Você está na página 1de 115

Introdução aos

Estudos Históricos
Professor Ma. Maria Helena Azevedo Ferreira
Diretor Geral
Gilmar de Oliveira

Diretor de Ensino e Pós-graduação


Daniel de Lima

Diretor Administrativo
Eduardo Santini

Coordenador NEAD - Núcleo


de Educação a Distância
Jorge Van Dal

Coordenador do Núcleo de Pesquisa


Victor Biazon
UNIFATECIE Unidade 1
Rua Getúlio Vargas, 333,
Secretário Acadêmico Centro, Paranavaí-PR
Tiago Pereira da Silva (44) 3045 9898

Projeto Gráfico e Editoração UNIFATECIE Unidade 2


André Oliveira Vaz Rua Candido Berthier
Fortes, 2177, Centro
Revisão Textual Paranavaí-PR
Kauê Berto (44) 3045 9898

UNIFATECIE Unidade 3
Web Designer Rua Pernambuco, 1.169,
Thiago Azenha Centro, Paranavaí-PR
(44) 3045 9898

UNIFATECIE Unidade 4
BR-376 , km 102,
Saída para Nova Londrina
FICHA CATALOGRÁFICA
Paranavaí-PR
CENTRO UNIVERSITÁRIO UNIFATECIE.
Credenciado pela Portaria N.º 527 de 10 de junho de 2020,
(44) 3045 9898
publicada no D.O.U. em 15 de junho de 2020.
Núcleo de Educação a Distância;
FERREIRA, Maria Helena Azevedo. www.unifatecie.edu.br
Introdução aos Estudos Históricos.
Maria. Helena Azevedo Ferreira.
Paranavaí - PR.: UniFatecie, 2020. 115 p.
As imagens utilizadas neste
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária livro foram obtidas a partir
Zineide Pereira dos Santos. do site ShutterStock
AUTORA

Professor Ma. Maria Helena Azevedo Ferreira

● Mestra em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM);


● Licenciada em História pela Universidade Estadual de Maringá;

Desenvolveu pesquisa em História das Ideias e Crenças. Já atuou na área da


educação como professora orientadora em cursos lato-sensu da Unicesumar. Possui expe-
riência em faculdades públicas e privadas no âmbito da educação a distância.
APRESENTAÇÃO DO MATERIAL

Você deve saber que a História não é um mero exercício de narração dos fatos
em ordem cronológica: ela é muito mais que isso. Nesse sentido, a disciplina que será
apresentada a você terá o intuito de introduzir alguns métodos, problemáticas e objetos
da escrita da História. A disciplina enquanto prática exige que o historiador esteja a par
das diversas abordagens históricas, entendendo como estas também são produtos de um
desenvolver, para que consiga olhar melhor para o passado.

Tendo isso em vista, a primeira unidade visa apresentar os conceitos fundamentais


para a escrita da história, que foram selecionados para pensar o objeto principal do historia-
dor, passado, por intermédio do seu recurso mais importante: a fonte. Discutiremos também
a postura do historiador em relação ao seu objeto de estudo, entendendo as implicações
de seu lugar social, ou seja, quais são condicionantes sociais de sua escrita. Ainda nessa
unidade, com o intuito de trazer uma reflexão, vamos fazer um diálogo acerca da divisão
quadripartida da História.

Na segunda unidade, logo no primeiro tópico, haverá uma discussão sobre mito
e história, discussão que terá importância para que você entenda as diferentes relações
que os seres humanos estabeleciam com o passado e como eles o representavam. Nesse
sentido, passaremos pelos primeiros indícios de escrita da História ainda na Antiguidade,
ressaltando o papel de alguns pensadores para o desenvolver do campo histórico. Fala-
remos também sobre as possibilidades de escrita da história durante o período medieval.

Em seguida, na unidade III, abordaremos a escrita da história no século XIX, mo-


mento no qual a História procurou se colocar como ciência. Como você poderá visualizar,
uma das primeiras investidas da disciplina foi por intermédio do historicismo alemão, movi-
mento que “descobriu” a História, fundamentando importantes perspectivas. Apresentare-
mos em seguida, a Escola Metódica, que, em um amplo diálogo com as ciências naturais
e matemáticas, firmou seu discurso em um caráter objetivo da História e do historiador.
Nessa unidade você também vai conhecer o materialismo histórico, importante instrumento
para pensar o macro das mudanças históricas, pautadas pela materialidade.

Por fim, na última unidade, apresentaremos a Escola dos Annales, movimento


bastante influente no Brasil e em outras partes do mundo até os dias atuais. A Escola
dos Annales possui, de forma geral, três gerações e uma discutível quarta geração. Co-
meçaremos falando dos fundamentos que possibilitaram que Bloch e Febvre fundassem
a escola, para que, em seguida, possamos discutir as particularidades de cada geração,
também perpassando pela abordagem cultural de Chartier, a qual continua a influenciar as
pesquisas de historiadores.

Em suma, acreditamos que esse material possa servir de embasamento para a


compreensão de demais conteúdos que estão por vir em seu curso. Que você não se
esqueça de que todo fato histórico não é construído de forma descompromissada, mas sim,
estão ancoradas em métodos, abordagens e lugares sociais.
SUMÁRIO

UNIDADE I....................................................................................................... 7
Introdução à Prática Historiográfica

UNIDADE II.................................................................................................... 32
Concepções Sobre História na Antiguidade e no Medievo

UNIDADE III................................................................................................... 55
A Escrita da História no Século XIX

UNIDADE IV................................................................................................... 82
A Escola dos Annales
UNIDADE I
Introdução à Prática Historiográfica
Professora Mestra Maria Helena Azevedo Ferreira

Plano de Estudo:
• Conceitos fundamentais para a prática historiográfica;
• O ofício do historiador e seus desafios;
• O quadripartismo histórico e suas problemáticas.

Objetivos de Aprendizagem:
• Apresentar os principais parâmetros da escrita da história;
• Compreender o trabalho do historiador e suas questões;
• Problematizar paradigmas do âmbito da história.

7
INTRODUÇÃO

Você já parou para pensar como os fatos históricos são construídos e como é o
trabalho do historiador? Certamente você deve imaginar que a história não é simplesmente
uma narração cronológica que surge do nada. Muito pelo contrário: para fazer história, são
instaurados, em primeiro lugar, pressupostos básicos que garantem à disciplina de História
legitimidade ao falar do passado.

Logo no primeiro tópico, você compreenderá alguns destes pressupostos básicos


para historiografia – para escrita da história. Em primeiro lugar, você vai entender o que
é história e qual o objetivo central da disciplina. Além disso, vai conhecer um conceito
fundamental para a prática historiográfica: o anacronismo, que sempre deve ser evitado
pelo historiador. Levando em consideração que a história é uma ciência humana e, por isso,
dialoga tanto com a subjetividade do sujeito historiador como com objetividade do método,
é preciso estabelecer um diálogo entre estas duas instâncias, subjetividade e objetividade,
a fim de explorar suas implicações do trato metodológico.

Temas bastante discutidos na história, tais como anacronismo, objetividade e sub-


jetividade, trato com o passado e documentos, é que são os vestígios do passado. A partir
destes preceitos é que o fazer histórico se torna possível. Tão importante quanto estes
conceitos são também o trato com o passado como categoria indelével, o qual o historiador
pode apenas se aproximar. Isso se dá a partir do cuidado com os documentos e com as
fontes de pesquisa, pedra fundamental para a escrita da história.

Como já dissemos, a história é uma ciência humana e isso evoca uma série de
problemáticas com relação ao sujeito pesquisador (historiador) com relação ao seu objeto
(o passado). Assim, o ofício do historiador e seus desafios são o tema do nosso segundo
tópico. Exploraremos a questão do “lugar social” do historiador, como aquele que condiciona
e molda sua visão sobre o passado, bem como voltaremos a discutir a função do historiador
na atualidade.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 8


No último tópico, a fim de fazer com que você pense criticamente com relação à
formatação da história, introduziremos a noção de quadripartismo histórico. Essa discussão
é importante para que você entenda que a divisão hoje vigente na história não é um dado
natural: ela foi construída através de pressupostos eurocêntricos. Por isso, nós como his-
toriadores latino-americanos, ou historiadores em formação, precisamos repensar o modo
como olhamos para história e como podemos contribuir para nosso próprio lugar social.

Esperamos que você aproveite a discussão apresentada nas próximas páginas e


que você possa entender que a história é muito mais do que decorar nomes ou datas.

Bons estudos!

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 9


Fonte: Freepik (2020).

1 CONCEITOS FUNDAMENTAIS PARA A PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA

1.1 Preceitos Básicos do Fazer Historiográfico


A História é uma ciência que se desenvolve a partir de uma base sólida de instru-
mentos, a partir dos quais torna-se possível o fazer historiográfico, ou seja, a escrita da
história. Fazer história, neste sentido, não é apenas reunir um conjunto de fatos históricos
e fazer uma narrativa cronológica. Portanto, mais do que narrar fatos, a História está sub-
sidiada à teoria e ao método; em outras palavras, a partir do que é possível fazer História
e como fazer isso.
Antes de tudo, é preciso pensar: o que é efetivamente História? O célebre historia-
dor Marc Bloch (2001, p. 52) ponderou que dizer “a História é uma ciência do passado” é
uma concepção equivocada.
Há, neste sentido, uma história do sistema solar, na medida em que os astros
que o compõem nem sempre foram como os vemos. Ela é da alçada da
astronomia. Há uma história das erupções vulcânica que é, estou convencido
disso, do mais vivo interesse para a física do globo. Ela não pertence à histó-
ria (BLOCH, 2001, p. 53).

Seguindo o raciocínio de Bloch (2001) do que não é alçada da História, temos


pistas do elemento fundamental que constitui a disciplina. Nos exemplos citados falta o que
é primordial para a História: o ser humano, sua interferência e ação. A partir disso, para
uma definição mais adequada, pode-se dizer que a História é a ciência dos homens no
tempo.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 10


Mas ela é realmente uma ciência? Essa é uma discussão bem longa, pois desde o
século XIX discute-se o lugar da História no rol das ciências. Como veremos mais adiante,
foi no século XIX que houve um esforço para organizar um conjunto de métodos de análise
dos fatos, bem como delineou-se a postura do historiador, a fim de chegar uma controversa
verdade histórica (ZANIRATO, 2011). É claro que as problemáticas e as críticas com relação
aos caminhos que a historiografia tomou no passado são presentes até os dias atuais. Ain-
da assim, o que Bloch (2001), como defensor ferrenho de novos métodos e caminhos para
História em seu tempo nos mostra é que a História não adota uma linguagem equivalente
à da matemática e possui um linguagem própria ao lidar com fatos humanos, que exigem
outros instrumentos de análise.
A intenção do historiador ao analisar o passado é chegar o mais próximo possível
do que realmente aconteceu. Mas isso está inevitavelmente ligado ao fato de que é um
sujeito do presente olhando para outra época, assim o fazer historiográfico é sempre um
olhar do presente para o passado (ZANIRATO, 2011).
É comum que uma pessoa do século XXI, ao ter conhecimento, por exemplo, dos
hábitos escassos de higiene do período colonial por parte da Corte e da população em
geral, fique espantada e os atribua uma série de adjetivos pejorativos. Esse menosprezo e
julgamento com relação a esses, com base no olhar de um século que preza por princípios
de higiene e sanitarismo, é o que chamamos de anacronismo e é um dos maiores erros
do historiador.
Nesse sentido, outro renomado historiador, Lucien Febvre (2009, p.33), foi taxativo
ao afirmar que o historiador deve evitar o que seria “o pecado entre todos imperdoável: o
anacronismo”. Analisar, julgar e verter sobre o passado uma visão advinda do presente
é, para este, subverter as concepções da época que está sendo estudada, favorecendo
nossos próprios valores, sentimentos, visão de mundo e modos de sentir. Isso seria um
obstáculo ao historiador que deseja se aproximar de uma interpretação histórica.
A interpretação histórica, como o historiador narra o fato, está sujeita a dois parâme-
tros básicos, longamente discutidos pela historiografia: a objetividade e subjetividade. É,
segundo Ricoeur (1968), um problema do trato metodológico, ou seja, em como eu, como
historiador (a), escolho meus documentos, analiso as informações, interpreto os dados e
os narro.
Em primeiro lugar, o que é essa objetividade?
[...] é objetivo aquilo que o pensamento metódico elaborou, pôs em ordem,
compreendeu, e que por essa maneira pode fazer compreender. Isto é exato
quanto às ciências físicas quando às ciências biológicas; também é exato
quanto à história (RICOEUR, 1968, p. 23).

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 11


Entende-se, portanto, que a objetividade cumpre dentro um de campo científico,
critérios validados e legitimados como verdadeiros e eficazes para a produção do conhe-
cimento. Sua funcionalidade reside na produção de conhecimento digno de confiança e
amparado pela tradição.
No âmbito da história, se um (a) historiador (a) toma a observação de um vestígio
documental para entender um evento, leva em consideração um princípio fundamentado
e reconhecido na história, o de que a disciplina se faz a partir dos vestígios. Este é um
princípio pautado em uma premissa objetiva (RICOEUR, 1968).
A objetividade é própria ciência histórica. No entanto, está intimamente ligada à
subjetividade pertencente ao historiador. É ele quem seleciona os documentos, levanta os
questionamentos e traz a narrativa de um modo particular. De uma certa maneira, pode-se
dizer que objetividade e subjetividade são inerentes ao fazer historiográfico (RICOEUR,
1968).
Por isso, objetividade e subjetividade encontram-se relacionadas, em um primeiro
momento, pelo que Ricoeur (1968) chama de “julgamento de importância”. É o historiador
quem seleciona o documento, analisa o fato e cria a série de acontecimentos, mas essa se-
leção está sempre vinculada a critérios advindos da base teórica sobre a qual o historiador
se assenta.
Outro aspecto que revela a intersecção entre objetividade e subjetividade é a
“distância histórica”. É tarefa da história, como ciência objetiva, falar sobre o “outro”, outro
tempo, outros costumes, outras instituições etc. Contudo, como falar do outro ou daquilo
que já não mais existe na nossa linguagem contemporânea sem perder o referencial? Cabe
aqui a representação do passado, ainda que auxiliado por categorias explicativas, por meio
de uma linguagem do presente (RICOEUR, 1968).
Por fim, a história é uma ciência que tem como fim último o estudo dos seres
humanos. Em suma, a escrita da história envolve o estudo de pessoas por outras pessoas,
com características em comuns e isso pode criar uma aproximação por parte do historiador
do seu objeto de estudo (RICOEUR, 1968).
Até aqui, esperamos que a concepção básica do que é História tenha ficado clara.
Assim, partindo da ideia de que a História é uma ciência que tenta compreender cada
realidade em seu contexto específico, nos desprendendo de nossas visões de mundo e nos
apegando as concepções do “outro” estudado, permeada pela objetividade e pela subjeti-
vidade, esperamos que você compreenda, a seguir, um pouco sobre o estudo do passado.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 12


1.2 Sobre o Objeto: o Passado
A história possui vários domínios: História Antiga, História Medieval, História da
América, História Política, História das Religiões, História da Alimentação, Teorias da His-
tória, apenas para citar alguns. Seja por recorte temporal ou de eixo temático, o que todos
eles têm em comum é o estudo do passado – ou mesmo o estudo em como analisar o
passado.
Mas o que significa estudar o passado?
Se o passado conta, é pelo que significa para nós. Ele é produto de nossa
memória coletiva, é o seu tecido fundamental [...]. Mas esse passado, próximo
ou longínquo, tem sempre um sentido para nós. Ele nos ajuda a compreender
melhor a sociedade na qual vivemos hoje, a saber o que defender e preser-
var, saber também o que mudar e destruir. A história tem uma relação ativa
com o passado. O passado está presente em todas as esferas da vida social
(CHESNEAUX, 1995, p. 22).

Como já dissemos, a História é a ciência dos homens no tempo. Por isso, o tempo
é tão primordial para essa disciplina, mas para o historiador não basta dizer, por exemplo,
que entre a ocupação dos portugueses no Brasil, em 1500, e a independência do Brasil,
em 1822, passaram-se 322 anos. O que realmente importa é conhecer os mecanismos que
fizeram o Brasil abandonar a condição de colônia e proclamar sua independência.
Qualquer que seja o tema da pesquisa, por vezes, o (a) historiador (a) na busca de
explicações do porquê ou como aquele determinado evento ocorreu, recorre às origens.
Porém será que as origens do fenômeno explicam o motivo pelo qual houve o ocorrido?
Em nosso exemplo inicial, as origens do Brasil Colonial, com a ocupação dos portugueses,
simplesmente explicam o porquê de o Brasil ter se tornado independente séculos mais tar-
de? Bloch (2001) adverte sobre os perigos de tomar as origens como causas explicativas:
“para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior ainda: basta para
explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo” (BLOCH, 2001, p. 57).
A busca pelas origens, para Bloch (2001), começa a ser orientada também por uma
busca de sentido no próprio presente, legítima e atesta um passado um único, que corre
de forma linear ao presente. Contudo, a História não funciona assim: o início de um evento
não é a explicação deste. A explicação de um fenômeno reside em seu próprio contexto de
aparecimento:
Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno fora do estudo de seu
momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela
em vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os
homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. Por não
ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em
descrédito” (BLOCH, 2001, p. 60).

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 13


Com isso, Bloch (2001) quis dizer que somos produtos da nossa época, assim
como nossos antepassados são frutos de seus respectivos contextos e a busca por origens
não explica, por si só, o que somos ou que fazemos. Assim, é importante reconhecer, ao
tomar um objeto de estudo, as particularidades e as vicissitudes daquele período.
Até agora, vimos que para um efetivo estudo do nosso objeto, o passado, não
devemos buscar origens como se elas explicassem tudo, mas, sim, precisamos olhar para
o próprio contexto, no qual aquele evento ocorreu. Agora, precisamos entender que o pas-
sado e a História são diferentes.
A História é a ciência que estuda o passado, mas, segundo Bloch (2001), ela não
o narra tal como aconteceu: apenas tenta se aproximar. Até porque fazer isso implicaria na
busca por uma “verdade” histórica única e imutável e também em uma neutralidade e total
perda da subjetividade do (a) historiador (a) ao analisar o fato, o que não pode ocorrer.
Ricoeur (1968) bem lembrou que a ideia de “verdade” assenta-se em um ideal intelectual,
algo que não pode ser efetivado em sua plenitude.
O passado é o legado que serve de base para “a manutenção e a sobrevivência
das gerações vindouras” (COELHO; MELO, 2017, p. 213). São valores, passíveis de mu-
danças, sobre os quais os seres humanos se comprometem, criando um elo entre presente
e passado. Com isso, o passado “[...] não passa de material bruto, um fragmento de fatos
mortos, que só nasce com História mediante o trabalho interpretativo dos que debruçam,
reflexivamente, sobre ele” (RÜSEN, 2001, p. 68 apud ZANIRATO, 2011, p.15). Assim, o
passado só ganha vida a partir de momento em que há o interesse por parte do historiador
de analisá-lo no tempo presente.
De fato, os historiadores têm um compromisso com a investigação do passado. Os
usos do passado por intermédio da memória, especialmente a memória oficial, têm impli-
cações no presente. Hobsbawm (2013, p. 11) lembra que “o passado legitima. O passado
fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que come-
morar”. Isso quer dizer que a interpretação do passado não é monopólio dos historiadores
e as interpretações que se fazem dele para justificar ações e ideologias do presente são
comuns na sociedade em geral, mas especialmente problemáticos em governos e regimes
que flertam com totalitarismos em um movimento de lembrar e esquecer eventos históricos.
A memória tem usos no presente, mas também tem seus abusos. Para Ricoeur
(2007), os abusos da memória “resultam de uma manipulação concertada da memória e do
esquecimento por detentores de poder” (RICOEUR, 2007, p. 93). Mas como os detentores
de poder instrumentalizam a memória e o esquecimento de povo? Basta recordar que

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 14


tanto lembrar como esquecer são dois processos fundamentais para o ser humano. Sem
a memória não seríamos capazes de nos reconhecermos como indivíduo e sociedade e
sem o esquecimento não seria possível adquirirmos novos conhecimentos e lidarmos com
situações conflitantes. Para responder à pergunta inicial, Paul Ricoeur chama atenção para
um pré-requisito fundamental: a fragilidade da identidade.
Uma sociedade precisa responder à questão “quem somos nós?”. Essa pergunta
incide, em primeiro lugar, na delicada relação com a temporalidade: evoca-se uma memória
coletiva, com uma análise vinda do presente e com uma projeção do futuro. Em segundo
lugar, está o tratamento para com o outro que começa a se constituir como ameaça para o
“nós” e para o “eu”; uma ameaça à identidade, tendo como exemplo o fato que muitos não
conseguem tolerar modos de viver diferentes e veem seu próprio modo de vida em risco
simplesmente pela existência do outro. O terceiro fator para a fragilidade da identidade
é que todas as sociedades são constituídas na base da violência. Atos celebrados como
marcos históricos são instituídos por meio de guerras e/ou violências por parte do Estado
(RICOEUR, 2007).
Com base nesses aspectos, Ricoeur (2007) avalia que as manipulações de memó-
ria acontecem entre a reivindicação da identidade e as manifestações públicas de memória.
Isso faz parte de um processo ideológico que:
é opaco por dois motivos. Primeiro, permanece dissimulado [...] é inconfessá-
vel, mascara-se ao transformar em denúncia contra os adversários no campo
da competição entre ideologias: é sempre o outro que na atola na ideologia”
(RICOEUR, 2007, p. 95).

De grosso modo, é partir da criação de narrativas, ou seja, da construção de cená-


rios nos quais os personagens têm papéis e funções bem delimitadas que uma ideologia
pode se utilizar da memória de um povo e também pode engendrar o esquecimento, ao
deixar fora da narrativa oficial fatos históricos (RICOEUR, 2007). O historiador deve per-
manecer atento aos usos que os detentores do poder fazem das memórias de um povo,
como estes constroem suas narrativas e quais são seus interesses. Assim, o compromisso
com o tratamento do objeto e a percepção da memória de um povo perpassam também em
desconstruir narrativas pré-fabricadas e tomar um posicionamento crítico.
Vemos, assim, que a memória apresenta-se como aspecto representativo do pas-
sado. Deste modo, ela não é o passado em si, mas um produto das interpretações da
sociedade, sujeita a pressões das diferentes esferas que a compõe. A partir disso fica claro
que, se tratando da história, não lidamos com a memória de um ou dois indivíduos isolados,

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 15


mas sim de memórias coletivas, sendo possível que a sociedade como um todo tenha
memórias compartilhadas.
Segundo Ricoeur (2007), categorias patológicas, como o de trauma, por exemplo,
que, na psicanálise, ficariam no nível individual, podem ser transpostas para o coletivo: “a
noção de objeto perdido encontra uma aplicação direta nas ‘perdas’ que afetam igualmente
o poder, o território, as populações que constituem a substância do Estado” (RICOEUR,
2007, p. 92).
As memórias coletivas não são as mesmas para todos: o que significou vitória para
uma sociedade, pode ter significado humilhação para a outra (RICOEUR, 2007). Dessa
maneira, o processo de lembrar cria um vínculo com o presente, assim como o processo
de esquecer, de criar novas interpretações da realidade que se evoca ou deixa de evocar e
releva muito daquilo como aquela sociedade lida com seu passado.
A apreensão do passado é algo complexo, em que historiadores, através da análise
das fontes e métodos bem definidos, podem, em suas conclusões, chegar perto de entender
determinado evento histórico, ainda que suas hipóteses sempre possam ser contestadas.
Por isso, Bloch (2001) sustenta que o historiador não narra o fato tal como se passou.
História se faz com base em testemunhos daquilo que o próprio historiador não presenciou;
são resquícios e indícios de uma parte do passado e não o passado em si. Nesse sentido,
as fontes de pesquisa e sua análise são fundamentais e é isso que veremos a seguir.

1.3 Sobre a Fonte: o Documento


Vamos falar de um aspecto fundamental para o fazer historiográfico: a fonte, que
é o documento. Toda história produzida dentro das premissas da disciplina, seja narrada
nos livros didáticos ou em livros comuns, tem em comum o fato de que um historiador
teve acesso a certos documentos e, a partir de um procedimento metodológico, construiu
hipóteses em torno desse documento.
O trabalho do historiador é investigativo, nasce da curiosidade em entender um
fenômeno que permanece na memória coletiva – ou lançar luz sobre algo que está no
esquecimento. A busca por fontes e por diferentes documentos que registrem de alguma
forma aquele fenômeno é um dos primeiros passos. Na tentativa de tentar entender aquilo
que aconteceu, o (a) historiador (a) deve, em sua análise, buscar formas de compreender
melhor os resquícios do passado sobre o qual está debruçado:
A análise da documentação demanda que o historiador adote procedimentos
metodológicos para não incorrer no risco de fazer interpretações do pas-
sado que não encontrem correspondência entre o ocorrido e o modo como
se registra essa ocorrência é necessário que os historiadores empreguem

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 16


métodos de investigação pertinentes à explicação histórica, que limitem a
liberdade interpretativa do historiador e que orientem a investigação. A inves-
tigação histórica assim conduzida contribui para uma menor subjetividade na
interpretação histórica (ZANIRATO, 2011, p. 21).

A partir da citação acima podemos afirmar que a História se faz a partir de docu-
mentos, que são as fontes que trazem vestígios do passado. É importantíssimo que você
tenha em mente a centralidade do documento para a investigação histórica. Não estamos
a falar aqui sobre documento em seu sentido restrito, escrito e oficial, mas sim em uma
concepção mais abrangente. Era comum até meados do século XX restringir o documento
ao texto e foi apenas na década de 1960, quando houve uma revolução documental, que foi
permitido o estudo não apenas decretos oficiais, mas de tudo aquilo relacionado ao estudo
das “massas”, como relatos orais, cultura material, músicas, imagens, dentre outros (LE
GOFF, 1990).
Marrou (1968) explica que documento é todo vestígio sobre o qual se pode retirar
informações valiosas para o historiador:
Em síntese, tudo aquilo que, na herança subsistente do passado, pode ser
interpretado como um indício que revela alguma coisa da presença, da ati-
vidade, dos sentimentos, da mentalidade do homem de outrora, entrará em
nossa documentação (MARROU, 1968, p. 63).

Cada tipo de fonte, seja ela registros oficiais, relatos orais, imagens, interrogatórios
etc., suscita problemáticas diferentes. Nesse sentido, Burke (1992) chama a atenção para
o fato de historiadores que se debruçam sobre a história do cotidiano, na vida da pessoa
comum, têm acesso a um tipo de documento, como um interrogatório, por exemplo, que é
um registro extraordinário do indivíduo e o relato por si só não revela seus hábitos cotidia-
nos. Nisso, para Burke (1992), reside em ler as fontes nas entrelinhas.

SAIBA MAIS
A análise documental é, sobretudo, investigativa e as fontes podem revelar uma série
de fatos históricos inauditos. Um exemplo disso, foi o método investigativo utilizado pelo
historiador Carlo Ginzburg, chamado de paradigma indiciário. O método consiste em
perceber os sinais, os detalhes: assim como um perito criminal analisa a cena de um cri-
me, o historiador procura construir, através das fontes como vestígios, o quebra-cabeça;
assim podemos tangenciar o passado.
Fonte: Guinzburg (1989).

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 17


As fotografias, como fontes, também evocam problemas específicos. Até pouco tem-
po entendia-se que as fotos eram registro objetivo da realidade, porém é preciso considerar
que o fotógrafo escolhe determinados ângulos e persegue a imagem ideal por disposições
conscientes e inconscientes. As fotografias, portanto, se colocam como representações da
realidade e não como a realidade em si (BURKE, 1992).
As fontes documentais são aquelas encontradas em arquivos e que exigem muita
dedicação por parte do historiador em procurar e selecionar os documentos relevantes para
sua pesquisa. Os arquivos guardam documentos muito antigos e deles podem sair grandes
obras. Os arquivos pode ser de diferentes tipos e conter diferentes tipos de documentos
como mostra o quadro abaixo:

Quadro 1 - Tipos de arquivos e documentos

Arquivos Documentos
Correspondência: ofícios e requerimentos
Lista nominativas
Matrículas de classificações de escravos
Arquivos do Poder Executivo Listas de qualificação de votantes
Documentos de polícia
Documentos sobre obras públicas
Documentos sobre terras
Atas
Arquivos do Poder Legislativo
Registros
Inventários e testamentos
Arquivos do Poder Judiciário Processos cíveis
Processos crimes
Notas
Arquivos cartoriais
Registro Civil
Registros paroquiais
Arquivos eclesiásticos (da Igreja) Processos
Correspondência
Documentos particulares de indivíduos, fa-
Arquivos privados
mílias, grupos de interesse ou empresas
Fonte: Bacellar (2011).

