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APENAS TRÊS...
Discussões temáticas em língua,
literatura e ensino

2021

1
COPYRIGHT 2021 © EDMILSON JOSÉ DE SÁ

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa dos
autores e organizadores. Por se tratar de uma publicação de artigos oriundos de
autores diversos, o organizador e a editora isentam-se de qualquer responsabilidade
autoral de conteúdo, ficando a cargo do autor de cada artigo tal responsabilidade.

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Editora Kandarus

REVISÃO

Os autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Sistema de Bibliotecas da AESA, Arcoverde, PE, Brasil.

L755 Apenas três... Discussões temáticas em língua, literatura e ensino


[recurso eletrônico ] organizador Edmilson José de Sá. Arcoverde-
PE: Kandarus, 2021.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN: 978-65-00-27866-8

1. Língua 2. Linguística. Ensino.


I Sá, Edmilson José de

CDD 410

2
COMISSÃO CIENTÍFICA

Prof. Dr. Augusto César Acioly Paz Silva (CESA)


Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (Unicap/ UPE)
Prof. Dr. Fernando Augusto de Lima Oliveira (UPE)
Prof. Dr. José Robson Santiago (UFPB)
Prof. Dr. Rafael Bezerra de Lima (UFAPE)
Prof. Drª Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo (UPE)
Profª. Drª Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI/UNICAP)
Profª Drª Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB)
Profª Drª Clécia Maria Nóbrega Marinho (UFPB)
Profª Drª Izabel Cristina Izidoro Barbosa (CESA)
Profª Drª Jaciara Josefa Gomes (UPE)
Profª Drª Maria do Socorro Pereira de Assis (CESA)
Profª Drª Rossana Regina Guimarães Ramos Henz (UNICAP / UPE)
Prof. Dr. Edmilson José de Sá (CESA)

3
APRESENTAÇÃO

Em tempo de pandemia, os eventos acadêmico-científicos tiveram que


ocorrer numa logística incomum. Depois da primeira edição presencial, o Encontro
Regional de Linguística e Ensino de Língua Portuguesa já ocorreu duas vezes em
formato remoto. A terceira edição, realizada no mês de maio, atingiu um número
inacreditável de inscritos, ultrapassando as mil pessoas. Além de minicursos
propostos por pesquisadores de várias partes do país, tivemos simpósios temáticos
para os quais foram submetidas mais de duzentas comunicações das mais variadas
áreas temáticas e, unidas a três mesas de debates e duas conferências, construímos
uma programação de que participaram alunos de graduação, pós-graduação e
pesquisadores de Norte a Sul do país, chegando até a ultrapassar as fronteiras da
América.

Concluído o evento, organizamos uma publicação de anais com os resumos


de todos que apresentaram suas comunicações e, agora, divulgamos um e-book
com os artigos que explicitam as pesquisas apresentadas e oferecem ao leitor uma
referência a mais sobre a temática discutida.

Discussões sobre língua e literatura, sem deixar de lado o viés educacional,


constituem as mais de 1400 páginas deste e-book. Esperamos, então, que o leitor
tenha, ao menos, uma ideia teórica e prática sobre o que há de mais atual em
termos de pesquisas linguísticas e literárias, a fim de inspirar mais e mais
pesquisadores a compartilhar seus conhecimentos e estudos das linhas com as quais
possuem mais afinidade.

Edmilson José de Sá

(organizador)

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SUMÁRIO

UM EU EM INCOMPLETUDE: MEMÓRIAS DO EU RASURADO EM PONCIÁ 11


VICÊNCIO
Adeilton Alexandre da Silva
AFRICANISMOS NO MARACATU DE ASCENSO FERREIRA 27
Odailta Alves Silva
APRESENTAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA: REPRESENTAÇÕES CULTURAIS 47
HISTÓRICAS DA ADOLESCENTE MÃE EM DOCUMENTÁRIOS DO YOUTUBE
Ágata de Carvalho Ferreira
Claudete Cameschi de Souza
VERBOVISUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA: UMA ANÁLISE DIALÓGICA 63
Anderson Cristiano da Silva
DISCURSIVIZAÇÃO EM UM CONTEXTO PANDÊMICO: ALGUMAS 84
CONSIDERAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUAS
Bruno Drighetti
A LINGUAGEM ANTIRRACISTA NO DISCURSO DE PROTESTO DE CAROLINA 100
MARIA DE JESUS – VARIAÇÃO LINGUÍSTICA COMO MARCA DE ESTILO E
IDENTIDADE
Ana Maria Urquiza de Oliveira
A LITERATURA NA ROTINA DA EDUCAÇÃO INFANTIL 119
Anelise Boaventura Pereira
CIRO GOMES E JAIR BOLSONARO: UMA ANÁLISE DO FENÔMENO DA 137
RECATEGORIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK
Natália Luczkiewicz da Silva
Max Silva da Rocha
LEITURA E MULTIMODALIDADES: CAMINHOS PARA UMA PRÁTICA 157
SIGNIFICATIVA DO GÊNERO CHARGE
Gerda Cristina Nogueira
Antônio Leonardo Nunes Gomes
Miguel Leocádio Araújo Neto
A CONSTRUÇÃO DE ENUNCIADOS ESCOLARES NO PLANO DE ESTUDO 172
TUTORADO DE LÍNGUA PORTUGUESA: PROBLEMATIZAÇÕES E REFLEXÕES
PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM
Bianca de Souza Gomes
Helena Maria Ferreira
A ESCRITA DE (RE)EXISTÊNCIA NEGRA NA POÉTICA: DIÁLOGOS ENTRE 194
CRISTIANE SOBRAL, CONCEIÇÃO EVARISTO E MEL DUARTE
Chrisllayne Farias da Silva
TRÍADE SIGNIFICATIVA: PROJETOS DE ENSINO, GÊNEROS TEXTUAIS E 217
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TIC’S) INCENTIVAM
APRENDIZAGEM.
Joana d’Arc Araújo Silva
O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA NO CONTEXTO DA 239
SOCIOEDUCAÇÃO PANDÊMICA NA REDE ESTADUAL PAULISTA: A PRÁTICA
COLABORATIVA TRANSDISCIPLINAR DOCENTE SOB A PERSPECTIVA DA
TEORIA DA ATIVIDADE
Otávio de Oliveira Silva

5
JARGÃO NO AUTISMO: ANÁLISE DA CONCEPÇÃO ADOTADA EM ARTIGOS 259
CIENTÍFICOS
William Berg Lima da Silva
Renata Fonseca Lima da Fonte
“ONDE É QUE BOTO MORA?”: UM ESTUDO SOBRE A LINGUAGEM NO CONTO 272
O BAILE DO JUDEU (1893), DE INGLÊS DE SOUSA
Kauanne Laryse da Costa Oliveira
Rebeca Freire Furtado
POEGRITO: CARLOS DE ASSUMPÇÃO 289
Sandro Adriano da Silva
OS NÍVEIS INTERNOS DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM ANÚNCIOS 308
PUBLICITÁRIOS
Thalia Cristina Serafim de Campos
Vanessa Aparecida Duarte Almeida
Vera Maria Ramos Pinto
DEBATES DA INTERNET: A ACEITAÇÃO DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA 328
REGIONAL NO TWITTER
Lídya Rafaella da Silva Morais
A RELAÇÃO ENTRE A GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS, AS VARIAÇÕES 346
LINGUÍSTICAS E A BOA ESCRITA NA MODERNIDADE
Melissa Mourão Amaral
Lucas Cristiano Ferreira Alves
O USO DO AVEA MOODLE NA EXECUÇÃO DO PROJETO DE ENSINO “NO 362
MEIO DO CAMINHO TEM O ENEM: OFICINAS PREPARATÓRIAS PARA EXAMES
DE INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR”
Flávia Zanatta
Mateus Freitas Charloto
GEOSSOCIOLINGUÍSTICA E ENSINO: A VARIAÇÃO POPULAR EM SALA DE 383
AULA
Thiago Leonardo Ribeiro
Vera Maria Ramos Pinto
O LUGAR DA SOCIOLINGUÍSTICA NA BNCC: O COMPONENTE CURRICULAR 403
DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ETAPA DO ENSINO MÉDIO
Vera Maria Ramos Pinto
Sara Nicacia de Souza
EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS MULTIMODAIS NO ENSINO DE LÍNGUA 416
PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO BÁSICA NO CONTEXTO DE ENSINO REMOTO
Eider Ferreira Santos
A ORGANIZAÇÃO RETÓRICA DE INTRODUÇÕES DE ARTIGOS CIENTÍFICOS EM 433
LINGUÍSTICA
Penelope de Moura Lopes
Benedito Gomes Bezerra
A ORGANIZAÇÃO RETÓRICA DE INTRODUÇÕES DE ARTIGOS CIENTÍFICOS EM 445
LINGUÍSTICA E LITERATURA
Maria Carolina Cordeiro Pessoa Bezerra
Benedito Gomes Bezerra
INVESTIGAÇÃO SOBRE ABORDAGENS ACADÊMICAS A RESPEITO DA 466
AQUISIÇÃO DA LIBRAS TÁTIL POR CRIANÇAS SURDOCEGAS CONGÊNITAS
Émile Assis Miranda Oliveira
Adriana Stella Cardoso Lessa-de-Oliveira

6
CONTRIBUIÇÕES DAS GRAMÁTICAS FUNCIONAL E GERATIVA NO TRABALHO 482
COM DOIS EIXOS DO COMPONENTE LÍNGUA PORTUGUESA NA BASE
NACIONAL COMUM CURRICULAR
Cindy Mery Gavioli-Prestes
Cláudia Maris Tullio
FENÔMENOS LINGUÍSTICOS EM VARIAÇÃO: A SOCIOLINGUÍSTICA 503
EDUCACIONAL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Emily Fernandes Faber
Vera Maria Ramos Pinto
A LITERATURA ORAL DAS LOAS DO MARACATU RURAL COMO ESTRATÉGIA 525
PARA A AMPLIAÇÃO DO LETRAMENTO LITERÁRIO DE ESTUDANTES DA 4ª FASE
DA EJA.
Joseane do Nascimento Rocha
Josivaldo Custódio da Silva
LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS: UMA ANÁLISE A PARTIR 546
DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA
Sarah Ribeiro
Romário Duarte Sanches
PERCEPÇÃO DE UMA COMUNIDADE ACERCA DO DISCURSO 560
COLONIZADOR
Ana Maria Barbosa Jorge
A APRENDIZAGEM CRIATIVA EM AULAS PARTICULARES DE LÍNGUA 578
PORTUGUESA PARA ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL-ANOS FINAIS: UM
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Jônatas Miranda Amaral
O USO DO SOFTWARE ANTCONC NA PESQUISA EM TERMINOLOGIA: 596
APLICAÇÕES DA FERRAMENTA NA SELEÇÃO E ANÁLISE DE CANDIDATAS A
TERMO DA ÁREA DA GESTÃO ESCOLAR
Claudiuscia Mendes do Carmo
ENSINO DE LITERATURA NO FUNDAMENTAL II: UMA EXPERIÊNCIA DE PRÁTICA 616
LITERÁRIA
Lucas Evangelista Saraiva Araújo
Antônia Eduarda Trindade
TIPOLOGIA DE PERGUNTAS EM ATIVIDADES DE LEITURA PRODUZIDAS NO 630
CONTEXTO DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Bidamatcha Na Mam
Maria de Lurdes Nazário
ANÁLISE DE QUESTÕES DO PAVE E REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE 649
PORTUGUÊS NO ENSINO BÁSICO
Camila Martins Vellar
Paula Fernanda Eick Cardoso
O CÂNONE E A INSTITUIÇÃO LITERÁRIA: CAMINHOS PARA CONSTRUÇÃO 669
CANÔNICA EM AMOR DE PERDIÇÃO DE CAMILO CASTELO BRANCO
Helen Suzandrey Maia Sousa
CAPOEIRA: LUGAR DE RESISTÊNCIA E MEMÓRIA 685
Ivalda Kimberlly Santos Portela
Magno Santos Batista
A POÉTICA DO VAZIO EM “EIS A NOITE”, DE JOÃO ALPHONSUS 703
Cilene Margarete Pereira
EDUCAÇÃO LITERÁRIA E O ENSINO 717
Larissa Mendes Rosa

7
Lucilo Antonio Rodrigues

A IRRUPÇÃO DO PERSONAGEM E SUA CONSTRUÇÃO NO CONTO “ A 730


ESCRAVA” DE MARIA FIRMINA DOS REIS.
Rafaela Cristina Araújo dos Santos
Jefferson Gomes Oliveira
Vanda Maria Sousa Rocha
A DIALETOLOGIA DO INTERIOR DE PERNAMBUCO 744
Edmilson José de Sá
OLHADA SEMIÓTICA DO CONTO « A FELICIDADE CLANDESTINA » DE 762
CLARICE LISPECTOR.
Nada El ahib
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: 776
ANALISANDO PRÁTICAS DOCENTES
Isabelle Sedícias Nascimento Ferreira
Maria Cristiana de Santana
Lívia Suassuna
ANÁLISE DAS TRANSFORMAÇÕES FONOLÓGICAS E LEXICAIS DO LÉXICO DA 793
LIBRAS APOIADAS PELO SISTEMA ELiS
Leandro Andrade Fernandes
O ESPELHO ALEGÓRICO NO SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO DO PADRE 813
ANTÔNIO VIEIRA
Helen Suzandrey Maia Sousa
FAKE NEWS: UMA BREVE ANÁLISE DO FENÔMENO COMO GÊNERO DO 829
DISCURSO
Juliene Kely Zanardi
ESTUDOS LÍNGUÍSTICOS: FENÔMENOS DO FALAR CACERENSE 852
Wellington Dias Silva
Lucas Rodrigues Souza
FORMAÇÃO CONTINUADA EM SERVIÇO: REFLEXÕES ACERCA DAS 866
PRÁTICAS DOCENTE
Fernanda de Fátima de Oliveira Spirandeli
Brenda Pereira dos Santos
GLOSSÁRIO TERMINOLÓGICO DA UNILA (ATUALIZAÇÃO 2018 – 2022) 887
Fidel Pascua Vílchez
O LÉXICO DO MARCO NORMATIVO UNIVERSITÁRIO E SEUS PROBLEMAS DE 906
INTERPRETAÇÃO: O CASO DA UNILA
Fidel Pascua Vílchez
MORTE E VIDA SEVERINA, AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO - LITERATURA, 921
ORIGEM E ORALIDADE NO NORDESTE DO BRASILEIRO
Francisco Acioly de Lucena Neto
A CENSURA DA LITERATURA FANTÁSTICA E DE HORROR NO CONTEXTO 937
ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE O LIVRO ABC DOIDO, DE ANGELA LAGO
Leonardo Vinícius Sfordi da Silva
A LEITURA NA ESCOLA E AS CONTRIBUIÇÕES DO PROFESSOR NA 953
FORMAÇÃO DE LEITORES CRÍTICOS
Thaís Oliveira Andrade
Roseneide Passos Vitório de Oliveira
Cleize Araújo Sandes

8
INTENCIONALIDADE, LITERATURA E CRIATIVIDADE: REFLEXÕES PERTINENTES À 972
FORMAÇÃO DE LEITORES
Igor D’ Aguiar Siqueira de Lemos
Renato Nésio Suttana
A REPRESENTAÇÃO DA PROSTITUTA NA LITERATURA BRASILEIRA DO SÉCULO 987
XX.
Jefferson Gomes Oliveira
Rafaela Cristina Araújo Dos Santos
Venúzia Maria Gonçalves Belo
JOÃO GILBERTO NOLL E A IDENTIDADE DO SUJEITO PROTAGONISTA DO 1005
CONTO MARABÁ DO LIVRO A MÁQUINA DE SER
Carmelinda Carla Carvalho e Silva
USO DE APLICATIVO PARA AUXILIAR NO DESENVOLVIMENTO DA LEITURA E 1020
DA ESCRITA DOS EDUCANDOS COM DISLEXIA
José Wellington Macêdo Viana
Thais Faustino Bezerra
A ESCRITA ORTOGRÁFICA DE CANDIDATOS DO ENEM: UM ESTUDO 1035
REFLEXIVO
Luíza Vignoli Lacerda
Ana Luiza de Souza Couto
Daniela Mara Lima Oliveira Guimarães
LITERATURA DE MULHERES NEGRAS: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA COM 1059
ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
Aparecida Dias Terras Gomes
Roselita Soares de Faria
JOGOS VORAZES: UM FUTURO DISTÓPICO COM REFLEXOS DE UM PASSADO 1077
OBSCURO
Lucas Santos de Assis
Moisés Monteiro de Melo Neto
FIGURAÇÕES DA MUSA NA LÍRICA DE MURILO MENDES 1099
Luciano Marcos Dias Cavalcanti
O USO DE ELEMENTOS DE TEXTUALIDADE NA PRODUÇÃO ESCRITA DE 1113
ALUNOS DO PROJETO DE EXTENSÃO “LETRAMENTOS ACADÊMICOS”
Mara Silva dos Santos
Romário Duarte Sanches
O RACISMO E O LUCRO NO DISCURSO MIDIÁTICO: UMA INVESTIGAÇÃO 1131
SOBRE O ENUNCIADO “ARBEIT MACHT FREI” EM CAMISAS DE LOJAS VIRTUAIS
Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues
A DISCIPLINA DE LITERATURA MARANHENSE NA GRADUAÇÃO: MEMÓRIAS E 1147
EXPERIÊNCIAS DE ESTUDANTES NO ENSINO REMOTO
Marcos Antônio Fernandes dos Santos
RIOS DE MEMÓRIAS EM OLHOS D’ÁGUA 1164
Meire Oliveira Silva
MEMES E CIÊNCIA: UMA INVESTIGAÇÃO HODIERNA - RECORTE LINGUÍSTICO 1178
Isabella Tavares Sozza Moraes
Janderson Lacerda Teixeira
MORANGOS MOFADOS DE CAIO FERNANDO ABREU: UM LEITURA PLURAL 1196
DAS IDENTIDADES DOS PROTAGONISTAS
Carmelinda Carla Carvalho e Silva

9
TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA: O AUTO DA COMPADECIDA DE ARIANO 1218
SUASSUNA ADAPTADO PARA O CINEMA
Carmelinda Carla Carvalho e Silva
O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: POLÍTICAS PÚBLICAS E 1235
FORMAÇÃO DOCENTE
Luzicréia do Carmo Oliveira Souza
José Antonio de Souza
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA NAS AULAS DE LÍNGUA 1255
PORTUGUESA NO RECIFE: UMA ANÁLISE DO CONTEÚDO DOS GÊNEROS
TEXTUAIS
Odailta Alves Silva
REESCRITURA DA AMAZÔNIA ATRAVÉS DA SOBREVIDA DE ALFREDO NO 1271
CICLO DO EXTREMO NORTE DO ESCRITOR DALCÍDIO JURANDIR
Helen Suzandrey Maia Sousa
É UMA RAINHA E PARECE MENDIGA: A CARACTERIZAÇÃO DA IMAGEM 1288
FEMININA NO POEMA “UMA NORDESTINA”, DE FERREIRA GULLAR
Rian Lucas da Silva
Golbery de Oliveira Chagas Aguiar Rodrigues
RODAS DE LEITURAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA PROPOSTA POSSÍVEL 1303
Carmelinda Carla Carvalho e Silva
REBENTOS LIBIDINAIS; BANQUETE DE CORPOS: A SUBERSÃO HISTÉRICA EM A 1317
CASA DOS BUDAS DITOSOS, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
Silvio Tony Santos de Oliveira
Hermano de França Rodrigues
ERRÂNCIAS ERÓTICAS; ITINERÁRIOS ESPECULARES:(RE)LEITURAS DA 1336
SUBJETIVAÇÃO DO EU NO MITO DE NARCISO
Silvio Tony Santos de Oliveira
Hermano de França Rodrigues
TERMINOLOGIA E TERMINOGRAFIA: UMA INCURSÃO AS BASES TEÓRICAS E 1360
METODOLÓGICAS
Rejane Umbelina Garcez Santos de Oliveira
Paulo Santiago de Sousa
TERTÚLIA LITERÁRIA DIGITAL E COLETIVA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA 1385
ESCOLAR PELO VIÉS FREIRIANO
Aparecida Dias Terras Gomes
Roselita Soares de Faria
UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A NOÇÃO TEMPORAL EM A HORA DA 1401
ESTRELA O PERÍODO PANDÊMICO: COMO OS DIAS PASSAM A PARTIR DA
MONOTONIA
Brenda Pereira dos Santos
Igor Rocha Camargo
UMA NARRATIVA PIAUIENSE: DESVENDANDO A ORGANIZAÇÃO DISCURSIVA 1420
DO ROMANCE “VIDA GEMIDA EM SAMBAMBAIA”, DE FONTES IBIAPINA
Luis Felipe da Silva Castelo Branco
A ARGUMENTAÇÃO EM RESENHAS DA REDE SOCIAL SKOOB: UM ESTUDO 1445
SOBRE A FUNÇÃO DO OPERADOR ‘MAS’
Jônatas Miranda Amaral

10
UM EU EM INCOMPLETUDE: MEMÓRIAS DO EU RASURADO EM
PONCIÁ VICÊNCIO

Adeilton Alexandre da Silva 1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo, analisar o romance afro-brasileiro Ponciá Vicêncio
(2003), da escritora contemporânea Conceição Evaristo. Nosso intento é examinar a
trajetória da protagonista, refletindo sobre como se dá a construção da identidade
afrodescendente dentro desse texto, tal-qualmente, busca-se investigar como a
ancestralidade africana reflete na vida dessa personagem de mesmo nome do romance.
Evidenciaremos, ainda, como a escritora Conceição Evaristo configura em sua obra a
presença do pungente aspecto, que é de suma importância no que tange à produção de
textos literários, a saber a memória, acautelando que é notável a presença do elemento
supramencionado, constituindo a estrutura dos textos e permeia toda a sua produção
literária dessa escritora. A aspiração em redigir a presente análise, parte da premissa de que
este é um romance atual, em termos de tema abordado, inserido na realidade étnico-racial
brasileira e surge de uma ótica que por muito tempo foi silenciada e ocultada da história e
da cena literária. Logo, ele aparece desmitificando determinadas cristalizações no âmbito
da Literatura Brasileira, resultantes de um discurso dominante que foi reiterado no mito da
democracia racial, portanto, aqui será esquadrinhado questões que circundam a diegese
do romance, entre elas: processo inconcluso do negro nos diversos campos da sociedade,
as mazelas que a mulher negra encontra no meio social, o trabalho em condições de
semiescravidão, o analfabetismo, a violência doméstica e o preconceito de raça e gênero.
Os aportes teóricos basilares deste trabalho estão sob a égide dos estudos de Bosi (1979),
Halbwachs (2006), Gallagher (2009) e Dionísio (2013).

Palavras-chave: Conceição Evaristo, Romance, Ponciá Vicêncio, Literatura Afro-brasileira.

INTRODUÇÃO

Conceição Evaristo de Brito é natural de Belo Horizonte, nasceu e


cresceu em uma favela conhecida como Pindura Saia. Formou-se em
Magistério no antigo em 1971 e aspirando dar continuidade em sua vida
acadêmica, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em um
concurso para professor. Assim, iniciou o Curso de Letras na Universidade

1 Mestrando em Estudos Literários do PPGEL da Universidade Estadual – MT,


adeiltonalstga@gmail.com;

11
Federal daquele estado, depois fez mestrado em Literatura pela
Universidade Pontifícia Católica/RJ e em seguida, doutorado também em
Literatura pela Universidade Federal Fluminense de Rio de Janeiro. Estreou no
campo literário nos anos de 1990, especificamente na série intitulada
Cadernos Negros, publicação lançada em 1978, organizada pelo grupo
Quilombhoje. A partir de então, a autora Conceição Evaristo, como se tornou
conhecida, vem trilhando o caminho de uma escritora versátil, que transita
pela esfera de diversos gêneros, tais como poesia, romances, contos e
ensaios.

Atualmente, Evaristo é considerada uma das mais conceituadas e


importantes escritoras brasileiras contemporâneas. Suas obras, bem como a
linguagem adotada é marcada por enredos envolvendo histórias oriundas
dos espaços socais esquecidos pela elite, assim como pelos representes
políticos. Sua produção discute as forças da ancestralidade e da oralidade
tendo como parâmetro o lugar e a subjetividade do negro, em geral, e da
mulher negra, em particular. Sua escrita tematiza as narrativas e relatos de
personagens vivendo às margens sociais e em confronto com as forças
centrípetas das classes sociais e suas táticas de apagamentos das
identidades e das culturas dos negros e seus descendentes, faz bom uso do
que Cuti (Luiz Silva), expõe “A literatura é poder, poder de convencimento
de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e da ação”
(2010, p. 12).

São de sua autoria obras reconhecidas como: Ponciá Vicêncio (2003);


Becos da Memória (2006); Poemas da recordação e outros movimentos
(2008); e os seguintes livros de contos: Insubmissas lágrimas de mulheres (2011);
Olhos D'Água (2014); Histórias de leves enganos e parecenças (2016) e
Canção para ninar menino grande (2018). Ponciá Vicêncio, configura o seu
primeiro romance publicado individualmente e constitui o objeto a ser

12
perscrutado nesta análise; romance em que a narradora revela a riqueza do
universo afro-brasileiro, desvendado na literatura brasileira.

Ao adentrar em uma obra dessa escritora mineira, é fácil notar que ela
se faz de porta-voz da população negra, característica que reforça a
importância que o saber da experiência atinge na produção da autora. Ela
faz, com efeito, transparecer tanto a sua preocupação diante dos
problemas sociais, como a valorização da cultura popular e dos
acontecimentos que se referem à negritude, a partir de um olhar de dentro
ela dialoga com a tradição africana, transitando entre a escrita e a
oralidade, fala com propriedade e de uma forma bem poética sobre a vida
cotidiana do povo afro-brasileiro; esta autenticidade lhe é conferida por
abordar uma realidade que ela conhece muito bem, o espaço de
subalternidade, gerido por preconceitos e estereótipos, Evaristo faz de seu
texto literário, “instrumento de modificação de seu status social e político”
(SOUZA, 2010, p. 213).

Pensando em um termo utilizado com frequência em entrevistas e/ou


apresentações por Conceição Evaristo: “escrevivência”, escrever a vivência,
ela como testemunha e partícipe de uma história, relatando uma escrita que
nasce do cotidiano, das lembranças, de sua vivência. Digo que a linguagem
adotada pela autora na narrativa da obra surge dos acontecimentos simples
do cotidiano das personagens, o que pode explicar a sensação deste
misturar de vozes. Conceição traz em sua escrita uma marca bem peculiar,
ela trabalha com as palavras de forma a aproxima-las de sua experiência
(histórias que as tias e a mãe contavam) com a linguagem oral. A
musicalidade do texto, a arte da palavra e o dinamismo que é dado à língua
e a própria fala consente ainda mais a poesia do texto. No conceito estético
do termo mencionado acima (escreviência), quando analisado por uma
ótica vinda das obras desta autora, nota-se que o seu significado está muito

13
relacionado à história dos africanos nas Américas, e no romance Ponciá
Vicêncio, a trajetória da protagonista se dá exatamente deste fundo
histórico, particularizando a identidade da personagem.

Olhando a literatura para além da arte, vemos suas relações e


representações culturais, políticas e sociais de um povo em geral, dessas
questões, apresenta-se o objetivo principal da presente pesquisa, qual seja:
analisar a importância da memória na construção da identidade. Tal
abordagem dar-se-á com foco na protagonista do romance Ponciá
Vicêncio (2003), com o intuito de perscrutar o modo como a ancestralidade
reflete na vida de tal personagem, enquanto sujeito social, partindo do
discurso memorialístico que atravessa a narrativa do romance em questão e
desemboca no eu esfacelado dessa protagonista. Neste contexto, este
presente artigo se fundamenta sob a égide dos estudiosos Maurice
Halbwachs, A Memória Coletiva (2006); Djair Dionísio, Ancestralidade bantu
na literatura afro-brasileira (2013); Alfredo Bosi, Memória e Sociedade (1979)
e Paul Gilroy com a obra Atlântico Negro (2012).

A obra Ponciá Vicêncio com a personagem protagonista de mesmo


nome do romance simboliza o espaço e o tempo de uma longa história
contundida, de exclusão e de subserviência, que foi imposta ao povo negro,
no entanto, é a prova de que o Édouard Glissant, o negro, apesar de todas
as forças contrárias, conseguiu através do “pensamento do rastro/resíduo”
(GLISSANT, 2013, p. 82), se opor ao “pensamento de sistema”, até mesmo na
hora do desembarque deixar suas pegadas nas Américas. Ao que concerne
o espaço geocultural, a personagem de mesmo nome do romance se
debate com questões de deslocamentos geográficos, busca de identidade,
representação cultural, reconquista física e religiosa, além de
(de)recomposição psicológica, apresenta-se como a identidade da
personagem homônima do romance foi constituída em seu processo de

14
“travessia”, uma trajetória que aponta, desde o início, para referenciais aos
ancestrais negros que foram submetidos à travessia do Atlântico Negro
(GILROY, 2012).

A narrativa é circular e se inicia com a protagonista em seu ato de


recordar: ela, adulta, rememora sua infância em um estado de nostalgia,
penando com a ausência dos laços fraternos. A memória será o fio-elo e por
meio do relembrar a trama é construída, ora pelo retorno a lugares com
significação afetiva para Ponciá, ora pelas imagens, como por exemplo, as
de objetos de barro construídos por ela e pela mãe, trabalho este que
cercava as mulheres da família de Ponciá Vicêncio desde a ancestralidade,
eis uma passagem de divagação da personagem:

Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio.


Recordou o medo que tivera durante toda a infância. Diziam que
menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia
buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo
água. Como passar para o outro lado? Às vezes ficava horas e horas
na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer. Qual
nada! O arco-íris era teimoso! Dava uma aflição danada. Sabia que
a mãe estava esperando por ela. Juntava, então, as saias por entre
as pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos,
passava por debaixo do angorô. (EVARISTO, 2017, p. 13).

É precisamente desta forma que se inicia o romance; o fragmento


apresenta a moça Ponciá relembrando sua infância de menina negra e
inocente que vivia no campo, lembrança esta que acaba por ser substituída
pela memória de mulher negra e empregada doméstica, agora na cidade
grande, mas em condições degradantes. O espaço descrito na narrativa se
alinha e desalinha conforme segue a trama: “Ponciá Vicêncio gostava de
ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes se distraía tanto, que
até esquecia da janta e quando via o seu homem estava chegando do
trabalho.” (EVARISTO, 2017, p. 18). Vemos na narrativa a presença da raiz

15
africana que não se abandona, Duarte (2011, p. 231) aponta: "se mescla de
forma tensa passado e presente, recordação e devaneio", essa herança da
raiz africana é conhecida na medida em que avança a narrativa.

A representação da memória individual e coletiva se constitui em


ferramentas para os escritores negros, de modo que suas pautas artísticas,
culturais e políticas têm como norte a valorização de todo um conjunto de
elementos de denúncia à discriminação, o preconceito e, sobretudo o
racismo impregnado na sociedade. Maurice Halbwachs, estudioso desse
aspecto que aparece tão pungente na obra, em seu livro A memória
coletiva (2006), explica, a partir de exemplos, o que é e como se dá esse tipo
específico de memória que é coletiva. Halbwachs tece comentários de sua
vida particular e vai discorrendo alguns passeios, viagens, visitas, brincadeiras
e falas. Ao se lembrar desses eventos, o autor esclarece como se situava
“neste ou naquele grupo” (HALBWACHS, 2006, p. 31). Esses exemplos servem
de introito que auxiliam na compreensão do conceito de memória coletiva.
Em seus dizeres, ele afirma que:

[...] não seria possível compreender que pudéssemos recuperar o


passado, se ele não se conservasse, com efeito, no meio material
que nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço, aquele que
ocupamos, por onde sempre passamos, ao qual sempre temos
acesso, e que em todo caso, nossa imaginação ou nosso
pensamento é a cada momento capaz de reconstruir – que
devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento
deve se fixar para que reapareça esta ou aquela categoria de
lembranças. (HALBWACHS, 2006, p. 143).

Evidencia-se, por meio desta citação, uma nova necessidade que


também se vincula no momento em que se busca o passado: a influência
do meio material, o espaço. Halbwachs assevera que não existe grupo que
não estabeleça relação com algum lugar, logo, esse espaço interfere

16
diretamente no rememorar do indivíduo. A imagem do espaço, Vila Vicêncio,
torna-se uma via contribuinte que ajuda a evocar o passado, trazendo-o ao
presente da personagem. Dessa ideia de espaço, salta-se outra questão que
nos auxilia a compreender a trajetória de Ponciá e de seu reconhecimento
pessoal, de seu status quo. Na medida em surgem fragmentos que denotam
características negativas sobre as vivências no vilarejo: atraso, exclusão e
subordinação, comumente, constrói-se um outro discurso, esse segundo será
sobre o espaço urbano, “A cidade era mesmo melhor do que a roça”
(EVARISTO, 2003, p. 70).

Esses fragmentos nos remetem a uma memória discursiva estabelecida


em muitas dinâmicas socioespaciais na sociedade brasileira, que alimentou
um imaginário de que a cidade é um espaço de esperança a partir dos anos
de 1930, quando se intensificaram as migrações campo-cidade no Brasil
(MATOS, 2012). Halbwachs, acerca das relações entre memória e lugares
com valores afetivos para um indivíduo vai dizer que o espaço é essencial na
produção da memória coletiva, no sentido de que possibilita que sejam
mantidas as experiências, o autor expõe:

[...] não há memória coletiva que não aconteça em um contexto


espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas
impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso
espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o
passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que
nos circunda. É ao espaço, o nosso espaço – o espaço que
ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos
acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso
pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que devemos
voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar
para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça.
(HALBWACHS, 2006, p. 170).

O autor assinala que o espaço “arquiva” a memória de uma pessoa


ou de um determinado grupo, e depende do interesse destes, para que as

17
lembranças sejam acionadas. No movimento diaspórico ou no âmbito de
migrações, pode-se observar esse processo, na medida em que o migrante
retorna ao seu antigo lugar e percebe os “rastros” do passado. Paul Little
(1994) reconhece que a memória pode ser a possibilidade de “[...] se
apoderar do espaço perdido”. Little argumenta que há um risco contido
nessa “apoderação” do passado, segundo ele isso resultaria em dois
processos: no primeiro caso, esse retorno memorialístico não passa de uma
saudade e desejo de recuo para aquele lugar de onde veio; e o outro caso
seria o reconhecimento da necessidade de constituir, outras identidades a
partir do novo local em que se encontra.

É especificamente o que acontece com a personagem Ponciá, ela se


apodera de seu passado e o vê entrechocado com seu presente-futuro, no
entanto, seu desejo recai no primeiro processo acima discorrido. Tomada
pelo desejo de recuo, a protagonista entra em grande conflito consigo
mesma, o que resulta em seu eu esfacelado, uma identidade permeada por
rasuras. Dejair Dionísio (2013, p. 75) destaca que:

A falta que invade a personagem: [...] pode ser entendida como a


saudade de sua ancestralidade, saudade essa que a personagem
não consegue explicar, mas sabia estar relacionada ao seu destino.
[...] Essa descrição dos trabalhos que mãe e filha fazem demonstra a
ligação que as personagens têm com o barro e dão-nos a dimensão
da memória coletiva e que pode estar ligada à mesma memória dos
congoleses e suas aproximações com a ancestralidade contida
nesses trabalhos.

As relações do grupo familiar estão enfatizadas de maneira


extraordinária no romance; de início, parecem distantes e tristes entre si, mas,
ao longo da narrativa, ganham dimensão afetiva na medida em que a
garota se vê só e sente saudade e necessidade de estar em um laço familiar
– momento em que, de fato, compreende o valor de suas raízes. Eclea Bosi

18
(1979, p. 14) descreve, em seu livro Memória e Sociedade, a substância social
da memória, afirmando: “A memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a
Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de
referência peculiares a esse indivíduo”.

A jovem sonhava em conseguir um trabalho, juntar dinheiro e


retornaria ao povoado para levar junto com ela a mãe e o irmão. Mas, tais
certezas haviam sido esvaziadas no exato momento em que se deparou
com as dificuldades que não esperava encontrar na cidade grande, Darcy
Ribeiro (1998, p. 159), discorrendo sobre a inserção do negro recém-liberto,
na sociedade brasileira, argumenta que:

A degradação histórica dos negros e dos mulatos, mulheres e


homens originários da escravatura, sua pobreza e difícil integração
na sociedade, combinaram-se para engendrar seu isolamento
econômico e sociocultural, que pode ser considerada aberrante em
uma nação que se quer competitiva, aberta e democrática.

A moça nasce em um lugar de miserabilidade, em uma família que


sofre com o impacto no qual tudo o que produziam, precisavam dar boa
parte aos senhores. Ela fez a travessia com o coração cheio de esperanças,
entretanto, o cenário da escravidão torna a aparecer na narrativa,
justamente no momento em que a protagonista chega na cidade grande,
ela se vê desamparada, sem pouso, sem rumo. Ponciá não sabia que o que
viria a acontecer seria algo semelhante ao que se sucedeu aos escravos no
dia seguinte à assinatura da Lei Áurea, estava lançada à própria sorte. Ao
migrar, a personagem percebe o meio urbano tão desigual quanto a Vila
Vicêncio, Aline Alves Arruda (2007) destaca que para Ponciá “sua migração,
sua diáspora, assim como a de seus ancestrais, era dura e cruel” (p. 55).

19
Foram três dias e três noites de viagem até chegar à cidade, tendo
apenas a esperança como bilhete de passagem, Alfredo Bosi, em Dialética
da Colonização (1992), tece um comentário um tanto profético sobre a
trajetória da população negra: “O destino do povo africano, cumprido
através dos milênios, depende de um evento único, remoto, mas irreversível:
a maldição de Cam, de seu filho Canaã e de todos os seus descendentes. O
povo africano será negro e será escravo: eis tudo.” (p. 256). Essa afirmação
nos leva à protagonista Ponciá que herda de sua estirpe, a cor negra, basta
para que triunfe o castigo por uma culpa remota, mas que persiste ao longo
da história. E por que não dizer que ao fazer a grande passagem (campo-
cidade), a protagonista estava fazendo perpetuar as marcas da diáspora e
as histórias do navio negreiro, e que sua vida, estaria aliada ao lamentável
comentário preposto acima.

A moça estava inscrita sob uma identidade subalterna, outra grande


angústia que permeia a personagem é a origem do nome Ponciá, como
indicador identitário, essa conflituosa condição de uma personagem
rasurada torna-se matéria para a presente análise. Desde menina, ela
questionava o porquê de ter aquele nome, não se sentia dona dele: “E
Ponciá? De onde teria surgido este nome? Por quê? Em que memória do
tempo estaria escrito o significado de seu nome? Ponciá Vicêncio era, para
ela, um nome que não tinha dono.” (EVARISTO, 2017, p. 27), pensava que se
mudasse seu nome, encontrar-se-ia, talvez a troca do nome lhe trouxesse a
fuga daquela realidade, se sentiria alguém:

Menina, tinha o hábito de ir para a beira do rio e lá, se mirando nas


águas, gritava o seu próprio nome. Ponciá Vicêncio! Ponciá
Vicêncio! Sentia como se estivesse chamando outra pessoa. Não
ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros. Pandá,
Malenga, Quieti; nenhum lhe pertencia também. Ela, inominada,
tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça

20
rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém.
(EVARISTO, 2017, p. 18).

Não saber a origem desse nome é, no entanto, a tradução de uma


incapacidade dos descendentes de africanos transportados, de
descobrirem as suas origens, o que inevitavelmente nos arremessa para a
obra As Américas Negras: as civilizações no Novo Mundo (1974), em que o
sociólogo Roger Bastide nos apresenta todo um mapeamento histórico
desde a captura do negro, em solos africanos, até a supressão da
escravatura e as sequentes questões que circundariam a vida dos negros
“libertos”. E ele vai discorrer exatamente sobre isso, um processo de seleção
e agrupamento dos africanos, antes de embarcar nos navios negreiros. A
jogada estratégica de não deixar juntos os negros de uma mesma
localidade, dificultando o diálogo entre si e acarretando no descentramento
do sujeito, os responsáveis pelas embarcações recebiam ordens para trocar
os nomes dos cativos, registrando-os no ato do desembarque, não em suas
verdadeiras etnias, mas àquela em que foram embarcados.

A protagonista se recusa a aceitar o sobrenome que ela herdara da


família proprietária de seus ancestrais, o que efetivamente a faz diferente dos
demais da família, pois estes aceitavam o sobrenome “Vicêncio” tal como
um prato feito à mesa, isto é, sem questionamentos. O sobrenome é um
indicador da origem de uma família, uma espécie de “gene social”, a família
de Ponciá possui um que lhe foi dado e que, ao ser assinado, grafava a
marca histórica e o poderio do senhor dono de seus ancestrais. Apesar dos
desencontros da personagem, de modo que acaba em condição de
miserabilidade, trata-se de uma narrativa com uma protagonista que ficará
desprovida de tudo, mas não de sua consciência. É, portanto, um retrato do
negro na tentativa de se desprender da condição de subalternidade,
partindo em busca da alteração de sua realidade, alteridade que se dá por

21
meio da vivência, desde deixar o analfabetismo até a luta cotidiana por
melhores condições de vida.

O marido de Ponciá, imbuído do poder de capitão do mato,


espancava a personagem que, por conseguinte, sofreu vários abortos, temos
então, uma personagem infecunda, que não cria prole, deixando-a ainda
mais depressiva na medida em que se via como mulher que um dia sonhou
em constituir família. Em contrapartida, ela se contentava e consolava a dor
da perda dos filhos com os pensamentos de que os problemas econômicos
não a possibilitariam de criar uma criança: “Bom mesmo que os filhos
tivessem nascido mortos, pois assim, se livraram de viver uma mesma vida.
[...] Valeria a pena pôr um filho no mundo? Lembrava de sua infância pobre,
muito pobre na roça e temia a repetição de uma mesma vida para os seus
filhos” (EVARISTO, 2017, p.70-71), e acabava cada vez mais a sentir-se só de
si e dos seus.

Na tentativa de compreender a construção depreciativa da imagem


do negro na sociedade, poderemos recorrer aos Estudos Pós-coloniais de
Nilma Lino Gomes que assevera:

A identidade negra é entendida, aqui, como uma construção social,


histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo
étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo
étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com o outro.
Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que,
historicamente, ensina aos negros, desde muito cedo, que para ser
aceito é preciso negar-se a si mesmo é um desafio enfrentado pelos
negros e pelas negras brasileiros(as). (GOMES, 2005, p. 43).

Conforme salienta Gomes, a identidade é construída socialmente. O


negro africano e seus descendentes sempre tiveram sua imagem moldada
a partir de olhares discriminatórios: são selvagens, mentirosos, lascivos e os
espaços ocupados por eles na sociedade brasileira sempre foram espaços

22
de subalternidade. Nessa condição, Ponciá descarta a possibilidade de ter
condições de criar um filho, e se conforma dizendo que a vida para os negros
é difícil, dolorosa, a narradora sutilmente deixa entrever que a preocupação
da moça não era uma aflição de uma mãe qualquer, mas sim de uma negra
que teme criar um filho e ele, servir de matéria e número nos índices de
criminalidade que se alavancam a cada dia na sociedade brasileira.
Outrossim, a condição precária em que ela vivia também era questão a se
pensar no momento de dar um filho, e essa é também uma representação
da trágica condição de pobreza resultante do processo escravocrata
colonial e da ausência histórica de políticas públicas que poderiam
ocasionar a efetiva emancipação das pessoas escravizadas e de seus
descendentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao compor este trabalho literário, Conceição Evaristo retoma tempos


e histórias dolorosos da sociedade brasileira. Em sua escrita, marcas que
denunciam resquícios do regime escravocrata do período da pós-abolição.
A narrativa de Ponciá Vicêncio, nos permite refletir sobre o sofrimento de uma
parcela da sociedade que ainda hoje é marcada por preconceito e
violência, basta lançarmos um olhar no tempo, para percebermos as
consequências traumáticas que são provenientes de um período histórico do
país, rastros do período escravocrata que perdurou por mais de três séculos
no Brasil. Na insistente busca da protagonista por sua identidade, Ponciá
representa no romance, um elo entre a história, carregando as marcas da
escravidão, do preconceito e da marginalidade social, e revive/resiste ao
tempo mantendo a memória coletiva dos afrodescendentes e da sociedade

23
como um todo, e em seu estado miserável de subalternidade, ela representa
grande parte das mulheres negras do Brasil, que bradam pela sobrevivência,
resgatam e reinventam a própria identidade.

Em um contexto amplo, há a possibilidade de leitura da trajetória de


Ponciá, aliada àquela proposta de Paul Gilroy que compreende e explicita
o signo de diáspora. Para ele, as “rupturas do exílio, da perda, da brutalidade,
do stress e da separação forçada” provocadas pela diáspora se relacionam
com “a alienação natal e o estranhamento cultural” (GILROY, 2012, p. 20),
apesar da coragem, do impulso ter vindo da personagem, por si só, o destino
dela não foi diferente daqueles que foram compelidos à travessia do oceano
rumo às Américas, Ponciá personifica os negros em geral. Como bem a
própria autora afirme no prólogo desta obra: “A nossa afinidade (Ponciá e
eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes
meu nome é trocado pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom
grado” (EVARISTO, 2018, p. 08), pois que, a violência, o preconceito, o
racismo e o sentimento de processo inconcluso dos negros e seus
descendentes na sociedade brasileira, são confirmações reais e atuais.

Desta forma, Conceição Evaristo ao escrever esse romance, faz da


escrita reduto de resistência e instrumento de luta política ao se assumir esse
sujeito de enunciação ao mesmo tempo individual e coletivo representante
do povo negro, além de, como bem apontou o professor Eduardo de Assis
Duarte: Essa presença do passado como referência para as demandas do
presente confere à escrita dos afrodescendentes uma dimensão histórica e
política específica.” (DUARTE, 2006, p.306), com dimensão histórica, pois
permite um retorno ao passado, à história do Brasil em sua constituição; e
dimensão política, na medida em que aponta para o futuro, para a reescrita
do passado tendo como impulso a tomada de consciência do presente.

24
REFERÊNCIAS

ARRUDA, A. A. “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman


feminino e negro. Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. Disponível em:
http://hdl.handle.net/1843/ECAP-76RF2H Acessado em: 25 de jun 2021.

BASTIDE, Roger. As Américas Negras: as civilizações africanas no Novo


Mundo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro/Edusp, 1974.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com


o espírito. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras,


1992.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1979.

CUTI, [Luís Silva]. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo negro, 2010.

DIONÍSIO, Dejair. Ancestralidade bantu na literatura afro-brasileira: reflexões


sobre o romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. Belo Horizonte:
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DUARTE, Eduardo de Assis (org.). Literatura e afrodescendencia no Brasil:


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EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-


brasilidade. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado/PUC, 1996.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Edição Especial. Belo Horizonte:


Pallas, 2017.

25
GALLAGHER, Catherine. “Ficção”. In: MORETTI, Franco (org.). A cultura do
romance. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naif, 2009, p. 629-658.

GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência.


Tradução de Cid Knipel. 34. ed. São Paulo: Rio de Janeiro: Universidade
Candido Mendes – UCAM, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre


relações raciais no Brasil: uma breve discussão. BRASIL. Ministério da
Educação (Org.). Educação anti-racista: caminhos abertos pela lei Federal
nº 10.639/03. Brasília: SECAD, 2005.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de


Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2014.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. (Trad.) Beatriz Sidou. São Paulo:


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LITLE, Paul E. Espaço, memória e migração: por uma teoria da territorialização.


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MATOS, Ralfo. Migração e urbanização no Brasil. Geografias – artigos


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ROSSI, Paolo. O passado, a memória e o esquecimento. Trad. de Nilson Moulin.


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SOUZA, Florentina. Cadernos Negros: Literatura afro-brasileira? In: ______.


PEREIRA, Edimilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos: estudos
sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: 2010.

26
AFRICANISMOS NO MARACATU DE ASCENSO FERREIRA

Odailta Alves Silva2

Resumo: Não é à toa que a palavra maracatu é internacionalmente associada ao Estado


de Pernambuco, pois, na região, há mais de dois séculos, essa manifestação, rica em música
e dança, ganha força e traz à memória a resistência dos povos negros que foram trazidos
para esse Estado. O poema Maracatu, do autor pernambucano, Ascenso Ferreira, ilustra
com perfeição a força da cultura negra presente no Estado. Dono de um dos principais
portos do Brasil, Recife recebeu milhares de pessoas escravizadas do continente africano,
violentamente exploradas em prol do desenvolvimento da economia e da cultura local.
Diante do grande quantitativo de escravizados, não é de se estranhar a forte influência
africana na cultura pernambucana e também na língua. A antropóloga Lélia Gonzalez
(1988, p. 70) afirma que a influência das línguas africanas no Português do Brasil deu origem
ao “pretuguês”. Castro analisa que apesar da inegável importância dessa influência, “em
geral, a repercussão, no meio científico, das poucas contribuições linguísticas no âmbito dos
estudos afro-brasileiros correspondem a menos do que seu valor real” (2005, p. 16). A fim de
contribuir com as pesquisas voltadas para esse tema, analisaremos a influência africana no
vocabulário e na temática utilizada por Ascenso Ferreira no poema Maracatu. Como
resultado, constatamos a ocorrência de oito palavras de origem banto, a saber “zabumba”,
“bombo”, “batuque” entre outros. Esses termos são utilizados para reverenciar a cultura
negra e a cidade de Luanda, em sua maioria são palavras muito conhecidas e utilizadas
pelo povo pernambucano em contextos musicais.

Palavras-chave: África, Pernambuco, língua, maracatu, Ascenso Ferreira

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa investiga a influência africana no português do Brasil,


para tal, teremos como corpus o poema Maracatu, presente no livro
Catimbó, de Ascenso Ferreira, a fim de identificar e analisar os africanismos
utilizados, observando a construção de sentido dentro do texto e o uso
desses vocábulos na cidade do Recife. A escolha do corpus justifica-se pelo
fato de Ascenso Ferreira ser um dos autores pernambucanos que mais
contempla o vocabulário de origem africana em seus textos.

2 Mestra em Letras (UFPE), Professora da SEDUC-PE

27
Nossa pesquisa estará calcada nos postulados de Nei Lopes (2006),
Yeda Pessoa de Castro (2002 e 2005), Cunha-Henckel (2005); Lélia Gonzalez
(1984); Mendonça (1934) e Raimundo (1934). Gonzalez analisa a influência
africana no português popular do Brasil e constata que “aquilo que chamo
de ‘pretoguês’ e que nada mais é do que marca de africanização no
português falado no Brasil”. Castro, além de mostrar a presença de palavras
de origem africana no vocabulário baiano e brasileiro, fornece-nos um
estudo bastante aprofundado sobre o percurso histórico dessa influência;
Henckel desenvolve pesquisas sociolinguísticas dos Africanos no Brasil a fim
de respaldar seu estudo sobre a presença de africanismos na obra de José
Lins do Rego; e Mendonça pontua a influência africana em diversas áreas
do português do Brasil.

Poucas são as pesquisas voltadas para essa temática e, em


Pernambuco, são quase inexistentes, tendo em vista que pouco se discute
sobre a influência africana no dialeto falado no Estado pernambucano.
Nesse pequeno grupo, ganha destaque o importante trabalho de Rosa
Cunha-Henckel, Tráfico de Palavras, que, como já foi dito, pesquisa os
bantuísmos na obra de José Lins do Rego.

Antes de partirmos para a análise propriamente dita, estudaremos um


pouco o contexto histórico e sociolinguístico brasileiro e pernambucano, na
época do tráfico negreiro. Para entender assim, como se deu a influência
africana na língua portuguesa e também uma breve biografia de Ascenso
Ferreira.

28
2 METODOLOGIA E REFERENCIAL TEÓRICO

A presente pesquisa tem um caráter quali quanti, tendo em vista que


levantará a quantidade de palavras de origem africana no poema
“Maracatu”, de Ascenso Ferreira. Para tal, as origens das palavras foram
verificadas no dicionário Banto, de Ney Lopes, e no vocabulário nagô
presente nas obras de Yeda Pessoa de Castro. Também se analisou a
construção de sentido desses vocábulos dentro do poema. Antes da análise
propriamente dita, foi desenvolvida um levantamento bibliográfico sobre as
pesquisas(as) acerca da influência africana no português do Brasil, traremos
abaixo, alguns pontos importantes para maior compreensão acerca da
temática.

2.1 OS AFRICANOS E O TRÁFICO DE PALAVRAS

Na Europa, o sequestro e comércio de africanos teve início quase meio


século antes da invasão ao Brasil, tendo como sede Portugal. De acordo com
Inês de Matos, os primeiros 235 negros escravizados do continente africano
chegaram a Lagos, Sul de Portugal, em 1444, e, por volta de 1550, 10% da
população já era formada por negros, poucos anos depois, esse percentual
já subia para 20% (MATOS, 2019). Todos esses números nos ajudam a
compreender a grande influência exercida pelas línguas africanas, desde as
terras portuguesas, como podemos observar com a presença da palavra
inhame, originariamente africana, na carta de Pero Vaz de Caminha: “E não
comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e
frutos”.

29
A data inicial do tráfico de pessoas africanas para o Brasil, assim como
o exato número de negras e negros trazidos para o nosso país no período da
escravidão, é imprecisa, uma vez que, em 1891, os arquivos da escravidão
foram queimados, sob a ordem do Ministério da Fazenda, destruindo assim a
maioria dos dados oficiais sobre a quantidade de negros trazidos no período
do tráfico transatlântico - do século XVI ao século XIX e também ressalta-se o
fato de muitas pessoas escravizadas terem entrado no Brasil de maneira ilegal
após a proibição do tráfico. Dessa forma, o número varia de acordo com o
pesquisador: Castro (p. 01), no artigo Das línguas africanas ao português
brasileiro, calcula entre quatro/cinco milhões, já Cardoso e Cunha (1970, p.
243) estimam que o número chegue a sete milhões. Com toda essa
quantidade de pessoas africanas trazidas para o Brasil, não deveria
surpreender a grande influência que as línguas desses povos exerceram no
português, entretanto, esse fenômeno ainda é algo ignorado da maioria e
menosprezado por outros. A antropóloga Lélia Gonzalez critica essa postura
discriminatória e apresenta-nos alguns elementos das línguas africanas que
influenciaram os nossos falares populares no Brasil:

Engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é


Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala
errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l,
nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual
o l inexiste. Afinal, quem é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o
maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos
verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não
sacam que estão falando pretuguês. (GONZALEZ, Lélia, 1984, p.238)

Segundo Castro (2002, p. 39), os negros traficados para Brasil, durante os


quatro séculos de escravidão, originavam-se de duas regiões subsaarianas:

30
a) o domínio banto, toda a extensão abaixo da linha do Equador,
englobando os seguintes países: Camarões, Gabão, Congo-Brazaville,
Congo-Dinshasa, Angola, Namíbia, África do Sul, Zâmbia, Botsuana,
Uganda, Ruanda, Burundi, Moçanbique, Tanzânia, Zâmbia, Botsuana,
Uganda, Ruanda, Burundi, Moçambique, Tanzânia, Zimbábue, Quênia,
Lesoto, Malavi;
b) a África Ocidental, que vai do Senegal à Nigéria, no Golfo de Benim,
compreendo, geograficamente, além desses dois países, Gâmbia,
Guiné-Bissau, Guiné Gonakry, Serra Leoa, Libéria, Burquina-Fasso,
Costa do Marfim, Gana, Togo e Benim.

Três povos litorâneos do grupo banto tiveram destaque no período da


escravidão pelo contato longo e direto que tiveram com os portugueses e
pela superioridade numérica em terras brasileiras: os bacongos e os
ovimbundos e os ambundos:

Bacongo - localizado no território correspondente aos limites do Reino


do Congo, dessa região saíram os primeiros negros escravizados em direção
à Lisboa. Esses africanos eram falantes do quicongo, “denominação
principal para inúmeros dialetos bantos falados na República Popular do
Congo, na República Democrática do Congo, ex-Zaire e no norte de Angola.”
(HENCKEL, 2005, p. 47).

Ovimbundo - localizado nas províncias de Bié, Huambo e Benguela, ao


Sul da Angola. Os povos que ali viviam eram falantes do umbundo, uma
língua falada por três milhões de pessoas, “através das atividades comerciais,
a língua se propagou no século XIX como língua veicular em todo sudoeste
de Angola e no interior ao longo da rota comercial” (HENCKEL, p. 46). No
Brasil, os africanos traficados dessa região exerceram maior importância nos
estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.

Ambundo - localizados na região central da Angola. Essa região tinha


como língua oficial o quimbundo, conhecida antigamente como ambundu,
bundu e língua bunda, “foi das línguas bantos a que primeiramente foi

31
conhecida na Europa e a primeira a ser escrita e estudada pelos missionários
portugueses que evangelizaram o reino de Angola nos séculos XV e XVI”
(HENCKEL, P. 46). O quimbundo foi a língua que exerceu maior influência no
português do Brasil, inclusive no Estado de Pernambuco. Na região central
de Angola, o tráfico teve início no século XVII, após a decadência do Reino
do Congo.

Com relação aos povos da África Ocidental, os oeste-africanos ou


sudaneses, destacaram-se por preponderância numérica os de língua nagô,
também conhecida por iorubá. Apesar do maior número de negros no Brasil
ser do grupo banto, as tradições dos grupos sudaneses, como os nagôs,
deixaram grandes e fortes heranças africanas para a cultura brasileira. A
maioria dos povos sudaneses foi levada à Bahia, o que justifica a distinção
negra desse Estado em comparação a outras localidades do país. Dessa
língua foi herdado a maior parte do vocabulário das religiões de matrizes
afro-brasileira, Oxum, Xangô, Iansã, ebó; e da culinária baiana, acarajé,
vatapá, abará.

2.2 OS AFRICANOS EM PERNAMBUCO

Em 1648, o padre Antônio Vieira, em uma de suas célebres frases,


afirmou: “Sem negro não há Pernambuco”. Possuidor, junto com Salvador e
Rio de Janeiro, de um dos principais portos do Brasil, Recife recebeu milhares
de pessoas escravizadas da África, exploradas em nome do
desenvolvimento da economia e da cultura do Estado. De acordo com
Siebert (1998, p. 46):

32
Em 1630, a indústria açucareira em Pernambuco estava no auge.
Havia cerca de 140 engenhos espalhados desde Alagoas até a
Paraíba. Os senhores de engenho viviam no luxo e possuíam muitos
escravos. A população já passava de 3.000 pessoas, sem contar com
os escravos índios e negros.

Sob o domínio de Duarte Coelho, em 1539, o estado pernambucano


recebeu a primeira leva de escravizados(as) negros(as), vindo da Guiné. A
partir de 1559, os donos dos engenhos de Pernambuco obtiveram
autorização do governo de Portugal para adquirir escravizados(as) vindos do
Congo, ou outra região da África. Os(as) negros(as) trazidos para o Estado
eram basicamente do grupo banto, falantes do quimbundo, no entanto, ao
contrário do que pesquisadores como Sílvio Romero e João Ribeiro
divulgaram, essa região recebeu também negros sudaneses. Em 1648,
Henrique Dias escreveu uma carta aos holandeses descrevendo as origens
dos negros presentes numa embarcação com o trajeto África-Pernambuco:

De quatro nações se compõem este regimento: minas, ardas,


angolas e crioulos; estes são tão malévolos que não temem nem
devem; os minas tão bravos, que aonde não podem chegar com o
braço, chegam com o nome; os ardas tão fogosos, que tudo querem
cortar de um só golpe; e os angolas tão robustos que nenhum
trabalho os cansa. Considerem agora se romperão a toda Holanda
homens que tudo romperam. (apud, RODRIGUES, 1935/2008, p. 44).

A presença nagô em Pernambuco é observada atualmente nos


terreiros de candomblé do estado, essa prática teve início no século XVII,
com a vinda dos escravizados sudaneses para o Estado, o terreiro mais antigo
em atividade é o Obá-Ogunté, conhecido como Pai Adão, localizado em
Recife. O censo do IBGE, de 2000, apresentou um quantitativo de 12.988
pernambucanos declarados umbandistas ou candomblecistas, ocupando a
quarta posição entre as religiões mais seguidas no Estado. Esse número, em

33
função da predominância banto (e não nagô) na época do tráfico,
representa apenas 0,16% da população pesquisada, ficando muito aquém
do Estado da Bahia, local onde as religiões afro-brasileiras predominam.

As palavras nagôs circulam no Estado de Pernambuco dentro dos


terreiros de candomblé e umbanda, a saber: “Xangô”, “Oxum”, “Iansã” e
“Iemanjá” (entre outros) e na culinária importada do Estado da Bahia,
basicamente: “acarajé” e “vatapá”. Em Pernambuco, o racismo linguístico
ainda é muito forte, o que potencializa a discriminação com as palavras
voltadas para a religiosidade afro, nesse sentido, é muito comum ouvir “Deus
te acompanhe”, mas se um candomblecista responder “Exu te acompanhe”,
certamente será vítima de racismo.

Assim como em grande parte do Brasil, ao chegar a Pernambuco, os


negros eram separados de suas famílias e de outros africanos pertencentes
ao mesmo grupo lingüístico. O objetivo dos senhores de engenho era evitar
a comunicação entre os escravos, a fim de enfraquecer a resistência.
Houaiss (1985, 71) nomeou essa prática de “glotocida”, pois, sem ter com
quem conversar em sua língua materna, o(a) negro(a) era obrigado(a) a
aprender o português para se comunicar com os brancos, aprender a língua
geral para interagir com seus iguais e esquecer a língua de origem.

Os negros bantos trazidos a Pernambuco, além de toda força e


tamanha diversidade cultural, também trouxeram um grande número de
termos do quimbundo, que pelo longo tempo de contato com a língua
portuguesa, foram adotados e circulam diariamente no vocabulário dos
moradores do Estado, sem que estes se deem conta. Alguns bantuísmos
estão associados ao regime da escravidão: “senzala”, “mucama” e
“bangüê”; mas a maioria está completamente integrada ao sistema
lingüístico do português, formando derivados portugueses, a partir de um

34
mesmo radical banto: “xingamento”, “bunda-mole”, “esmolambado”,
“sambista”, “quitandeiro”, “caçulinha”, “zabumbeiro”.

A força das línguas africanas foi tão grande que verificamos casos de
palavras portuguesas que, deixadas de lado, foram substituídas por termos
africanos de sentido equivalente, introduzidos na língua. Em Pernambuco,
constatamos uma divisão nesse processo de substituição: algumas foram
plenamente substituídas, tornando-se arcaísmos portugueses, independente
de classe social e de escolaridade, essas palavras não circulam em nenhum
contexto do Estado: “giba”, “benjamim” “óleo-palma”, “sinete”, em seus
lugares, utilizamos os africanismos: “corcunda”, “caçula”, “dendê” e
“carimbo”, respectivamente. Por outro lado, algumas substituições
ocorreram apenas na linguagem informal, não chegando ao nível de
arcaísmos portugueses, uma vez que ainda são utilizadas em situações
formais, é o caso de: “nádegas”, “vespa” e “aguardente”; popularmente
conhecidos por: “bunda”, “marimbondo” e “cachaça”.

2.3 ASCENSO FERREIRA, O POETA DE LETRAS PRETAS

Nasce o poeta em 09 de maio de 1895, na cidade de Palmares. Filho


de um comerciante e uma professora, foi registrado com o nome de Aníbal
Torres. A infância desse “filho da professora metido a poeta”, como era
conhecido nos primeiros versos, foi muito carente: estudou o curso primário,
com bastante sacrifício, tendo sua mãe, dona Maricas, como a única mestra.
Aos treze anos, começa a trabalhar como balconistas e, aos dezesseis,
publica seu primeiro soneto “Flor fenecida”, no jornal “A Notícia”, de
Palmares. Aos vinte e três anos, muda o nome de registro para Ascenso
Carneiro Gonçalves Ferreira. Um ano depois, instala-se em Recife, onde casa-

35
se e começa a escrever para os jornais da cidade. Publica também Catimbó
e Cana Caiana.

Em 1934, o poeta participa do Congresso Afro-Brasileiro, realizado no


Recife, sob inspiração de Gilberto Freyre. Ascenso Ferreira trouxe de berço
ideias abolicionistas, sofreu perseguições e ameaças de prisão, mas nada
calou sua revolta contra o desrespeito que o negro e o nordestino sofriam na
época. No entanto, os poemas de Ascenso não são de cunho panfletário,
neles não encontramos protestos explícitos, gritos de sofrimentos dos
explorados ou pedidos de ajuda e de igualdade, temos o negro em sua mais
bela expressão cultural e religiosa.

Em 1951, lança, no Rio de Janeiro, a edição de luxo de Poemas,


reunindo textos de Catimbó, Cana Caiana e Xenhenhém. Com trinta e
quatro anos, em sua primeira viagem a São Paulo, para o lançamento da
segunda edição de Catimbó, Ascenso realiza um recital, no qual é
aplaudidíssimo por artistas e intelectuais paulistas como Anita Malfatti, Tarsila
do Amaral e Oswald de Andrade.

Nos livros de Ascenso, os afro-descendentes são figuras marcantes. Ao


lermos grande parte dos poemas do autor de Catimbó, observamos o vasto
universo de palavras de origem africana, não só de origem banto, mas
também ioruba, uma vez que é comum nos textos desse poeta a presença
da religião afro-brasileira, dessa forma, em muito de suas produções,
observamos expressões e nomes de entidades do Candomblé.

Ascenso era o grande recitador dos seus poemas, encantava a todos


que o ouvia, e a cada dia aumentava o número de pessoas que passavam
a ouvi-lo nos botecos, encontros literários e teatros do Recife e do Brasil, por
esse motivo construiu-se o equívoco de que a poesia de Ascenso era para
ser ouvida e não lida (CORREYA, 1998, p. 33). Infelizmente, hoje não temos

36
mais a voz de Ascenso e também não adquirimos o hábito de ler as poesias
desse grande autor.

3 ANÁLISE DOS AFRICANISMOS NO POEMA MARACATU

Nesse capítulo, analisaremos os africanismos presentes no poema


Maracatu, do primeiro livro de Ascenso Ferreira, Catimbó. Nessa análise,
apresentaremos trechos do poema estudado e os conceitos desses termos
presentes no Novo Dicionário Banto do Brasil e em outros dicionários do país,
também confrontaremos com estudos de pesquisadores sobre o tema, como
Renato Mendonça, por fim, analisaremos o provável sentido que Ascenso
pretendeu atribuir a cada africanismo presente no texto e como essas
palavras circulam atualmente no Estado de Pernambuco.

Antes de iniciarmos o estudo das palavras africanas em Maracatu,


daremos uma atenção especial ao africanismo que intitula o primeiro livro
do autor: Catimbó. De acordo com Mendonça (1973, p. 129), catimbó é um
“termo africano (...) palavra comumente usada no Nordeste para designar o
culto afro-brasileiro, também conhecido por candomblé (Bahia) e por Xangô
(no Recife)”. Lopes define como um bantuísmo que significa “feitiçaria, baixo
espiritismo (...)”(1942/2006, p. 73). Em pernambucano, é muito freqüente o
uso da palavra catimbó por pessoas das classes sociais mais desfavorecidas
e também por indivíduos que não compartilham nem respeitam a religião
afro-descendente, geralmente utilizando-a com tom pejorativo. Em sua
maioria, as pessoas adeptas à religião afro-descendente utilizam no Estado
o termo Xangô. Não é à toa que Ascenso batiza seu livro com esse nome,

37
muitos dos poemas presentes contemplam o universo negro, a cultura e
religiosidade dessa raça.

No poema Maracatu, o africanismo também se encontra logo no título.


O Aurélio- Século XXI refere-se ao maracatu como um termo possivelmente
africano, um “Cortejo carnavalesco que baila ao som de instrumentos de
percussão, acompanhando uma mulher que conduz uma bonequinha
ricamente enfeitada, a calunga, na extremidade de um bastão, música
popular inspirada na dança”. Lopes fornece-nos uma longa definição para
esse termo:

s.m. (1) Dança dramática afro-brasileira. (2) Música popular inspirada


nessa dança (BH)- B. Rohan viu origem talvez ameríndia; Macedo
Soares afirmou ser tupi-guarani; Nascentes atribuiu possível origem.
“Segundo o museu do Dungo, Angola, o nome maracatu designa
até hoje uma dança praticada pelos Bondos, grupos étnico
localizado entre os rios Cuango, Lui e Camba” (Guerra-Peixe, 1981:
28). Para nós parece-nos tratar de onomatopeia de base banta,
imitativa dos ritmos da caixa e taróis usados no folguedo. Veja-se em
abono a esta ideia, este trecho de coco nordestino citado em
Ramos, em 1954:89: “No tempo de meu marido, mariquita,/ Era um
saco de farinha assim/ Agora que não tenho ele, Mariquita,/ É um
saco de farinha assim./ Atum, maracatumba, tumba, tumba...” E
nessa “maracatumba”, assinala Ramos, “a origem banta é quase
comprovada.

O maracatu é um ritmo de dança e música muito difundido em


Pernambuco, onde encontramos em duas vertentes: o Maracatu Rural e o
Maracatu Nação. O Rural, também chamado de maracatu de baque solto,
é uma manifestação folclórica originalmente pernambucana, com homens
vestidos como caboclos portando lanças, a dançar um ritmo solto nascido
da percussão e instrumentos de sopro. Esses caboclos de lança encontram-
se na Zona da Mata Pernambucana e durante todo ano é possível vê-los
caracterizados; de maioria negra, essas pessoas trabalham na agricultura e,

38
no período carnavalesco, desfilam por todo o Estado. O Maracatu Rural mais
antigo do Estado é Cambinda Brasileira, fundado em 1898, ainda
permanece na sede de origem, Engenho do Cumbi, Nazaré da Mata.

O Maracatu Nação, também conhecido como maracatu de baque


virado, encontra-se dentro do conceito apresentado acima pelo Aurélio.
Com cedes em diversas regiões urbanas e rurais do Estado, esse maracatu
também traz em seus desfiles a maioria dos integrantes da raça negra, a
dançar no ritmo da percussão. O Maracatu Nação surgiu da tradição do Rei
do Congo, o registro mais antigo em Pernambuco data de 1711, na cidade
de Olinda. Muitos desses maracatus mantêm relação com o candomblé; o
maracatu de baque virado mais conhecido é o Nação Pernambuco.

No texto Maracatu, encontramos oito bantuísmos do quimbundo:


zabumbas, bombos, batuques, ingonos, banzo, ganzás, Loanda e Maracatu.
Ao utilizar esses termos, o poeta, ao mesmo tempo que descreve o ritmo do
maracatu e suas origens africanas, também cria um poema cheio de música
e de alma negra.

Zabumbas de bombos

Estouros de bombas

Batuques de ingonos

Cantigas de banzo

Rangir de ganzás

Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?(...)

A palavra zabumba, de acordo com o Novo Dicionário Banto do Brasil,


refere-se à pacanda, tambor grande, bombo, “no quicongo e no umbundo:

39
mbumba, bater. A acepção de pancada” (p. 227). No texto, Ascenso lista
vários instrumentos de uso africano e cria uma cadência poética. Por se
tratar de um instrumento também muito utilizado em outros ritmos
pernambucanos (forró e afoxé, por exemplo), a palavra zabumba e seus
derivados circulam com muita freqüência entre os moradores do Estado:
“zabumbeiro” (tocador de zabumba), “zabumbar” (tocar zabumba),
“zabumbada” (ato ou efeito de zabumbar).

Outro instrumento utilizado por Ascenso para reverenciar Luanda é o


bombo, de acordo com Lopes, refere-se à “mandioca seca (YP), (...)‘Bombó,
T. de Angola. Tubérculo de mandioca, fermentado e enxuto que, pisado
num pilão, produz a farinha”, Hoauiss o coloca como sinônimo de zabumba
e o define como “tambor cilíndrico de fuste de madeira e membrana nas
duas extremidades, executado pendurado no ombro esquerdo (...) ETIM prov.
it. bombo 'ribombo, estrondo', do lat. bombus,i 'zumbido, ruído, barulho”. No
texto, Ascenso o utiliza em forma de adjetivação da zabumba: zabumba de
estrondo, ruído, barulho. O bombo é um dos instrumentos mais populares em
Pernambuco, para os leigos, consiste num nome genérico atribuído a todo
instrumento de percussão que usa baqueta.

O vocábulo batuque, originário do quimbundo, é utilizado no poema


de Ascenso no sentido usual do estado de Pernambuco, como “barulho”,
“som”, no verso, “batuque de ingono”, entendemos: “barulho do ingono”.
Variações desse termo também são utilizadas em Pernambuco: batuqueiro,
batucar, batuqueira, batucagem. Lopes fornece-nos uma ampla definição
para batuque :

BATUQUE, s.m. (1) Designação comum a certas danças afro-


brasileiras. (2) Batucada. (3) O ato de batucar (BH). (4) Culto religioso
afro-gaúcho – Etimologia controversa. Para Nascentes, é deverbal
de bater. Para Ribas (1979: 214) trata-se de ‘fusão deturpada da

40
expressão quimbunda bu-atuka (onde se salta ou se pinoteia)”.
Raymundo (1933:106) escreve: ‘É bailado originário de Angola e do
Congo, mas, em que pese a opinião do Cardela Saraiva, não lhe
chamavam os negros batuque, mas os portugueses; a dança é feita
com cantos em que entra a expressão kubat’ uku, nesta casa aqui.
Daí proveio batucu, alterado em batucum e batecu, já por influência
do verbo português bater.” Cf., no quimbundo, o verbo tuka, saltar.
Teríamos, então, uma etimologia para a dança, outra para o ato de
percutir o tambor?

A palavra ingono, de vaga definição no Houaiss, é apresentada por


Lopes como tambor grande utilizado nos Xangôs, “encourado de um só lado
e batido com as duas mãos”, é nesse sentido que o poeta pernambucano o
utiliza em seu texto, exatamente como os pernambucanos o conhecem:
instrumento musical de percussão. A palavra ingono é praticamente
desconhecida dos pernambucanos, ficando restrito aos percussionistas.

No poema Maracatu, a única palavra africana que não se refere à


música é banzo, derivado do verbo ‘banzar’ que significa ‘surpreender’,
‘espantar’, ‘pasmar’ (Houaiss). Esse vocábulo não é utilizado no Estado de
Pernambuco, de acordo com Mendonça, é mais encontrado nas obras
literárias, como, por exemplo, no texto Histórias e Paisagens, de Afonso Arinos:
“Um ou outro insone, vigia com os olhos arregalados, a banzar da vida,
ouvindo os grilos e os vagos rumores do ermo.” (1935 p.125). No poema
“Maracatu”, o verbo banzo, precedido da preposição ‘de’, forma uma
locução adjetiva que caracteriza as “Cantigas”, “Cantigas de banzo”,
podemos interpretar como: ‘cantiga de espanto’, espanta pela
grandiosidade ou ‘cantiga de tristeza ou lembrança de Luanda’. Lopes
apresenta três definições para o vocábulo banzo:

BANZO [1], s.m. (1) Nostalgia mortal que acometia negros africanos
escravizados no Brasil./// (2) adj. Triste, abatido, pensativo. (3)
Surpreendido, pasmado; sem jeito, sem graça (BH). Do quincongo

41
mbanzu, pensamento, lembrança; ou do quimbuno mbonzo,
saudade, paixão, mágoa.

A penúltima palavra analisada no poema diz respeito a um instrumento


musical, ganzá. Uma espécie de chocalho de folha-de-flandres e de formas
variadas, conhecido em algumas regiões como xeque-xeque, reco-reco ou
amelê (Aurélio- Século XXI). Esse vocábulo também aparece no poema “A
casa-grande de Megaípe”, do livro Cana Caiana: mandou Mestre
Carnaúba/ fazer um samba bem marcado/ a fim d’ela cantar alegre/ ao
som dos ganzás (...) (1995, p. 83). Os dois textos de Ascenso apresentam o
contexto de músicas afro brasileiras: no primeiro, o ‘maracatu’, no outro, o
‘samba’. Dentro deles, a palavra ganzá é usada no sentido denotativo,
referindo-se ao instrumento musical. No estado pernambucano, assim como
o ingono, o ganzá também não é um instrumento muito conhecido.

O último africanismo encontrado no texto “Maracatu” é Loanda, uma


variação de “Luanda”, a capital da República de Angola, no passado
chamada de Loanda. Nesse poema, o vocábulo encontra-se num estribilho
e é repetido doze vezes. Loanda aparece como um vocativo, é chamada
por um eu-lírico saudoso de sua terra natal. O vocábulo Loanda também
está presente num estribilho, repetido quatro vezes, no poema “Branquinha”,
do livro Cana Caiana: - “Adeus, mamãe de Loanda!”/ - “Adeus, meu filho
Nogueira!” (1995, p. 69). Infelizmente a palavra Loanda/ Luanda só é
geralmente pronunciada superficialmente nas aulas de História e Geografia
ou nos terreiros de Xangõ do Estado.

Os africanismos encontrados no poema Maracatu são bantuísmos, em


sua maioria, relacionados à musicalidade herdada dos escravos negros, que,
atualmente, ganham vida no Estado de Pernambuco por meio dos

42
maracatus, afoxés, terreiros de umbanda ou candomblé e nos versos de
escritores como Ascenso Ferreira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O português falado no Brasil foi fortemente influenciado pelas línguas


africanas, principalmente a do grupo banto. Em Pernambuco, tivemos um
número maior de negros vindos de Angola, fator responsável pela
predominância da influência do quimbundo na região, no entanto, também
encontramos elementos nagôs no uso do português local.

Heranças africanas são visivelmente encontradas nos textos do poeta


pernambucano, Ascenso Ferreira. No poema Maracatu, identificamos oito
bantuísmos, que conferem ao texto uma cadência e força poética:
zabumbas, bombos, batuques, ingonos, banzo, ganzás, Loanda e Maracatu.
Nos versos, percebemos a voz negra a exaltar Loanda (Luanda).

Analisamos também a presença desses africanismos no cotidiano do


pernambucano, constatando que a maioria é de uso praticamente restrito
aos músicos percussionistas por se tratar de instrumentos musicais, tendo
como mais populares o bombo e a zabumba. A palavra maracatu é
bastante conhecida entre os pernambucanos por se tratar de uma
manifestação cultural bastante difundida na região. Dentre os africanismos
estudados, batuque é o único que circula por diversos contextos no Estado,
referindo-se a qualquer tipo de batida e não apenas as de instrumentos
musicais.

A presença de africanismos, na obra de Ascenso, confere aos textos


desse poeta um caráter especial, pois além de trazer o universo afro-
descendente nos seus poemas, ele também nos apresenta um grande

43
número de palavras de origem africana. Esse fator foi determinante para a
escolha da obra desse autor como corpus da nossa pesquisa.

Acreditamos que o estudo aqui desenvolvido, unido ao de Henckel,


servirá como ponto de partida para que outros pesquisadores
pernambucanos busquem conhecer essa rica contribuição linguística que a
África nos presenteou. Entendendo que essas influências “não fazem parte
apenas de uma lista de lexemas, mas constituem, antes, uma maneira de
conceituar, de categorizar a realidade, cuja presença se observa até
mesmo quando nenhuma forma linguística africana pode ser identificada”
(FIORIN; PETTER, p. 09, 2008).

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Roberto. A África está em nós. João Pessoa: Editora Grafset, 2004.

CARDOSO, Wilson; CUNHA, Celso. Português através de textos. Minas Gerais:


Editora Bernardo Alves, 1970.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia:¨um vocabulário afro-


brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/ Topbooks Editora,
2001.

CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em


Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro (Coleção
Mineiriana), 2002.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Das línguas africanas ao português brasileiro.


Disponível em: http//www.revista.iphan.gov.br/matéria.php?id=214 Acesso
em ago. 2010.

44
CASTRO, Yeda Pessoa de. Influência da línguas africanas no português
brasileiro. Disponível em :
http//www.smec.salvador.ba.gov.br/documento/línguas-africanas.pdf
Acesso em ago. 2010.

CORREYA, Juareiz. Ascenso Ferreira: o Nordeste em carne e osso. Recife:


Associação de Imprensa de Pernambuco, 1998.

CUNHA-HENCKEL, Rosa. Tráfego de palavras: Africanismos de origem banto


na obra de José Lins do Rego. Recife: Fundj. Ed. Massangana, 2005.

FERREIRA, Ascenso. Catimbó. Recife: FUNDARPE, 1988.

FIORIN, José Luiz; PETTER, Margarida. África no Brasil: a formação da língua


portuguesa. São Paulo: Contexto, 2008.

LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

MATOS, Inês. LISBOA DOS ESCRAVOS. Portal Geledés.


https://www.geledes.org.br/lisboa-dos-escravos/

MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil. 2ª ed. São


Paulo: Editora Nacional, 1935.

ANEXO:

MARACATU (Livro: Catimbó)

Zabumbas de bombos,

estouros de bombas,

batuques de ingonos,

cantigas de banzo,

45
rangir de ganzás...

- Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?

As luas crescentes

de espelhos luzentes,

colares e pentes,

queixares e dentes

de maracajás...

- Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?

A balsa no rio

cai no corrupio,

faz passo macio,

mas toma desvio

que nunca sonhou...

- Loanda, Loanda, aonde estás?

Loanda, Loanda, aonde estás?

(1988, p. 28)

46
APRESENTAÇÃO DO PROJETO DE PESQUISA: REPRESENTAÇÕES
CULTURAIS HISTÓRICAS DA ADOLESCENTE MÃE EM
DOCUMENTÁRIOS DO YOUTUBE

Ágata de Carvalho Ferreira 3


Claudete Cameschi de Souza 4

RESUMO: Neste artigo, apresenta-se o projeto de pesquisa, concentrado no campo da


Análise de Discurso, a partir da arqueogenealogia de Foucault(2002), enviesado a
perspectiva discursivo-desconstrutiva de Coracini (2007), que busca em Foucault(1970),
Derrida(2001) e Lacan(1954), suporte para as discussões pautadas pela ordem do discurso,
da arqueogenealogia de poder e saber, e da microfísica do poder, e o olhar da
desconstrução. Para traçar um panorama histórico social das formações discursivas
que constroem as relações de sentido que envolvem o dever e como deve ser a
constituição do sujeito adolescente que se depara com a maternidade antes de alcançar
a maturidade biológica estabelecida como ideal. O corpus constituinte para tal
problematização concentra-se na seleção de dois documentários protagonizados por e
para mulheres adolescentes, disponibilizados na plataforma online de domínio público do
Youtube, no qual serão descritos, recortados e analisadas as regularidades enunciativas,
produzidas pelos participantes do documentário, seus silenciamentos, ditos e não ditos,
para comprovar ou não, a hipótese cultural de que existe um apagamento histórico da
adolescência e uma adultização precoce direcionado às meninas, visto que os regimes de
verdade que regem a sociedade brasileira são pertencentes a formação discursiva do
Patriarcado, da Religião e da Saúde; que direciona os ensinamentos de prevenção a
gravidez diretamente para as meninas.

Palavras-chave: Análise do Discurso, Projeto de Pesquisa, Sujeito Adolescente Mãe.

3 Mestranda do Curso de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso


do Sul – UFMS/CPTL, ágata.carvalho@ufms.br.
4 Professora orientadora: Dra. Claudete Cameschi de Souza, discente do Programa de Pós

Graduação em Letras, na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – UFMS/CPTL,


claudete.souza@ufms.br.
Pesquisa fomentada pelo órgão institucional Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do
Ensino Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul – FUNDECT.

47
INTRODUÇÃO

Como justificativa da escolha do objeto de pesquisa, perante nosso


convívio com o grande número de sujeitos que foram mães na fase da
adolescência, situadas na região de Ilha Solteira SP e Três Lagoas MS, dentre
outras regiões em que visitamos, tivemos a oportunidade de conhecer e ouvir
relatos dos sujeitos que foram mães na fase da adolescência, estas nos
descreveram vivências e histórias de dor, luta, abandono do parceiro, dos
pais e da sociedade. Sobreviveram e criaram seus primogênitos por meio de
muita resistência.

Acreditamos que, não obstante a vivência desta pesquisadora, os


dados obtidos por meio do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, do
Ministério da Saúde, sejam de grande relevância para a constituição desta
pesquisa, visto que, além de ser uma questão de saúde pública, o
considerável número de adolescentes mães é pertencente a uma discussão
de cunho social, histórico e cultural. A importância desses fatores é marcada
por meio da linguagem. Esta é o principal veículo de comunicação do ser
humano, e é por ela que o sujeito se expressa e revela ou não sua luta, suas
vivências, sua arte e sua sobrevivência. Como também as condições de
produção que regulam seu espaço, e podem contribuir para o processo
identitário deste sujeito, os ditos e não ditos e as práticas discursivas que
estabelecem as relações de saber e poder presentes nestes arquivos digitais.

O corpus da pesquisa constitui-se de dois documentários midiáticos,


protagonizados por e para sujeitos mulheres adolescentes, disponibilizados
na plataforma online de domínio público do Youtube. O documentário de
curta-metragem “Eu, adolescente grávida”(2008) e a websérie “Gravidez na
adolescência”(2019). A justificativa de tais documentários como corpus de
pesquisa, é que ambos estão disponibilizados na plataforma online youtube,

48
de olhar central para o sujeito desta pesquisa (AM), gravados em momentos
sócio históricos estanques, seus enunciados ora podem se assemelhar, ora
distinguir-se.

Problematizaremos nesta pesquisa, como a frequente repetição do


ciclo da maternidade na adolescência acontece mesmo na ordem do
discurso da prevenção, pressupondo que os regimes de verdade regem e
organizam a sociedade (Foucault,1970), temos como hipótese cultural de
que existe um apagamento histórico da adolescência e uma adultização
precoce direcionado às meninas, visto que os regimes de verdade que
regem a sociedade brasileira são pertencentes a formação discursiva do
Patriarcado, da Religião e da Saúde; que direciona os ensinamentos de
prevenção a gravidez diretamente para as meninas.

Como objetivo geral, pretende-se problematizar e interpretar as


produções de sentidos nos dizeres de adolescentes mães, analisando nos fios
da memória discursiva, como é construída a identidade do sujeito
adolescente mãe.

Por meio da descrição e análise das regularidades dos enunciados


produzidos pelos participantes do documentário, analisaremos os principais
recortes que podem confirmar (ou não) que o regime de verdade
hegemônico, rege a ordem dos discursos e coloca o sujeito adolescente
mãe nas margens, e, ao mesmo tempo, as naturaliza, pois, ao criar as leis de
proteção à adolescência que especulamos não funcionar efetivamente no
que concerne a criação de decretos tardios de prevenção.

Desse modo, o número considerável de adolescentes mães presentes


na sociedade no tempo passado e no tempo atual, pode marcar a
ambivalência do jogo da hostilidade e da hospitalidade (DERRIDA, 2001) em
que hospedaria esse sujeito, por meio das leis de proteção, e ao mesmo

49
tempo a hostilizaria, por escancarar para os outros, aquilo que é tido como
tabu, a sexualidade e seu possível fruto, a maternidade.

Assim, exercer a maternidade na adolescência, é um comportamento


que pode ser visto na sociedade como vergonhoso, infame. A sociedade
pode se utilizar desse comportamento para prevenir/banir/colocar a
margem, este sujeito que se quer evitar. Entretanto, existiria algo que pode
vir a faltar, clivar este sujeito mãe na adolescência, pois, especulamos que,
mesmo com as medidas de prevenção, tal comportamento se encontra se
repetindo, de mãe para filha.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA(2019) a


adolescência se estabelece entre os doze aos dezoito anos de idade. É (ou
deveria ser), assegurado pelo Estado “todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei” assim, por
meio da materialidade da ordem jurídico-discursiva, é (ou deveria ser) dever do
Estado assegurar “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade
e de dignidade”.

Entretanto, existe uma fronteira virtual que pode vir a separar o sujeito
adolescente mãe deste enunciado da Lei de proteção ao adolescente. Os
documentários aqui a serem problematizados nos permitirão (ou não) a visão
da realidade social, das mazelas fronteiriças em que o sujeito adolescente
mãe, no campo das possibilidades, se encontraria e resistira.

1 PARA ENTENDER A MATERNIDADE NA ADOLESCÊNCIA

Moreira(2011), pautada na psicanálise freudiana, reflete a respeito do


desenvolvimento e crescimento humano, da concepção à puberdade, e

50
defende que a fase da adolescência é a quarta fase, é o final do
crescimento, que se encerra, ao contrário do que a lei do Estado prevê, aos
vinte anos de idade, logo, a fase adulta se inicia a partir dos vinte e um anos
de idade, compreendida pela autora como a “fase da maturidade”. É na
fase da adolescência que a puberdade eclode, os órgãos genitais maturam,
o prazer e o desejo sexual manifestam-se na adolescência, “além das
modificações físicas, ocorrem também as comportamentais”. Surgem “os
relacionamentos afetivos, o ficar e o namorar” que podem significar, para o
adolescente, “um caminho seguro pra o desenvolvimento afetivo e aquisição de
autonomia psíquica” . Ainda segundo Moreira é da infância a adolescência, que
“o individuo amplia as suas habilidades através de progressos físicos e mentais que
levam a maturidade”(MOREIRA, 2011.p.121).

