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Teologia Sistemática No Horizonte Pà S-Moderno - Alessandro Rocha
Teologia Sistemática No Horizonte Pà S-Moderno - Alessandro Rocha
ACADÊMICA
Alessandro Rocha
Teologia sistemática no
horizonte pós-moderno
A l e s sa n d r o R o c h a
Teologia sistemática no
horizonte pós-moderno
um novo lugar para a linguagem teológica
V ida
©2007, de Alessandro Rodrigues Rocha
If./
Vida
P r o ib id a a r e p r o d u ç ã o p o r q u a isq u e r m e io s ,
SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM IND1CAÇÀO DA FONTE.
R o c h a , A lessan d rp R od rig u es
T e o lo g ia sistem á tic a n o h o riz on te p ó s-m o d e r n o : u m n o vo lu g a r p a ra a
lin g u a g e m te o ló g ica / A le ssan d ro R o d rig u e s R o c h a . — S ã o P a u lo : E d ito ra
V id a , 2 0 0 7 .
B ib lio g rafia.
IS B N 978-85-7367-974-8
C D D - 2 3 0 .0 1
Glossário
Bibliografia
Prefácio
11
isso é um texto obscuro, hermético, compreendido apenas pelos
iniciados. Ao contrário, quando vamos chegando ao seu âmago e
compreendendo sua proposta, então vai-se descortinando diante
de nós um novo caminho.
O que aqui se chama de novo caminho é a percepção do autor
de que a nossa Teologia Sistemática tem produzido um discurso
de uma só voz (univocidade), desconsiderando as inúmeras vozes
que nascem dos diferentes contextos dentro dos quais a vida acon
tece e a teologia também. N a tentativa de tornar a fé cristã mais
inteligível ao mundo greco-romano, os primeiros esforços teoló
gicos dentro do cristianismo fizeram uso da metafísica grega, ele
mento que é apontado pelo autor, como responsável por esta
tendência univocizante e universalizante da Teologia Sistemática.
Com a opção radical pela metafísica, a teologia afastou-se radical
mente do outro pólo da cultura grega, o mito, que nada mais era
do que uma linguagem metafórica e que, por causa das suas imen
sas possibilidades de interpretação, é por natureza polissêmica, car
regada de muitas vozes. Usando a linguagem do autor, eu diria que
a sublevação da metafísica na teologia sistemática fez que ela “se es
quecesse” de que a metáfora é por excelência a linguagem do mis
tério, mistério pelo qual a teologia deve existir. Obviamente, essa
univocidade trouxe para nossa maneira de fazer teologia um pro
fundo empobrecimento, por ser seu método um “samba de uma
nota só” e, por isso, deixa de ecoar a riqueza infinita de outras
notas que, quando harmonicamente unidas, sempre produzem
belas e diferentes sinfonias.
De posse dessa percepção, e não querendo ser refém de uma
perspectiva somente crítica que descreve a doença sem preocupa
ção alguma de apontar remédios, o autor constrói, com o brilhan
tismo que lhe é peculiar, uma proposta de superação dessa
12
univocidade da teologia sistemática. Revelar neste prefácio que
proposta é essa seria como contar ao leitor o final do filme. Este é
um prazer que deixo reservado a todos os que mergulharem com a
atenção devida neste texto e, então, puderem como eu ter o pra
zer de dialogar com Alessandro!
E d u a r d o R o s a P e d r e ir a
Doutor em teologia pela PUC-R] e professor de ética corporativa
na Fundação Getúlio Vargas. E pastor da Comunidade
Presbiteriana da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.
13
Introdução
15
gens originais dos temas da fé que contemplem os novos sujeitos
históricos (v. Glossário, sujeito histórico).
As reflexões aqui contidas justificam-se também socialmente,
considerando-se a distância existente entre os postulados da teo
logia sistemática manualista e as questões vivenciadas pelo povo
de Deus em sua caminhada de fé. Os grandes temas da fé crista
não comunicam sentido existencial, passando a ser seu estudo
tão-somente um exercício apologético de ilustração. Nesse senti
do, a teologia perde seu caráter dialético profundo e sua dimen
são encarnacional.
Nas tentativa de reabilitar os saberes locais, buscamos mini
mizar a distância entre a teologia e os cristãos e, o mais importan
te, reabilitar o terreno da existência cotidiana como elemento e
ponto de partida para o fazer teológico. Isso porque constatamos
ser o sistema manualista (e seus métodos) inadequado em relação
às questões próprias das realidades locais, fato evidenciado tam
bém na docência teológica e na catequese. Em suma, propomo-
nos a “dar respostas a perguntas que não estão sendo feitas” .
Toda esta obra baseia-se na seguinte questão central: “Como se
deu a formação do discurso de tendência universalizante utiliza
do pela teologia sistemática na abordagem dos temas da fé cris
tã?” . E, com a resposta encontrada, procuramos desenvolver uma
abordagem crítica que permita sua superação.
Em decorrência do problema central, surgiram indagações
pertinentes: “Como verificar e compreender o processo que le
vou a comunidade cristã antiga a privilegiar o uso da metafísica
em detrimento da metáfora na comunicação dos temas da fé?” ;
“Qual o resultado — sobretudo metodológico — desse proces
so para o discurso teológico dogmático-sistemático e como
mensurar essa contribuição para a teologia?”; “Como desenvol
16
ver uma possível crítica a procedimentos metodológicos que
universalizam um local (histórico-social) em detrimento de ou
tros e quais contribuições se podem receber dos aportes teóricos
assumidos neste estudo?”. Para responder a isso, apoiamo-nos em
dois argumentos:
17
Diante desse discurso teológico, que potencializa, com base na
metafísica, uma mediação cultural, cristalizando-a e transforman
do-a em norma de alcance e vigência universais, é imperioso que
se afirme o distanciamento da teologia das vivências históricas e
culturais. Isso é feito na afirmação das mediações culturais como
fator determinante para novas abordagens metodológicas e exigiu
a transferência da elaboração do método do locus (v. Glossário)
metafísico para o âmago dos processos culturais.
Finalmente, como resposta à condição univocizante em que se
encontra a teologia sistemática manualista, causada pela cristali
zação de uma mediação cultural normatizante, é preciso afirmar o
“local” como princípio de uma nova abordagem metodológica.
Assim, pudemos desenvolver o tema principal em três capítulos.
O primeiro capítulo, de caráter descritivo, versa sobre o proces
so de sublevação da metafísica (v. Glossário) “em detrimento da
metáfora na comunicação dos temas da fé cristã”. Para evidenciar
esse processo, percorremos a seguinte trajetória:
18
c) Abordagem metodológica resultante da afirmação metafísica
no interior da teologia dogmático-sístemática
19
Contribuições de Geertz com base em sua compreensão
acerca do “local” como espaço hermenêutico de cultura
c) Considerações sobre a possibilidade de uma nova aborda
gem metodológica para o discurso teológico sistemático
20
1
Processo de sublevaçao da
metafísica em detrimento da
metáfora na comunicação dos
temas da fé cristã
21
ça no nosso presente, não pode ser atribuída de forma simplista
à astúcia perversa dos clérigos. O que não quer dizer, porém,
que não devamos preparar continuamente a sua superação,
ainda que apenas na forma da Verwindung, com um esforço
de crítica radical.
V a t t im o , Depois da cristandade, p. 149-50.
22
Neste capítulo objetivamos a discussão do método.3 É funda
mental, portanto, rastrear o itinerário da metafísica, que estruturou
o discurso teológico-cristão — desde seus primeiros passos, em
Parmênides, até sua construção última, em Aristóteles; das pri
meiras aproximações de Clemente de Alexandria até Tomás de
Aquino.4 Esse itinerário é, a um só tempo, o da afirmação da
metafísica e o da negação da metáfora; o do abandono da polissemia
pela afirmação da univocidade.
23
caminho para trás. Este é o motivo por que não há um método
para ler os mitos. Deixando para trás ironia, maiêutica, epoché,
dúvida, numa palavra os métodos do Ocidente, o mito inaugu
ra aquele encontrar-se o caminho, aquele entreter-se no cami
nho, sem possibilidade de que o resultado possa se oferecer
como meta alcançada.6
24
É contra essa impossibilidade lógica que o mito se instaura e
que a filosofia se apresenta como discurso acerca da verdade.8 Como
afirma Zilles: “Até certo ponto se pode dizer que, na filosofia, se
expressa a autoconsciência de determinada época. Assim, filosofias
expressam o ser homem em sua história” .9
A autoconsciência expressa na filosofia grega é resultado de um
processo histórico-político-cultural que se foi firmando sobre a
necessidade de emancipar esses elementos do universo mítico, o
qual estruturava uma ordem social que gradativamente foi substi
tuída. Como diz Vernant:
25
Importa então compreender o surgimento da metafísica no âmbi
to da filosofia grega como caminho de afirmação da univocidade.
Para legitimar a possibilidade de um discurso unívoco em
contraposição a outro, de caráter equívoco, próprio da poética
mítica, a filosofia passa a afirmar a unidade como essencial a toda
a existência. Essa unidade é evocada como princípio universal ca
paz de abarcar toda a multiplicidade. Dessa forma, dizer sobre a
unidade é, ao mesmo tempo, dizer sobre a multiplicidade. O
múltiplo é dito não por ele mesmo, mas por uma pretensa essência
que o antecede e, em última instância, institui-o.
Inaugura-se dessa forma, na dimensão da racionalidade, a
dicotomia entre essência e existência. A existência, num primeiro
momento, é destituída de um núcleo em si mesma e, posteriormen
te, reduzida à sombra de uma instância superior. E é exatamente
a metafísica que propõe essa abordagem, a qual posteriormente
granjearia para si o status de filosofia primeira.
26
sua compreensão última alienada a üma essência que se identifica
com o próprio ser. Dessa forma, “a metafísica é ciência da totali
dade do ente visto a partir do ser” .12 E ainda: “Neste caso sendo
a ciência da totalidade do ente, a metafísica é a ciência total: é
ciência da totalidade do ser e é a totalidade da ciência”.13
A filosofia grega, distanciando-se da polissemia geradora de
plurivocidade (v. Glossário), encontra na metafísica um instrumento
adequado, capaz de sustentar um discurso unívoco que, por ser
unívoco, pode ser referido como universal. Uma vez potencializado
e legitimado numa esfera de autoridade a-histórica, ele é evocado
como fundamento último da existência, ou seja, como sua pró
pria essência. Nesse sentido, discurso e realidade são identifica
dos como parte de uma mesma coisa. O discurso é a mesma
realidade que anuncia. Por isso, ele acaba identificando-se com a
própria essência da existência que inaugura.
27
de como tal”.15 Para completar seu método de produção de co
nhecimento de caráter unívoco, a filosofia, além da metafísica,
gerou a lógica, que marcaria a impossibilidade da contradição no
âmago de uma proposição que se pretendesse verdadeira.
Embora tenha sido essa a caminhada feita pela filosofia em seu
período clássico, não era ela a única possibilidade. A assunção da
metafísica (e também da lógica) como método de produção de
conhecimento na filosofia grega deu-se com base na afirmação do
pensamento de Parmênides em detrimento do de Heráclito. Im
porta agora evidenciar a compreensão da realidade que subjaz ao
pensamento desses filósofos, pois, com base nessa compreensão,
torna-se possível entender a construção da teoria do conhecimen
to em cada um deles.
28
de ordenação e afirmação da verdade. Heráclito parte da experiên
cia — da existência por assim dizer — , e Parmênides busca afir
mar a verdade das coisas no plano metafísico, naquele próprio da
essência.
29
experiência Heráclito opõe a exigência da razão e a necessidade
religiosa da unidade permanente. A fé e a autoconsciência, segun
do ele, permitem descobrir, no homem e nas coisas, a razão eter
na, harmonia oculta e identidade dos contrários”.22
Partindo da experiência (“Prefiro tudo aquilo que se pode
ver, ouvir, e entender.”23), Heráclito afirma poder encontrar “no
homem e nas coisas” a verdade. Essa verdade realiza-se no devir,
ou melhor, faz-se e refaz-se no devir, no espaço próprio e concre
to da existência. Uma teoria do conhecimento advinda do pen
samento de Heráclito consagra a concretude da vida como espaço
único da afirmação e compreensão da verdade, não como coisa
acabada, mas como um processo (devir contínuo), por assim
dizer, equívoco.
Parmênides, ao contrário de Heráclito, tenta eliminar tudo o
que seja variável e contraditório. Ele contrapõe os conceitos de
opinião (doxa) e verdade (gr. alétheiá). Descarta o conhecimento
por meio dos sentidos como meras opiniões e opta pela certeza
que a razão produz por meios lógicos e dedutivos.
Sua obra principal, o poema Sobre a natureza, expõe, no frag
mento 8, essa separação ao propor a existência de dois caminhos,
o da opinião e o da verdade. “A decisão sobre este ponto recai
sobre a seguinte afirmativa: ou é ou não é. Decidida está, portan
to, a necessidade de abandonar o primeiro caminho, impensável e
inominável (não é o caminho da verdade); o outro, ao contrário, é
presença e verdade.”24
Analisando a contraposição de opinião e verdade no poema de
Parmênides, Chauí comenta:
30
É sintomático que o poema-fale em duas vias ou dois cami
nhos que correspondem à palavra inspirada (a verdade como
não-esquecimento do que foi contemplado no invisível) e à
palavra leiga das assembléias (a verdade como decisão e opi
nião compartilhada nas discussões públicas). Alétheia e d o xa P
31
O pensamento de Parmênides inaugura na filosofia grega um
método de conhecimento da verdade. Se esta não pode ser
verificada na multiplicidade das interpretações nem na mobilida
de (aparências) das coisas sensíveis, é necessário buscá-la em ins
tâncias outras, com instrumentos capazes de aferi-la em meio às
opiniões. Nesse sentido, Parmênides é considerado o primeiro a
formular os princípios da lógica e da metafísica.27
Tanto a lógica (com seus princípios de identidade e não-con-
tradição) quanto a metafísica (em sua identificação da verdade
como não-esquecimento do contemplado no invisível) permitem
que Parmênides afirme a univocidade da verdade, a qual se funda
não no interior da existência, mas em outra dimensão, própria da
essência. “Para encontrar a verdade, o filósofo deve fixar-se no ser
além de toda multiplicidade.”28
O caminho da univocidade encontra na inauguração da
metafísica as condições necessárias à sua afirmação. A metafísica
passa a ser um instrumento de conservação da verdade única que
se estabelece na negação de toda multiplicidade. Dessa forma, o
pensamento de Parmênides apresenta-se fundador. Molinaro afir
ma a respeito de Parmênides:
32
menos no plano do rigor lógico e lingüístico, não ser é forçoso
negar a multiplicidade: ela não passa de opinião, ilusão.29
33
de Parmênides e para o mundo em devir de Heráclito.32 Isso,
contudo, não significa a assunção da existência ao status de digni
dade, mas a organização da existência e da essência.
34
O mundo das idéias é o mundo do ser, o objeto do conhe
cimento verdadeiro, universal e necessário, isto é, a sede da
verdade [...] nosso mundo sublunar é uma simples sombra do
mundo das idéias, ou seja, não tem ser, é mera aparência, ou
seja, objeto de um conhecimento que não passa de doxa (opi
nião). Com a teoria das idéias, Platão sustenta, pois, que o
sensível só se explica mediante o recurso ao supra-sensível, o
relativo mediante ao absoluto.35
35
O necessário é, portanto, aprender a recordar. H á no argu
mento de Platão uma espécie de inatismo da verdade. A alma
preexistia no mundo das idéias, tendo-as contemplado. Por uma
sentença condenatória, foi unida ao corpo no mundo das som
bras. Como conseqüência dessa queda, a alma já não mais recorda
as idéias que contemplou, porém ainda as traz em si. O argumen
to da reminiscência garante a possibilidade do conhecimento da
verdade por imagens ou simulacros.