Outro suporte documental são as revistas e os jornais, também conhecidos como


periódicos. Luca (2011) explica que apenas recentemente é que os periódicos começaram
a ser entendidos como fontes, isso porque a história vem de uma tradição que preza pela
objetividade, imparcialidade e distância dos fatos ocorridos e os periódicos se revelavam

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 18


um “influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem captar o ocorrido,
dele forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas” (LUCA, 2011, p.112).
A análise dos periódicos deve levar em conta a forma e conteúdo presente, bem
como o público consumidor e os idealizadores. Por isso, é importante levar em considera-
ção que a imprensa seleciona, estrutura e narra aquilo que julga importante chegar ao leitor,
de acordo com seus interesses econômicos e políticos. É através da análise do discurso,
de ler além do texto escrito, que o historiador deve pautar sua leitura deste tipo de fonte.
O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia, o
que por si só já abarca um espectro de questões, pois será preciso dar conta
das motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma coi-
sa. Entretanto, ter sido publicado implica atentar para o destaque conferido
ao acontecimento, assim como para o local em que se deu a publicação: é
muito diverso o peso do que figura na capa de uma revista semanal ou na
principal manchete de um grande matutino e o que fica relegado às páginas
internas (LUCA, 2011, p. 140, grifo do autor).

Qualquer que seja o tipo de documento, que será nossa fonte, este só atinge tal
status a partir da escolha do historiador. Le Goff (1990) sugere o trabalho com a noção
documento/monumento para explicar a prática investigativa do historiador. Primeiro, vamos
a definição de monumento:
O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filoló-
gicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar
a recordação, por exemplo, os atos escritos [...]. Mas desde a Antiguidade
romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma
obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna,
troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a
recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente
valorizada: a morte. O monumento tem como características o ligar-se ao
poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas
(é um legado à memória coletiva) (LE GOFF, 1990, p. 536-537).

O monumento é a manifestação da memória coletiva. Por exemplo: provavelmente


existe algum monumento em sua cidade, ou alguma outra que você conheça, que diga
respeito a um determinado fato histórico que se queira lembrar de uma dada forma. Os
monumentos não são apenas de ordem física e/ou material, mas também podem se mani-
festar para além disso: dizeres comuns, lendas, preces, poemas etc. Isso quer dizer que o
monumento é fruto daquilo que a sociedade produziu como memória.
A proposta em entender documento como monumento está em compreender que
aquilo que o historiador escolhe como fonte de seu trabalho é fruto daquilo que uma dada
sociedade quis registrar, lembrar e perpetuar:
O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um
produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí
detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 19


à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,
com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 1990, p. 547).

Frisamos, portanto, que a noção documento/monumento recai no cuidado que o


historiador deve ter ao analisar a sua fonte, compreendendo-a como fruto de seu tempo, de
um traço do passado com a intenção de ser preservado.
Portanto, vimos que a investigação histórica depende de alguns fatores condi-
cionantes, tais como objetividade e subjetividade, do cuidado do historiador com relação
ao anacronismo e a centralidade do documento. Esses procedimentos investigativos são
essenciais para o exercício idôneo da escrita da história. Ainda assim, os procedimentos
em questão estão submetidos à figura do historiador, assunto que trataremos a seguir.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 20


2 O OFÍCIO DO HISTORIADOR E SEUS DESAFIOS

Na História, bem como nas demais ciências humanas e sociais, existe um paradig-
ma que necessita de atenção, pois nessas “a consciência e a razão existem tanto no sujeito
quanto no objeto, posto que nelas os seres humanos são tanto sujeito quanto objeto do
conhecimento” (CARDOSO; VAINFAS, 2012, p. 1). Como já dissemos, são seres humanos
estudando outros seres humanos, sociedades etc., razão pela qual instaura-se a proble-
mática do sujeito historiador, tomando como objeto de estudo outros seres humanos, ainda
que esses tenham vivido em outro espaço e outro tempo.
Marrou (1968), em seu tempo já deixava claro que “a história é, por infortúnio,
inseparável do historiador” (MARROU, 1968, p. 41, tradução nossa). Por isso, a discussão
incide em quais são as condições e os limites da produção do conhecimento histórico.
No trato com o documento, a matéria-prima do historiador, realiza-se primeiro uma crítica
externa, separando as informações relevantes de acordo com seu tema de pesquisa de
outros assuntos. Depois de ter em mãos os testemunhos que irá utilizar, cabe-lhe a crítica
interna e, com isso, alguns questionamentos são levantados: “estes testemunhos podem
estar enganados?” ou “eles tinham desejam de enganar-nos?”. Entre o passado e a história,
existe a figura do sujeito cognoscente, o historiador, figura sem a qual não haveria história
(MARROU, 1968).
Na relação entre sujeito e objeto deve ser levado em consideração como se instau-
ra a própria prática do sujeito historiador, ou seja, como ele é influenciado por seu “lugar
social”:

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 21


Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioe-
conômico, política e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito
por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação
ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a
imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em fun-
ção deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia
de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas,
se organizam (CERTEAU, 1982, p. 66-67).

Em suma, o local de origem, nacionalidade, a etnia/raça, os interesses políticos, a


posição econômica, a religião do historiador, dentre outros aspectos, incidem na escolha
das fontes de pesquisa e na interpretação dos fatos históricos. Assim, o lugar social desse
acaba se interpondo na investigação do seu objeto.
A história da historiografia mostrou que a busca pela objetividade total e pela ver-
dade absoluta não pode se concretizar de fato. Discute-se então sobre a subjetividade do
historiador subscrita ao seu lugar de pertencimento. O lugar social do historiador constrói o
seu centro de referência e delimita o seu tipo de análise (CERTEAU, 1982).
Apenas a caráter de exemplo podemos citar um conhecimento que se propagou por
muito tempo na academia e nos currículos escolares: o de que o Brasil teria sido “descober-
to” pelos portugueses. Mais recentemente aqui no Brasil, com auxílio da arqueologia e de
outros suportes documentais, tem se ressaltado a importância de reconhecer a existência
dos povos originários, chamados indígenas, como anteriores à chegada do europeu. Esse
cenário pode ilustrar dois posicionamentos distintos: o primeiro reconhece que o descobri-
mento do ponto de vista europeu, reforçado durante anos nas universidades e escolas, é
fruto de um grupo de historiadores comprometidos com essa visão de mundo; o segundo,
ao contrário, mostra que um grupo de historiadores, em outro contexto social, que questio-
na este ponto de vista europeu. São perspectivas cuja diferença nasce essencialmente do
lugar social dos historiadores que interpretaram os documentos e fatos.
Assim, o conhecimento histórico é feito de escolhas, ainda que na maioria das
vezes sejam inconscientes. Mas qualquer ponto de vista é válido? Um historiador pode
se munir de tal subjetividade para justificar qualquer que seja sua interpretação? Certeau
(1982) atesta a importância do reconhecimento dos lugares a partir do qual o historiador
fala e seus métodos de análise:
Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessaria-
mente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recru-
tamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma
disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz
parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada
“enquanto atividade humana”, “enquanto prática” (CERTEAU, 1982, p. 66).

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 22


Compreender a história como disciplina (com seus métodos específicos), como es-
crita (com suas formas literárias que narram o passado) e como prática (como aquela que
está intimamente ligada ao historiador e seu contexto) é fundamental para o profissional
historiador. Assim, não se pode negar a influência do presente e de aspectos subjetivos
do historiador; por isso para esse é preciso reconhecer-se como agente ativo na operação
historiográfica.
Portanto, é necessário que o historiador reconheça as influências e pressões às
quais está submetido. Bem como é fundamental ter ciência de que, ao olhar para o pas-
sado, tem-se mente questões e conflitos que são próprios do seu tempo: “[a] História têm
como base sua própria época, de forma que, ao dialogar com o passado, ele contemple os
embates e as contradições que são próprias do seu presente” (COELHO; MELO, 2017, p.
211).
Se a história parte de questões advindas do presente e o historiador está envolvido
em seu lugar social, esse profissional teria alguma função na sociedade? Cruz (2011) es-
clarece que as funções do historiador foram várias ao longo dos tempos, desde conselheiro
de príncipes, educador, defensor da pátria, dentre outros. O autor defende que a principal
missão do historiador é fazer despertar a consciência histórica.
Para explicar a função do historiador por meio do despertar da consciência históri-
ca, Cruz (2011) parte das ideias de Jörn Rüsen, para quem a História se apresenta como
um retrato do passado (ainda que, lembre-se, por intermédio do historiador). Por isso, a
consciência histórica diz respeito ao passado como experiência para o presente e a aponta
para a projeção para o futuro. Assim, o passado através da História não é inerte e articula
as noções de passado, presente e futuro para o indivíduo.
“A consciência histórica [...] permite aos homens atribuírem sentido a rea-
lidade em que vivem, que permite a compreensão das transformações da
existência, que permite perceber o tempo como uma dinâmica entre a expe-
riência e a expectativa” (CRUZ, 2018, p.13).

Nisso, reside a pesada função do historiador perante aos indivíduos e a sociedade.


A ponte que se faz entre a investigação histórica e a compreensão pública também está nas
mãos do historiador, bem como está nas mãos dos professores de história.
O historiador, como membro partícipe da sua sociedade, tem como compromisso
reconhecer o seu lugar na escrita, seus condicionamentos, inclinações e limites. Precisa,
inclusive, reconhecer-se como agente não apenas produto do seu meio, mas também
produtor da sua realidade, que a transforma e que age em favor do bem-estar do “nós” e
do “outro”.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 23


3 O QUADRIPARTISMO HISTÓRICO E SUAS PROBLEMÁTICAS

3.1 O que é Quadripartismo Histórico?


No Brasil, a historiografia está vinculada a tradições específicas que definem o
modo como compreendemos a história e como ela é ensinada. Muito dessa tradição está
calcada em uma historiografia eurocentrada, especialmente a francesa.
Normalmente, boa parte dos currículos mais conservadores adotam a divisão estru-
tural: História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea – uma
história quadripartida. Muitas vezes, nos acostumamos com essa divisão e a entendemos
como natural, sem sequer percebermos que ela é fruto de um tipo de história que privilegia
certos elementos em detrimentos dos demais.
O que se aborda em cada uma destas divisões?

Quadro 2 - A divisão quadripartida da história

Compreende a Antiguidade do povo Greco-romano, por


vezes faz-se uma abertura para o estudo do Egito Faraôni-
História Antiga
co e dos impérios assírios-babilônicos. Vai até a queda do
Império Romano no século V.
Começa a partir da queda do Império Romano e organiza-
ção dos povos bárbaros, abarca a Europa ocidental, com
História Medieval leve abertura a entender o Império Bizantino (mais ao leste
do continente) e países árabes. Compreende até por volta
do século XV, com a chamada expansão marítima.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 24


Está centrada exclusivamente na Europa, contemplando a
História Moderna expansão marítima, se encerrando com Revolução Fran-
cesa de 1789.
É única que ultrapassa de fato os limites do continente
europeu e concede um lugar para o estudo de Ásia, África
História Contemporânea
e América, muitas vezes essa narrativa acompanha o
processo colonial a que estas regiões foram submetidas.
Fonte: adaptado de Chesneaux (1995).

Você pode perceber, a partir do quadro apresentado, que essa história quadripartite
é, sobretudo, uma história do continente europeu, com pouco espaço para demais regiões
do planeta. Chesneaux (1995) afirma que essa divisão é fruto de uma concepção francesa,
já que em outros países:
o passado está organizado de modo diferente, em função de pontos de
referências diferentes. [...] Na Grécia, a Antiguidade chega até o século XV,
e a ocupação turca corresponde a uma espécie de Idade Média. Na China, a
história “moderna” (jindai) vai das guerras do ópio ao movimento patriótico de
maio de 1919. Começa com este último a história “contemporânea” (jiandai)
(CHESNEAUX, 1995, p. 93).

A estrutura em questão define não apenas os currículos da educação básica, mas


reverbera nos campos de pesquisa. Assim, é também uma forma de divisão do trabalho
intelectual, no qual cada historiador, dentro dessas quatro grandes áreas, se dedica a es-
tudar uma região, um país ou um tema específico. Mas também a nível ideológico, procura
valorizar o Ocidente em detrimento dos povos não-europeus (CHESNEAUX, 1995).
Muitos dos acontecimentos escolhidos como eventos históricos marcantes nada
influenciam em outras partes do mundo, mesmo assim são tomados por esta historiografia
como cruciais do ponto de vista universal. Cada período guarda em si características exal-
tadas pela classe burguesa dirigente, que precisa compor seus valores.
A Antiguidade Greco-romana é uma das bases dos valores da cultura burguesa
que se instaura na modernidade. Um exemplo disso é que, até pouco tempo, “saber latim e
grego era um indício seguro de que se pertencia à classe dirigente” (CHESNEAUX, 1995,
p. 95). Já a Idade Média é retratada como essencialmente cristã, que molda os valores de
família e de uma civilização cristã, tomada como período intermediário entre os valores da
Antiguidade Greco-romana e o alvorecer da Europa moderna.
O período seguinte consagra o auge dos “tempos modernos” e escancarou a pre-
tensão por parte da classe dirigente em escrever a história da humanidade inteira. A Idade
Contemporânea traz em si a história do Ocidente apto a dominar, em uma perspectiva

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 25


colonial, que é o eixo norteador das histórias de África, Ásia e América. Trata-se, no caso
do quadripartismo, de uma sequência ideológica imposta como universal. Essa estrutura de
desenvolvimento da história conta uma história pré-moldada da civilização europeia como o
centro do mundo, pautada em um sentido de progresso, como podemos averiguar abaixo:

Imagem 1 - Sequência ideológica da Grécia à Europa Moderna

Fonte: Dussel (2005).

Dussel (2005) adverte que este esquema tão arraigado em nossa mentalidade é,
na verdade, uma “invenção ideológica”.
Esta sequência é hoje a tradicional. Ninguém pensa que se trata de uma
“invenção” ideológica (que “rapta” a cultura grega como exclusivamente “eu-
ropeia” e “ocidental”) e que pretende que desde as épocas grega e romana
tais culturas foram o “centro” da história mundial. Esta visão é duplamente
falsa: em primeiro lugar, porque, como veremos, faticamente ainda não há
uma história mundial (mas histórias justapostas e isoladas: a romana, persa,
dos reinos hindus, de Sião, da China, do mundo meso-americano ou inca na
América, etc.). Em segundo lugar, porque o lugar geopolítico impede-o de
ser o “centro” (o Mar Vermelho ou Antioquia, lugar de término do comércio do
Oriente, não são o “centro”, mas o limite ocidental do mercado euro-afro-asiá-
tico) (DUSSEL, 2005, p. 27).

Pensando dessa maneira, o quadripartismo histórico vem atender demandas es-


pecíficas e desconsidera novos modos de organização da história, interferindo em nossos
métodos e objetos. Romper com este paradigma é tarefa difícil.
Já a colonização aqui na América não trouxe apenas uma nova organização sócio-
-político-econômica, mas também empreendeu uma colonização dos saberes e um sufoca-
mento das identidades locais e regionais. Se o historiador, em sua prática, precisa cumprir

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 26


a função social de fazer despertar a consciência histórica nos indivíduos, é necessário se
empenhar em construir novas narrativas que nos sejam próprias e tenham significação para
o lugar social no qual nos encontramos.

REFLITA

Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão
glorificando o caçador (Provérbio Africano).

Fonte: Ballestrin (2013).

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 27


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante essa unidade, você viu alguns temas inerentes à prática da historiografia.
Nossa intenção foi oferecer um suporte teórico sobre a escrita da história, para que você
entenda o seguinte: os fatos históricos dependem de um árduo trabalho do historiador e
isso está ligado a uma tradição, às metodologias específicas e também às visões de mundo
que criam a narrativa histórica.
Assim, logo de início, oferecemos um panorama geral sobre o teor da disciplina, es-
pecificando alguns dos seus objetivos centrais. Discutimos também, um conceito importan-
te, o anacronismo, descrevendo-o como uma das principais práticas que o historiador deve
evitar. Em seguida, falamos de duas instâncias que estão sempre em qualquer pesquisa
histórica: a questão da subjetividade e da objetividade, enquanto elementos partícipes da
produção do conhecimento em nosso campo. Para finalizar o primeiro tópico, apresentamos
questões inerentes ao objeto, o passado, a fonte e os documentos, como traços essenciais
da escrita da história.
No segundo tópico nos debruçamos a entender o ofício do historiador, suas espe-
cificidades, dado seu campo de conhecimento e seus desafios. Fizemos isso inserindo a
noção de “lugar social” enquanto conceito fundamental para compreender as influências
que o sujeito sofre em seu meio. Aproveitamos também para falar brevemente sobre a
função do historiador em criar uma consciência histórica nos indivíduos e na sociedade
como um todo.
No terceiro tópico, que teve como intenção fazer uma análise crítica com relação
às estruturas no âmbito da história formatadas de acordo com interesses específicos, trou-
xemos a noção de quadripartismo histórico. A partir dessa análise, você pôde compreender
que, por vezes, é necessário desnaturalizar algumas práticas e entender as origens e as
implicações deste posicionamento na história.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 28


LEITURA COMPLEMENTAR

CORRESPONDÊNCIA E DEPOIMENTOS ORAIS: REFLEXÕES A PARTIR DA COMPA-


RAÇÃO ENTRE DUAS FONTES DE DADOS PARA O ESTUDO DO PASSADO

Alice Beatriz da Silva Gordo Lang

Para estudar o passado, recorre o pesquisador a documentos de tipo variado,


utilizando certamente técnicas apropriadas a cada um e consistindo sua avaliação numa
questão de extrema importância. As reflexões ora apresentadas têm por base resultados
de uma pesquisa que, para a obtenção dos dados, fez uso de uma fonte escrita, constituí-
da por uma correspondência familiar e de uma fonte oral, representada por depoimentos
orais. A comparação entre ambas fornece elementos valiosos para uma discussão sobre
as possibilidades, limites, vantagens e desvantagens do emprego de cada uma das fontes
utilizadas. Refiro-me à pesquisa Família e Política em São Paulo (1910-1950) que tem
por objetivo conhecer como o campo da política era vivenciado por grupos familiares. No
foco da análise coloca-se a questão da intersecção e da interação entre os campos da
política e da família, considerando campos segundo a perspectiva do sociólogo francês
Pierre Bourdieu, como sistemas de relações sociais objetivas, regidos cada qual por sua
lógica específica.
[...]
Foram utilizadas duas fontes de dados:
● Para o estudo das décadas iniciais, 10 e 20, dispunha-se da correspondência
de uma família, constituída por centenas de cartas, dando-se especial destaque
às cartas da mulher;
● Para o período subsequente, décadas de 30 e 40, foram coletados relatos orais
de mulheres de uma classe social semelhante à do grupo familiar estudado
através da correspondência e que definimos como uma classe letrada, podendo
também ser considerada média-alta, considerando nível de instrução e padrão
de vida. As entrevistadas, no entanto, reportam-se sempre a períodos anteriores
e, por outro lado, chegam aos dias atuais.
A comparação dos resultados obtidos pelas duas fontes, uma escrita e uma oral,
versando sobre a vida cotidiana e sobre a vivência de acontecimentos políticos, como
exemplifica a Revolta de 1924 em São Paulo por sua referência nos dois tipos de docu-
mentação, possibilitou a discussão das próprias fontes utilizadas, colocando-se questões
importantes ao pesquisador que trabalha com relatos orais, seja para a reconstrução de

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 29


fatos, seja para estudos sociológicos que visam atingir grupos e as relações sociais que
entre estes se estabelecem.
Referem-se estas reflexões de modo especial à questão do tempo – o passado e o
presente; à fixação na memória dos fatos que rompem o cotidiano; ao processo seletivo do
memorizar e do rememorar.
1) Correspondência: o estudo das relações família e política nas décadas de 10 e 20
tem por base, a análise da correspondência de uma família e, de modo especial,
as Cartas de Eugênia. Eugênia, paulista, filha de um advogado e Professor da
Faculdade de Direito, nasceu em 1878. Em 1904 casou-se com Otávio, político
paulista de destacada atuação como deputado e depois como senador federal;
Eugênia era uma dona de casa, mãe de cinco filhos. A residência do casal era
em São Paulo, mas Otávio passava grande parte do ano no Rio de Janeiro onde
funcionava o Congresso Nacional. Às vezes Eugênia acompanhava Otávio no
Rio de Janeiro, onde ele morava em um hotel, como ocorria com quase todos
os políticos de outros Estados. Estando Otávio no Rio e Eugênia em São Paulo,
o casal se correspondia quase que diariamente, tendo-se conservado um total
de 1335 cartas escritas entre 1910 a 1929, quando Otávio faleceu vítima de um
desastre. Trata-se então de, com base na correspondência familiar e através
dela, apreender o cotidiano familiar e o reflexo, o significado e a vivência dos
acontecimentos políticos pelo grupo familiar. As referências aqui apresentadas
reportam-se de modo especial às cartas de Eugênia, que têm nas de Otávio seu
contraponto.
2) Depoimentos orais: para o estudo das décadas subsequentes, não se dispondo
de fonte equivalente à utilizada para o estudo do primeiro período, recorreu-se
a relatos orais. Foram coletados dezesseis relatos de mulheres que viveram
em São Paulo no período, mulheres de extração social semelhante à da famí-
lia considerada no período anterior. Procura-se, através dos relatos, captar a
vivência cotidiano e a vivência de fatos políticos. Considera-se depoimento o
relato que versa sobre um tópico específico. [...]
Nos depoimentos, está presente um crivo seletivo que já teria atuado na memoriza-
ção e que se faz sentir na própria rememoração. Há uma reelaboração do passado mediada
pelos valores atuais do depoente, que é muito nítida. Estas duas fontes – correspondências
e depoimentos de grande riqueza para o conhecimento do passado – revelam, na vivência
do cotidiano e de acontecimentos, a dimensão do privado, da vivência a nível pessoal, a
nível dos grupos primários.

Leia o artigo completo em: http://www.periodicos.usp.br/revhistoria/article/view/18669/20732.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 30


MATERIAL COMPLEMENTAR

LIVRO
Título: O Queijo e os Vermes: O Cotidiano e as Ideias de um Mo-
leiro Perseguido pela Inquisição
Autor: Carlo Ginzburg
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: ao pesquisar julgamentos inquisitoriais, o historiador
Carlo Ginzburg deparou-se com um excepcionalmente detalhado.
Tratava-se do depoimento de um moleiro do norte da Itália, que
no século XVI ousará afirmar que o mundo tinha origem na putre-
fação. Graças ao fascínio dos inquisidores pelas crenças desse
moleiro, Ginzburg pôde reconstituir a trajetória de Menocchio num
texto claro e atraente, e desembocar em uma hipótese geral sobre
a cultura popular da Europa pré-industrial.
Link: https://www.saraiva.com.br/o-queijo-e-os-vermes-ed-de-bol-
so-205071/p

FILME/VÍDEO
Título: Cidades Fantasmas
Ano: 2017
Sinopse: o documentário passeia por quatro localidades diferentes
no deserto chileno, na Amazônia brasileira, nos Andes colombianos
e no Pampa argentino. O que estes lugares têm em comum é que
eles abrigam cidades fantasmas, que outrora já tiveram vida ativa.
Estas histórias só podem ser contadas através dos meandros da
memória de seus antigos moradores.

UNIDADE I Introdução à Prática Historiográfica 31


UNIDADE II
Concepções Sobre História na
Antiguidade e no Medievo
Professora Mestra Maria Helena Azevedo Ferreira

Plano de Estudo:
• Mito e História;
• Concepções sobre História na Antiguidade;
• Concepções sobre História no Medievo.

Objetivos de Aprendizagem:
• Articular e diferenciar as apreensões de mito e história;
• Reconhecer a escrita historiográfica na Antiguidade;
• Compreender a escrita da história no período medieval.

32
INTRODUÇÃO

Como qualquer outro fato, evento ou disciplina, a escrita da história possui uma
historicidade. Há muito tempo que os seres humanos olham para o passado e trazem signi-
ficados importantes para seu viver no presente. Isso não quer dizer que a história, tal como
a conhecemos hoje, com seus métodos, objetos e fontes, sempre tenha existido, mas sim
que os povos que nos sucederam lidaram com formas específicas com o seu passado.
Ainda nas primeiras formas de organização de sociedade, é possível ver alguns
recursos que eram utilizados pelos arcaicos. Os mitos, neste sentido, se mostravam como
narrativa possível de um passado fabuloso e primordial. Mas esse passado não estava
inerte e perdido em algum ponto de outrora: ele se fazia presente e de forma cotidiana para
os membros das civilizações tradicionais e isso era possível por meio da reatualização
do mito. É sobre essa dinâmica das sociedades ditas primitivas que você contemplará no
primeiro tópico de nossa unidade.
Em continuação, você perceberá que é na Antiguidade quando vão surgir os primei-
ros pensadores preocupados em olhar para o passado e sistematizá-lo. O grego Heródoto,
nesse sentido, foi considerado o “pai da história”, pois mesmo em uma sociedade na qual
a explicação mítica predominava, trouxe os seres humanos como agentes próprios de sua
história, além de ter fundamentado a ideia de diferença entre os povos. Outros pensadores
helenos e romanos contribuíram significativamente para a escrita da história durante toda a
Antiguidade clássica e vão fornecer as bases para a historiografia ocidental.
No terceiro e último tópico, vamos nos debruçar pela escrita da história no período
medieval. Certamente, o medievo esteve marcado pelo jugo moral, econômico, político,
religioso da Igreja Católica e isso não poderia deixar de se reverberar na escrita da história.
Vamos ver que o ser humano vai ocupar um lugar secundário com relação aos desígnios
divinos. Observaremos também que a noção de temporalidade será radicalmente modifi-
cada.
Bons Estudos!

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 33


1 MITO E HISTÓRIA

Você viu na unidade anterior que a escrita da história tem uma função explicativa
para o tempo presente. A história, através de seus métodos e práticas, busca delinear
narrativas sobre o passado cientificamente validadas e que, muitas vezes, estão de acordo
com as demandas específicas de nossa época, com o lugar social do historiador e com as
possibilidades que a memória coletiva nos impõe. O ser humano, em geral, sempre lidou
com o passado de uma forma significativa para em seu presente, se hoje a história lida com
a memória através de olhar crítico e com base em documentos, as civilizações tradicionais,
ditas primitivas, ressignifcavam o passado por meio dos mitos e eles foram e ainda são, de
alguma forma, essenciais para a construção das sociedades.
Normalmente, quando ouvimos a palavra “mito” a entendemos como sinônimo de
lenda, fábula ou mesmo inverdade e essa nossa construção imaginária em torno do termo
também foi construída historicamente. Eliade (2013) relata que o estudo dos mitos, desde
meados do século XX, tem sido sensivelmente diferente do que era estudado no século
XIX, período no qual reforçou-se a ideia de que a narrativa mitológica dos povos “primitivos”
estudados era essencialmente falsa. No entanto, caro (a) estudante, gostaríamos de cha-
mar atenção para a seguinte situação: a tal ideia de falsidade também estava fatalmente
arraigada aos valores eurocêntricos dos pesquisadores do século XIX, que ao entender-se
e entender seu próprio lugar social como produtor de verdades, olhava para o outro, para a
construção de realidade do outro como falsa.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 34


Eliade (2013) propõe que, ao olharmos para as narrativas míticas, em um exercício
de alteridade – reconhecimento da singularidade do outro –, olhemos para os mitos como
“histórias verdadeiras”. Mas o que se define como mito?
Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobre-
naturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo,
ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento
humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”:
ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala
apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os
personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos
sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos
revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou
simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos
descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado
(ou do “sobrenatural”) no Mundo (ELIADE, 2013, p. 9).

