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Estudos Históricos
Professor Ma. Maria Helena Azevedo Ferreira
Diretor Geral
Gilmar de Oliveira
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UNIFATECIE Unidade 3
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Thiago Azenha Centro, Paranavaí-PR
(44) 3045 9898
UNIFATECIE Unidade 4
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Saída para Nova Londrina
FICHA CATALOGRÁFICA
Paranavaí-PR
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIFATECIE.
Credenciado pela Portaria N.º 527 de 10 de junho de 2020,
(44) 3045 9898
publicada no D.O.U. em 15 de junho de 2020.
Núcleo de Educação a Distância;
FERREIRA, Maria Helena Azevedo. www.unifatecie.edu.br
Introdução aos Estudos Históricos.
Maria. Helena Azevedo Ferreira.
Paranavaí - PR.: UniFatecie, 2020. 115 p.
As imagens utilizadas neste
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária livro foram obtidas a partir
Zineide Pereira dos Santos. do site ShutterStock
AUTORA
Você deve saber que a História não é um mero exercício de narração dos fatos
em ordem cronológica: ela é muito mais que isso. Nesse sentido, a disciplina que será
apresentada a você terá o intuito de introduzir alguns métodos, problemáticas e objetos
da escrita da História. A disciplina enquanto prática exige que o historiador esteja a par
das diversas abordagens históricas, entendendo como estas também são produtos de um
desenvolver, para que consiga olhar melhor para o passado.
Na segunda unidade, logo no primeiro tópico, haverá uma discussão sobre mito
e história, discussão que terá importância para que você entenda as diferentes relações
que os seres humanos estabeleciam com o passado e como eles o representavam. Nesse
sentido, passaremos pelos primeiros indícios de escrita da História ainda na Antiguidade,
ressaltando o papel de alguns pensadores para o desenvolver do campo histórico. Fala-
remos também sobre as possibilidades de escrita da história durante o período medieval.
UNIDADE I....................................................................................................... 7
Introdução à Prática Historiográfica
UNIDADE II.................................................................................................... 32
Concepções Sobre História na Antiguidade e no Medievo
UNIDADE III................................................................................................... 55
A Escrita da História no Século XIX
UNIDADE IV................................................................................................... 82
A Escola dos Annales
UNIDADE I
Introdução à Prática Historiográfica
Professora Mestra Maria Helena Azevedo Ferreira
Plano de Estudo:
• Conceitos fundamentais para a prática historiográfica;
• O ofício do historiador e seus desafios;
• O quadripartismo histórico e suas problemáticas.
Objetivos de Aprendizagem:
• Apresentar os principais parâmetros da escrita da história;
• Compreender o trabalho do historiador e suas questões;
• Problematizar paradigmas do âmbito da história.
7
INTRODUÇÃO
Você já parou para pensar como os fatos históricos são construídos e como é o
trabalho do historiador? Certamente você deve imaginar que a história não é simplesmente
uma narração cronológica que surge do nada. Muito pelo contrário: para fazer história, são
instaurados, em primeiro lugar, pressupostos básicos que garantem à disciplina de História
legitimidade ao falar do passado.
Como já dissemos, a história é uma ciência humana e isso evoca uma série de
problemáticas com relação ao sujeito pesquisador (historiador) com relação ao seu objeto
(o passado). Assim, o ofício do historiador e seus desafios são o tema do nosso segundo
tópico. Exploraremos a questão do “lugar social” do historiador, como aquele que condiciona
e molda sua visão sobre o passado, bem como voltaremos a discutir a função do historiador
na atualidade.
Bons estudos!
Como já dissemos, a História é a ciência dos homens no tempo. Por isso, o tempo
é tão primordial para essa disciplina, mas para o historiador não basta dizer, por exemplo,
que entre a ocupação dos portugueses no Brasil, em 1500, e a independência do Brasil,
em 1822, passaram-se 322 anos. O que realmente importa é conhecer os mecanismos que
fizeram o Brasil abandonar a condição de colônia e proclamar sua independência.
Qualquer que seja o tema da pesquisa, por vezes, o (a) historiador (a) na busca de
explicações do porquê ou como aquele determinado evento ocorreu, recorre às origens.
Porém será que as origens do fenômeno explicam o motivo pelo qual houve o ocorrido?
Em nosso exemplo inicial, as origens do Brasil Colonial, com a ocupação dos portugueses,
simplesmente explicam o porquê de o Brasil ter se tornado independente séculos mais tar-
de? Bloch (2001) adverte sobre os perigos de tomar as origens como causas explicativas:
“para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: basta para
explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo” (BLOCH, 2001, p. 57).
A busca pelas origens, para Bloch (2001), começa a ser orientada também por uma
busca de sentido no próprio presente, legítima e atesta um passado um único, que corre
de forma linear ao presente. Contudo, a História não funciona assim: o início de um evento
não é a explicação deste. A explicação de um fenômeno reside em seu próprio contexto de
aparecimento:
Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno fora do estudo de seu
momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela
em vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os
homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. Por não
ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em
descrédito” (BLOCH, 2001, p. 60).
A partir da citação acima podemos afirmar que a História se faz a partir de docu-
mentos, que são as fontes que trazem vestígios do passado. É importantíssimo que você
tenha em mente a centralidade do documento para a investigação histórica. Não estamos
a falar aqui sobre documento em seu sentido restrito, escrito e oficial, mas sim em uma
concepção mais abrangente. Era comum até meados do século XX restringir o documento
ao texto e foi apenas na década de 1960, quando houve uma revolução documental, que foi
permitido o estudo não apenas decretos oficiais, mas de tudo aquilo relacionado ao estudo
das “massas”, como relatos orais, cultura material, músicas, imagens, dentre outros (LE
GOFF, 1990).
Marrou (1968) explica que documento é todo vestígio sobre o qual se pode retirar
informações valiosas para o historiador:
Em síntese, tudo aquilo que, na herança subsistente do passado, pode ser
interpretado como um indício que revela alguma coisa da presença, da ati-
vidade, dos sentimentos, da mentalidade do homem de outrora, entrará em
nossa documentação (MARROU, 1968, p. 63).
Cada tipo de fonte, seja ela registros oficiais, relatos orais, imagens, interrogatórios
etc., suscita problemáticas diferentes. Nesse sentido, Burke (1992) chama a atenção para
o fato de historiadores que se debruçam sobre a história do cotidiano, na vida da pessoa
comum, têm acesso a um tipo de documento, como um interrogatório, por exemplo, que é
um registro extraordinário do indivíduo e o relato por si só não revela seus hábitos cotidia-
nos. Nisso, para Burke (1992), reside em ler as fontes nas entrelinhas.
SAIBA MAIS
A análise documental é, sobretudo, investigativa e as fontes podem revelar uma série
de fatos históricos inauditos. Um exemplo disso, foi o método investigativo utilizado pelo
historiador Carlo Ginzburg, chamado de paradigma indiciário. O método consiste em
perceber os sinais, os detalhes: assim como um perito criminal analisa a cena de um cri-
me, o historiador procura construir, através das fontes como vestígios, o quebra-cabeça;
assim podemos tangenciar o passado.
Fonte: Guinzburg (1989).
Arquivos Documentos
Correspondência: ofícios e requerimentos
Lista nominativas
Matrículas de classificações de escravos
Arquivos do Poder Executivo Listas de qualificação de votantes
Documentos de polícia
Documentos sobre obras públicas
Documentos sobre terras
Atas
Arquivos do Poder Legislativo
Registros
Inventários e testamentos
Arquivos do Poder Judiciário Processos cíveis
Processos crimes
Notas
Arquivos cartoriais
Registro Civil
Registros paroquiais
Arquivos eclesiásticos (da Igreja) Processos
Correspondência
Documentos particulares de indivíduos, fa-
Arquivos privados
mílias, grupos de interesse ou empresas
Fonte: Bacellar (2011).
