, Mircea Eliade em O sagrado e o
profano, e José Severino Croatto em As linguagens da experiência religiosa.
6 Há uma discussão intensa sobre se a fé produz algum saber, se a experiência
religiosa é cognoscível. Por um lado, o positivismo científico nega toda
possibilidade racional à experiência de fé; por outro, a concepção estrutura-
lista toma o saber religioso como um conhecimento legítimo. Aqui não se
acatará nenhum ponto de vista integralmente, mas buscar-se-á uma relação
dialética entre eles e, por vezes, para além deles.

73
experiência de fé, mediação cultural (v. Glossário) e discurso siste­
mático, como se vê neste diagrama:

A experiência de fé é o evento originador de toda a preocupa­


ção religiosa e de todo o sistema religioso em geral. Essa experiên­
cia em si mesma, porém, em sua dimensão exclusivamente
subjetiva, não subsiste, pois precisa comunicar-se, tornar-se com­
preensível e, por fim, tornar-se reprodutível. Sendo em si
intraduzível, como se tornar comunicável?
Nesse intento, a experiência de fé encontra em seu exterior os
signos necessários à sua comunicação. Afirma-se, então, a impor­
tância da mediação cultural, que irá oferecer o veículo lingüístico
adequado para que aquela experiência constitua um discurso sis­
temático.
Assim, no centro de toda teologia, encontra-se uma experiência
de fé que quer e precisa tornar-se cognoscível, ou seja, discurso sis­
temático. Isso só será possível, contudo, numa cultura que se pro­
ponha ser mediadora desse processo. Esses três passos são, portanto,
elementos de um mesmo fato nuclear no discurso teológico. Esse
processo é o que denominamos “fé cognoscibilizada”.

A experiência de fé e a necessidade/desafio de
cognoscibilizaçao
O primeiro passo constituinte do núcleo da teologia é a ex­
periência de fé. Essa experiência, porém, não significa o domí­
nio sobre a fé, com o quem conhece algo calcado num a

74
experimentação.7 Fé significa, em vez disso, “estar possuído por
aquilo que nos toca incondicionalmente”/ Essa experiência não se
dá em determinada dimensão da vida, tampouco se oferece a um
ou outro sentido; antes, é “o ato mais íntimo e global do espírito
humano”.9 “Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana,
ao mesmo tempo que se faz sentir em cada uma delas.”10
Em si, a experiência de fé não significa experiência de conheci­
mento, justamente porque isso demandaria a apreensão do co­
nhecido. N o caso da experiência de fé, não se apreende um dado
cognoscível, antes se é apreendido nas teias do sagrado.11 Essa
experiência, porém, não é irracional, tampouco respeita os cânones
da racionalidade iluminista, como afirma Tillich:

Fé não é, portanto, um ato de forças irracionais quaisquer,


assim como também não é um ato do inconsciente; ela é, isto

7 Michel Meslin, em seu livro A experiência humana do divino, trabalha a


questão nos seguintes termos: “A língua portuguesa apresenta nesse ponto
uma lacuna que não lhe permite distinguir entre o que é apreendido, per­
cebido, conhecido pelo sujeito através de uma experiência que lhe é pessoal
e que poderíamos qualificar de experimenta], daquilo que é experimentado,
quer dizer, conhecido pela observação repetida e controlada dos fatos reno­
vados. Uma tal distinção indispensável para a análise da experiência religio­
sa, como veremos, é, ao contrário, bem destacada pela dupla expressão
germânica Erfahrung/Erlebnis: o primeiro termo designa um conhecimento
derivado de uma prática, o segundo qualquer evento ou fato vivido e
experimentado por uma pessoa” (p. 86).
8 Paul T illich , Dinâmica da fé, p. 5.
9 Idem, ibidem, p. 7.
10 Idem, ibidem, p. 8.
11 Rudolf Otto, em seu livro O Sagrado, identifica o sagrado como “um ele­
mento de uma qualidade absolutamente especial, que se coloca fora de
tudo aquilo que chamamos de racional [...] constituindo assim algo inefá­
vel”. Mircea Eliade, em O sagrado e o profano, afirma que “o homem toma
conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo
absolutamente diferente do profano” (p. 17).

75
sim, um ato em que se transcendem tanto os elementos racio­
nais como não-racionais da vivência humana.12

A experiência de fé pode ser caracterizada, então, como uma


experiência extática, em oposição a inerte, marcando seu caráter
supra-intelectual e seu sentimento de estreita comunhão e de­
pendência do sagrado. As forças que manejam essa dimensão da
vida concreta de homens e mulheres não são aquelas do domínio
da cognoscibilidade. São de outra ordem, mais “rebeldes” , pouco
respeitadoras da tendência unívoca da teologia sistemática.
Essa rebeldia quanto à delimitação, inerente à experiência de
fé, constitui, por sua vez, o elemento instabilizador do discurso
teológico. Será preciso lembrar a qualquer tempo que, no interior
do discurso teológico sistemático, cheio de pretensões universais,
está esse princípio desestruturador da univocidade, que vem a ser
essa abertura ao transcendente — não apenas ao transcendente
no sentido supranatural, mas sobretudo na transcendência que se
realiza na imanência, a qual se faz no interior das culturas.13
E na abertura para a transcendência que homens e mulheres
encontram o terreno apropriado para a experiência de fé.

O homem é impelido para a fé ao se conscientizar do infi­


nito de que faz parte, mas do qual ele não pode tomar posse,
como de que uma propriedade. Com isso está prosaicamente
formulado aquilo que ocorre no curso da vida como “inquietude
do coração”.14

12 Paul T ilu ch , Dinâmica da fé, p. 9.


13 Leonardo B off, em Tempo de transcendência, dedica um capítulo à discussão
dos “lugares privilegiados de experiência da transcendência”, no qual propõe
o espaço da imanência como locus para as experiências com o transcendente.
uí Paul T ilu ch , op. cit., p. 11.

76
A figura da inquietude do coração, proposta por Tillich, aponta
para a dramaticidade inerente à experiência de fé. H á uma constan­
te certeza, eternamente incerta, acerca daquilo (ou daquele?) por
que se é experimentado, uma impossibilidade de fundamentos só­
lidos que amparem até mesmo as memórias da experiência de fé.
O chão da experiência de fé é de areia movediça, de brumas
que podem até sugerir alguma segurança para quem observa das
distâncias discursivas da apologética. Para aqueles que se aproxi­
mam, porém, restam a inquietude, a tensão entre a alegria pro­
funda que seduz ao poço movediço, que não quer cessar de entregar-se
à incerteza, e a necessidade — fruto da consciência histórica — de
mostrar a razoabilidade da experiência, sua possibilidade cognitiva,
sua demonstrabilidade como evento histórico e sua capacidade ra­
cional. Essa tensão pode ser resumida no paradoxo formado por ter
de dizer o indizível e comunicar o incomunicável.
Nesse momento, a experiência de fé, que não é apreensão
cognoscível de algo, mas o ser apreendido por algo que não se
oferece à cognição, encontra-se com sua necessidade/desafio de
cognoscibilização (v. Glossário). Antes de discutir o processo de
cognoscibilização da experiência de fé, porém, que seria o segun­
do passo do núcleo da teologia, interessa compreender a neces­
sidade/desafio que impulsiona essa experiência à cognoscibilização.
Croatto declara: “Mesmo que a finalidade da vivência religiosa
seja transcendente, trata-se de uma experiência humana, própria
do ser humano e condicionada por sua forma de ser e pelo seu
contexto histórico e cultural” .15
N o interior dessa humanidade, surge em primeiro lugar a neces­
sidade de comunicar, em signos mais ou menos precisos, a expe­

15 As linguagens da experiência religiosa, p. 41.

77
riência de fé. Essa necessidade é, antes de tudo, existencial. Antes
de qualquer coisa, ela atende a um anseio profundo de tornar a
experiência minimamente concreta para aquele que a vivenciou.
A necessidade existencial de conduzir a experiência rumo à
cognoscibilização atende, antes de tudo, à dúvida que se apresenta
irmã da própria fé.

Fé é certeza na medida em que se baseia na experiência do


sagrado. Mas ao mesmo tempo a fé é cheia de incerteza, uma
vez que o infinito, para o qual ela está orientada, é experimen­
tado por um ser finito. Esse elemento de insegurança na fé não
pode ser anulado; nós precisamos aceitá-lo.16

Tillich esclarece:

A dúvida que está contida em todo ato de fé não é nem a


dúvida metódica nem a cética. Ela é a dúvida que acompanha
todo o risco. Não se trata aqui nem da permanente dúvida do
cientista nem da dúvida volátil do cético; é, isto sim, a dúvida
de uma pessoa que está seriissimamente possuída por algo con­
creto. Em contraste com as formas acima descritas, poder-se-ia
denominar esse tipo de dúvida de dúvida existencial. Ela não
pergunta se uma determinada tese é verdadeira ou falsa, nem
rejeita toda a verdade concreta, mas ela conhece o elemento de
incerteza próprio a toda verdade existencial. A dúvida inerente à
fé sabe dessa incerteza e a toma sobre si num ato de coragem.17

A dúvida existencial, ou, como denomina Bruno Forte, “o ateís­


mo de quem crê”,18 constitui a necessidade primeira de cognos-

16 Paul T ilu ch , Dinâmica da fé, p. 15.


17 Ibidem, p. 18.
18 A essência do cristianismo, p. 120.

78
cibilizar a experiência de fé. Diferentemente dos discursos unívocos
e apologéticos e mesmo dos documentos escriturísticos, a fé em si
não é “firme fundamento”.19 Ela torna-se fundamento à medida
que aquele que a experimenta reage à sua insegurança, ou mesmo
à inexistência desses fundamentos.
Esse ateísmo de quem crê ganha mais força com o excesso de
consciência histórica, produzido pela tradição iluminista, eviden­
ciado sobretudo na literatura e na poesia. Um bom exemplo é o
relato metafórico de Jean-Paul Richter em seu Discurso do Cristo
morto:

Certa vez, numa tarde de verão, eu estava deitado no alto


de um monte, de frente para o sol, e adormeci. Tive um
sonho, e nele despertei em um campo de mortos [...]. Todas
as sombras estavam de pé em torno do altar [...]. E eis que
desce sobre o altar uma figura alta e nobre, acompanhada
por uma dor sem fim. E todos os mortos gritaram: “Cristo!
Não há nenhum Deus?” Ele respondeu: “Não há [...]. Atra­
vessei os mundos, subi até os sóis e percorri voando, ao lon­
go das vias lácteas, os desertos do céu; mas não há Deus
algum. Desci até onde o ser projeta suas sombras e perscru-
tei no abismo gritando: “Pai, onde estás?” Mas ouvi somente
a eterna tempestade que ninguém governa” [...]. Chegaram
então ao templo as crianças falecidas e se lançaram diante da
alta figura, junto ao altar, dizendo: “Jesus! Não temos um
pai?” E ele respondeu em prantos: “Somos todos órfãos, eu e
vós, estamos todos sem pai” [...]. E tudo então se tornou
apertado, tétrico, angustiante — e uma badalada desmesura-
da estava para marcar a última hora do tempo e fazer soço-
brar o edifício do mundo [...] quando acordei. Minha alma

19 V. Hb 11.1.

79
chorou da alegria de poder ainda adorar a Deus — e a alegria
e o pranto e a fé nele foram a minha oração.20

Esse sonho é comum a todos os que desbravam o terreno mo­


vediço da fé. “Respeitando a dignidade do não crer [...] o vento é
chamado a questionar-se sobre a própria fé e, na fé pensada, a
encontrar os abismos do não-crente que habita dentro dele”.21
Essa é a condição mais íntima de todo o discurso teológico. A
partir daí, o que se pode fazer é desprezar tal condição e singrar as
águas serenas do mar da univocidade ou assumi-la e, consciente
dela, lançar a reflexão teológica ao encontro da inevitável
equivocidade (v. Glossário) de seu discurso.
Seja qual for a opção assumida pela reflexão teológica, uma
coisa é certa: “Esta co-presença de fé e não-crença tem suas raízes
na própria condição humana”,22 sendo portanto improvável que
essa dúvida não cumpra seu papel de direcionar a experiência
para a cognoscibilização. Nisso consiste a dimensão da necessi­
dade existencial inerente à experiência de fé.
Além da dimensão da necessidade, existe outra: a do desafio.
Há um desafio proposto para a experiência de fé, que é a comuni­
cação desta, não a fim de produzir segurança naquele que a expe­
rimentou, mas de tornar possível sua reprodução exterior.
Outra forma de convencimento acerca da veracidade de uma
experiência é vê-la sendo reproduzida. Quando alguém acolhe uma
experiência de fé, ele ratifica sua veracidade e aponta para a
contemporaneidade de sua relevância. Nisso se fundamenta o caráter
proselitista das religiões em geral e do cristianismo em particular.23

20 Bruno F o rte , A essência do cristianismo, p. 121.


21 Idem, ibidem, p. 122.
22 Idem, ibidem, p. 122.
23 O caráter proselitista do cristianismo não se fundamenta apenas na necessi­
dade/desafio de superar a dúvida, embora essa dimensão seja importante,

80
O desafio de tornar uma experiência subjetiva e individualiza­
da como proposta de seguimento coletivo, que a assume como
rito de iniciação, está na origem de praticamente todas as reli­
giões. Uma vez que o proselitismo (ou movimento missionário)
não é o nosso foco,24 basta indicar que a inefabilidade da expe­
riência de fé encontra, no desafio da verossimilhação (v. Glossário)
valorizada pela reprodução externa dessa experiência, um elemen­
to importante no processo de sua cognoscibilização.
Unindo-se as peculiaridades da necessidade e do desafio que se
apresentam à experiência de fé, é possível compreender como essa
experiência indizível se vai transformando em fundamento até
poder apresentar-se como discurso sistemático sobre o sagrado e
suas relações com o mundo. O caminho que nos conduz de um
pólo a outro, porém, precisa ser compreendido, pois é nele que
consiste o locus (v. Glossário) metodológico.

Mediação cultural como locus metodológico


A experiência de fé nasce destinada a se tornar um discurso
complexo e sistematizado (por causa da necessidade/desafio). Isso,
no entanto, só é possível por meio de um sistema lingüístico ca­
paz de dizer o indizível, tornando-o cognoscível a tantos quantos

sobretudo em nossa perspectiva. Há também todas as relações de conflito e


as disputas por poder que impulsionam os movimentos missionários e in­
tensificam os ardores apologéticos.
24 Na esfera da comunicação da fé numa perspectiva missionária ou proselitista,
existem vários estudos, feitos por praticamente todas as matrizes teológicas.
Um trabalho importante nessa área é o de Eduardo Rosa Pedreira: Do
confronto ao encontro, em que ele expõe os resultados de sua pesquisa acerca
do exclusivismo, inclusivismo e pluralismo diante de algumas questões
teológicas, inclusive da missiologia. Numa direção semelhante, estão as obras
de Jacques Dupuis: O cristianismo e as religiões e Rumo a uma teologia cristã
do pluralismo religioso.

81
o ouçam. Nesse sentido, pode-se ver acabado o processo que cons­
titui a fé cognoscibilizada.
Sem a dimensão da mediação cultural, haveria uma polariza­
ção entre experiência de fé e discurso sistemático, uma incomu-
nicabilidade que inviabilizaria qualquer discurso minimamente
relevante. Sem mediação cultural, a experiência de fé não trans­
mitiria nenhum sentido existencial, e o discurso sistemático não pas­
saria de peça literária cristalizada, fria e absolutamente irrelevante,
dada tão-somente à reprodução sistemática de corte apologético.
É nesse sentido que se fundamenta a importância da mediação
cultural. Ela é o locus da produção do conhecimento, ou seja, da
cognoscibilidade. Ela não se encontra fora, não está em nenhum
outro lugar senão no mundo “concreto” da linguagem.

O mundo da linguagem envolve o ser humano a partir do


primeiro momento em que se dirige o seu olhar para ele, apre-
sentando-se-lhe com a mesma determinação, necessidade e
“objetividade” que definem o seu encontro com o mundo das
coisas.25

E no espaço da mediação cultural, portanto, que se elabora o


método de acesso à experiência de fé. E ela que atende à necessi­
dade/desafio dessa experiência. O discurso sistemático que se há de
fazer não corresponderá à experiência de fé em toda a sua extensão.
Antes, apresentar-se-á dessa ou daquela forma, com base na me­
diação cultural utilizada no processo de elaboração. Desse modo,
a mediação cultural é a parteira que arranca das entranhas da ex­
periência de fé aquilo que virá a ser discurso sistemático.
Esse processo maiêutico, realizado pela mediação cultural, dá-se
eminentemente no campo da palavra que, na visão de Cassirer,

25 Ernst C a ssire r, Filosofia das formas simbólicas, p. 80.

82
“não é uma designação e denominação, não é, tampouco, um sím­
bolo espiritual do ser, e sim uma parte real do mesmo”.26
A linguagem que permite a mediação cultural não é outra se­
não a nossa — a linguagem dos homens e mulheres de existência
concreta, condutora de suas utopias e, portanto, carregada de his­
tórias e ideologias e vazada de esperanças. E por esse instrumento
que, nas características apresentadas, encontra sua concretude, que
a necessidade/desafio da experiência de fé ganha seu corpus dou­
trinário.

Pela linguagem, chegamos à realidade, abrimo-nos ao mun­


do, mesmo já antes de toda elaboração teórica expressa; esta
pré-compreensão lingüística, pela qual o mundo se nos torna
acessível, nos surge categorial, articulado, não como mera soma
de objetos, mas ligado logicamente em “classes”, “gêneros”,
“espécies” [...], é prolongada, depois, com maior aprofunda­
mento teórico, pela ciência.27

Diz ainda Amado que “a linguagem do homem é enérgeia [W


von Humboldt], isto é, força configuradora e estruturante; não se
limita a pôr etiquetas em seres situados no mundo já constituído;
toda a linguagem constitui um mundo, é cosmovisão”.28
É, portanto, fundamental perceber que a linguagem — e, por
conseguinte, a mediação cultural — não é um simples apetrecho
(destinado ao campo da oratória) do discurso teológico, e sim a
chave hermenêutica para compreendê-lo, pois é em sua dimensão
e domínio que se elabora o método que o possibilita.
Assim como é importante dizer que a mediação cultural efeti­
vada pela linguagem não pode ser relegada a uma dimensão se­

26 Filosofia das formas simbólicas, p. 80.


27 João A mado , O prazer de pensar, p. 24.
28 Idem, ibidem, p. 24.

83
cundária do processo de produção do discurso teológico,29 deve-
se principalmente, no que diz respeito à relevância, apontar para
sua centralidade. Se os elementos concretos — homens e mulhe­
res — não forem respeitados e protagonizados, constituindo um
método que contemple essa concretude, o discurso teológico
caracterizado aqui como sistemático não comunicará sentido exis­
tencial algum.
É nesse sentido que se funda e sustenta a importância da me­
diação cultural. Se ela for considerada em sua centralidade, ou
seja, se no processo de construção do discurso teológico a media­
ção cultural for levada a sério (e isso se dá na medida em que se
propõe uma aproximação com os sujeitos históricos, a quem se
dirige esse discurso, para compreender o conjunto de elementos
que compõe seu horizonte existencial e, a partir daí, perceber qual
matriz dessa mediação deve ser instrumentalizada), então o dis­
curso teológico mostrará sua relevância.
O grande desafio que se propõe à teologia e ao discurso que a
quer comunicar é o de anunciar a homens e mulheres concretos,
não à humanidade como categoria universal e genérica, aquilo
que se mostra de forma hierofânica e indizível. O desafio não con­
siste apenas em comunicar esse fato, o que já seria complexo, mas
comunicá-lo na dimensão do horizonte existencial daquele e da­
quela que constituem sujeitos históricos desse processo, dos que
habitam um mundo particular.

M Embora pareça claro que o discurso teológico náo possa prescindir da cultu­
ra como instância que promove mediação com base na linguagem (em
determinada linguagem), permitindo assim seus postulados, isso não se
verifica no caso da teologia sistemática manualista. O que se pode perceber
é a cristalização de uma mediação cultural (a metafísica) que impede qual­
quer outra. Dessa forma, o arco de elementos que compõe o horizonte
existencial de homens e mulheres concretos não é identificado no interior
desse discurso.

84
Seja qual for a natureza do mundo, o problema essencial
que levanta a relação cognitiva sob o aspecto do objeto conheci­
do é o da probabilidade de transcrição cognitiva, da transforma­
ção do objeto a conhecer em objeto conhecido. Como é que o
que existe se pode tomar no que é conhecido? Trata-se do pro­
blema da expressão — em palavras ou outros elementos cognitivos
— do que é cognoscível ou conhecido. Pretende-se aqui elucidar
a intuição ideal da adequação entre coisas e palavras, intuição
que funda a possibilidade de toda a situação cognitiva.30

Por causa dessa complexidade, a preocupação com a escolha da


mediação cultural31 correspondente a cada horizonte existencial
deve ser companheira inalienável de todo processo de produção
do discurso teológico. Forte comenta:

Por isso a consciência teológica mais esclarecida não usa a


hermenêutica histórica como uma espécie de chave onicom-
preensiva: ela se mantém discreta diante da excedência do
Mistério e da irredutível variedade da história real. A razão
teológica, então, só pode ser uma “razão aberta” [Walter Kasper],
sempre posta em xeque pelas contradições da vida e sempre
em busca da luz que a revelação de Deus em Jesus Cristo lança
sobre ela.32

30 João A m a d o , op. cit., p.26.


31 Em seu livro Teoria do método teológico, Clodovis Boff fala das possibilidades
de mediação cultural para a teologia. A primeira delas é a filosofia, que tem
como funções concretas: ser parceira exigente do diálogo cultural, exercitar
a arte de pensar e trabalhar o fundo filosófico implicado na teologia. Com
a autonomia que as demais ciências tiveram em relação à filosofia no
iluminismo, a teologia ganhou outras possibilidades de mediação. Entre
tantas outras possíveis (psicologia, psicanálise, lingüística, economia, antro­
pologia etc.), Boff aponta para as ciências sociais, em razão de sua ampla
utilização na teologia latino-americana (p. 371-82).
32 Teologia em diálogo, p. 33.