Assim, o sujeito que ainda não possui a idade de vinte e um anos, a


fase da maturidade, encontra-se ainda na quarta fase, a adolescência. Seu
desejo sexual está aflorado, entretanto ainda necessita dos progressos físicos
e mentais para levá-lo a próxima fase. Ao engravidar antes de chegar a fase
da maturidade, o sujeito se inscreve, para o regime legislativo e para a
sociedade brasileira, como mãe adolescente, e atualmente, inserida no
grupo de risco à sua saúde e a de seu bebê, inscrevendo-a na maternidade
precoce – MM.

Almeida(2003) em sua pesquisa: “A maternidade na adolescência: um


desafio a ser enfrentado” traça o percurso histórico social do fenômeno da
maternidade na adolescência. Aponta que, no final da década de 40, tal
fenômeno passou a ser definido como um problema de saúde pública e
tornou-se objeto de interesse generalizado na área de saúde. Os fatores que
contribuíram foram: o aumento na população de adolescentes após a
Segunda Guerra Mundial; a participação dos jovens no movimento de
transformação dos padrões de comportamento sexual prevalecentes no

51
Ocidente; a aderência gradativa de mulheres aos componentes
tecnológicos capazes de assegurar o exercício da sexualidade na
independência das áreas da maternidade e a participação de jovens nas
lutas feministas.

Segundo a autora, tais fatores contribuíram para uma maior visibilidade


das questões ligadas à maternidade na adolescência, fato que pode
ser comprovado através do aumento da produção literária a respeito do
tema. Entretanto, tal produção era direcionada apenas ao fenômeno
biológico, levantando apenas a discussão dos riscos médicos e biológicos
relacionados a gravidez na adolescência, atrelando sentidos de
enfermidade, doença e epidemia a esse fenômeno, levando a sociedade a
elaborar estratégias de coibição, definindo que tal moléstia “só é aceita e
tolerada socialmente quando preenche algumas condições como: ter uma
origem não deliberada; os indivíduos atingidos devem querer se livrar dela e
o indivíduo acometido deve procurar ajuda competente” .

Além do problema de saúde pública, a gravidez na adolescência


deve ser contemplada principalmente nos aspectos psicossociais,
reconhecendo que a mãe adolescente enfrenta também riscos sociais,
como a exclusão de sua educação, ficando condenada à pobreza com
perspectivas econômicas limitadas e com pouco apoio social (ALMEIDA,
2003). Tais aspectos psicossociais passaram a serem atendidos a partir do final
da década de 60, visando seus valores culturais, sociais e educacionais. A
partir daí, nota-se que a visão da gravidez na adolescência apresenta uma
alternância de acordo com o momento histórico e social, ou seja, em dado
momento, o fenômeno é tido como aceitável e natural e em outro contexto,
inaceitável, inscrevendo a adolescente mãe na fronteira entre a
adolescência e a maturidade, nem criança, nem mulher.

52
Desconstruir e romper com as proposições e significações identitárias
estabelecidas pela hegemonia como reais, não implicam em novas
descobertas e sim em um novo regime no discurso e no saber. Assim, por
meio desta análise, questionaremos os saberes que compõem o regime
hegemônico, tidos como naturalizados, no que concerne às significações
que cerceiam o sujeito adolescente mãe, nos importando aqui, em como
pode funcionar esse processo, supostamente agonístico e desconfortável,
que essa adolescente mãe enfrenta, e, as possíveis práticas de inclusão e
exclusão por não ser nem isso (criança), e nem aquilo (mulher madura).

As práticas discursivas, arquivadas na memória do dizer constroem e


banalizam a identidade deste sujeito, os dizeres seguem um determinado
regime de verdade, marcados pela memória do dizer que consistem em
significar dizeres pertencentes a determinadas formações discursivas
perante a identidade deste sujeito, que resiste às normas ditas e não ditas
que regem os dispositivos de saber e poder da adolescência, inscrevem o
sujeito adolescente mãe na ordem de determinados discursos, que, para
Foucault(1979), as transformações sócio-históricas são produtos gerados por
uma determinada ordem de discursos que consistem em uma determinada
regularidade de enunciações, e prevalecem conforme o regime de
verdade, como por exemplo, a cultura imposta pelos europeus que nos
colonizaram.

A memória discursiva opera por meio do sistema de arquivo


(FOUCAULT,1979), que é a lei daquilo que se pode ser dito, regendo o
aparecimento dos enunciados como singulares, fazendo com que as coisas
ditas não se acumulem em uma massa amorfa, nem sigam uma
regularidade, se agrupam um ao outro para seguirem relações múltiplas
e/ou regularidades específicas. Ele não protege o acontecimento do
enunciado, mas define o modo de atualidade enunciado-coisa, torna-se seu

53
sistema geral da formação e da produção dos enunciados, do
funcionamento destes. Permitindo assim a produção e a multiplicidade de
enunciados que, por meio da Lingua(gem) podem surgir a partir deles.

Segundo Eni Orlandi(1999), a Língua(gem) é o instrumento de


mediação que o homem utiliza para existir, significar e significar-se. Ela
marca e constitui o eu, a identidade. É por meio dela que o sujeito se
identifica, varia de acordo (ou não) com as mudanças sócio-históricas
individual e coletivamente. Entende-se a linguagem como um lugar de não
evidências e de descobertas (ORLANDI, 1999), pois, como já posto
anteriormente, ela é o instrumento de comunicação do sujeito, que refém
do inconsciente, o inscreve nas contradições, a Lingua(gem) assim como o
sujeito, é contraditória, suas verdades estabelecidas dependem daquele
que detém o poder, seja político, econômico ou cultural, a verdade é
sempre posta por aquele que por meio do poder estabelece a construção
do real ideal ou não a ser seguido.

A verdade, segundo Gregolin (2016), é a ordem do acontecimento,


não única nem atemporal acontece em um lugar e em um tempo, sofre e
exerce poder e coerções múltiplas, em que predominam os discursos que
são aceitos e funcionam como verdadeiros, validando o estatuto daqueles
que tem a função de dizer o que funciona como (não) verdadeiro, estatuto
este, regido pelos mecanismos sociais e daqueles que têm a função de dizer
o que funciona como verdadeiro, como aqueles que exercem posições de
poder político, econômico e intelectual.

Na mesma linha de raciocínio, Martins (2002) aponta que não há


verdade, somente a aparência de verdade (efeitos de sentido, estados
veridictórios). A verdade é momentânea, seus discursos e aceitabilidade de
enunciados são estabelecidos conforme o social e o momento histórico em
que se estabelecem.

54
A política da verdade (FOUCAULT, 1979) aponta que a verdade não
está fora do poder, nem carece dele, não é condição dada para a
formação de valores, e sim para as condições de produção de valores,
condição de realidade e dispersão de enunciados. Ela é pertencente a este
mundo, produzida e produtora de coerções múltiplas, por meio dos efeitos
regrados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, tipos de
discursos, mecanismos e as instâncias conforme sua aceitação; como o real,
a identidade e a verdade. Para o filósofo, não se trata de saber qual é o
poder que age do exterior sobre a ciência e a verdade, mas quais efeitos de
poderes circulam entre esses enunciados, seu regime de poder interior, como
e porque em certos momentos ele se modifica de forma global.

Cabe ao analista de discurso romper com as proposições


estabelecidas como reais, propondo a seus leitores um novo regime no
discurso e na relação poder e saber, por meio da proposta de que ouçam
aqueles que se encontram às margens da ordem do regime de verdade
estabelecido.

Entendemos que o outro, assim como a sociedade, constrói não


apenas regimes de verdade que coagem as relações de saber e poder, eles
constituem e atravessam o processo identitário do sujeito adolescente mãe,
exercendo seus dispositivos de poder constitutivo na e pela linguagem, pelo
desejo na e pela falta, entretanto, por sua condição de fluidez, torna-se não
estável, sua condição empírica somente se sustenta na imagem da carne e
o osso (MAGALHÃES; KOGAWA, 2019).

O documentário produzido em primeira pessoa, “Eu, adolescente


Grávida” (2008), pode nos propiciar a perspectiva de seis adolescentes
protagonistas deste reality show, exercendo a ilusão (ou não) de autoria, ao
falar de si (CORACINI, 2003). Pretendemos analisar seus enunciados e suas
regularidades, não somente os que se explicitam no dizer, e sim, observar

55
suas faltas, seus não ditos, suas (não)fluidez, e seus (des)controle ao falar de
si (CORACINI, 2003), que contribuem para a formação de seus processos
identitários. E o outro documentário: “Saúde no Rolê”(2019), produzido por e
para mulheres adolescentes e maduras, nos permitindo (ou não), um olhar
mais atual a respeito da identidade deste sujeito e suas relações de sentido.

Para a problematização da hipótese do apagamento histórico e


cultural da adolescência para esta pesquisa, buscaremos nas condições de
produção presentes nos arquivos sócio históricos, marcados na História da
constituição do Brasil: o trabalho e o casamento infantil, naturalizados por
muitos anos na história Brasileira. Os arquivos legislativos que marcariam tais
tensões e conflitos podem tentar reger uma ordem discursiva que (não)
cumpriria com as tentativas de hegemonização dos saberes e poderes,
previstas nas leis de proteção e preservação da infância e da adolescência,
no Decreto 1.313 (1981); que estabeleceu a proibição da permanência e
trabalho das crianças e dos adolescentes no chão de fábrica.

Contraditoriamente, a lei 13.811/19 do Código Civil (2019) que retrata


a respeito do casamento infanto juvenil, foi criada quase três décadas depois
da proibição do trabalho infantil, visto que o maior número de casamentos
infantis é realizado para as meninas. O casamento infantil as inscreveria no
campo discursivo do trabalho doméstico, atribuindo-lhes papéis identitários
de esposa e mãe.

Outra lei que pode fazer emergir conflitos de tensão e contradição,


marcada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente -ECA, criado em 1990,
entretanto, perante o número considerável de adolescentes grávidas, foi
sancionado/encaixado um artigo de prevenção a gravidez/maternidade
das adolescentes somente em 2019, praticamente 30 anos depois da
criação do ECA, emergindo assim, por meio dos não ditos, que: embora o
regime de verdade hegemônico que rege a ordem dos discursos coloque o

56
sujeito adolescente mãe nas margens, ao mesmo tempo, as naturalizaria,
pois, ao criar as leis de proteção à adolescência que não funcionariam
efetivamente, e, ao criar decretos tardios de prevenção, perante o número
considerável de adolescentes mães presentes na sociedade no tempo
passado e no tempo atual, pode marcar a presença da ambivalência do
jogo da hostilidade e da hospitalidade (DERRIDA, 2001) em que hospedaria
esse sujeito por meio das leis de proteção, e ao mesmo tempo a hostilizaria,
por meio de seus possíveis descasos marcados pelo possível não
cumprimento do regime de verdade posto, e pela possibilidade de exercer
sua sexualidade escancarada na sociedade por meio do exercício da
maternidade.

Por fim, os resultados pretendidos por esta pesquisa consistem em


relacionar ambos os documentários, possibilidades de semelhanças e
diferenças históricas sociais e identitárias, oriundas do mesmo (não)
protagonista: o sujeito adolescente mãe, por meio da análise da
regularidade de seus enunciados, que podem vir a se repetir e fixar a
construção de sua identidade e ao mesmo tempo em podem se
desconstruírem, pois há a possibilidade de serem reféns de suas
contradições, clivagens, dispersões, reféns daquele que não conseguiriam
controlar; o inconsciente. Este, que por meio do lapso, da falha, escapa
pode vir a manifestar aquilo que o sujeito iludiria esconder.

2 METODOLOGIA

Nosso aporte teórico-metodológico se concentra no campo da


Análise de Discurso a partir de Foucault(1979) como suporte para as
discussões pautadas pela ordem do discurso, arqueogenealogia de poder e

57
saber, e microfísica do poder, enviesados pela perspectiva discursivo-
desconstrutiva de Coracini(2007), entendendo a desconstrução como
estratégia argumentativa, a qual interroga a língua(gem), o sujeito, os
saberes, as verdades, e os discursos, incluindo os nossos, imbricados à ideia
psicanalítica de Lacan(1954) de não completude, não objetividade,
clivagem e contraditoriedade que os constituem.

Assim, a abordagem da perspectiva discursiva-desconstrutiva se


apoia na tensão da tríade transdisciplinar entre a Linguística, a História e a
Psicanálise, para desarticular as dicotomias estabilizadas e transformar o fixo
em deslocado (DERRIDA,1995). A desconstrução não é entendida como
destruição, é o questionamento de saberes dicotômicos entendidos como
verdade naturalizada, problematizando e deslocando saberes cristalizados.
É por meio dela que problematizaremos os rastros e rupturas dos fios
discursivos que constituem ou não, as representações culturais históricas do
sujeito adolescente mãe emergidos na materialidade linguística,
possivelmente atravessada pela ordem do discurso do poder hegemônico,
predominantemente logocêntrico-cartesiana, em que objetiva coagir e
instaurar a captura do sujeito adolescente mãe.

Entendemos que o outro, assim como a sociedade, constrói não


apenas regimes de verdade que coagem as relações de saber e poder, eles
constituem e atravessam o processo identitário do sujeito adolescente mãe,
exercendo seus dispositivos de poder constitutivo na e pela linguagem, pelo
desejo na e pela falta, entretanto, por sua condição de fluidez, torna-se não
estável, sua condição empírica somente se sustenta na imagem da carne e
o osso (MAGALHÃES; KOGAWA, 2019).

Como dito na introdução, o corpus constituinte desta pesquisa, centra-


se nos documentários e sua repercussão. O documentário do ano de 2008
tem 719.112 visualizações, 3,7 mil likes e apenas 348 unlikes, enquanto o do

58
ano de 2019 tem 5.954 visualizações, 189 likes e 4 unlikes até o momento desta
escrita. Constituindo assim uma regularidade de acesso e alcance de
espectadores consideráveis para a construção desta pesquisa. Desse modo,
a internet é um olho do poder (FOUCAULT,1984) ambivalente que cria a ilusão
de permissão e de posição de expectador ao sujeito vigiar o outro, enquanto
é vigiado simultaneamente pelos mecanismos de localização situados em
seus dispositivos eletrônicos. A materialidade que perpetua na internet se
constitui na e pela regularidade de acessos a determinados conteúdos
midiáticos, quanto maior o acesso, maior será sua disponibilidade e
visibilidade.

Para a análise dos documentários, como gêneros discursivos,


buscaremos apoio sobre essa noção na concepção dialógico-discursiva de
Bakhtin(1979;1997) entendendo que a comunicação verbal que compõem
a materialidade de tais gêneros é acompanhada por atos sociais de caráter
não verbal, ecos e ressonâncias de outros enunciados, com os quais estão
ligados pela esfera da comunicação discursiva imbricados aos enunciados
já ditos e não ditos, materializados e selecionados pelos diretores e editores,
que compuseram a narrativa das (não) protagonistas adolescentes mães
nos documentários.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados pretendidos por esta pesquisa vinculam-se em relacionar


ambos os documentários, suas semelhanças e diferenças históricas sociais e
identitárias, oriundas do (não) protagonismo. Acredita-se que podemos
chegar à conclusão de que o sujeito adolescente mãe, por meio da análise
da regularidade de seus enunciados, que se repetem e fixam a construção

59
de sua identidade e ao mesmo tempo se desconstroem, pois são reféns de
suas contradições, são sujeitos clivados, dispersos, reféns daquele que não
conseguem controlar; o inconsciente. Este, que por meio do lapso, da falha,
pode escapar e manifestar aquilo que o sujeito ilude esconder.

As contradições e interdições que clivam as narrativas presentes nos


documentários podem não depender somente de suas personagens. Há a
possibilidade de que seu fio discursivo, ditos e não ditos corporificados nos
documentários podem ter sido atravessados pela formação ideológica dos
diretores e redatores que editaram, e interditaram (ou não) a composição
de suas narrativas, em que selecionariam quais enunciados permaneceriam
como representação (velada) das verdades dos sujeitos adolescentes mães,
possibilitando a ilusão delas e de seus expectadores de que a narrativa
construída pelos editores e redatores pode ser uma representação fiel de seu
fio discursivo, desvelado, não interrompido, não interditado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Espera-se que a problematização da constituição da representação


identitária cultural e histórica do sujeito adolescente mãe, se imbriquem na
tensão do jogo de poderes e saberes envolvidas nas formações discursivas
que versam a respeito do dever e do ser adolescente, do gênero feminino e
mãe, e comprovem (ou não), por meio da Análise do Discurso, enviesada
pela perspectiva discursivo-desconstrutiva, a hipótese levantada nesta
pesquisa, de como se dá a construção cultural histórica da identidade do
sujeito adolescente mãe.

60
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail Mjkhailovitch, Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin


[tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira
revisão da tradução Marina Appenzellerl.1979 — 2’ cd. —São Paulo Martins
Fontes, 1997.— (Coleção Ensino Superior)

CONTRAPONTO. CurtaDoc, uma janela para o documentário latino-


americano, 2019. < https://curtadoc.tv/curta/comportamento/eu-
adolescente-gravida >Acesso em 18 de maio de 2021.

CORACINI, M. J. R. F. A. Análise do discurso na Linguística Aplicada. In:


CASTRO, S. T. S. (Org.). Pesquisas em Lingüística Aplicada: novas
contribuições. Taubaté: Cabral Universitária, 2003.

DERRIDA, Jacques. O MONOLINGUISMO DO OUTRO; ou a prótese de origem.


Editions Galilé, 1996. Campo das Letras,2001.

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso, aula inaugural no College de France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 19ºed. Edições Loyola, SP,2009.

FOUCAULT. M A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 6. ed.


Rio de Janeiro, Forense, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Pondé


Vassalo. 3. ed. Petrópolis, Vozes, 1984.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de


Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.

LACAN, Jacques. O Seminário: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954.


[versão brasileira de Betty Miller;- 2º ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009

61
MAGALHAES, Salvaterra Anderson & João Kogawa. Pensadores da Análise
do Discurso. Uma Introdução. Jundiaí, São Paulo. Paco Editorial, 2019.

MOREIRA, LIMA. Desenvolvimento e crescimento humano: da concepção à


puberdade. In: Algumas abordagens da educação sexual na deficiência
intelectual [online]. 3rd ed. Salvador: EDUFBA, 2011, pp. 113-123. Bahia de
todos collection. ISBN 978-85-232-1157-8. Available from SciELO Books .

PLAN INTERNACIONAL. Saúde no Rolê. Gravidez na Adolescencia, 2020.


Disponível em <https://plan.org.br/saude-no-role/> Acesso em 21/05/21.

62
VERBOVISUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA: UMA ANÁLISE
DIALÓGICA5

Anderson Cristiano da Silva 6

RESUMO: Este artigo discute a multiplicidadede sentidos presente em gêneros verbovisuais


que evidenciaram a posição do Presidente da República Jair Bolsonaro sobre o isolamento
social em meio a pandemia causada pelo Coronavírus. Justifica-se esta investigação pela
importância que o letramento verbovisual possui no engendramento de cidadãos
crítico-reflexivos, principalmente na formação de estudantes do Ensino Básico. Em acréscimo,
considerando a leitura como um dos eixos do ensino de Língua Portuguesa na educação
básica, nossa investigação vislumbra contribuir com a escolarização formal, principalmente
no que tange a propostas de leitura contemporânea a partir de uma perspectiva
dialógica. Em termos organizacionais, selecionamos gêneros verbovisuais que foram
veiculados em redes sociais no primeiro semestre de 2020, período de crescimento da
pandemia no Brasil .Para essa reflexão, recorreremos as lentes dialógicas do chamado
Bakhtin e o Círculo, no qual elencamos o enunciado concreto e a responsividade como
categorias de análise. Em nossas considerações, observamos que ao engendrar um
enunciado concreto, os elementos verbovisuais remetem responsivamente a outros
enunciados concretos, sem os quais os interlocutores podem não compreender os
possíveis efeitos de sentido. Por meio do humor, nossas análises puderem explicitar como
diversos locutores conseguem expressar suas ideias, divulgando-as por meio das redes
sociais e grupos virtuais nos celulares, como na temática da crítica às ações engendradas
pelo Presidente da República Jair Bolsonaro, cujas declarações públicas nas redes sociais ou
telejornais, comprovaram uma posição de negacionismo a todos os protocolos de
isolamento social prescritos pelas autoridades sanitárias, como o caso do uso de máscara
para evitar a propagação do novo Coronavírus.

Palavras-chave: Enunciado concreto, Verbovisualidade, Pandemia.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa objetiva evidenciar os múltiplos sentidos existentes em


alguns gêneros verbovisuais que circularam nas redes sociais que criticaram
a posição adotada pelo então Presidente da República, Jair Bolsonaro (no
primeiro semestre de 2020) a respeito da pandemia e os casos de aumento

5 Artigo publicado no Periódico Língu@ Nostr@. Vide:


https://linguanostra.net/index.php/Linguanostra/article/view/196
6 Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUCSP), andcs23@hotmail.com

63
de mortes no Brasil e sua visão sobre o isolamento social. Justifica-se esta
investigação pela importância que o letramento verbovisual possui na
constituição de cidadãos crítico-reflexivos, sendo uma maneira de estimular
a capacidade de leitura e interpretação dos sujeitos, fazendo-os refletir sobre
as potencialidades do verbovisual e seu poder de alcance na
contemporaneidade. Em acréscimo, considerando a leitura como um dos
eixos do ensino de Língua Portuguesa na educação básica, nossa
investigação vislumbra contribuir com a escolarização formal,
principalmente no que tange a propostas de leitura contemporânea a partir
de uma perspectiva dialógica.

Em termos metodológicos, selecionamos alguns gêneros que utilizam a


verbovisualidade, como charges e memes que tematizaram a relação entre
pandemia e Jair Bolsonaro, então Chefe do Executivo em 2020. Para ancorar
nossas leituras e discussões, recorremos aos construtos teórico-metodológicos
da Análise Dialógica do Discurso (ADD), nos quais elegemos o enunciado
concreto e a responsividade como categorias de análise. Em termos
organizacionais, esta investigação está dividida em três partes. No primeiro
momento, discorreremos a respeito da questão da verbovisualidade e suas
peculiaridades. Por fim, tendo como base a Análise Dialógica do Discurso
(ADD), analisaremos o corpus elencado, evidenciando os efeitos de sentido
presentes em charges e memes que tematizaram a relação do presidente e
a pandemia.

1 A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE O VERBAL E O VISUAL: IMBRICAMENTOS


DIALÓGICOS

Trazer para a esteira a discussão da verbovisualidade é algo que vem


ganhando espaço nos meios acadêmicos, conforme observamos os diversos

64
artigos científicos publicados, por exemplo na área de Letras e Linguística,
bem como as dissertações e teses que jogam luz a respeito da importância
do imbricamento do verbal e do visual na leitura e constituição dos diversos
gêneros discursivos. Ademais, a temática torna-se um elemento fundamental
como forma de estimular a criticidade dos cidadãos, principalmente na
formação de estudantes de Ensino Básico.

Entre os diversos trabalhos que colocaram na agenda a


verbovisualidade por diferentes pontos de vista, destacamos a tese de Costa
(2016), que a partir de uma abordagem dialógica, traça um retrato da
verbovisualidade em livros didáticos de Língua Portuguesa. A partir dessa
investigação robusta, os resultamos mostraram uma escassez da
verbovisualidade em atividades de leitura, bem como atividades que
desenvolvessem a criticidade entre os alunos do Ensino Fundamental. Com
essa pesquisa, percebe-se que uma das lacunas deixadas na escola regular
é justamente a constituição de materiais que fortaleçam o letramento
verbovisual no Ensino Básico. Ademais, como o livro didático representa uma
das principais ferramentas para o ensino da língua materna dentro de um
país de dimensão continental, as lacunas deixadas por eventuais coleções
aprovadas pode ser um dos fatores prejudiciais para o pleno letramento
verbovisual dos sujeitos.

Sob outro ponto de vista, vê-se que o verbovisual vem ganhando cada
vez mais espaço em avaliações externas e internas de redes públicas e
particulares de ensino, culminando no ENEM e nos diversos vestibulares pelo
país. Em acréscimo, nota-se que, ao longo do tempo, os materiais didáticos
têm destacado a questão da verbovisualidade em sua constituição,
seguindo as prescrições dos documentos oficiais e das pesquisas
contemporâneas. No entanto, pesquisadores especialistas da temática,
mostram que esses materiais ainda não estão alinhados de maneira

65
adequada aos documentos parametrizadores, tais como Parâmetros
Curriculares Nacionais (BRASIL, 2001) e Base Nacional Comum Curricular
(BRASIL, 2017).

Pensando a respeito de todas essas peculiaridades, concordamos


com ECO (2004), quando discorre a respeito dos limites da interpretação, em
que, mesmo com a possibilidade de múltiplas compreensões, é necessário
pensarmos quais são as mais aceitáveis a partir de critérios coerentes, a partir
da trama enunciativa dos sujeitos, sem deixar de lado a influência do
contexto histórico.

Ademais, compreendemos a necessidade de perceber a constituição


de sentidos a partir da estruturação enunciativa, em que destacamos o
papel da imagem e do material verbal. Cabe ressaltar a necessidade de
distinguir um universo de possibilidades a partir das peculiaridades do visual,
caso das imagens fixas e animadas. Refinando nossa investigação, teremos
a imagem fixa como base para nossas análises, na qual poderemos observar
formas, ângulos, cores e seu diálogo com o contexto sociohistórico,
vislumbrando os efeitos de sentido. Desse modo, “a abordagem analítica
aqui proposta depende de certo número de escolhas: a primeira é abordar
a imagem sob o ângulo da significação e não, por exemplo, da emoção ou
do prazer estético”(JOLY,1996, p.28). Partindo desse ponto de vista, a
compreensão de gêneros constituídos pela verbovisualidade se dá para
aquilo que excede a imagem, necessitando que o interlocutor recorra a
outros enunciados concretos para compreender o projeto enunciativo do
locutor e seus possíveis efeitos de sentido.

Ressalta-se em nossas discussões a respeito da verbovisualidade a


questão da ironia como um dos efeitos de sentido possíveis. Desse modo,
muitas construções enunciativas configuram-se como uma espécie de jogo
entre os (inter)locutores do discurso em que é necessário que o interlocutor

66
consiga, por meio de seus enunciados concretos, desvelar as intenções
subentendidas a partir do jogo entre os elementos verbovisuais,
considerando o contexto sócio-histórico.

Considerando essas peculiaridades do corpus elegido nesta pesquisa,


aliado ao estofo teórico da Análise Dialógica do Discurso (ADD), ressaltamos
a necessidade de seguirmos os preceitos metodológicos prescritos na
primeira parte de Marxismo e filosofia da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017),
na qual o teórico mostra um caminho a ser seguido para uma análise
dialógica, considerando as condições concretas do discurso e as formas de
interação verbal. A partir disso, ao analisar nosso corpus, além da
materialidade verbovisual presente, precisaremos levar em consideração o
contexto, bem como as relações entre os (inter)locutores. Para tanto, na
sequência, recorreremos aos construtos da Análise Dialógica do Discurso
(ADD), na qual explicitaremos a respeito do enunciado concreto e da
responsividade.

2 ARCABOUÇO TEÓRICO: AS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO


DISCURSO

Tendo como norteador a Análise Dialógica do Discurso (ADD), com


base nas ideias desenvolvidas a partir de Bakhtin, Medvedev e Voloshinov,
esta seção tem como escopo discutir as lentes dialógicas que subsidiarão
nossas análises. Em princípio, revisitando a noção de enunciado concreto,
recorremos a um dos primeiros escritos a respeito da temática, encontrado
em Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010). Nessas discussões,
houve uma investigação do ato enquanto uma realização concreta dentro
de um contexto sociohistórico. Nesse sentido, compreende-se o ato de uma

67
maneira mais ampla, levando em consideração a responsabilidade ativa
dos sujeitos discursivos na constituição do momento enunciativo.

Em A construção da enunciação (VOLOCHÍNOV, 2013), verifica-se a


discussão a respeito da interação verbal entre os (inter)locutores como parte
da característica do enunciado concreto. Numa espécie de fluxo contínuo,
a relação enunciativa de um sujeito, pressupõe o diálogo com os enunciados
anteriores, bem como reverbera em enunciados futuros em uma cadeia
ininterrupta. Em consonância com esse pensamento, em Palavra na vida e a
palavra na poesia (VOLOCHÍNOV, 2013), ao discutir sobre a poética
sociológica, os apontamentos mostram a natureza extraverbal do
enunciado concreto, necessitando dentro de uma análise que se considere
o contexto comum entre os (inter)locutores, bem como a compreensão e
avaliação desses sujeitos na troca enunciativa. Ressalta-se aqui as interações
podem mudar, conforme o contexto, como exemplo o momento da
pandemia iniciado no primeiro semestre de 2020 que modificou o modo de
interação entre os sujeitos em diferentes esferas, como no caso do ambiente
educacional.

Em O freudismo: um esboço crítico (BAKHTIN, 2012), observando as


discussões críticas a respeito do freudismo e o pensamento filosófico da
época, Bakhtin corrobora para o entendimento de enunciado, asseverando
que o momento enunciativo é resultado da interação entre os sujeitos. A
partir disso, todas as nossas leituras e análises, dentro de uma perspectiva
dialógica, não pode desconsiderar esses elementos que fazem da
constituição de sentidos. Em consonância com esse pensamento, em
Marxismo e filosofia da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017), Volóchinov discute
a íntima relação entre sociedade e linguagem, destacando que o signo
ideológico, reforçando a ideia na qual o contexto sociohistórico é resultante
de um processo ininterrupto de comunicação a partir da interação social.

68
A partir da noção de enunciado concreto pelo viés dialógico,
analisaremos nosso corpus, atentando as características da
verbovisualidade e sua interação com os sujeitos do discurso e o contexto
em que estão inseridas, evidenciando a constituição e efeitos de sentidos
possíveis por meio da materialidade linguística. Além do enunciado concreto,
em nossa investigação, elegemos também outra categoria de análise, o
conceito de responsividade, no qual abarca as relações externas no
momento enunciativo, considerando a subjetividade envolvida na relação
entre os (inter)locutores.

De maneira ilustrativa, podemos trazer para exemplo as peculiaridades


do corpus que iremos avaliar, ou seja, em gêneros com característica
verbovisuais, os sujeitos discursivos que engendram o gênero pressupõem
possíveis compreensões responsivas dos seus interlocutores, mas isso escapa
aos sujeitos, pois diversos fatores podem interferir nos efeitos de sentidos,
como contexto histórico, escolaridade, entre outros.

Em uma pesquisa contemporânea que estudou as práticas de


multiletramento no ambiente escolar, Oliveira e Szundy (2014) discorrem para
a necessidade de uma educação responsiva à contemporaneidade. Desse
modo, essas autoras jogam luz para a necessidade de uma (trans)formação
dos docentes da área de linguagens e sua responsabilidade sobre as
práticas educacionais responsivas por meio do pensar e agir, no qual
acrescentamos o papel da prática docente no exercício cotidiano de fazer
os estudantes ampliarem sua criticidade por meio da leitura.

Trazendo para nossa discussão escritos do Círculo bakhtiniano que


auxiliaram na constituição do conceito de responsividade, na coletânea
Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2011), observa-se a que o momento
enunciativo se constitui sempre a partir de uma resposta a outros enunciados.
Recorrendo a essa perspectiva, iremos discorrer criticamente possíveis

69
repostas aos enunciados verbovisuais que circularam nas mídias sociais,
tendo como mote a pandemia.

3 VERBOVISUALIDADE: ENTRELAÇAMENTO ENTRE A PANDEMIA E AS ATITUDES


PRESIDENCIAIS

A partir da criação e circulação de diversos gêneros verbovisuais,


como memes e charges, que circularam nas redes sociais na época da
pandemia do Coronavírus, no primeiro semestre de 2020, observou-se uma
temática recorrente de crítica a posição e atitudes do Presidente da
República, das quais selecionamos três figuras para análise e
aprofundamento.

Cabe ressaltar o poder das inteligências artificiais e sua influência nas


redes sociais e consequentemente a circulação e o viés de determinados
gêneros, conforme, por exemplo, o posicionamento político ideológico de
um determinado sujeito. Ressaltamos aqui que o assunto é extenso, fato que
não poderá ser discorrido em profundidade devido a delimitação de
páginas deste artigo, o que apenas iremos mencionar alguns pontos
importantes para analisar o corpus elegido. Desse modo, como sabemos, as
inteligências artificiais corroboram para a manutenção de postagens e
assuntos, por exemplo, na timeline de uma rede social referentes aos assuntos
com maior afinidade, criando uma espécie de bolha ideológica. De maneira
ilustrativa, os dados de uma busca na internet, as postagens e curtidas são
observadas, armazenadas e esses dados são cruzados e utilizados para, por
exemplo, envio de propagandas de temáticas semelhantes, fato que pode
influenciar ideologicamente ao consumo ou até mesmo na escolha de
governantes, em se tratando de uma campanha eleitoral.

70
De maneira mais específica, numa espécie de bolha, as pessoas
acabam seguindo outras pessoas na rede virtual ou acabam mantendo
amizades virtuais com familiares, amigos e colegas que possuem visões
semelhantes, o que pode ser visto por curtidas e comentários nos inúmeros
tipos de postagens. Destarte, nas timeline dos sujeitos aparecerão postagens
de seus amigos que vão ao encontro a um pensamento comum, do
contrário, isso pode resultar em discussões virtuais e até mesmo a exclusão
de amizades virtuais ou até reais.

Ressaltando essa característica em nosso corpus, ilustrando posições


diferentes para ampliar nossa compreensão a respeito de um
posicionamento político, por exemplo, o apoio (ou não) ao presidente
brasileiro. De um lado, nas redes sociais, podemos perceber um público que
comunga de uma visão mais conservadora de direita ou ultradireita que vão
replicar ações do governo federal e da própria figura do presidente da
República, ressaltando os pontos positivos de sua atuação.

Por outro lado, podemos ter nas redes sociais, indivíduos que
comungam de uma posição crítica a respeito das ações do representante
do Poder Executivo, podendo ser de esquerda, centro ou até apartidários,
julgando criticamente a posição e ações do regente da nação que pode
reverberar nas postagens, comentários e curtidas nas redes sociais e grupos
de WhatsApp. Assim, considerando essas peculiaridades do meio no qual
memes, charges e outros gêneros com característica verbovisuais, dentre as
inúmeras postagens a favor e contra a visão do presidente a respeito da
pandemia, selecionamos quadro cenas enunciativas que ilustram o
posicionamento de Jair Bolsonaro e seus simpatizantes a respeito das ações
para controlar o avanço da pandemia no primeiro semestre de 2020, visando
controlar o número de internações e mortes, evitando um colapso na saúde
pública no Brasil. Ressalta-se que a delimitação deve-se ao fato de podermos

71
aprofundar a leitura e discussão da temática, bem como respeitar o número
máximo de laudas deste artigo. Dito isso, segue a primeira figura para nossa
leitura e apreciação.

Figura 1

Fonte: Facebook

Na figura 1, vê-se uma relação explícita entre os elementos


verbovisuais construindo uma narrativa que vislumbra produzir efeitos de
sentido específicos em seus interlocutores, fazendo-os refletir criticamente
sobre a temática levantada para discussão. Com relação a parte visual,
observa-se três carros coloridos em que bois aparecem dirigindo ou no
banco carona. A partir dessa personificação, em que animais possuem
habilidades humanas, percebemos que uma dessas personagens da
narrativa segura um cartaz e o outro motorista aparece gritando a partir do
recurso do balão, usado comumente em quadrinhos.

No conjunto da imagem, vê-se que as personagens estão fazendo


uma carreata. Contextualizando essa cena enunciativa, no momento da
pandemia causada pelo Coronavírus, muitos apoiadores e simpatizantes do
então Presidente da República, Jair Bolsonaro, começaram a fazer
mobilizações e manifestações pelas mídias sociais, bem como atos públicos
pelas ruas, entre as quais, a carreata. Tendo uma atitude contrária às ideias

72
propagadas de relaxamento do distanciamento social, em vez de fazerem
aglomerações em passeatas, manifestação em que um número grande de
pessoas a pé se desloca para chamar atenção, um grupo ideologicamente
afinado ao bolsonarismo começaram a fazer carreatas, cada qual em seu
carro.

Ironicamente, essas atitudes mostraram que um grupo privilegiado,


que possui carro (fato que nem todos os cidadãos possuem, principalmente
os da classe econômica menos privilegiada) exigem a flexibilização pelos
governos estaduais com relação às regras de isolamento e distanciamento
social. Esse enunciado verbovisual ilustra de maneira jocosa notícias que
figuraram por semanas em diversas mídias. Assim, esse grupo pressiona o
governo para a volta da normalidade, em que se nota aglomerações da
classe operária, por exemplo, nos pontos de ônibus e estações de metrô,
estimulando assim a contaminação do vírus mais acelerada entre os menos
favorecidos, fato que ironicamente é reivindicado por pessoas de dentro dos
seus carros que, com a justificativa de um discurso econômico e da
manutenção dos empregos, acabam não saindo de dentro dos seus
automóveis afim de evitar o contágio pelo Coronavírus.

Fazendo uma análise detalhada desta figura, o carro que aparece no


primeiro plano tem uma figura verde, com uma representação rudimentar
aludindo ao formato do Coronavírus, fato que faz o leitor remeter
responsivamente ao assunto da pandemia. Chama a atenção, são os bois
representando as pessoas dentro dos carros, sendo que um deles parece
estar usando uma camisa amarela, aludindo a da seleção brasileira de
futebol. Esta escolha de um animal específico para ilustrar a cena não é algo
aleatório, mas jocosamente representa um elemento importante para a
constituição de sentidos do nosso enunciado em análise. Com relação à
questão dessa animalização da narrativa, refere-se uma memória

73
enunciativa de boiada, ou seja, expressão que remete às pessoas que falam
ou agem sem reflexão, seguindo uma referência sem questionamento. De
modo específico a respeito da camiseta citada, refere-se também a
vestimenta que muitos apoiadores de direita e do governo federal usavam
para manifestações pró-governo.

Analisando esse enunciado concreto, a ilustração da camiseta


amarela também não é algo aleatório, mas faz parte de uma construção
enunciativa que remete uma compreensão responsiva a respeito dessa
escolha. Como sabemos, diferentes de outras nações (comparado aos EUA,
que colocam bandeiras nas janelas), os brasileiros não expressam seu
patriotismo de maneira cotidiana, sendo pontuado, além do 07 de setembro
e outros feriados nacionais, os grandes eventos esportivos, entre os quais,
Jogos Olímpicos e Copa do Mundo. Ressaltamos que a tradição de vestir
camisetas verde e amarelo ou camiseta oficial da seleção brasileira de
futebol tornou-se por várias décadas uma tradição para torcedores
acompanharem os jogos ao vivo ou pela televisão. De outra maneira, nos
últimos anos, observou-se que um fenômeno das grandes manifestações
contra corrupção, bem como outras temáticas de ordem política
popularizaram a vestimenta da camiseta da seleção brasileira, algo que se
tornou uma espécie de uniforme que foi apropriado por grupos de direita ou
de extrema direita, sendo essa uma das leituras possíveis na figura que
estamos analisando. Sendo assim, todos os pequenos elementos como, por
exemplo, as cores são elementos que não podem ser desconsiderados em
uma leitura crítica, pois responsivamente podem despertar nos interlocutores
efeitos distintos.

Sobre a parte verbal, vê-se duas ocorrências nessa narrativa. Na


primeira, visualizando um balão da personagem em primeiro plano,
percebe-se um grito com o vocábulo em caixa alta MIIIIITOO, expressão que

74
remete aos dizeres de muitos simpatizantes da chapa Bolsonaro/Mourão
durante a última campanha eleitoral para a Presidência da República do
Brasil, expressão que circulou também por muitos simpatizantes em diversos
atos públicos e nas redes sociais no período em que o candidato venceu o
pleito e o início do seu mandato. A respeito da escolha do vocábulo mito,
recorrendo a memória discursiva, trata-se de narrativas de tempos antigos
no qual povos criavam figuras heroicas que viviam para realizar feitos
fantásticos. Ao longo do tempo muitos mitos foram engendrados pelos povos,
conforme suas culturas perpetuadas ao longo da história. Trazendo esse
conceito para nosso debate, o resgate desse termo como adjetivo para o
então candidato à presidência da República remete ao fato de seus
simpatizantes e apoiadores acharem a figura do pré-candidato semelhante
a um mito. Com promessas de acabar com a “velha política”, o então
candidato Jair Bolsonaro disseminou durante a campanha a ideia de uma
possível mudança, levantando a bandeira de uma “nova política” contra a
corrupção e velhos hábitos comumente retratados nos noticiários.

Na segunda ocorrência verbal, vê-se um cartaz na cor verde com os


dizeres: Deixem o vírus trabalhar, trocadilho irônico que remete ao discurso
presidencial que queria, durante o período da pandemia, que houvesse a
flexibilização do isolamento social em detrimento dos impactos econômicos
causados pelo desemprego. Tal posicionamento, além de largamente
noticiado pela mídia, pode ser observada também em alguns
pronunciamentos do presidente que ficam arquivados na página oficial do
governo. De maneira irônica, o locutor, entre as possibilidades de leitura,
criou uma narrativa satirizando as ações de uma parcela da população
fazendo campanha para que o vírus pudesse circular, indo contra as
orientações das autoridades sanitárias e políticas.

75
Com essa primeira análise, vê-se a necessidade de exemplos
contemporâneos como esse serem utilizados nas aulas de língua materna,
não apenas para mostrar a estrutura do gênero, mas como mote disparador
para discussões entre adolescentes e jovens que estão no Ensino Básico,
sendo uma maneira de despertar a criticidade dos novos cidadãos que
poderão analisar uma temática por diferentes perspectivas, ampliando
assim o grau de fluência dos estudantes.

Figura 2

Fonte: Facebook

Dialogando com a análise anterior, a figura 2 também apresenta um


imbricamento verbovisual em que de maneira sucinta, vê-se uma
personagem, com traços do presidente do país, Jair Bolsonaro, na qual
parece estar em um cemitério, fato observado pelas lápides na
continuidade deste quadro. Nessa cena enunciativa, a partir da
compreensão responsiva do desse enunciado concreto, a personagem que
representa o chefe do Poder Executivo, em tom enfático, em que podemos
comprovar com exclamações nos dois períodos parece estar dialogando
sozinho, o que os interlocutores podem pressupor que a personagem está
falando para as lápides (e obviamente com os mortos), no balão vê-se:
Levantem e vão trabalhar! O Brasil não pode parar! Em caixa alta, os dois
períodos são fechados por sinais de exclamação que (d)enunciam um tom

76
enfático do discurso presidencial em insistir, mesmo com o crescimento da
curva de contaminação, que as pessoas e empresas continuassem as
atividades em meio à pandemia causada pelo Coronavírus, contrariando
todas as medidas de isolamento social prescritas pelas autoridades de saúde,
procurando amenizar o aumento de contaminação e casos de morte
causados pelo COVID-19. Em um tom irônico, em um possível acabamento
enunciativo para nossa leitura, o locutor engendra uma cena em que o
presidente parece falar com as lápides, representando os mortos, que faz
alusão aos (futuros) falecimentos causados pela pandemia e o relaxamento
do isolamento, fato que levaria a classe trabalhadora a um contágio mais
rápido, podendo causar mortes entre os menos favorecidos.

Desse modo, vê-se que para uma leitura crítica verbovisual do


enunciado, os interlocutores precisam acionar diversos outros enunciados e
fazer relação com o contexto sócio-histórico para atribuir efeitos de sentidos.
De maneira ilustrativa, se imaginássemos essa cena em outro período
histórico ou em outro espaço, como um país distante do Brasil, talvez essa
cena não fosse compreensível. No entanto, a circulação desse enunciado
no primeiro semestre de 2020 acaba por (d)enunciar uma crítica por meio do
humor, fazendo com que as pessoas refletissem a respeito de um possível
retorno. Ademais, mostra que a dissonância entre o viés político do discurso
governamental e o discurso científico divulgado pela mídia acaba por
confundir milhares de cidadãos menos esclarecidos, o que poderia causar
um prejuízo para a saúde de milhares de brasileiros.

Analisando o teor da materialidade linguística, vê-se que o discurso


econômico tentando se sobrepor ao discurso científico que mostra, por meio
de índices estatísticos da eficiência do isolamento social para a saúde
público dentro de um país, algo noticiado amplamente pelas mídias
nacionais e internacionais. De outra perspectiva enunciativa, esse é parece

77
ser um argumento razoável pelos diversos problemas de uma crise
econômica, como a inflação, recessão e desemprego, algo que começou
afetar inúmeras famílias no mundo e no Brasil. Como era consenso em todo
mundo, todos os países iriam enfrentar com a questão econômica devido a
paralização de diversos setores, bem como o aumento do desemprego, mas
que a prioridade na época era de um isolamento mais severo, prevenindo
vidas e evitando um colapso na saúde pública brasileira.

Figura 3

Fonte: Facebook

Na figura 3, vê-se a imagem do que supostamente parece ser um


palhaço, representando o então Chefe do Executivo do Brasil, Jair Bolsonaro.
Nesse sentido, para constituição de sentidos, o interlocutor precisa dar um
tom valorativo para o enunciado a partir de outros enunciados concretos.
Desse modo, além da maquiagem tipicamente que caracterizam a figura
de um palhaço, percebe-se cabelos protuberantes em ambas extremidades
da cabeça o que pode associar a característica do palhaço Bozo,
personagem que fez sucesso na televisão brasileira na década de oitenta do
século XX. Com isso, vê-se que a questão temporal também é um elemento
importante para os efeitos de sentidos, pois em uma primeira leitura,
dependendo da faixa etária dos interlocutores, pode ser uma compreensão
responsiva de um palhaço qualquer e não uma personagem que fez parte

78
do cotidiano midiático brasileiro no século passado. Ademais, aliado com
essas possibilidades, na contemporaneidade, um dos apelidos dados pelos
que não apoiam o atual presidente Bolsonaro é justamente Bozo, ironizando
o governante atual do Brasil por meio desse vocábulo.

Para confirmar essa leitura do enunciado exclusivamente visual, o


palhaço veste um terno e uma faixa transversal com as cores nacionais, o
que remete a faixa presidencial usada em ocasiões solenes (como o caso
da posse), possibilitando os leitores inferir tratar-se de uma narrativa que
satiriza a figura do presidente da república por suas ações em meio à
pandemia causada pelo Coronavírus. Lendo esse enunciado que critica a
postura do chefe do executivo, na face dessa figura vê-se uma máscara no
meio do rosto, tapando os olhos com o seguinte dizer: imbecil, escrito com a
cor vermelha. No caso da máscara, ela representa um dos mais populares
instrumentos para auxiliar na diminuição da propagação do Coronavírus,
sendo recomendado pelas autoridades sanitárias. O uso desse recurso, tanto
pelos profissionais de saúde, como a população em geral, deve ser feito
tapando a boca e o nariz, procedimento que ajuda amenizar a propagação
do Coronavírus. Na figura em si, a máscara está tapando os olhos da
personagem, que no caso representa o presidente. Nesse sentido, a partir
das ações de Bolsonaro que, por diversas vezes, apareceu em público sem
máscara em meio a aglomerações. Nesse sentido, a máscara, nesta cena
enunciativa, representa como o presidente está de olhos fechados para a
periculosidade da doença causada pelo vírus.

Ademais, a imagem representa o mau exemplo que o presidente deu


em inúmeras aparições públicas, sendo o não uso da máscara um dos
elementos que chamaram mais atenção da opinião pública e da imprensa.
Em outra leitura desse enunciado, apesar de ter em sua totalidade elementos
visuais, além da assinatura, um elemento verbal que aparece na cena

79
enunciativa é a palavra imbecil. Esse vocábulo aparece na cor vermelha
não por uma escolha aleatória, mas os locutores engendraram uma palavra
com respingos, o que pode representar a palavra sendo escrita com sangue,
representando as muitas mortes que as atitudes do presidente Bolsonaro e
seu governo poderia ter responsabilidade, mesmo que indiretamente, pelo
exemplo negativo divulgado pelas diversas mídias durante o período em que
o país enfrentou a pandemia do Coronavírus.

A partir da compreensão responsiva desses três enunciados, vê-se o


quão importante são os elementos verbovisuais para engendramento de
uma crítica social, pois os elementos lúdicos acabam por atrair e persuadir
os interlocutores para a leitura, bem como seu compartilhamento em redes
social ou grupos de WhatsApp.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossas considerações, verificamos como no atual contexto


pandêmico, a leitura de gêneros verbovisuais, bem como a competência
para a compreensão de seus efeitos são de vital importância para o
entendimento da realidade e suas facetas. Ademais, constata-se a
relevância dos elementos verbovisuais contribuindo para a questão dos
efeitos de sentidos, como humor e ironia. Ratifica-se aqui o papel social que
os gêneros verbovisuais possuem para propagar determinadas posições
ideológicas, como também denúncias sociais.

80
Em nossas leituras, por meio desses gêneros verbovisuais que
circularam no primeiro semestre de 2020, constata-se a evidência do discurso
econômico como argumento da posição do presidente e seus simpatizantes
para propor um relaxamento nas medidas de isolamento social, principal
forma de conter os casos de contaminação pelo Coronavírus, seguindo
todos os protocolos de segurança das autoridades sanitárias.

Por meio do humor, nossas análises puderem explicitar como diversos


locutores conseguem expressar suas ideias, divulgando-as por meio das
redes sociais e grupos virtuais nos celulares, como na temática da crítica às
ações engendradas pelo Presidente da República Jair Bolsonaro, cujas
declarações públicas nas redes sociais ou telejornais, comprovaram uma
posição de negacionismo a todos os protocolos de isolamento social
prescritos pelas autoridades sanitárias, como o caso do uso de máscara para
evitar a propagação do novo Coronavírus.

Por fim, vimos que ao engendrar um enunciado concreto, os


elementos verbovisuais remetem responsivamente a outros enunciados
concretos, sem os quais os interlocutores podem não compreender os
possíveis efeitos de sentido, tais como o humor causado pela ironia. Dessa
maneira, os diferentes indícios engendrados por gêneros verbovisuais
revelam pontos de vista que necessitam dos (inter)locutores uma
competência cognitiva para compreensão da ironia como maneira
específica de interdiscurso, revelando o caráter bivocal e dialógico da
interação enunciativa.

REFERÊNCIAS

81
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados
de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Trad. Paulo Bezerra.


São Paulo: Forense-Universitária, 2010.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Prefácio à edição francesa Tzvetan


Todorov; introdução a tradução do russo Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2011.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares


Nacionais: Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília/São José
dos Campos: MEC/SEF/Univap, 2001.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf.
Acesso em: 22 de dezembro de 2017.

COSTA, E. P. M. da. Retrato da verbo-visualidade em livros didáticos do ensino


fundamental: uma abordagem dialógica. 2016. 754 f. Tese (Doutorado em
Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Programa de Estudos Pós-
Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.

JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Tradução Marina Appenzeller. 6.


ed. Campinas, SP: Papirus Editora, 1996.

OLIVEIRA, M.B.F. de; SZUNDY, P. T. C. Práticas de multiletramentos na escola:


por uma educação responsiva à contemporaneidade. Bakhtiniana. Revista
de Estudos do Discurso, [S.l.], v. 9, n. 2, p. Port. 184-205/ Eng. 191-210, nov. 2014.
ISSN 2176-4573. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/19345/15609 Acesso em
14 ago. 2020.

82
VOLOCHÍNOV, V. N. Palavra na vida e a palavra na poesia. Introdução ao
problema da poética sociológica. In: VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da
enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, p. 71-
100.

VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação. In. VOLOCHÍNOV, V. N. A


construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2013, p. 157-188.

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução,
notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio
introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.

83
DISCURSIVIZAÇÃO EM UM CONTEXTO PANDÊMICO: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES PARA O ENSINO DE LÍNGUAS

Bruno Drighetti 7

RESUMO: Em meio à pandemia do novo coronavírus, surgiu a necessidade de os professores


adaptarem suas práticas de forma a serem aplicadas remotamente. Diante disso, surge a
necessidade de problematizar as atuais condições de trabalho dos docentes, assim como
de refletir sobre as potencialidades oferecidas pelo meio virtual. Assim, com este trabalho,
buscamos analisar como a alteração do mídium afeta o funcionamento de aulas de línguas,
como forma de tentar compreender quais os possíveis efeitos dessa modificação para as
maneiras com as quais os alunos (se) discursivizam. Para atingir esses objetivos, foram
apresentados relatos de práticas de estágios de regência de português como língua
estrangeira e de língua inglesa, focalizando em experiências em que a alteração nas formas
com as quais os alunos se apropriam da língua pode ser entendida como um efeito desse
novo mídium. As análises foram embasadas teoricamente em estudos advindos da Análise
de Discurso Francesa, especialmente o conceito de mídium de Maingueneau (2013), bem
como em pesquisas acerca do funcionamento dos Ambientes Virtuais de Ensino e
Aprendizagem (AVEAs). Como sugerem os resultados, embora a alteração no mídium afete
profundamente as possibilidades de discursivização em sala de aula, esse novo ambiente
de aprendizagem também traz inúmeras potencialidades que podem favorecer um ensino
de línguas significativo.

Palavras-chave: Discurso, Ensino de línguas, Ensino remoto, Estágio, Mídium.

INTRODUÇÃO

A partir de março de 2020, com a eclosão da pandemia do novo


coronavírus no Brasil e a necessidade do distanciamento social, houve a
interrupção das aulas presenciais nas escolas de todo o país. Diante disso, a
maior parte das escolas precisou se adaptar instantaneamente ao ensino
remoto emergencial, o que revelou inúmeras das dificuldades enfrentadas
pela área da educação e deixou transparecer a desigualdade social que

7 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL), na


Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista CAPES. brunodrighetti@ufu.br

84
permeia a construção da sociedade brasileira, tendo em vista que os baixos
recursos possuídos por grande parte das escolas públicas dificultaram ainda
mais esse processo de adaptação.

Nesse contexto, podemos observar que o ensino remoto tem se


revelado custoso para inúmeros profissionais da educação, que têm
enfrentado desafios para a realização de seu trabalho, como: dificuldade
de acesso à internet (por alunos e professores); desaceleramento no
andamento dos trabalhos; ausência de preparo adequado para a
realização do ensino mediado pelos ambientes virtuais; dificuldade para
realização de avaliações; baixo rendimento de grande parte dos alunos;
indisponibilidade de recursos tecnológicos adequados em domicílio;
interação insuficiente com os alunos, que costumam manter suas câmeras
desligadas (SANTOS, NASCIMENTO JUNIOR, DIAS, 2020; ARRUDA, SILVA,
BEZERRA, 2020).

Diante do exposto, esse trabalho objetivou compreender como a


alteração no mídium da sala de aula de língua estrangeira pode afetar as
formas com as quais os alunos (se) discursivizam a partir dessa língua, o que
se deu a partir da apresentação de relatos de experiência críticos de
estágios de língua inglesa e de português como língua estrangeira no curso
de Letras-Inglês na Universidade Federal de Uberlândia. No âmbito dessa
universidade, as disciplinas de Estágio Supervisionado de Português como
Língua Estrangeira e Estágio Supervisionado de Inglês para Fins Específicos
ocorrem no 7º e no 8º período do curso, respectivamente, e no atual
contexto especificamente foram realizadas por meio da regência de cursos
de extensão de forma remota, havendo a utilização de Ambientes Virtuais
de Ensino e Aprendizagem (doravante AVEAs) para a execução do trabalho.

Compreendemos AVEAs como o uso de recursos digitais de


comunicação para fins educacionais, havendo foco nos softwares

85
planejados para esse fim via web que possibilitem ferramentas próprias para
proporcionar a interação (BELMONTE; GROSSI, 2010, p. 3) Para além disso,
concordamos com Santos, que afirma que todo ambiente virtual pode ser
considerado um ambiente de aprendizagem desde que possibilite a
“interação na e pela cultura como um campo de luta, poder, diferença e
significação, [constituindo um] espaço para construção de saberes e
conhecimento” (SANTOS, 2003, p. 2).

Metodologicamente, apresentamos, neste estudo, relatos de


experiências remotas mediadas por AVEAs, procurando aferir possíveis
efeitos da alteração do mídium para aulas de línguas. Para atingir os
objetivos supracitados, embasamos nossas análises em teorias advindas da
Análise de Discurso Francesa, em especial os estudos desenvolvidos por
Dominique Maingueneau.

Um conceito fundamental para esse artigo e que foi mobilizado nas


análises é o de mídium, compreendido por Maingueneau como as
“mediações pelas quais uma ideia se torna força material” (MAINGUENEAU,
2013, p. 81), isto é, trata-se de uma noção mais ampla do que simplesmente
o suporte no qual um discurso se materializa, englobando, também, o seu
modo de difusão. Sendo compreendido como uma instância sócio-histórica,
considerar o mídium apenas como um meio de transmissão do discurso seria
insuficiente, tendo em vista que, a partir dele, são impostas coerções sobre
seu conteúdo e sobre as possibilidades de realização.

É neste sentido que o autor afirma que, ao se analisar um mídium, não


é adequado limitar-se ao gênero ou ao seu suporte material, tendo em vista
a insuficiência desses elementos para problematizar o funcionamento
midiológico. É preciso que seja mobilizado, portanto, todo o conjunto do
circuito que organiza a fala, a qual não deve ser tomada como um processo
linear (MAINGUENEAU, 2013). Dada a complexidade desse elemento, que

86
afeta em diferentes níveis a produção de sentidos em um discurso, surge
nosso interesse em compreender como e se sua alteração na realização de
uma aula afeta a discursivização dos alunos.

Faz-se necessário, neste momento, definir o que compreendemos por


discursivização, conceito que pode ser compreendido como “O conjunto de
operações que se encarrega de transformar a Língua em Discurso [...], ou
seja, é o que faz a passagem do significado (sentido genérico da Língua)
para a significação (sentido específico do Discurso).” (PAULIUKONIS, 2000, p.
93). De forma empírica, esse conceito foi aplicado neste trabalho por meio
da análise e compreensão das formas com as quais a tomada da palavra
foi possibilitada aos alunos nesse novo ambiente de ensino-aprendizagem.

Feita essa breve contextualização da pesquisa e a apresentação de


algumas noções teóricas que embasaram nossas análises, apresentamos, na
sequência, as orientações metodológicas e os resultados críticos dos relatos
que constituem nosso material de análise.

1 METODOLOGIA

Como nosso foco nesse trabalho é problematizar os efeitos da


alteração do mídium nas salas de aula no que tange às possibilidades de
discursivização dos alunos, apresentamos, neste momento, nossos corpora
de análise, assim como os procedimentos metodológicos adotados.

De modo geral, essa pesquisa surgiu de observações de práticas


advindas de dois estágios de regência de línguas estrangeiras. O primeiro
deles se refere ao ensino de língua inglesa, que foi aplicado por meio de um
curso de extensão voltado à preparação ao Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM), composto por alunos do 2º e 3º ano do ensino médio com a

87
pretensão de realizar o exame em breve. A outra experiência se refere ao
ensino de português como língua estrangeira e foi posta em prática a partir
de um curso de extensão voltado a conversação e cultura brasileira com
alunos dos mais variados contextos, desde estudantes internacionais de
cursos de pós-graduação no Brasil a pessoas que apresentam apenas um
interesse futuro em residir no país. Embora sejam contextos muito diferentes,
algo que apresentam em semelhança é o fato de terem ocorrido de forma
remota, sendo mediados principalmente pelo Google Meet e pelo Google
Classroom, e por se tratarem se aulas de língua estrangeira, motivo pelo qual
nos interessa compreender como ocorre a tomada da palavra.

Nesse contexto, foram aplicadas inúmeras atividades aos alunos, tanto


síncronas quanto assíncronas, que tiveram efeitos variados sobre a
discursivização desses alunos. Assim, para a composição do material de
análise, selecionamos experiências, bem-sucedidas ou não, consideradas
relevantes no que se refere à discursivização dos alunos, visto ser esse nosso
foco de análise. Trata-se, portanto, de uma pesquisa de natureza qualitativa,
almejando realizar análises críticas sobre experiências passadas, atribuindo-
as interpretações, não havendo a pretensão, portanto, de estabelecer
estatísticas ou traçar padrões.

Dito isso, organizamos o trabalho da seguinte forma: primeiro,


apresentamos algumas reflexões críticas sobre as experiências com os
estágios mencionados para, então, serem explicadas algumas das novas
possibilidades oferecidas por esse novo ambiente de aprendizagem e
alternativas encontradas aos problemas vivenciados no que se refere à
tomada da palavra pelos alunos.

88
2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Iniciamos, neste momento, a apresentação crítica dos relatos de


experiência de regência de línguas de forma remota, assim como uma
reflexão sobre as potencialidades oferecidas pelos ambientes virtuais.
Quando da regência dos cursos de extensão, algumas questões chamaram
a atenção dos professores no que tange a essa alteração no mídium da aula.
Em se tratando da discursivização, o elemento que mais se destaca é a
mudança na tomada de turnos.

Podemos dizer que o gênero aula, quando realizado presencialmente,


costuma apresentar como organização comum a presença de ao menos
um professor, que utiliza de recursos, como data show ou o quadro-negro
para atingir os seus objetivos pedagógicos, além de alunos com um objetivo
em comum (nos casos analisados, preparar-se para o ENEM ou praticar a
conversação na língua estrangeira). Embora exista uma relação de poder
preestabelecida, na qual o professor se encontra em uma posição
hierárquica superior à dos alunos, não raro os turnos de fala coocorrem e há
uma disputa pela palavra, que muitas vezes resulta em estresse pelo professor
por precisar empenhar um esforço para se fazer audível.

No entanto, essa estrutura é abalada quando se considera a alteração


midiológica. Ao transferir o mídium presencial para o virtual, o gênero aula se
manifesta principalmente por meio de plataformas de comunicação por
vídeo, como Google Meet e Zoom, ou por espaços de salas de aulas virtuais,
como o Google Classroom e o Moodle. Nesse contexto, a tomada da
palavra se torna inevitavelmente mais controlada, tendo em vista que é
necessário ativar o microfone para se fazer audível, isto é, é possibilitado ao

89
aluno gerenciar sua própria participação 8 . Da mesma maneira, esse
ambiente limita a possibilidade de que os alunos interajam entre si oralmente
(assuntos referentes ou não à aula), sendo esse tipo de manifestação
realizada especialmente pelos chats.

De fato, essas questões puderam ser observadas nos dois contextos de


estágio analisados, sendo os turnos de fala mais organizados e,
consequentemente, menos autênticos, por não refletirem práticas
linguísticas tais quais seriam realizadas em contextos concretos de
comunicação (não pedagógicos).

Mais especificamente no que se refere à tomada da palavra pelos


alunos, algumas das consequências observadas em função dessa mudança
na dinâmica de turnos são: i) a baixa interação entre alunos, como
mencionado, faz-se presente, sendo esse contato restrito basicamente às
situações propostas pelo próprio professor para isso; ii) pode ocorrer
silenciamento dos estudantes com relação às interações com o próprio
professor, reflexo da desmotivação de alunos ou de dinâmicas pouco
produtivas para ensejar um trabalho cooperativo; iii) em virtude dos fatores
anteriormente listados, a aula pode se tornar predominantemente expositiva,
de modo que o aluno apresente pouca ou qualquer participação na aula,
correndo o risco de reproduzir indícios de uma educação bancária,
concebida a partir da “transmissão” do conteúdo.

Ainda assim, esses problemas podem ser contornados se o professor


considerar a ampla gama de possibilidades oferecidas pelas AVEAs, que

8Consideramos “participação” as atitudes responsivas dos alunos em relação à aula,


podendo ser ou não verbais. No entanto, como um dos desafios frequentemente relatados
pelos professores é que os alunos não aparecem nas câmeras, essa participação muitas
vezes se limita à linguagem verbal, manifestando-se principalmente pela fala ou pelas
participações nos chats.

90
apresentam ferramentas e práticas de interação próprias9. De fato, como
fruto de uma formação frágil nesse quesito, muitos professores correm o risco
de reproduzirem práticas a partir das tecnologias digitais como uma mera
transposição das aulas presenciais, o que tem por efeito uma limitação das
perspectivas produtivas oportunizadas por esse meio. Além disso, ressalta-se
a necessidade de se considerar que as formas de produção de sentido são
afetadas pela variação midiológica, o que também deve ser considerado
nesse contexto.

Feitas essas considerações, passemos, agora, à apresentação de


algumas possibilidades encontradas para contornar a problemática advinda
da organização de turnos afetando a tomada da palavra. O primeiro
exemplo apresentado se refere à utilização de salas simultâneas, isto é, à
divisão de uma reunião por videoconferência em sessões diferentes, sendo
gerenciada pelo anfitrião da reunião (o professor), que pode retornar os
presentes à sala principal a qualquer momento. Em algumas plataformas,
como o Zoom ou o Microsoft Teams, essa função é possibilitada pelo próprio
aplicativo. No entanto, mesmo em plataformas que não apresentam essa
funcionalidade, isso pode ocorrer, como apresentado a seguir com o uso do
Google Meet.

Como forma de prevenir possíveis silenciamentos e a baixa interação


entre alunos durante o curso de português como língua estrangeira, tendo
em vista ter se tratado inicialmente de uma turma com aproximadamente 20
alunos e considerando as limitações de falas coocorrendo pelo meio digital,
foi realizada uma proposta de conversação mediada por salas simultâneas.

9Garonce e Santos (2012) defendem a necessidade da adoção, da parte de professores,


de atitudes positivas no que se refere aos desafios das práticas mediadas pela tecnologia,
visto se tratar de um espaço disponível ao desenvolvimento de variadas experimentações,
expressões e montagem de conexões em rede, o que sugere a abertura a diversas formas
de fazer uma transposição midiática de forma plena e adequada.

91
Nessa atividade, cujo objetivo era trabalhar o reconhecimento de
regionalismos a partir da música sertaneja, foi proposto que os alunos se
dividissem em quatro grupos menores para discutir a compreensão das
músicas “Ladrão de mulher”, interpretada por Maiara e Maraísa com Marília
Mendonça, e “Vida boa”, interpretada por Victor e Leo, além de identificar
traços de regionalismos ou gírias.

Em se tratando do Google Meet, essa não é uma funcionalidade


prevista para plataforma. No entanto, sendo um curso de extensão
ministrado por quatro professores, isso não foi um empecilho, no sentido em
que foram criadas quatro reuniões manualmente e os alunos puderam ter a
presença de um orientador durante a execução das atividades. Dessa
maneira, podemos considerar que a utilização de salas simultâneas pode
possibilitar a interação aluno-aluno, pelo fato de grupos menores
favorecerem uma menor concorrência de espaço para fala no ambiente
virtual, ocorrendo com ou sem a mediação de um professor. Ainda assim,
ressaltamos a necessidade de que sejam apresentadas instruções claras ao
aluno, especialmente nos casos em que não é possível ter a presença de um
professor em cada sala.

Outra possibilidade encontrada para favorecer a tomada da palavra


pela parte dos alunos foi a partir do uso do AnswerGarden, uma ferramenta
de feedback ou brainstorming na qual o professor pode criar uma pergunta
motivadora e os alunos devem escrever respostas anônimas curtas (com a
limitação de 20 a 40 caracteres, a depender da configuração selecionada)
que aparecem na tela em tempo real. Uma das vantagens dessa plataforma
é que não há a necessidade de criação de contas, haja vista o tempo que
esse tipo de atividade pode tomar em sala de aula, ou baixar aplicativos,
sendo utilizado diretamente a partir do navegador por meio do link criado e
disponibilizado pelo próprio professor.

92
A atividade mediada por essa plataforma foi aplicada no curso de
extensão de inglês para o ENEM. Nessa prática, ilustrada na Figura 1, os
alunos realizaram a leitura de um texto e deveriam compartilhar no
AnswerGarden algumas palavras-chave referentes à problemática
abordada no texto, com o objetivo de ser realizada uma compreensão mais
ampla sobre o conteúdo, compondo parte de uma prática da estratégia de
leitura skimming (técnica para encontrar o sentido geral de um texto).

Figura 1: Atividade realizada a partir do AnswerGarden.

Fonte: Retirado de AnswerGarden.

Como pode ser observado a partir das respostas dadas pelos alunos,
houve um forte engajamento e, de fato, grande parte dos alunos conseguiu
compreender a ideia geral do texto, um caso de violência policial em um
ambiente escolar na África do Sul, o que se reflete em escolhas vocabulares
como “police”, “school” ou “racism”, termos que, por terem sido mais
recorrentes, aparecem em tamanho maior. Além disso, o fato de alguns
alunos terem optado pelo uso da língua portuguesa para o exercício

93
também pode ser representativo de uma tomada da palavra, operando
como uma estratégia para interagir com o texto em inglês por intermédio da
língua apesar de possíveis limitações com a língua estrangeira. Da mesma
maneira, embora o uso de expressões como “colors” para se referir a grupos
étnicos não seja o considerado mais adequado, esse fator também revela
uma tentativa de apropriação da língua estrangeira para comunicação da
parte do estudante.

Diante do exposto, consideramos que atividades mediadas por essa


plataforma podem possibilitar a tomada da palavra pelo aluno, ainda que
brevemente, considerando o limite de caracteres. A partir dela, o aluno tem
autonomia para recorrer à língua para fazer-se compreendido e, como
observado, pode recorrer a diferentes estratégias para tal, como o uso de
sinônimos (ainda que não ideais) ou até mesmo a língua materna.

Por fim, apresentamos uma atividade mediada pela plataforma Quizizz,


software de criação de atividades de “quiz”, a ser aplicado em tempo real
ou de forma assíncrona. Para o uso dessa plataforma, o professor deve se
cadastrar no website e configurar sua atividade. Por sua vez, os alunos não
precisam criar um cadastro, devendo apenas se identificar no momento de
iniciar a atividade. Além disso, a plataforma está disponível em aplicativo
para dispositivos móveis, mas também pode ser acessada a partir do
navegador, prevenindo contratempos ou atrasos desnecessários para o
andamento da dinâmica. Outro fator interessante sobre a ferramenta é que
ela apresenta uma estética e uma organização similar a um jogo, podendo
ter uma música de fundo e até mesmo permitindo ao professor intercalar
perguntas com “memes”, tornando-a mais atrativa ao público jovem.

Na atividade desenvolvida (ilustrada na Figura 2), realizada de forma


síncrona durante o curso de extensão de inglês para o ENEM, os alunos
deveriam colocar em prática a estratégia de leitura scanning (técnica para

94
identificar informações específicas em um texto) a partir da leitura de um
texto sobre queimadas na região do Pantanal.

Figura 2: Atividade realizada a partir do Quizizz.

Fonte: Retirado de Quizizz.

De modo geral, podemos considerar que essa ferramenta pode ser


produtiva por permitir um panorama de acertos e erros dos estudantes, o que
permite que o professor tenha um diagnóstico da turma. Além disso, no que
tange à discursivização dos alunos, trata-se de um instrumento que pode
permitir aos alunos se posicionarem em sala de aula, seja em busca de
informações específicas, como na atividade ilustrada, seja por meio de
perguntas críticas para que o aluno assuma uma posição diante de um tema
específico, por exemplo.

Assim, no caso ilustrado, podemos considerar que a discursivização dos


alunos ocorreu por meio da interação com o texto em língua estrangeira.
Ainda assim, é necessário reconhecer que essa plataforma apresenta uma
limitação quanto à abertura de escolhas para que o estudante se aproprie
da língua, tendo em vista que as opções do “quiz” são postas previamente

95
pelo professor. Por esse motivo, consideramos necessário promover, em uma
sala de aula virtual, a articulação de diferentes recursos, de modo que seja
possível, por meio de variadas dinâmicas, atingir diversos objetivos quanto ao
desenvolvimento de habilidades linguísticas e utilizar boa parte das
potencialidades oferecidas pelas tecnologias digitais.

Da mesma maneira, é necessário que o professor se mantenha flexível


para a possível necessidade de repensar plataformas. Essa questão foi
observada em ambas as experiências de estágio relatadas, tanto de
português como língua estrangeira quanto de inglês. A exemplo disso,
quando do início dos cursos, houve a previsão inicial de interações com os
alunos a serem desenvolvidas pelo Google Classroom. Todavia, no decorrer
dos semestres, a ferramenta previamente selecionada revelou um
engajamento baixo dos estudantes, pelo fato de eles estarem pouco
familiarizados com ela, urgindo a necessidade de repensá-la.

Para solucionar esse entrave e criar possibilidades de interação e


tomada da palavra, foi proposto que os alunos enviassem suas atividades e
interagissem por intermédio do grupo da turma no WhatsApp, instrumento
com o qual grande parte dos alunos apresentam familiaridade e que pode
ser usado com fins pedagógicos. Afinal, reforçamos nosso posicionamento
de que, desde que propondo um trabalho de interação na e pela cultura
como espaço de construção de conhecimentos, a maior parte dos
ambientes virtuais poderá operar como uma sala de aula virtual (SANTOS,
2003).

96
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises realizadas sugerem que, para se realizar um trabalho com


o ensino de línguas potencialmente significativo, é de fundamental
importância considerar os efeitos produzidos pela modificação no mídium no
ensino remoto, caso contrário as potencialidades oferecidas pelos
ambientes virtuais possivelmente não serão usadas para propiciar a
discursivização dos estudantes. Ressaltamos, no entanto, que esses
ambientes apresentam inúmeras potencialidades, cabendo ao professor
utilizá-las de forma a atingir os seus objetivos. Neste sentido, concordamos
com Schlemmer (2005) quando a autora, referindo-se às novas possibilidades
de Ensino a Distância10, afirma que:

[...] entendemos que a aprendizagem acontece na interação do


sujeito com o objeto de conhecimento e, portanto, a interação se
institui como um dos principais elementos de um processo educativo
[...] assim, é necessário que professores-pesquisadores se apropriem
dessas possibilidades para compreendê-las no contexto da sua
natureza específica. Isso exige novas metodologias, práticas e
processos de mediação pedagógica, de acordo com as
potencialidades oferecidas, para que se constituir numa inovação
educacional. De outra forma, podemos estar falando apenas de
uma novidade e não de uma inovação (SCHLEMMER, 2005, p. 187).

Dessa maneira, foi possível observar que, com a alteração do mídium


de aulas de línguas para o ambiente virtual, a tomada da palavra é afetada
pelo fato de se tornar mais controlada e menos autêntica, o que pode ter
por efeito uma aula expositiva ou com baixa participação dos alunos. Frente
a isso, foram propostas algumas dinâmicas a partir do uso de tecnologias
digitais com o intuito de sanar algumas dessas dificuldades, a realização de

10Embora a autora analise especialmente as potencialidades dos Espaços de Convivência


Digital Virtuais (ECODIs), essas considerações também podem ser aplicadas às AVEAs.

97
salas simultâneas e de atividades a partir do AnswerGarden ou Quizizz. Da
mesma maneira, se necessário, urge a necessidade de repensar plataformas
para que os objetivos pedagógicos, como a tomada da palavra pelos
alunos, possam ser alcançados. Esses aspectos nos revelam alguns dos
desafios da docência, visto que é necessário considerar, ainda, o fato de se
tratar de um contexto de pandemia, marcado por uma forte instabilidade
social e psicológica.

Por fim, espera-se ter sido possível, a partir desse trabalho,


problematizar algumas das práticas de ensino remoto de línguas que têm
ocorrido durante o período de pandemia e que, a partir disso, haja o ensejo
para futuras pesquisas e reflexões acerca de práticas de ensino de línguas,
bem como sobre as potencialidades e desafios referentes ao trabalho com
AVEAs.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, G. Q.; SILVA, J. S. R.; BEZERRA, M. A. D. O uso da tecnologia e as


dificuldades enfrentadas por educadores e educandos em meio a
pandemia. Anais VII CONEDU - Edição Online. Campina Grande: Realize
Editora, 2020. Disponível em:
https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/69162. Acesso em: 28 jun. 2021.

BELMONTE, Vanessa; GROSSI, Marcia Gorett Ribeiro. Ambientes virtuais de


aprendizagem: um panorama da produção nacional. In: CONGRESSO ABED.
2010. Disponível em:
http://www.abed.org.br/congresso2010/cd/2942010181132.pdf. Acesso em:
28 jun. 2021.

98
GARONCE, F.; SANTOS, G. L. Transposição midiática: da sala de aula
convencional para a presencial conectada. Educação & Sociedade, v. 33,
n. 121, p. 1003-1017, out/dez. 2012.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 6 ed. Trad. Cecília P


de Souza-e-Silva. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

PAULIUKONIS, M. A. L. Processos de discursivização: da língua ao discurso


caracterizações genéricas e específicas do texto argumentativo. Veredas -
Revista de Estudos Linguísticos, Juiz de Fora, v. 4, n. 2, p. 89-96, dez. 2000.

SANTOS. E. O. Ambientes virtuais de aprendizagem: por autorias livre, plurais


e gratuitas. In: Revista FAEBA, v.12, no. 18, 2003.

SANTOS, R. P.; NASCIMENTO JÚNIOR, J. M. M.; DIAS, M. A. A. As dificuldades e


desafios que os professores enfrentam com as aulas remotas emergencial em
meio a pandemia atual. Anais VII CONEDU - Edição Online. Campina Grande:
Realize Editora, 2020. Disponível em:
https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/68020. Acesso em: 28/06/2021.

SCHLEMMER, E. Dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem aos Espaços de


Convivência Digital Virtuais – Ecodis: o que se mantêm? O que se modificou?
In: VALENTINI, C. B.; SOARES, E. M. S. Aprendizagem em Ambientes Virtuais:
compartilhando idéias e construindo cenários. Caxias do Sul: EDUCS, 2005. p.
145-191.

99
A LINGUAGEM ANTIRRACISTA NO DISCURSO DE PROTESTO DE
CAROLINA MARIA DE JESUS – VARIAÇÃO LINGUÍSTICA COMO
MARCA DE ESTILO E IDENTIDADE

Ana Maria Urquiza de Oliveira 11

RESUMO: O trabalho analisou estratégias discursivas no discurso dissidente da mulher negra


de periferia na obra Quarto de Despejo de Carolina de Jesus. O objetivo é contribuir com
reflexões do campo linguístico com enfoque na variação linguística. Estes discursos,
advindos das margens, têm campo semântico de excluídos sociais, mostra a escrita no lugar
de fala como um marcador de estilo linguístico e de identidade, bem como a utilização de
usos linguísticos característicos da favela. Os estudos semióticos feitos nas obras da autora
mostram a importância de desenvolver pesquisas que ressaltem e enalteçam as vozes, os
usos e os estilos linguísticos representativos das minorias como forma de propiciar reflexões a
respeito das relações de poder que se estabelecem no uso da linguagem. A pesquisa,
fundamentada em uma revisão bibliográfica traz o quadro teórico-metodológico das
questões linguísticas: Bagno (1999, 2019), Lucchesi (2003, 2006); questões ideológicas,
políticas e sociais: Foucault (1971, 2008), Aurox (1992), Freire (1978, 1988, 2006). Os resultados
trazem um campo semântico que remete à exclusão, ao abandono e ao preconceito racial
e social e uma narrativa que foge às regras e prescrições dos sistemas literário e gramático
brasileiros que gerenciam as normas de seu funcionamento de modo a atender interesses
da ideologia dominante. No entanto, o discurso de Carolina constitui um deslocamento,
uma contrapalavra e lança seu estilo linguístico e sua identidade tomando seu lugar de fala
na sociedade através da escrita.

Palavras-chave: Carolina de Jesus, Variação Linguística, Estilo Linguístico, Identidade.

INTRODUÇÃO

Os estudos semióticos (FIORIN et al 2018a, 2018b), da sociolinguística


(BAGNO, 1999, 2019; LUCCHESI, 2003, 2006; MENDES, 2018a, 2018b), da cultura
e do campo político-ideológico como marcas de participação do sujeito na
vida social (AUROX, 1992; FOUCAULT, 1971, 2008; FREIRE, 1978, 1988, 2006) e
estudos sobre o lugar de fala (FONTANA, 2017) e antirracismo (GONZALES,
1984) mostram a importância de desenvolver pesquisas que ressaltem e

11 Mestra em Educação pela Faculdade de Educação da USP, urquizanasousa@email.com

100
enalteçam as vozes, os usos e os estilos linguísticos advindos das minorias
como forma de propiciar reflexões a respeito das relações de poder que se
estabelecem no uso da linguagem.

Embora vivendo o século XXI, temos um cenário político autoritário e


aos modos da ditadura, impossibilitando a tomada de posição daqueles que
não pertencem ao grupo dominante política e economicamente. Portanto,
é de extrema importância levantar estudos e espaços de pesquisa que
abordem questões de desigualdade social, discriminação e racismo
evidenciados nos usos linguísticos como forma de apresentar espaços de
contrapalavras aos discursos de injustiças sociais.

Carolina Maria de Jesus não é caracterizada como escritora de


espaços de poder simplesmente por pertencer a espaços sociais e culturais
das margens e por ser negra. Na disseminação do saber na sociedade há
um seleto grupo que dita quem faz uso da escrita, como e para quê no
sentido de defender e propagar interesses da lógica capitalista. Assim,
mostrar que a oportunidade que lhe é singular, da vida acontecendo na
favela onde viveu, desenvolve em seus discursos a crítica social com registros
práticos de opressão e exclusão como marcas de um passado escravista, a
percepção das relações de poder no uso da linguagem, a luta pelo direito
de voz e, assim, a denúncia às injustiças das quais é vítima junto aos seus
pares.

Estudos nessa linha têm ganhado espaço nos últimos anos nas
academias, desenvolvendo o desejo de luta por espaço de fala na
sociedade – pelas minorias –, e demonstram o caráter político e ideológico
presente nos usos linguísticos nas diversas maneiras de utilização da língua
em diferentes espaços e culturas. Carolina de Jesus tem sido objeto de
estudos de pesquisadores de diferentes áreas, demonstrando assim, o
grande valor social de suas obras. Novas investigações são necessárias, já

101
que as percepções são diversas e a luta representada por ela, contínua e
dinâmica, como os estudos da linguagem e, diria, a própria vida.

O poder de luta daqueles que habitam os rincões deste país e têm a


fome e a miséria presentes em seus cotidianos é forte. Para Carolina, “a pior
coisa do mundo é a fome” (1960, p.167), esse discurso ecoa nas silenciadas
vozes de milhões de brasileiros! Já ocupei este espaço, o da fome e da
miséria, sofri os efeitos da injustiça social no interior do Piauí. Se ela, mesmo
sem escolaridade, sem oportunidade de frequentar a escola “quando não
tinha nada o que comer, em vez de xingar escrevia” (1960, p.170) e, por isso,
conseguiu ser vista de outra forma pela sociedade brasileira, ocupando
outros lugares devido à escrita viva de seu cotidiano, ler seus textos fortalece
em nós o desejo de estudá-los para continuar o compartilhamento junto a
muitas já realizadas pesquisas enriquecedoras que as têm como objeto de
estudo.

Devido à importância que seus textos ocupam nos espaços de luta nos
campos social, político, ideológico, econômico, cultural e linguístico, suas
narrativas são dignas de serem conhecidas, lidas por outras mais pessoas
como estudantes e professores, comunidade escolar para levar a espaços e
tempos outros a fim de que seja revivida e ressoe sempre nas margens e fora
delas.

Paulo Freire embora não seja um linguista, desenvolveu ricas reflexões


a respeito da linguagem e de seu uso destacando que o grupo dominante
tem o poder de impor às minorias desprestigiadas socialmente a forma de
uso da linguagem que lhe é própria desvalorizando assim os modos de usos
que representam as massas. Os modos de falar próprios da favela, por
exemplo, são estigmatizados, o próprio termo favela soa pesado na boca de
quem sofre fome e miséria. Sabe-se, porém, que a língua produz discursos

102
ideologicamente opostos, pois classes sociais diferentes utilizam um mesmo
sistema linguístico (BAGNO, 2019).

Esta percepção e o aprofundamento teórico nas questões


apresentadas geraram as seguintes indagações: a escrita no lugar de fala
pode funcionar como um marcador de estilo e identidades?; como se dá a
utilização de usos linguísticos em temas característicos de mulheres negras
de periferia?; como se desenvolve o estilo de fala nos textos escritos da
autora e como se dá o lugar de fala – ela têm um lugar legitimado de voz ou
toma esse lugar através da escrita?

1 METODOLOGIA

A pesquisa bibliográfica Gil (2002) aconteceu por meio da coleta de


dados, a seleção da obra, Quarto de Despejo, a leitura e a análise linguística
da mesma. Analisamos os fenômenos de variação linguística e percebemos
a tipologia textual dos escritos da autora tendo a narrativa em espécie de
diário/história onde o discurso típico da fala cotidiana se faz presente na
escrita de seu Quarto de Despejo.

Partindo inicialmente dos pressupostos apresentados, analisamos os


discursos em diferentes contextos na obra da autora com o intuito de trazer
uma análise mais abrangente da semiótica discursiva e da sociolinguística,
bem como os pressupostos linguísticos e ideológicos. Para esse fim, trazemos
os percursos metodológicos: leitura da obra Quarto de Despejo,
identificando usos e estilos linguísticos e campo semântico; leitura e análise
da obra sobre o viés sociolinguístico observando a variação linguística;
levantamento de dados em diferentes fontes (livros físicos e digitais, sites);

103
diálogos com outros pesquisadores para troca de conhecimentos em
congressos e seminários.

2 LÍNGUA(GEM), LINGUÍSTICA E AS RELAÇÕES DE PODER

O artigo analisou a variação linguística à luz dos estudos da


Sociolinguística com base referencial em Fiorina et al (2018a, 2018b), Bagno
(1999, 2019) e Lucchesi (2003, 2006). O uso da língua se dá conforme
interações sociais, que implicam o contexto histórico e as expressões
referentes a determinadas culturas. Cada homem está situado no espaço e
no tempo, no sentido em que vive numa época precisa, num lugar preciso,
num contexto social e cultural preciso. A linguagem é comum a todos os
homens, as distinções entre as línguas são de natureza cultural (FIORIN et al,
2018a). Assim, as relações humanas que se dão através do uso da linguagem
estabelecem – no jogo capitalista – quem pode dizer e quem não pode
(FOUCAULT, 1971). As relações de poder perpassam o campo político e
econômico e adentram a linguagem. Os usos da língua na sociedade são
marcados de forma polarizada, principalmente quando se trata da escrita
(BAGNO, 2019; LUCCHESI, 2006). Nesse jogo, tem legitimidade do dizer um
seleto grupo em detrimento do restante da população que não é autorizada
a dizer.

Quanto ao aspecto criativo da linguagem, todos os falantes de uma


língua, qualquer que seja ela, independentemente de seu grau de
inteligência ou de instrução, tem a capacidade de produzir e compreender,
sem esforço, um número muito grande e infinito de sentenças (FIORIN, et al
2018). Para Foucault (2008) a linguagem, a comunicação e certa relação
perpétua dos homens entre si são características do individual e da
sociedade – ambos não podem existir um sem o outro.

104
Partindo dessas premissas, as análises demonstram de que modo a
incorporação do tema, dos usos e do estilo linguístico pode contribuir para o
campo dos estudos da Linguística. O pertencimento a um grupo social, aqui
proposto como universo discursivo, pode ser revelado por meio de questões
sociais, culturais, político-ideológicas e linguísticas. Carolina compartilha do
grupo de mulheres negras de periferia, vítimas de injustiças sociais. Essa
inferência tem base no fato de que há nesses escritos o locus da periferia e
do discurso antirracista, a autora não obedece passivamente os ditames da
sociedade dominante e o faz por meio do uso da língua na modalidade
escrita, tomando um espaço que não lhe é dado legitimadamente. Vejamos
alguns discursos do corpus que marcam o racismo, a discriminação e a
crítica a estas posturas, feitas por Carolina:

Foi sepultado como um Zé qualquer.; Ninguém procurou saber seu nome.


Marginal não tem fome. (p.36); Enfim, o mundo é como o branco quer.
(p.63).; Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São
Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está
enferma. Com as suas úlceras. As favelas. (p.76); Preta é a minha pele. Preto
é o lugar onde eu moro. (p.147); Não é preciso ser letrado para
compreender que o custo de vida está nos oprimindo. (p.170); então
começamos a falar sobre o preconceito (p.108); O nosso mundo é a
margem (p.161).

A esse respeito, é relevante fazer menção à luta contra o racismo no


Brasil que se faz contínua. Os espaços onde mais estão situados os negros é
o da favela demonstrando o racismo estrutural: “É nas favelas onde mais
morrem jovens negros, assim como onde estão as escolas públicas
sucateadas e predomina a atuação quase nula do poder público, visível em
aspectos como a falta de saneamento básico e de estrutura também na
saúde pública.” (BAGNO, 2019, p.148).