A partir da citação acima podemos resumir algumas características básicas dos


mitos:
● Narram uma cosmogonia, ou seja, o início de algo (por exemplo: início do pla-
neta terra, princípio de alguma atividade, surgimento dos seres humanos etc.);
● Dizem respeito a um tempo mítico, que não obedece aos mesmos padrões do
tempo profano e cotidiano;
● São essencialmente histórias sagradas, envolvendo entes sobrenaturais e suas
ações;
● Estão sempre ligados à questão “criadora” e “sobrenatural” para explicar a vida
terrena.
Um mito pode contar diversas histórias, como o exemplo a seguir, de um mito
cosmogônico da região do Tibet, que busca explicar a origem sagrada das dinastias reais
tibetanas:
Da essência dos cinco elementos primordiais, nasceu um grande ovo... De-
zoito ovos saíram da gema desse ovo. O ovo do meio, dentre os dezoito ovos,
um ovo concóide, separou-se dos demais. Esse ovo concóide desenvolveu
membros, e depois os cinco sentidos, tudo perfeito, convertendo-se num
jovem de tão extraordinária beleza, que parecia a concretização de todos os
desejos (yid la smon). Por isso, foi chamado de rei Ye-smon. A rainha Tchu-
-lchag, sua esposa, deu à luz um filho, capaz de se transformar por meio de
magia, Dbang-ldan (MACDONALD, 1959, p.428 apud ELIADE, 2013, p. 20).

Não nos cabe julgar a veracidade de uma narrativa mitológica, pois, para aquelas
sociedades, o mito conta uma história real e esta história incide no modo de organização
daquela comunidade. Eliade (2013) afirma que a principal função do mito é mostrar modelos
exemplares, sobre os quais todas as atividades humanas significativas devem se pautar: a
alimentação, o trabalho, o casamento, a iniciação, a educação, dentre outros. Em muitas

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 35


tribos, os mitos não são contados diante de mulheres ou crianças, ou mesmo perante a
não-iniciados, mesmo assim faz parte da memória coletiva daqueles povos e “é transmitida
de uma geração para a outra, em parte através do processo comum da vida em sociedade,
sem nenhum esforço consciente de ninguém” (FINLEY, 1989, p. 20).
Eliade (2013) aponta que os mitos nas civilizações “primitivas” exprimem e codi-
ficam a crença. Além disso, impõem os princípios morais, garantem a eficácia do ritual e
também fornecem regras práticas de conduta. Podemos considerar, portanto, o mito como
vital para a civilização humana e não apenas uma fábula ou algo a ser desmerecido, pois,
codifica a religião primitiva e a vida cotidiana, os trabalhos e o destino da humanidade.
Assim, o mito é vivido, ou seja, não há uma dissociação das narrativas do passado
de caráter sagrado com o modo de viver da sociedade. É importante lembrar, no entanto,
que a vivência do mito está intrinsecamente ligada aos ritos, ou seja, momentos nos quais
o mito é reatualizado, lembrado de determinada forma em tempos específicos. Para as so-
ciedades tradicionais, é necessário sempre reviver o mito por intermédio do rito, momento
no qual os homens imitam os deuses ou entes sobrenaturais.
[…] o essencial consiste em evocar periodicamente o acontecimento pri-
mordial que fundou a condição humana atual. Toda a sua vida religiosa é
uma comemoração, uma rememoração. A recordação reatualizada por ritos
[…] desempenha um papel decisivo: o homem deve evitar cuidadosamente
esquecer o que se passou. [...] A memória pessoal não entra em jogo: o que
conta é rememorar o acontecimento mítico, o único digno de interesse, por-
que é o único criador. É ao mito primordial que cabe conservar a verdadeira
história, a história da condição humana: é nele que é preciso procurar e reen-
contrar os princípios e os paradigmas de toda conduta (ELIADE, 1992, p. 53).

A vida daquela sociedade é regida por rememoração dos mitos por intermédio dos
ritos. Eliade (1992) exemplifica a seguinte situação em uma dada sociedade tradicional:
uma jovem, em sua menarca, é impelida a ficar retida em uma cabana escura por três dias,
sem falar com ninguém. Ela faz isso porque a narrativa mítica que diz que um ser divino,
identificado como uma jovem, ao ser morto, foi transformado na Lua e permanece três dias
nas trevas. É importante, portanto, que a jovem siga esta narrativa mítica, caso contrário
torna-se culpada do esquecimento de um acontecimento considerado primordial.
Por mais que estas narrativas míticas não encontrem mais sentido na sociedade
moderna que vivemos hoje, é importante notar que a percepção sobre o passado na forma
de narrativa mítica constituía a vivência das sociedades consideradas primitivas. Finley
(1989) comenta que a história, quando ela começou a se delinear, estava imersa em um
mar de mitos; na verdade, os chamados “pais da história” trabalhavam a partir destes,
sendo o passado uma massa desconexa de fatos.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 36


Por isso, é preciso afirmar que, muito antes de a história se constituir como ciência,
o mito deu uma resposta. O mito organizava o passado e essa era uma de suas funções,
quando ele selecionava e revivia aspectos dele, significava o presente e todas estas narrati-
vas eram tomadas como literalmente verdadeiras (FINLEY, 1989). Ainda assim, havia entre
os “primitivos” a distinção entre “histórias verdadeiras” e “histórias falsas”. As histórias ver-
dadeiras, como já dissemos, são de caráter sagrado, se assentando num passado distante
e fabuloso, enquanto as histórias falsas, caracterizadas por contos, envolvem personagens
profanos, sendo pertencentes ao mundo cotidiano (ELIADE, 2013).
Em suma, podemos dizer que os mitos:
1) [constituem] a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; 2) que essa
História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a reali-
dades) e sagrada (porque é a obra dos Entes Sobrenaturais); 3) que o mito
se refere sempre a uma “criação”, contando como algo veio à existência,
ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de
trabalhar foram estabelecidos; essa a razão pela qual os mitos constituem
Os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) que, conhecendo
o mito, conhece-se a “origem” das coisas, chegando-se, consequentemente,
a dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento
“exterior”, “abstrato”, mas de um conhecimento que é “vivido” ritualmente,
seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele
serve de justificação; 5) que de uma maneira ou de outra, “vive-se” o mito, no
sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos
rememorados ou reatualizados (ELIADE, 2013, p. 18).

A relação que as sociedades arcaicas desenvolveram com o passado é completa-


mente diferente da nossa, mas guarda similitudes, já que os mitos não explicam apenas
a origem do mundo, dos homens, das plantas e dos animais, sendo eles um artifício que
explica como o ser humano se constituiu no que é hoje (ELIADE, 2013). A História que inte-
ressa para o homem destas sociedades é apenas a história sagrada. Ele se constitui dela,
enquanto o homem moderno, ao contrário, se vê como fruto unicamente da história profana
(ELIADE, 1992). Dessa forma, “assim como o homem moderno se considera constituído
pela História, o homem das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo
número de eventos míticos” (ELIADE, 2013, p. 13). Há também uma diferença fundamental
entre homem moderno e o das sociedades arcaicas: o primeiro não se sente obrigado a
conhecer a totalidade da sua história, ao passo que o homem arcaico não apenas deve
conhecê-la em sua totalidade, mas também deve relembrá-la por meio dos ritos.
O passado por intermédio dos mitos acompanha também, para as sociedades
arcaicas, um conhecimento mágico-religioso. Assim, conhecer a origem de uma planta,
animal etc., significa adquirir um poder mágico sobre eles, ou seja, dominá-los e utilizá-los
para os fins que se deseja (ELIADE, 2013). Para os gregos também o mito era fundamental

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 37


para as questões do espírito, pois “com ele, aprendiam moralidade e conduta; as virtudes
da nobreza [...] e ainda sobre raça, cultura e ainda sobre política” (FINLEY, 1989, p. 6).
Nas narrativas das sociedades arcaicas, o tempo obedece a outro ritmo: ele é cíclico
ou, nas palavras de Eliade (1992), é caracterizado por um “eterno retorno”. Em consequên-
cia disso, os mitos vão contar a história infindável de criação, destruição, criação e assim
por diante. Isso foi visto nas culturas da Índia, Grécia e em outras sociedades paleorientais.
Porém, o sentido de tempo é transfigurado em algumas civilizações, calcadas em outros
tipos de religiões, como é o caso do judaísmo, para o qual o tempo não é cíclico, mas
possui início e terá um fim. Já com o cristianismo, o tempo histórico adquire outra forma,
já não se vangloria o tempo mítico como primordial, mas toma-se a narrativa histórica dos
evangelhos.
Marca-se, então, uma diferença importante na concepção de tempo após o advento
do cristianismo:
Quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir
se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara – mas
já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos
governava a Judeia. Para o cristão, também o calendário sagrado repete
indefinidamente os mesmos acontecimentos da existência do Cristo, mas
esses acontecimentos desenrolaram-se na História: já não são fatos que se
passaram na origem do Tempo, “no começo” (ELIADE, 1992, p. 58)

Entre história, tal como ela se constitui hoje, e os mitos há diferenças marcantes
no olhar para o passado, ainda que, em aspectos muito específicos, guarde similitudes, as
quais não iremos explorar neste momento. Se as sociedades arcaicas tendiam a ressig-
nificar o passado, especialmente o primordial, como modelo explicativo, essencialmente
sagrado e total, na contemporaneidade entendemos a história de maneira fragmentária e
nos desligamos de seu sentido sagrado em um movimento de dessacralização. É importan-
te entender, entretanto, que as narrativas míticas, por mais que sejam traço marcante das
sociedades arcaicas, não foram abolidas na sociedade moderna. Os mitos não necessaria-
mente morrem, mas adquirem outras roupagens, ainda que haja um movimento consciente
por parte de uma ciência “esclarecida” que nega quaisquer influências destes em nossos
tempos. Portanto, frisamos que a escrita da história, ou melhor, o olhar para o passado,
não obedece uma linha evolutiva de melhora; como já dissemos, a produção de uma dada
sociedade deve ser vista de acordo com seus próprios parâmetros.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 38


2 CONCEPÇÕES SOBRE HISTÓRIA NA ANTIGUIDADE

A história da historiografia marca alguns episódios, lugares e personagens conside-


rados essenciais para o desenvolvimento da disciplina. Ainda assim, antes de começarmos,
é preciso advertir que a narrativa a seguir está ancorada em uma perspectiva ocidental da
escrita da história e não coloca os personagens, fatos e contextos em posição de universa-
lidade, mas compreende a importância de determinadas correntes para a formação do que
hoje se compreende ser de suma importância estudar em nosso campo de conhecimento.
Por isso, é necessário reconhecer a influência de determinados pensadores para a consti-
tuição de determinada tradição histórica.
Considera-se que a História tenha surgido por meio de Heródoto, que mais tarde
ganhou o título de “pai da História”. Heródoto viveu no século V a.C. em Halicarnasso, região
hoje chamada de Turquia. Porém, ele peregrinou por várias regiões, como o Egito (antes
Kemet), Fenícia, a Trácia, a Grécia continental e o norte da África. É importante frisar que
Heródoto, em sua vivência em Atenas, inseriu-se no contexto do nascimento não apenas da
história, mas também da geografia, do direito, da medicina, dentre outros (EYLER, 2012).
Atenas, uma das polis gregas, vivia uma atmosfera de novos pensadores que se
desligavam do caráter mítico-explicativo que estava nas mãos dos adivinhos ou “mestres
da verdade”. Assim, buscava-se outra forma de relação com o meio, com o presente, com
as palavras e as coisas. A dessacralização da explicação do ser atesta a construção do
mundo propriamente humano, “o que necessariamente altera as relações deste com as

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 39


divindades, com a percepção de tempo” (EYLER, 2012, p. 13). O surgimento da história se
encontrou, portanto, fortemente ancorado na perspectiva da construção do que deveria ser
lembrado sob a ótica humana e não mais dos deuses e entes sobrenaturais (EYLER, 2012).
Heródoto, inserido neste contexto, escreve História (este é o nome da obra), no
intuito de narrar as Guerras Médicas, que envolveram gregos e bárbaros. Diferentemente
das epopeias homéricas, que colocavam deuses contracenando com homens para narrar o
mesmo conflito, Heródoto ainda traz a figura dos deuses, mas com certo constrangimento.
Já o eixo central da sua obra é explicar, do ponto de vista humano, como os homens bri-
gavam entre si e como se podia empreender uma investigação para analisar determinado
fato (EYLER, 2012).
Com Heródoto são evidenciados alguns valores da investigação histórica. Ele
esforça-se para rememorar as possíveis causas das guerras, colhendo depoimentos de
diferentes povos e reconhecendo as diferenças destes testemunhos por conta da cultura
de cada. O pensador não se desfaz completamente do passado mítico grego, mas “lida de
modo distinto com os mitos na medida em que a veracidade de sua História dependia da
criação de um método humano através do qual ele pudesse controlar o valor das fontes que
recolhia e colocava diante dos seus olhos” (EYLER, 2012, p. 16).
Em seus escritos encontra-se a preocupação em registrar grandes feitos, para que
estes não fossem varridos da memória. Heródoto também trouxe novas perspectivas sobre
o espaço e o tempo, categorias fundamentais para a história. Se para os antigos o tempo
era algo objetivo e natural, pertencente à natureza, e o lugar dizia respeito às coisas que ali
habitavam, para Heródoto, que andou por diversas culturas coletando relatos estranhos ao
mundo grego, tempo e lugar adquiriam contornos plurais e estavam condicionados a cada
sociedade (EYLER, 2012).
Heródoto concede espaço às questões humanas:
Pela primeira vez, aparece a necessidade de os homens lutarem com suas
próprias armas contra o esquecimento (léthes). A história inaugura, de modo
crítico e metódico, uma nova forma de garantir uma verdade (aletheia) que
não mais depende da autoridade das Musas e dos poetas em sua transmis-
são (EYLER, 2012, p. 22).

É possível dizer, portanto, que Heródoto inaugura um novo modo de pensar. Além
de conceder espaço para o tempo humano em narrativa, ele empreende um novo método
a partir de pesquisas cosmológicas, geográficas e etnográficas. Dessa maneira, a escrita
da história em Heródoto significa “pesquisa” e “investigação” e isso se vê quando este se
propõe a analisar a guerra entre os gregos e os persas. Sua investigação está pautada em

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 40


eventos recentes, diferindo das narrativas mitológicas que atestam um tempo longínquo,
ainda que o pensador precise regressar um pouco no tempo para buscar as causas daquilo
que narra.
Assim,
A escrita da história em Heródoto dispõe de um modo de conhecimento
apropriado que combina três operações intelectuais: refletir sobre os casos
presentes, compará-los com os casos passados que oferecem circunstân-
cias análogas, tirar conclusões que permitam prever como algo vai evoluir
(EYLER, 2012, p. 36-37).

Ainda assim, é importante salientar que, na sociedade helênica (grega), enxer-


gamos a passagem do mythos para o logos, ou seja, da explicação mítica pela razão, no
contexto do nascimento da filosofia. Heródoto, apesar de se pautar pela racionalidade, não
evitava totalmente a presença das crenças em sua narrativa como interventoras na ação
humana, mas a presença divina se manifestava apenas ao final de uma longa cadeia de
eventos geridas pelos seres humanos (EYLER, 2012).
Por mais que por vezes haja esse diálogo com o mito,
Nas Histórias de Heródoto, mythos aparece pouco, ele mesmo diz escrever
logoi, ou seja, relatos que eram investigações em forma de pesquisa e ao
mesmo tempo se nega a narrar logoi sagrados. Para ele, mythos não era uma
verdade revelada a iniciados e sim uma opinião cujo dizer se dava em plena
luz do dia, mas que era insensato ou absurdo simplesmente por ser incrível
(EYLER, 2012, p. 25).

Na narrativa de Heródoto encontramos o próprio conceito de historiador, de História


e de método de investigação. Ele colocava-se, em seus escritos, na terceira pessoa, indi-
cando, assim, uma tentativa de colocar-se par de si mesmo dos eventos sobre os quais se
debruçava. Além disso, tomava como pedra angular do seu discurso o desejo de, como já
apontamos, não ver aqueles acontecimentos caírem no esquecimento e, por fim, instaura
a ideia de diferença. Sobre a ideia de diferença, ou alteridade, Heródoto não coloca mais
os seres humanos em contraposição com deuses ou figuras mitológicas; são as diferen-
ças entre os povos que ocupavam lugar em seu discurso. Perceber a diferença, naquele
contexto, significava reconhecer-se como grego e os demais como bárbaros. Ainda que
seja uma postura que tentava distinguir o “civilizado” grego dos povos ditos “bárbaros” e
assente-se principalmente em uma reafirmação de uma identidade grega em detrimento
dos demais povos, Heródoto estabelece as bases para o pensamento histórico ocidental
(EYLER, 2012).
A escrita da história empreendida por Heródoto não é tal qual a escrita da história
na contemporaneidade. No entanto, precisamos considerar o ímpeto do pensador em

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 41


analisar, ouvir, criticar e questionar os fatos, valendo-se de fontes de variados campos.
Além disso, o que Heródoto olha para história entendendo que esta é um movimento de
“recordar e registrar uma larga e complexa vicissitude em todos os seus detalhes; e todos
nós, historiadores, estamos em dívida para com ele por essa descoberta” (EYLER, 2012,
p. 38).
A historiografia ocidental tomou Heródoto como “pai da história” e não podemos ne-
gar sua influência e importância para nosso campo. Contudo, é de suma relevância lembrar
que a escrita da história não esteve ou está subscrita às culturas apropriadas pela Europa
como fidedignas. Em outros cantos do globo, outros historiadores deram contribuições
significativas para o empreendimento historiográfico. Fage (2010) recorda de um grande
viajante e historiador norte-africano chamado Ibn Khaldun (1332-1406) que, segundo o
autor, poderia “legitimamente roubar de Heródoto o título de ‘pai da história’” (FAGE, 2010,
p. 3). A originalidade de Ibn Khaldun reside não apenas em conceber uma filosofia da
história, mas também em não atribuir o mesmo peso e valor a todo fragmento do passado
e utilizava técnicas como a da crítica e da comparação (FAGE, 2010).
Outro historiador relevante para a escrita da história ocidental foi o grego Tucídides,
que viveu no século V a. C e narrou a Guerra do Peloponeso, sendo, para ele, um dos
eventos de maior magnitude da história grega. Assim como Heródoto, Tucídides estava
inserido num contexto de busca pela explicação racional do mundo, porém, ainda que fosse
um crítico deste em vários aspectos, eles trilhavam por caminhos parecidos no quesito de
escolha do objeto: ambos narraram guerras (GASTAUD, 2001).
Como cidadão ateniense, Tucídides afirmava ter vivido a guerra entre atenienses e
peloponésios desde os seus primeiros indícios e tinha a intenção de registrar as causas e
os desdobramentos desta. No entanto, ao contrário de Heródoto, Tucídides não reconhecia
seu trabalho como sendo “História”, a passo que Heródoto se apropria da palavra algumas
vezes ao longo de suas obras. Nesse sentido, Tucídides tinha claro o intuito de narrar por
escrito o que havia presenciado (MAGALHÃES, 2012).
Aliás, a palavra escrita ocupava um lugar diferente do que a oralidade. Enquanto
que a palavra falada tenderia a atender a demanda do público ouvinte, a escrita não teria
essa limitação. Portanto, era considerada um artefato visível da memória, além de poder se
apoiar em um caráter não fabuloso da história narrada e, com isso, atestar sua veracidade.
Dessa forma, “o caráter de permanência conferido pela escrita, em oposição à condição
efêmera inerente à palavra dita, é inseparável da ideia de uma aquisição para sempre”
(GASTAUD, 2001, p.4).

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 42


SAIBA MAIS

A historiografia tomada pelo ocidente, desde suas bases, tomou como de suma impor-
tância a palavra escrita. Porém, é necessário frisar que esta é apenas uma forma de
expressão de conhecimento.
Nas civilizações orais, a fala é mais do que uma forma de comunicação: ela também
é um meio de preservação da sabedoria ancestral e de saber compreendê-la em suas
especificidades. Isso é verdade na África, onde, apesar da existência da língua escrita
em muitos contextos, é lugar de múltiplas sociedades que prezam pela oralidade. Assim,
não prezar pela escrita não quer dizer ausência de produção de conhecimento e, por
isso, cabe ao historiador saber ler textos orais e explorar toda a sua complexidade.

Para saber mais sobre, acesse o link a seguir e leia o capítulo A Tradição Oral e sua Me-
todologia, de J. Vasina: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000318.pdf.

Fonte: Vasina (2010).

É possível constatar que, durante sua narrativa, Tucídides fez menção aos poetas,
especialmente Homero, como base informativa para os tempos antigos. Ainda assim,
quando procuramos analisar o seu gênero de escrita – considerando que o delineamento
da escrita da história não estava totalmente definido –, vemos a preocupação em relatar
o passado “tal como se passou”, sem as interferências de adornos que enfeitassem a sua
narrativa, como era comum aos poetas da época:
Com base nos indícios que foram enunciados, não erraria quem, de modo
geral, julgasse dessa maneira aquilo que eu expus e não desse crédito maior
nem ao que fizeram os poetas adornando seus hinos com o intuito de en-
grandecê-los, nem ao que os logógrafos compuseram visando ao que é mais
atraente para o auditório de preferência ao que é verdade, pois não é possível
comprovar esses fatos e a maioria deles, sob a ação do tempo, ganhou um
caráter mítico que não merece fé (TUCÍDIDES apud MAGALHÃES, 2012, p.
56).

Em Tucídides, vemos a questão da grandeza dos fatos dignos de serem narrados,


a necessidade de contar o início dos acontecimentos, as suas causas, as utilidades de sua
narrativa, bem como um princípio metodológico: a questão da verdade (GASTAUD, 2001).

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 43


Para Tucídides, a busca pela verdade implica em desvelar em descobrir o que se encontra
escondido, ou seja, o que está para além das aparências.
No âmbito dos historiadores gregos podemos também citar Políbio (200 a.C. - 118
a.C.), que, em resumo, viveu o período de ocupação romana na Grécia e gozava, por
diversas razões, de certo prestígio entre os romanos, apesar de ser grego. Em sua maior
obra intitulada Histórias, Políbio a circunscreve sobre o gênero de “história pragmática”.
Diferentemente dos historiadores anteriores, Políbio dedicou-se em formular bases para
a compreensão e explicação dos acontecimentos. Com isso, era voltado a investigar de
maneira categórica o modo, a causa, o agente, o tempo e o local de determinado evento,
assim, não era suficiente apenas narrar um evento, mas também justificar e comprovar
aquilo que se expunha (SEBASTIANI, 2012).
A historiografia da Antiguidade clássica difere de sobremodo da historiografia con-
temporânea, já que o compromisso da escrita da história atualmente tem como base critérios
científicos que validem determinada narrativa. Vitorino (2012) expõe que para historiadores
como o romano Tito Lívio (59/64 a.C.-17 d.C.), era essencial o narrar e o expor, isso em um
estilo belo e de maneira artística.
Tito Lívio mantinha boas relações com o Augusto, que consiste em um título con-
cedido e não em um nome, e seguia a ideologia do governante, instaurando um elo entre
a Roma das origens e a Roma de Augusto como forma de legitimar valores tradicionais e a
busca pela pureza. O pensador se concentrou em escrever a história de Roma, ano a ano,
com o objetivo de “infundir um novo rigor a um povo degenerado através das recordações
das suas origens” (VITORINO, 2012, p.103).
Sabe-se que Tito Lívio escreveu muito. Contudo, nem todas as obras chegaram
aos nossos tempos. Ainda são um tanto incertas as origens das fontes que Lívio utilizava,
porém adotava o seguinte método:
[...] ele expõe um fato, um acontecimento seguindo com fidelidade o que
encontra na fonte; no fim do segmento narrativo, introduz sua consideração
pessoal, de caráter político, religioso, ético, ou cita também as opiniões de
outros escritores nas ocasiões que sejam divergentes da fonte principal (VI-
TORINO, 2012, p. 108).

Mas um dos maiores historiadores romanos foi Tácito (56 d.C-120 d.C.), conhecido
por ter uma linguagem complexa e sofisticada, adotando como temáticas a liberdade de
expressão e a tirania. Sendo assim, uma das preocupações centrais de Tácito foi em como
se portar e como manter a virtude quando se está sob o governo de tiranos. Vale lembrar
que essa questão está relacionada com a própria vivência do historiador, no contexto do Im-

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 44


pério de Domiciano. Apesar da relevância de suas obras, durante os anos que se seguiram,
especialmente na Idade Média, elas permaneceram no esquecimento (MARQUES, 2012).
Tácito conservava o modo romano de escrita de história expressa por seus annales
(anais), fazendo menção a um tipo de escrita comum da história na Roma antiga e tendo
influências gregas no trato metodológico:
Conservando os princípios do modelo grego, com busca pela verdade e
da confrontação de testemunhos diretos e indiretos que dessem verossimi-
lhança à narrativa, a historiografia romana se baseava também no formato
dos registros feitos pelos pontífices que citavam os acontecimentos ano a
ano começando com a eleição dos cônsules e magistrados – formato esse
conhecido, portanto, como analístico (MARQUES, 2012, p. 130).

Marques (2012) considera a obra os Anais como o ápice da trajetória de Tácito, cujo
conteúdo chegou apenas um pouco mais da metade do original aos dias atuais. Nesses
livros, é possível perceber a intenção do pensador em falar sobre a sucessão dos principa-
dos na Roma antiga. A questão política sobre os mecanismos de obtenção e manutenção
do poder mostra-se como aspecto fundamental na narrativa de Tácito. Inerente a isso,
sua narrativa está fortemente atrelada à construção de personagens, especialmente dos
governantes.
Após um período de esquecimento, os escritos de Tácito ganharam relevância
durante o período do Renascimento (XIV-XVI), rebuscando suas críticas às tiranias. Mais
tarde, durante o Iluminismo no (XVII-XVIII), os textos de Tácito foram tomados como
representantes dos ideais republicanos, sendo utilizado por revolucionários franceses e
americanos. Enfim, Tácito tem sido relido de diferentes formas a depender do contexto em
que suas obras são recuperadas, mostrando a sua atualidade em um mundo de constante
mudança (MARQUES, 2012).
Não apenas Tácito, mas os demais pensadores do eixo Grécia e Roma foram
essenciais para dar os primeiros passos na constituição da ciência histórica. Ainda assim,
vale mais uma vez lembrar que a escolha dos “clássicos” da Antiguidade para historiografia
deu-se de acordo com escolhas conscientes e inconscientes sobre o que viria a ser essa
ciência, principalmente em sua constituição em território europeu. Isso, portanto, não exclui
outras formas do pensar historicamente em outras sociedades, que se empenharam cada
um à sua maneira.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 45


Fonte: Accademia Fabio Scolari (2019).

3 CONCEPÇÕES SOBRE HISTÓRIA NO MEDIEVO

Após o início da desintegração do Império Romano (e iminente fim), o estabeleci-


mento do cristianismo como religião oficial do Império e as invasões bárbaras, foi instituído
um novo modelo de organização da sociedade.
Inicia-se, por volta do século V, a Idade Média, que vai durar até mais ou menos
meados do século XV – a depender das categorizações dos historiadores. Esse período
ficou conhecido como aquele no qual houve o predomínio da Igreja em todas as esferas da
vida humana, cultural, política, social, econômica e não poderia deixar de influir na escrita
da história. Com relação a periodização da Idade Média, entende-se que, dentro deste
período de mil anos, há subdivisões, dadas as diferenças substanciais: a Alta Idade Média,
Idade Média Central e Baixa Idade Média, cuja duração de cada são questionáveis:
A Alta Idade Média é o período mais longo que se estenderia do século V ao
X [...] [que compreende] [da] queda do Império Romano [ao] século X, pode
ser considerado historicamente como a gênese do feudalismo. [...] A Idade
Média Central, que abrange o período que se estende do século XI ao XIII,
é considerada a época do feudalismo. [...] A Baixa Idade Média (séculos XIV
e XV) é período de transição para o mundo moderno (REIS, 2010, p. 20-23).

É possível observar o vínculo entre interpretação bíblica e história, no sentido de


que as concepções sobre o passado começavam a orientar-se segundo a exegese bíblica,
segundo a qual a história começava na Criação e estava fadada a um fim, expresso pelo
Juízo Final. Dentro desta perspectiva, foram vários os gêneros historiográficos que estive-
ram presentes (BOURDÉ; MARTIN, 1983).