85
Tomando rumo semelhante, Libânio aponta para a necessidade
de historicizar a mediação cultural e o método dela derivado:

As teologias escolástica e moderna deslizavam sobre trilhos


epistemológicos e metodológicos bem plantados pela comuni­
dade teológica. Hoje se desafia o teólogo a forjar seus trilhos e
a encontrar novos dormentes em que prendê-los. Se o risco de
errar cresce, o fascínio da aventura entusiasma.33

Trata-se, como diz Libânio, de um desafio para a comunidade


cristã, em que “a comunidade na pessoa do teólogo cria a teologia,
e a teologia, por sua vez, cria a comunidade com sua linguagem”.34
Esse desafio de criação e recriação do discurso e da própria comu­
nidade é também analisado por Leonardo Boff a partir de três
momentos em que a linguagem tenta sistematizar a experiência
de fé. O primeiro momento é denominado “saber-imanência-iden-
tificação”.35 Nele, “a palavra está a serviço do que experimenta­
mos de Deus. Fixamos uma representação. Inicialmente não temos
ainda consciência de que se trata apenas de uma representação
daquilo que não pode ser representado” .36
É o que se tem chamado aqui “cristalização de uma mediação
ou linguagem”, em que

Deus é identificado com os conceitos que dele fazemos.


Ele habita nossos conceitos e nossas linguagens. Elabora­
mos doutrinas sobre Deus e sobre o mundo divino, doutri­
nas que se encontram nos vários credos e nos catecismos.
Com tal procedimento tentamos encher de sentido último e

33 Introdução à teologia, p. 33.


34 Idem, ibidem, p. 73.
35 Experimentar Deus, p. 13.
36 Idem, ibidem, p. 13.

86
pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado na intimidade
do coração.37

O segundo momento, que Boff denomina “não-saber-trans-


cendência-desidentificação”,38 é caracterizado quando, pela expe­
riência de Deus, damo-nos conta da insuficiência de todas as
imagens de Deus. Tudo que dele dizemos é figurativo, simbólico.
Ele está além de todo o nome e desborda de todo conceito.
Esse momento pode ser identificado com o que aqui se tem
dito acerca da necessidade de percepção do horizonte existencial
ao qual se dirige o discurso teológico. À medida que se consegue
essa percepção, relativiza-se um discurso monossêmico, que iden­
tifica o objeto da experiência de fé com o discurso dela derivado.
O que decorre disso é o que, no dizer de Boff,

pode surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte


de todas as palavras referidas ao divino, porque elas mais es­
condem do que comunicam Deus. Não sabemos mais nada;
desidentificamos Deus das coisas que dizemos dele. Por aí
entendemos o lema dos mestres zen: “Se encontrares Buda,
mata-o”. Se encontrares Buda, não é o Buda — é apenas sua
imagem. Mata a imagem para estares livres para o encontro
com o verdadeiro Buda.39

Logo após esse momento transitório de relativização do dis­


curso teológico cristalizado, Boff comenta:

Num terceiro momento da experiência de Deus, reabilita­


mos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-las nega­
do (B), agora criticamente nos reconciliamos com elas.

37 Boff, Experimentar Deus, p. 13.


38 Idem, ibidem, p. 14.
39 Idem, ibidem, p. 15.

87
Assumimo-las como imagens e não mais como a própria identi­
ficação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só
pode ser feito através das imagens. Começamos a saboreá-las
porque estamos livres diante delas. Elas são andaimes, não a
construção, e as acolhemos como andaimes.40

Com base nessa41 e nas demais contribuições, pode-se afirmar


que é no espaço da mediação cultural que os métodos são criados
— andaimes ou pontes que possibilitam falar o indizível da expe­
riência de fé42 para atender ao imperativo da necessidade/desafio
que dela se deriva.
Isso revela, ao mesmo tempo, a centralidade da mediação cul­
tural na gestação do núcleo da teologia, isto é, da fé cognosci-
bilizada, e o caráter do discurso sistemático, que não pode mais
ser considerado nem apologeticamente defendido como depósito
das verdades fundamentais, mas como produto de “uma reflexão”
sobre a experiência de fé.

Discurso sistemático como produto de uma reflexão sobre a


experiência de fé
Enfim, a experiência de fé com sua necessidade/desafio, cultural­
mente mediada e cognoscibilizada por meio dos veículos lingüísticos,

40 B o ff, Experimentar Deus, p. 15-6, p. 15-6.


41 Os três momentos da linguagem do discurso teológico apontados por Leo­
nardo Boff em Experimentar Deus sintetizam, de alguma forma, nosso pon­
to de vista. Até aqui, já se tentou evidenciar o ponto A: identificação do
discurso com a totalidade do sagrado; o ponto B: a necessidade de relativizar
essa identificação a fim de permitir outras aproximações e mediações; o
ponto C, que trata da conciliação com a linguagem em dimensão múltipla,
constitui o tema do terceiro e último capítulo desta obra.
42 Prefere-se aqui a expressão “experiência de fé”, e não “experiência de Deus”,
dado o ponto de vista que defendemos, que a circunscreve no campo do
método, buscando dessa forma distanciar-se ao máximo de expressões e
conceitos que a aproximem dos conteúdos.
constitui um discurso sistemático. O núcleo da teologia está com­
pleto. Já é possível identificá-lo como fé cognoscibilizada.
O discurso sistemático compreende o indizível cognosci-
bilizado. Ele é o produto da reflexão sobre a experiência de fé,
mediado pelo conjunto de signos e símbolos capazes de comuni­
car sentido ao horizonte existencial das comunidades em que se
deram as experiências. É um produto social que só tem relevância
à medida que efetivamente consegue manter uma relação dialogai
com a comunidade de homens e mulheres concretos. E, portan­
to, um elemento no processo nuclear da teologia, que precisa ser­
vir à sua retroalimentação.
Uma vez constituído, o discurso sistemático sofre o risco da
própria natureza, ou seja, de sua condição sistematizadora.43 Esse
risco consiste em sua identificação como uma peça acabada capaz
de comunicar sentido para além das fronteiras da cultura que o
gerou. Ao abrigar em seu interior um sistema, esse discurso pode
acabar servindo apenas de instrumento sistemático, ou seja, de
seu reprodutor, iniciando assim um círculo44 que acaba por ex­
cluir tanto a experiência de fé originária quanto qualquer outra
mediação cultural.
Refletindo sobre essa questão na dimensão da história da teo­
logia, Forte indica dois extremos possíveis ao discurso teológico.

43 Segundo A bbagnano, sistema é “uma totalidade dedutiva de discurso. Essa


palavra [...] foi empregada para indicar o conjunto de premissas, e passou a ser
usada em filosofia para indicar principalmente um discurso organizado de­
dutivamente, ou seja, um discurso que constitui um todo cujas partes deri­
vam umas das outras [...] segundo Wolff: chama-se de sistema um conjunto
de verdades ligadas entre si e com seus princípios” (op. cit., p. 908).
44 Esse círculo pode ser compreendido como virtuoso ou vicioso. Na perspec­
tiva da teologia sistemática universalizante, aquela dos manuais, ele é virtuoso
à medida que permite ser dito para além de qualquer fronteira. Em nossa
perspectiva ele é vicioso, exatamente porque nega o processo do qual faz
parte, como um produto.

89
O primeiro ele denomina “sedução idealista”45 e afirma que “não
faltaram reconstruções guiadas por teses preconcebidas, cujo sa­
bor se pode sentir até em algumas sínteses com forte acento
manualista e dogmático, em que o propósito sistemático prevale­
ce sobre a complexidade do dado histórico”.46
O segundo extremo ele identifica como “renúncia positiva”,47
na qual a “historicidade da revelação e de sua transmissão resisti­
ria de tal forma a toda interpretação totalizante (v. Glossário, abor­
dagem totalizante-universaliante) , que nenhuma reconstrução
interpretativa se veria isenta de riscos ideológicos”.48
Para além desses extremos, Forte propõe outra abordagem, que
ele denomina “narrativo-argumentativa”.49

E a escolha de uma narrativa crítica, consciente dos pró­


prios limites, não-ingênua, não-positivista, não-fundada sobre
a ilusória pretensão de chegar a atingir os dados como bruta
facta, mas que nem por isso renuncia à possibilidade de mo­
ver-se em um horizonte de historicidade aberta, não redutível
ao sistema.50

Ele prossegue:

O acento mais histórico que sistemático comporta a re­


núncia de teses interpretativas totalizantes, a escolha de frag­
mentos, o caráter de uma narratividade pensante, quase
modesta, porém não isolada da individuação de linhas

45 F orte, Teologia em diálogo., p. 24.


46 Idem, ibidem, p.24.
47 Idem,ibidem,p. 24.
48 Idem,ibidem,p. 24.
49 Idem,ibidem,p. 25.
50 Idem,ibidem,p. 25.

90
unificantes, capazes de propor horizontes interpretativos não-
coercitivos, aptos a conferir sentido.51

A necessidade de abdicar de sistemas totalizantes (ou univer-


salizantes) mostra-se cada vez mais urgente em nossa época, que
“se caracteriza por uma suspeita geral contra todos os discursos
que tentam traduzir o definitivamente importante e o radical­
mente decisivo da vida humana”.52
Contribuição importante à tarefa de renunciar aos discursos
totalizantes, no que diz respeito a afirmar cada vez mais a centra-
lidade da mediação cultural no discurso teológico, obtemos de
GefFré, quando afirma que é “paradoxal que os textos da revelação
possam ser objeto de uma interpretação e que não temos a mesma
liberdade de interpretar os textos da tradição dogmática”.53
A partir disso, ele propõe, quanto a relativizar o discurso sistemá­
tico que se volta contra a sua condição de construto social, só possível
na dependência de uma mediação cultural, ele propõe uma ação
hermenêutica sobre o sistema teológico que lhe devolva as fronteiras
histórico-culturais e imponha-lhe sua condição de precariedade.
A ação hermenêutica proposta por Geflfré deve observar um
conjunto de regras. A primeira registra que “para compreender o
alcance de um enunciado dogmático é preciso forjar a situação
hermenêutica correta que é determinada pelo jogo da pergunta e
da resposta” .54 Nesse sentido, ele chama a atenção para a afirma­
ção de que “uma definição dogmática só pode ser compreendida
em relação com a questão histórica que a provocou”.55

51 F o r t e , Teologia em diálogo, p. 25.


52 Leonardo B o f f , Experimentar Deus, p. 20.
53 G e ffrÉ , Crer e interpretar, p. 65.
54 Idem, ibidem, p. 69-70.
55 Idem, ibidem, p. 70.

91
A segunda regra determina que as definições dogmáticas “de­
vem ser lidas à luz de nossa leitura crítica da escritura” .56 Dessa
forma, o discurso sistemático deve ser submetido ao texto funda­
dor da experiência cristã de fé.
Na terceira regra afirma que as definições dogmáticas “devem
ser interpretadas à luz do aspecto de correlação crítica entre a
experiência cristã fundamental e nossas experiências humanas de
hoje”.57 Novas experiências, mediadas por novos signos e símbo­
los, devem produzir um novo discurso sistemático. Esse processo,
porém, não se deve dar à revelia da experiência fundadora de fé.
Ele assinala em sua última regra: “Em alguns casos, a reinter-
pretação de um enunciado dogmático pode levar a uma refor­
mulação”.58 Vê-se claramente, portanto, a necessidade de indicar
o papel do discurso sistemático no núcleo da teologia, o qual não
pode ser considerado um fim em si mesmo.
Embora tenha sido discutido até aqui o que é o núcleo teológi­
co em seus elementos constituintes, é necessário ainda perceber
como foi distorcido na teologia sistemático-dogmática manualista
de tendência universalizante. E, ainda, perceber como a metafísica
contribuiu para esse processo.

Abordagem totalizante-universalizante como


cristalização de uma mediação cultural
Em nosso ponto de vista, como já dissemos, a metafísica não é
o ponto fundamental. Nosso propósito é o de compreender como
ela se estabeleceu de início como mediação cultural59 e posterior­

56 G effré, Crer e interpretar, p. 72.


57 Idem, ibidem, p. 74.
58 Idem, ibidem, p. 77.
59 Esse tópico foi trabalhado no capítulo 1.

92
mente como método perene. Ou seja, importa-nos perceber o
processo de cristalização da mediação cultural e sua potencialização
ao status de norma prescritiva (v. Glossário).
Como discutimos no tópico anterior, a mediação cultural é o
locus metodológico, o espaço próprio para a elaboração de méto­
dos que tornem comunicável a experiência de fé no horizonte exis­
tencial concreto. O fator determinante, portanto, é o horizonte
existencial onde se dá essa experiência. Ela deve contar com a
mediação cultural mais adequada à tarefa de responder à necessi­
dade/desafio derivada de si mesma. É somente nesse sentido que
se legitima a relevância do método.
O método deve estar, portanto, a serviço do discurso teológi­
co, para permitir que se realize a cognoscibilização da f é (v. Glossá­
rio). Ou seja, que a experiência de fé tenha na mediação cultural
um veículo capaz de se aproximar do horizonte existencial com­
pleto de cada comunidade, em qualquer tempo histórico-cultural,
para que o discurso sistemático construído nesse espaço seja rele­
vante a essa comunidade.
O que se percebe, portanto, é que o discurso teológico em
geral e o sistemático-dogmático em particular, por vezes, não con­
seguem concretizar essa relevância. A respeito da teologia siste­
mática, há mesmo um ataque à sua condição estéril e ao seu
caminho meramente reprodutor e apologético. A respeito dessa
esterilidade na periferia do mundo,60 Hebga argumenta:

Os padres elaboraram sua teologia com base principalmen­


te nas categorias da filosofia neoplatônica. Santo Tomás ser­

60 O teólogo Meinrad Hebga é engajado numa reflexão teológica que preten­


de romper com o padrão metodológico ocidental e, com isso, permitir que
as culturas locais de terceiro mundo, até então não valorizadas, possam
mediar as experiências de fé que delas emerjam. Seu ministério é desenvol­
vido no continente africano.

93
viu-se do aristotelismo. Aos concílios e papas só restava seguir
um caminho totalmente traçado. A fé cristã passaria a expri­
mir-se em termos greco-escolásticos fora dos quais sua orto­
doxia não é garantida [...] Excluindo-se o bruto do Novo
Testamento, a fé cristã se anuncia obrigatoriamente nos con­
ceitos do pensamento ocidental.61

Ele prossegue:

Teria Deus, de fato, condenado a massa de nossos irmãos


cristãos a repetir mecanicamente palavras e fórmulas estra­
nhas a seu universo de pensamento, interpretadas para eles
pelos poucos teólogos desculturados e ocidentalizados? É nisto
que está a boa nova.62

O discurso teológico que encontrava relevância no próprio


horizonte cultural passa a determinar, como norma prescritiva,
toda reflexão posterior.

Mesmo no terceiro milênio, a atitude do cristianismo ofi­


cial continua ambígua: por demais universalista nas palavras,
mostra-se nos fatos de um particularismo monopolista estreito
e intransigente. A judaização forçada foi esvaziada de autori­
dade pelo Espírito Santo e pelos apóstolos. Quem nos salvará
do ocidentalismo filosófico, jurídico e cultural erigido em ca­
minho providencial único para a salvação em Jesus Cristo?63

Respondendo às próprias questões, Hebga propõe a necessidade


de um método teológico original que se desvie das teologias clás­

61 H ebga, Da generalização de um particular triunfante à procura da univer­


salidade, in: Concilium 191, p. 73.
62 Idem, ibidem, p. 73.
63 Idem, ibidem, p. 73.

94
sicas,64 em razão do comprometimento destas com o universo
cultural e filosófico europeus.65 Ele conclui qüe “as teologias clás­
sicas não são suficientemente abertas para abraçar as nossas pro­
blemáticas específicas”.66
Hebga, portanto, considera o discurso teológico clássico67 um
discurso totalizante e universalizante de uma mediação cultural
que, cristalizada, ascende a uma condição supra-histórica da qual
consegue normatizar qualquer outra reflexão teológica. Esse pro­
cesso sobrevive porque tal cristalização/ascensão significa a mono-
polização de um método, a qual, por sua vez, significa a negação
da dignidade da cultura do outro — e, por conseguinte, a nega­
ção da dignidade do próprio outro, que não consegue enxergar-se
naquele discurso teológico que pretende representá-lo.
Para evidenciar esse processo de cristalização e propor uma
abordagem metodológica capaz de superá-lo, é fundamental
compreender seu mecanismo de afirmação e sobrevivência —
desde seu primeiro passo para desistoricizar a mediação cultu­
ral até a implementação de mecanismos de controle do discur­
so teológico.

Desistoricização do discurso teológico


O primeiro passo para a cristalização de uma mediação cultu­
ral é a desistoricização (v. Glossário) do discurso teológico. Impor­
ta aqui compreender esse processo em sua instância originante,
aquela que possibilitaria o discurso teológico sistemático unívoco

64 H ebga, Da generalização..., ibidem, p. 78.


65 Idem, ibidem, p. 78.
66 Idem, ibidem, p. 78.
G7 Por “teologia clássica”entende-se a reflexão quecompõe odeposito fidei,
produzida nos primeiros séculos da eracristãpelos pais da Igreja. Essa
reflexão é ratificada pelos concílios eclesiásticos dos primeiros seis séculos.

95
e na qual este buscaria a legitimidade, como quem no passado
encontra a razão de sua ação presente.68
A desistoricização consiste em anular a atualização da media­
ção cultural, para identificar “aquela” mediação cultural como de­
finitiva. Há, portanto, na raiz desse processo, o desejo univocizante
de identificação de um método que permita a proclamação de um
discurso, o qual, por sua vez, possa ser controlado por uma insti­
tuição. A desistoricização serve, portanto, à hierarquização
univocizante da fala e, em decorrência disso, do poder que dela
emana.
Esse processo encerra inúmeras dimensões de poder além do
teológico, principalmente porque se identificam, no interior de
uma comunidade, aquelas pessoas, que podem acessar aquele dis­
curso sobre aquele Deus. Essa dinâmica pessoa-discurso-Deus,
uma vez acessada, tem como contrapartida uma dinâmica de res­
posta Deus-discurso-pessoa. Isso cria uma estrutura necessária que,
por sua vez, estabelece a impossibilidade de qualquer ação autô­
noma, tanto na dimensão hermenêutica quanto, posteriormente,
na política.
Nesse sentido, a univocizaçao do discurso teológico exerce um
papel pedagógico num projeto de poder, pois é a dimensão da
experiência de fé que consegue mobilizar as forças mais radicais
do homem e da mulher. Se a univocidade já é afirmada no objeto
dessa experiência, tudo que partir dela também o será.
A contribuição da metafísica para esse processo é enorme, pois
ela, em primeiro lugar, identifica o objeto da experiência de fé,

68 O processo de desistoricização do discurso teológico é analisado com relação


ao período do encontro da religião cristã com o mundo helênico, sobretudo
com a metafísica. Esse processo aconteceu outras vezes no interior do dis­
curso teológico-cristão (e ainda acontece), mas sua matriz para o corte siste­
mático do discurso teológico foi criada naquele momento.