105
Os estudos da linguagem no século XX trazem a publicação póstuma
do Curso de Linguística Geral (1916) de Saussure, (foi lançado neste mês pelo
linguista Marcos Bagno a tradução desta obra com novas notas e publicado
pela editora Parábola) e nos anos 50, os estudos de Chomsky (Gerativismo),
voltam-se para uma visão mais formal da língua valorizando o conhecimento
mental que o falante possui. Para Saussure há uma diferença entre língua
(langue) e fala (parole) caracterizando o Estruturalismo. Os dois linguistas
veem “a língua como algo abstrato e desvinculado de fatores sociais,
históricos ou culturais”. Bagno (2019) diz que essa diferença decorre porque
em francês e em português existem duas palavras diferentes, linguagem e
língua, com significados próprios; enquanto o inglês só usa um termo
language.

Os estudos da Sociolinguística têm destaque com Labov nos anos 60


nos Estados Unidos e então a língua passa a ser vista de modo diferente. A
Sociolinguística é uma área da Linguística que estuda a relação entre a
língua que falamos e a sociedade em que vivemos. Analisa as diferentes
formas de olhar para a relação entre língua e sociedade. Mendes (2018a,
p.112) chama a atenção para a concepção de língua laboviana, a social,
em que os usos das ferramentas linguísticas não se explicam só em termos
linguísticos, mas também em termos sociais.

Com a reconstrução do Estado para atender interesses econômicos


do grupo dos mais ricos e causar o enfraquecimento dos movimentos de luta
e dos sindicatos desde o golpe, reafirma-se o modelo de governo que não
reconhece nenhuma autoridade superior a dele – que se faz autoritária.
Nesse sentido, pergunta-se o que é produzir conhecimento, distribuir escrita
nesses tempos sombrios, já que a escrita é um traço de produção de
diferenças, desigualdade, demarca poder. A seleção de textos de Carolina,
por exemplo, constitui escolha ideológica – partindo de quem é adepto da

106
igualdade de direitos e contra a discriminação, o preconceito e toda e
qualquer injustiça social. Todavia, o respeito à heterogeneidade da língua
não faz parte da política governamental e dos órgãos educacionais que aí
se encontram onde a vida humana é animalizada, pior, é desprovida de
qualquer valor.

3 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM QUARTO DE DESPEJO

A Sociolinguística (MENDES, 2018b) ocupa-se em desvendar como a


heterogeneidade – ou seja, a variação – se organiza. Conforme o autor, o
sociolinguista variacionista vê a língua como um sistema inerentemente
variável e postula que Labov é o cientista mais conhecido nesses estudos.

Falamos a mesma língua, o português, mas há características que


diferenciam o modo de uso entre um grupo e os demais como afirmam
renomados linguistas. Conforme Bagno (1999), a rica variedade cultural que
o Brasil apresenta é manifesta no uso que se faz da língua e, portanto, há
nesse uso uma manifestação das relações de poder, em que, o modo de uso
da língua de um seleto grupo dominante é valorizado enquanto os demais
usos – das minorias sociais – são estigmatizados. Em contraponto à injusta
classificação da língua entre certo e errado para impor também, através
desse uso da língua, a opressão às classes sociais desprivilegiadas
socialmente, o linguista se ocupa de estudar, sem julgamentos (FIORIN,
2018a), os diversos usos da língua para apontar as diferentes características
de cada variação de acordo com o grupo social. No que concerne ao uso
da língua, conforme Lucchesi (2006), o português brasileiro não é aquele
trazido pelos portugueses, mas o português aprendido como língua
estrangeira de forma violenta por africanos escravizados.

107
Bagno (2019) faz uma análise histórica, cultural, social e linguística
sobre as variações e destaca a importância de estudar a origem e a história
das línguas, bem como do português a fim de melhor compreender o
português brasileiro e suas variações. Dentre os fatores imprescindíveis a esse
entendimento, traz a formação do nosso povo com a colonização à
contemporaneidade, sobressaltando as contribuições de culturas como a
indígena, a africana e algumas de diversos países europeus através de seus
imigrantes. Não há como fechar os olhos a esta realidade. Em pleno século
XXI, ano 2021, tem um pouco de cada cultura representada na língua em
que falamos.

O modo de uso da língua mostra claramente que é feito para


interesses do grupo dominante. Ao longo de toda a história das línguas, é
possível observar que a chamada norma culta ou padrão existiu para
atender interesses do governo e da igreja em diversos lugares do mundo em
todos os tempos (FIORIN et al, 2018a). As gramáticas são escritas para
atender interesse de um grupo e tudo que é diferente é visto como errado,
não serve (BAGNO, 2019) e ainda são escritas tendo os modelos clássicos
como referência (AUROX, 1992). Para Petter (2018b), a gramática (norma
padrão) é prescrita por fontes de autoridade e as demais variedades são
consideradas inferiores e incorretas, a correção da linguagem está
associada às classes altas e instruídas.

A análise da variação linguística de Quarto de Despejo destaca os


níveis de análise linguística conforme Mendes (2018a):

►VARIAÇÃO FONOLÓGICA – a vogal [o], quando numa sílaba átona


anteposta a uma tônica, pode ser pronunciada como [o], [u] (uma vogal
mais fechada que [o]) ou [ó] (uma vogal mais aberta que [o]). A vogal /e/,
quando na mesma posição – em palavras como “menino”, “preciso” e
“peludo” -, pode ser pronunciada variavelmente como [e], [i] (mais fechada)

108
ou [é] (mais aberta). Ele destaca que “a pronúncia dessas vogais constitui,
portanto, uma variável; as diferentes pronúncias reveladas nas falas das
pessoas para tais vogais constituem as variantes dessa variável” (p.114). Em
sua primeira edição de Preconceito Linguístico, Bagno exemplifica casos de
variação na pronúncia:

Toda variedade linguística é também o resultado de um


processo histórico próprio, com suas vicissitudes e peripécias
particulares. Diante de uma tabuleta escrita COLÉGIO é
provável que um pernambucano, lendo-a em voz alta, diga
CÒlegio, que um carioca diga CUlegio, que um paulistano
diga CÔlegio. (...) nem todas as pessoas falam a própria língua
de modo idêntico. (1999, p. 52)

Trazemos vários exemplos encontrados no corpus: Tussir/tossir (p.9),


cumesse/comessem (p.9), fidida/fedida (p.24), purtugueses/portugueses
(p.52), buchechar/bochechar (p.23), viludo/veludo (p.28), binidito/Benedito
(p.28), sitim/cetim (p.33), durmir/dormir (p.43), obediente/obediente (p.46),
bichiga/bexiga (p.51), resulutas/resolutas (p.54), pidindo/pedindo (p.70),
tussindo/tossindo (p.82). privenida/prevenida (p.86), vestido/vestido (p.92),
Reboliço/rebuliço (p.96), pidindo/pedindo (p.97), regridir/regredir (p.134);
eu vi ela fazê/fazer. (p.47)

►VARIAÇÃO MORFOLÓGICA – Mendes destaca os casos de concordância


nominal e verbal: eles anda por eles andam. Carolina, por representar a vida
e a fala do povo da favela onde viveu, traz muitos exemplos em seu Quarto
de Despejo:

Elas alude (p.14); elas vai (p.20); eles ve (p.22); nois impediu (p.22); As
mulheres lhe conta (p.54); É 5 horas (p.15); os que não ganhou
(p.112); As aguas invadiu (p.54); que as mulheres dizia (p.56); nós da
favela somos temido (p.73); são os adultos que contribue (p.79);

109
quando o povo da alvenaria me viram (p.86); As palavras do senhor
Pinheiro reanimou-me (p.89); Antigamente era os operarios que
queria o comunismo (p.99); Várias pessoas veio (p.126); Elas dá
confiança. (p.139)

►ROTACISMO – troca de consoante (l) pela consoante (r), como em


pranto/planta, já observamos ser bem marcante em Carolina:
“Impricar/implicar (p.13); impricam/implicam (p.24);
impricancia/implicância, (p.61); agromeração/aglomeração” (p.115).

►VARIAÇÃO DISCURSIVA - Se uma língua é um sistema, a variação linguística


é fato observado nos seus diferentes subsistemas (2018a, p.125). O
sociolinguista variacionista tem como principal interesse compreender de
que modo a variação é regulada. No nível discursivo, em Quarto de Despejo,
a cultura aparece tematizada pela opressão, figurativizada por Carolina, os
favelados e os negros pobres. O espaço da favela é o espaço da opressão,
do sofrimento e da fome, mas também da resistência e da tomada de voz.
O Campo semântico como marca da opressão social, do racismo e da
discriminação é forte na obra de Carolina:

Fome (p.25); eu cato papel, mas não gosto (p.25); Fome, favela lixo
alcoolizado (p.26); pobres, míseros, treis bêbado, a verdadeira casa própria
e a sepultura (p.29); fraquesa, chiqueiro de São Paulo, revolta, perder o
interesse pela existência (p.30); chora criança (p.32); A vida é amarga.
Causticante (p.33); rebotalho, quarto de despejo (p.33); são diamantes que
se transformam em chumbo (p.34); minoria, braço desnutrido (p.35); faz de
conta que eu não presenciei esta cena, existência infausta dos marginais,
um Zé Qualquer (p.36); Marginal não tem nome; Eu hoje estou triste. Estou
nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente.;
Dura é a vida do favelado. (p.37); ainda mais quando é arroz e feijão. É uma
festa para eles. (p.38); porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos
rodeia. A tontura da fome é pior que a do álcool. (p.39); barracão é
barracão (p.42); o meu dilema é sempre a comida. (p.45), só quem passa
fome é que dá valor a comida. (p.48); é preciso criar este ambiente de
fantasia, para esquecer que estou na favela (p.52); já uso o uniforme dos
indigentes (p.55); que eu sei é que o leite está sendo despesa extra (p.59);

110
quando eu fiquei doente eu andava até querendo suicidar por falta de
recursos (p.60); eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no
álcool (p.65); um casal tem 8 filhos, outro 6 e daí por diante (p.66); em cana
(p.67); as pragas (p.68); fugando e bradando, nortistas por nordestinos (p.68);
nasceu com as ideias ao avesso (p.70); parece que eu vim ao mundo
predestinada a catar. Favelados, bater carteira, maloqueira (p. 75); a
cidade está enferma; a revolta surge das agruras (p.76); pinguços (p.81); se
estou suja é porque não tenho sabão (p.89); Olhou-me com repugnancia.
Já estou familiarisada com estes olhares. Não entristeço (p. 98); Eu comecei
sentir tonturas porque estava com fome (p.104).

A prática docente de mais de uma década desta professora


corrobora com os dizeres de Freire: “[...] haverá sempre algo, nas expressões
culturais populares, da ideologia dominante, mas há também,
contradizendo-a, as marcas da resistência, na linguagem, na música, no
gosto da comida, na religiosidade popular, na compreensão do mundo”
(1988, p. 36). Nos resultados obtidos em nossa pesquisa de Mestrado 12, os
textos escritos dos estudantes de periferia do município de Diadema
expressam denúncia social e resistência ao discurso escrito formal da classe
dominante como representante único da linguagem correta. Os discursos
dos alunos demonstram, no ato de resistir ao silenciamento que lhes é
imposto pela escrita, vozes de denúncia a esta realidade e de cidadãos que
se valeram do direito de voz dado na e pela escola, ao emitirem opinião
crítica através da escrita formal escolar.

4 USOS E ESTILOS LINGUÍSTICOS

O uso linguístico é inerentemente variável e as variantes, embora


linguisticamente indiferentes, são socialmente significativas. Cabe ao
linguista descrevê-los e explicá-los. (MENDES, 2018a, p. 118) a variação está

12 As
modalidades do uso da língua no ensino de Português na Educação de Jovens e
Adultos. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação - USP (Defesa: 30/08/19).

111
na história social da própria língua e o uso linguístico torna-se hábito. Todos
nós temos impressões e fazemos avaliações acerca de usos linguísticos e, sim,
muitas delas são preconceituosas; ao (sócio) linguista, contudo, cabe
descrever e explicar os significados sociais correlatos a certos usos linguísticos.
(MENDES, 2018a 113). Os usos linguísticos estão correlacionados a
características sociais como sexo, idade, nível econômico e escolaridade.

Mendes destaca que o sociolinguista precisa observar os usos


linguísticos tais como ocorrem, como se não estivessem sendo observados e
os usos linguísticos são diferenciados de acordo com estratificações sociais.
Assim, diferentemente, todas as formas ocorrem em todos os contextos, em
todos os estilos – num padrão que não é caótico e é socialmente explicável.
Ele traz a cidade de São Paulo como lugar ideal para estudos de variação
linguística evidenciando a diversidade cultural e os fortes contrastes sociais,
este é o cenário que vive, fala e escreve a nossa Carolina. No estudo de
Labov na cidade de Nova York ele concluiu que a fala da classe mais baixa
era imitada por garotos que achavam o “estilo um símbolo de vida dura e
de resistência à autoridade” (2006[1966]: 18 apud Mendes, 2018). Temos a
hipótese de que os discursos de Carolina têm estilos que se assemelham a
este fato observado por Labov.

Vimos com Labov (1966,1972) que o mesmo falante em diferentes


contextos se expressa de modo diferente de acordo com o propósito de
comunicação, não existe falante de estilo único. O estilo é um caracterizador
de um indivíduo, mas também é o indicador de uma afiliação social. Para
nossa análise, interessam-nos as duas premissas: a que identifica o individual
em na autora e a que identifica seu perfil social e de seus pares
representados em seus textos. Em seu diário Quarto de despejo, tem um estilo
distinto, em alguns aspectos, de quando escreve – ocupando outro lugar na
sociedade –, como em Casa de Alvenaria. Logo, o estilo é visto como marca

112
de identidade (MENDES, 2018a). Nessa esteira Fiorin (2018a) defende que a
recorrência de traços linguísticos de expressão e de conteúdo criam uma
imagem do falante, o estilo. Todo falante/escritor tem um estilo, não apenas
escritores renomados.

Mendes (2018a) sustenta que o interesse pelo estilo (na fala individual)
surge com a pesquisa laboviana, mas as mais recentes apresentam algumas
diferenças na medida em que a abordagem da variação já não se faz numa
base estritamente dialetal (a região, o estrato social numa comunidade,
etc.), mas sim na base da contribuição de variantes linguísticas para a
construção de categorias de identidades. O autor completa que a própria
língua define alguns limites para a sua variação e que é no contato linguístico
com outros falantes de sua comunidade que ele vai encontrar os limites para
a sua variação individual (2018a, p.128). Os usos e estilos linguísticos podem
ser entendidos à luz dos estudos da variação, para Bagno, o espaço em que
a língua varia é o espaço geográfico propriamente dito, mas também o
espaço social. A mudança se processa no decorrer do tempo (2019, p. 13).
Labov (2001) defende o mesmo. Mendes (2018, p.129) diz que “tendemos a
falar como as pessoas com quem mais falamos, exemplo claro de que as
atitudes linguísticas não estão delimitadas apenas por fronteiras geográficas,
mas também por fronteiras sociais”.

Ao tratar de usos e estilos linguísticos, o conceito de comunidade de


fala é importante para compreensão dos estudos. A expressão surgiu do
interesse em descrever e explicar os fatores de variação, com os primeiros
estudos labovianos. Na linha de pensamento laboviana, uma comunidade
de fala se caracteriza pelo fato de se constituir por pessoas que falam do
mesmo modo, mas por indivíduos que se relacionam, por meio de redes
comunicativas diversas, e que orientam seu comportamento verbal por um
mesmo conjunto de regras. Segundo Labov “uma comunidade de fala não

113
pode ser concebida como um grupo de falantes que usam todos as mesmas
formas; ela é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas
normas a respeito da língua” (2008[1972], p. 188). Para ele, é na comunidade
de fala que a variação e a mudança tomam lugar, ou seja, neste lugar se
dá a iteração entre língua e sociedade. Os usos linguísticos de Carolina em
Quarto de despejo caracteriza o falar cotidiano de pessoas da periferia, os
oprimidos e excluídos sociais, seu estilo é típico de um discurso antirracista,
das margens, que traz a dor da fome e do frio e o silêncio emudecido no seu
lugar de quem não pode dizer, não pode ser, conforme a lógica do sistema
capitalista. Seu estilo é o da tomada de voz que fala, grita através da escrita
de seu diário:

Percebi que nós da favela somos temido (p.77); o dia está triste igual
a minha alma (p. 79); Olhou-me com repugnancia. Já estou
familiarisada com estes olhares. Não entristeço (p. 98); Eu comecei
sentir tonturas porque estava com fome. No sonho eu estava alegre
(p.111); A palavra da moda agora é aumento. Aumentou! (p.119);
Nós já estamos predestinados a morrer de fome (p.126); Igual os Cesar
quando torturava os cristãos (p.129); a cidade é um morcego que
chupa o nosso sangue (p.160).

A existência do negro no país é uma questão de demarcação e


afirmação de controle geográfico e econômico (a favela é o seu lugar),
inscreve um modelo de relações sociais e espaciais que são determinados
pelo Estado – o das margens, do subúrbio, da subsistência. Como movimento
de resistência ao controle do saber, Fontana (2017), representa a luta contra
o racismo e a discriminação defendendo a importância de dar visibilidade à
multiplicidade de vozes de grupos marginalizados – mulheres negras,
indígenas e homens negros como sujeitos políticos. Partindo do
entendimento da linguagem como mecanismo de manutenção de poder,
a autora assegura seu compromisso com a descolonização do pensamento
rompendo a narrativa dominante. Gonzales (1984) afirma que é o lugar onde

114
se encontra o negro que determina sua interpretação sobre o racismo – que
se constitui como a sintomática de uma neurose cultural brasileira. A visão da
mulher negra – mulata e doméstica – combatida pela autora – é tema em
Carolina. Gonzales inicia seu processo de escrita a partir de um lugar de fala
seu, onde mostra suas verdadeiras vivências sob o ponto de vista de uma
mulher negra, num contraponto aos discursos do branco a respeito do negro.
Ela sai da “lata de lixo da sociedade brasileira” e assume/toma seu “lugar de
fala” (1984, p.226).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em contraposição a esta polarização dos usos da linguagem, vimos


que a temática, o estilo e os usos linguísticos dos textos marcam ideologias,
recorrências semânticas (MENDES, 2018) que mostram a relação de opressão
dos mais fracos e seu silenciamento (FREIRE, 1988; GONZALEZ, 1984). A região
de moradia da autora – marca de classe social – tem influência no uso das
palavras (MENDES, 2018) – campo semântico, ideológico no discurso escrito,
vindo ao encontro do que propõe Foucault quanto à disseminação do saber
através da escrita na sociedade.

A contrapalavra ao silenciamento imposto pela cultura dominante, o


eu empoderado na coragem feita na dor, a voz que representa as massas
oprimidas e o cotidiano da favela marcam o discurso de Carolina – trazemos
este estudo como forma de resistência aos padrões impostos pelo sistema
dominante e em defesa do respeito às variações linguísticas pertencentes à
população brasileira.

115
REFERÊNCIAS

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consultado em 17 de março de 2021.

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______. A Variação Linguística. In: FIORIN. José Luiz (Org.) et al. Introdução à
Linguística I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2018b.

118
A LITERATURA NA ROTINA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Anelise Boaventura Pereira 13

RESUMO: Sabe-se o quanto é importante iniciar com uma rotina leitora desde cedo no
mundo literário infantil seja pelo acesso aos livros, às imagens ou até mesmo às contações
de histórias. Os benefícios proporcionados pela leitura literária são inúmeros como o
desenvolvimento da imaginação, da criatividade, da interpretação, do raciocínio, da
linguagem, dos sentimentos, das emoções, entre outros. Com referencial teórico respaldado
por Candido (2004), Coelho (2000), Machado (2009), observa-se a Literatura em suas
diferentes concepções. Com base nesses pressupostos, destaca-se a necessidade da
contação de história dentro da sala de aula, ao entender que a maioria das crianças
chegam carentes de manusearem um livro, de ouvirem uma história, de fantasiarem suas
ideias. Diante disso, o presente estudo tem como objetivo principal incentivar a inserção da
literatura infantil no ambiente escolar por meio do ato de contar histórias, seja utilizando o
livro literário, o avental de histórias, fantoches ou qualquer outro recurso pedagógico. Esse
momento literário é percebido como lúdico e motivador, que torna a aula prazerosa,
propiciando um ambiente acolhedor e de grandes aprendizagens, sendo visível o brilho e a
atenção que as crianças demonstram, até mesmo aquelas com inquietação. Importante
ressaltar que é por meio do acesso à Literatura Infantil desde cedo que se constrói cidadãos
que sabem escrever, ler e interpretar adequadamente, o que se torna imprescindível para
que as crianças tenham oportunidades e desempenhem suas funções de forma satisfatória.

Palavras-chave: Literatura, Educação Infantil, Contação de história.

INTRODUÇÃO

A Literatura Infantil é uma vertente que está estruturada dentro da


Literatura, sendo de extrema relevância por proporcionar às crianças
vivências com o mundo da fantasia. A rotina de leitura dentro do cenário
educacional deve principiar desde cedo, para que o mundo literário infantil
tenha possibilidades de acesso aos livros, às imagens ou até mesmo às
contações de histórias. Os benefícios proporcionados pela leitura literária são

13 Pós-Graduanda do Curso de Especialização em Docência na Educação Básica, do


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - IFRS – Campus
Vacaria, anelise.boaventura@hotmail.com

119
inúmeros como o desenvolvimento da imaginação, da socialização, da
criatividade, da interpretação, do raciocínio, da linguagem, dos sentimentos,
das emoções, entre outros. De acordo com essas proposições, considera-se
que é por meio do contato com histórias infantis que existe a possibilidade
da criança interagir no mundo da ludicidade, do fantasioso, do imaginário,
permitindo a possibilidade de novas aprendizagens.

A leitura é permeada por ausência de apreciação de textos literários,


isso ocorre desde a Educação Infantil e percorre nas demais etapas da vida
escolar. Para que a leitura tenha sentido e seja parte da formação cidadã,
é relevante que o incentivo seja realizado nos primeiros anos escolares. Para
os estudantes que não possuem uma formação leitora adequada, nota-se
uma série de prejuízos nos quesitos de leitura, escrita e compreensão de
textos. Com o advento das tecnologias digitais, observa-se que os estudantes
estão cada vez mais afastados dos livros e mais próximos de celulares, tablets,
redes sociais e todas as ferramentas de fácil acesso. Os vídeos do Youtube,
as redes sociais e demais aplicativos conquistam e fidelizam os jovens, seja
pela rapidez das informações ou pelo conteúdo informativo e visual mais
apelativo.

Na etapa da Educação Infantil, as crianças necessitam da ajuda dos


adultos para imergir no contexto literário. Nesse âmbito, os pais ou
responsáveis deveriam estimular a contação de histórias ou o acesso ao livro
infantil, no entanto, percebe-se a facilidade em entregar um aparelho
eletrônico, com música e cores, para que a criança se distraia. Diante desse
contexto, ao ingressar na escola, essas crianças não possuem uma bagagem
básica acerca da literatura, dos contos de fadas, das fábulas ou de
personagens comuns a sua faixa etária. Assim, cabe ao professor a atividade
de motivar, apresentar, instigar os estudantes quanto ao ambiente literário.

120
Esta é uma realidade que afeta muitas regiões do Brasil, sendo que
muitos pais transmitem toda a responsabilidade para a escola tanto no
aspecto de educar como o de ensinar. Em razão dessa demanda, o
professor precisa se desdobrar para desempenhar múltiplas funções e assim
poder desenvolver um trabalho de qualidade no processo de ensino-
aprendizagem. Para discutir essa problemática, o presente estudo tem como
objetivo principal incentivar a inserção da literatura infantil no ambiente escolar por
meio do ato de contar histórias, seja utilizando o próprio livro literário, o avental de
histórias, os fantoches, as imagens das personagens, ou qualquer outro recurso
pedagógico que signifique a Literatura Infantil.

Para atingir esse objetivo, ampara-se numa metodologia de aspecto


qualitativo, ao observar o uso adequado de alguns recursos pedagógicos, como é
o caso do próprio livro literário, ou do avental de histórias, ou de fantoches, visando
qualificar o momento da contação de histórias. Além disso, este estudo tem
respaldo teórico de estudiosos da área literária, como Candido (2004), Coelho
(2000), Colomer (2007), Machado (2009), Rodrigues (2005).

Diante disso, salienta-se que o ato de contação de história é uma ferramenta


de muita relevância na rotina dos estudantes da Educação Infantil, contribuindo de
maneira significativa no decorrer de toda a carreira escolar, especialmente nos
quesitos de leitura, escrita e interpretação. Desse modo, entende-se que os estudos
voltados para a leitura literária necessitam de atenção e discussão constantes,
desde a etapa da Educação Infantil, observando que é assunto debatido em cursos
de graduação em Letras e Pedagogia.

1 METODOLOGIA

A metodologia do artigo tem caráter qualitativo e trata de recursos


pedagógicos que auxiliam no momento da contação de histórias. Nesse

121
ponto, são destacadas as ferramentas do próprio livro literário, do uso dos
fantoches e do avental de histórias. Compreende-se que esses recursos são
elementos que envolvem as crianças e trazem significação para o texto
literário apresentado.

O primeiro instrumento utilizado no contexto escolar é o próprio livro


literário. Ao trazer os livros para a sala de aula aproxima-se o estudante da
obra e do seu autor, sendo importante manusear e sentir a obra literária,
sentir o relevo das imagens, o cheiro do livro, entre outros fatores que
envolvem os leitores. Segundo Colomer (2007), os estudantes devem andar
entre livros, com acesso aos materiais literários, não deixando-os guardados
e inacessíveis em uma biblioteca. De acordo com a estudiosa, as escolas são
espaços para proporcionar a vivência com as obras literárias, podendo
encontrar este material em diferentes locais do ambiente escolar, deixando
os estudantes livres para escolherem suas leituras.

A utilização do livro literário da rotina da Educação Infantil para contação de


história é de muita relevância, pois é um momento em que o professor além de ler
e dramatizar a história com gestos e expressões na fala, mostra aos estudantes as
mais variadas imagens que conduzem a criança a visualizar o desenrolar do enredo
com facilidade. É importante destacar que ao utilizar o livro para contação de
história na Educação Infantil é necessário que o professor escolha obras com
imagens grandes, coloridas, pouca escrita e número de páginas reduzidas. Salienta-
se que esse estudo é direcionado para crianças bem pequenas da Educação
Infantil, em que o nível de concentração é de curta duração.

Ademais, nada adianta o professor usar livros com histórias longas e apenas
fazer a leitura sem nenhum tipo de gesticulação, as crianças consequentemente
não prestam atenção e acabam se dispersando com outros afazeres, o que gera
um ambiente impróprio de grandes aprendizagens lúdicas. Neste âmbito, ressalta-
se que o professor deve conhecer o livro e ter domínio da obra escolhida, sabendo
usar o livro literário como uma grande ferramenta pedagógica para alcançar um

122
resultado positivo. Logo, o professor deve estar preparado e motivado para o
momento da contação de histórias. Desse modo, os estudantes sentirão prazer no
momento da contação, haverá interesse e participação durante o desenrolar da
temática e os objetivos propostos serão alcançados com êxito.

O segundo instrumento apresentado, diz respeito ao avental de histórias, que


pode ser confeccionado pelo professor ou adquirido em livrarias ou lojas de
utilidades. Esse recurso pode ser utilizado na rotina da Educação Infantil também
com montagem coletiva, em que os estudantes participam da construção no
cenário no próprio avental. As crianças adoram visualizar as personagens, o cenário
e todo o desenrolar da história no avental do professor.

Para a confecção do avental de histórias é facilitada com o acesso aos


recursos tecnológicos, pois o professor pode obter várias histórias por meio da
impressão colorida, montando seu avental de forma diferenciada. Antigamente,
tudo era feito manualmente, exigindo desenhos e pinturas, entretanto, para auxiliar
o trabalho do professor, basta imprimir as imagens que se aproximam da história
desejada e utilizar algum produto atrás para que fique colado no avental, como
elementos autoadesivos.

Este recurso é uma maneira criativa de ser usado, pois permite que o professor
chame o estudante para interagir na colagem das personagens e das situações
retratadas na obra, utilizando o avental. Esse recurso pedagógico proporciona um
momento de descontração, diversão, encantamento e ludicidade, em que os
estudantes são sujeitos ativos na aprendizagem. Nesse momento de contação de
histórias, o estudante tem a oportunidade de interagir e viver o que está sendo
contado.

O avental de histórias apesar de ser um recurso antigo, ainda hoje continua


sendo uma excelente ferramenta que possibilita grandes benefícios no processo de
ensino e aprendizagem, envolvendo e aproximando também o estudante e o seu
professor. Por mais simples que seja o avental construído, o segredo é como vai ser
a condução da contação do texto literário, sendo necessário alegria e interação,
para que haja o alcance daquilo que se almeja.

123
Destaca-se que o empenho do professor no momento da contação faz toda
a diferença. Com isso, o recurso do avental é considerado um complemento que
servirá para dar um toque todo especial e imaginário ao enredo e à temática da
história. Diante disso, salienta-se que as ferramentas pedagógicas auxiliam a prática
escolar, mas não são responsáveis pela ação, sendo o professor da Educação
Infantil o mediador entre a obra e o estudante.

O terceiro instrumento pedagógico abordado neste estudo é o uso dos


fantoches. Esse recurso é uma opção de diversão para inserir o texto literário

na sala de aula, podendo fazer parte da rotina do professor na Educação


Infantil. Existem vários tipos de fantoches como: pano, luva, feltro, espuma,
papel, entre outros, sendo possível construir de modo artesanal os fantoches,
não necessitando comprar. Da mesma forma, os fantoches podem ser
construídos pelas crianças para que tenham maior envolvimento na
contação de histórias. Desse modo, a história pode ser recontada por cada
criança, utilizando o seu próprio fantoche e utilizando a sua imaginação ao
recontar a história ouvida.

Outra forma de diferenciar a contação de histórias, referenciando-se


aos fantoches, é utilizar as próprias mãos ou dedos como ferramentas de
fantoches. Nesse caso, os dedos ou mãos ganham desenhos e cores para
representar as personagens. Outro formato similar é o uso de marionetes,
com o auxílio de fios, também conseguindo um bom retorno das crianças,
tornando a contação de história um momento de encantamento e magia.
As crianças da Educação Infantil adoram visualizar os fantoches,
proporcionando risos e imaginação. Assim, há uma interação não só com a
história, mas também com as ferramentas escolhidas para representar essa
história, criando um ambiente de muita alegria.

A confecção deste recurso tem possibilidades desde a mais simples


construção até a mais sofisticada, porém, o que tem maior valor é a

124
movimentação que o professor realiza nas mãos com os fantoches. Desse
modo, registra-se um momento em que as crianças realmente prestam
atenção em cada detalhe, tornando a aula dinâmica, divertida e
participativa.

A ideia de usar fantoches para contar histórias é muito apropriada


para a Educação Infantil, pois além dos estudantes se beneficiarem com o
momento lúdico, existe uma maior facilidade de assimilação. Nessa prática
literária, a imaginação acaba fluindo com naturalidade, instiga o raciocínio
lógico (início, meio e fim da história), contribui para o desenvolvimento
psicológico, exercita a memória, organiza as ideias, além de ampliar o
vocabulário. É uma rica forma de ensino, que proporciona momentos
inesquecíveis de descontração, interação, afeto, aprendizagens
significativas, novas descobertas, enfim existe uma série de benefícios que
contribui de forma positiva no processo de ensino e aprendizagem,
envolvendo estudantes, professores e textos literários.

Diante dessas três possibilidades apresentadas, observa-se que as


ferramentas pedagógicas auxiliam na contação de histórias, mas não
ocupam o papel central, sendo relevante destacar que a atmosfera criada
por esse momento é um dos objetivos centrais. Em vista disso, observa-se que
o ato de contar histórias por meio de recursos como livro literário, avental de
histórias ou fantoches promovem uma experiência enriquecedora e também
motivadora para a leitura literária, elevando a qualidade da aula e
garantindo uma aproximação com o mundo literário.

125
2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para tratar com a leitura literária, é importante reconhecer a


necessidade da introdução da Literatura na rotina da Educação Infantil, por
ser a primeira etapa da Educação Básica. Essas ações potencializam a
inserção da leitura na vida dos estudantes por meio da contação de história,
se tornando indispensável nas práticas escolares. Essa condição é exposta
por Candido (2004), no texto O Direito à Literatura:

[...] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e


educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um
como equipamento intelectual e afetivo. [...] A literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, apóia [sic] e combate, fornecendo a
possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas (CANDIDO,
2004, p. 175).

De acordo com o estudioso, a Literatura proporciona o


desenvolvimento dos estudantes para viver em sociedade. Com isso, a
Literatura Infantil pode despertar o mundo da imaginação, da fantasia e da
ludicidade por meio de uma composição sólida de motivações e
descobertas significativas, que garantem um futuro favorável para o
estudante pelo viés do aprendizado das variadas obras da Literatura.

Candido (2004, p. 174) destaca que “[...] a literatura aparece


claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os
tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem
a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação”.
E isso é uma grande verdade, pois é relevante que o indivíduo tenha acesso
a algum tipo de Literatura seja um conto, um poema, uma contação de
história, uma fábula, um romance, entre outros.

126
Em algumas situações, os estudantes da Educação Infantil chegam às
escolas vulneráveis de tantas necessidades básicas como carinho, afeto,
amor, sem jamais terem compartilhado com os familiares um momento
sequer relacionado às histórias contadas ou passadas entre as gerações. Em
outras situações, pais ou responsáveis estão transferindo suas obrigações e
funções para outras pessoas, usando os mais variados argumentos, para não
terem uma interação literária ou cultural com o seu filho.

Diante dessa condição familiar desfavorável, destacam-se como


condições deficitárias para a formação cidadã e leitora das crianças,
constatando uma realidade vivida em muitas escolas. Com isso, percebe-se
que a responsabilidade de incentivo ao mundo da Literatura Infantil se torna
fundamental nas intervenções com o professor, utilizando o ambiente escolar
para oportunizar momentos de construção de conhecimento.

Conforme Machado (2009), o novo leitor precisa ser motivado desde a


etapa da primeira infância por meio de seus familiares e professores,
compreendendo que os adultos são conhecedores da importância da
leitura para a formação das crianças. Nesse ponto, as crianças são ainda
dependentes de um adulto para proporcionar a aproximação e a interação
com o mundo da magia e do encantamento, por intermédio das histórias e
das situações literárias.

A contação de história na Educação Infantil por ser considerada como


prática educativa no cotidiano escolar por possibilitar uma série de
benefícios para a criança, como: o desenvolvimento de habilidades e
competências de raciocínio lógico, da ludicidade, da imaginação, da
criatividade, da área intelectual, da interação social, do aperfeiçoamento
da linguagem, da estimulação da expressão oral e corporal, da ampliação
de experiências e descobertas.

127
Nesse contexto, Oliveira (2008) fomenta a preparação acerca da
importância da “alfabetização visual” antes da “alfabetização verbal”, com
o intuito de apreciar o senso crítico da criança e permitir a oralidade,
garantindo de forma agradável todo esse processo de aprendizado. De
forma similar, Freire (2011), destaca que a leitura do mundo precede a leitura
da palavra, afirmando que “[...] Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura
crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. [...]”
(FREIRE, 2011, p. 20).

A contação de histórias é um elemento essencial que precisa estar


presente na rotina entre o professor e o estudante e sendo trabalhada desde
o início da primeira etapa da Educação Básica (Educação Infantil). Essa
relação possibilita a formação de futuros leitores e também cidadãos
conscientes e comprometidos com suas responsabilidades no âmbito social,
cultural, político e artístico.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) é o


documento normativo que norteia a elaboração dos currículos escolares e
propostas pedagógicas. Neste documento, retrata-se a contação de
histórias na Educação Infantil e também outros temas educacionais, que
servem de padrão para todos os profissionais da educação. Recentemente,
este documento sofreu mudanças como o surgimento dos cinco campos de
experiência, dos objetivos a serem atingidos e dos seis direitos de
aprendizagem e desenvolvimento, reforçando a importância e a
necessidade de se trabalhar com a Literatura Infantil desde a primeira etapa
da Educação Básica (BRASIL, 2018).

A necessidade de mudança no país quanto aos quesitos relacionados


à leitura se faz necessária, para tanto deve haver uma participação ativa do
núcleo familiar, além dos professores e dos poderes governamentais,

128
visando implantar quanto mais cedo na Educação Infantil o processo de
apreciação das obras literárias, mais cedo existirão resultados positivos.

A literatura, em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a


cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como
agente de formação seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja no
diálogo leitor/texto estimulado pela escola. E parece, já fora de
qualquer dúvida, que nenhuma outra forma de ler o mundo dos
homens é tão eficaz e rica quanto a que a literatura permite.
(COELHO, 2000, p. 15).

Existe um leque de opções muito grande para o professor escolher com


relação a obras da Literatura Infantil. A maioria dos livros possuem riquíssimas
histórias que contribuem para que a criança imagine, estimulando e
oportunizando o encantamento no contato com essa nova realidade. A
Literatura Infantil permite construções educacionais que apreciam a
formação global da criança, envolvendo a criança nas suas ansiedades, nas
suas dúvidas e também nas suas descobertas.

A contação de histórias é atividade própria de incentivo à


imaginação e o trânsito entre o fictício e o real. Ao preparar uma
história para ser contada, tomamos a experiência do narrador e de
cada personagem como nossa e ampliamos nossa experiência
vivencial por meio da narrativa do autor. Os fatos, as cenas e os
contextos são do plano do imaginário, mas os sentimentos e as
emoções transcendem a ficção e se materializam na vida real.
(RODRIGUES, 2005, p. 4).

Nesse âmbito do imaginário e da ludicidade, Frantz (2001) corrobora,


mencionando que “[...] a literatura infantil é também ludismo, é fantasia, é
questionamento, e dessa forma consegue ajudar a encontrar respostas para
as inúmeras indagações do mundo infantil, enriquecendo no leitor a
capacidade de percepção das coisas.” (FRANTZ, 2001, p. 16). Dessa maneira,

129
por meio de práticas enriquecedoras de Literatura Infantil é que se tem a
possibilidade de criar um ambiente educativo, harmonioso e atrativo para a
criança, favorecendo para que no futuro se torne uma leitora crítica, com
ideias e pensamentos mais sensatos, além de possibilitar o desenvolvimento
nos quesitos de escrita e de compreensão.

Ainda registram-se os benefícios que a Literatura proporciona para a


Educação Infantil, observando que são importantes não só para tal faixa
etária, como também para as demais. Candido (2004) destaca, por meio de
exemplos, a distinção entre bens incompressíveis (essenciais para a
sobrevivência) e bens compressíveis (elementos vistos como supérfluos). O
estudioso considera a Literatura como um bem incompressível,
relacionando-a com os Direitos Humanos, que visam garantir a sobrevivência
em caráter mais digno:

[...] são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a


sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a
integridade espiritual. São incompressíveis certamente a
alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a
liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à
opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e,
por que não, à arte e à literatura (CANDIDO, 2004, p. 174).

A contação de histórias da Literatura Infantil aliada ao uso dos recursos


didáticos apresentados neste estudo, como o livro literário, o avental de
contação de histórias e os fantoches, torna-se um grande instrumento para
a aproximação da Literatura e dos jovens estudantes. Nesse âmbito, o
professor tem em mãos recursos diversos para planejar e executar aulas
motivadoras com a inserção da Literatura no ambiente escolar.

A utilização do livro literário em conjunto com a expressão corporal e


sonora do professor torna a contação de história atrativa. Essa ação provoca

130
na criança vivências diferenciadas em que a Literatura é significada. Assim,
a prática do professor não se resume em apenas ler o livro, pois traz o
conhecimento prévio e a participação dos estudantes, estando o professor
preparado para apresentar o texto literário com domínio da história
retratada. Coelho (1999) faz indicações de como trabalhar com a obra
literária em sala de aula, pensando um momento de contação de histórias.

Devemos mostrar o livro para classe virando lentamente a parte


inferior do livro, aberto de frente para o público. Narrar com o livro
não é, propriamente, ler a história. O narrador a conhece, já a
estudou e a vai contando com suas próprias palavras, sem titubeios,
vacilações ou consulta [...] (COELHO, 1999, p. 33).

Já a utilização do avental de histórias e de fantoches agrega e


enriquece ainda mais o momento literário, pois são recursos que remetem
gargalhadas, alegria, viagem ao mundo da ludicidade e encantamento.
Góes e Smolka (1997) enfatizam que “Privilegiar atividades com histórias e
materiais literários tem, por certo, repercussões positivas para a criança.
Pesquisas têm indicado que, na infância, as experiências com narrativas, em
vários contextos, são instâncias de refinamento de cognição.” (GÓES;
SMOLKA, 1997, p. 18).

Ao contrário do que muitos pensam, a contação de histórias está cada


vez mais presente na vida das pessoas, apesar do seu reconhecimento não
ter sido alcançado de forma plena. A produção de conhecimento por
intermédio da contação de história é riquíssima e precisa ser trabalhada
rotineiramente em sala de aula com o planejamento do professor em
conjunto com a equipe pedagógica da escola.

O “contar histórias” não significa apenas ler, vai muito além disso, é um
ato que proporciona aprendizado e enriquece a vivência da criança.

131
Contar histórias na Educação Infantil é instrumento didático com valor
cultural e social, que contribui de forma significativa não só para o início da
carreira escolar, mas como também para as demais. É por meio do incentivo
à literatura desde cedo, que se constrói cidadãos mais conscientes e críticos,
que saberão atuar no futuro com atitudes responsáveis e educativas,
prevalecendo os valores tão necessários na sociedade como um todo.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Por existir uma carência de leitores que se inicia desde a primeira etapa
da Educação Básica e percorre consequentemente as demais etapas
escolares. O que se tem visto é que os estudantes estão mais distantes dos
livros, acarretando em sérias dificuldades de leitura, escrita e compreensão
de texto ao longo dos anos. Nesse contexto, destaca-se que a educação
brasileira está num patamar distante em comparação a países
desenvolvidos, conforme é exibido no gráfico 1 com dados da última
pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (FAILLA, 2020):

Gráfico 1 - Número de livros lidos por ano

Fonte: Failla (2020)

132
Com base no gráfico, observa-se pouco crescimento no decorrer dos
anos referente ao número de livros lidos anualmente no Brasil. Conforme os
dados ilustrados, em 2007 o índice foi de 4,7 livros lidos por ano, já em 2011
houve uma diminuição, apresentando uma queda para 4,0. Para os anos de
2015 e 2019, os valores mantêm-se exatamente iguais, compreendendo 5,0
livros lidos por ano, evidenciando uma situação preocupante e que exige
ações para que a leitura esteja em linha de avanço.

Observa-se em todo este contexto, a necessidade que existe em


trabalhar obras de Literatura Infantil desde o início da carreira escolar,
incentivando o estudante pelo gosto da leitura. O acesso às ferramentas
didáticas como o livro literário, o avental de histórias e o fantoche nas ações
escolares estão disponíveis e são possíveis de produção na maioria dos
ambientes escolares, demonstrando que não há pretextos para que o
professor não trabalhe com histórias infantis em conjunto com a equipe de
coordenação pedagógica. Além disso, essa prática precisa ser prestigiada
e propagada no ambiente escolar.

Os três recursos apresentados neste estudo ilustram apenas uma


parcela do que pode ser desenvolvido em sala de aula, tendo como
elemento central o texto literário. O professor por intermédio de sua
criatividade pode criar os mais variados recursos com baixo custo como a
reutilização de materiais didáticos e a utilização de materiais recicláveis.
Nessa perspectiva de criação, salienta-se que os estudantes podem construir
seus próprios recursos para simbolizar a história apresentada pelo professor,
desse modo, as crianças podem personalizar o texto literário imprimindo as
suas preferências.

Existem outras possibilidades que contribuem favoravelmente para


desenvolver um trabalho eficaz acerca da contação de histórias na
Educação Infantil como a realização de teatros, gincanas, feiras do livro,

133
entre outros modos de aproximar o texto literário do jovem leitor. Ademais, é
de suma relevância que a leitura e o livro literário estejam presentes na rotina
escolar, seguindo o que propõe Colomer (2007), de que os estudantes
devem estar cercados por livros, para que possam ser despertados para a
leitura literária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contação de histórias é uma ferramenta pedagógica de grande


utilidade para a Educação Infantil, no que diz respeito à formação completa
do estudante. Nesse ponto, observa-se a importância do professor em
desenvolver um trabalho eficaz, sendo considerado o leitor da criança seja
por meio da utilização do livro literário, do avental de histórias ou dos
fantoches. A função do professor é promover a leitura para essas crianças.

Nesse contexto, a criança entende, vibra, vivencia as situações


literárias propostas pela obra selecionada, por meio da voz, dos gestos, do
entusiasmo, do clima gerado a partir das inferências do professor. Essa
particularidade traz vida para o texto literário e aproxima a criança do
mundo da imaginação e da própria obra literária, favorecendo o seu
desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional.

Importante salientar, que existe um valor muito significativo quando se


utiliza na contação de história recursos diferenciados como o livro literário, o
avental de histórias e o fantoche. A presença dessas ferramentas
pedagógicas agrega valor ao momento literário, pois o estudante fica
fascinado e consegue imaginar de forma criativa todo o enredo. Por meio
dessas vivências escolares, os estudantes desenvolvem uma série de
habilidades que os favorecem no desempenho escolar como um todo.

134
Assim, a escola é espaço de oportunidades, revelando um mundo
desconhecido em algumas situações sociais. No que tange, ao momento da
contação de histórias, registra-se o brilho no olhar da criança, constatando
um aprendizado significativo e envolvente, visto que ocorre um incentivo
para prosseguir neste caminho de encantamentos e magias A inserção da
leitura literária na Educação Infantil proporciona benefícios para toda a
carreira escolar do estudante e para a sua formação social e cultural. Desse
modo, cabe aos professores e agentes de leitura investir desde cedo na área
da literatura, destacando que é uma vertente com formação completa.

Em suma, a contação de história é uma porta para o mundo e quando


usada com o auxílio de recursos didáticos adequados, prestigia o mundo
encantado que está presente na Educação Infantil. Trabalhar com o lúdico
na transmissão de conhecimentos, incentiva a imaginação e a criatividade
interiorizadas nas crianças. Por entender a leitura literária como um ponto
central de muitas discussões, salienta-se que novos estudos acerca da
inserção da Literatura no ambiente escolar são relevantes e não se encerram.
Nesse sentido, todas as etapas escolares necessitam de investigações das
práticas leitoras, como forma de fomento e também com o viés de observar
as possibilidades de recursos pedagógicos que auxiliem na aproximação
com os estudantes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,


2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versao
final_site.pdf. Acesso em: 18 jun. 2021.

135
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul,
2004.

COELHO, Bethy. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1999.

COELHO, Novaes Nelly. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo:
Moderna, 2000.

COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Tradução


de Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007

FAILLA, Zoara (Org.). Retratos da Leitura no Brasil - 5ª Edição. Instituto Pró-Livro


e Itaú Cultural, 2020.

FRANTZ, Maria Helena Aancan. O Ensino das Literaturas nas Séries Iniciais. 3ª
ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2001.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.


51ªed. São Paulo: Cortez, 2011.

GÓES, Maria Cecília Rafael; SMOLKA, Ana Luiza Bustamente (Org.) A


significação nos espaços educacionais: interação social e subjetivação.
Campinas, SP: Papirus, 1997.

MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde
cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

OLIVEIRA, Rui de. Pelos Jardins Boboli: Reflexões sobre a arte de ilustrar livros
para crianças e jovens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

RODRIGUES, Edvânia Braz Teixeira. Cultura, arte e contação de histórias.


Goiânia, Seduc Go, 2005.

136
CIRO GOMES E JAIR BOLSONARO: UMA ANÁLISE DO FENÔMENO
DA RECATEGORIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK

Natália Luczkiewicz da Silva14


Max Silva da Rocha15

RESUMO: O trabalho em tela tem como objetivo analisar o processo de recategorização do


referente Jair Bolsonaro, em postagens da página pessoal do político Ciro Gomes, na rede
social Facebook. O corpus da análise é composto por quatro postagens do ex-governador
do Ceará, na citada plataforma midiática, que foram disseminadas ao longo do mês de
janeiro de 2021 - período em que o número de mortes e internações por COVID-19 começou
a aumentar, em comparação a novembro de 2020. A pesquisa é de cunho qualitativo e
está centrada na Linguística Textual, mais especificamente, no estudo dos processos de
recategorização. Os aportes teóricos utilizados foram Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995),
Mondada e Dubois (1995), Lima (2009, 2017), Custódio Filho (2012), Cavalcante, Custódio
Filho e Brito (2014), Marcuschi (2012), Cavalcante e Lima (2015) entre outros. A partir da
análise dos dados, concluímos que o referente Jair Bolsonaro é recategorizado por diversos
elementos discursivos, que corroboram para a construção de uma imagem negativa
(antiethos), do atual presidente do Brasil. Observamos que mesmo nos momentos em que o
enunciador fez o uso da dêixis social “presidente”, para referir-se ao objeto discursivo, ele se
utilizava de outros elementos presentes na esfera lexical e sociocognitiva para recategorizá-
lo como ladrão, corrupto, energúmeno, assassino, genocida e ratazana. Essas
recategorizações desconstroem a polidez esperada no tratamento do maior representante
da democracia de um país.
Palavras-chave: Recategorização, Jair Bolsonaro, Postagens do Facebook.

INTRODUÇÃO

A Linguística Textual é uma área que tem se desenvolvido de forma


avultosa nos últimos tempos. A preocupação saiu dos estudos das frases

14 Graduanda do curso de Letras/Português, pela Universidade Estadual de Alagoas


(UNEAL/Palmeira dos Índios). Integrante do Grupo de Estudos em Ensino e Aprendizagem de
Língua (GEEAL/UNEAL/CNPq). E-mail: natalia2luczkiewicz@gmail.com
15 Professor e pesquisador do curso de Letras da Universidade Estadual de Alagoas

(UNEAL/Palmeira dos Índios). Vice-líder do Grupo de Estudos em Ensino e Aprendizagem de


Língua (GEEAL/UNEAL/CNPq). E-mail: msrletras@gmail.com

137
isoladas e enfocou o estudo do texto, entendo-o como um construto de
sentidos incompletos, que são construídos à medida que ocorrem inferências
por parte dos interlocutores.

Os estudos da frase restringiam uma visão apenas superficial,


atribuindo significados a partir da materialidade do texto, mas de forma
restrita. Essa visão perdurou por muito tempo, até que se começou a pensar
o texto como um todo, que sofre interferências do contexto e que possui uma
complexidade que extrapola as estruturas lexicais.

No Brasil, os estudos textuais têm ganhado espaço, sobretudo, com os


estudos de referenciação, que cada vez mais testam teorias, analisam
possibilidades e agregam novos olhares para os fenômenos linguageiros.
Alguns autores que se destacam são Cavalcante (2003), Custódio Filho (2011),
Cavalcante e Lima (2015), Lima (2009, 2017), entre outros.

No atual momento, possuímos pouco contato físico com outras


pessoas a fim de evitar aglomeração e disseminação da COVID-19. Uma das
formas para nos aproximar das pessoas foi a utilização recursos tecnológicos.
Nesse sentido, utilizamos as redes sociais, em nossas páginas pessoais, para
expormos nossos pensamentos em relação às situações que estão em xeque
em nossa sociedade. Entre essas situações, podemos citar os problemas
advindos da pandemia da COVID-19, os processos econômicos e as
desigualdades sociais que presenciamos ou vivenciamos. Esses fatores nos
direcionam a uma temática maior – a política.

Na esfera política, decisões impensadas causam consequências


diretas em todas as outras esferas sociais e é justamente sobre essas
discussões que o ex-deputado federal Ciro Gomes vem discutindo, de forma
mais densa, desde 2020, em sua página pessoal no Facebook. As postagens
desse político têm repercutido muito entre os usuários da plataforma. Muitos

138
apoiadores defendem as ideias expostas por ele e as propagam, enquanto
outros utilizam o espaço da mídia para se posicionarem contra as alegações
realizadas por ele.

Este trabalho se justifica pela necessidade de analisar os discursos


propagados na página pessoal de Ciro Gomes, no Facebook, que desafiam
as normas de polidez esperadas de um político ao referir-se a outro político –
o presidente da república -, atribuindo-lhe a responsabilidade pelo alto
índice de mortes, em decorrência da pandemia. Além de compreendermos
como ocorre o processo de recategorização de Jair Bolsonaro, nas
publicações de Ciro, essa análise mostra quais são as mobilizações que estão
ocorrendo e o quanto elas se relacionam ao contexto social
contemporâneo.

No trabalho em tela, temos como objetivo analisar a recategorização


do objeto de discurso “Jair Bolsonaro”, em postagens da página pessoal do
ex-governador do Ceará, na rede social Facebook. O corpus de análise é
composto por quatro postagens de Ciro Gomes na citada plataforma
midiática, as quais foram divulgadas durante o mês de janeiro de 2021.

Os aportes teóricos utilizados foram Apothéloz e Reichler-Béguelin


(1995), pois são os precursores dos estudos de referenciação, com o foco nas
análises do sintagma nominal; Cavalcante (2003), Cavalcante, Custódio
Filho e Brito (2014), Cavalcante e Lima (2015), Custódio Filho (2011, 2012), Lima
(2009, 2017), os quais são autores que vêm desenvolvendo novas
possibilidades de análise do referente, comprovando teorias que partiram
das situações mais simples, e que caminham em direção às mais complexas,
acerca do fenômeno de referenciação em múltiplas perspectivas.

139
1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este estudo insere-se na pesquisa de abordagem qualitativa com um


olhar descritivo e interpretativista (OLIVEIRA, 2010). O corpus é composto por
quatro postagens realizadas pelo candidato presidenciável Ciro Gomes em
sua página pessoal no Facebook. Essas postagens ocorreram ao longo do
mês de janeiro de 2021, cujo principal ponto de discussão versa sobre os
supostos crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente Jair
Bolsonaro e por políticos apoiadores do atual governo. A escolha do corpus
se deu por ser um tema atual sobre a pandemia e por ser de relevância
social.

Escolhemos a plataforma Facebook pois se configura no ambiente em


que Ciro Gomes tem postado com mais frequência e tem interagido com o
público. A natureza das postagens é de cunho político, mostrando um
posicionamento desfavorável ao atual presidente da república, Jair
Bolsonaro, utilizando elementos recategorizadores que vão de encontro ao
esperado, em nível de polidez, em relação a maior autoridade da política
nacional.

Esta investigação está centrada na Linguística Textual, com o foco na


referenciação, por meio do fenômeno de recategorização. Para isso,
escolhemos realizar uma análise pautada nas duas tendências, mas com
foco na segunda, pois evidencia a relação entre as esferas sociocognitivas
e as discursivas. Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, vamos
discutir, brevemente, sobre o gênero textual postagens do Facebook, a fim
de que possamos entender a natureza do corpus e a sua representação
social.

140
2 REFERENCIAL TEÓRICO: ASPECTOS DA REFERENCIAÇÃO

Os estudos da referenciação têm ganhado destaque nas pesquisas


em Linguística Textual, isso porque esse fenômeno interfere diretamente na
coesão, na coerência do texto e na interligação entre os seus elementos e,
como consequência, na compreensão dos sentidos. A referenciação atua
sobre o objeto de discurso. Nesse sentido, depreendemos que “os objetos de
discurso são, portanto, altamente dinâmicos, ou seja, uma vez introduzidos
na memória discursiva, vão sendo constantemente transformados,
reconstruídos, recategorizados no curso da progressão textual” (KOCH, 2017,
p. 83).

Mondada e Dubois (2003) foram as responsáveis pela criação do termo


referenciação para denominar a função da referência, buscando
compreender a relação entre linguagem e mundo – como os processos
cognitivos, humanos e linguísticos podem interferir na orientação de sentidos
do texto e do mundo, pois com o termo referência, muitas questões
deixavam de ser abordadas em um nível cognitivo, social e discursivo.

A tendência de compreender o texto e a coerência como instâncias


bastantes dinâmicas também teve impactos na maneira como se
compreende a referência, já que processos sociocognitivos
altamente complexos e multifacetados apresentam funções e
realizações múltiplas. Daí se passou a falar em referenciação –
proposta teórica que salienta o caráter altamente dinâmico do
processo de construção dos referentes em um texto (CAVALCANTE;
CUSTÓDIO FILHO; BRITO, 2014, p. 27).

De acordo com Cavalcante, Custódio Filho e Brito (2014), o processo


de referenciação não ocorre apenas de uma forma, existem elementos que
direcionam esse processo, tais como: a introdução referencial, as dêixis, as

141
anáforas e as fontes de percepção. Os autores destacam que a
referenciação parte de três princípios imprescindíveis, que são a
negociação, a reelaboração da realidade e o processo cognitivo. O
princípio da negociação é fundamentado na ideia de que os sujeitos
participam interativamente da produção de sentido do texto, negociando
constantemente, testando os referentes, realizando reformulações, isso
agrega uma visão dinâmica da referenciação.

O princípio da reelaboração da realidade segue vinculado ao


princípio da negociação, pois nesse ato os interlocutores evidenciam
reformulações diversas sobre um mesmo referente. Assim, a referenciação
possibilita também entender “o poder que a linguagem possui de criar e
mesmo de transformar esse real conforme a intenção daquele que fala,
envolvido em um contexto que será também fundamental para essa
produção e também reprodução.” (LEAL, 2018, p. 40).

O princípio de que a referenciação é um processo cognitivo é


pautado no fato de a referenciação ser um processo intersubjetivo, ou seja,
as negociações de reelaboração do referente ocorrem baseadas na
bagagem social e discursiva dos interlocutores, no ato da negociação dos
sentidos do texto.

A referenciação se reafirma como um processo discursivo por


intermédio da construção de várias versões de uma mesma
realidade no plano textual-discursivo, em uma interação
colaborativa entre os interlocutores à formação dos sentidos, sob
uma perspectiva sociocognitiva de construção de objetos de
discurso, demonstrando, portanto, como a referenciação é um
fenômeno dinâmico (SILVA, 2013, p. 41).

A dinamicidade do fenômeno da referenciação demonstra o seu


caráter multifacetado. No discurso, estamos a todo o momento

142
referenciando e reelaborando os referentes, isso faz parte da interação
comunicativa e é ponto basilar para a compreensão dos objetos de discurso
presentes no texto. Nesse cenário, é preciso pensar se a perspectiva adotada
pelos estudos referenciais contempla toda a complexidade que esse
fenômeno possui.

As duas perspectivas mais comentadas do estudo desse fenômeno são


a perspectiva textual-discursiva e a perspectiva cognitivo-discursiva. Na
primeira, o referente é condicionado a sua homologação na materialidade
textual, não sendo possível explorar explicações que vão além dessa
condição; na segunda, tem-se um avanço e o referente pode ser
apreendido não somente no plano textual, mas também cognitivo.

3 O PROCESSO DE RECATEGORIZAÇÃO SOB OS ENFOQUES TEXTUAL-


DISCURSIVO E COGNITIVO-DISCURSIVO

A recategorização é um processo de referenciação que ocorre


quando um referente, que assume uma categorização, passa por uma
transformação categórica, na qual deixa de assumir a categoria
inicialmente apontada e passa a assumir outra diferente. “Se a construção
da referência é um processo dinâmico, isso implica que os objetos de
discurso podem passar por remodulações ou reformulações de acordo com
o propósito discursivo dos enunciadores”. (LIMA, 2017, p. 56). Isso ocorre por
uma necessidade discursiva que o sujeito, no ato da interação, tem de
reelaborar o objeto de discurso, a fim de progredir textualmente e construir
mecanismos que suscitam sentidos diversos ao que é dito.

Os estudos da recategorização partiram das discussões dos


pesquisadores Apothéloz e Reichler-Béguelin em (1995), quando

143
perceberam que um objeto do discurso, que interfere na coesão do texto,
passava por diversas reformulações em sua categoria, que iam desde o início
do texto/discurso até a sua conclusão. Esses autores consideravam que esse
fenômeno ocorria por meio de situações de correferencialidade, ou seja,
quando esse mesmo referente era retomado ou reformulado por meio de
anáforas diretas.

Em estudo pioneiro, Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) designam


tal estratégia como recategorização. Entretanto, o tratamento por
eles dispensado à descrição desse mecanismo fica quase restrito aos
casos de recategorização lexical, isto é, aqueles casos em que há
uma remodulação de um referente homologado na materialidade
do texto confirmada por uma expressão referencial. Ocorrências
desse tipo são também designadas na literatura como anáforas
diretas recategorizadoras (LIMA, 2017, p. 56).

Os estudos que seguem o viés da recategorização estão caminhando


de forma a abranger novas explicações que a primeira tendência não dava
conta. Ao se restringir ao sintagma nominal, os trabalhos que focalizavam a
tendência conservadora não conseguiam explicar os fenômenos pelos os
quais o referente passava. A necessidade de compreender o texto para
além das suas relações internas moveu muitos estudiosos pela busca de
maiores explicações sobre esse processo.

A segunda tendência do fenômeno de recategorização aborda a


perspectiva sociocognitiva-discursiva, pautada em três princípios basilares: o
sociocognitivismo, como agente considerável para a construção dos
sentidos do texto; o entendimento do texto como um construto
multifacetado; e o privilégio à interação, como uma das principais formas de
depreciação do sentido, uma vez que os interlocutores realizam
remodelações no texto a partir de seus atos discursivos. Custódio Filho (2012)
destaca que:

144
Os pressupostos sociocognitivistas investem no entrecruzamento de
aspectos culturais e cognitivos para as explicações dos fenômenos
relacionados à produção e transformação do conhecimento. Esse
modelo é o mais bem preparado, até o momento, para dar conta
da necessária explicitação de como o fenômeno da representação
de entidades se efetiva, discursivamente, a fim de que a interação
linguística se processe (CUSTÓDIO FILHO, 2012, p. 839).

O autor defende que a segunda tendência do fenômeno de


recategorização é a que melhor explica como ocorrem os processos da
representação das entidades discursivas. Nessa perspectiva de análise,
observamos que a construção da referência caminha por diversos fatores,
desprendendo-se das amarras do sintagma nominal e se articulando, muito
mais, aos processamentos linguísticos, cognitivos e sociais que ocorrem no
ato da interação discursiva.

As duas tendências são consideradas complementares, pois tratam do


mesmo objeto de estudo, entretanto, em perspectivas diferentes. O
surgimento de uma nova teoria para explicar o processo de recategorização
é resultado da necessidade de novas explicações sobre o fenômeno, uma
vez que o estudo da estrutura textual já não contemplava todas as situações
depreendidas na reelaboração de um referente. Em relação à segunda
tendência, podemos citar alguns elementos que direcionam de forma mais
bem elaborada as discussões pautadas até o momento:

i) a recategorização nem sempre pode ser reconstruída diretamente


no nível textual-discursivo, não se configurando apenas pela
remissão ou retomada de itens lexicais; ii) em se admitindo (i), a
recategorização deve, em alguns casos, ser (re)construída pela
evocação de elementos radicados num nível cognitivo, mas sempre
sinalizados por pistas linguísticas, para evitar-se extrapolações
interpretativas; iii) em decorrência de (ii), a recategorização pode ter
diferentes graus de explicitude e implicar, necessariamente,
processos inferenciais (LIMA; CAVALCANTE, 2015, p. 57).

145
Lima (2009) justifica os estudos da segunda tendência ao analisar que
a recategorização nem sempre pode ser explicada a partir dos elementos
presentes no sintagma nominal; sinaliza que em muitos casos a
recategorização pode ocorrer através de implicaturas cognitivas, entretanto,
esse aspecto interativo não resulta em uma interpretação solta, mas que
possui interligação com pistas presentes no cotexto, para que não haja
outros avanços; e como um terceiro elemento, bem pontuado pela autora,
a recategorização pode ocorrer em diversos graus de explicitude; diante
disso, a teoria de segunda tendência apresenta explicações contundentes
para demonstrar como ocorrem processos desse nível.

Visamos uma análise que utilize os elementos disponíveis a partir da


materialidade lexical, mas que não esteja presa, exclusivamente, a esses
elementos, pois nem sempre o referente será retomado apenas por
elementos textualmente explícitos. Defendemos as duas tendências como
complementares, como ratifica Custódio Filho (2012).

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Imagem 1 – primeira postagem

Fonte: Página pessoal de Ciro Gomes, no Facebook (2021).

Na primeira postagem, observamos que o sujeito enunciador Ciro


Gomes recategoriza o referente Jair Bolsonaro como um “canalha”. Isso

146
ocorreu pelo fato de o presidente da república ter autorizado a retirada do
portal da transparência do ar, justamente no momento em que informações
de gastos desnecessários do governo federal com chiclete, leite moça,
cerveja, entre outros produtos, foram publicizados pela mídia brasileira,
gerando críticas ao atual presidente. Como forma de esconder essas
informações, o atual governo bloqueou o portal da transparência, razão por
que Ciro Gomes formulou uma imagem negativa do presidente Jair
Bolsonaro.
Ademais, Ciro Gomes faz uso da dêixis pessoal em “nos governa”,
demonstrando proximidade com os leitores de sua página virtual e a
população brasileira, tendo em vista que Jair Bolsonaro é o presidente de
todos os brasileiros, inclusive do próprio Ciro. Assim, percebemos um
antagonismo entre o elemento recategorizador “canalha” e a ação de
“governar” que, por sua vez, carrega uma imagem negativa do presidente,
construída ao longo do texto da postagem em tela. Infere-se que temos um
governante canalha, ou seja, alguém que não tem nenhuma capacidade
para ocupar o principal cargo de um país democrático.
O uso do demonstrativo “isto” em “Isto jamais aconteceu na história
Brasileira!” funciona como uma anáfora encapsuladora, pois retoma não
somente um referente, mas um enunciado completo: “O canalha que nos
governa tirou o portal da transparência do ar!”. Esse uso engendra a
progressão textual e a progressão temática, razão por que contribui
decisivamente para a construção de sentidos manifestados no cotexto e no
contexto enunciativos.
Em seguida, Ciro Gomes afirma: “pegamos o rabo da ratazana.
Verificamos a recategorização metafórica (LIMA, 2009) do referente Jair
Bolsonaro como um rato, que é um animal astucioso, rápido, sorrateiro.
Observamos, também, que Ciro Gomes se inscreve no ato enunciativo, pois

147
enuncia o verbo na primeira pessoal do plural (pegamos), o que autoriza
pensar que Ciro faz parte de um grupo que está de olhos atentos nas ações
indevidas do atual presidente da república.
No mesmo momento enunciativo, é possível constatarmos outro
elemento recategorizador, haja vista o uso da expressão “rabo”, a qual
indica a “descoberta de possíveis crimes” praticados pelo governo
bolsonarista. À frente, ainda identificamos que o referente “Ministério Público”
é recategorizado como “a solução do problema”, pois é chamado e
indagado sobre pedidos de posicionamento quanto aos possíveis crimes
cometidos pelo presidente do Brasil.
Observamos que, em nenhum momento, o referente Jair Bolsonaro é
manifestado lexicalmente no texto, mas conseguimos identificá-lo por meio
das pistas sociocognitivas compartilhadas a partir do texto em destaque.
Logo, o sujeito enunciador Ciro Gomes se utiliza desses recursos para construir
uma imagem negativa do atual presidente e disseminar essa imagem, pois
constatamos que a postagem recebeu (até o momento em que
selecionamos), 22 mil curtidas, 1,6 mil comentários e 6,8 mil
compartilhamentos, o que atesta o alcance de um grande público.

Imagem 2 – segunda postagem

Fonte: Página pessoal de Ciro Gomes, no Facebook (2021).

148
Nesta publicação, observamos que Ciro Gomes cria uma imagem
negativa do ex-presidente dos Estados Unidos da América, recategorizando-
o como um “mau exemplo” e como um “criminoso”. Provavelmente, era
mau exemplo porque demonstrava ser autoritário, ditador, perseguidor e
extremista; e criminoso porque colocava as pessoas de seu país e de outros
países em risco, provocando conflitos com outras nações, a exemplo da
Venezuela, da Coréia do Norte, da China, entre outras.
Após trazer o exemplo de Donald Trump, Ciro Gomes argumenta que
Bolsonaro é “aprendiz” e “capacho” de Trump. Se o ex-presidente dos EUA é
um criminoso e Bolsonaro é uma espécie de aluno, é possível concluir que
Bolsonaro é recategorizado como um criminoso em formação, tendo como
professor Donald Trump. Não é difícil recordar que Jair Bolsonaro atacou de
forma vociferada a Venezuela e a China apenas para concordar com os
ditames preconizados pelo governo dos EUA.
Além disso, Ciro Gomes assevera que Bolsonaro é um capacho de
Trump. Novamente, temos a ideia de que se trata de um capacho de
criminoso, ou seja, aquele que faz de tudo para agradar seu superior e deseja
se igualar a ele. Não foram poucas as vezes que Bolsonaro declarou
obediência e submissão ao governo de Donald Trump, chegando, inclusive,
a bater continência à bandeira do país norte-americano, enquanto a nação
brasileira sofria com a pandemia da COVID-19. Portanto, a recategorização
de Bolsonaro como capacho mostra uma ideia de subserviência e bajulação
ao governo dos EUA.
Por último, o referente “Congresso Brasileiro” é recategorizado como
“salvador da pátria”, pois é a ele delegada a função de frear os possíveis
crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Uma das alternativas,
segundo Ciro Gomes, é por meio do processo de impeachment, a fim de
afastar o atual presidente do seu cargo.

149
Imagem 3 – terceira postagem

Fonte: Página pessoal do Ciro Gomes, no Facebook (2021).

Nesta postagem, Ciro Gomes recategoriza o referente “Jair Bolsonaro”,


não explícito lexicalmente no texto, como um “energúmeno”, ou seja, como
alguém que não tem capacidade alguma para governar o Brasil. Em
seguida, o enunciador utiliza a dêixis pessoal “nos”, aproximando-se dos
leitores da postagem, além de se colocar como pertencente ao “povo
brasileiro”, o qual sofre os duros impactos da política nacional pelo fato de
não agilizar o processo de vacinação contra a COVID-19.
Ciro Gomes mostra um possível antagonismo entre as ações de
governar e atrapalhar a o país. O presidente Jair Bolsonaro é quem governa
a nação brasileira, no entanto, conforme aponta o discurso do sujeito
enunciador, essa atuação governamental está servindo para atrapalhar o
processo de vacinação. Desse modo, Ciro suscita uma contradição do
governo bolsonarista, pois ao invés de colaborar com a imunização, o que
faz é justamente o contrário, impedindo a agilidade do processo de
vacinação.
Ademais, o enunciador utiliza a dêixis pessoal “nosso”, em “nosso
povo”, com o objetivo de se aproximar dos leitores brasileiros, principalmente
àqueles que são favoráveis à vacinação. Observamos que Ciro Gomes
recategoriza Bolsonaro como “assassino”, pelo fato de atrasar a vacinação,
condenando “muitos à morte”. Ora, a vacinação é essencial para combater
a pandemia. Impedir que as pessoas sejam vacinadas pode colaborar com

150
a morte, a exemplo das mais de 450 mil vidas brasileiras já ceifadas
atualmente.

Imagem 4 – quarta postagem

Fonte: Página pessoal de Ciro Gomes, no Facebook (2021).

Nesta última publicação, o referente Jair Bolsonaro é recategorizado


como “irresponsável”, a partir do trecho: “não assume qualquer
responsabilidade”, característica atribuída a uma pessoa que não cumpre a
sua função. Observamos a categorização dos moradores de Manaus como
“nossos irmãos e irmãs”, estabelecendo uma proximidade entre Ciro Gomes
e o povo de Manaus, como uma forma de demonstrar empatia, zelo, pelas
pessoas que sofrem por causa da irresponsabilidade do atual governo.
Em seguida, há a recategorização do referente “morte” como uma
“tragédia previsível e evitável”. Ciro Gomes mostra que o governo era o
responsável por adotar medidas e não as adotou, apesar da tragédia ser
previsível e evitável. Assim, Ciro recategoriza o governo como “criminoso”,
mesmo que esse elemento não esteja explícito na configuração lexical do
texto. O sujeito enunciador credita ao governo bolsonarista a culpa pela
tragédia ocorrida em Manaus, pois pessoas morreram por falta de cilindros
de oxigênio. Ou seja, algo simples que poderia ter sido resolvido antes do
referido colapso.
O governo brasileiro é conduzido pela figura de Jair Bolsonaro, pelo
fato de ocupar o cargo mais importante da política nacional, sendo referido

151
como o responsável direto pelas mortes em Manaus, por meio dos termos
recategorizadores, a exemplo de “assassino” e “criminoso”, reforçando uma
imagem negativa do atual presidente. Ciro Gomes se utiliza de um discurso
contundente e faz uma crítica arrojada ao modo de governo apresentado
pelo atual presidente da república. As recategorizações propiciam as
construções de imagens negativas do referente Jair Bolsonaro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de recategorização vem sendo muito discutido em


pesquisas atuais sobre a Linguística Textual. Esses estudos não se esgotam,
pois a cada nova investigação são descobertos outros mecanismos que
interferem nesse processo. Na primeira tendência do processo de
recategorização, vimos que o foco era na estrutura lexical do texto,
considerando o fenômeno da recategorização apenas por meio dos casos
de correferencialidade; na segunda tendência, observamos que os estudos
desse processo foram se desenvolvendo de forma a atender as relações
entre o texto e o contexto, mostrando que nem sempre todas as respostas
estarão na superfície textual.

Caminhamos em direção à defesa da segunda tendência como a


que melhor explica como os referentes são remodelados. Visando uma maior
amplitude analítica, consideramos que as duas tendências são
complementares (CUSTÓDIO FILHO, 2012). Assim, o nosso foco de análise
foram quatro postagens realizadas por Ciro Gomes, em sua página pessoal,
na plataforma midiática Facebook, publicizadas ao longo do mês de janeiro
de 2021. O Facebook tem se mostrado uma plataforma bastante importante
para as discussões políticas e sociais da atualidade brasileira.

152
Ciro Gomes se aproveita desse ambiente virtual para disseminar
informações, posicionamentos e denúncias políticas que, de alguma forma,
ganham a rede, pois os internautas, em sua maioria, são participantes da
política nacional e interessados em dialogar sobre essa temática, seja
concordando ou discordando. As postagens dizem respeito ao
posicionamento de Ciro Gomes sobre as atitudes do presidente Jair
Bolsonaro frente à pandemia da COVID-19, no Brasil, alegando crimes de
responsabilidade contra a vida dos brasileiros – categoria sobre a qual se
inclui, constantemente, por meio de elementos dêiticos. O cunho temático
dessas postagens caminha em direção ao pedido de impeachment do atual
presidente do Brasil.

A partir da análise, verificamos que o referente Jair Bolsonaro é


recategorizado por diversos elementos, os quais corroboram para a
mudança de postura do referente. Mesmo nos momentos em que Ciro
Gomes fez uso da dêixis social “presidente” para referir-se ao objeto de
discurso, ele se utilizava de outros elementos presentes na esfera lexical e
sociocognitiva, para recategorizá-lo como corrupto, energúmeno, assassino,
genocida, entre outros termos. A nosso ver, essas recategorizações
desconstroem a polidez esperada no tratamento para com maior
representante de uma nação, como é o caso de um presidente, e engendra
uma imagem negativa do presidente da república.

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127f. – Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Departamento de
Letras Vernáculas, Programa de Pós-graduação em Linguística, Fortaleza
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156
LEITURA E MULTIMODALIDADES: CAMINHOS PARA UMA PRÁTICA
SIGNIFICATIVA DO GÊNERO CHARGE

Gerda Cristina Nogueira 16


Antônio Leonardo Nunes Gomes 17
Miguel Leocádio Araújo Neto 18

RESUMO: O sentido de um texto é constituído na interação texto-sujeito e não algo que


preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa
de produção de sentidos, que perpassa por diversos níveis de conhecimentos prévios
colaborando para a construção de significados. O presente trabalho tem como objetivo:
discutir sobre as concepções de texto e de leitura; apresentar os tipos de conhecimentos
que devem ser ativados para a compreensão de um texto, proposta de atividade que
engloba etapas diferentes de contato com o texto: etapa de pré-leitura, etapa de leitura
do texto e etapa de pós-leitura. Seguindo os pressupostos teórico-metodológicos de Teixeira,
Santos & Riche (2013) e de Koch & Elias (2011), constata-se que, para a construção de
sentidos do texto frente aos aspectos da multimodalidade, emerge a postura de articular os
diversos níveis de conhecimento, depreendendo assim que ler é uma atividade complexa,
que requer ir muito além do que é escrito ou dito, isto é, partindo do plano verbal e visual.
Buscamos propor atividades que possam auxiliar na construção do leitor do gênero charge,
ativando sua capacidade crítica para efetivar a leitura e promover a ação profissional
concretizada de fato nas interações nele ocorridas, pois é nelas que a ação docente se
constitui.

Palavras-chave: Leitura, Charge, Sentido.

1 INTRODUÇÃO

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) tem


como objetivo, de acordo com o portal do MEC, oferecer bolsas de

16 Graduanda do Curso de Letras Português da Universidade Estadual do Ceará (UECE),


gerda.nogueira@aluno.uece.br;
17 Mestre em História e Letras pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Professor da

SEDUC - EEEM Abraão Baquit, leo.ngs2104@gmail.com;


18 Professor Orientador. Mestre em Letras. Professor Assisitente do Curso de Letras

Universidade Estadual do Ceará (UECE), miguel.neto@uece.br.

157
iniciação à docência aos alunos de cursos presenciais que se dediquem ao
estágio nas escolas públicas e que, quando graduados, se comprometam
com o exercício do magistério na rede pública. O propósito é antecipar o
vínculo entre os futuros docentes e as salas de aula da rede pública. Com
essa iniciativa, o PIBID faz uma articulação entre a educação superior (por
meio das licenciaturas), a escola e os sistemas estaduais e municipais.

Voltado à formação inicial de professores, o PIBID articula teoria e


prática. Um dos compromissos assumidos pelo programa é o da promoção
de momentos formativos, proporcionando aos discentes bolsistas a
aproximação e o envolvimento teórico-prático com o cotidiano das escolas
públicas. Com o avanço da pandemia do novo Coronavírus no Brasil, toda
a estrutura do projeto teve que ser readaptada para o contexto remoto,
trazendo experiências novas de ensino, ampliando a qualificação
profissional e humana dos envolvidos, intensificando a valorização do
contato físico, do ato de (re)inventar(-se) na vida de professores, que tiveram
que se adaptar sozinhos a todas as mudanças à consecução da prática
docente, além da revelação acentuada das inúmeras faces da
desigualdade do país.

Sendo assim, estudantes do curso de Letras da Faculdade de


Educação, Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC (unidade da
Universidade Estadual do Ceará – UECE, em Quixadá-CE) têm a
oportunidade de aproximar-se da realidade de escolas públicas do
mencionado município, mesmo que no formato remoto, por meio de um
projeto de iniciação à docência de Língua Portuguesa, que envolve leitura,
interpretação, produção de textos, literatura e conhecimentos gramaticais.

Uma das escolas atendidas pelo projeto é a EEM Abraão Baquit,


localizada no Bairro Campo Novo, periferia de Quixadá. Trata-se de uma
escola de ensino regular, que recebe estigmas negativos, devidos à sua

158
localização periférica e à condição de vulnerabilidade de parte de seu
público aprendiz, encarando ainda um outro desafio do momento atual: o
ensino remoto e a falta de democratização do acesso ao ensino (sobretudo
o acesso aos meios que possibilitam o ensino nesse formato emergencial). A
escola funciona nos turnos matutino, vespertino e noturno, contando com
dois anexos: um no distrito de Cipó dos Anjos (matutino e vespertino) e outro
no distrito de Juatama (noturno).

A escola recebe oito bolsistas remuneradas e duas bolsistas voluntárias


de iniciação à docência (BIDs) do Curso de Letras da FECLESC. As BIDs não
só estão aprendendo a lidar com a realidade de uma escola pública de
ensino regular, no contexto remoto, com suas peculiaridades, por conta da
grande vulnerabilidade da população estudantil ali inserida, mas também
estão contribuindo para que alunas e alunos desta instituição tenham
experiências positivas de aprendizagem e contato com os diversos saberes.
Algumas dessas experiências são justamente aquelas gestadas no âmbito do
PIBID, a partir do diálogo de seus componentes, BIDs (estudantes
universitárias), Supervisor (professor da própria escola, também bolsista PIBID)
e Coordenador de Área (professor da Universidade), na forma de
proposições de intervenções pontuais na realidade escolar.

A partir desse contexto, abordaremos neste trabalho uma proposta de


sequência didática com o gênero charge, que estimula a prática de leitura
de gêneros textuais ligados ao cotidiano dos estudantes, elaborada dentro
do contexto de atuação do PIBID, promovendo a discussão e o
desenvolvimento do pensamento crítico dos alunos. Ações como esta
podem trazer contribuições relevantes ao ensino/aprendizagem dos
educandos, além de proporcionar melhorias ao ambiente escolar, através
da aproximação entre o ensino superior e o ensino básico. Finalmente a
realização deste tipo de experiência proporciona às BIDs o contato com a

159
realidade que enfrentarão após o término do curso de graduação, o que
inclusive pode vir a inspirar mudanças nas práticas docentes no tocante ao
ensino de Língua Portuguesa.

1 METODOLOGIA

O presente trabalho visa a apresentar uma proposta de sequência


didática (DOLZ, NOVERRAZ, SCHNEWLY, 2004) que objetiva minimizar as
dificuldades no campo da leitura e da interpretação de gêneros textuais,
apresentadas por alunos e alunas em sala de aula do ensino médio da EEM
Abraão Baquit.

Inicialmente, foi feita uma observação nas aulas de Língua Portuguesa,


especificamente no âmbito da leitura, correspondendo a um total de
4h/aulas. Dessa forma, obtivemos as primeiras impressões acerca do ensino-
aprendizagem dos estudantes. Vale considerar que muitas realidades foram
confrontadas nesse período, tendo em vista que essa observação foi feita já
na modalidade do ensino remoto. Há estudantes que não têm acesso à
internet ou que usam dados móveis de péssima qualidade, na grande
maioria dos casos. Além disso, há estudantes que relataram estar com o filho
no colo durante a aula, ou seja, tentando conciliar os estudos com os
afazeres domésticos.

Posteriormente, por meio de formulário de pesquisa, discentes foram


consultados a respeito dos temas que gostariam de estudar, no âmbito da
leitura. A coleta dessas informações foi fundamental para a organização da
atividade. Em seguida, ocorreu a elaboração do plano do minicurso de
leitura, para que tudo ocorresse de forma sistematizada.

160
Propusemos a elaboração de um formulário de pesquisa, realizado
pela plataforma Google forms e disponibilizado com antecedência aos
alunos, por meio dos grupos de WhatsApp das turmas, com o objetivo de
saber sobre sua intenção em participar de um minicurso sobre leitura,
elaborado pelas bolsistas do PIBID, com carga horária de oito horas e com
direito a certificação. Obtivemos um total de vinte e duas respostas no
formulário. Os minicursos aconteceram de forma online, de acordo com a
disponibilidade proposta pela escola, no contraturno, por meio da
plataforma do Google meet, nos dias 17 e 24 de junho de 2021. É notória, a
dificuldade de alguns estudantes para permanecerem na sala virtual e
participar efetivamente, por conta da internet que oscila bastante.
Entretanto, tivemos um bom diálogo com a turma, um aluno participou da
leitura dos textos, algo que o professor relatou ser uma grande dificuldade
nas aulas. Alguns estudantes responderam as perguntas sugeridas e
acrescentaram com informações do próprio conhecimento enciclopédico.

A organização da sequência didática se deu de maneira dinâmica,


em etapas, seguindo os pressupostos de Dolz, Noverraz, Schnewly, (2004), no
tocante aos princípios norteadores da elaboração de sequências didáticas,
e de Santos, Riche e Teixeira (2013), no que concerne às etapas do processo
de didatização de práticas de leitura em ambiente escolar:

1. Foram feitas perguntas oralmente sobre a expectativa de discentes em


relação ao que seria ali ministrado;
2. Foi realizada a etapa de pré-leitura ou introdução com charges, imagens
de fotografias e desenhos e perguntas, com a finalidade de ativar os
conhecimentos prévios dos estudantes sobre a temática trabalhada.
Dessa forma, estaríamos fazendo com que antecipassem o conteúdo do
texto, ativando seus esquemas mentais e construindo hipóteses;

161
3. Na etapa de desenvolvimento ou leitura, revelou-se o tema: “Leitura em
sala de aula virtual: práticas de linguagem e resistência”, a ser
desenvolvido no minicurso; através de uma leitura coletiva, dividida em
partes pré-determinadas do texto de trabalho, e debateu-se sobre o
tema, o que gerou discussões entre os participantes;
4. Em seguida, os alunos receberam orientações para a leitura silenciosa:
deveriam anotar as palavras desconhecidas do texto e discutir as novas
informações que tinham adquirido até ali;
5. Na etapa de pós-leitura ou conclusão, foi apresentada a leitura, escuta e
discussão da canção “Meu guri”, de Chico Buarque, buscando relembrar
os fatos ocorridos e relacionar aos gêneros textuais abordados.

A sequência didática apresentada gerou um momento de


aprendizagem baseado na interação, nas vivências coletivas e individuais,
promovendo a discussão e o estímulo ao exercício do pensamento crítico
dos estudantes, como forma de trabalho com temáticas pertinentes da área
de Língua Portuguesa e sua intertextualidade dialógica com as outras áreas,
especificamente de leitura e interpretação de texto, de forma a levar uma
novidade para o dia a dia da sala de aula virtual, com um viés prático e
participativo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Precisa-se reconhecer a importância da leitura na vida dos indivíduos,


a necessidade de se cultivar o hábito de ler entre crianças e jovens e o papel
da escola na formação de leitores ativos e competentes. Por sua relevância,
esse reconhecimento torna-se um dos principais objetivos deste trabalho.

162
Dessa forma, apropriando-se das concepções de leitura
apresentadas por Koch e Elias (2011), compreendemos o processo de leitura
como uma atividade de construção de sentido que requer a interação
autor-texto-leitor, considerando os conhecimentos do leitor para realização
efetiva desse processo. Leitura e produção de sentido são atividades
orientadas por nossa bagagem sociocognitiva: conhecimentos da língua,
dos textos e das coisas do mundo. Quanto a isso, Santos, Riche e Teixeira
(2013, p. 41) asseveram que:

(...) para formar leitores, é necessário que, na escola, a leitura de


textos escritos não se limite a adaptações ou fragmentos de textos,
seguidos de exercícios de vocabulário e atividades de compreensão
que apenas exigem dos alunos um recorte-cole, sem suscitar uma
reflexão dos temas abordados, limitando-se à literalidade.

Por esta razão, para uma prática significativa de leitura, é necessário


estimular o pensamento crítico e participativo dos alunos. Isso implica em
exercitar, no contexto de aulas de leitura, estratégias de seleção,
antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível construir
proficiência de leitura, no âmbito do contato de discentes com textos os mais
diversos. Tais procedimentos orientam os estudantes a controlar o que está
sendo lido, permitindo avançar, tomar decisões diante das dificuldades de
compreensão, avançar na busca de esclarecimentos e verificar as
suposições feitas pelo texto. Desse modo, evidencia-se o papel do leitor
como construtor de sentidos.

Com a ascensão das novas tecnologias, o texto vem adquirindo,


cada vez mais, novas configurações, que transcendem as palavras, as frases
e, acima de tudo, a modalidade escrita da linguagem. As nossas ações
sociais representam fenômenos multimodais, consequentemente,
produzimos gêneros textuais nessa perspectiva, pois ao falar ou escrever

163
utilizamos no mínimo dois modos de representação. Essa liberdade na
manipulação dos gêneros textuais está ligada diretamente ao meio em que
se transmite o gênero.

Quanto a isso, Bazerman (apud DIONISIO, 2011, p. 142) afirma que


“Gêneros moldam os pensamentos que nós formamos e as comunicações
pelas quais interagimos. Gêneros são espaços familiares nos quais criamos
ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são guias que usamos
para explorar o não familiar”. Dessa forma, os gêneros textuais estão mais
presentes na nossa vida do que podemos imaginar, representando as
manifestações de linguagem.

Ao elaborar uma proposta de sequência didática com o gênero


charge, por exemplo, tem-se por objetivo trabalhar as habilidades linguísticas
de compreensão textual, interpretação e práticas de oralidade. A escolha
desse gênero desponta do fato de ele estar presente na vida dos estudantes,
nos livros didáticos, provas de vestibular, ENEM etc. Somado a isso, temos o
fato de esse gênero discursivo ter sua significação efetivada, a partir de um
amplo contingente de elementos visuais e estratégias sociocognitivas, o que
pode facultar a promoção de práticas de leitura na perspectiva do
letramento multimodal (Cf. DIONISIO, 2011).