36
Os objetivos do conhecimento Os modos do conhecimento
M U N D O INTELIGÍVEL M U N D O SENSÍVEL
Bidos (do gr., formas, idéias) Zóa (do gr., coisas vivas e
Noésis (do gr., intuição coisas visíveis)
intelectual): episteme Pistis (do gr., crença) e Doxá
Ta mathéma (do gr., objetos (do lat., ópinião)
matemáticos) Eikones (do gr., imagens)
Diánoia (do gr., raciocínio Eikasia (do gr., “imaginação”,
dedutivo) simulacros)
37
paradigma privilegia as essências de tal forma que as identifica
com o real. O real não é o visível, mas o invisível. Não é o sensível,
mas o inteligível. O realismo platônico é, portanto, estritamente
metafísico.
Em Aristóteles (384-322 a.C), a metafísica ganha sistematiza-
ção em seu nível mais complexo. Envolvido na busca do verdadei
ro, ele afirma ser a metafísica a ciência capaz de dizer o ser como
ser. N a opinião dele, a metafísica é:
38
O próprio lugar da verdade é 0 ser assim como é. Nesse sen
tido, a metafísica, como fdosofia primeira,43 será impreterivel-
mente uma filosofia do ser. Ela responde à necessidade de
conhecer o verdadeiro, à radical necessidade de averiguar o por
quê último.
O pensamento de Aristóteles, no que diz respeito à metafísica,
não consiste numa ruptura com seus antecessores pré-socráticos,
sobretudo Heráclito e Parmênides, muito menos com Platão. Há
uma complexidade crescente da metafísica desde Parmênides até
Aristóteles. Assim como Platão, que havia aproximado Heráclito e
Parmênides e sistematizado a teoria desses filósofos em sua com
preensão da realidade (mundos sensível e inteligível), Aristóteles
também o faz, porém observa que Platão, com seus mundos, ins
taurava um dualismo entre essência e existência, que destinava
toda a compreensão da verdade a uma instância separada da
intelecção humana.
É nesse sentido que o pensamento aristotélico atinge seu maior
grau de complexidade: todo o edifício metafísico que vinha sendo
construído de Parmênides a Platão, no sentido da afirmação da
essência como elemento fundador de toda a existência, agora é
39
introjetado no próprio ser humano. Essência e existência não ha
bitam dimensões distintas nem longínquas: elas coexistem num
mesmo “espaço” . O dualismo externo de Platão é internalizado
com Aristóteles.
É na coisa44 que estão, na compreensão de Aristóteles, a existên
cia e a essência, que ele identifica como matéria e forma. A “matéria
é o elemento de que as coisas da natureza, os animais, os homens,
os artefatos são feitos”.45 A matéria tem como principal característi
ca o “possuir virtualidades [...] possibilidades de transformação, isto
é, de mudança”.46 Já a forma “é o que se individualiza e determina
uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares”.47 A
particularidade da forma “é ser aquilo que uma essência é”.48
Partindo dessa compreensão, o dualismo externo platônico só
se diferencia do dualismo interno aristotélico no tocante ao “lu
gar” para onde se dirige a pergunta pelo ser — se para fora ou
para dentro das coisas. Permanece, contudo, o dualismo, assim
como a hierarquização da essência (forma e existência)/matéria,
na medida em que forma é “essência necessária ou substância das
coisas que têm matéria. Nesse sentido, que está presente em
Aristóteles, forma não só se opõe à matéria, mas a pressupõe”.49
À matéria e forma correspondem, na teoria do conhecimento
de Aristóteles, os conceitos de particular e universal (v. Glossário).
O particular/matéria é próprio da dimensão das sensações e opi
niões, enquanto ao universal/forma corresponde a razão científica.
40
O conhecimento científico, a um só tempo, opõe-se às sensações,
valorizando a razão. Matéria, portanto, é espaço da opinião (doxa),
enquanto forma é digna de ciência (episteme).
Assim como Parmênides valoriza o imobilismo em detrimen
to do mobilismo, que Platão hierarquiza, elevando ao absoluto a
essência sobre a existência, Aristóteles elege como necessário o
universal em relação ao particular.
41
cada uma dessas escolas, é possível afirmar um princípio comum
a elas: a separação de essência e existência e a identificação da
essência como lugar próprio do ser. O que se diz de verdadeiro é
dito com base no ser.
Sobre essa compreensão funda-se o conceito de ciência, capaz
de conferir confiabilidade a um discurso. Essa ciência é a metafísica,
então apresentada como paradigma na busca da verdade. Poste
riormente, esse paradigma seria expandido para além das linhas
limítrofes da Grécia e atingiria outras terras, até mesmo aquelas
que viam brotar a teologia cristã.51
42
evangélica da divina monarquia cõm o mundo da cultura grega,
especialmente com a filosofia do platonismo”.52
O encontro da mensagem evangélica com a cultura grega pre
cisa ser compreendido, diferentemente das religiões de iniciação
com base no caráter missionário do cristianismo e de sua tendên
cia apologética.
43
turas interiores do pensamento grego, identificadas aqui, princi
palmente, como metafísica e lógica. A primeira, em sua ênfase na
afirmação do ser como essência dos entes e na negação do múlti
plo e conseqüente afirmação do uno, identifica a verdade em sua
única possibilidade, em sua condição unívoca. A segunda, com
sua lei de não-contradição, oferece os elementos de coerção/exclu-
são, capazes de manter a univocidade dos discursos.
Falar sobre a similaridade das trajetórias da filosofia grega e da
teologia cristã é, portanto, propor que ambas tenham percorrido
o caminho da afirmação da metafísica como método adequado
na construção da univocidade da verdade. Essa afirmação cons-
trói-se sobre os escombros de outra compreensão acerca da reali
dade — uma compreensão mais consciente de sua equivocidade,55
manifesta sobretudo no amplo uso da metáfora como forma aproxi-
madora do real.
Existe aqui uma contraposição entre metáfora e metafísica que
precisa ser explicada. N o ambiente da filosofia grega, ambas estão
intimamente relacionadas.56 O uso da metáfora constitui o dis
curso alegórico, próprio do mundo sensível. Ele é necessário diante
da impossibilidade de os não-filósofos compreenderem as idéias
puras.57 A metáfora é válida à medida que não se identifica com
as idéias, mas é sempre um instrumento necessário em relação à
incapacidade da existência concreta e múltipla, que não pode co
nhecer a verdade, mas apenas opiniões e crenças.
Ela é, portanto, um instrumento pedagógico necessário, mas
não ideal. A metafísica é que pode apresentar a realidade. Ela
55 V. nota 5.
56 Até Platão, a metáfora é trabalhada ao lado da metafísica. Ela tem o papel de
comunicar significados mais profundos, próprios do mundo das Idéias. Já
Aristóteles destina o uso da metáfora à dimensão da poética.
57 Francisco Garcia B a z á n , Aspectos incomuns do sagrado, p. 33-6.
pode falar do ser, das idéias perfeitas — em suma, da verdade.
Isso se dá porque o ser, a perfeição, a verdade estão fora da existên
cia concreta. Nesse sentido, a metáfora oferece sempre um simu
lacro, enquanto a metafísica desvela a verdade que não está no
múltiplo apreendido em instância metafórica, mas no um encer
rado na essência.
H á na qualificação da metáfora uma desqualificação da
multiplicidade. N a filosofia, seu uso não é mais aquele da dimen
são mítico-religiosa, mas apenas um passo para seu abandono, o
que em Aristóteles se evidenciará. N a trajetória cristã, isso pode
ser verificado num processo muito semelhante, já que, ao tomar
dessa filosofia os elementos para a comunicação de sua experiên
cia, transformando-a em discurso sistemático sobre a realidade, a
teologia percorreu o mesmo caminho. Abandonando a equi
vocidade da metáfora (embora a mantivesse como elemento pos
sível ao seu discurso), aproximou-se gradativamente da univocidade
da metafísica.
Falar sobre essa trajetória da teologia não consiste aqui em
outra coisa senão na tentativa de compreender a teoria do co
nhecimento construída pelo discurso teológico-cristão em sua
relação com a filosofia grega. Em suma, como a compreensão
unívoca acerca da verdade, tão acentuada na teologia dogmática,
pôde surgir numa religião marcada tão fortemente pelo uso da
linguagem metafórica.
45
da.”58 Como diz Ricoeur, a metáfora é uma “estratégia de discur
so”, na qual a linguagem está despojada de sua condição descriti
va e conceituai. Por isso ela é tão cara à experiência religiosa, que
se articula sobre a subjetividade. A experiência religiosa é indizí-
vel do ponto de vista conceituai e, mesmo assim, é chamada a
comunicar-se. Como, então, dizer o indizível? Certamente, no
âmbito conceituai da linguagem isso não pode ser feito. Nesse
sentido, a metáfora apresenta-se como instrumento fenomeno-
lógico para a compreensão das experiências religiosas, com suas
vivências e sua comunicação.
A pertinência da metáfora no discurso teológico (sistematiza-
ção de experiências religiosas) acha-se nas palavras de Boff: “As
metáforas não falam de uma equivalência formal e essencial, mas
sim de uma equivalência funcional e dinâmica”.59 Sua relevância
está na capacidade de produzir significado no interior de grupos
que partilham os mesmos signos e comungam de um mesmo
universo de significação. Dentro desse universo, a metáfora per
mite a elaboração de discursos que, mesmo partilhados, já que os
signos são comuns, podem ser reelaborados à medida que os sig
nificados se tornam literais, perdendo o sentido existencial e pas
sando a ser compreensões padronizadas, conceituais. Depois que
as expressões são dicionarizadas, elas perdem alcance simbólico, e
nega-se a elas a polissemia.
O uso metafórico da linguagem contrasta com seu uso literal,
que é simplesmente o uso-padrão em vigor dentro de uma comu
nidade lingüística e emprega palavras para transmitir sentidos
convencionados, adequados ao registro em dicionário. Assim, os
sentidos literais de uma palavra são, em termos aproximados, seus
p. 376.
58 R ic o eu r , Metáfora viva,
59 Teoria do método teológico, p. 332.
46
sentidos lexicais — e “falar literalmente” eqüivale a pretender que
nossos enunciados sejam compreendidos em seu sentido-padrão
ou dicionarizado. Em contraste com isso, a metáfora é uma forma
de discurso não literal, isto é, figurativa. O discurso metafórico,
portanto, é uma forma de linguagem em que o sentido emprega
do pelo falante difere daquele constante do dicionário.60
A contraposição entre linguagem literal e metafórica e seu uso
no discurso teológico têm como pano de fundo uma questão
epistemológica. Por um lado, a linguagem literal pretende um
discurso unívoco fundado numa perspectiva essencialista das coi
sas. Por outro, a linguagem metafórica permite uma equivocidade
no discurso teológico, que se fundamenta na existência múltipla
das coisas. Em suma, para ser relevante e verdadeiro, o discurso
teológico deve fundamentar-se na essência ou na existência? Se na
essência, a linguagem deve ser literal, capaz de identificar o dis
curso com a realidade, produzindo a univocidade da verdade. Se
na existência, a linguagem será metafórica, compreendendo a teo
logia como ciência hermenêutica aberta à equivocidade e, por
assim dizer, ao caráter provisório de seu discurso.
Ao comentar a condição hermenêutica da teologia e de sua
relação com a semiótica (v. Glossário), Croatto aponta para a im
portância da polissemia, que aqui pode ser “metaforicamente”
identificada com a equivocidade.
47
são sobre qual é a verdadeira viria de uma autoridade extra-
textual [...] E o que é pior: a mensagem resulta atrofiada e não
se pode depreender em novas leituras criativas. Talvez até dei
xe de ser mensagem.61
48
voltados para a dinâmica da comunidade e para a função litúrgica
nela presente, o que se constata é a polissemia teológica, não como
fragmentação destrutiva, mas como instrumento estruturador das
múltiplas experiências de fé com o Cristo e a necessária comuni
cação delas.63
Faz-se necessário neste momento precisar a gênese da univo-
cização da polissemia presente nos discursos das primeiras gera
ções cristãs.
63 Esse tema pode ser aprofundado no estudo da literatura patrística feita por
Hubertus R. Drobner em seu Manual de patrologia. Especificamente sobre o
tema do uso das parábolas no NT, o texto de As parábolas de Jesus, de Joaquim
Jeremias, trata com profundidade a importância da metáfora. No que diz res
peito ao uso da metáfora na elaboração do discurso teológico, em A metáfora do
Deus encarnado, de John Hick, discute-se no âmbito do dogma a necessidade de
rever o papel fundador da metáfora, ofuscado pela univocidade metafísica.
64 “Este termo designa a corrente de pensamento platônico dominante nos dois
séculos do tempo imperial, destinada a desaguar no século III, no neoplatonismo
[...] É justamente esse tipo de filosofia que exerce uma influência determinante
nos apologetas gregos do século II d.C. (Atenágoras, Justino Mártir, Clemente
de Alexandria e Orígenes). As apreciações sobre as várias escolas filosóficas, a
admiração por Platão, os elementos característicos da doutrina da transcendên
cia de Deus, a doutrina das idéias como pensamentos de Deus contidos em sua
inteligência e em seu logos, a concepção do nascimento do universo pela impo
sição das formas e da ordem sobre a matéria não gerada...” (Médio-platonismo,
Dicionário patristico e de antiguidades cristãs, p. 920,1).
65 Paul T illich , História do pensamento cristão, p. 44.
49
A Igreja, que recebera o mandato de tornar presente a mensa
gem do evangelho até as extremidades da Terra, para poder esten
der-se, tinha de traduzir seu conteúdo religioso em termos racionais,
para que fosse acessível ao pensamento e à tradição gregos. No
segundo século, iniciou-se a helenização do ensinamento cristão e
da linguagem teológica, nascida desse encontro. Preparou-se des
se modo a expansão do cristianismo.66
As condições histórico-culturais daquele momento são funda
mentais para a compreensão desse movimento teológico, chama
do “apologética”.67 O encontro do cristianismo, com sua literatura
amplamente marcada por traços metafórico-poéticos e destinada
à liturgia e à catequese, com a cultura grega presente no helenismo
e no Império Romano, bastante contrária às narrativas mitológi
cas já contrapostas à teoria da transcendentalidade de Deus, pro
duziria uma adaptação um tanto sincrética daquela a esta, gerando
um discurso teológico bastante peculiar.
O cristianismo que, no dizer de Tillich, “teve que se expressar
em forma de respostas a certas acusações particulares [...] que
ameaçava o império romano e que era, do ponto de vista filosófi
co, pura tolice, não mais que superstição misturada a fragmentos
50
filosóficos”,68 precisou dialogar, explicando sua experiência de fé
para ser entendido e aceito naquela cultura.
Aquilo que na literatura teológica pós-apostólica era dito pela
perspectiva metafórica, ou seja, que transbordava a capacidade
delimitadora da palavra, passaria a ser submetido gradativamente
à necessidade de definição, tendo a palavra, como recipiente dos
sentidos, de abrigar todos eles. O dizer metafórico aberto à
equivocidade seria substituído pelo dizer metafísico gerador de
conceitos unívocos. Nesse sentido, há uma subtração dos elemen
tos propriamente religiosos e um impedimento às interpretações
espontâneas e populares.
Para evidenciar essas aproximações e a conseqüente sublevação
do pensamento platônico,69 e com ele sua metafísica, impõe-se a
necessidade de verificar seus principais interlocutores no interior
do cristianismo.70
O primeiro deles é, sem dúvida, Justino Mártir. Nascido de
pais pagãos, estudou filosofia antes de se converter ao cristianis
mo. Em suas obras, transparece o esforço de adaptação de um ho
mem formado segundo a filosofia grega e depois convertido para
apresentar a fé aos seus contemporâneos. Por causa de sua teoria do
logos espermáticos,71 foi-lhe possível afirmar que “não só não existe
51
oposição entre filosofia e cristianismo, mas pode-se afirmar até
uma substancial identidade entre a primeira e a segunda”.72
Justino busca na filosofia o método capaz de lhe permitir o
desenvolvimento da tarefa de defender o cristianismo ante o “de
safio” — externo e interno — que este experimentava. Esse desafio,
do ponto de vista interno, consistia em combater as heresias73 e, do
ponto de vista externo, superar a crítica que o considerava “pura
tolice [...] superstição misturada com fragmentos filosóficos”.74
O impacto da filosofia platônica sobre sua formação foi tão
grande que ele confessou: “Eu exultava principalmente com a con
sideração do incorpóreo. A contemplação das idéias dava asas à
minha inteligência”.75 E ainda: “Que obra maior devemos reali
zar senão a de mostrar como a idéia dirige todas as coisas? Conce
bida em nós, e deixando-nos conduzir por ela, podem os
contemplar o engano dos outros e ver que em suas ocupações não
há nada de são, nem de agradável a Deus”.76
Sob essa influência, o discurso teológico-cristão, representa
do em Justino, volta-se para a metafísica, distanciando-se das
fontes de reflexão teológica pós-apostólicas. Os espaços de pro
52
dução teológica vão-se deslocando 'do interior das comunidades
de fé, de sua liturgia e da ação pastoral na direção de outros cen
tros, de reflexão mais conceituai. Os próprios agentes dessa refle
xão irão diminuir, cedendo espaço gradativamente a especialistas.