96
que é Deus, para além de toda multiplicidade, a qual, por sua
vez, é condenada como má. Em segundo lugar, em nome da con­
denação da multiplicidade, a metafísica cria uma coisa chamada
“essência”, que se superpõe a toda existência concreta. O Deus
uno e transcendente ilumina algumas pessoas para fazer cumprir
sua vontade circunscrita em seu discurso.
O risco dessa desistoricização é percebido por Cassirer, nos
seguintes termos:

O Ser Uno ao qual se apega o pensamento, e do qual este


parece não poder desistir sem destruir a própria forma, afasta-
se mais e mais do terreno do conhecimento. Ele se torna um
mero x que, quanto mais proclama categoricamente a sua uni­
dade metafísica como “coisa em si”, tanto mais se subtrai a
toda e qualquer possibilidade de conhecimento, até finalmente
ser relegado por completo aos domínios do incognoscível.®

N a observação de Cassirer, o que está em risco no processo é o


que aqui se compreende como a própria experiência de fé. A
transcendentalização absoluta do divino impede as experiências
renovadas e identifica o espaço do discurso sistemático como locus
para elas. O discurso sistemático, porém, não cumpre esse papel:
ele é construto cultural baseado na experiência.
Boff também discute a questão: “Deus transcendente é repre­
sentado como o Deus acima do mundo e, o que é pior, fora do
mundo [...] Representado como totalmente fora do mundo, Deus
de fato não seria experimentável” .70 E conclui: “Esse Deus está
muito próximo do Deus do deísmo [...] Não é um Deus que se
abaixa com profunda simpatia para com o ser humano. Não assu­

69 Filosofia das formas simbólicas, p. 17.


70 Op. cit., p. 24.

97
me a nadidade humana. Mas conserva, contrariamente ao que diz
Paulo [v. Fp 2.6,7], uma majestática e transcendente divindade” .71
Fazendo um balanço da aproximação da religião cristã com a
cultura helênica, Segundo chega às seguintes conclusões:

E claro que nem tudo é positivo nesse diálogo e que a teo­


logia de nosso tempo destaca, uma e outra vez, de forma mais
ou menos equilibrada, os aspectos negativos da inculturação
da teologia cristã nas categorias de pensamento grego. De fato,
temos que admitir que tudo estava longe de ser perfeito ou ao
menos positivo, nesse mundo helênico com o qual a Igreja
dialoga, na época patrística [...] na raiz do vazio cultural pro­
duzido pela queda do Império Romano sob os bárbaros, o
mundo mental helênico domina, durante muitos séculos, as
elites do saber na cristandade e, conseqüentemente, sua con­
cepção do dogma. E, por conseguinte, qual devia ser a autori­
dade encarregada de mantê-lo e ensiná-lo.72

Após apontar para a influência desistoricizante que as catego­


rias de pensamento grego exerceram sobre a teologia cristã, Se­
gundo conclui:

Mesmo em plena idade moderna, o desejo de salvaguardar


a cristandade ou mundo cristão leva a Igreja a aferrar-se a
formas de pensar que, se já não são plenamente helênicas, são
incapazes de compreender a crescente problemática da cultura
do último meio milênio.73

Vale a pena levar Segundo em consideração, quando afirma


que as categorias de pensamento já não são mais “plenamente

71 Idem, ibidem, p. 24-5.


72 O dogma que liberta, p. 248.
73 Idem, ibidem, p. 248.

98
helênicas”, porém o que se afirma perenemente é a maneira de
compreender a realidade, advinda dessas categorias. A lógica da
metafísica permanece com muito vigor no discurso teológico-
cristao, sobretudo em seu corte sistemático, como percebem
Croatto e Bonino:

A helenizaçáo da mensagem bíblica nos fez brincar muito


com o “outro mundo”, entendido como o reino do que é imor­
tal e descarnado, e a salvação de todos os males deste mundo.
As coisas se resolverão depois. Porém em um universo que
nada tem a ver com o presente.74

Essa maneira de compreender a realidade é, a um só tempo, o


resultado da desistoricização do discurso teológico e seu instru­
mento perpetuador. E uma questão séria que se circunscreve na
dimensão da linguagem teológica75 e que deve ser tratada no
âmbito da teologia crítica, como afirma Teixeira: “O exercício teo­
lógico não pode ocorrer senão como razão crítica, caso contrário
se desvia em discurso ortodoxo oficial, pontuado pela transcen-
dentalização, ideologização e falsificação”.76 Deve haver “um tra­
balho hermenêutico, que rompe com toda e qualquer possibilidade
de dogmatização da teologia”.77

74 Alberto Fernando Roldán, Para que serve a teologia?, p. 44.


75 Andrés Torres Queiruga, em O fim do cristianismo pré-moderno, enfrenta
esse problema com base em três questões fundamentais: a primeira, de
caráter estrutural quanto à dificuldade constitutiva de toda linguagem
mundana para expressar o não mundano; a segunda, na dimensão da mu­
dança de paradigma, dentro da qual a revolução cultural produzida pela
modernidade deve ser levada a sério; a terceira, de índole mais vivencial,
alude às dificuldades e resistências que uma expressão adequada da vivência
religiosa encontra (p. 71-104).
76 O lugar da teologia na(s) ciência(s) da religião, in: A(s) ciência(s) da religião
no Brasil, p. 303.
77 Idem, ibidem, p. 303.

99
Após perceber as possíveis conseqüências do processo de
desistoricização do discurso teológico, é necessária uma aproxi­
mação mais detida a seu interior, a fim de perceber como efetiva­
mente se dá essa desistoricização em suas etapas constituintes, a
saber: ascensão, potencialização e evocação. Para tanto, observe-se
o seguinte diagrama:

A MEDIAÇÃO CULTURAL

O processo de desistoricização do discurso teológico reprodu­


zido pela teologia sistemática manualista (v. Glossário, manualística)
tem seu primeiro movimento na ascensão de uma mediação cul­
tural, que a forma normatizante.
Isso se deu fundamentalmente no caso da metafísica. Ela sig­
nificava naquele momento, como categoria do pensamento
helênico, um elemento importante da cultura que constituía o
ethos do cristianismo em sua fase de expansão. Dialogar com o
pensamento helênico em geral e com a metafísica em particular
era um passo importante para tornar cognoscibilizada a experiên­
cia cristã de fé, a fim de apresentá-la em discurso sistemático rele­
vante ao horizonte existencial daquela cultura.78

78 Há intensa discussão sobre a legitimidade da helenização da mensagem


cristã. Para nós, porém, cabe evidenciar que a helenização cumpriu um papel

100
É exatamente nesse sentido quê Tillich ressalta a importância
da teologia apologética dos primeiros séculos do cristianismo.79
Ela representava precisamente o esforço para dialogar com a cul­
tura, para encontrar uma “base comum”80 capaz de tornar com­
preensível a mensagem cristã. Ele afirma que “o movimento
apologético pode ser corretamente considerado o nascedouro de
uma teologia cristã mais elaborada” .8'
A forma de compreender a realidade própria da metafísica
transformou-se, no entanto, em impossibilidade de diálogo com
outras culturas. A verdade teológica, na dimensão da mediação
metafísica era exterior aos homens e mulheres e à própria existên­
cia concreta: era o resultado de um processo de iluminação. Essa
verdade, uma vez revelada, foi sistematizada, devendo agora ser
aceita sem críticas, em nome da defesa da ortodoxia.
N a dimensão da mediação metafísica, não há espaço para a
multiplicidade, já que ela constitui o não-ser. N o múltiplo,
não há verdade, somente opiniões instauradoras de pluralis­
mo, que não combina com o discurso ortodoxo, por ser pró­
prio da heresia.
Se a verdade não pode ser encontrada na multiplicidade, que
corresponde à existência concreta, deve ser buscada para além dela,
numa dimensão das essências, onde habitam os conceitos unívocos
capazes de transmitir sentido a todo o múltiplo.

dialético com o cristianismo e a cultura que lhe era própria e a qual queria
alcançar com sua mensagem. Não se critica, portanto, a helenização ou
metafisicização (v. Glossário) da mensagem cristã naquele tempo para aque­
la cultura, e sim a cristalização daquela mediação cultural e sua ascensão ao
status de norma prescritiva.
79 V. nota 67.
80 Teologia sistemática, p. 15-6.
81 História do pensamento cristão, p. 44.

101
Esse foi — e ainda é — o risco que correu a teologia na utiliza­
ção das mediações culturais, acentuado na teologia dogmática clás­
sica na medida em que a metafísica ascendeu de sua condição de
mediação cultural ao status de norma prescritiva. Talvez o proble­
ma fundamental desse processo tenha sido a falta de consciência
quanto à limitação e precariedade de uma mediação, que só ofere­
ce relevância como elemento lingüístico compartilhado no hori­
zonte existencial da comunidade em que se dá esse processo.
Com base na ascensão da metafísica, que privilegia o unívoco
em detrimento do equívoco, como norma prescritiva do discurso
teológico dogmático clássico, a teologia sistemática fundamenta
seu discurso universalizante, num processo dedutivo e univoci­
zante. Isso está na própria compreensão do sistema82 como con­
junto harmônico e harmonizador dos temas da fé e das experiências
dela decorrentes.
Essa verdade teológica, por não estar na multiplicidade das
culturas, só pode ser expressa numa perspectiva universalizante,
pois não constitui espaços epistemológicos legítimos. Dessa for­
ma, dizer univocamente o discurso teológico é uma forma — ou a
forma — de defender a verdade quanto aos temas da fé que cons­
tituem basicamente a realidade total. Boff adverte sobre a arbitra­
riedade desse processo:

Nenhuma tendência pode monopolizar a teologia e se apre­


sentar como a teologia. Em todo o dito está o não-dito. A
razão (também a teológica) é finita. Por conseqüência, nenhu­
ma geração de cristãos pode colocar e resolver todas as ques­
tões apresentadas pela fé. Disto decorre que cada tendência
teológica deve conhecer seu alcance e principalmente seus li­

82 V. nota 43.

10 2
mites [...] Deve também estar aberta a acolher outras formas
de sistematizar a fé.83

A questão, portanto, não se limita aos sistemas totalizantes e


universalizantes: ela vai além, tocando a própria compreensão do
que seja ortodoxo. Quando uma mediação ganha status de norma
prescritiva, um discurso é identificado como o único verdadeiro,
condenando todos os outros à condição marginal de heresia. Pelo
menos por agora é possível concordar com Roldán, quando afir­
ma que

é legítimo e até necessário que sistematizemos nossa fé, mas


devemos estar conscientes de dois fatos: as influências filosófi­
cas, sociológicas e culturais nessas sistematizações, e a nature­
za revisável da tarefa. Do contrário, em uma espécie de reductio
ad absurdum, diríamos que a teologia seria um fato acabado,
somente se trataria de adquirir e estudar determinado tratado
teológico. O problema estaria, nesse caso, em determinar qual
seria o tratado teológico definitivo e irreversível.84

O segundo movimento do processo de desistoricização do dis­


curso teológico é a potencialização que a mediação cultural sofre
após ascender. Uma vez promovida a norma prescritiva, a desis­
toricização é potencializada tanto do ponto de vista da autoridade
quanto do alcance.
N a perspectiva da autoridade, a potencialização gera um
desnivelamento fundam ental na relação locutor-ouvinte.85

83 Igreja, carisma epoder, p. 36.


84 Para que serve a teologia?, p. 49.
85 Eni Orlandi discute essa questão no livro, A linguagem e seufuncionamento:
as formas do discurso, principalmente quando trata do discurso religioso e
teológico.

103
O locutor é quem geralmente manipula o método de acesso ao
discurso: encontra-se no plano espiritual, enquanto o ouvinte está
no plano temporal.
A fala do locutor é revestida de autoridade porque seu discurso
não é seu nem de homens e mulheres históricos e culturais: perten­
ce a outro espaço, distante dos horizontes culturais concretos. O
locutor, por assim dizer, é o guardião do método, que não é mais
compreendido como passível de revisão, tampouco de reinvenção.
Ao ouvinte cabe a tarefa de adequar o discurso à sua realidade,
mesmo que isso constitua uma violência. O discurso passa a ser a
distância perene, devendo ser univocamente interpretado e dis­
tribuído aos mais distintos ouvintes. Nisso consiste o nivelamento
locutor-ouvinte.
N a perspectiva do alcance, o discurso teológico sistemático
reveste-se de capacidade totalizante e universalizante. Uma vez
que ascendeu e potencializou-se, a mediação cultural produz um
discurso que encerra em si a totalidade das respostas às questões
ligadas à necessidade/desafio inerente à experiência de fé. Todas as
respostas são dadas de forma apriorística e sistematizadas num
manual. Tem-se, então, a teologia sistemática manualista.
Esse manual, que representa um discurso, tem alcance univer­
sal.86 Independentemente do horizonte existencial concreto em
que se encontrem os homens e mulheres cristãos, as respostas às
suas questões já estão dadas. Isso ocorre porque a mediação crista­
lizada entendia que tais respostas deviam ser dadas com base na
essência das coisas, e não em sua existência concreta.
Após a ascensão e potencialização da mediação cultural, o últi­
mo movimento do processo de desistoricização do discurso teoló­

86 Não se discute aqui a universalidade dos temas da fé. O que se pretende


discutir é a pretensa universalidade de uma interpretação desses temas.

104
gico é a evocação. Uma vez elevado à norma prescritiva, o méto­
do correspondente à metafísica como mediação cultural é evoca­
do, como dito, numa suposta onipotência e onipresença. Ele é
agora supra-histórico, e sua narrativa é, por assim dizer, meta-
histórica.87
N a evocação, dá-se a legitimação das tendências totalizantes e
universalizantes e, sem dúvida, fecha-se o círculo vicioso da
desistoricização do discurso teológico. Esta, por sua vez, altera
fundamentalmente o núcleo da teologia, como se observa neste
diagrama:

NORMA PRESCRITIVA

O que a teologia sistemática manualista fez em seu discurso,


com a desistoricização ocorrida com a sublevação da metafísica,
foi elevar uma mediação, transformando-a em norma prescritiva,
impossibilitando com isso novas mediações; fixar o discurso siste­
mático, que deveria ser apenas o construto de um processo, sob
forma de manual totalizante e universalizante; cercear, por conse­
guinte, a instância da experiência de fé, que não encontra no tér­
mino do processo (mediação cultural e discurso sistemático) os

87 Por meta-histórico queremos dizer “os valores eternos que a história tende a
realizar e que constituíram sua estrutura ou plano providencial que a rege”
(Nicola A bbagnano , Dicionário de filosofia, p. 667).

105
mecanismos que a contemplem como protagonista ou que levem
a sério o imperativo de sua necessidade/desafio.88
Resta, então, perceber os mecanismos de controle desse dis­
curso que possibilitam sua manutenção, tanto na dimensão da
academia, supostamente o círculo culto, quanto na catequese e na
liturgia das vivências eclesiásticas.

Mecanismos de controle do discurso teológico


Todo o processo de desistoricização do discurso teológico serve
a um propósito específico, que é o da afirmação da univocidade
da verdade. Uma vez garantida essa univocidade, torna-se neces­
sária ainda sua m anutenção, ou seja, o controle de toda
discursividade dissonante. Mas, como pergunta Foucault, “o que
há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus
discursos proliferarem? Onde, afinal, está o perigo?”.89
O perigo da discursividade dissonante em relação à univocidade
é que esta se fundamenta sobre princípios lógicos, que excluem o
contraditório. Qualquer fala diferente põe em xeque a fala unívoca,
propondo-lhe um dilema: se aquela (esfera da diversidade) é cor­
reta, esta (esfera da univocidade) é incorreta, portanto é necessá­
rio provar que ela (diversidade) não está tão certa quanto se imagina.
Sua proposição não é mais que falácia. Para isso, aplica-se o ins­
trumento apologético que mede o discurso outro com base nos
critérios internos do discurso unívoco. O resultado será possivel­
mente a condenação daquele e sua identificação como heresia (dis­

88 Embora a dimensão do desafio (anunciar para reproduzir a experiência)


seja largamente contemplada no corte teológico que sustenta a teologia
sistemática manualista, a dimensão relegada à condição marginal é a da
necessidade (dúvida, incredulidade existencial), que não é acolhida como
possibilidade ao crente em geral, muito menos ao teólogo.
89 A ordem do discurso, p. 8.

106
curso interditado). Foucault identifica esse processo no interior
das sociedades e afirma:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é


ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por
função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu aconteci­
mento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.90

Do controle da discursividade dissonante depende o discurso


unívoco. Por isso, desistoricizá-lo é tarefa importante, mas isso
não é tudo. É preciso também estabelecer mecanismos de contro­
le que consigam manter sua univocidade. Os mecanismos de con­
trole operam a fim de evidenciar sua legitimidade e superioridade
diante de qualquer outro discurso.
O filósofo francês classifica os mecanismos de controle do dis­
curso em três grupos de procedimento de exclusão. O primeiro
trata de limitar os poderes com base nos instrumentos de inter­
dição da palavra,91 segregação ou loucura92 e vontade de verda­

50 F o u c au lt, A ordem do discurso, p. 8-9.


91 Ele afirma: “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as
interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso
— como a psicanálise nos mostrou — não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo;
e visto que — isto a história não cessa de nos ensinar — o discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(idem, ibidem, p. 10).
92 “Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular
como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não
seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemu­
nhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não
podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação
e fazer do pão um corpo” (idem, ibidem, p. 10-1).

107
de.93 O segundo dedica-se a dominar as aparições aleatórias ao
discurso oficial; esse domínio sobre o aleatório ocorre na dimen­
são do comentário94 do autor95 e na organização das discipli­
nas.96 O terceiro age buscando selecionar os sujeitos que falam

93 “Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apóia-


se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e
reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedago­
gia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as
sociedades de sábios de outrora, os laboratórios de hoje. Mas ela é também
reconduzida mais profundamente, sem dúvida, pelo modo como o saber é
aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de
certo modo atribuído. Recordemos aqui, apenas a título simbólico, o velho
princípio grego: que a aritmética pode bem ser assunto das cidades demo­
cráticas, pois ele ensina as relações de igualdade, mas somente a geometria
deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporções na desi­
gualdade” (F o cau lt, A ordem do discurso, ibidem, p. 17-8).
94 “Suponho, mas sem ter muita certeza, que não há sociedade onde não
existam narrativas maiores que se contam, se repetem e se fazem variar;
fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram, confor­
me circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conser­
vam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza”
(idem, ibidem, p. 21-2).
95 “Creio que existe outro princípio de rarefação de um discurso que é, até
certo ponto, complementar ao primeiro [comentário]. Trata-se do autor. O
autor, não entendido, é claro, como indivíduo falante que pronunciou ou
escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discur­
so, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerên­
cia” (idem, ibidem, p. 26). “O comentário limitava o acaso do discurso pelo
jogo de uma identidade que teria a forma da repetição e do mesmo. O próprio
autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a forma
da individualidade e do eu".
96 “... mas sem pertencer a uma disciplina, uma proposição deve utilizar ins­
trumentos conceituais ou técnicas de um tipo bem definido [...] Em resu­
mo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para
poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declara­
da verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no
verdadeiro” (idem, ibidem, p. 33-4).

108
nos espaços do ritual,97 na sociedade do discurso,98 na doutrina99
e na apropriação social.100
A teoria de Foucault sobre a análise do discurso é, sem dúvida,
bastante adequada à análise do discurso teológico sistemático.
Pretende-se aqui, no entanto, contribuir com uma análise que
não se limita a Foucault, mas que com base nele dialoga com
outras perspectivas de produção de mecanismos de controle do
discurso sistemático.
Para tanto, é interessante analisar esses mecanismos em três
representações presentes no interior do discurso teológico siste­
mático, sobretudo o manualista. A primeira representação é o que
aqui se identifica como “magistério protestante”101 ou, como chama

97 “O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam


(e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar
determinada posição e formular determinados tipos de enunciados); define
os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de sig­
nos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou
imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites
de seu valor de coerção” (F o u cau lt, A ordem do discurso, ibidem, p. 39).
98 “... como forma de funcionar parcialmente distinta há as ‘sociedades de
discurso’, cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los
circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras estri­
tas...” (idem, ibidem, p. 39).
99 “A doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos
e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam”
(idem, ibidem, p. 43).
'00 “...a apropriação social dos discursos. Sabe-se que a educação, embora seja, de
direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, em uma sociedade
como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, segue, em sua
distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas
pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma
maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com
os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (idem, ibidem, p. 43-4).
101 Na perspectiva da teologia católica, o termo “magistério” não precisa
ser colocado entre aspas, visto que é um dos três elementos fidedignos
ou competentes para a reflexão teológica. Bernard Sesboiié, em sua obra,

109
Foucault, “sociedade de discurso” .102 Esse é, possivelmente, um
dos mais potentes mecanismos de controle do discurso, exata­
mente porque sua ação se dá, acima de tudo, naqueles que dese­
jam estabelecer-se como agentes do discurso teológico.
Reforçar o discurso unívoco, confundido ou afirmado como
ortodoxo, constitui um rito de passagem ao qual todo novo teólo­
go deverá submeter-se se quiser ser identificado como tal. Pensan­
do nas condições do agente do discurso diante da sociedade de
discurso, Foucault elabora o seguinte diálogo:

O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem


arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que
tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor
como uma transparência calma, profunda, indefinidamente
aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e
de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria
senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço
feliz”. E a instituição responde: “Você não tem por que temer
começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso
está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua
aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de
nós, que ele lhe advém”.103

O “magistério protestante” é, portanto, quem seleciona os agen­


tes do discurso, que irão reproduzi-lo em sua dimensão totalizante
e universalizante. Os agentes são pessoas concretas, porém o “ma­

O magistério em questão: autoridade, verdade e liberdade na igreja, trabalha


amplamente essa questão. Na perspectiva protestante, porém, o magistério
não é (oficialmente) reconhecido por causa do postulado da sola scriptura.
102 V. nota 98.
103 ^ ordem do discurso, p. 7.

110
gistério” não é o somatório dessas pessoas; antes, é a instituição-
guardiã do discurso unívoco. Ao ingressar nele, o agente deve abrir
mão de sua condição concreta e de seu horizonte existencial, para
reproduzir e defender aquela verdade que supostamente emanou
da essência das coisas.
Identificar esse “magistério-sociedade” no interior da teologia
sistemática manualista protestante não é tarefa simples, sobretu­
do porque ele não se localiza oficialmente num lugar, a não ser na
dimensão simbólica da linguagem.
Mesmo não havendo uma instituição oficial que controle o
discurso — se houvesse, seria mais fácil um diálogo crítico — ,
existe o mecanismo que opera coercitivamente, afirmando que
“ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” .104
Uma segunda representação dos mecanismos de controle do dis­
curso teológico é o que aqui se identifica como “sedução da continui­
dade histórica”,105 como afirma Castro: “No ciclo vicioso de leituras
des-historicizantes, a ideologia ressuscita ‘as verdades fundadoras’ toda
vez que uma nova idéia ameaça a explicação até então vigente”.106
A pregação de uma linha histórica ininterrupta das “verdades fun­
dadoras” até determinado grupo que a sustenta no presente (ortodo­
xia) é, sem dúvida, um elemento importante de coerção no âmbito
da produção do discurso. Quem gostaria ou mesmo ousaria colocar-
se à margem do “discurso original fundador”?107 Castro afirma:

ibidem, p. 37.
104 F oucault , A ordem do discurso,
105 Esse tema é estudado por Foucault como elemento de controle do discurso,
porém é Castro, em A sedução da imaginação terminal, quem identifica seu
uso no discurso teológico, chamando-o “o mito da continuidade histórica”
(p. 53-78).
106 A sedução da imaginação terminal, p. 57.
107 Idem, ibidem, p. 60.