Qualquer que seja o tipo de documento, que será nossa fonte, este só atinge tal
status a partir da escolha do historiador. Le Goff (1990) sugere o trabalho com a noção
documento/monumento para explicar a prática investigativa do historiador. Primeiro, vamos
a definição de monumento:
O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filoló-
gicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar
a recordação, por exemplo, os atos escritos [...]. Mas desde a Antiguidade
romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma
obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna,
troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a
recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente
valorizada: a morte. O monumento tem como características o ligar-se ao
poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas
(é um legado à memória coletiva) (LE GOFF, 1990, p. 536-537).
Na História, bem como nas demais ciências humanas e sociais, existe um paradig-
ma que necessita de atenção, pois nessas “a consciência e a razão existem tanto no sujeito
quanto no objeto, posto que nelas os seres humanos são tanto sujeito quanto objeto do
conhecimento” (CARDOSO; VAINFAS, 2012, p. 1). Como já dissemos, são seres humanos
estudando outros seres humanos, sociedades etc., razão pela qual instaura-se a proble-
mática do sujeito historiador, tomando como objeto de estudo outros seres humanos, ainda
que esses tenham vivido em outro espaço e outro tempo.
Marrou (1968), em seu tempo já deixava claro que “a história é, por infortúnio,
inseparável do historiador” (MARROU, 1968, p. 41, tradução nossa). Por isso, a discussão
incide em quais são as condições e os limites da produção do conhecimento histórico.
No trato com o documento, a matéria-prima do historiador, realiza-se primeiro uma crítica
externa, separando as informações relevantes de acordo com seu tema de pesquisa de
outros assuntos. Depois de ter em mãos os testemunhos que irá utilizar, cabe-lhe a crítica
interna e, com isso, alguns questionamentos são levantados: “estes testemunhos podem
estar enganados?” ou “eles tinham desejam de enganar-nos?”. Entre o passado e a história,
existe a figura do sujeito cognoscente, o historiador, figura sem a qual não haveria história
(MARROU, 1968).
Na relação entre sujeito e objeto deve ser levado em consideração como se instau-
ra a própria prática do sujeito historiador, ou seja, como ele é influenciado por seu “lugar
social”:
Você pode perceber, a partir do quadro apresentado, que essa história quadripartite
é, sobretudo, uma história do continente europeu, com pouco espaço para demais regiões
do planeta. Chesneaux (1995) afirma que essa divisão é fruto de uma concepção francesa,
já que em outros países:
o passado está organizado de modo diferente, em função de pontos de
referências diferentes. [...] Na Grécia, a Antiguidade chega até o século XV,
e a ocupação turca corresponde a uma espécie de Idade Média. Na China, a
história “moderna” (jindai) vai das guerras do ópio ao movimento patriótico de
maio de 1919. Começa com este último a história “contemporânea” (jiandai)
(CHESNEAUX, 1995, p. 93).
Dussel (2005) adverte que este esquema tão arraigado em nossa mentalidade é,
na verdade, uma “invenção ideológica”.
Esta sequência é hoje a tradicional. Ninguém pensa que se trata de uma
“invenção” ideológica (que “rapta” a cultura grega como exclusivamente “eu-
ropeia” e “ocidental”) e que pretende que desde as épocas grega e romana
tais culturas foram o “centro” da história mundial. Esta visão é duplamente
falsa: em primeiro lugar, porque, como veremos, faticamente ainda não há
uma história mundial (mas histórias justapostas e isoladas: a romana, persa,
dos reinos hindus, de Sião, da China, do mundo meso-americano ou inca na
América, etc.). Em segundo lugar, porque o lugar geopolítico impede-o de
ser o “centro” (o Mar Vermelho ou Antioquia, lugar de término do comércio do
Oriente, não são o “centro”, mas o limite ocidental do mercado euro-afro-asiá-
tico) (DUSSEL, 2005, p. 27).
REFLITA
Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão
glorificando o caçador (Provérbio Africano).
Durante essa unidade, você viu alguns temas inerentes à prática da historiografia.
Nossa intenção foi oferecer um suporte teórico sobre a escrita da história, para que você
entenda o seguinte: os fatos históricos dependem de um árduo trabalho do historiador e
isso está ligado a uma tradição, às metodologias específicas e também às visões de mundo
que criam a narrativa histórica.
Assim, logo de início, oferecemos um panorama geral sobre o teor da disciplina, es-
pecificando alguns dos seus objetivos centrais. Discutimos também, um conceito importan-
te, o anacronismo, descrevendo-o como uma das principais práticas que o historiador deve
evitar. Em seguida, falamos de duas instâncias que estão sempre em qualquer pesquisa
histórica: a questão da subjetividade e da objetividade, enquanto elementos partícipes da
produção do conhecimento em nosso campo. Para finalizar o primeiro tópico, apresentamos
questões inerentes ao objeto, o passado, a fonte e os documentos, como traços essenciais
da escrita da história.
No segundo tópico nos debruçamos a entender o ofício do historiador, suas espe-
cificidades, dado seu campo de conhecimento e seus desafios. Fizemos isso inserindo a
noção de “lugar social” enquanto conceito fundamental para compreender as influências
que o sujeito sofre em seu meio. Aproveitamos também para falar brevemente sobre a
função do historiador em criar uma consciência histórica nos indivíduos e na sociedade
como um todo.
No terceiro tópico, que teve como intenção fazer uma análise crítica com relação
às estruturas no âmbito da história formatadas de acordo com interesses específicos, trou-
xemos a noção de quadripartismo histórico. A partir dessa análise, você pôde compreender
que, por vezes, é necessário desnaturalizar algumas práticas e entender as origens e as
implicações deste posicionamento na história.
LIVRO
Título: O Queijo e os Vermes: O Cotidiano e as Ideias de um Mo-
leiro Perseguido pela Inquisição
Autor: Carlo Ginzburg
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: ao pesquisar julgamentos inquisitoriais, o historiador
Carlo Ginzburg deparou-se com um excepcionalmente detalhado.
Tratava-se do depoimento de um moleiro do norte da Itália, que
no século XVI ousará afirmar que o mundo tinha origem na putre-
fação. Graças ao fascínio dos inquisidores pelas crenças desse
moleiro, Ginzburg pôde reconstituir a trajetória de Menocchio num
texto claro e atraente, e desembocar em uma hipótese geral sobre
a cultura popular da Europa pré-industrial.
Link: https://www.saraiva.com.br/o-queijo-e-os-vermes-ed-de-bol-
so-205071/p
FILME/VÍDEO
Título: Cidades Fantasmas
Ano: 2017
Sinopse: o documentário passeia por quatro localidades diferentes
no deserto chileno, na Amazônia brasileira, nos Andes colombianos
e no Pampa argentino. O que estes lugares têm em comum é que
eles abrigam cidades fantasmas, que outrora já tiveram vida ativa.
Estas histórias só podem ser contadas através dos meandros da
memória de seus antigos moradores.
Plano de Estudo:
• Mito e História;
• Concepções sobre História na Antiguidade;
• Concepções sobre História no Medievo.
Objetivos de Aprendizagem:
• Articular e diferenciar as apreensões de mito e história;
• Reconhecer a escrita historiográfica na Antiguidade;
• Compreender a escrita da história no período medieval.
32
INTRODUÇÃO
Como qualquer outro fato, evento ou disciplina, a escrita da história possui uma
historicidade. Há muito tempo que os seres humanos olham para o passado e trazem signi-
ficados importantes para seu viver no presente. Isso não quer dizer que a história, tal como
a conhecemos hoje, com seus métodos, objetos e fontes, sempre tenha existido, mas sim
que os povos que nos sucederam lidaram com formas específicas com o seu passado.
Ainda nas primeiras formas de organização de sociedade, é possível ver alguns
recursos que eram utilizados pelos arcaicos. Os mitos, neste sentido, se mostravam como
narrativa possível de um passado fabuloso e primordial. Mas esse passado não estava
inerte e perdido em algum ponto de outrora: ele se fazia presente e de forma cotidiana para
os membros das civilizações tradicionais e isso era possível por meio da reatualização
do mito. É sobre essa dinâmica das sociedades ditas primitivas que você contemplará no
primeiro tópico de nossa unidade.