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 46


Bourdé e Martin (1983) identificam que nesse período houve uma abundância
de produções hagiográficas, que são relatos inerentes ao sagrado, tais como “história de
vidas de santos, relatos de milagres ou de translações de relíquias, ou finalmente de listas
episcopais” (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p.14). O relato da vida de santos servia para criar
modelo exemplares de conduta a serem seguidos, além de servirem como legitimadores
do poder da Igreja.
Outro gênero que verificamos neste período são os Anais e as Crônicas. Os Anais
relatavam ano a ano os acontecimentos, em especial, aqueles de origem política e militar.
Eles, em sua maioria, foram escritos em mosteiros e traziam as preocupações particulares
de seus autores. As crônicas, por sua vez, tinham pretensões bastante amplas: um exemplo
disso, é a Chronica de sex aetatibus mundi de Beda o Venerável, que narra uma espécie
de história universal desde a passagem bíblica de Abraão até o ano de 324 (BOURDÉ;
MARTIN, 1983).
Não apenas nessa crônica como também em várias outras, Deus aparece como
personagem ativo nas questões humanas.
Aparentemente ainda mais próximas dos modelos antigos, encontramos
Histórias inspiradas nas de Tácito: a História dos Francos de Grégoire de
Tours [...] Não sem dúvida pelas suas pretensões universais, que o levam a
começar o relato na Criação para o continuar até 591 [...] Mais talvez pela
sua percepção essencialmente religiosa dos acontecimentos e pela sua fé
inabalável no milagre que fazem dele um bom espelho das crenças do seu
tempo [...] Que se avalie pelo relato da peste que assola Marselha em 588:
a proveniência do mal, o contágio, as primeiras sevícias da doença, seguida
de uma fase de remissão, a propagação fulminante da epidemia, todas estas
etapas estão claramente marcadas. Sós em pé no meio desta destruição
geral, o rei e o bispo assumem o seu papel de mediadores com mundo divino
(BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 14).

Os relatos das crônicas trazem em si um tom de universalidade e providência divina


nos acontecimentos. Já outro gênero que podemos destacar são as biografias e autobio-
grafias:
Restam as biografias, ou as autobiografias, também elas inspiradas em obras
antigas. Como negar a continuidade entre as Confissões de Santo Agosti-
nho e a História das minhas desventuras, de Abelardo? Entre a Vida dos
Doze Césares de Suetónio e a Vida de Carlos Magno e Éginhard? Nesta
última obra, o imperador carolíngio vê serem-lhe conferidos arbitrariamente
alguns traços de carácter dos seus antecessores romanos. Contudo, uma
leitura atenta permite constatar que o retrato intelectual e moral do soberano
é traçado em conformidade com o modelo cultural carolíngio, ou seja o de
um humanismo devoto impregnado de tradição latina, mas ignorando quase
totalmente a contribuição do helenismo (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 15).

A ruptura com a tradição helênica, no que diz respeito à noção de temporalidade,


vai ser operada por um dos principais nomes da Igreja no século V: Santo Agostinho. Em

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 47


sua obra Cidade de Deus é possível ver a contraposição com relação à ideia grega de
materialidade do mundo, do que é demonstrável e, portanto, comprovável. A visão bíblica,
ao contrário, assenta-se na convicção do que é invisível e, assim, indemonstrável. Tal visão
está correlacionada com a própria concepção de tempo, que também está calcada na pers-
pectiva bíblica: “Simultaneamente com o mundo, o tempo foi criado; por isso é impossível
imaginar um tempo ‘antes’ da criação de algo que se move e muda, [...] Deus cria o universo
não no tempo, mas simultaneamente com o tempo [...]” (LÖWITH, 2011, p.162, tradução
nossa).
Perceba que, nessa concepção, não cabe a concepção de passado antes da cria-
ção do tempo por Deus, já que não há passado possível dentro de um tempo inexistente.
Essa visão diferia radicalmente dos filósofos pagãos que acreditavam em um tempo circu-
lar, de eterno retorno, sem começo nem fim. Para sustentar suas argumentações, Santo
Agostinho evocava a autoridade das Escrituras, para salientar que o tempo circular não
trazia esperanças de salvação, tal como poderia enxergar na fé cristã (LÖWITH, 2011).
Em Santo Agostinho, a história profana não tem relevância, pois a história verdadei-
ra estava orientada para um fim maior: o da salvação ou da condenação eterna. Portanto, a
história corrente para Santo Agostinho era uma sucessão de evento em direção ao propósito
desenhado por Deus. A partir dessas e outras concepções, o teólogo fundamenta o quesito
da fé na Igreja primitiva em vias de estabelecimento de sua doutrina (LÖWITH, 2011).
Assim, não é tarefa fácil enxergar a produção da história no período medieval, em
especial no período que compreende a Alta Idade Média, que para Bourdé e Martin (1983)
abrange o período do século V ao XII.
Muitos historiadores veem a Idade Média como uma fase rebelde da história, pela
tendência dos cronistas e biógrafos do período em enxergar uma continuidade entre os
acontecimentos. Cada acontecimento era visto como isolado dos demais e parecia não
obedecer a ordem de causa e efeito. Em consequência disso, alguns historiadores tendem
a ver a mentalidade medieval como “a-histórica”, ou seja, sem a produção de conhecimento
historiográfico. A história relatada pelos cronistas e outros que descreviam os acontecimen-
tos da época parecia não ser de fato apropriada pelo ser humano, mas sim aparecia como
um encadeamento dos desígnios divinos na humanidade. Verifica-se, portanto, até o século
XII um predomínio do sentido do tempo natural, das estações e dos meses, bem como do
tempo litúrgico (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
O sentido de tempo modificou-se a partir do século XII, na medida em que o próprio
ser humano intervém de maneira diferente em seu meio. É o homo faber, aquele que, por

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 48


meio de seu trabalho, interage e modifica a natureza e, em consequência disso, a concep-
ção de tempo e história também são transmutadas. Assim, foi nascendo uma nova visão
de história: i) é concedida uma atenção às obras humanas, ainda que estejam submetidas
à Providência Divina; ii) aparecimento do sentimento de herança com relação às gerações
anteriores; iii) organização de uma reflexão histórica, cuja sequência dos acontecimentos
termina na salvação; iv) configuração de uma “ferramenta conceitual” no sentido de pensar
o tempo histórico, como, por exemplo, a periodização do tempo em partes: antes da lei, sob
a lei e sob a graça.
Ainda assim, percebemos certa imprecisão na localização temporal ou de datas.
Com isso, recorre-se, no caso de relato de peregrinos, por exemplo, a termos incertos
como “outrora”, “há muito tempo” etc. (BOURDÉ; MARTIN, 1983). Além disso, permanece
marcante o providencialismo divino nos escritos dos cronistas durante a maior parte da
Idade Média. Um dos principais exemplos deste tipo de história, já no fim da Idade Média,
foi Bossuet (1627-1704) com sua obra Discurso Sobre a História Universal:
Esta obra visava tirar da história preceitos de sabedoria moral e política e
esclarecer determinadas constantes da natureza humana. Era também um
exercício retórico, onde a investigação do bocado de bravura dominava a
preocupação de erudição. O preconceito literário e o preconceito utilitário,
tão nefastos à história dos tempos clássicos [...] estão aí sem cessar em
funcionamento (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 24).

A obra tinha como intuito fazer um resumo da história universal, compor a história
da religião e, por fim, propor um “curso de filosofia da história, no qual a ascensão e a
decadência dos impérios eram explicadas pelo estado das leis e das instituições” (BOUR-
DÉ; MARTIN, 1983, p. 24). Mais do que uma história subordinada à cristandade, Bossuet
elaborou um discurso moralizador. Para ele, a história era utilitária e deveria ensinar os
príncipes e seus súditos por meio da revelação do plano divino para a humanidade.
Vemos à ligação da história humana com a questão divina, em especial, com o peso
do jugo divino. Por isso, os agentes da história não são os seres humanos e seus feitos, que
são desprovidos de autonomia, eles são construídos conforme uma pedagogia divina, ou
seja, a história cumpre o papel de ensinar os seres humanos acerca dos preceitos da Igreja.
Ainda assim, Bossuet enuncia alguns princípios de análise histórica:
Porque este mesmo Deus que fez o encadeamento do universo, e que, todo-
-poderoso por si só, quis, para estabelecer a ordem, que as partes de um tão
grande todo dependessem uma das outras; este mesmo Deus quis também
que o curso das coisas humanas tivesse sequência e proporções; quero dizer
que os homens e as nações tiveram qualidades proporcionais à elevação
a que estavam destinados; e que com a reserva de determinadas golpes
extraordinários em que Deus queria que a sua mão aparecesse sozinha, não
aconteceu qualquer mudança que tenha tida as suas causas nos séculos
precedentes.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 49


E como em todos os assuntos, há aquilo que os prepara, o que determina a
inicia-los, e o que faz ter êxito; a verdadeira ciência da história é observar em
cada tempo estas secretas disposições que preparam as grandes mudanças
e as conjunturas importantes que as fizeram acontecer. [...] Quem quiser
entender a fundo as coisas humanas deve retomá-las de mais alto; e precisa
observar as inclinações e os costumes, ou, para dizer tudo numa palavra, o
caráter tanto dos povos dominantes em geral como dos príncipes em parti-
cular. [...] (BOSSUET apud BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 25-26, grifo nosso).

A partir da citação acima, podemos observar que, para Bossuet, Deus ocupa um
lugar de destaque, porém, esboça-se uma análise histórica que leva em consideração as
temporalidades humanas.
“Filha da desgraça, a história também é serva do poder”, é assim que Bourdé e Martin
(1983, p. 28) a descrevem quando estão a falar sobre íntima relação entre os cronistas e os
príncipes no final da Idade Média. Muitos pensadores da época recebiam encomendas para
escrever a história de determinada localidade ou mesmo redigir uma história da realeza,
que tinha como função central colher histórias do reino. Dos cronistas esperava-se exaltar
os feitos dos reis e toda sua dinastia, bem como contribuir para a coesão do Estado, por
meio da invocação de um passado histórico comum (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
São as primícias de uma história voltada a construção de uma identidade nacional,
como se verá nos séculos posteriores. Assim, podemos perceber que, durante a Idade
Média, alguns fatores nortearam a construção da história – ainda que não possamos falar
da disciplina constituída em si. A legitimação da Igreja como detentora da verdade, da
moral e do propósito da vida humana veio com Santo Agostinho, porém, este poder vai
ser cada vez mais aprofundado nos séculos subsequentes. Ainda vemos forte influência
dos detentores de poder na escrita da história, cuja emancipação só vai acontecer tempos
depois e ainda com ressalvas.

REFLITA

Desde o começo, a fé cristã é sacrifício: sacrifício de toda a liberdade, todo orgulho, toda
confiança do espírito em si mesmo [...]. Seu pressuposto é de que a submissão do espí-
rito seja indescritivelmente dolorosa, que todo o passado e todo o hábito de um tal espí-
rito se oponham ao absurdissimum que a “fé” para ele representa. (NIETZSCHE, s. d.)

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 50


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Você viu que a escrita da história, assim como muitos outros eventos da huma-
nidade, possui historicidade. Essa história, com certeza, é fruto de escolhas conscientes
e inconscientes de historiadores que viveram antes nós e foram aos poucos definindo do
que se tratava a tradição historiográfica. Portanto, o caminho que fizemos trata-se, em
suma, de algumas destas escolhas que elegeram tais personagens como relevantes para
historiografia ocidental.
Logo no primeiro tópico, você pode pôde vislumbrar as relações entre história e mito.
Com clareza, mostramos que o mito não é necessariamente a história como a conhecemos
hoje, mas sim uma forma utilizada pelas sociedades arcaicas de olhar para o seu passado
primordial (ainda que este seja fantasioso) e ressignificá-lo em seu cotidiano, por meio dos
ritos. Com isso, fica claro o movimento de dessacralização da história com relação à esta
primeira forma de interpretação do passado.
No segundo tópico, mostramos as primeiras sistematizações de pensamento his-
tórico, que teria seu berço da Grécia Antiga. Nomes como Heródoto, Tácito, Políbio, Tito
Lívio, entre outros, foram fundamentais na literatura greco-romana, os quais compuseram
alguns dos pressupostos da análise histórica. Neste tópico, você pôde observar os primeiros
passos para a emancipação da explicação mítico-religiosa. No entanto, com o predomínio
da Igreja no ocidente, a escrita da história vai tomar um rumo apropriado de acordo com os
padrões morais da época.
No último tópico, você viu a força do domínio da Igreja sobre a escrita do passado,
a ponto de aproximá-lo com as narrativas bíblicas e alterar a concepção de temporalidade
exposta pelos antigos. Por isso, gêneros como anais, hagiografias, biografias e crônicas
estavam sob o jugo da cristandade e o domínio real.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 51


LEITURA COMPLEMENTAR

A POLÍTICA COMO OBJETO DE ESTUDO: TITO LÍVIO E A REFLEXÃO HISTORIO-


GRÁFICA ROMANA DO SÉCULO I a. C.

Breno Battistin Sebastiani

Tito Lívio empreendeu relatar a história de Roma ab urbe condita, tendo iniciado a
redação entre 27 e 25 a.C. O fato de ser o primeiro historiador romano não pertencente à
aristocracia senatorial não o impediu de centralizar seu relato na narrativa das sucessivas
guerras travadas pela urbs para defesa e expansão de seu próprio território, guerras cujo
planejamento, condução e sucesso dependeram da atuação política de uma aristocracia
cada vez mais consciente de sua posição e determinada a mantê-la e reforçá-la.
Esse texto objetiva discutir os significados modernamente históricos e historiográfi-
cos dessa esfera política enquanto conteúdo diretor da obra do historiador. Para tanto, é ne-
cessário analisar previamente algo das origens da conceituação desse conteúdo enquanto
objeto historiográfico, sua presença no pensamento romano do século I a.C. e a influência
que ambos teriam exercido sobre Tito Lívio.
Ao iniciar a redação de sua obra (I, 1), Heródoto (V a.C.) informa tratar-se ela de
uma demonstração de história. Aparentemente tão familiar, a ideia de história transmitida
pelo historiador não se reporta ao gênero literário modernamente conhecido, mas constitui
parte do método de pesquisa empregado pelo autor chamado atualmente de historiador.
Ligada etimologicamente ao verbo grego, que guarda também a noção de ver, perceber
pelo intelecto, a ideia de história apresentada por Heródoto sintetiza o fruto das observa-
ções operadas ao longo de suas viagens de conhecimento pelos mundos grego e bárbaro.
O conteúdo de sua obra subordina-se ao alcance de sua experiência pessoal na apreensão
desse conhecimento, ou seja, o autor só escreve porque conhece algo empiricamente e
não porque especule acerca de algo que creia saber.
Tucídides (V-IV a.C.), por sua vez, informa em seu prólogo (I, 1) que compôs em
prosa a guerra [...] entre os peloponésios e atenienses, guerra cujo desenrolar vivenciou
completamente. Ele também está inteiramente presente em sua narrativa, dado que está
condicionado à circunstância de sua participação no processo narrado. Assim como Heró-
doto, Tucídides narra o fruto de sua própria experiência pessoal. Esses dois exemplos são

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 52


significativos para demonstrar que, no mundo grego, os autores de uma obra modernamen-
te chamada historiográfica só escreviam sobre fatos por eles próprios vivenciados.
Devido a isso, seu método de trabalho estava condicionado às faculdades huma-
nas de que dispunham para apreender o fato delimitado como conteúdo da narrativa, o
qual forçosamente se circunscrevia ao presente e ao passado que, ao final da redação
da obra, era próximo do contexto historiado e ainda ecoava na memória do leitor. Quando
tratavam de um passado muito recuado, quase apagado da memória dos contemporâneos,
e frequentemente encerrado em versões míticas, tinham de recorrer a métodos indiretos
para sua apreensão, de cuja imprecisão tinham consciência. Por isso, só o faziam em caso
de muita necessidade, como os vinte e três primeiros parágrafos de Tucídides, e para ilus-
tração contextualizante do restante da narrativa, centrada basicamente na temporalidade
próxima do historiador.
Essa atitude historiográfica definida pela historiografia grega clássica é recebida
como legado por alguns autores de Roma do século I a.C. […]. Tito Lívio escreve sobre o
passado romano mais recuado sem jamais haver ocupado um cargo político ou militar, ten-
do dedicado toda sua maturidade e velhice à redação de seu trabalho. Opera, assim, uma
cisão radical e única entre a necessidade de experiência pessoal e o domínio do cânone
retórico: muito embora não tenha sobrevivido o texto liviano relativo à própria época do au-
tor, não havendo, portanto, meio de se saber como ele tratou da relação entre experiência
pessoal e relato de acontecimentos atuais, é possível afirmar que a cisão liviana reflete o
aprofundamento consciente da principal característica da historiografia romana […].
O historiador fala de seus predecessores, do assunto, dos leitores e de suas as-
pirações quanto à sua obra de maneira intencional: ao contrário de Heródoto e Tucídides,
não experienciou a maior parcela cronológica do conteúdo de sua obra, dada sua extensão.
[…] Mais do que dirigir o pensamento do leitor para suas outras qualificações que não as
fundadas na experiência pessoal, o emprego retórico dessas considerações nesse sentido
evidencia o deslocamento operado pelo paduano quanto aos atributos necessários ao
historiador.

Fonte: Sebastiani (2006).

Para ler o artigo na íntegra, acesse: https://www.redalyc.org/pdf/2850/285022043012.pdf.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 53


MATERIAL COMPLEMENTAR

LIVRO
Título: A Escrita da História na Antiguidade Greco-romana
Autor: Moisés Antiqueira
Editora: Martins Fontes
Sinopse: a obra contempla oito estudos assinados por pesquisa-
dores brasileiros que atuam em diferentes instituições de ensino
superior Brasil afora e com destacada produção na área dos Estu-
dos Clássicos. Os trabalhos aqui apresentados permitem ao leitor
tomar contato com diferentes aspectos relacionados às instigantes
e múltiplas formas e reflexões que gregos e romanos desenvolve-
ram acerca da escrita de sua história, fosse aquela do passado ou
a do presente em que viviam. Sendo assim, a obra se volta para
temas e problemas que se observam nos textos escritos por his-
toriadores da maior relevância, como o foram Heródoto, Tucídides
ou Políbio; por autores cuja vasta produção intelectual abrangia
também a história, como era o caso de Xenofonte; por historiado-
res menos célebres, mas que lidaram com questões críticas aos
olhos de seus contemporâneos, tal como o fizeram Flávio Josefo e
Aurélio Vítor; por pensadores como Sêneca e Plínio, o Velho, que
também se ocuparam da história de maneira pontual. Portanto, o
leitor tem em suas mãos uma coletânea que oferece um valioso
panorama acerca da pluralidade comum à escrita da história na
Antiguidade Greco-romana.
Link: https://www.martinsfontespaulista.com.br/escrita-da-histo-
ria-na-antiguidade-greco-romana-a-526099.aspx/p

FILME/VÍDEO
Título: 300
Ano: 2006
Sinopse: trata-se de um filme de fantasia que tomou como base
uma série de quadrinhos com o mesmo nome de Frank Miller e
Lynn Varley dos anos 1990. Ambos tomam como inspiração as
Guerras Médicas, entre espartanos e persas. A história conta com
figuras fantásticas, o que faz com que a obra figure no gênero
de fantasia histórica. O filme tem início quando um orador de
Espartano começa a contar a vida do rei Leónidas I, destacando
seu treinamento militar desde a infância. A partir daí a história se
desenrola com Leónidas destacando 300 de seus homens para
lutar contra o Xerxes da Pérsia, que tinha desejos de ocupar a
região. O filme toma como cenário as Guerras Médicas descritas
por Heródoto, mas não possui compromisso com a realidade.
Entretanto, podemos verificar que o esforço do “pai da história”
em descrever tal conflito é apropriado até a contemporaneidade,
inclusive no ramo do entretenimento.

UNIDADE II Economia Política e Finanças Públicas 54


UNIDADE III
A Escrita da História no Século XIX
Professora Mestra Maria Helena Azevedo Ferreira

Plano de Estudo:
• O Historicismo;
• A Escola Metódica;
• O Materialismo Histórico.

Objetivos de Aprendizagem:
• Conceituar e contextualizar o surgimento e características do historicismo;
• Analisar a escrita da história na escola metódica e suas influências;
• Compreender a importância do materialismo histórico e conceitos marxistas pertinentes
à escrita da história.

55
INTRODUÇÃO

Caro (a) estudante, para que a história hoje seja disciplina escolar, esteja presente
nas universidades e forme pesquisadores, ela precisou, em algum momento, construir suas
bases teórico-metodológicas. Este momento foi no século XIX. Por isso, selecionamos,
para discutir com você nas páginas que se seguem, alguns dos principais movimentos que
intelectuais empreenderam neste período para pensar historicamente. É preciso sempre
relembrar que conhecer a base teórica-metodológica sobre a qual nosso campo de conhe-
cimento foi construído é um dever de todo profissional em formação.
Inicialmente, vamos discutir, no primeiro tópico, as premissas do historicismo. Este
movimento ganhou força no contexto da Revolução Francesa e do Iluminismo, os quais
se opunham à sociedade constituída no período medieval e se opunham também a toda
valorização do passado, olhando sempre para o futuro e se apegando à filosofia univer-
salistas. Os historicistas alemães caminhavam em sentido contrário a esta perspectiva,
prezando pelo contexto histórico e pela singularidade dos eventos. Assim, você verá como
historicismo “descobriu” a história e forneceu bases importantes até os dias atuais.
O século XIX ficou conhecido também como o século de fundamentação dos
métodos científicos, especialmente das ciências da natureza e das matemáticas. O cresci-
mento destas áreas foi tão grande a ponto de influenciar largamente as ciências humanas
e sociais. O positivismo criado nessa perspectiva inspirou várias das concepções da Escola
Metódica da história. Você entenderá, nesse momento da unidade, como esse movimento
construiu as noções de documento, de tempo histórico, de objeto, procurando localizar a
história como ciência.
Por fim, você vai explorar o conceito “materialismo histórico”, que foi fomentado
dentro da abordagem de Karl Marx e é um constructo teórico para pensar a história. O
materialismo histórico pressupõe uma relação dialética que geraria as mudanças históricas.
Construir um modelo social para teorizar acerca dos mecanismos de mudanças da socie-
dade foi uma das contribuições deste conceito para o âmbito da história. Aproveite a leitura
a seguir!
Bons estudos!

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 56


1 O HISTORICISMO

Com o fim da Idade Média, a modernidade rompeu com as bases do poderio da


Igreja, bem como desestruturou as relações de poder baseadas no Antigo Regime. Isso é
alavancado graças à mentalidade burguesa nascente na Europa ocidental, que comandava
as revoltas pelo continente, clamando por mais espaço no âmbito político-econômico da
sociedade. A Revolução Francesa, no fim do período moderno, foi um dos símbolos do
rompimento da submissão das antigas formas de Estado e sua inerente sujeição à Igreja.
Assim, era inevitável que a história ganhasse rumos até então desconhecidos.
Uma das consequências diretas da Revolução Francesa foi a nova orientação do
sentido da História. Reis (2003) caracteriza este novo olhar como a “redescoberta” da his-
tória, que, neste momento, tinha a pretensão de operar tanto na reconstrução do passado
como na produção de um futuro. Dessa operacionalização da história, tanto para passado
como para futuro, emergem duas concepções distintas:
Foi no século XVIII que teve a primeira intuição destes dois sentidos da
história: o primeiro, revolucionário e emancipacionista, foi elaborado pelos
iluministas franceses e alemães, e se radicalizou com o marxismo, nos
séculos XIX/XX; o segundo, conservador e tradicionalista, foi revelado pelo
italiano Giambattista Vico, e se radicalizou com a Escola Histórica Alemã e os
historicistas, nos séculos XIX/XX (REIS, 2003, p. 2).

Os revolucionários assentados nos princípios da Revolução, do homem ideal, da


liberdade geral e dos direitos universais desejavam realizar uma ruptura com o passado e
com a sociedade estabelecida segundo estes padrões. Enquanto isso, os historicistas, longe

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 57


destas especulações filosóficas, selavam um compromisso com o passado e procuravam
avaliar determinada época de acordo com suas crenças e valores. Por isso, diferentemente
dos iluministas e filósofos como Kant e Hegel, tributários da revolução eram contrários às
categorias abstratas como a Razão. Pensar o mundo em categorias filosóficas é que o
teria, para os historicistas, levado aos excessos da Revolução (REIS, 2003).
Os historicistas alemães acreditavam que eram os iluministas franceses criadores
de categorias trans-históricas, ideia de homem, de humanidade, de liberdade, dentre outras,
que apareciam desligadas do contexto específico de cada sociedade. No âmbito político, o
historicismo alemão foi usado como arma de combate pelos fundadores do Estado Nacional
Alemão, no momento de unificação do Estado no século XIX, contra o expansionismo fran-
cês. O historicismo, por isso, se liga ao contexto alemão e, de certo modo, flertava com o
romantismo no que diz respeito à exaltação do Estado Nacional. Portanto, clarificou-se uma
franca oposição entre os historicistas alemães e os revolucionários franceses inspirados
pela filosofia idealista (REIS, 2003).
O historicismo nasce, portanto, como uma “contrarrevolução”, como antagonista às
ideias pregadas pela Revolução Francesa e pelos filósofos iluministas, justamente porque,
além de serem contrários às categorias idealizadas para pensar sociedade e indivíduo, não
concordavam com a concepção que se deveria operar uma ruptura com o passado (REIS,
2003). Nesse momento de profunda reflexão sobre o papel do passado sobre o presente
e sobre a orientação para o futuro, o historicismo nasce na busca pela estabilidade e pela
ordem, ou unidade (SCHOLTZ, 2011).
Scholtz (2011) afirma que num momento de instabilidade da história, ela precisa
encontrar sua estabilidade em um devir, ou seja, no movimento de transformação que tor-
na um estado de coisas diferente no seguinte. Entretanto, diferentemente do filósofo Hegel
que via este devir, o processo de transformação, como um embate dialético que rumava
ao progresso linear, os historicistas não acreditavam nesse futuro que ia necessariamente
para uma melhora. Para eles, é importante observar as descontinuidades e multiplicidades
de cada sociedade, não valores morais aplicados a todos ou mesmo a ideia de humanidade
no sentido amplo do termo (REIS, 2003).
No contexto do século XIX, as ciências humanas sofriam ampla concorrência com
as ciências da natureza, na explicação dos fatores humanos e seu meio. A relação entre as
ciências humanas ou ciência dos espíritos e o caráter empírico das ciências da natureza
encontrou lugar ao lado da vertente revolucionária:

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 58


As ciências naturais vieram apoiar os revolucionários em sua luta contra a
história e tradição, legitimando a sua tese de que todos são iguais submetidos
às mesmas leis naturais e universais. O seu “individualismo competitivo” era
legitimado por leis naturais (REIS, 2003, p. 6).

Era necessário, portanto, combater tal associação e fundamentar uma história de


fato científica. Para isso, o historicismo explorou as dimensões presente/passado, evi-
tando fazer predições sobre o futuro, valorizando as diferenças humanas no tempo, na
descontinuidade histórica e também não tomando como categorias como: “Ideia”, “Razão”,
“Providência”, entre outros, pois o importante era o evento. Diante disso, o movimento
inaugurado era contra o viés a-histórico, contra o universalismo e contra a abstração (REIS,
2003).
É nesse contexto que surgiu o que se convencionou a chamar historicismo. Porém,
é um termo ainda bastante controverso, visto que alguns autores ainda preferem usar
historismo e não é uma mera questão de escolha, pois ambos os termos evocam posicio-
namentos teóricos distintos. Na Alemanha, que foi onde o movimento ganhou força, o termo
mais empregado é historismo, ao passo que em um amplo suporte bibliográfico de língua
não-alemã utiliza-se historicismo. Contudo, sabe-se que o termo que optamos por utilizar
aqui, historicismo, apareceu pela primeira vez quando K. Werner se referiu ao “historicismo
filosófico” de Giambattista Vico (REIS,2003).