111
A história da igreja se transformou [...] numa determinada
maneira de dispor e expor “a verdade” já adquirida pela teolo­
gia (da repetição) sistemática [...] Assim não há espaço para
qualquer análise crítica, existindo tão-somente uma exposição
de dados selecionados, decorrentes de uma configuração já
dada.108

Juan Luis também analisa a questão naquilo que denomina


“uma suposta continuidade perfeita ou visível de coisas e concei­
tos”.109 Ele identifica essa tendência no interior da ortodoxia ca­
tólica, afirmando que ela

esforçou-se, por exemplo, em fazer pensar que o “Pedro” de


quem falam os sinóticos e a quem Jesus falou é igual a uma
autoridade em quem Jesus já pensava para ser seu vigário e
“sucessor de Pedro”, que esse, por sua vez, é igual ao “bispo de
Roma”; e, finalmente, que “bispo de Roma”, no século II, é
igual a “sumo pontífice”, no século XX.110

Como se vê, busca-se uma linha histórica composta por uma


sucessão de eventos arrumados ideologicamente, isto é, uma ca­
deia (no sentido literal e metafórico) hermenêutica harmônica a
sugerir que o que se diz hoje é o que se disse numa origem provi­
denciada pela força da própria Divindade.
Há, portanto, duas questões complicadas nessa perspectiva. A
primeira, sugere haver uma origem providenciada pela Divinda­
de, e a segunda identifica a verdade com uma filosofia da história
que exclui a dialética em nome de um todo harmônico. Castro
adverte:

A sedução da imaginação terminal,


108 C a st r o , ib id e m , p . 69-70.
105 O dogma que liberta..., p. 230.
1,0 Idem, ibidem, p. 230.

112
O campo discursivo opera-um deslocamento ideológico.
Enquanto em nível do discurso se diz que o passado deve de­
terminar o presente, em outro nível, o que fica evidente é que
as determinações ocorrem precisamente de modo inverso. O
presente determina seletivamente a leitura do passado.111

Também Segundo adverte e propõe uma perspectiva que julga


adequada:

A crítica histórica, no entanto, e em benefício da teologia


[...] não pode fazer outra coisa senão trabalhar contra esses
anacronismos radicalmente enganosos. E isso não pelo pruri­
do de tirar autoridade do sumo pontífice, mas para dar-lhe a
autoridade de vida, e pelas justas razões que a apoiam de ver­
dade.112

E exatamente contra esse tipo de pensamento que a “sedução


da continuidade histórica” opera seu poder, o qual pode ser iden­
tificado como elemento harmonizador. A sedução dá-se na capa­
cidade de expor os temas da fé num todo harmônico e dedutivo,
onde o fiel encontra um “porto seguro”, ao menos na superfície
do mar da fé, para sua prática religiosa. Desse elemento harmo­
nizador, fruto da harmonização arbitrária e anacrônica da Histó­
ria, depende o “magistério” e sua atividade apologética.
Esse elemento harmonizador constitui a terceira representação
dos mecanismos de controle do discurso teológico do sistema
manualista. É a “sedução da harmonia estética” que age em toda a
sua capacidade para promover o “bem-estar” que leva à estabili­
dade, como afirma Moltmann:

111 A sedução..., p. 71.


112 Op. cit., ibidem.

113
Qualquer “summa” teológica consistente, qualquer sistema
teológico reivindica a totalidade, a perfeita organicidade e a
coerência universal. De princípio, deve-se poder dizer algo
sobre o todo e sobre cada parte. Todos seus enunciados devem
ser isentos de contradições e ajustar-se mutuamente. A arqui­
tetura deve ser “como saída de uma fundição, inteiriça”.113

Nisto consiste a “sedução estética” do sistema manualista: a


sensação de entrar em contato com a verdade teológica em toda a
sua extensão e profundidade. Uma segurança tranqüilizadora sur­
ge da confrontação do fiel com uma catedral, erigida minuciosa­
mente no intuito de promover a percepção da harmonia entre
todas as partes e em cada parte, em particular. N a contemplação
dessa “catedral” , resta ao que contempla sentar-se em profunda
admiração e permanecer em contemplação.
É exatamente nessa atitude de permanente contemplação que
se revela a força da “sedução estética” como poderoso mecanismo
de controle. Moltmann acrescenta:

Todo sistema teórico, inclusive o teológico, ostenta por isso


ao menos um certo atrativo estético. Mas nisto reside também
o seu poder de sedução: os sistemas poupam a muitos leitores,
e certamente aos deslumbrados, o pensamento crítico pessoal
e uma decisão independente e responsável, porque não se apre­
sentam para serem discutidos.114

E conclui:

Mesmo quando não é fruto de dogmatismo, o pensamento


dogmático se expressa na teologia com clara preferência pelas

113 Trindade e Reino de Deus, p. 11.


1,4 Idem, ibidem, p. 11.

114
teses; teses, porém, não colocadas-em discussão, mas sim como
enunciados que postulam ou a concordância ou a rejeição,
nunca um pensamento independente e a responsabilidade pes­
soal. Induzem o ouvinte a pensar segundo elas, não segundo
seu pensamento próprio.115

Dessa forma, fecha-se o ciclo dos mecanismos de controle do


discurso teológico do sistema manualista, um “magistério” que
fundamenta sua verdade como verdade original fundadora, com
base na “sedução da continuidade histórica” que, por sua vez, lan­
ça mão do recurso harmonizador para imobilizar qualquer discur­
sividade nas teias da “sedução da harmonia estética”.
Esse ciclo de controle opera com o propósito de legitimar o
processo de desistoricização do discurso teológico, que age na in­
tenção de impossibilitar novas mediações culturais, com base na
ascensão/potencialização/evocação de uma mediação (metafísica),
tornando-a norma prescritiva. Esse processo, por sua vez, impede
que o evento nuclear da teologia se dê no interior das comunida­
des de fé, barrando a experiência de fé e sua capacidade inventiva,
bem como seu poder mobilizador.
Encerra-se, portanto, esta etapa de reflexões. N o primeiro ca­
pítulo buscamos traçar o caminho da sublevação da metafísica
univocizante em detrim ento da m etáfora e sua condição
equivocizante. Neste capítulo buscamos, num primeiro momen­
to, identificar um evento nuclear para toda teologia e, logo após,
mostrar como o processo de sublevação, uma vez cristalizado, aca­
bou por impossibilitá-lo.
As conclusões a que chegamos até aqui são tomadas como base
para uma proposta metodológica a ser indicada no próximo e

115 M oltm an n , Trindade..., p. 11.

115
último capítulos. O leitor verá que contra toda tendência
totalizadora e universalizante do sistema manualista, é necessária
uma abordagem metodológica que contemple o local, ou seja,
que reabilite a mediação cultural como locus metodológico.

116
3
Afirmação do “local” como
princípio de uma nova
abordagem metodológica
em teologia sistemática

Homo Sum; nihil humani a me alienum puto, disse o cômi­


co larino. Eu diria melhor: Nullum hominem a me alienum puto.
Sou homem: nenhum outro homem considero estranho. Por­
que o adjetivo humanus me é tão suspeito quanto o substanti­
vo abstrato humanitas, humanidade. Nem o humano, nem a
humanidade, nem o adjetivo simples, nem o adjetivo
substantivado, mas sim o substantivo concreto: o homem. O
homem de carne e osso, aquele que nasce, sofre e morre —
sobretudo morre — que come, bebe, joga, dorme, pensa e
ama, o homem que se vê e a quem se ouve, o irmão, o verda­
deiro irmão.
Porque há outra coisa, a que também chamam homem
e que é o sujeito de não poucas divagações mais ou menos cien­
tíficas. É o bípede implume da lenda, o Zoom politikon de
Aristóteles, o contratante social de Rousseau, o homo oeconomicus
dos manchestereanos, o homo sapiens de Lineu, ou, se preferi­
rem, o mamífero vertical. Um homem que não é daqui ou
dali, desta ou de outra época, que não tem sexo nem pátria —
uma idéia, enfim. Isto é, um não-homem. O nosso é outro, o

117
de carne e osso: eu, você, meu leitor, aquele outro de mais
além, todos os que pisamos sobre a terra.
Unamuno, D o sentimento trágico da vida , p. 1-2.

No final do primeiro capítulo verificamos o domínio do méto­


do dedutivo ao longo da história da teologia dogmático-sistemá-
tica, até o período identificado como ortodoxia protestante. A
intenção não era — nem é — discutir o método dedutivo, mas
tão-somente apontá-lo como resultado da cristalização da metafísica
como norma prescritiva (v. Glossário) do discurso teológico siste­
mático.
O que pretendemos até aqui foi evidenciar que o discurso teo­
lógico sistemático, sobretudo o da manualística (v. Glossário), é
univocizante e busca de todas as formas uma fala unívoca, que a
um só tempo consiga totalizar em seu interior, de forma harmô­
nica e coerente, todos os temas da fé1 e ainda repeti-los (com
autoridade dogmática) universalmente num exercício apriorístico
que pressupõe uma essência que corresponda a um pretenso ser
eternamente separado de seu ente concreto.
Como vimos, isso corresponde a uma violência contra o núcleo
da teologia, já que desistoriciza a mediação cultural (v. Glossário),
e impossibilita sua renovação, estancando, assim, a experiência de
fé como espaço fecundo e indomável — tudo isso para identificar
o discurso sistemático (que não deveria ser mais que um precário
conjunto aberto de signos e desejoso de reformulação) com algu­
ma realidade última e permanente.
A função do método nesse processo é o de sustentar sua repro­
dução, com mecanismos de afirmação e coerção. A afirmação dá-se
no aspecto estético-harmônico que ele propõe, seduzindo-nos à

1 Hans Küng, Teologia a caminho, p. 117.

118
contemplação acrítica versus imobilizadora. A dimensão coercitiva
do método é claramente identificada na aplicação da lógica cujo
princípio da não-contradição, ou seja, impossibilidade da fala
dissonante, sempre se submeterá ao instrumento do terceiro excluso
(v. Glossário).
Esse método, aqui identificado como dedutivo, resulta da
sublevação da metafísica (v. Glossário) no interior do discurso teo­
lógico dogmático-sistemático, gerador da univocização do discurso.
É preciso lembrar, no entanto, que não é a metafísica que gera o
discurso unívoco, mas, sim, o desejo de univocidade — de contro­
le do poder da palavra sagrada e de seus efeitos — (v. Glossário),
que encontra nela o melhor instrumento para sua realização. O
que se coloca como pano de fundo desse processo é a luta pela
palavra, isto é, pelo controle de toda palavra, pelo direito de dizê-
la e pela autoridade de declarar sua interdição.
E exatamente esse desejo de domínio da palavra, que pode ser
mais bem realizado em sua dimensão unívoca, que identifica a
ortodoxia religiosa.2 Tanto a ortodoxia clássica quanto sua repre-

2 Em nossa perspectiva, compreende-se “ortodoxia” como instituição que


detém os instrumentos de controle da palavra teológica apresentada (ou
quem sabe confundida) como verdade. Essa, portanto, não é a compreen­
são mais ortodoxa sobre a ortodoxia. Andrade oferece-nos a seguinte defini­
ção: “Qualidade de uma declaração doutrinária que se acha de acordo com
o ensino revelado no Antigo e no Novo Testamento. Conjunto de doutri­
nas provindas da Bíblia, e tidas como verdadeiras de conformidade com os
credos, concílios e convenções da Igreja” (Dicionário teológico, p. 229). J. L.
Parker, quanto à ortodoxia, afirma que ela “expressa a idéia de que certas
declarações sintetizam com exatidão o conteúdo do cristianismo quanto às
verdades reveladas e, portanto, são por sua própria natureza normativas
para a igreja universal. Essa idéia está arraigada na insistência do NT de que
o evangelho tem um conteúdo fatual e teológico específico [...] e de que
não existe nenhuma comunhão entre aqueles que aceitam o padrão apos­
tólico do ensino cristológico e os que o negam” (Ortodoxia, Enciclopédia
histórico-teológica da igi-eja aistã, p. 70, v. 3). As definições de Andrade e Parker

119
sentaçao protestante agem nesse sentido. E é a teologia sistemá­
tica que se tem apresentado como seu mais forte bastião, agindo
pedagogicamente para afirmar a ortodoxia, numa repetição siste­
mática de seus postulados de poder, e para denunciar, num exer­
cício apologético, os inimigos da fé.
Nem mesmo toda a crítica da modernidade à instrumen­
talização da metafísica, feita pela ortodoxia cristã, foi capaz de
fazer desmoronar essa fortaleza.3 Em grande parte por influência
estadunidense (donde nos chegam praticamente todos os manuais),
a teologia sistemática protestante manualista encontrou novo vi­
gor. Os séculos X IX e XX, não coincidentemente com o surgi­

corroboram o que até aqui se tem dito: que a ortodoxia, como guardiã do
discurso unívoco, busca no recurso da continuidade histórica (ela não é
nada mais que o desdobramento do texto bíblico) seu ponto de afirmação.
Ela se identifica com o texto bíblico, propondo uma única “verdade teoló­
gica” transmitida e conservada ao longo da História. Nesse sentido, ortodo­
xia não é um grupo com suas intencionalidades, perspectivas teológicas e
pontos de vista políticos, mas é uma providência divina para a preservação
da sã doutrina. A ortodoxia nega, portanto, toda a dimensão hermenêutica
da teologia e toda possibilidade dissonante de seus postulados, bem como
toda dimensão de precariedade que o discurso teológico traz em si. Como
ponto de afirmação da ortodoxia, está a heresia. Aquela precisa desta para
sua sobrevivência. E preciso encontrar e condenar o diferente para afirmar
o idêntico. Aquilo que a ameaça é também o que a mantém e a faz crescer.
3 Apesar de não termos aqui o objetivo de discutir o declínio da metafísica em
sua identificação com a mensagem cristã, é necessário indicar ao menos
algumas fontes de pesquisa para esse assunto. Entre os clássicos estão: Críti­
ca da razão pura, de Kant; A essência do cristianismo, de Feuerbach; Aurora,
de Nietzsche; e, mais recentemente, Pensamentopós-metaflsico, de Habermas.
No campo da teologia, os autores multiplicam-se. Num primeiro momen­
to, neólogos como Semeler e, posteriormente, todos os considerados libe­
rais. Tanto na pesquisa bíblica, com o método histórico-crítico, quanto na
dimensão dogmática, com o movimento da história do dogma, são inúme­
ros os textos e teólogos. No século XX, essa questão toma maior fôlego com
a recepção da morte do Deus metafísico no interior da teologia. Desde
Bonhoeffer até os teólogos radicais estadunidenses, o pranto (ou festa) pela
morte de Deus, todos apontam para a derrocada da metafísica nas ciências
em geral e na teologia em particular.

120
mento do fimdamentalismo, foram bastante fecundos para a afir­
mação dessa tendência.4
Nosso desafio consiste na proposição de uma abordagem
metodológica que ofereça condições para uma ruptura com o dis­
curso teológico sistemático unívoco da manualística protestante,
principalmente com os resultados dessa univocização, que são suas
tendências totalizadoras e universalizantes (v. Glossário, aborda­
gem totalizante-universalizanté) — tudo isso para permitir que o
discurso teológico possa articular sua fala em cooperação com as
realidades locais em sua situação concreta.
Assim, os sujeitos históricos concretos de sociedades e culturas
distintas poderiam ver suas experiências de fé comunicadas nos
signos que lhes são próprios, constituindo discursos mais ou me­
nos sistemáticos (abertos à sua condição de precariedade), que não
representariam mais que a organização de suas experiências: nada de
totalização, tampouco de universalização, mas abertura à vivência lo­
cal e à concretude das experiências pontuais, das problemáticas
próximas; em suma, do horizonte existencial concreto.
Antes de propormos uma abordagem metodológica que dê
conta disso, vale a pena atentar para o que diz Hans Küng acerca
da teologia dogmático-sistemática e para o que ele sugere. O
autor afirma que “a miséria da teologia dogmática — católica,
ortodoxa e também protestante — é o abismo que a separa da
exegese histórico-crítica”.5 Isso constitui seu caráter reprodutivo,

4 No livro A sedução da imaginação terminal, Alexandre de Carvalho Castro,


analisa essa questão, principalmente no primeiro capítulo, no qual mapeia,
num exercício exaustivo, a linha editorial evangélica brasileira e a enorme
influência que esta sofre de determinado grupo ou tendência teológica
estadunidense.
5 Teologia a caminho, p. 111.

121
seu afastamento da pesquisa, sua negação da realidade con­
creta como protagonista de seu discurso. Ele prossegue:

Evidentemente, uma teologia dogmática a-histórica está tão


ultrapassada como uma exegese a-histórica. Uma teologia
dogmática que utiliza os resultados exegéticos de forma insufi­
ciente (seletiva) é por si mesma insuficiente. Uma teologia
dogmática que permanece autoritária, em vez de trabalhar cri­
ticamente, não é científica: atitude científica ante a verdade e
disciplina metódica, discussão crítica dos resultados e exame
crítico da colocação dos problemas e dos métodos são uma
exigência tanto da teologia dogmática como da exegese. Como
a Bíblia, também o dogma deve ser interpretado de forma his-
tórico-crítica. Como a exegese moderna, também a teologia
dogmática moderna deve procurar e manter uma estrita fun­
damentação histórica: sua verdade deve ser sempre uma ver­
dade constantemente ancorada na história.6

Para ele, diante do desafio de dialogar com o método histórico-


crítico, que na verdade é o desafio de dialogar com a modernidade,
a teologia dogmático-sistemática pode responder com três postu­
ras distintas: na primeira, “a teologia dogmática pode bloquear
ou ignorar de fato os resultados da exegese histórico-crítica”;7 na
segunda, pode “evitá-los, domesticá-los e passar por cima deles”8
numa espécie de harmonização; na terceira, assumiria essa “pro­
vocação e modificaria seu próprio pensar”, respondendo respon­
savelmente às questões críticas.9

6 K ü n g , Teologia a caminho, p. 113.


7 Idem, ibidem, p. 113.
8 Idem, ibidem, p. 113.
9 Idem, ibidem, p. 113.

122
As observações de Küng apontam pâra o distanciamento entre
a teologia sistemática e o mundo que a cerca. Essa é, na verdade,
a área da teologia mais resistente ao advento da crítica, em razão
do processo de cristalização desistoricizante que determinada
mediação cultural sofreu até ser elevada à condição de norma
prescritiva.
Não é possível, portanto, falar de diálogo crítico no interior
desse discurso sem antes questionar profundamente o processo de
cristalização — e não só questioná-lo, mas também propor um
caminho alternativo àquele que se pretende desconstruir. E nesse
sentido que se quer apresentar aqui, em forma de apontamentos,
uma via de acesso ao discurso teológico sistemático sem cair num
sistema — certamente não num sistema totalizador, tampouco
universalizante.
Essa via de acesso constitui um locus (v. Glossário) com o qual
se poderia elaborar uma nova abordagem metodológica aos temas
da fé, segundo o pensamento geertiano acerca do saber local e a
compreensão do existencialismo sobre a situação. O ponto de
partida para a elaboração dessa abordagem metodológica, porém,
é a constatação da morte do Deus metafísico, por Nietzsche.

A morte de Deus como ponto de partida para a


libertação da metáfora
O Deus que morreu e que teve sua morte anunciada na aurora
do século X X é aquele que nasceu do coito entre a religião cristã e
a cultura helênica, sobretudo platônica. O legado desse Deus foi
a afirmação de um dualismo intransponível entre o mundo do ser
e o do devir.
Sua morte, que seria declarada por Nietzsche, vinha sendo pre­
parada e executada desde o anúncio da impossibilidade metafísica

123
por Kant.10 Essa morte é a morte de uma representação lingüístico-
religiosa sobre a qual se erigiram os cânones da teologia cristã,
sobretudo a dogmática, no decorrer de toda a cristandadè.
Não foi uma morte tranqüila — morrida, como o povo costu­
ma dizer — , mas o resultado de uma batalha por autonomia e
afirmação dos sujeitos históricos.11 Essa batalha mortal travada
com o Deus metafísico-platônico transmudado em cristão signi­
ficava exatamente a luta pela afirmação dos valores culturais no
interior de um discurso teológico que se vinha distanciando das
realidades concretas.
Referindo-se a essa batalha, Penzo, baseado no pensamento de
Nietzsche, declara: “A polêmica com o cristianismo decadente
revela-se, no fundo, como conseqüência lógica da polêmica com a
concepção platônica, que afirma a distinção entre mundo do ser e
mundo do devir”.12 E ainda: “N a concepção platônico-cristã, o
devir ver-se-ia privado de sua intrínseca perfeição e seria rebaixa­
do à condição de realidade imperfeita relativamente à realidade
mítico-metafísica, a que se atribui toda a perfeição”.13
A m orte declarada é, portanto, de um a representação
lingüístico-religiosa de Deus. O discurso teológico, porém, so­
bretudo o dogmático, forçou uma tal identificação dessa repre­
sentação com o Deus cristão que qualquer ataque àquele recai

10 Kant, em Crítica da razão pura , evidenciava a impossibilidade de falar


objetivamente de Deus, desqualificando a metafísica como elemento rele­
vante de construção de discurso científico.
11 A crise da metafísica e do discurso teológico-cristão coincide com a virada
antropológica ocorrida na modernidade. Na busca por emancipação com
relação à cristandadè, o homem moderno precisou demolir as colunas sobre
as quais ela se estruturava.
12 Deus na filosofia do século XX, p. 29.
13 Idem, ibidem, p. 30.