Esse deslocamento da teologia que na metáfora se comunica
numa dimensão mais funcional e dinâmica para outra, de ten
dência mais conceituai, encontra em Justino seu primeiro
interlocutor. Ele mesmo declara: “Filosofia é a ciência do ser e do
conhecimento da verdade, e a felicidade é a recompensa dessa
ciência e desse conhecimento”.77
N a tarefa de aproximar o discurso teológico-cristão da filosofia
grega, sobretudo a platônica, para além das contribuições de
Justino, estão aquelas dadas pela escola de Alexandria, representa
da por dois nomes da maior relevância. O primeiro é Clemente.
Filho de pais gentios, nascido provavelmente em Atenas por volta
do ano 150. Convertido ao cristianismo, estudou com diversos
professores até conhecer Panteno, em Alexandria, onde iria desen
volver seu ministério.78
“Em Clemente a veneração por Platão e a influência do
platonismo contemporâneo assumem uma dimensão ainda mais
ampla e desenvolvimentos ainda mais ricos do que em Justino.”79
Em Protréptico, Clemente pede a Platão que se torne seu compa
nheiro na busca de Deus.80
Longe de ser obra do demônio, dizia ele, a filosofia grega é, ao
contrário, um bem. A ela coube a tarefa propedêutica de condu
zir os gentios a Cristo. O que a Lei fora para os judeus, a filosofia
53
foi para os gentios.81 Boehner e Gilson citam Clemente nas
Stromatas nos seguintes termos:
54
os pontos de vista, e sobretudo pela penetração especulativa. So
bre os fundamentos lançados por Clemente pôde erguer o pri
meiro edifício sistemático doutrinai”.84
Com isso também concorda BofF, ensinando que “a primeira
escola de teologia sistemática foi o Didaskaleion de Alexandria,
fundado no fim do Século II. Orígenes, seu maior representante,
nos dá a primeira síntese dogmática, em Dos Princípios" .85
Da mesma forma que Justino e Clemente, Orígenes mantém
proximidade com a filosofia grega, principalmente a platônica,
como mediação cultural (v. Glossário) no processo de produção
teológica. Eusébio menciona-o, bem como sua relação com Platão,
afirmando: “Ele vivia em trato contínuo com Platão”.86
Sendo impossível, como já afirmamos, mensurar a influência
dessas aproximações do ponto de vista dos conteúdos, é evidente
que elas marcam profundamente o método de construção do dis
curso teológico-cristão, tanto em seu caráter apologético devedor
das leis da não-contradição quanto em sua tarefa, ainda incipiente
em Orígenes, de sistematização dos temas da fé.
Seria necessário dizer que essa tarefa apologética, mesmo le
vando em consideração as observações feitas por Tillich,87 consis
te na eliminação da pluralidade epistemológica. A polissemia é
encarada como ameaça à verdade, pois esta não se encontra na
dimensão das opiniões ou das crenças (que seriam admitidas como
heresias), mas na dimensão da episteme, da ciência das idéias. E
daqui ela há de ser afirmada, para além de toda multiplicidade,
em sua univocidade.
55
Tudo fica muito claro naquelas que serão as instâncias últimas
da apologética: os concílios.88 Neles, está presente a objetivação
mais radical da influência da filosofia grega sobre o pensamento
cristão, tanto na linguagem construtora das sentenças dogmáticas,
tão estranhas ao mundo bíblico, quanto na formulação dos anáte-
mas, amplamente devedora dos princípios da não-contradição.
Nos concílios, as perguntas são pela essência das coisas, na
clara intenção de delimitar e definir o discurso teológico, aten
dendo às exigências de justificação racional dos temas da fé em
relação ao m undo greco-rom ano. Subm ete-se, portanto, a
multiplicidade das experiências de fé, geradoras de narrativas
polissêmicas, às exigências de categorias unívocas. Neles se esta
belece uma hierarquia que é a um só tempo epistemológica e po
lítica. Ao definir, isto é, ao afirmar conceitualmente os temas da
fé, cria-se um princípio hermenêutico único, administrado pelo
centro de controle dos sentidos hermenêuticos: a Igreja.
N a continuação do momento apologético do discurso teoló-
gico-cristão, está o momento dialético. O discurso teológico
dialético, já presente em Orígenes, em sua obra Dos princípios,
tem como ênfase não só articular respostas pontuais a temas em
conflito, mas propor uma sistematização dos temas da fé em for
ma de tratados. Esse fato cumpre o intento de sistematização da
univocidade epistemológica, já presente de forma incipiente no
discurso apologético. Como afirma Zilles:
56
melhor a revelação cristã ou para defender-se contra os pa
gãos. Agostinho de Hipona, chamado ò mestre do Ocidente e
o gênio do cristianismo, contudo elabora uma filosofia junto à
teologia. A filosofia patrística representa o esforço de munir a
fé de argumentos racionais. Entre os padres cristãos, Agosti
nho leva mais longe a conciliação entre a fé e a razão.89
57
corpora no contexto cristão e, por esse motivo, transforma-a pro
fundamente, ao mesmo tempo que a completa e aprimora, nela
corrigindo o que havia de mais discutível.
58
conhecimento dos corpos; à razão inferior, as leis da natureza; à
razão superior, as verdades eternas.
Como diz Mondin: “Agostinho tem realmente a convicção de
que a alma é absolutamente superior ao corpo e de que, por isso,
não pode depender dele em nenhuma de suas atividades, nem
mesmo na sensitiva” .95 Agostinho assume o dualismo platônico,
remetendo à instância externa toda a possibilidade de conheci
mento da verdade, que reside no mundo das idéias.
Não sem razão Zilles afirma: “Já que as idéias que regulam a
verdade dos nossos juízos transcendem a mente humana, elas de
vem existir independentemente da alma humana. Deve existir
uma espécie de mundo das idéias eternas que, como princípio
absoluto e metafísico, garante a veracidade dos nossos conheci
mentos”.96 Isso significa que o fundamento do conhecimento
humano e, portanto, teológico está fora da existência concreta.
Mesmo as operações dos sentidos e da razão inferior precisam de
um auxílio externo para serem realizadas.
A teoria de Agostinho guarda inúmeras semelhanças com a
idéia platônica do conhecimento. Para Platão, o conhecimento
dá-se por intuição intelectual, só possível por causa de sua doutri
na da reminiscência.97 Agostinho, não podendo concordar com
esta, propõe a doutrina da iluminação, que consiste no auxílio
divino que torna compreensíveis as “verdades eternas”.
55 Ibidem, p. 138.
96 Teoria do conhecimento, p. 105.
57 V. nota 36.
59
objeto conhecido, seja por causa da contingência do sujeito que
conhece. Mas como ele não admite a preexistência das almas no
Hiperurânio, não lhe é possível explicar o conhecimento das
verdades eternas pela doutrina da reminiscência como fizera
Platão; recorre, por isso, à doutrina da iluminação.98
60
do pensamento agostiniano a teoria da iluminação e torna-a abso
lutamente sua. A certeza, diz ele, “é em nós uma participação da
luz divina. O humano não pode possuir, por si só, a regra infalível
da verdade, embora a possua em si mesmo, a saber, à luz do inte
lecto agente, do qual procede toda a certeza”.100
Tomás, no entanto, fxel às análises de Aristóteles, afasta-se de
Agostinho quanto à maneira de conceber o modo de iluminação.
Como afirma ele próprio, “se é verdade que nós conhecemos todas
as coisas nas razões eternas, isto não requer nenhuma luz especial
distinta da luz da inteligência” .101 Enquanto para Agostinho a
alma recebe uma luz que a informa extrinsecamente, para Tomás
a alma possui em si mesma a regra infalível da verdade, dando-se
esta intrinsecamente na inteligência humana, que é o fórum apro
priado ao seu conhecimento.
Aquino faz, em relação a Agostinho, o mesmo caminho que
Aristóteles trilhou em relação a Platão. Ele toma o dualismo externo
da tradição platônica assumido por Agostinho e interioriza-o. A ver
dade, que só podia ser encontrada “no mundo das idéias” e alcançada
por intuição intelectual, agora está na mente humana, e pode ser
conhecida pela inteligência, ela própria um dom de Deus.
do tomismo. Uma contribuição tomista para nós é, sem dúvida, sua teolo
gia natural e, principalmente, suas provas teístas amplamente encontradas
no sistema manualista. E até mesmo esse tema acha-se circunscrito na valo
rização da inteligência como instrumento capaz de conhecer a verdade.
100 Régis J olivet, Metafísica, p. 47.
101 Idem, ibidem, p. 47.
61
Essa filosofia, em contraposição à compreensão mítica, que acen
tuava a equivocidade hermenêutica e valorizava a metáfora como
forma adequada às realidades que escapam ao cotidiano, estabe
leceu-se sobre a necessidade de afirmação da univocidade da ver
dade.
O unívoco, porém, só poderia ser afirmado com base numa
fonte fidedigna que transcendesse as realidades culturais (que são
equívocas). Negando dessa forma toda multiplicidade e conside
rando-a apenas sombra de uma realidade fundamental (não-ser),
seria possível afirmar uma proposição de abrangência universal. A
fonte fidedigna que a filosofia grega elaborou para afirmar a
univocidade foi a metafísica.
Isso se explica de forma relativamente simples. N a multipli
cidade, não há um princípio que possa ser usado como instru
mento para afirmar o unívoco. A multiplicidade é geradora de
interpretações: qualquer leitura que se faça dela produzirá
polissemia hermenêutica. A criação da metafísica é, portanto, a
maneira mais adequada de afirmar a univocidade. Fora do espaço
físico, múltiplo na mais singela observação, é possível conceber
uma essência que corresponda às coisas múltiplas e encerre a ver
dade acerca de todas as representações concretas, todos os simula
cros. O discurso que parte da essência é suficiente para expressar
as representações. Nesse sentido, o discurso unívoco de abrangência
universal é plenamente possível.
Não é a metafísica, portanto, que cria a univocidade que possi
bilita a universalização do discurso, mas a necessidade de negar o
múltiplo, embutida na afirmação do unívoco e por ele gerada. É
da insegurança desestabilizadora dos discursos científicos e reli
giosos, que temem a convivência com a multiplicidade de falas
sobre a realidade, que surge a metafísica como forma de sustentar
a univocidade epistemológica, de caráter filosófico ou religioso.
62
O discurso teológico-cristão, sobretudo o de corte dogmático,
trilhou o mesmo caminho da filosofia grega. Nesse sentido, o fórum
autorizado da verdade doutrinária não está na multiplicidade das
interpretações, fruto das múltiplas experiências de fé, que em úl
tima instância são identificadas como “heresias” (palavra religiosa
equivalente à “opinião” ou “crença”), mas numa dimensão que
transcende o entendimento, identificando-se por vezes com o pró
prio Deus. Quem é capaz de dizer a verdade só o pode fazer por
uma assistência direta da Divindade. Seu discurso, então, não é
seu: é apenas a reprodução da fala divina.
E exatamente nesse aspecto que se fundamenta a legitimidade
de um discurso universal sobre qualquer realidade cultural. O dis
curso dito não é de um homem que deseja sobrepor etnocen-
tricamente sua perspectiva em relação a outras, mas é tão-somente
o desvelamento das verdades eternas ditas com base na iluminação
divina. O discurso teológico dogmático cristalizado e potencializado
para além de seu tempo cultural só é possível por meio da metafísica,
que se apresenta como seu elemento sustentador.
Essas primeiras conclusões precisam ainda ser aprofundadas,
propriamente na dimensão do método utilizado pela teologia
dogmática, visto que exatamente nessa instância é que se dá a
possibilidade de sua subsistência.
63
O processo que até aqui se buscou descrever só poderia resul
tar numa perspectiva metodológica: aquela que, partindo “em sua
reflexão desde os princípios universais da fé e por dedução ia ex-
plicando-os, aplicando-os a outras realidades” .103 Trata-se, por
tanto, de um método que parte de cima para baixo, que impõe o
dogma sobre a multiplicidade de situações concretas, sendo, nesse
sentido, apriorístico. As respostas já estão elaboradas, antes mes
mo de as perguntas serem feitas. Reproduz-se dessa forma, na
dimensão metodológica, a superposição da essência sobre a exis
tência concreta.
Esse é o método dedutivo que trabalha “de modo especial,
com o silogismo. Parte de afirmações universais, dos princípios da
fé (maior), estabelece uma afirmação de natureza filosófica (me
nor) e conclui por dedução uma afirmação teológica”.104 Para
exemplificar esse processo, Libânio oferece o seguinte exemplo
acerca da cristologia: “Jesus é verdadeiro homem (maior: afirma
ção de fé de Calcedônia); ora, um verdadeiro homem tem uma
liberdade e consciência humanas (menor: verdade filosófica), logo
Jesus tem uma liberdade e consciência humanas” .105
A utilização do método dedutivo é uma característica da teolo
gia dogmático-sistemática, que alcança na alta escolástica seu ponto
de maior vigor. Suas principais ênfases estão em “sistematizar,
definir, expor e explicar as verdades reveladas”,106 não só visando
a “mostrar o que estava incluído no universo da fé, mas também
a excluir as posições doutrinárias em oposição à fé, condenando
os erros, resolvendo as dificuldades, refutando as falácias dos
64
adversários” .107 Ou, em outras palavras, afirmando a univocidade
da verdade teológica.
Essa abordagem metodológica, com sua forte ênfase apologética
a serviço da ortodoxia, criou um corpo doutrinário, um sistema
totalizador dos temas da fé que, num primeiro momento, possi
bilitou o diálogo da teologia cristã com a cultura à sua volta. Mas
foi lentamente perdendo o impulso, à medida que ia-se tornando
reativa, ou seja, que ia-se limitando à defesa de seus postulados
sem os colocar em contato com novas realidades.
Falando sobre esse momento da teologia com relação ao méto
do dedutivo, ou teologia dedutiva, Libânio prossegue:
107 Ibidem.
108 Introdução..., p. 102-3.
109 No caso da tradição católica, a teologia dedutiva vigorou com muita força e,
mesmo com a hegemonia, até o Concilio Vaticano II, quando se buscou
uma aproximação maior com as realidades concretas trabalhadas no interior
da modernidade. No caso do protestantismo, a história é diferente. A Re
forma, sobretudo em Lutero, buscou questionar o sistema teológico medie
val e seu método grandemente endividado com a metafísica, abrindo espaço
para a subjetividade hermenêutica com o livre exame das Escrituras. Já em
sua segunda geração, porém, a Reforma sofreu um processo de enrijecimento
de sua teologia, resultante do enrijecimento metodológico.
65
Passada a primeira geração do protestantismo, um ensaio de sub
jetividade hermenêutica, instalou-se sobre a ortodoxia protestante a
mesma tendência da teologia medieval, ou seja, a produção de ma
nuais de caráter totalizadores do conjunto dos temas da fé e de ten
dência universalizante. Seguiu-se, portanto, o mesmo caminho de
enrijecimento da pesquisa e distanciamento dos problemas e propo
sições da modernidade, bem como do caráter apologético da teologia
ortodoxa clássica. Acerca desse assunto, Mackintosh comenta:
Ele prossegue:
66
taçao particular das Escrituras e dá própria teologia. Não é ne
cessariamente em defesa das Escrituras, mas de uma interpreta
ção cristalizada de suas palavras, elevadas à condição de verdade
absoluta.