SAIBA MAIS
Giambattista Vico (1668-1744) nasceu em Nápoles e se dedicou ao estudo da história e
do direito romano. Sua principal obra foi Ciência Nova, publicada pela primeira vez em
1725, porém suas ideias permaneceram pouco exploradas e, em parte, isso se deveu à
sua escrita com certa falta de coerência lógica.
Ainda que Vico fosse intimamente ligado à ortodoxia cristã, contribuiu de maneira bas-
tante original para a escrita da história. Ao estudar os “povos pagãos”, sustentou a ideia
de que a história era cíclica e as “nações” humanas passavam inevitavelmente por fases
de desenvolvimento. Porém, o pensamento de Vico não se resume a isso: ele tinha a
pretensão de formalizar uma teoria do conhecimento, presumindo que, para se conhe-
cer algo, era necessário tê-lo feito. Assim, a história como fruto da construção humana
podia ser conhecida por instrumentos humanos. Traça-se, portanto, uma diferença fun-
damental entre a história e as ciências da natureza, trazendo à tona os primeiros indí-
cios de indagação histórica.
Fonte: Gardiner (1964).

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 59


Podemos, então, afirmar de antemão que, seja historicismo ou historismo, o movi-
mento figurou de diferentes formas em diferentes contextos. No entanto, nos atemos aqui
ao caso alemão, que foi o melhor reconhecido.
Com base em Iggers e Cassier, Reis (2003) elenca algumas características centrais
do historicismo alemão:
● Inventou a prática historiográfica, delimitando o objeto de conhecimento da
história e a postura do historiador;
● Foi um movimento que transpassou a história, influenciando o direito, a literatu-
ra, a política etc., marcando o início da ciência histórica moderna;
● Sustentava como tese base que há diferença essencial entre os fenômenos da
natureza e históricos. Por isso, eram precisos métodos distintos de abordagem
para cada. Enquanto a natureza viabiliza fenômenos repetíveis e sem consciên-
cia ou propósito, a história estudaria eventos únicos, realizados com vontade e
intenção;
● Apenas a história pode explicar os fenômenos humanos, nada exterior a ela
pode fazê-lo;
● O ser humano é histórico, se apresentando de diversas formas e a história
identifica estas variações;
● A história quer dizer a persistência do passado, reconhecido que somos frutos
dele;
● O passado influi na vida presente. Portanto, a história é a reconstrução da pró-
pria vida.
Essas são características gerais do historicismo, cuja a centralidade temática Reis
(2003, p.14) identifica como sendo a “especificidade do conhecimento histórico, as condi-
ções de possibilidade e autonomia das ciências do espírito”. Por “autonomia das ciências
do espírito” podemos compreender autonomia das ciências humanas em face às demais
correntes de pensamento, como as ciências naturais e matemáticas. Essa autonomia se
mostrou enquanto processo que pode ser periodizado:
[...] no final do século XVIII, ele seria romântico e filosófico, ao fazer uma
divisão ontológica entre natureza e história; em meados do século XIX, seria
uma epistemologia com “contaminações filosóficas”, ao diferenciar o método
das ciências humanas do das ciências naturais, mas no contexto de filosofia
de vida; no século XX, tornou-se uma epistemologia “científica”, livre de tais
influências filosóficas, mas em crise (REIS, 2003, p. 14).

Essas três fases do historicismo, que perduraram de 1789 até 1989, compreen-
deram, pelo menos em sua fase inicial, traços de originalidade, que traz a história como o

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 60


estudo do passado. No final do século XVIII e início do XIX, o historicismo, em contraposição
à ideia iluminista de ruptura com o passado, trouxe questões importantes, tais como:
Como é possível conhecer o passado humano? Do passado, o que se deve
conhecer? Quais as estratégias cognitivas; quais os riscos? Quais as condi-
ções de possibilidade e os limites deste conhecimento? Que grau de certeza,
de objetividade, de rigor de verdade, pode-se esperar da atividade do his-
toriador? Quais as relações entre o conhecimento do passo, a experiência
presente e as expectativas futuras? Qual é a relevância deste conhecimento,
isso é, por que e o quê se busca no passado? (REIS, 2003, p.20, grifo do
autor).

Essas são questões postas pelo historicismo e que têm correspondência até os
dias atuais. Nesse sentido, um dos maiores contribuintes para epistemologia histórica foi o
alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911). Dilthey foi um discreto e dedicado professor de filosofia
que se interessava por temas históricos. Na verdade, ele tinha vários objetos de pesquisa,
como filosofia moral, estética, teoria da psicologia e da educação, críticas literárias, dentre
outros. Contudo, como muitos historicistas, possuía escrita de difícil compreensão e não
tinha uma forma clara expressar-se (REIS, 2003).
Assim como outros pensadores da sua época, ele se afastava da filosofia de Hegel,
reafirmando um posicionamento contrário a princípios universais que pudessem reger a
humanidade em uma perspectiva teleológica. Seguia Vico, no sentido de entender que
história diz respeito a “experiência vivida”, em favor da compreensão do contexto histórico,
que era local e finito (REIS, 2003).
Dilthey revolucionou as ciências humanas ao colocar a Razão, como categoria
abstrata, como submetida à vida, ou seja, não seria a Razão que ordenaria a vivência,
mas sim teria a vida ordenado a Razão. Por isso, opunha-se ao pensamento teológico, ao
colocar o cristianismo como um fenômeno histórico, contra o idealismo e o naturalismo.
Argumentava sobre o idealismo, alegando que não era possível existir uma consciência
supra-histórica, mas qualquer consciência estaria assentada sobre determinado contexto.
Contra o naturalismo, defendia que não era possível conhecer os seres humanos tal como
se conhecia a natureza.
É interessante notar este posicionamento de Dilthey com relação às ciências natu-
rais no século XIX. As ciências naturais, nesse período, apresentavam-se como paradigma
dominante, o que rechaçava as demais formas de conhecimento que não eram pautadas
pelos seus princípios metodológicos, centradas nas concepções cartesianas de compreen-
são do mundo. Esse paradigma dominante das ciências naturais era centrado em uma
linguagem matemática de compreensão das leis que regiam a natureza. Por isso, “um
conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a ideia de

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 61


ordem e estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro” (SANTOS,
1995, p. 17).
O mundo regido por leis matemáticas e naturais preconiza o determinismo mecani-
cista, inclusive no âmbito das ciências humanas. Acreditava-se que era possível descobrir
leis da natureza e que era igualmente possível propor leis de desenvolvimento da socieda-
de (SANTOS, 1995). Era também contra esse tipo de concepção que Dilthey se colocava,
delimitando o estudo da humanidade sob parâmetros específicos.
Dilthey contribuiu para o pensamento histórico pensando a alteridade e a plu-
ralidade, reconhecendo o sentido da história pautado do descobrimento das ideias que
fundamentam a ação humana (REIS, 2003). Assim, o pensador colaborou não apenas para
a história, mas também para a fundamentação epistemológica e autonomia das ciências
humanas frente ao paradigma dominante do mecanicismo determinista.
Em suma, os escritos de Dilthey, por mais que não tenham sido amplamente lidos
entre seus contemporâneos ou mesmo depois de sua morte, representam o cerne de um
movimento tão difuso como o historicismo. Esse movimento, apesar de sua complexidade,
teve como eixo central a promoção da autonomia das ciências humanas e, consequente-
mente, da história como campo de conhecimento que estuda o passado frente à outras
correntes negacionistas deste ou mesmo de campos que entendiam o processo histórico
como a aplicação de leis sociais.

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 62


Fonte: Freepik (2020).

2 A ESCOLA METÓDICA

É de suma importância situar o século XIX como aquele em que as ciências


humanas em geral, a história inclusive, procuraram espaço no rol das ciências. Dessa
maneira, não foi apenas o historicismo que trouxe a preocupação de delimitar o campo da
prática historiográfica, mas também foi o caso da abordagem que ficou conhecida como
positivismo. Assim, o século XIX pode ser considerado um momento de instauração de
métodos, objetos e abordagens específicas para a história.
Falamos brevemente sobre o paradigma dominante das ciências naturais e mate-
máticas, que impunham a necessidade de descobrir as leis que regiam determinado fenô-
meno, seja ele de ordem natural ou da produzido pela sociedade. O conhecimento regido
por leis e demonstrável era utilizado como critério de cientificidade no século XIX. Por isso,
as disciplinas “humanas” procuravam se aproximar deste paradigma, a fim de alcançarem
o status de ciência (ZANIRATO, 2011; SANTOS, 1995).
Segundo esse parâmetro, só existiam duas formas de conhecimento científico: a
primeira referente às disciplinas de caráter lógico e matemático e a segunda assentada num
caráter mecanicista das ciências naturais. As ciências humanas, em geral, tentaram aplicar
esses princípios ou mesmo reivindicar fundamentos metodológicos e epistemológicos pró-
prios (SANTOS, 1995). Partindo de uma prerrogativa que buscava conhecer as leis gerais
da sociedade é que nasceu o positivismo por meio do filósofo Auguste Comte (1798-1857).
Em suma, o positivismo:

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 63


[...] entendia a ciência como estado de desenvolvimento do conhecimento
humano que superava as concepções mítico-religiosas e as forças abstratas.
O positivismo se apresentou como uma lei fundamental acerca do desen-
volvimento do conhecimento, segundo a qual as principais concepções de
mundo passaram por três estados sucessivos: estado teológico ou fictício,
o estado metafísico ou abstrato e o estado científico ou positivo. A ciência
correspondia ao estado positivo do conhecimento, que era segundo Comte, o
seu estado definitivo (ZANIRATO, 2011, p. 49-50).

A teoria positiva preconizava, portanto, que o conhecimento humano teria passado


por esses três estágios, sendo que o primeiro invocava a vontade de Deus como explicação
última dos fenômenos, o segundo estaria embasado em princípios abstratos e metafísico
e o último seria um modelo de explicação por meio de leis determinantes e objetivas. Era
por meio deste último estado que Comte acreditava ser possível alcançar o conhecimento
científico e, assim, verdadeiro. A veracidade da explicação de um fenômeno derivava do
posicionamento distante do pesquisador, que apenas relataria a realidade, não a julgando.
Além disso, dentro da perspectiva de aproximação com as ciências naturais e suas leis, o
positivismo assumia como legítimos apenas o conhecimento empírico, baseado na expe-
rimentação, e o conhecimento lógico, passível de ser transcrito em linguagem matemática
(ZANIRATO, 2011).
Mas, como tais prerrogativas podem ser transpostas para a escrita da história?
Como adotar procedimentos empíricos ou lógicos quando falamos de uma ciência humana?
É fundamental compreender que o positivismo não foi feito exclusivamente para a história,
mas, sim, era um constructo teórico abrangente para a construção do conhecimento. Isso
obedecia aos padrões do século XIX, momento em que a ciência se separa de uma vez por
todas das concepções religiosas e passa a procurar por modelos próprios, que expliquem
o que está dentro do conhecimento científico e quais são os seus métodos, ou seja, como
opera, quais são objetos, enfim, tudo o que diga a respeito de como a realidade pode ser
observada, analisada, comparada e exposta em uma linguagem comum.
Se o historicismo procurou se afastar de concepções universais na análise histórica,
prezando pela singularidade, a influência do positivismo sobre a história vai fazer com esta
opere de forma distinta. E é mais uma vez na Alemanha que a história vai sofrer transfor-
mações em seus métodos, objetos e abordagens, considerando que é no século XIX que o
país ansiava pela sua unidade territorial e a construção da memória deste povo era aspecto
essencial. Porém, também na França pode-se ver forte influência do positivismo (REIS,
1996; ZANIRATO, 2011).
Com a influência do positivismo e com o processo de profissionalização do historia-
dor a nível institucional, buscou-se na história a objetividade, entendendo que os fenôme-

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 64


nos humanos poderiam ser explicados tais como os fenômenos físicos e químicos. Desse
movimento, Reis (1996) sumariza algumas características centrais:
● Não cabe ao historiador julgar o passado, devendo ele apenas relatar exata-
mente aquilo que se passou;
● Não existe relação entre o sujeito pesquisador (historiador) e seu objeto de
estudo de qualquer interdependência. O historiador pode e deve se colocar a
par de seu lugar social em suas análises, esboçando a necessária neutralidade;
● A história fala por si mesma através dos documentos;
● Em consequência disso, a tarefa do historiador se resume em reunir o maior
número de fatos dados pelos documentos;
● Os fatos retirados dos documentos devem ser organizados de maneira crono-
lógica, não sendo necessária a reflexão teórica, já que como toda especulação
filosófica ela seria nociva;
● A história como prática científica pode alcançar a objetividade e conseguir che-
gar à verdade, caso o historiador se comprometa com os princípios norteadores.
Eram nestes valores que residia a almejada cientificidade da história, aspecto
fundamental para a chamada Escola Metódica. A história passava a tratar os documentos
escritos como expressão máxima de verdade dos acontecimentos e a função do historiador
ao lidar com estes era analisar a veracidade do testemunho, sem jamais mostrar parciali-
dade em sua análise. Assim, o historiador deveria colocar-se a par de suas paixões ou de
qualquer análise subjetiva, concentrando seu trabalho também em separar fato e ficção
(ZANIRATO, 2011).
Dessa maneira, os fatos falariam por si e o que o historiador pensaria sobre estes
seria irrelevante. O distanciamento do historiador com relação ao seu objeto justificava-se
pelo desejo de que o conhecimento do passado fosse “puro”, longe de qualquer distorção
inerente à subjetividade. Entretanto, nem todos os fatos eram dignos de serem narrados
nas perspectivas dos ditos positivistas.
Os fatos “narráveis” eram os eventos políticos administrativos, diplomáticos,
religiosos, considerados o centro o centro do processo histórico, dos quais
todas as outras atividades eram derivadas, em seu caráter factual: eventos
únicos e irrepetíveis. O passado, desvinculado do presente, era a “área do
historiador”. Propunham uma história do passado pelo passado, dos eventos
políticos passados, pela curiosidade de saber exata e detalhadamente como
se passaram (REIS, 1996, p.14).

Assim, a Escola Metódica prezava fatos eminentemente políticos e de uma elite.


É interessante salientar que, primeiro, este movimento encontrou lugar na Alemanha, local

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 65


de origem seu principal percussor, Leopold Von Ranke (1795-1886). Ranke foi “o maior
e mais importante dos historiadores e teóricos alemães da História do século XIX” (LE
GOFF, 1992, p. 90 apud ZANIRATO, 2011, p. 53), sendo o primeiro professor de História
universitário, de uma disciplina que acabava de nascer na Universidade de Berlim. Como
já dissemos, a Alemanha do período passava pela unificação nacional e Ranke estava em
conformidade com ideais nacionais, valorizando em seus estudos questões de Estado, bem
como princípios da nobreza alemã protestante (REIS, 1996).
Assim, no contexto dos seminários na Universidade de Berlim é que a história-
-ciência começa a tomar forma. Inicialmente, a Escola Metódica encontrou suas bases na
filologia, na história das religiões e na crítica bíblica. Graças ao método empregado em
tais disciplinas, no que tange a conferência da autenticidade das documentações, que a o
espírito positivo pôde ser aplicado na Escola Metódica (REIS, 1996).
O segundo país no qual este movimento chegou foi a França e isso aconteceu
por volta de 1870 com a fundação da Revue Historique (Revista Histórica). Seu desenvol-
vimento nas universidades, em partes, teve influência direta de professores alemães que
lecionavam nesses espaços e sofreram as influências dos mesmos princípios sustentados
por Ranke, mas que vão se formular de acordo com o espírito francês. Assim, os “positi-
vistas” franceses foram influenciados pelo Iluminismo, calcado em ideais de progresso e
até do evolucionismo darwinista, mas, ainda assim, anti-revolucionários. Com tudo isso, se
encontravam alinhados com a perspectiva de Comte acerca do “espírito positivo” (REIS,
1996).
Assim como os alemães, os franceses davam privilégios às narrativas do Estado,
considerando-os “esclarecidos”, ou seja, cientes de suas ações. Tal aspecto tem relação
com a perspectiva Iluminista a qual estavam alinhados, que preconizava a ação de grandes
líderes que salvariam o povo da ignorância rumo às luzes e isso reverberou também na
noção de temporalidade.
O tempo da historiografia francesa “positivista” é, portanto, iluminista: pro-
gressivo, linear, evolutivo em direção à sociedade moral, igual, fraterna. Ex-
plicitamente, eles negam este seu “fundo filosófico”, mas ele estará presente
em suas obras históricas, mantendo-as mesmo de pé sem que os autores o
admitam e confessem (REIS, 1996, p. 15).

A historiografia metódica francesa contou com alguns pensadores, que publicaram


extensivamente na Revue Historique. Da primeira geração, o mais conhecido foi Fustel
de Coulanges (1830-1889), cuja obra mais conhecida foi “A cidade antiga” de 1864. Na
segunda geração, temos, além de outros nomes, Charles Langlois (1863-1929) e Charles

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 66


Seignobos (1854-1942), que publicaram “Introdução aos estudos históricos” em 1897.
Ambas obras foram amplamente traduzidas e, inclusive aqui no Brasil, continuam sendo
clássicos para o estudo da história da historiografia.
Os “positivistas” franceses, como os alemães, eram nacionalistas e isso foi um
fator importante para ganharem espaço na esfera pública. O Estado criou arquivos públicos
organizados e que unificavam as documentações, além de financiar várias expedições de
historiadores para diversas partes do mundo com intuito de recolher documentações e fatos
que pudessem interessar ao Estado. De certa forma, estes incentivos foram fundamentais
para a autonomia da história, pois ela se emancipa do ensino de literatura e começou a
ser ensinada nas universidades. É o momento, portanto, da efetiva profissionalização da
história (REIS, 1996)
O “método” passou ser a palavra de ordem para esses historiadores. A obra já
citada de C. Langlois e C. Seignobos, “Introdução aos estudos históricos”, tentou se afastar
imputação de filosofia da história e fomentou as bases do método histórico:
Nós nos propomos aqui a examinar as condições e a metodologia, além
de indicar o caráter e os limites, da pesquisa histórica. Como chegamos a
saber, sobre o passado, aquilo que é importante saber sobre ele? O que é um
documento? Como utilizamos os documentos para escrever história? O que
são fatos históricos? E como devemos organizá-los para escrever uma obra
histórica? Qualquer pessoa que se ocupa da história pratica, de forma mais
ou menos consciente, executa complexas tarefas de crítica e organização,
de análise e síntese. Mas os principiantes, e a imensa maioria daqueles que
jamais refletiram sobre os fundamentos metodológicos das ciências históri-
cas, recorrem, para realizar suas operações, a métodos intuitivos que não
possuem procedimentos racionais, nem conduzem usualmente à verdade
científica (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 2017 [1897], p. 7).

Em Langlois e Seignobos vemos as bases do método histórico do século XIX em


três momentos principais: o primeiro a partir do exercício heurístico, que diz respeito à
pesquisa de documentos e sua localização; o segundo se refere às operações analíticas,
da crítica interna e externa do documento, verificando sua proveniência, sua autenticidade
e classificação; por fim, consideram-se as operações sintéticas, que reúnem os fatos e os
expõem, sendo a manifestação da história. Para empreender tais procedimentos, a história
tomará como ciências auxiliares a epigrafia, a filologia, a história literária, a arqueologia,
dentre outras (REIS, 1996).
Na obra supracitada fica evidente o apego aos documentos, bem como a necessi-
dade de categorização entre falsidade e veracidade, baseados na neutralidade e imparcia-
lidade do historiador, o que garantiria a objetividade da prática científica. Há uma discussão,
retomada por Reis (2003), se a alcunha de “positivista” pode realmente ser imputada a
este movimento, já que faz parte da crítica dos integrantes da Escola dos Annales – que

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 67


veremos na unidade IV – sobre a escola metódica. Reis (2003) defende a utilização do
termo “Escola Metódica”, ainda que seja comum aqui no Brasil nos referirmos a estes como
positivistas. De qualquer forma, o movimento representou, de um lado, a conquista da au-
tonomia e profissionalização da história e, de outro, ao se apegar a princípios metódicos, foi
amplamente criticada por seus predecessores. Importa dizer que é no século XIX quando
as ciências humanas e a história em particular vão conhecer teorias fundamentais para sua
estruturação.

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 68


3 O MATERIALISMO HISTÓRICO

Ainda no século XIX, surgiu outro constructo teórico que incidiu sobre a escrita da
história: o materialismo histórico. Zanirato (2011), com base em Pagés, chama a atenção para
o fato de que, enquanto a Escola Metódica andava alinhada com os valores da aristocracia e
do capitalismo, o materialismo histórico, baseado nas ideias de Marx, representou o contrário.
Na verdade, a concepção do materialismo histórico dialético dizia respeito a uma forma de
concepção de história dentro de uma perspectiva ampla defendida por Karl Marx.
Antes de adentrarmos em nosso conceito-chave, é necessário contextualizar o
surgimento dela dentro de um contexto mais abrangente. Karl Marx (1818-1883) nasceu
em Trèves, na Alemanha, sendo de família judia e protestante. Marx, enquanto jovem, se
aproximou das ideias de Hegel e essa aproximação foi fundamental para a construção das
suas ideias, em especial do conceito de materialismo histórico (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
Outra aproximação – essa ocorreu em forma de cooperação – foi com Engels (1820-1895),
também alemão e filho de industriais. Juntos, eles constituíram a base do chamado socia-
lismo científico, em oposição ao socialismo utópico, que estava em voga na época.
Anos antes da publicação de “A Ideologia Alemã”, em 1845, obra mais substancial
no que diz respeito a sua concepção sobre história, Marx já apresentava sinais sobre o
pensamento que viria a se concretizar. Como dissemos, Marx tinha uma aproximação das
ideias de Hegel por conta de sua formação e mais especificamente se interessou pelo gru-
po “jovens hegelianos” ou hegelianos de esquerda (BOURDÉ; MARTIN, 1983). Os jovens
hegelianos tomavam a concepção dialética da história de Hegel de que o processo de

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 69


mudança se manifestava pelo embate entre ideias, ou seja, uma tese se confrontaria com
uma antítese (ideia contrária) formando uma síntese (nova realidade); era uma dialética
baseada em termos idealistas, do mundo das ideias.
Ainda em 1843, Marx começa a esboçar concepções contrárias às defendidas
pelos jovens hegelianos. Em “Crítica da filosofia de direito de Hegel” argumentava que
o Estado não determina a sociedade civil, sendo a sociedade civil quem forma o Estado
(BOURDÉ; MARTIN, 1983). Em “A Ideologia Alemã”, obra conjunta de Marx e Engels, esse
distanciamento fica mais claro, evidente até mesmo no título da obra que criticava o modelo
alemão de filosofia dominante da época, indo em caminho contrário aos jovens hegelianos.
Marx e Engels, em sua obra, acusam estes que negligenciar a ligação entre filosofia e
realidade, defendendo que somente a partir da observação do plano material e entendendo
os processos inerentes a este era possível intervir na ordem social existente.
Dessa maneira, Marx rompeu com o idealismo e compreendeu que a realidade
só pode ser construída com base na materialidade (MARX; ENGELS, 1998). Mesmo que
tenham afastado-se do idealismo hegeliano, a concepção dialética foi fundamental para
formar a noção de materialismo histórico.
Outra influência foi o filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Apesar da aproximação
com a questão materialista, Marx entendeu que o filósofo alemão Ludwig Feuerbach co-
meteu enganos com relação à sua percepção de homem. Apesar de Feuerbach ser essen-
cialmente materialista, Marx e Engels apontam que ele compreendeu que o comunismo
se manifestaria na figura do homem enquanto categorização. Essa ótica de Feuerbach
acabaria por desconsiderar o contexto social de atividade humana. Desse modo, o materia-
lismo do filósofo ficou somente ao pensar a essência humana, deixando de lado qualquer
tipo de intervenção metafísica (MARX; ENGELS, 1998).
Com isso, Feuerbach separou seu materialismo da perspectiva histórica, mas, para
Marx, essa ligação era fundamental. Isso porque, os seres humanos desenvolveriam suas
atividades com base no contingente material disponível, atividade que estaria destinada
a suprir as necessidades básicas. Em consequência disso, o materialismo não seria um
conceito restrito a pensar a essência humana, mas também seria o elemento chave para o
desenvolvimento de relações sociais e o curso da história (MARX; ENGELS, 1998).
A questão da materialidade pode ser vista na forma como os seres humanos de-
senvolvem suas relações de produção de acordo com as forças produtivas e isso vai
reverberar nas questões sociais. Em outras palavras, uma sociedade precisa ter meios de
subsistência, ou seja, a forma como essa sociedade vai sobreviver vai depender em como

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 70


ela usa seus recursos (forças produtivas) sejam eles fontes de energias, matérias-primas,
mão de obra ou conhecimento técnico-científico. A economia e as trocas dos indivíduos
para sua sobrevivência é que constituem a base material (MARX; ENGELS, 1998; BOUR-
DÉ; MARTIN, 1983).
Já as relações de produção, outro conceito esboçado por Marx, “remetem para as
relações sociais que os homens estabelecem entre si, a fim de produzirem e de dividirem
entre si os bens e serviços” (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 154). Na sociedade capitalista,
essas relações de produção se mostrariam presentes na organização de propriedades
privadas, na escolha de investimentos, a organização de pessoal, com normas e horários
e todos os processos que envolvem as relações que as pessoas estabelecem entre si para
fundar a economia. Assim, as forças produtivas e as relações de produção vão constituir o
que Marx classifica como infraestrutura econômica, que seria a base concreta da socie-
dade (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
É sobre a infraestrutura que se ergue a superestrutura, que se refere às institui-
ções políticas, jurídicas, à filosofia, às artes e às doutrinas religiosas, ou seja, são as ideias.
Em suma, para Marx é a materialidade, baseada nas trocas econômicas, que determinam
as ideias. Conforme imagem abaixo:

Imagem 1 - Relação dialética entre infraestrutura e superestrutura

Fonte: Grupo Evolução (s. d.).

Essa dialética, ressignificada das concepções hegelianas, forma-se “na medida em


que o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 71


e intelectual em geral” (MARX apud BOURDÉ; MARTIN, 1983, p.156). Essa é base que
fórmula o materialismo histórico, também chamado de materialismo histórico dialético.
Tanto a base da pirâmide quanto seu topo, na concepção de Marx, se manifestaram de dife-
rentes maneiras no decorrer da história humana, por meio de estágios de desenvolvimento,
clarificado por diferentes modos de produção. Os modos de produção são caracterizados
por estágios diferentes que cada sociedade passa, podendo não se manifestar de modo
concomitante nas diversas nações, mas sua estrutura básica de ação obedece a certos
denominadores comuns.
Marx e Engels (1998), em “A ideologia alemã”, identificam o modo de produção
tribal como primeira forma de organização humana. Baseada economicamente na caça,
na pesca e na agricultura, nesse modo de produção não havia sido desenvolvida a noção
de propriedade privada. As relações entre os indivíduos eram de pequena escala, restrin-
giam-se às relações familiares e/ou tribais, sujeitando a divisão do trabalho a esse cenário.
Em seguida, vemos o modo de produção escravista presente na Antiguidade. Este
modo de produção avançou no quesito da propriedade privada, assim como na divisão de
trabalho, no qual os escravos desempenhavam determinadas funções para seus senhores.
Já no modo de produção feudal, além da noção de propriedade privada mais desenvolvida,
os indivíduos estavam cada vez mais submetidos à sua classe; inerente a isso a oposição
entre campo e cidade crescia. Isso porque no campo existia uma vida social que girava
em torno da produção agrária, baseada no trabalho dos servos, comandada pela nobreza
e reis; já na cidade surgia um comércio, sustentado pelos servos que fugiam do campo
e incorporavam-se as corporações de ofício, ficando sob o comando dos mestres. Aos
poucos, com a necessidade de expansão do comércio, o trabalho foi automatizado e os
indivíduos que antes sabiam todas as etapas da produção passam a exercer uma função
específica (MARX; ENGELS, 1998).
A insurgência do modo de produção capitalista, exercida pela grande indústria,
atendendo um comércio de grande escala, teria desligado o homem de sua essência, fazen-
do do dinheiro um meio de subsistência. Assim, na relação que o mundo capitalista gerou,
o homem estaria sujeito a uma força estranha, na qual ele é apropriado pelas forças que
devia apropriar. A natureza seria a primeira condição de toda história humana, observando
o curso da história. Desse modo, a consciência humana é a consciência apreendida do
meio sensível, no contato direto com os outros indivíduos, criando uma percepção de
comunidade. A burguesia teria se apropriado dos aparatos ideológicos do Estado, para
efetuar a alienação do proletariado, que constitui a maior parte da população. A ideologia e

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 72


a submissão a ela constituiriam um modo pelo qual os indivíduos se apresentariam desliga-
dos uns dos outros, diluindo a concepção de sociedade (MARX; ENGELS, 1998).
Na concepção de Marx, o modo de produção vigente em seu contexto é o capitalismo,
no qual a burguesia, como classe dominante, teria se apropriado dos meios de produção e
o proletariado, a classe dominada, teria disponível apenas a venda da sua força de trabalho:
O modo de produção capitalista só se produz onde o detentor dos meios
de produção e de sobrevivência encontra no mercado o trabalhador livre
que aí vem vender a sua força de trabalho; e esta única condição histórica
contém todo o mundo novo. O que caracteriza a época capitalista é portanto
que a força de trabalho adquire para o próprio trabalhador a forma de uma
mercadoria que lhe pertence; e seu trabalho, por conseguinte, a forma de um
trabalho assalariado (MARX apud BOURDÉ; MARTIN, 1983, p.156).