Portanto, uma proposta de sequência didática que aborda o gênero


charge trará inúmeras contribuições para o desenvolvimento de práticas
pedagógicas baseadas na perspectiva da multimodalidade. Além disso,
aludimos à perspectiva dos letramentos múltiplos, mais especificamente, ao
letramento multimodal.

O contexto proposto para a realização dessa atividade é o ensino


remoto. Dessa forma, poderão surgir alguns problemas que fogem do nosso
controle. Quanto a isso, Lynn Alves (2020, p. 358) destaca:

164
Na educação remota predomina uma adaptação temporária das
metodologias utilizadas no regime presencial, com as aulas, sendo
realizadas nos mesmos horários e com os professores responsáveis
pelas disciplinas dos cursos presenciais, como dito anteriormente.
Esses professores estão tendo que customizar os materiais para
realização das atividades, criando slides, vídeos, entre outros recursos
para ajudar os alunos na compreensão e participação das
atividades. Contudo, nem sempre a qualidade destes materiais
atende aos objetivos desejados.

Dessa maneira, a aplicação de tal atividade deve ser adaptada ao


horário disponibilizado pela equipe escolar, compreendendo a
complexidade de fatores que determinam a aprendizagem efetiva dos
estudantes. O ensino remoto foi uma alternativa temporária para o momento
da pandemia mundial de Covid-19 e ao mesmo tempo o único espaço
possível de contato e troca de aprendizados.

Vale destacar que a tecnologia passou a ser compreendida como o


principal recurso didático, utilizado como meio para atingir um determinado
objetivo, como repositório de textos, para animar e tornar as “aulas” mais
interessantes, aproximando-se do universo digital dos alunos. Tal perspectiva,
tem sido muito útil para a realidade em que estamos inseridos, mas não
podemos esquecer que o contato interpessoal faz muita falta para uma
aprendizagem efetiva e práticas colaborativas entre os sujeitos do processo
de ensinar e aprender.

Nesse sentido, a referida proposta de sequência didática também


objetivou potencializar o desenvolvimento das habilidades linguísticas e
discursivas dos estudantes, tendo como base os gêneros multimodais. No que
diz respeito à leitura, objetivamos que os alunos consigam compreender e
interpretar textos associando às diversas semioses, percebendo o papel do
emprego das palavras, das cores, das imagens, das formas e dos formatos

165
utilizados, bem como dos seus reflexos na materialização da intenção
comunicativa do autor.

No que concerne à interpretação, almejamos que os alunos consigam


compreender e identificar, posteriormente, exemplos do gênero discursivo
trabalhado, empregando suas características constitutivas – tais como:
propósito comunicativo, aspectos temáticos, elementos da forma
composicional e elementos estilísticos. No tocante à oralidade, almejamos
que os alunos consigam entender a modalidade formal e informal da
linguagem oral, refletindo sobre a adequação do uso, em prol da situação
de comunicação.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados do trabalho deram-se de forma processual, por meio de


etapas. A experiência formativa, de diálogo e troca de conhecimentos foi
de suma importância para a formação acadêmica, proporcionando assim,
a elaboração de sequências didáticas que podem contribuir aos estudantes,
por meio de um aprendizado efetivo. Além disso, o trabalho ajudou na
própria formação profissional das bolsistas de iniciação à docência
envolvidos na proposta, mas também foi válido no plano pessoal desses
sujeitos. Para a escola, foi uma experiência positiva, pois o ensino remoto
requer ainda mais uma abordagem significativa, lúdica e que dialogue com
a realidade dos alunos.

A necessidade de uma parceria forte, mesmo que distante, entre a


escola, alunos, professores, supervisor e bolsistas é essencial para a
efetivação desse trabalho. Inúmeros obstáculos foram desencadeados,
como:

166
a) ausência de computadores nas casas dos alunos; na maioria das vezes,
o acesso às aulas é pelo celular; a internet é limitada, por meio de pacote
de dados; e parte dos estudantes não possuem nenhum tipo de acesso
à internet em suas residências;
b) a falta de experiência com a interface das plataformas que vêm sendo
utilizadas para os encontros virtuais, como Google Meet, Google forms,
Google Classroom, Youtube entre outros;
c) a dificuldade em mediar às atividades que seguem a sequência prevista
para as aulas presenciais, tendo em vista que, se a internet ou algum
equipamento falhar, aquele momento de aprendizado é
completamente prejudicado.

Sabendo que há uma lacuna muito grande a ser enfrentada pelas


instituições de ensino, ocasionada pelo ensino remoto, objetivamos
selecionar textos que retratam temas da realidade dos estudantes, para a
elaboração da sequência didática, facilitando assim o contato com o
objeto escrito e a interpretação textual. Em tempos de combate à
desinformação, é fundamental aguçar a capacidade crítica dos alunos. É
notório que a maioria dos educandos sabe decifrar o que se lê, mas não
sabe interpretar o que lê. De acordo com essa realidade, a seleção de textos
atuais objetivou a melhoria de desempenho e aprendizagem sobre os
conteúdos abordados.

De acordo com Oliveira (2010, p. 60), “mesmo pessoas escolarizadas


podem se deparar com textos que lhes causem problemas para a leitura
devido à falta de conhecimentos lexicais específicos”, ou seja, ao ler um
texto com uma linguagem específica, que exige a ativação de

167
conhecimentos linguísticos necessários, o leitor encontra dificuldades de
interpretar o texto apresentado. Dessa forma, pode-se refletir que, na
atividade de leitura e produção de sentido, colocamos em ação várias
estratégias sociocognitivas, mobilizando os diversos tipos de conhecimento
armazenados, que são notoriamente articulados e praticados no âmbito do
ensino básico, contribuindo para o desenvolvimento da competência leitora
dos estudantes.

Portanto, para desenvolver a competência leitora e interpretativa


dos estudantes é necessário instigá-los, incentivá-los e promover o acesso ao
ensino. Por outro lado, é preciso construir um ambiente escolar favorável,
com o apoio das políticas públicas, que priorizam a democratização do
acesso ao ensino e à troca de conhecimentos. Não podemos deixar de
mencionar também que é imprescindível haver professores abertos a
tentativas de possibilidades para sua aula ser mais produtiva, participativa,
com um material não só didático, mas lúdico e significativo, que contribua
para o desenvolvimento de competências de leitura e interpretação textual
de uma forma geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação deste trabalho surgiu após uma série de momentos


formativos de leitura e discussões sobre as realidades escolares no âmbito da
formação interna do Projeto de Língua Portuguesa do PIBID-UECE, mais
especificamente ligado ao Curso de Letras da FECLESC. Na construção e na
implementação inicial do referido projeto, a equipe constitutiva do projeto
concluiu que um dos principais problemas a serem trabalhados naquele
momento era o de leitura e interpretação textual, valendo ressaltas que a

168
Coordenação de Área dessa equipe do PIBID ofereceu um Curso de
Formação em Ensino de Leitura para os bolsistas de iniciação à docência,
dividido em módulos ao longo de 4 meses (entre dezembro/2020 e
março/2021) cuja culminância era a elaboração de sequências didáticas
que pudessem ser aplicadas nas escolas atendidas pelo projeto, em formato
de minicursos, a partir de um período de observação de aulas de leitura por
meio remoto. Ressaltamos que todo esse processo por mediado pela
Coordenação de Área do PIBID, tendo o acompanhamento da supervisão
(professores) no âmbito das escolas.

Atrelando a atuação no PIBID e a parceria entre escola e universidade,


percebemos a necessidade de trabalhar o gênero textual charge em
diálogo com outros textos pelas razões apontadas anteriormente.

Para não limitar esse trabalho aos conteúdos didáticos, foi realizado
um breve levantamento sobre temáticas que os alunos gostariam que fosse
abordadas no minicurso. A partir disso, foram pensadas estratégias para as
sequências didáticas, baseadas na interpretação, compreensão e predição
para que eles ativassem os seus esquemas mentais e, assim, pudessem
exercitar e naturalizar práticas de leituras significativas.

A construção desse trabalho passou por todo um processo de escrita


e avaliação, permitindo, como bolsista e futura professora, articular os vários
tipos de conhecimento adquiridos até o momento, aliando a teoria e a
prática no ambiente escolar virtual, fazendo compreender de forma
eficiente a importância do saber, pois as práticas humanas exprimem os
saberes que nos rodeiam, além da importância de um planejamento
sistematizado que facilitará no momento de aplicação.

Portanto, a escola tem uma grande missão diante dessa problemática


em busca de proporcionar estratégias que fomentem a leitura dos

169
estudantes. Caberá à instituição realizar formulários de pesquisas sobre
temáticas que os alunos gostariam de trabalhar, instigando, assim, para a
formação e a ampliação de um repertório de leitura, propondo diversos tipos
de gêneros textuais para ampliar seu conhecimento de mundo, e depois
fazer interpretações do que foi lido como, por exemplo - resumos, podcast,
vídeos, cartazes, designs - para assim, facilitar a compreensão e fazer desse
estudante sujeitos ativos no processo de conhecimento.

REFERÊNCIAS

ALVES, Lynn. Educação Remota: Entre a ilusão e a realidade. Interfaces


Científicas, Aracaju, V.8, N.3, p. 348 – 365, 2020, Fluxo Contínuo.

DIONISIO, Angela Paiva. Gêneros Textuais e Multimodalidade. In: KARWOSKI,


Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Karim Siebeneicher (Org). Gêneros
Textuais: reflexões e ensino. 4. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. p. 137-
152.

DOLZ, Joachim; NOVERRAZ, Michèle; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências


didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In:
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joachim. Gêneros orais e escritos na escola. São
Paulo: Mercado das Letras, 2004. p. 81-108.

KOCH, Ingredore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos


do texto. 3. ed., 5° reimpressão – São Paulo: Contexto, 2011.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. PIBID - Apresentação. Disponível em:


<http://portal.mec.gov.br/pibid> Acesso em: 06 abril. 2021.

OLIVEIRA, Luciano Amaral de. Coisas que todo professor de português


precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola, 2010.

170
SANTOS, Leonor Werneck; RICHE, Rosa Cuba; TEIXEIRA, Claudia Souza. Prática
de leitura de textos orais e escritos. In: Análise e produção de textos. São
Paulo: Contexto, 2013. p. 39-66.

171
A CONSTRUÇÃO DE ENUNCIADOS ESCOLARES NO PLANO DE
ESTUDO TUTORADO DE LÍNGUA PORTUGUESA: PROBLEMATIZAÇÕES
E REFLEXÕES PARA O ENSINO E A APRENDIZAGEM 19

Bianca de Souza Gomes 20


Helena Maria Ferreira 21

RESUMO: Com o advento da pandemia no ano de 2020, ações emergenciais têm sido
planejadas e implementadas para lidar com os impactos desse contexto na vida social. No
âmbito educacional e, mais especificamente, no estado de Minas Gerais, foi instaurado o
Regime de Estudos não Presenciais (REANP) e, como parte das ações, foi elaborado o Plano
de Estudo Tutorado (PET), um material didático para auxiliar os estudos dos alunos da rede
estadual de ensino. Partindo desse cenário, este trabalho se propôs a analisar como os
enunciados escolares são elaborados em atividades propostas no PET de Língua Portuguesa
e a refletir sobre as implicações dessas estruturações para o ensino e a aprendizagem. A
justificativa deste estudo se situa na necessidade de análise e de reflexão sobre o principal
material didático dos alunos da educação estadual mineira durante o período remoto, além
no fato de que a formação de professores ainda encontra uma defasagem no que diz
respeito à elaboração de enunciados escolares. Para isso, foi feita uma pesquisa teórica
sobre a construção de enunciados em tarefas e atividades escolares a partir de Marcuschi
(2006) e de Lino de Araújo (2017). Em seguida, foi selecionado o volume 7 do PET destinado
ao 6º ano do Ensino Fundamental para um estudo de caso na modalidade de análise
documental de abordagem qualitativa, a fim de refletir e demonstrar, a partir do referencial
teórico prévio, como se deu a elaboração dos enunciados. Constatou-se que as questões
carecem de formulações adequadas para levar os alunos a atingirem objetivos
educacionais, os quais, muitas vezes, não aparecem de forma explícita nos comandos dos
enunciados.

Palavras-chave: Enunciados escolares; Plano de Estudo Tutorado (PET); Material didático.

19 Trabalho desenvolvido no Programa de Residência Pedagógica da Universidade Federal


de Lavras - UFLA, com o fomento da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES;
20 Graduanda do Curso de Letras da Universidade Federal de Lavras - UFLA,

biancasgsg@gmail.com;
21 Professora orientadora: doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Professora da graduação e da pós-


graduação da Universidade Federal de Lavras - UFLA, helenaferreira@ufla.br.

172
INTRODUÇÃO

O ano de 2020 foi marcado pela pandemia de covid-19, que afetou


diversos setores da vida social. No âmbito educacional e, mais
especificamente, no estado de Minas Gerais, foi regulamentada a oferta do
Regime Especial de Atividades Não Presenciais (REANP) pela Secretaria de
Educação do Estado de Minas Gerais (SEE-MG), seja para cumprir a carga
horária exigida para as escolas estaduais, seja para auxiliar o alcance dos
objetivos educacionais de ensino e de aprendizagem previstos em suas
respectivas propostas pedagógicas. Uma das ferramentas criadas pelo
REANP foi o Plano de Estudos Tutorado (PET) que, segundo a SEE, é um
material que tem como objetivo possibilitar que o aluno cumpra, de forma
autoinstrucional, as questões e atividades programadas, bem como busque,
de forma tutorada, informações sobre os conhecimentos desenvolvidos nos
componentes curriculares.

Um dos aspectos fundamentais para a constituição de materiais


didáticos são os enunciados de atividades e tarefas. Lino de Araújo (2017) e
Marcuschi (2006) elaboram essa questão ao demonstrar que a formação de
professores ainda caminha timidamente para começar a sistematizar esse
saber com os professores. Assim, é pertinente elencar: como são construídos
os enunciados escolares no principal material didático disponibilizado para
os alunos da educação estadual mineira durante o período remoto e quais
são as possíveis implicações dessa elaboração para o ensino e a
aprendizagem?

Para isso, foi feita uma pesquisa bibliográfica para entender os


princípios teórico-metodológicos subjacentes à elaboração dos enunciados,
a partir de Lino de Araújo (2017) e Marcuschi (2006). A pesquisa bibliográfica
também abarcou as proposições de Geraldi (2015), Costa-Hübes (2009) e

173
Moretto (2008) para se pensar questões relativas à prática docente e às
sugestões da BNCC (2018), articulando-as aos PETs. Em seguida, foi realizada
a análise e a discussão do PET, buscando responder à pergunta da pesquisa.

Como resultado, observa-se que os enunciados escolares


reproduzem concepções de língua e ensino, por isso, sua elaboração
impacta na maneira como os alunos aprendem os conteúdos da língua
portuguesa. Dessa forma, esse é um saber que demanda discussão e
sistematização durante o processo de formação de professores, tal qual este
trabalho se propõe a fazer.

1 METODOLOGIA

O presente trabalho foi construído gradativamente no contexto do


Programa de Residência Pedagógica (RP/CAPES) da Universidade Federal
de Lavras (UFLA), considerando as discussões e as análises compartilhadas
sobre a construção de enunciados escolares por/com outros membros do
grupo. A partir desse diálogo, houve a necessidade de continuar
investigando essa questão, dada sua importância durante o processo de
formação de professores.

Tendo isso em vista, foi realizada uma pesquisa básica com o intuito
de refletir sobre a construção dos enunciados escolares. Para tal, foi feito um
levantamento bibliográfico para delinear os pressupostos teóricos ligados à
elaboração de enunciados. Em seguida, foi realizado um estudo de caso na
modalidade de análise documental, cujo objeto foi o material didático
disponibilizado aos alunos da educação estadual mineira durante o período
remoto de estudos, o PET. Mais especificamente, elencou-se o volume 7,
destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental II regular, disponibilizado no ano

174
de 2020 pela SEE-MG. A abordagem caracteriza-se como qualitativa,
considerando dois aspectos: a articulação das formulações dos enunciados
com as proposições da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a
construção das sequências injuntivas em enunciados de atividades de leitura
e de produção de textos.

2 O PET E OS DOCUMENTOS NORTEADORES

O Plano de Estudo Tutorado (PET), como um material didático


pensado para o ensino remoto, é estruturado em volumes, que contêm o
resumo dos conteúdos desenvolvidos nas quatro semanas do mês e os
exercícios de fixação relacionados a elas. A organização do material leva
em conta as disciplinas previstas nas etapas de ensino, considerando as
orientações do Currículo Referência de Minas Gerais (CRMG) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC).

Em ambos os documentos, é observável a concepção enunciativa


da linguagem, que a entende como uma forma de ação e interação no
mundo. Como defende Geraldi (2015), isso leva a outros princípios
fundamentais para a construção da BNCC: a noção de sujeito como
constituído pelas práticas de linguagem e o objeto de ensino como sendo
estas práticas. Ao englobar essas concepções, o componente de LP
considera os usos da língua, uma vez que o sujeito-aluno constitui sua
consciência por meio da construção de significados coletivos, dada pela
mobilização dos recursos expressivos na inter(ação) com o outro.

Segundo demonstra Costa-Hübes (2009), essa forma de conceber o


ensino e a aprendizagem permite o distanciamento do ensinar a falar e a
escrever bem e corretamente, bem como da apreensão da estrutura do

175
sistema linguístico. Nessa perspectiva, o ensino é voltado para o trabalho
com o texto, o qual é a materialização de um gênero discursivo, o que
significa que

[...] ensinar a interagir por meio da língua é ensinar o aluno a produzir


textos, orais e escritos, que atendam à necessidade de interlocução
proposta naquela situação de uso da linguagem. Mas significa,
também, ensinar o aluno a buscar referências em textos do gênero
que já se encontram prontos na sociedade, reconhecendo sua
funcionalidade, suas marcas discursivas, bem como sua estrutura
composicional. Tais compreensões são garantidas pela leitura atenta
e responsiva do leitor que sabe o que está buscando (COSTA-HÜBES,
2009, p. 138).

Assim, a organização da BNCC pode ser pensada a partir desses


pressupostos. Fazendo uma relação com o que argumenta Geraldi (2015), a
distribuição das práticas de linguagem em campos de atuação permite o
trabalho contextualizado com os gêneros discursivos, as habilidades e os
objetivos de aprendizagem, os quais passam a ter suas potencialidades
exploráveis a partir da integração com os campos e as práticas sociais. Do
contrário, pode-se reduzir a aprendizagem à exploração de processos
cognitivos ligados às habilidades de forma descontextualizada do uso da
língua e/ou buscar nos gêneros modelos pré-estabelecidos a serem seguidos.
É necessário ter em vista que os campos contextualizam a ação dos sujeitos
nas esferas de atividade, criando condições para a ampliação de
possibilidades de participação social dos alunos.

Dessa forma, ao voltar a atenção para os PETs, é fundamental ter em


vista como sua organização atende ou não aos princípios fundantes dos
documentos nos quais se embasa. Em consonância com isso, é importante
observar questões específicas da elaboração dos enunciados, pois, em
conjunto às concepções de língua e ensino subjacentes às atividades e às

176
tarefas do material didático, eles podem criar condições para que os
objetivos educacionais sejam mais ou menos atendidos.

3 ENUNCIADOS ESCOLARES: UMA QUESTÃO AINDA POUCO ABORDADA

Diversas são as possibilidades ao se pensar em questões relativas à


prática docente abordadas no processo de formação de professores. Um
ponto, no entanto, que ainda carece de atenção nos cursos de licenciatura
é, segundo Lino de Araújo (2017), a elaboração de atividades e tarefas
escolares, crucial para a atuação profissional. Marcuschi (2006) vai nessa
mesma direção ao defender a importância da abordagem adequada de
exercícios de compreensão em materiais didáticos. Em ambos os autores,
observa-se a necessidade de sistematizar esse saber, bem como de saber
vinculá-lo aos objetivos de ensino e a uma base teórica.

Para isso, é necessário destacar que as tarefas e as atividades


escolares podem ter em vista determinados objetivos educacionais. Como
elabora Moretto (2008), um bom desempenho de ensino está associado,
entre outros fatores, a fazer com que os alunos atinjam objetivos
educacionais previamente estabelecidos, oportunizando a aprendizagem
de conteúdos relevantes. A delimitação desses objetivos pode ser pensada
por meio dos níveis de complexidade demandados pelas operações mentais
das tarefas escolares. Lino de Araújo (2017) traz essa questão ao adaptar a
taxonomia de Bloom com base em Moretto (2008):

177
Quadro 1: Níveis de complexidade de Bloom.

NÍVEIS DOMÍNIOS VERBOS


DE RELACIONADOS
COMPLEXIDADE

Básico (RE)CONHECIMENTO: capacidade de identificação das Identificar,


propriedades fundamentais dos objetos de conhecimento nomear, assinalar,
apreendidos. citar, relacionar,
completar,
observar.

COMPREENSÃO: indicação de elementos que dão Explicar,


significado ao objeto de conhecimento, sua composição, descrever,
finalidade, características etc. caracterizar.

APLICAÇÃO: transposição da compreensão de um objeto Resolver, aplicar


de conhecimento em caso específico, situação-problema (com base no
etc. texto), transformar,
explicar.

Intermediário ANÁLISE: percepção da inter-relação entre o todo e suas Analisar,


partes. examinar,
decompor
(sentença),
escandir.

SÍNTESE: reorganização das partes de um todo. Resumir,


generalizar.

Avançado AVALIAÇÃO: emissão de juízo de valor sobre análises e Julgar, justificar,


sínteses efetuadas; apresentar
argumentos.

Elaborado por Lino de Araújo (2017, pp. 29-30).

No quadro acima, são observáveis os níveis de complexidade


relacionados à elaboração de atividades. Ainda que seja possível conceber
uma flexibilização entre eles, sua importância se dá em permitir que o
professor trabalhe com questões que transitem pelas diferentes operações
mentais, como afirma a autora. Ela destaca, ainda, que a ação docente

178
deve se guiar não somente por aspectos cognitivos, mas também
interacionais, culturais e educacionais.

Pensando nisso, Moretto (2008) mostra que as aulas se materializam


como um reflexo da epistemologia do professor. O autor defende, em
oposição à epistemologia dita tradicional – em que o professor transmite
conhecimentos e o aluno os recebe –, uma epistemologia de perspectiva
construtivista interacionista. Nela, o conhecimento é tido como a
representação que o sujeito faz do mundo a partir de sua interação com ele.
No contexto escolar, o professor atua como um mediador no processo de
internalização dos saberes construídos social, cultural e historicamente,
criando condições para que as aprendizagens sejam estruturadas por meio
de novas representações.

Em conjunto à concepção de ensino, pensar a linguagem como


forma de ação e interação no mundo, tal como levantado no tópico anterior,
cria condições para que o aluno leia e produza textos que atendam às
necessidades sociocomunicacionais de seu contexto, propiciando um
melhor domínio dos usos da língua. Assim, construir enunciados deve ter
como premissa a criação de condições para que a representação do
mundo, mediada pela interação na e com a linguagem, seja ampliada.

Dessa forma, a elaboração de enunciados escolares é um saber que


mobiliza diversas concepções teóricas subjacentes à prática pedagógica, o
qual se integra às especificidades linguísticas dos gêneros escolares. Nesse
sentido, dominar essas características próprias dos enunciados permite
construí-los de forma mais adequada em relação aos objetivos pretendidos.

179
4 AS SEQUÊNCIAS INJUNTIVAS NOS ENUNCIADOS ESCOLARES

Para se pensar em como são estruturados os enunciados escolares,


Lino de Araújo (2017) retoma as proposições de Barros (2004) e Rosa (2003)
para demonstrar os efeitos da sequência injuntiva na sua elaboração. Nos
gêneros escolares, essa sequência está ligada ao objetivo de fazer o aluno
agir em uma determinada direção que aparece explicitada textualmente.
Dessa forma, ela permite que o professor dê uma ordem e/ou um comando,
um “como fazer”, para guiar a ação do interlocutor.

Ao elaborar uma sequência injuntiva, o professor tem em vista que o


aluno é capaz de atender a um objetivo previamente esperado, cabendo-
lhe apenas demonstrá-lo (LINO DE ARAÚJO, 2017). Então, a importância do
reconhecimento desse tipo de sequência reside no fato de que é necessário
nivelar como se explicita o como fazer e o que se espera que o aluno saiba
demonstrar.

Ainda segundo a autora, o objetivo esperado pelo professor é


transposto na sequência injuntiva por meio de comandos, que formarão um
plano de execução para incitar o aluno à ação. Isso se dá por meio de
sequências descritivas iniciadas pelo verbo no modo imperativo – e suas
respectivas variações no português brasileiro –, podendo, inclusive, aparecer
sob a forma de interrogações indiretas. Para cada atividade, são
identificáveis algumas especificidades, que serão demonstradas nos tópicos
a seguir.

180
5 ENUNCIADOS DE ATIVIDADES DE LEITURA

As proposições da BNCC (2018) para o trabalho com a leitura


sugerem levar o aluno a interagir ativamente com textos orais, escritos e
multissemióticos e a interpretá-los para diferentes propósitos
sociocomunicativos, tendo em vista práticas leitoras que compreendem
dimensões que inter-relacionam uso e reflexão. Além disso, o documento
evidencia a importância da leitura de textos que pertencem aos gêneros
discursivos que, por sua vez, circulam nas esferas de atividade humana, de
modo que as habilidades de leitura sejam contextualizadas por práticas,
gêneros e objetos de conhecimento pertencentes aos campos de atuação.

No que diz respeito especificamente à elaboração de atividades,


Marcuschi (2006) aponta que existem problemas relativos à natureza de
questões de compreensão textual, as quais podem levar à decodificação
do texto, distanciando-se da reflexão crítica e da expansão da construção
de sentido.

Pensando nisso, o autor elabora uma tipologia para classificar as


perguntas que aparecem nos livros didáticos de língua portuguesa. Há
perguntas que demandam a identificação de aspectos explícitos do texto
ou da própria pergunta: a cor do cavalo branco de Napoleão, cópias,
objetivas e metalinguísticas. Há, também, as perguntas que levam a
qualquer tipo de resposta: subjetivas e vale-tudo. Há, ainda, as perguntas
que dependem de conhecimentos enciclopédicos, que são denominadas
impossíveis. Por fim, o autor classifica as perguntas que demandam maior
reflexão por parte dos alunos: as globais e as inferenciais, as mais desejáveis
e menos usadas nessas atividades.

181
Colaço (1998), nessa direção, propõe a elaboração dos enunciados
a partir de sequências injuntivas. Nesse caso, eles são organizados segundo
determinado modo e apontando para tipos de ação. No que diz respeito ao
modo, eles podem aparecer como 1) simples, em que se solicita, clara e
objetivamente, um comando a ser cumprido, que pode ser a identificação
de conhecimentos metalinguísticos ou o posicionamento sobre determinado
assunto; e 2) regulados por modo de ação, cujo propósito é mostrar como o
aluno deve fazer a partir de um parâmetro estabelecido.

Já em relação ao tipo de ação, elas podem aparecer como 1) ação


de indicação de conhecimento metalinguístico; 2) ação discursiva, em que
o aluno deve discorrer sobre o que se pede; e 3) ação de reprodução, em
que o aluno deve voltar ao texto, retirar as informações solicitadas e produzir
respostas a partir dos dados observados. A partir disso, é necessário observar
nos enunciados “como eles estão escritos, que ações solicitam e se a
composição como um todo atende aos objetivos estabelecidos para a
atividade” (LINO DE ARAÚJO, 2017, p. 53).

Outro ponto em relação às atividades de leitura é que elas podem


levar à exploração de diferentes níveis. Colaço (1998) demonstra que um
leitor proficiente deve atingir três níveis: 1) explícito, que diz respeito ao
reconhecimento da materialidade linguística; 2) implícito, ligado ao domínio
das inferências, em que se reconhece o projeto de dizer do autor; 3)
metaplícito, que está relacionado à reconstituição do contexto no qual o
texto foi escrito.

Nesse sentido, fazendo uma articulação com os autores


mencionados, pode-se ter em vista que a elaboração de enunciados
envolve não somente a exploração de diferentes níveis cognitivos e
dimensões da leitura, mas também uma elaboração adequada para que os
objetivos pretendidos sejam alcançados.

182
6 ENUNCIADOS DE ATIVIDADES DE PRODUÇÃO DE TEXTOS

Da mesma forma que a leitura, a produção de textos também tem


um trato que parte da concepção enunciativa da linguagem na BNCC
(2018). Para desenvolvê-la, o documento propõe que sejam desenvolvidas
práticas ligadas à interação e à autoria de textos orais, escritos e
multissemióticos, com diferentes finalidades e projetos enunciativos, também
tendo em vista o uso e a reflexão. O documento reafirma a necessidade de
trabalho articulado com as habilidades nessa prática de linguagem, “por
meio de situações efetivas de produção de textos pertencentes a gêneros
que circulam nos diversos campos de atividade humana” (BRASIL, 2018, p.
78).

Lino de Araújo (2017) afirma que essas atividades exigem modelos a


serem apresentados para os alunos, já que, por ser um processo complexo,
a produção textual demanda uma alfabetização da textualidade: deve-se
ensinar como se constrói um texto para determinado interlocutor, suporte de
publicização e situação. No que tange à elaboração dessas atividades, a
autora mostra que os enunciados podem aparecer sob a forma de
comandos simples ou regulados por modo de ação e, é claro, todos eles
levam a ações discursivas.

Sobre as categorias de elaboração dos enunciados, Lino de Araújo


(2017) se utiliza do estudo de Marenco (2010) para demonstrar as duas
categorias de elaboração de enunciados de produção textual: a
orientação e o ancoramento.

Na categoria de orientação, pode-se pensar em três: 1) a orientação


didática, em que a proposta de atividade é claramente apresentada ao
produtor como um roteiro, o que pode ser dado por uma sequência de

183
atividades com comandos que levam a ações nitidamente explicitadas; 2)
a orientação genérica, que não propõem um jogo enunciativo ao aluno na
construção dos enunciados; e 3) orientação implícita, que supõe que o aluno
domina o gênero proposto para a produção.

Em relação à categoria de ancoramento, ela diz respeito à


apresentação de um ou mais modelos do gênero proposto para a produção.
Nesse caso, o ancoramento se apresenta antes do comando propriamente
dito.

Dessa forma, duas dessas categorias são importantes para a


elaboração dos enunciados: a orientação didática e o ancoramento, que,
articuladas a outros elementos – como o conhecimento do tema sobre o
qual se escreverá, a posição enunciativa dos alunos e o manejo adequado
dos recursos linguísticos ligados à produção e ao suporte – garantem
melhores condições para a produção textual.

7 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como foi introduzido anteriormente, o PET escolhido para a análise foi


o volume 7, destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental regular, que está
disponível no link:
https://drive.google.com/file/d/1cF0SW5oiDHR_QMfVuo5Ckvn_-FFtX56/view.
Esse PET, planejado para quatro semanas de trabalho, aborda as práticas de
leitura e de produção de textos. Para a leitura, são disponibilizados textos e
atividades de compreensão a partir dos gêneros carta de solicitação,
matéria jornalística, conto e notícia. Para a produção textual, são propostos
quatro gêneros, um por semana: carta de solicitação, resumo, conto de
suspense e notícia, respectivamente. Para sistematizar a análise da

184
construção dos enunciados, foram selecionados dois aspectos, tomando
como base o referencial teórico elucidado, os quais serão discutidos a seguir.

7.1 A BNCC E A FORMULAÇÃO DAS QUESTÕES

Em um primeiro momento, observa-se como pertinente analisar como


as questões se atentam às proposições dos documentos norteadores nos
quais se embasa o PET, pois isso influencia na construção das atividades e
dos enunciados.

Nas quatro semanas de atividades, foi observada a predominância


de atividades que partem das habilidades para trabalhar com as práticas
de linguagem e os gêneros discursivos elencados. Isso se dá pela não
contextualização das práticas e dos gêneros em campos de atuação – os
quais não são mencionados no documento. Na semana 1, por exemplo, em
que é introduzido o trabalho com o gênero carta de solicitação, não há
menção aos contextos de uso desse gênero e à sua função
sociocomunicativa, bem como à contextualização das ações dos
interlocutores no campo de atuação em que ele circula.

Nos enunciados de produção textual, as propostas de texto ficam


limitadas a atender às demandas das habilidades isoladamente, conforme
mostra o quadro 2.

Quadro 2: Habilidades selecionadas e questões elaboradas para a produção de textos.

HABILIDADES SELECIONADAS ENUNCIADOS


CORRESPONDENTES

185
(EF67LP20X) Realizar pesquisa, a partir de recortes e Faça uma pesquisa
questões definidos previamente, usando fontes indicadas e abertas, em jornais, revistas, com as
considerando a credibilidade do veículo de informação pesquisado. pessoas do seu convívio e, se
possível, na internet, sobre a
situação dos animais de rua,
(EF67LP22) Produzir resumos, a partir das notas e/ou levando em consideração as
esquemas feitos, com o uso adequado de paráfrases e citações. perguntas abaixo. Em seguida,
faça um resumo da sua pesquisa.

(EF67LP30A) Criar narrativas ficcionais, tais como contos 02. Observe os


populares, contos de suspense, mistério, terror, humor, narrativas de elementos da narrativa.
enigma, crônicas, histórias em quadrinhos, dentre outros, que utilizem
cenários e personagens realistas ou de fantasia, observando os a) Agora é a sua vez!
elementos da estrutura narrativa próprios ao gênero pretendido, tais Produza um CONTO DE SUSPENSE
como enredo, personagens, tempo, espaço e narrador.. a partir da imagem a seguir. Não
esqueça dos elementos da
narrativa.

(EF67LP09) Planejar notícia impressa e para circulação em 02. Agora, reescreva o


outras mídias, tendo em vista as condições de produção do texto – texto sobre a Pequena Lo,
objetivo, os leitores/espectadores, veículos e mídia de circulação etc. seguindo a estrutura de uma
–, a partir da escolha do fato a ser noticiado, do levantamento de notícia.
dados e informações sobre o fato, do registro dessas informações e
dados, da escolha de fotos ou imagens a produzir ou a utilizar etc. e a
previsão de uma estrutura hipertextual (no caso de publicação em
sites ou blogs noticiosos).

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Observa-se que as questões elaboradas para trabalho com a


produção textual condizem com as habilidades elencadas. Isso, é claro, não
é um problema se abordado de forma contextualizada e de acordo com
objetivos específicos de aprendizagem. No entanto, observa-se que,
precedidas de atividades de compreensão que não exploram diferentes
níveis cognitivos e dimensões da leitura, as propostas de produção textual
também não envolvem outros aspectos da escrita para além da adequação
composicional do gênero.

Nas atividades em que não se constata essa articulação entre


habilidades e enunciados de forma explícita, observa-se que as questões
elaboradas também não mesclam níveis de complexidade, tampouco

186
exploram outras dimensões do processo de leitura e produção textual, como
a social, a discursiva e a histórica, o que minimiza a potencialidade dos
campos de atuação de contextualizar as aprendizagens.

Dessa forma, ao analisar aspectos da construção dos enunciados, é


válido observar que a concepção de linguagem e de ensino subjacentes às
questões elaboradas vai de encontro a algumas proposições dos
documentos norteadores. Ter isso em vista é necessário, pois, como se
destacou, a elaboração de enunciados reflete a formação teórico-
metodológica do sujeito-professor, que pode ou não atender os objetivos de
um ensino que considere os princípios que levam ao caminho de uso-
reflexão-uso.

7.2 A ELABORAÇÃO DA SEQUÊNCIA INJUNTIVA EM ATIVIDADES DE LEITURA E


DE PRODUÇÃO DE TEXTOS

Um segundo aspecto passível de análise nas questões do PET diz


respeito à elaboração das sequências injuntivas, observando como elas são
construídas nos enunciados e de que forma elas levam ao atendimento ou
não dos comandos solicitados.

Nas atividades de leitura, foi observado que as perguntas ligadas às


leituras são do tipo vale-tudo, subjetivas, objetivas e mistas, conforme a
tipologia de Marcuschi (2006). O comando da sequência injuntiva se dá no
enunciado principal e, nas perguntas subsequentes, há interrogações que
buscam levar o aluno a discorrer sobre aspectos ligados à materialidade
linguística e à leitura automática, ou seja, situam-se no nível explícito de
leitura, conforme a distinção de Colaço (1998), e no nível de complexidade
básico, de acordo com a taxonomia de Bloom (adaptado por Lino de Araújo,

187
2017). Mesmo nas questões relacionadas às habilidades iniciadas pelo verbo
“analisar”, por exemplo, os alunos não são levados a relacionar as partes do
texto, apenas a identificá-las, limitando a experiência ao não mesclar demais
níveis.

Além disso, observa-se a predominância desse foco pelo fato de não


ser dada ênfase aos contextos de produção, circulação e recepção dos
textos, à situação de comunicação, à necessidade de interlocução e à
funcionalidade, marcas discursivas e estrutura composicional dos gêneros
trabalhados, como defende Costa-Hübes (2009). Dessa forma, a elaboração
dos enunciados atende a uma concepção de leitura que a reduz ao
apontamento de questões explícitas no texto, as quais, segundo Marcuschi
(2006), não permitem um trabalho complexo com a interpretação do texto.

Outro ponto sobre a elaboração dos enunciados é que o uso


exclusivo de interrogações, iniciadas predominantemente por “qual”, “o
que”, “como” e assim por diante, não estabelece critérios de avaliação
claros, conforme a taxonomia de Bloom. Nesse caso, não somente a
abordagem articulada dos diferentes níveis da cognição e da leitura é
afetada, mas também a exploração de outras dimensões de leitura.

Em relação às atividades de produção textual, o quadro abaixo


mostra as categorias de elaboração dos enunciados associadas às quatro
semanas de trabalho.

Quadro 3: Sequências injuntivas das atividades de escrita do PET analisado.

SEMANA DE ENUNCIADO CATEGORIA DE


TRABALHO ELABORAÇÃO DE
ENUNCIADOS

188
Semana 1 Imagine que você é um aluno dessa escola e tem a sua própria Orientação didática,
opinião a respeito do assunto dos textos da atividade anterior. sem ancoramento.
Escreva uma carta aberta para circular na escola com o seu
posicionamento sobre o uso obrigatório do fardamento
completo. Não se esqueça de colocar os motivos da sua opinião.
Pense com cuidado no destinatário dessa carta aberta.

Semana 2 Faça uma pesquisa em jornais, revistas, com as pessoas do seu Orientação implícita,
convívio e, se possível, na internet, sobre a situação dos animais sem ancoramento.
de rua, levando em consideração as perguntas abaixo. Em
seguida, faça um resumo da sua pesquisa.

Semana 3 1) Observe os elementos da narrativa. Orientação genérica


e ancoramento.
2) Agora é a sua vez! Produza um CONTO DE SUSPENSE a partir
da imagem a seguir. Não esqueça dos elementos da narrativa.

Semana 4 Agora, reescreva o texto sobre a Pequena Lo, seguindo a Orientação genérica
estrutura de uma notícia. e ancoramento.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Como se viu, há predominância das orientações genéricas, e a


categoria de ancoramento aparece em apenas dois enunciados. A
orientação didática pode ser vista como um ponto positivo para a
elaboração das atividades, no entanto, a falta do ancoramento dificulta o
acesso dos alunos ao trabalho com o gênero proposto, pois a leitura prévia
do gênero, como se viu, não ultrapassa os aspectos cognitivos.

No caso da orientação implícita, o que se observa é que uma


abordagem mais aprofundada da leitura poderia servir de base para o
trabalho posterior com a produção textual, auxiliando a construção da
orientação didática processual. Tomando como exemplo a semana 1, a
leitura dos textos do gênero carta de solicitação poderia envolver aspectos
para além da materialidade linguística, como as marcas discursivas, a
estrutura composicional e a funcionalidade dos textos, conforme demonstra
Costa-Hübes (2009) sobre a leitura responsiva ativa. A partir desse trabalho, o

189
aluno já estaria sendo preparado para escrever o texto por meio da
articulação entre as práticas da linguagem, tal qual sugere a BNCC.

Sobre as orientações genéricas, pode-se observar que elas


aparecem articuladas às sequências injuntivas associadas à categoria de
ancoramento, ou seja, nos enunciados que apresentam um modelo do
gênero a ser produzido. No entanto, somente demonstrar a estrutura do
gênero não cria condições para que o aluno o produza. Nos comandos,
solicita-se que o aluno produza e reescreva um texto, sem propor a
contextualização, os procedimentos de produção e sem explorar a posição
do aluno sobre o que escreverá.

No que diz respeito ao ancoramento, pode-se reforçar que ele


produziria efeitos positivos sobre as tarefas se articulado a atividades que
explorem diferentes níveis e dimensões de leitura. Sua abordagem é
fundamental para a produção textual, no entanto, isso deve ser feito de
modo a entender a escrita como uma atividade situada, com sujeitos que
respondem às necessidades interlocutivas, tendo em vista que as
características do gênero são um dos elementos que influenciam esse
processo.

Assim, fazendo uma relação entre os aspectos discutidos acima, é


possível apontar dois pontos principais sobre a elaboração dos enunciados
no PET analisado: 1) o atendimento às proposições da BNCC favoreceria a
construção de atividades de leitura e de produção textual que explorassem
melhor as dimensões envolvidas nessas práticas e 2) a estruturação dos
enunciados materializa concepções de linguagem e ensino e, por isso, sua
construção impacta na aprendizagem do aluno.

Dessa forma, o material possui enunciados cujas formulações


atendem a objetivos educacionais restritos. No caso da leitura, espera-se do

190
aluno que ele seja capaz de identificar aspectos explícitos do texto, o que
não permite um trabalho cognitivo, social, textual, discursivo e histórico mais
complexo a partir das questões. Sobre isso, vale destacar, ainda, que esses
objetivos não ficam claros aos alunos, pois o comando predominante é que
eles respondam às questões propostas. No caso da produção textual, o
mesmo se aplica, já que os comandos são produzir ou reescrever
determinados gêneros. Somado a isso, na produção, as instruções não
explicitam o “como fazer” de forma detalhada, isto é, quais são os passos
para se elaborar um texto, cruciais para o planejamento da escrita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao abordar a elaboração de enunciados escolares como parte


fundamental do processo de formação de professores, evidencia-se
questões teórico-metodológicas subjacentes à prática docente que, se não
trazidas à consciência de forma coerente e embasada, pode-se caminhar
para um ensino que não é almejado idealmente, justamente porque o
processo de construção das atividades e tarefas parte não de um
conhecimento construído de forma tácita, mas de um saber que demanda
sistematização.

Analisar essa questão a partir do PET levou ao entendimento de que


ela ainda carece de atenção no âmbito educacional, haja vista que os
enunciados escolares analisados limitam a aprendizagem a determinados
aspectos e reduzem as possibilidades de ensino. Nesse caso, elenca-se como
fundamental a intervenção docente para que as atividades de leitura e de
produção textual sejam ampliadas para outras dimensões, garantindo uma
aprendizagem contextualizada e significativa.

191
Dessa forma, pode-se dizer que estudos mais aprofundados sobre
essa questão podem ser feitos a partir de um corpus mais abrangente. Esta
pesquisa pode ser vista, então, também como um convite para novos
estudos sobre o PET, não somente no que diz respeito à elaboração dos
enunciados escolares, pois, como se viu, ele abre espaço para discussões
que englobam diversos aspectos do ensino de língua portuguesa.

REFERÊNCIAS

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e em ação. 2004. Monografia (Especialização em Linguística Aplicada ao
Ensino de Língua Materna) – Programa de Pós-Graduação em Linguagem e
Ensino, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2004.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base.


MEC/Secretaria de Educação Básica. Disponibilidade em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versa
ofinal_site.pdf>. Acesso em: 25 abr. 2021.

COSTA-HÜBES, T. da. Reflexões linguísticas sobre metodologia e prática de


ensino em Língua Portuguesa. Confluência, Rio de Janeiro, v. 1, n. 36, p. 129-
146, 2009.

GERALDI, J. W. O ensino de Língua Portuguesa e a Base Nacional Comum


Curricular. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 9, n. 17, p. 381-396, jul./dez.
2015.

LINO DE ARAÚJO, D. Enunciado de atividades e tarefas escolares: modos de


fazer. São Paulo: Parábola Editorial, 2017. 147 p.

192
MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: DIONISIO,
Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora.
Gêneros textuais e ensino. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

MORETTO, V. P. Prova: um momento privilegiado de estudo, não um acerto


de contas. 8 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

ROSA, A. L. T. da. No comando, a sequência injuntiva. In: DIONISIO, A. P.;


BESERRA, N. da S. (orgs.). Tecendo textos, construindo experiências. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003.

193
A ESCRITA DE (RE)EXISTÊNCIA NEGRA NA POÉTICA: DIÁLOGOS
ENTRE CRISTIANE SOBRAL, CONCEIÇÃO EVARISTO E MEL DUARTE

Chrisllayne Farias da Silva22

RESUMO: Sabe-se que, por muito tempo, a literatura manteve-se limitada aos grupos
hegemônicos, assim como a escrita literária esteve restrita nas mãos de homens
heteronormativos, brancos, elitistas, ou seja, o que foi imposto como a representação
canônica na sociedade, e consequentemente na literatura. Estes sujeitos ocupam relações
de poder, determinando os mais diferentes espaços na cultura, arte, religião, literatura,
política. Entende-se que discutir acerca de um texto literário é trazer à tona, também, o
contexto sócio-histórico, a criação e recepção de uma obra, as relações ideológicas e
políticas que a permeiam. “A instituição literária como uma instituição social e política,
também participa desse aparato discursivo/ideológico ao incorporar o que é considerado
um dado inquestionado na cultura.” (SCHMIDT, 2013, p.3). Considerando isto, percebe-se
que com o passar dos anos a literatura começa a abranger esses sujeitos, até então,
marginalizados pelo patriarcado. Mas, se torna necessário questionar e repensar de qual
forma a mulher, e principalmente, a mulher negra está sendo representada nesse espaço.
Sendo assim, este trabalho, de natureza qualitativa e de procedimento bibliográfico, tem
como objetivo evidenciar a escrita de (re)existência das poetisas afro-brasileiras, bem como,
a análise literária das semelhanças entre os diálogos presente nos poemas “Nzingas
Guerreiras” de Cristiane Sobral, “Eu-mulher” de Conceição Evaristo e no poema “Não
Desiste!” de Mel Duarte, ressaltando os aspectos de raça e de gênero na literatura, pois, é
preciso refletir acerca dessas intersecções e perceber as relações presentes nessas
categorias. (DAVIS, 2016). As contribuições teóricas que fundamentam esta discussão são
Bosi (2015), Candido (2000; 2011), Davis (2016), Dalcastagnè (2012), Duarte (2002; 2010),
Evaristo (2009), Ribeiro (2017), Santiago (2012), Zolin (2009), dentre outros. Este estudo
demonstra a importância da leitura e escrita afro-brasileira como forma de
representatividade, contribuindo com a descentralização do poder patriarcal e na
(re)construção de identidades subalternizadas.

Palavras-chave: Representatividade, Escrita afro-brasileira, Decolonialidade.

1 INTRODUÇÃO

A partir de registros escritos como a Carta de Pero Vaz de Caminha e


o Tratado de Pero de Magalhães Gândavo, é possível perceber que a

22Graduanda do Curso de Letras Português da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB,


chrisfariassilva@gmail.com;

194
identidade do Brasil é reconfigurada a partir de uma visão do Outro,
principalmente, daquele que domina, explora e determina padrões sociais,
religiosos e políticos. Com isso, é preciso questionar-se essa identidade
nacional, cultural, étnica e religiosa, ao considerar que a diversidade
presente no país, foi silenciada numa tentativa de unificação por parte do
olhar eurocêntrico. A história do Brasil é marcada por um branqueamento,
de elitismo e hegemonia, principalmente, masculina, que em consequência,
fortaleceu e intensificou a escravidão de negros, a violência e o genocídio
da população afro-brasileira.

Não coincidentemente, todo esse aparato histórico e ideológico que


se inicia na reconstrução da identidade brasileira a partir da colonização
europeia, influencia diretamente na construção da literatura brasileira e mais,
incisivamente, na literatura feminina de autoria negra. O que se tem como
cânone são as obras de escritores já consagrados que representam,
minimamente, a sociedade brasileira seja ficcional ou não, é elucidada por
vozes unificadas, como as dos homens brancos, heteronormativos e
conservadores, pois são os que compõem as estruturas de poder no campo
social, político e cultural. Assim como Schmidt (2013) enfatiza, a instituição
literária enquanto instituição social e política, participa de tais discussões,
uma vez que os discursos incorporam ideologias e contextos sócio-históricos.

Acerca dessa discussão, Evaristo (2005) afirma que a história da


literatura brasileira, desde o período colonial, é marcada constantemente
por personagens negras estereotipadas, deturpadas e animalizadas,
demonstrando que o olhar do Outro a silencia e exclui de suas
ancestralidades, da sua identidade. A representação muitas vezes
alicerçada a escravidão e a objetificação do corpo negro. Sobre esse
aspecto, esclarece Dalcangasté (2007, 127), “o corpo feminino é um território
em permanente disputa. Sobre ele se inscrevem múltiplos discursos.” E o

195
corpo da mulher negra é, constantemente, marcado por esses discursos de
dominação, discriminação, violência, nessas representações sobre a negra.

Em vista disso, este trabalho tem como objetivo perceber como se dá


a escrita literária a partir de um outro olhar, o da autoria feminina negra, além
disso, analisar as representações da mulher negra enquanto autora e
evidenciar os possíveis diálogos de resistência e (re)existência entre três
escritoras afro-brasileiras em um contexto de tantos silenciamentos e
representações fictícias e deturpadas, não só do personagem negro, mas
também do próprio negro enquanto sujeito inserido no campo social, cultural
e político, e principalmente, a mulher negra. Estabelecendo o contraponto
entre as representações por um olhar do Outro e pelo olhar da própria
escritora negra.

A partir de um principal questionamento; como a escrita de autoria


feminina negra se encontra na literatura, e como se estabelece os diálogos
de (re)existência com suas ancestralidades e empoderamento enquanto
mulheres negras. Este trabalho busca permitir possíveis reflexões acerca da
literatura afro-brasileira, e possibilitar outros diálogos possíveis, por meio da
análise dos escritos de Cristiane Sobral, Conceição Evaristo e Mel Duarte.

Para discutir acerca da escrita feminina de autoria negra como forma


de (re)existência na poética, o artigo está organizado da seguinte forma: (2)
a metodologia de pesquisa, (3) apresentação dos pressupostos teóricos que
embasam as discussões presentes neste trabalho, (3.1) análises referentes a
trajetória da mulher na literatura brasileira, (3.2) discussão referente a
(re)existência na poética, por meio da autorrepresentação da mulher negra
na literatura afro-brasileira, seguida dos resultados e discussão, na análise dos
poemas “Nzingas Guerreiras” de Cristiane Sobral, “Eu-mulher” de Conceição
Evaristo e no poema “Não Desiste!” de Mel Duarte, por fim, a apresentação
das considerações finais.

196
2 METODOLOGIA

O método deste trabalho está pautado na pesquisa de natureza


qualitativa, que conforme Bortoni-Ricardo (2008, p.34), “procura entender,
interpretar fenômenos sociais inseridos em um contexto.” Neste viés, este
artigo tem como objetivo analisar a partir da temática acerca da escrita de
autoria feminina negra, levando em consideração os aspectos sociais,
ideológicos e políticos que permeiam as discussões. E quanto ao
procedimento do trabalho é caracterizado como bibliográfico.

A pesquisa se pauta nas perspectivas teóricas de Evaristo (2005; 2009),


acerca da representação da mulher negra na literatura afro-brasileira,
Dalcastagnè (2007; 2012) que analisa as novas vozes na literatura brasileira
contemporânea, assim como a representação da mulher na literatura,
Santiago (2012) que analisa a trajetória da personagem negra nas obras
canônicas da literatura brasileira e as representações da identidade negra,
entre outras contribuições teóricas que embasam as discussões presentes
neste artigo.

Por meio deste trabalho, busca-se analisar a autorrepresentação da


mulher negra na literatura por meio dos poemas “Nzingas Guerreiras” de
Cristiane Sobral, “Eu-mulher” de Conceição Evaristo e no poema “Não
Desiste!” de Mel Duarte. Assim como os possíveis diálogos de resistência e
(re)existência por meio da escrita poética das escritoras afro-brasileiras.
Portanto, pretende-se identificar, através dos poemas, dois principais
aspectos:

(1) Como se dá a (re)existência da mulher negra por meio da


poética;

197
(2) Perceber a autorrepresentação feminina e afro-brasileira na
literatura contemporânea.

3 REFERENCIAL TEÓRICO

3.1 BREVES PERSPECTIVAS SOBRE AS REPRESENTAÇÕES DA MULHER NEGRA NAS


ORIGENS DA LITERATURA NACIONAL

Reflexões e questionamentos acerca da história de uma literatura


nacional têm conduzido muitas discussões e perspectivas de teóricos e
pesquisadores, ao longo de décadas, uma vez que, as origens do que é
considerado nacional constitui-se a partir de um olhar do Outro em relação
ao Brasil. Desde a sua colonização a identidade do que é posto como
nacional tem sido reconfigurada e ressignificada a partir do viés do
dominador, do eurocêntrico, o que muito influencia na construção do que é
considerado como ‘nacional’. Acerca desse aspecto, esclarece Bosi (2015),
que as origens da literatura nacional não se podem constituir-se a partir do
europeu, pois é necessário ter a consciência histórica acerca do passado, e
principalmente, da afirmação do complexo colonial.

A Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o “outro” em relação


à metrópole: em nosso caso, foi a terra a ser ocupada, o pau-brasil
a ser explorado, a cana-de-açúcar a ser cultivada, o ouro a ser
extraído; numa palavra, a matéria-prima a ser carreada para o
mercado externo. A colônia só deixa de o ser quando passa a sujeito
da sua história. Mas essa passagem fez-se no Brasil por um lento
processo de aculturação do português e do negro à terra e às raças
nativas; e fez-se com naturais crises e desequilíbrios. Acompanhar
este processo na esfera de nossa consciência histórica é pontilhar o
direito e o avesso do fenômeno nativista, complemento necessário
de todo complexo colonial. (BOSI, 2015, p.12, grifo nosso.).

198
Sendo assim, é possível perceber que o processo de colonização se
constituiu, principalmente, através da exploração e da dominação por
interesses, puramente, econômicos. Pois, as culturas e religiões já existentes
foram desvalorizadas e menosprezadas, o que não aconteceu de forma
pacífica, ao considerar que houve imposição tanto da língua, quanto da
cultura, entre outras formas. Os negros escravizados em navios, das mais
diversas regiões, de forma desumana e cruel, revelam que a história da
colonização não pode ser vista de forma romantizada, mas sim, por um viés
histórico e crítico, para que só assim, entenda-se o como constrói-se e
ressignifica-se essa identidade.

Sobre as identidades femininas negras na literatura brasileira,


Santiago (2012) analisa por meio de obras canônicas, que desde o período
colonial, as representações de personagens negras aparecem nos textos
literários como uma imagem negativa, reproduzindo e reafirmando
estereótipos, “através de qualitativos carregados de imagens de um passado
de escravização, exploração, sensualidade, libido e virilidade exacerbada,
negando-lhe aspectos positivos, que promovam uma construção afirmativa
de suas identidades.” (SANTIAGO, 2012, p. 99).

É notável que o período colonial, pelo seu fator político e social, e por
ter sido um período tão marcante na história do país, muito tem influenciado
na formação da literatura nacional, e reproduzindo atitudes e estereótipos
presentes desde as suas origens, haja vista que a literatura, também, acaba
sendo reflexo do social, seja para representar, criticar e/ou questionar.
Porém, o que se percebe nas origens da literatura nacional, não é uma
crítica, mas sim um reflexo do que o período colonial representou, pois assim
como Evaristo (2005) esclarece que:

199
A representação literária da mulher negra ainda surge ancorada nas
imagens de seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-
objeto de prazer do macho senhor. Interessante observar que
determinados estereótipos de negros/as, veiculados no discurso
literário brasileiro, são encontrados desde o período da literatura
colonial. (EVARISTO, 2005, p. 52).

Desse modo, é possível perceber que a representação da mulher


negra na literatura brasileira surge, principalmente, articulada a ideia de um
corpo para procriar, gerar filhos para os senhores, ora como objeto de prazer
do homem branco e dono das terras. A imagem da mulher negra, na maioria
dos casos, foi representada por muitas obras canônicas da literatura
nacional, com ênfase na sexualização do seu corpo. “Em textos
considerados canônicos, predominam significados de repertórios culturais
negros que pouco se relacionam com alteridades e com as transitoriedades
das identidades.” (SANTIAGO, 2012, p. 97). A sua ancestralidade, sua cultura,
religião e outras formas de representação da personagem feminina negra
foram minimizadas e desvalorizadas. Ribeiro (2017) reitera que

A tradição literária brasileira é marcada por uma escrita sobre o


negro, em que narrativas e poesias são inventadas a partir de temas
como escravidão e culturas negras, representadas, muitas vezes, por
meio de estigmas, preconceitos e olhares etnocêntricos.” (RIBEIRO,
2017, p. 98).

Portanto, é possível perceber que as representações da mulher negra


na literatura nacional, desde o período colonial, muito se restringem a uma
visão negativa e errônea, que tende a menosprezar a imagem feminina
negra assujeitando-se aos sistemas patriarcais e conservadores, de um
período marcado por violência e silenciamento. Outro aspecto a se
perceber, é que há uma escrita, majoritariamente, marcada sobre o negro,

200
ou seja, é uma visão que parte do olhar do outro acerca das vivências do
próprio negro, o que se propende para uma visão distorcida e ilusória.

3.2 A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA E A ESCRITA DE (RE)EXISTÊNCIA POR


MEIO DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Apesar da história das origens da literatura nacional tenha ficado


restrita aos escritores canônicos, e muitos destes, representado por um grupo,
majoritariamente, de homens brancos e burgueses, que retratam uma
pequena parcela da sociedade, e muitas vezes por um único olhar acerca
dos fatos sociais, culturais, étnicos, políticos e econômicos, numa tentativa
de silenciar e excluir as diversidades existentes na sociedade brasileira.

Há a necessidade de se atentar para o fato de que a escrita literária


também foi realizada por escritoras negras, porém, tal escrita também foi
omitida por diversos fatores, dentre eles, a dificuldade em chegar aos
espaços privilegiados da literatura, como a publicação de livros, as
premiações, por isso, o reconhecimento e a valorização eram mínimos. E essa
dificuldade de atingir espaços de privilégios na literatura, perdura até os dias
atuais, pois como bem enfatizou Dalcastagnè (2012), por meio de pesquisas
e análises acerca dos prêmios brasileiros e publicações de livros, o espaço
literário ainda é homogêneo.

Só para citar alguns números, em todos os principais prêmios literários


brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de
Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2006 e
2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher (na
categoria estreante, do Prêmio São Paulo de Literatura). Outra
pesquisa, mais extensa, coordenada por mim na Universidade de
Brasília, mostra que de todos os romances publicados pelas principais
editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120

201
em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a
homogeneidade racial: 93,9% dos autores são brancos. Mais de 60%
deles vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quase todos estão
em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de
discurso: os meios jornalístico e acadêmico. (DALCASTAGNÈ, 2012, p.
14).

A partir dessa análise realizada por Dalcastagnè, é possível perceber


que mesmo anos após o período colonial e da construção do cânone
literário, a homogeneização e a ausência de representatividade ainda se faz
muito presente na literatura nacional e se estende para os mais diversos
espaços. E mesmo que a pesquisa tenha sido realizada a mais de dez anos,
ela demonstra algo que ainda se faz presente nos dias atuais, o preconceito
e a dificuldade em aceitar a presença de escritores negros, e principalmente,
revela a dificuldade em aceitar a escritora mulher e negra como intelectual
capaz de produzir e ser reconhecida nos espaços privilegiados da literatura.

Esse aspecto da homogeneização, é reflexo não apenas na


sociedade em geral, mas, também, no campo literário. Um dos diversos
acontecimentos impactantes e que demonstram a ausência de
representação da mulher negra nos espaços privilegiados da literatura, é
referente a posse das cadeiras dos imortais na Academia Brasileira de Letras
(ABL), que no ano de 2018, houve a candidatura para ocupação da cadeira
de número 7, e tinha Conceição Evaristo como possível candidata, porém,
a forma que ocorreu a sua eleição refletiu notadamente a falta de
representação nestes espaços literários.

Considerando ainda, que a escritora afro-brasileira recebeu apenas


um23 voto para ocupar a cadeira e ter a sua candidatura aceita, mesmo
possuindo reconhecimento de suas obras, tanto apoio nas redes sociais e nos

23Informações recolhidas na matéria produzida pelo The Intercept Brasil. Disponível em:
<https://theintercept.com/2018/08/30/conceicao-evaristo-escritora-negra-eleicao-abl/>.
Acesso em: 27 de maio de 2021.

202
mais diversos campos políticos, sociais e culturais, a sua posse não se
concretizou. A ABL, atualmente, é ocupada por quarenta escritores 24 , a
maioria dos membros são homens, destes quarenta que ocupam as cadeiras,
apenas cinco são mulheres, nenhuma delas são negras, e há a presença de
apenas um escritor negro.

Os questionamentos, reflexões e mobilizações acerca deste


acontecimento foram constantes nas redes sociais, grupos em apoio a
escritora afro-brasileira mobilizaram-se, discutiram o assunto, levantaram
hashtags nos Trending Topics do Twitter e diversos assuntos foram postos em
pautas, pois a importância em imortalizar a voz de Conceição Evaristo é
tamanha para a escrita de (re)existência afro-brasileira, por isso utilizamos
das seguintes reflexões da Evaristo (2009):

Qual seria, pois, o problema em reconhecer uma literatura, uma


escrita afro-brasileira? A questão se localiza em pensar a
interferência e o lugar dos afro-brasileiros na escrita literária brasileira?
Seria o fazer literário algo reconhecível como sendo de pertença
somente para determinados grupos ou sujeitos representativos
desses grupos? Por que, na diversidade de produções que compõe
a escrita brasileira, o difícil reconhecimento e mesmo a exclusão de
textos e de autores(as) que pretendem afirmar seus pertencimentos,
suas identificações étnicas em suas escritas. (EVARISTO, 2009, p.19,
grifo nosso).

A partir de tal acontecimento é possível notar que os espaços sociais,


culturais e políticos de privilégios, demarcado socialmente por homens
burgueses, ainda permanecem sendo espaços ausentes de representação
da mulher negra. A exclusão que a cultura afro-brasileira recebe nestes e nos
mais diversos campos sociais reflete os estigmas e preconceitos para com
esse povo.

24Informações recolhidas no site da Academia Brasileira de Letras. Disponível em:


<https://www.academia.org.br/academicos/membros>. Acesso em: 27 de maio de 2021.

203
À vista disso, considera-se a escrita literária das mulheres afro-
brasileiras uma escrita de resistência. É por meio da poética, que mulheres
negras não cedem ao sistema demarcado pelo patriarcado e a hegemonia,
mas resistem por meio de sua escrita literária. E (re)existem em meio a uma
homogeneização que a tentam silenciar, apagar e minimizar a suas
grandiosidades e diversidades, é por intermédio da poética afro-brasileira
que encontram outras formas de existir em meio a todo esse sistema de
exclusão, “afirmando um contra-discurso à literatura produzida pela cultura
hegemônica, os textos afro-brasileiros surgem pautados pela vivência de
sujeitos negros/as na sociedade brasileira e trazendo experiências
diversificadas [...]” (EVARISTO, 2009, p.27).

Objetiva-se elaborar outros discursos em que elas possam fiar e


ficcionalizar mazelas advindas de práticas racistas e sexistas, mas
também, em tom de lirismo, tecer versos e prosas que reelaborem
suas identidades, entoarem seus amores, dissabores, dores, histórias,
resistências e ancestralidades. (SANTIAGO, 2012, p. 146).

No que se refere a escrita e a construção das identidades negras, a


autora Santiago (2012), enfatiza a importância da escrita de uma literatura
nacional não apenas sobre o negro, mas a partir do negro, é também uma
forma de reafirmar e reinventar as suas identidades, e desconstrução de
estereótipos dos personagens representados na literatura tradicional, bem
como evidenciar as novas visões e formas de abordagens da presença da
mulher negra na história da literatura. Acerca da Literatura Afrofeminina,
Santiago (2012) demonstra que a literatura de mulheres negras surge para
reinventar uma escrita a partir das próprias vivências.

204
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com Spivak (2010), o papel do sujeito pós-colonial é de lutar


contra o projeto imperialista, e permitir que o sujeito subalternizado, por esse
projeto, tenha voz e espaço, uma vez que, negar o subalterno é, de alguma
forma, permitir que esse projeto imperialista do colonial permaneça. De
acordo com a autora, não é possível ocupar o lugar do sujeito subalternizado
e falar por ele, mas é extremamente necessário, que se trabalhe contra a
subalternização, possibilitando meios para que esse sujeito tenha vez e voz
na sociedade.

A autora também chama a atenção para a questão de que os fatores


relacionados ao gênero e ao de raça, vão ser fatores que também irão
determinar de forma mais intensa essa subalternização do sujeito, “a questão
da “mulher” parece ser a mais problemática nesse contexto. Evidentemente,
se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras.” (SPIVAK,
2010, p.110). No entanto, é possível perceber que o projeto imperialista que
tem determinado maneiras de viver e se portar na sociedade, é ainda mais
intenso na subalternização com a mulher negra. É referente a este aspecto,
que Davis (2010) procura enfatizar, que os conceitos de raça, classe e gênero
estejam sempre relacionados e considerados, pois somente na
conscientização e relação dessas três categorias, é que será possível lutar
contra as opressões.

Sendo assim, este trabalho objetiva analisar por meio das vozes de
resistência e (re)existência das poetisas afro-brasileiras Cristiane Sobral,
Conceição Evaristo e Mel Duarte, a autorrepresentação da mulher negra na
literatura contemporânea, atentando para os aspectos de raça, classe e
gênero e evidenciando a necessidade de permitir que os sujeitos que foram

205
colocados na borda da sociedade, ocupem os mais diversos campos sociais,
culturais e políticos.

Tendo em vista que os padrões definidos pelo sujeito colonial e mantido


pelo pós-colonial devem ser rompidos, e novas representações merecem
ocupar os espaços sociais, um processo que não é fácil, mas que demanda
mobilização e conscientização da sociedade como um todo, para lutar
contra os sistemas opressores. O lugar de fala dos sujeitos subalternizados é
muitos mais que um simples falar, é um ato de (re)existir. Pois assim como
defende Ribeiro (2017),

O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir.


Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a
hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.
Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos
falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a
possibilidade de transcendência. (RIBEIRO, 2017, p.36, grifo nosso.).

Essa forma de poder existir por meio da voz, e de compreender o lugar


de fala desse sujeito, também é demonstrado por meio do surgimento de
uma literatura que possa representar e dar conta dessas mulheres negras,
que além de ser escritoras, também vivenciam no seu cotidiano uma
constante luta por existência e representação. Por isso, a literatura afro-
brasileira, é uma forma de abarcar essas novas vozes e poder permitir uma
escrita de si, sobre o olhar na mulher negra enquanto escritora.

Quadro com o poema Nzingas Guerreiras de Cristiane Sobral.

As mulheres que conheci foram guerreiras Sei que existem muitas mulheres perdidas
Nunca deixaram de madrugar nas Sei que muitas estão escondidas
segundas-feiras
Mas é chegada a hora da revolução
Enfrentaram inúmeros desafios com
alegria
Vamos movimentar nossos quadris rumo a
Graças a Deus aprendi com essas
um futuro certo
mulheres
Femininas e prontas para a reconstrução
Graças a Deus cresci com as mulheres

206
De longe e de perto Seguras e cheias de paz
Capazes de enfrentar os novos desafios
Encontrei mulheres rumo ao sucesso Sábias, fortes, infinitas
Todas souberam encontrar o caminho Mulheres bonitas e mulheres bondade
certo
Solidárias na decepção
Muitas enxergaram os tropeços da
estrada bem perto
Evoé, guerreiras com Nzinga
Sempre admirei suas glórias após o
fracasso Rainhas dignas de exaltação.

Mulheres corajosas diante da cruel


chibata da realidade
Que souberam dar a volta por cima

Fonte: Sobral (2016, p.30)

O poema Nzingas Guerreiras foi escrito por Cristiane Sobral, que além de
ser poetisa da literatura afro-brasileira, é atriz, dramaturga e mestre em Artes.
É reconhecida pelos seus escritos que abordam, sobretudo, a identidade
negra, a resistência como forma de rompimento aos preconceitos de
padrões hegemônicos e elitistas. Foi na literatura que a autora encontrou
espaço para colocar a sua voz e abordar sobre temáticas tão necessárias e
que ainda hoje são marginalizadas. O poema escolhido está inserido no seu
livro Não Vou Mais Lavar os Pratos, publicado em 2011, que reúne diversos
poemas desde a autoaceitação, liberdade, maternidade, fraternidade, e
sobretudo, a história de sobrevivência e luta da mulher negra.

O poema é composto por vinte e seis (26) versos, e cinco (5) estrofes, é
escrito com uma linguagem simples, sem muitas métricas, há a presença de
versos livres, e alguns ritmados. No poema há a prevalência da coragem, da
força em reinventar-se e da presença de um eu-lírico feminino resiliente que
aprende e encoraja outras mulheres. Um aspecto interessante a se observar

207
em todo o decorrer do poema, é referente a alteridade e a representação
do eu-lírico feminino, a partir das vivências de outras mulheres que
transitaram na vida desse eu-lírico, mas, que de alguma forma deixaram
aprendizados e também constituem parte de sua identidade, como é
demonstrado na primeira estrofe.

O uso dos verbos (conheci/aprendi/cresci) demonstram esse progresso


gradativo do eu-lírico feminino a partir do contato com essas mulheres, o que
é possível perceber, também, é essa identificação que se repete ao longo
de todo o poema, de um olhar atento do eu-lírico, de constante
aprendizagem e encorajamento. Na segunda estrofe, o primeiro e último
verso representam, novamente, a posição do eu-lírico para com essas
mulheres, de admiração e de encontro com essa representatividade,
(sempre admirei suas glórias após o fracasso).

Já na terceira estrofe, há a representação de mulheres que


encontraram dificuldades durante sua caminhada, e agora o eu-lírico é
quem ocupa esse lugar de encorajar e demonstrar força para essas mulheres
que tanto já foram presentes ao decorrer de sua vida. No primeiro verso,
(mulheres corajosas diante da cruel chibata da realidade), há essa
comparação da cruel realidade com a chibata, objeto que era utilizado
para violentar e dominar os escravos. Nos versos seguintes, demonstra a força
dessas mulheres em reinventar-se diante dessa realidade tão violenta.

Nos últimos estrofes do poema, o eu-lírico feminino, ainda nesse lugar de


encorajar as mulheres que já passaram por sua vida, que construíram parte
do seu ser. O poema traz, também, a voz de resistência da rainha Nzinga
Mbandi, que lutou fortemente contra as portuguesas e a colonização da
África. A poetisa Cristiane Sobral, utiliza do plural em Nzingas Guerreiras,
demonstrando a inspiração e representação de resistência para as mulheres
negras.

208
Quadro com o poema Eu-Mulher de Conceição Evaristo.

Uma gota de leite


me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.

Vagos desejos insinuam esperanças.


Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo

Antes - agora - o que há de vir.


Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.

Fonte: Evaristo (2017, p.26)

Maria da Conceição Evaristo de Brito é mineira de Belo Horizonte e


desde muito nova já tem o contato com a escrita literária, o seu processo
criativo se dá como uma possibilidade de sair de si, de indagar o mundo, de
inventar outros mundos possíveis, mas principalmente, de retratar e trazer
para as linhas do seu texto o protagonismo afro-brasileiro, de lutar contra o

209
silenciamento e o branqueamento na literatura canônica. É na literatura, que
Evaristo ganha a voz para denunciar, criticar e questionar os valores
hegemônicos de uma sociedade elitista e excludente acerca dos negros,
principalmente, da mulher negra subalternizada.

Foi levando em consideração esse aspecto, que a poeta criou o


termo escrevivência para referir-se a escrita literária como forma de relatar e
retratar a experiência da mulher negra. É uma forma de sobrevivência e
resistência por meio da literatura, assim como é demonstrado neste poema.
Pois, conforme Evaristo (2009, p.18) afirma “quando escrevo [...] não me
desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser esse “o
meu corpo, e não outro”, vivi e vivo experiências que um corpo não negro,
não mulher, jamais experimenta.”

O poema Eu-Mulher25, é composto por 21 (vinte e um) versos, divididos


em 3 (três) estrofes, integra o livro Poemas da recordação e outros
movimentos publicado em 2017 pela editora Nandyla. A partir do início do
poema, já nos primeiros versos, é possível perceber que o eu-lírico feminino
revela-se por meio da primeira pessoa do singular, e os sentidos poéticos
demonstram uma relação intrínseca ao corpo feminino, ao leite que retrata
a temática da maternidade, ao sangue entre as pernas que pode estar
retratando a menstruação, ou ao próprio ato de dar à luz. (Uma gota de leite
/ me escorre entre os seios / Uma mancha de sangue me enfeita entre as
pernas...). Os verbos conjugados no tempo do presente contribuem para
uma construção mental acerca da progressão das ações, como se
estivessem sendo realizadas e concebidas gradativamente.

O poema Eu-mulher tornou-se um espetáculo que reuniu dança, música e literatura. Foi
25

musicado por Renato Gama, cantado por Mariana Per e contou com a dança de Malu
Avelar. Disponível em: <https://youtu.be/PnjfCN4O43c>. Acesso em: 29 de maio de 2021.

210
Os dois últimos versos da primeira estrofe retratam um eu-lírico
feminino que busca falar, mas essa palavra (o direito a voz) foge, a palavra
não é dada por completa e sim limitada, (meia palavra mordida / me foge
da boca.). É possível notar o efeito sonoro causado por aliterações na
utilização do “m” e do “n” constante ao decorrer do poema.

Na segunda estrofe, há mais uma vez a retomada da mulher


enquanto responsável por conceber, por dar à luz, por ser a geradora, (Eu-
mulher em rios vermelhos/ inauguro a vida.). E mais uma vez, o eu-lírico
feminino retoma o sentido poético referente ao direito da voz, antes a meia
palavra mordida, e agora, (Em baixa voz/ violento os tímpanos do mundo),
retratando essa voz que se mantém em um tom baixo, silenciado, mas que
mesmo assim consegue ‘incomodar’ os ouvidos do mundo. Talvez seja
possível fazer a relação com a representação da mulher na sociedade, em
que há essa tentativa de silencia-la, e fazer calar-se.

Nos últimos versos dessa estrofe, a representação do feminino


enquanto algo primordial, que dá origem, e que principia as coisas, as
relações, as pessoas (antevejo / antecipo / antes-vivo), a junção de palavras
sequenciadas reproduzindo uma rima sonora nas terminações e nas
repetições “ante/ante/antes”. E o efeito sonoro se estende para a terceira
e última estrofe, (eu fêmea-matriz / eu força-motriz/ eu-mulher). E mais uma
vez, a relação da representação feminina como alguém que é a fonte, que
prover todas as outras coisas. (abrigo semente/ moto-contínuo do mundo).
Símbolo de força, de resistência, o uso da expressão como metáfora “moto-
contínuo” para relacionar o feminino como algo em movimento constante.

211
Quadro com o poema Não Desiste! de Mel Duarte.

Não desiste negra, não desiste! Mas de quem ainda resiste.


Ainda que tente lhe calar, E não desiste, negra, não desiste!
Por mais que queiram esconder
Corre em tuas veias força Ioruba, Mantenha sua fé onde lhe couber.
Axé pra que possa prosseguir Seja espírita, Budista do Candomblé.
É teu desejo de mudança,
Eles precisam saber que: A magia que traz da tua dança
Que vai lhe manter de pé.
A mulher negra quer casa pra morar
Água pra beber, É, você, mulher negra! Cujo tratamento de
majestade é digna
Terra pra se alimentar
Livre, que arma seus crespos contra o
sistema,
Que a mulher negra é:
Livre pra andar na rua sem sofrer violência
Ancestralidade
E que se preciso, for levanta a arma,
Djembês e atabaques
Mas antes
Que ressoam dos pés.
Antes luta com poema.

Que a mulher negra,


E não desiste, negra, não desiste!
Tem suas convicções
Suas imperfeições
Ainda que tentem lhe oprimir
Como toda mulher.
E acredite, eles não vão parar tão cedo
Quanto mais você se omitir,
Vejo que todas nós, negras meninas
Menos sobre sua história estará escrevendo!
Temos olhos de estrelas
Que por vezes se permitem constelar
Quando olhar para suas irmãs, veja que
todas somos o início
O problema é que desde sempre nos Mulheres negras!
tiraram a nobreza
Desde os primórdios, desde os princípios
Duvidaram das nossas ciências,
África mãe de todos. Repare nos teus traços,
E quem antes atendia pelo pronome indícios
alteza
É no teu colo onde tudo principia,
Hoje, trava lutas diárias por sua
Somos as herdeiras da mudança de um
sobrevivência.
novo ciclo!

212
É preciso lembrar de nossa raiz
Semente negra de força matriz que E é por isso que eu digo:
brota em riste!
Que não desisto.
Mãos calejadas, corpos marcados sim
Que não desisto.
Que não desisto.

Fonte: Duarte (2016, p. 14-15).

Mel Amaro Duarte é uma poeta paulista e tem contato desde muito
nova, seu contato com a literatura e escritos surgem desde 2006, além de ser
autora, é slammer e produz conteúdos culturais nas mais diversas plataformas
digitais, como a música, as declamações dos seus poemas, entre outros. Mel
Duarte é a primeira mulher a vencer o campeonato internacional de Slam
(Rio Poetry Slam), é uma das fundadoras do Slam das Minas de SP,
movimento que busca reverberar e possibilitar acesso as vozes femininas nas
batalhas. Por meio das batalhas de poesias, a autora utiliza de sua voz e de
seus escritos para abordar sobre temáticas acerca da identidade negra, da
ancestralidade, denúncias sociais que por muito tempo foram
desvalorizadas e minimizadas, como o racismo, preconceito, machismo,
dentre outros.

Não Desiste! integra o livro de poemas da autora, Negra Nua e Crua,


publicado no ano de 2016, pela editora Ijumaa, e traduzido para o espanhol
com seu lançamento em 2018, em Madrid. O livro aborda acerca de várias
temáticas relacionadas a vivência e percepções da mulher negra, trazendo
também questões acerca de relacionamentos, aspectos referentes a
política, espiritualidade e entre outras questões relacionadas as experiências
que permeiam a vida autora.

O poema Não desiste! aborda, sobretudo, o encorajamento para


com outras mulheres negras, a voz que reverbera é a de resistência e
valorização das ancestralidades, das religiões e da cultura da mulher afro-

213
brasileira, que luta contra os estigmas e preconceitos do sistema
hegemônico e elitista contra a mulher negra. Da primeira a sexta estrofe
localizadas na primeira coluna do quatro, é possível perceber um aspecto
bastante interessante, o eu-lírico-feminino, inicia o poema ecoando uma voz
de (re)existência que aparece presente em todo o poema, (Não desiste
negra, não desiste! / Ainda que tentem lhe calar), e trazendo, também, as
visões estereotipadas da sociedade acerca da imagem feminina negra.

O poema também mostra esse contrapondo entre a visão da


sociedade sobre a mulher negra e a visão do próprio eu-lírico feminino e das
mulheres negras, objetivando enfatizar esse empoderamento, enaltecendo
a força feminina por meio da união e da representação entre essas mulheres.
Outro aspecto a ser destacado no poema, é referente ao reconhecimento
e a valorização das ancestralidades africanas, djembê e atabaque que são
instrumentos musicais utilizados durante os movimentos de dança, suas
origens são africanas. Além de abordar a valorização e a livre aceitação de
religiões como o budismo e o candomblé, que possuem influências africanas,
e até os dias atuais são alvos de intolerância religiosa e discriminação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do breve percurso histórico acerca da representação da


mulher negra na literatura nacional, e da discussão referente a construção e
reconstrução da identidade feminina por meio da literatura afro-brasileira, é
possível notar que as ressignificações referentes a personagem negra nos
textos literários, trazem novas e distintas discussões em relação aos aspectos
sociais, culturais, políticos e entre outros, que em obras canônicas e escritas
pelo olhar do Outro, não possibilitavam tais discussões.

214
Essas novas abordagens na literatura nacional e afro-brasileira,
permitem diferentes percepções relacionadas as mulheres negras,
abordando temáticas referente a feminilidade, ao amor, a denúncia aos
preconceitos, reverberando novas vozes e fortalecendo uma união entre
essas mulheres. Assim como demonstra os poemas Nzingas Guerreiras da
escritora Cristiane Sobral, Eu-mulher de Conceição Evaristo e Não Desiste! de
Mel Duarte, abordam, sobretudo, a autorrepresentação a e união entre as
mulheres negras, assim como representa o diálogo em comum nos três
poemas; referente a força de (re)existir e resistir da mulher afro-brasileira,
valorizando as suas ancestralidades e religiões, assim como o reverberar das
vozes de outras mulheres negras.

REFERÊNCIAS

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 50 ed. São Paula: Editora


Cultrix, 2015.

DALCASTAGNÈ, R. Imagens da mulher na narrativa brasileira. O Eixo e a Roda:


Revista de Literatura Brasileira, v. 15, p. 127-135, 2007.

DALCASTAGNÉ, R. Um território contestado: literatura brasileira


contemporânea e as novas vozes sociais. In: BESSE, M. G.; DALCASTAGNÈ, R.;
TONUS, J. L. (Coords.) La littérature brésilienne contemporaine Iberic@ l. Revue
d'études ibériques et ibéro-américaines, n. 2, p. 13-18, 2012.

DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São


Paula: Boitempo Editorial, 2016.

215
DUARTE, C. L. Gênero e violência na literatura afro-brasileira. In: DUARTE, C.L
et al. Falas do outro: literatura, gênero, identidade. Belo Horizonte: Nandyala,
229-234, 2010.

DUARTE, M. Não Desiste! In: DUARTE, M. Nega nua crua. 2ª ed. São Paulo:
Ijumaa, 2016. p. 14-15.

EVARISTO, C. Eu-mulher. In: EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros


movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2017, p. 26.

EVARISTO, C. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Scripta,


v. 13, n. 25, p. 17-31, 2009.

EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da Mulher


Negra na Literatura Brasileira. Revista Palmares, v. 1, n. 1, 2005.

SANTIAGO, A. R. Vozes Literárias de escritoras negras. Editora UFRB, 2012.

SOBRAL, C. Nzingas guerreiras. In: SOBRAL, C. Não vou mais lavar os pratos.
Brasília: 2016, p. 30.

SCHMIDT, R.T. A história da literatura tem gênero? Notas do tempo


(in)acabado de um projeto. Porto Alegre: EDPUCRS, 2006.

SPIVAK, G.C. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart


Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.

216
TRÍADE SIGNIFICATIVA: PROJETOS DE ENSINO, GÊNEROS TEXTUAIS E
TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TIC’S)
INCENTIVAM APRENDIZAGEM.

Joana d’Arc Araújo Silva 26

RESUMO: Utilizar os recursos midiáticos no contexto escolar para incentivar a produção de


tipos e gêneros textuais passou a ser uma exigência necessária, marcando significativas
mudanças nos processos de ensino aprendizagem e na implementação de novos recursos
metodológicos. O presente estudo oferece informações sobre a importância de trabalhar
as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s), tipos e gêneros textuais através da
metodologia do trabalho com projeto. Recurso que constitui um instrumento de organização
e sistematização do trabalho escolar possibilitando enfrentar desafios de forma reflexiva e
participativa, uma vez que implica no trabalho em equipe, troca de informações e diálogo
constante. Serão propostos projetos que integram diferentes disciplinas, conteúdos e
recursos midiáticos com o intuito de utilizar metodologias que incorporem gêneros textuais
diversos, sensibilizando educadores para incorporar estes recursos à sua prática
pedagógica. Conhecimento e tecnologias se unem para produzir novas aprendizagens que
permitam compreender a realidade atual e desenvolver projetos, em busca de soluções
para a transformação do cotidiano e a construção da cidadania. A revisão bibliográfica
priorizou a fundamentação de teóricos em cujos trabalhos se constatam que a prática de
produção de texto deve ter por objetivo formar o cidadão competente para o uso da
escrita no dia a dia. O incentivo e o estimulo com metodologia e recursos variados,
principalmente através de projetos de trabalho, estará proporcionando ao educando
produzir textos variados e significativos. O processo de apropriação da leitura e escrita
precisa ser desmistificado, se transformando numa prática natural em que o educador atue
de maneira a incentivar o educando a compreender e desenvolver mecanismos que o
levem a se apropriar deste sistema com a construção de saberes significativo.

PALAVRAS–CHAVE: Tecnologias de Informação, Gêneros Textuais, Produção de Textos.

26 Mestranda em Ciências da Religião/Faculdade Unida de Vitória/ES. Graduação em


Pedagogia//PUC-MG; Pós Graduada em Mídias da Educação/UFOP/MG e Implementação
e Gestão da Educação a Distância/UFF/RJ; sirana66@yahoo.com.br

217
INTRODUÇÃO

É possível perceber que são vários os desafios que estão presentes no


cenário dos estabelecimentos de ensino com a “invasão” dos novos recursos
tecnológicos e a chegada das diversas mídias educacionais. Torna-se
essencialmente importante aos educadores se apropriarem de informações
e conhecimentos para inovar sua prática pedagógica porque grande parte
dos educandos são nativos digitais, ou seja, nasceram na “era virtual”,
trazendo consigo experiências, informações e muita criatividade aliada à
curiosidade da busca pelo conhecimento. “A internet pode ajudar o
educador a preparar melhor a sua aula, a ampliar as formas de lecionar, a
modificar o processo de avaliação e de comunicação com o educando e
com os seus colegas”. (MORAN, 2009, p.15- 25).

Por outro lado, a escola, como instituição formal de produção de


conhecimento, tem o desafio, de criar condições para que o educando
desenvolva a capacidade de compreender, Interpretar e produzir textos
orais e escritos. Tarefa constituída por um processo longo, que deverá ser
iniciado, provocado, sustentado e desenvolvido nas experiências escolares,
bem como durante toda a vida.

O aluno de hoje é um nativo digital, parece possuir habilidades natas


para lidar com as tecnologias. As escolas que entenderam esse
cenário e criaram condições para incorporar as conquistas
tecnológicas à educação dinamizaram a didática e a metodologia
e tem contribuído para formar cidadãos críticos, éticos, autônomos
e emancipados. (SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO
SUPERIOR, 2014, p.8).

218
Permitir ao educando assumir o seu discurso e colocá-lo no embate
com outros discursos circundantes deve ser a mola que o impulsionará a
assumir uma postura autônoma, reflexiva, crítica e criativa perante o mundo.

Vislumbrando a perspectiva de incentivar a prática pedagógica que


explore as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) e os gêneros
textuais, surge como opção, o trabalho com projetos pedagógicos. Tríade
significativa que implica em um processo de investigação, representação,
reflexão, descoberta e construção do conhecimento para incentivar a
aprendizagem significativa. Enfoque que se apresenta como grande desafio.

A pesquisa proposta não obterá resultados completos e definitivos,


uma vez que o assunto é polêmico e de grande discussão entre os teóricos.
Mas é necessário fomentarmos esta discussão, uma vez que esta etapa do
processo educativo acompanha educandos e educadores na trajetória da
vida escolar e em sua formação enquanto ser humano.

1 USO SIGNIFICATIVO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO (TICS)

O mundo vem sofrendo rápidas e vertiginosas transformações, por sua


vez, as tecnologias que ontem eram novas, no dia-a-dia tornam-se
ultrapassadas. Assim como forma de tentar seguir estas modificações, uma
forte tendência mundial é adequar às escolas Favorecendo o
desenvolvimento de metodologias de trabalho, materiais didáticos e de
recursos mediáticos os quais possibilitem ao educador e educando
enriquecer seu processo de ensino aprendizagem, a aquisição de
informações, a construção de conhecimentos significativos e interação
virtual.

219
É, justamente, neste contexto que os recursos midiáticos surgem
aproximando e/ou distanciando o educador do educando neste mundo de
tecnologias informativas, mostrando que este recurso é uma tendência
mundial, o qual seja unir as práticas comuns aos recursos midiáticos.

Com a utilização do mundo digital, as informações se multiplicaram e


o acesso a todas elas foi diminuído em frações de segundos, no entanto para
utilizar os dispositivos midiáticos, segundo Freire (1985) "o ser humano precisa
ir além do conhecimento formal, domínio da escrita e a leitura, único pré-
requisito de acesso ao conhecimento do mundo letrado".

Saber que é muito mais do que conhecer linguagens de programação,


instalar ou utilizar um sistema operacional, um aplicativo, corresponder-se
eletronicamente ou navegar na rede. Esta capacidade deve ser
compreendida de forma abrangente, sendo importante apresentar ao
educador e ao educando caminhos para que sua postura possa ser de
abertura a intercâmbio com a construção do conhecimento auxiliado pelas
as tecnologias intelectuais.