Ademais, a polêmica doutrinai tornou-se em sua marca
registrada, e a atividade apologética, sobretudo em seu caráter
popular, tem conseqüências nefastas para o sentido da verda
de. O que se tem em mente é a obtenção de pólvora e munição
para a controvérsia; o propósito do campeão é destruir seu
adversário mais do que convencê-lo.112
67
reprodutor da teologia dogmática clássica, principalmente as ten
dências totalizadoras e universalizantes, que, em última análise,
estruturam o discurso teológico unívoco.115
68
Essa abordagem metodológica contribuiu e ainda contribui
para a sustentação do discurso unívoco próprio do sistema
manualista (v. Glossário, manualística), à medida que permite sua
reprodução em ambientes cada vez mais afastados da realidade
concreta. Partindo de cima, do universal em direção ao particular,
a teologia sistemática manualista garante a irredutibilidade de
sua fala, bem como sua univocidade.
E o que se pretende trabalhar no próximo capítulo, buscando-
se evidenciar os caminhos que permitiram e ainda permitem a
reprodução desse discurso, bem como sua cristalização e posterior
ascensão ao status de normaprescritiva (v. Glossário).
69
2
Ascensão, potencialização e
evocação: processo de
gestação da univocidade
universalizante
70
mento deie seria o mais insignificante dos conhecimentos: mais
ainda do que deve ser, para o navegante em meio a um perigo
so temporal, o conhecimento da análise química da água.
N ie t z sc h e , Humano, demasiado humano, p. 20.
71
significava um diálogo daquela religião com os valores culturais
que representavam o ethos que a envolvia. No dizer de Tillich, esse
diálogo pressupõe uma “base comum” entre a vivência religiosa
cristã e a cultura que lhe era própria.3
Em segundo lugar, é preciso perceber que essa aproximação,
que no início pode ter significado a valorização da cultura na re
flexão teológica, foi cristalizada, e a experiência religiosa e a cultu
ra foram identificadas como elementos de um mesmo evento, a
Revelação. Isso se deve em grande medida à natureza daquela cul
tura interlocutora da religião cristã, ou seja, era um risco inerente
à aproximação entre o discurso cristão e a metafísica. Aquilo que
poderia ter constituído um caminho dialogai entre fé e cultura
tornou-se a ascensão de “uma cultura” específica como padrão
metodológico de caráter unívoco e de alcance universal.
Nesse sentido, a permanência da metafísica como padrão
metodológico para a teologia sistemático-dogmática negava seu
valor primeiro quando se apresentava como elemento cultural ca
paz de comunicar sentido a homens e mulheres de uma época.
Continuar assumindo a metafísica no discurso teológico é perma
necer afirmando anacronicamente a superioridade de uma cultu
ra em detrimento da nossa, constituída de homens e mulheres
concretos e históricos.
E provável que essa ascensão cristalizadora de “uma cultura”
em detrimento das demais tenha partido de um instrumento
metodológico manipulado tecnicamente por um corpo de espe
cialistas. Esse “corpo de especialistas” pode ser chamado também
72
“sociedade de discurso”, como o identifica Foucault.4 No interior
desse corpo-sociedade, a cristalização/univocização/universalização
é reproduzida com o auxílio direto de seu instrumento meto
dológico.
Com essas primeiras observações, torna-se necessária uma apro
ximação mais criteriosa ao interior do processo dè elaboração da
univocidade universalizante no âmbito do discurso teológico siste-
mático-dogmático. Para tanto, buscar-se-á de início a compreensão
daquilo que seja o núcleo do discurso teológico para, logo após,
observar os mecanismos que promovem sua cristalização.
73
experiência de fé, mediação cultural (v. Glossário) e discurso siste
mático, como se vê neste diagrama:
A experiência de fé e a necessidade/desafio de
cognoscibilizaçao
O primeiro passo constituinte do núcleo da teologia é a ex
periência de fé. Essa experiência, porém, não significa o domí
nio sobre a fé, com o quem conhece algo calcado num a
74
experimentação.7 Fé significa, em vez disso, “estar possuído por
aquilo que nos toca incondicionalmente”/ Essa experiência não se
dá em determinada dimensão da vida, tampouco se oferece a um
ou outro sentido; antes, é “o ato mais íntimo e global do espírito
humano”.9 “Ela ultrapassa cada uma das áreas da vida humana,
ao mesmo tempo que se faz sentir em cada uma delas.”10
Em si, a experiência de fé não significa experiência de conheci
mento, justamente porque isso demandaria a apreensão do co
nhecido. N o caso da experiência de fé, não se apreende um dado
cognoscível, antes se é apreendido nas teias do sagrado.11 Essa
experiência, porém, não é irracional, tampouco respeita os cânones
da racionalidade iluminista, como afirma Tillich:
75
sim, um ato em que se transcendem tanto os elementos racio
nais como não-racionais da vivência humana.12
76
A figura da inquietude do coração, proposta por Tillich, aponta
para a dramaticidade inerente à experiência de fé. H á uma constan
te certeza, eternamente incerta, acerca daquilo (ou daquele?) por
que se é experimentado, uma impossibilidade de fundamentos só
lidos que amparem até mesmo as memórias da experiência de fé.
O chão da experiência de fé é de areia movediça, de brumas
que podem até sugerir alguma segurança para quem observa das
distâncias discursivas da apologética. Para aqueles que se aproxi
mam, porém, restam a inquietude, a tensão entre a alegria pro
funda que seduz ao poço movediço, que não quer cessar de entregar-se
à incerteza, e a necessidade — fruto da consciência histórica — de
mostrar a razoabilidade da experiência, sua possibilidade cognitiva,
sua demonstrabilidade como evento histórico e sua capacidade ra
cional. Essa tensão pode ser resumida no paradoxo formado por ter
de dizer o indizível e comunicar o incomunicável.
Nesse momento, a experiência de fé, que não é apreensão
cognoscível de algo, mas o ser apreendido por algo que não se
oferece à cognição, encontra-se com sua necessidade/desafio de
cognoscibilização (v. Glossário). Antes de discutir o processo de
cognoscibilização da experiência de fé, porém, que seria o segun
do passo do núcleo da teologia, interessa compreender a neces
sidade/desafio que impulsiona essa experiência à cognoscibilização.
Croatto declara: “Mesmo que a finalidade da vivência religiosa
seja transcendente, trata-se de uma experiência humana, própria
do ser humano e condicionada por sua forma de ser e pelo seu
contexto histórico e cultural” .15
N o interior dessa humanidade, surge em primeiro lugar a neces
sidade de comunicar, em signos mais ou menos precisos, a expe
77
riência de fé. Essa necessidade é, antes de tudo, existencial. Antes
de qualquer coisa, ela atende a um anseio profundo de tornar a
experiência minimamente concreta para aquele que a vivenciou.
A necessidade existencial de conduzir a experiência rumo à
cognoscibilização atende, antes de tudo, à dúvida que se apresenta
irmã da própria fé.
Tillich esclarece:
78
cibilizar a experiência de fé. Diferentemente dos discursos unívocos
e apologéticos e mesmo dos documentos escriturísticos, a fé em si
não é “firme fundamento”.19 Ela torna-se fundamento à medida
que aquele que a experimenta reage à sua insegurança, ou mesmo
à inexistência desses fundamentos.
Esse ateísmo de quem crê ganha mais força com o excesso de
consciência histórica, produzido pela tradição iluminista, eviden
ciado sobretudo na literatura e na poesia. Um bom exemplo é o
relato metafórico de Jean-Paul Richter em seu Discurso do Cristo
morto:
19 V. Hb 11.1.
79
chorou da alegria de poder ainda adorar a Deus — e a alegria
e o pranto e a fé nele foram a minha oração.20
80
O desafio de tornar uma experiência subjetiva e individualiza
da como proposta de seguimento coletivo, que a assume como
rito de iniciação, está na origem de praticamente todas as reli
giões. Uma vez que o proselitismo (ou movimento missionário)
não é o nosso foco,24 basta indicar que a inefabilidade da expe
riência de fé encontra, no desafio da verossimilhação (v. Glossário)
valorizada pela reprodução externa dessa experiência, um elemen
to importante no processo de sua cognoscibilização.
Unindo-se as peculiaridades da necessidade e do desafio que se
apresentam à experiência de fé, é possível compreender como essa
experiência indizível se vai transformando em fundamento até
poder apresentar-se como discurso sistemático sobre o sagrado e
suas relações com o mundo. O caminho que nos conduz de um
pólo a outro, porém, precisa ser compreendido, pois é nele que
consiste o locus (v. Glossário) metodológico.
81
o ouçam. Nesse sentido, pode-se ver acabado o processo que cons
titui a fé cognoscibilizada.
Sem a dimensão da mediação cultural, haveria uma polariza
ção entre experiência de fé e discurso sistemático, uma incomu-
nicabilidade que inviabilizaria qualquer discurso minimamente
relevante. Sem mediação cultural, a experiência de fé não trans
mitiria nenhum sentido existencial, e o discurso sistemático não pas
saria de peça literária cristalizada, fria e absolutamente irrelevante,
dada tão-somente à reprodução sistemática de corte apologético.
É nesse sentido que se fundamenta a importância da mediação
cultural. Ela é o locus da produção do conhecimento, ou seja, da
cognoscibilidade. Ela não se encontra fora, não está em nenhum
outro lugar senão no mundo “concreto” da linguagem.
82
“não é uma designação e denominação, não é, tampouco, um sím
bolo espiritual do ser, e sim uma parte real do mesmo”.26
A linguagem que permite a mediação cultural não é outra se
não a nossa — a linguagem dos homens e mulheres de existência
concreta, condutora de suas utopias e, portanto, carregada de his
tórias e ideologias e vazada de esperanças. E por esse instrumento
que, nas características apresentadas, encontra sua concretude, que
a necessidade/desafio da experiência de fé ganha seu corpus dou
trinário.
83
cundária do processo de produção do discurso teológico,29 deve-
se principalmente, no que diz respeito à relevância, apontar para
sua centralidade. Se os elementos concretos — homens e mulhe
res — não forem respeitados e protagonizados, constituindo um
método que contemple essa concretude, o discurso teológico
caracterizado aqui como sistemático não comunicará sentido exis
tencial algum.
É nesse sentido que se funda e sustenta a importância da me
diação cultural. Se ela for considerada em sua centralidade, ou
seja, se no processo de construção do discurso teológico a media
ção cultural for levada a sério (e isso se dá na medida em que se
propõe uma aproximação com os sujeitos históricos, a quem se
dirige esse discurso, para compreender o conjunto de elementos
que compõe seu horizonte existencial e, a partir daí, perceber qual
matriz dessa mediação deve ser instrumentalizada), então o dis
curso teológico mostrará sua relevância.
O grande desafio que se propõe à teologia e ao discurso que a
quer comunicar é o de anunciar a homens e mulheres concretos,
não à humanidade como categoria universal e genérica, aquilo
que se mostra de forma hierofânica e indizível. O desafio não con
siste apenas em comunicar esse fato, o que já seria complexo, mas
comunicá-lo na dimensão do horizonte existencial daquele e da
quela que constituem sujeitos históricos desse processo, dos que
habitam um mundo particular.
M Embora pareça claro que o discurso teológico náo possa prescindir da cultu
ra como instância que promove mediação com base na linguagem (em
determinada linguagem), permitindo assim seus postulados, isso não se
verifica no caso da teologia sistemática manualista. O que se pode perceber
é a cristalização de uma mediação cultural (a metafísica) que impede qual
quer outra. Dessa forma, o arco de elementos que compõe o horizonte
existencial de homens e mulheres concretos não é identificado no interior
desse discurso.
84
Seja qual for a natureza do mundo, o problema essencial
que levanta a relação cognitiva sob o aspecto do objeto conheci
do é o da probabilidade de transcrição cognitiva, da transforma
ção do objeto a conhecer em objeto conhecido. Como é que o
que existe se pode tomar no que é conhecido? Trata-se do pro
blema da expressão — em palavras ou outros elementos cognitivos
— do que é cognoscível ou conhecido. Pretende-se aqui elucidar
a intuição ideal da adequação entre coisas e palavras, intuição
que funda a possibilidade de toda a situação cognitiva.30
85
Tomando rumo semelhante, Libânio aponta para a necessidade
de historicizar a mediação cultural e o método dela derivado:
86
pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado na intimidade
do coração.37
87
Assumimo-las como imagens e não mais como a própria identi
ficação de Deus. Compreendemos que nosso acesso a Deus só
pode ser feito através das imagens. Começamos a saboreá-las
porque estamos livres diante delas. Elas são andaimes, não a
construção, e as acolhemos como andaimes.40
89
O primeiro ele denomina “sedução idealista”45 e afirma que “não
faltaram reconstruções guiadas por teses preconcebidas, cujo sa
bor se pode sentir até em algumas sínteses com forte acento
manualista e dogmático, em que o propósito sistemático prevale
ce sobre a complexidade do dado histórico”.46
O segundo extremo ele identifica como “renúncia positiva”,47
na qual a “historicidade da revelação e de sua transmissão resisti
ria de tal forma a toda interpretação totalizante (v. Glossário, abor
dagem totalizante-universaliante) , que nenhuma reconstrução
interpretativa se veria isenta de riscos ideológicos”.48
Para além desses extremos, Forte propõe outra abordagem, que
ele denomina “narrativo-argumentativa”.49
Ele prossegue:
90
unificantes, capazes de propor horizontes interpretativos não-
coercitivos, aptos a conferir sentido.51
91
A segunda regra determina que as definições dogmáticas “de
vem ser lidas à luz de nossa leitura crítica da escritura” .56 Dessa
forma, o discurso sistemático deve ser submetido ao texto funda
dor da experiência cristã de fé.
Na terceira regra afirma que as definições dogmáticas “devem
ser interpretadas à luz do aspecto de correlação crítica entre a
experiência cristã fundamental e nossas experiências humanas de
hoje”.57 Novas experiências, mediadas por novos signos e símbo
los, devem produzir um novo discurso sistemático. Esse processo,
porém, não se deve dar à revelia da experiência fundadora de fé.
Ele assinala em sua última regra: “Em alguns casos, a reinter-
pretação de um enunciado dogmático pode levar a uma refor
mulação”.58 Vê-se claramente, portanto, a necessidade de indicar
o papel do discurso sistemático no núcleo da teologia, o qual não
pode ser considerado um fim em si mesmo.
Embora tenha sido discutido até aqui o que é o núcleo teológi
co em seus elementos constituintes, é necessário ainda perceber
como foi distorcido na teologia sistemático-dogmática manualista
de tendência universalizante. E, ainda, perceber como a metafísica
contribuiu para esse processo.
92
mente como método perene. Ou seja, importa-nos perceber o
processo de cristalização da mediação cultural e sua potencialização
ao status de norma prescritiva (v. Glossário).
Como discutimos no tópico anterior, a mediação cultural é o
locus metodológico, o espaço próprio para a elaboração de méto
dos que tornem comunicável a experiência de fé no horizonte exis
tencial concreto. O fator determinante, portanto, é o horizonte
existencial onde se dá essa experiência. Ela deve contar com a
mediação cultural mais adequada à tarefa de responder à necessi
dade/desafio derivada de si mesma. É somente nesse sentido que
se legitima a relevância do método.
O método deve estar, portanto, a serviço do discurso teológi
co, para permitir que se realize a cognoscibilização da f é (v. Glossá
rio). Ou seja, que a experiência de fé tenha na mediação cultural
um veículo capaz de se aproximar do horizonte existencial com
pleto de cada comunidade, em qualquer tempo histórico-cultural,
para que o discurso sistemático construído nesse espaço seja rele
vante a essa comunidade.