Em continuação, você perceberá que é na Antiguidade quando vão surgir os primei-
ros pensadores preocupados em olhar para o passado e sistematizá-lo. O grego Heródoto,
nesse sentido, foi considerado o “pai da história”, pois mesmo em uma sociedade na qual
a explicação mítica predominava, trouxe os seres humanos como agentes próprios de sua
história, além de ter fundamentado a ideia de diferença entre os povos. Outros pensadores
helenos e romanos contribuíram significativamente para a escrita da história durante toda a
Antiguidade clássica e vão fornecer as bases para a historiografia ocidental.
No terceiro e último tópico, vamos nos debruçar pela escrita da história no período
medieval. Certamente, o medievo esteve marcado pelo jugo moral, econômico, político,
religioso da Igreja Católica e isso não poderia deixar de se reverberar na escrita da história.
Vamos ver que o ser humano vai ocupar um lugar secundário com relação aos desígnios
divinos. Observaremos também que a noção de temporalidade será radicalmente modifi-
cada.
Bons Estudos!
Você viu na unidade anterior que a escrita da história tem uma função explicativa
para o tempo presente. A história, através de seus métodos e práticas, busca delinear
narrativas sobre o passado cientificamente validadas e que, muitas vezes, estão de acordo
com as demandas específicas de nossa época, com o lugar social do historiador e com as
possibilidades que a memória coletiva nos impõe. O ser humano, em geral, sempre lidou
com o passado de uma forma significativa para em seu presente, se hoje a história lida com
a memória através de olhar crítico e com base em documentos, as civilizações tradicionais,
ditas primitivas, ressignifcavam o passado por meio dos mitos e eles foram e ainda são, de
alguma forma, essenciais para a construção das sociedades.
Normalmente, quando ouvimos a palavra “mito” a entendemos como sinônimo de
lenda, fábula ou mesmo inverdade e essa nossa construção imaginária em torno do termo
também foi construída historicamente. Eliade (2013) relata que o estudo dos mitos, desde
meados do século XX, tem sido sensivelmente diferente do que era estudado no século
XIX, período no qual reforçou-se a ideia de que a narrativa mitológica dos povos “primitivos”
estudados era essencialmente falsa. No entanto, caro (a) estudante, gostaríamos de cha-
mar atenção para a seguinte situação: a tal ideia de falsidade também estava fatalmente
arraigada aos valores eurocêntricos dos pesquisadores do século XIX, que ao entender-se
e entender seu próprio lugar social como produtor de verdades, olhava para o outro, para a
construção de realidade do outro como falsa.
Não nos cabe julgar a veracidade de uma narrativa mitológica, pois, para aquelas
sociedades, o mito conta uma história real e esta história incide no modo de organização
daquela comunidade. Eliade (2013) afirma que a principal função do mito é mostrar modelos
exemplares, sobre os quais todas as atividades humanas significativas devem se pautar: a
alimentação, o trabalho, o casamento, a iniciação, a educação, dentre outros. Em muitas
A vida daquela sociedade é regida por rememoração dos mitos por intermédio dos
ritos. Eliade (1992) exemplifica a seguinte situação em uma dada sociedade tradicional:
uma jovem, em sua menarca, é impelida a ficar retida em uma cabana escura por três dias,
sem falar com ninguém. Ela faz isso porque a narrativa mítica que diz que um ser divino,
identificado como uma jovem, ao ser morto, foi transformado na Lua e permanece três dias
nas trevas. É importante, portanto, que a jovem siga esta narrativa mítica, caso contrário
torna-se culpada do esquecimento de um acontecimento considerado primordial.
Por mais que estas narrativas míticas não encontrem mais sentido na sociedade
moderna que vivemos hoje, é importante notar que a percepção sobre o passado na forma
de narrativa mítica constituía a vivência das sociedades consideradas primitivas. Finley
(1989) comenta que a história, quando ela começou a se delinear, estava imersa em um
mar de mitos; na verdade, os chamados “pais da história” trabalhavam a partir destes,
sendo o passado uma massa desconexa de fatos.
Entre história, tal como ela se constitui hoje, e os mitos há diferenças marcantes
no olhar para o passado, ainda que, em aspectos muito específicos, guarde similitudes, as
quais não iremos explorar neste momento. Se as sociedades arcaicas tendiam a ressig-
nificar o passado, especialmente o primordial, como modelo explicativo, essencialmente
sagrado e total, na contemporaneidade entendemos a história de maneira fragmentária e
nos desligamos de seu sentido sagrado em um movimento de dessacralização. É importan-
te entender, entretanto, que as narrativas míticas, por mais que sejam traço marcante das
sociedades arcaicas, não foram abolidas na sociedade moderna. Os mitos não necessaria-
mente morrem, mas adquirem outras roupagens, ainda que haja um movimento consciente
por parte de uma ciência “esclarecida” que nega quaisquer influências destes em nossos
tempos. Portanto, frisamos que a escrita da história, ou melhor, o olhar para o passado,
não obedece uma linha evolutiva de melhora; como já dissemos, a produção de uma dada
sociedade deve ser vista de acordo com seus próprios parâmetros.
É possível dizer, portanto, que Heródoto inaugura um novo modo de pensar. Além
de conceder espaço para o tempo humano em narrativa, ele empreende um novo método
a partir de pesquisas cosmológicas, geográficas e etnográficas. Dessa maneira, a escrita
da história em Heródoto significa “pesquisa” e “investigação” e isso se vê quando este se
propõe a analisar a guerra entre os gregos e os persas. Sua investigação está pautada em
A historiografia tomada pelo ocidente, desde suas bases, tomou como de suma impor-
tância a palavra escrita. Porém, é necessário frisar que esta é apenas uma forma de
expressão de conhecimento.
Nas civilizações orais, a fala é mais do que uma forma de comunicação: ela também
é um meio de preservação da sabedoria ancestral e de saber compreendê-la em suas
especificidades. Isso é verdade na África, onde, apesar da existência da língua escrita
em muitos contextos, é lugar de múltiplas sociedades que prezam pela oralidade. Assim,
não prezar pela escrita não quer dizer ausência de produção de conhecimento e, por
isso, cabe ao historiador saber ler textos orais e explorar toda a sua complexidade.
Para saber mais sobre, acesse o link a seguir e leia o capítulo A Tradição Oral e sua Me-
todologia, de J. Vasina: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf.
É possível constatar que, durante sua narrativa, Tucídides fez menção aos poetas,
especialmente Homero, como base informativa para os tempos antigos. Ainda assim,
quando procuramos analisar o seu gênero de escrita – considerando que o delineamento
da escrita da história não estava totalmente definido –, vemos a preocupação em relatar
o passado “tal como se passou”, sem as interferências de adornos que enfeitassem a sua
narrativa, como era comum aos poetas da época:
Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quem, de modo
geral, julgasse dessa maneira aquilo que eu expus e não desse crédito maior
nem ao que fizeram os poetas adornando seus hinos com o intuito de en-
grandecê-los, nem ao que os logógrafos compuseram visando ao que é mais
atraente para o auditório de preferência ao que é verdade, pois não é possível
comprovar esses fatos e a maioria deles, sob a ação do tempo, ganhou um
caráter mítico que não merece fé (TUCÍDIDES apud MAGALHÃES, 2012, p.
56).
Mas um dos maiores historiadores romanos foi Tácito (56 d.C-120 d.C.), conhecido
por ter uma linguagem complexa e sofisticada, adotando como temáticas a liberdade de
expressão e a tirania. Sendo assim, uma das preocupações centrais de Tácito foi em como
se portar e como manter a virtude quando se está sob o governo de tiranos. Vale lembrar
que essa questão está relacionada com a própria vivência do historiador, no contexto do Im-
Marques (2012) considera a obra os Anais como o ápice da trajetória de Tácito, cujo
conteúdo chegou apenas um pouco mais da metade do original aos dias atuais. Nesses
livros, é possível perceber a intenção do pensador em falar sobre a sucessão dos principa-
dos na Roma antiga. A questão política sobre os mecanismos de obtenção e manutenção
do poder mostra-se como aspecto fundamental na narrativa de Tácito. Inerente a isso,
sua narrativa está fortemente atrelada à construção de personagens, especialmente dos
governantes.