As tecnologias chegaram à escola, mas estas sempre privilegiaram


mais o controle a modernização da infraestrutura e a gestão do que
a mudança. Os programas de gestão administrativa estão mais
desenvolvidos do que os voltados à aprendizagem. Há avanços na
virtualização da aprendizagem, mas só conseguem arranhar
superficialmente a estrutura pesada em que estão estruturados os
vários níveis de ensino. (MORAN, 2013, p. 89)

Faz-se necessário, observar quais mudanças estão acontecendo nos


currículos escolares, quais estratégias estão acompanhando as mudanças
existentes, considerando que o letramento digital é parte integrante das
atividades curriculares. Por este viés vê-se que não é mais possível ficar presos
aos modelos tradicionais de ensino.

220
É preciso ousar, ter coragem de criar e buscar novas alternativas de
ensino e aprendizagem. Desvencilhar dos livros didáticos para que o
conhecimento socializado pelo estabelecimento de ensino esteja atrelado
às novas formas de relações do homem ao seu redor. Portanto compete à
escola educar para a vida, formando cidadão planetário, competente para
lidar com os sofisticados equipamentos, informação e o conhecimento
gerado em outras partes do mundo.

Por conseguinte, vê-se a necessidade de se estabelecer mudanças


na configuração do processo de ensino, diante das novas perspectivas de
educação, que se fundamenta no principio de que o conhecimento é
reflexão pessoal sobre o aspecto social do mundo, tendo como premissa a
ideia de que o individuo é agente de seu conhecimento. Para isso as novas
tecnologias de comunicação e informação oferecem possibilidades de
mudanças expressivas nos ambientes educacionais.

As mídias, em geral, vêm multiplicar exponencialmente essas


possibilidades, colocando a disposição da informação
ferramentas assíncronas e síncronas: os fóruns de discussão, os chats, as
vídeo-aulas, FAQ (Frequently Asked Questions), as lista de discussão, o correio
eletrônico, o mural, a enquete, o portfólio, o perfil, o e-mail, o Blog, Biblioteca
virtual e Webinars ao vivo, dentre outros.

Atualmente temos diversas mídias educacionais, o grande desafio é


saber utilizá-las de modo eficiente e permitir que elas contribuam, de
modo mais decisivo, para aperfeiçoar as práticas pedagógicas.
A escola tem sido amiúde, pressionada a integrar de modo certeiro
educação e tecnologias eletrônicas. Todavia nem todos os espaços
físicos estão adaptados para receber os equipamentos e muitos
docentes ainda não dispõe de conhecimentos teóricos e práticos
para o uso dos novos recursos didáticos. (SEMINÁRIO INTERNACIONAL
DE EDUCAÇÃO SUPERIOR, 2014, p.2).

221
A partir desta informação em rede percebe-se mais facilmente a
diversidade do planeta em termos culturais, geográficas, sociais,
econômicas, incentivam-se ideias, opiniões e atitudes com o objetivo de
estimular o pensar e controle consciente do próprio aprendizado. Dentro
desta perspectiva de análise, é necessário que as pesquisas possam
contribuir para um entendimento mais amplo da necessidade da inserção
das mídias na prática docente dos educadores que estão atuando em várias
redes de ensino.

2 GÊNEROS TEXTUAIS COMO LINGUAGEM EXPRESSIVA

Nos últimos anos, o aumento das exigências sociais quanto à


participação ativa do indivíduo na sociedade comunicando-se, informando-
se e posicionando-se com clareza, de forma crítica, reflexiva, tem se
apresentado como característica da contemporaneidade. Neste contexto,
para atender essas exigências, é necessário fazer com que o educando
desenvolva a capacidade de compreender, elaborar e interpretar, a partir
de textos lidos e produzidos, não apenas o que está escrito, mas também as
entrelinhas do mesmo. Este é o ponto de partida para a apropriação dos
instrumentos que o ajudarão a exercer plenamente seus deveres e a usufruir
de seus direitos como cidadão.

Nessa perspectiva de compreensão da escrita e leitura, é necessário


indagar em que medida as formas, os processos e usos da língua escrita são
diferentes das formas, processos e usos da língua oral; além de pontuar os
diversos contextos que podem favorecer sua aquisição e determinar como
a criança toma consciência das semelhanças e diferenças entre fala e

222
escrita, no momento, por exemplo, em que vai construir seu texto e precisar
usar recursos que explicitem esse objeto.

Para que ela se aproprie de forma determinante deste processo é


necessário que o educando, desde cedo, compreenda as funções, as
condições e o funcionamento da escrita. Nesse processo, ele aprende a
ouvir, a entender o outro pela leitura, aprende a falar, a dizer o que quer pela
escrita. Essa aprendizagem é de suma importância porque significa fazer,
usar, praticar, conhecer tanto a fala como a escrita, além de discernir a
função de cada uma.

Enquanto participante do processo de aprendizagem promovido pela


escola, o educando lê para aprender, ou seja, além de aprender a escrita
como sistema representativo, aprende que este sistema precisa atender a
certas necessidades de uso específico a que a escrita se propõe. Ao
apropria-se dos mecanismos da leitura e da escrita, uma das etapas da
leitura e escrita, para o educando continuar desenvolvendo sua
aprendizagem, a escola precisa criar condições para que o uso desta
atenda essas funções, estimulando e orientando-o na aprendizagem da
produção de textos exigidos pela sociedade ou que atendam propósitos de
comunicação verbal.

Para que o educando aprenda a ler e a escrever, é imprescindível que


ele compreenda o quê e o porquê ele deve fazer isso. A aprendizagem da
escrita e da leitura se define pela compreensão dos usos e valores das
mesmas em sociedade. Quem se torna um leitor de verdade sabe o papel
que estas representam, sabe para quê e para quem escreve, torna-se
coautor do que lê ou escreve.

A distância entre a prática que o educador desenvolve e a


concepção do que seja o projeto de produção de texto precisa superar

223
estes entraves e encontrar caminhos para uma reformulação de seu enfoque,
na busca de nova concepção de educação, do papel da leitura e escrita
no contexto e a formação dinâmica de cidadãos contemporâneos.

Numa nova abordagem o educando tem que escrever para que o


educador cumpra a sua missão de verificar se ele aprendeu ou não a função
da escrita. Mediante a importância do tema para a vida formativa, pessoal
e social do indivíduo, refletir sobre o modo como a produção de texto é
desenvolvida, desde a interação verbal espontânea à gestão de modos
diversificados de referência a um contexto linguisticamente criado, torna-se
fundamental.

É preciso que as experiências do educando, no que se refere à


produção de textos, em sala de aula, focalizem os processos sociais e as
interações que realmente têm sentido para ele na hora de produzir seus
textos. Este tema se torna relevante porque pretende buscar o entendimento
do que ocorre entre educando/educador/e a produção em si e a referência
da escola para desencadear o aparecimento de escritores competentes.
Para isto se torna necessário construir pressupostos teóricos sobre a prática
da produção de texto desenvolvida na escola, calcada na reflexão e no
debate sobre os desafios enfrentados por educandos e educadores ao
lidarem com a produção escrita na sala de aula.

O estudo dos gêneros oferece condições de compreender melhor o


que acontece com a linguagem quando é utilizada em variadas situações,
pois os gêneros textuais podem ser apreendidos como ferramentas
necessárias de socialização, usados para compreender, expressar e interagir
nas diferentes formas de comunicação social da qual o sujeito participa.
Recurso que propicia aos educandos um envolvimento concreto em
situações reais de uso da linguagem, de maneira que possam escolher meios
adequados aos fins que se almeja alcançar na produção de gêneros. Neste

224
contexto, é importante evidenciar que o estabelecimento de ensino e o
convívio social, são lugares ideais para o desenvolvimento de competências
comunicativas.

Nessa perspectiva e levando em consideração a concepção teórica


de gêneros textuais, o uso de gêneros textuais, como ferramentas
norteadoras de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa, possibilita aos
educadores encaminharem para a sala de aula atividades gramaticais com
a língua e a linguagem como meios de desvelar os valores e ideologias que
estão subjacentes às diferentes práticas sociais.

Vale lembrar que a leitura, a construção e a desconstrução dos textos


dos mais variados gêneros textuais em sala de aula contribuem para o efetivo
pensar e repensar crítico das várias atividades sociais na qual o indivíduo está
inserido, possibilitando, assim, aos sujeitos envolvidos no processo de
aprendizagem a ampliação de seus conhecimentos sobre as diferentes
formas de realização da linguagem.

Ao considerar a linguagem como prática social, os Parâmetros


priorizam na educação: formar sujeitos que desenvolvam o exercício da
cidadania, sujeitos aptos a atuar de forma crítica e produtiva na sociedade,
transformando-a continuamente através de suas ações verbais,
entendimento que pôde ser obtido a partir da articulação entre a teoria dos
gêneros textuais e os Parâmetros de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental.

Quando se desenvolve um trabalho com textos pelo viés dos gêneros


textuais, os Parâmetros de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental
evidenciam o esforço para a promoção da reflexão e de sua transposição
para o contexto educacional de ensino de língua materna por meio do
estudo de variados gêneros textuais.

225
Para que as premissas apresentadas nos Parâmetros e na teoria dos
gêneros textuais se concretizem no contexto educacional, é de suprema
importância que as discussões e as experiências desenvolvidas em vários
estabelecimentos de ensino alcancem outras salas de aula, assegurando aos
educadores aperfeiçoamento permanente. Dessa forma, os educadores
poderão ficar familiarizados e até mesmo aptos a aplicarem uma
metodologia diferenciada e ampliar discussões para edificar uma educação
de qualidade, que aborde textos originais e explore a criticidade dos
educandos.

Tornam-se importante que o educador possa realizar mais discussões


referentes à importância da utilização dos gêneros textuais como orientações
de trabalho, assim como temas de discussões para utilizar estes recursos
inovando a prática didática, de tal forma que possa aprimorar a postura
pedagógica em relação aos processos de ensino e aprendizagem de Língua
Portuguesa com a utilização dos recursos midiáticos.

Para os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, os


encaminhamentos direcionados à produção textual devem considerá-la
com a finalidade de formar escritores competentes capazes de produzir
textos coerentes, coesos e eficazes, acenando, dessa forma, à articulação
entre produção escrita e oral. Para isso, o documento toma os gêneros
discursivos como objeto de ensino e reforçam a importância de um trabalho
pautado na noção de gêneros.

[...] a produção oral e escrita de textos pertencentes a diversos


gêneros, supõem o desenvolvimento de diversas capacidades que
devem ser enfocadas nas situações de ensino. É preciso abandonar
a crença na existência de um gênero prototípico que permitiria
ensinar todos os gêneros em circulação social (BRASIL, 1998, p, 24).

226
Para atender ao propósito de produção que considera os textos
pertencentes a diversos gêneros, o documento sugere uma seleção de
gêneros, pautada nos textos que favorecem a “[...] a reflexão crítica, o
exercício de formas de pensamento mais elaboradas e abstratas, bem como
a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para
a plena participação numa sociedade letrada” (BRASIL, 1998, p. 24).

3 A PEDAGOGIA DE PROJETOS PARA AÇÕES INOVADORAS

Projeto é uma palavra está presente no cotidiano do ser humano, lê-se,


ouve-se e constantemente está nas rodas de conversas da escola. Nos jornais
e revista são apresentadas inúmeras reportagens e artigos referentes a
projeto de vida, de nação, neoliberal, comunitário, stalinista, de pesquisa,
arquitetônico, privatista, de produção, dentre outros.

O termo projeto vem do latim project, particípio passado de projicere,


“Lançar para diante”. Podendo ainda significar plano, intento,
empreendimento. O projeto está antecipando uma ação, fazendo uma
referência ao futuro, consiste, portanto, em uma manifestação cultural, uma
atividade essencialmente humana, um exercício de racionalidade. É quando
o pensamento, análise e a reflexão precedem a ação e imprimem nela
organicidade, coerência, congruência e sentido humano.

Uma ação de elaboração de projetos é de competência do ser


humano, porque os vive intensamente, sendo organizado e orientado em
suas atividades pelo pensamento, pela reflexão, pelo raciocínio, pelos
fundamentos e significados. São estes os princípios que reforçarão a
humanidade, a intencionalidade, a reflexão, a coerência para integrar e
articular ações objetivas. Um projeto desta envergadura, desta magnitude só

227
se faz com a coletividade, quando os envolvidos, educandos, corpo
pedagógico e comunidade participam planejam, executam e avaliam as
ações, para obter maiores possibilidade de êxito.

Um plano de trabalho e uma série de atividades bem organizadas são


marcos essencial para a elaboração de projetos de aprendizagem que
favoreçam a construção da autonomia do educando para poder intervir
numa atividade de grupo. A metodologia de trabalho será mais dinâmica,
envolvendo criatividade que favorecerão a construção de conhecimentos
significativos. Neste sentido a interação com os pares faz-se necessária.

Santos pondera que

além do projeto envolver o educando em uma situação de interação


com conhecimentos, pelo viés da construção e da reconstrução de
conceitos, de ideias, permitirá o indivíduo transitar mais naturalmente
e seguro de seus saberes individuais para os saberes coletivos e vice-
versa. (SANTOS 2003, p. 58).

Os projetos remetem os envolvidos a uma reflexão, passando por


quatro estágios da aprendizagem: parte da experiência concreta, passa
pela observação reflexiva, pela conceituação abstrata e chega a
experimentação ativa, recomeçando o processo logo em seguida e a
tomada de consciência.

Na realização das atividades do projeto produz-se um movimento no


sentido de buscar atingir, no futuro, uma nova situação que responda às suas
indagações ou avance no sentido de melhor compreendê-las, durante as
quais poderá acontecer imprevisto e mudanças podem se necessárias.
Evidenciando as ideias de previsão de futuro, abertura para mudanças,
autonomia na tomada de decisões e flexibilidade que são parte do projeto
educativo.

228
Torna-se importante lembrar que este processo que pode ser
designado de intercâmbio, desencadeia a interdisciplinaridade da dinâmica
de trabalho, reforçando o percurso em diferentes campos de conhecimentos.
O que irá favorecer contribuições, estabelecer elos esquecidos nas relações
pedagógicas onde os educandos se bem incentivados poderão deixar vir à
tona manifestações de amplos conhecimentos com criatividade e espírito de
invenção, tornando-se aspectos que fortalecerão sua autoestima.

O tempo e o espaço da sala de aula podem ser direcionados,


reestruturados para que a relação educativa obtenha verticalização,
oferecendo ao educador e educando interações que farão a diferença no
processo de ensino aprendizagem causando uma verdadeira transformação
na aprendizagem significativa.

Desenvolver um trabalho com a pedagogia de projeto requer pensar


em várias características consideradas fundamentais das quais é importante
reforçar: os educandos devem estar envolvidos para garantir unidade e
sentido às várias atividades que serão desenvolvidas, transformando-se num
projeto que assume uma característica de atividade intencional. Quando os
educandos participam tornam-se corresponsáveis pelo trabalho e pelas
decisões ao longo do desenvolvimento do projeto no qual a autonomia e a
responsabilidade são importantes, onde as decisões são realizadas em
equipes cooperativas; a autenticidade torna-se relevante obtendo um
caráter real e o espaço para reprodução de conteúdos torna-se inexistente.

A pedagogia de projetos num âmbito escolar é um recurso para


modificar o espaço em um meio estruturante, aberto à construção de
aprendizagens e conhecimentos significativos para todos que dele
participam. As tecnologias informativas para inovar as ações pedagógicas
que permeiam os estabelecimentos de ensino.

229
De acordo com Santos

a gestão de relações educativas apoiadas pelo computador é uma


tarefa de grande complexidade para o professor especialmente
quando este ainda carrega consigo os preceitos da escola
tradicional, de onde, geralmente, todos nós somos oriundos. A
pedagogia de projetos, como estratégia que permite que o professor
desloque sua atenção da intervenção pedagógica direta para uma
espécie de meta intervenção pedagógica, abre espaço para um
trabalho pedagógico mais livre, menos comprometido com a forma
e mais comprometido com o conteúdo, com a livre-circulação de
ideias, com a plena contribuição dos alunos. (SANTOS, 2003, p. 59)

É possível concordar com Santos (2003, p. 61), quando afirma que a


pedagogia de projetos oferece bases para as atividades escolares,
permitindo a construção de uma escola integrada na realidade e aberta a
múltiplas relações sociais. Podendo ser uma estratégia viável e interessante
para suprir lacunas na formação dos educadores para lidar como o
computador em sala de aula, especialmente porque tal estratégia pressupõe
uma maior autonomia dos educandos, tornando-se a aprendizagem
colaborativa nas relações educativas.

Nesse ínterim, o ambiente escolar será um ponto de apoio, de


experimentação, de confrontação de êxito, de realização, de conflito, de
preparação para a vida social, um lugar de construção do conjunto dos
poderes que circulam na sociedade.

A pedagogia de projetos em meio várias necessidades, a pedagogia


de projetos será uma estratégia eficiente e eficaz para a gestão das relações
educativas. O educador poderá dar vida a uma classe quando incentiva o
educando a decidir, planejar, definir as tarefas. Optar por uma estratégia que
conduza o educando a decidir, escolher e assumir responsabilidades sobre
sua educação. Vivendo suas próprias experiências com entusiasmo e alegria,

230
dificuldades, conflitos e todos os lentos percursos que as conduzem a
realizações mais complexas.

4 PROJETOS PEDAGÓGIOS DE MÍDIAS INTEGRADAS

Os temas dos projetos foram planejados com educadores de


componentes curriculares diferentes. Todos apresentaram na organização os
itens: duração, metodologia, objetivo, justificativa e avaliação.

1 - SAÚDE BEM CUIDADA SEM GRIPE

Público: Educandos do 4º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia e celular. Culminância: Divulgar a pesquisa.
Publicação de texto informativo no jornal escolar.

2 - JORNAL LEGAL

Público: Educandos do 5º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia, Jornal, câmera fotográfica, filmadora,
celular. Culminância: Exposição dos trabalhos no painel informativo.

3 - CONSTRUÇÃO COLETIVA DE UM ÁLBUM DE TIRAS EM QUADRINHOS.

Público: Educandos do 4º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia, celular, livros. Culminância: Confecção de
um álbum de histórias em quadrinhos.

231
4 – HISTÓRIAS INFANTIS E CRIATIVAS.

Público: Educandos do 6ºs, 7ºs, 8ºs e 9º Anos de Escolaridade do Ensino


Fundamental. Recursos: Internet, Kit multimídia, livros paradidáticos (mídias
impressas). Culminância: Doação de livros a instituições (creches, orfanatos,
ONGs, dentre outros).

5 - VIAGENS EXPEDICIONÁRIAS NA SALA DE AULA.

Público: Educandos do 5º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia, jornal impresso, revistas. Culminância:
Montagem final dos livros e exposição na sala de leitura.

7 - AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS RETRATAM AS FOTOGRAFIAS

Público: Educandos do 6° Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia, celular, Revistas em quadrinhos e mangás,
Máquina fotográfica. Culminância: Exposição na Mostra Cultural da Escola e
Doação do material confeccionado à biblioteca da escola.

8 - ATLAS PERSONALIZADO MOSTRA O COIDIANO DA ESCOLA.

Público: Educandos do 6º ao 9º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.


Recursos: Internet, Kit multimídia, livros, revistas, fotografias. Culminância:
Lançamento e divulgação do atlas na versão virtual em forma
hipertextualizada.

232
9 - PERCEBENDO AS DIFERENÇAS TEXTUAIS NAS MÍDIAS VARIADAS.

Público: Educandos do Ensino Fundamental ao Médio. Recursos: Internet, Kit


multimídia: Revistas para análise da linguagem utilizada e temas abordados
e serviço gratuito de blog para a produção das revistas online. Culminância:
Criação de um blog.

10 - O BAIRRO EM TEMPOS DIFERENTES.

Público: Educandos do 5º Ano de Escolaridade do Ensino Fundamental.

Recursos: Internet, Kit multimídia, mídia impressa (livros, jornais e revistas).

Culminância: Exposição das pesquisas realizadas. Criação de um Blog para


socializar as memórias dos moradores do bairro, a publicação de textos
diversos dos educandos: expressão de opiniões, poesias, narrativas, relatórios
sobre o projeto, publicando fotos e vídeos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ensinar e aprender exige muito mais flexibilidade, processos mais


abertos de pesquisa e comunicação para conciliar a extensão da
informação, a variedade das fontes de acesso, com o aprofundamento da
sua compreensão, em espaços menos rígidos, menos fixos. O uso de novas
tecnologias, em especial os recursos informatizados e mídias digitais como um
todo é algo novo. Muitos ainda estão conhecendo as facilidades que estas
ferramentas oferecem, com vastos recursos e inúmeras possibilidades, onde
deixam a todos fascinados. De modo geral o universo educacional está se
reinventando frente ao uso das novas tecnologias. É claro que vem cercado
de obstáculos e dificuldades, onde a maior parcela da responsabilidade de

233
educar para o uso consciente desta tecnologia é depositada na escola e no
educador.

Não se pode negar a forte presença das novas tecnologias na


sociedade atual e em relação à educação podem-se destacar alguns
pontos importantes. As novas tecnologias, desde que utilizadas com
conteúdo pedagógico facilitarão a aprendizagem dos educandos.

Nos ambientes educativos, as novas tecnologias da informação e da


comunicação permitem construir uma comunidade que busca aprender e
ensinar num processo de trânsito pela pluralidade e diversidade. Neste ínterim
é importante considerar que o potencial das redes é enorme e precisa ser
descoberto de forma cooperativa, porque a informação é um bem social e,
como tal deve ser utilizada como um instrumento de melhoria da qualidade
de vida dos sujeitos, seres humanos.

A educação necessária para formar cidadãos conscientes e


autônomos é aquela que lê o mundo e elege o sujeito que contribui para
criar condições locais, nacionais e mundiais para a globalização dos direitos,
da democratização do acesso às conquistas da humanidade, da integração
cultural, da cidadania, do respeito à diversidade - de cor, raça, gênero, etnia
e necessidades do desenvolvimento sustentável.

Por sua vez, a escola precisa caminhar na direção de um ensino mais


competente para enfrentar os novos desafios que a chamada era da
informação e da comunicação estão apresentando ao mundo. É importante
que o estabelecimento de ensino repense sua prática, utilizando as mídias
para propiciar uma rápida propagação de material didático, construção e
colaboração interdisciplinar de conhecimentos produzidos individualmente
ou em grupo, devendo ser acompanhada de uma metodologia que
promova a reflexão e o pensamento crítico dos envolvidos neste processo

234
escolar. Uma ferramenta multimídia para ensinar investigar-aprender
representa um ganho expressivo para as influências recíprocas entre
educador e educando.

Neste contexto, espera-se que as informações disponibilizadas


ofereçam ao profissional da educação condições e inserir em seu cotidiano
ações educativas que permitam desenvolver um trabalho mais significativo
com o educando sob a ótica da tríade: projetos de ensino, gêneros textuais
e Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), permitindo a aquisição
de novos saberes de todas as pessoas envolvidas no processo.

A formação docente relacionada ao uso de tecnologias digitais é uma


necessidade emergencial no atual contexto no qual o educador está
inserido, mundo de transformações e inovações rápidas. Novas
competências e habilidades precisam ser desenvolvidas, contribuindo para
fomentar um ambiente de interação e elaboração de conhecimento entre
os sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem educando e educador.
Parafraseando Paulo Freire (1992), pode-se concluir que é nadando que se
aprende a nadar. É trabalhando que se aprende a trabalhar. Praticando,
aprendemos a praticar melhor.

REFERÊNCIAS

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Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação
plena. Relatora: Edla de Araújo Lira Soares, Parecer CNE/CP 009/2001,
aprovado em 08/05/2001. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/009.pdf Acesso em: 02 abr. de
2021.

235
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20 dezembro 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 02 abr. 2021.

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nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de
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nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa
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Disponível em:

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Série educador em Formação, 2004.

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oprimido / Paulo Freire. Notas Ana Maria Araújo Freire. Rio de janeiro: Paz e
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236
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Gadotti e Lilian Lopes Martin. – Rio de Janeiro; Paz e Terra, Coleção Educação
e Mudança vol.1. 1983.

GASPERETTI, Marco – Computador na educação: guia para o ensino com as


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HERNANDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos


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JOLIBERT, Josette. Formando crianças produtoras de textos: Vol. II, Porto


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Conhecimento: Anais Eletrônicos – Seminário Internacional de Educação
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237
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PERRENOUD, Philippe. 10 Novas Competências para Ensinar / Philippe


Perrenoud; trad. Patrícia Chittoni Ramos – Porto Alegre: Artes Médicas Sul,
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Petrópolis - Vozes, 1998.

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SICA, Fernando Cortez e BORTOLINI, Neide das Graças de Souza – Informática


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Ouro Preto, 2007.

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SOARES, Magda. Linguagem e escola – uma perspectiva social. São Paulo.


Ática, 1998.

SOUZA, Carlos Alberto, BASTOS, Fábio da Purificação e ANGOTTI, José André


Peres - As Mídias e Suas Possibilidades: desafios para o novo educador –
Disponível em:

file:///C:/Users/Usuario/Downloads/4580-15111-1-PB.pdf Acesso em 30 abr. de


2021.

238
O ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA NO CONTEXTO
DA SOCIOEDUCAÇÃO PANDÊMICA NA REDE ESTADUAL PAULISTA:
A PRÁTICA COLABORATIVA TRANSDISCIPLINAR DOCENTE SOB A
PERSPECTIVA DA TEORIA DA ATIVIDADE

Otávio de Oliveira Silva 27

RESUMO: Este estudo ancora-se à linha filosófico-teórica da Teoria da Atividade Sócio-


Histórico-Cultural (TA) (ENGESTRÖM, 1999, 2001, 2008, 2011; LEONTIEV, 1978; VYGOTSKY, 1978,
1981, 1991, 2001), para compreender como os hodiernos impactos sociais da pandemia da
Covid-19 têm afetado o sistema de atividade educativa na modalidade da socioeducação
(ALMEIDA, 2010; MOREIRA, 2011; VINCENTIM, 2005; MORGADO, 2018), em especial o ensino-
aprendizagem de língua portuguesa, em que os educandos se encontram em regime de
restrição e privação de liberdade (ONOFRE, 2002, 2007, 2013, 2015), outrossim, sem acesso à
internet e ao ensino remoto proporcionado pela rede estadual paulista de ensino básico.
Valendo-se da noção de contradições dentro dos sistemas de atividade, e entre sistemas
da atividade educativa, buscar-se-á elucidar as práticas colaborativas dos docentes de
língua portuguesa que, de forma transdisciplinar, superam as contradições e obtém
transformações ao proporcionar o acesso à educação, mesmo em conjunturas adversas.
Objetivamos responder as seguintes perguntas de pesquisa: 1) quais são as contradições
existentes entre os sistemas de atividade estadual e local, que afetam a qualidade do ensino
de língua portuguesa em uma unidade da Fundação CASA? E; 2) como os professores têm
recorrido à colaboração para superar os óbices impostos pelas condições sanitárias
hodiernas em meio à pandemia? O estudo, tem caráter descritivo e segue a linha qualitativa.
Para a coleta e geração de dados recorremos a instrumentos etnográficos destinados aos
docentes, como um questionário aberto distribuído pela plataforma online SurveyMonkey®,
observando, na elaboração das perguntas, os procedimentos metodológicos indicados por
Gil (1999), quanto à clareza das questões. A partir dos resultados, é possível pensarmos
criticamente em formas equitativas de ensino que possam atender a todos os educandos,
levando em consideração o seu contexto social de aprendizagem.

Palavras-chave: Teoria da Atividade, Língua Portuguesa, Socioeducação.

27Possui Graduação em Letras; Especialização em Linguística e Ensino de Línguas; Mestrado


em Letras pela Universidade de São Paulo (USP); e Aprimoramento Acadêmico em
Educação (Ensino de Línguas) pela University of Tsukuba (Japão). E-mail:
otaviosilva@professor.educacao.sp.gov.br.

239
INTRODUÇÃO

Neste estudo buscamos compreender como os hodiernos impactos


sociais da pandemia da Covid-19 têm afetado o sistema de atividade
educativa na modalidade da socioeducação (ALMEIDA, 2010; MOREIRA,
2011; VINCENTIM, 2005; MORGADO, 2018), em especial o ensino-
aprendizagem de língua materna, em que os educandos se encontram em
regime de privação de liberdade, em uma unidade de internação da
Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA),
28outrossim, sem acesso à internet e ao ensino remoto proporcionado pela
rede estadual paulista de ensino básico, através da Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo (SEDUC-SP).

Convém salientar que a modalidade da socioeducação, responsável


pela atividade de reintegração de adolescentes em conflito com a lei,
binariamente distingue-se e aproxima-se da educação prisional, uma vez
que ambas acolhem pessoas cruelmente marginalizadas das questões
humanas e sociais, desde eras priscas, além do fato dos indivíduos estarem

28 De acordo com informações públicas, colatedas do site da instiuição, o atendimento aos


jovens autores de ato infracional sentenciados com medidas socioeducativas de privação
e restrição de liberdade, no Estado de São Paulo, é feito pela Fundação CASA. O novo nome
da antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM) foi alterado pela Lei
Estadual nº 12.469/06, sancionada pelo ex-governador Cláudio Lembo. O órgão é vinculado
à Secretaria da Justiça e Cidadania. Seu objetivo primordial é executar as medidas
socioeducativas de regime fechado (internação e semiliberdade) em todo o Estado, de
acordo com as diretrizes dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). A Fundação CASA também é a
gestora do sistema socioeducativo paulista, conforme o Plano Decenal de Atendimento
Socioeducativo do Estado de São Paulo, de 2014. A instituição promove estudos e planeja
soluções direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de ato infracional, na faixa
de 12 a 18 anos incompletos – estendendo-se até os 21 anos incompletos. A Fundação CASA
executa as medidas socioeducativas de restrição (semiliberdade) e privação de liberdade
(internação) a aproximadamente 19,5 mil adolescentes por ano. No estado de São Paulo,
desde 2010, a execução das medidas socioeducativas de meio aberto – liberdade assistida
e prestação de serviços à comunidade – cabe a cada município.

240
sujeitos, na visão foucaultiana 29 , aos mecanismos de disciplinarização de
corpos, vigiados e acorrentados moralmente a um sistema panóptico mais
preocupado em punir, e adestrar seres humanos, do que recuperar os
indivíduos e devolver-lhes a dignidade humana (FOUCAULT, 2002).

Na socioeducação, atende-se adolescentes que deixaram de


frequentar a escola a partir de seus envolvimentos com atividades
conflitantes com a lei, antes desses completarem 18 anos. Por outro lado, a
modalidade educação prisional, é um tipo de educação em espaços de
restrição e privação de liberdade que se insere na Educação de Jovens e
Adultos (EJA), constituindo-se como um dos eixos mais invisíveis dessa
modalidade de ensino nem sempre considerada relevante pelas políticas
governamentais, segundo Onofre (2015). Destarte, trata-se de uma
educação voltada para um público heterogêneo, oriundo de processos de
exclusão, e, teoricamente, já na vida adulta, mesmo não atendendo os
padrões normativos de conduta impostos pela sociedade.

Nessa modalidade, outrossim na socioeducação, atende-se os


excluídos dos excluídos: indígenas, quilombolas, populações do campo,
ciganos, pessoas portadoras de deficiências, pessoas em situação de

29Michel Foucault (1926- 1984) foi um filósofo, crítico literário e teórico social francês. Entre
seus estudos, preocupou-se em estudar a respeito do poder e do conhecimento, como uma
forma de controle social.Em seu livro “Vigiar e Punir”, Foucault discorre sobre a
disciplinarização na escola. O autor compara por vezes a escola com instituições
disciplinadoras e severas, como a prisão e o quartel, devido a imposições autoritárias e
arbitrárias de ordem, à guisa de exemplo: filas, regras impostas sem discussão, hierarquia de
poder, vestuário uniforme. A escola opera com a imposição de uma determinada forma de
poder: o poder disciplinar. Para Foucault (2002), o poder disciplinar é, com efeito, um poder
que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida
adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Na perspectiva do autor sobre a
conjuntura escolar, a disciplinarização tem por objetivo adestrar os alunos, como se fossem
animais que precisam ser domesticados, pois, assim se tornam dóceis, fáceis de serem
manipulados e mandados.

241
privação de liberdade, catadores de materiais recicláveis, população em
situação de rua, entre outros seres excluídos e minorizados (GADOTTI, 2014).

No presente estudo, atentando-se ao cenário atual e a situação dos


sujeitos marginalizados, objetivamos responder as seguintes perguntas de
pesquisa: 1) quais são as contradições existentes entre os sistemas de
atividade estadual e local, que afetam a qualidade do ensino de língua
portuguesa em uma unidade da Fundação CASA? e; 2) como os professores
têm recorrido à colaboração para superar os óbices impostos pelas
condições sanitárias hodiernas em meio à pandemia?

Valendo-se da noção de contradições dentro dos sistemas de


atividade, e entre sistemas da atividade educativa, buscar-se-á elucidar as
práticas colaborativas dos docentes de língua portuguesa na Zona de
Desenvolvimento Proximal (ZDP) que, de forma transdisciplinar, superam as
contradições e obtém transformações ao proporcionar o acesso à
educação, mesmo em conjunturas adversas.

1 METODOLOGIA

O estudo tem caráter descritivo e segue a linha qualitativa. Para a


coleta e geração de dados recorremos a instrumentos etnográficos
destinados aos docentes, como um questionário aberto distribuído pela
plataforma online SurveyMonkey®, observando, na elaboração das
perguntas, os procedimentos metodológicos indicados por Gil (1999), quanto
à clareza das questões. Foram feitas três perguntas a três docentes de língua
portuguesa de uma unidade da Fundação CASA respondidas entre 10 e 18
de maio de 2021.

242
Obtivemos taxa de resposta de 100%. As perguntas foram as seguintes,
sendo a primeira delimitadora do perfil dos professores e as demais ligadas
ao trabalho docente colaborativo inter/transdisciplinar:

• Questão 1 - Em poucas palavras sintetize sua história profissional


abordando: formação acadêmica; anos de experiência na
docência de língua portuguesa no ensino básico regular; e, anos de
experiência do ensino de língua portuguesa na socioeducação
(Fundação CASA).
• Questão 2 - Comparando a atividade de ensino de língua
portuguesa com a do ensino regular, em sua opinião, quais são as
contradições existentes no sistema de ensino remoto/híbrido que
afetam a qualidade do ensino de língua portuguesa na unidade
Fundação Casa onde você leciona, ou já lecionou?
• Questão 3 - Como você e seus colegas de outras disciplinas têm
dialogado e aplicado o conceito de colaboração no trabalho
docente objetivando superar de forma interdisciplinar as
dificuldades do ensino remoto/híbrido em seu ambiente de
trabalho?

Quadro 1 – Perfil dos colaboradores

Colaborador 1 Graduada em Letras / Literatura, e


cursando mestrado em Intervenções
Psicológicas na Educação. Iniciou sua
carreira na rede estadual na Fundação
CASA. Considera a instituição um lugar
de extrema dificuldade, onde os
estudantes vêm de situações de
vulnerabilidade e apresentam
defasagem significativa de acordo com
ano/série.

Colaborador 2 Graduada em Letras (português/inglês),


Pedagogia e Arte. Possui oito anos de

243
experiência na docência de língua
portuguesa no Centro Socioeducativo

Colaborador 3 Graduado em Letras; especialista em


Linguística e Ensino de Línguas; e Mestre
em Letras. Atua na rede desde 2007, e na
Fundação CASA desde 2020.

Fonte: elaborado pelo autor

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Este estudo ancora-se à linha filosófico-teórica da Teoria da Atividade


Sócio-Histórico-Cultural (TASHC) (ENGESTRÖM, 1999, 2001, 2008, 2011;
LEONTIEV, 1978; VYGOTSKY, 1978, 1981, 1991, 2001). A TASHC é uma linha
teórica e de pesquisa interdisciplinar proveniente da Psicologia histórico-
cultural russa, iniciada nos anos de 1920 e 1930, tendo suas raízes na filosofia
alemã do século XIX, com Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831), e no Materialismo histórico-dialético de Karl Marx
(1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), que influenciaram os trabalhos dos
soviéticos Lev Semionovitch Vygotsky (1896-1934), Alexander Luria (1902-1977)
e Alexei Leontiev (1903-1979). A TASHC Observa a ação humana mediada
por instrumentos/artefatos materiais ou semióticos em sentido a objetos,
buscando sempre resultados. Uma atividade pode ser considerada toda
ação humana em direção a um objeto/meta.

A TASHC possui três gerações de pesquisadores, e parte da perspectiva


sócio-histórico-cultural em que o sujeito e a dimensão social são
considerados na elaboração da consciência e do desenvolvimento humano.

A primeira geração é construída a partir dos estudos de Vygotsky, que


buscou superar a relação direta entre estímulo (sujeito) e resposta (objeto)
postulada pelo behaviorismo. Ao contrário dos animais irracionais, os seres

244
humanos interagem com o meio de forma indireta, mediada. A existência
da mediação entre o sujeito e o objeto é o conceito chave da TASHC.
Vygotsky, então, propôs um modelo básico (figura 1), por meio do qual
retrata que a ação de um sujeito é mediada por ferramentas mediadoras, e
é destinada a um objeto (ENGESTRÖM, 1999).

Figura 1 - Modelo de Vygotsky para a ação do sujeito mediada para um objeto

Fonte: Engeström (1999)

Essas ferramentas mediadoras, também denominadas instrumentos ou


artefatos, podem ser de dois tipos: as ferramentas materiais, os mediadores
externos, constituídos pelos objetos do mundo material, e as ferramentas
ideológicas (psicológicas ou semióticas), os mediadores internos, que são
constituídos pelos signos e símbolos, sendo a ferramenta responsável pela
comunicação e interação entre as pessoas. Os artefatos mediadores são
definidos por Cole (1996) como aspectos do mundo material que tenham
sido modificados ao longo da história da ação humana direcionada a
objetivos ou metas. Nessa perspectiva, acreditamos que a atividade
educativa na socio educação seja mediada por ferramentas ideológicas,
como leis e o currículo, esse último influenciado por questões culturais, sociais,
políticas e econômicas (SACRISTÁN, 2007).
A segunda geração da TASHC, representada por Leontiev, expandiu o
modelo anteriormente proposto por Vygotsky. Apesar de seu modelo utilizar

245
instrumentos criados coletivamente (ferramentas), ele se limitou à unidade
de análise na esfera individual. Essa limitação é superada na segunda
geração da TASHC, com os estudos de Leontiev, que distingue ações
individuais e atividades coletivas. Leontiev ampliou a visão de Vygotsky ao
criar três níveis de análise: atividade, ação e operação (ENGESTRÖM, 1999).
Toda e qualquer atividade surge de um motivo, uma necessidade
consciente ou não, que a constitui e que a direciona a uma ação ou a um
conjunto de ações. Essas ações possuem um objetivo consciente, uma meta,
alcançadas por meio das operações.

Figura 2 - Estrutura da TASHC da segunda geração

Fonte: Daniels (2003).

Com a expansão de Leontiev, fica evidente que a atividade, as ações


e operações devem ser sempre estudadas de forma conjunta, e não
separadamente, uma vez que as atividades humanas se realizam em um
processo contínuo de interação com o meio social. Esse processo e o
contexto influenciam os motivos e as necessidades da atividade, os objetivos
das ações e as operações necessárias para a realização dessas atividades.
Hodiernamente, a terceira geração da TASHC é representada por Yrjo
Engeström, pesquisador finlandês, líder do Centro de Pesquisa em Atividade
Desenvolvimento e Aprendizagem (CRADLE), da Universidade de Helsinque,
na Finlândia. Ele e seu grupo são responsáveis pela difusão das ideias de
Vygotsky e Leontiev. Essa terceira geração aprofunda ainda mais a atividade,

246
cujo foco encontra-se na relação entre o sujeito da atividade e sua
comunidade, reforçando-se, assim, a importância do contexto social nas
atividades (ENGESTRÖM, 1999).

Objetivando compreender a ação humana em seu meio, Engeström


introduziu três conceitos representativos do contexto social do sistema:
comunidade, regras e divisão do trabalho, expandindo a estrutura
anteriormente proposta por Vygotsky e Leontiev, como visto na figura 3, cujos
novos componentes e suas funções na atividade são explicados no quadro
2. Ademais, segundo Kuutti (1996), transformar o objeto em um resultado é o
que motiva a existência de uma atividade.

Figura 3 – Estrutura de um sistema de atividade

Fonte: Engeström (2001).

247
Quadro 2 - Componentes do sistema de atividade e suas funções

Sujeitos São aqueles que agem em relação ao motivo e realizam a


atividade.

Comunidade É aquela que compartilha o objeto da atividade por meio da


divisão de trabalho e das regras.

Divisão de trabalho É aquela que as ações intermediárias são realizadas pela


participação individual na atividade, mas que não alcançam
independentemente a satisfação da necessidade dos
participantes. São as tarefas e funções de cada um dos sujeitos
envolvidos na mesma atividade.

Objeto É aquilo que satisfará a necessidade, o objeto desejado.Tem


caráter dinâmico, transformando-se com o desenvolvimento da
atividade. Tratou-se da articulação entre o idealizado, o sonhado,
o desejado que se transformam no objeto final ou no produto.

Regras Normas explícitas ou implícitas da comunidade.

Artefatos/instrumentos Meios de modificar a natureza para alcançar o objeto idealizado,


/ferramentas passíveis de serem controlados pelo seu usuário revelam a decisão
tomada pelo sujeito; usados para o alcance de fim predefinido
(instrumento para o resultado) ou constituído no processo da
atividade (instrumento e resultado).

Fonte: Liberali (2009)

A contribuição de Engeström para a TASHC avançou na interação


entre dois ou mais sistemas (figura 4).

Figura 4 - Dois sistemas de atividades formando uma rede de atividade

Fonte: Engeström (1987).

248
Assim, tem-se a rede de atividade como o objeto de estudo da
terceira geração da TASHC. Destarte, é possível analisarmos como o sistema
de atividade local de ensino (unidade/ instituição da socieeducação)
interage com outros sistemas de atividade da EB aos quais se subordina
(estadual/federal).

Ademais, a partir da terceira geração, Engeström (1999, 2001) sugere


cinco princípios da TASHC. O primeiro deles considera o sistema de atividade
mediado por um instrumento e orientado por objeto como unidade de
análise. O segundo refere-se à multiplicidade de vozes, entendidas como os
diversos pontos de vista dos participantes que fazem da atividade uma fonte
de tensão e de negociação. A historicidade dos sujeitos, da atividade, dos
objetos, das ideias e das ferramentas teóricas que moldaram a atividade
constitui a terceiro princípio. O quarto princípio reconhece o papel das
contradições como fonte de mudança e desenvolvimento. O quinto, é o da
aprendizagem expansiva, realizada quando o objeto e o motivo do objeto
são novamente conceituados, transformados, e ampliam o objeto da
atividade anterior.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Anteriormente conhecida como FEBEM, a Fundação CASA é uma


autarquia fundacional (pessoa jurídica de direito público) criada pelo
Governo do Estado de São Paulo e vinculada à Secretaria de Estado da
Justiça e da Defesa da Cidadania. Compete á instituição a execução de
medidas socioeducativas aplicadas pelo Poder Judiciário aos adolescentes
autores de atos infracionais cometidos com idade 18 anos incompletos.

249
Na Fundação CASA, os internos podem cumprir pena de reclusão até
no máximo a idade de 21 anos completos, conforme determina o ECA
(BRASIL, 1990).

Como mencionado, a Fundação CASA foi criada em substituição à


antiga FEBEM, no intuito de afastar a imagem polêmica que a envolvia. A
mudança de nomenclatura, que se deu por meio da Lei Estadual 12 469/06,
aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo em dezembro de 2006,
teve, por objetivo, adequar a instituição ao que prevê o ECA e o SINASE.
(ALMEIDA, 2010; MOREIRA, 2011; MORGADO, 2018).

Ademais, a alteração no nome foi precedida de uma reformulação na


política de atendimento da instituição. Tais mudanças reduziram o número
de violentas rebeliões que tornaram desgastada a imagem da antiga FEBEM
(VINCENTIM, 2005).

As mudanças começaram a partir do segundo semestre de 2005. Elas


consistiram num processo de descentralização do atendimento aos
adolescentes, com a construção de 59 novas unidades pequenas. A maioria
delas para atender, no máximo, 56 adolescentes – 40 no regime de
internação (artigo 122 do ECA) e 16 em internação provisória (artigo 108 do
ECA) (BRASIL, 1990).

Mesmo com a pandemia da Covid-19, as atividades educativas na


Fundação CASA ocorrem, e são ofertadas por unidades escolares regulares
vinculadoras da SEDUC, que auxilia as unidades de internação fornecendo
professores e suporte pedagógico. Na figura 5 dispomos como o sistema das
unidades se relaciona com o sistema da atividade educativa da SEDUC,
dando ênfase ao atual cenário de ensino híbrido e remoto.

250
Figura 5 – Rede de sistema de Atividade Educativa Remota no Regular e na FC

Fonte: elaborado pelo autor

Na hodierna conjuntura pandêmica, os professores de língua


portuguesa têm recorrido ao sistema de parceria e atividades colaborativas
no trabalho docente. Cujo sistema de atividade constitui-se dos seguintes
componentes, dispostos na figura 6:

Figura 6–Sistema de atividade colaborativa docente na FC

Fonte: elaborado pelo autor

251
Todavia, algumas contradições entre sistemas da atividade educativa
afetam a qualidade do trabalho e os resultados almejados tanto pelos
professores quanto pelos responsáveis pelos sistemas de atividade educativa
da SEDUC-SP e da Fundação CASA. Destarte, no quadro 3, dispomos as
contradições existentes no sistema de ensino remoto/híbrido que afetam a
qualidade do ensino de língua portuguesa na unidade Fundação CASA,
apontadas pelos três colaboradores, vozes dessa atividade.

Quadro 3 – Contradições apontadas pelos docentes de língua portuguesa

Colaborador 1 “O contexto de ensino no Sistema


Socieducativo é um desafio que nos
enquanto educadores enfrentamos.
Diferente do ensino regular, o sistema
Socioeducativo não disponibiliza aos
estudantes o acesso à internet, se
tratando que estamos vivendo na era do
Híbrido este método de ensino não é
eficaz. Diante disso, nossa única opção
são os roteiros semanais, que são
atividades impressa e enviada para a
Instituição Fundação Casa. O
responsável pedagógico fica com a
responsabilidade de aplicar esses roteiros
que elaboramos semanalmente.
Atualmente só usamos o recurso
tradicional no contexto e uma geração
que vive metodologias ativas”.

Colaborador 2 “No Ensino Híbrido, o que mais afeta o


sistema remoto na Fundação Casa é a
falta de recursos tecnológicos e agentes
pedagógicos para mediarem a ponte
professor/aluno”.

Colaborador 3 “Na Fundação os meninos não têm


acesso à internet e nem aos
equipamentos adequados. A maior
contradição é que a rede está toda
voltada ao ensino regular, e os que estão
em regime de privação de liberdade
estão excluídos ainda mais deste ensino.

252
O que se acentuou com a pandemia foi
a exclusão”.

Fonte: elaborado pelo autor

Para superar as contradições os docentes acreditam que o diálogo e


a interação (quadro 4) entre seus pares são fulcrais na busca por melhores
possibilidades de trabalho com os internos, mesmo em meio à pandemia,
momento em que o contato com esses jovens se torna impossível em alguns
momentos, dadas as condições sanitárias.

Quadro 4 - O diálogo e a interação na superação das contradições

Colaborador 1 “Nossos encontros são feitos no sistema


home office, temos um encontro
semanalmente onde discutimos nossas
práticas e plano de ação e participamos
de formações feitas pelo sistema CMSP”.

Colaborador 2 “na área de linguagens abordávamos


temas pertinentes que chamassem
atenção dos estudantes para aprofundar
os conteúdos e avançar nas habilidades
essenciais do currículo”.

Colaborador 3 “Sempre que possível peço ajuda aos


outros professores, principalmente os da
área de Linguagem. Trocamos Roteiros
de Estudos e nos revezamos na
elaboração para não ficarmos
sobrecarregados. Também é possível em
língua portuguesa trabalhar gêneros
textuais que versam sobre artes, história,
geografia, educação física e qualquer
outro componente, sempre dialogando
com o professor responsável.”

Fonte: elaborado pelo autor

253
Apesar dos esforços, é necessário salientar que a ação educativa dos
professores, enquanto mediadores na ZDP, é sempre atrelada, ou
aprisionada e disciplinarizada, às regras institucionais, tanto da SEDUC-SP
quanto as da Fundação CASA. Esses profissionais têm pouca, ou nenhuma
liberdade para o desenvolvimento de seus exercícios e práticas junto aos
alunos, dada a conjuntura normativa da educação nos espaços de
privação de liberdade. Destarte, mesmo remotamente, seus roteiros de
estudos estão presos às habilidades requeridas pelos currículos; e,
presencialmente, suas práticas estão em constante vigia, observadas por
outros indivíduos cujo papel aproxima-se do de disciplinadores, quando as
propostas pedagógicas vão além do permitido pelas regras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, é possível observar, tanto pelos relatos dos


docentes quanto pelas próprias contradições entre sistemas da atividade
educativa, que a pandemia da Covid-19 agravou a situação da
socioeducação e da educação prisional.

O atual cenário do ensino híbrido não é possível, à guisa de exemplo,


na Fundação CASA, em que os internos não têm acesso à internet e aos
demais aplicativos e serviços como o CMSP, desenvolvido para a situação
pandêmica pela SEDUC-SP. Com isso, constata-se a ocorrência de um ensino
totalmente à distância mediado por roteiros impressos elaborados pelos
professores em teletrabalho e que quase não têm contato presencial com
os alunos, diferente do sistema de ensino regular híbrido da rede, em que há
contato mínimo, e semipresencial entre os sujeitos das atividades.

254
Para superar os óbices, os professores de língua portuguesa têm
recorrido à colaboração com demais docentes de outros componentes
abordando, através de diversos gêneros textuais, conteúdos que
contemplem, interdisciplinarmente, diversos assuntos, ou seja, os textos dos
exercícios de língua portuguesa são constituídos de conteúdos para
componentes de outras áreas, destarte, contata-se a contribuição do ensino
de língua portuguesa como facilitador aos conceitos de outras disciplinas,
dialogados e negociados entre os docentes promovendo a
inter/transdiscplinaridade na socioeducação.

Por fim, reforçamos que os professores da socioeducação, outrossim


do sistema prisional, tornam-se arautos ao levar aos indivíduos marginalizados
– e sem acesso algum ao conhecimento em suas celas e alojamentos –
mensagens de esperança através do conhecimento, pondo em prática o
papel da educação como ato de liberdade (FREIRE, 1987), não de seus
espaços físicos disciplinadores, mas de suas próprias mazelas impostas e
criadas por uma sociedade estratificada e injusta que ainda, nefastamente,
usita práticas punitivas em detrimento a atos educativos transformadores de
realidades. Ademais, concordamos com Onofre (2015) que assevera que a
educação em espaços de privação de liberdade deve estar pautada nos
ideais da educação popular, que tem o homem e a vida como centro do
processo educativo, e em que o aprender a ler, escrever e interpretar
perpasse movimentos de (re)construção da cidadania e de humanização
das pessoas.

255
REFERÊNCIAS

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punitivas e rotinas institucionais. (Dissertação de mestrado). Faculdade de
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258
JARGÃO NO AUTISMO: ANÁLISE DA CONCEPÇÃO ADOTADA EM
ARTIGOS CIENTÍFICOS

William Berg Lima da Silva 30


Renata Fonseca Lima da Fonte 31

RESUMO: O jargão é um elemento prosódico-vocal presente em diversas manifestações


linguísticas, sobressaindo-se na vertente de aquisição de linguagem, apesar de não ser muito
discutido na academia. No autismo, o jargão está presente na trajetória linguística da
criança e pode ser estudado tanto como linguagem quanto sintoma. Sendo assim, esta
pesquisa teve por objetivo analisar como a concepção sobre jargão no autismo tem sido
compreendida em artigos científicos. Mais especificamente, identificar a concepção de
jargão adotada pelas pesquisas encontradas e verificar as perspectivas teóricas que
norteiam os estudos levantados. Para isso, trabalhamos com a metodologia qualitativa, em
que realizamos uma busca de artigos científicos nacionais e internacionais que abordaram
o tema jargão nos estudos sobre Transtorno do Espectro do Autismo – TEA -, nas bases
eletrônicas de dados SciELO - Scientific Electronic Library Online, Portal de Periódicos da
CAPES e Google Acadêmico. Nos artigos encontrados, os quais levantamos nas plataformas
eletrônicas, pudemos identificar eles, de forma idiossincrática, adotaram a concepção do
jargão como sintoma. Outrossim, dentro desse corpus, alguns dos autores optaram por não
definir o jargão, ao passo que outros o definem com o intuito de contribuir para o
entendimento desse elemento prosódico-vocal em crianças autistas. Sobre as perspectivas
teóricas, identificamos diferentes ópticas de investigação, nas quais prevaleceram o viés
interacionista, a pragmática e a psicanalítica. Dessarte, concluímos que o jargão no autismo
– seja como sintoma ou como linguagem – mostra-se como um funcionamento linguístico
que merece maior investigação, porquanto ele é uma produção vocal que pode ser
marcante no percurso do desenvolvimento linguístico do sujeito.

Palavras-chave: Jargão, Autismo, Linguagem.

INTRODUÇÃO

O estudo sobre a aquisição de linguagem tem sido um tema que tem


ganhado grande atenção na academia, e, de acordo com Cavalcante e

30 Graduando do Curso de Letras Português e Inglês da Universidade Católica de


Pernambuco - UNICAP, william.2017130350@unicap.br;
31 Professora orientadora: Pós-doutora, Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP,

renata.fonte@unicap.br.

259
Fonte (2019), a aquisição de linguagem é um campo de estudo heterogêneo
e híbrido, no qual, dependendo da perspectiva teórica adotada, pode
influenciar a concepção de linguagem e de sujeito. Diante disso,
defendemos a perspectiva multimodal, a qual nos permite analisar as
modalidades de uso da língua em concomitância a emergência do jargão
enquanto linguagem ou sintoma.

A aquisição de linguagem de um indivíduo começa desde o seu


nascimento, e sua tentativa de interagir com seu interlocutor se apresenta
de diversas formas. É nesse período, portanto, que a linguagem começa a
aparecer de forma multimodal, ou seja, ela surge através das “modalidades
de uso da língua (gesto, fala, olhar) que coatuam na produção linguística
entre parceiros” (CAVALCANTE et al., 2015, p.44). Nesse sentido, podemos
dizer que gesto e fala compõem uma mesma matriz de significação, como
defendem Kendon (1982, 2000, 2016), McNeill (1985, 1992, 2000), Butcher;
Goldin-Meadow (2000), Fonte et al (2014), Fonte e Cavalcante (2016),
Cavalcante (2018), entre outros.

Dentro dessa perspectiva, a linguagem é um resultado de processos


cognitivos e sociais que estão diretamente relacionados à comunicação
humana (KENDON, 2009). De acordo com Barros (2014), encontram-se cinco
tipologias prosódico-vocais que marcam tais momentos de funcionamento:
o balbucio, o jargão, as primeiras palavras, as holófrases e os blocos de
enunciado. O jargão, lócus desta pesquisa, é um elemento pertencente a
um funcionamento prosódico-vocal da trajetória linguística infantil, que
garante a interação entre parceiros – associados ou não aos gestos.
Segundo Dromi (2002), os jargões são definidos como longas sequências de
sílabas com padrões de acento e entonação variados, que surgem por volta
dos 12 ou 13 meses de idade na fala da criança. Essas sequências silábicas
parecem enunciados completos que carregam conteúdo de afirmações ou

260
perguntas, porém não possuem conteúdo linguístico ou estrutura gramatical
e podem aparecer associadas às palavras reais. De acordo com Scarpa
(2007), o jargão ocorre quando o contorno entonacional se estende a uma
cadeia de sílabas ou a um fragmento maior composto por sílabas
ininteligíveis, mas que são reconhecíveis como intenção comunicativa pelos
adultos, que lhe atribuem significado de uma frase ou sentença.

Em consideração a isso, podemos mencionar que o jargão é um


elemento prosódico-vocal assíduo na trajetória linguística de muitas crianças
autistas e pode surgir em trabalhos sendo discutido tanto como sintoma –
algo pertencente à alguma patologia – quanto linguagem – algo que
envolve a comunicação -, e, por isso, merece maior investigação.

Pensando nisso, entender como a concepção de jargão na aquisição


de linguagem de crianças autistas tem sido adotada em trabalhos
acadêmicos hodiernamente é extremamente relevante. Portanto, essa
pesquisa buscou analisar como a concepção sobre jargão no autismo tem
sido compreendida em artigos científicos. Mais especificamente, foi
identificar a concepção de jargão adotada pelas pesquisas encontradas; e
verificar as perspectivas teóricas que norteiam as pesquisas levantadas.

Nos tópicos posteriores, encontram-se: (i) a metodologia, em que


explicamos o procedimento adotado para levantamento do corpus; (ii) os
resultados e discussão, que consistiu na apresentação da concepção de
jargão e das perspectivas teóricas que nortearam os artigos científicos, que
contemplaram o tema jargão no autismo; (iii) as considerações finais, de
forma a realçar os resultados encontrados a partir da nossa análise, traz
informações relevantes que possibilitam a promoção de um panorama das
tendências das pesquisas sobre o tema “jargão” no campo da aquisição da
linguagem.

261
1 METODOLOGIA

Trabalhamos com a metodologia qualitativa, que dá conta de


significados, motivos, crenças, valores, empregando a pesquisa bibliográfica
conforme orienta Triviños (2010). Esse tipo de pesquisa tem como fonte livros,
artigos científicos, dissertações, teses.

Para a coleta de dados, realizamos uma busca de artigos científicos


nacionais e internacionais que abordaram o tema jargão na aquisição de
linguagem, nas bases eletrônicas de dados SciELO - Scientific Electronic
Library Online, Portal de Periódicos da CAPES e Google Acadêmico.

Em todas as páginas eletrônicas das bases de dados utilizamos a busca


avançada (advanced search), adotando os seguintes descritores em
português e seus correspondentes em inglês e espanhol para pesquisar os
artigos científicos: jargão (jargon / jerga), autismo (autism/autismo),
linguagem (language/lenguaje).

Como critério de inclusão, foram considerados artigos completos


publicados nos idiomas inglês e português. Foram selecionados para esta
pesquisa os trabalhos que abordaram jargão e aquisição de linguagem,
observado a partir da leitura do título e resumo/abstract. Foram excluídos
desta revisão os artigos repetidos nas bases de dados. Além disso, durante a
busca de artigos científicos, observamos que há uma escassez de estudos
que abordam essa temática, e, diante disso, não fizemos um recorte
temporal para composição do corpus.

262
2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste tópico, analisamos seis artigos científicos de um total de doze


trabalhos encontrados - seis deles foram eliminados a partir do critério de
repetição nas bases de dados e da não abordagem do tema jargão, por
mais que falassem sobre o autismo. Dentre as seis pesquisas levantadas,
encontram-se discussões acerca da concepção do jargão – se como
linguagem ou como sintoma – e da perspectiva teórica adotada. Nossas
análises, tiveram o escopo de analisar a concepção sobre jargão e verificar
as perspectivas teóricas adotadas pelas pesquisas que abordam o tema
jargão.

Para melhor discutir e interpretar os dados, foi criada uma tabela


informando o nome do artigo, a concepção sobre jargão e o ano de
publicação; além de mencionar a percepção teórica identificada nas
pesquisas.

Tabela 1

Nº Artigo Concepção Perspectiva Ano de


adotada teórica publicação

I Moving on: autism Jargão como Não 1996


and movement sintoma identificada –
disturbance artigo de
revisão
bibliográfica

263
II El lenguaje en los Jargão como Perspectiva 1999
trastornos autistas sintoma pragmática

III Beyond Jargão como Perspectiva 2007


Pragmatics: sintoma pragmática
Morphosyntactic
Development in
Autism

IV A aquisição de Jargão como Perspectiva


linguagem na sintoma interacionista
2009
criança com
autismo: um
estudo de caso

V O sujeito autista e Jargão como Perspectiva 2012


seus objetos sintoma psicanalítica

VI Autismo infantil, Jargão como Não 2016


mirada a un sintoma identificada –
paciente artigo de
revisão
bibliográfica

Fonte: os autores.

Em nossas análises, identificamos cinco artigos que discutiram o jargão


como sintoma (com definição ou não), enquanto apenas um defendera-o
como linguagem. Em relação às perspectivas teóricas, muitos trabalhos não
explicitam sua óptica de investigação, o que nos deixa desprovido dessa
informação. Em ‘Moving on: autism and movement disturbance’, por
exemplo, não houve, pois Leary e Hill (1996) procuraram entender a relação

264
entre os sintomas de distúrbio do movimento e sintomas de autismo, na
tentativa de apontar as dificuldades impostas pela atual definição de
autismo e sua especificidade. Tratou-se de uma revisão. Diante disso, os
autores atentaram, em muitos momentos, em mostrar os sintomas mais
recorrentes para o diagnóstico do autismo, em que o jargão é considerado
como uma patologia da fala, juntamente com o mutismo, a ecolalia,
melodia da fala atípica, sem nenhuma definição.

Semelhante ao artigo de Leary e Hill (1996), a pesquisa ‘El lenguaje en


los trastornos autistas’ discute, de forma clara, o autismo como um transtorno
de desenvolvimento de início precoce, em que se vê alterações na
interação social, comunicação, linguagem e interesses e atividades. Diante
disso, o jargão é discutido por Artigas (1999) como sintoma, em que crianças
de 2 a 4 anos de idade utiliza-o, substituindo a linguagem; se assemelhando
a imitação da linguagem de adultos, porém desprovido de conteúdo
semântico. Além disso, o autor deixou claro que o jargão pode aparecer
entremeado a uma palavra ou frase, em uma determinada situação, mas
completamente sem contexto. Em relação à perspectiva teórica, foi possível
identificar a pragmática, pois o autor analisa os aspectos e/ou alterações
pragmáticas, das crianças autistas, através de suas habilidades linguísticas.

Já o artigo ‘Beyond pragmatics: morphosyntactic development in


autism’ explanou sobre a aquisição de linguagem em sujeitos com autismo.
Nos estudos, Eigsti, Bennetto e Dadlani (2007) trataram o jargão como
sintoma, no momento em que foi dito que o jargão é uma das características
atípicas da linguagem; além de associar o jargão como um dos critérios de
diagnósticos para o autismo – foram inclusos nessa investigação a ecolalia e
o atraso na fala. Dessarte, o jargão foi discutido, em vários momentos, como
palavras sem sentido. Sem trazer uma definição clara, os autores discorreram
sobre o autismo e sempre relacionaram o jargão como um constituinte para

265
o diagnóstico do autismo. Em relação à perspectiva, verificou-se a
pragmática, pois os pesquisadores investigaram sobre aquisição de língua
através de análise detalhada das capacidades discursivas sintáticas em
crianças autistas. Escandell (1993) afirma que essa perspectiva parte dos
dados oferecidos pela gramática e considera, sobretudo, elementos
extralinguísticos que condicionam o uso eficaz da linguagem.

O quarto trabalho, ‘A aquisição de linguagem na criança com autismo:


um estudo de caso’, fala sobre o processo de aquisição de linguagem da
criança com autismo, e objetivou analisar longitudinalmente a aquisição da
linguagem de uma criança com diagnóstico de síndrome autística. No
decorrer das discussões, Delfrate et al (2009, p.326) dizem que as crianças
com autismo estudadas por ele “apresentavam falha no contato afetivo,
obsessividade na manutenção da rotina e movimentos repetitivos”, e, logo
em seguida, expõe o que a literatura tem pontuado em relação à aquisição
de linguagem de crianças com autismo: elas mostram dificuldade de
programar e estruturar um discurso e podem apresentar apenas um jargão
ininteligível, caracterizado por estruturas gramaticais e fonologia imaturas na
evocação. Portanto, a concepção adotada foi de jargão como sintoma.
Neste trabalho, a perspectiva adotada foi a interacionista, porquanto a
análise foi feita a partir de aspectos da interação conferida entre os
interlocutores da pesquisa. Para o autor, Delfrate et al (2009, p.325), “essa
concepção procura estudar a heterogeneidade da linguagem, analisando
as diferentes interações a partir dos processos histórico-culturais de cada
sujeito”.

Por meio da perspectiva psicanalítica, o artigo ‘O sujeito autista e seus


objetos’ procurou debater sobre o quadro teórico-clínico no autismo,
enfatizando as perturbações da linguagem. Com isso, Ribeiro, Martinho e
Miranda (2012) fizeram um panorama sobre a síndrome autística ao longo

266
dos anos, com discussões iniciadas, aproximadamente, em 1907, à luz da
psicanálise. De acordo com os autores, os quais citam Kanner (1943) para
fazer tal afirmação, dizem que a criança autista é incapacitada de
estabelecer contato com seu meio, e expõem alguns sinais clínicos que
permitem reconhecer o surgimento precoce do distúrbio: isolamento,
imobilidade, estereotipias gestuais e os distúrbios da linguagem – é nesse
momento, portanto, que o jargão é dito como algo desprovido de
significação, junto à ausência de fala. Diante disso, a concepção de jargão
foi tida como sintoma, porquanto ele foi posto como um sinal para o
diagnóstico.

Assim como na pesquisa de Leary e Hill (1996), o artigo ‘Autismo infantil,


mirada a un paciente’ não apresenta uma perspectiva teórica eminente,
pois tratou-se de um artigo de revisão bibliográfica. Os autores Rivero,
Rodríguez e Ewing (2016) falaram do autismo como um dos maiores
transtornos mentais em criança e que seu diagnóstico precoce é importante
para que o prognóstico seja satisfatório. Os autores comentaram sobre os
principais aspectos clínicos do autismo a fim de contribuir para um rápido
reconhecimento do nível primário e para seu entendimento integral. Por isso,
diante das discussões e do escopo do artigo visar o diagnóstico para o
autismo, o jargão aparece sendo discutido como sintoma, quando os
autores descreveram a criança autista afirmando que essa, em seu quarto
ano de idade, apresentava uma linguagem ininteligível, com jargão, ecolalia
e gritos.

267
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que não tenhamos encontrado muitos estudos sobre o jargão
no autismo, por ser um tema pouco investigado e aprofundado, ele se mostra
contributivo para a ciência da linguagem, porquanto identificamos que o
jargão foi analisado como sintoma – o que representa as pesquisas que o
defendem enquanto pista para o diagnóstico. Contudo, defendemos o
jargão enquanto linguagem, porquanto acreditamos que ele faz parte da
trajetória linguística de um indivíduo autista como uma forma de produção
vocal, assim como de uma criança com desenvolvimento típico de
linguagem. Essa concepção, à luz da multimodalidade, é interessante,
porque, assim, ressignificamos o jargão enquanto iniciativa interativa,
integrando os sujeitos autistas como aqueles capazes de compartilhar suas
ideias, predileções, pensamentos.

Vale ressaltar que, dentro do nosso corpus, houve a predominância de


artigos científicos que trataram o jargão como sintoma, com um total de seis
trabalhos. Em relação às perspectivas teóricas, foram identificadas quatro
ópticas de investigação diferentes, as quais denotam a fonte teórico-
metodológica que norteou as pesquisas: pragmática, psicanalista e
interacionista.

Pudemos, ainda, captar, dos artigos analisados, informações


relevantes que possibilitam a ampliação do nosso conhecimento sobre esse
campo de estudo e contribuições das perspectivas teóricas para os
trabalhos acadêmicos. Contudo, essa linha de estudo tem um longo
caminho para percorrer em busca de elucidações científicas e contribuições
que transcendam as dificuldades de se trabalhar com esse tipo de dado,
que é tão pouco explorado.

268
AGRADECIMENTOS

Diante de todo aprendizado vivenciado até aqui, só tenho que agradecer a


Deus, à minha querida orientadora, Renata Fonseca Lima da Fonte, por todo
suporte, conhecimentos científicos transmitidos e excelentes orientações;
estou aprendendo muito com você. Agradeço ao III ERELIP, por receber este
artigo, no qual trabalhei junto com minha orientadora a fim de compartilhar
informações relevantes para a academia; e, também, à FASA/UNICAP,
através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC.

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271
“ONDE É QUE BOTO MORA?”: UM ESTUDO SOBRE A LINGUAGEM
NO CONTO O BAILE DO JUDEU (1893), DE INGLÊS DE SOUSA

Kauanne Laryse da Costa Oliveira 32


Rebeca Freire Furtado 33

RESUMO: Este estudo tem por objetivo investigar de que forma a linguagem é estruturada
no conto “O baile do judeu”, do escritor paraense Herculano Marcos Inglês de Sousa.
Inserido na coletânea Contos amazônicos (1893), neste conto é narrada a história de Isaac,
o judeu, que promove uma festa em sua casa e convida as pessoas mais importantes
daquela sociedade. Durante o festejo, um sujeito misterioso começa a dançar com uma
das convidadas, D. Mariquinhas, até que no meio da valsa ele acaba deixando cair seu
chapéu, transparecendo a cabeça furada e revelando ser o boto. A narrativa fantástica e
sobrenatural nos fazem pensar nos caminhos trilhados pelo autor para compor o mistério que
envolve a trama: quem é o boto? Como ele é descrito? Qual a imagem criada a partir de
suas ações na narrativa? Quais as intertextualidades e simbologias que constroem a
narrativa? Com este trabalho, pretendemos apresentar os resultados desses e de outros
questionamentos que terão como núcleo a linguagem do texto literário. Para tanto, foram
importantes os pressupostos teóricos acerca da linguagem e da literatura de Marilena Chaui
(2000), Roland Barthes (1992; 2004) e Michel Foucault (1996).
Palavras-chave: Linguagem, Texto literário, Inglês de Sousa, O baile do judeu.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-1918) foi um escritor, jurista,


advogado, jornalista e professor paraense, natural da cidade de Óbidos-PA.
Escreveu as obras O Cacaulista (1876), Scenas da vida do Amazonas: história
de um pescador (1876), O Coronel Sangrado (1877) e O Missionário (1888),

32 Graduada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará - UFPA,


kauanneoliveira@ufpa.br.
33 Graduada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará - UFPA,

rebecafurtado@ufpa.br.

272
tendo sempre como ponto de partida os seus conhecimentos sobre o
espaço amazônico34.

Em 1893, Sousa publica a antologia Contos amazônicos, formada por


nove contos: “O voluntário”, “A feiticeira”, “Amor de Maria”, “Acauã, “O
donativo do capitão Silvestre”, “O gado do Valha-me Deus”, “O baile do
judeu”, “A quadrilha de Jacob Patacho” e “O rebelde”. As narrativas
dividem-se entre um caráter fantástico 35 , mais voltado para o imaginário
social da região amazônica, a exemplo do conto “Acauã”; ou em uma
temática mais político-social, procurando destacar como a sociedade era
organizada naquela época, a exemplo o conto “O rebelde”, que tematiza
o período da Cabanagem no Pará.

Dentre as nove narrativas de Contos amazônicos (1893), observamos


que em O baile do judeu a linguagem é estruturada de forma complexa,
suscitando diferentes interpretações do leitor tendo em vista a sua vasta
intertextualidade. Diante disso, iniciamos a análise interpretativa do conto,
atentando-nos aos aspectos principais da linguagem, com a inserção de
alguns autores como suporte teórico: Marilena Chaui (2000), Roland Barthes
(2004; 1992) e Michel Foucault (1996).

Em A ordem do discurso, Michel Foucault (1996, p. 28) aponta que o


autor é o responsável por dar à linguagem da ficção as suas unidades,
coerências e inserção no real. No conto estudado, as cenas e personagens
se confundem, por vezes não é possível afirmar o que é realidade, o que é
ficcional, o que é mentira e o que é verdade, pois Inglês de Sousa brinca

34 Inglês de Sousa foi o primeiro escritor brasileiro a publicar um romance considerado


naturalista com a obra O Coronel Sangrado (1877), apesar de Aluísio de Azevedo receber
este título com o romance O mulato (1881), publicado quatro anos depois do paraense.
35 Tzvetan Todorov (2012, p. 31) classifica o fantástico como “a hesitação experimentada por

um ser que só conhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente


sobrenatural”.

273
com a linguagem da narrativa e com os seus leitores. A literatura, nesse caso,
relaciona-se diretamente com o discurso de poder, tendo em vista o próprio
ato criativo e encenado da linguagem. O narrador, em alguns momentos,
tece comentários carregados de juízos de valor, que demonstram a sua
superioridade na narrativa de quem domina a linguagem.

O baile do judeu, além de tematizar um aspecto do imaginário social


dos moradores da Amazônia, também apresenta alguns fatores sócio-
políticos que serão analisados neste artigo: a hierarquia social entre os
moradores da Amazônia, o julgamento da figura feminina, a segregação dos
judeus, a hipocrisia cristã e a sociedade de interesses. Sousa cria uma
narrativa realista-naturalista a partir da construção de imagens simbólicas
que se conectam à vida do homem amazônida. Portanto, o objetivo
principal deste trabalho é apresentar como se dá a construção da
linguagem no conto.

Dito isto, apresentaremos, na próxima seção, os resultados e discussões


acerca da montagem da obra de acordo com a linguagem utilizada pelo
autor, principalmente no que diz respeito às imagens, simbologias,
intertextualidades, o poder, as nomeações e a construção da figura feminina.

2 DESVENDANDO A LINGUAGEM NO CONTO O BAILE DO JUDEU

Em O baile do judeu é narrada a história de Isaac, o judeu, que decide


organizar um baile para os cidadãos mais ilustres da comunidade amazônica.
Todos que receberam o convite comparecem à festa e começam a se
divertir bastante. É importante destacar que o vigário, o sacristão, o andador
das almas e o juiz de direito não foram convidados; os três primeiros por
causa de religião e o último por Isaac temer a justiça. Quando todos estavam

274
curtindo o melhor momento do festejo, chega um homem misterioso e
convida a mulher mais bonita da festa para dançar. Num certo momento,
ele deixa cair seu chapéu, expondo um furo e revelando ser o boto, é
quando, então, ele leva a moça para o rio e desaparece com ela nas
profundezas da água.

A leitura do conto nos permite inferir alguns conceitos apontados por


Marilena Chaui, em Convite à filosofia (2000). Segundo a autora, a linguagem
simbólica, muito utilizada na literatura, “nos oferece palavras polissêmicas,
isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto
sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários”
(CHAUI, 2000, p. 188). Mediante a escolha das palavras, Sousa constrói uma
narrativa refinada, com toques de ironia e uma grande analogia entre o
judeu, a sociedade e a Amazônia: desfrutamos de todos os seus bens, porém,
quando já não mais nos serve, os descartamos – é o que acontece com o
judeu ao findar a narrativa, depois da tragédia, ninguém mais quis ir aos seus
bailes. Assim como, no decorrer de todo o conto, podemos observar as
delicadas escolhas de palavras do autor para referenciar diferentes
situações: o judeu e a religião judaica são sempre representados através de
palavras de teor negativo, enquanto que o catolicismo é prestigiado.

Chaui retoma algumas concepções sobre a origem da linguagem,


fazendo referência ao texto Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau.
Para ele, a linguagem surgirá a partir das emoções que nos são inerentes,
como o ódio e o amor (CHAUI, 200, p. 177). A linguagem, portanto, nada
mais é que o meio de expressão que Sousa se utiliza para construir a narrativa.

Outro ponto importante para compreender a narrativa em relação à


linguagem, é o que aponta Roland Barthes em Aula (1992) e O rumor da
língua (2004). Barthes levanta o questionamento da relação entre linguagem
e literatura. Para ele, a literatura é a ciência da fala humana e não do

275
coração (BARTHES, 2004, p. 14). A literatura nada mais é que uma subversão,
dissimulação, encenação. Ela atua como possibilidade de fugir do campo
fechado que é a linguagem, como já apontava Barthes (1992, p. 15). Em um
conto, somos ora espectadores, ora personagens. Nos colocamos, ou somos
colocados, na narrativa. O narrador nos seduz, através da linguagem, a
participar do enredo. Convergimos e divergimos das falas, ações, visões
acerca das personagens. Tomamos um lado. Uma cena que explicita o uso
da linguagem como mecanismo sedutor é a da dança entre a figura
misteriosa que acabara de chegar ao baile e Dona Mariquinhas, tida como
a rainha do baile. A maneira como o autor constrói a cena envolve o leitor e
faz com que ele sinta que está inserido na narrativa, sem fôlego tal como a
dona que está dançando:

Os pares que ainda dançavam retiraram-se para melhor poder


apreciar o engraçado cavalheiro de chapéu desabado que,
estreitando então a dama contra o côncavo peito, rompeu numa
valsa vertiginosa, num verdadeiro turbilhão, a ponto de se não
distinguirem quase os dois vultos que rodopiavam entrelaçados,
espalhando toda a gente e derrubando tudo quanto encontravam.
A moça não sentiu mais o soalho sob os pés, milhares de luzes
ofuscavam-lhe a vista, tudo rodava em torno dela; o seu rosto
exprimia uma angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam
ver um êxtase de amor (SOUSA, 2006, p. 86-87).

Da mesma forma que Mariquinhas é envolvida pela dança do boto, nós,


leitores, somos envolvidos pela linguagem do narrador: aceitamos sua
narração sem ao menos questionar, impulsionados pelo único desejo de
desvendar o que acontecerá com Mariquinhas, quem é o boto, qual o
destino de Isaac e qual o desfecho da narrativa. Essa inquietação gerada
no leitor se justifica pela utilização da linguagem simbólica na narrativa que,
como registra Chaui (2000, p. 189), é capaz de fascinar e seduzir.

276
2.1 A METAMORFOSE DO HOMEM EM ANIMAL E DO ANIMAL EM HOMEM:
CONHECENDO O BOTO

A literatura, por si só, já é uma metamorfose. A transformação e a


dissimulação da linguagem são transmutações que o autor se utiliza para dar
vida à literatura e sair de um lugar fechado e servil, conforme assinala Barthes
(1992). Somente através dessa subversão a literatura pode vir a existir. O
papel do escritor, nesse caso, é de extrema importância para dar luz à
encenação. Para isso, a metamorfose neste conto atua como um dos
principais pontos na reconfiguração da linguagem.

Inglês de Sousa se apropria desse aspecto para criar um personagem


muito conhecido na sociedade amazônida: o boto. Na lenda do boto, um
homem muito bonito, branco, loiro, de características europeias, de chapéu
na cabeça e com vestes brancas seduz as mulheres, levando-as consigo
para o fundo do rio. Essa sedução ocorre quase sempre em um festejo no
período da noite, como é o caso do tempo da narrativa aqui estudada.
Segundo Galvão (1955, p. 5), apesar da fama de sedutores que os botos
carregam, eles "[...] são particularmente temidos por seu poder maligno”. É o
que acontece na narrativa: o boto é visto como um monstro, um demônio.

Na lenda do boto, o homem metamorfoseia-se em animal e o animal


metamorfoseia-se em homem. Não há como dizer quem se transformou no
outro. Nesta trama, fica claro que os dois estão interligados, entrelaçados,
vivem um dentro do outro. O homem enquanto personagem é um ser
racional e, também, irracional. As suas ações pautam-se no convívio com o
outro e também na não aceitação das escolhas do outro. Na narrativa, ele
é descrito da seguinte forma:

277
Às onze horas, quando mais animado ia o baile, entrou um sujeito
baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não
deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do
casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para
uma contradança que ia começar. (SOUSA, 2006, p. 85).

No conto de Inglês de Sousa, o boto perde a caracterização comum:


agora ele é um monstro, que perdeu a beleza e que esconde a sua
verdadeira face. A imagem criada mediante as palavras utilizadas
apresenta o personagem como um verdadeiro mistério para a narrativa. O
suspense em sua chegada, em um horário de agitação no baile, faz com
que todos os personagens e, também, os leitores, fiquem atentos a ele.
Somos levados a preencher as lacunas propositais de sua descrição. De
acordo com o nosso conhecimento de mundo, já colocamos a identidade
do personagem como uma pista a ser desvendada na narrativa.

A dúvida de sua identidade gerada nos personagens e nos leitores, a


forma do personagem de se vestir e a tirada de D. Mariquinhas para dançar
aquela valsa foram escolhidas propositalmente pelo autor. Nenhuma
escolha foi feita de forma aleatória. A linguagem extrapola o mundo real e
perpassa pelo fantasmagórico e fantasioso do imaginário popular, partindo
da sua movimentação e do seu deslocamento.

Quando dizemos que as ações do boto se guiam pela não aceitação


das escolhas do outro, estamos nos referindo a sua possível identidade. Na
narrativa, D. Mariquinhas, a rainha do baile, é casada com o tenente-coronel
Bento de Arruda. O casamento, entretanto, foi arranjado pela mãe, que
ameaçou a filha tendo em vista que o coronel era viúvo, não tinha filhos e
era rico, logo, seria um bom partido. Outro pretendente de Mariquinhas era
Lulu Valente, que era apaixonado por ela e que “morrera pela moça e ficara
fora de si com o casamento do tenente-coronel” (SOUSA, 2006, p. 85).

278
Lulu Valente, com este nome que também não foi escolhido pelo autor
de forma aleatória, poderia ser o boto. Os próprios personagens desconfiam
que ele é o homem que se metamorfoseou em animal. Quando o narrador
diz que Lulu morreu pela moça, ele pode estar falando em uma morte não
literal, mas sim de uma morte metafórica, como quem morre por um amor
não correspondido, o que é muito característico do amor construído pela
literatura. Ele teve que morrer e renascer enquanto homem para se
transformar em animal e recuperar o seu amor, mesmo que seja de forma
violenta e não esperada por ela. A morte enquanto encerramento de uma
trajetória, pode ser, também, um sopro de vida, como é o caso de Lulu
Valente.

O boto, ou o Lulu metamorfoseado em boto, dança com D.


Mariquinhas até deixa-la exausta. O leitor, mediante o avanço da dança, o
aumento do ritmo das músicas, dos rodopios que o personagem dá com
Mariquinhas, também fica cansado, assim como ela. A cabeça gira, os pés
dela deixam de tocar o chão, o coronel Bento de Arruda se assusta com o
ritmo acelerado e, por fim, o boto deixa cair o seu chapéu, deixando
transparecer a cabeça furada e revelando ser o boto: “sim, um grande boto,
ou o demônio por ele” (SOUSA, 2006, p. 87).

Ele seduz Mariquinhas e também seduz ao leitor, que espera ansioso a


revelação de sua face, de sua identidade. A questão é que o boto nada
mais é que a simbologia dos excluídos e renegados, que estão à margem da
sociedade. Lulu Valente não teve chances com Mariquinhas. Bento de
Arruda conseguiu o casamento com ela devido suas posses, já Lulu era filho
de uma simples e pobre professora régia.

O boto já não é aquele homem bonito, branco, loiro e de terno branco.


Inglês de Sousa dá outra caracterização para ele. A linguagem escolhida
para descrevê-lo remetem a essa crítica à sociedade de aparências. Lulu

279
Valente não foi convidado ao baile do judeu. O boto também não. Ele
apareceu naquele local deixando todos curiosos e surpresos. A sua figura
impressiona e horroriza a todos, até mesmo o leitor, ainda mais quando, ao
final da narrativa, ele foge e leva Mariquinhas para o fundo do rio, mostrando
que pode ser tão ou mais poderoso que os homens, justamente pela sua
construção sobrenatural. Segundo Todorov (2012, p.59), a existência de seres
sobrenaturais é um dos enfoques constantes da literatura fantástica.

A crítica e a moral se fazem presentes nas ações e nas caracterizações


do boto. A analogia com a sociedade da época perpassa sua construção
e sua exclusão em convívio com o próximo. O próprio final de D. Mariquinhas
exemplifica essa analogia com a sociedade. Ela tem um final infeliz. A
personagem é castigada por ter feito uma má escolha. Para o narrador, ela
é uma moça imprudente por ter se deixado levar na dança. De acordo com
Marlí Furtado, em Crimes da Terra na Amazônia, de Inglês de Sousa a Dalcídio
Jurandir (2008), “essas narrativas de Sousa apontam também para a difícil
situação da mulher, sempre colada na condição masculina. Por mais que
tenha espírito independente, depende do dinheiro, da proteção e da
fortuna do homem” (FURTADO, 2008, p. 105). Esse aspecto é tão
predominante no enredo, que Bento de Arruda não tem seu destino alterado.
O seu desfecho, de forma intencional, nem é comentado pelo narrador, que
apenas culpabiliza a mulher.

2.2 INTERTEXTUALIDADE: O SAGRADO, O PROFANO E O CULTURAL

A intertextualidade no conto em questão é extremamente rica,


considerando a presença de muitas histórias que se relacionam entre si e que

280
formam um conjunto de textos inseridos em um texto só. A intertextualidade
é recorrente na literatura, tendo em vista que:

A literatura se escreve com a lembrança daquilo que é, daquilo que


foi. Ela exprime, movimentando sua memória e inscrevendo nos
textos por meio de um certo número de procedimentos de
retomadas, de lembranças e de re-escrituras, cujo trabalho faz
aparecer o intertexto. Ela mostra assim sua capacidade de se
constituir em suma ou em biblioteca e de sugerir o imaginário que
ela própria tem de si. (SAMOYAULT, 2008, p. 47).

A primeira grande intertextualidade que notamos no conto de Sousa


se dá a partir da construção de Isaac, o judeu, quem promove o baile em
sua casa e convida aqueles mais abastados da sociedade. Isaac, segundo
o narrador, atreve-se a convidar a gente da terra. Mas por que o narrador se
utiliza deste verbo para falar da ação do personagem? O convite do judeu
é um atrevimento tendo em vista a visão errônea sobre a religião judaica.
Sousa busca conceitos acerca da história e da sociedade para traçar o perfil
do judeu. A característica de atrevido, pela qual a personagem é adjetivada
logo no início do conto, se dá pelo único fato de ele ser judeu, se não fosse
judeu, provavelmente convidar a gente da terra para um baile não seria
atrevimento. Isaac é menosprezado e subjugado por carregar o fardo de sua
religião ser acusada historicamente de ter crucificado a Cristo. Aqui, temos
um primeiro exemplo de intertextualidade, um texto cultural, bíblico e cristão
inserido na narrativa.

O embate entre o judaísmo e o catolicismo é trabalhado a partir da


linguagem escolhida pelo autor, como pode ser observado no momento em
que o judeu decide não convidar algumas pessoas que fazem parte do
seguimento católico, como o sacristão, pois, se o convidasse, ele o mandaria
“pentear macacos” (SOUSA, 2006, p. 83). A expressão popular utilizada

281
refere-se a não aceitação do judeu na sociedade. Aqueles que se dizem
cristão jamais pisariam naquele lar. Porém, não é isso que acontece.

A intertextualidade se faz presente, também, no entrelaçamento entre


o sagrado e o profano. Para o narrador, espera-se que aqueles que se dizem
cristãos não adentrem em um território de um homem que é considerado
malvado. Mas, apesar disso, muitos comparecem na festa. Pedro
Rabequinha, Chico Carapanã e Raimundo Penaforte, que compõem a
orquestra da festa, são os maiores exemplos da conexão entre o sagrado e
profano. Os músicos, que tocam aos domingos na missa da igreja, utilizam
exatamente os mesmos instrumentos que tocam na igreja para tocar no baile
do judeu.

Pedro Rabequinha e Chico Carapanã foram castigados pela


ideologia cristã: o primeiro morreu afogado um ano depois do baile; o
segundo, foi preso durante quatro meses por questões de terra; já Raimundo
Penaforte não teve um destino trágico, motivo este que explicaremos mais à
frente

Além disso, há a presença das narrativas orais que circulam no território


amazônico, como é o caso da lenda do boto. Em Contos amazônicos, Inglês
de Sousa preza pelas narrativas identitárias dessa região, ressignificando
cada uma delas a partir do seu aprimoramento da linguagem.

Outra questão importante no que diz respeito à intertextualidade é a


discussão sobre o gênero feminino. D. Mariquinhas é obrigada a se casar por
conveniência para ter o mínimo de condições de vida. O foco da sua
descrição é o seu físico: seus olhos, seus cabelos, seus braços e o seu poder
de seduzir os outros. O que importa para o autor é privilegiar a sua
caracterização enquanto mulher, caracterização essa que parte de um
ponto de vista masculino sobre o que seria a ideal beleza feminina, de forma

282
a permitir ao leitor criar a imagem dela em sua cabeça. Porém, ela é vítima
de uma violência por parte do boto: é levada sem permissão para o fundo
do rio. Mariquinhas é o símbolo da figura feminina naquela sociedade.

