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RESUMO
Introdução: A midríase constitui um sinal semiológico frequente na ingestão de extractos
vegetais dotados de alcalóides anticolinérgicos. São exemplos diversas plantas da família
das Solanáceas como a Atropa belladona, a Scopolia carniolica, a Hyosciamus níger,
a Datura stramonium e a Brugmansia arborea, muitas das quais abundam em regiões
diversas de Portugal, onde são sobejamente conhecidas e de acesso fácil. Métodos:
Os autores apresentam uma doente de 17 anos, sexo feminino, internada por midríase
bilateral não reactiva e hiperactividade central com quadro alucinatório visual, no contexto
de intoxicação intencional com infusão de trombeteira de jardim (“Angel’s trumpet”,
Brugmansia arborea). Os autores desenvolvem, a propósito deste caso, uma revisão
sistematizada sobre a toxicidade anticolinérgica associada à ingestão de extractos vegetais
e respectivos padrões de consumo na actualidade. Resultados: A terapêutica sintomática
dos sintomas anticolinérgicos associada à vigilância do estado clínico permitiram
uma melhoria das queixas e sinais semiológicos, explicável pela eliminação do tóxico
anticolinérgico pelo organismo. Conclusão: O oftalmologista, no conhecimento pleno das
manifestações oftalmológicas da toxicidade de plantas, pode ter um papel preponderante
no diagnóstico diferencial e vigilância da midríase não reactiva, nomeadamente da
midríase originada por fármacos, facilitando deste modo a detecção atempada de uma
situação de intoxicação acidental ou voluntária e permitindo a introdução precoce de
medidas que visem proteger o doente e recuperar o seu estado funcional.
dente a presença de midríase bilateral, pouco nico, nomeadamente pelas queixas de visão
reactiva à luz. turva e disfagia, recomendando vigilância e
A doente negou consumo de qualquer subs- terapêutica sintomática.
tância (farmacológica ou outra). Não foram Foi ainda pedido um parecer da especiali-
encontrados antecedentes pessoais ou familiares dade de Psiquiatria, que após interrogatório deta-
relevantes. lhado revelou a ingestão pela doente de “chá
A medição dos parâmetros vitais revelou tem- de cidreira” pouco antes do início da sintoma-
peratura auricular de 36,9ºC, pressão arterial de tologia, levantando ainda a suspeita de episódio
130/71 mmHg, frequência cardíaca de 109 bpm alucinatório visual como explicação das altera-
e frequência respiratória de 14 cpm. ções comportamentais e do discurso incoerente,
Não apresentava alterações à auscultação car- sem valorizar outras alterações.
díaca e pulmonar, nem ao exame abdominal. Em face dos dados obtidos, concluiu-se que
Foi solicitada observação pela especialidade a associação de alterações transitórias do com-
de Neurologia, que confirmou a presença de portamento a midríase bilateral e eventualmente
midríase bilateral e simétrica, pouco reactiva à luz, a actividade alucinatória visual configurava com
sendo todo o restante exame neurológico normal. maior probabilidade um quadro clínico suges-
A doente realizou TC cerebral, o qual não tivo de consumo de tóxicos. No entanto, a
revelou evidência de lesões intra ou extra-axiais, doente negava tal acto e a pesquisa de subs-
nomeadamente de natureza vascular, hemorrá- tâncias de abuso doseáveis foi negativa. Desta
gica ou expansiva, encontrando-se os espaços de forma, foi decidido o internamento no Serviço
circulação de líquido cefalorraquidiano patentes de Neurologia com o diagnóstico provisório
e com aspecto normal para a idade. de alterações transitórias do comportamento e
No estudo analítico sérico e urinário não se midríase bilateral para estudo.
encontraram alterações hematológicas ou bio-
químicas, sendo a pesquisa de drogas de abuso
negativa. Resultados
Foi solicitado um parecer da especialidade
de Oftalmologia, que comprovou a existência de A insistência no interrogatório da doente
movimentos oculares normais, sem dor ou diplo- levou a que esta confessasse uma tentativa de
pia. suicídio com chá preparado a partir da folha, flor
e caule de uma planta que existia no quintal de
Acuidade visual ODE – 20/ 20 com correc- um vizinho.
ção; A tia da doente trouxe uma flor da planta,
Biomicroscopia ODE – pouco reactiva à luz e a qual foi posteriormente submetida ao Jardim
com perda da acomodação; Botânico do Porto, permitindo a identificação do
género e espécie.
Fundoscopia ODE – papilas coradas de bor- Foi feito o diagnóstico de intoxicação anti-
dos bem definidos; sem outras alterações do seg- colinérgica intencional por alcalóides tropanos
mento posterior. contidos em extractos da planta Brugmansia
arborea.
Quando interrogada, a doente negou aplica- Desenvolveu-se um pouco mais o interro-
ção de colírios, tendo contudo referido a inges- gatório no sentido de clarificar de que modo a
tão de presunto caseiro. Devido às queixas de paciente adquirira o conhecimento necessário à
disfagia e astenia com evolução simultânea, foi identificação da planta e seus efeitos, bem como
levantada a suspeita de intoxicação por toxina da preparação de uma infusão a partir da mesma,
botulínica e pedida observação pela especiali- ao que a doente referiu ter obtido tais informa-
dade de Infecciologia, a qual não excluiu o ções na Internet, recusando associar tal prática a
botulismo alimentar como causa do quadro clí- grupo de amigos ou pares.