Após um período de esquecimento, os escritos de Tácito ganharam relevância
durante o período do Renascimento (XIV-XVI), rebuscando suas críticas às tiranias. Mais
tarde, durante o Iluminismo no (XVII-XVIII), os textos de Tácito foram tomados como
representantes dos ideais republicanos, sendo utilizado por revolucionários franceses e
americanos. Enfim, Tácito tem sido relido de diferentes formas a depender do contexto em
que suas obras são recuperadas, mostrando a sua atualidade em um mundo de constante
mudança (MARQUES, 2012).
Não apenas Tácito, mas os demais pensadores do eixo Grécia e Roma foram
essenciais para dar os primeiros passos na constituição da ciência histórica. Ainda assim,
vale mais uma vez lembrar que a escolha dos “clássicos” da Antiguidade para historiografia
deu-se de acordo com escolhas conscientes e inconscientes sobre o que viria a ser essa
ciência, principalmente em sua constituição em território europeu. Isso, portanto, não exclui
outras formas do pensar historicamente em outras sociedades, que se empenharam cada
um à sua maneira.
A obra tinha como intuito fazer um resumo da história universal, compor a história
da religião e, por fim, propor um “curso de filosofia da história, no qual a ascensão e a
decadência dos impérios eram explicadas pelo estado das leis e das instituições” (BOUR-
DÉ; MARTIN, 1983, p. 24). Mais do que uma história subordinada à cristandade, Bossuet
elaborou um discurso moralizador. Para ele, a história era utilitária e deveria ensinar os
príncipes e seus súditos por meio da revelação do plano divino para a humanidade.
Vemos à ligação da história humana com a questão divina, em especial, com o peso
do jugo divino. Por isso, os agentes da história não são os seres humanos e seus feitos, que
são desprovidos de autonomia, eles são construídos conforme uma pedagogia divina, ou
seja, a história cumpre o papel de ensinar os seres humanos acerca dos preceitos da Igreja.
Ainda assim, Bossuet enuncia alguns princípios de análise histórica:
Porque este mesmo Deus que fez o encadeamento do universo, e que, todo-
-poderoso por si só, quis, para estabelecer a ordem, que as partes de um tão
grande todo dependessem uma das outras; este mesmo Deus quis também
que o curso das coisas humanas tivesse sequência e proporções; quero dizer
que os homens e as nações tiveram qualidades proporcionais à elevação
a que estavam destinados; e que com a reserva de determinadas golpes
extraordinários em que Deus queria que a sua mão aparecesse sozinha, não
aconteceu qualquer mudança que tenha tida as suas causas nos séculos
precedentes.
A partir da citação acima, podemos observar que, para Bossuet, Deus ocupa um
lugar de destaque, porém, esboça-se uma análise histórica que leva em consideração as
temporalidades humanas.
“Filha da desgraça, a história também é serva do poder”, é assim que Bourdé e Martin
(1983, p. 28) a descrevem quando estão a falar sobre íntima relação entre os cronistas e os
príncipes no final da Idade Média. Muitos pensadores da época recebiam encomendas para
escrever a história de determinada localidade ou mesmo redigir uma história da realeza,
que tinha como função central colher histórias do reino. Dos cronistas esperava-se exaltar
os feitos dos reis e toda sua dinastia, bem como contribuir para a coesão do Estado, por
meio da invocação de um passado histórico comum (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
São as primícias de uma história voltada a construção de uma identidade nacional,
como se verá nos séculos posteriores. Assim, podemos perceber que, durante a Idade
Média, alguns fatores nortearam a construção da história – ainda que não possamos falar
da disciplina constituída em si. A legitimação da Igreja como detentora da verdade, da
moral e do propósito da vida humana veio com Santo Agostinho, porém, este poder vai
ser cada vez mais aprofundado nos séculos subsequentes. Ainda vemos forte influência
dos detentores de poder na escrita da história, cuja emancipação só vai acontecer tempos
depois e ainda com ressalvas.
REFLITA
Desde o começo, a fé cristã é sacrifício: sacrifício de toda a liberdade, todo orgulho, toda
confiança do espírito em si mesmo [...]. Seu pressuposto é de que a submissão do espí-
rito seja indescritivelmente dolorosa, que todo o passado e todo o hábito de um tal espí-
rito se oponham ao absurdissimum que a “fé” para ele representa. (NIETZSCHE, s. d.)
Você viu que a escrita da história, assim como muitos outros eventos da huma-
nidade, possui historicidade. Essa história, com certeza, é fruto de escolhas conscientes
e inconscientes de historiadores que viveram antes nós e foram aos poucos definindo do
que se tratava a tradição historiográfica. Portanto, o caminho que fizemos trata-se, em
suma, de algumas destas escolhas que elegeram tais personagens como relevantes para
historiografia ocidental.
Logo no primeiro tópico, você pode pôde vislumbrar as relações entre história e mito.
Com clareza, mostramos que o mito não é necessariamente a história como a conhecemos
hoje, mas sim uma forma utilizada pelas sociedades arcaicas de olhar para o seu passado
primordial (ainda que este seja fantasioso) e ressignificá-lo em seu cotidiano, por meio dos
ritos. Com isso, fica claro o movimento de dessacralização da história com relação à esta
primeira forma de interpretação do passado.
No segundo tópico, mostramos as primeiras sistematizações de pensamento his-
tórico, que teria seu berço da Grécia Antiga. Nomes como Heródoto, Tácito, Políbio, Tito
Lívio, entre outros, foram fundamentais na literatura greco-romana, os quais compuseram
alguns dos pressupostos da análise histórica. Neste tópico, você pôde observar os primeiros
passos para a emancipação da explicação mítico-religiosa. No entanto, com o predomínio
da Igreja no ocidente, a escrita da história vai tomar um rumo apropriado de acordo com os
padrões morais da época.
No último tópico, você viu a força do domínio da Igreja sobre a escrita do passado,
a ponto de aproximá-lo com as narrativas bíblicas e alterar a concepção de temporalidade
exposta pelos antigos. Por isso, gêneros como anais, hagiografias, biografias e crônicas
estavam sob o jugo da cristandade e o domínio real.
Tito Lívio empreendeu relatar a história de Roma ab urbe condita, tendo iniciado a
redação entre 27 e 25 a.C. O fato de ser o primeiro historiador romano não pertencente à
aristocracia senatorial não o impediu de centralizar seu relato na narrativa das sucessivas
guerras travadas pela urbs para defesa e expansão de seu próprio território, guerras cujo
planejamento, condução e sucesso dependeram da atuação política de uma aristocracia
cada vez mais consciente de sua posição e determinada a mantê-la e reforçá-la.
Esse texto objetiva discutir os significados modernamente históricos e historiográfi-
cos dessa esfera política enquanto conteúdo diretor da obra do historiador. Para tanto, é ne-
cessário analisar previamente algo das origens da conceituação desse conteúdo enquanto
objeto historiográfico, sua presença no pensamento romano do século I a.C. e a influência
que ambos teriam exercido sobre Tito Lívio.
Ao iniciar a redação de sua obra (I, 1), Heródoto (V a.C.) informa tratar-se ela de
uma demonstração de história. Aparentemente tão familiar, a ideia de história transmitida
pelo historiador não se reporta ao gênero literário modernamente conhecido, mas constitui
parte do método de pesquisa empregado pelo autor chamado atualmente de historiador.
Ligada etimologicamente ao verbo grego, que guarda também a noção de ver, perceber
pelo intelecto, a ideia de história apresentada por Heródoto sintetiza o fruto das observa-
ções operadas ao longo de suas viagens de conhecimento pelos mundos grego e bárbaro.
O conteúdo de sua obra subordina-se ao alcance de sua experiência pessoal na apreensão
desse conhecimento, ou seja, o autor só escreve porque conhece algo empiricamente e
não porque especule acerca de algo que creia saber.