2.3 SIMBOLOGIA E PODER DA LINGUAGEM

Os nomes dos personagens do conto O baile do judeu carregam uma


forte simbologia, principalmente os personagens principais da trama. Sousa
brinca com a linguagem e pega referências do mundo real e as altera, para,
assim, construir um enredo rico, como várias peças de um quebra-cabeça
que deve ser montado.

A começar pelo nome do personagem que organiza o baile: Isaac, o


judeu. O nome do personagem só é mencionado uma vez na narrativa. A
sua identidade não é pautada pelo seu nome, mas sim pela sua crença. Ele
não é Isaac, é judeu. Essa é a visão sobre ele. Porém, se formos mais a fundo,
observaremos a simbologia do nome do judeu. Isaac é um nome de origem
hebraica, além de ser um personagem bíblico, filho de Abraão e Sara:

6 Tomou Abraão a lenha do holocausto e a colocou sobre Isaque,


seu filho; ele, porém, levava nas mãos o fogo e o cutelo. Assim,
caminhavam ambos juntos. (...)
9 Chegaram ao lugar que Deus lhe havia designado; ali edificou
Abraão um altar, sobre ele dispôs a lenha, amarrou Isaque, seu filho,
e o deitou no altar, em cima da lenha (BÍBLIA, Gênesis, 22, 6-9).

No livro de Gênesis, Abraão toma Isaque, seu filho, como sacrifício para
demonstrar sua fé em Deus. No conto, o sacrifício se dá pelo próprio
acontecimento da festa, que acaba de forma trágica, fazendo com que
ninguém frequente mais a casa do judeu. As relações entre a religião são

283
muito expressivas no conto, seja no nome do personagem ou nas relações
entre eles.

Outros nomes importantes são os músicos da orquestra que estavam


tocando na festa de Isaac. O primeiro deles, Pedro Rabequinha, possui um
sobrenome muito característico de sua profissão. Rabequinha faz referência
direta ao instrumento musical Rabeca, que se assemelha a um violino. É o
sobrenome quem caracteriza o personagem neste caso. A escolha é
essencialmente proposital.

Quanto ao segundo deles, Chico Carapanã, temos um sobrenome


que vai fazer relação tanto a um mosquito da região norte brasileira, quanto
a um povo indígena do Brasil. Este sobrenome, ao contrato do outro, é uma
forma de o escritor interligar as questões regionais aos personagens.

Já o nome de Raimundo Penaforte, o tocador de flautas, refere-se, na


verdade, a um santo: São Raimundo Penaforte. Interessante notar que, dos
três, ele é o único que não tem um final trágico. Talvez isso tenha relação
com o seu nome, o nome de um santo. São Raimundo Penaforte é o
padroeiro dos advogados e convertia judeus e mulçumanos (SERRA, 1946, p.
45), o que deixa a narrativa ainda mais complexa se pensarmos que ele
estava na casa de um judeu, tocando com instrumentos que utilizava na
igreja e possui essa nominalização.

Outro nome interessante quanto a sua escolha é o de Lulu Valente. O


primeiro nome, Lulu, em muito parece infantil. Não se sabe a procedência
deste nome, nem se é apelido ou não. Quando nos deparamos o nome
deste personagem, tendemos a não o levar a sério. Até mesmo pela
desconfiança dos personagens que acham que o boto é Lulu. A
desconfiança se dá pela forma engraçada e estranha que o boto estava
dançando.

284
Já o sobrenome de Lulu, Valente, dá outra simbologia para o
personagem. Valente simboliza a bravura, a resistência perante os conflitos
da vida. É como a sua morte, como foi falado anteriormente, o seu
renascimento diante das escolhas de Mariquinhas. O sobrenome Valente o
permite renascer em outro personagem, não apenas aquele Lulu que foi
deixado por Mariquinhas.

Outro aspecto importante da construção da linguagem é a ironia por


parte do narrador. Por se tratar de uma obra do realismo-naturalismo
brasileiro, Sousa faz questão de abordar alguns aspectos da sociedade
brasileira do século XIX. O poder, nesse caso, está nas mãos do escritor, que
utiliza do narrador para nos dar algumas visões acerca do mundo. Para
Barthes (2004, p. 11), é “[...] discurso de poder todo discurso que engendra o
erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe”.

É o narrador em terceira pessoa que detém o poder da narrativa,


tendo em vista que é somente ele que está narrando. Temos somente a sua
palavra para acreditar nos fatos contados e nada mais que isso. A narrativa
é construída por ele e cabe a nós encontrar sentido naquilo. Ele nos possibilita
apenas as pistas.

Embora de forma externa à narrativa, o narrador se intromete na trama


em alguns momentos e emite algumas opiniões e juízos de valor acerca dos
personagens. Isaac é uma das “vítimas” do olhar do narrador. A linguagem
utilizada por ele é construída para que o leitor busque respostas para o que
está lendo. Quem é Isaac? Um homem que deu uma festa em sua casa e
convidou algumas pessoas da região? Não. Para o narrador, ele é um
“malvado judeu”, um “inimigo da igreja” (SOUSA, 2006, p. 83). Ele é
caracterizado de forma negativa assim como o boto. O seu final é trágico,
ninguém mais quis voltar aos seus bailes.

285
Há juízo de valor, também, na culpabilização da aceitação de D.
Mariquinhas ao dançar com o boto. Logo que aquele sujeito misterioso
chega ao baile e tira a personagem para dançar, todos que estão na festa
se divertem pela forma que ele dança, inclusive o Bento de Arruda e a sua
mulher, que “ria-se a bandeiras despregadas” (SOUSA, 2006, p. 85). A
diversão vai se esfriando a partir do momento em que o homem do chapéu
desabado começa a dançar freneticamente, fazendo Mariquinhas “já não
experimentar prazer algum naquela dança desenfreada que alegrava tanta
gente” (SOUSA, 2006, p. 86). A agitação da dança fica tão forte que a
personagem não sente mais o soalho sob os pés, em completo desespero.
Até que, ao final:

O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora,


espavorido com o sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda,
atravessou a rua, sempre ao som da “varsoviana” e, chegando à
ribanceira do rio, atirou-se de lá de cima com a moça imprudente e
com ela se atufou nas águas (SOUSA, 2006, p. 87, grifo nosso)

Nos grifos acima, é perceptível a visão do narrador acerca de


Mariquinhas e, também, acerca do boto. Ela, é uma desgraçada moça
imprudente. Ele, um monstro. A culpa acaba recaindo sob ela a partir das
escolhas linguísticas do narrador, embora quem tenha cometido a ação
tenha sido o boto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, foi possível chegar à conclusão de que a linguagem é


elemento norteador para a construção do conto O baile do judeu, de Inglês
de Sousa. A narrativa é complexa tendo em vista a própria forma de

286
linguagem que o narrador se utiliza para narrar os fatos. Ela vai atuar desde
as descrições dos personagens, sejam elas físicas ou psicológicas, até mesmo
no diálogo com outras histórias e narrativas que são lidas e ouvidas.

Buscamos apresentar a metamorfose de homem em animal e de


animal em homem a partir do boto, uma figura recorrente no imaginário
social da Amazônia. Sousa ressignifica esse personagem a partir da literatura
fantástica, principalmente em relação ao real e irreal, também abordado
por Roland Barthes em Aula (1992). A narrativa cumpre a sua função de
surpreender, incomodar, afligir e fazer pensar, considerando a linguagem
como uma dissimulação.

Além disso, procuramos recorrer às relações com os outros textos que


está presente no conto sousiano e buscar as simbologias relevantes dos
nomes dos personagens, que, em muito, dizem sobre as suas condutas na
trama. Por fim, buscamos relacionar o discurso de poder com a forma que o
narrador utiliza a linguagem para expor opiniões e juízos de valor acerca dos
personagens.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1992.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução por Mário Laranjeira. São


Paulo: Martins Fontes, 2004.

BÍBLIA, A. T. Gênesis. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida.


Sociedade Bíblica do Brasil Mapas, 2002.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

FOUCAULT, Michel. “A Ordem do Discurso”: aula inaugural pronunciada

287
no Collège de France no dia 02 de dezembro de 1970. Tradução de Laura
Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

FURTADO, Marlí. “Crimes da terra” na Amazônia, de Inglês de Sousa a


Dalcídio Jurandir. Revista O eixo e a roda, Belo Horizonte, v. 17, p. 103-113,
2008. Disponível em:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/.
Acesso em 10 fev. 2021.

GALVÃO, Eduardo. Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa em Itá,


Amazonas. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1955.

SAMOYAULT, Tiphaine. A Intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini, São


Paulo: Hucitec, 2008.

SERRA, Ramón. La personalidad de San Raimundo Penafort. Revista


Española de Derecho Canónico, vol. 1, nº 1, p. 7-47, 1946. Disponível em:
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4653693. Acesso em 10
abr. 2021.

SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria


Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 2012.

288
POEGRITO: CARLOS DE ASSUMPÇÃO

Sandro Adriano da Silva36

RESUMO: Este artigo evidencia as relações entre poesia elegíaca, memória, ancestralidade
e resistência na obra Protesto: poemas (1982), que compõe o livro Não pararei de gritar, do
poeta negro Carlos de Assumpção, publicada em 2020. Tomada em seu mosaico temático,
sobretudo em torno da ancestralidade afro-brasileira e pela consciência do fazer poético
que enforma o legado milenar da oralidade e uma estética negra, a lírica de Assumpção
vem sendo considerada uma precursora do slam contemporâneo, operando como um
libelo militante, contra o preconceito étnico-racial tão indelevelmente enraizado na cultura
brasileira, bem como pela afirmação de uma memória elegíaca que reverbera. A poesia
elegíaca arvora-se como interrogação sobre o tempo, a experiência subjetiva e sua finitude,
o luto, a perda, o exílio, as catástrofes da História, recorrendo a um discurso evocativo e
memorialista. A memória, em sentido amplo, cria um élan entre poesia e imaginário
individual e coletivo, sempre em devir, e de forma dialógica, na constituição das identidades.
A ancestralidade, tomada em seu sentido antropológico, constitui-se como patrimônio
material e simbólico, reverberando uma ideia de herança cuja transmissão a converte em
memória social. Para a literatura negra, especialmente, a poesia, aventamos que o
imaginário revisitado repertoria determinados elementos culturais, como rastros linguísticos e
estéticos, evocação do sagrado, o discurso de resistência ante à colonização, entre outros
aspectos. A poesia, como lugar de fala, portanto, engendra o gesto poético e histórico de
permanente elaboração dos matizes organizadores de memória social e coletiva em
poegritos.

Palavras-chave: Poesia brasileira contemporânea, Poesia negra, Carlos de Assumpção. Não


pararei de gritar.

INTRODUÇÃO: POESIA - RESISTÊNCIA EM FILIGRANAS

A poesia, como a literatura, reverbera traços esteticamente recriados


do real, assumindo algumas funções estéticas, éticas e sociais, seja porque
atuam diretamente na humanização do sujeito, como ensina a lição de
Candido (2011, p. 182), seja porque comunicam uma experiência nova,

36Doutorando em Literatura (UFSC). Professor assistente do Colegiado de Letras da


Universidade Estadual do Paraná, campus Campo Mourão. Vice-coordenador do Núcleo
de Educação para as Relações de Gênero (NERG), do Centro de Educação e Direitos
Humanos (CEDH) – Unespar.

289
apurando a sensibilidade pelo prazer, pelas emoções, pensamentos, o valor
da língua e da tradição literária e da consciência de sua existência (ELIOT,
1972, p. 32;35;36;41). Chartier considera que a poesia aponta para sua
dimensão de registro e representação da realidade, sem negligenciar a
dimensão textual construída em regras próprias, testemunha o real na própria
“historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita” (p.62-
63). Paz (2012) indica que a poesia se faz “expressão histórica de raças,
nações, classes”, diante da qual “o homem finalmente toma consciência de
ser mais que passagem” (p. 21).

Nessa perspectiva, pode-se dizer com Bosi (2000) que desde a


modernidade a poesia se faz forma estranha, porquanto “o poético
sobrevive em um meio hostil ou surdo”, como um “modo historicamente
possível de existir no interior do processo capitalista” (p. 165), diante do qual
a poesia resiste. A resistência, afirma o crítico (2000, p. 167), apresenta muitas
faces: “ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia
mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva
(lirismo de confissão [...]); ora a crítica direta ou velada da desordem
estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da
utopia). (p.167, grifos do autor). Tocada de nostalgia, de crítica ou utopia,
ensina Bosi, a poesia moderna estabelece padrões temáticos e de
linguagem que se constituem verdadeiros libelos de resistência contra toda
uma estrutura marcada pela barbárie. A poesia, assim, “resiste aferrando-se
à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova ordem que se
recorta no horizonte da utopia” (BOSI, 2000, p. 169).

As interseccionalidades entre poesia e resistência indiciam, ainda de


acordo com Bosi (1996), o mesmo fenômeno que se dá quando a ideia de
resistência se apresenta conjugada à de narrativa, como duas dimensões
distintas e interpenetrantes, quais sejam, a de que resistência se dá como

290
tema e como processo inerente à escrita (p. 13). Ocorre, de acordo com o
crítico, uma “translação de sentido da esfera ética para a estética” na
exploração da “força catalizadora da vida em sociedade: os seus valores”
(p. BOSI, 1996, p.13). Para o autor, “no fazer-se concreto e multiplamente
determinado da existência pessoal, fios subterrâneos poderosos amarram as
pulsões e os signos, os desejos e as imagens, os projetos políticos e as teorias,
as ações e os conceitos” (p. 13). A poesia reverbera um conteúdo de
verdade e moral da poesia, que, com “seu modo figural e expressivo”, revela
“ a mentira da ideologia, a trampa do preconceito, as tentações do
estereótipo” (p. 24).

Todo esse espectro desenha-se melhor quando se delimita o território


de uma poesia de minoria étnico-racial, como é o caso do poeta negro
Carlos de Assumpção, cuja obra encontra-se alijada dos principais referentes
de historiografia e crítica de poesia.37 O imaginário traumático da escravidão
não apenas constitui-se matéria de memória coletiva e individual dos
escritores e escritoras negros, como matiza-se, em grande medida, de um
tom ora lutuoso e elegíaco, ora revoltante e contraideológico, nas metáforas,
símbolos e outros recursos estético-formais empregados pelo poeta. Uma
dicção que põe em cena a resistência desses autores e autoras no sentido
de contrapor e reverter a imagem estereotipada construída nos tempos
coloniais do negro desenhado exclusivamente pela marca de escravo.
Nessa mesma direção, vozes como Cuti, Conceição Evaristo, Solano
Trindade, Abdias do Nascimento, Miriam Alves, Eliane Alves, minam as
estruturas excludentes do cânone literário, ao mesmo tempo em que
repercutem um sentimento e uma ação de resistência frente a essas feridas

37Passei em revista a situação da recepção crítica da obra de Carlos de Assumpção no


ensaio Não pararei de gritar/ protesto: a poética militante de Carlos de Assumpção, Bordo-
Grená, 2021.

291
do passado e a autoafirmação do sujeito negro. Dessa forma, operando
como um “vértice entre a história e a memória” (SELIGMANN-SILVA, 2010, p.
6), uma vez que a literatura apresenta-se, no limite, testemunhal nas
reverberações dos eventos históricos, sejam eles experienciados diretamente
ou testemunhados, seja por ser contemporâneo ao fato, seja por dele tomar
conhecimento pelos que o vivenciaram, seja por entrar em contato
com ele através de textos da cultura – incluindo, aqui, a poesia de autoria
negra -, que constituem a memória coletiva e individual.

Nessa breve incursão sobre o livro Protesto (1982), que integra a obra
Não pararei de gritar (2020), de Carlos de Assumpção, lanço um olhar
interpretativo sobre os poemas “Tambor I”, “Tambor II”, “Meu quilombo”,
“Fênix”, “Poema verídico” e “Eclipse”. Neles, busco pôr em evidência a
tensão entre o imaginário e a ancestralidade, como matéria de poesia, e
alguns recursos expressivos dos quais se vale o poeta para trazer à luz a
experiência lírica e a dicção social com a qual reveste seu projeto poético.
Antes, porém, pode ser rentável considerar uma perspectiva de poesia que
seja capaz de nutrir nossa análise, sobretudo levando-se em conta tratar-se
de uma poesia e de um poeta até recentemente alijados do campo literário
e sobre os quais é urgente que a crítica de poesia produza uma recepção
que devidamente reconheça sua validade estética e seu apelo (ou grito)
contra a uma das nuanças do racismo estrutural, que proponho chamar de
racismo literário.

A poesia de Carlos de Assumpção se faz libelo, e caminha pari passu


à insubordinação. E o primeiro gesto transgressivo se dá na manufatura da
linguagem, causa estranhamento e “rumor de língua”. Desterritorializa as
relações entre significante e significado, provoca o olhar para o inédito, no
novo. A linguagem poética é neofílica; é “conhecimento”, quer Paz (2012),
mas de um conhecimento autêntico, aquele que emerge da experiência

292
intuída, e que não se limita a fazer reconhecer – o que seria o automatismo
da imagem e da percepção -, mas o conhecer – um olhar criado, posto que
poesia é poien – criação. A poesia é o que transcende como modo de ver,
sentir, intuir, sofrer, que passa pela emoção, pela escavação das vivências
íntimas transfiguradas em linguagem. Não é uma emoção periférica e
superficial, mas que mobiliza elementos da sensibilidade, dos afetos, dos
traumas – históricos, individuais, coletivos, que se relacionam à experiência
da filiação, do abandono, da fome, da luta de classes, do erotismo, da
sexualidade, da forma de encarar e encarnar o mundo e de se reconhecer
lançado ao mundo e às contingências históricas. A poesia assume-se como
um território de “conhecimento, salvação, poder, abandono”. (PAZ, 2012, p;
12).

A poesia elegíaca arvora-se como interrogação sobre o tempo, a


experiência subjetiva e sua finitude, o luto, a perda, o exílio, as catástrofes da
História coletiva e da história individual, recorrendo, de forma visceral, a um
discurso evocativo e memorialista (CAMACHO, 1968, p. 130; REBELO, 1997, p.
245). A memória, portanto, em sentido amplo, cria um élan entre poesia e
imaginário individual e coletivo, sempre em devir, e de forma dialógica, na
constituição das identidades, das subjetividades, da cosmovisão do mundo,
do agenciamento dos afetos, que, na lírica de Carlos de Assumpção
corresponde a uma elegia da ancestralidade. A ancestralidade que
reverbera da poesia de Assumpção aponta para o que Oliveira (2012)
considera como “uma categoria analítica que contribui para a produção de
sentidos e para a experiência ética” (p.30). Tomada em seu sentido
antropológico – e poético, considerando-se a literatura como um discurso
social - a ancestralidade ressemantiza o imaginário, e põe a nu uma ideia de
herança cuja transmissão a converte em memória social de uma
“afrocentricidade”, nas palavras de Asante (2009, p. 39).

293
Toda alteridade é antes uma relação, pois não se conjuga alteridade
no singular. O Outro é sempre alguém com o qual me confronto ou
estabeleço contato” (OLIVEIRA, 2001, p.257). Nesse sentido, ainda segundo
Oliveira (2001), a ancestralidade é um território sobre o qual se dão as trocas
de experiências: sígnicas, materiais, linguísticas, entre outras. O fundamento
dessa sociabilidade é a ética, daí a ancestralidade ser também uma
categoria de inclusão “porque ela, por definição, é receptadora. Fruto do agora,
a ancestralidade ressignifica o tempo do ontem. Experiência do passado ela
atualiza o presente e desdenha do futuro, pois não há futuro no mundo da
experiência” (OLIVEIRA, 2001, p. 255).

A literatura negra, especialmente, a poesia, ecoa um imaginário


repertoriado de elementos culturais, de rastros linguísticos e da evocação do
sagrado sincrético, de símbolos e arquétipos, formando um amálgama-eco
de discursos e dicção poética e política de resistência e (re)existência. A
poesia negra, como lugar de fala, portanto, engendra o gesto poético e
histórico de permanente elaboração dos matizes organizadores de memória
social e coletiva de seus poetas negros e negras. Aventamos pôr em
evidencia algumas dessas marcas na lírica de Carlos de Assumpção, tomada
como representativa da poesia negro-brasileira contemporânea,
considerando o tom elegíaco que ela enforma, ao nutrir-se da memória e da
ancestralidade, bem como reconhecer nessa poesia aquilo que ela
comunga de poeticidade.

2 POEGRITOS DE CARLOS DE ASSUMPÇÃO

Carlos de Assumpção é autor profícuo, tendo escrito Protesto: poemas


(1982), Quilombo (2000), Tambores da noite (2009), Protesto e Outros Poemas
(2015), Poemas Escolhidos (2017) e, mais recentemente, Não pararei de gritar,

294
em 2020, que reúne esses cinco livros, acrescentando nove poemas inéditos,
escritos entre 2018 e 2019, além de diversas antologias. Tomada em seu
mosaico temático, sobretudo em torno da ancestralidade afro-brasileira e
pela consciência do fazer poético que enforma o legado milenar da
oralidade e uma estética negra, a lírica de Assumpção vem sendo
considerada, ao lado da obra de Carolina Maria de Jesus, uma precursora
do slam contemporâneo, como aponta Pucheu (2020, p. 171), em posfácio
à obra. Pucheu (2020, p. 159) lembra que Carlos de Assumpção estreia na
cena literária brasileira com o poema “Protesto”, recitado pela primeira vez
na Associação Cultural do Negro, em São Paulo, em 1956, ocasião em que
trava amizade com outros nomes expressivos da poesia negra brasileira,
como Solano Trindade, Oswaldo de Camargo, Eduardo de Oliveira, Aristides
Barbosa, Abdias do Nascimento, entre outros intelectuais negros. Dois anos
depois, o poema é publicado em Cadernos de Cultura da ACN. Desde
então, comenta o crítico, o poema de Carlos de Assumpção foi
reiteradamente recitado e ganha o reconhecimento dos movimentos negros.
Para Pucheu, a poesia de Carlos de Assumpção se afina “ao que havia de
mais significativo na formulação de um pensamento de poetas e teóricos
negros sobre questões raciais, passando pelo renascimento negro, pelo
negrismo cubano e pela negritude” (2020, p. 159).

Comumente, a crítica de poesia brasileira permaneceu muito tempo


surda aos gritos dessa lírica de expressão negra, quando não caiu na falta
de sensibilidade que culminou no escamoteamento que se poderia designar
de racismo literário. Proponho essa expressão, a meu ver mais precisa e
acurada, quando se trata da exclusão da literatura de minorias étnico-raciais
no chamado cânone literário, a partir de duas proposições: a primeira, de
Oliveira (2012), segundo a qual o racismo é, por assim dizer, “um regime de signos
que sobrecodifica todos os outros de seu sistema e remete a uma atitude contra o

295
negro e a negra, ainda que a justificativa possa parecer “plausível”, “ética” ou
“científica” (p.36). Nessa perspectiva, sobrecodificar é uma das estratégicas

do cânone, na medida em que, como aponta Bonnici (2007), ele está


“intimamente ligado à educação, classe, raça, etnia, colonização,
economia, diferença sexual e de gênero” (p.38), implicando, portanto, uma
fabricação que incide sobre o valor literário, que, como apontou
Compagnon (2010, p. 222), está indissoluvelmente ligado à questão do
cânone, e de sua autoridade na manutenção da literatura como patrimônio
e memória coletiva.

A segunda proposição, a tomamos de Almeida (2019), em face do que


o teórico designa de racismo institucional. Almeida lembra que é no interior
das formas institucionais do Estado que os indivíduos são considerados como
sujeitos, posto que suas ações, desejos, comportamentos são administrados
e valorados por um conjunto de significados convencionalizados pelas
instituições. São elas que regem os sentidos, os ritos, as valorações das formas
sociais. O cânone literário, assim como os espaços que o reverberam, como
a universidade, a escola, o livro didático, os meios de comunicação, figura-
se uma instituição de peso. Almeida (2018) afirma, nessa direção que “a
existência de racismo estrutural é que os conflitos também são parte das instituições.
(p.30, grifos do autor).

3 UM LIVRO PARA O EXERCÍCIO DE PROTESTAR

Um breve panorama da obra Não pararei de gritar (2020),


considerando-se que ela reúne os cinco livros do autor e um conjunto de
nove poemas inéditos, e o elenco de alguns poemas nucleares pode ser
rentável para se evidenciar as linhas de força temática da poesia de Carlos
de Assumpção. O primeiro livro, Protesto, foi redefinido, compõe-se de vinte

296
e seis poemas, incluindo o poema-título homônimo, “Protesto”. Desse
conjunto, um total de dez poemas explicitam uma dicção poética que
reivindica uma consciência identitária e um sentimento de negritude, através
de dois paradigmas intercambiáveis: a memória e a ancestralidade. Nessa
perspectiva, destacam-se os poemas “Tambor I”, “Tambor II”, “Meu
quilombo”, “Fênix”, “Poema verídico” e “Eclipse”, que passo em revista
doravante.

Os poemas “Tambor” e “Tambor II” corroboram essa intencionalidade


poética, destacando-se pela densidade e variedade de procedimentos que
se colocam como um eco dos vários processos que podem ser ouvidos em
outros poemas da obra:

Tambor
Dá asas a nosso grito contido há séculos
Grita
Nada de pequenos lamentos inúteis
Nada de pranto
Grita tambor
Grita
Estamos do lado de fora
Com as mãos vazias e as portas fechadas
Com chaves de desamor
Grita tambor
Grita
Temos sede de vida e estamos cansados de tanta dor (ASSUMPÇÃO,
2020, p. 11)

Nota-se um investimento na construção descritiva, composta por duas


dimensões descritivas imagéticas, uma visual e outra sonora, ambas
concentradas na figura do tambor. O ritmo do poema é construído, em parte,

297
pela presença de figuras de harmonia, como a assonância, reiterada em an,
on, am, em, bem como pela aliteração produzida pelo fonema t.
Considerando-se a relação de sentidos promovida pelo eixo paradigma-
sintagma, tem-se que o lexema tambor produz uma metáfora de liberdade
e resistência em “dá asas ao nosso grito” (v.2); e cria, simultaneamente, uma
personificação e uma sinédoque em “grita” (v. 3,6, 7,12, 14 – o verbo
comparece 31 vezes, ao longo do livro), como uma fusão entre sujeito e
objeto, em que a escuta do eu poemático ecoa uma memória localizável
no imaginário intertextual e histórico.

A imagem e o registro valorativo que gera poeticidade ao objeto de


culto e resistência reaparece em “Tambor II”:

Tambor
são inúteis nossos gritos
silêncio
tambor
neste mundo branco
somos considerados incômodas
manchas negras
apenas
silêncio
tambor de nostalgia
tambor de angústia
tambor de desesperança
silêncio
tambor
ninguém compreende nossa mensagem de dor (ASSUMPÇÃO, 2020,
p. 28).

298
A verve militante de sua poesia atualiza a luta ancestral e se faz libelo
contra o preconceito étnico-racial tão indelevelmente enraizado na cultura
brasileira, bem como pela afirmação de uma memória elegíaca como
reverbera em “Meu quilombo’:

Não acredito em ninguém


Não jogo de ponta-direita
Não jogo de ponta-esquerda
Não jogo de centroavante
Não vou jogar contra mim mesmo
Não me interessam tais posições

Sou apenas um homem


Lutando em seu quilombo de palavras
Apenas um homem
Tentando interpretar anseios e esperanças
De todo um povo desprezado explorado
Que um dia há de se levantar (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 15).

De caráter metapoético, “Meu quilombo”, revela um sujeito que se


assume como poeta negro. E a poesia se mostra libelo contra as injustiças
sociais e a exploração do sistema neoliberal. O símbolo do quilombo,
considerando-se seus aspectos poemáticos que figurativizam o tom elegíaco
das imagens da ancestralidade negra e as referências à uma militância, com
toda sua verve contra o racismo e a favor da afirmação de um discurso de
negritude e uma intencional postura de resistência pela memória.

No mesmo tom de revide histórico, o poema “Fênix” opera, já na


disposição em que se apresenta disposto na página, em três marcos
temporais que encenam a voz do sujeito: o presente da enunciação lírica, o

299
passado, com sua imagem de destruição e silenciamento (corporal, histórico,
estético) e, finalmente, o futuro, com a ênfase no posicionamento político e
poético matizado de expectativas diante de um possível revisionismo.

Riram de nossos valores


Apagaram os nossos sonhos
Pisaram a nossa dignidade
Sufocaram a nossa voz
Nos transformaram em uma ilha
Cercada de mentiras por todos os lados
Nos dividiram
Nos puseram à margem de tudo

Irmãos

Precisamos reconstruir a nossa vida


Precisamos conquistar nosso lugar
Na cada que um dia nós edificamos
E onde não conseguimos entrar
Precisamos reacender os nossos sonhos
Precisamos levantar a nossa voz
Precisamos derrubar
A muralha de rocha e cal
Que ergueram em torno de nós. (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 19).

No longo “Poema verídico”, aqui recortado, literatura e memória


relacionam-se visceralmente como instâncias que interrogam o tempo, a
experiência, a realidade, a imaginação, em um jogo complexo e dialógico
em que o grito reivindica o estatuto de recurso comunicante da verdade,
numa mescla de passado arcaico e histórico, sob a dicção do subalterno,

300
do “indivíduo vocal”, que pode falar, e que operam como “investigação das
nostálgicas raízes perdidas”, de que trata Spivak (2010, p.45;61):

Em rostos de cal
Olhos impassíveis
Frios como punhais
À minha frente me dizem não

Se eu gritasse se eu gritasse
Se eu gritasse que os meus ais
Se eu gritasse que o meu pranto
Se eu gritasse que o meu sangue
As marcas do meu trabalho
Meu amor incomparável
Estão em todas as partes
Em toda argamassa da pátria
Que adiantaria gritar
[...] (ASSUMPÇÃO, 2020, p.26)

Notem-se, mais uma vez, a falta e a negatividade em “olhos


impassíveis”, no sentido de ausência de paixão, de força; e o uso anafórico
da condicional hipotética, marca, ao mesmo tempo, o desejo do eu lírico,
em “se eu gritasse”. Assim, o eu poético elabora uma “consciência-
insurgente” (SPIVAK, 2010, p.65) sobre a inscrição de sua identidade étnica,
e põe em relevo o grito – metáfora do trabalho poético – como forma de
agenciamento individual e coletivo. Nos versos acima, fica nítida uma dupla
condição excludente sobre a poesia: primeiramente, o fato de que, como
prossegue Bosi (2000), em seu argumento, “essas formas estranhas pelas quais
o poético sobrevive em um meio hostil ou surdo não constituem o ser da
poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior

301
do processo capitalista” (p. 165). Em segundo lugar, a poesia se apresenta,
paradoxalmente, como resistência de muitas faces, uma delas, como
revolução e utopia, não sem um tom nostálgico e crítico, uma vez que “o
desespero dos poetas advinha de não poderem eles realizar seu sonho de fazer-se
entender de todos, encontrar um eco no coração de todos os homens. (BOSI, 2000,
p. 168).

Dessa forma, é tragicamente sintomático que a poesia de Carlos de


Assumpção, a despeito de sua longa trajetória e reconhecimento no exterior,
tenha somente agora conseguido adentrar ao círculo editorial de relevo, o
que, possivelmente, contribuirá para sua reverberação, e isso se deve
sobretudo à intermediação de um outro poeta e crítico já reconhecido. Em
todo caso, analisada em dimensão de enunciação, a lírica de Assumpção
alcança aquele estatuto de resistência da poesia moderna, em face “à falsa
ordem, que é, a rigor, barbárie e caos [...]. Resiste ao contínuo e “harmonioso”
pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo
harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste
imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte a utopia”. (BOSI,
2000, p. 169).

A memória, portanto, faz-se um tema recorrente na obra de


Assumpção. Como propõe Le Goff (2003), o conceito de memória é crucial
por sua relevância singular e incontornável nas formas de organização e
agenciamento das representações que os sujeitos elaboram do passado, na
imbricação entre as suas manifestações individual e coletiva. O estudo da
memória evoca, segundo o historiador francês, formas metafóricas ou
concretas, bem como traços e problemáticas da memória histórica e da
memória social. Na lírica de Assumpção, tais elaborações desvelam de
forma caleidoscópica, sentidos advindos da relação interdependente entre
memória individual e memória coletiva, eclipsadas historicamente. Em

302
“Eclipse”, uma vez mais, o eu lírico, aciona, pela via do imaginário,
“textualidades rejeitadas”, para lembrar a concepção de Pereira (2017),
“ausente dos espaços literários legitimados, ao mesmo tempo em que insinua
sua presença em potencial, e “que descrevem seus percursos, revelando,
por um lado, o receio de seus sujeitos ante a perspectiva da exclusão social
[...]” (p.24;35):

Olho no espelho
E não me vejo
Não sou eu
Quem lá está

Senhores
Onde estão os meus tambores
Onde estão meus orixás
Onde Olorum
Onde o meu modo de viver
Onde as minhas asas negras e belas
Com que costuma voar
[...] (ASSUMPÇÃO, 2020, p. 30).

A metáfora do eclipse comparece como signo de falta – marca, aliás,


recorrente na lírica de Assumpção. O uso insistente do recurso anafórico
reforça toda uma cadeia de sentidos em torno da negatividade: “não me
vejo”, Quem está lá”, “Onde estão os meus tambores”, “Onde estão meus
orixás”, “Onde Olorum”, e outros versos. Em tudo, a memória da lírica de
Assumpção constitui-se na faculdade formar uma consciência da
identidade enraizada, coletiva e individualmente, reverberando no tempo
(ASSMANN, 2008). A identidade, propõe Cuti (2010), “também se faz pela via
de um lirismo voltado para a exaltação do negro como fator de afetividade”

303
(p.40). O tom elegíaco, portanto, funda as relações intersubjetivas, na
medida em que metaforiza as marcas doridas da ancestralidade. Por outro
lado, também se projetam para uma perspectiva de futuro, segundo Cuti
(2010), uma vez que a identidade negro-brasileira “opera para deixar de ser o
que foi forçada a ser para tornar-se uma dimensão liberada, um território
conquistado no campo da cultura e do imaginário nacional” (p.43).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na lírica de Assumpção, esse “ímpeto renovador” nasce da tensão


provada entre o universo subjetivo, em todos seus múltiplos matizes, mas que
deixa entrever um amálgama cultura, afro-negro-brasileiro, e as forças
hegemônicas da ideologia do vimos chamando, na esteira da ideia de
racismo estrutural, de racismo literários. E essa tensão é a matriz de uma
poesia de resistência marcada pela evocação de imagens da
ancestralidade e do passado histórico. Como ancestralidade, podemos
tomar a viagem a um tempo mítico, em que predominam a simbologia e os
valores cosmogônicos (daí o campo lexical reiteradas vezes apresentar o
panteão sagrado dos orixás), além dos registros de filiação e irmandade. Na
perspectiva do registro histórico, destacam-se as referências e alusões à
escravidão e suas implicações de exclusão econômica e social.

Nesse breve espaço, procuramos apenas delinear algumas das


marcas poéticas e sociais dessa poesia que reivindica um trabalho de mais
fôlego, e que sobretudo se atenha ao fato de se tratar de uma obra, seja
tomada em seu todo, seja analisada livro a livro, que opera como
testemunho negro, simultaneamente pessoal e coletivamente histórico. Dela
reverberam gritos sobre a violência real e simbólica que tanto permeou a sua

304
exclusão, quanto matizou de enunciação lírica uma postura de resistência
contra o negrocídio brasileiro.

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BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências.


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305
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http://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/1894/1532. Acesso
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306
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida
[et al]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

307
OS NÍVEIS INTERNOS DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM ANÚNCIOS
PUBLICITÁRIOS

Thalia Cristina Serafim de Campos 1


Vanessa Aparecida Duarte Almeida 2
Vera Maria Ramos Pinto 3

RESUMO: Sabemos que toda língua é viva, está em constante variação e mudança, que
tem relação com o tempo e o espaço e seu uso depende das pessoas que a falam, como
do contexto em que é utilizada. Segundo Bagno (2007, p.117), “a língua é viva, dinâmica,
está em constante movimento – toda língua viva é uma língua em decomposição, em
permanente transformação”. Isso posto, existem muitos modos de falar uma língua, porque
toda língua é um conjunto de variedades. Neste artigo, vinculado ao projeto do Grupo de
Pesquisa Leitura e Ensino, do Centro de Letras, Comunicação e Artes, da Universidade
Estadual do Norte do Paraná, campus Jacarezinho (UENP/CJ): Gêneros discursivos/textuais,
gramática, variação e ensino temos como objetivo apresentar pesquisa sobre estudo dos
pressupostos teóricos da Sociolinguística Variacionista e sobre variantes linguísticas usadas
em mensagens publicitárias, a fim de identificar e analisar os níveis internos de variação:
fonológico, morfológico, sintático, léxico- semântico e discursivo e os seus efeitos de sentido.
Pretendemos com esse trabalho, contribuir para estudo e reflexão sobre a importância da
abordagem da variação linguística nas aulas de Língua Portuguesa. O referencial teórico
que embasa essa pesquisa é pautado em autores como: Labov ([1972] 2008); Bagno (2007);
Bortoni – Ricardo (2004, 2005); Faraco (2008) Coelho et al (2010) e em estudiosos de anúncios
publicitários: Carvalho (1997); Sandmann (1997), Gonzales (2003, 2004); dentre outros.

Palavras –chave: Língua Portuguesa; Variação Linguística; Níveis interno de variação;


Anúncio publicitário

INTRODUÇÃO

À escola cabe o importante papel no processo de ensino e


aprendizagem de Língua Portuguesa (LP). Com isso, temos a escola como o
ambiente educacional, que proporciona este conhecimento, pois são
nessas aulas de LP que as atividades de falar, ler e escrever, como praticas
educativas do uso da língua, devem ser objeto de reflexão.

Conforme as Diretrizes Curricular de Ensino (DCE) do Estado do Paraná


(2008, p.53),

308
É na escola que um imenso contingente de alunos que frequentam
as redes públicas de ensino tem a oportunidade de acesso à norma
culta da língua, ao conhecimento social e historicamente construído
e à instrumentalização que favoreça sua inserção social e exercício
da cidadania. Contudo, a escola não pode trabalhar só com a
norma padrão culta, porque não seria democrática, seria a-histórica
e elitista”.

Ao encontro das proposições de ensino de LP das DCES (2008), temos


a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017, p.67), em que
se lê:

[...] ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar


aos estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos
letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e
crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela
oralidade, pela escrita e por outras linguagens”, considerando, assim,
a relevância de o estudante, no espaço escolar, conhecer e
valorizar as realidades nacionais e internacionais da diversidade
linguística brasileira e analisar diferentes situações e atitudes
humanas implicadas nos usos linguísticos, como o preconceito
linguístico.

Para tanto, as aulas de Língua Portuguesa devem contemplar todos os


eixos de ensino: leitura, escrita, oralidade, gramática, análise linguística e a
semiótica, proporcionando aos alunos o conhecimento da língua na
modalidade padrão e também o conhecimento das variedades da língua
em uso, sejam elas estigmatizadas ou não. Entretanto sabemos o quanto as
aulas de Língua Portuguesa ainda fogem às propostas de abordagem da
variação linguística, das diversas formas de falar a língua, decorrente da
diversidade linguística brasileira, de fatores internos e externos à língua.

Diante disso, levando em consideração as proposições de trabalho


com as variedades linguísticas do Português Brasileiro (PB), publicadas nos
documentos de ensino mencionados, DCE (2008) e BNCC(2017), neste
projeto de pesquisa, escolhemos o gênero anúncio publicitário para estudar
as variantes linguísticas usadas em mensagens publicitárias, analisando os

309
níveis internos de variação, fonológico, sintático, léxico- semântico e
discursivo, e seus efeitos de sentido.

A escolha do gênero anúncio publicitário é devido a ser um gênero de


circulação real, muito próximo da oralidade, e faz parte do cotidiano dos
alunos, além de ser um gênero de texto multimodal e multissemiótico, que
atende à proposta de trabalho com gêneros da BNCC (2017, p.81)

[...] a análise de textos multissemióticos levará em conta as formas


de composição e estilo de cada uma das linguagens que os
integram, tais como plano/ângulo/lado, figura/fundo, profundidade
e foco, cor e intensidade nas imagens visuais estáticas, acrescendo,
nas imagens dinâmicas e performances, as características de
montagem, ritmo, tipo de movimento, duração, distribuição no
espaço, sincronização com outras linguagens, complementaridade
e interferência etc. [...] os conhecimentos grafofônicos, ortográficos,
lexicais, morfológicos, sintáticos, textuais, discursivos, sociolinguísticos
e semióticos presentes nesses textos, oportunizam a leitura/escuta e
situações de reflexão sobre a língua e as linguagens de uma forma
geral, em que essas descrições, conceitos e regras operam e nas
quais serão concomitantemente construídos: comparação entre
definições que permitam observar diferenças de recortes e ênfases
na formulação de conceitos e regras; comparação de diferentes
formas de dizer “a mesma coisa” e análise dos efeitos de sentido que
essas formas podem trazer/ suscitar; exploração dos modos de
significar dos diferentes sistemas semióticos etc.

Sendo assim, neste artigo, temos como objetivos apresentar estudo


sobre os pressupostos teóricos da Sociolinguística Variacionista (LABOV [1972]
2008), investigar a variação linguística nos níveis internos de variação:
fonológico, morfológico, sintático, lexical, semântico e discursivo em
anúncios publicitários, a fim de analisar o uso dessas variantes linguísticas nas
mensagens publicitárias e a sua significação.

Com este trabalho de pesquisa, pretendemos contribuir para estudo e


reflexão sobre a importância do trabalho com a variação linguística nas
aulas de Língua Portuguesa, comprovando que muitos dos fenômenos

310
linguísticos em variação, presentes na linguagem publicitária, ocorrem tanto
na fala de pessoas que fazem uso da norma culta, como os que fazem uso
da forma popular (Bagno, 2007). Assim, é relevante conhecer esses
fenômenos, a fim de entender os seus efeitos de sentido.

1 METODOLOGIA

O procedimento metodológico usado nesta pesquisa é de natureza


qualitativa. Para a realização do nosso estudo, fizemos pesquisa
bibliográfica, com embasamento teórico em estudiosos da Sociolinguística
Variacionista como: Labov ([1972] 2008); Bagno (2007, 2012); Bortoni –
Ricardo (2004, 2005); Carvalho (1997); Castilho (1998), Faraco
(2008);Gonzales (2003, 2004); dentre outros.

O corpus para identificação e análise das variantes linguística é


composto de anúncios publicitários de revistas de várias décadas, do século
passado e desse século, extraídos de sites como o Propaganda em revistas,
considerado um dos maiores acervos digitais de propagandas em revistas e
o Propagandas históricas:

https://www.propagandasemrevistas.com.br.desafiodocodigo.com.br/;
https://www.propagandashistoricas.com.br/.

O período da coleta dos anúncos publicitários e da investigação dos


dados aconteceu de janeiro de 2020 a abril de 2021.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A língua portuguesa sempre foi estigmatizada devido às suas


especificidades e seu conjunto de regras, no entanto, os estudos voltados à

311
Sociolinguística vêm quebrando esses paradigmas e mostrando a língua sob
a óptica social.

Segundo Bagno, (2008, p.51):

Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma


gramatical literária de Portugal, as regras que aprendemos na escola
em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e
escrevemos no Brasil. Por isso, achamos que ‘Português é uma língua
difícil’: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não
significam nada para nós.

Diante dessa assertiva do autor, nas aulas de Língua Portuguesa, é


necessário identificar e valorizar o conhecimento que o aluno possui e traz
consigo, e procurar acrescentar saberes e não o estigmatizar por suas
variantes, pois [...] “ todo falante nativo sabe sua própria língua, e saber sua
língua significa conseguir interagir naturalmente com as pessoas em sua volta”
(BAGNO, 2008, pag. 51).

A literatura sociolinguística mostra-nos, então, que a língua, por ser


heterogênea, manifesta-se de modo variável dentro de uma mesma
comunidade de fala, pois as pessoas com características diferentes,
expressam-se também de maneiras diferentes. Desse modo, em um mesmo
idioma, encontramos a variação linguística, ou seja, várias formas de falar a
língua, possibilitando que “[...] duas ou mais variantes se alternem de acordo
com fatores internos (linguísticos) e fatores externos (extralinguístico) que
motivam ou restringem a variação” (COELHO et al, 2010, p.47).

Como nosso espaço é exíguo, vamos nos limitar a apenas citar os


fatores externos que contribuem para que a variação linguística aconteça,
sem caracterizá-los, atendo-nos aos níveis internos de variação, foco da
nossa pesquisa. São eles: a origem geográfica, o status socioeconômico,
grau de escolarização, idade, sexo, mercado de trabalho e redes sociais.

312
Desse modo, a variação linguística é condicionada tanto por fatores
externos quanto internos e pode levar à mudança linguística.

3 OS NÍVEIS INTERNOS DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

Neste tópico, abordamos os níveis internos da variação linguística, o


fonológico, morfológico, sintático, semântico, lexical e discursivo, segundo Coelho
et al (2010).

O nível fonológico diz respeito aos fonemas, ou a sonoridade da língua, o que


nos possibilita diferenciar “CARECA” de “CANECA”, por exemplo. A Fonologia é
responsável por distinguir fonemas surdos e sonoros, fricativos e sibilantes, bilabiais,
plosivos e todos os diferentes sons da nossa língua. Há condições incorporadas nesse
nível denominadas metaplasmos.

Para Coutinho (1976, p.142): “Os metaplasmos são modificações fonéticas


que as palavras sofreram durante a sua evolução, do Latim para o Português; e
essas alterações, são apenas fonéticas, conservando, as palavras, a mesma
significação. ”

Os metaplasmos estão divididos:

Por aumento: são os que adicionam fonemas à palavra. Pertencem a essa


classe: Prótese, Epêntese, Paragoge ou Epítese.

Prótese é o acréscimo de uma fonema no início da palavra. Ex: “marrom” >


“amarrom”.

Epêntese – é o acréscimo de um fonema no meio da palavra. Ex: “vocês” >


“voceis”.

Paragoge- é o acréscimo de um fonema no final da palavra. Ex: “chope” >


“chopes”.

Por subtração: São os que retiram ou diminuem fonemas à palavra. São eles:

313
aférese, síncope, apócope, crase.

Aférese - Perda de um fonema no início. Ex: “abacaxi” > “-bacaxi”.

Síncope - Perda de um fonema no meio. Ex. “mesmo” > “me-mo”.

Apócope - Perda de um fonema no fim. Ex: “brincar” > “brinca”.

Crase - Fusão de duas vogais. Ex: “Coordenação” > “c-ordenação”.

Por transposição: São os que consistem na deslocação de fonema ou de


acento tônico da palavra. São eles: metátese, hipértese, sístole, diástole.

Metátese - Transposição de um fonema na mesma sílaba. Ex: “ferver” >


“freve”.

Hipértese - Transposição de um fonema para outra sílaba. Ex: “lagarto” >


“largato”.

Sístole - Recuo do acento tônico para sílabas anteriores. Ex. “recorde” >
“récorde”.

Diástole - Avanço do acento tônico para as próximas sílabas. Ex: “monólito”


> “monolito”.

Por transformação: eles ocorrem quando um fonema de um vocábulo se


transforma, passando a ser outro fonema distinto em lugar do primeiro. Pertencem
a essa classe: rotacismo, ditongação, monotongação, despalatização,
desnalização, apenas para citar alguns.

Rotacismo - Substituição do fonema [l] pelo [r]. Ex. “alface” > “arface”.

Ditongação - Transformação de um hiato ou vogal a ditongo. Ex. “nós” >


“nóis”.

Monotongação - Transformação de um ditongo em uma vogal. Ex. “peixe” >


“pexe”.

Despalatização - Redução de uma palatal. Ex. “vermelho” > “vermeio”.

Desnasalização - Transformação de um fonema nasal para oral. Ex. “homem”


> “ home”

314
Por fim, todos esses metaplasmos nos ajudam a explicar a variação e
mudanças fonéticas que se processaram do latim ao português, ou ainda estão
atualmente em processo de mudança.

No que diz respeito ao nível morfológico, esse nível remete às


alterações que ocorrem no morfema da palavra. Em definição, o termo
“morfema”, quer dizer unidade mínima de significado, ou, em outras palavras,
é um ajuntamento de fonemas que em conjunto possuem um valor
significativo para entendimento da palavra.

Assim sendo, a variação morfológica está relacionada ao estudo da


palavra, é a nossa capacidade de analisar a função, estrutura, flexão,
processos de formação e classificação das palavras. É o que nos permite,
por exemplo, alterar o sentido das palavras felicidade e infelicidade dentro
do conceito prefixos e sufixos.

Há também a possibilidade de ocorrer interface, ou melhor dizendo,


junção entre o nível morfológico com outros níveis de variação. “Quando há
junção da variação morfológica com a fonológica, resultará na variação
morfofonológica” (COELHO et al, 2010, p. 58).

1) comprá (por ‘comprar’), crescê (por ‘crescer’), saí (por ‘sair’).

Em (1), temos a supressão de –r, marca de infinitivo dos verbos. Trata-


se, pois, de um morfema verbal. Nesse caso, temos claramente a falta do
morfema de infinitivo nas realizações “comprá”, “crescê” e “saí”. Podemos
concluir que há uma coincidência: –r é um fonema e também representa
um morfema nesses dados.Quando há junção da variação morfológica com
a sintática, resultará na variação morfossintática. Como exemplo:

2) Os menino charmoso (por ‘os meninos charmosos’).

315
Em (2), a marca de plural, o fonema /s/, é apagado no sujeito e
adjetivo, permanecendo somente no artigo. Assim, há quebra do morfema
representativo de plural, e quebra na estrutura da ideia de pluralidade, que
impõe inserir a marca do plural em todos os termos da frase. Contudo, há
dois casos de variação morfológica sem interface. São eles: “tu” e “você”;
“nós” e “a gente”. Nesses casos há uma drástica mudança no morfema, mas
continuam contendo o mesmo sentido (COELHO et al, 2010, p.58).

Já o nível sintático tem a ver com "Sintaxe" e sintaxe nada mais é que
o estudo das frases, como elas são construídas e capazes de expressar
sentido específico do que se deseja dizer. Alguns fenômenos que estão em
variação são:

Construções relativas; posição do clítico em relação ao verbo;


construções passivas X índice de indeterminação. Como exemplo, vejamos:

1- "João apelidou-a de Juju” / “João apelidou ela de Juju''. Nesse caso


específico ocorre o uso do pronome pessoal como objeto verbal.

2- “Eu vi-o na escola / Eu o vi na escola. Nesse exemplo ocorre a transição


da próclise (pronome antes do verbo) pela ênclise (pronome após o verbo).
Mesmo sendo muito comum ouvirmos e dizermos “eu o vi na escola” ou até
mesmo “eu vi ele na escola”, pelo olhar da gramática normativa a estrutura
“eu vi-o na escola” é correta e mais bem vista.

O nível lexical diz respeito ao vocabulário (léxico). Segundo Coelho


(2010, p.52) é realidade linguística sendo apresentada de acordo com a
região, por palavras diferentes. Como exemplo:

- Pão: (Cacetinho, RS); (Carioquinha, CE); (Carcaça ou Cacete, Portugal);


(Pão de sal, RJ); entre outros.

- Mandioca: (Aipim ou Macaxeira, norte e nordeste).

316
-Pandorga (RS), papagaio, pipa (nas outras regiões do país).

Coelho et al (2010, p.52) afirma ainda que “ [...] é certo que, quando se
fala em variação linguística, os exemplos que costumam vir primeiro à mente
dizem respeito ao vocabulário (léxico), quase sempre associados à variação
regional ou diatópica”, conforme os exemplos que citados acima.

Desse modo, vale ressaltarmos que, na classificação dos dialetos em


geral, os aspectos lexicais “são menos sistematizáveis do que os fonético-
fonológicos, morfológicos ou sintáticos, visto que esses últimos são
condicionados por fatores internos, além dos externos, enquanto os lexicais
estão intimamente ligados a fatores extralinguísticos, de caráter cultural,
sobretudo etnográficos e históricos (COELHO et al, 2010, p.52).

O nível semântico está relacionado com a variação de significados que


uma mesma palavra pode ter. Por exemplo, a palavra “camisola” em
Portugal é uma peça de vestuário que se usa no lugar da camisa para uso
do dia a dia; já no Brasil também é vestuário, porém uma peça íntima, roupa
feminina para dormir. Vejamos mais exemplos:

- Natureza: seres que constituem o universo, temperamento, espécie,


qualidade

-Nota: anotação, breve comunicação escrita, comunicação escrita e oficial


do governo, cédula, som musical, atenção.

Também temos um caso de interface, a junção do nível Semântico


com o Lexical, resultando na variação Léxico-Semântico. Para que
exemplificar, vamos usar como oposição países com o mesmo idioma:
Brasil/Portugal.

- Em Portugal “trem” é “comboio”; No Brasil “comboio”, segundo o


dicionário Houaiss (2009), refere-se a um conjunto organizado de veículos de
transporte sob a guarda de uma escolta.

317
Por fim, o nível discursivo pode ser expandido para além da frase, mas
também porções textuais ou discursivas maiores. Dados interessantes são
encontrados na função de encadear trechos discursivos, desempenhando o
papel de conectores. É importante ressaltar que os conectores são qualquer
elemento linguístico usado para relacionar orações, períodos e mesmo
parágrafos temáticos.

Pode ser uma conjunção (e, mas, porque, portanto etc.), uma
expressão de natureza adverbial (assim, afinal, finalmente, daí,
consequentemente, quanto a, por outro lado etc.), marcadores discursivos
(aí, então, quer dizer, digamos assim), entre outros. Vejamos alguns exemplos
de variações discursivas: - Ex: “e”, “aí”, “tipo assim”, “né”, “daí”, entre outros.
Esses são alguns fenômenos variáveis na dimensão textual/discursiva tendo
função de coordenação em relação de continuidade e ‘consonância’,
estabelecendo coesão entre uma informação precedente e outra
subsequente.

Ainda, Coelho et al (2010, p.68) ponderam que “existem ainda


expressões de caráter discursivo, como ‘mas bah!’, ‘pô, cara, aí...’, ‘orra
meu!’, ‘pronto’, que são facilmente associadas a falantes gaúchos, cariocas,
paulistas e nordestinos, respectivamente, constituindo-se em variantes
regionais”.

4 A LINGUAGEM PUBLICITÁRIA

A linguagem da publicidade publicitária possui forte intencionalidade


de provocar sensações no leitor, ou seja, de convencê-lo. Ela não precisa ser
necessariamente escrita, ou seja, esse tipo de discurso utiliza de outras

318
modalidades ou pluralidade de códigos, seja a linguagem escrita, visual e
auditiva, com o objetivo central de conquistar o público.

Já que a intenção maior da linguagem publicitária é persuadir as


pessoas, ela é muito atrativa, ou seja, chama a atenção da população,
envolvendo a linguagem verbal (textos, letras, palavras, frases de efeito) e
não verbal como as fotografias, imagens, desenhos, imagens atrativas e
coloridas, dentre outros.

Os meios mais comuns de encontrarmos a linguagem publicitária é nas


faixas, cartazes, anúncios, outdoors, revistas, dentre outros. Assim, a maioria
das empresas utilizam da linguagem publicitária para difundir determinada
marca, produto ou serviço e aumentar suas vendas (lucro).

De tal modo, para atrair o público, muitas vezes, os anúncios


publicitários, por exemplo, utilizam a linguagem coloquial, ou seja, a
linguagem informal, dinâmica e cotidiana, em detrimento da linguagem
formal ou culta, fazendo uso da variação linguística para maior proximidade
com o público, suposto consumidor dos produtos ofertados, como nas
mensagens dos anúncios apresentados e analisados no tópico a seguir.

5 ANÁLISE DOS NÍVEIS INTERNOS DE VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA PUBLICIDADE

É muito comum, nas mensagens publicitárias, empregar a linguagem


coloquial, que é acessível a todos, visando a atingir a massa, prevalecendo,
assim, nas comunicações impressas e eletrônicas, o estilo informal, e termos
usuais, acessíveis à maioria da população.

A norma popular, urbana e até a rural, é amplamente empregada, isto


é, a linguagem da publicidade muitas vezes foge ao rigor dos puristas, porém,

319
sem transgressões graves à gramática, segundo Gonzales (2004). Neste
tópico, apresentamos a análise da variação linguística, em seus níveis
internos de variação, em anúncios publicitários, coletados em revistas e sites
especializados como https://www.propagandasemrevistas.com.br.

Anúncio 1- Pneus “Bridgestore e Firestone”

Nesse anúncio, encontramos o nível fonológico de variação na palavra “Óia”,


com destaque para o fenômeno da despalatização, transformação do fonema
palatal /lh/; em um oral: /i/. “Óia” = Olha do verbo olhar.

A intencionalidade do anúncio dos pneus Bridgestore e Firestone é


atingir o público dos caminhoneiros e chamar a atenção usando linguagem
típica das festas juninas, um refrão da letra da famosa dança da quadrilha:
“Óia a chuva! Óia a ponte! Óia a pedra no caminho!”

E, no corpo do texto volta a usar a palavra óia em: “E óia que pneus
Bridgestone e Firestone são que nem festa de São João”...

320
Anúncio 2 – Havaianas Top, da Havaianas

Esse anúncio da sandália Havaianas Top, da Havaianas, apresenta


variação em nível morfológico. O enunciado: Sabia que até os nudistas usam?
A gente compreende que você nunca tenha reparado traz o uso da
expressão “ a gente” no lugar do pronome pessoal: 1ª pessoa do plural “nós”.

Anúncio 3 - Cerveja Conti

O anúncio da cerveja Conte explora a regência do verbo ir, usado


coloquialmente, em desacordo com a norma-padrão, uma vez que a
regência do verbo ir é com a preposição a e não com a preposição em. No

321
texto, foi usada a preposição em + o = no, uma variação no nível sintático. Ir
no bar ao invés de ir ao bar.

Anúncio 4 - Cerveja Polar Export

Podemos observar, nesse anúncio da cerveja Polar Export, os níveis


discursivo e morfossintático de variação. A expressão “TCHÊ” é usada pelos
gaúchos ou sulistas do país, a fim de enfatizar algo ou situação, assim é
considerada uma expressão do nível discursivo, pois é verbalizada de
maneira escrita no anúncio publicitário, como é falada nessa região do país.

No nível morfossintático, chamamos a atenção para o uso do


pronome tu e a flexão do verbo nascer: Tu nasceu. Há uma quebra no
morfema que caracteriza o verbo conjugado na 2ª pessoa do singular. Assim,
não há concordância verbal adequada.

O ideal prescrito pela norma-padrão é Tu nascestes. O verbo


concordando com o pronome de 2º pessoa do singular. Desse modo,
encaixa-se no nível morfológico + nível sintático, resultando no nível
morfossintático (COELHO et al, 2010).

322
Anúncio 5 - Cerveja Polar

Esse anúncio da cerveja Polar traz a variação lexical em evidência. A


palavra bagual é muito usada no Rio Grande do Sul, cujo significado no texto
refere-se a algo valente, bravo, forte, indomável.

Anúncio 6 - Guaraná Antártica em Portugal

Neste anúncio do Guaraná Antárctica, veiculado em Portugal,


observamos a variação léxico-semântica na palavra rabinho. Rabinho é
falado em Portugal e se refere à bumbum no Brasil. Rabinho no Brasil tem
outro sentido.

Significado de “rabinho” no dicionário Houaiss (2004): (Subst.) Rabo


muito curto. Último pedaço; parte final; cauda. Traseira, nádegas.

323
6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio das análises até agora empreendidas, observamos que “a


linguagem publicitária é um registro ou variação da língua, que como
modalidade técnica, tem certo grau de formalidade e de adequação à
mensagem a ser expressa”, conforme afirma Martins (1997, p. 33).

Encontramos nas mensagens publicitárias a variação linguística em


todos os níveis da língua: fonológico, morfológico, sintático, lexical,
semântico e discursivo. Para Bagno (2007), o estudo das variações linguísticas
busca encontrar uma relação entre a heterogeneidade linguística com a
heterogeneidade social e ocorrem de forma ordenada e são condicionadas
por diferentes fatores, como os regionais e sociais, presentes nos anúncios
analisados.

O uso de expressões regionais presentes nos anúncios, como os da


cerveja Polar, busca caracterizar a região, a região Sul do nosso país, no
anúncio é o estado do Rio Grande do Sul. Ademais, a linguagem coloquial,
usada nos anúncios, contraria a prescrição gramatical, a exemplo da
regência do verbo ir, no anúncio da cerveja Conti, mas demostra que a
comunicação publicitária explora as diferentes modalidades da língua de
acordo com o seu público-alvo, o contexto da mídia em que será veiculada
e a mensagem a ser transmitida.

Ao utilizar a linguagem regional e o estilo coloquial, os anúncios


ganham um tom informal e se aproximam do seu público. Gonzales, (2004, p.
234), a esse respeito, afirma que “a habilidade em utilizar as diversas
modalidades da língua na comunicação publicitária constitui-se em um
importante recurso persuasivo na criação de anúncios, enriquecendo

324
expressivamente a mensagem publicitária para atingir seu objetivo: chamar
a atenção para vender o produto ou serviço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A publicidade faz uso de inúmeras estratégias para chegar à


persuasão. Uma dessas estratégias é a utilização da variação linguística.

Levando em consideração que os anúncios publicitários fazem parte


da realidade dos alunos e a variação linguística é inerente a toda língua,
encontramos nas mensagens publicitárias exemplos para abordar e elucidar
os níveis internos de variação linguística.

Assim, fenômenos linguísticos característicos dos níveis internos de


variação como os estudados neste artigo: fonológico, morfológico, sintático,
lexical, semântico e discursivo, usados na linguagem coloquial, no Português
Brasileiro (PB), aparecem com frequência na mensagem publicitária, pois
“essas formas de expressão, além de serem mais acessíveis aos consumidores,
tornam o discurso mais informal, simpático e menos autoritário” (GONZALES,
2004, p.233).

O uso das diversas modalidades da língua é uma habilidade da


comunicação publicitária, constituindo-se em um importante recurso
persuasivo na criação de anúncios, enriquecendo expressivamente a
mensagem, contribuindo para chamar a atenção para a venda de um
produto ou serviço.

Portanto, por meio de anúncios publicitários, é possível abordar os níveis


internos de variação em aulas de Língua Portuguesa, sob a perspectiva da
Sociolinguística, com alunos do Ensino Fundamental e Médio, uma vez que
“a intervenção da publicidade na implementação de usos linguísticos, pode,

325
conforme assegura Preti (1977, p.28), “levar o indivíduo a um
condicionamento do próprio pensamento, a uma interpretação da
realidade que o cerca”.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da


variação linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico, o que é, como se faz. São Paulo: Ed.
Loyola, 2008.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em Língua Materna: a


sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: MEC/SEB,2017. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 01 abril. 2021.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática,


1997.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Livraria


Acadêmica, 1974.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São
Paulo: Parábola, 2008.

GONZALES, Lucilene dos Santos. Linguagem publicitária: análise e produção.


São Paulo: Arte e Ciência, 2003.

GONZALES, Lucilene dos Santos. Variação lingüística: um recurso de


persuasão na publicidade. In: Comunicação: veredas. Ano III - nº 03 -
Novembro, 2004.

326
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. 1.ed; 1ª reimpressão com alterações. Rio de Janeiro: Editora
Objetiva, 2009.

LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. Trad.: Marcos Bagno; Marta


Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.

MARTINS, Jorge S. Redação publicitária: teoria e prática. 2.ed. São Paulo:


Atlas, 1997.

PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis da fala; um estudo sociolinguístico do


diálogo na literatura brasileira. 3ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1977.

SANDMANN, Antônio José. A linguagem da propaganda. 2.ed. São Paulo:


Contexto, 1997.

327
DEBATES DA INTERNET: A ACEITAÇÃO DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
REGIONAL NO TWITTER

Lídya Rafaella da Silva Morais 38

RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade apresentar um estudo sobre o impacto
da variação linguística regional na interação ocorrida virtualmente no Twitter a partir da
análise de alguns debates mais comuns que ocorrem nesse ambiente. Na pesquisa,
focalizamos na observação e coleta de postagens sobre duas intensas discussões que
surgiram e alcançaram grandes repercussões durante os meses de maio, junho e julho de
2020, em que o fenômeno da variação linguística regional no campo culinário foi
amplamente questionado e debatido, analisando-as a partir do arcabouço teórico da
sociolinguística variacionista e de autores que abordam esse tema, como Barcellos (2016),
Bagno (2007) e Nobaro (2009). A análise das publicações coletadas revela um discurso
fundamentado em uma concepção de que existe o uso “correto” ou “errado” de
determinadas variações linguísticas, principalmente no campo lexical, na rede social,
baseada no preconceito linguístico. Este estudo, portanto, contribui para uma melhor
compreensão sobre a questão da variação linguística regional nas redes sociais digitais, em
particular no Twitter, que se configura como um ambiente fértil para a discussão e pesquisa
dessa temática, possibilitando um novo olhar mais atualizado com os jovens, em especial,
uma vez que eles são os maiores usuários dessa rede em específico.

Palavras-chave: Sociolinguística, Variação linguística regional, Redes sociais.

1 INTRODUÇÃO

A linguagem e a sociedade estão intrinsecamente relacionadas, uma


vez que formam a base das relações humanas. Alkmim (2004, p. 32) diz que
quando ocorre o estudo de uma comunidade linguística é impossível não
perceber a existência dos diferentes modos de falar que constituem a sua
diversidade e variação. Em outras palavras, “[...] nenhuma língua se

38Mestranda em Ciências da Linguagem e Bolsista CAPES/PROSUC pela Universidade


Católica de Pernambuco - UNICAP, lidya.morais.letras@gmail.com.

328
apresenta como uma entidade homogênea. [...] qualquer língua é
representada por um conjunto de variedades” (ALKMIM, 2004, p. 33).

Ao longo da história do Brasil ocorreram diversas trocas entre imigrantes,


escravos e índios, e isso, por sua vez, influenciou os modos de falar de diversas
partes do país, proporcionando uma rica diversidade cultural e linguística,
como atesta Sá (2013, p. 27).

Tradições, costumes, histórias passadas de geração para geração...


Tudo isso faz parte da história de uma comunidade. Por isso, é lícito
respeitar e preservar esses elementos presentes na cultura,
partilhados por grupos de pessoas que interagem diariamente, em
especial, através da língua, uma vez que ela retrata a realidade de
um povo, a partir do reconto de um fato, das lutas e desavenças de
que participa e de seus atos heroicos, o que pode se manifestar
através da pintura, do artesanato e da literatura (SÁ, 2013, p. 27).

Assim, é nítida a importância de se desenvolver estudos que


investiguem os fatos linguísticos de uma língua para tornar compreensível a
diversidade cultural visível nas “marcas” específicas de cada região do país.

Apesar de haver diversos estudos sobre as variações linguísticas, foram


encontradas poucas pesquisas (MÉLO, 2015; TAVARES, 2019; e outros) sobre
concepções subjacentes ao que se discute acerca da questão da
aceitação das variações regionais nas redes sociais digitais, especialmente
no Twitter, local extremamente fértil para esse debate. Ainda há uma lacuna
a ser preenchida quando se trata de investigar esse tema nesse ambiente.

Entre os estudos mais recentes que se voltam para a temática proposta,


citamos Mélo (2015), que discute o variacionismo do português brasileiro a
partir da análise de postagens da página do Facebook “Bode Gaiato”;
Bezerra e Pimentel (2016), por sua vez, discorrem sobre o normativismo
linguístico em redes sociais digitais com foco também no Facebook; e

329
Tavares (2019), que analisa a representação linguística e cultural do Nordeste
através de publicações da página “Nordestinos” também do Facebook.

Nas redes sociais digitais tão amplamente utilizadas no cotidiano, essas


“marcas” regionais têm provocado verdadeiros debates sobre o uso “correto”
ou “errado” de determinadas variações linguísticas, principalmente no
campo lexical. Nos últimos meses, ocorreram várias “polêmicas” envolvendo
a questão da variação regional suscitadas por postagens de personalidades
famosas, como atrizes, apresentadores e influenciadores digitais, que
costumam ter perfis no Twitter para se conectarem com seu público. Assim,
de tempos em tempos, é comum rever nessa rede social antigas discussões
e diversos conflitos sobre essa questão.

Dessa forma, propõe-se aqui um estudo sobre como usuários do Twitter


lidam com as variações linguísticas regionais nesse ambiente virtual a partir
da análise de dois debates que ocorreram nessa rede social durante os
meses de maio, junho e julho de 2020, em que a existência das variações
linguísticas regionais, especificamente na área da culinária, foi abertamente
questionada e discutida entre eles, com o objetivo de analisar o impacto
delas na interação virtual no Twitter à luz da sociolinguística variacionista.

A análise das publicações coletadas revela um discurso


fundamentado em uma concepção de que existe o uso “correto” ou
“errado” de determinadas variações linguísticas, principalmente no campo
lexical, na rede social, baseada no preconceito linguístico. Apesar de ainda
haver uma forte tendência ao julgamento negativo acerca das variedades
regionais por parte dos usuários do Twitter, também é possível encontrar
pessoas que enxergam essa questão com um olhar positivo, defendendo
que não há uma única forma legítima que deve ser aceita por todos, mas
sim que há diversas variações dentro de uma determinada língua que são

330
influenciadas por questões geográficas, por exemplo, que promovem e
possibilitam a comunicação entre os seus falantes.

Dessa forma, este estudo oferece uma reflexão acerca dessa questão
por meio de uma análise realizada através de postagens dessa rede social,
proporcionando uma maior compreensão sobre esse fenômeno nesse
ambiente virtual, e possibilitando que haja um entendimento mais
aprofundado sobre como a variação linguística regional é debatida na
interação entre seus usuários.

2 METODOLOGIA

A análise proposta neste estudo abrange a observação e coleta de


postagens de duas intensas discussões que surgiram no Twitter sobre o
fenômeno da variação linguística regional no campo culinário. Esses debates
tomaram grandes proporções e repercussões durante os meses de maio,
junho e julho de 2020, chegando a atingir os trending topics (assuntos do
momento) da rede social. Essa rede social, por sua vez, foi selecionada para
este estudo por causa da sua representatividade na discussão, uma vez que
é recorrente a ocorrência de discussões envolvendo essa questão nesse
espaço virtual. No que diz respeito aos aspectos éticos da pesquisa, os textos
analisados são caracterizados como de acesso público, por se encontrarem
em uma rede social (Twitter). Nas práticas de pesquisa em linguística
relacionadas com essa situação, entende-se que não há comprometimento
ético em se utilizar tais textos para análise, uma vez que os nomes dos usuários
não serão divulgados.

Dessa forma, foram observados, copiados e salvos tweets postados por


usuários dessa rede social durante os meses já referidos acima, adotando-se

331
como critério principal que fossem postagens que revelassem concepções e
julgamentos sobre a questão da variação linguística regional nesse ambiente
virtual. Dessas postagens coletadas, destacamos duas discussões que
consideramos mais relevantes devido aos seus grandes alcances, por vezes
perdurando dias. Para tal análise, foi utilizado como base o arcabouço
teórico da sociolinguística variacionista e autores que abordam essa
temática, como Barcellos (2016), Bagno (2007), Nobaro (2009), entre outros.

3 PANORAMA HISTÓRICO

Antes de qualquer análise, é importante nos aprofundarmos no


caminho histórico que acarretou o surgimento dos regionalismos (expressões
típicas de determinada região) e das variações linguísticas regionais. De
acordo com Pires de Oliveira (1998, p. 109-110), o Brasil, quando foi
descoberto pelos navegadores portugueses em 1500, era um imenso território
indígena que falava diversas línguas que, por sua vez, eram distribuídas de
Norte a Sul por toda a extensão nacional. Com a chegada desses estranhos,
foi necessária a introdução de uma língua românica, a língua portuguesa, a
partir de 1532, para haver a convivência com as línguas indígenas já
existentes. Esse convívio linguístico durou séculos e foi se intensificando pela
necessidade de sobrevivência e conquista da terra pelos colonizadores.
Também houve, por causa da escravidão, o contato com línguas africanas
que, por serem faladas por escravos, não foram estabelecidas no país como
formas legítimas de comunicação.

Havia também a língua geral ou brasílica, que era uma língua utilizada
pela massa indígena e que proporcionava a comunicação entre os índios e
a comunidade portuguesa. Essa língua foi empregada até o século XVIII e

332
Silva Neto (1963, p. 53 apud PIRES DE OLIVEIRA, 1998, p. 110) atesta que ela
tinha um material morfológico reduzido e simples, sem declinação e
conjugação.

Pires de Oliveira (1998, p. 110) ainda diz que, por conta disso, a língua
geral se expandiu até ser falada pelas próprias famílias dos colonizadores,
nas catequeses dos índios e nos confessionários dos jesuítas, sendo
predominantemente utilizada por mulheres e crianças portuguesas. A coroa
portuguesa percebeu esse fato e ordenou, através do Marquês de Pombal,
em 1754, a proibição do uso dessa língua, implantando exclusivamente a
língua portuguesa no país, que já era falada nos centros urbanos emergentes.
Com essa medida, a língua portuguesa se expandiu pelas regiões do país
com a trilha dos bandeirantes até passar pelo sertão e se interiorizar, por fim.

Dessa forma

Todos estes contatos etnolinguísticos verificados no Brasil-colônia


favoreceram o caldeamento das diferentes etnias e a constituição
de uma sociedade híbrida, multifragmentada, com características
diferentes da portuguesa e que desenvolveu um modo peculiar de
falar inúmeros vocábulos, que passaram a caracterizar o português
do Brasil. (PIRES DE OLIVEIRA, 1998, p. 111).

Mas esse português do Brasil não se caracteriza por ser homogêneo,


uma vez que a extensão geográfica do país é enorme e isso acarretou o
surgimento do que a autora chama de “marcas” regionais que podem ser
bem específicas de uma determinada região, visto que também há o
isolamento de algumas regiões brasileiras que são distantes dos centros de
cultura do país. Assim, os regionalismos são fruto da heterogeneidade da
língua, uma vez que cada região geográfica tem as suas características
próprias advindas da sua cultura e da sua história.

333
4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA REGIONAL

Segundo Barcellos (2016), inicialmente, a linguística tinha como objeto


de estudo a língua em si, porém, ao longo desses estudos, surgiram as duas
principais correntes da área, o estruturalismo de Saussure e o gerativismo de
Chomsky. Posteriormente, a partir das contribuições de Bright e Labov, o
contexto social foi inserido ao estudo da língua. Labov, por sua vez, propôs
um método de quantificação da influência do contexto social na língua,
desenvolvendo a sociolinguística variacionista, que ligou definitivamente o
contexto social ao estudo das línguas.

Estudar o contexto social de uma língua é “estudar a língua no âmbito


de uma comunidade, na busca de uma regularidade dentro das variações
da fala” (BARCELLOS, 2016, p. 4). Por haver essas variações, foi possível, então,
comprovar a heterogeneidade inerente às línguas. Para Bagno (2007a) o
fenômeno da variação perpassa todos os níveis da língua, resultando
variações no nível fonético-fonológico, morfológico, sintático, semântico,
lexical e estilístico-pragmático. Além disso, ao estudar as variações de uma
determinada língua, é necessário, também, levar em conta fatores sociais
como origem geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização,
idade, entre outros. Ademais, pode-se também classificar as variações
linguísticas em diatópicas (ou regionais), que ocorrem de acordo com o local
de seus falantes, podendo usar palavras diferentes para denominar uma
mesma coisa/objeto; em diastráticas (ou sociais), que designam os diferentes
modos de falar de classes sociais distintas; em diamésicas, que são as
diferentes particularidades entre a língua falada e a escrita; em diafásicas
(ou situacionais), que ocorrem a partir do contexto ou situação de uso da
língua que os indivíduos utilizam para monitorar o seu modo de falar; e, por

334
fim, em diacrônicas (ou históricas), que verificam-se ao longo do tempo
através das etapas de mudança histórica de uma língua.

Para este trabalho é importante o aprofundamento sobre a variação


linguística regional (ou diatópica), uma vez que orienta as análises que serão
vistas mais adiante. De acordo com Nobaro (2009, p. 14) “é a variação mais
perceptível e um rico processo que considera as diferentes formas de
pronúncia, vocabulário e estrutura sintática entre regiões do país”. Assim, ao
falar com uma pessoa é possível saber seu local de origem a partir de
aspectos como sotaque, expressões, entoação e vocabulário. Por exemplo,
no Nordeste a mandioca é chamada de macaxeira, e no Sudeste é
nomeada de aipim, ou seja, diferentes nomes são atribuídos ao mesmo
substantivo dependendo da região do país. Dessa forma, é possível
apreender que “o regionalismo [...] deve ser entendido como algo que
singulariza sujeitos pertencentes a determinada região” (SOUSA; LIMA, 2019,
p. 68), e a variação regional é fruto, portanto, das diferenças linguísticas entre
pessoas de diferentes localidades.

Estudos geolinguísticos sobre as variações lexicais das diferentes


regiões do Brasil, como o do filólogo Antenor Nascentes (1922), que propôs o
mapeamento de áreas linguísticas do português brasileiro, contribuem para
um melhor entendimento acerca dessas diferenças já mencionadas. De
acordo com Coelho et al. (2010, p. 51), o autor dividiu o “falar brasileiro” entre
o “falar do Norte” e o “falar do Sul”, que, por sua vez, foram subdivididos em
seis “subfalares”. Esses tipos de estudos são de grande ajuda para a
compreensão da diversidade linguística existente no país.

Visto que foi elucidado e esclarecido o que é variação linguística


regional e como ocorreu a implantação da língua portuguesa no Brasil,
podemos partir para as análises de concepções comumente encontradas
na rede social digital Twitter sobre este tema.

335
5 ANÁLISE DE POSTAGENS DA REDE SOCIAL DIGITAL TWITTER

Em maio de 2020 a apresentadora e atriz Maisa Silva39 suscitou uma


antiga polêmica que sempre esteve presente em uma das maiores redes
sociais digitais, o Twitter, que tem uma base de usuários fiéis. A comunicadora
publicou em sua conta uma foto em que diz estar comendo canjica para se
aquecer no frio de São Paulo. Essa simples postagem foi a motivação de um
verdadeiro debate virtual que resultou em manchetes em sites de
celebridades, como o da Revista Quem, que é publicada pela Editora Globo
e que tem como foco acompanhar a vida das celebridades tanto nacionais
quanto internacionais.

Veja a manchete abaixo:

Figura 1: Manchete sobre a polêmica.

39Atriz e apresentadora brasileira conhecida por apresentar programas infantis no Sistema


Brasileiro de Televisão (SBT) e também por atuar na novela infantil Carrossel.

336
Fonte: Site da Revista Quem.40

A polêmica teve início quando uma usuária da rede social se irritou


com a publicação e acusou a atriz de ser desinformada e preguiçosa por
não saber usar o “nome certo” da iguaria, que, para essa comentarista,
deveria ser chamada de munguzá, uma vez que ela defende essa comida
como tipicamente nordestina.

Figura 2: Postagem e resposta com crítica ao uso da variante canjica.

Fonte: Twitter.41

40 Disponível em: <https://revistaquem.globo.com/QUEM-News/noticia/2020/05/maisa-silva-


discute-na-web-por-nomes-de-alimentos-militar-por-comida-e-o-auge.html >. Acesso em: 07
ago. 2020.
41 Disponível em: <https://twitter.com/maisa/status/1258409532616839174>. Acesso em: 07

mai. 2020.

337
Maisa, por sua vez, não ficou calada e rebateu a internauta ao falar
da diversidade cultural do país.

Figura 3: Resposta da atriz ao comentário com julgamento.

Fonte: Twitter.42

Diversos outros usuários também tentaram “corrigir” a fala da


apresentadora, que rebateu os ataques.

Figura 4: Postagem que critica uma “apropriação errada” e a resposta.

Fonte: Twitter.43

42 Disponível em: <https://twitter.com/maisa/status/1258413244064112640>. Acesso em: 07


mai. 2020.
43 Disponível em: <https://twitter.com/maisa/status/1258411443340349440>. Acesso em: 07

mai. 2020.

338
A discussão sobre o que seria munguzá, canjica e curau é antiga nesse
ambiente virtual e de tempos em tempos surge novamente. Trata-se aqui do
fenômeno da variação regional, que no caso da culinária brasileira é algo
muito comum, visto a enorme extensão do país. Nobaro (2009, p. 14) chama
esse fenômeno de variação geográfica e afirma que

É o processo que ocorre em função das facilidades de contato, em


função da geografia, afinidades políticas ou culturais, entre
indivíduos e entre grupos, onde termos e construções de uso corrente
em um local contaminam, por assim dizer, outros grupos, que passam
a utilizar os mesmos termos e, tal como ocorre com outras variações,
é assumida por grupos de maior peso político, econômico e cultural
que acabam por definir os padrões linguísticos utilizados na região
de sua influência. (NOBARO, 2009, p.14).

Assim, é importante atentar-se para o fato de que as diversas palavras


que constituem o léxico de uma língua são provenientes de um contexto
histórico/cultural que, por sua vez, molda o patrimônio sociocultural de uma
determinada comunidade ou região, afetando, portanto, o modo como a
culinária designa os alimentos que cria/desenvolve.

No caso da problemática canjica – mungunzá – curau, temos a


variante lexical mungunzá como originária das regiões Norte e Nordeste do
país, enquanto no Sul e Sudeste é nominada de canjica. Ou seja, dois nomes
diferentes são usados para designar o mesmo alimento que é uma iguaria
doce feita de grãos de milho cozidos em um caldo que contém leite de coco
ou vaca, entre outros ingredientes. A confusão é ainda maior porque a
palavra canjica também é usada no Norte e Nordeste para nomear uma
papa cremosa de milho verde, que, por sua vez, no Sul e Sudeste é chamada
de curau. Dessa forma, a polêmica é retomada sempre que alguém usa uma
determinada variante em uma situação de comunicação entre pessoas de
regiões diferentes, como acontece no Twitter.

339
Outro caso que ocorreu nesse período foi um debate acalorado
acerca do uso das variantes lexicais mexerica, tangerina e bergamota. Nesse
debate virtual há um ferrenho questionamento sobre qual seria o nome
“certo” para designar essa fruta cítrica de cor alaranjada e sabor adocicado,
como o exemplo abaixo mostra.

Figura 5: Debate sobre as variantes canjica, mexerica e bergamota

Fonte: Twitter.44

Na rede social digital citada anteriormente, essa discussão, que é


frequentemente recorrente, eventualmente costuma atingir os trending
topics, que são os assuntos mais comentados nesse ambiente, como é
possível ver abaixo.

Disponível em: <https://twitter.com/universitariaOF/status/1282708598527873026>. Acesso


44

em: 13 jul. 2020.

340
Figura 6: Discussão sobre o uso da variante canjica atinge os trending topics do Twitter.

Fonte: Twitter.

Assim, há claramente uma valorização da variante tangerina e a


depreciação das variantes bergamota e mexerica, ocorrendo o que Bagno
(2007b) chama de preconceito linguístico. Barcellos (2016, p. 35), por sua vez,
define esse tipo de discriminação como “[...] julgar falantes ou grupos inteiros
em uma comunidade pelas formas linguísticas que empregam (e essas
formas geralmente são as que se afastam do padrão)”. No caso do exemplo
acima mostrado, a expressão “nazista” é uma forma de piada interna que
ocorre nessa rede social virtual específica, e esse uso corresponde a uma
escolha variacional que não discutiremos nesta pesquisa por se tratar de
uma variação não regional, mas sim social (de caráter ideológico), que não
é o foco deste estudo, visto que é usada para se referir a qualquer pessoa
que faça algo considerado errado pela comunidade. Ainda assim, há um
julgamento de que pessoas que usam as palavras mexerica e bergamota
estão erradas, enquanto tangerina seria a única correta.

341
A variante tangerina é a mais frequentemente usada em produtos
industrializados que utilizam o sabor artificial da fruta e também figura nos
dicionários brasileiros. Porém, há uma grande diversidade de nomes para ela,
também conhecida como laranja-cravo em Pernambuco e outros estados
do Nordeste, bergamota no Sul, com a variante mimosa em Curitiba, e
mexerica, que é usada nas regiões Centro-oeste e Sudeste do país. Há ainda
vários outros nomes para designar esse alimento.

Dessa forma, essas diferentes variantes devem ser todas entendidas


como legítimas, uma vez que fazem parte das particularidades do país, sem
nenhum tipo de menosprezo. No Twitter, porém, também há muitos usuários
que sabem o que é a variação linguística defendendo-a e não perpetuando
o preconceito linguístico, como pode-se ver no exemplo abaixo.

Figura 7: Defesa das variações linguísticas.

Fonte: Twitter.45

Sendo assim, é possível comprovar que a língua portuguesa brasileira


tem um alto grau de variação e diversidade por causa da imensidão
territorial do país, e, portanto, deve-se tratar a questão da variação regional

45 Disponível em: <https://twitter.com/Chernogemeoss/status/1274823935268397057>.


Acesso em: 23 jul. 2020.

342
como algo inerente à língua, respeitando os diversos modos de falar e as
variantes que caracterizam a cultura local de cada estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As redes sociais digitais são um ambiente fértil para a propagação de


preconceitos linguísticos derivados da incapacidade dos indivíduos de
perceber as diferenças culturais, sociais e históricas que fazem parte das
diversas regiões do país. Ao adentrar-se nesse ambiente virtual, é possível ver
muitos julgamentos e críticas negativas a esse respeito, porém há também
uma grande corrente de pessoas que tratam a variação linguística,
especialmente regional, como algo bom e defendem o uso de todas as
variantes linguísticas que existem em todo o território nacional.

As diversas formas de se dizer uma mesma coisa (variantes) devem ser


todas vistas como legítimas e o preconceito linguístico deve ser sempre
apontado e reprovado para que assim haja uma interação em que não
aconteça a depreciação e o sentimento de superioridade por nenhuma das
partes envolvidas em uma comunicação mediada pelas redes sociais digitais
como o Twitter.

Cada vez mais, com o acesso à internet e aos meios de comunicação,


é vista a disseminação do conhecimento, que, por sua vez, resulta na
compreensão de diversos fenômenos linguísticos, como a variação regional.

A partir deste trabalho e de outros futuros, pode-se desenvolver mais


debates e estudos sobre a questão da variação linguística regional no
contexto das redes sociais digitais, especialmente no Twitter, visto que há
uma grande escassez de um viés sobre esse tema em particular. Assim, esta
pesquisa proporciona um melhor entendimento sobre essa discussão,

343
possibilitando a elaboração de caminhos e pontes para a compreensão e o
ensino da heterogeneidade da língua portuguesa, visando acabar ou pelo
menos diminuir a desvalorização e o preconceito linguístico.

REFERÊNCIAS

ALKMIM, Tânia Maria. Sociolinguística. Parte I. In: MUSSALIM, Fernanda &


BENTES, Ana Cristina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v. 1, São
Paulo: Cortez, 2004. p. 21 - 45.

BAGNO, Marcos. Mas o que é mesmo variação linguística. In: BAGNO,


Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística, São Paulo: Parábola Editorial, 2007a.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49. ed. São
Paulo: Loyola, 2007b.

BARCELLOS, Eliana Cristina Caporale. Sociolinguística. Porto Alegre: Editora


Grupo A, 2016.

BEZERRA, Benedito Gomes; PIMENTEL, Renato Lira. Normativismo linguístico


em redes sociais digitais: uma análise da fanpage língua portuguesa no
facebook. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 55, n. 3, p. 731-755, 2016.

COELHO, Izete Lehmkuhl et al. Sociolinguística. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC,


2010.

SÁ, Edmilson José de. Atlas linguístico de Pernambuco: da metodologia aos


resultados 2013. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2013.

MÉLO, Irandeide Maria de. Variante linguística e identidade regional: das


redes sociais à sala de aula do Ensino Fundamental. 2015. Dissertação

344
(Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Campina Grande, Cajazeiras,
2015.

NASCENTES, Antenor. O linguajar carioca. Rio de Janeiro: Organização


Simões, [1922] 1953.

NOBARO, Yuko Tengan. Variações linguísticas no Brasil. 2009. Trabalho de


Conclusão de Curso (Especialização em Língua Portuguesa, Compreensão e
Produção de Texto) –Faculdade de Educação São Luís, Jaboticabal, 2009.

PIRES DE OLIVEIRA, Ana Maria Pinto. Brasileirismos e regionalismos. ALFA:


Revista de Linguística, São Paulo, v. 42, n. 1, p. 109-120, 1998.

SOUSA, Julienni Lopes de; LIMA, Luana Nunes Martins de. Regionalismo e
variação linguística: uma reflexão sobre a linguagem caipira nos causos de
Geraldinho. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 72, p. 63-82, 2019.

TAVARES, Vandecleide Braz. O nordeste através da mídia digital: uma análise


sociolinguística e cultural das publicações da fanpage nordestinos. 2019.
Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Estudos Linguísticos e
Literários) – Universidade Estadual da Paraíba, Monteiro, 2019.