124
inevitavelmente sobre este, como observa o importante teólogo
da morte de Deus:

Não há nenhuma necessidade imediata de aceitarmos


que o Deus morto é o Deus da fé; por outro lado não pode­
mos deixar de concluir que o Deus morto não é o Deus da
idolatria, ou da falsa piedade, ou da “religião”, mas o Deus
da Igreja cristã histórica e da cristandade. Por que — gosta­
ríamos de perguntar — é necessário relacionar desse modo a
Igreja com a cristandade? Porque quando ela ingressou no
mundo helenístico, contribuindo para criar o mundo moder­
no ocidental, tornou-se indissoluvelmente ligada à tradição
histórica característica. Freqüentemente os teólogos moder­
nos têm descoberto, com grande constrangimento, que,
logicamente e lingüisticamente, não é possível dissociar os
ritos, credos e dogmas da Igreja de seu invólucro ocidental.14

A constatação da morte de Deus é, portanto, uma grande bên­


ção para a teologia, à medida que liberta seu discurso das amarras
da metafísica platônica, que, cristalizada, elaborou tão-somente
uma univocidade discursiva. O ocaso do Deus metafísico pode
significar a libertação da dimensão metafórica da linguagem na
produção do discurso teológico.
A morte declarada é de uma perspectiva lingüística, que, mesmo
caduca, foi conservada como norma prescritiva. Mesmo estando
morta, foi embalsamada e entronizada nas salas do magistério
protestante.
O que aconteceu com a linguagem desposada pelo discurso da
teologia sistemática foi o que Mosé constata acerca da filosofia em
relação à metafísica:

14 William H amilton , A morte de Deus, p. 29-30.

125
A linguagem que, assim como a consciência, resulta de
um aperfeiçoamento da capacidade de comunicação do mua-
do orgânico, vai terminar por se constituir como a negação
do corpo, ou seja, como a negação daquilo que a tornou
possível.15

Alves acrescenta:

Ora, o anúncio da morte de Deus não é uma reportagem


sobre o sepultamento de um ser eterno, mas antes a simples
constatação de um colapso de todas as estruturas de pensa­
mento e linguagem que o teísmo oferecia. Ela anuncia o fim
de uma visão global de universo, de uma certa filosofia, de uma
linguagem que articulava a experiência do homem pelo simples
fàto de que uma nova maneira de pensar a vida, de encarar os
seus problemas, de falar, está surgindo, e que contradiz e nega,
de forma radical e irreconciliável, a forma velha.16

A questão fundamental para uma abordagem metodológica que


pretenda ser uma alternativa àquela fundam entada sobre a
metafísica consiste em se darem as boas-vindas a essa declaração
de morte,17 na crença de que ela represente “o universo perdendo
seu centro” 18 e ainda que “o mundo supra-sensível não [tenha]
poder eficiente”19 para responder às questões encontradas no ho­
rizonte existencial dos homens e mulheres concretos.
Com a aceitação da morte de Deus e a idéia de que ela significa
a libertação da dimensão metafórica do discurso teológico é que

15 Nietzsche e a grande política da linguagem, p. 208.


16 Liberdade efé, p. 10.
17 William H a m il t o n , A morte de Deus, p. 41.
18 Idem, ibidem, p. 4l.
19 Pierre T r o t ig n o n , Heidegger, p. 83.

126
se torna possível abrir-se à multiplicidade e à concretude da vida,
sem a necessidade de impedir qualquer discurso dissonante, em
nome da preservação de uma verdade ortodoxa supostamente
absoluta, a qual pode voltar-se às comunidades de fé (não como
cristandade ou massa homogênea), tomando os signos que as iden­
tificam na comunicação de suas experiências.

Nietzsche, Deus e a metafísica


A morte de Deus, que em Feuerbach, Marx e Freud aparece
como uma tarefa, em Nietzsche transforma-se no simples anún­
cio de boa nova.20

De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de


que “o velho Deus morreu” nos sentimos como iluminados
por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa — enfim o horizonte nos
parece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os
nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo
perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca
o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e
provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.21

Nietzsche não mata Deus: ele constata sua morte. A constatação


de que “Deus morreu” está intimamente ligada à história da cultu­
ra ocidental. Dizer “Deus morreu” é declarar o fim de um funda­
mento último, em torno do qual orbitavam, até então, determinados
valores morais e religiosos. A morte de Deus é a morte de um
paradigma. É a morte da metafísica. É a morte do platonismo.
Heidegger esclarece:

20 Rubem A lves, Liberdade efê, p. 29.


21 Friedrich N ietzsch e , A gaia ciência, p. 234.

127
Assim, a expressão “Deus morreu” significa: O mundo
supra-sensível não tem poder eficiente. Não desperdiça ne­
nhuma vida. A Metafísica, ou seja, para Nietzsche, a filosofia
ocidental entendida como platonismo, chegou ao fim.22

Essa constatação indica um processo já antigo, do qual os pró­


prios cristãos participaram efetivamente. Quem matou Deus?
Nietzsche dirá: “Seus próprios seguidores”. Na verdade, o Deus
morto já começava a padecer, momentos depois de seu nascimen­
to. Seus suspiros de vida ainda o sustinham, enquanto aquela que
seria sua cripta23 detinha poder suficiente para manter os “apare­
lhos” (também os de Estado) necessários à sua sobrevivência.
O que vinha definhando, apesar do esforço para que isso não
acontecesse, era uma matriz cultural que se cristalizara, uma me­
diação cultural transformada em norma prescritiva. Mesmo per­
cebendo que a declaração de Nietzsche tem um alcance ainda
mais vasto,24 pode-se dizer que ela se volta contra um discurso
teológico que identificou o Deus cristão com uma representação
cultural. Essa identificação foi tão radical que a representação to­
mou o trono da Divindade.
A evidência maior dessa identificação está na reação de grande
parte da teologia ao pensamento de Nietzsche. Rapidamente, iden­
tificou-se em sua declaração a morte do Ser eterno. Isso porque,
quando se volta para o trono do Eterno, boa parte dos cristãos,
embalada por determinado discurso teológico, vê em seu lugar a
representação lingüística metafísico-platônica assentada com toda

22 Apud Pierre T ro tig no n , Heidegger, p. 83.


23 Robert A d o lfs , Igreja, túmulo de Deus?.
24 A crítica de Nietzsche não se dirige apenas à religião cristã com seu aparato
de moralidade. Ela também se destina à modernidade com sua idéia de
progresso. Ele se volta contra toda expressão metafísica, tanto religiosa quanto
científica.

128
pompa e circunstância. Eles percebem,-no entanto, que essa re-
presentaçao foi ali colocada pelo próprio discurso que se volta
violentamente (violência apologética — quase um pleonasmo)
contra aquela declaração que reentronizaria o Deus verdadeiro,
como declara Penzo:

Para o homem metafísico, a morte de Deus é vivida de


modo dramático, justamente porque marca o fim de um longo
desejo que é necessário ao homem para viver com uma cons­
ciência de segurança. Nietzsche faz sua essa angústia “desespe­
rada” do homem metafísico diante do “advento do niilismo”.
Supera, porém, tal angústia, quando observa que a morte de
Deus é um acontecimento cultural e existencial necessário para
purificar a face de Deus e, por conseguinte, a fé em Deus.25

Penzo acrescenta: “Nietzsche não mata Deus, mas limita-se a


constatar a ausência do divino na cultura de seu tempo, acusan­
do, pelo contrário, por essa ausência e morte, o pensamento
metafísico”.26 Essa é uma questão que a teologia ainda não en­
frentou com a profundidade necessária,27 principalmente a teo­
logia sistemática, que com seu discurso faz expandir a sombra do
Deus morto. Como afirma o próprio Nietzsche: “Deus está mor­
to; mas tal como são os homens, durante séculos ainda haverá
cavernas em que sua sombra será mostrada — quanto a nós —
nós teremos que vencer também a sua sombra”.28

25 Deus na filosofia do século XX, p. 31 -


26 Idem, ibidem. p. 32.
27 Mesmo após, do interior de um cárcere, ter gritado a necessidade de supe­
ração da metafísica que transformou Deus numa hipótese desnecessária,
Bonhoeffer só seria levado a sério por um pequeno grupo de teólogos radicais
que propuseram uma teologia da morte de Deus. Hoje, não é mais que um
capítulo da história da teologia, ao qual se dispensa pouca importância.
28 A gaia ciência, p. 135.

129
Lutar hoje contra a sombra do Deus morto constitui uma ta­
refa metodológica. Apontar para o processo de putrefação de qual­
quer discurso totalizador e universalizante, que impede a afirmação
das culturas locais em nome da preservação de um “corpo”
discursivo que não desfruta nenhuma vitalidade: nisso consiste a
relevância da crítica à teologia sistemática manualista (v. Glossá­
rio). N o campo da teologia — protestante, principalmente — , é
ela quem guarda as “cavernas” onde o Deus morto é adorado.
A tendência univocizante e absolutista com referência à verda­
de teológica, tão característica da teologia sistemática manualista,
precisa sofrer os efeitos da declaração de Nietzsche, isto é, a da
morte do centro gravitacional de discursos unívocos. Precisa com­
preender, mesmo que a “golpes de. martelo”, aquilo que observa
Machado: “A expressão ‘morte de Deus’ é a constatação da ruptu­
ra que a modernidade introduz na história da cultura com o desa­
parecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento
divino”.29
Para a teologia, a contribuição fundamental do ataque de
Nietzsche à metafísica, em sua representação deificada, sobretudo
em seu corte sistemático, consiste na descredibilização de toda a
abordagem essencialista. Dessa forma, o discurso humano sobre
qualquer realidade, mesmo a divina, deverá assumir sua irredutível
condição existencial. Nenhuma fala pode pretender uma identifi­
cação com a realidade que não seja aquela que circunda quem a
propõe. O discurso está condenado aos limites daqueles que o pro­
nunciam. Nenhuma força divina potencializa qualquer discurso,
conferindo-lhe alcance universal e uma decorrente univocidade.
Dessa condenação ao concreto, ao culturalmente delimitado,
ao existencialmente vivível, emerge no pensamento de Nietzsche

29 Zaratustra, p. 48.

130
a idéia do “Super-homem”. Mesmo não podendo esgotar aqui o
alcance dessa idéia, interessa a relação desse “Super-homem” com
a realidade concreta que Nietzsche faz representar como a terra e
que aqui se chama “local” ou “situação”.

Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o


sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o
sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis
à terra e a não acreditar em quem vos fala de esperanças supra-
terrestres [...] Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a
maior das blasfêmias; mas Deus morreu e com ele morreram
tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra,
e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o
sentido da terra.30

Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche constata a morte de


Deus, a descrença no além, em sua capacidade de comunicar
sentido existencial a homens e mulheres. E o que oferece em
troca? “Não mais um além, mas um depois, um tempo posterior,
algum dia” .31

O que é de grande valor num homem é ele ser uma ponte e


não um fim; o que se pode amar num homem é ele ser uma
passagem, um acabamento. Eu só amo aqueles que sabem vi­
ver como se extinguindo, porque são esses os que atravessam
de um lado para o outro [...] Amo os que não procuram por
detrás das estrelas uma razão para sucumbir e oferecer-se em
sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra per­
tença um dia ao Super-homem.32

30 Assim falou Zaratustra, p. 25.


31 Zaratustra, p. 49.
32 Op. cit., p. 27.

131
Machado acrescenta: “Super-homem é todo aquele que supera
as oposições terreno-extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma;
é todo aquele que supera a ilusão metafísica do mundo do além e
se volta para a terra, dá valor à terra”.33
Assumir a metáfora de Nietzsche, segundo a qual na morte de
Deus está expressa a morte da metafísica e no surgimento do Super­
homem emerge o imperativo da vida concreta, pode levar o dis­
curso teológico a trilhar outro caminho que não o da univocidade
essencialista. Assumir que não há um eixo gravitacional sobre o
qual toda realidade deva ser compreendida, mas tantos eixos
quantas forem as realidades localmente situadas, pode permitir a
um discurso teológico que, ao sistematizar uma experiência de fé,
assuma a mediação cultural própria da comunidade na qual se
originou aquela experiência.
Para nós, a contribuição do pensamento de Nietzsche à teo­
logia está na libertação da dimensão metafórica do discurso. Não
há mais a obrigação de dizer o unívoco: é possível agora abrir-se
à multiplicidade polissêmica e a toda discursividade teológica equí­
voca.

Vattimo e a libertação da metáfora


Toda teologia que insista em fundamentar na metafísica a sis-
tematização de seu discurso, mesmo depois de Nietzsche, não é
mais que uma obra póstuma. Não há mais um centro de gravida­
de, como lugar estável, seguro e regulador com o qual se construa
a realidade. E necessário negar o jogo da metafísica que se funda e
se constrói com base numa imobilidade fundadora e numa certe­
za tranqüilizadora.

33 Zaratustra, p. 46.

132
É esse rumo que toma o pensamento de Gianni Vattimo, prin­
cipalmente em sua obra Depois da cristandadè: por um cristianismo
não religioso,34 Vattimo vê o pensamento de Nietzsche com rela­
ção à morte de Deus como uma abertura à possibilidade de crer,
e não como determinação ao ateísmo. Trabalha também o concei­
to de libertação da metáfora e de negação das metanarrativas filo­
sóficas ou teológicas, apontando dessa forma novas possibilidades
à teologia, principalmente na valorização da encarnação como pon­
to de partida.
Com relação à possibilidade de crer, aberta pela declaração de
Nietzsche sobre a morte de Deus, Vattimo começa dizendo:

O anúncio de Nietzsche, segundo o qual “Deus morreu”,


não é tanto, ou principalmente, uma afirmação de ateísmo,
como se ele estivesse dizendo: Deus não existe. Uma tese do
gênero, a não-existência de Deus, não poderia ter sido profes­
sada por Nietzsche, pois do contrário a pretensa verdade abso­
luta que esta encerraria ainda valeria para ele como um princípio
metafísico, como uma “estrutura” verdadeira do real que teria
a mesma função do Deus da metafísica tradicional.35

Com isso, Vattimo habilita o pensamento de Nietzsche como


instrumento possível à reflexão teológica. Não é o ateísmo que ele
está anunciando, pois isso seria uma contradição ao seu ataque à
metafísica. Ele está exatamente demolindo esta última.

34 Vattimo aborda o pensamento de Nietzsche em várias obras: Crer em acredi­


tar (Relógio D ’Água); O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na
culturapós-modema (Martins Fontes); Introdução a Nietzsche (Presença); A
religião (Estação Liberdade). Mas é em Depois da cristandadè que seu pen­
samento se volta fundamentalmente para a relação entre a teologia e o
pensamento de Nietzsche (principalmente no capítulo que trata da morte
de Deus como libertação da metáfora).
35 Depois da cristandadè, p. 9.

133
De forma muito simplificada, creio poder dizer que a épo­
ca na qual vivemos hoje, e que com justa razão chamamos
pós-moderna, é aquela em que não mais podemos pensar a
realidade como uma estrutura ancorada em um único funda­
mento, que a filosofia teria a tarefa de conhecer e a religião,
talvez, a de adorar.36

Batendo a “golpes de martelo” aquilo que se pretendia consti­


tuir o “fundamento único” para toda a realidade, Nietzsche, na
perspectiva de Vattimo, está liberando a experiência religiosa e
seus discursos mais ou menos elaborados para se expressar com
base em outros núcleos culturais e lingüísticos. Afirma ele:

Sob a luz da nossa experiência pós-moderna, isto significa


que justamente porque este Deus fundamento último, que é a
estrutura metafísica do real, não é mais sustentável, torna-se
novamente, possível uma crença em Deus.37

Contrário a toda negação que faz a metafísica, e em decorrên­


cia o discurso teológico sistemático manualista, quanto à legiti­
midade do m últiplo, o pensamento de Vattimo possibilita
encontrar no pluralismo um princípio, além de legítimo, fecun­
do para o discurso teológico. Cessa a negação da existência como
não-ser e a tendência de afirmar estruturas essenciais.

Com base na experiência do pluralismo pós-moderno, po­


demos somente pensar o ser como um evento, enquanto a
verdade não mais pode ser o reflexo de uma estrutura eterna
do real e sim uma mensagem histórica que devemos ouvir e à
qual somos chamados a dar uma resposta. Uma tal concepção

36 V a t t im o , Depois da cristandade, p . 11.


37 Id e m , ib id e m , p . 1 2 .

134
da verdade não é válida apenas'para a teologia e a religião,
mas, igualmente, para grande parte das ciências hoje.38

E na dimensão do pluralismo que se pode recuperar a legiti­


midade do múltiplo, que desde o encontro do cristianismo com a
cultura helênica vinha sendo negado ou identificado como here­
sia. O múltiplo, o plural, é a outra fala, a fala do outro, que tem
tanta relevância para sua comunidade religiosa e cultural quanto
a fala do eu tem para a sua.
N a relativizaçao contida no plural, está o princípio da afirma­
ção do outro. Não como extensão do eu e de sua verdade — isso
possibilitaria o discurso unívoco (o outro seria um eu exteriorizado)
— , mas como ser autônomo, histórico, cultural e religioso. Esse
outro pode não orbitar no mesmo eixo do eu. Isso quer dizer que
os discursos não estão contrapostos num binômio “verdadeiro
versus falso” , pois não há um absoluto ao qual deva corresponder o
primeiro ou negar o segundo, mas eles encerram as compreensões
acerca da realidade própria de seus horizontes culturais.
Nesse sentido, não se deveria mais falar de discurso teológico,
mas de discursos teológicos. Tanto a dimensão do discurso quan­
to a da teologia são pluralizadas. Não é somente afirmar o plural
do discurso — isso é importante, mas principalmente o da teolo­
gia. Caso contrário, seria uma simples afirmação da inculturação
(v. Glossário). O pluralismo aponta para a necessidade de pensar
a teologia no plural. De perceber e minimamente respeitar (e isso
ainda não seria suficiente) a órbita autônoma de cada teologia.
Coloca-se, assim, uma nova tarefa diante da teologia, princi­
palmente de seu corte dogmático. Como pensar os temas da fé
para afirmar sua importância para a comunidade dos cristãos e, ao

38 V a t t i m o , Depois da cristandadè, p. 13.

135
mesmo tempo, perceber os limites que determinado sistema possui?
Como lidar com os temas da fé na tarefa de reistoricizá-los e, por
assim dizer, destroná-los de sua condição unívoca? Como conjugar a
universalidade dos temas da fé com as questões até aqui expostas?
Quem sabe seja essa a encruzilhada em que nos encontramos.
Aceitando a universalidade dos temas da fé, como nao aceitar a
universalidade do discurso? Esse não é realmente um problema,
já que se consegue perceber que a universalidade dos temas não
corresponde necessariamente à universalidade do discurso. Os
temas não se dão unicamente a uma perspectiva discursiva, em­
bora a ortodoxia o queira, mas eles estão abertos à dinâmica
hermenêutica das comunidades que os acolhem.
Refletindo o pensamento de Nieízsche, Foucault declara:

A morte da interpretação é o crer que há símbolos que exis­


tem primariamente, originalmente, realmente, como marcas
correntes, pertinentes e sistemáticas. A vida da interpretação,
pelo contrário, é o crer que não há mais do que interpretações.

Todo discurso teológico, portanto, é um discurso. Isso não o


esvazia de sua autoridade nem de sua relevância, porém limita-as
à extensão da comunidade a quem se destinam primeiramente,
ou seja, àqueles que partilham da mediação cultural utilizada como
veículo de comunicação das experiências de fé.
Nesse sentido, impõe-se ao discurso teológico sistemático uma
tarefa prática. Não mais aceitando uma perspectiva metodológica
que nega o múltiplo afirmando a metafísica, cabe articular outra
abordagem metodológica que contemple a pluralidade discursiva
e sua limitação. Nessa direção, afirma-se ainda a contribuição de
Vattimo, quando elabora aquilo que ele denomina “libertação da
metáfora”:

136
Pois bem, hoje parece que um-dos principais efeitos filosó­
ficos da morte do Deus metafísico e do descrédito geral ou
quase, em que caiu todo o tipo de fundamento filosófico, foi
justamente o de ter criado um terreno fértil para uma possibi­
lidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade
retorna [...] por meio da libertação da metáfora. É um pouco
como se, no final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a cria­
ção de muitos novos deuses: na Babel do pluralismo de fins da
modernidade e do fim das metanarrativas, se multiplicam as
narrativas sem um centro ou uma hierarquia.39

Vattimo observa que a libertação da metáfora é a libertação do


discurso. E a possibilidade de dizer a própria experiência não com
os signos dos dominadores, mas da própria realidade. N a liberta­
ção da metáfora, nega-se a hegemonia do discurso unívoco, que se
pretendia regulador de toda discursividade. A dissonância meta­
fórica desnuda toda intenção e arbitrariedade da sociedade de dis­
curso e de seus mecanismos de controle. Dizer diferente é a melhor
forma de apontar a fragilidade do dizer único.
O contrário disso deu-se na sublevação da metafísica. O dizer
único condenou todo dizer contrário (ou tão-somente dissonante).
A apologética, no papel de aparelho de coerção, foi enquadrando
toda a discursividade, harmonizando-a sob pena de sanções
pesadíssimas, de anatematizações vexatórias e finalmente da
rotulação de heresias. Teorizando sobre essa dinâmica de contro­
le, Vattimo observa:

Somente ao se estabelecer uma sociedade e uma casta de


dominadores nasce a obrigação de se “mentir segundo uma
regra estabelecida”, ou seja, de se usar, como única língua “apro­

39 Depois da cristandadè, p. 25.

137
priada”, as metáforas dos dominadores, fazendo com que as
outras linguagens sejam degradadas à condição de puras lin­
guagens metafóricas, ao campo poético.40

N o princípio, tudo era metáfora. Mesmo aquela que posterior­


mente buscou identificar-se com o discurso literal. A metáfora
literalizada, ou seja, identificada como discursividade unívoca,
buscou reinar sobre as demais, desqualificando-as como elemen­
tos menores, incapazes de comunicar qualquer sentido relevante.
O que a metáfora literalizada não viu foi que, à medida que nega­
va sua condição de metáfora, decretava sua morte, impedia sua
força seminal.
O grupo que passou a valer-se da metáfora literalizada, vendo
que esta caminhava para a morte — e com ela todos os seus inte­
resses, postulados e autoridade — , tratou de embalsamá-la e pos­
teriormente removê-la do ambiente onde estavam as metáforas
desqualificadas, de onde ela mesma havia saído. E, do alto de sua
condição de norma prescritiva, mesmo morta, ela continuou re­
forçando o discurso do grupo que a instrumentalizara.
Muitos chamavam a atenção do povo e mostravam que a me­
táfora literalizada: havia morrido por causa da literalização (v.
Glossário). Diziam ainda que as demais metáforas não eram
menores. Pelo contrário, foram declaradas menores exatamente
porque encerravam em si a força seminal capaz de gerar uma
nova realidade. Não era o que desejava o grupo, que encontrou
na metáfora literalizada a melhor forma de reproduzir seu dis­
curso de poder.
Até que, um dia, um “homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, pôs-se a gritar inces­

40 V attim o , Depois da cristandade, p. 25.

138
santem ente...” .41 Os gritos do louco diziam que a metáfora
literalizada havia morrido. Ele não parou de gritar até morrer.
Morreu louco, mas sua mensagem ecoou, e outros o ouviram, até
que se pôde compreender que aquilo que o louco dissera não era
loucura e que sua mensagem tinha um poder fantástico: o de
libertar as metáforas da condição de menor valor a elàs imposta.