Tucídides (V-IV a.C.), por sua vez, informa em seu prólogo (I, 1) que compôs em
prosa a guerra [...] entre os peloponésios e atenienses, guerra cujo desenrolar vivenciou
completamente. Ele também está inteiramente presente em sua narrativa, dado que está
condicionado à circunstância de sua participação no processo narrado. Assim como Heró-
doto, Tucídides narra o fruto de sua própria experiência pessoal. Esses dois exemplos são
LIVRO
Título: A Escrita da História na Antiguidade Greco-romana
Autor: Moisés Antiqueira
Editora: Martins Fontes
Sinopse: a obra contempla oito estudos assinados por pesquisa-
dores brasileiros que atuam em diferentes instituições de ensino
superior Brasil afora e com destacada produção na área dos Estu-
dos Clássicos. Os trabalhos aqui apresentados permitem ao leitor
tomar contato com diferentes aspectos relacionados às instigantes
e múltiplas formas e reflexões que gregos e romanos desenvolve-
ram acerca da escrita de sua história, fosse aquela do passado ou
a do presente em que viviam. Sendo assim, a obra se volta para
temas e problemas que se observam nos textos escritos por his-
toriadores da maior relevância, como o foram Heródoto, Tucídides
ou Políbio; por autores cuja vasta produção intelectual abrangia
também a história, como era o caso de Xenofonte; por historiado-
res menos célebres, mas que lidaram com questões críticas aos
olhos de seus contemporâneos, tal como o fizeram Flávio Josefo e
Aurélio Vítor; por pensadores como Sêneca e Plínio, o Velho, que
também se ocuparam da história de maneira pontual. Portanto, o
leitor tem em suas mãos uma coletânea que oferece um valioso
panorama acerca da pluralidade comum à escrita da história na
Antiguidade Greco-romana.
Link: https://www.martinsfontespaulista.com.br/escrita-da-histo-
ria-na-antiguidade-greco-romana-a-526099.aspx/p
FILME/VÍDEO
Título: 300
Ano: 2006
Sinopse: trata-se de um filme de fantasia que tomou como base
uma série de quadrinhos com o mesmo nome de Frank Miller e
Lynn Varley dos anos 1990. Ambos tomam como inspiração as
Guerras Médicas, entre espartanos e persas. A história conta com
figuras fantásticas, o que faz com que a obra figure no gênero
de fantasia histórica. O filme tem início quando um orador de
Espartano começa a contar a vida do rei Leónidas I, destacando
seu treinamento militar desde a infância. A partir daí a história se
desenrola com Leónidas destacando 300 de seus homens para
lutar contra o Xerxes da Pérsia, que tinha desejos de ocupar a
região. O filme toma como cenário as Guerras Médicas descritas
por Heródoto, mas não possui compromisso com a realidade.
Entretanto, podemos verificar que o esforço do “pai da história”
em descrever tal conflito é apropriado até a contemporaneidade,
inclusive no ramo do entretenimento.
Plano de Estudo:
• O Historicismo;
• A Escola Metódica;
• O Materialismo Histórico.
Objetivos de Aprendizagem:
• Conceituar e contextualizar o surgimento e características do historicismo;
• Analisar a escrita da história na escola metódica e suas influências;
• Compreender a importância do materialismo histórico e conceitos marxistas pertinentes
à escrita da história.
55
INTRODUÇÃO
Caro (a) estudante, para que a história hoje seja disciplina escolar, esteja presente
nas universidades e forme pesquisadores, ela precisou, em algum momento, construir suas
bases teórico-metodológicas. Este momento foi no século XIX. Por isso, selecionamos,
para discutir com você nas páginas que se seguem, alguns dos principais movimentos que
intelectuais empreenderam neste período para pensar historicamente. É preciso sempre
relembrar que conhecer a base teórica-metodológica sobre a qual nosso campo de conhe-
cimento foi construído é um dever de todo profissional em formação.
Inicialmente, vamos discutir, no primeiro tópico, as premissas do historicismo. Este
movimento ganhou força no contexto da Revolução Francesa e do Iluminismo, os quais
se opunham à sociedade constituída no período medieval e se opunham também a toda
valorização do passado, olhando sempre para o futuro e se apegando à filosofia univer-
salistas. Os historicistas alemães caminhavam em sentido contrário a esta perspectiva,
prezando pelo contexto histórico e pela singularidade dos eventos. Assim, você verá como
historicismo “descobriu” a história e forneceu bases importantes até os dias atuais.
O século XIX ficou conhecido também como o século de fundamentação dos
métodos científicos, especialmente das ciências da natureza e das matemáticas. O cresci-
mento destas áreas foi tão grande a ponto de influenciar largamente as ciências humanas
e sociais. O positivismo criado nessa perspectiva inspirou várias das concepções da Escola
Metódica da história. Você entenderá, nesse momento da unidade, como esse movimento
construiu as noções de documento, de tempo histórico, de objeto, procurando localizar a
história como ciência.
Por fim, você vai explorar o conceito “materialismo histórico”, que foi fomentado
dentro da abordagem de Karl Marx e é um constructo teórico para pensar a história. O
materialismo histórico pressupõe uma relação dialética que geraria as mudanças históricas.
Construir um modelo social para teorizar acerca dos mecanismos de mudanças da socie-
dade foi uma das contribuições deste conceito para o âmbito da história. Aproveite a leitura
a seguir!
Bons estudos!
SAIBA MAIS
Giambattista Vico (1668-1744) nasceu em Nápoles e se dedicou ao estudo da história e
do direito romano. Sua principal obra foi Ciência Nova, publicada pela primeira vez em
1725, porém suas ideias permaneceram pouco exploradas e, em parte, isso se deveu à
sua escrita com certa falta de coerência lógica.
Ainda que Vico fosse intimamente ligado à ortodoxia cristã, contribuiu de maneira bas-
tante original para a escrita da história. Ao estudar os “povos pagãos”, sustentou a ideia
de que a história era cíclica e as “nações” humanas passavam inevitavelmente por fases
de desenvolvimento. Porém, o pensamento de Vico não se resume a isso: ele tinha a
pretensão de formalizar uma teoria do conhecimento, presumindo que, para se conhe-
cer algo, era necessário tê-lo feito. Assim, a história como fruto da construção humana
podia ser conhecida por instrumentos humanos. Traça-se, portanto, uma diferença fun-
damental entre a história e as ciências da natureza, trazendo à tona os primeiros indí-
cios de indagação histórica.
Fonte: Gardiner (1964).
Essas três fases do historicismo, que perduraram de 1789 até 1989, compreen-
deram, pelo menos em sua fase inicial, traços de originalidade, que traz a história como o
Essas são questões postas pelo historicismo e que têm correspondência até os
dias atuais. Nesse sentido, um dos maiores contribuintes para epistemologia histórica foi o
alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911). Dilthey foi um discreto e dedicado professor de filosofia
que se interessava por temas históricos. Na verdade, ele tinha vários objetos de pesquisa,
como filosofia moral, estética, teoria da psicologia e da educação, críticas literárias, dentre
outros. Contudo, como muitos historicistas, possuía escrita de difícil compreensão e não
tinha uma forma clara expressar-se (REIS, 2003).
Assim como outros pensadores da sua época, ele se afastava da filosofia de Hegel,
reafirmando um posicionamento contrário a princípios universais que pudessem reger a
humanidade em uma perspectiva teleológica. Seguia Vico, no sentido de entender que
história diz respeito a “experiência vivida”, em favor da compreensão do contexto histórico,
que era local e finito (REIS, 2003).
Dilthey revolucionou as ciências humanas ao colocar a Razão, como categoria
abstrata, como submetida à vida, ou seja, não seria a Razão que ordenaria a vivência,
mas sim teria a vida ordenado a Razão. Por isso, opunha-se ao pensamento teológico, ao
colocar o cristianismo como um fenômeno histórico, contra o idealismo e o naturalismo.
Argumentava sobre o idealismo, alegando que não era possível existir uma consciência
supra-histórica, mas qualquer consciência estaria assentada sobre determinado contexto.
Contra o naturalismo, defendia que não era possível conhecer os seres humanos tal como
se conhecia a natureza.