345
A RELAÇÃO ENTRE A GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS, AS VARIAÇÕES
LINGUÍSTICAS E A BOA ESCRITA NA MODERNIDADE

Melissa Mourão Amaral46


Lucas Cristiano Ferreira Alves47

RESUMO: Com os adventos linguísticos e gramaticais na contemporaneidade, dominar as


regras do português e aplicá-las aos textos formais tem se tornado cada vez mais difícil. A
internet, por sua vez, tem sido um dos grandes problemas para que se tenha uma escrita
mais apurada já que, na maioria dos casos, os falantes do chamado “internetês” costumam
escrever exatamente como pronunciam. Por um lado, em um contexto informal de uso,
como defende a Linguística, grupos específicos de pessoas e seus respectivos contextos de
vida devem ser preservados no que tange a não existir um preconceito linguístico, ou seja,
um preconceito em relação à fala do indivíduo (variação linguística). Já por outro lado, a
escrita, em contextos formais de uso, bem como o uso correto das regras gramaticais é
essencial para que a boa escrita e a expressividade sejam observadas, principalmente, em
textos acadêmicos, artigos, provas de redação, entre outras áreas que exijam a escrita
formal da língua. Portanto, deve existir, por parte do sujeito detentor de saberes, um prévio
conhecimento acerca da gramática normativa para que, em contextos específicos de uso,
coloque-os em prática a fim de que seja bem-sucedido em seus objetivos. E, além disso,
deve existir também um eixo de equilíbrio entre as áreas formais e informais, visto que, apesar
de, cotidianamente, não se usarem palavras de difícil entendimento, mas aquelas que
podem ser bem entendidas por parte de outros ouvintes, o prévio conhecimento do
português tradicional deve ser tido com relevante a fim de que possa ser usado para
determinados fins que garantam uma escrita de excelência.
Palavras-chave: Gramática. Escrita. Contexto formal e informal.

1 INTRODUÇÃO

Sabe-se que as relações existentes entre os contextos linguístico e


gramaticais pertinentes à atualidade podem influenciar diretamente na boa
escrita do sujeito contemporâneo. Por conseguinte, muitos adventos, tanto

46 Graduanda do curso de Letras no Centro Universitário de Belo Horizonte – UNIBH,


melissa-mourao@hotmail.com
47 Doutorando do Programa de Inovação Tecnológica - PPGIT - Universidade Federal de

Minas Gerais – UFMG, alves@globo.com

346
linguísticos como gramaticais têm sido comuns na sociedade moderna, por
isso, nota-se a importância de um estudo que aborde as peculiaridades e
formas de interação entre essas duas grandes áreas. A princípio, deve-se
destacar a autonomia que o indivíduo possui em relação à sua fala, bem
como sua escrita, já que ambas estão intrinsecamente ligadas quando nos
referimos a contextos formais e informais de uso. No contexto formal de uso,
cabe asseverar a gramática como área primordial para que o indivíduo
desenvolva, plenamente, suas habilidades de escrita e de domínio em
relação à normal culta da língua. Já no contexto informal, observa-se outro
ponto essencial que é o conhecimento e o reconhecimento de formas
coloquiais e/ou variações linguísticas que são utilizadas, por exemplo, em
situações informais ou por grupos e regiões específicas, o que representa
espontaneidade e singularidade à língua. Ainda, dentro do contexto
informal, pode-se citar, também, o chamado “internetês” que está ligado à
informalidade e que pode ser visto, via de regra, em comunicações de textos
nas redes sociais. Essa nova modalidade de conversação torna-se cada vez
mais presente na vida das pessoas, principalmente, pela facilidade na escrita
já que, em sua maioria, as palavras não são devidamente acentuadas e nem
as regras da norma culta são seguidas. Desse modo, é necessário que se
entenda e se conheça mais e melhor acerca de todos os fatores que podem
contribuir para que haja um eixo de equilíbrio e ponderação entre os
contextos formais e informais de uso da língua.

Pode-se definir como principal objetivo do trabalho o alcance de


grande parte dos indivíduos, quer seja daqueles que possuam mais
familiaridade com os padrões normativos da língua, quer seja daqueles que
se apoiam na informalidade. É imprescindível que se observe as formas de
uso da língua em cada contexto e, assim, defina o equilíbrio entre eles, a fim
de que não ocorram radicalismos e nem negligências em seus respectivos

347
usos. Nesse sentido, o indivíduo conseguirá, facilmente, adaptar-se às
diversas circunstâncias de aplicabilidade, sabendo fazer o uso adequado da
norma culta quando lhe for pedido, mas, também, não sendo exigente e
preconceituoso em relação à informalidade e à variabilidade na língua.
Outrossim, deve-se levar em conta, como objetivo a ser alcançado, a escrita
de excelência que é capaz de contemplar as competências exigidas em
eventuais situações específicas como o Exame Nacional do Ensino Médio -
Enem, vestibulares, provas de concursos e seleções em geral. Dessa forma, é
importante que se crie a consciência de que dominar a gramática
tradicional, bem como suas respectivas regras é imprescindível para a boa
escrita e para o desenvolvimento social e intelectual dos indivíduos.

2 METODOLOGIA

O presente artigo caracteriza-se pela abordagem de métodos


qualitativos já que visa ao estudo aprofundado de questões relacionadas ao
comportamento da sociedade moderna diante do uso da língua portuguesa
em diferentes contextos, ou seja, aqueles que exijam o conhecimento das
normas padrões da gramática, bem como aqueles que permitam o seu uso
coloquial. Minayo (2001, p.14) deixa claro a ideia de que “a pesquisa
qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos
à operacionalização de variáveis”. Nesse contexto, a pesquisa qualitativa
preocupa-se com a natureza subjetiva das pesquisas, caracterizando-as
com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-
se na compreensão e na explicação da dinâmica das relações sociais.

348
3 REFERENCIAL TEÓRICO

É notória a péssima relação que muitos brasileiros possuem com sua


própria língua. Alguns tentam se esquivar das normas padrões enquanto
outros são defensores legítimos do bom uso da gramática e suas inúmeras
regras. Algumas tendências, porém, ganham força quando são muito
utilizadas ou requisitadas como, por exemplo, o uso recorrente do chamado
internetês que pode ser caracterizado como uma forma grafolinguística que
se difundiu em textos como chats, blogs e demais redes sociais. Seria uma
prática de escrita caracterizada pelo registro divergente da norma culta
padrão, ou seja, uma prática que não leva em consideração o uso das
regras da gramática normativa. Essa nova modalidade de escrita tornou-se
ainda mais recorrente com o advento da tecnologia já que trouxe facilidade
de acesso, principalmente, por parte de adolescentes e jovens que são os
públicos com maior grau de aceitação dessas formas de comunicação.
Ataliba de Castilho, por exemplo, em entrevista à Revista Língua Portuguesa,
expõe que o internetês seria “parte da metamorfose natural da língua”
(apud MARCONATO, 2006). De acordo com o autor, há “redução de
excessos da ortografia” na linguagem empregada na internet, uma vez que
toda palavra é contextualizada pelo falante no evento de comunicação
(apud MARCONATO, 2006). Bagno (apud VOLPATO, 2007), por sua vez, em
entrevista à Revista da Cultura, acredita que o internetês é “questão de
grafia”. Ambos procuram compreender como esse advento pode ser
recorrente não apenas na internet, mas, também, em contextos sociais de
uso do falante. O professor e doutor Aldo Bizzochi em seu texto denominado
A Norma Culta do Futuro acredita que, futuramente, a língua possa evoluir
tanto ao ponto de a gramática normativa ser considerada aquela em que
o falante usa hoje em contextos informais de uso. A verdade é que não se

349
sabe ao certo o verdadeiro futuro das nossas regras, o que se sabe, de fato,
é que ela está em constante transformação. Chega-se, portanto, em um viés
no qual nos deparamos com alguns obstáculos como, por exemplo, aquele
em que o falante adepto ao contexto coloquial pode não ter a consciência
de que a forma gramatical pode e deve ser usada em contextos que a
peçam já que estão totalmente acostumados com o uso informal da língua.
Outro obstáculo pode ser entendido por parte de falantes que são rigorosos
quanto ao uso correto dos padrões gramaticais estabelecidos o que
acarreta, portanto, o que denominamos de preconceito linguístico.

O autor Marcos Bagno em sua obra Preconceito Linguístico: o que é,


como se faz, define esse termo:

O termo preconceito designa uma atitude prévia que assumimos


diante de uma pessoa (ou de um grupo social), antes de interagirmos
com ela ou de conhecê-la, uma atitude que, embora individual,
reflete as ideias que circulam na sociedade e na cultura em que
vivemos. Assim como uma pessoa pode sofrer preconceito por ser
mulher, pobre, negra, indígena, homossexual, nordestina, deficiente
física, estrangeira etc., também pode receber avaliações negativas
por causa da língua que fala ou do modo como fala sua língua.
(MARCOS BAGNO, 2014)

Assim, é importante ressaltar que o preconceito linguístico pode estar


presente em todos os ambientes e se destaca, principalmente, pela
característica de estar associado ao repúdio à forma com que outra pessoa
se comunica. Outrossim, o preconceito linguístico está fortemente ligado ao
poder aquisitivo e a classe social do indivíduo. As pessoas que detêm mais
recursos financeiros e melhores condições de vida, via de regra, são as que
mais se preocupam em conhecer as regras gramaticais e fazer o seu uso
corretamente. Para elas, a ascensão social, o poder e o prestígio estão
intimamente ligados à forma na qual você é capaz de se comunicar, de

350
compreender e de utilizar as normas consideradas corretas. O uso incorreto
da língua, para esses indivíduos, estaria, portanto, ligado apenas às pessoas
que possuem o poder aquisitivo mais baixo, já que não conseguiriam ter
acesso à educação e as ferramentas de estudo consideradas adequadas
que possibilitem um conhecimento mais aprofundado acerca do assunto em
questão. Por outra perspectiva, a obra póstuma Curso de Linguística Geral
criada pelos discípulos de Fernando Saussure, grande linguista americano,
em homenagem a seus ensinamentos, traz-nos a definição de fala:

A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência,


no qual convém distinguir: 1° - as combinações pelas quais o falante
realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento
pessoal; 2° - o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar
essas combinações. (SAUSSURE, 2012, p. 45).

Consegue-se extrair do trecho citado, portanto, que a fala pode ser


considerada algo individual, ou seja, ela está intimamente ligada ao
contexto de vida, às suas experiências de mundo e as vivências de cada
sujeito. Nesse viés, torna-se mais complexa a compreensão de questões
relacionadas ao preconceito linguístico, já que o público adepto à forma
coloquial da língua é muito maior do que aqueles que defendem o seu uso
formal. Assim, o trabalho para alcançar e quebrar essas barreiras existentes
entre as classes sociais pode ser ainda mais difícil. Bagno, por sua vez, levanta
mais alguns questionamentos e críticas a respeito daqueles que defendem
veemente o uso da norma-padrão:

O domínio da norma-padrão de nada vai adiantar a uma pessoa


que não tenha todos os dentes, que não tenha casa decente para
morar, água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. O domínio da
norma-padrão de nada vai servir a uma pessoa que não tenha
acesso às tecnologias modernas, aos avanços da medicina, aos
empregos bem remunerados, à participação ativa e consciente nas
decisões políticas que afetam sua vida e a de seus concidadãos. O
domínio da norma-padrão de nada vai adiantar a uma pessoa que

351
não tenha seus direitos de cidadão reconhecidos plenamente, a
uma pessoa que viva na zona rural onde um punhado de senhores
feudais controlam extensões gigantescas de terra fértil, enquanto
milhões de famílias de lavradores sem-terra não têm o que comer
nem onde trabalhar. (BAGNO, 2015, p. 105-106)

Há, claramente, no trecho exposto, a crítica imposta à norma-padrão


já que os inúmeros contextos de uso da língua podem ser variados de acordo
com a realidade de cada pessoa. E, isso pode influenciar diretamente na
forma com que as normas são aplicadas, já que para determinados
contextos de uso, elas serão, inevitavelmente, irrelevantes. Bagno ainda
completa:

O mero domínio da norma-padrão não é uma fórmula mágica que,


de um momento para outro, vai resolver todos os problemas de um
indivíduo carente. É preciso garantir, isso sim, o acesso à educação
em seu sentido mais amplo, aos bens culturais, à saúde e à
habitação, ao transporte de boa qualidade, à vida digna de
cidadão merecedor de todo o respeito. Como é fácil perceber, o
que está em jogo não é a simples “transformação” de um indivíduo,
que vai deixar de ser um “sem-língua-padrão” para tornar-se um
“com-língua-padrão”. O que está em jogo é a transformação da
sociedade como um todo, pois, enquanto vivermos numa estrutura
social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas,
toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados
é, se não hipócrita e cínica, pelo menos de uma boa intenção
paternalista e ingênua”. (BAGNO, 2015, p. 106-107)

Por conseguinte, observa-se que as críticas feitas às normas tradicionais


podem ir muito além do que o seu simples aprendizado. Elas possuem um
grau de amplitude maior, no qual pode-se abarcar, além das questões
referentes a possuir ou não o conhecimento esperado, questões
relacionadas a formação de uma sociedade igualitária com acesso ao
mínimo existencial para viver. Porém, não é o cenário atual que se observa
já que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mais de
10 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar

352
grave, ou seja, não têm o que comer. Dessa forma, a prioridade do país
torna-se outra, dando-se destaque à contextos sociais de pobreza nos quais
o bem mínimo não consegue chegar quem dirá a norma padrão da língua
ou qualquer uma de suas estruturas.

Tem-se, ainda, um outro lado da moeda que é a gramática tradicional


inserida na sociedade moderna já que, essa, como citado anteriormente,
ocupa uma área de relevância na sociedade, ou seja, é, em grande parte,
referenciada por pessoas com maior poder aquisitivo que insistem em não
abandonar o seu uso adequado. No entanto, o uso da gramática pode ser
muito mais abrangente do que se pode imaginar. Para Martelotta, a
gramática define-se da seguinte forma:

A gramática tradicional, também chamada de gramática


normativa ou gramática escolar, é aquela estudada na escola
desde pequenos. Nossos professores de português nos ensinam a
reconhecer os elementos constituintes formadores dos vocábulos
(radicais, afixos, etc), a fazer a análise sintática, a utilizar a
concordância adequada, sempre recomendando correção no uso
que fazemos de nossa língua. (MARTELOTTA 2009, p. 45)

Assim, diante do exposto, é importante destacar que o uso correto da


língua pode ir muito além do fato de a pessoa possuir ou não o poder
aquisitivo mais alto. Ela pode se destacar em muitos outros meios e contextos,
sejam eles acadêmicos, formais ou, ainda, em meios nos quais ela possa ser
exigida, como por exemplo, em provas específicas de redação, vestibulares
e processos seletivos complexos ou simplificados. Nesse contexto, não cabe
falar em uso da informalidade, já que, o indivíduo deve possuir o mínimo de
conhecimento para alcançar o objetivo que almeja, visto que, processos
complexos, como os citados, exigem que o estudante tenha, no mínimo, um
conhecimento mais aprofundado das normas e das regras para a realização
de provas. Isso pode ser comprovado muito bem em certames de concurso,

353
por exemplo, já que em 100% deles o uso da gramática e suas regras são
cobradas pelas bancas examinadoras. Além disso, o conteúdo também
pode ser diversificado, já que alguns temas são mais cobrados em algumas
bancas do que em outras, o que eleva o nível de complexidade dos
certames. Ainda, a despeito do que muitos de nós achamos, o português
não é uma matéria que se conhece “instintivamente”. Ao contrário, esse
conhecimento que achamos possuir a partir do uso da língua no dia a dia é
muitas vezes equivocado, sendo necessário o estudo aprofundado das
regras e formas adequadas de colocação.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em virtude do exposto, é essencial esclarecer a relevância de haver


uma ponderação entre a área da linguística e a área da gramática ou áreas
formais e informais, visto que, ambas são essenciais para a formação
adequada do indivíduo. A começar pela análise de alguns dados divulgado
pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep), que organiza o Exame Nacional do Ensino Médio, em 2020, apenas 28
candidatos tiraram nota máxima na redação e do total de candidatos que
prestaram o exame, 87.567 (3,22%) tiraram zero na dissertação. Isso se deve,
principalmente, ao número grande de abstenções verificadas no ano de
2020. Veja agora os critérios pelos quais os estudantes perderam mais pontos:

• fuga ao tema - 0,93%


• cópia do texto motivador - 0,46%
• texto insuficiente - 0,19%
• não atendimento ao tipo textual - 0,17%
• parte desconectada - 0,17%

354
• redações em branco - 1,12%
• outros motivos - 0,17%

De acordo com os dados divulgados pelo Inep, pode-se analisar o


caso de apenas 28 estudantes obterem a nota máxima no exame. A
começar pelos pontos de erros apresentados, já que 0,93% não atingiu o
esperado em relação ao tema e isso se deve, principalmente, à falta de
conhecimento acerca do que foi pedido. Via de regra, alguns estudantes
tendem a não conseguir desenvolver os temas propostos e isso se dá de
forma corriqueira, e um dos motivos para essa estatística é a falta de leitura,
já que, nesse caso, a gramática não poderia trabalhar sozinha. Seria
imprescindível uma prévia sobre o que, de fato, o estudante abordaria em
seu texto e, para isso, leituras, práticas e estudos direcionados à
interpretação de texto seriam fundamentais. Além disso, observa-se,
também alguns outros problemas citados com porcentagens abaixo do
esperado, como a cópia do texto motivador. Essa é uma característica bem
interessante no que tange à insuficiência de prática na escrita, já que,
quando o aluno possui o hábito de treinar fazendo redações, ele não
costuma cometer o erro de se espelhar nos textos motivadores pois ele
domina as ideias e sabe exatamente como as colocar no papel. Dentre
outros pontos, podemos citar as redações em branco, visto que, o índice de
redações não feitas fora alto. Dentre os motivos pelos quais o estudante não
consegue elaborar as redações estão elencados, principalmente, a falta de
preparação e técnica em sua montagem. Essa, precisa estar escrita de
acordo com as normas, contendo introdução, desenvolvimento, problema
e uma possível solução. O aluno que não possui os conhecimentos acerca
da estrutura a ser elabora não conseguirá desenvolver a dissertação de
forma adequada e, consequentemente, irá deixá-la em branco. Portanto,
com todos os tópicos abordados, fica fácil a verificação de como levar em

355
consideração apenas um ou outro tópico não ajuda em certos contextos de
aprendizagem, pois é necessário que todos os elementos que constituem
uma boa aprendizagem e, em especial uma boa escrita, estejam presentes.

Fonte: site LeiaJa

Por outra perspectiva, apresenta-se um gráfico com os índices de


matérias que mais caem em um dos maiores vestibulares do país, a
Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) que assim como o Enem,
aconteceu em 2020. Como se pode observar, a matéria de Língua
Portuguesa lidera o ranking de matérias mais importantes a serem estudadas.
Ela, de longe, possui um maior peso se comparado a outras, chegando a
possuir um total de 107 questões. Para exemplificar melhor, observe o outro
gráfico abaixo:

356
Fonte: site LeiaJa

O gráfico mostra, basicamente, a incidência de determinadas


matérias dentro da matéria geral de língua portuguesa. Como se observa, a
variação nas matérias cobradas em vestibulares pode ser alta se comparada,
por exemplo à alguns certames de concursos públicos. Observe:

357
A tabela se refere às matérias mais cobradas de forma geral em
concursos públicos, ou seja, aquelas em que a atenção deve ser redobrada.
Se compararmos essa tabela à anterior, veremos que apesar de as duas
cobrarem a matéria de português em geral, na primeira temos uma variação
maior dos temas, ou seja, matérias da gramática tradicional como, por
exemplo, sintaxe, não são tão cobradas quanto matérias de modernismo,
realismo-naturalismo e morfologia. Porém, isso não significa dizer que não
sejam pedidas as matérias que coloquem os conhecimentos das normas
gramaticais à prova. O que o primeiro gráfico mostra, na verdade, é que as
incidências são diferentes se comparadas aos tópicos abordados em
certames de concursos, ou seja, pode ser que sejam cobradas várias
questões relativas à gramática tradicional em um vestibular, ou poucas.
Dessa forma, o que deve ser compreendido é que a relevância do português,
hoje, para a sociedade, de um modo geral, é altíssima. É necessário que haja

358
um conjunto maior de esforços a fim de que ele seja trabalhado de forma
contínua entre os estudantes que também precisam compreender a
importância dessa matéria para sua formação e para possíveis objetivos a
serem alcançados no futuro. Criando-se essa consciência, o estudo que será
desenvolvido posteriormente deverá ser direcionado à prova de interesse do
aluno, quer seja para ingresso em uma faculdade por meio de um vestibular
quer seja para o ingresso em um cargo público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O principal ponto de partida do estudo foi ressaltar a questão de que


se deve haver uma ponderação em relação as áreas da linguística, bem
como da gramática, afinal, ambas são de extrema importância para a
formação do indivíduo. Além disso, é necessário que o estudo da língua
portuguesa seja direcionado à área de interesse do estudante, pois, como
visto, o aprendizado de português pode ser muito abrangente. Daí, dá-se a
importância de, em um primeiro momento, o aluno internalizar que,
indiscutivelmente, a matéria deve ser estudada. Já em um segundo
momento, é interessante que ele saiba exatamente o que gostaria de fazer
para que assim possa estudar os conteúdos específicos de sua área de
atuação. Além disso, é importante ressaltar também que a linguística exerce
um papel fundamental quando se fala em preconceito linguístico. Como
abordado no decorrer desse artigo, as diversas formas de comunicação e os
grupos específicos de pessoas com variadas formas de fala, devem ser
respeitadas em sua totalidade. Já a gramática, por sua vez, não deve ser
usada como porta de entrada apenas por aqueles que possuem condições
favorecidas, pelo contrário, ela deve ser acessível e usufruída por quem
quiser, de fato, aprendê-la. Dessa forma, torna-se mais fácil construir uma

359
sociedade livre de preconceitos, que seja mais interacionista e interessada
nos estudos de língua portuguesa e suas inúmeras variações e regras.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente a Deus pela sabedoria e por ter me


concedido o amor pelos estudos e pela pesquisa. Agradeço ao meu
parceiro Lucas Ferreira pelo incentivo e pelo apoio de sempre. A cada dia o
estudo tem o poder de transformar um pouco a minha vida e por meio desse
artigo, espero poder ajudar a transformar outras pessoas ou, pelo menos,
parte delas através da educação.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 56 ed. São Paulo: Parábola Editorial,


2015.

BLUNDI, Breno Alves dos Santos. NARDELLI, Alex Junior dos Santos. Linguagem,
poder e sociedade: a educação capitalista e o preconceito linguístico.
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português contemporâneo. 7 ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2016.

FIORIN, José Luiz. Introdução à Linguística – I. Objetos teóricos. 6 ed. São Paulo:
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GARCIA, Othon. Comunicação em Prosa Moderna. 27 ed. Rio de Janeiro:


FGV, 2010.

360
KOMESU, Fabiana. TENANI, Luciani. Considerações sobre o conceito de
“internetês” nos estudos da linguagem. Linguagem em (Dis)curso, Palhoça,
SC, v. 9, n. 3, p. 621-643, set./dez. 2009. Disponível em:
http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/. Acesso em: 25 jun. 2021.

MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de Linguística. 2.ed. São Paulo:


Contexto, 2020.

SAUSURRE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 28 ed. São Paulo: Cultrix,
2012.

SILVA, Paulo Cesar Garré. SOUSA, Antonio Paulino de. Revista Educação e
Emancipação, São Luís, v. 10, n. 3, set/dez.2017. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.18764/2358-4319.v10n3p260-285. Acesso em: 28 jun. 2021.

SOUZA, Fátima Graziele de. Gramática: ensino na perspectiva normativa x


reflexão linguística. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras. Vol. 08 Nº 02 –
dez. 2015.

361
O USO DO AVEA MOODLE NA EXECUÇÃO DO PROJETO DE ENSINO
“NO MEIO DO CAMINHO TEM O ENEM: OFICINAS PREPARATÓRIAS
PARA EXAMES DE INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR”48

Flávia Zanatta49
Mateus Freitas Charloto50

RESUMO: A imposição do ensino remoto ocasionada pela pandemia da Covid-19


demandou a mobilização de variadas ferramentas digitais para dar continuidade aos
processos educacionais. Nesse cenário, ganharam destaque as potencialidades dos
Ambientes Virtuais de Ensino e Aprendizagem (AVEA), espaços virtuais que encerram em si
um conjunto considerável de recursos e atividades para a promoção do ensino a distância.
Com base nessas características dos AVEA, julgou-se ser viável desenvolver o projeto de
ensino “No meio do caminho tem o Enem: oficinas preparatórias para exames de ingresso
no ensino superior” de forma remota, através do uso do AVEA Moodle. Neste trabalho, será
relatado de que modo as possibilidades do Moodle foram exploradas ao longo do projeto
para atingir seu objetivo geral de ofertar oficinas de Língua Portuguesa, Literatura, Língua
Estrangeira Moderna (Espanhol e Inglês) e Redação que ajudassem os estudantes dos Cursos
Técnicos Integrados ao Ensino Médio do IFRS Campus Vacaria na sua preparação para
prestar as provas do Enem e de vestibulares. A variedade do repertório de materiais e
atividades gerado ao final do projeto, a participação dos estudantes atendidos e os
resultados obtidos por vários deles no Enem 2020 e em vestibulares permitem afirmar que
foram de grande valia todas as possibilidades do Moodle mobilizadas, as quais permitiram
promover a construção, a consolidação e a prática de conhecimentos na área das
Linguagens, tão necessária para o bom desempenho nos processos seletivos para ingresso
no ensino superior.
Palavras-chave: Ferramentas do Moodle, Oficinas preparatórias para o Enem e vestibulares,
Área de Linguagens.

48 Este artigo é resultado do projeto de ensino “No meio do caminho tem o Enem: oficinas
preparatórias para exames de ingresso no ensino superior”, desenvolvido entre setembro de
2020 e março de 2021 no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande
do Sul - IFRS Campus Vacaria - com recursos do Programa Institucional de Bolsas de Ensino
(PIBEN) do Campus Vacaria.
49 Doutoranda em Ensino na Universidade do Vale do Taquari - Univates. Professora de

Linguagens do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul -


IFRS Campus Vacaria, flavia.zanatta@vacaria.ifrs.edu.br
50 Graduando do Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal do Rio Grande

do Sul - UFRGS, mateusfc100@gmail.com

362
INTRODUÇÃO

Cientes da importância de um bom desempenho nos processos


seletivos para ingressar no ensino superior, os estudantes dos terceiros e
quartos anos do Ensino Médio Integrado do Campus Vacaria sinalizaram
interesse em participar de oficinas que os ajudassem na preparação para
provas do Enem e de vestibulares. Essa preocupação, principalmente com o
Enem, é legítima, já que, desde 2009, esse exame vem se convertendo na
única forma de ingresso em grande parte das universidades públicas do Brasil.
Nesse sentido, põe-se em relevo articular situações de ensino em que a
dinâmica das provas do Enem e de vestibulares esteja presente, sendo
apresentada aos estudantes e com eles discutida, a fim de que percebam
como os conteúdos trabalhados nos componentes curriculares que integram
o ensino médio figuram nas questões.

Então, buscando atender a essa demanda e visando oferecer


atividades que possibilitassem o aprofundamento dos conhecimentos dos
estudantes nos componentes que integram a área de Linguagens, Códigos
e suas Tecnologias, de acordo com a Matriz de Referência Enem (BRASIL,
2009), elaborou-se o projeto de ensino “No meio do caminho tem o Enem:
oficinas preparatórias para exames de ingresso no ensino superior”,
concebido como um espaço para aprofundar conhecimentos na área de
Linguagens, revisar conteúdos de Literatura, Língua Portuguesa, Língua
Estrangeira e Redação e pôr em prática esses conhecimentos. E, tendo em
vista que o domínio da linguagem é “uma das condições para a plena
participação do indivíduo em seu meio social” (ANTUNES, 2003, p. 22), as
oficinas do projeto se configuraram também como uma oportunidade para
o desenvolvimento/aprimoramento da competência comunicativa dos
estudantes, isto é, sua capacidade, como usuários da língua, “de produzir e

363
compreender textos adequados à produção de efeitos de sentido desejados
em situações específicas e concretas de interação comunicativa”
(TRAVAGLIA, 2014, s.p.).

Planejado para ocorrer de forma presencial, o projeto teve, devido à


pandemia da Covid-19, que ser adaptado ao ensino remoto, e para
executá-lo foi empregado o Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem
(AVEA) Moodle, plataforma oficial de sustentação das atividades remotas e
a distância do IFRS. Por se configurar como um espaço “de gestão e
construção integradas de informação, comunicação e aprendizagem
online” (SILVA, 2010, p. 49), no qual enquanto o professor “disponibiliza o
acesso a um mundo de informações, fornece conteúdo didático multimídia
para estudo, objetos de aprendizagem, materiais complementares”, o aluno
“toma decisões, analisa, interpreta, observa, testa hipóteses, elabora e
colabora” (ibidem), o AVEA Moodle se mostrou uma opção muito rica tanto
para a elaboração quanto para a disponibilização de conteúdos
necessários para a realização das oficinas do projeto.

Sendo assim, pretende-se, neste texto, relatar de que modo as


possibilidades recursivas do AVEA Moodle foram exploradas ao longo do
projeto para atingir seu objetivo geral de ofertar oficinas de Língua
Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira Moderna (Espanhol e Inglês) e
Redação que ajudassem os estudantes dos Cursos Técnicos Integrados ao
Ensino Médio do IFRS Campus Vacaria na sua preparação para prestar as
provas do Enem e de vestibulares.

Para tal, organizou-se o texto da seguinte forma: primeiro, faz-se uma


breve apresentação da organização do projeto; em seguida, tecem-se
algumas considerações acerca das ferramentas disponíveis na configuração
do AVEA Moodle usada no IFRS Campus Vacaria, com ênfase nas utilizadas
nas oficinas; a seguir, descreve-se de que modo elas foram empregadas

364
para o desenvolvimento das atividades e para a organização dos materiais;
e, por fim, discutem-se os resultados da execução do projeto de forma
remota.

1 UMA BREVE DESCRIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DO PROJETO

O projeto de ensino “No meio do caminho tem o Enem: oficinas


preparatórias para exames de ingresso no ensino superior” esteve em
atividade entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021. Durante esse período,
foram promovidas oficinas semanais que perfizeram uma carga horária total
de 50h, das quais 24 foram destinadas aos momentos síncronos e 26 aos
assíncronos. Inicialmente, deu-se ênfase ao Enem, tendo sido realizados dois
simulados durante esse período: um de Linguagens e outro de Redação. A
partir da segunda quinzena de janeiro até o fim de fevereiro, o foco passou
a ser nos vestibulares da UFRGS, da UCS, da UDESC e da UFSC, instituições
sinalizadas pelos estudantes como de maior interesse.

Quanto à organização das oficinas, cabe dizer que elas eram


sistematizadas de acordo com o componente curricular, o qual era
trabalhado ao longo de uma quinzena, sendo em uma semana de forma
síncrona, por meio do Google Meet, e na seguinte de forma assíncrona,
através da disponibilização de atividades e materiais no Moodle. As oficinas
síncronas tinham uma natureza teórico-prática, dado que contemplavam
revisão e sistematização de conteúdos e resolução de exercícios. Nelas, para
os momentos destinados à resolução de questões, denominados “Hora da
prática”, costumavam ser empregados recursos de plataformas como
Wordwall, Kahoot e Nearpod. Já as oficinas assíncronas destinavam-se,
principalmente, à prática dos conteúdos tratados no momento síncrono, por

365
meio de atividades variadas elaboradas com as ferramentas disponíveis no
AVEA Moodle.

Para tornar o projeto mais acessível aos estudantes, os momentos


síncronos costumavam ser gravados e disponibilizados no Moodle, algo que
também servia de suporte à realização das atividades propostas nas oficinas
assíncronas. Ao longo do projeto, essa conduta se mostrou muito acertada,
já que nem sempre os estudantes conseguiam participar das oficinas
síncronas, seja em função de data e horário seja devido às demandas
escolares. Porém, verificou-se que eles interagiam com o material
posteriormente e que, de modo geral, apresentavam um desempenho
satisfatório nas atividades assíncronas, o que evidencia a apropriação dos
conteúdos abordados nos momentos síncronos e disponibilizados no Moodle.

Por fim, é importante mencionar que, embora algumas oficinas


estivessem atreladas às chamadas APNPs (Atividades Pedagógicas Não
Presenciais), adotadas pelo IFRS durante a suspensão do calendário letivo, a
participação em grande parte delas não era obrigatória, de maneira que os
estudantes podiam escolher de quais, de fato, tinham interesse em participar.
Nesse sentido, cabe destacar que, desde que o aluno estivesse devidamente
inscrito no ambiente do projeto, ele poderia ter acesso a todos os materiais
e realizar todas as atividades disponíveis no momento que lhe fosse mais
oportuno.

2 AS FERRAMENTAS DO AVEA MOODLE MOBILIZADAS NO PROJETO

“Desenvolvido sob a teoria construtivista social, a qual defende a


construção de ideias e conhecimentos em grupos sociais de forma
colaborativa, uns para com os outros, criando assim uma cultura de

366
compartilhamento de significados” (ALENCAR et al., s.d., p. 2), o Moodle,
acrônimo de Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment,
permite a gestão da aprendizagem online e pode ser utilizado em cursos a
distância, semipresenciais e presenciais. Por se tratar de um Software Livre, é
utilizado por diversas instituições de ensino para o desenvolvimento de
atividades de ensino e de aprendizagem.

Tal ambiente virtual é composto por uma série de ferramentas básicas,


as quais se dividem em recursos e atividades. De acordo com Pereira (2013),
os recursos são utilizados para demonstrar conteúdos aos estudantes
enquanto as atividades são ferramentas de avaliação ou comunicação
com os alunos. Na configuração do Moodle utilizada no IFRS Campus
Vacaria estão disponíveis vinte e sete atividades e sete recursos. As
atividades são: Atividade Hot Potatoes, Base de dados, BigBlueButtonBN,
Certificado Simples, Chat, Checklist, Escolha, Ferramenta externa, Fórum,
Glossário, H5P, Jogo Caça Palavras, Jogo Cobras e Escada, Jogo Forca, Jogo
Imagem oculta, Jogo Milionário, Jogo Palavras-cruzadas, Jogo Sudoku,
Laboratório de Avaliação, Lição, Pacote SCORM, Pesquisa, Pesquisa de
avaliação, Presença, Questionário, Tarefa e Wiki. Já os recursos são: Arquivo,
Conteúdo do pacote IMS, Livro, Página, Pasta, Rótulo e URL. Desse conjunto,
fez-se uso das atividades Escolha, Fórum, Glossário, Questionário e Tarefa e
dos recursos Arquivo, Pasta, Página, Rótulo e URL.

Nos quadros abaixo, são apresentados, respectivamente, as


atividades e os recursos utilizados no projeto, acompanhados de sua
definição e funcionalidade.

367
ATIVIDADES DESCRIÇÃO

Escolha O módulo de escolha permite ao professor fazer uma pergunta e


especificar opções de múltiplas respostas. Seus resultados podem ser
publicados depois que os estudantes responderem, após uma
determinada data, ou não.

Fórum O módulo de atividade fórum permite que participantes tenham


discussões assíncronas, ou seja, discussões que acontecem durante um
longo período. Existem vários tipos de fóruns que podem ser escolhidos,
como o fórum padrão, no qual qualquer um pode iniciar uma discussão
a qualquer momento; um fórum em que cada estudante pode postar
apenas uma discussão; ou um fórum de perguntas e respostas no qual os
estudantes devem primeiro fazer um post para, então, serem autorizados
a ver os outros posts de outros estudantes. Um professor pode permitir que
arquivos sejam anexados aos posts dos fóruns.

Glossário O módulo de atividade de glossário permite aos participantes criar e


manter uma lista de definições, como um dicionário, ou coletar e
organizar recursos ou informações. O professor pode permitir que
arquivos sejam anexados aos termos do glossário. As imagens anexadas
são exibidas no termo. Os termos do glossário podem ser pesquisados ou
listados alfabeticamente ou por categoria, data ou autor. Os termos
podem por padrão serem aprovados ou depender da aprovação de
um professor antes de serem visualizados por alguém.

Questionário A atividade Questionário permite criar e configurar questionários com


questões de vários tipos, incluindo múltipla escolha, verdadeiro ou falso,
correspondência, resposta curta entre outras. O professor pode permitir
que o questionário tenha múltiplas tentativas, com questões
embaralhadas ou selecionadas aleatoriamente de uma categoria do
banco de questões. Cada tentativa é corrigida automaticamente, com
exceção das questões dissertativas, e a nota é registrada no livro de
notas do curso.

Tarefa O módulo de atividade permite a atribuição de um professor para


comunicar tarefas, recolher o trabalho e fornecer notas e comentários.
Os alunos podem apresentar qualquer conteúdo digital (arquivos), como
documentos de texto, planilhas, imagens, áudios ou videoclipes.
Alternativamente, ou adicionalmente, a atribuição pode exigir dos
estudantes a digitação do conteúdo diretamente no editor de texto.
Uma tarefa também pode ser usada para lembrar aos alunos das
atribuições 'mundo real' que eles precisam para completar off-line, tais
como obras de arte e, portanto, não necessita de qualquer conteúdo
digital. Os estudantes podem submeter trabalhos, individualmente ou
como membro de um grupo. Ao analisar os trabalhos, os professores
podem deixar comentários de feedback e fazer upload de arquivos,
como marcar apresentações dos alunos, documentos com comentários
ou feedback de áudio falado. Atribuições podem ser classificadas de
acordo com uma escala numérica ou customizada ou um método de

368
classificação avançada, como uma rúbrica. Notas finais são registradas
no livro de notas.

Quadro 1: Atividades do AVEA Moodle utilizadas nas oficinas do projeto. Elaborado pelos
autores a partir das informações disponíveis na AVEA do projeto No meio do caminho tem o
Enem.

RECURSOS DESCRIÇÃO

Arquivo O módulo de arquivo permite que o professor forneça um arquivo como


recurso na disciplina. Sempre que possível, o arquivo será exibido na
interface do curso, caso contrário, os alunos serão solicitados a fazer o
download. O arquivo pode incluir arquivos de suporte, por exemplo uma
página HTML, que pode ter incorporado imagens ou objetos Flash. Note-
se que os alunos precisam ter o software adequado em seus
computadores a fim de abrir o arquivo. Um arquivo pode ser usado para:
compartilhar apresentações em classe, incluir um mini website como um
recurso no curso e fornecer arquivos de projetos de determinados
programas de software (por exemplo, Photoshop. Psd) para que os alunos
possam editar e enviá-los para a avaliação.

Pasta O módulo pasta permite ao professor exibir um número de arquivos


relacionados dentro de uma pasta única, reduzindo a rolagem na página
do curso. A pasta zipada pode ser carregado e descompactada para
exibição, ou uma pasta vazia criada e arquivos enviados para ela. Esse
recurso pode ser usado para uma série de arquivos em um tópico, por
exemplo, um conjunto de documentos de exame passados em formato
pdf e para prover um espaço compartilhado de upload para professores
na página do curso (mantendo a pasta oculta para que só os professores
possam vê-la).

Página Este recurso habilita que uma página web seja exibida e editada em um
curso.

Rótulo Um rótulo permite que um texto e/ou imagens possam ser inseridos no
meio dos links de atividades na página do curso. Rótulos são muito
versáteis e podem ajudar a melhorar a aparência de um curso caso
utilizados sabiamente. Rótulos podem ser utilizados para: separar uma lista
de atividades na forma de um cabeçalho ou uma imagem, exibir um som
incorporado ou vídeo diretamente na página do curso e adicionar uma
descrição breve a uma seção de um curso.

URL O módulo de URL permite que um professor forneça um link de web como
um recurso da disciplina. Tudo o que está online disponível gratuitamente,
tais como documentos ou imagens, pode ser ligado a URL, não sendo
necessariamente a home page de um site. A URL de uma página web
em particular pode ser copiada e colada, ou um professor pode usar o
seletor de arquivo e escolher um link de um repositório, como Flickr,

369
YouTube ou Wikipédia (dependendo de quais repositórios estão
habilitados para o site). Há uma série de opções de exibição para a URL,
como embutidos, abrir em uma nova janela e opções avançadas de
informação que passa, tal como o nome de um aluno, para a URL, se
necessário.

Quadro 2: Recursos do AVEA Moodle utilizados nas oficinas do projeto. Elaborado pelos
autores a partir das informações disponíveis na AVEA do projeto No meio do caminho tem o
Enem.

A escolha por tais atividades e recursos de deveu à natureza dos


componentes contemplados no projeto e dos conteúdos explorados. Então,
se o propósito era promover a prática de conteúdos através da realização
de questões do Enem e de vestibulares, por exemplo, fazia-se uso da
atividade Questionário. Já se o intuito era possibilitar o compartilhamento de
informações, para que todos os participantes pudessem ter acesso às
postagens uns dos outros, optava-se por atividades como Fórum e Glossário51.
Nesse sentido, criaram-se certos padrões para a disponibilização e criação
de materiais. Em todas as oficinas síncronas, por exemplo, foram empregados
os recursos Arquivo, Rótulo e URL, já que no caso destas, o Moodle funcionou
mais como um repositório de materiais a serem acessados por quem não
participou do momento síncrono ou por quem participou e gostaria de rever
as explicações e/ou refazer as atividades desenvolvidas nos momentos de
prática ocorridos durante os encontros síncronos. Através do recurso Rótulo,
disponibilizavam-se informações e orientações gerais acerca das oficinas e
dos materiais à disposição; o recurso URL era mobilizado para disponibilizar a
gravação dos encontros síncronos, as quais ficavam armazenadas no
Google Drive do e-mail do projeto, e os links das plataformas empregadas

51É importante destacar que também foram mobilizadas outras plataformas para a
realização de atividades, sobretudo nas oficinas síncronas, sendo que essas eram inseridas
no Moodle através de links, ou seja, com o uso do recurso URL.

370
para as atividades relativas aos momentos de prática; o recurso Arquivo era
empregado para deixar à disposição os slides utilizados.

Nas oficinas assíncronas, também se fez uso, quando necessário, dos


recursos acima elencados. Porém, como o propósito delas era colocar em
prática os conhecimentos angariados nos momentos síncronos, deu-se
prioridade às atividades, as quais permitiam criar conteúdos. A seguir,
detalha-se de que modo foram empregadas as atividades Escolha, Fórum,
Glossário, Questionário e Tarefa nas oficinas de Língua Estrangeira, Redação,
Literatura e Língua Portuguesa.

2 OFICINAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Ao longo do projeto foram realizadas quatro oficinas de Língua


Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol), sendo duas delas destinadas à
prova do Enem e duas para abordar de que modo essas línguas são
cobradas nos vestibulares da UFRGS, da UCS, da UDESC e da UFSC,
instituições sinalizadas pelos estudantes como de maior interesse. Nessas
oficinas, foi mobilizada a atividade Questionário, além dos recursos Arquivo,
URL e Rótulo.

Entre os dias 24 e 01 de setembro de 2020, foram realizadas oficinas de


Língua Estrangeira Moderna com foco nas provas do Enem. No momento
síncrono, foram explorados aspectos relacionados à estrutura das questões
e à forma como são cobrados os conteúdos, além de terem sido propostos
momentos de prática, por meio da resolução de exercícios através da
plataforma Wordwall. No momento assíncrono, a fim de que os estudantes
aplicassem os conhecimentos estratégicos obtidos e se familiarizassem com

371
as características da banca mencionada, foram propostos questionários,
elaborados no Moodle, com quinze questões do Enem de cada língua.

Entre os dias 21 e 28 de janeiro de 2021, realizou-se mais um par de


oficinas de Língua Estrangeira Moderna, as quais trataram das provas da UCS,
da UDESC, da UFSC e da UFRGS. O momento síncrono foi destinado à análise
de questões das provas dessas instituições acompanhada de momentos de
prática, por meio da resolução de questionários no Moodle compostos por
questões similares às dissecadas durante a explanação. De forma
semelhante, no momento assíncrono, optou-se pela utilização de
questionários com perguntas retiradas das provas dessas universidades, o
que permitiu aos discentes a aplicação de seus conhecimentos em Inglês e
Espanhol de maneira mais direcionada.

3 OFICINAS DE REDAÇÃO

Ao longo do projeto foram realizadas seis oficinas de redação, sendo


cinco delas destinadas à redação do Enem, incluindo um simulado, e uma à
redação nos vestibulares da UDESC e da UFRGS, instituições sinalizadas pelos
estudantes como de maior interesse. Nessas oficinas, foram mobilizados as
atividades Glossário, Questionário e Tarefa e os recursos Arquivo, Pasta,
Rótulo e URL.

Nas oficinas dos dias 08 e 15 de outubro de 2020, foram exploradas


questões referentes à preparação para a redação do Enem, a como a
redação é avaliada e ao que é avaliado em cada competência, com
ênfase nas competências 1 (Demonstrar domínio da modalidade escrita
formal da língua portuguesa) e 2 (Compreender a proposta de redação e
aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o

372
tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em
prosa).

Para a elaboração do conjunto de atividades da oficina assíncrona


responsável por explorar, na prática, aspectos da redação concernentes à
Competência 1 e à Competência 2, usou-se a atividade Questionário.
Quanto à Competência 1, foram explorados aspectos referentes à escolha
vocabular através de atividades que levaram os estudantes a identificar
sinônimos e antônimos. A intenção foi ampliar o domínio léxico dos
participantes e explorar as noções de precisão e imprecisão vocabular
trabalhadas na oficina síncrona. Já a competência 2 foi explorada em dois
questionários específicos, um destinado à abordagem do tema e outro à
estrutura do texto dissertativo-argumentativo, tendo em vista que tal
competência contempla ambos os aspectos. Para a abordagem do tema,
elaborou-se uma questão em que, a partir da leitura da Proposta de
Redação do ano de 2017, os estudantes deveriam indicar se as possibilidades
de desenvolvimento do tema apresentadas configuravam “Abordagem do
tema”, “Tangenciamento do tema” ou “Fuga do tema”. Para explorar a
estrutura do texto dissertativo-argumentativo, criou-se uma questão em que
os participantes deveriam colocar as partes de um texto modelo Enem em
ordem. Para tal, deveriam observar as ideias contidas em cada parte e os
elementos responsáveis por estabelecer as relações entre elas.

Nas oficinas dos dias 22 e 29 de outubro de 2020, foram mobilizadas as


atividades Questionário e Glossário e os recursos Arquivo, Rótulo e URL. Nessas
oficinas, estiveram em destaque as competências 3 (Selecionar, relacionar,
organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa
de um ponto de vista), 4 (Demonstrar conhecimento dos mecanismos
linguísticos necessários para a construção da argumentação) e 5 (Elaborar

373
proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos
humanos).

A oficina assíncrona contemplou o uso das atividades Questionário e


Glossário. Este foi empregado para promover o compartilhamento de
repertório sociocultural, tendo em vista que esse é um aspecto
extremamente relevante para a construção da contextualização e da
argumentação do texto, englobando, portanto, as competências 2 e 3. Para
tal, elaborou-se uma atividade em que os estudantes deveriam mobilizar seus
conhecimentos prévios e articulá-los a uma determinada temática. Em um
primeiro momento, eles tinham que escolher um dos temas previamente
estabelecidos (Valorização do SUS; Os impactos das fake news na sociedade
brasileira; O acesso à informação na sociedade brasileira; A disseminação
da violência urbana no Brasil; Os efeitos dos desastres ambientais no Brasil;
Movimento antivacina e ressurgimento de doenças erradicadas no Brasil;
Homeschooling - vantagens e desvantagens da educação à distância para
a formação básica) e selecionar para ele uma referência oriunda de seu
repertório sociocultural. Essa referência poderia ser uma série, um filme, uma
música, um personagem, versos de um poema, informações de áreas do
conhecimento variadas etc. Feito isso, o aluno deveria elaborar um
parágrafo explanando um pouco sobre a referência escolhida e indicando
de que modo ela poderia ser relacionada ao tema52.

52 Para materializar as instruções dadas, apresentaram-se aos estudantes dois exemplos de


mobilização de repertório sociocultural, sendo um deles este:
Filme - Matrix
Tema: Manipulação do comportamento
No filme “Matrix”, clássico do gênero ficção científica, o protagonista Neo é confrontado
pela descoberta de que o mundo em que vive é, na realidade, uma ilusão construída a fim
de manipular o comportamento dos seres humanos, que, imersos em máquinas que mantêm
seus corpos sob controle, são explorados por um sistema distópico dominado pela
tecnologia. Embora seja uma obra ficcional, o filme apresenta características que se
assemelham ao atual contexto brasileiro, pois, assim como na obra, os mecanismos
tecnológicos têm contribuído para a alienação dos cidadãos, sujeitando-os aos filtros de

374
A atividade Questionário foi empregada para tratar das
Competências 4 e 5. No concernente à Competência 4, elaborou-se uma
questão para explorar os mecanismos linguísticos na construção da
argumentação em que os estudantes tinham que reconhecer as relações de
sentido que se estabelecem entre as ideias que compõem um texto e
empregar os mecanismos linguísticos devidos na construção da
argumentação. Para tal, tinham à disposição um texto modelo Enem, o qual
deveria ser lido e, a partir da identificação das relações de sentido possíveis
entre orações em que havia lacunas, preenchê-las com os operadores
argumentativos adequados, selecionados dentre os listados na questão53.
Quanto à Competência 5, foram explorados os elementos que devem
integrar a proposta de intervenção e como esta pode ser estruturada. Para
tanto, foram elaboradas duas questões, uma em que os estudantes
deveriam observar passagens destacadas em trechos de propostas de
intervenção retiradas do Manual de correção da redação do Enem -
Competência 554 e identificar a que elemento correspondiam (agente, ação,
meio/modo, efeito, detalhamento) e outra em que tinham de colocar em
ordem a proposta de intervenção de um texto modelo Enem, a qual havia
sido desmembrada.

Ainda em relação à redação do Enem, houve uma oficina destinada


ao desenvolvimento de uma proposta de escrita. Na oficina do dia 07 de

informações impostos pela mídia, o que influencia negativamente seus padrões de consumo
e sua autonomia intelectual.
Fonte: Redação de Fernanda Carolina Santos Terra de Deus. Disponível em:
http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/downloads/2019/redacao_enem20
19_cartilha_participante.pdf. Acesso em out. 2020.
53 Na ordem da atividade, chamou-se a atenção dos estudantes para o fato de que, em

termos de relação de sentido, poderia haver mais de uma possibilidade viável, mas que eles
deveriam prestar atenção à estrutura das sentenças no momento de definir o conector,
dado que ela pode restringir as possibilidades a apenas um operador argumentativo.
54 Material disponibilizado pelo Inep em http://inep.gov.br/web/guest/enem-outros-
documentos.

375
janeiro de 2021, promoveu-se um Simulado de Redação, para o qual foram
utilizados os recursos Pasta, Rótulo e URL e a atividade Tarefa. Foram
disponibilizadas na pasta cinco propostas de redação modelo Enem para
que os participantes do projeto escolhessem a(s) que quisessem desenvolver.
Através do recurso URL, eles tinham acesso ao template da redação,
elaborado de modo a facilitar o processo de identificação do estudante e
da proposta escolhida, bem como a avaliação, por já conter uma tabela
com os critérios de acordo com os quais a redação do Enem é avaliada. Por
fim, usou-se a atividade Tarefa para que os estudantes postassem o link do
seu texto, produzido no Google Docs a partir do template disponibilizado.
Essa dinâmica mostrou-se produtiva no sentido de que facilitou o processo
de avaliação do texto e possibilitou aos estudantes visualizar correções e
comentários feitos pela professora avaliadora. Vale destacar, por fim, que
foram realizados dois plantões de dúvidas para que os estudantes pudessem,
primeiramente, solicitar suporte em relação à escrita da redação e,
posteriormente, esclarecer dúvidas quanto à avaliação de seu texto.

Em relação ao par de oficinas com ênfase em vestibulares, realizadas


nos dias 18 e 25 de fevereiro de 2021, foram apresentadas e discutidas com
os participantes as propostas de redação das provas da UDESC 2019 e 2020
e da UFRGS 2020, tendo em vista que foram as duas instituições cujas provas
os participantes explicitaram ter mais interesse em conhecer. Também foram
dadas orientações gerais sobre as provas da UCS e da UFSC. Cabe destacar
que a redação integrou apenas a oficina síncrona, de modo que se fez uso
dos recursos Arquivo e URL para disponibilizar os materiais no Moodle.

376
4 OFICINAS DE LITERATURA

Ao longo do projeto foram realizadas seis oficinas de Literatura, sendo


quatro delas destinadas à prova do Enem e duas para abordar a obra “Deixe
o quarto como está”, de Amilcar Bettega, uma das leituras obrigatórias da
UFRGS, instituição de grande interesse dos participantes do projeto. Nessas
oficinas, foram mobilizadas as atividades Questionário, Escolha e Fórum e os
recursos Arquivo, Rótulo e URL.

Nas oficinas dos dias 05 e 12 de novembro de 2020, foram tratados os


gêneros literários. Para o momento assíncrono, foram elaboradas questões
de múltipla escolha e de relacionar informações para explorar o conteúdo,
sendo a atividade Questionário empregada para isso.

Na oficina síncrona do dia 19 de novembro de 2020, acerca dos


autores mais frequentes na prova de Linguagens do Enem, foi empregada a
atividade Escolha para realizar enquetes com os estudantes referentes ao
seu conhecimento sobre tais autores e sobre o cânone literário brasileiro. A
opção por essa ferramenta se deveu ao fato de ela proporcionar um maior
engajamento por parte dos estudantes, dado o seu caráter lúdico, além de
possibilitar verificar o conhecimento dos participantes em relação à temática
em discussão.

No momento assíncrono atrelado à oficina supracitada, ocorrido em


26 de novembro, foi proposto um fórum no qual cabia ao aluno escolher um
dos autores estudados e, então, compartilhar informações a seu respeito.
Essa atividade se mostrou como a mais adequada por permitir o
aprofundamento do conhecimento dos discentes tanto de forma individual
quanto conjunta, tendo em vista que eles possuíam livre acesso à

377
publicação dos colegas, o que possibilitava uma espécie de intercâmbio de
informações.

No par de oficinas referente aos dias 04 e 11 de fevereiro, foi explorada


a obra literária “Deixe o quarto como está”, de Amilcar Bettega. No
momento síncrono, ocorreu a apresentação do enredo dos contos que
integram a citada obra, tendo essa sido intercalada com momentos de
prática através da plataforma Mentimeter. Já no momento assíncrono, foi
proposto um Fórum no qual cabia aos estudantes a postagem de um mapa
conceitual ou esquema a respeito do conto “Autorretrato”, único não
apresentado na oficina síncrona. Utilizou-se essa atividade a fim de que os
discentes pudessem aprofundar, a partir da sistematização dos principais
pontos da narrativa e de uma leitura individual, seus conhecimentos acerca
dos escritos e da escrita de Bettega.

5 OFICINAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Na organização das oficinas de Língua Portuguesa com foco no Enem,


optou-se por explorar conteúdos recorrentes nas provas de Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias de 2015 a 2019 através da realização e análise
de questões e discussão de como os conteúdos enfocados são cobrados.
Para isso, mobilizaram-se a atividade Questionário e os recursos Arquivo,
Rótulo e URL.

Nas oficinas dos dias 03 e 10 de dezembro, foram abordados os


conteúdos tipos e gêneros textuais e funções da linguagem; nas oficinas dos
dias 17 e 24, o foco recaiu na variação linguística e na interpretação de
textos não verbais e mistos. Nas oficinas assíncronas, foram disponibilizados
dois questionários, um para cada conteúdo trabalhado, nos quais havia

378
algumas questões de cunho teórico, para reforçar conceitos, noções e
nomenclaturas, e questões variadas selecionadas das provas das edições do
Enem de 2015 a 2019.

Promoveu-se também um Simulado de Linguagens, para o qual foram


mobilizados o recurso Arquivo e a atividade Questionário. Esse simulado,
ocorrido no dia 14 de janeiro de 2021, consistiu na aplicação dos
conhecimentos na área de Linguagens para responder a questões do Enem.
Para tentar aproximar os estudantes das condições reais de realização da
prova, optou-se por deixar as questões disponíveis em um arquivo .pdf, o qual
poderia ser impresso, e criou-se um questionário para registro do gabarito. Ao
finalizar e enviar o questionário, os estudantes recebiam, para as respostas
erradas, um feedback contendo comentários sobre cada alternativa, o que
lhes permitia identificar os motivos pelos quais não acertaram, além de
esclarecer e reforçar tópicos dos conteúdos cobrados nas questões.

Nas oficinas com foco em vestibulares, em que, a pedido dos


estudantes, deu-se ênfase às instituições UFRGS e UDESC, foram mobilizados
os recursos Rótulo e URL e a atividade Questionário. Na oficina síncrona foram
analisadas questões das provas da UDESC 2019 e 2020 e da UFRGS 2020, e na
oficina assíncrona os estudantes puderam aplicar seus conhecimentos de
Língua Portuguesa para responder a questões de provas dos processos
seletivos dessas instituições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de bastante desafiadora, considera-se que a execução do


projeto de forma remota foi bem sucedida, uma vez que foram alcançados
todos os objetivos definidos e contou-se com uma participação expressiva

379
dos estudantes do último ano do ensino médio, sendo que muitos deles
obtiveram resultados excelentes no Enem, o que lhes permitiu ingressar no
ensino superior.

Essa participação expressiva, contudo, se aplica às oficinas na


modalidade assíncrona, já que nas oficinas síncronas o número de
participantes foi geralmente baixo, oscilando entre 5 e 10 (de um total de 64).
A adesão maior e mais constante nas oficinas assíncronas, nas quais os
estudantes apresentaram um bom desempenho nas atividades realizadas, é
indício de que o êxito do projeto se deve, em boa medida, ao uso do AVEA
Moodle, dado que foi o vasto leque de ferramentas dessa plataforma que
permitiu a elaboração de um repertório de materiais e atividades amplos
que pôde ficar disponível na íntegra aos participantes do projeto.

Diante do exposto, pode-se dizer que as possibilidades recursivas do


AVEA Moodle permitiram desenvolver a contento o projeto de ensino “No
meio do caminho tem o Enem: oficinas preparatórias para exames de
ingresso no ensino superior”, dado que, a partir dos recursos e das atividades
mobilizados, foi possível disponibilizar materiais e propostas de aprendizagem,
além de acompanhar o progresso e o aproveitamento dos estudantes. Estes,
por sua vez, tiveram autonomia para escolher o momento e o modo de
interagir com os materiais e de realizar as atividades. Esse processo contínuo
e coparticipativo de ensino e aprendizagem tornou possível a construção, a
consolidação e a prática de conhecimentos na área das Linguagens, ações
indubitavelmente necessárias a um bom desempenho nos processos
seletivos para ingresso no ensino superior. Sendo assim, conclui-se que a
execução do projeto de forma remota, através do uso do Moodle, propiciou
aos estudantes a oportunidade de não só se prepararem para os processos
seletivos de que participariam, mas também de aprimorarem sua
competência linguística.

380
REFERÊNCIAS

ALENCAR, Andréia de Souza; MATIAS, Fernanda Cristina de Paula;


GUIMARÃES, Fernanda Pereira; OLIVEIRA, Rodrigo Sanches de. O Moodle
como ferramenta didática. In: CONGRESSO NACIONAL UNIVERSIDADE, EAD E
SOFTWARE LIVRE, 2011. Anais [...]. Minas Gerais, 2011, v. 2, n. 2. p. 1-5. ISSN
2317-0220. Disponível em:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/2919.
Acesso em: 15 jan. 2020.

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. 8. ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2003.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. e Instituto Nacional de Estudos e


Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Matriz de Referência para o ENEM 2009.
Brasília, Distrito Federal, 2009. Disponível em:
http://www.enem.inep.gov.br/pdf/Enem2009_matriz.pdf. Acesso em: 11 jan.
2020.

PEREIRA, Leila Rosária de Felix. Ambiente virtual de ensino e aprendizagem:


uso do Moodle para ampliar os recursos didáticos dos professores da
educação básica. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação.
Superintendência de Educação. Os Desafios da Escola Pública Paranaense
na Perspectiva do Professor PDE: Produção Didático-pedagógica, 2013.
Curitiba: SEED/PR., 2016. V.2. (Cadernos PDE). ISBN 978-85-8015-075-9.
Disponível em:
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.
php?conteudo=20. Acesso em: 15 jan. 2020.

SILVA, Marco. Educar na cibercultura: desafios à formação de professores


para docência em cursos online. Revista Digital de Tecnologias Cognitivas,

381
São Paulo, SP, v. 1 , n. 3, p. 36-51, 2010. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/teccogs/article/view/52991. Acesso em:
15 jan. 2020.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Competência comunicativa. In: FRADE, Isabel C. A.


da Silva et al. Glossário Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para
educadores. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2014.
Disponível em:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/competen
cia-comunicativaAcesso em: 11 jan. 2020.

382
GEOSSOCIOLINGUÍSTICA E ENSINO: A VARIAÇÃO POPULAR EM
SALA DE AULA

Thiago Leonardo Ribeiro 55


Vera Maria Ramos Pinto 56

RESUMO: Obras como O dialeto caipira (AMARAL, 1920), O linguajar carioca (NASCENTES,
1922), A língua do Nordeste (MARROQUIM, 1996) são as precursoras de estudos sobre a
realidade linguística brasileira, inspiradoras dos primeiros atlas regionais, Atlas Prévio dos
Falares Baianos-APFB (1963), Atlas Linguístico de Sergipe-ALS (1973), Esboço de um Atlas
Linguístico de Minas Gerais-EALMG (1977), Atlas Linguístico da Paraíba-ALPB (1984) e o Atlas
Linguístico do Paraná-ALPR (1994). Esses trabalhos marcaram o início da Geolinguística no
Brasil e permitem que entendamos como é grande a variação linguística do Português
Brasileiro (PB) e possamos considerar, principalmente, dadas à dimensão territorial do nosso
país, a região geográfica como fator impulsionador dessa variedade linguística, somada aos
fatores sociais como o nível de escolaridade, a idade e o sexo dos falantes. Assim, a variação
de uma língua ocorre em todos os níveis da gramática: fonético-fonológico, semântico-
lexical, morfológico e sintático. Diante de tantas variedades, é comum nos depararmos com
o preconceito linguístico, principalmente advindo da fala de pessoas com menos
escolaridade e oriundas de áreas menos prestigiadas socialmente, como a zona rural. Desse
modo, na esfera educacional, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017, 2020),
documento norteador de ensino, propõe o trabalho com a variação linguística nos
componentes de Língua Portuguesa dos ensinos Fundamental e Médio. Nessa esteira,
considerando estudos de Ramos Pinto (2018), que prioriza a conscientização do futuro
professor de Língua Portuguesa (LP) sobre a importância da abordagem da variação
linguística no contexto escolar, apresentamos proposta de ensino de língua portuguesa,
fazendo junção das concepções da Sociolinguística com as da Geolinguística, utilizando
cartas linguísticas elaboradas com os dados obtidos sistematicamente em pesquisa
empreendida por Ribeiro (2021), em sua tese intitulada Atlas Linguístico do Norte Pioneiro do
Paraná – ALiNPiPR.

Palavras-chave: Geossociolinguística, Variação linguística, Língua Portuguesa, Ensino.

55 Doutor em Estudos da Linguagem pela UEL, Professor da SEED/PR. Membro do Grupo de


Pesquisa Leitura & Ensino. E-mail: thiagoleonardoribeiro@gmail.com;
56 Doutora em Estudos da Linguagem pela UEL. Professora Adjunta da UENP/CJ. Líder do

Grupo de Pesquisa Leitura & Ensino. E-mail: veramaria@uenp.edu.br.

383
INTRODUÇÃO

A Sociolinguística, como também a Dialetologia e a Geolinguística,


tem papel relevante para reflexão da língua portuguesa, da teoria à práxis,
possibilitando que alunos e professores encontrem formas de aprofundar o
ensino-aprendizagem da língua portuguesa, considerando, assim a variação
da língua e os fenômenos linguísticos em variação ou mudança.

Diante disso, acreditamos que o uso dos atlas linguísticos existentes


como o Atlas Linguístico do Brasil-ALiB e os regionais, a exemplo dos Atlas
Prévio dos Falares Baianos-APFB (1963), Atlas Linguístico de Sergipe-ALS (1973),
Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais-EALMG (1977), Atlas
Linguístico da Paraíba-ALPB (1984), Atlas Linguístico do Paraná-ALPR (1994),
Atlas Linguístico de Pernambuco-ALiPE (2013), Atlas Linguístico de Alagoas-
ALEAL (2013), constitui-se numa ferramenta de ensino que pode contribuir
para a compreensão de que “[...] a nossa língua deve ser sempre um
instrumento de socialização de ganhos, de histórias, de fontes de
conhecimento e, sobretudo, de humanização de todo e qualquer falante
no seu trato diuturno e jamais uma forma de discriminação, de
estigmatização” (PAIM; ALMEIDA, 2019, p.70).

Neste artigo, considerando estudos de Ramos Pinto (2018), que prioriza


a conscientização do futuro professor de Língua Portuguesa (LP) sobre a
importância da abordagem da variação linguística no contexto escolar,
apresentamos proposta de ensino da língua portuguesa que visa à
abordagem da variação linguística no contexto escolar, fazendo junção das
concepções teóricas da Sociolinguística com as da Geolinguística, e dos
estudos metodológicos resultantes da confluência de ambas as vertentes
linguísticas, a Geossociolinguística (THUN, 1998).

384
Para tanto, utilizamos cartas linguísticas elaboradas com os dados
obtidos sistematicamente em pesquisa empreendida por Ribeiro (2021), em
sua tese intitulada Atlas Linguístico do Norte Pioneiro do Paraná - ALiNPiPR, e
criamos atividades que propiciam a discussão da variação linguística, a
discussão sobre a variação diatópica, a variação semântico-lexical, e
também a abordagem de figuras de linguagem, na ocasião,
especificamente, a metonímia.

Ainda, por meio desse estudo, buscamos trabalhar a questão do


preconceito linguístico, a fim de conscientizar os alunos sobre os muitos
modos de falar a língua e o respeito às variedades linguísticas menos
prestigiadas socialmente, conforme a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC, 2017, 2020), documento norteador de ensino que propõe o trabalho
com a variação linguística nos componentes de Língua Portuguesa dos
ensinos Fundamental e Médio.

1 METODOLOGIA

Em nosso estudo, empregamos pesquisa de cunho bibliográfico, à luz


das concepções teóricas da Sociolinguística, da Dialetologia e da
Geossociolinguística, embasadas em autores como Labov (1972, 2008);
Chambers e Trudgill (1994), Coseriu (1987), Thun (1998), Cardoso (2010), Paim
(2016), dentre outros.

Para o desenvolvimento da proposta de atividade em âmbito de


estudos da língua portuguesa, visando à abordagem da variação linguística,
enfatizamos a variação diatópica e utilizamos duas cartas linguísticas
extraídas do Atlas Linguístico do Norte Pioneiro do Paraná - ALiNPiPR, de
Ribeiro (2021), a carta L17 que trata da variação do item de vestuário íntimo

385
masculino e a carta F3 com as formas designativas do saboroso derivado do
leite, e estudamos, no campo semântico de variação linguística, a figura de
linguagem metonímia. As atividades propostas podem ser trabalhadas tanto
nos anos finais do Ensino Fundamental como no Ensino Médio.

Em sua pesquisa de doutoramento, Ribeiro seguiu o percurso


metodológico do Projeto Atlas Linguístico do Brasil-ALiB, juntando a visão
diatópica à sociolinguística57:

● rede de pontos: delimitamos a investigação de dez localidades de modo


a abarcar todas as direções da mesorregião Norte Pioneiro do Estado Paraná:
Sertaneja (1), Itambaracá (2), Jacarezinho (3), Assaí (4), Ribeirão do Pinhal (5),
Carlópolis (6), Sapopema (7), Siqueira Campos (8), Pinhalão (9) e São José
da Boa Vista (10);

● perfil dos informantes: sexo masculino e feminino, de 16 a 24 anos (faixa I),


de 30 a 50 anos (faixa II), e de 60 a 80 anos (faixa III), sem ensino médio
completo, morando no local a maior parte da vida;

● questionários linguísticos: 110 perguntas (ilustradas quando possível),


distribuídas em: Fonético-Fonológico (40 questões), Morfossintático (14),
Semântico-Lexical (54), Perguntas Metalinguísticas (2). Como base para a sua
composição, recorremos aos questionários do Atlas Linguístico do Brasil - ALiB
(COMITÊ..., 2001), do Atlas Linguístico do Paraná - ALPR (AGUILERA, 1994), do
Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil - ALERS (KOCH;
KLASSMANN; ALTENHOFEN, 2002 / ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011) e ao
Questionário para verificação do léxico na Rota do Café - QVLRC (RIBEIRO,
2017);

57Conforme texto publicado nos Anais do III SIMVALE - Simpósio de Variação Linguística e
Ensino (UEM, 2020). Disponível em: https://sites.google.com/uem.br/simvale-
2019/p%C3%A1gina-inicial/anais. Acesso em: 13 jun. 2021.

386
● realização de inquéritos linguísticos: entrevistamos 60 informantes entre
janeiro e junho de 2019, resultando em aproximadamente 45 horas de
gravação. A conversa tinha início com o preenchimento das fichas do
informante e da localidade, com o gravador já ligado, continuando com
questionamentos direcionados à obtenção de narrativas pessoais (origem
familiar, pontos turísticos da localidade, comida típica, feira agropecuária,
curiosidades locais) e, em seguida, a aplicação do questionário; ao final era
exposto o objetivo real da entrevista.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A Sociolinguística tem como objeto de estudo a língua falada em um


determinado contexto social, de acordo com a situação real de uso do
falante. Suas áreas de interesse abrangem questões relacionadas ao
aparecimento e à extinção linguística, ao contato entre diferentes línguas,
ao multilinguismo, à variação e à mudança.

Essa corrente linguística considera a língua uma instituição social, não


podendo, portanto, conforme afirmam Cezário e Votre (2010, p. 141), “[...]
ser estudada como uma estrutura autônoma, independente do contexto
situacional, da cultura e da história das pessoas que a utilizam como meio de
comunicação.”

Já a Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação tem como


precursor Willian Labov e, como objeto de estudo, a variação da língua
falada em uso em comunidades de fala.

Sabemos que língua e sociedade são indissociáveis, por isso a língua é


um instrumento complexo, possui inúmeras possibilidades de manifestação e

387
de uso. O homem é um ser subjetivo que gera essas possibilidades de
linguagem e as utiliza em diversas situações.

Dessa forma, cada falante usa a língua da maneira que julga ser a mais
apropriada para expressar o próprio pensamento, ou seja, ele o faz por uma
questão de escolha. Faz-se necessário, então, analisar as relações existentes
entre língua, sociedade e cultura, pois dependem das interações que
ocorrem no seio da comunidade.

No cenário brasileiro da pesquisa linguística, a Sociolinguística


Variacionista, segundo Freitag e Lima (2010), “[...] é uma área muito
produtiva, pois traz contribuições significativas para o ensino de língua
materna”.

Outra corrente linguística estudada neste artigo é a Geolinguística, um


campo interdisciplinar compartilhado pela Linguística e a Geografia. É
também conhecida com os nomes de Geografia Linguística e Geografia
das Línguas. A Geolinguística ocupa-se de estudar as línguas no seu contexto
geográfico.

Os estudos dialetais tiveram muito êxito com o método usado pela


Geolinguística. Segundo Coseriu (1987), a metodologia de estudo usada
pelos geolinguistas é a comparativa, possibilitando, assim, que conjuntos de
formas linguísticas possam ser registrados, abarcando formas de níveis
fônicos, lexicais e gramaticais.

Ademais, na investigação de temas ligados à variação, contamos,


mais recentemente, com a confluência das metodologias da Geolinguística
e da Sociolinguística, resultando no ramo denominado Geossociolinguística
ou Dialetologia Pluridimensional (THUN, 1998).

Essa, por sua vez, “combina a Dialetologia areal com a Sociolinguística


(e a pragmática) para converter o estudo tradicional da superfície

388
bidimensional em estudo do espaço tridimensional da variação linguística"
(THUN, 1998, p. 4).

A esse respeito, destacamos a reflexão de Chambers e Trudgill (1994):

[...] Alguns dialetólogos começaram a reconhecer que se havia


posto muita ênfase na dimensão espacial da variação linguística,
excluindo-se, em consequência, a dimensão social. Gradativamente
isto se impôs como um juízo para alguns estudiosos, uma vez que a
variação social na língua é tão comum e importante quanto a
variação espacial. Todos os dialetos são tanto espaciais quanto
sociais, uma vez que todos os falantes têm não só um espaço social
como uma localização espacial (CHAMBERS; TRUDGILL, 1994, p. 81-
82).

Assim, os estudos dialetais e sociais contribuem para a composição dos


dados das pesquisas geossociolinguísticas e dos atlas linguísticos. Silva Neto
(1957, p.37) define os atlas linguísticos como “reuniões de cartas em que o
material linguístico está distribuído topograficamente. Cada carta apresenta
um instantâneo dialetal da área explorada [...]”.

Essas cartas linguísticas registram as variações fonéticas, léxico-


semânticas e morfossintáticas existentes em cada uma das regiões, sub-
regiões e localidades onde essas variações ocorrem, permitindo, dessa
forma, a investigação da língua sob o enfoque dialetológico.

Obras como O dialeto caipira (AMARAL, 1920), O linguajar carioca


(NASCENTES, 1922), A língua do Nordeste (MARROQUIM, 1996) são as
precursoras de estudos sobre a realidade linguística brasileira, inspiradoras
dos primeiros atlas regionais, Atlas Prévio dos Falares Baianos-APFB (1963),
Atlas Linguístico de Sergipe-ALS (1973), Esboço de um Atlas Linguístico de
Minas Gerais-EALMG (1977), Atlas Linguístico da Paraíba-ALPB (1984) e o Atlas
Linguístico do Paraná-ALPR (1994).

389
Esses trabalhos marcaram o início da Geolinguística no Brasil e
permitem que entendamos como é grande a variação linguística do
Português Brasileiro (PB) e possamos considerar, principalmente, dadas à
dimensão territorial do nosso país, a região geográfica como fator
impulsionador dessa variedade linguística, somada aos fatores sociais como
o nível de escolaridade, a idade e o sexo dos falantes.

Conforme já mencionamos na introdução deste artigo, além do Atlas


Linguístico do Brasil (ALiB) que possui dois volumes publicados, a literatura
geolinguística conta com uma variedade de atlas linguísticos regionais e de
pequeno domínio, e o Atlas Linguístico do Norte Pioneiro do Paraná, o
ALiNPiPR (RIBEIRO, 2021), usado para o ensino de LP, neste trabalho, é um dos
mais recentes58.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO: UMA PROPOSTA DE ESTUDO DA


GRAMÁTICA EM CARTAS DO ALINPIPR

É sabido que a variação de uma língua ocorre em todos os níveis da


gramática: fonético-fonológico, semântico-lexical, morfológico e sintático e
que a BNCC (2017, 2020), propõe o trabalho com a variação linguística nos
componentes de Língua Portuguesa dos ensinos Fundamental e Médio.

Diante disso, neste tópico, apresentamos proposta de ensino de Língua


Portuguesa, no campo semântico lexical, utilizando cartas do ALiNPiPR

58Tese defendida no dia 22 de março de 2021 no Programa de Pós-graduação em Estudos


da Linguagem - PPGEL da Universidade Estadual de Londrina - UEL, sob orientação da Prof.ª
Dr.ª Vanderci de Andrade Aguilera.

390
(RIBEIRO, 2021), elaboradas com base nos dados obtidos com questões
extraídas do Questionário Semântico Lexical (QSL) e do Questionário
Fonético Fonológico (QFF) dessa pesquisa geossociolinguística. A utilização
das cartas do ALiNPiPR é um dos recursos didáticos muito ricos para o ensino
da Língua Portuguesa e vem ao encontro das proposições da BNCC (2017,
2020) no que diz respeito às competências e habilidades do ensino da LP na
educação básica como o reconhecimento das variedades da língua
falada, concomitante ao ensino da norma-padrão.

O conteúdo que vamos trabalhar é sobre figuras de linguagem,


especificamente, a metonímia. Para a realização dessa proposta de
atividade, em que usamos duas cartas linguísticas do ALiNPiPR, é necessário
que, em aulas anteriores, o professor já tenha estudado com os alunos as
figuras de linguagem e também ter abordado o assunto variação linguística,
a diversidade linguística brasileira.

3.2 ORIENTAÇÕES

Antes de iniciar a atividade, o professor deve explicar aos alunos o que


é um atlas linguístico, questionar se os alunos conhecem algum atlas
linguístico, pode também falar sobre o Atlas Linguístico do Brasil (ALiB),
comentar com os alunos a existência de vários atlas linguísticos regionais e
apresentar a eles o ALiNPiPR, o atlas que retrata a realidade linguística da
mesorregião Norte Pioneiro do estado do Paraná.

Deve explicar a figura de linguagem metonímia e informar que irá usar


duas cartas do ALiNPiPR para o estudo da metonímia, discutindo com os
alunos as variantes linguísticas encontradas para uma peça do vestuário
íntimo dos homens, a cueca (questão 24 do QSL) e para um produto

391
alimentício muito consumido pelas crianças, o iogurte (questão 38 do QFF),
mostrando as cartas.

3.3 A METONÍMIA

Do grego, a palavra "metonímia" (metonymía) é constituída pelos


termos “meta” (mudança) e “onoma” (nome), que literalmente significa
“mudança de nome”. A metonímia é a figura de linguagem que possibilita
troca de um termo por outro de mesma similaridade.

Para conceituá-la com maior clareza, a metonímia é definida como a


substituição de uma palavra por outra, quando há relação de contiguidade,
ou seja, proximidade de sentido entre elas; é a substituição de palavras que
guardam uma relação de sentido entre si.

Podemos exemplificar da seguinte maneira:

• A viagem à Lua significou um grande avanço para o “homem”. (Neste


caso a palavra homem foi empregada no lugar de “humanidade”. A parte
foi citada para substituir ou representar o todo.)

• Eu uso sempre “Bombril”. (a palavra Bombril substitui palha de aço; nome


da marca substitui o produto)59.

Outras marcas que viraram sinônimos: Gillette, Miojo, Sucrilhos, Durex,


Band-aid, Cotonete, Leite Moça, só para citar algumas.

É nesse contexto de substituição do nome da marca pelo produto que


faremos nosso estudo da metonímia, tendo como ilustração e comprovação

59Exemplos disponíveis em https://www.figuradelinguagem.com/metonimia/. Acesso em:


18 maio 2021.

392
da diversidade linguística do Norte Pioneiro do Paraná representada no
ALiNPiPR (RIBEIRO, 2021).

Lembrando que há outros tipos de metonímia, os quais não vamos


conceituar aqui, apenas citar: a parte pelo todo, o autor pela obra, o
continente pelo conteúdo,o singular pelo plural,o possuidor pelo possuído, o
lugar pelo produto,o concreto pelo abstrato, o efeito pela causa, o
instrumento pelo agente, a coisa pela sua representação, o inventor pelo
invento a qualidade pela espécie, a matéria pelo objeto, o indivíduo pela
classe.

Mas a conceituação e exemplificação poderá e, deve, ser feita em


sala de aula.

3.4 PROPOSTA 1 - QUESTÃO 24 DO QSL DO ALINPIPR

“Como se chama a peça do vestuário que os homens usam por baixo


das calças?”. Para essa pergunta foram registradas várias respostas: cueca,
zorba, box, ceroula, sunga, samba-canção. Dentre elas, destacamos ZORBA
que é uma expressão metonímica, pois é a marca de uma cueca.

Figura 1 – Carta L17 - Cueca

393
Fonte: ALiNPiPR (2021)

Como podemos verificar, a variante zorba está representada em azul


na carta linguística, correspondendo a 29 respostas, com maior frequência
na faixa etária II (de 30 a 50 anos de idade).

3.4.1 Após a visualização da carta, fazer os seguintes questionamentos:

1. Tendo como base a Carta L17 do ALiNPiPR, que representa os dados


obtidos com a questão 24 do QSL (trata do nome da peça do vestuário
usada pelos homens por baixo da calça), assinale a alternativa que
apresenta a resposta dada com o uso de uma metonímia. Em seguida,
justifique sua escolha, explicando porque a palavra é uma metonímia.

a) box b) cueca c) zorba d) sunga e) samba-canção

394
Resposta esperada: Zorba, porque é a marca da cueca e não o nome da
peça.

2. Quantas variantes para a palavra cueca foram encontradas na região, de


acordo com dados do ALiNPiPR?

Resposta esperada: Sete variantes: box, zorba, sunga, samba-canção,


ceroula, short e calção.

3. Podemos considerar que todas as variantes são sinônimas?

Resposta esperada: Não todos, posto que alguns nomes são tipos de cueca.
Entretanto, pode ser a forma em que é conhecida naquela região, no
município em que a pesquisa foi realizada.

3.5 PROPOSTA 2 - QUESTÃO 38 DO QFF DO ALINPIPR

O enunciado da referida questão é o seguinte: “Como se chama o


líquido espesso, muito nutritivo, derivado do leite, encontrado na versão
natural ou misturado com frutas, chocolate, etc.?”. Dentre as variantes
fonéticas obtidas ressaltamos a designação danone, ao invés de iogurte, ou
seja, a marca pelo produto.

395
Figura 2 – Carta F3 - Iogurte

Fonte: ALiNPiPR (2021)

A variante lexical está representada pela cor rosa na carta lingüística,


e podemos atestar sua frequência nos pontos investigados mais ao norte
(Sertaneja, Itambaracá e Jacarezinho) e presente na fala das três faixas
etárias.

396
3.5.1 Após a exposição da carta, fazer as seguintes perguntas:

1. Como você nomeia o produto com líquido espesso, muito nutritivo,


derivado do leite, encontrado na versão natural ou misturado com frutas,
chocolate, etc.?

a) danone b) iogurte c) doce d) leite coalhado e) leite


fermentado

Resposta esperada: A expectativa é que as respostas fiquem entre danone


e iogurte.

2. “Mãe, não se esqueça de comprar uma bandeja de danone pra mim!”.


Analisando a frase temos um exemplo de qual figura de linguagem?

a) metáfora b) catacrese c) hipérbole d) metonímia e)


zeugma

Resposta esperada: Que o estudante consiga identificar o caso de


metonímia.

3. Considerando a Carta F3 do ALiNPiPR, em quantas localidades aparecem


a denominação baseada na figura de linguagem metonímia marca pelo
produto?

a) 1 b) 3 c) 5 d) 10 e) nenhuma.

Resposta esperada: Ao desenvolver a habilidade de leitura de gráficos e


tabelas, aí incluímos a carta linguística, o estudante observará o registro da
variante danone nas três localidades mais ao norte, ou seja, Sertaneja,
Itambaracá e Jacarezinho.

397
Por meio dos atlas linguísticos, mais especificamente, neste trabalho, o
ALiNPiPR, é possível estudarmos a variação linguística do Português Brasileiro
(PB) em seus vários níveis: fonético-fonológico, morfológico, sintático e
semântico-lexical, foco do nosso estudo.

São muitas as possibilidades de atividades que podemos propor


usando o ALiNPiPR para o estudo da língua portuguesa e suas variedades,
principalmente, sobre o modo de falar de pessoas de diferentes regiões,
dento de um mesmo estado, como o Paraná e sua mesorregião Norte
Pioneiro. O estudo da metonímia apresentado é apenas uma dessas
atividades.

Desse modo, esperamos contribuir para a abordagem da variação


linguística nas aulas de Língua Portuguesa, no ensino básico, sobretudo, as
de ordem diatópica, por meio de atividades que levem o aluno a refletir
sobre os muitos modos de falar a língua, sobre a diversidade linguística
existente na língua portuguesa, sem desprestigiar os seus dialetos de origem,
de forma consciente e sem preconceitos.

Assim sendo, buscamos fomentar a discussão e reflexão da relevância


dos atlas linguísticos para o conhecimento e descrição da multiplicidade de
falares do Brasil, em particular, os falares do Norte Pioneiro do Paraná, por
meio do ALiNPiPR.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dos atlas linguísticos, mais especificamente, neste trabalho, o


ALiNPiPR, é possível estudarmos a variação linguística do Português Brasileiro
(PB) em seus vários níveis: fonético-fonológico, morfológico, sintático e
semântico-lexical, foco do nosso estudo.

398
São muitas as possibilidades de atividades que podemos propor
usando o ALiNPiPR para o estudo da língua portuguesa e suas variedades,
principalmente, sobre o modo de falar de pessoas de diferentes regiões,
dento de um mesmo estado, como o Paraná e sua mesorregião Norte
Pioneiro. O estudo da metonímia apresentado é apenas uma dessas
atividades.

Desse modo, esperamos contribuir para a abordagem da variação


linguística nas aulas de Língua Portuguesa, no ensino básico, sobretudo, as
de ordem diatópica, por meio de atividades que levem o aluno a refletir
sobre os muitos modos de falar a língua, sobre a diversidade linguística
existente na língua portuguesa, sem desprestigiar os seus dialetos de origem,
de forma consciente e sem preconceitos.

Assim sendo, buscamos fomentar a discussão e reflexão da relevância


dos atlas linguísticos para o conhecimento e descrição da multiplicidade de
falares do Brasil, em particular, os falares do Norte Pioneiro do Paraná, por
meio do ALiNPiPR.

AGRADECIMENTOS

Aos integrantes do Grupo de Pesquisa Leitura & Ensino da UENP, Campus


Jacarezinho, e aos organizadores do III ERELIP, pela realização do evento que
possibilitou a divulgação de nossas pesquisas científicas.

REFERÊNCIAS

AGUILERA, V. de A. Atlas linguístico do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do


Estado, 1994.

399
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Região Sul do Brasil – ALERS: cartas semântico-lexicais. Porto Alegre: Editora
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/Brasília/, INL, 1920.

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Brasília,

MEC/CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em:


http://basenacionalcomum.mec. gov.br/ images/BNCC_publicacao.pdf.
Acesso em: 01 jun. 2021.

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Parábola, 2010.

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Introdução. Londrina: Eduel, 2014a.

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Castas linguísticas 1. Londrina: Eduel, 2014b.

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da Fonseca; Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença, 1987.

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Etnográfico da Região Sul do Brasil – ALERS: cartas fonéticas e
morfossintáticas. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS; Florianópolis: Ed. UFSC,
2011.

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Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, [1972] 2008.

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Federal de Sergipe, CESAD, 2010. Disponível em:
https://cesad.ufs.br/ORBI/public/ upload
Catalago/18534216022012Sociolinguistica_Aula_1.pdf. Acesso em: 28 jun.
2021.

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Línguas & Letras v.17, n. 35, 2016. Disponível em: http://e-
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6, p. 169-177, 2019. Disponível em:
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Estadual de Londrina, Londrina, 2018. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.uel.br/ document/?view=vtls000220965. Acesso
em: 15 abr. 2021.

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RIBEIRO, T. L. A variação lexical na Rota do Café: estudos
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(Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina.
Londrina. 2017. Disponível em:
http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000225819. Acesso
em: 17 jun. 2021.

RIBEIRO, T. L. Atlas Linguístico do Norte Pioneiro do Paraná - ALiNPiPR. 2021. 2


v. Tese. (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de
Londrina, Londrina, 2021.

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Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1957.

THUN, H. Movilidad demográfica y dimensión topodinámica. Los


montevideanos em Rivera. New Wege der Romanischen Geolinguistic: Akten
des Symposiums zur Empirischen Dialektologie (Heidelberg/Mainz 21-24,
10.1991) Kiel: Westensee-Verl, 1998.

402
O LUGAR DA SOCIOLINGUÍSTICA NA BNCC: O COMPONENTE
CURRICULAR DE LÍNGUA PORTUGUESA NA ETAPA DO ENSINO
MÉDIO

Vera Maria Ramos Pinto60


Sara Nicacia de Souza61

RESUMO: Na esfera educacional, a Sociolinguística vem conquistado seu espaço diante de


algumas críticas arraigadas ao ensino tradicional da língua portuguesa, que insiste em
estabelecer a dualidade entre erros e acertos. A sociolinguística compreende a
necessidade dos alunos terem acesso ao conhecimento de todas as formas e usos da língua
materna para que possam usar toda a riqueza das expressões linguísticas. Para tanto,
conforme Patriota e Pereira (2018), é importante que a escola seja um lugar em que o aluno
possa ter contato com a pluralidade discursiva e com as situações reais de uso da língua
como meio de expandir sua competência comunicativa. Diante disso, tendo em vista que
a Sociolinguística já está presente na sala de aula, a presente pesquisa pretende apresentar,
em linhas gerais, como esse campo de estudo está colocado em documentos norteadores
da educação básica, mais especificamente na BNCC – Ensino Médio (2018), recentemente
aprovada para todo o ensino básico. Buscamos respaldo nos estudos de Santos e Melo
(2019), que analisam a proposta da BNCC para o ensino fundamental e constatam que
nessa etapa do ensino básico não há centralidade no ensino da gramática normativa na
escola. Assim, permanece o desafio do ensino da leitura e da escrita que trabalhem com a
perspectiva do letramento para que o aluno possa pensar sobre o uso linguístico para além
das regras e agir plenamente na vida em sociedade.
Palavras-chave: Artigo completo, Normas científicas, Congresso, Realize, Boa sorte.