VOL. 33, ABRIL - JUNHO, 2009 81
Luís Figueira, Manuel Falcão, Luís Mendonça, Olinda Faria, Madalena Pinto, Daniel Moura, F. Falcão-Reis
A terapêutica sintomática dos sintomas anti- morte, convulsões ou arritmias (excepto taqui-
colinérgicos, nomeadamente a hidratação e cardia). Um paciente teve hipotensão e dois
sedação, associada à vigilância do estado clí- sofreram lesões traumáticas acidentais. Relati-
nico permitiu uma melhoria das queixas e sinais vamente à terapêutica, 19 doentes necessitaram
semiológicos, explicável pela eliminação do de sedação, realizada sobretudo com benzodia-
tóxico anticolinérgico pelo organismo. Os sinais zepinas. A fisostigmina, inibidor das enzimas
e sintomas de hiperactividade central extingui- colinesterases, foi utilizada com fins diagnósti-
ram-se ao fim de 24 horas, tendo a midríase per- cos em 8 casos 9. Na nossa doente, a midríase
sistido por cerca de três dias, altura em que se fixa e a taquicardia foram os sinais semiológicos
verificou reversão total da mesma e recuperação mais importantes.
do reflexo pupilar à luz. Conforme referido, a intoxicação por alca-
A doente obteve alta referenciada para a con- lóides das Solanáceas caracteriza-se por um sín-
sulta de Pedopsiquiatria do Hospital Maria Pia, drome dose-dependente e substância-dependente
no Porto. com sintomas e sinais centrais e periféricos espe-
cíficos. Efectivamente, a atropina e a escopola-
mina produzem um bloqueio central e periférico
Discussão dos receptores muscarínicos da acetilcolina 5.
É também sabido que a atropina e a escopo-
O caso clínico apresentado despertou a aten- lamina são conhecidas e utilizadas por diver-
ção dos autores pelo facto de constituir mais um sas civilizações no passado, tanto quanto são uti-
caso, aparentemente sem ligações entre si, de lizadas hoje 5. Não será demais recordar, pelo
intoxicação intencional por alcalóides anticoli- seu interesse em farmacognosia, que a planta
nérgicos de plantas da família das Solanáceas. Atropa belladona obteve o seu nome do facto da
Diversos trabalhos demonstraram que o con- midríase que provoca ter sido muito apreciada
sumo de plantas anticolinérgicas é de natureza no passado, por motivos estéticos, sobretudo em
esporádica, na medida em que a maior parte das senhoras (“bela dona”).
exposições é acidental, moderada em severi- Relativamente a exposições não acidentais
dade e auto-limitada 9,10. Em contraste, no caso a alcalóides tropanos, o fenómeno tem raí-
clínico supracitado, foi revelada uma exposição zes históricas, importando citar o exemplo da
intencional. Colômbia (América do Sul), em que nas últi-
Num estudo de 33 casos em que se presumiu mas décadas a administração da escopolamina,
a ingestão de extractos de Brugmansia baseado extraída de plantas pertencentes aos géneros
na descrição da planta, a idade média dos doentes Datura ou Brugmansia, tornou-se um impor-
foi de 18 anos (todos entre 16 e 20 anos); 82% tante fenómeno neurológico e toxicológico. Es-
eram do sexo masculino. Trinta e um ingeriram ses extractos eram conhecidos popularmente
uma infusão ou partes da planta (flor). Trinta e como “Burundanga”. Características químicas
um fizeram-no com fins recreativos. O sinal clí- e clínicas das intoxicações incluíam amnésia
nico mais frequente foi a midríase (100%), com anterógrada e comportamento de submissão.
uma duração média de 29 horas (desvio-padrão A intoxicação por “Burundanga” está relacio-
13 horas) e o delirium (88%) com uma duração nada com outros fenómenos tóxicos encontra-
média de 18 horas (desvio-padrão 12 horas). dos em diferentes países e encontram-se associa-
Taquicardia ocorreu apenas em 11 dos 33 pacien- dos a episódios de amnésia global transitória 7.
tes (33%). Em 24 doentes para os quais se havia Os sintomas psiquiátricos mais frequentes
determinado com precisão o momento da inges- incluem inquietação, euforia, alucinações, deso-
tão, 7 dos 8 (88%) que se apresentaram nas pri- rientação, obnubilação, coma e depressão res-
meiras 5 horas tinham taquicardia, contrastando piratória 5. Psicoses devido a intoxicações por
com apenas 5 dos 16 (31%) que se apresentaram atropina ou escopolamina têm sido descritas
após 5 horas da ingestão. Não houve casos de raramente na literatura 5. Na nossa doente, veri-
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Midríase Fixa na Intoxicação pela Trombeteira e Implicações Toxicológicas – Uma nova tendência?
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