É interessante notar este posicionamento de Dilthey com relação às ciências natu-
rais no século XIX. As ciências naturais, nesse período, apresentavam-se como paradigma
dominante, o que rechaçava as demais formas de conhecimento que não eram pautadas
pelos seus princípios metodológicos, centradas nas concepções cartesianas de compreen-
são do mundo. Esse paradigma dominante das ciências naturais era centrado em uma
linguagem matemática de compreensão das leis que regiam a natureza. Por isso, “um
conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a ideia de
2 A ESCOLA METÓDICA
Ainda no século XIX, surgiu outro constructo teórico que incidiu sobre a escrita da
história: o materialismo histórico. Zanirato (2011), com base em Pagés, chama a atenção para
o fato de que, enquanto a Escola Metódica andava alinhada com os valores da aristocracia e
do capitalismo, o materialismo histórico, baseado nas ideias de Marx, representou o contrário.
Na verdade, a concepção do materialismo histórico dialético dizia respeito a uma forma de
concepção de história dentro de uma perspectiva ampla defendida por Karl Marx.
Antes de adentrarmos em nosso conceito-chave, é necessário contextualizar o
surgimento dela dentro de um contexto mais abrangente. Karl Marx (1818-1883) nasceu
em Trèves, na Alemanha, sendo de família judia e protestante. Marx, enquanto jovem, se
aproximou das ideias de Hegel e essa aproximação foi fundamental para a construção das
suas ideias, em especial do conceito de materialismo histórico (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
Outra aproximação – essa ocorreu em forma de cooperação – foi com Engels (1820-1895),
também alemão e filho de industriais. Juntos, eles constituíram a base do chamado socia-
lismo científico, em oposição ao socialismo utópico, que estava em voga na época.
Anos antes da publicação de “A Ideologia Alemã”, em 1845, obra mais substancial
no que diz respeito a sua concepção sobre história, Marx já apresentava sinais sobre o
pensamento que viria a se concretizar. Como dissemos, Marx tinha uma aproximação das
ideias de Hegel por conta de sua formação e mais especificamente se interessou pelo gru-
po “jovens hegelianos” ou hegelianos de esquerda (BOURDÉ; MARTIN, 1983). Os jovens
hegelianos tomavam a concepção dialética da história de Hegel de que o processo de
Em cada modo de produção, esse antagonismo entre as classes denota uma classe
dominante e outra dominada. Olhando para o passado, Marx encontra uma singularidade
no modo de produção capitalista, que desliga os dominados da apropriação dos bens de
produção, o que justificaria uma revolução – não apenas uma revolução de substituição de
uma classe por outra, mas sim o encaminhamento para a abolição das classes. A revolu-
ção, em suma, se caracterizaria de início pelo desmantelamento da classe dirigente, em
favor dos interesses gerais, para resultar num sistema no qual todas as pessoas poderiam
desempenhar qualquer função (MARX; ENGELS, 1998).
Em suma, muitos conceitos, tais como materialismo histórico, são utilizados, anali-
sados e criticados nos dias atuais, mostrando a relevância que os escritos de Marx tiveram
na formação da história. O caráter científico apregoado às ciências humanas no geral
dependeram de uma série de esforços por partes de várias correntes e intelectuais, inde-
pendentemente dos usos vulgarizados que possam ser feitos de suas ideias e conceitos.
Portanto, é importante compreender, que a cientificidade da história, enquanto disciplina,
dependeu de correntes de pensamento múltiplas e cada uma trouxe a nível de discussão
ferramentas essenciais para o pensar historicamente.
REFLITA
Vivemos num tempo atônito que, ao debruçar-se sobre si próprio, descobre que
seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que
ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser,
sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca
virmos a ser (SANTOS, 1995, p. 5).
Você viu que, para a história fundamentar-se como disciplina, várias concepções,
por vezes divergentes, foram importantes para esta elevação. A história constitui-se hoje
como campo bastante reconhecido e isso foi graças aos esforços e multiplicidade de ideias
que rondaram sua constituição desde o século XIX. Esse século, como você pôde perceber,
foi o século de ascensão das ciências em geral.
Começamos nossa discussão falando sobre historicismo. Mostramos como ele
nasceu em uma sociedade que começou a romper com os modelos tradicionais medievais.
É uma sociedade em transformação. Um momento propício para a “descoberta” da história.
Você pode perceber que esses historicistas definiram as primeiras diretrizes para a prática
historiográfica, orientando-se pela contextualização dos fenômenos e pela alteridade.
Outra contribuição para a escrita da história, no século XIX, foi por meio da Escola
Metódica. Ainda que haja ressalvas em imputar o título de “positivistas” a estes, é possível
dizer que foram largamente inspirados pelo “espírito positivo” de Comte. Aspirando fazer
uma história estritamente científica, esses intelectuais impuseram o método, que virou
palavra de ordem para pensar o documento, o objeto e a postura do historiador. Mostramos
como houve esse ímpeto em conferir um status de cientificidade à história, em paralelo com
as ciências da natureza e matemáticas, dominantes na época.
Por fim, você explorou o conceito de materialismo histórico de Karl Marx e seu
impacto para a historiografia. Iniciamos, contextualizando as ideias de Marx, percebendo
suas influências para a construção da noção da dialética inerente ao materialismo histórico.
Assim, foi possível perceber que as ideias de Marx como um todo sensibilizaram a história,
ao fornecerem um modelo teórico capaz de entender os processos de mudanças das so-
ciedades.
LIVRO
Título: A Cidade Antiga
Autor: Fustel de Coulanges
Editora: Edipro
Sinopse: Coulanges foi um dos representantes da Escola Metó-
dica francesa e nesta obra bastante conhecida o autor remonta
da Antiguidade grega e romana até o florescimento do Império
Romano. Nesta obra, a partir do método da história-ciência, Cou-
langes investiga o universo das crenças, a constituição da família,
a construção das cidades e o caráter das revoluções. A leitura
deste livro irá exemplificar como Coulanges dialoga com seus
contemporâneos no que diz respeito à procedimentos de análise.
FILME/VÍDEO
Título: O jovem Karl Marx
Ano: 2016
Sinopse: aos 26 anos, Karl Marx embarca com a mulher, Jenny,
para o exílio. Em Paris, eles conhecem Friedrich Engels, filho do
dono de uma fábrica que estudou o nascimento do proletariado
inglês. Engels traz a Marx a peça que faltava para o quebra-ca-
beça de sua visão de mundo. Juntos, em meio à censura, greves
e agitação política, eles vão liderar uma completa transformação
política e social do mundo.
Link:
https://www.papodecinema.com.br/filmes/o-jovem-karl-marx/detalhes/.
Plano de Estudo:
• A primeira geração;
• A segunda geração;
• A terceira geração;
• A nova história cultural.
Objetivos de Aprendizagem:
• Compreender o surgimento da Escola dos Annales e suas características;
• Entender as contribuições trazidas pela segunda geração da Escola dos Annales;
• Assimilar as permanências e transformações trazidas pela terceira geração da Escola
dos Annales;
• Analisar os princípios da Nova história Cultural.
82
INTRODUÇÃO
Esta unidade tem como propósito mostrar para você, caro (a) estudante, a impor-
tância da Escola dos Annales no século XX e as profundas influências até os dias atuais,
especialmente aqui no Brasil, onde uma parte considerável das pesquisas baseiam-se nos
princípios dos historiadores desta escola. Seus conceitos, métodos, abordagens, objetos,
passaram por grandes mutações desde a fundação da Escola em 1929.
Para começar, vamos explorar o surgimento da Escola dos Annales, no contexto
pós Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão econômica de 1929. Esses eventos
foram de grande impacto para a escrita da história, pois foi possível questionar se realmente
a sociedade estava rumando ao progresso, como se apregoava no século XIX. Você verá,
nas próximas páginas, a revolução empreendida por Bloch e Febvre ao romper de uma vez
por todas com a Escola Metódica e buscar apoio nas demais ciências humanas para um
alargamento das possibilidades de escrita da história.
No tópico seguinte, vamos explorar algumas das características da segunda ge-
ração, liderada por Fernand Braudel. A segunda geração dos Annales, assim, como a pri-
meira orienta-se no contexto de eclosão de um conflito de grandes dimensões: a Segunda
Guerra Mundial. No contexto universitário, os Annales avançavam, sobretudo, tomando
de empréstimo objetos e métodos de outras disciplinas. Você entenderá que foi por conta
dessa estreita relação com outras ciências humanas que Braudel propõe sua concepção de
temporalidades: a de longa duração, média duração e curta duração. O constructo teórico
de Braudel, que concedia privilégio à longa duração, renovou a vitalidade da disciplina
naquele período.