O que se percebe, portanto, é que o discurso teológico em
geral e o sistemático-dogmático em particular, por vezes, não con
seguem concretizar essa relevância. A respeito da teologia siste
mática, há mesmo um ataque à sua condição estéril e ao seu
caminho meramente reprodutor e apologético. A respeito dessa
esterilidade na periferia do mundo,60 Hebga argumenta:
93
viu-se do aristotelismo. Aos concílios e papas só restava seguir
um caminho totalmente traçado. A fé cristã passaria a expri
mir-se em termos greco-escolásticos fora dos quais sua orto
doxia não é garantida [...] Excluindo-se o bruto do Novo
Testamento, a fé cristã se anuncia obrigatoriamente nos con
ceitos do pensamento ocidental.61
Ele prossegue:
94
sicas,64 em razão do comprometimento destas com o universo
cultural e filosófico europeus.65 Ele conclui qüe “as teologias clás
sicas não são suficientemente abertas para abraçar as nossas pro
blemáticas específicas”.66
Hebga, portanto, considera o discurso teológico clássico67 um
discurso totalizante e universalizante de uma mediação cultural
que, cristalizada, ascende a uma condição supra-histórica da qual
consegue normatizar qualquer outra reflexão teológica. Esse pro
cesso sobrevive porque tal cristalização/ascensão significa a mono-
polização de um método, a qual, por sua vez, significa a negação
da dignidade da cultura do outro — e, por conseguinte, a nega
ção da dignidade do próprio outro, que não consegue enxergar-se
naquele discurso teológico que pretende representá-lo.
Para evidenciar esse processo de cristalização e propor uma
abordagem metodológica capaz de superá-lo, é fundamental
compreender seu mecanismo de afirmação e sobrevivência —
desde seu primeiro passo para desistoricizar a mediação cultu
ral até a implementação de mecanismos de controle do discur
so teológico.
95
e na qual este buscaria a legitimidade, como quem no passado
encontra a razão de sua ação presente.68
A desistoricização consiste em anular a atualização da media
ção cultural, para identificar “aquela” mediação cultural como de
finitiva. Há, portanto, na raiz desse processo, o desejo univocizante
de identificação de um método que permita a proclamação de um
discurso, o qual, por sua vez, possa ser controlado por uma insti
tuição. A desistoricização serve, portanto, à hierarquização
univocizante da fala e, em decorrência disso, do poder que dela
emana.
Esse processo encerra inúmeras dimensões de poder além do
teológico, principalmente porque se identificam, no interior de
uma comunidade, aquelas pessoas, que podem acessar aquele dis
curso sobre aquele Deus. Essa dinâmica pessoa-discurso-Deus,
uma vez acessada, tem como contrapartida uma dinâmica de res
posta Deus-discurso-pessoa. Isso cria uma estrutura necessária que,
por sua vez, estabelece a impossibilidade de qualquer ação autô
noma, tanto na dimensão hermenêutica quanto, posteriormente,
na política.
Nesse sentido, a univocizaçao do discurso teológico exerce um
papel pedagógico num projeto de poder, pois é a dimensão da
experiência de fé que consegue mobilizar as forças mais radicais
do homem e da mulher. Se a univocidade já é afirmada no objeto
dessa experiência, tudo que partir dela também o será.
A contribuição da metafísica para esse processo é enorme, pois
ela, em primeiro lugar, identifica o objeto da experiência de fé,
96
que é Deus, para além de toda multiplicidade, a qual, por sua
vez, é condenada como má. Em segundo lugar, em nome da con
denação da multiplicidade, a metafísica cria uma coisa chamada
“essência”, que se superpõe a toda existência concreta. O Deus
uno e transcendente ilumina algumas pessoas para fazer cumprir
sua vontade circunscrita em seu discurso.
O risco dessa desistoricização é percebido por Cassirer, nos
seguintes termos:
97
me a nadidade humana. Mas conserva, contrariamente ao que diz
Paulo [v. Fp 2.6,7], uma majestática e transcendente divindade” .71
Fazendo um balanço da aproximação da religião cristã com a
cultura helênica, Segundo chega às seguintes conclusões:
98
helênicas”, porém o que se afirma perenemente é a maneira de
compreender a realidade, advinda dessas categorias. A lógica da
metafísica permanece com muito vigor no discurso teológico-
cristao, sobretudo em seu corte sistemático, como percebem
Croatto e Bonino:
99
Após perceber as possíveis conseqüências do processo de
desistoricização do discurso teológico, é necessária uma aproxi
mação mais detida a seu interior, a fim de perceber como efetiva
mente se dá essa desistoricização em suas etapas constituintes, a
saber: ascensão, potencialização e evocação. Para tanto, observe-se
o seguinte diagrama:
A MEDIAÇÃO CULTURAL
100
É exatamente nesse sentido quê Tillich ressalta a importância
da teologia apologética dos primeiros séculos do cristianismo.79
Ela representava precisamente o esforço para dialogar com a cul
tura, para encontrar uma “base comum”80 capaz de tornar com
preensível a mensagem cristã. Ele afirma que “o movimento
apologético pode ser corretamente considerado o nascedouro de
uma teologia cristã mais elaborada” .8'
A forma de compreender a realidade própria da metafísica
transformou-se, no entanto, em impossibilidade de diálogo com
outras culturas. A verdade teológica, na dimensão da mediação
metafísica era exterior aos homens e mulheres e à própria existên
cia concreta: era o resultado de um processo de iluminação. Essa
verdade, uma vez revelada, foi sistematizada, devendo agora ser
aceita sem críticas, em nome da defesa da ortodoxia.
N a dimensão da mediação metafísica, não há espaço para a
multiplicidade, já que ela constitui o não-ser. N o múltiplo,
não há verdade, somente opiniões instauradoras de pluralis
mo, que não combina com o discurso ortodoxo, por ser pró
prio da heresia.
Se a verdade não pode ser encontrada na multiplicidade, que
corresponde à existência concreta, deve ser buscada para além dela,
numa dimensão das essências, onde habitam os conceitos unívocos
capazes de transmitir sentido a todo o múltiplo.
dialético com o cristianismo e a cultura que lhe era própria e a qual queria
alcançar com sua mensagem. Não se critica, portanto, a helenização ou
metafisicização (v. Glossário) da mensagem cristã naquele tempo para aque
la cultura, e sim a cristalização daquela mediação cultural e sua ascensão ao
status de norma prescritiva.
79 V. nota 67.
80 Teologia sistemática, p. 15-6.
81 História do pensamento cristão, p. 44.
101
Esse foi — e ainda é — o risco que correu a teologia na utiliza
ção das mediações culturais, acentuado na teologia dogmática clás
sica na medida em que a metafísica ascendeu de sua condição de
mediação cultural ao status de norma prescritiva. Talvez o proble
ma fundamental desse processo tenha sido a falta de consciência
quanto à limitação e precariedade de uma mediação, que só ofere
ce relevância como elemento lingüístico compartilhado no hori
zonte existencial da comunidade em que se dá esse processo.
Com base na ascensão da metafísica, que privilegia o unívoco
em detrimento do equívoco, como norma prescritiva do discurso
teológico dogmático clássico, a teologia sistemática fundamenta
seu discurso universalizante, num processo dedutivo e univoci
zante. Isso está na própria compreensão do sistema82 como con
junto harmônico e harmonizador dos temas da fé e das experiências
dela decorrentes.
Essa verdade teológica, por não estar na multiplicidade das
culturas, só pode ser expressa numa perspectiva universalizante,
pois não constitui espaços epistemológicos legítimos. Dessa for
ma, dizer univocamente o discurso teológico é uma forma — ou a
forma — de defender a verdade quanto aos temas da fé que cons
tituem basicamente a realidade total. Boff adverte sobre a arbitra
riedade desse processo:
82 V. nota 43.
10 2
mites [...] Deve também estar aberta a acolher outras formas
de sistematizar a fé.83
103
O locutor é quem geralmente manipula o método de acesso ao
discurso: encontra-se no plano espiritual, enquanto o ouvinte está
no plano temporal.
A fala do locutor é revestida de autoridade porque seu discurso
não é seu nem de homens e mulheres históricos e culturais: perten
ce a outro espaço, distante dos horizontes culturais concretos. O
locutor, por assim dizer, é o guardião do método, que não é mais
compreendido como passível de revisão, tampouco de reinvenção.
Ao ouvinte cabe a tarefa de adequar o discurso à sua realidade,
mesmo que isso constitua uma violência. O discurso passa a ser a
distância perene, devendo ser univocamente interpretado e dis
tribuído aos mais distintos ouvintes. Nisso consiste o nivelamento
locutor-ouvinte.
N a perspectiva do alcance, o discurso teológico sistemático
reveste-se de capacidade totalizante e universalizante. Uma vez
que ascendeu e potencializou-se, a mediação cultural produz um
discurso que encerra em si a totalidade das respostas às questões
ligadas à necessidade/desafio inerente à experiência de fé. Todas as
respostas são dadas de forma apriorística e sistematizadas num
manual. Tem-se, então, a teologia sistemática manualista.
Esse manual, que representa um discurso, tem alcance univer
sal.86 Independentemente do horizonte existencial concreto em
que se encontrem os homens e mulheres cristãos, as respostas às
suas questões já estão dadas. Isso ocorre porque a mediação crista
lizada entendia que tais respostas deviam ser dadas com base na
essência das coisas, e não em sua existência concreta.
Após a ascensão e potencialização da mediação cultural, o últi
mo movimento do processo de desistoricização do discurso teoló
104
gico é a evocação. Uma vez elevado à norma prescritiva, o méto
do correspondente à metafísica como mediação cultural é evoca
do, como dito, numa suposta onipotência e onipresença. Ele é
agora supra-histórico, e sua narrativa é, por assim dizer, meta-
histórica.87
N a evocação, dá-se a legitimação das tendências totalizantes e
universalizantes e, sem dúvida, fecha-se o círculo vicioso da
desistoricização do discurso teológico. Esta, por sua vez, altera
fundamentalmente o núcleo da teologia, como se observa neste
diagrama:
NORMA PRESCRITIVA
87 Por meta-histórico queremos dizer “os valores eternos que a história tende a
realizar e que constituíram sua estrutura ou plano providencial que a rege”
(Nicola A bbagnano , Dicionário de filosofia, p. 667).
105
mecanismos que a contemplem como protagonista ou que levem
a sério o imperativo de sua necessidade/desafio.88
Resta, então, perceber os mecanismos de controle desse dis
curso que possibilitam sua manutenção, tanto na dimensão da
academia, supostamente o círculo culto, quanto na catequese e na
liturgia das vivências eclesiásticas.
106
curso interditado). Foucault identifica esse processo no interior
das sociedades e afirma:
107
de.93 O segundo dedica-se a dominar as aparições aleatórias ao
discurso oficial; esse domínio sobre o aleatório ocorre na dimen
são do comentário94 do autor95 e na organização das discipli
nas.96 O terceiro age buscando selecionar os sujeitos que falam
108
nos espaços do ritual,97 na sociedade do discurso,98 na doutrina99
e na apropriação social.100
A teoria de Foucault sobre a análise do discurso é, sem dúvida,
bastante adequada à análise do discurso teológico sistemático.
Pretende-se aqui, no entanto, contribuir com uma análise que
não se limita a Foucault, mas que com base nele dialoga com
outras perspectivas de produção de mecanismos de controle do
discurso sistemático.
Para tanto, é interessante analisar esses mecanismos em três
representações presentes no interior do discurso teológico siste
mático, sobretudo o manualista. A primeira representação é o que
aqui se identifica como “magistério protestante”101 ou, como chama
109
Foucault, “sociedade de discurso” .102 Esse é, possivelmente, um
dos mais potentes mecanismos de controle do discurso, exata
mente porque sua ação se dá, acima de tudo, naqueles que dese
jam estabelecer-se como agentes do discurso teológico.
Reforçar o discurso unívoco, confundido ou afirmado como
ortodoxo, constitui um rito de passagem ao qual todo novo teólo
go deverá submeter-se se quiser ser identificado como tal. Pensan
do nas condições do agente do discurso diante da sociedade de
discurso, Foucault elabora o seguinte diálogo:
110
gistério” não é o somatório dessas pessoas; antes, é a instituição-
guardiã do discurso unívoco. Ao ingressar nele, o agente deve abrir
mão de sua condição concreta e de seu horizonte existencial, para
reproduzir e defender aquela verdade que supostamente emanou
da essência das coisas.
Identificar esse “magistério-sociedade” no interior da teologia
sistemática manualista protestante não é tarefa simples, sobretu
do porque ele não se localiza oficialmente num lugar, a não ser na
dimensão simbólica da linguagem.
Mesmo não havendo uma instituição oficial que controle o
discurso — se houvesse, seria mais fácil um diálogo crítico — ,
existe o mecanismo que opera coercitivamente, afirmando que
“ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” .104
Uma segunda representação dos mecanismos de controle do dis
curso teológico é o que aqui se identifica como “sedução da continui
dade histórica”,105 como afirma Castro: “No ciclo vicioso de leituras
des-historicizantes, a ideologia ressuscita ‘as verdades fundadoras’ toda
vez que uma nova idéia ameaça a explicação até então vigente”.106
A pregação de uma linha histórica ininterrupta das “verdades fun
dadoras” até determinado grupo que a sustenta no presente (ortodo
xia) é, sem dúvida, um elemento importante de coerção no âmbito
da produção do discurso. Quem gostaria ou mesmo ousaria colocar-
se à margem do “discurso original fundador”?107 Castro afirma:
ibidem, p. 37.
104 F oucault , A ordem do discurso,
105 Esse tema é estudado por Foucault como elemento de controle do discurso,
porém é Castro, em A sedução da imaginação terminal, quem identifica seu
uso no discurso teológico, chamando-o “o mito da continuidade histórica”
(p. 53-78).
106 A sedução da imaginação terminal, p. 57.
107 Idem, ibidem, p. 60.
111
A história da igreja se transformou [...] numa determinada
maneira de dispor e expor “a verdade” já adquirida pela teolo
gia (da repetição) sistemática [...] Assim não há espaço para
qualquer análise crítica, existindo tão-somente uma exposição
de dados selecionados, decorrentes de uma configuração já
dada.108
112
O campo discursivo opera-um deslocamento ideológico.
Enquanto em nível do discurso se diz que o passado deve de
terminar o presente, em outro nível, o que fica evidente é que
as determinações ocorrem precisamente de modo inverso. O
presente determina seletivamente a leitura do passado.111
113
Qualquer “summa” teológica consistente, qualquer sistema
teológico reivindica a totalidade, a perfeita organicidade e a
coerência universal. De princípio, deve-se poder dizer algo
sobre o todo e sobre cada parte. Todos seus enunciados devem
ser isentos de contradições e ajustar-se mutuamente. A arqui
tetura deve ser “como saída de uma fundição, inteiriça”.113
E conclui:
114
teses; teses, porém, não colocadas-em discussão, mas sim como
enunciados que postulam ou a concordância ou a rejeição,
nunca um pensamento independente e a responsabilidade pes
soal. Induzem o ouvinte a pensar segundo elas, não segundo
seu pensamento próprio.115
115
último capítulos. O leitor verá que contra toda tendência
totalizadora e universalizante do sistema manualista, é necessária
uma abordagem metodológica que contemple o local, ou seja,
que reabilite a mediação cultural como locus metodológico.
116
3
Afirmação do “local” como
princípio de uma nova
abordagem metodológica
em teologia sistemática
117
de carne e osso: eu, você, meu leitor, aquele outro de mais
além, todos os que pisamos sobre a terra.
Unamuno, D o sentimento trágico da vida , p. 1-2.
118
contemplação acrítica versus imobilizadora. A dimensão coercitiva
do método é claramente identificada na aplicação da lógica cujo
princípio da não-contradição, ou seja, impossibilidade da fala
dissonante, sempre se submeterá ao instrumento do terceiro excluso
(v. Glossário).
Esse método, aqui identificado como dedutivo, resulta da
sublevação da metafísica (v. Glossário) no interior do discurso teo
lógico dogmático-sistemático, gerador da univocização do discurso.
É preciso lembrar, no entanto, que não é a metafísica que gera o
discurso unívoco, mas, sim, o desejo de univocidade — de contro
le do poder da palavra sagrada e de seus efeitos — (v. Glossário),
que encontra nela o melhor instrumento para sua realização. O
que se coloca como pano de fundo desse processo é a luta pela
palavra, isto é, pelo controle de toda palavra, pelo direito de dizê-
la e pela autoridade de declarar sua interdição.