Em cada modo de produção, o agente de mudança histórica é a luta de classes.


Adaptando a ideia de Hegel de que a contradição entre determinadas ideias constituiria
uma nova forma social, Marx traz essa perspectiva para a materialidade apontando que a
relação entre as forças produtivas com a relações de produção culminariam inevitavelmente
numa crise e dessa crise se constituiria uma nova forma de organização social. Em outras
palavras, quando Marx elabora a ideia de modos de produção, entende que em cada um
houve um momento em que as forças produtivas entraram em choque com as relações de
produção. Isso, no estágio capitalista se classificaria por meio da tomada de consciência
do proletariado, que entenderia sua situação de exploração, reivindicando as relações de
produção, ou seja, tomaria os meios de produção monopolizados pela burguesia e desman-
telaria a propriedade privada (BOURDÉ; MARTIN, 1983; MARX; ENGELS, 1998).
No ímpeto das manifestações que aconteceram na Europa em 1848, Marx e Engels
publicam o “Manifesto Comunista”, deixando claro que o “motor da história” é a luta de classes.
A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas
de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo,
opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra inin-
terrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por
uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição
das duas classes em conflito (MARX; ENGELS, 2005, p. 40, grifo nosso).

Em cada modo de produção, esse antagonismo entre as classes denota uma classe
dominante e outra dominada. Olhando para o passado, Marx encontra uma singularidade
no modo de produção capitalista, que desliga os dominados da apropriação dos bens de
produção, o que justificaria uma revolução – não apenas uma revolução de substituição de
uma classe por outra, mas sim o encaminhamento para a abolição das classes. A revolu-
ção, em suma, se caracterizaria de início pelo desmantelamento da classe dirigente, em
favor dos interesses gerais, para resultar num sistema no qual todas as pessoas poderiam
desempenhar qualquer função (MARX; ENGELS, 1998).

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 73


A história sob a perspectiva marxista ganhou um sentido e um fim definido, ainda
que fosse necessária uma práxis advinda do proletariado ao tomar consciência de classe
para si, reconhecendo a exploração a qual estão submetidos e agir a partir disso. Com isso,
os seres humanos, para Marx, não são sujeitos passivos esperando o inevitável caminho
da história. Mas, ainda assim, há, em Marx, um diálogo com o evolucionismo do século XIX,
por acreditar que “ao fim de uma longa evolução, marcada por dolorosas contradições – cri-
ses, epidemias, migrações, guerras, etc., – a história deve parir uma sociedade comunista
de paz e abundância” (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p.159).
Da concepção de história edificada por Marx nasce uma série de interpretações,
especialmente de cunho econômico e social, bem como diferentes conceitos ou temas em
comum são estudados. Dessa maneira, o materialismo histórico influencia largamente a
escrita da história no século XX. Um dos historiadores mais influentes do século XX, Hobs-
bawm (2013), credita o impacto das ideias de Marx acerca da dialética entre infraestrutura
e superestrutura e no mecanismo de mudança inerente à esta construção.
A importância dessas peculiaridades do marxismo se encontra no campo da
história, pois são elas que lhe permitem explicar — ao contrário de outros mo-
delos estruturais-funcionais de sociedade — por que e como as sociedades
mudam e se transformam: em outras palavras, os fatos da evolução social. A
imensa força de Marx sempre residiu em sua insistência tanto na existência
da estrutura social quanto na sua historicidade, ou, em outras palavras, em
sua dinâmica interna de mudança (HOBSBAWM, 2013, p.137-138).

Em suma, muitos conceitos, tais como materialismo histórico, são utilizados, anali-
sados e criticados nos dias atuais, mostrando a relevância que os escritos de Marx tiveram
na formação da história. O caráter científico apregoado às ciências humanas no geral
dependeram de uma série de esforços por partes de várias correntes e intelectuais, inde-
pendentemente dos usos vulgarizados que possam ser feitos de suas ideias e conceitos.
Portanto, é importante compreender, que a cientificidade da história, enquanto disciplina,
dependeu de correntes de pensamento múltiplas e cada uma trouxe a nível de discussão
ferramentas essenciais para o pensar historicamente.

REFLITA
Vivemos num tempo atônito que, ao debruçar-se sobre si próprio, descobre que
seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que
ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser,
sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca
virmos a ser (SANTOS, 1995, p. 5).

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 74


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Você viu que, para a história fundamentar-se como disciplina, várias concepções,
por vezes divergentes, foram importantes para esta elevação. A história constitui-se hoje
como campo bastante reconhecido e isso foi graças aos esforços e multiplicidade de ideias
que rondaram sua constituição desde o século XIX. Esse século, como você pôde perceber,
foi o século de ascensão das ciências em geral.
Começamos nossa discussão falando sobre historicismo. Mostramos como ele
nasceu em uma sociedade que começou a romper com os modelos tradicionais medievais.
É uma sociedade em transformação. Um momento propício para a “descoberta” da história.
Você pode perceber que esses historicistas definiram as primeiras diretrizes para a prática
historiográfica, orientando-se pela contextualização dos fenômenos e pela alteridade.
Outra contribuição para a escrita da história, no século XIX, foi por meio da Escola
Metódica. Ainda que haja ressalvas em imputar o título de “positivistas” a estes, é possível
dizer que foram largamente inspirados pelo “espírito positivo” de Comte. Aspirando fazer
uma história estritamente científica, esses intelectuais impuseram o método, que virou
palavra de ordem para pensar o documento, o objeto e a postura do historiador. Mostramos
como houve esse ímpeto em conferir um status de cientificidade à história, em paralelo com
as ciências da natureza e matemáticas, dominantes na época.
Por fim, você explorou o conceito de materialismo histórico de Karl Marx e seu
impacto para a historiografia. Iniciamos, contextualizando as ideias de Marx, percebendo
suas influências para a construção da noção da dialética inerente ao materialismo histórico.
Assim, foi possível perceber que as ideias de Marx como um todo sensibilizaram a história,
ao fornecerem um modelo teórico capaz de entender os processos de mudanças das so-
ciedades.

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 75


LEITURA COMPLEMENTAR

LUTA DE CLASSES NA ERA DO UBER

Marco Antônio Gonsales de Oliveira


Rodrigo Bombonati de Souza Moraes
Rogério de Souza

No início do século XX, a Ford inovou as relações de trabalho ao implementar


salários melhores e controle ideológico: um modo de produção que combinava a gerên-
cia racional e científica aliada a um sistema de remuneração mais agressivo, oferecendo
salários acima da média e um conjunto de benefícios até então desconhecidos do mundo
industrial.
Uma das expectativas do fundador era que os próprios trabalhadores pudessem
comprar os veículos que produziam. Além disso, esses trabalhadores precisavam seguir
o perfil desejado pela empresa, o modelo subjetivo proposto por ela. Para tanto, os fun-
cionários da Ford Motor Company deveriam comprovar que seguiam um estilo de vida
condizente com a empresa e aprovado por um departamento especializado que examinaria
a vida privada dos trabalhadores, impondo valores como fidelidade conjugal, estabilidade
familiar e emocional, repulsa ao álcool e à vida boêmia, apego à religião e ao patriotismo.
Décadas depois, sem desprezar as escolas que lhe antecederam, a Toyota do
pós-guerra inovou e recuperou a capacidade flexível da produção artesanal, regulada
pela demanda (just in time), sem perder a capacidade da produção em massa, além de
promover um novo projeto de engajamento. O paradigma da administração toyotista ou
flexível valeu-se do sentimento de pertencimento a um grupo que parecia ser, no Japão
dos anos 1970, ainda mais forte do que a acepção de individualidade. Para perpetuar tal
harmonia nas relações entre empresa e trabalhador, principalmente nos países ocidentais,
essa prática sabiamente recorreu à escola das Relações Humanas e disseminou as ideias
da gestão participativa, da cooperação, do consenso, da integração e da participação, além
da retórica da valorização dos grupos informais. Quem fiscaliza o produto e corrobora o seu
aperfeiçoamento é o próprio trabalhador, transformado em colaborador que faz parte de
uma equipe e é responsável e responsabilizado diretamente pelos resultados da empresa.
[...]
Hoje, no entanto, a realidade daqueles que vivem do trabalho evidencia que tais
previsões estavam equivocadas e que o que temos é uma sociedade mais desigual do que
no período fordista, seja nos países centrais ou periféricos, com raras exceções. Em outras

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 76


palavras, o toyotismo, como uma das frentes fundamentais do avanço do neoliberalismo,
especializou-se em reestruturar e exteriorizar sem perder o foco no objetivo principal da
empresa, a partir da cooptação dos trabalhadores e do gerenciamento de uma vasta rede
de terceirizados. Logrou-se atribuir ritmos intensos em condições precárias de trabalho sem
a total consciência do trabalhador e de grande parte da rede de terceiros.
A gestão uberizada — depois da gestão fordista e toyotista, é a vez de a empresa
Uber emprestar o seu nome para denominarmos o novo paradigma da gestão contempo-
rânea: a empresa uberizada. Nesse novo processo de reestruturação organizacional, as
empresas inovam a partir de conceitos da economia de plataforma, também conhecida
como economia compartilhada e economia do bico.
Na realidade, um processo de radicalização do projeto toyotista de ajuste à deman-
da, exteriorização do trabalho e subjetivação. Se o modelo japonês logrou em transformar
o trabalhador em colaborador, agora, por meio dos conceitos da economia do compartilha-
mento, eis que surge o consumidor, colaborador e chefe: uma nova morfologia do trabalho
que borra as fronteiras entre consumo e trabalho, entre o que é trabalho e o que não é,
entre trabalhador e consumidor, entre o trabalho e o bico (ABÍLIO, 2017), entre trabalhador-
-empreendedor.
Um modelo que se espalha por todo o mundo são as milhares de iniciativas como
a TaskRabbit, a Zazcar, a Parkingaki, a Holidog e a famosa Airbnb. Essa última, uma
empresa que presta serviço para pernoite e que nunca construiu um hotel nem mesmo
contratou um profissional de turismo, já é a maior rede de prestação desse tipo de serviço
no mundo. Fundada em 2009, a empresa oferece 1,2 milhão de vagas por noite, 500 mil
vagas a mais do que a maior rede de hotéis do mundo, a InterContinental (SLEE, 2017).
Já a norte-americana Taskrabbit, conhecida por oferecer serviços rápidos domésticos e
para escritórios, como montagem de móveis, limpeza, pequenas reformas entre outros, não
para de aumentar o seu número de clientes. No Brasil, a Zazcar tem feito sucesso: mesmo
sem nunca ter comprado um automóvel, oferece carros de aluguel de pessoas que não
estão sendo utilizados – veículos on demand, segundo a própria empresa. A Parkingaki faz
o mesmo, não possui estacionamento e também não contrata nenhum manobrista, mas
oferece, “em um click”, vagas em garagens para locação mensal ou de apenas algumas
horas. Outra conhecida empresa brasileira presente na economia do compartilhamento é a
Holidog. A organização é uma espécie de Airbnb para cachorros, onde você pode encontrar
pessoas dispostas a receber e hospedar o seu “amigão” enquanto você viaja.
São empresas que se beneficiam de forma criativa dos avanços tecnológicos, pro-
movidos e guiados pelo capital, “destroem” mercados tradicionais através de estratégias
que consideram apenas a ética dos negócios, sem levar em conta as relações, inclusive

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 77


legais, que estabelecem com as comunidades onde estão inseridas, sejam com os seus
concorrentes, consumidores, fornecedores ou trabalhadores.
No âmbito do consumo, os chamarizes das empresas da economia do compartilha-
mento, como apontou a pesquisa, já não tão recente, da PWC, realizada em 2015 nos EUA,
são: o preço, a eficiência e sua “pegada” ecológica. Segundo a PWC, 44% dos americanos
já estavam familiarizados com o termo da economia do compartilhamento. Destes, 86%
confirmaram o menor custo dos serviços e produtos oferecidos pelas empresas uberizadas.
Já 83% respaldaram os benefícios e a eficiência dos serviços prestados, e 76% concordaram
que a economia compartilhada é uma opção “mais ecológica” ante o mercado tradicional.
Afinal, para que uma furadeira se o que precisamos são apenas furos? Para que um carro
se o que precisamos é apenas nos deslocar?
Por outro lado, as empresas uberizadas logram a conquista de corações e men-
tes amargurados da classe trabalhadora, os partners – desempregados ou empregados
precarizados em busca de um complemento para a sua renda ou de um ambiente menos
despótico. As empresas da economia do compartilhamento navegam nas oportunidades
que a sociedade do trabalho, em crise, oferece: consumidores em busca de baixo preço e
trabalhadores em situação de desespero.
Economia compartilhada – a economia compartilhada não é apenas um modelo
organizacional, é um conceito e uma ferramenta que pode ser apropriado por qualquer
empresa em qualquer setor – indústria ou serviço, tradicionais ou digitais. É uma plataforma
digital que ultrapassa a esfera da comunicação (sites, blogs, e-mail, mensagens de texto
e redes sociais) e da venda (e-commerce) e se insere na contribuição e na cooperação da
fabricação do produto ou da prestação do serviço.
Mesmo empresas tradicionais da era digital como a Microsoft oferecem aos seus
consumidores ajuda de outros clientes experts que trabalham gratuitamente para a em-
presa. Rádios, jornais e TVs solicitam informações e notícias dos seus próprios ouvintes,
leitores e telespectadores, como, por exemplo, a revista norte-americana Time. A revista
cede espaços em seu site para que os clientes colaboradores gratuitamente contribuam
com conteúdo. Em 2007, a gigante farmacêutica Novartis utilizou o conceito de open inno-
vation, promovido por Henry Chesbrough, da Universidade de Berkeley, para avançar em
suas pesquisas sobre a diabetes tipo 2. O laboratório disponibilizou grande parte da sua
pesquisa de três anos para domínio público e solicitou em contrapartida e gratuitamente o
trabalho de cientistas e empresas do mundo todo (TAPSCOTT, 2010).
Para que contratar profissionais se temos milhares de pessoas disponíveis para
trabalhar gratuitamente ou quase? Essa é uma prática conhecida e já amplamente explora-
da há décadas pelos bancos e pelas fábricas de móveis, em que tais empresas transferem

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 78


parte do trabalho para o cliente, seja por meio do sistema internet banking ou do ‘monte
você mesmo’ o seu mobiliário, criado pela empresa de móveis sueca Ikea. As tradicionais
e conhecidas Natura e Avon, entre tantas outras empresas, nunca contrataram um profis-
sional de vendas, utilizam-se das suas próprias clientes como “consultoras” (na prática,
simplesmente vendedoras) (ABÍLIO, 2017).
Outra antiga do mundo digital, a Amazon, cada vez mais se insere na economia
do compartilhamento por meio de empresas como a Flex, um serviço de entregas que usa
pessoas comuns, e não funcionários treinados, para entregar caixas e pacotes nos EUA.
Ela também lançou o Home Services, que localiza encanadores, pintores, montadores de
móveis, entre outros serviços. Outro serviço na linha da economia do compartilhamento é
a loja online Handmade at Amazon, em que produtos artesanais e caseiros são ofertados
e distribuídos (SCHOLZ, 2017). A indústria não fica atrás no processo de reestruturação,
exteriorização e comprometimento dos consumidores. A impressora 3D promete transfor-
mar o setor industrial. Assim, além de montarmos os móveis em casa, a impressora 3D
permitirá a finalização de inúmeros produtos em nossas próprias residências. Steve Vincent
(2011) denominou esse tipo de trabalho de voluntary emotional labour (trabalho voluntário
emocional).
Cooperativismo de plataforma – a terceirização e a produção em rede foram para
o toyotismo o que novo consumidor, agora, como parceiro empreendedor, está sendo para
as empresas uberizadas: a possibilidade de se reduzir ainda mais o custo da mão de obra.
As constantes reestruturações organizacionais transformam a morfologia do trabalho, e dos
seus resultados derivam as principais implicações para a degradação das condições de
vida, dada a precarização crescente das condições de trabalho. São reestruturações que
se inserem na própria dinâmica do capitalismo do século XXI. Portanto, as novas formas de
organizar e de remunerar a força de trabalho fazem com que a regularidade do assalaria-
mento formal e a garantia dos direitos sociais e trabalhistas sejam reduzidas drasticamente
(Abílio, 2017; Fleming, 2017; Pochmann, 2017) e nos obriguem a indagar: que tempos são
esses em que ser explorado e ter um trabalho formal tornou-se um privilégio?
Rafael Zanata (2017), Trebor Scholz (2017), Tom Slee (2017), entre outros, en-
tendem que as plataformas de compartilhamento não são novidades, são apenas grandes
classificados digitais, em que pessoas que precisam de um bem ou serviço encontram os
que possam oferecê-los por intermédio de grandes empresas. Portanto, o intermediário
que possibilita esse encontro de troca deveria ser o menos importante nesse elo. Para
contrapor essa lógica, os autores propõem que os/as próprios/as trabalhadores e trabalha-
doras desenvolvam as suas plataformas, com a ajuda de prefeituras, sindicatos e iniciativas

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 79


autônomas. Já são centenas de trabalhadores e trabalhadoras que desenvolvem o que
chamam de cooperativismo de plataforma, valendo-se da autogestão e do cooperativismo.
O cooperativismo de plataforma pretende ressignificar os conceitos de inovação,
tecnologia e eficiência tendo em vista o benefício de todos, e não de poucos proprietários
e acionistas. Tal proposta assemelha-se à Economia Solidária, desenvolvida no Brasil pelo
economista Paul Singer. São plataformas como a de serviço de transporte realizado pela
Transunion Car Service de Newark, a Bliive, em São Paulo, e a Coopify, de Nova York, na
conexão entre pessoas da mesma comunidade com o objetivo de trocar competências e
conhecimentos, a Cooperative Cleaning, de Nova York, onde as trabalhadoras da limpeza
residencial e comercial criaram a sua própria plataforma, ou mesmo, a La’Zooz, de Tel
Aviv, que atua na oferta de caronas dentro da cidade. São diversos exemplos de iniciativas
similares pelo mundo como contrapeso aos modelos de negócios da Uber, Airbnb e tantas
outras.
Um contrapeso importante, mas não nos iludamos. As cooperativas e as empresas
autogestionárias, no sistema capitalista, sofrem inúmeras desvantagens que não caberia
levantá-las neste momento. Não é difícil perceber que também na economia compartilhada
a alternativa pelo cooperativismo será, assim como no mercado tradicional, importante, mas
de pequena expressão. São alternativas à heterogestão que podem também se beneficiar
das plataformas de compartilhamento. São importantes à resistência ao capital, mas não
são suficientes para que sejam consideradas constitutivas de mudanças na estrutura de
reprodução sociometabólicas do capital (MÉSZÁROS, 2002).
Destarte, o modelo que se alastra mundo afora é o da Uber, pois dá sequência à
lógica da reestruturação contínua do sistema capitalista que permite a momentânea supe-
ração das suas crises, propiciando novamente o excedente de capital. No entanto, as rela-
ções de trabalho nas organizações fordistas, e mesmo nas toyotistas, valorizam, no limite,
o trabalhador e a garantia de uma dose de direitos, com destaque para a previdência social.
O uberismo marca o retorno das condições de trabalho semelhantes àquelas praticadas
antes das conquistas da classe trabalhadora. Ou seja, estamos diante da recapitulação da
economia de bico – um “negócio da China” para os “neopatrões”.

Fonte: Oliveira, Moraes e Souza (2017).

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 80


MATERIAL COMPLEMENTAR

LIVRO
Título: A Cidade Antiga
Autor: Fustel de Coulanges
Editora: Edipro
Sinopse: Coulanges foi um dos representantes da Escola Metó-
dica francesa e nesta obra bastante conhecida o autor remonta
da Antiguidade grega e romana até o florescimento do Império
Romano. Nesta obra, a partir do método da história-ciência, Cou-
langes investiga o universo das crenças, a constituição da família,
a construção das cidades e o caráter das revoluções. A leitura
deste livro irá exemplificar como Coulanges dialoga com seus
contemporâneos no que diz respeito à procedimentos de análise.

FILME/VÍDEO
Título: O jovem Karl Marx
Ano: 2016
Sinopse: aos 26 anos, Karl Marx embarca com a mulher, Jenny,
para o exílio. Em Paris, eles conhecem Friedrich Engels, filho do
dono de uma fábrica que estudou o nascimento do proletariado
inglês. Engels traz a Marx a peça que faltava para o quebra-ca-
beça de sua visão de mundo. Juntos, em meio à censura, greves
e agitação política, eles vão liderar uma completa transformação
política e social do mundo.
Link:
https://www.papodecinema.com.br/filmes/o-jovem-karl-marx/detalhes/.

UNIDADE III A Escrita da História no Século XIX 81


UNIDADE IV
A Escola dos Annales
Professora Mestra Maria Helena Azevedo Ferreira

Plano de Estudo:
• A primeira geração;
• A segunda geração;
• A terceira geração;
• A nova história cultural.

Objetivos de Aprendizagem:
• Compreender o surgimento da Escola dos Annales e suas características;
• Entender as contribuições trazidas pela segunda geração da Escola dos Annales;
• Assimilar as permanências e transformações trazidas pela terceira geração da Escola
dos Annales;
• Analisar os princípios da Nova história Cultural.

82
INTRODUÇÃO

Esta unidade tem como propósito mostrar para você, caro (a) estudante, a impor-
tância da Escola dos Annales no século XX e as profundas influências até os dias atuais,
especialmente aqui no Brasil, onde uma parte considerável das pesquisas baseiam-se nos
princípios dos historiadores desta escola. Seus conceitos, métodos, abordagens, objetos,
passaram por grandes mutações desde a fundação da Escola em 1929.
Para começar, vamos explorar o surgimento da Escola dos Annales, no contexto
pós Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão econômica de 1929. Esses eventos
foram de grande impacto para a escrita da história, pois foi possível questionar se realmente
a sociedade estava rumando ao progresso, como se apregoava no século XIX. Você verá,
nas próximas páginas, a revolução empreendida por Bloch e Febvre ao romper de uma vez
por todas com a Escola Metódica e buscar apoio nas demais ciências humanas para um
alargamento das possibilidades de escrita da história.
No tópico seguinte, vamos explorar algumas das características da segunda ge-
ração, liderada por Fernand Braudel. A segunda geração dos Annales, assim, como a pri-
meira orienta-se no contexto de eclosão de um conflito de grandes dimensões: a Segunda
Guerra Mundial. No contexto universitário, os Annales avançavam, sobretudo, tomando
de empréstimo objetos e métodos de outras disciplinas. Você entenderá que foi por conta
dessa estreita relação com outras ciências humanas que Braudel propõe sua concepção de
temporalidades: a de longa duração, média duração e curta duração. O constructo teórico
de Braudel, que concedia privilégio à longa duração, renovou a vitalidade da disciplina
naquele período.
Em seguida, você irá conhecer a terceira geração dos Annales, ou melhor, aquela
que tomou para si o título de “nova história”. É esta geração que propôs “novos problemas”,
“novas abordagens” e “novos objetos” em torno que uma história-problema. Os historiado-
res dos Annales vão repensar o próprio fazer historiográfico, dizendo afastar-se de qualquer
dogmatismo. A escrita da nova história preza por um certo relativismo e considera que
as “construções culturais”, bem como se dedica a não pensar mais a história da elite, os
grandes feitos e os homens, mas sim investigar a vida de gente comum.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 83


Por fim, você conhecerá algumas das ideias da nova história cultural, que segue
a tradição dos Annales. Essa corrente tem como principal difusor Roger Chartier, que, por
meio dos conceitos de “representação” e “práticas”, forneceu instrumentos importantes que
fugiam de uma simples separação entre “cultura popular” e “cultura da elite”. Os conceitos
construídos por Chartier têm influência até os dias atuais e, sobretudo, no Brasil pautam
diversas pesquisas no âmbito da história cultural.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 84


Fonte: Freepik (2020).

1 A PRIMEIRA GERAÇÃO

Ao lado do materialismo histórico, as ideias trazidas pela Escola dos Annales fo-
ram as que tiveram maior influência sobre a historiografia brasileira. A criação da escola
analítica vai estar ligada ao contexto de uma confluência de fatores em um mundo pós
Primeira Guerra Mundial (1914-1918). É um mundo profundamente modificado, no qual
os ideais de progresso indefinido e melhora da sociedade são questionados frente a um
mundo devastado pelo conflito.
A criação da Revista dos Annales em 1929 foi tendo como principais representantes
Marc Bloch e Lucien Febvre, um marco para a escrita da história do período, reunindo, em
um primeiro momento, críticas contundentes à historiografia dita positivista. O ano em que
a Revista foi fundada também é bastante significativo. Cabe lembrar que 1929 foi o ano da
Grande Depressão: uma grande crise econômica que atingiu América e Europa de uma
vez só, gerando recessão, deflação e desemprego. O mundo estava em crise e, como tudo
na história está interligado, essa crise também atingiu a história, permitindo que novas
abordagens fossem propostas.
Dosse (1992) deixa claro que é sobre o questionamento da sociedade acerca dos
rumos da economia, bem como os direcionamentos políticos dados para elas é que vão
dominar a cena entre as décadas de 1920 e 1930. Não é de se estranhar, portanto, que
houvesse a preocupação em se construir uma história econômica. Como já dissemos, a
Primeira Guerra foi aspecto preponderante para a modificação da escrita da história. Diante

UNIDADE IV A Escola dos Annales 85


dos milhares de mortos, evocou-se a responsabilidade dos vivos e esta responsabilidade
recaiu sobre o os ombros da história, ou seja, o que teria feito a história que não soube
impedir a guerra? Qual foi o seu papel? Foi construída a noção de que os discursos na-
cionalistas serviram de combustível para o conflito a partir de 1870. Assim, se a história foi
usada como instrumento de guerra, ela também poderia ser utilizada como instrumento de
paz.
Outro fator gerador de mudança na escrita da história foi o contato com o chamado
“terceiro mundo”, leia-se América Latina, Ásia e África. A dependência da Europa para com
essas regiões fez com que os historiadores pudessem reconhecer o eurocentrismo e buscar
superá-lo. Todos os aspectos mencionados acima, “[perturbaram] as certezas de todos os
meios intelectuais” (DOSSE, 1992, p. 24).
Nesse contexto é que nasce a Escola dos Annales, adotando, em um primeiro
momento, o discurso de crítica ao dito positivismo, analisando os escritos de Langlois e
Seignobos, por exemplo. O Annales também rejeita a vertente política, liberal, socialista ou
totalitária, colocando todas elas em desconfiança, preferindo dar voz aos fenômenos eco-
nômicos e sociais. Podemos ver que “nos temas inauguradores de discurso dos Annales,
reencontra-se essa aspiração por um futuro novo, moderno e liberado do estado” (DOSSE,
1992, p. 25).
Um outro fator que evidencia a crise na história é sua relação com as ciências
sociais. É importante dizer que o projeto de Durkheim em estabelecer a sociologia como
ciência dominante, colocando as demais ciências humanas, dentre elas a história, na cate-
goria de ciência auxiliar, provocou impacto na história que até então já estava firmada sob
bases sólidas. Para combater tais investidas da sociologia e se afirmar seu caráter autô-
nomo, Febvre e Bloch utilizaram da mesma estratégia da sociologia: a de tudo absorver,
retomando para o seu próprio campo problemas, objetos inerentes à sociologia e demais
campos do conhecimento (DOSSE, 1992).
A constituição da Escola dos Annales esteve sujeita a novas concepções no âmbito
das ciências, que permitiram com que os integrantes dos Annales pudessem lançar as
bases para um novo tipo de pesquisa histórica.
Em que essa revolução científica pode modificar a perspectiva do histo-
riador? Lucien Febvre e Marc Bloch utilizam-na como argumento contra a
história historicizante que fetichiza o documento escrito a ponto de fazer dele
a explicação histórica. Eles vêem na teoria das probabilidades, na teoria da
relatividade da medida temporal e espacial, a possibilidade de a história aspi-
rar, de mesma maneira que as ciências ditas exatas, ao estatuto de ciência,
contanto que critique os testemunhos do passado, elabora fichas de leitura,
teste as hipóteses, passe do dado ao criado através de um percurso mais
aberto e ativo (DOSSE, 1992, p. 35).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 86


A Escola Metódica, já estabelecida na Alemanha e na França, além de se direcionar
para a história das elites políticas, mostrava-se amplamente comprometida com os valores
nacionais. Conforme já apontamos na unidade anterior, esse movimento recusava qualquer
reflexão filosófica e colocava o historiador numa posição de passividade em torno da coleta
dos “fatos” retidos nos documentos oficiais e escritos. A hegemonia da Escola Metódica
começa a dar sinais de crise já no começo do século XX.
O primeiro desses abalos foi sentido antes de 1929, marco inicial dos Annales, com
a publicação da Revue de synthèse historique (Revista de síntese histórica), em 1900, por
Henri Berr. O historiador defendia uma nova história, que prezasse pela história-síntese
na perspectiva global “que levaria em consideração todas as dimensões da realidade, dos
aspectos econômicos às mentalidades, em uma perspectiva científica” (DOSSE, 1992, p.
43-44). Berr também propôs reatar os laços entre passado e presente, entendendo que
são os problemas contemporâneos que devem orientar a pesquisa. Com isso, o pensador
desligou-se das bases teóricas difundidas pela Escola Metódica e lançou as bases dos
Annales:
Todas estas orientações anunciam diretamente o discurso dos Annales. Por
outro lado, Lucien Febvre, ainda jovem normalista, colabora muito cedo na
revista, desde 1905, data do primeiro artigo, e torna-se rapidamente membro
da redação [...]. Essa experiência fará dele o herdeiro incontestável de Henri
Berr (DOSSE, 1992, p. 44).