Naturalmente, a libertação da metáfora de sua subordina­


ção a um sentido próprio só aconteceu em linha de princípio,
pois na prática, na sociedade pluralista, ainda estamos longe
de ver realizada uma perfeita igualdade entre as formas de vida
(culturas diversas, grupos, minorias, etc., de vários tipos) ex­
pressas pelos diferentes sistemas de metáforas.42

É com relação à continuidade que Vattimo diz estar o processo


incompleto e que se toma aqui a questão da libertação da metáfo­
ra como pano de fundo para a proposição de uma nova aborda­
gem metodológica ao discurso teológico sistemático. Isso quer dizer
que a morte de Deus, de Nietzsche, e a libertação da metáfora, de
Vattimo, não são suficientes para a proposição de uma nova abor­
dagem metodológica. E preciso fazê-las dialogar ainda com ou­
tros elementos, ou melhor, trabalhar outros elementos sobre o
pano de fundo que elas representam. Não se pode, no entanto,
sair desse momento sem levar em consideração os desdobramen­
tos da fixação de tal pano de fundo, como diz Vattimo:

O reconhecimento de direitos iguais para as culturas ou­


tras que no plano político ocorreu com o final do colonialismo
e no plano teórico com a dissolução das “metanarrativas”

41 Friedrich N i e t z s c h e , A gaia ciência, p. 147.


i2 Depois da cristandadè, p . 26.

139
eurocêntricas, no caso das igrejas cristãs exige o abandono dos
comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão de levar
ao mundo pagão a verdade única. O reconhecimento da ver­
dade das outras religiões [...] requer um esforço intensificado
para desenvolver a leitura espiritual da Bíblia e também de
tantos dogmas da tradição eclesiástica, de maneira que se pos­
sa colocar em evidência o cerne da revelação ou seja, a carida­
de, mesmo à custa, obviamente, do enfraquecimento das
pretensões de validade literal dos textos e de peremptoriedade
do ensinamento dogmático das igrejas.43

O “local” como locus metodológico


O pano de fundo da libertação da metáfora está para uma nova
abordagem metodológica como o métafísico esteve para a consti­
tuição do discurso univocizante. Qualquer tentativa de proposição,
incluindo a que se faz aqui, para desconstruir o discurso unívoco da
teologia em geral e da sistemática em particular, não pode abrir
mão da destituição do papel que a metafísica exerce (arbitrário?!)
como eixo gravitacional absoluto. Somente com base nesse pano de
fundo — o da libertação da metáfora como resultado da morte
(metafísica) de Deus — será possível aqui se fazerem apontamentos
de uma possível abordagem metodológica que contemple a
polissemia discursiva.
Para tanto, buscar-se-á uma reabilitação da mediação cultural,
uma reistoricização (v. Glossário) do discurso sistemático, com o
propósito de permitir a circulação dos elementos que compõem o
núcleo da teologia, ou seja, a fé cognoscibilizada (v. Glossário,
cognoscibilização da fé).
Para levar a cabo esse intento, será preciso superar, metodolo-
gicamente, o discurso teológico totalizador e universalizante da

43 Depois da cristandade, p. 64.

140
teologia sistemática manualista. Para isso, propõe-se aqui a con­
tribuição da antropologia de Geertz, naquilo que ele denomina
“saber local”. O que se pretende com isso é o restabelecimento
das culturas e dos saberes locais como locus metodológico.

Reabilitação da mediação cultural ou reistoricização do


discurso teológico

O branco açúcar que adoçará meu café


nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio


da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana


e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

141
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos vinte e sete anos
plantavam e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.44

Esse poema de Ferreira Gullar é uma enorme contribuição ao


tópico que aqui discutimos.45 A consciência histórica proposta
pelo poeta, essa capacidade de perceber a historicidade de deter­
minada coisa, que por força da presença repetida tende a se tornar
comum, é sem dúvida um elemento fundamental à perspectiva
metodológica que queira afirmar o “local” como espaço seminal
para a reflexão teológica.

44 Ferreira G u l l a r , O açúcar, in: Toda poesia, Rio de Janeiro: José Olympio,


12. ed., 2002, p. 160-1.
45 Há um caminho fértil aberto à reflexão teológica em seu diálogo com a
literatura. O espaço literário é, sem dúvida, de reflexão. Dele, emergem
todas as questões problemáticas existenciais. Por não ter de ser (embora às
vezes seja) dogmática, a literatura recebe a reflexão com mais liberdade. Os
exemplos do diálogo entre teologia e literatura são vastos: Teologia e literatu­
ra, de Antônio Manzato, em que se discute a obra de Jorge Amado; Deus no
espelho das palavras, de Antônio Carlos de Melo Magalhães, em que, além
de rever o movimento “teologia e literatura”, o autor propõe um método de
abordagem; Fuga da promessa e nostalgia do divino, de Douglas Rodrigues
da Conceição, em que se discute, com Dom Casmurro, de Machado de
Assis, a antropologia como tema teológico; Teologia eMPB, de Carlos Eduardo
Calvani, que promove um interessante diálogo entre a teologia e a música
popular brasileira. Muitos se têm dedicado a esse diálogo: Maria Clara L.
Bingemer, Rubem Alves, Rosângela Molento Ferreira e outros.

142
Nessa proposta metafórica de reistoricização, o poeta consegue
estabelecer a crítica, sem se distanciar, contudo, do saber de seu
objeto imediato. Ele percorre os caminhos e descaminhos dos ele­
mentos, restituindo a importância devida a cada um de seus su­
jeitos e, de alguma forma, denunciando toda apropriação indébita,
fruto de cristalizações ou de retenção de prestígios. Dessa forma,
destrói toda impressão de que “o açúcar tenha surgido dentro do
açucareiro”.
Nesse sentido, é possível perceber a importância de tomar o
discurso teológico com todo seu trato estético e cristalizado e
reistoricizá-lo. Entendendo seus caminhos e descaminhos, conhe­
cendo suas personagens e reconhecendo-as em sua condição de
sujeitos históricos — sem perder o sabor da teologia e sua rele­
vância, mesmo que limitada para o mundo — não como categoria
universal, mas como horizonte existencial de sentido.
A reistoricização do discurso teológico reabilita a mediação
cultural. Quando se desmascara toda pretensão de identificação
de um discurso com a totalidade do real — esse o princípio gera­
dor da univocidade — , restaura-se a centralidade da mediação
cultural no processo de comunicação da experiência de fé.
A reabilitação da mediação cultural corresponde à necessidade
de ruptura com os mecanismos de controle do discurso teológico,
tão presentes no sistema manualista, sobretudo com aquele iden­
tificado como sedução da continuidade histórica.
O discurso sistemático não é a continuidade ininterrupta dos
textos originários desta ou daquela religião. Ele é o resultado da
história dos efeitos de um longo processo hermenêutico.46 O re­
curso de recuar até as origens é um instrumento de legitimação

46 Este tema é amplamente tratado por Hans-George Gadamer, em seu céle­


bre Verdade e método.

143
de determinado grupo que controla o discurso. N o cristianismo,
esse grupo é identificado como ortodoxia. Bloch, porém, afirma:

Indispensável, é claro, a uma correta percepção dos fenô­


menos religiosos atuais, o conhecimento de seus primórdios
não basta para explicá-los. A fim de simplificar o problema che­
gamos a renunciar a nos perguntar até que ponto, sob um nome
que não mudou, a fé, em sua substância, permaneceu realmente
imutável. Por mais intacta que suponhamos uma tradição, fal­
tará sempre apresentar as razões de sua manutenção.47

E necessário renunciar à tarefa de simplificação dos problemas.


A tendência harmonizadora do sistema manualista, que já se apre­
senta na proposta de trabalhar sincronicamente o texto bíblico tra-
tando-o tão-somente como texto-prova, esconde o chão concreto
da existência humana. Não há harmonia na vida concreta nem na
atual, tampouco naquela vivida pelas personagens da Bíblia.
O grande problema da harmonização é que, sob seu véu, fica
escondida a concretude da existência de homens e mulheres que
amam e odeiam, riem e choram, comem e passam fome, moram e
estão desabrigados, oprimem e são oprimidos, concordam e dis­
cordam. Quando se nega visibilidade a essa concretude, o que se
está fazendo é negar a possibilidade da multiplicidade e do con­
traditório que esta carrega consigo.
O discurso teológico sistemático manualista opta pelo caminho
da harmonização. Ao tomar qualquer manual sistemático, o leitor,
nenhum leitor ou quem sabe somente o leitor estadunidense (e dos
finais do século XIX) é incapaz de enxergar as questões que com­
põem o arco de seu horizonte existencial, ali contempladas. Os
temas são tratados de forma universal, com categorias abstratas e

47 Apologia da História-, p. 58.

144
com datas histórico-sociais vencidas. Tudo isso em nome da preser­
vação de um suposto discurso original. O quê não se percebe é que
a originalidade de um discurso encerra quando se esgotam os ele­
mentos que permitem sua compreensibilidade — não somente in­
telectual, mas também afetiva, existencial e espiritual.
Somente na renúncia a todo apriorismo axiomático é que se
pode pensar na superação dessa perspectiva harmonizadora,
desistoricizadora e univocizante. Pois é exatamente essa perspecti­
va que tem lançado a teologia sistemática no mais alto descrédito,
como diz Aulen:

Essa disciplina, a teologia sistemática, não raro tem sido


encarada com suspeitas — e o foi especialmente no século
XIX — não só pelos que se dedicam aos estudos científicos
como também pelos que se ocupam da vida espiritual. A razão
dessa suspeita, quanto ao aspecto científico, justifica-se geral­
mente pelo fato de se terem aceitado como axiomáticas certas
conceituações da função da “dogmática”.

E preciso acolher o múltiplo e também o contraditório, não


pelo gosto do contraditório em si, mas porque ele corresponde a
comunidades distintas e a distinções numa mesma comunidade.
O contraditório não é Satanás querendo desarticular a comunidade
de fé: é, antes, o outro exigindo que seu discurso seja também
considerado relevante. O que o discurso unívoco faz é identificar
o outro com Satanás. Assim, Satanás é o outro. Isso não é mais
que um recurso para legitimar um ponto de vista que se pretende
hegemônico.
A lógica que subjaz a essa tentativa de hegemonia é a da afir­
mação da superioridade de uns sobre os outros, de uma cultura
sobre as demais, de um método sobre qualquer outro. Por vezes,
a teologia sistemática manualista, univocizante ou hegemônica

145
presta-se ao papel de aparelho ideológico dessa tentativa de
superposicionamento cultural. Resta dizer não a qualquer tenta­
tiva dessa natureza e repetir as palavras de Unamuno:

Tal outro povo é melhor? Perfeitamente, embora não en­


tendamos direito o que significa isso de melhor ou pior. E
mais rico? Concedido. E mais culto? Concedido também. Vive
mais feliz? Já isso... Mas, enfim, seja! Vence, segundo o que
chamam vencer, enquanto somos vencidos? Parabéns. Tudo isso
está certo, mas é outro. E basta. Porque, para mim, tornar-me
outro, quebrando a unidade e a continuidade de minha vida, é
deixar de ser o que sou, isto é, simplesmente, deixar de ser. E
isso não! Tudo menos isso!48

Reistoricizar é permitir (se é que essa tarefa cabe a alguém) que


o outro seja o outro. E isso não se dá na tentativa de provocar a
unidade a todo custo (sobretudo pelo caminho da harmonização
e da univocizaçao), mas antes em ressaltar, ou melhor, em possi­
bilitar a visibilidade das diferenças.
N o caminho da afirmação da unidade, do fundo comum a
todos, destroem-se as diferenças que, por serem menores que os
grandes traços comuns, passam a ter menor ou nenhuma impor­
tância. É preciso, diante dessas tradições unificadoras e universali-
zantes, afirmar as peculiaridades, diferenças e regionalismos das
experiências, dos saberes.
Disso, nenhuma abordagem metodológica que parta dos uni­
versais (v. Glossário, universal) (se é que eles existem49) em direção
aos particulares (v. Glossário, particular) dá conta, tampouco ou­

48 Do sentimento trágico da vida, p. 11.


49 Já há muito tempo essa suspeição foi levantada pelo nominalismo, ao se
afirmar que somente as coisas tomadas em si têm existência real e concreta.

146
tra que pretenda o caminho inverso (dos particulares para os uni­
versais), visto que também acabará por submeter os particulares a
compreensões universais apriorísticas e axiomáticas.
Essa tarefa deve ser realizada em sua inalienável condição hu­
mana e, portanto, delimitada e concreta, excetuando a dimensão
da experiência de fé, que, embora seja também uma experiência
só realizável na radicalidade da existência humana, deve ser enca­
rada em sua dimensão fenomenológica. Todos os outros elemen­
tos do evento nuclear da teologia são fundamentalmente humanos
e devem ser tratados como tais.
Ainda não é suficiente, porém, falar sobre a humanidade desse
processo, pois por humanidade entende-se uma categoria universal
que não permite a visualização de rostos, histórias, lutas, de jogos e
prazeres, que não se devem ausentar da produção do discurso teoló­
gico em nenhum momento, tampouco da fase de sistematização.
Nisso consiste a importância de reabilitar a mediação cultural
como locus metodológico. Só à medida que a mediação cultural
— mas não outra senão aquela mais próxima, situada, local — for
reistoricizada e reconduzida a seu papel de dar concretude à expe­
riência de fé é que o discurso sistemático revelará em suas entra­
nhas o horizonte existencial da comunidade à qual se dirige.
Para a realização dessa perspectiva metodológica, que acolhe a
limitação do discurso teológico como uma de suas maiores quali­
dades, é necessário ainda um aporte teórico que corresponda ao
pano de fundo já estabelecido: a antropologia de Geertz, princi­
palmente em seu capítulo sobre o saber local.

Contribuições de Geertz com sua compreensão acerca do


local como espaço hermenêutico de cultura
Embora alguns dos que se julgam donos de alguma grande
verdade ainda andem por aí, qualquer proposta de uma “teoria

147
geral” a respeito de qualquer coisa social soa cada vez mais
vazia, e aquele que professa ter tal teoria é considerado mega­
lomaníaco. Suponho ser discutível se isso acontece porque ainda
é muito cedo para se ter esperanças de uma ciência unificada,
ou porque é tarde demais para acreditar nela. Nunca, porém,
esta ciência única pareceu tão distante, mais difícil de imagi­
nar, ou menos desejável do que agora.50

A aproximação aqui proposta entre teologia e antropologia,


especificamente na perspectiva de Clifford Geertz,51 caminha na
mesma direção dos elementos que compõem o pano de fundo de
nossa perspectiva metodológica. Com a morte do eixo gravitacio-
nal em torno do qual orbitavam as narrativas universais e essencia-
listas, surge a possibilidade imperiosa de afirmação das realidades
locais, onde se realizam as experiências concretas da existência,
inclusive as da fé.

50 Clifford G eertz, Saber local, p. 10.


51 O antropólogo americano Clifford Geertz (1926-), ao longo de sua carreira
iniciada na década de 1950, dedicou-se a uma variedade impressionante
de temas: comércio local, desenvolvimento econômico, estruturas políticas
tradicionais, parentesco e vida familiar, além da própria antropologia, da
qual se tornou um dos principais teóricos contemporâneos. No tocante à
religião, suas referências empíricas são experiências de campo vividas na
Indonésia (década de 1950) e no Marrocos (década de 1960), base para
uma série de escritos etnográficos. Nesse veio, além de artigos, Geertz publi­
cou dois livros. Em A religião de Java (1960) procura traduzir as observa­
ções realizadas numa cidade da Indonésia na apresentação de três variantes
de uma tradição religiosa que se compunha de animismos: hinduísmo,
budismo e islamismo. Em Observando o Islã (1968) acompanha em pers­
pectiva histórica a relação entre a religião islâmica e duas formações nacio­
nais, Indonésia e Marrocos. Paralelamente, Geertz escreveu textos de natureza
teórica, com destaque para “a religião como sistema cultural”, publicado
originariamente em 1966, e para o verbete que integra a Enciclopédia inter­
nacional das ciências sociais (1968). Em seu livro mais recente, um capítulo é
dedicado ao tema, articulando a retomada de percepções teóricas com obser­
vações sobre a religião na cena mundial contemporânea. (Apud T eixeira,
Faustino (Orgs.). Sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 198-217.)

148
É preciso abrir mão de teorias gerais, de tentativas de dizer
tudo sobre o todo. Não é na explicação do todo que o discurso
teológico encontrará sua relevância, mas na auscultação detida
das partes. Se a teologia chegar a sistematizar o todo (tarefa sem­
pre suscetível à manipulação e arrogância), deverá ser em virtude
da soma das falas de suas partes. Em suma, é preciso renunciar ao
encanto pretensioso do controle de um saber universalizante. Isso
demanda uma desestabilização metodológica, uma desconstrução
de paradigma, como diz Geertz:

Abandonar a tentativa de explicar fenômenos sociais através


de uma metodologia que os tece em redes gigantescas de causas
e efeitos, e, em vez disso, tentar explicá-los colocando-os em
estruturas locais de saber é trocar uma série de dificuldades bem
mapeadas, por outra de dificuldades quase desconhecidas.52

Essa necessária mudança metodológica, da perspectiva univer­


sal para a local, não é geradora de estabilidades. Não se pretende
indicar um modelo sobre o qual se possa trabalhar uma teologia
sistemática que privilegie o “local” com seu espaço hermenêutico
de afirmação do próprio discurso. Isso seria negar tudo o que até
aqui se quis dizer. Num discurso teológico que privilegie o “lo­
cal” , este é que irá oferecer os elementos para a sistematização das
próprias experiências de fé.
A mediação cultural é aquela que já se encontra no interior
das comunidades de fé. Não há método apriorístico nem axio­
mas universais. Todos os elementos necessários à produção do
discurso sistemático estão à disposição dos teólogos nas frontei­
ras de sua comunidade ou daquela que estes tornaram como
suas. Para Geertz, é como trocar um terreno bem mapeado por

52 Saber local, p. 13.

149
outro, desconhecido. E é exatamente isto: assumir a tarefa teo­
lógica na dimensão sistemática ou qualquer outra em sua condi­
ção de imprevisibilidade, em sua abertura para o vivido muito
mais que para o imaginado. Nisso consiste a superação de um
saber teológico desencarnado. O s mapas e as bússolas levam às
mesmas regiões geográficas, tanto do passado quanto do presen­
te (o sul de ontem é o mesmo de hoje), embora isso não signifi­
que ir às mesmas pessoas.
Ao ter de reinventar os instrumentos de sistematização das ex­
periências de fé, a teologia sistemática aproxima-se da teologia
prática. Essa mútua iluminação significa assumir o protagonismo
dos atores sociais locais, porque é na trajetória desses que o evento
teológico original53 se atualiza. Afirma Pegoraro:

Por tudo isso, o ser humano não é uma essência dada de


uma vez por todas, mas é uma existência que se constrói e que
se conquista cada dia ao longo da história [...] Somos uma
existência em processo de vir-a-ser nunca acabado.54

Nesse sentido, a perspectiva metodológica aqui esboçada, que


assume o protagonismo dos saberes locais, das mediações cultu­
rais das comunidades de fé situadas, deverá trilhar o caminho de
distanciamento das teorias que partem de princípios universais,
estáveis e absolutos.55 É abandonar os mapas-múndi, continen­
tais para escrever outros, a lápis e em papel de pão, mais modes­
tos, menos detalhados e, sobretudo, mais delimitados.

53 No caso da teologia cristã, é o evento pascal que se atualiza no interior da


comunidade de fé. Mas certamente a atualização de eventos originários se
dá no interior de outras comunidades de fé, que também podem ser eclip­
sados por sistematizações universalizantes.
54 Fenomenologia e análise do existir, p. 36.
55 Idem, ibidem, p. 36.