E exatamente esse desejo de domínio da palavra, que pode ser
mais bem realizado em sua dimensão unívoca, que identifica a
ortodoxia religiosa.2 Tanto a ortodoxia clássica quanto sua repre-
119
sentaçao protestante agem nesse sentido. E é a teologia sistemá
tica que se tem apresentado como seu mais forte bastião, agindo
pedagogicamente para afirmar a ortodoxia, numa repetição siste
mática de seus postulados de poder, e para denunciar, num exer
cício apologético, os inimigos da fé.
Nem mesmo toda a crítica da modernidade à instrumen
talização da metafísica, feita pela ortodoxia cristã, foi capaz de
fazer desmoronar essa fortaleza.3 Em grande parte por influência
estadunidense (donde nos chegam praticamente todos os manuais),
a teologia sistemática protestante manualista encontrou novo vi
gor. Os séculos X IX e XX, não coincidentemente com o surgi
corroboram o que até aqui se tem dito: que a ortodoxia, como guardiã do
discurso unívoco, busca no recurso da continuidade histórica (ela não é
nada mais que o desdobramento do texto bíblico) seu ponto de afirmação.
Ela se identifica com o texto bíblico, propondo uma única “verdade teoló
gica” transmitida e conservada ao longo da História. Nesse sentido, ortodo
xia não é um grupo com suas intencionalidades, perspectivas teológicas e
pontos de vista políticos, mas é uma providência divina para a preservação
da sã doutrina. A ortodoxia nega, portanto, toda a dimensão hermenêutica
da teologia e toda possibilidade dissonante de seus postulados, bem como
toda dimensão de precariedade que o discurso teológico traz em si. Como
ponto de afirmação da ortodoxia, está a heresia. Aquela precisa desta para
sua sobrevivência. E preciso encontrar e condenar o diferente para afirmar
o idêntico. Aquilo que a ameaça é também o que a mantém e a faz crescer.
3 Apesar de não termos aqui o objetivo de discutir o declínio da metafísica em
sua identificação com a mensagem cristã, é necessário indicar ao menos
algumas fontes de pesquisa para esse assunto. Entre os clássicos estão: Críti
ca da razão pura, de Kant; A essência do cristianismo, de Feuerbach; Aurora,
de Nietzsche; e, mais recentemente, Pensamentopós-metaflsico, de Habermas.
No campo da teologia, os autores multiplicam-se. Num primeiro momen
to, neólogos como Semeler e, posteriormente, todos os considerados libe
rais. Tanto na pesquisa bíblica, com o método histórico-crítico, quanto na
dimensão dogmática, com o movimento da história do dogma, são inúme
ros os textos e teólogos. No século XX, essa questão toma maior fôlego com
a recepção da morte do Deus metafísico no interior da teologia. Desde
Bonhoeffer até os teólogos radicais estadunidenses, o pranto (ou festa) pela
morte de Deus, todos apontam para a derrocada da metafísica nas ciências
em geral e na teologia em particular.
120
mento do fimdamentalismo, foram bastante fecundos para a afir
mação dessa tendência.4
Nosso desafio consiste na proposição de uma abordagem
metodológica que ofereça condições para uma ruptura com o dis
curso teológico sistemático unívoco da manualística protestante,
principalmente com os resultados dessa univocização, que são suas
tendências totalizadoras e universalizantes (v. Glossário, aborda
gem totalizante-universalizanté) — tudo isso para permitir que o
discurso teológico possa articular sua fala em cooperação com as
realidades locais em sua situação concreta.
Assim, os sujeitos históricos concretos de sociedades e culturas
distintas poderiam ver suas experiências de fé comunicadas nos
signos que lhes são próprios, constituindo discursos mais ou me
nos sistemáticos (abertos à sua condição de precariedade), que não
representariam mais que a organização de suas experiências: nada de
totalização, tampouco de universalização, mas abertura à vivência lo
cal e à concretude das experiências pontuais, das problemáticas
próximas; em suma, do horizonte existencial concreto.
Antes de propormos uma abordagem metodológica que dê
conta disso, vale a pena atentar para o que diz Hans Küng acerca
da teologia dogmático-sistemática e para o que ele sugere. O
autor afirma que “a miséria da teologia dogmática — católica,
ortodoxa e também protestante — é o abismo que a separa da
exegese histórico-crítica”.5 Isso constitui seu caráter reprodutivo,
121
seu afastamento da pesquisa, sua negação da realidade con
creta como protagonista de seu discurso. Ele prossegue:
122
As observações de Küng apontam pâra o distanciamento entre
a teologia sistemática e o mundo que a cerca. Essa é, na verdade,
a área da teologia mais resistente ao advento da crítica, em razão
do processo de cristalização desistoricizante que determinada
mediação cultural sofreu até ser elevada à condição de norma
prescritiva.
Não é possível, portanto, falar de diálogo crítico no interior
desse discurso sem antes questionar profundamente o processo de
cristalização — e não só questioná-lo, mas também propor um
caminho alternativo àquele que se pretende desconstruir. E nesse
sentido que se quer apresentar aqui, em forma de apontamentos,
uma via de acesso ao discurso teológico sistemático sem cair num
sistema — certamente não num sistema totalizador, tampouco
universalizante.
Essa via de acesso constitui um locus (v. Glossário) com o qual
se poderia elaborar uma nova abordagem metodológica aos temas
da fé, segundo o pensamento geertiano acerca do saber local e a
compreensão do existencialismo sobre a situação. O ponto de
partida para a elaboração dessa abordagem metodológica, porém,
é a constatação da morte do Deus metafísico, por Nietzsche.
123
por Kant.10 Essa morte é a morte de uma representação lingüístico-
religiosa sobre a qual se erigiram os cânones da teologia cristã,
sobretudo a dogmática, no decorrer de toda a cristandadè.
Não foi uma morte tranqüila — morrida, como o povo costu
ma dizer — , mas o resultado de uma batalha por autonomia e
afirmação dos sujeitos históricos.11 Essa batalha mortal travada
com o Deus metafísico-platônico transmudado em cristão signi
ficava exatamente a luta pela afirmação dos valores culturais no
interior de um discurso teológico que se vinha distanciando das
realidades concretas.
Referindo-se a essa batalha, Penzo, baseado no pensamento de
Nietzsche, declara: “A polêmica com o cristianismo decadente
revela-se, no fundo, como conseqüência lógica da polêmica com a
concepção platônica, que afirma a distinção entre mundo do ser e
mundo do devir”.12 E ainda: “N a concepção platônico-cristã, o
devir ver-se-ia privado de sua intrínseca perfeição e seria rebaixa
do à condição de realidade imperfeita relativamente à realidade
mítico-metafísica, a que se atribui toda a perfeição”.13
A m orte declarada é, portanto, de um a representação
lingüístico-religiosa de Deus. O discurso teológico, porém, so
bretudo o dogmático, forçou uma tal identificação dessa repre
sentação com o Deus cristão que qualquer ataque àquele recai
124
inevitavelmente sobre este, como observa o importante teólogo
da morte de Deus:
125
A linguagem que, assim como a consciência, resulta de
um aperfeiçoamento da capacidade de comunicação do mua-
do orgânico, vai terminar por se constituir como a negação
do corpo, ou seja, como a negação daquilo que a tornou
possível.15
Alves acrescenta:
126
se torna possível abrir-se à multiplicidade e à concretude da vida,
sem a necessidade de impedir qualquer discurso dissonante, em
nome da preservação de uma verdade ortodoxa supostamente
absoluta, a qual pode voltar-se às comunidades de fé (não como
cristandade ou massa homogênea), tomando os signos que as iden
tificam na comunicação de suas experiências.
127
Assim, a expressão “Deus morreu” significa: O mundo
supra-sensível não tem poder eficiente. Não desperdiça ne
nhuma vida. A Metafísica, ou seja, para Nietzsche, a filosofia
ocidental entendida como platonismo, chegou ao fim.22
128
pompa e circunstância. Eles percebem,-no entanto, que essa re-
presentaçao foi ali colocada pelo próprio discurso que se volta
violentamente (violência apologética — quase um pleonasmo)
contra aquela declaração que reentronizaria o Deus verdadeiro,
como declara Penzo:
129
Lutar hoje contra a sombra do Deus morto constitui uma ta
refa metodológica. Apontar para o processo de putrefação de qual
quer discurso totalizador e universalizante, que impede a afirmação
das culturas locais em nome da preservação de um “corpo”
discursivo que não desfruta nenhuma vitalidade: nisso consiste a
relevância da crítica à teologia sistemática manualista (v. Glossá
rio). N o campo da teologia — protestante, principalmente — , é
ela quem guarda as “cavernas” onde o Deus morto é adorado.
A tendência univocizante e absolutista com referência à verda
de teológica, tão característica da teologia sistemática manualista,
precisa sofrer os efeitos da declaração de Nietzsche, isto é, a da
morte do centro gravitacional de discursos unívocos. Precisa com
preender, mesmo que a “golpes de. martelo”, aquilo que observa
Machado: “A expressão ‘morte de Deus’ é a constatação da ruptu
ra que a modernidade introduz na história da cultura com o desa
parecimento dos valores absolutos, das essências, do fundamento
divino”.29
Para a teologia, a contribuição fundamental do ataque de
Nietzsche à metafísica, em sua representação deificada, sobretudo
em seu corte sistemático, consiste na descredibilização de toda a
abordagem essencialista. Dessa forma, o discurso humano sobre
qualquer realidade, mesmo a divina, deverá assumir sua irredutível
condição existencial. Nenhuma fala pode pretender uma identifi
cação com a realidade que não seja aquela que circunda quem a
propõe. O discurso está condenado aos limites daqueles que o pro
nunciam. Nenhuma força divina potencializa qualquer discurso,
conferindo-lhe alcance universal e uma decorrente univocidade.
Dessa condenação ao concreto, ao culturalmente delimitado,
ao existencialmente vivível, emerge no pensamento de Nietzsche
29 Zaratustra, p. 48.
130
a idéia do “Super-homem”. Mesmo não podendo esgotar aqui o
alcance dessa idéia, interessa a relação desse “Super-homem” com
a realidade concreta que Nietzsche faz representar como a terra e
que aqui se chama “local” ou “situação”.
131
Machado acrescenta: “Super-homem é todo aquele que supera
as oposições terreno-extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma;
é todo aquele que supera a ilusão metafísica do mundo do além e
se volta para a terra, dá valor à terra”.33
Assumir a metáfora de Nietzsche, segundo a qual na morte de
Deus está expressa a morte da metafísica e no surgimento do Super
homem emerge o imperativo da vida concreta, pode levar o dis
curso teológico a trilhar outro caminho que não o da univocidade
essencialista. Assumir que não há um eixo gravitacional sobre o
qual toda realidade deva ser compreendida, mas tantos eixos
quantas forem as realidades localmente situadas, pode permitir a
um discurso teológico que, ao sistematizar uma experiência de fé,
assuma a mediação cultural própria da comunidade na qual se
originou aquela experiência.
Para nós, a contribuição do pensamento de Nietzsche à teo
logia está na libertação da dimensão metafórica do discurso. Não
há mais a obrigação de dizer o unívoco: é possível agora abrir-se
à multiplicidade polissêmica e a toda discursividade teológica equí
voca.
33 Zaratustra, p. 46.
132
É esse rumo que toma o pensamento de Gianni Vattimo, prin
cipalmente em sua obra Depois da cristandadè: por um cristianismo
não religioso,34 Vattimo vê o pensamento de Nietzsche com rela
ção à morte de Deus como uma abertura à possibilidade de crer,
e não como determinação ao ateísmo. Trabalha também o concei
to de libertação da metáfora e de negação das metanarrativas filo
sóficas ou teológicas, apontando dessa forma novas possibilidades
à teologia, principalmente na valorização da encarnação como pon
to de partida.
Com relação à possibilidade de crer, aberta pela declaração de
Nietzsche sobre a morte de Deus, Vattimo começa dizendo:
133
De forma muito simplificada, creio poder dizer que a épo
ca na qual vivemos hoje, e que com justa razão chamamos
pós-moderna, é aquela em que não mais podemos pensar a
realidade como uma estrutura ancorada em um único funda
mento, que a filosofia teria a tarefa de conhecer e a religião,
talvez, a de adorar.36
134
da verdade não é válida apenas'para a teologia e a religião,
mas, igualmente, para grande parte das ciências hoje.38
135
mesmo tempo, perceber os limites que determinado sistema possui?
Como lidar com os temas da fé na tarefa de reistoricizá-los e, por
assim dizer, destroná-los de sua condição unívoca? Como conjugar a
universalidade dos temas da fé com as questões até aqui expostas?
Quem sabe seja essa a encruzilhada em que nos encontramos.
Aceitando a universalidade dos temas da fé, como nao aceitar a
universalidade do discurso? Esse não é realmente um problema,
já que se consegue perceber que a universalidade dos temas não
corresponde necessariamente à universalidade do discurso. Os
temas não se dão unicamente a uma perspectiva discursiva, em
bora a ortodoxia o queira, mas eles estão abertos à dinâmica
hermenêutica das comunidades que os acolhem.
Refletindo o pensamento de Nieízsche, Foucault declara:
136
Pois bem, hoje parece que um-dos principais efeitos filosó
ficos da morte do Deus metafísico e do descrédito geral ou
quase, em que caiu todo o tipo de fundamento filosófico, foi
justamente o de ter criado um terreno fértil para uma possibi
lidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade
retorna [...] por meio da libertação da metáfora. É um pouco
como se, no final, Nietzsche tivesse razão ao preconizar a cria
ção de muitos novos deuses: na Babel do pluralismo de fins da
modernidade e do fim das metanarrativas, se multiplicam as
narrativas sem um centro ou uma hierarquia.39
137
priada”, as metáforas dos dominadores, fazendo com que as
outras linguagens sejam degradadas à condição de puras lin
guagens metafóricas, ao campo poético.40
138
santem ente...” .41 Os gritos do louco diziam que a metáfora
literalizada havia morrido. Ele não parou de gritar até morrer.
Morreu louco, mas sua mensagem ecoou, e outros o ouviram, até
que se pôde compreender que aquilo que o louco dissera não era
loucura e que sua mensagem tinha um poder fantástico: o de
libertar as metáforas da condição de menor valor a elàs imposta.
139
eurocêntricas, no caso das igrejas cristãs exige o abandono dos
comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão de levar
ao mundo pagão a verdade única. O reconhecimento da ver
dade das outras religiões [...] requer um esforço intensificado
para desenvolver a leitura espiritual da Bíblia e também de
tantos dogmas da tradição eclesiástica, de maneira que se pos
sa colocar em evidência o cerne da revelação ou seja, a carida
de, mesmo à custa, obviamente, do enfraquecimento das
pretensões de validade literal dos textos e de peremptoriedade
do ensinamento dogmático das igrejas.43
140
teologia sistemática manualista. Para isso, propõe-se aqui a con
tribuição da antropologia de Geertz, naquilo que ele denomina
“saber local”. O que se pretende com isso é o restabelecimento
das culturas e dos saberes locais como locus metodológico.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
141
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos vinte e sete anos
plantavam e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.44
142
Nessa proposta metafórica de reistoricização, o poeta consegue
estabelecer a crítica, sem se distanciar, contudo, do saber de seu
objeto imediato. Ele percorre os caminhos e descaminhos dos ele
mentos, restituindo a importância devida a cada um de seus su
jeitos e, de alguma forma, denunciando toda apropriação indébita,
fruto de cristalizações ou de retenção de prestígios. Dessa forma,
destrói toda impressão de que “o açúcar tenha surgido dentro do
açucareiro”.
Nesse sentido, é possível perceber a importância de tomar o
discurso teológico com todo seu trato estético e cristalizado e
reistoricizá-lo. Entendendo seus caminhos e descaminhos, conhe
cendo suas personagens e reconhecendo-as em sua condição de
sujeitos históricos — sem perder o sabor da teologia e sua rele
vância, mesmo que limitada para o mundo — não como categoria
universal, mas como horizonte existencial de sentido.