Essa revista procurou dar ênfase à história-problema, aos artifícios psicológicos da


história e conceder uma perspectiva global. Bloch também contribui com a revista, aproxi-
mando-se também da visão de Berr. Um questionamento importante posto por Dosse (1992)
é porque a Revista dos Annales foi criada em 1929, se a Revista de Berr já existia? O autor
explica que o historiador não quis constituir uma escola em torno de suas ideias, o que fez
com estas permanecessem na marginalidade, assim não havia um apoio institucional para
que suas ideias fossem de fato estabelecidas. Com isso, quem tomou partido para que uma
nova história se fundamentasse foram Febvre e Bloch.
Como professores da renomada Universidade de Estrasburgo e dialogando com
pensadores da geografia, da linguística, da sociologia, dentre outros, Bloch e Febvre conse-
guiram instituir um torno de si uma Escola. Desde o final da Primeira Guerra, Febvre já tinha
pretensões de lançar uma revista de história econômica e social. É Marc Bloch que traz o
tom social à revista dos Annales, que defendia o estudo da organização da sociedade, das
classes, dentre outros, como cerne da revista, juntamente com a economia (DOSSE, 1992).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 87


A revista dos Annales foi lançada em janeiro de 1929 com o nome de Annales
d’historie économique et sociale e promovia uma autopropaganda como aquela que serviria
de elo entre as ciências humanas, tendo Bloch e Febvre como diretores. No escopo da
revista, vemos pouco ou nenhum espaço destinado às questões políticas e confirmou-se o
viés econômico-social (DOSSE, 1992).
Fica explícito que a revista e seus diretores promoviam um discurso contrário à
Escola Metódica. Um dos objetos de críticas, além da contrariedade à história política das
elites, se dá com relação ao papel do historiador. Já falamos que, para os historiadores
metódicos, os pesquisadores deveriam manter a neutralidade e imparcialidade, relatando
fielmente os fatos que os documentos expunham. Essa noção foi duramente criticada pela
Escola dos Annales, que defendia que a intervenção ativa do historiador era necessária, já
que nada pode falar por si mesmo. O historiador seria responsável por construir seu ma-
terial de trabalho, escolhendo os documentos, os ordenando e construindo problemáticas.
A partir disso, um fato não surgiria espontaneamente, sendo ele resultado de uma busca.
Sobre isso, Febvre afirmava: “quando não se sabe o que se procura, não se sabe o que se
encontra” (FEBVRE apud DOSSE, 1992, p. 56).
Esse olhar do historiador partia do presente para o passado e contribuía “por um
lado, suscitando interrogações e temas; por outro, a própria vivência do historiador lhe
proporcionaria hipóteses e possibilidades explicativas” (ZANIRATO, 2011, p. 84). Essa
percepção ronda a escolha de objetos e temas de pesquisa até os dias atuais, mostrando
o impacto desta escola para a historiografia.
Os Annales pressupunham também a utilização de métodos e instrumentos de
outros campos do conhecimento. Um exemplo disso é o conceito de Utensilagem mental,
evidenciado por Febvre em “O problema da incredulidade no século XVI”, a partir do qual
observamos a inspiração da linguística e também da psicologia para explicar estados men-
tais coletivos que possibilitariam a existência dos fenômenos.
Outro aspecto fundamental que se mostrou uma tradição nas demais gerações
dos Annales foi o alargamento de objetos de pesquisa. Se com os historiadores metódicos
se privilegiava a história da elite, a perspectiva analítica desejava estudar as pessoas co-
muns, o cotidiano, os marginalizados, as mulheres, as crianças, os velhos e doentes. Esse
alargamento de horizontes também se viu a nível documental, longe de constatar apenas
os documentos escritos e oficiais como fidedignos, a Escola dos Annales pressupunha
que qualquer vestígio do passado poderia ser utilizado como documentação. Ainda assim,

UNIDADE IV A Escola dos Annales 88


conservaram a noção de que o documento era essencial para a prática historiográfica
(ZANIRATO, 2011).
A ampliação do olhar do historiador preconizava a percepção de uma história total:
Conhecer as sociedades humanas significava conhecer as distintas manifes-
tações sociais em sua globalidade, conhecer os mecanismos de influência e
as interações nos campos da economia, da política e da cultura. Isso signifi-
cava que a vida política de uma sociedade em um momento determinado de
sua História só poderia ser compreendida através de um minucioso estudo
de todos os fenômenos econômicos e sociais que intervieram na vida dessa
sociedade, que constituíram sua estrutura e que, portanto, condicionaram e
determinaram muitos dos aspectos de sua vida política (ZANIRATO, 2011, p.
86).

Na constituição dos Annales, vemos por parte de Bloch e Febvre a intenção de


construir uma escola histórica, uma escola que resistiu até mesmo à ascensão do nazismo.
As ideias contrárias ao dito “positivismo” ajudaram a firmar a visão de uma história nova,
progressista. Certamente, a ampliação da noção de fonte, de objetos e de campos com
os quais a história pode dialogar foi essencial para a constituição da história tal como co-
nhecemos hoje. Essa base, trazida pela primeira geração dos Annales, vai permitir que as
gerações subsequentes construam formas até então inauditas de escrita da história.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 89


Fonte: Freepik (2020).

2 A SEGUNDA GERAÇÃO

Mais uma vez o mundo se vê abalado por um evento de grandes proporções: a


Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que destruiu a Europa, deslocando o centro de
referência econômica para os EUA ou para URSS. Diante das revoluções coloniais na
África e Ásia, os historiadores do velho mundo se veem forçados a transfigurar o discurso
calcado na força na força do Estado-nação, na importância da suposta missão civilizadora
europeia. Os horrores do nazismo na Alemanha, considerada uma sociedade tão avançada
e intelectualizada, abalam a noção do sentido da história rumo ao progresso (DOSSE,
1992).
Nesse contexto, a escola dos Annales ganhou cada vez mais notoriedade e cada
vez mais procurava se aproximar de outras ciências sociais. É a partir desta fase que os
Annales vão assumir papel de destaque em detrimento da Escola Metódica alemã, que
agora vai alcançar fama internacional. Com relação à geração anterior vemos algumas per-
manências e distanciamentos, sobre as permanências destacamos o privilégio às questões
econômicas:
A segunda geração dos Annales, que tem Lucien Febvre sempre à testa,
fez uma escolha na herança. Privilegia o aspecto econômico em detrimento
das outras vias esboçadas: a história cultural, o estudo das mentalidades,
a psico-história: todas essas áreas são menosprezadas no decorrer desse
período em benefício dos estudos especificamente econômicos (DOSSE,
1992, p. 103).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 90


Parte desta opção estava ligada à aproximação de áreas como a demografia, por
exemplo, preconizando uma análise econômica e a partir dela esboçava-se uma análise
das relações sociais. Essa abordagem foi possível graças ao surgimento de instrumentos
como o computador, que permitiu quantificar dados. No entanto, dentro de um quadro mais
amplo, a história começou a sofrer com a estruturação das ciências sociais, que buscavam
destroná-la do seu prestígio entre as ciências humanas (DOSSE, 1992).
Um dos responsáveis pela ofensiva da história na segunda geração dos Annales foi
Fernand Braudel (1902-1985). Braudel, lembra Dosse (1993, p. 111), “retoma, de fato, as
metodologias das outras ciências humanas para sufocá-las”, sendo largamente influencia-
do pela geografia. Uma de suas obras “O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época
de Felipe II”, publicada pela primeira vez em 1949, deixa clara essa associação com tal
disciplina. A escrita dessa obra é fruto de anos de pesquisa e sob momentos adversos, pois,
no contexto da Segunda Guerra Mundial, Braudel é convocado para combater a Alemanha
nazista, acaba sendo feito prisioneiro e é na prisão que começa a empreender a escrita de
sua obra magna:

Durante o cativeiro na Alemanha, sem livros, sem notas, trabalhando de me-


mória, põe em ordem a sua investigação e escreve um primeiro manuscrito.
No regresso a França, em 1945-1946, verifica a sua documentação, termina
a sua redação e defende a tese de doutoramento de Estado (BOURDÉ;
MARTIN, 1983, p. 128).

Na obra, o objeto central do livro não é o monarca Felipe II, mas sim o próprio
mar mediterrâneo e as regiões adjacentes. Para desenvolver sua reflexão, Braudel optou
por pensar o mar mediterrâneo e suas implicações na paisagem natural, assim como a
postura dos sujeitos frente às implicações colocadas. O autor teve a proposta de pensar o
século XVI, mais especificamente o período de 1550 a 1600. Entretanto, Braudel acabou
por retornar a períodos anteriores tendo em vista a própria perspectiva metodológica de seu
trabalho (BRAUDEL, 1983).
Com isso, Braudel fundamentou um amplo e constante diálogo com a geografia e,
com base nesta, afirma que a região do mar mediterrâneo era composta por características
distintas. Era importante para o historiador pontuar tais diferenças, ao passo que elas serão
fundamentais para entender as relações humanas, que estabelecendo relações com seu
meio físico, acabam inferindo na esfera social (BRAUDEL, 1983).
Um dos aspectos fundamentais que Braudel trouxe para a história é o alargamento
ainda maior das áreas a serem assimiladas pela história:

UNIDADE IV A Escola dos Annales 91


Braudel retém, sobretudo, da revolução das ciências sociais, que julga es-
sencial, mais ainda do que a revolução da história, a necessidade de abrir as
fronteiras entre as disciplinas, de derrubar as muralhas edificadas por cada
uma delas. É partidário de uma livre-troca de idéias e de pessoas entre as
diversas ciências humanas (DOSSE, 1992, p. 111).

A associação com a geografia abre precedentes para que Braudel estabeleça ca-
tegorias espaço-temporais em termos globalizantes. Nesse sentido, ele retoma a herança
da primeira geração e busca perceber a movimentação da totalidade social, isso quer dizer
que, ao adotar uma perspectiva global dos eventos sobre os quais se debruça, “seu objetivo
é amplo e pressupõe, portanto, o domínio do método comparativo através do tempo mais
longo e do maior espaço possível” (DOSSE, 1992).
A obra de Braudel que citamos acima deixa clara a prevalência de um tempo longo,
quase imutável, das estruturas sociais, que é como o tempo da natureza. Nisso está o
cerne do pensamento de Braudel e é um dos motivos pelos quais ele ficou mais conhecido.
Quando Braudel escolhe falar sobre o tempo de longa duração, ele está a propor uma
categoria para pensar as temporalidades.
Não é apenas a geografia que contribui significativamente para Braudel elaborar a
concepção de longa duração: a antropologia estruturalista de Claude Lévi-Strauss foi peça
chave para a formulação de tal categoria. Braudel considerou pertinentes as descobertas
do antropólogo ao descobrir nas “sociedades primitivas” as estruturas sobre as quais os
mitos se assentavam.
A obra de 1964 “O Cru e o Cozido”, de Lévi-Strauss (2004), exemplifica o cerne de
seu pensamento. Nela, ele busca fazer um estudo acerca dos mitos e faz isso resgatando
alguns deles que são referentes às “culturas primitivas”, onde estes cumpririam papel im-
portante na sociedade. Essa análise não é feita primordialmente de forma temática, mas
sim propondo uma metodologia de estudo para pensar esses fenômenos, buscando a
estrutura em comum que os ligue, constituindo, portanto, um estruturalismo para entender
a essência dos mitos.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 92


SAIBA MAIS
Na obra “O Cru e o Cozido”, Lévi-Strauss apresenta-nos vários mitos, pontuando-os em
suas mais variadas características, identificando alguns pontos aos quais ele irá usar
como base para sua discussão. O autor faz isso para agregar as características pontua-
das em comum com os demais mitos, formando, assim, um sistema de ideias, que, por
fim, transmitiam as mesmas mensagens.
Uma das principais características que Lévi-Strauss irá perceber é o caráter renovatório
que estes mitos possuem, não tendo preocupação com começo e fim, mas deixando,
de certo modo, uma história em aberto em que sempre se resta algo a fazer. Assim, a
história sempre está remetida a um final, que, por consequência, ao ser buscado, tem
de ser constantemente renovado.
É importante salientar que, apesar da característica aparentemente uniforme que o au-
tor pretende dar ao seu trabalho, ao estruturalizar os mitos, ele leva em consideração
as diferenças visíveis de mitos, que variam de sociedade para sociedade. Outro ponto
abordado é a descontinuidade de tais mitos, que, apesar de muitas vezes transmitirem
mensagens análogas, não têm uma continuidade entre si.
Em suma, o autor, ao apresentar sua metodologia, a faz de forma teórica e, ao mesmo
modo, temática, ao mostrar diversas culturas e os mais variados mitos. Apontando, por-
tanto para um caminho estruturalista para pensar os mitos, sob uma abordagem siste-
mática, o autor é conhecedor de suas delimitações. No entanto, seu uso é legitimado
na medida em que ela é utilizada para agregar grupos que inconscientemente compar-
tilham das mesmas mensagens mitológicas e são enquadradas no mesmo âmbito com
o intuito de serem melhor analisadas (LÉVI-STRAUSS, 2004)

Braudel toma emprestado do estruturalismo para empreender sua concepção de


longa duração. Fazer uma análise histórica a partir do viés da longa duração parece, na
opinião de Dosse (1992), corresponder a intenção em organizar um programa em comum
que reuniria todas as ciências humanas sob a égide da história. Com isso, sua noção de
longa duração encontra caminho no estruturalismo de Lévi-Strauss, como confirmou Brau-
del dizendo “Tentei mostrar, [...] que toda a nova pesquisa de Lévi-Strauss só é coroada
de êxito quando seus modelos navegam nas águas da longa duração” (BRAUDEL apud
DOSSE, 1992, p.115).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 93


A compreensão da longa duração permitiria ter uma visão mais incisiva sobre o que
ocasionou determinado evento.
“A estrutura braudeliana é, aparentemente, de imediato acessível e tem
como característica comandar os outros fatos, o que confere à longa duração
o primado em relação aos outros ritmos temporais e sobretudo em relação ao
factual” (DOSSE, 1992, p. 116, grifo nosso).

Vemos, portanto, a prevalência do tempo da longa estrutura nas análises históricas,


sobre o factual, ou seja, o tempo de curta duração. A longa duração de Braudel faz parte de
um esquema teórico para pensar as temporalidades. Braudel esquematiza três níveis de
temporalidade: o factual, o conjuntural e, por fim, a longa duração.

Quadro 1 - Temporalidades na concepção de Braudel

É a história de curta duração, dos acontecimentos e acontece na


Tempo factual dimensão dos indivíduos. Não tem relevância para o historiador
em face dos eventos de longa duração
É o tempo de média duração, no espaço de décadas, por exemplo.
Tempo conjuntural Aqui podemos observar o processo cíclico de mudanças econô-
micas e políticas.
É uma história com mudanças lentas, um tempo quase imóvel,
Tempo longo que segue o ritmo da natureza na interação do ser humano com
seu meio.

Fonte: adaptado de Zanirato (2011) e Dosse (1992).

É o tempo de longa duração que mantém primazia na análise histórica:


A longa duração se beneficia, em relação às outras durações, de uma situa-
ção privilegiada. É ela que determina o ritmo factual e conjuntural e traça os
limites do possível e do impossível, ao regular as variáveis até um certo teto.
Se o acontecimento pertence à margem, a conjuntura segue um movimento
cíclico, somente a irreversível. Essa temporalidade de fôlego longo oferece a
vantagem de poder ser decomposta em séries de fenômenos que se repetem,
em séries de permanências que deixam aparecer os equilíbrios e ordem geral
subjacente à desordem aparente do domínio factual (DOSSE, 1992, p. 118).

Em suma, é na segunda geração dos Annales que podemos observar que, a partir
do diálogo com outras ciências sociais, foi possível incorporar seus objetos, problemas e
métodos. Afirma-se também a posição de destaque da Escola em detrimento dos histo-
riadores metódicos. Além disso, o trato com a geografia adicionou o horizonte espacial na
perspectiva dos historiadores.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 94


3 A TERCEIRA GERAÇÃO

De 1957, quando Braudel assumiu a direção dos Annales, até 1968, as ideias do
historiador ganharam grande influência e tornaram-se incontestáveis. Depois deste período,
entram em cena o medievalista Jacques Le Goff (1924-2014), Marc Ferro (1924), especia-
lista na época contemporânea, e Emmanuel Le Roy Ladurie (1929). Esses historiadores
foram responsáveis por encabeçar a terceira geração dos Annales, que buscava promover
a “Nova História”, voltada para o estudo das mentalidades.
Bourdé e Martin (1983) demonstram, neste período, que os Annales ganharam muito
espaço, não apenas no que se refere ao alcance de suas publicações, mas também tinham
relações com casas editoriais, tinham financiamentos do Estado e fora dele, apareciam
na mídia para discutir assuntos históricos etc. Após a direção da revista ficar a cargo dos
historiadores já citados, eles ficam com a responsabilidade, em razão do cinquentenário da
revista, de fazer um balanço sobre a Escola dos Annales. Le Goff toma a frente e, junta-
mente com Pierre Nora, publica, em 1974, “Fazer História” – ali já se encontram as bases
de uma história de “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”, constituindo
a tríade fundamental na escrita destes historiadores da terceira geração.
Os partidários da Nova História procuram afastar-se de vertentes ideológicas bem
delimitadas, como explicam Le Goff e Nora:
A história nova, que recusa mais do que nunca a filosofia da história e que se
nega a reconhecer-se em Vico, Hegel, em Croce, e muito mais em Toynbee,
não se contenta mais, portanto, com as ilusões da história positivista e, para
além da crítica decisiva do fato ou do acontecimento histórico, se volta para uma
tendência conceitual que pode arrastá-la em direção a outra coisa que não ela
própria, quer que se trate das finalidades marxistas, das abstrações weberianas
ou das intemporalidades estruturalistas (LE GOFF; NORA, 1995, p. 13).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 95


Há, portanto, o distanciamento de concepções sistemáticas totalizantes, separan-
do-se de qualquer filosofia histórica e prezando por uma atitude científica, ainda que não se
fale de um cientificismo – marca da escola dita positivista.
Em “História: novos problemas” de Le Goff e Nora, fica claro de onde a perspectiva
da terceira geração dos Annales parte. A intenção de construir “um novo tipo de história”
fica evidente, ainda que consinta à contribuição dos antecessores: Bloch, Febvre e Braudel.
Esse consentimento de contribuição não segue a ordem de uma ortodoxia, ou seja, de
seguir preceitos pré-estabelecidos pela tradição sem a devida reflexão. Essa provocação
por mudança, por uma história que se quer nova, moderna, deve repensar seus parâmetros
de pesquisa, razão pela qual o epíteto “novos problemas” quer repensar seus recortes
tradicionais de pesquisa, de onde decorre a necessidade de “novas abordagens”, e quer
incorporar novas temáticas de pesquisa, buscando por “novos objetos”.
Os historiadores da terceira geração reafirmam a necessidade de uma “história-
-problema”, uma história que levanta problemáticas sobre sua própria constituição como
ciência, sobre a prática do historiador, sobre seus métodos e objetos. A história, como
preconiza Certeau (1995), é causa da própria intervenção do historiador, de suas próprias
ações conscientes e inconscientes, bem como do seu lugar social. A história é um produto,
não é um dado apenas a ser recolhido na documentação:
Porque não há facto histórico em si que bastaria extrair dos documentos e
ligar a outros factos para constituir uma série cronológica “natural” mas há
“inventado e fabricado, com o auxílio de hipóteses e de conjecturas, por um
trabalho delicado e apaixonante”, [...] Como os seus colegas das outras disci-
plinas, o historiador constrói o seu objecto de análise ao constituir um corpus
de documentos de naturezas diversas (texto escritos, objectos, fotografias,
imagens, entrevistas, etc.), com o fim de responder a uma questão colocada
no passado (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 142).

Tudo passou a ser objeto do interesse do historiador, como “a infância, a morte, a


loucura, o clima, os odores, a sujeira e a limpeza, os gestos, o corpo” (BURKE, 1992, p.
11). Pode parecer curioso que algum destes temas torne-se objeto do historiador, porém,
é necessário compreender, como alerta Burke (1992), que muitos destes aspectos são
considerados “construções”. Em outras palavras, se pensarmos a infância, por exemplo,
entenderemos que, para esses historiadores, o significado de ser criança mudou e tem
mudado significativamente no tempo. Às crianças de um século atrás não eram dados os
mesmos tratamentos e não havia uma visão tal qual conservamos hoje. Trata-se, portanto,
de um certo relativismo no campo da história, que condiciona suas temáticas à prova do
tempo e também às variações de percepção de cada cultura.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 96


A história dita positivista subordinava suas temáticas àquelas ligadas às elites,
pensando os grandes homens, grandes feitos, grandes estadistas, deixando de lado todo
o resto da humanidade. Para suprir isso, a nova história pretendeu fazer uma “história vista
de baixo”, ou seja, investigar as vivências das pessoas comuns, destacando-se, a partir
disso, a prevalência da história das mentalidades (BURKE, 1992).
Esse grupo é considerado o impulsor de um tipo de abordagem da História
que se concentra nas distintas formas de consciência social de certos grupos,
regiões, épocas ou conjunturas específicas. Recorrendo à antropologia, o
grupo procurou estudar os ‘comportamentos mentais’ e os ‘mecanismos de
consciência’ dos homens, [...] (ZANIRATO, 2011, p. 92).

A preocupação com a “história vista de baixo” imputava outro tipo de documentação


que não fossem os registros escritos e oficiais. A história da pessoa comum exige do histo-
riador que seja recuperado outro tipo de evidência, outros tipos de vestígio do passado, que
recai no alargamento das fontes que possam representar algo significativo para as pessoas
comuns do passado. Vemos a escolha por fontes orais, cinematográficas, imagéticas,
cultura material (vasos, utensílios etc.), dentre outros. Mais do que a “história de baixo”,
como aquela que preza pela visão que as pessoas têm do próprio passado, instaura-se a
preocupação com o estudo da “cultura popular” em contraposição com uma cultura da elite.
É diante deste crescimento do interesse pelo cotidiano que Michel de Certeau publica
“A invenção do cotidiano” na década de 1970. Apesar de ter um estilo único de abordagem
e escrita, Certeau investiga as crenças, a língua, o espaço, hábitos de leitura, dentre outros,
procurando compreender as práticas cotidianas que se formalizam em torno da vida singela,
como, por exemplo, a intervenção dos indivíduos na paisagem urbana pré-determinada, com
a construção de caminhos alternativos ao já estabelecidos. Certeau faz um estudo profundo
e abrangente, fornecendo instrumentos teóricos importantes para pensar o cotidiano.
A chegada da terceira geração dos Annales trouxe a necessidade de a história
explicar a si mesma, fora dos padrões de alcance de uma pretensa cientificidade. Essa
movimentação no campo historiográfico veio, sobretudo, em tom de resposta a Hayden
White. Para ele, a história era sumariamente literária, portanto o exercício historiográfico
não seria muito diferente da ficção.
Para White, a História tem a pretensão de ser uma reconstrução objetiva
do passado, mas o processo de produção do conhecimento do passado por
meio da História é um procedimento literário, interpretativo, e não se um em-
pirismo objetivo ou de uma teoria social. Assim, as explicações são narrativas
do porquê e como os eventos aconteceram, na qual se veem suposições do
historiador sobre as razões ou as causas do ocorrido. Nessa perspectiva, a
História é um tipo específico de discurso, uma representação do passado,
assim como as fontes utilizadas pelo historiador também o são (ZANIRATO,
2011, p. 98).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 97


As afirmações de White acerca da aproximação da história com o discurso literário
certamente colocaram em xeque a legitimidade da história. A resposta veio de vários histo-
riadores, que procuravam garantir a genuinidade do fazer historiográfico frente às formas
literárias. Assim, a terceira geração dos Annales trouxe avanços significantes, repensando
questões fundamentais a autonomia da disciplina.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 98


4 A NOVA HISTÓRIA CULTURAL

É discutível a existência de uma quarta geração dos Annales, uma parte pela força
e revolução que as ideias da terceira geração, da nova história, causaram. Contudo, ainda
assim, vemos uma movimentação no campo da história cultural, encabeçada por Roger
Chartier (1945), que identifica uma falência em termos como “mentalidades” e “cultura
popular”, dentre outras categorias pré-estabelecidas, que colocam a história em vistas de
uma nova crise.
Chartier é um historiador francês, dedicado à história da leitura, escrita e do livro nos
séculos XVI e XVIIII na França. Várias obras causaram impacto no Brasil, como “A história
cultural entre práticas e representações”, “A beira da falésia”, que reúne uma série de textos
do autor e também um artigo muito famoso chamado “O mundo como representação”.
O historiador é bastante conhecido pelos seus conceitos de prática e representação, os
quais vamos discorrer aqui. Mas, antes, vamos entender as condições que fizeram Chartier
elaborar tais conceitos.
Em 1988, o editorial da revista dos Annales convidou historiadores, dentre eles
Chartier, para tentar responder acerca de uma crise paradigmática que as ciências so-
ciais sofriam. Isso se revela por meio das explicações que procuram encaixar o estudo
de indivíduos e sociedades em modelos pré-estabelecidos, seja por meio de categorias
como classe sociais e classificações econômicas e profissionais, ou mesmo de modelos

UNIDADE IV A Escola dos Annales 99


explicativos, como estruturalista, marxista etc. (CHARTIER, 1991, 2002). Apesar de constar
essa desagregação de disciplinas que serviam de apoio à história, o editorial conclui que:
A história é, pois, vista como uma disciplina ainda sadia e vigorosa, no entanto
atravessada por incertezas devidas ao esgotamento de suas alianças tradicio-
nais (com a geografia, a etnologia, a sociologia), e à obliteração das técnicas
de tratamento, bem como dos modos de inteligibilidade que devam unidade a
seus objetos e a seus encaminhamentos (CHARTIER, 1991, p. 173).