150
Afirmar, porém, que não há um modelo predeterminado de
aproximação das experiências de fé peculiares as comunidades re­
ligiosas, no intuito de constituí-las discurso sistemático, não sig­
nifica dizer que não haja critérios metodológicos de aproximação
a tal fenômeno ou que estes não sejam válidos.
Os instrumentos de aproximação que constituem a aborda­
gem metodológica são necessários até mesmo para identificá-la
em sua peculiaridade. Nesse sentido, é preciso indicar quais ins­
trumentos de aproximação compõem a abordagem que temos pro­
posto. Nisso consistem as contribuições da antropologia de Geertz.
São dois os instrumentos que de forma complementar agem
aqui no intuito de possibilitar uma nova perspectiva discursiva à
teologia sistemática. O primeiro Geertz denomina “saber local”.
Este opera com a função de impor limites, ou seja, delimitar o
alcance dos postulados teológicos, assim como do discurso que se
possa emitir com base neles. O segundo Geertz chama “investiga­
ção do ponto de vista dos nativos”. Este faz perceber o necessário
protagonismo dos sujeitos históricos situados em determinado
local.
Na perspectiva de um “saber local”, Geertz indica a irrelevân­
cia de uma abordagem que parta dos universais, de categorias
generalizadoras. Ele se expressa nos seguintes termos:

A maioria dos universais é tão geral que não tem força ou


interesse intelectual, é uma grande banalidade à qual faltam
minuciosidade ou surpresa, exatidão ou revelação, e que por­
tanto, tem pouquíssima serventia (“os povos de todas as religi­
ões têm idéias sobre as diferenças entre os sexos...”); quando os
universais têm um certo grau de não-trivialidade, pormenorização
e originalidade, quando realmente afirmam algo suficientemente
interessante para estar errado (como a ubiqüidade do comple­

151
xo de Édipo, a necessidade funcional de as psiques e socieda­
des terem costumes ligados ao luto...), eles são infundados.56

E continua, afirmando que há danos causados por uma pers­


pectiva que parta dos universais:

A busca de universais afasta-nos do que de fato se revelou


genuinamente produtivo, pelo menos na etnografia [...] Isto é,
das obsessões intelectuais particulares, e nos leva para uma
abrangência rala, implausível e predominantemente pouco ins­
trutiva. Se você quiser uma boa generalização prática da antro­
pologia, sugiro a seguinte: qualquer frase que comece por
“Todas as sociedades têm...” é infundada ou banal.57

Essa visão de Geertz que pretende chamar a atenção da prática


antropológica à necessidade de voltar-se para a etnografia, bus­
cando nesta o ponto de partida concreto para qualquer postula­
do, adapta-se perfeitamente à nossa proposta metodológica.
Voltar-se contra as generalizações lingüísticas e conceituais con­
siste no pólo de contato entre este capítulo da antropologia de
Geertz e a perspectiva teológica com que até aqui trabalhamos.
Além da negação das generalizações lingüísticas e conceituais,
o conceito de Geertz sobre o saber local contribui ainda com ou­
tros elementos, para possibilitar um discurso que não se identifi­
que com qualquer forma de saber desencarnado. O primeiro deles
é a necessidade de assumir limites, tanto na dimensão da reflexão
que se volta aos objetos quanto na emissão de postulados. Discor­
rendo sobre essa necessidade com base no conceito de saber local,
ele afirma:

56 Nova luz sobre a antropologia, p. 125.


57 Idem, ibidem, p. 126.

152
O título dessa discussão parece'presumir que a existência
de limites é um argumento contrário a alguma coisa. (Por que
não é ela chamada “o saber universal e seus limites”? Possivel­
mente porque fazê-lo levantaria a possibilidade de que, sendo
universal, ele não tivesse nenhuma e, portanto, não fosse um
saber). Para minha mente limitada, o reconhecimento direto e
franco dos limites — um dado observador, num certo momen­
to e num dado lugar — é uma das coisas que mais recomen­
dam todo esse estilo de realizar pesquisas. O reconhecimento
de que todos somos o que Renato Rosalvo chamou de “obser­
vadores posicionados (ou situados)”.58

E na renúncia de visões que “partem de lugar nenhum” que se


fundamenta um discurso concreto, situado e voltado para os ho­
mens e mulheres que não podem existir senão nos limites do arco
de seus horizontes existenciais.
E óbvio que o acolhimento do limite no discurso teológico pode
sugerir enfraquecimento, e é exatamente assim. Percebendo-se li­
mitado, o discurso teológico sistemádco estará enfraquecido. Per­
derá sua capacidade totalizadora e universalizante e não poderá falar
do todo com base em axiomas ou em categorias apriorísticas —
nisso consiste a contribuição da limitação de um saber local.
Não podendo falar com base em generalizações lingüísticas e
conceituais, o discurso teológico precisaria estabelecer-se sobre
“dados circunstanciados”59 — outro elemento que o saber local
oferece a essa perspectiva metodológica. Se não é mais possível
dizer conceitualmente o todo, “ao menos podemos dizer alguma
coisa (não que sempre o façamos, é claro) com certa concretude”.60

58 G eertz , Nova luz sobre a antropologia, p. 127.


59 Idem, ibidem, p. 128.
60 Idem, ibidem, p. 128.

153
Voltar-se para determinada situação existencial concreta, aus­
cultar a realidade de homens e mulheres situados e aproximar-se
das comunidades de fé para fenomenologicamente ouvir suas
experiências com o sagrado: nisso consiste privilegiar os “dados
circunstanciados”. Geertz afirma:

E claro, podemos estar errados, e muitas vezes estamos.


Mas “apenas” ou “meramente” tentar compreender o Japão, a
China, o Zaire ou os esquimós centrais (ou melhor, algum
aspecto da vida deles num pedaço de sua linhagem no mundo)
não é uma ninharia, ainda que pareça menos impressionante
do que as explicações, as teorias ou seja lá o que tenha a “His­
tória”, a “Sociedade”, o Homem, a Mulher, ou alguma outra
entidade grandiosa e fugidia em letras maiúsculas.61

Assumir “limites” e “dados circunstanciados” para situar o dis­


curso teológico sistemático no âmbito de um saber local é, por
um lado, abrir mão de certo poder e domínio, mas, por outro,
poder dizer efetivamente algo relevante a uma comunidade me­
nor, porém existente. A opção está entre dizer universalmente a
um todo que não existe ou dizer local e particularmente a um
grupo localizado composto por homens e mulheres com rostos e
existência concretas.
Uma abordagem teológica que pretenda sistematizar a expe­
riência de fé de uma comunidade local precisará, portanto, com­
preender sua condição de precariedade, ou seja, sua incompletude.
Isso exige do discurso teológico certa dose de humildade e uma
disposição ao diálogo franco e aberto. Essa caminhada “ao parti­
cular, ao local e ao oportuno, é um movimento, não uma doutri­

61 G eertz, Nova luz sobre a antropologia, p. 128.

154
na, e, como qualquer movimento, precisa de realizações, não de
máximas para sustentá-lo”.62

Não sei se podemos dizer que isso é satisfatório como “res­


posta às reivindicações críticas da universalidade e autorida­
de” feitas contra o trabalho que emerge de “ponto(s) histórico(s)
no tempo ou [...] de ponto(s) geográfico(s) no espaço” (como
diz a acusação feita a esta discussão), nem tampouco o que se
poderia considerar “satisfatório” aqui. Mas, como todo “saber
local”, ele é substantivo, é de alguém e, por enquanto serve.63

Em interdependência com o saber local opera aquilo que Geertz


chama “investigação do ponto de vista do nativo”. Esse é o segun­
do instrumento teórico para a proposição da abordagem metodo­
lógica pretendida.
Investigar “do ponto de vista do nativo”64 significa assumir o
protagonismo dos sujeitos históricos situados em determinado
local. É a renúncia de se impor um ponto de vista sobre uma
outra realidade. Isso não significa uma anulação dos teólogos, pelo
abandono dos elementos que compõem sua formação crítica, mas
uma postura fenomenológica que permite não reduzir os fenôme­
nos religiosos locais a outra condição senão àquela que eles apre­
sentam.
E o cultivo da admiração e do respeito ao outro, ao diferente,
ao não-eu. E a radical abertura à polissemia intrínseca às experiên­

62 G eertz , Nova luz sobre a antropologia, p. 129.


63 Idem, ibidem, p. 129.
64 Geertz chama atenção para a impropriedade da expressão “nativo”, porém
utiliza-a para indicar a necessidade de assumir a perspectiva do outro quan­
do se vai falar dele e de seu universo. Essa perspectiva corresponde à afirma­
ção hermenêutica de que toda interpretação deve levar em conta não só o
solo pisado pelo intérprete, como também o olhar de quem analisa.

155
cias de fé. É a aceitação da legitimidade do múltiplo. Ou, por
via negativa, é a renúncia a toda discursividade unívoca e
univocizante.
A investigação “do ponto de vista do nativo” é realizada por
Geertz baseada na influência do pensamento do psicanalista Heinz
Kohut, que propõe os conceitos de experiência-próxima e experiên-
cia-distante.65 Geertz toma essa contribuição como uma espécie
de tipologia que revela atitudes de investigação.

Um conceito de “experiência próxima” é, mais ou menos,


aquele que alguém — um paciente, um sujeito, em nosso caso
um informante — usaria naturalmente e sem esforço para de­
finir aquilo que seus semelhantes vêem, sentem, pensam, ima­
ginam etc. e que ele próprio entenderia facilmente, se outros o
utilizassem da mesma maneira. Um conceito de “experiência
distante” é aquele que especialistas de qualquer tipo — um
analista, um pesquisador, um etnógrafo, ou até mesmo um
padre ou um ideologista — utilizam para levar a cabo seus
objetivos científicos, filosóficos ou práticos.66

Até mesmo o teólogo, de posse do instrumental que corres­


ponde à experiência-distante, ao se dirigir às experiências de fé no
intuito de torná-las discursos sistemáticos, obtém na experiência-
próxima meios para ver os homens e mulheres como protagonis­
tas dessas experiências (e da multiplicidade correspondente a estas)
e também do próprio discurso que se pretende sistematizar.
A questão não é se eles estão próximos ou distantes das realida­
des concretas, em que as comunidades atualizam as experiências
originárias de sua fé. Não estamos falando apenas de proximidade

65 Clifford G eertz, Saber local, p. 87.


66 Idem, ibidem, p. 87.

15 6
física. Experiência-próxima e experiêncià-distante são determina­
ções epistemológicas que, se conjuntamente trabalhadas, garantem
tanto o rigor acadêmico do discurso teológico quanto sua relevância
histórica, religiosa, política, cultural e espiritual — não para a hu­
manidade, mas para homens e mulheres situados no mundo.
Privilegiar a experiência-próxima, mesmo sem abrir mão dos
rigores críticos que algum distanciamento oferece, é investigar o
fenômeno religioso presente na experiência de fé, levando-se em
consideração prioritariamente o “olhar do nativo”, daquele que
empresta ao fenômeno religioso a carne simbólica da linguagem,
para que este ganhe cognoscibilidade.

Para captar conceitos que, para outras pessoas, são de ex­


periência-próxima, e fazê-lo de uma forma tão eficaz que nos
permita estabelecer uma conexão esclarecedora com os con­
ceitos de experiência-distante criados por teóricos para captar
os elementos mais gerais da vida social, é, sem dúvida, uma
tarefa tão delicada, embora um pouco menos misteriosa que
colocar-se “embaixo da pele do outro”, [sic]67

Investigar “do ponto de vista do nativo”, em sua radical com­


preensão epistemológica, consiste em perceber a pluralidade
discursiva como resultado da multiplicidade dos locais culturais.
Isso não é uma realidade a ser combatida apologeticamente, mas
um solo fecundo para a teologia, desde que esta compreenda a
limitação imposta à sua discursividade. Em suma, é como afirma
Geertz, na tentativa de mostrar onde encontra o “sentido concre­
to” para tal comunidade: “Em um certo sentido, ninguém sabe
isto tão bem quanto eles próprios; daí o desejo de nadar na cor­

67 G eertz, Saber local, p. 88.

157
rente de suas experiências, e a ilusão posterior de que, de alguma
forma, o fizemos” .68
Dessa forma, estar-se-ia rompendo definitivamente com a pers­
pectiva teológica do sistema manualista, que, graças à cristaliza­
ção da metafísica e de sua ascensão a norma prescritiva, formata
toda discursividade com base num único padrão afirmado como
ortodoxo, ou seja, como verdade teológica. Quando se encara o
outro como protagonista de sua história e de todas as experiências
que a compõem, o que pode acontecer é o que Geertz registra:

Em vez de tentar encaixar a experiência das outras culturas


dentro da moldura desta nossa concepção, que é o que a tão
elogiada “empatia” acaba fazendo, para entender as concep­
ções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção,
e busquemos ver as experiências de outros com relação à sua
própria concepção do “eu”.69

Com essas contribuições do pensamento de Geertz, trabalhadas


sobre o pano de fundo da morte de Deus como ponto de partida
para a libertação da metáfora, é possível tecer algumas considera­
ções sobre uma possível perspectiva metodológica destinada à teo­
logia sistemática.

Considerações sobre a possibilidade de uma nova


abordagem metodológica para o discurso teológico
sistemático
Foi com o propósito de identificar a existência de uma
discursividade univocizante na teologia sistemática, tão bem ca­
racterizada pela modalidade manualista, desde sua origem até

68 G eertz, Saber local, p. 89.


69 Idem, ibidem, p . 91.

158
articulações mais recentes, e o impacto'que esse fato causa sobre
o núcleo da teologia, que desenvolvemos os argumentos prece­
dentes.
Os indícios do atentado à vida da teologia estão por toda par­
te: desde a “experiência de fé” agonizante, que se vê substituída
por um modelo doutrinário que tenta regular sua intrínseca sub­
jetividade, passando pela “mediação cultural”, que a partir de um
processo de desistoricização (v. Glossário) foi relegada à identifica­
ção com um cadáver mumificado detentor das chaves do sentido,
até o “discurso sistemático” que, desviado de sua condição de
construto social, observa seu definhamento profundo e contí­
nuo, transmudado na tentativa apologética de encontrar o elixir
da vida.

M odelo doutrinário Sab er d e se n c arn a d o Enquadram ento


regulador (ou m umificado) apologélico

Uma forma ainda mais adequada de descrever a dependência


funesta que o discurso unívoco carrega em si e dissemina por onde
passa pode-se dar numa leitura interpretativa (e não poderia ser
diferente) da obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida
severina.

159
N o diálogo entre Severino e a mulher da janela, que mais
tarde descobre ser rezadeira, desvenda-se um paradoxo do ser­
tão, lugar das experiências profundas da vida.70 A sobrevivência
que se afirma como “sobremorrência”, ou seja, a sobrevivência
com a morte, ou melhor, da cultura da morte (e por que não da
morte da cultura?).

— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que lhe volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezado ra titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:

70 A imagem do sertão, do deserto, dos lugares áridos e desprovidos dos ele­


mentos fundamentais à vida é recorrente na literatura brasileira. Sem querer
impor um sentido à obra de João Cabral, mas compreendendo sua abertura
polissêmica, pode-se sugerir que esses espaços são sempre reservados a expe­
riências existenciais profundas.

160
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?
— Como aqui a morte é tanta
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa no mar,
retirantes às avessas,
sabem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.71

O discurso unívoco mantém com a teologia uma relação mui­


to semelhante àquela que a vida mantém com a morte nos sertões
cabralinos. Sua sobrevivência só é possível a partir da morte. Da
morte da palavra polissêmica, da realidade múltipla, da existência
concreta. Da morte de todo vir-a-ser, que, asfixiado, é forçado a
dar lugar a um pretenso ser que se afirma na estabilidade da
essência distante de toda realidade.
Essa morte da qual depende a vida da univocidade, não é even­
to pascal nem reencarnatório, tampouco qualquer outra perspec­
tiva redentora que a morte possa oferecer. É morte definitiva, que
interrompe a vida e rouba qualquer esperança. Ainda pior: é mor­
te que vai pedagogicamente criando ao seu redor uma cultura de
morte e a morte da cultura.
E na declaração da morte dessa morte, portanto, que a vida —
não da palavra “vida”, mas da vida da palavra — pode novamente
ressurgir. Essa é, de fato, a grande contribuição do pensamento
de Nietzsche à teologia, que, com isso, vê liberta sua possibilida­
de polissêmica revelada na metáfora.
Após as ferozes agressões “a golpes de martelo” com que
Nietzsche desafiou a metafísica platônica e a teologia que se iden­
tificou com ela, o discurso teológico em geral e o sistemático em
particular estão liberados de sua órbita ao redor de um único eixo
hermenêutico.
Isso significa uma reação do evento nuclear da teologia, que
não mais submete a experiência de fé e a mediação cultural a um

71 João Cabral de, M ello N e t o . Morte e vida severina e outros poemas em


voz alta. 26. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 84-5.

162
discurso unívoco mantido por uma'prática apologética. Antes,
integra-se ao devir, à concretude do mundo, no sentido de “virar
a velha sentença doutrinai em sentença nova e contrária: ‘Extra
mundum nulla salus, fora do mundo não há salvação”.72
Dinamizado pelo sopro de vida contido no último suspiro do
Deus morto, o discurso sistemático pode-se aproximar do evento
teológico nuclear com uma nova postura.

MEDIAÇÃO
CULTURAL

A proxim ação Saber Abertura


fen o m en o ló gica en carn ad o polissêm ica

Quanto à “experiência de fé”, a aproximação é fenomenológica.


Admiração e respeito à experiência do cristão com relação ao sa­
grado passam a ser elementos fundadores no processo de
cognoscibilização da fé. A fé cognoscibilizada não se pode furtar à
transparência dos elementos peculiares das múltiplas experiências.
Isso é uma abertura ao sagrado — não a uma codificação ou
identificação deste, mas àquele que se revela no horizonte exis­
tencial concreto de homens e mulheres situados histórico-cul-
turalmente. Dessa aproximação fenomenológica, depende toda
a discursividade teológica na tarefa de sistematizar as experiên­
cias de fé.

72 Edward S c h il l e b e e c k x , História humana, p. 13.

163
Essa aproximação, por sua vez, aponta para um saber teológico
encarnado. Encarnação que acontece na aceitação radical da pró­
pria cultura como elemento mediador de todo o saber teológico.
Isso consiste em abrir mão de toda universalização de um local
em nome da universalização do “local” como espaço hermenêutico
gerador de saberes. É lançar fora a univocidade sustentadora de
projetos de domínio, em nome do acolhimento do falar metafóri­
co que permite a identificação do eu existencial naquele discurso
que se dirige a ele, como diz Hick:

O falar metafórico produz o efeito de uma familiaridade


ou intimidade entre os falantes e entre eles e seu mundo, de
modo que a enunciação de uma metáfora pode ser vista como
um sinal de que o falante considera seus ouvintes como per­
tencentes a um subconjunto diferenciado por um vínculo de
intimidade.73

Isso significa uma virada lingüística, que, abandonando a di­


mensão conceituai da fala, abre-se à sua condição simbólica para
produzir um saber encarnado. Para Forte, significa abandonar a
dimensão “sistemática” da teologia em nome da “simbólica”:

Assim a “simbólica” retorna à práxis — não com sínteses


definitivas e completas, com sistemas fechados e onicom-
preensivos, mas com propostas provisórias e críveis, como
convém ao pensamento da profecia. A teologia como história
se torna docta spes, esperança em busca da palavra com que se
dizer crivelmente, spes quaerens intellectum74

73 H ick , A metáfora do Deus encarnado, p. 138.


74 F o rte , Teologia em diálogo, p. 116.

164
O discurso resultante da aproximação fenomenológica à expe­
riência de fé geradora de um saber encarnado só pode ser
polissêmico. Busca trabalhar o conjunto das experiências religio­
sas de determinada comunidade de fé em sistemas que compre­
endem sua limitação e incompletude.
Esse discurso sistemático polissêmico ocupa um lugar impor­
tante somente na medida em que retroalimenta uma postura
fenomenológica e encarnacional, com respeito à experiência de fé
e à mediação cultural.
O acento da perspectiva metodológica que propomos não re­
cai, portanto, sobre o discurso sistemático, como pretende a pers­
pectiva univocizante, e sim sobre o processo de vivência da fé no
interior das culturas, pois é esse processo que possibilita a atuali­
zação do evento originante da fé, e não o discurso cristalizado,
como pretende a ortodoxia.
Os critérios gerais adequados à nova abordagem metodológica
aqui proposta são aqueles oferecidos pela antropologia de Geertz:
“saber local” e investigação “do ponto de vista do nativo”, que
agindo de forma complementar garantem, do ponto de vista teó­
rico, a autonomia das comunidades locais diante da tarefa de sis­
tematizar suas experiências religiosas.
Em suma, o método proposto não garante nenhum postulado
teológico, nenhuma definição quanto aos temas da fé, nenhum
esquema apriorístico ou axiomático, mas simplesmente ferramen­
tas que permitam à própria comunidade de fé falar sobre suas
experiências, sem ter de se dobrar a normas prescritivas nem a
definições teológicas (preconcebidas em algum momento históri-
co-cultural) que se queiram universais.