A reistoricização do discurso teológico reabilita a mediação
cultural. Quando se desmascara toda pretensão de identificação
de um discurso com a totalidade do real — esse o princípio gera
dor da univocidade — , restaura-se a centralidade da mediação
cultural no processo de comunicação da experiência de fé.
A reabilitação da mediação cultural corresponde à necessidade
de ruptura com os mecanismos de controle do discurso teológico,
tão presentes no sistema manualista, sobretudo com aquele iden
tificado como sedução da continuidade histórica.
O discurso sistemático não é a continuidade ininterrupta dos
textos originários desta ou daquela religião. Ele é o resultado da
história dos efeitos de um longo processo hermenêutico.46 O re
curso de recuar até as origens é um instrumento de legitimação
143
de determinado grupo que controla o discurso. N o cristianismo,
esse grupo é identificado como ortodoxia. Bloch, porém, afirma:
144
com datas histórico-sociais vencidas. Tudo isso em nome da preser
vação de um suposto discurso original. O quê não se percebe é que
a originalidade de um discurso encerra quando se esgotam os ele
mentos que permitem sua compreensibilidade — não somente in
telectual, mas também afetiva, existencial e espiritual.
Somente na renúncia a todo apriorismo axiomático é que se
pode pensar na superação dessa perspectiva harmonizadora,
desistoricizadora e univocizante. Pois é exatamente essa perspecti
va que tem lançado a teologia sistemática no mais alto descrédito,
como diz Aulen:
145
presta-se ao papel de aparelho ideológico dessa tentativa de
superposicionamento cultural. Resta dizer não a qualquer tenta
tiva dessa natureza e repetir as palavras de Unamuno:
146
tra que pretenda o caminho inverso (dos particulares para os uni
versais), visto que também acabará por submeter os particulares a
compreensões universais apriorísticas e axiomáticas.
Essa tarefa deve ser realizada em sua inalienável condição hu
mana e, portanto, delimitada e concreta, excetuando a dimensão
da experiência de fé, que, embora seja também uma experiência
só realizável na radicalidade da existência humana, deve ser enca
rada em sua dimensão fenomenológica. Todos os outros elemen
tos do evento nuclear da teologia são fundamentalmente humanos
e devem ser tratados como tais.
Ainda não é suficiente, porém, falar sobre a humanidade desse
processo, pois por humanidade entende-se uma categoria universal
que não permite a visualização de rostos, histórias, lutas, de jogos e
prazeres, que não se devem ausentar da produção do discurso teoló
gico em nenhum momento, tampouco da fase de sistematização.
Nisso consiste a importância de reabilitar a mediação cultural
como locus metodológico. Só à medida que a mediação cultural
— mas não outra senão aquela mais próxima, situada, local — for
reistoricizada e reconduzida a seu papel de dar concretude à expe
riência de fé é que o discurso sistemático revelará em suas entra
nhas o horizonte existencial da comunidade à qual se dirige.
Para a realização dessa perspectiva metodológica, que acolhe a
limitação do discurso teológico como uma de suas maiores quali
dades, é necessário ainda um aporte teórico que corresponda ao
pano de fundo já estabelecido: a antropologia de Geertz, princi
palmente em seu capítulo sobre o saber local.
147
geral” a respeito de qualquer coisa social soa cada vez mais
vazia, e aquele que professa ter tal teoria é considerado mega
lomaníaco. Suponho ser discutível se isso acontece porque ainda
é muito cedo para se ter esperanças de uma ciência unificada,
ou porque é tarde demais para acreditar nela. Nunca, porém,
esta ciência única pareceu tão distante, mais difícil de imagi
nar, ou menos desejável do que agora.50
148
É preciso abrir mão de teorias gerais, de tentativas de dizer
tudo sobre o todo. Não é na explicação do todo que o discurso
teológico encontrará sua relevância, mas na auscultação detida
das partes. Se a teologia chegar a sistematizar o todo (tarefa sem
pre suscetível à manipulação e arrogância), deverá ser em virtude
da soma das falas de suas partes. Em suma, é preciso renunciar ao
encanto pretensioso do controle de um saber universalizante. Isso
demanda uma desestabilização metodológica, uma desconstrução
de paradigma, como diz Geertz:
149
outro, desconhecido. E é exatamente isto: assumir a tarefa teo
lógica na dimensão sistemática ou qualquer outra em sua condi
ção de imprevisibilidade, em sua abertura para o vivido muito
mais que para o imaginado. Nisso consiste a superação de um
saber teológico desencarnado. O s mapas e as bússolas levam às
mesmas regiões geográficas, tanto do passado quanto do presen
te (o sul de ontem é o mesmo de hoje), embora isso não signifi
que ir às mesmas pessoas.
Ao ter de reinventar os instrumentos de sistematização das ex
periências de fé, a teologia sistemática aproxima-se da teologia
prática. Essa mútua iluminação significa assumir o protagonismo
dos atores sociais locais, porque é na trajetória desses que o evento
teológico original53 se atualiza. Afirma Pegoraro:
150
Afirmar, porém, que não há um modelo predeterminado de
aproximação das experiências de fé peculiares as comunidades re
ligiosas, no intuito de constituí-las discurso sistemático, não sig
nifica dizer que não haja critérios metodológicos de aproximação
a tal fenômeno ou que estes não sejam válidos.
Os instrumentos de aproximação que constituem a aborda
gem metodológica são necessários até mesmo para identificá-la
em sua peculiaridade. Nesse sentido, é preciso indicar quais ins
trumentos de aproximação compõem a abordagem que temos pro
posto. Nisso consistem as contribuições da antropologia de Geertz.
São dois os instrumentos que de forma complementar agem
aqui no intuito de possibilitar uma nova perspectiva discursiva à
teologia sistemática. O primeiro Geertz denomina “saber local”.
Este opera com a função de impor limites, ou seja, delimitar o
alcance dos postulados teológicos, assim como do discurso que se
possa emitir com base neles. O segundo Geertz chama “investiga
ção do ponto de vista dos nativos”. Este faz perceber o necessário
protagonismo dos sujeitos históricos situados em determinado
local.
Na perspectiva de um “saber local”, Geertz indica a irrelevân
cia de uma abordagem que parta dos universais, de categorias
generalizadoras. Ele se expressa nos seguintes termos:
151
xo de Édipo, a necessidade funcional de as psiques e socieda
des terem costumes ligados ao luto...), eles são infundados.56
152
O título dessa discussão parece'presumir que a existência
de limites é um argumento contrário a alguma coisa. (Por que
não é ela chamada “o saber universal e seus limites”? Possivel
mente porque fazê-lo levantaria a possibilidade de que, sendo
universal, ele não tivesse nenhuma e, portanto, não fosse um
saber). Para minha mente limitada, o reconhecimento direto e
franco dos limites — um dado observador, num certo momen
to e num dado lugar — é uma das coisas que mais recomen
dam todo esse estilo de realizar pesquisas. O reconhecimento
de que todos somos o que Renato Rosalvo chamou de “obser
vadores posicionados (ou situados)”.58
153
Voltar-se para determinada situação existencial concreta, aus
cultar a realidade de homens e mulheres situados e aproximar-se
das comunidades de fé para fenomenologicamente ouvir suas
experiências com o sagrado: nisso consiste privilegiar os “dados
circunstanciados”. Geertz afirma:
154
na, e, como qualquer movimento, precisa de realizações, não de
máximas para sustentá-lo”.62
155
cias de fé. É a aceitação da legitimidade do múltiplo. Ou, por
via negativa, é a renúncia a toda discursividade unívoca e
univocizante.
A investigação “do ponto de vista do nativo” é realizada por
Geertz baseada na influência do pensamento do psicanalista Heinz
Kohut, que propõe os conceitos de experiência-próxima e experiên-
cia-distante.65 Geertz toma essa contribuição como uma espécie
de tipologia que revela atitudes de investigação.
15 6
física. Experiência-próxima e experiêncià-distante são determina
ções epistemológicas que, se conjuntamente trabalhadas, garantem
tanto o rigor acadêmico do discurso teológico quanto sua relevância
histórica, religiosa, política, cultural e espiritual — não para a hu
manidade, mas para homens e mulheres situados no mundo.
Privilegiar a experiência-próxima, mesmo sem abrir mão dos
rigores críticos que algum distanciamento oferece, é investigar o
fenômeno religioso presente na experiência de fé, levando-se em
consideração prioritariamente o “olhar do nativo”, daquele que
empresta ao fenômeno religioso a carne simbólica da linguagem,
para que este ganhe cognoscibilidade.
157
rente de suas experiências, e a ilusão posterior de que, de alguma
forma, o fizemos” .68
Dessa forma, estar-se-ia rompendo definitivamente com a pers
pectiva teológica do sistema manualista, que, graças à cristaliza
ção da metafísica e de sua ascensão a norma prescritiva, formata
toda discursividade com base num único padrão afirmado como
ortodoxo, ou seja, como verdade teológica. Quando se encara o
outro como protagonista de sua história e de todas as experiências
que a compõem, o que pode acontecer é o que Geertz registra:
158
articulações mais recentes, e o impacto'que esse fato causa sobre
o núcleo da teologia, que desenvolvemos os argumentos prece
dentes.
Os indícios do atentado à vida da teologia estão por toda par
te: desde a “experiência de fé” agonizante, que se vê substituída
por um modelo doutrinário que tenta regular sua intrínseca sub
jetividade, passando pela “mediação cultural”, que a partir de um
processo de desistoricização (v. Glossário) foi relegada à identifica
ção com um cadáver mumificado detentor das chaves do sentido,
até o “discurso sistemático” que, desviado de sua condição de
construto social, observa seu definhamento profundo e contí
nuo, transmudado na tentativa apologética de encontrar o elixir
da vida.
159
N o diálogo entre Severino e a mulher da janela, que mais
tarde descobre ser rezadeira, desvenda-se um paradoxo do ser
tão, lugar das experiências profundas da vida.70 A sobrevivência
que se afirma como “sobremorrência”, ou seja, a sobrevivência
com a morte, ou melhor, da cultura da morte (e por que não da
morte da cultura?).
— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como a senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que lhe volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezado ra titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
160
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?
— Como aqui a morte é tanta
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa no mar,
retirantes às avessas,
sabem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.71
162
discurso unívoco mantido por uma'prática apologética. Antes,
integra-se ao devir, à concretude do mundo, no sentido de “virar
a velha sentença doutrinai em sentença nova e contrária: ‘Extra
mundum nulla salus, fora do mundo não há salvação”.72
Dinamizado pelo sopro de vida contido no último suspiro do
Deus morto, o discurso sistemático pode-se aproximar do evento
teológico nuclear com uma nova postura.
MEDIAÇÃO
CULTURAL
163
Essa aproximação, por sua vez, aponta para um saber teológico
encarnado. Encarnação que acontece na aceitação radical da pró
pria cultura como elemento mediador de todo o saber teológico.
Isso consiste em abrir mão de toda universalização de um local
em nome da universalização do “local” como espaço hermenêutico
gerador de saberes. É lançar fora a univocidade sustentadora de
projetos de domínio, em nome do acolhimento do falar metafóri
co que permite a identificação do eu existencial naquele discurso
que se dirige a ele, como diz Hick:
164
O discurso resultante da aproximação fenomenológica à expe
riência de fé geradora de um saber encarnado só pode ser
polissêmico. Busca trabalhar o conjunto das experiências religio
sas de determinada comunidade de fé em sistemas que compre
endem sua limitação e incompletude.
Esse discurso sistemático polissêmico ocupa um lugar impor
tante somente na medida em que retroalimenta uma postura
fenomenológica e encarnacional, com respeito à experiência de fé
e à mediação cultural.
O acento da perspectiva metodológica que propomos não re
cai, portanto, sobre o discurso sistemático, como pretende a pers
pectiva univocizante, e sim sobre o processo de vivência da fé no
interior das culturas, pois é esse processo que possibilita a atuali
zação do evento originante da fé, e não o discurso cristalizado,
como pretende a ortodoxia.
Os critérios gerais adequados à nova abordagem metodológica
aqui proposta são aqueles oferecidos pela antropologia de Geertz:
“saber local” e investigação “do ponto de vista do nativo”, que
agindo de forma complementar garantem, do ponto de vista teó
rico, a autonomia das comunidades locais diante da tarefa de sis
tematizar suas experiências religiosas.
Em suma, o método proposto não garante nenhum postulado
teológico, nenhuma definição quanto aos temas da fé, nenhum
esquema apriorístico ou axiomático, mas simplesmente ferramen
tas que permitam à própria comunidade de fé falar sobre suas
experiências, sem ter de se dobrar a normas prescritivas nem a
definições teológicas (preconcebidas em algum momento históri-
co-cultural) que se queiram universais.
165
4
Conclusão
166
do conhecimento, que deu suporte à teologia cristã em suas pri
meiras elaborações.
Esse esforço levou-nos à constatação de um processo de suble-
vação da metafísica no horizonte teológico cristão. Ou seja, foi na
metafísica que a tendência univocizante da teologia dogmática,
guardada pela ortodoxia, encontrou seu melhor instrumento teó
rico.
Temos como hipótese que essa sublevação ocorreu em detri
mento da metáfora, que consistia no veículo lingüístico ampla
mente utilizado e mais adequado, como apontado neste texto,
no âmbito da comunicação das experiências e dos temas da fé na
comunidade cristã pré-filosófica (no que se refere à filosofia pla
tônica).
Com isso queremos dizer que a teoria do conhecimento grada-
tivamente foi negando a legitimidade da multiplicidade e aproxi-
mando-se da univocidade. Isso é o mesmo que dizer que ela foi
afastando-se da metáfora e aproximando-se da metafísica.
Para evidenciar essa hipótese, tentamos refazer o caminho da
univocidade na filosofia grega, ou seja, o surgimento da metafísica,
para então propor que a teologia cristã teria percorrido caminho
semelhante.
No caso da filosofia grega, a sublevação da metafísica surgiu
como opção à univocidade, como abandono e negação de toda
crença e opinião (toda multiplicidade), em nome da ciência, da
episteme (do unívoco). Essa opção é tipificada no confronto do
pensamento de Parmênides e no de Heráclito e na eleição do pri
meiro.
A escolha da negação da multiplicidade significa abandonar
a possibilidade de qualquer teoria do conhecimento com base
na concretude da vida, da existência ordinária, do real circuns
167
crito na materialidade. Em outras palavras, a existência concreta
não pode oferecer ao pensamento filosófico mais que engano e
confusão.
O caminho proposto por Parmênides foi consagrando-se à
medida que foi sendo assumido pelas duas principais escolas da
filosofia grega clássica. A metafísica, característica fundamental
do pensamento de Parmênides, foi assumida e radicalizada tanto
por Platão quanto por Aristóteles. Foi o primeiro, contudo, quem
deu a ela os primeiros contornos, que seriam acolhidos pela teolo
gia crista em sua trajetória rumo à ortodoxia e seus dogmas.
Esse mesmo caminho (da metáfora à metafísica) foi percorrido
pela teologia cristã, tornando-se o caminho da afirmação da
univocidade no interior de sua linguagem. Mesmo tendo nascido
(e isso boa parte da linguagem do N T revela) num ambiente de
uma linguagem plural, a teologia rapidamente se dirigiu à nega
ção de sua legitimidade.
Essa negação, marcada por violentos esforços apologéticos,
encontrou no sistema filosófico platônico os elementos teóricos
adequados a seu intento: excluir a multiplicidade e instaurar a
univocidade.
A aproximação do pensamento cristão à filosofia grega é carac
terizada por figuras importantes do cristianismo como Justino
Mártir, Clemente de Alexandria e Orígenes, mas principalmente
Agostinho e, em alguma medida, Tomás de Aquino.
Instrumentalizada por esses ícones do pensamento cristão, a
filosofia grega, mais especificamente a metafísica platônica, tor
nou-se o melhor sustentador da univocidade. Prática essa que se
solidificou porque constituiu um método de produção de conhe
cimento teológico, principalmente para a teologia dogmático-
sistemática.