O sucesso da história até então dependeu do empréstimo dos objetos e métodos de


outras disciplinas. Contudo, esta captação só poderia ser vantajosa caso não fosse aban-
donado nada do que consistiria na força motriz das disciplinas. Essa aliança entre a história
e demais ciências humanas fez com que a história alcançasse certo sucesso no âmbito das
mentalidades e história cultural. O que abala essa aliança é uma crise nos postulados das
ciências que a história tomava emprestado seus objetos e métodos (CHARTIER, 1991).
Como a história então vai assegurar a sua vitalidade e legitimidade frente à crise destas
ciências sociais as quais tomava como apoio?
A crise nos instrumentos teóricos utilizados pela história se assentava sobre três
parâmetros no fim dos anos 1980. O primeiro deles é a falência da concepção de uma
história total, do possível projeto em reunir a totalidade social em todos os aspectos. O
segundo é o desejo em realizar um recorte territorial, ou seja, circunscrever o objeto de
pesquisa à territórios delimitados como se estes fossem dado natural. Por fim, a crise se
manifesta pela noção de recortes sociais pré-definidos, que eram considerados capazes de
organizar os grupos sociais e perceber suas diferenças (CHARTIER, 1991).
A inclinação em abandonar esses três paradigmas – da história global, do recorte
territorial e do recorte social – obedece a algumas problemáticas específicas que estas
escolhas geram. Seria possível definir um todo mediante a multiplicidade de diferenças
entre os indivíduos? Seria possível também dizer que o recorte territorial é fundamento a
priori para pensar a constituição de uma sociedade? Ou mesmo que pensar um recorte
social específico, como “proletariado”, por exemplo, define ou restringe a possibilidade de
autoclassificação que estes indivíduos possam se imputar?
Chartier (1991) considera que estes três deslocamentos são fundamentais para a
construção de um novo olhar historiográfico, mas também criam incertezas. Com isso, o
autor pode mostrar sua própria proposta metodológica, a partir de seu objeto de estudo:
O meu organiza-se em torno de três pólos, [...]: de um lado, o estudo crítico dos
textos, literários ou não, canônicos ou esquecidos, decifrados nos seus agencia-
mentos e estratégias; de outro lado, a história dos livros, e para além, de todos
os objetos que contém a comunicação do escrito; por fim, a análise das práticas
que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos, produzindo assim usos
e significações diferenciadas (CHARTIER, 1991, p.178, grifo nosso).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 100


A proposta de Chartier (2002, p. 16-17) sobre a história cultural tem como foco principal
“identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social
é construída, pensada, dada a ler”. Isso quer dizer que as pessoas olham para o mundo social
e o representam de uma determinada forma; assim as suas percepções vão guiar as formas
como constituem suas práticas. Trata-se, portanto, da articulação de novos modos de classifi-
cação para indivíduos e sociedade de acordo com suas representações sociais, que traduzem
a sociedade de variadas maneiras como pensam que ela é ou como gostariam que fosse.
Para Chartier, há diferenças fundamentais entre o mundo do texto e o mundo do
leitor. Do lado do mundo do texto, há uma série de prerrogativas, a linguagem empregada,
o suporte sobre o qual ele é disponibilizado, o público-alvo para o qual ele se dirige, inten-
ções explícitas ou veladas, enfim. O erro seria transferir as prerrogativas do texto para as
expectativas do leitor. No mundo do leitor acontece um processo de ressignificação das
informações do texto e isso vai gerar representações diferentes do texto.
Cabe lembrar que as alusões ao “mundo do texto” e “mundo do leitor” são catego-
rias articuladas pelo historiador francês ao pensar seu próprio objeto de estudo, mas que
podem ser ampliadas no contexto da história cultural. Desse modo, precisamos alargar o
sentido de “texto” e “leitor”. Pense no seguinte exemplo: um jornal traz uma notícia, isso
é um fato objetivo, essa notícia vai assimilada pelo espectador (leitor) que vai entendê-la
de acordo com seus próprios parâmetros de realidade. No mesmo exemplo, imagine que
este jornal tem sua linha editorial bem definida e possui expectativas delimitadas sobre a
recepção dessa notícia em seus telespectadores. Isso quer dizer que, necessariamente, as
pessoas vão assimilar aquela notícia como o jornal espera? Não totalmente. Isso não pode
acontecer de maneira hegemônica, já que as pessoas possuem experiências diversas,
histórias de vida diferentes ou mesmo não deram muita atenção à notícia no momento em
que ela estava sendo veiculada. São leituras diversas da realidade, as quais reverberam
em representações distintas da realidade.
As pessoas e grupos sociais, portanto, fazem usos e apropriações distintas quando
se deparam com uma mesma realidade, como explica Chartier (1991, p. 179):
Os que podem ler os textos, não os lêem de maneira semelhante, e a distância
é grande entre os letrados de talento e os leitores menos hábeis, obrigados a
oralizar o que lêem para poder compreender, só se sentindo à vontade frente
a determinadas formas textuais ou tipográficas. Contrastes igualmente entre
normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do
livro, modos de ler, procedimentos de interpretação. Contrastes, enfim, entre
as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes
grupos de leitores investem na prática de ler. De tais determinações, que
regulam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem
ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que não dispõem dos mesmos
utensílios intelectuais e que não entretêm uma mesma relação como escrito.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 101


Pode-se dizer que os usos e apropriações que se faz um texto estão ligados ao
universo das práticas e representações, ou seja, da forma como os indivíduos agem em
seu cotidiano e como eles exprimem por intermédio dos bens simbólicos, como é o caso
da linguagem, das artes etc. O conceito de representação foi construído tendo em vista
que os estudos sobre os grupos e indivíduos quase sempre partiam de interesses que não
cabiam a eles. Contrariando tal concepção, o conceito de representação vem conferir a
legitimidade das interpretações feitas pelos indivíduos sobre a realidade que os cercam.
Chartier (2002) sustenta que as percepções do mundo social não se encontram no
terreno da neutralidade, sendo eles compostos de estratégias e práticas próprias, que ten-
dem a se colocar sobre outras percepções de mundo. Há, portanto, uma disputa no campo
simbólico das representações, que também servem de embasamento para o indivíduo ou
grupo pautar as suas práticas.
Entre os conceitos de práticas e representação, assenta-se a própria noção de
cultura, da qual Chartier compartilha com C. Geertz:
O conceito de cultura ao qual adiro [...] denota um padrão, transmitido
historicamente, de significados corporizados em símbolos, um sistema de
concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais
os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e as
atitudes perante a vida (GEERTZ apud CHARTIER, 2002, p. 67).

Essas concepções herdadas, expressas simbolicamente, se encontram de sobre-


maneira vinculadas à noção de representação e práticas, que, para Chartier, são “pedra
angular” da história cultural. O historiador sobrepõe a categoria de representação sobre as
mentalidades. Já que permitiria reclassificar a forma como os indivíduos constroem a reali-
dade e as delimitam-nas entre as práticas, seria uma maneira de reconhecer as identidades
sociais, se referindo à maneira dos indivíduos estarem no mundo. Essas categoriais, dentro
da perspectiva da história cultural, permitiriam ver também como as pessoas constroem
formas institucionalizadas de existência, visível por meio de grupos, comunidades e classes
(CHARTIER, 2002).
A nova história cultural, tendo como prerrogativa os conceitos que giram em torno
de representação e práticas, marca um episódio importante na historiografia. Por um lado,
responde à uma crise anunciada na década de 1980 acerca das ciências auxiliares da
história e seus sistemas de classificação, ao passo que, por outro lado, busca uma solução
dentro do campo da história. Esta solução se assenta não mais na pré-configuração dos
objetos de categorias já conhecidas, como classe, por exemplo, mas permite, através da
investigação das representações e práticas individuais e coletivas, que se construa uma
história que realmente parta do objeto de estudo.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 102


REFLITA

“A história é, antes de tudo, um divertimento: o historiador sempre escreveu por prazer e


para dar prazer aos outros. Mas também é verdade que a história sempre desempenhou
uma função ideológica, que foi variando ao longo dos tempos” (DUBY, 1994, p.34).

UNIDADE IV A Escola dos Annales 103


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta unidade teve como propósito mostrar para você a importância da Escola dos
Annales no século XX e como muitas destas ideias são fundamentais até os dias atuais
para a historiografias. Ao lado do materialismo histórico, as concepções da Escola dos
Annales foram as que tiveram maior penetração na academia. Assim, você pode ter um
panorama geral das diferentes gerações da Escola.
Para começar, você viu como ocorreu o surgimento da Escola dos Annales no con-
texto da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão de 1929. Entendendo que estes
eventos foram fundamentais para o repensar se a sociedade realmente estava caminhando
para o progresso, como pensava-se no século XIX, mostramos que os Annales romperam
de uma vez por todas com a Escola Metódica, fazendo alianças com outras ciências huma-
nas e alargando seu campo de ação para se fazer relevante.
No segundo tópico, discutimos sobre a segunda geração dos Annales, marcada
pela liderança de Fernand Braudel. Você viu que, de modo semelhante à primeira geração,
as mudanças na disciplina ocorreram no contexto de um grande conflito: a Segunda Guerra
Mundial. Vimos que os Annales avançaram, ainda que ancorados em métodos e objetos de
outras disciplinas. Braudel, fundamental por este estabelecimento dos Annales, estreitando
relações com outras ciências humanas, propõe a noção de temporalidades, que foi essen-
cial para prática histórica.
No tópico seguinte, falamos da terceira geração dos Annales, aquela que ficou
mais conhecida como “nova história”. A terceira geração promoveu um repensar da história,
promovendo “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”. Estes historiadores
procuraram se afastar de qualquer dogmatismo. Em sua forma de análise, você pôde ver
que eles prezavam pela história das mentalidade e temas diversos.
Fala-se muito de uma possível quarta geração dos Annales, mas, ainda que não
seja possível afirmar com absoluta certeza que esse empreendimento tenha sido alcança-
do, é inegável a influência das ideias de Roger Chartier para a história cultural. Por meio
dos conceitos de “prática” e “representação”, entre outros adjacentes, Chartier forneceu
instrumentos importantes que fugiam da simples separação entre “cultura popular” e “cul-
tura da elite”. Você pôde perceber que não apenas as ideias de Chartier, mas também de
outros intelectuais aqui citados foram fundamentais para a constituição da história.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 104


LEITURA COMPLEMENTAR

LUCIE VARGA: A “DESCONHECIDA” HISTORIADORA DOS ANNALES

Jougi Guimarães Yamashita

Ao estudar o movimento historiográfico dos  Annales, considerado um divisor de


águas para a pesquisa e escrita da História, costumeiramente montamos em nossas ca-
beças uma espécie de “linhagem” das grandes figuras associadas à publicação francesa.
Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Georges Duby, Pierre Nora, Jacques Le Goff
etc. A alguém que passou por uma graduação na disciplina, esses nomes aparecem quase
que naturalmente ao se refletir sobre o fazer histórico, ainda considerados pilares de uma
forma de se fazer a História “nova” – mesmo que algumas dessas novidades já acumulem
boas décadas de existência.
Igualmente comum é a defesa de que esse clima de inovação metodológica e temá-
tica teria favorecido o desenvolvimento do estudo da História das Mulheres, que ganhava
relevo historiográfico também em função do forte impulso dos movimentos feministas a
partir da década de 1960.
Ainda que essas afirmações não estejam de todo modo equivocadas, é bastante
curioso observar que dentro da própria revista dos Annales, em 1986 – portanto, uns bons
anos depois de todo o boom da luta pela emancipação feminina na França – tenha sido
publicado um artigo coletivo que denunciava, entre outras coisas, a falta de espaço na
publicação para a História das Mulheres. Diziam as autoras, na ocasião:
Escolher para isto [um ensaio de historiografia sobre o tema] esta revista, os
Annales, não decorre do acaso, nem mesmo do desejo de demarcar uma
publicação que, sem ignorar a história das mulheres, não lhe tem concedido
um grande espaço.

Percebemos, então, um duplo problema de fundo: durante pelo menos boa parte de
sua existência, a revista abordou a História das Mulheres em raras ocasiões e, ao observar
aqueles nomes aos quais ligamos a sua identidade, ficamos com a pergunta: onde estariam
as historiadoras dos Annales?
Numa publicação cuja direção ainda não foi ocupada por mulheres e da qual a pre-
valência em outros cargos segue sendo masculina, uma presença feminina nos primeiros
anos da revista parece bastante significativa e pouco lembrada: trata-se de Lucie Varga.
Sua trajetória, de certa forma, é bastante elucidativa do problema em questão.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 105


A secretária estrangeira de Lucien Febvre

Nascida Rosa Stern no ano de 1904, em uma cidade próxima a Viena chamada
Baden, ela era proveniente de família de posses. Por capricho, ainda jovem mudou o nome
para Lucie. Casou-se com Joseph Varga, jovem húngaro de origem mais modesta. Da
união, teve uma filha chamada Berta. Um ano depois desse nascimento, inscreveu-se na
Universidade de Viena, onde estudou História, História da Arte e Filosofia. Em 1932, defen-
deu a sua tese de doutorado sobre a Idade Média.
No ano seguinte, separou-se do marido, e começou a dar aulas em uma universida-
de popular criada em uma municipalidade socialista em Viena (Volkschochschule). Foi esse
o momento de sua extrema politização. Lucie Varga aderiu ao movimento antifascista, além
de engajar-se no movimento feminista. Casou-se pela segunda vez com Franz Borkenau,
intelectual austríaco que viria a ser considerado um dos primeiros a elaborar o conceito
de “totalitarismo”. A relação pouco durou, mas é digna de ser mencionada porque a jovem
historiadora tomou com ele a decisão de sair de Viena. As origens judaicas do casal cada
vez mais ameaçavam a sua integridade naquele país.
No momento em que o mais comum entre os seus pares era buscar abrigo em
Praga, Varga e o marido decidiram mudar-se para Paris. Ela queria dar prosseguimento
aos seus estudos. Logo conheceu o eminente historiador Lucien Febvre, um dos “pais
fundadores” da revista Annales d’histoire économique et sociale, que a contratou como
assistente.  Em carta escrita a Marc Bloch, seu parceiro nos Annales, ele comentava:
Meus trabalhos… aqui, novamente, eu lhe asseguro. Trabalho ativamente
nas Religiões do século XVI. Contratei um “treinador”, melhor dizendo uma
treinadora: uma austríaca aluna de Dopsch, sobre o qual creio já ter falado
com você, madame Varga-Borkenau – que três manhãs por semana vem
trabalhar comigo.

Graças a seu intermédio, Franz Borkenau publicou três artigos nos Annales, mas
as oportunidades profissionais acabaram por afastar o casal. Ele quis seguir viagem para
Londres depois de um tempo, ela permaneceu em Paris e a distância parece ter acarretado
a separação dos dois. Gradualmente, a relevância da atuação da aprendiz para o trabalho
de Febvre ia aumentando, a ponto de Varga fichar livros e fornecer, assim, material para
que Febvre pudesse publicar na Revue de Synthèse e nos Annales resenhas de obras
que ele não tinha tempo de ler. Durante sua carreira, Varga dedicou-se aos estudos sobre
fenômenos de religiosidade e a fascinação que eles ainda exerciam. Inicialmente dedicada

UNIDADE IV A Escola dos Annales 106


aos estudos medievais, logo ampliou a abordagem ao analisar tais fenômenos na contem-
poraneidade.
O passo seguinte foi o de começar a assinar as resenhas nas duas publicações.
Varga se tornava a primeira mulher a publicar regularmente nos Annales. Mas sua rele-
vância foi além: a edição mais engajada politicamente da revista – uma de 1937, dedicada
ao estudo sobre a Alemanha – contou com uma forte participação da historiadora, que
escreveu a apresentação do dossiê e alguns artigos, dentre os quais destaca-se um sobre
a gênese do nacional-socialismo.
Nesse sentido, alguns defendem a relevância de Lucie Varga para o projeto dos An-
nales. Há quem diga que os rumos da revista foram alterados significativamente em função
de sua atuação e suas ideias sobre a História. Especialmente nesses artigos antifascistas,
Varga debatia a ideia de “autoridades invisíveis” como fundamentadora da adesão ao nazis-
mo, bem como a de uma propensão dos alemães a buscar bodes expiatórios – no contexto
em questão, os judeus e os socialistas, por exemplo – em momentos de crise. Recorria aos
estudos sobre a psicologia para buscar explicações para esse fascínio que a extrema-di-
reita alemã exercia sobre o que chamava de “massas anônimas” à extrema-direita alemã.
Sua análise social da ascensão desse fenômeno político, nesse sentido, seria basilar para
o desenvolvimento das outillages mentales (mentalidades) que consagrariam o trabalho
de Lucien Febvre. Ainda que essa afirmação nos soe exagerada, cabe refletir sobre os
motivos pelos quais essa possível influência da discípula ser tão pouco discutida. Fato é
que artigos de Febvre considerados centrais para o estabelecimento de uma “História das
Mentalidades” foram escritos a partir de 1938, portanto, depois de toda a relação entre ele
e a historiadora austríaca.

Crises

Além da aproximação profissional, a relação pessoal entre o diretor dos Annales e


Varga também aumentava. Ela passou a visitar a casa dos Febvre mais frequentemente.
Chegou a dar aulas de alemão e a levar o filho Henri para conhecer a Áustria. Sob a sua
orientação, Lucien Febvre programou uma viagem de férias a Viena e Praga, ocasião na
qual aproveitou para estabelecer contatos profissionais com antigos professores e colegas
da austríaca. Ao fim, envolveram-se em um relacionamento amoroso.
Em 1937, o relacionamento pessoal e profissional entre Febvre e Varga encontrou
a ruptura. Constrangido e enfrentando uma grave crise pessoal, então, Febvre aceitava

UNIDADE IV A Escola dos Annales 107


uma missão de trabalho de três meses na Argentina naquele verão. Curiosamente, foi em
um cruzeiro durante essa viagem que reencontrou Fernand Braudel – quem, futuramente,
viria a ser o novo diretor da revista –, o qual havia sido seu aluno e de Marc Bloch em Es-
trasburgo e com quem se encontraram em eventos episódicos ao longo da década de 1930.
Braudel estava tomando a embarcação para retornar a Paris depois de uma temporada
como professor na Universidade de São Paulo.
Quanto à Varga, essa ruptura pessoal veio acompanhada de outra de cunho po-
lítico. A Anschluss, anexação da Áustria à Alemanha, em 1938, obrigou-a a prover o seu
sustento e de sua filha sem o apoio da família austríaca. Lucie tentou seguir a carreira
acadêmica, além de outras atividades, como representante comercial e operária de fábrica.
Em meio a tantas dificuldades, publicou um romance (em formato de folhetim, dividido em
13 episódios) no periódico socialista L’Oeuvre. Em 1939, casou-se uma terceira vez, motivo
pelo qual garantiu a naturalização francesa que a salvaria da deportação quando a França
foi derrotada na guerra em 1940. Trabalhou como tradutora até estourar o conflito mundial
e, depois da desastrosa campanha francesa, viu-se obrigada a migrar com a filha para
Toulouse, no sul da França. Lá, buscou a sobrevivência dando aulas de alemão e fazendo
trabalhos agrícolas. Toda essa instabilidade vivida nos últimos anos prejudicou bastante a
sua saúde – ela era diabética – e, em abril de 1941, ela não resistiu à doença e faleceu, aos
36 anos de idade.
A primeira historiadora dos Annales então, foi uma mulher socialista, judia e femi-
nista. Uma trajetória tão singular e cujo silêncio sobre esta nos parece ensurdecedor.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 108


MATERIAL COMPLEMENTAR

LIVRO
Título: Cinema e História
Autor: Marc Ferro
Editora: Paz e Terra
Sinopse: neste livro, que é uma das obras inaugurais do campo
de estudos da inter-relação entre o cinema e a História, Marc Ferro
contrapõe os dois discursos de maneira a mostrar não apenas
como um interfere no outro, mas também quais são os questio-
namentos que devem ser feitos a partir dessas interferências. Por
meio de filmes como O encouraçado Potemkin, O judeu Süss, A
grande ilusão, M., o vampiro de Dusseldorf, O terceiro homem,
entre outros, o autor analisa os processos de produção dos filmes
e as influências políticas e sociais que eles acarretaram.
Link: https://www.amazon.com.br/Cinema-hist%C3%B3ria-Marc-
-Ferro/dp/8577530280.

FILME/VÍDEO
Título: Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos
Ano: 1999
Sinopse: trata-se de um filme-memória do século XX, a partir de
recortes biográficos de pequenos e grandes personagens que por
aqui passaram. 95% das imagens são de arquivo: filmes antigos,
fotos e material da TV. Não há locução, nem depoimentos orais.
A sonorização é toda música de Wim Mertens, efeitos sonoros e
silêncio. O filme ganhou 17 prêmios nacionais e internacionais e
ficou 8 meses em cartaz em SP e Rio.
Link: https://www.youtube.com/watch?v=gmqXVwfUHxE&bpc-
tr=1588026242.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 109


REFERÊNCIAS

BACELLAR, C. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, C. B. Fontes históricas. 3. ed. São Pau-
lo: Contexto, 2011.

BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Bra-
sília, n. 11, 2013, p. 89-117.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BOURDÉ, G.; MARTIN, H. As escolas históricas. Mem Martins: Publicações Europa-América,


1983.

BRAUDEL, F. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo à época de Felipe II. Lisboa: Publicações


D. Quixote, 1983.

BURKE, P. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992.

BURKE, P. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, P. (org.). A escrita da
história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

CERTEAU. M de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

CHARTIER, R. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.

CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. 2. ed. Algés, PT: DIFEL, 2002.

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 5, 1991,
p. 173-191.

CHESNEAUX, J. Devemos fazer tábula rasa do passado? São Paulo: Ática, 1995.

COELHO, J. P. P.; MELO, J. J. P. O ofício do historiador: reflexões sobre o conceito de passado


em suas dimensões sociais e históricas. História e Perspectivas, Uberlândia, v.30, n. 57, 2017, p.
209-232.

CRUZ, M. O lugar dos historiadores no século XXI ou reflexões sobre o fim da historiografia. Terri-
tórios e Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 2, 2018, p. 9-22.

DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio, 1992.

DUBY, G. O historiador, hoje. In: LE GOFF, J. (org.). História e nova história. Lisboa: Teorema,
1994.

DUSSEL, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e as ciências sociais. Buenos Aires: Conse-


jo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2013.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 110


EYLER, F. M. S. Heródoto de Halicarnasso (484 a.C. - 430/420 a.C.). In: PARADA, M. (org.). Os
historiadores: clássicos da história, v. 1. Petrópolis: Vozes, 2012.

FEBVRE, L. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.

FINLEY, M. I. Mito, memória e história. In: PARADA, M (org.). Uso e abuso da História. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.

GARDINER, P. (org.). Teorias da História. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1964.

GASTAUD, C. Historiografia grega: Tucídides e a guerra do Peloponeso. História em Revista,


Pelotas-RS, v. 7, n. 17, 2001, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/
HistRev/article/view/11891. Acesso em: mar. 2020.

GUINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.

HOBSBAWM, E. O que os historiadores devem a Karl Marx. In: _________. Sobre história. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2013.

HOBSBAWM, E. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS, C. Introdução aos estudos históricos. Curitiba: Antonio Fontou-
ra, 2017. Disponível em: http://www.antoniofontoura.com.br/pdf/Introdu%C3%A7%C3%A3o%20
aos%20Estudos%20Hist%C3%B3ricos.pdf. Acesso em: abr. 2020.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP: Unicamp, 1990.

LE GOFF, J.; NORA, P. História: novos problemas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995.

LÉVI-STRAUSS, C. Mitológicas I – O cru e o cozido. Rio de Janeiro: Cosac e Naify, 2004.

LÖWITH, K. Meaning in History: The Theological Implications of Philosophy of History. Chicago:


Universidade de Chicago, 2011.

LUCA, T. R. de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. Fontes históricas.
3. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

MAGALHÃES, L. O. de. Tucídides (460 a.C. - 404 a.C.). In: PARADA, M. (org.). Os historiadores:
clássicos da história, v. 1. Petrópolis: Vozes, 2012.

MARQUES, J. B. Públio (Gaio) Cornélio Tácito (56 d.C. - 120 d.C.). In: PARADA, M. (org.). Os his-
toriadores: clássicos da história, v. 1. Petrópolis: Vozes, 2012.

MARROU, H. I. El conocimiento histórico. Barcelona: Editorial Labor, 1968.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.

NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro.São Paulo: Companhia
das Letras, 2005.

OLIVEIRA, M. A. de; MORAES, R. B. de S.; SOUZA, R. de. A luta de classes na era do uber. Outras
palavras. 2017. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/luta-de-classes-na-
-era-do-uber/. Acesso em: abr. 2020.

PETROVIC, G. Práxis. In: BOTTOMORE, T. (org.). et al. Dicionário do pensamento marxista. 2.


ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 111


REIS, J. C. A escola metódica, dita “positivista”. In: BOTTOMORE, T. (org.). et al. A história entre
a filosofia e a ciência. São Paulo: Ática, 1996.

REIS, J. C. Wilhem Dilthey e a autonomia das ciências histórico-sociais. Londrina: Eduel, 2003.

RICOEUR, P. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.

RICOEUR, P. História e verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1995.

SCHOLTZ, G. O problema do historicismo e as ciências do espírito no século XX. História da His-


toriografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 4, n. 6, 2011, p. 42-63.

SEBASTIANI, B. B. A política como objeto de estudo. Tito Lívio e a reflexão historiográfica romana
do século I a. C. Revista de História, São Paulo, v. 15, n. 53, 2006, p. 297-315. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/2850/285022043012.pdf. Acesso em: abr. 2020.

SEBASTIANI, B. B. Políbio (200 a.C. - 118 a.C.). In: PARADA, M. (org.). Os historiadores: clássi-
cos da história, v. 1. Petrópolis: Vozes, 2012.

VASINA, J. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, J. História geral da África I: metodo-
logia e pré-história da África. 2. ed. Brasília: UNESCO, 2010.

VITORINO, J. C. Tito Lívio (59/64 a.C. - 17 d.C.). In: PARADA, M. (org.). Os historiadores: clássi-
cos da história, v. 1. Petrópolis: Vozes, 2012.

ZANIRATO, S. H. Teorias da história I. Maringá: Eduem, 2011.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 112


CONCLUSÃO

Caro (a) estudante,

Neste material, procuramos introduzir noções básicas acerca da constituição do


conhecimento histórico. Você viu que a escrita da história não é uma mera descrição de
fatos narrados cronologicamente. Se assim o fosse, a história perderia a sua função e a
necessidade da pesquisa histórica, a discussão sobre o trato com os documentos e o objeto
estariam esvaziados. Então, é importante que você tenha reconhecido que os parâmetros
teórico-metodológicos aqui abordados devem lhe acompanhar durante toda a sua formação.

Começamos discutindo alguns preceitos básicos do fazer historiográfico. Enten-


demos quais são os objetivos da história, bem como os cuidados que devemos ter no
momento da pesquisa. Você viu também sobre a importância dos documentos para o tra-
balho do historiador, uma vez que sem fontes não há um passado possível. Discutimos, na
sequência, sobre o sujeito historiador frente ao seu objeto e desvendamos as problemáticas
intrínsecas, além de como precisa ser a postura deste. Falamos um pouco também sobre o
quadripartismo histórico e a necessidade de repensarmos alguns dos pressupostos sobre
os quais a história está assentada.

Na segunda unidade, discorremos sobre as formas de escrita da história antes


desta se tornar uma disciplina de fato. Começamos nas primeiras formas de organizações
sociais, nas ditas sociedades primitivas e sua maneira de narrar o passado por intermédio
dos mitos. Logo em seguida, falamos sobre a escrita da história na Antiguidade Greco-ro-
mana, quando vai surgir os primeiros esboços da história por meio de Heródoto. Fechando
a unidade, refletimos sobre a escrita da história no contexto medieval e a influência da
igreja em tais assuntos.

Na unidade seguinte, explanamos sobre a escrita da história, momento no qual ela


se profissionaliza e se torna uma disciplina. Vimos que, nesse século, várias abordagens
históricas surgiram – dentre elas o historicismo, caracterizado por “descobrir a história”.

UNIDADE IV A Escola dos Annales 113


Também conhecemos a Escola Metódica e o materialismo histórico e suas correspondentes
contribuições para a história.

Por fim, você conheceu a Escola dos Annales, a qual teve seu surgimento no sé-
culo XX, tendo influenciado, e influenciando até os dias de hoje, gerações de historiadores.
Passamos ainda pelo seu surgimento, pela crítica à Escola Metódica e seu estabelecimento
como abordagem quase que hegemônica. Além disso, pudemos ver as profundas trans-
formações trazidas pela segunda, terceira geração e também pela nova história cultural.
Esperamos que tenha aproveitado a leitura.

Até uma próxima oportunidade. Muito obrigada!

UNIDADE IV A Escola dos Annales 114

Você também pode gostar