165
4
Conclusão

Passaremos em revista, mesmo que resumidamente, as conse­


qüências do esforço de pensar criticamente o discurso teológico
sistemático do sistema manualista protestante.
A hipótese sobre a qual refletimos foi a de que esse discurso,
fortemente marcado por tendências totalizadoras e universalizantes,
opera na produção de um discurso unívoco e univocizante.
Buscamos evidenciar ao longo da argumentação que essa uni-
vocidade, radicalmente contrária a toda multiplicidade, procurou
na metafísica seu melhor instrumento teórico capaz de possibilitar
uma abordagem metodológica perpetuadora da univocidade.
Além de evidenciar o processo metodológico que procura man­
ter a univocidade discursiva do sistema manualista, buscamos
propor uma abordagem metodológica capaz de superar a univer­
salização de um discurso que é habitualmente elevado ao status de
norma prescritiva.
O primeiro passo para se desenvolver uma análise do discurso
teológico sistemático univocizante consistiu na tentativa de rastrear
sua gênese. Isso se deu pela aproximação dos elementos da teoria

166
do conhecimento, que deu suporte à teologia cristã em suas pri­
meiras elaborações.
Esse esforço levou-nos à constatação de um processo de suble-
vação da metafísica no horizonte teológico cristão. Ou seja, foi na
metafísica que a tendência univocizante da teologia dogmática,
guardada pela ortodoxia, encontrou seu melhor instrumento teó­
rico.
Temos como hipótese que essa sublevação ocorreu em detri­
mento da metáfora, que consistia no veículo lingüístico ampla­
mente utilizado e mais adequado, como apontado neste texto,
no âmbito da comunicação das experiências e dos temas da fé na
comunidade cristã pré-filosófica (no que se refere à filosofia pla­
tônica).
Com isso queremos dizer que a teoria do conhecimento grada-
tivamente foi negando a legitimidade da multiplicidade e aproxi-
mando-se da univocidade. Isso é o mesmo que dizer que ela foi
afastando-se da metáfora e aproximando-se da metafísica.
Para evidenciar essa hipótese, tentamos refazer o caminho da
univocidade na filosofia grega, ou seja, o surgimento da metafísica,
para então propor que a teologia cristã teria percorrido caminho
semelhante.
No caso da filosofia grega, a sublevação da metafísica surgiu
como opção à univocidade, como abandono e negação de toda
crença e opinião (toda multiplicidade), em nome da ciência, da
episteme (do unívoco). Essa opção é tipificada no confronto do
pensamento de Parmênides e no de Heráclito e na eleição do pri­
meiro.
A escolha da negação da multiplicidade significa abandonar
a possibilidade de qualquer teoria do conhecimento com base
na concretude da vida, da existência ordinária, do real circuns­

167
crito na materialidade. Em outras palavras, a existência concreta
não pode oferecer ao pensamento filosófico mais que engano e
confusão.
O caminho proposto por Parmênides foi consagrando-se à
medida que foi sendo assumido pelas duas principais escolas da
filosofia grega clássica. A metafísica, característica fundamental
do pensamento de Parmênides, foi assumida e radicalizada tanto
por Platão quanto por Aristóteles. Foi o primeiro, contudo, quem
deu a ela os primeiros contornos, que seriam acolhidos pela teolo­
gia crista em sua trajetória rumo à ortodoxia e seus dogmas.
Esse mesmo caminho (da metáfora à metafísica) foi percorrido
pela teologia cristã, tornando-se o caminho da afirmação da
univocidade no interior de sua linguagem. Mesmo tendo nascido
(e isso boa parte da linguagem do N T revela) num ambiente de
uma linguagem plural, a teologia rapidamente se dirigiu à nega­
ção de sua legitimidade.
Essa negação, marcada por violentos esforços apologéticos,
encontrou no sistema filosófico platônico os elementos teóricos
adequados a seu intento: excluir a multiplicidade e instaurar a
univocidade.
A aproximação do pensamento cristão à filosofia grega é carac­
terizada por figuras importantes do cristianismo como Justino
Mártir, Clemente de Alexandria e Orígenes, mas principalmente
Agostinho e, em alguma medida, Tomás de Aquino.
Instrumentalizada por esses ícones do pensamento cristão, a
filosofia grega, mais especificamente a metafísica platônica, tor­
nou-se o melhor sustentador da univocidade. Prática essa que se
solidificou porque constituiu um método de produção de conhe­
cimento teológico, principalmente para a teologia dogmático-
sistemática.

168
O segundo passo, após buscar a gênese do discurso univocizante
praticado pela teologia sistemática, procurou evidenciar seus me­
canismos de perpetuação e os danos causados à relação da teo­
logia com as comunidades de fé. Chamamos a isso “processo de
elaboração da univocidade universalizante”. Esse processo opera
com o propósito de cristalizar uma perspectiva metodológica, iden­
tificando-a como norma prescritiva, supra-histórica e totalizadora.
Para mostrar como funciona, buscamos desenvolver um concei­
to que permitisse falar de um núcleo ou evento nuclear comum a
toda a teologia, denominado “fé cognoscibilizada”, composta de
três elementos que, juntos, a perfazem: experiência de fé, media­
ção cultural e discurso sistemático.
Esse núcleo da teologia é que garante, se observado, sua rele­
vância diante das comunidades de fé. O discurso univocizante
impede esse evento nuclear da teologia. Isso se dá quando o dis­
curso cristaliza uma mediação cultural, que é o espaço metodoló­
gico, elevando-a ao status de norma prescritiva.
Ferindo de morte a mediação cultural, estanca-se a circularidade
do núcleo, concentrando toda a força no discurso sistemático que,
de simples construto, passa a ser discurso ortodoxo, devendo ser
dito de forma unívoca. N a medida em que o discurso sistemático
é supervalorizado, a mediação cultural perde espaço teológico;
dessa forma a experiência de fé distancia-se das realidades concre­
tas. O resultado é que as experiências de fé passem a acontecer
distantes da história “real” das pessoas e das sociedades.
O processo implica uma desistoricização da produção teológi­
ca, isto é, um distanciamento entre os postulados teológicos e as
comunidades para os quais eles são dirigidos. À medida que se
afasta da existência concreta, o discurso sistemático manualista
encontra-se ainda mais à vontade para propor postulados que

169
aprofundam as marcas de sua tendência totalizadora e univer-
salizante.
Essa tendência é fortalecida quando surge uma série de meca­
nismos de controle sobre qualquer discurso que destoe da ten­
dência unívoca. Tais mecanismos agem para seduzir teólogos e a
comunidade de fé com vistas à simples reprodução sistemática de
um discurso também sistemático e fora dos limites da experiência
histórica.
O primeiro e o segundo passos perfizeram o movimento que
vai da metáfora à metafísica. O terceiro aponta para a necessidade
de trilhar o caminho da metafísica à metáfora e oferece os instru­
mentos teóricos para tal empreendimento.
Tanto o conceito de metafísica quanto o de metáfora podem
ser tomados aqui como metáforas, ou seja, imagens com as quais
se pôde questionar o papel da linguagem quando aplicada ao dis­
curso teológico sistemático.
Para efetivar nossa proposta, buscamos restabelecer o espaço
da mediação cultural como locus metodológico. Nesse sentido,
buscamos afirmar o “local” com o princípio de uma nova abor­
dagem metodológica ao discurso teológico sistemático. Para isso,
foi estabelecido um pano de fundo teórico que possibilitasse a
valorização da multiplicidade e de possíveis afirmações dos sa-
beres locais.
Tomando-se como ponto de partida a morte de Deus, via
Nietzsche, pudemos afirmar a libertação da metáfora, cuja lápide
se identificava como ortodoxia.
A libertação da metáfora proposta por Vattimo, sobre a leitura
de Nietzsche, fundamentou a proposta da afirmação do “local”
como espaço legítimo do discurso teológico. A univocidade, por
isso, deveria ceder espaço à polissemia discursiva que melhor cor­
responde à multiplicidade cultural.

170
Esse caminho possibilita a reabilitação da mediação cultural
que provoca a reistoricização do discurso’teológico. Os elementos
lingüísticos que comunicam sob forma de discurso sistemático a
experiência de fé devem ser próprios da comunidade que a experi­
menta.
Sobre o pano de fundo da morte de Deus e da libertação da
metáfora, fixaram-se as contribuições do antropólogo Clifford
Geertz para se desenvolverem os elementos necessários à nossa
abordagem metodológica.
Esses elementos — “saber local” e “investigação do ponto de
vista do nativo” — foram tomados para afirmar uma abordagem
metodológica que inicia sua trajetória confessando sua limitação
— não por ausência de rigor científico, mas por força de sua con­
dição genética.
Ela nasce para afirmar o local, não o universal; o polissêmico,
não o unívoco; o múltiplo, não o ortodoxo. Assim, nossa proposta
é a de que, na fragilidade discursiva consciente, a teologia pode
encontrar sua relevância.
O leitor observará que ao longo da produção deste texto, al­
guns elementos se mostraram deficitários, ou por impossibili­
dade de aprofundamento em alguns momentos, ou por nossa
limitação. Alguns desses elementos merecem ser mencionados.
O primeiro deles foi a pouca atenção dispensada a Aristóteles e
a Tomás de Aquino, uma vez que nos detivemos na matriz filosó­
fica que mais influenciou o pensamento cristão dos primeiros sé­
culos e do protestantismo.
O segundo elemento é a heterodoxia com que se tratou a orto­
doxia. Está claro para nós que a leitura da ortodoxia aqui feita não
é a corrente. Isso não se deu desavisadamente, mas de forma cons­
ciente e proposital.

171
O terceiro — mas certamente não o último — é a escolha
proposital pela falta de precisão ao se propor uma abordagem
metodológica: propor um método acabado e formatador parece­
ria uma total incoerência.
O mais adequado seria propor linhas gerais que possibilitas­
sem o respeito à autonomia das culturas locais no processo de
produção teológica. Isso, no entanto, pode ter limitado a efetivação
desse tópico.
Outro motivo dessa falta de precisão está em não considerar­
mos o tema suficientemente esgotado. Isso significa sugerir outro
tema, quem sabe o desdobramento deste, a ser explorado.
Faltam ainda a) uma discussão no campo da teologia das reli­
giões de caráter macroecumênico que possa abordar a discursividade
teológica com base na identidade cultural de cada credo religioso
em sua decorrente multiplicidade e b) uma melhor compreensão
da ortodoxia cristã, e de outras matrizes religiosas, sobre uma aná­
lise de discurso que tenha na morte de Deus seu único eixo gravi-
tacional.
Embora consciente das limitações apresentadas, julgamos ter
contribuído para uma abordagem metodológica e, o mais impor­
tante, para que a teologia, sobretudo em seu corte sistemático,
encontre, de forma respeitosa nas comunidades locais e nos espa­
ços do cotidiano, os elementos adequados à sua elaboração
discursiva.

172
Glossário

Abordagem totalizante-universalizante.
Esta abordagem caracteriza-se pela tentativa de produzir uma ex­
plicação sobre determinado objeto, que ao mesmo tempo dê
conta de sua totalidade (o objeto em todas as suas variáveis) e
de sua extensão (a explicação sobre o objeto com validade em
qualquer tempo e lugar). Essa abordagem encontra-se bastan­
te relacionada com o método dedutivo que, percorrendo o ca­
minho do universal ao particular, privilegia sempre discursos
mais teóricos e abstratos.
Para aprofundar: L ib â n io , J.B . Introdução à teologia, Loyola.
R o ld án , A.E Para que serve a teologia, Descoberta.

Cognoscibilização (V. cognoscibilização dafé).

Cognoscibilização da fé.
Neologismo de que fizemos uso para identificar o que chamamos
como núcleo da fé. N o núcleo da fé há um movimento para
tornar a experiência de fé comunicável numa determinada lin­
guagem; a esse processo chamamos cognoscibilização da fé.

Equivocidade.
A expressão equivocidade evoca o termo equívoco. Uma distinção
importante deve ser feita. Tomamos a expressão aqui não em
seu sentido de dicionário, em que equívoco é sinônimo de erro,
mas na perspectiva da filosofia da linguagem, na qual equívoco
está em contraposição direta a unívoco (v. univocidade).

173
Equivocidade é, portanto, a condição da linguagem em que
um nome pode evocar várias interpretações, sem estar subor­
dinado a um conceito fechado. Um termo compreendido em
sua equivocidade é um signo do qual podem partir muitos
conceitos.
Para aprofundar: Abbagnano, N . Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. R ic o e u r . P. A metáfora viva, Loyola. E v a n s , C. S. Dicio­
nário de apologética e filosofia da religião, Vida.

Desistoricizaçao.
Processo de desistoricizar. Negação da dimensão histórica de
determinada coisa ou evento. N o caso da teologia, essa abor­
dagem não leva em consideração a dimensão histórica de de­
terminados dogmas ou opiniões de fé, bem como sua incidência
sobre o discurso teológico.
Para aprofundar: Küng, H . Teologia a caminho, Paulinas.

Existência entificada.
Processo que submete a existência concreta a uma substância/es­
sência fora m esm o da existência. Tendência ligada ao
essencialismo no qual o fundamento da existência humana não
está nela mesma, mas numa realidade que a supera.
Para aprofundar: A bbagnano , N . Introdução ao existencialismo,
Martins Fontes. A b b a g n a n o , N . Dicionário defilosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia, Herder.

Inculturação.
Conceito relacionado à cultura. Relação de influência que uma
cultura estabelece com outra para colocar numa o que é da
outra. Quando está relacionado com a teologia, fala-se de incul­
turação da fé. Nesse sentido trata-se da aproximação, da utili­

174
zação e da influência mútuas que o cristianismo trava no en­
contro com uma cultura não marcada por determinado con­
junto de valores.
Para aprofundar: M ir a n d a , M .F . Inculturação da fé, Loyola.

L i t e r a l iz a ç ã o .

Tornar literal. Fixar um único sentido para determinado discurso,


negando, por isso, a capacidade polissêmica (diversidade de
sentidos) que o discurso, escrito ou oral, possui. Essa tendên­
cia está presente na teologia, sobretudo na exegese e na
hermenêutica fundamentalista, nas quais realidade e discurso
são identificados como a mesma coisa.
Para aprofundar: C roatto , S. Hermenêutica bíblica, Sinodal.
K ü NG, H. Teologia a caminho, Paulinas.

Locus.
Locus (latim) significa lugar. N o âmbito do nosso trabalho, a
expressão é utilizada em sua acepção teológico-técnica. Dessa
forma, locus é o lugar original e originante do discurso teológi­
co. Significa dizer que locus é o lugar/o ponto de onde parti­
mos para falarmos da fé. N o escopo desta obra a discussão está
em se o locus teológico mais adequado é o universal ou local/
particular.
Para aprofundar: B o ff, C. Teoria do método teológico,V o z e s .
L ib â n io , J.B. Introdução à teologia, L o y o la .

M a n u a lístic a .

Neologismo referente a manual (mannuale). Em teologia, cha­


ma-se manualística certa abordagem que procura encerrar de­
terminado tema da fé num único tratado de abrangência
supra-histórica (v. abordagem totalizante-universalizanté). Em

175
outras palavras, trata-se de uma tendência metodológica da
teologia sistemática em depender dos manuais. Um exemplo
típico dessa abordagem está nos manuais de teologia sistemá­
tica, escritos em determinado lugar e tempo, que acabam por
ser evocados como autoridade nos mais distintos lugares, in­
dependentemente da cultura específica de cada um deles.

Mediação.
Elemento originante do núcleo da teologia (v. cognoscibilização da
fé). Mediação cultural é o aporte teórico utilizado para se co­
municar determinada experiência (de fé, em nosso caso) em
determinado lugar e tempo. É o instrumental lingüístico e
cultural que permite tornar compreensível a comunicação de
uma mensagem. A teologia tem-se valido de inúmeras media­
ções culturais ao longo de sua história. Durante muitos sécu­
los ela utilizou a filosofia grega clássica. Desde o século XIX,
outras ciências têm servido — dialogicamente — de mediado­
ras do seu discurso.
Para aprofundar: A n d r a d e , P.EC. Fé e eficácia, Loyola. B o ff, C.
Teoria do método teológico, Vozes. G o n zá les, J. L. Introdução à
teologia cristã, Academia Cristã. H e ig t h , R. Dinâmica da teo­
logia, Paulinas. R o ldán, A. F. Para que serve a teologia, Desco­
berta.

Mediação cultural.
V. mediação.

Metafisicização.
Neologismo referente à metafísica. Fixação de determinado discurso
nas estruturas teóricas da metafísica. Identificação da mensagem
cristã com a filosofia platônica e neo-platônica. Cristalização

176
de uma mediação cultural e subseqüente continuidade entre
realidade e discurso.
Para aprofundar: B o r n h e im , G. Metafísica efinitude, Perspectiva.
Pa sto r , F. A. Semântica do mistério, Loyola. Pa sto r, F. A. A
lógica do inefável, Loyola.

Norma prescritiva.
Determinada mediação cultural (v. mediação cultural) fixada como
única (v. metafisicização) e evocada como autoridade absoluta
no processo de produção teológica.

Particular.
Que é uma parte ou pertence a uma parte. O termo é tomado
aqui para indicar a dimensão local e concreta da realidade.
Além disso, toma-se o particular em seu papel nos métodos
indutivo e dedutivo (v. universal).
Para aprofimdar: A jb b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia. Herder.

Plurivocidade.
Neologismo referente à pluralidade de vozes. Contraposição à
univocidade (v. univocidade). Por plurivocidade compreende-
se a abordagem que contempla um ambiente plural em que o
discurso teológico pode ser expresso de igual forma. Essa abor­
dagem poderia chamar-se também polissemia.

Reistoricização.
Neologismo referente ao processo de tornar novamente histórico,
reistoricizar (v. desistoricização). Nesta obra, reistoricizar é o
movimento fundamental que a teologia precisa fazer para reen­
contrar seu espaço de relevância. O próprio método indicado

177
aqui pretende contribuir para a reistoricização do discurso te­
ológico.

Sublevação metafísica.
Movimento de superposição da metafísica sobre formas de pensar
a realidade mais ligadas ao materialismo. Esse movimento pode
ser encontrado tanto na filosofia grega, quanto na teologia cristã
(v. metafisicização).

Semiótica.
Teoria que estuda os signos (símbolos) com a finalidade de
interpretá-los. A semiótica está ligada, portanto, à hermenêutica.
Para aprofundar: C roatto, S. Hermenêutica bíblica, Sinodal.
R ic o e u r , P. A metáfora viva, Loyola. R ic o e u r , P. Ensaios sobre
interpretação bíblica, Novo Século. A b b a g n a n o , N. Dicionário
de filosofia, Martins Fontes.

Sujeito histórico.
A expressão sujeito histórico tem seu significado amplamente vin­
culado às ciências humanas e sociais, sobretudo àquelas que
dialogam mais com o neo-marxismo e o existencialismo. Por
sujeito, compreende-se a pessoa que, em suas relações com a
sociedade, não se reduz a um objeto dessa relação. Sujeito é
aquele que, de forma autônoma, participa da construção de
seu mundo. Sujeito histórico, portanto, é a expressão que
designa a pessoa em estado ‘adulto’, não alienada dos direi­
tos e dos deveres decorrentes de estar no mundo. Com rela­
ção à teologia, essa expressão indica uma nova forma de
participação por parte do cristão nas proposições acerca dos
temas da fé, não mais de forma passiva ou alienada, mas ativa
e propositiva.

178
Teologia sistemática manualista.
V. manualística.

Terceiro excluso.
Termo da lógica formulado primeiramente por Aristóteles. Afir­
ma que, dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mes­
mo predicado, uma afirmativa e a outra negativa, uma delas é
necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa. O
princípio do terceiro excluso está ligado diretamente ao prin­
cípio da não-contradição. Como a metafísica, a lógica grega
também influenciou a teologia cristã, sobretudo por possibili­
tar o desenvolvimento da apologética. Isso, na prática, signifi­
ca a impossibilidade de convivência de discursos diferentes sobre
um mesmo tema da fé cristã.
Para aprofundar: A bbagnano , N. Dicionário de filosofia, M a r tin s

F o n te s. C h a u í, M . Convite à filosofia, Á tic a . M a r it a i n , J. A


ordem dos conceitos, A g ir .

Universal.
Possibilidade de um juízo ser válido para todos os seres racionais.
O termo é tomado aqui para indicar certa abordagem à reali­
dade com base em categorias abstratas não relacionadas com as
dimensões local, cultural e histórica. Nessa perspectiva, a teo­
logia pode emitir juízos universais sem nem mesmo verificar as
contingências históricas dos lugares para os quais se dirige.
São, portanto, juízos feitos apriori (v. particular e desistoricização).
Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia. Herder.

Univocidade.
Abordagem que advoga a continuidade entre o discurso e a reali­
dade. Identificação de um discurso com o real, de forma que

179
qualquer outra tentativa de nomear esse real seja imediatamente
tida como falsa. A univocidade sustenta sua condição de exclu­
sividade discursiva manipulando os princípios da não-contra-
dição e do terceiro excluso (v. equivocidade e terceiro excluso).

Verossimilhaçao.
Neologismo referente a tornar verossímil.

180
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Esta obra foi composta em Agararnondt impressa
por Imprensa da Fé sobre papel Chamois Fine 67 g/m2
Editora Vida em março de 2007.
T eologia
SISTEMÁTICA
NO HORIZONTE PÚS-M ODERNO

A preocupação fundamental deste estudo foi compreender a


importância das mediações culturais no discurso teológico,
sobretudo em seu aspecto dogmático. Para esse fim, o autor parte
da filosofia, da antropologia e da fenomenologia numa dupla
tarefa: evidenciar a tendência da teologia sistemática em herdar as
tradições metafísicas e propor uma abordagem teológica que
contemple as vivências regionais da fé.

Um estudo como este justifica-se pelo panorama em que se vê a


teologia sistemática num momento de esgotamento de sentido e,
portanto, de relevância. Infelizmente, o quadro atual aponta uma
abordagem dos temas da fé cristã restrita à repetição sistemática
de reflexões histórico-sociais do passado.

A proposta de Alessandro é a de que a teologia se distancie, por


um momento, das vivências histórico-culturais e que seja dado
espaço às mediações culturais como fator determinante para novas
abordagens metodológicas.

A lèssa n d ro R. R o c h a , pastor, mestre em Teologia Sitemática


pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (R J),
doutorando em Teologia Sistemática pela PUC-RJ. Membro do
Instituto de Estudos de Religião e Sociedade da América Latina e
membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil.

Vida
ACADÊMICA

www.vidaacademica.net
Categoria: EXCELÊNCIA: Área histórico-sistem ática/
Teologia sistemática

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