168
O segundo passo, após buscar a gênese do discurso univocizante
praticado pela teologia sistemática, procurou evidenciar seus me
canismos de perpetuação e os danos causados à relação da teo
logia com as comunidades de fé. Chamamos a isso “processo de
elaboração da univocidade universalizante”. Esse processo opera
com o propósito de cristalizar uma perspectiva metodológica, iden
tificando-a como norma prescritiva, supra-histórica e totalizadora.
Para mostrar como funciona, buscamos desenvolver um concei
to que permitisse falar de um núcleo ou evento nuclear comum a
toda a teologia, denominado “fé cognoscibilizada”, composta de
três elementos que, juntos, a perfazem: experiência de fé, media
ção cultural e discurso sistemático.
Esse núcleo da teologia é que garante, se observado, sua rele
vância diante das comunidades de fé. O discurso univocizante
impede esse evento nuclear da teologia. Isso se dá quando o dis
curso cristaliza uma mediação cultural, que é o espaço metodoló
gico, elevando-a ao status de norma prescritiva.
Ferindo de morte a mediação cultural, estanca-se a circularidade
do núcleo, concentrando toda a força no discurso sistemático que,
de simples construto, passa a ser discurso ortodoxo, devendo ser
dito de forma unívoca. N a medida em que o discurso sistemático
é supervalorizado, a mediação cultural perde espaço teológico;
dessa forma a experiência de fé distancia-se das realidades concre
tas. O resultado é que as experiências de fé passem a acontecer
distantes da história “real” das pessoas e das sociedades.
O processo implica uma desistoricização da produção teológi
ca, isto é, um distanciamento entre os postulados teológicos e as
comunidades para os quais eles são dirigidos. À medida que se
afasta da existência concreta, o discurso sistemático manualista
encontra-se ainda mais à vontade para propor postulados que
169
aprofundam as marcas de sua tendência totalizadora e univer-
salizante.
Essa tendência é fortalecida quando surge uma série de meca
nismos de controle sobre qualquer discurso que destoe da ten
dência unívoca. Tais mecanismos agem para seduzir teólogos e a
comunidade de fé com vistas à simples reprodução sistemática de
um discurso também sistemático e fora dos limites da experiência
histórica.
O primeiro e o segundo passos perfizeram o movimento que
vai da metáfora à metafísica. O terceiro aponta para a necessidade
de trilhar o caminho da metafísica à metáfora e oferece os instru
mentos teóricos para tal empreendimento.
Tanto o conceito de metafísica quanto o de metáfora podem
ser tomados aqui como metáforas, ou seja, imagens com as quais
se pôde questionar o papel da linguagem quando aplicada ao dis
curso teológico sistemático.
Para efetivar nossa proposta, buscamos restabelecer o espaço
da mediação cultural como locus metodológico. Nesse sentido,
buscamos afirmar o “local” com o princípio de uma nova abor
dagem metodológica ao discurso teológico sistemático. Para isso,
foi estabelecido um pano de fundo teórico que possibilitasse a
valorização da multiplicidade e de possíveis afirmações dos sa-
beres locais.
Tomando-se como ponto de partida a morte de Deus, via
Nietzsche, pudemos afirmar a libertação da metáfora, cuja lápide
se identificava como ortodoxia.
A libertação da metáfora proposta por Vattimo, sobre a leitura
de Nietzsche, fundamentou a proposta da afirmação do “local”
como espaço legítimo do discurso teológico. A univocidade, por
isso, deveria ceder espaço à polissemia discursiva que melhor cor
responde à multiplicidade cultural.
170
Esse caminho possibilita a reabilitação da mediação cultural
que provoca a reistoricização do discurso’teológico. Os elementos
lingüísticos que comunicam sob forma de discurso sistemático a
experiência de fé devem ser próprios da comunidade que a experi
menta.
Sobre o pano de fundo da morte de Deus e da libertação da
metáfora, fixaram-se as contribuições do antropólogo Clifford
Geertz para se desenvolverem os elementos necessários à nossa
abordagem metodológica.
Esses elementos — “saber local” e “investigação do ponto de
vista do nativo” — foram tomados para afirmar uma abordagem
metodológica que inicia sua trajetória confessando sua limitação
— não por ausência de rigor científico, mas por força de sua con
dição genética.
Ela nasce para afirmar o local, não o universal; o polissêmico,
não o unívoco; o múltiplo, não o ortodoxo. Assim, nossa proposta
é a de que, na fragilidade discursiva consciente, a teologia pode
encontrar sua relevância.
O leitor observará que ao longo da produção deste texto, al
guns elementos se mostraram deficitários, ou por impossibili
dade de aprofundamento em alguns momentos, ou por nossa
limitação. Alguns desses elementos merecem ser mencionados.
O primeiro deles foi a pouca atenção dispensada a Aristóteles e
a Tomás de Aquino, uma vez que nos detivemos na matriz filosó
fica que mais influenciou o pensamento cristão dos primeiros sé
culos e do protestantismo.
O segundo elemento é a heterodoxia com que se tratou a orto
doxia. Está claro para nós que a leitura da ortodoxia aqui feita não
é a corrente. Isso não se deu desavisadamente, mas de forma cons
ciente e proposital.
171
O terceiro — mas certamente não o último — é a escolha
proposital pela falta de precisão ao se propor uma abordagem
metodológica: propor um método acabado e formatador parece
ria uma total incoerência.
O mais adequado seria propor linhas gerais que possibilitas
sem o respeito à autonomia das culturas locais no processo de
produção teológica. Isso, no entanto, pode ter limitado a efetivação
desse tópico.
Outro motivo dessa falta de precisão está em não considerar
mos o tema suficientemente esgotado. Isso significa sugerir outro
tema, quem sabe o desdobramento deste, a ser explorado.
Faltam ainda a) uma discussão no campo da teologia das reli
giões de caráter macroecumênico que possa abordar a discursividade
teológica com base na identidade cultural de cada credo religioso
em sua decorrente multiplicidade e b) uma melhor compreensão
da ortodoxia cristã, e de outras matrizes religiosas, sobre uma aná
lise de discurso que tenha na morte de Deus seu único eixo gravi-
tacional.
Embora consciente das limitações apresentadas, julgamos ter
contribuído para uma abordagem metodológica e, o mais impor
tante, para que a teologia, sobretudo em seu corte sistemático,
encontre, de forma respeitosa nas comunidades locais e nos espa
ços do cotidiano, os elementos adequados à sua elaboração
discursiva.
172
Glossário
Abordagem totalizante-universalizante.
Esta abordagem caracteriza-se pela tentativa de produzir uma ex
plicação sobre determinado objeto, que ao mesmo tempo dê
conta de sua totalidade (o objeto em todas as suas variáveis) e
de sua extensão (a explicação sobre o objeto com validade em
qualquer tempo e lugar). Essa abordagem encontra-se bastan
te relacionada com o método dedutivo que, percorrendo o ca
minho do universal ao particular, privilegia sempre discursos
mais teóricos e abstratos.
Para aprofundar: L ib â n io , J.B . Introdução à teologia, Loyola.
R o ld án , A.E Para que serve a teologia, Descoberta.
Cognoscibilização da fé.
Neologismo de que fizemos uso para identificar o que chamamos
como núcleo da fé. N o núcleo da fé há um movimento para
tornar a experiência de fé comunicável numa determinada lin
guagem; a esse processo chamamos cognoscibilização da fé.
Equivocidade.
A expressão equivocidade evoca o termo equívoco. Uma distinção
importante deve ser feita. Tomamos a expressão aqui não em
seu sentido de dicionário, em que equívoco é sinônimo de erro,
mas na perspectiva da filosofia da linguagem, na qual equívoco
está em contraposição direta a unívoco (v. univocidade).
173
Equivocidade é, portanto, a condição da linguagem em que
um nome pode evocar várias interpretações, sem estar subor
dinado a um conceito fechado. Um termo compreendido em
sua equivocidade é um signo do qual podem partir muitos
conceitos.
Para aprofundar: Abbagnano, N . Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. R ic o e u r . P. A metáfora viva, Loyola. E v a n s , C. S. Dicio
nário de apologética e filosofia da religião, Vida.
Desistoricizaçao.
Processo de desistoricizar. Negação da dimensão histórica de
determinada coisa ou evento. N o caso da teologia, essa abor
dagem não leva em consideração a dimensão histórica de de
terminados dogmas ou opiniões de fé, bem como sua incidência
sobre o discurso teológico.
Para aprofundar: Küng, H . Teologia a caminho, Paulinas.
Existência entificada.
Processo que submete a existência concreta a uma substância/es
sência fora m esm o da existência. Tendência ligada ao
essencialismo no qual o fundamento da existência humana não
está nela mesma, mas numa realidade que a supera.
Para aprofundar: A bbagnano , N . Introdução ao existencialismo,
Martins Fontes. A b b a g n a n o , N . Dicionário defilosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia, Herder.
Inculturação.
Conceito relacionado à cultura. Relação de influência que uma
cultura estabelece com outra para colocar numa o que é da
outra. Quando está relacionado com a teologia, fala-se de incul
turação da fé. Nesse sentido trata-se da aproximação, da utili
174
zação e da influência mútuas que o cristianismo trava no en
contro com uma cultura não marcada por determinado con
junto de valores.
Para aprofundar: M ir a n d a , M .F . Inculturação da fé, Loyola.
L i t e r a l iz a ç ã o .
Locus.
Locus (latim) significa lugar. N o âmbito do nosso trabalho, a
expressão é utilizada em sua acepção teológico-técnica. Dessa
forma, locus é o lugar original e originante do discurso teológi
co. Significa dizer que locus é o lugar/o ponto de onde parti
mos para falarmos da fé. N o escopo desta obra a discussão está
em se o locus teológico mais adequado é o universal ou local/
particular.
Para aprofundar: B o ff, C. Teoria do método teológico,V o z e s .
L ib â n io , J.B. Introdução à teologia, L o y o la .
M a n u a lístic a .
175
outras palavras, trata-se de uma tendência metodológica da
teologia sistemática em depender dos manuais. Um exemplo
típico dessa abordagem está nos manuais de teologia sistemá
tica, escritos em determinado lugar e tempo, que acabam por
ser evocados como autoridade nos mais distintos lugares, in
dependentemente da cultura específica de cada um deles.
Mediação.
Elemento originante do núcleo da teologia (v. cognoscibilização da
fé). Mediação cultural é o aporte teórico utilizado para se co
municar determinada experiência (de fé, em nosso caso) em
determinado lugar e tempo. É o instrumental lingüístico e
cultural que permite tornar compreensível a comunicação de
uma mensagem. A teologia tem-se valido de inúmeras media
ções culturais ao longo de sua história. Durante muitos sécu
los ela utilizou a filosofia grega clássica. Desde o século XIX,
outras ciências têm servido — dialogicamente — de mediado
ras do seu discurso.
Para aprofundar: A n d r a d e , P.EC. Fé e eficácia, Loyola. B o ff, C.
Teoria do método teológico, Vozes. G o n zá les, J. L. Introdução à
teologia cristã, Academia Cristã. H e ig t h , R. Dinâmica da teo
logia, Paulinas. R o ldán, A. F. Para que serve a teologia, Desco
berta.
Mediação cultural.
V. mediação.
Metafisicização.
Neologismo referente à metafísica. Fixação de determinado discurso
nas estruturas teóricas da metafísica. Identificação da mensagem
cristã com a filosofia platônica e neo-platônica. Cristalização
176
de uma mediação cultural e subseqüente continuidade entre
realidade e discurso.
Para aprofundar: B o r n h e im , G. Metafísica efinitude, Perspectiva.
Pa sto r , F. A. Semântica do mistério, Loyola. Pa sto r, F. A. A
lógica do inefável, Loyola.
Norma prescritiva.
Determinada mediação cultural (v. mediação cultural) fixada como
única (v. metafisicização) e evocada como autoridade absoluta
no processo de produção teológica.
Particular.
Que é uma parte ou pertence a uma parte. O termo é tomado
aqui para indicar a dimensão local e concreta da realidade.
Além disso, toma-se o particular em seu papel nos métodos
indutivo e dedutivo (v. universal).
Para aprofimdar: A jb b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia. Herder.
Plurivocidade.
Neologismo referente à pluralidade de vozes. Contraposição à
univocidade (v. univocidade). Por plurivocidade compreende-
se a abordagem que contempla um ambiente plural em que o
discurso teológico pode ser expresso de igual forma. Essa abor
dagem poderia chamar-se também polissemia.
Reistoricização.
Neologismo referente ao processo de tornar novamente histórico,
reistoricizar (v. desistoricização). Nesta obra, reistoricizar é o
movimento fundamental que a teologia precisa fazer para reen
contrar seu espaço de relevância. O próprio método indicado
177
aqui pretende contribuir para a reistoricização do discurso te
ológico.
Sublevação metafísica.
Movimento de superposição da metafísica sobre formas de pensar
a realidade mais ligadas ao materialismo. Esse movimento pode
ser encontrado tanto na filosofia grega, quanto na teologia cristã
(v. metafisicização).
Semiótica.
Teoria que estuda os signos (símbolos) com a finalidade de
interpretá-los. A semiótica está ligada, portanto, à hermenêutica.
Para aprofundar: C roatto, S. Hermenêutica bíblica, Sinodal.
R ic o e u r , P. A metáfora viva, Loyola. R ic o e u r , P. Ensaios sobre
interpretação bíblica, Novo Século. A b b a g n a n o , N. Dicionário
de filosofia, Martins Fontes.
Sujeito histórico.
A expressão sujeito histórico tem seu significado amplamente vin
culado às ciências humanas e sociais, sobretudo àquelas que
dialogam mais com o neo-marxismo e o existencialismo. Por
sujeito, compreende-se a pessoa que, em suas relações com a
sociedade, não se reduz a um objeto dessa relação. Sujeito é
aquele que, de forma autônoma, participa da construção de
seu mundo. Sujeito histórico, portanto, é a expressão que
designa a pessoa em estado ‘adulto’, não alienada dos direi
tos e dos deveres decorrentes de estar no mundo. Com rela
ção à teologia, essa expressão indica uma nova forma de
participação por parte do cristão nas proposições acerca dos
temas da fé, não mais de forma passiva ou alienada, mas ativa
e propositiva.
178
Teologia sistemática manualista.
V. manualística.
Terceiro excluso.
Termo da lógica formulado primeiramente por Aristóteles. Afir
ma que, dadas duas proposições com o mesmo sujeito e o mes
mo predicado, uma afirmativa e a outra negativa, uma delas é
necessariamente verdadeira e a outra necessariamente falsa. O
princípio do terceiro excluso está ligado diretamente ao prin
cípio da não-contradição. Como a metafísica, a lógica grega
também influenciou a teologia cristã, sobretudo por possibili
tar o desenvolvimento da apologética. Isso, na prática, signifi
ca a impossibilidade de convivência de discursos diferentes sobre
um mesmo tema da fé cristã.
Para aprofundar: A bbagnano , N. Dicionário de filosofia, M a r tin s
Universal.
Possibilidade de um juízo ser válido para todos os seres racionais.
O termo é tomado aqui para indicar certa abordagem à reali
dade com base em categorias abstratas não relacionadas com as
dimensões local, cultural e histórica. Nessa perspectiva, a teo
logia pode emitir juízos universais sem nem mesmo verificar as
contingências históricas dos lugares para os quais se dirige.
São, portanto, juízos feitos apriori (v. particular e desistoricização).
Para aprofundar: A b b a g n a n o , N. Dicionário de filosofia, Martins
Fontes. B rugger, W. Dicionário de filosofia. Herder.
Univocidade.
Abordagem que advoga a continuidade entre o discurso e a reali
dade. Identificação de um discurso com o real, de forma que
179
qualquer outra tentativa de nomear esse real seja imediatamente
tida como falsa. A univocidade sustenta sua condição de exclu
sividade discursiva manipulando os princípios da não-contra-
dição e do terceiro excluso (v. equivocidade e terceiro excluso).
Verossimilhaçao.
Neologismo referente a tornar verossímil.
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Esta obra foi composta em Agararnondt impressa
por Imprensa da Fé sobre papel Chamois Fine 67 g/m2
Editora Vida em março de 2007.
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Categoria: EXCELÊNCIA: Área histórico-sistem ática/
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