Em seguida, você irá conhecer a terceira geração dos Annales, ou melhor, aquela
que tomou para si o título de “nova história”. É esta geração que propôs “novos problemas”,
“novas abordagens” e “novos objetos” em torno que uma história-problema. Os historiado-
res dos Annales vão repensar o próprio fazer historiográfico, dizendo afastar-se de qualquer
dogmatismo. A escrita da nova história preza por um certo relativismo e considera que
as “construções culturais”, bem como se dedica a não pensar mais a história da elite, os
grandes feitos e os homens, mas sim investigar a vida de gente comum.
1 A PRIMEIRA GERAÇÃO
Ao lado do materialismo histórico, as ideias trazidas pela Escola dos Annales fo-
ram as que tiveram maior influência sobre a historiografia brasileira. A criação da escola
analítica vai estar ligada ao contexto de uma confluência de fatores em um mundo pós
Primeira Guerra Mundial (1914-1918). É um mundo profundamente modificado, no qual
os ideais de progresso indefinido e melhora da sociedade são questionados frente a um
mundo devastado pelo conflito.
A criação da Revista dos Annales em 1929 foi tendo como principais representantes
Marc Bloch e Lucien Febvre, um marco para a escrita da história do período, reunindo, em
um primeiro momento, críticas contundentes à historiografia dita positivista. O ano em que
a Revista foi fundada também é bastante significativo. Cabe lembrar que 1929 foi o ano da
Grande Depressão: uma grande crise econômica que atingiu América e Europa de uma
vez só, gerando recessão, deflação e desemprego. O mundo estava em crise e, como tudo
na história está interligado, essa crise também atingiu a história, permitindo que novas
abordagens fossem propostas.
Dosse (1992) deixa claro que é sobre o questionamento da sociedade acerca dos
rumos da economia, bem como os direcionamentos políticos dados para elas é que vão
dominar a cena entre as décadas de 1920 e 1930. Não é de se estranhar, portanto, que
houvesse a preocupação em se construir uma história econômica. Como já dissemos, a
Primeira Guerra foi aspecto preponderante para a modificação da escrita da história. Diante
2 A SEGUNDA GERAÇÃO
Na obra, o objeto central do livro não é o monarca Felipe II, mas sim o próprio
mar mediterrâneo e as regiões adjacentes. Para desenvolver sua reflexão, Braudel optou
por pensar o mar mediterrâneo e suas implicações na paisagem natural, assim como a
postura dos sujeitos frente às implicações colocadas. O autor teve a proposta de pensar o
século XVI, mais especificamente o período de 1550 a 1600. Entretanto, Braudel acabou
por retornar a períodos anteriores tendo em vista a própria perspectiva metodológica de seu
trabalho (BRAUDEL, 1983).
Com isso, Braudel fundamentou um amplo e constante diálogo com a geografia e,
com base nesta, afirma que a região do mar mediterrâneo era composta por características
distintas. Era importante para o historiador pontuar tais diferenças, ao passo que elas serão
fundamentais para entender as relações humanas, que estabelecendo relações com seu
meio físico, acabam inferindo na esfera social (BRAUDEL, 1983).
Um dos aspectos fundamentais que Braudel trouxe para a história é o alargamento
ainda maior das áreas a serem assimiladas pela história:
A associação com a geografia abre precedentes para que Braudel estabeleça ca-
tegorias espaço-temporais em termos globalizantes. Nesse sentido, ele retoma a herança
da primeira geração e busca perceber a movimentação da totalidade social, isso quer dizer
que, ao adotar uma perspectiva global dos eventos sobre os quais se debruça, “seu objetivo
é amplo e pressupõe, portanto, o domínio do método comparativo através do tempo mais
longo e do maior espaço possível” (DOSSE, 1992).
A obra de Braudel que citamos acima deixa clara a prevalência de um tempo longo,
quase imutável, das estruturas sociais, que é como o tempo da natureza. Nisso está o
cerne do pensamento de Braudel e é um dos motivos pelos quais ele ficou mais conhecido.
Quando Braudel escolhe falar sobre o tempo de longa duração, ele está a propor uma
categoria para pensar as temporalidades.
Não é apenas a geografia que contribui significativamente para Braudel elaborar a
concepção de longa duração: a antropologia estruturalista de Claude Lévi-Strauss foi peça
chave para a formulação de tal categoria. Braudel considerou pertinentes as descobertas
do antropólogo ao descobrir nas “sociedades primitivas” as estruturas sobre as quais os
mitos se assentavam.
A obra de 1964 “O Cru e o Cozido”, de Lévi-Strauss (2004), exemplifica o cerne de
seu pensamento. Nela, ele busca fazer um estudo acerca dos mitos e faz isso resgatando
alguns deles que são referentes às “culturas primitivas”, onde estes cumpririam papel im-
portante na sociedade. Essa análise não é feita primordialmente de forma temática, mas
sim propondo uma metodologia de estudo para pensar esses fenômenos, buscando a
estrutura em comum que os ligue, constituindo, portanto, um estruturalismo para entender
a essência dos mitos.
Em suma, é na segunda geração dos Annales que podemos observar que, a partir
do diálogo com outras ciências sociais, foi possível incorporar seus objetos, problemas e
métodos. Afirma-se também a posição de destaque da Escola em detrimento dos histo-
riadores metódicos. Além disso, o trato com a geografia adicionou o horizonte espacial na
perspectiva dos historiadores.
De 1957, quando Braudel assumiu a direção dos Annales, até 1968, as ideias do
historiador ganharam grande influência e tornaram-se incontestáveis. Depois deste período,
entram em cena o medievalista Jacques Le Goff (1924-2014), Marc Ferro (1924), especia-
lista na época contemporânea, e Emmanuel Le Roy Ladurie (1929). Esses historiadores
foram responsáveis por encabeçar a terceira geração dos Annales, que buscava promover
a “Nova História”, voltada para o estudo das mentalidades.
Bourdé e Martin (1983) demonstram, neste período, que os Annales ganharam muito
espaço, não apenas no que se refere ao alcance de suas publicações, mas também tinham
relações com casas editoriais, tinham financiamentos do Estado e fora dele, apareciam
na mídia para discutir assuntos históricos etc. Após a direção da revista ficar a cargo dos
historiadores já citados, eles ficam com a responsabilidade, em razão do cinquentenário da
revista, de fazer um balanço sobre a Escola dos Annales. Le Goff toma a frente e, junta-
mente com Pierre Nora, publica, em 1974, “Fazer História” – ali já se encontram as bases
de uma história de “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”, constituindo
a tríade fundamental na escrita destes historiadores da terceira geração.
Os partidários da Nova História procuram afastar-se de vertentes ideológicas bem
delimitadas, como explicam Le Goff e Nora:
A história nova, que recusa mais do que nunca a filosofia da história e que se
nega a reconhecer-se em Vico, Hegel, em Croce, e muito mais em Toynbee,
não se contenta mais, portanto, com as ilusões da história positivista e, para
além da crítica decisiva do fato ou do acontecimento histórico, se volta para uma
tendência conceitual que pode arrastá-la em direção a outra coisa que não ela
própria, quer que se trate das finalidades marxistas, das abstrações weberianas
ou das intemporalidades estruturalistas (LE GOFF; NORA, 1995, p. 13).
É discutível a existência de uma quarta geração dos Annales, uma parte pela força
e revolução que as ideias da terceira geração, da nova história, causaram. Contudo, ainda
assim, vemos uma movimentação no campo da história cultural, encabeçada por Roger
Chartier (1945), que identifica uma falência em termos como “mentalidades” e “cultura
popular”, dentre outras categorias pré-estabelecidas, que colocam a história em vistas de
uma nova crise.
Chartier é um historiador francês, dedicado à história da leitura, escrita e do livro nos
séculos XVI e XVIIII na França. Várias obras causaram impacto no Brasil, como “A história
cultural entre práticas e representações”, “A beira da falésia”, que reúne uma série de textos
do autor e também um artigo muito famoso chamado “O mundo como representação”.
O historiador é bastante conhecido pelos seus conceitos de prática e representação, os
quais vamos discorrer aqui. Mas, antes, vamos entender as condições que fizeram Chartier
elaborar tais conceitos.
Em 1988, o editorial da revista dos Annales convidou historiadores, dentre eles
Chartier, para tentar responder acerca de uma crise paradigmática que as ciências so-
ciais sofriam. Isso se revela por meio das explicações que procuram encaixar o estudo
de indivíduos e sociedades em modelos pré-estabelecidos, seja por meio de categorias
como classe sociais e classificações econômicas e profissionais, ou mesmo de modelos
Esta unidade teve como propósito mostrar para você a importância da Escola dos
Annales no século XX e como muitas destas ideias são fundamentais até os dias atuais
para a historiografias. Ao lado do materialismo histórico, as concepções da Escola dos
Annales foram as que tiveram maior penetração na academia. Assim, você pode ter um
panorama geral das diferentes gerações da Escola.
Para começar, você viu como ocorreu o surgimento da Escola dos Annales no con-
texto da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão de 1929. Entendendo que estes
eventos foram fundamentais para o repensar se a sociedade realmente estava caminhando
para o progresso, como pensava-se no século XIX, mostramos que os Annales romperam
de uma vez por todas com a Escola Metódica, fazendo alianças com outras ciências huma-
nas e alargando seu campo de ação para se fazer relevante.
No segundo tópico, discutimos sobre a segunda geração dos Annales, marcada
pela liderança de Fernand Braudel. Você viu que, de modo semelhante à primeira geração,
as mudanças na disciplina ocorreram no contexto de um grande conflito: a Segunda Guerra
Mundial. Vimos que os Annales avançaram, ainda que ancorados em métodos e objetos de
outras disciplinas. Braudel, fundamental por este estabelecimento dos Annales, estreitando
relações com outras ciências humanas, propõe a noção de temporalidades, que foi essen-
cial para prática histórica.
No tópico seguinte, falamos da terceira geração dos Annales, aquela que ficou
mais conhecida como “nova história”. A terceira geração promoveu um repensar da história,
promovendo “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”. Estes historiadores
procuraram se afastar de qualquer dogmatismo. Em sua forma de análise, você pôde ver
que eles prezavam pela história das mentalidade e temas diversos.
Fala-se muito de uma possível quarta geração dos Annales, mas, ainda que não
seja possível afirmar com absoluta certeza que esse empreendimento tenha sido alcança-
do, é inegável a influência das ideias de Roger Chartier para a história cultural. Por meio
dos conceitos de “prática” e “representação”, entre outros adjacentes, Chartier forneceu
instrumentos importantes que fugiam da simples separação entre “cultura popular” e “cul-
tura da elite”. Você pôde perceber que não apenas as ideias de Chartier, mas também de
outros intelectuais aqui citados foram fundamentais para a constituição da história.
Percebemos, então, um duplo problema de fundo: durante pelo menos boa parte de
sua existência, a revista abordou a História das Mulheres em raras ocasiões e, ao observar
aqueles nomes aos quais ligamos a sua identidade, ficamos com a pergunta: onde estariam
as historiadoras dos Annales?
Numa publicação cuja direção ainda não foi ocupada por mulheres e da qual a pre-
valência em outros cargos segue sendo masculina, uma presença feminina nos primeiros
anos da revista parece bastante significativa e pouco lembrada: trata-se de Lucie Varga.
Sua trajetória, de certa forma, é bastante elucidativa do problema em questão.
Nascida Rosa Stern no ano de 1904, em uma cidade próxima a Viena chamada
Baden, ela era proveniente de família de posses. Por capricho, ainda jovem mudou o nome
para Lucie. Casou-se com Joseph Varga, jovem húngaro de origem mais modesta. Da
união, teve uma filha chamada Berta. Um ano depois desse nascimento, inscreveu-se na
Universidade de Viena, onde estudou História, História da Arte e Filosofia. Em 1932, defen-
deu a sua tese de doutorado sobre a Idade Média.
No ano seguinte, separou-se do marido, e começou a dar aulas em uma universida-
de popular criada em uma municipalidade socialista em Viena (Volkschochschule). Foi esse
o momento de sua extrema politização. Lucie Varga aderiu ao movimento antifascista, além
de engajar-se no movimento feminista. Casou-se pela segunda vez com Franz Borkenau,
intelectual austríaco que viria a ser considerado um dos primeiros a elaborar o conceito
de “totalitarismo”. A relação pouco durou, mas é digna de ser mencionada porque a jovem
historiadora tomou com ele a decisão de sair de Viena. As origens judaicas do casal cada
vez mais ameaçavam a sua integridade naquele país.
No momento em que o mais comum entre os seus pares era buscar abrigo em
Praga, Varga e o marido decidiram mudar-se para Paris. Ela queria dar prosseguimento
aos seus estudos. Logo conheceu o eminente historiador Lucien Febvre, um dos “pais
fundadores” da revista Annales d’histoire économique et sociale, que a contratou como
assistente. Em carta escrita a Marc Bloch, seu parceiro nos Annales, ele comentava:
Meus trabalhos… aqui, novamente, eu lhe asseguro. Trabalho ativamente
nas Religiões do século XVI. Contratei um “treinador”, melhor dizendo uma
treinadora: uma austríaca aluna de Dopsch, sobre o qual creio já ter falado
com você, madame Varga-Borkenau – que três manhãs por semana vem
trabalhar comigo.
Graças a seu intermédio, Franz Borkenau publicou três artigos nos Annales, mas
as oportunidades profissionais acabaram por afastar o casal. Ele quis seguir viagem para
Londres depois de um tempo, ela permaneceu em Paris e a distância parece ter acarretado
a separação dos dois. Gradualmente, a relevância da atuação da aprendiz para o trabalho
de Febvre ia aumentando, a ponto de Varga fichar livros e fornecer, assim, material para
que Febvre pudesse publicar na Revue de Synthèse e nos Annales resenhas de obras
que ele não tinha tempo de ler. Durante sua carreira, Varga dedicou-se aos estudos sobre
fenômenos de religiosidade e a fascinação que eles ainda exerciam. Inicialmente dedicada
Crises
LIVRO
Título: Cinema e História
Autor: Marc Ferro
Editora: Paz e Terra
Sinopse: neste livro, que é uma das obras inaugurais do campo
de estudos da inter-relação entre o cinema e a História, Marc Ferro
contrapõe os dois discursos de maneira a mostrar não apenas
como um interfere no outro, mas também quais são os questio-
namentos que devem ser feitos a partir dessas interferências. Por
meio de filmes como O encouraçado Potemkin, O judeu Süss, A
grande ilusão, M., o vampiro de Dusseldorf, O terceiro homem,
entre outros, o autor analisa os processos de produção dos filmes
e as influências políticas e sociais que eles acarretaram.
Link: https://www.amazon.com.br/Cinema-hist%C3%B3ria-Marc-
-Ferro/dp/8577530280.
FILME/VÍDEO
Título: Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos
Ano: 1999
Sinopse: trata-se de um filme-memória do século XX, a partir de
recortes biográficos de pequenos e grandes personagens que por
aqui passaram. 95% das imagens são de arquivo: filmes antigos,
fotos e material da TV. Não há locução, nem depoimentos orais.
A sonorização é toda música de Wim Mertens, efeitos sonoros e
silêncio. O filme ganhou 17 prêmios nacionais e internacionais e
ficou 8 meses em cartaz em SP e Rio.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=gmqXVwfUHxE&bpc-
tr=1588026242.
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Por fim, você conheceu a Escola dos Annales, a qual teve seu surgimento no sé-
culo XX, tendo influenciado, e influenciando até os dias de hoje, gerações de historiadores.
Passamos ainda pelo seu surgimento, pela crítica à Escola Metódica e seu estabelecimento
como abordagem quase que hegemônica. Além disso, pudemos ver as profundas trans-
formações trazidas pela segunda, terceira geração e também pela nova história cultural.
Esperamos que tenha aproveitado a leitura.