INTRODUÇÃO

As discussões sobre a Sociolinguística são recentes e têm rompido com


muitos preconceitos relacionados às diferenças linguísticas, que antes eram

60 Professora orientadora: Mestre e Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade


Estadual de Londrina – UEL professora adjunta do Centro de Letras, Comunicação e Artes
(CLCA) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus Jacarezinho.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Leitura e Ensino (UENP) Contato:
veramaria@uenp.edu.pr.
61 Graduanda do curso de Letras com habilitação em Língua Português e em Língua Inglesa

– Bolsista do Programa Residência Pedagógica de Língua Portuguesa. Integrante do Grupo


de Pesquisa Leitura e Ensino. Contato: godoi.sara@escola.pr.gov.br

403
vistas como um erro atrelado à baixa escolarização sob o viés de uma língua
portuguesa que deveria ser imutável, independente da época, do lugar e
das gerações. Hoje os estudos trazidos e conquistadas por esse campo de
estudo, permitem a pesquisa e o ensino a partir do conceito de língua em
seu contexto cultural, histórico e social, isto é, de uma língua que é viva e,
assim sendo, se adequa a gerações, sociedades e diferentes regiões.

Buscamos respaldo nos estudos de Santos e Melo (2019), que analisam


a proposta da BNCC para o ensino fundamental e constatam que nessa
etapa do ensino básico não há centralidade na gramática centralidade do
ensino de gramática normativa na escola. Contudo, permanece o desafio
do ensino da leitura e da escrita que trabalhem com sob a perspectiva do
letramento para que o aluno possa pensar sobre o uso linguístico para além
das regras e agir plenamente na vida em sociedade.

Além dos autores já mencionados, nos embasamos também nas


contribuições das seguintes autoras Antunes (2007) e Bezerra (2010) que
pensam o ensino para além da gramática. Assim, a partir do estudo
realizado, apresentamos as habilidades e competências que permeiam a
variação linguística na BNCC do Ensino Médio.

Tendo em vista que a sociolinguística já está presente nas salas de aula,


a presente pesquisa pretende apresentar, em linhas gerais, como esse
campo de estudo está colocado em documentos norteadores da
educação básica, mais especificamente na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), recentemente aprovada para todo o ensino básico. Para
atender ao objetivo proposto, a metodologia é de caráter bibliográfico,
compondo uma abordagem qualitativa.

Teoricamente nos embasamos em Patriota e Pereira (2018) e Santos e


Melo (2019), que trazem importantes contribuições quanto ao lugar da

404
variação linguística na BNCC para o ensino fundamental. Para pensar as
propostas de descentralização do ensino da gramática na escola
corroboramos com os estudos de Antunes (2007) e Bezerra (2010). Este estudo
também tem caráter documental, pois como parte da pesquisa contamos
com a BNCC (2019), documento orientador da educação Nacional.

1 METODOLOGIA

Tendo em vista que a sociolinguística já está presente nas salas de aula,


a presente pesquisa pretende apresentar, em linhas gerais, como esse
campo de estudo está colocado em documentos norteadores da
educação básica, mais especificamente na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), recentemente aprovada para todo o ensino básico.
Nessa direção, considerando os limites estabelecidos para o
desenvolvimento dessa pesquisa, elencamos como objetivo geral:
compreender o lugar da variação linguística no Ensino Médio no referido
documento. Para atender ao objetivo proposto, a metodologia é de caráter
bibliográfico, compondo uma abordagem qualitativa. Conforme Bortoni-
Ricardo a pesquisa qualitativa “procura entender, interpretar fenômenos
sociais inseridos em um contexto.” (2008, p. 34).

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em meio a tantas controvérsias em seu processo de elaboração, a


BNCC para a etapa do Ensino Médio, aprovada em dezembro de 2018, já se
encontra em processo de implementação. Tendo em vista a complexidade

405
da nova organização do ensino médio estabelecida na BNCC – EM, nos
delimitamos a compreender, nessa pesquisa, o espaço reservados para a
Sociolinguística no Itinerário Formativo de Linguagens e suas Tecnologias.
Para esse itinerário o documento traz a seguinte descrição quanto aos
objetivos

No Ensino Médio, o foco da área de Linguagens e suas Tecnologias


está na ampliação da autonomia, do protagonismo e da autoria nas
práticas de diferentes linguagens; na identificação e na crítica aos
diferentes usos das linguagens, explicitando seu poder no
estabelecimento de relações; na apreciação e na participação em
diversas manifestações artísticas e culturais; e no uso criativo das
diversas mídias. (MEC, BNCC, 2018, p. 471, grifos do documento)

Como evidenciado, a BNCC – EM afirma, entre os objetivos do Itinerário


formativo relacionado a linguagens, a necessidade de desenvolvimento das
práticas de diferentes linguagens. A variação linguística esclarece que a
língua é viva e as transformações pelas quais passa ao longo da história e de
acordo com as regiões não podem ser silenciadas, pelo contrário, é
necessário que os estudantes compreendam que processo de
transformação é algo indissociável da língua e não uma violação dela.

Na esfera educacional, esse campo de estudos vem conquistado seu


espaço mesmo em meio à algumas críticas arraigadas ao ensino tradicional
da língua portuguesa, que insiste em estabelecer a dualidade de erros e
acertos. A sociolinguística em seu âmbito escolar, compreende que é
necessário aos alunos terem acesso ao conhecimento de todas as formas e
usos da língua materna para que possam usar toda a riqueza das expressões
linguísticas e, assim, saibam comunicar o que sentem, o que desejam, o que
lhes causa revolta, nos mais diferentes âmbitos das esferas sociais. Para tanto,
conforme Patriota e Pereira (2018) é importante que a escola seja um lugar
em que o aluno possa ter contato com o máximo possível de pluralidade

406
discursiva, bem como situações reais de uso da língua como meio de
expandir sua competência comunicativa. Nesse sentido, o acesso às
inúmeras formas em que se expressam as variações linguísticas contribui para
o respeito à pluralidade linguística em seu contexto sociocomunicativo.

Muito se tem discutido sobre o ensino prescritivo da língua portuguesa


pautado em regras da norma padrão desvinculadas de seus usos reais
baseadas em concepções de “certo” e “errado”. Antunes (2010) e Bezerra
et al (2010) estão entre importantes autores que trazem a crítica sobre o
ensino baseado em uma língua imutável e homogênea que considera como
única forma correta a “padrão”, a “culta” e não reconhece a dinamicidade
linguística. Um ensino pautado nessa concepção de língua, além de
propagar preconceitos, nega ao aluno um desenvolvimento comunicativo
para pensar, participar e agir nas mais diversas instâncias de uma sociedade
que é dinâmica e social.

Na esfera educacional, o campo de estudos voltado para a


Sociolinguística vem conquistado seu espaço mesmo em meio à algumas
críticas arraigadas ao ensino tradicional da língua portuguesa, que insiste em
estabelecer a dualidade de erros e acertos. A partir de Bakhtin (2003) foi
possível compreender a diversidade e a complexidade das práticas de
linguagens humanas. Sendo assim, o pensamento bakhtiniano compreende
que o processo de construção da linguagem tem raízes históricas e, portanto,
são indissociáveis das relações sociais, do tempo, do lugar e dos sujeitos
envolvidos na comunicação.

A Sociolinguística é o estudo dessas relações que promovem


alterações na língua conforma o lugar social e histórico ocupado pelo sujeito
ao se comunicar. No âmbito escolar essa linha de estudos linguísticos
compreende que é necessário aos alunos terem acesso ao conhecimento
de todas as formas e usos da língua materna para que possam usar toda a

407
riqueza das expressões linguísticas e, assim, saibam comunicar o que sentem,
o que desejam, o que lhes causa revolta, nos mais diferentes âmbitos das
esferas sociais. O objetivo da sociolinguística está atrelado à ampliação dos
processos comunicativos dos sujeitos e não a exclusão do seu lugar social,
como faz a norma culta da língua ao segregar entre o falar “certo” e o falar
“errado”. Essa forma de analisar e ensinar a língua não considera a
espontaneidade e criatividade dos indivíduos e sob essa visão as gírias, os
regionalismos, o estrangeirismo rebaixam a língua.

Dessas questões advém o nosso interesse em pesquisar como o ensino


de Língua Portuguesa está colocado sob as novas discussões curriculares,
mais especificamente a BNCC – EM. Isso porque o currículo embasa as
práticas escolares e sua implementação é determinante na regulação dos
conteúdos, “assim como toda a dinâmica de ações pensadas para a escola
que vão além dos conteúdos a serem trabalhados ao longo de cada etapa
de escolarização, seja através das séries, seja através dos anos escolares.”
(PATRIOTA e PEREIRA, 2018, p. 291). A BNCC, apesar de ser defendida como
como um não currículo, é obrigatória e, em suas habilidades e competências,
determina o que deverá ser ensinado em cada área de conhecimento e em
cada etapa de escolarização no país todo.

O Itinerário Formativo denominado “Área de Linguagens e Suas


Tecnologias” para o Ensino Médio traz, dentre as 7 competências específicas,
na “Competência Específica 4” a necessidade de

Compreender as línguas como fenômeno (geo)político, histórico,


social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso,
reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressões
identitárias, pessoais e coletivas, bem como respeitando as
variedades linguísticas e agindo no enfrentamento de preconceitos
de qualquer natureza. (MEC, BNCC, 2018)

408
Como o próprio texto coloca, essa competência indica como
finalidade para os estudantes do ensino médio a compreensão do
funcionamento da língua em sua complexidade da vida social,
ultrapassando a concepção meramente normativa. Assim, são duas as
habilidades gerais presentes nessa competência no que concerne ao
campo de estudos da sociolinguística.

Tabela 1 – Habilidades Gerais do Itinerário Formativo de Linguagens e suas Tecnologias da


Competência 4 relacionadas à variação linguística

Diferentemente do Ensino Fundamental, que possui suas competências


e habilidades dividas conforme a série, o documento para o Ensino Médio
divide-se em Itinerários Formativos, os quais estabelecem as competências
específicas para cada área do conhecimento. Os Itinerários Formativos
segmentam os conhecimentos da educação básica em 5 grandes áreas, em
que as disciplinas dispostas de maneira fragmentada no ensino médio atual
são organizadas de maneira amalgamada para compor a seguinte divisão:
Área de linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas Tecnologias;
Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Socias
Aplicadas. Além desses conhecimentos, que são trabalhados em toda a
educação básica, há ainda o quinto Itinerário Formativo referente à
Formação Técnica e Profissional.

409
Diante dessa restruturação pela qual o ensino médio deverá passar,
visto que a BNCC é um documento obrigatório para toda a educação
básica, os únicos componentes curriculares estabelecidas como obrigatórias
pelo documento são Língua Portuguesa e Matemática para os três anos do
ensino médio e Língua Inglesa, obrigatória apenas no primeiro ano.

O Itinerário Formativo de Linguagens e suas Tecnologias abrange os


componentes curriculares de Língua Portuguesa, Educação Física, Língua
Inglesa e Artes. Especificamente em Língua Portuguesa, o único componente
curricular obrigatório dessa área, os conhecimentos a serem trabalhados ao
longo do ensino médio dividem-se em 5 campos de atuação: “Campo da
vida pessoal”, “Campo artístico-literário”, “Campo das práticas de estudo e
pesquisa”, “Campo jornalístico-midiático”, “Campo de atuação na vida
pública”. A variação linguística foi inserida entre seis habilidades que
envolvem todos os campos de atuação de atuação social, mas não está
especificada em nenhum dos cinco campos específicos de atuação social.

410
Tabela 2 – Habilidades do campo de atuação social relacionadas à variação linguística

Diante desses apontamentos, cabe apontar também que por muito


tempo esteve consolidada a compreensão de que o ensino-aprendizado de
língua portuguesa deveria estar pautado em uma língua homogênea.

411
Atualmente a compreensão se língua não se detém apenas ao
“português brasileiro”, pois Brasil é marcado pelo silenciamento e exclusão
das línguas indígenas e das expressões regionais de origem histórica e cultural
em prol da instauração da norma culta, que favorece uma determinada
camada social.

É prejudicial à educação não reconhecer a verdadeira diversidade do


português falado no Brasil, a escola tenta impor sua norma linguística como
se ela fosse, de fato, a língua comum a todos os quase 190 milhões de
brasileiros, independentemente de sua idade, de sua origem geográfica, de
sua situação econômica, de grau de escolarização, etc. Com isso também
se nega o caráter multilíngue do nosso país, onde são faladas mais de
duzentas línguas diferentes, entre línguas indígenas, língua trazidas pelos
imigrantes europeus e asiáticos, línguas surgidas das situações de contato
nas extensas zonas fronteiriças com os países vizinhos, além de falantes
remanescentes das diversas línguas africanas trazidas pelas vítimas do
sistema escravagista. (BAGNO, 2013, 27)

Há que se investigar, portanto, qual o sentido de se impor uma base


curricular obrigatória em um território extenso como Brasil em que a língua
materna de muito educandos não é o “português brasileiro”. Fica
subentendido o pressuposto de que

A língua materna da grande maioria dos alunos de nossas redes


públicas é o português brasileiro, numa afirmação clara de “soberania
linguística”. E que nessa língua, como toda e qualquer outra língua histórica,
é sistemática e permanentemente afetada pela variação, em vetores como
o tempo, o espaço e a vida social, em diferentes de seus aspectos. Nesse
sentido, o ensino de normas urbanas de prestígio, assim como o da norma-
padrão, é entendido em seu contexto histórico social, combatendo-se tanto
a crença equivocada em uma suposta pureza e correção originais da língua,

412
quanto os preconceitos discriminatórios decorrentes. (RUTIQUEWISKI, SOUZA,
2020, p. 212)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho com a Sociolinguística exige pensar sobre o uso linguístico


para além das regras para que se desenvolva nos alunos a consciência de
que agir plenamente na vida em sociedade exige adequar a língua às
diferentes esferas sociais, o que exige mais conhecimentos do que aqueles
meramente relacionados à norma-padrão.

A concepção de língua adotada em um currículo está diretamente


relacionada às concepções pedagógicas, bem como nos objetos e
objetivos do ensino de língua que dela decorrem. Assim, a variação
linguística, como parte essencial no processo de formação de alunos que
saibam adequar a comunicação aos seus interesses nas mais diversas
instâncias sociais, não pode ser excluída dos currículos escolares. Nesse
sentido, a BNCC apresenta um grande avanço ao incluir a variação
linguística entre as habilidades e competências, porém compreendemos
que além de incluir, é necessário articular a variação linguística a todos os
campos de atuação social elencados no documento. Além disso, a BNCC
não traz os embasamos teóricos metodológicos bem fundamentados
quanto ao que propõe entre as habilidades e competências se limitando a
descrever parte do que deverá conter os currículos.

Por meio dessa pesquisa, buscamos situar o lugar da variação


linguística na BNCC para o Ensino Médio e deixar em aberto a possibilidade
de dar continuidade a esse estudo por meio de uma análise que possa

413
esclarecer como esses conteúdos estão presentes nos livros didáticos após a
aprovação de um documento curricular obrigatório para todo o país.

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pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

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RUTIQUEWISKI, Andréia; SOUZA, Sweder. Base Nacional Comum Curricular:


Retornos, estagnações ou progressos? In: RUTIQUEWISKI, Andréia; SOUZA,

414
Sweder. (orgs.) Ensino de Língua Portuguesa e a Base Nacional Comum
Curricular: propostas e desafios (BNCC – Ensino Findamental II). 1 ed.
Campinas – SP: Mercado das Letras, 2020. – (Coleção Estudos Críticos em
Linguagens)

ROJO, Roxane. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos.


In: ROJO, R. (Org.). Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São
Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 13-36.

SANTOS, Aymmée Silveira; MELO, Raniere Marques. O ensino da variação


linguística na Base Nacional Comum Curricular. Entrepalavras: Fortaleza, v. 9,
n. 3, p. 115-132, set dez/2019

415
EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS MULTIMODAIS NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO BÁSICA NO CONTEXTO DE
ENSINO REMOTO

Eider Ferreira Santos 62

RESUMO: O surgimento de um novo vírus, capaz de espalhar-se em velocidade luz e de


dizimar milhares de vidas em tempo relativamente breve, o Coronavírus, modificou
drasticamente a rotina social de qualquer sujeito. Tendo por base a presente situação, o
presente trabalho objetiva refletir a respeito dos impactos da declaração de pandemia na
rotina de professores da educação básica, observando suas implicações no seu fazer
educativo, notadamente no ensino de Língua Portuguesa. A referida reflexão torna-se
justificável em razão da manutenção de aulas em caráter remoto, em diversas instituições
brasileiras, realidade a que muitos profissionais foram apresentados abruptamente, exigindo-
se de professoras e professores uma nova postura, domínio de mecanismos da chamada
“cultura digital”, novos modos de fazer pedagógico, inevitavelmente multimodal. A presente
proposta nasce, assim, da observação da “nova” rotina do professor da Educação básica,
envolvido diretamente nessa proposta de “fazer aula” em tempos de pandemia, exigindo-
se certa habilidade com aparatos tecnológicos, plataformas digitais e, consequentemente,
imposição de vivência multimodal pelo docente que deve também ser “transmitida” aos
estudantes. Quais estratégias multimodais têm sido mobilizadas no ensino de Língua
Portuguesa? Quais ferramentas estão sendo manipuladas nesse sentido? Quais as
dificuldades e angústias enfrentadas pelos docentes? Parafraseando Boaventura de Souza
Santos (2020), que potenciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus” no
contexto educacional? Na busca de responder a tais questionamentos, a presente
discussão ancora-se nos dispositivos metodológicos da pesquisa (auto)biográfica, a partir de
relatos de experiência de professoras de Língua Portuguesa, tendo como aporte teórico de
analise as discussões de Boaventura de Souza Santos (2020), Perrenoud (2002), Rojo (2012),
Santos (2017), Han (2018), dentre outros.
Palavras-chave: Artigo completo, Normas científicas, Congresso, Realize, Boa sorte.

INTRODUÇÃO

A Declaração de estado de pandemia mundial, em razão do


alastramento do Sars Cov 2, trouxe consequências inimagináveis para todos

62Doutorando em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB, Campos II,


eiderferreira@hotmail.com.

416
os setores da sociedade, tendo em vista as importantes e necessárias
medidas de isolamento social recomendadas, desde os primeiros meses do
ano de 2020, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com vistas à
manutenção da vida. Todo esse contexto, entendo, levou a humanidade ao
caos, tendo em vista as incertezas quanto ao futuro, à manutenção de
empregos, das aprendizagens, das interações sociais em todos os níveis e,
não sendo diferente, nos modos de ensinar-aprender, em razão do
necessário fechamento das escolas.

Talvez, de imediato, o impedimento das aulas presenciais significou,


para muitos de nós, professores e professoras, a real percepção do caos que
invadia o campo educacional, fazendo com que chegássemos ao grau zero
do ensino-aprendizagem, ou seja, ao nível do “não saber”, das “incertezas”,
afinal, não sabíamos como reagir, produzir, ensinar, aprender e fazer
aprender em um contexto aula remotas, até então desprezado pela escola.
Nesse contexto pandêmico, nem nós professores, gestores ou renomados
pensadores da educação tinham respostas prontas, nem discursos para
como “fazer educação” para crianças e adolescentes da educação básica.

É preciso considerar, a partir dessa perspectiva do caos instaurado no


campo educacional, em razão do estado de pandemia mundial que, a
afirmação de Boaventura de Souza Santos (2020, p.5) de que “a verdade e
qualidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em
situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações
excepcionais, de crise” tem relevância. É justamente esse contexto de
anormalidade que desafiava, e ainda desafia, a nós professores e
professoras a produzirmos um novo modo de fazer docência, de fazer
educação, de produzir conhecimento, a vida e existência de maneira
remota.

417
Diante de situações de anormalidade, conforme anteriormente
exposto, geradores de intervenções igualmente inéditas, cabe uma postura
reflexiva, conforme nos orienta Perrenoud (2002), pois, é “[...] o professor ou
educador um inventor, um pesquisador, um improvisador, um aventureiro
que percorre caminhos nunca antes trilhados e que pode se perder caso não
reflita de modo intenso sobre o que faz” (PERRENOUD, 2002, p. 13).

Essa postura reflexiva deve ser permanente e acabam por modificar a


concepção que o próprio docente tem de si, “entendendo-se como sujeito
que transforma e ao mesmo tempo é transformado pelas próprias
contingências da práxis” (SANTOS, 2017, p. 138), comprometendo-se com as
mudanças sociais, a exemplo dos multiletramentos e multimodalidades
próprias do ambiente virtual, o que reivindica “a necessidade de a escola
tomar a seu cargo [...] os novos letramentos emergentes na sociedade
contemporânea, em grande parte -mas não somente- devidos às novas TICS”
(ROJO, 2012, p. 12).

Cabe, consequentemente, uma postura igualmente crítica na atitude


reflexiva do professor no âmbito dos novos letramentos emergentes, devido
às novas TICS, afinal, a nova massa é o enxame digital, conforme Han (2018),
a qual é capaz de anular as singularidades e, nem de longe expressa uma
coletividade, apenas formar um enxame. Cabe, desse modo, ao professor
investir na variedade cultural que se manifesta em sala de aula, fruto
igualmente das diferentes histórias e trajetórias dos estudantes, as quais mão
podem ser desconsideradas.

Tendo em vista as considerações feitas até aqui, bem como o contexto


de aulas remotas vivenciadas por nós professores, professoras e estudantes,
com vistas a manutenção das atividades educativas, o presente texto
objetiva apresentar relato de experiências docentes no processo de ensino-
aprendizado da Língua portuguesa através de plataformas digitais, o ensino

418
remoto. Para tal, apresentam-se relatos de experiências, com inspiração nos
dispositivos metodológicos da pesquisa (auto)biográfica, conflitos e
inquietações de uma professora da educação básica mediante o desafio
de ministrar aulas de maneira remota de modo inesperado, observando suas
investidas multimodais no seu fazer docente. Em seguida, igualmente,
descrevo minhas experiências enquanto professor de Língua Portuguesa e
Literaturas, observando em que medida a multimodalidade, na perspectiva
das linguagens múltiplas, aparecem no meu fazer docente.

A referida reflexão torna-se justificável em razão da exigência de aulas


em caráter remoto, em diversas instituições brasileiras, realidade a que nós,
professores e professoras, fomos apresentados abruptamente, exigindo-se,
na mesma proporção, nova postura, domínio de mecanismos da “cultura
digital”, novos modos de fazer pedagógico, inevitavelmente multimodal.
Também, a referida proposta está vinculada às preocupações com a escola,
os letramentos e formação de professores e, portanto, à linha 2, Letramento,
Identidade e Formação de Educadores” do Programa de Pós-graduação
em Crítica Cultural da Universidade da Bahia-UNEB.

Para alcançar os objetivos definidos para a proposta aqui


empreendida, perseguem-se os seguintes questionamentos: Quais
estratégias multimodais têm sido mobilizadas no ensino de Língua Portuguesa?
Quais ferramentas estão sendo manipuladas nesse sentido? Quais as
dificuldades e angústias enfrentadas pelos docentes? Para responder a tais
questionamentos, optou-se pelo método qualitativo baseado nos dispositivos
da pesquisa (auto)biográfica de experiência docente, analisando-os a partir
de uma perspectiva dos eventos apresentados.

419
1 EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS MULTIMODAIS NO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA: RELATOS DE EXPERIÊNCIAS DOCENTES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
DO DIGITAL

A situação de caos, a qual já me referi no início desse texto, gerou


incertezas diversas, mas causou em nós professores, antes de mais nada, uma
reflexão profunda a respeito de quem somos e das dificuldades frente aos
novos desafios de ministrar aulas através do virtual. Entendo que, talvez tenha
sido, igualmente, um momento fértil para que toda a experiência docente
fosse colocada em cena para “responder” a inquietações e incertezas,
relevando a importância da reflexão docente, conforme observamos na
narrativa da professora Maria Flor:

Eu vou tratar realmente da minha perspectiva, bem subjetivo, mas


acredito que muitas outras experiências podem se aproximar da
minha ou se distanciar. Eu, como docente, que tenho esse lado muito
humano, muito afetivo, eu sempre fui muito distante das redes sociais.
Eu não tenho facebook, não tenho Instagran...já tive durante um
período, mas depois me afastei. Assim...fui me afastando cada vez
mais! Assim...essa foi a minha primeira dificuldade porque eu tive que
voltar a ter contato com esse mundo que não me agradava, né!
Tanto é que eu brinco até com meus alunos...eles dizem “pró você
não tem rede social?” eu digo “ah, meu filho, eu faço parte de uma
que ninguém mais faz, a rede da privacidade” [Risos]...aí eles dão
risada! Aí esse foi o primeiro desafio pra mim...ter que lidar...ter que
voltar pra essas redes sociais. Então, essa coisa de não está em
contato com o aluno real me dificulta muito. Eu gosto de olhar no
olho, eu gosto de ter certeza que o aluno tá comigo...porque assim
ó...quando a gente entra nas salas virtuais e a gente pede para o
meninos silenciar, o menino parar o áudio, você não tem mais
certeza se ele está alí, né?! Ele pode ter deixado o celular dele online
e ter caído fora, ter ido tirar um cochilo, ter ido lanchar, e você fica
alí sem ter, realmente, a resposta que você gostaria. Então, é um
mundo complemente novo e que eu não estou me adaptando, não
vou mentir. Estou assim fazendo, cumprindo...porque eu preciso
cumprir o que me tá sendo exigido...agora dizer que eu vou sair
dessa experiência e querer algum momento continuar com isso “ai
foi tão legal, vamos tentar mais um pouco” não, não quero, descobri
que eu preciso da minha sala de aula real. E descobri também,

420
acredito que o mundo tá descobrindo isso, que professor é
insubstituível em sala de aula. Que antes de tudo isso existia até
aquela conversa que professores poderiam ser substituído
futuramente, que qualquer um pode dar aula, que o menino hoje
com a internet precisa de professor pra quê? Quantas vezes a gente
já ouviu isso! Que professor com o tempo vai se tornar obsoleto na
sala! E nós estamos tendo a prova na pandemia que professor é
muito importante e o próprio aluno me dá o fedback disso. A primeira
coisa que os meninos fazem quando eu entro é “pró, quando a
gente vai voltar?”, “pró, eu não vejo a hora da gente voltar! De ver
a senhora, pró!” Então, o lado positivo disso pra mim só é esse: é
mostrar que professor é importante, sim, pra sala de aula! (MARIA
FLOR/PROFESSORA DA EDUCAÇÃO BÁSICA/Maio de 2020).

Ao observarmos o depoimento da professora Maria Flor, é perceptível


como a realidade de aulas remotas provocou nela uma profunda reflexão a
respeito de valores até então inegociáveis no campo educacional, a saber
a presencialidade das relações com os estudantes. Porém, reflexões a
respeito da imposição de um mergulho em realidades virtuais, até então
desprezadas ou pouco valorizadas por professoras e professores, a exemplo
de redes sociais, também foram mobilizadas, vez que o uso do virtual,
recobrar um necessário letramento digital, o que causa certa insegurança
na professora.

Sobre essa necessidade de um letramento digital tratada pela


professora Maria Flor, tomamos a afirmação de Santos (2017, p. 137) de que
as últimas décadas do século passado trouxeram mudanças vertiginosas
capazes de impor aos indivíduos “novas formas de conviver com as
linguagens e com diferenciadas possibilidades de aprendizagem, através da
informação, favorecendo diferentes olhares sobre o presente, o passado e o
futuro”. A referida professora ao conflitar-se com seu presente de atuação
docente, acaba por pensar possibilidades outras para sua atuação
profissional.

421
Essa necessidade de letramento digital e das peculiaridades existentes
nesse meio é, talvez a primeira descoberta da categoria docente nesse novo
contexto, conforme observamos anteriormente e contatamos na seguinte
afirmação da professora Maria Flor: “A gente sabe que precisa de
planejamento, que o mundo virtual exige uma outra dinâmica. [...]. Mais do
que nunca a escola mostrou que ela precisa mudar...ela precisa se adequar
a esse novo mundo de tecnologias, de acesso” (MARIA FLOR/PROFESSORA
DA EDUCAÇÃO BÁSICA/MAIO DE 2020).

Na fala da professora reconhecemos que, a experiência pedagógica


em contexto de atividades remotas, exige práticas multimodais que
requerem mudança de postura de nós professores frente às suas práticas,
além do fato de que o professor é o principal agente de inovação no campo
educativo, conforme muito bem defende Imbernón (2004, p. 20) ao firmar
que este deve “participar ativa e criticamente no verdadeiro processo de
inovação e mudança, a partir de e em seu próprio contexto, em um processo
dinâmico e reflexivo”.

Todavia, não se pode deixar de considerar que as dificuldades nesse


contexto de fazer aula não revelam-se apenas no ato de planejar, mas nas
dificuldades estruturais enfrentadas, as quais impactam diretamente na
qualidade do fazer docente: “Nós estamos lidando com tudo muito
caseiro...a minha internet que não tem a quantidade necessária de gigas,
né...tô usando muito o celular que não é muito adequado pra esse tipo de
coisa...talvez isso faça com que a minha experiência seja um pouco
negativa”. A necessidade de reinventar-se frente aos desafios, todavia,
ganha relevância fazendo com que as práticas multimodais se concretizem,
ainda que as dificuldades existam efetivamente.

As questões que se colocam então são: Quais estratégias multimodais


têm sido mobilizadas no ensino de Língua Portuguesa? Quais ferramentas

422
estão sendo manipuladas nesse sentido? Para responder a essas questões,
parto da compreensão de Rojo (2012, p.11) da necessidade de propor uma
pedagogia dos multiletramentos ao questionar “por que propor uma
pedagogia dos multiletramentos?”, nos alertando para uma urgente
necessidade da Escola tomar para si uma pedagogia dos multiletramentos,
emergentes na sociedade, especialmente em razão das novas Tecnologias
da Informação e da Comunicação (TCs), as quais já têm sido uma realidade
vivida por muitos dos nossos estudantes. Estes já nasceram mergulhados em
uma cultural midiática, emergindo destas, inevitavelmente, novos
letramentos, “de caráter multimodal ou multissemiótico” (ROJO, 2012, p. 13),
hipermidiáticos.

Essas práticas multimodais, apesar das inseguranças da professora


Maria Flor, aparecem em suas práticas, a princípio de maneira tímida, por
meio do uso de slides, gravador de telas, uso do quadro diante da câmera,
conforme observa-se ao afirmar:

Eu tenho usado muitos recursos como os slides, eu comprei um


quadro para colocar na minha casa porque quando o menino não
está satisfeito com o slide ou não compreende, ele ainda quer que
você vá para o quadro...ele ainda prefere você colocando lá seus
exemplos e agindo do jeito básico mesmo...mas a minha experiência
tem sido assim...são recursos bons...eu uso muito slides, uso também
muito gravador de tela, né, eu vou gravando a tela do celular e vou
dando a aula ali e depois posto (MARIA FLOR/PROFESSORA DA
EDUCAÇÃO BÁSICA/Maio de 2020).

Aos poucos, mesmo com as inseguranças e as dificuldades estruturais


existentes, constata-se uma experiência multimodal por parte da professora
na medida em que ela mobiliza diferentes linguagens para compor suas
aulas, seja por meio dos slides e do quadro, os quais já são bem conhecidos
e tem por base a verbalização escrita e, no caso do gravador de tela, a

423
verbalização oral, o qual vem acompanhada de signos visuais. Ao longo da
narrativa a própria professora demonstra mais segurança e vai apresentando
outras estratégias/recursos multimodais mobilizados por ela, tais como
imagens, músicas, links, hipertextos:

Então esses recursos são positivos, não são recursos ruins, até porque
você pode usar muito da criatividade, né, você pode brincar, os
meninos têm uma facilidade porque você pode jogar imagens. Ele
vê aquilo que, até então, pra ele fica só no imaginário, através de
um slide ele vê de uma maneira muito real porque os exemplos vão
além da palavra, ne, você muda os símbolos...você tem imagem,
você tem um vídeo, você tem uma letra de música. Quando você
está na sala de aula presencial você tem que ir com todo aquele
artefato, né, aqui não, você vai jogando links, clicando, a questão
dos hipertextos, e as coisas vão acontecendo. Se eu tivesse sido
melhor preparada, se eu estivesse esperando por isso, com certeza,
a experiência seria muito mais positiva (MARIA FLOR/PROFESSORA DA
EDUCAÇÃO BÁSICA/Maio de 2020).

Como é possível observar, ainda que a princípio a professora tenha


manifestado dificuldades, suas práticas ganham um caráter multimodal,
tendo em vista a “multiplicidade de linguagens” (ROJO, 2012, p.18), ou seja,
“textos compostos de muitas linguagens (modos, ou semioses) e que exigem
capacidades e práticas de compreensão e produção de cada uma delas
(multiletramentos) para fazer significar” (ROJO, 2012, p.19).

Fica evidente também como as práticas pedagógicas relatadas pela


professora são imediatamente comparadas por ela mesma com a realidade
da sala de aula presencial. Ao afirmar “Quando você está na sala de aula
presencial você tem que ir com todo aquele artefato, né, aqui não, você vai
jogando links, clicando, a questão dos hipertextos, e as coisas vão
acontecendo” revela que

424
Evidentemente, a lógica interativa-colaborativa das novas
ferramentas dos (multi)letramentos no mínimo dilui e no máximo
permite fraturar ou subverter/transgredir as relações de poder
preestabelecidas, em especial as relações de controle unidirecional
da comunicação e da informação (produção cultural, portanto) e
da propriedade dos “bens culturais” (ideias, textos, discursos,
imagens, sonoridades) (ROJO, 2012, p. 24-25).

A prática apresentada pela professora relava, pois, uma proposta de


aula que ganha propriedades colaborativas por meio dos links e hiperlinks
mobilizados, aspectos próprios do ambiente virtual, diluindo, em certa
medida, as relações de poder unilaterais, conforme salientado por Rojo
(2012). Certamente, outras posturas podem e devem estar sendo adotadas
no ensino de Língua portuguesa em contexto de aulas remotas, tendo em
vista a capacidade criativa de professoras e professores comprometidos
com uma educação que faça significar.

Nesse ínterim, é importante considerar que as reflexões até aqui


apresentadas a respeito das práticas da professora Maria Flor me
comprometem, igualmente, a observar as minhas práticas pedagógicas no
ensino de Língua portuguesa e Literaturas para compreender de que modo
essas experiências multimodais têm sido, ou não, mobilizadas por mim.

É importante considerar que a experiência pedagógica do outro,


inclusive no que concerne às dificuldades, sempre são oportunidades de,
não apenas pensar a nossa, como, mais que isso, ressignificá-las. Assim, as
práticas que buscarei descrever e analisar são resultados de minhas
experiências enquanto professor de Língua Portuguesa da Educação Básica,
mais especificamente em turma de 2º ano do Ensino Médio de instituição da
Rede Privada. A referida prática foi realizada entre os meses de junho e julho
de 2020, de modo totalmente remoto.

425
A princípio, é preciso considerar que o ensino de Língua Portuguesa no
Ensino Médio tem sido desafiador desde sempre, tendo em vista a constante
necessidade de conquistar nossos estudantes para desvendar no texto
literário, os sentidos da vida e da existência e, mais que isso, possibilitar na
arte literária uma oportunidade de refletir a respeito de suas próprias
condições de sujeito individual e coletivo, do particular e do social. Em
tempos de aulas remotas esses desafios apresentam-se ainda maiores para
nós professores e professoras que entendem que uma leitura meramente
analítica não constrói leitores autônomos, críticos e, menos ainda sujeitos
produtores de conhecimento.

Como então possibilitar um contato prazeroso dos estudantes com


cânones da literatura em contexto de aulas remotas, buscando considerar
as ferramentas digitais manipuladas por eles diariamente? Essa foi e tem sido
a minha primeira inquietação no processo de planejar e executar aulas de
língua portuguesa. Aliás, a presente questão me fez entender caminhos
possíveis para alcançar tais objetivos, dentre as quais o “Sarau Poético digital
Fernando Pessoa e seus heterônimos”, o qual descreverei a seguir.

Como se sabe, dentre os conteúdos de historiografia literária exigidos


para ser ensinado no Ensino Médio, está o Modernismo Português, resultado
das Vanguardas Europeias. Esse movimento literário possibilitou uma vasta
produção poética de um conjunto de autores a exemplo Fernando Pessoa,
um dos mais conhecidos escritores desse momento, ainda hoje citado e
conhecido por sua capacidade de criar diferentes “pessoas” (heterônimos)
para sua escrita: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

A partir dessa proposta de conteúdo, não necessariamente o professor


precisa ficar preso à descrição biográfica de Fernando Pessoa, de seus
heterônimos e de como identificar cada um deles ao ler suas poéticas. Penso
que o mais importante seja possibilitar o contato do estudante com suas

426
produções, lendo seus textos. Como isso foi feito? Primeiro, solicitando que
trouxessem para a aula um poema de Fernando Pessoa que lhe tenha
chamado atenção, que lhe tocou, que lhe despertasse sentimentos. Apenas
esse ato de pesquisar já colocou o estudante em contato com uma
infinidade de textos poéticos do autor em questão.

Em seguida, esse poema escolhido pela estudante, merecia ser


declamado, discutido, junto com os demais colegas, em aula ao vivo.
Observemos que nessa dinâmica, o contato com o signo linguístico-literário
produz no estudante um outro contato com o texto poético e das
repercussões dele em si no conjunto com os colegas, o que faz provocar
diferentes leituras interpretativas para a mesma produção. A capacidade
heteronímica de Fernando Pessoa se coloca na prática da leitura e, antes
de tudo, no próprio ato de escolher aquele e não outro poema.

A presente proposta, como dito, não exigiu, a princípio, uma aula


“expositiva”, contando a história de Fernando Pessoa, de seu contexto de
produção, mas, isso não deixou de ser feito, a partir da necessidade dos
estudantes, da necessária aproximação temática entre um poema e outro,
por exemplo. Exigiu pesquisa, obviamente na internet; leitura, oralidade,
reflexões subjetivas (porque esse poema foi escolhido e não outro?); trouxe
a necessária reflexão sobre a capacidade da literatura de nos fazer ter
identidades múltiplas, pois afinal o temos.

A partir dessa proposta, outros desdobramentos foram sugeridos aos


estudantes, como, por exemplo, fazer uma arte digital, uma postagem no
status do Instagram, onde buscasse associar aquele poema a uma imagem,
uma música, desde que entendesse que houvesse certa relação entre os
elementos. Também, os estudantes foram orientados a “marcar” alguém a
quem quisesse dedicar a aquela poesia, ação já comum em redes sociais
como o Instagram; marcar a mim, o professor, e as redes sociais da escola,

427
também era outra possibilidade. Essa proposta foi um modo de fazer a arte
poética circular, ser lida, consumida pelo maior número de pessoas. Fazer o
Sarau sair das “fronteiras” da sala de aula.

Observemos que, para essa etapa da atividade acontecesse, a qual


exigiu criatividade e não mera reprodução, mobilizou nos estudantes outros
signos, linguagens, de modo que estas se relacionassem, dialogassem de
algum modo. O poema escolhido e uma imagem, pintura, músicas, cores,
emojis (representações gráficas para transmitir ideia, emoção), ou mesmo o
poema musicado por algum artista. Vejamos algumas produções!

A primeira produção faz menção ao poema Mar português no qual o


eu lírico exalta o mar português pelo qual muitas vidas foram perdidas em
razão da ânsia por desbravá-lo. Observe-se que a estudante associa-o a
uma belíssima imagem praiana, acompanhando-a a canção “Mergulho no
Mar” da banda Melim, cujos versos dizem “Mergulho no mar pra lavar a
alma/ Frescor vem trazendo a calma/Amanhecendo o dia/ Sinto os pés
sobre búzios e conchas Corais refletidos em ondas”. Obviamente a música
escolhida faz parte da trilha sonora da vida da estudante, assim como os
motivos da escolha do poema dizem de sua relação com o mar, conforme
a mesma salientou em aula.

428
Postagem I

A segunda produção faz menção ao poema “Todas as cartas de amor


são ridículas” poema de um dos heterônimos de Fernando Pessoa, Álvaro de
Campos. Observe que a estudante produziu um material que tem como
plano de fundo a cor vermelha, socialmente eleita como a cor do amor, da
paixão; para acompanhar as estrofes escolhidas um áudio em que Maria
Bethânia e Cleonice Berardinelli declamam a referida poética.

Imagem 2

429
A terceira produção cita o poema “Pressagio”, o qual é assinado pelo
próprio Fernando Pessoa. Nela observa-se o poema na íntegra, disposto
como uma espécie de bilhete endereçado a alguém, onde as cores rosa e
verde se harmonizam, tomando um certo romantismo. Observemos ainda
que a produção vem acompanhada de emojis de corações que pulsam e
como trilha musical a canção “Pupila” da dupla “Anavitória” cujos versos
afirmam: Como que eu vou dizer pra ela/ Que eu gosto do seu cheiro/ Da
cor do seu cabelo/ Que ela faz minha pupila dilatar/ Eu quero dizer pra ele/
Que a rima fez efeito/ E agora penso o dia inteiro/ Só ele faz minha pupila
dilatar.

Imagem 3

Como foi possível observar em todas as produções os estudantes do 2ª


ano de Ensino Médio precisaram conhecer a poética de Fernando Pessoa,
entendê-las e, inevitavelmente, relaciona-las com suas preferências musicais,
por exemplo, o que resultou em práticas dos múltiplos letramentos,

430
multissemióticas, multimodais, conforme as discussões de Rojo (2012) e, mais
que isso, se configura como um “projeto didático de imersão em práticas
que fazem parte das culturas do alunado e nos gêneros e designes
disponíveis para essas práticas” (ROJO, 2012, p.30).

Em outras perspectivas, a referida proposta lança mão de uma


perspectiva que parte da experiência de produção para a recepção do
que foi produzido por eles em ampla escala, como é peculiar às redes sociais
como o Instagram, fazendo com que os leitores e consumidores tomem parte
não apenas da cultura da escola, mas, especialmente que a cultura dos
nossos estudantes e seus valores sejam melhor aproveitados no processo de
ensino-aprendizado da Língua Portuguesa em contexto de aula remotas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das problematizações anteriormente apresentadas, observa-


se que, a partir dos relatos de experiências docentes no contexto do ensino
de Língua portuguesa em modalidade remota, estratégias multimodais são
mobilizadas em diferentes perspectivas. Faz-se importante considerar ainda,
que, as referidas estratégias didáticas não devem ser tomadas como
“receita pronta”, mas como possibilidade de contribuir com as práticas de
professores e professoras, os quais, obviamente, devem considerar seus
contextos particulares, as necessidades de seus alunos, os recursos
disponíveis e as metas a serem alcançadas, portanto.

431
REFERÊNCIAS

HAN, Byung-Chul. No enxame. In: No enxame: perspectivas do digital.


(Tradução: Lucas Machao). Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes, 2018, p. 25-34.

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docente e profissional: formar-se para mudança e a incerteza. São Paulo:
Cortez, 2004.

PERRENOUD, Philippe. Introdução: Prática reflexiva: chave da


profissionalização do ofício. In: A prática reflexiva no ofício de professo:
profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002,
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ROJO, Roxane. Pedagogia dos multiletramentos. In: ROJO, Roxane; MOURA,


Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editora, 2012, p. 11
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições


Almedina, 2020. Disponível em: https://www.cpalsocial.org/documentos/927.pdf.
Acesso 20 de abril de 2020.

SANTOS, Solange Mary Moreira. Formação continuada e práxis docente: o


desafio das tecnologias da informação e comunicação (TICs). In: CRUZ,
Maria de Fátima Berenice da; CRUZ, Antonio Roberto Seixas da (Orgs).
Educação em Tempos Atuais: experiências no exercício da docência.
Salvador: EDUNEB, 2017, p. 137-165.

432
A ORGANIZAÇÃO RETÓRICA DE INTRODUÇÕES DE ARTIGOS
CIENTÍFICOS EM LINGUÍSTICA

Penelope de Moura Lopes¹

Benedito Gomes Bezerra²

Resumo: A introdução de artigos acadêmicos é fundamental para a apresentação e


justificativa de uma pesquisa, pois é através dela que o leitor se inteira do assunto abordado,
decide se é válida ou não a continuação da leitura. Swales (1990) apresenta um modelo
descritivo da organização retórica de introduções, que se tornou referência nesse campo
de estudos, por possibilitar analisar as estratégias utilizadas pelos pesquisadores ao construir
seus textos. Desta forma, este trabalho de pesquisa tem como objetivo analisar a
organização retórica de introduções de artigos científicos, produzidos por escritores
proficientes na área da linguística, segundo o modelo CARS (SWALES, 1990). Para isto, foi
coletado em revistas acadêmicas Qualis A1 um corpus de 15 introduções
de artigos científicos da área de linguística, publicados no período de 2019 a 2020. Após a
análise do corpus, verificou-se que há uma presença maior dos movimentos 1 e 3 nas
introduções dos artigos de linguistas, sendo o movimento 2 o menos recorrente nos
textos. pode-se concluir, segundo os resultados até aqui estudados, que entre alguns
pesquisadores brasileiros há maior preocupação em desenvolver melhor a amplitude do
tema abordado na introdução, seja alegando centralidade ou revisando itens de pesquisas
anteriores, apresentar os objetivos e sinalizar para qual propósito seu artigo está sendo
publicado.
Palavras-chave: Introduções, Gêneros Acadêmicos; Organização Retórica.

INTRODUÇÃO

Segundo Henz (2003), o crescimento de produções de artigos


científicos se deve à importância que este gênero textual assumiu na
academia, sendo considerado um dos principais meios para a disseminação
da ciência e para se alcançar prestígio entre os pares.

Apesar da crescente publicação de textos científicos, é de


conhecimento geral a dificuldade por parte dos pesquisadores de ter seus
artigos científico aceitos pelas revistas acadêmicas, pois muitas vezes há falta

433
de domínio na retórica dos textos científicos. Alguns linguistas brasileiros,
percebendo esta lacuna no meio científico, já escreveram sobre redação
acadêmica. Citamos aqui alguns para exemplificação, Motta-Roth
e Hendges (2010), Paiva (2019) e Durão (2020).

No entanto, a introdução dos artigos científicos é que se encarrega de


convencer a comunidade científica da importância da publicação do texto.
Para possibilitar a compreensão das estratégias retóricas utilizadas na
introdução, Swales (1990) apresentou o modelo CARS – Criar um espaço de
pesquisa (traduzido para o português). Muito reconhecido entre
pesquisadores de gêneros textuais, o modelo, conforme Bezerra (2001, p. 25),
“resultou da análise, por parte do autor, de 48 introduções de artigos de
pesquisa, divididas em três grupos iguais, provenientes de três áreas
científicas diferentes (ciências exatas, biologia/medicina e ciências sociais,
incluindo pedagogia, administração e linguística)” e tem sido utilizado até os
dias atuais, apesar de ter sido objeto de críticas e revisão inclusive pelo
próprio Swales (2004).

Desta forma, o presente estudo tem como objetivos analisar a


organização retórica de introduções de artigos científicos produzidos por
escritores proficientes na área de linguística, identificar os movimentos
retóricos característicos da organização retórica dos textos e identificar
elementos léxico-gramaticais indiciadores dos movimentos retóricos nas
introduções.

434
1 METODOLOGIA

Para análise dos textos, segundo a perspectiva de Swales (1990),


utilizamos o corpus de 15 introduções de artigos científicos produzidas por
pesquisadores brasileiros proficientes da área da linguística e publicados
entre os anos de 2019-2020, Qualis A1, no quadriênio avaliativo Capes 2013-
2016. Dentre as quais contam a revista Linguagem e (Dis)curso (5
exemplares), Revista Estudo da Linguagem, (3 exemplares), Caderno de
Estudos Linguísticos (3 exemplares), Trabalhos em Linguística Aplicada (2
exemplares) e D.E.L.T.A (2 exemplares). Os exemplares foram coletados de
forma aleatória, através do site oficial de cada revista, estas, por sua vez,
também foram selecionadas aleatoriamente. Para este estudo, levamos em
consideração apenas os artigos que continham o tópico “Introdução” bem
sinalizado e delimitado no texto, para assim evitar maiores complexidades.

As introduções foram analisadas segundo o modelo CARS (Swales,


1990) para contrapor suas peculiaridades. Posteriormente, analisamos os
elementos linguísticos que sinalizaram os diferentes movimentos retóricos nas
introduções. Para melhor compreensão, apresentaremos aqui o modelo
CARS (SWALES, 1990, p.141):

435
Swales utiliza de uma metáfora ecológica, com territórios, nichos e
passos, para a organização de seu modelo retórico de introduções.
Concluindo em 3 Movimentos e 11 Passos. Em um primeiro momento, no
Movimento 1, é esperada a centralização ou generalizações acerca do
tema proposto, assim se estabelece um território de estudo. Após isto, no
Movimento 2, é comum o pesquisador delimitar melhor em que território está
a sua pesquisa, apresentando uma proposta mais detalhada por aportes
teóricos, ou questionamentos ou contra-argumentando. Por fim, no
Movimento 3, o pesquisador ocupa o nicho da pesquisa apresentando
objetivos, podendo ainda indicar a estrutura do artigo.

2 UM POUCO SOBRE GÊNEROS TEXTUAIS ACADÊMICOS

Para Swales, 1990, o conceito de gênero está atrelado à comunidade


discursiva, esta que reconhece os propósitos comunicativos comuns e
compartilhados que regulam a interação. Tais propósitos comunicativos são
fundamentais na conceituação e no reconhecimento dos gêneros textuais.

Outra abordagem que corrobora com Swales para a noção de


gênero, é a de Bhatia (1993), para quem um gênero é “um evento
comunicativo reconhecível, caracterizado por um conjunto de propósitos
comunicativos identificados e mutualmente entendidos pelos membros da
comunidade profissional ou acadêmica na qual regulamente ocorre”.

Partindo deste princípio, Motta-Roth (2002) afirma que o artigo


acadêmico é o gênero textual mais recorrente para a produção e
divulgação de conhecimento na comunidade acadêmica, pois tem como
objetivos básicos apresentar, discutir resultados de pesquisas e apresentar
revisão de literatura da área. E ainda para Silva (1999), a recorrência do uso

436
do gênero artigo acadêmico se relaciona com duas necessidades básicas
que movimentam a produção científica: a necessidade de estabelecer uma
interação constante e dinâmica entre os membros experientes ou iniciantes
da academia e a necessidade, por parte dos(as) autores(as), de terem seus
trabalhos reconhecidos para efeito de financiamento junto a órgãos de
fomento.

Voltando a Swales (1990), ele descreve a caracterização retórica do


gênero artigo acadêmico apresentando quatro unidades retóricas básicas:
Introdução, Métodos, Resultados e Discussão. Na descrição da
caracterização retórica do gênero artigo acadêmico, Swales (1990) dá
especial atenção à unidade retórica Introdução. A partir desta abordagem,
surge o chamado modelo CARS que tem sido uma contribuição
metodológica importante para a descrição de gêneros a partir da
caracterização de suas unidades retóricas, e é a base de estudos desta
pesquisa.

3 ANÁLISES E DISCURSÕES DAS INTRODUÇÕES SEGUNDO O MODELO CARS


(1990)

Sabemos que um corpus de 15 introduções é uma parte mínima dentre


tantas publicações científicas no país. No entanto, desta parte, conseguimos
observar uma tendência a certos movimentos retóricos elencados por Swales
(1990).

Observamos que o Movimento 2 é pouco presente e desenvolvido nas


introduções, comparado aos Movimentos 1 e 2, já que das 15 introduções
analisadas, 5 introduções não continham o Movimento 2, e apenas 1
introdução não continha o Movimento 1. Em contrapartida, todas

437
introduções continham pelo menos um movimento retórico do Movimento
3.

Das estratégias de retórica mais utilizadas, o Passo 1A do Movimento 3,


no qual se apresenta os objetivos, está presente em 11 de 15 introduções.
Além deste, é comum serem utilizados as estratégias retóricas dos Passos 1 e
3, do primeiro Movimento e os dos Passos 3 e 1B, movimento 3. Já o Passo 1B
do Movimento 2, indicando uma lacuna, é a estratégia menos utilizada por
pesquisadores brasileiros em suas introduções.

Para melhor visualização e compreensão de como se dispõem os


movimentos retóricos, segue abaixo a tabela com eles apresentados em
cada introdução. A sigla “LG” refere-se as introduções de linguísticas e “P”
refere-se aos Passos do modelo retórico de Swales (1990):

Tabela 1- Movimentos Retóricos presentes nas introduções.

LG MOVIMENTO 1 MOVIMENTO 2 MOVIMENTO 3

P1 P2 P3 P 1A P 1B P 1C P 1D P 1A P 1B P2 P3

LG 1 X X X

LG 2 X X X X

LG 3 X X X X X

LG 4 X X X X

LG 5 X X X X

LG 6 X X X X

LG 7 X X X X X

438
LG 8 X X X

LG 9 X X X X

LG 10 X X X X X

LG 11 X X X X

LG 12 X X X

LG 13 X X X X X

LG 14 X X X X X

LG 15 X X X X X

Por mais que os movimentos retóricos sejam estabelecidos por uma


ordem no modelo de Swales (1990), caso uma introdução não siga esta
ordem, ela ainda assim está dentro do modelo, porque não há hierarquia
estabelecida entre os passos e movimentos. Em seguida, trazemos
um exemplo de introdução mais observado no corpus, com apenas dois
movimentos retóricos presentes, o 1 e o 3, mas que cumpre o seu propósito e
ainda utiliza das estratégias retóricas aqui estudadas:

439
Exemplo 1: LG 11

“O (NÃO) LUGAR DA FONÉTICA E DA FONOLOGIA EM LIVROS DIDÁTICOS


BRASILEIROS DO ENSINO FUNDAMENTAL ANOS FINAIS

[Movimento 1, Passo 1: Alegando Centralidade] A Fonética e a


Fonologia, dois dos três pilares desta investigação, têm importância inconteste
à formação linguística dos estudantes da Educação Básica e à ampliação dos
seus saberes. Mesmo assim, o lugar reservado a essas áreas no currículo oficial
brasileiro é insatisfatório, como demonstra Rodrigues (2020, no prelo), em
pesquisa em que analisa a sua presença na BNCC (BRASIL, 2018) dos Anos Finais
do Ensino Fundamental. Já Rodrigues e Nascimento (2016) revelam que elas vêm
sendo relegadas a segundo plano na formação inicial de professores de Língua
Portuguesa (LP) e, em sua práxis, é comum a insegurança acerca do que, de
fato, é o objeto de ensino da disciplina.

No que diz respeito aos livros didáticos (nosso terceiro pilar), sabe-se que, há
algumas décadas, ele vem suscitando uma grande diversidade de interesses no
campo da pesquisa e, a despeito da variedade de abordagens de tais
investigações, há, entre elas, um consenso no que diz respeito à sua massiva
presença nas salas de aula da Educação Básica e à centralidade do seu uso nas
escolas. É esse lugar que os LD têm nas salas de aula a justificativa para a nossa
opção de investigá-los. [Movimento 3, Passo 1A:
delineando objetivos] Nesse complexo contexto, objetivamos descortinar o lugar
das áreas em pauta em dois LD de português voltados para o 6º

ano do Ensino Fundamental, momento em que, segundo rezam as orientações


curriculares em vigor, são retomados e ampliados os saberes construídos no Ensino
Fundamental Anos Iniciais.”

440
Segue um segundo exemplo de introdução, que contém todos os três
movimentos sugeridos no modelo CARS de 1990, porém elas foram menos
frequentes em nossa análise:

Exemplo 2: LG 12

“A ORATÓRIA POPULAR NA IMPRENSA ANARQUISTA BRASILEIRA: UM ESTUDO


DE CASO DO JORNAL A PLEBE
[Movimento 1, Passo 1: Alegando centralidades] No dia 09 de junho de
1917, era publicada a primeira edição do jornal A Plebe. Tratava-se de um veículo
da imprensa operária, particularmente autoproclamado como anarquista-
sindicalista. O periódico se inscreve em uma série que poderia remontar a outros
de distintas tendências igualitárias do final do século XIX, tais como A Metralha, O
Socialista e A União operária, entre muitos outros3 . Em seu primeiro editorial,
Edgard Leuenroth, seu editor, traça o programa do jornal: “combate a todos os
elementos de opressão que sujeitam o povo deste país”.

[...] [Movimento 2, Passo 1C: levantando questionamentos] Se esta é a


imagem relativamente negativa do povo que encontramos nesse texto-chave da
primeira edição de A Plebe, quais seriam as coisas ditas a respeito das
competências da fala pública popular e da escuta popular da fala pública em
outros textos desse importante veículo da imprensa anarquista brasileira? Quais
eram, afinal, os discursos sobre a oratória popular e sobre a capacidade de
interpretação das classes populares materializados em A Plebe? Haveria neles a
reiteração dos preconceitos contra as práticas populares de linguagem que se
encontram nas ideologias conservadoras ou, antes, a concessão quase inédita
de espaço e legitimidade na história brasileira à voz e à escuta do povo? Eis
algumas das questões fundamentais a que nos propomos responder
aqui. [Movimento 3, Passo 2B: apresentando a pesquisa] Para tanto,
empreenderemos uma análise discursiva de uma série de enunciados extraídos

441
das quatro primeiras edições de A Plebe, publicadas num momento
particularmente importante da efervescência operária no Brasil.”

Como ocorrências ainda menos frequentes, e que contempladas no


modelo CARS (1990), observamos que uma introdução abrangia a
metodologia e outra introdução inseriu os agradecimentos. Por menos
comum que seja no Brasil e para a área de linguística, é opcional para o
pesquisador incluir metodologias e agradecimentos na introdução.

Quanto à gramática, frequentemente observamos elementos


linguísticos, que prenunciam o Movimento 3, por exemplo, “[...] a pesquisa
que passamos a relatar teve como objetivo analisar [...]”, “[...]
Para tanto, dividimos este artigo em [...]” e ainda, “o objetivo geral deste
artigo é discutir [...]”, “. O texto organiza-se em sete seções [...]”.

Além destes marcadores linguísticos, é comum encontrar nas


introduções conjunções adversativas e concessivas para indicar alguma
lacuna de pesquisa anteriores ou contra-argumentar, estratégias que fazem
parte do Movimento 2 no modelo CARS (1990). Por exemplo, “todavia, são
muito escassas as pesquisas que incidiram no artigo científico [...]”, “Apesar
desta evidência elementar – “pichar é contradizer” – e de uma suposta
onipresença da contravenção, o discurso conservador está ambiguamente
marcado nos três pichos analisados adiante [...]”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever um artigo científico pode ser considerado uma tarefa árdua


para muitos pesquisadores, principalmente aqueles que estão no início de

442
sua carreira acadêmica. A partir desta observação, notamos a importância
de se desenvolver estudos que contribuam aos pesquisadores uma certa
“métrica” ou melhor, um norteamento de como introduzir suas análises e
estudos no meio acadêmico.

Tendo em vista as discussões e resultados apresentados neste trabalho,


há uma tendência entre os pesquisadores linguistas brasileiros para maior
utilização dos movimentos retóricos 1 e 3 do modelo CARS (1990). Desta
forma, percebe-se certa preferência em primeiro estabelecer o “terreno” em
que a pesquisa está situada para logo em seguida já apresentar os objetivos,
anunciar a pesquisa e indicar a estrutura do artigo.

Quanto a utilização da gramática, é constantemente observado


utilização de sinalizadores socio retóricos, por exemplo, “o objetivo deste
artigo...” e ainda, “o presente artigo está divido em ...”. Também é comum a
utilização de conjunções para organizar a coesão e sequenciamento da
introdução.

Acreditamos que a publicação deste estudo contribuirá para o estudo


de pesquisadores de áreas afins que desejam aprimorar sua retórica afim de
cativar o leitor e publicar suas pesquisas em revistas acadêmicas
conceituadas.

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Benedito G. A distribuição das informações em resenhas


acadêmicas. 2001. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de
Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2001.

443
BIASI-RODRIGUES, Bernardete. Estratégias de condução de informações em
resumos de dissertações. 1998. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de
Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 1998.

BHATIA, V. K. Analysing genre: language use in professional settings. New York:

Longman, 1993.

MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para


o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002.

HENZ, Gilmar P. Como aprimorar o formato de um artigo científico.


Horticultura Brasileira, Brasília, 2003.

MOTTA-ROTH, Désirée; HENDGES, Graciela Rabuske. Produção textual na


universidade. São Paulo: Parábola, 2010.

PIOVEZANI, Carlos. A oratória popular na imprensa anarquista brasileira. Cad.


Est. Ling., Campinas, 2019.

RODRIGUES, Siane; SÁ, Cristina Manuela. O (não) lugar da fonética e da


fonologia em livros didáticos brasileiros do ensino fundamental anos finais.
Cad. Est. Ling., Campinas, 2020.

SILVA, L.F. da. Análise de gênero: uma investigação da seção de Resultados


e Discussão em artigos científicos em química. Santa Maria, 1999. Dissertação
– Universidade Federal de Santa Maria

SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research settings.


Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

444
A ORGANIZAÇÃO RETÓRICA DE INTRODUÇÕES DE ARTIGOS
CIENTÍFICOS EM LINGUÍSTICA E LITERATURA

Maria Carolina Cordeiro Pessoa Bezerra 63


Benedito Gomes Bezerra 64

RESUMO: Em virtude das práticas de escrita exigidas pelo ambiente universitário, os


estudantes precisam se adaptar aos gêneros solicitados e, dentre eles, o artigo cientifico
tem o lugar de destaque. A secção de introdução, sendo a porta de entrada para a
discussão, é objeto central neste estudo. O presente artigo, dessa forma, concerne à
organização retórica de introduções de artigos nas áreas de linguística e literatura, visto que
ambas possuem discursos científicos próprios e posturas disciplinares distintas. Diante disso, o
objetivo deste trabalho é analisar a organização retórica de um corpus de introduções nas
áreas citadas, em publicações realizadas por escritores experientes. A pesquisa está
amparada na perspectiva de estudos de gêneros de Línguas para Fins Específicos, usando
como ferramenta de análise o Modelo CARS (SWALES, 1990). Para tanto, analisamos trinta
introduções de artigos produzidos por pesquisadores brasileiros e publicados em 2019-2020
em periódicos Qualis A1 (quadriênio 2013-2016). O corpus foi dividido entre quinze
introduções de literatura (ALIT) e quinze de linguística (ALING), analisadas seguindo a
abordagem de análise de movimentos retóricos proposta por Swales (1990). Os resultados
parciais indicaram que, das vinte introduções, apenas seis – duas de linguística e quatro de
literatura – não realizam os três movimentos retóricos, sendo mais recorrente a falta do
movimento 2. Além disso, houve movimentos inesperados em ambas as áreas. Apesar disso,
concluímos que as introduções de ambas apresentam uma organização retórica coerente
com as expectativas das respectivas comunidades discursivas para a secção de introdução.
Palavras-chave: Artigo cientifico, Introdução, Organização retórica.

INTRODUÇÃO

O artigo cientifico, sendo uma das maiores fontes de propagação do


conhecimento acadêmico, tornou-se o meio de ingresso oficial para
alcançar o prestígio na carreira cientifica. A crescente produção e

63Graduanda pelo Curso de Letras Português e Espanhol da Universidade de Pernambuco -


UPE, mariacarolinacpb@hotmail.com;
64Professor orientador: Dr. Benedito Gomes Bezerra, Universidade de Pernambuco- UPE,
benedito.bezerra@upe.br.

445
publicação desse gênero tem se alastrado pelas diversas áreas, seja em solos
nacionais ou internacionais. Os indicadores FAPESP de Ciência, Tecnologia e
Inovação registraram entre os anos de 2008 a 2010 a liderança do Brasil na
produção de artigos científicos em relação aos demais países da América
latina, configurando um total de 55,6% de publicações em periódicos
científicos internacionais (FAPESP, 2011, p. 1).

Embora exista uma crescente demanda para adentrar o mundo da


pesquisa, há também dificuldades em acessar o conhecimento das
convenções que regem o gênero artigo, o que torna mais difícil – e até
desmotivante – o processo de publicação em periódicos. Pensando nisto,
escritores como Motta-Roth e Hendges (2010), Paiva (2019) e Durão (2020)
desenvolveram estudos a respeito do funcionamento das redações
acadêmicas, principalmente no que diz respeito às disciplinas de linguística
e literatura. Para entender a organização das informações no artigo
científico, o principal modelo de embasamento desenvolvido foi o de Swales
(1990), nomeado de modelo Create a Research Space (CARS) – Criar um
Espaço de Pesquisa - cuja efetividade proporcionou algumas adaptações
em sua estrutura quando aplicado a gêneros como a resenha acadêmica
(MOTTA-ROTH, 1995; ARAÚJO, 1996; BEZERRA, 2001), o abstract de
dissertações (BIASI-RODRIGUES, 1998) ou os gêneros introdutórios de livros
acadêmicos (BEZERRA, 2006).

O meio mais popular pelo qual o pesquisador registra os resultados dos


seus esforços tem sido o artigo cientifico e a secção de introdução, segundo
Motta-Roth e Hendgs (2010), apresenta o tema central do trabalho, a
relevância da pesquisa, assim como o contexto do tema a ser abordado e
seus problemas e objetivos. Isto é, nela se constituem ou se dissipam os
primeiros interesses dos leitores pertencentes a uma comunidade discursiva
(BHATIA, 1993).

446
Em virtude disso e sabendo que em linguística e literatura, apesar de
serem áreas próximas, as convenções da escrita acadêmica diferem
significativamente, a pesquisa teve por objetivo realizar a análise de um
corpus, baseado na perspectiva da Análise de Gêneros de Swales (1990,
2004), com 30 introduções de artigos científicos nas áreas de Linguística e
Literatura produzidos por pesquisadores das universidades brasileiras que
publicaram em 2019-2020 em periódicos classificados como Qualis A1 no
quadriênio avaliativo Capes 2013-2016.

1 METODOLOGIA

A metodologia de análise do presente projeto está ligada a


perspectiva da Análise de Gêneros conforme proposta por Swales (1990,
2004), configurando-se como uma abordagem de linguística aplicada à
aprendizagem avançada de língua para fins acadêmicos.

O corpus da pesquisa é constituído por 30 introduções de artigos


científicos produzidos por pesquisadores das universidades brasileiras e
publicados em 2019-2020 em periódicos classificados como Qualis A1 no
quadriênio avaliativo Capes 2013-2016. As revistas utilizadas foram: Alea:
Estudos Neolatinos; Ilha do Desterro; Estudos Feministas; Linguagem em
(Dis)curso; Delta: Documentação e Estudo em Linguística Teórica e Aplicada;
Cadernos de Estudos Linguísticos e Alfa. Além disso, o corpus está subdividido
em 15 introduções de artigos de literatura e 15 de linguística.

A análise textual foi dividida em três momentos: em um primeiro


momento, foram analisadas as introduções conforme o modelo CARS
(Swales, 1990), a fim de possibilitar a descrição de sua organização retórica.
Depois, os respectivos padrões descritivos das áreas foram confrontados

447
para uma análise das de suas peculiaridades. Por último, foram identificados
os elementos linguísticos que sinalizam os diferentes movimentos retóricos nas
introduções. Para uma melhor compreensão, apresenta-se, a seguir, uma
breve descrição do modelo CARS (SWALES, 1990).

O modelo é composto por três partes denominadas “movimentos”


(moves), descritos segundo uma metáfora ecológica, a saber: Movimento 1
– estabelecendo um território; Movimento 2 – estabelecendo um nicho; e
Movimento 3 – ocupando o nicho. O Movimento 1 é utilizado pelo autor do
texto para apresentar, em termos mais gerais, a área em que a pesquisa está
inserida. A seguir, no Movimento 2, o nicho a ser pesquisado é delimitado
dentro do território anteriormente definido. Por fim, por meio do Movimento
3, apresenta-se uma proposta de ocupação do nicho, entendido como uma
forma de justificar ou apontar o espaço a ser ocupado pela pesquisa. Cada
movimento retórico (move), por sua vez, é realizado por meio de estratégias
denominadas passos (steps), unidades menores responsáveis pela
construção da informação apresentada no texto. A seguir, o modelo
desenvolvido por Swales (1990, p. 141):

448
2 REFERENCIAL TEÓRICO

O conceito de gênero associava-se ao estudo da retórica, isto é,


“capacitar escritores e oradores a produzirem diferentes gêneros textuais, de
acordo com diferentes propósitos e audiências particulares” (BEZERRA, 2006,
p. 46). Dessa forma, o período da antiguidade clássica – até meados do
século XX – limitou os estudos de gêneros à área dos estudos literários.

Com o advento dos estudos contemporâneos de gênero, o conceito


de retórica proposto por Aristóteles (2005), é retomado e refere-se ao “uso
da linguagem para se alcançar um determinado objetivo, dentro de uma
dada situação social” (BEZERRA, 2001, p. 21). Conforme os estudos se
expandem, novos teóricos e novas vertentes ajudam a construir o que hoje
consideramos como o moderno estudo de gêneros. Todavia, sem negar
completamente o que já fora construído pela visão aristotélica.

A respeito do caminho escorregadio para a conceituação de gênero,


podemos considerar o que Hyon (1996) acrescenta sobre a trajetória dos
estudos contemporâneos de gênero e suas implicações:

Nas últimas duas décadas, vários pesquisadores se interessaram em


gênero como uma ferramenta para o desenvolvimento de instruções
de escrita L1 e L2. Tanto o gênero quanto a pedagogia baseada em
gênero foram concebidos de maneiras distintas por pesquisadores
de diferentes tradições acadêmicas e em diferentes partes do
mundo, tornando a literatura de gênero um corpo complexo de se
entender. (HYON, 1996, p. 693).

O alicerce no qual se baseiam os estudos de Swales (1990) se dá por


meio de uma tríade: gênero, comunidade discursiva e propósito
comunicativo. Para ele, diferentes áreas constituem o gênero: estudos
literários, linguísticos, folclóricos e retóricos. O gênero é, portanto:

449
Uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compartilham
os mesmos propósitos comunicativos. Esses propósitos são
reconhecidos pelos membros especializados da comunidade
discursiva de origem e, portanto, constituem a razão subjacente do
gênero. Essas razões moldam a estrutura esquemática do discurso e
influenciam e restringe as escolhas do conteúdo e estilo. O propósito
comunicativo é um critério privilegiado que opera no sentido de
manter o escopo do gênero, conforme concebido aqui,
estreitamente ligado a uma ação retórica comparável com o
gênero (SWALES, 1990, p. 58).

Essa visão mais abrangente é justificada pela noção de que o gênero


pertence aos sujeitos que partem de um determinado contexto, inseridos em
uma comunidade discursiva, para a construção dos significados situados
pela escrita (HYLAND, 2008, p. 6). Embora os conceitos tenham passado por
algumas reformulações, é a partir deles que compreendemos de que forma
o gênero artigo se insere dentro de uma comunidade discursiva e a que
propósito ele serve.

3 O ARTIGO CIENTIFICO: A INTRODUÇÃO COMO MACROESTRUTURA

O processo de conhecimento se dá por meio de uma sequência


(NAHAS; FERREIRA, 2005), até que seja possível o seu registro, dispondo –
como um dos gêneros mais utilizados – o artigo científico. A sua construção
é a fase mais importante de uma série de investimentos do pesquisador, nele
se materializam os resultados e discussões resgatadas ou aprimoradas
conforme o estudo se desenvolve.

Henz (2003) discute a pertinência de cada uma das secções que


englobam o gênero artigo. Um dos problemas pontuados pelo autor é a falta
de conhecimento a respeito das normas que regem cada secção de um

450
artigo, o que, inevitavelmente acaba desclassificando possíveis publicações
em revistas renomadas:

Muitas vezes, falta bom senso no momento de escrever e uma leitura


crítica do artigo antes de submetê-lo à publicação, e assim evitar
alguns problemas que certamente dificultarão o processo de
tramitação e julgamento do trabalho (HENZ, 2003, p. 146).

Nos restringiremos a secção intitulada de introdução, dada a


importância de visualizar no macro aquilo que será apresentado no estudo.
A secção responsável pelo primeiro vislumbre do estudo é justificada para
situar em que pé está a narrativa que gerou a pergunta de pesquisa. Um de
seus propósitos comunicativos, então, além de “descrever o contexto no
qual o trabalho se insere e apresentar a proposta do autor” (ARANHA, 2005,
p. 1), é unir o que outrora já fora relatado em outras pesquisas com os novos
apontamentos. É objetivo da comunidade discursiva a qual o estudo
convém renovar e apontar novos interesses de estudo que –
consequentemente – serão anunciados na introdução de forma a atrair o
leitor.

No capítulo “Publique ou pereça” do seu livro, Motta-Roth e Hendgs


(2010) pontuam que uma das formas particulares para reconhecimento de
um gênero é a natureza e as organizações das informações que incluímos
no texto. Sustentando esse argumento, muitos pesquisadores realizaram
estudos sobre a construção dessas redações acadêmicas e podemos citar o
modelo CARS produzido por Swales (1990), cujo propósito é de oferecer uma
compreensão da estrutura para a construção da introdução.

451
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tomando consciência do seu potencial na orientação da construção


dos gêneros acadêmicos – tendo em vista suas inúmeras adaptações, em
português e inglês (BIASI-RODRIGUES, 1998, p. 39) – o estudo se propôs a
analisar a secção de introdução com base no modelo CARS (1990)

Os três moves, ou movimentos retóricos, dessa forma, são unidades


maiores que são realizadas por unidades menores intituladas de steps ou
passos. Os movimentos dizem respeito as situações (move 1), seus problemas
(move 2) e possíveis soluções a respeito do tema abordado (move 3).

No decurso da análise das 30 introduções, sob um olhar mais


contrastivo, foi possível perceber um padrão de recorrência da falta do
estabelecimento de um nicho (move 2) e também, por consequência, a
ocupação desse nicho (move 3) distribuídos entre 7 das 30 introduções,
sendo 3 de LING que revelam a falta do move 2 e 4 de LIT divididos entre o
move 2 e o move 3. Todas as 30 estabeleceram o território (move 1), dando
mais ênfase no passo 3, que se fez presente nas 15 introduções de Linguística
e em 14 das de a Literatura. As duas áreas convergiram pela não realização
do passo 2, movimento três, que é anunciar os principais achados.

Nas três introduções de Linguística que não realizaram os três


movimentos, pode-se encontrar uma espécie de organização retórica
semelhante, sobretudo por coincidirem nas escolhas dos movimentos
retóricos, exceto pelo artigo LING14, por não apresentar a estrutura do artigo
(move 3, passo 3). Seus padrões de escrita eram bem demarcados, o que
evidenciava a presença dos movimentos quando, por exemplo, exploram o
que seria feito nas secções (move 3, passo 3): “Na seção a seguir, início...”;
“Em um primeiro momento, será...”. Já no que se refere às quatro introduções

452
de Literatura, encontramos escolhas retóricas mais variadas, isto é, seus
passos.

As 22 introduções que contemplaram todos os moves – no que diz


respeito à escrita – demonstraram esquemas e ordens diferentes para
contemplar cada movimento e seus passos. Foi possível perceber três
tendências principais: os mais objetivos, ou seja, aqueles que iniciam a
discussão por meio dos elementos linguísticos de imediato, o que facilitava
observar qual passo foi utilizado. Avaliemos como o LING7 apresenta o move
3, ocupando o nicho, passo 1B: “O presente artigo busca entender...”, assim
como, o LIT7: “Neste artigo pretendemos destacar...”. A segunda tendência
é referente aos mais discursivos – embora todos eles discutam, a tendência
de explanar mais o tema para enfim apresentar os movimentos merece
destaque. A terceira e última teve mais destaque nos artigos de Literatura
por optar por trabalhar com uma linguagem mais literária, mas – ainda assim
– apresentando os passos. Embora esses artigos tenham apresentado todos
os moves, houve também uma grande manifestação de movimentos
inesperados que, em sua maioria, diziam respeito ao aprofundamento do
tema abordado.

Para vias de assimilação do que até então fora discutido, vale expor
as tabelas, baseadas no modelo de Swales (1990), criadas para assinalar os
moves e passos que cada uma das introduções apresentou e, também, para
que seja possível observar as similitudes e contrastes entre as áreas.

No primeiro momento, é justo que discutamos as especificidades de


cada uma das áreas para que, enfim, seja possível fazer um comparativo.
Dessa forma, a tabela a seguir apresenta as quinze introduções de Linguística.

453
Figura 2 - Fonte: elaboração da autora.

Por meio desse esquema foi possível observar – de maneira concreta –


os movimentos retóricos e, mais detalhadamente, os passos escolhidos por
cada uma das introduções. De antemão já visualizamos que é possível
trabalhar com mais de um passo em um único movimento. Dessa forma,
discutiremos cada um dos moves.

Durante as análises do move 1, observou-se que o passo 3, resenhando


pesquisas anteriores, esteve presente em todas as introduções dos artigos de
Linguística, visto saber da importância de embasar o trabalho em pesquisas
já realizadas. A segunda estratégia mais utilizada foi o passo 2, fazendo
generalização sobre o tópico, compondo sete das quinze introduções. Em
seguida, o menos utilizado foi o move 1, sendo apresentado em apenas 4
das 15 introduções. Destacamos as introduções LING 3, LING 7 e LING 12 que
utilizaram os três passos para construção da secção.

As análises do move 2, estabelecendo um nicho, foram mais diversas,


se comparadas ao move 1, por não apresentarem unanimidade em nenhum
dos passos. Dessa vez, o move 2 apresenta quatro possíveis passos a serem
escolhidos. Participando de sete das quinze introduções, o passo 1D –
continuando uma tradição – foi o mais utilizado. Em seguida, nota-se um

454
empate entre os passos 1A, 1B e 1C, cada um com quatro recorrências. Há
também uma situação especial nos artigos LING12, exibindo novamente
todos os passos e LING15, retratando três dos quatro passos. Três das quinze
introduções não apresentaram o move dois, recorrendo normalmente à
extensão do move 1, o que resultou em um move inesperado que foi
nomeado de aprofundamento da pesquisa ou, mais especificamente, seu
detalhamento.

No decorrer da análise do move 3 também encontramos uma


variedade maior nas escolhas dos passos, todavia, aqui visualizamos a
escolha de mais de um passo em vários dos artigos, exceto por 7 deles. O
passo mais utilizado foi o passo 1A, esboçando propósitos, com exceção de
quatro das 15 introduções. Encontramos uma espécie de fusão em alguns
artigos que não apresentaram explicitamente o passo 1A com o passo 1B.
Tendo em vista que o passo 1A apresenta com clareza os objetivos do estudo
e o passo 1B explicita o que será feito na pesquisa e em que ela consiste,
vejamos um exemplo do que ocorreu na introdução de número 11:

LING11:

“Este artigo busca estabelecer alguns eixos temáticos apropriados à realização de


investigações historiográficas sobre saberes, ideias, questões, teorias e modelos
pedagógicos que envolvam a dimensão sintática dos estudos gramaticais no Brasil, entre os
séculos XIX e XXI”.

A expressão “este artigo” traz consigo o anúncio do que será realizado


no estudo (passo 1B), enquanto que o verbo “busca” pode ser considerado
sinônimo da expressão objetiva (passo 1A). Isto é, embora não esteja explicito,
consegue-se visualizar uma fusão entre ambos os passos.

Continuando a análise dos passos, o passo 1B se fez presente em nove


das quinze introduções, seguido de sete do passo 3 que, em alguns casos,

455
apesar de não indicar de fato a estrutura, sugeriam o que seria discutido na
próxima secção. O passo 2 não foi apresentado em nenhuma das
introduções analisadas. Com base na tabela (figura 2) e no que já fora
apresentado, podemos acrescentar que a introdução de número 12
contemplou não apenas todos os moves, mas também a maior parte dos
passos de cada movimento, com exceção do move 3 em que só fora
utilizado o passo 1A.

Já durante as análises de introduções de Literatura, encontramos


apenas quatro introduções que não apresentaram algum dos movimentos
retóricos, sendo esses o move 2 ou o move 3. Observemos como isso ocorre
na tabela (figura 3).

Figura 3 - Fonte: elaboração da autora.

Ao longo da análise do move 1, encontramos uma maior recorrência


do passo 3, resenhando pesquisas anteriores, exceto pelo LIT14 que utilizou os
passos 1 e 2, ambos presentes em sete das 15 introduções. Em sua maioria,
as introduções apresentaram – no move 1 – mais de um passo, com destaque
nos LIT5 e LIT13 que realizaram os três. Apenas três, dos quinze, apresentaram

456
um único passo (passo 3). Algo em comum entre os três que não realizaram
mais de um passo do move 1 foi uma linguagem mais objetiva e direta,
ocasionando em introduções que – no início da construção do texto – deram
destaque do move 3, passo 1A e 1B.

Vejamos como isso ocorreu nas introduções LIT9 e LIT10:

LIT9:

“Este artigo tem como base de apoio algumas interrogações que visam repensar os debates
da ‘criminologia feminista’ no Brasil e propor formulações criativas para pensar outras formas
de enfrentamento à violência de gênero, incluindo movimentos sociais compartilhados que
utilizam recursos tecnológicos como estratégias de resistência”.

LIT10:

“Neste artigo temos como objetivo analisar como um grupo de mulheres, moradoras da
Comunidade Quilombola Mato do Tição, situada na Região metropolitana de Belo Horizonte
mobilizam dispositivos de raça e gênero para a elaboração do referente “mulher quilombola”
na construção de suas identidades – pautada, muitas vezes, na opressão, na violência e no
racismo”.

Durante a análise do move 2, o passo 1A esteve presente em nove das


quinze introduções, seguido do passo 1C com seis. Os passos 1B e 1D foram
utilizados apenas em duas das quinze. Os artigos LIT3, LIT6, LIT13 e LIT15
apresentaram mais de um passo. As introduções LIT7 e LIT14 não
apresentaram o move dois.

No decorrer da análise do move 3, foi possível observar maior uso dos


passos 1A e 1B que, quando não apresentavam ambos passos, um dos era
utilizado, exceto pelos LIT5, LIT6 e LIT11 cuja introdução não abordou o move
3. O passo 3 fora o menos utilizado, com recorrência apenas em duas
introduções e o passo 2 não apareceu em nenhuma das 15.

457
5 ANÁLISE CONTRASTIVA ENTRE AS ÁREAS

Após ser realizada a exposição das análises retóricas de cada uma das
áreas e detalhar os movimentos e passos utilizados, principalmente os que
mais se sobressaíram, é importante que seja possível visualizar até que ponto
as disciplinas convergem e divergem em suas peculiaridades nas estratégias
de escrita.

De maneira mais geral, a tabela (figura 4) possibilita um olhar mais


quantitativo a respeito dos moves e suas recorrências em cada área.
Observando a incidência do move 1, é possível visualizar que – em ambas as
áreas – o passo mais utilizado foi o 3, seguido do passo 2 e 1. Dessa forma,
fica evidenciado que o move 1 tem sido mais utilizado pela área de Literatura.
Isto ocorre pela tendência maior da área em contextualizar e generalizar o
tema. Vejamos como isso se organiza:

Figura 4 – Fonte: elaboração da autora.

458
Analisando o move 2, em maior recorrência na área de Linguística
temos o passo 1D, continuando uma tradição, em contrapartida apenas dois
de Literatura utilizaram tal passo. Foi comum perceber certo contraste entre
as áreas no que diz respeito ao passo 1D e 1A. Os artigos em Linguística
tiveram uma tendência a dar continuidade à uma pesquisa, todavia, os
artigos em Literatura apresentaram outros vieses a serem explorados.
Vejamos um exemplo entre as áreas:

LING8:

“A segunda opção é a escolhida neste artigo, em que resgato o debate deriva/contato


para abordá-lo de acordo com fundamentos da linguística cognitiva, em linha com estudos
recentes que desenvolvem uma linguística cognitiva de contato (ZENNER, 2013; NOËL, 2015;
ZENNER; BACKUS; WINTER-FROEMEL, 2018)”.

LIT3:

“Entretanto, apesar da profusão de obras e autores que percorrem o caminho apontado


acima, a proposta do presente artigo não é explorar essa via”.

O passo 1C esteve presente em 4 das quinze introduções de Linguística


e em 5 de Literatura, sendo o terceiro mais utilizado entre ambas e o passo
1B que – em contraste – esteve mais presente nos textos de Linguística.

Durante a análise do move 3, fica evidente que a área em que mais


teve destaque foi nas introduções de Linguística, exceto pelo não uso – de
ambas as áreas – do passo 2, anunciando os principais achados. Tanto em
Linguística quanto em Literatura, os passos mais utilizados foram o 1A, com 11
recorrências em Ling. e 8 em Lit.; e 1B, sendo 9 de Ling. e 7 de Lit. Foi
percebido também que introduções na área de Literatura não
apresentavam de fato a estrutura do artigo, mas sinalavam qual o tema
abordaria na próxima secção, diferente das introduções de Linguística.
Avaliemos como isso ocorre nos exemplos a seguir:

459
LIT3:

“Assim, em seguida, será realizada uma abordagem da trajetória desse conceito e sua
vinculação com o romance Azul corvo”.

LING1:

“Este artigo está organizado em três partes principais, além desta Introdução, das
Considerações Finais e das Referências. Na primeira, caracterizo o ProfLetras no contexto
universitário brasileiro em que o modelo de pós-graduação acadêmica, informado pelo
paradigma dominante de pesquisa, prevalece. Na segunda, sintetizo alguns pressupostos
teóricos atrelados à metafunção experiencial da linguagem proposta na LSF, utilizados na
análise linguística da dissertação. Por fim, na terceira parte, apresento uma análise
quantitativa e qualitativa do objeto investigado, quando são exemplificados os tipos de
escolhas linguísticas responsáveis por práticas de letramento científico perceptíveis na
escrita da professora”.

6 ANÁLISES DA DESCRIÇÃO DE MARCAS LINGUÍSTICAS

Ao compreendermos a noção de gênero, segundo Swales (1990),


assimilamos também a tríade no qual ele está inserido: gênero, comunidade
discursiva e propósito comunicativo. Tendo em vista que o artigo cientifico é
parte de uma comunidade discursiva e serve a um propósito comunicativo,
realizado por meio do apoio de marcas linguísticas (BIASI-RODRIGUES, 1998,
p. 32), é necessário que observemos como elas se organizam dentro da
secção de introdução.

Hyland (2000), expandindo o que Swales (1990) já havia discutido a


respeito da comunidade discursiva, anuncia o que vamos conhecer por
cultura disciplinar. Para ele, disciplinas são um conjunto de sistemas, isto é,
metodologias, normas e campos de conhecimento específicos. Devido a
esse conjunto de sistemas, cria-se várias culturas disciplinares e, com isso,
múltiplas manifestações da linguagem.

460
Embasando o projeto no que Hyland (2000) diz a respeito das
disciplinas e suas várias manifestações da linguagem, apresentaremos as
marcas linguísticas e lexicais que, ora diferem e ora convergem, estão
presentes nas áreas de Linguística e Literatura. Vejamos as marcas linguísticas
entre as ciências que se assemelham:

LIT10:

“No presente artigo temos como objetivo trazer essas reflexões (...).”

LING7:

“Nesse complexo contexto, objetivamos descortinar o lugar das áreas em pauta em dois LD
de português voltados para o 6º ano do Ensino Fundamental (...)”.

Os exemplos citados demonstram como o move 3, passo 1A, é mais


objetivo e marcado, evidenciando em que pé está o texto e o que esperar
das próximas linhas. Todavia, há opções que utilizam uma abordagem mais
contextualizada. Essa estratégia mais contextual fora aplicada com mais
recorrência em textos da área de Literatura, como outrora já fora citado.
Segue o exemplo:

LIT15:

“Interessa, aqui, entender de que maneira elas vivenciam o que Comfort (2003) denomina
de “prisionização secundária” e quais são os processos sociais envolvidos para que essas
mulheres se tornem “satélites domésticos” no ambiente carcerário”.

Percebemos que não há a abordagem explicita do move 3, passo 1A,


mas é possível compreender qual o intuito da pesquisa e a que ela se propõe.
Outro move que merece destaque é o move 2, passo 1D:

LING1:

“Este estudo se alinha à abordagem indisciplinar da Linguística Aplicada (cf. PENNYCOOK,


2001; SILVA, 2014), justificada pelo diálogo explícito ou não entre referenciais teóricos de
diferentes disciplinas ou campos do conhecimento (...)”.

461
LIT3:

“Optamos, neste texto, em dar destaque ao trabalho de Schøllhammer devido à


observação de que, nos últimos anos, esse crítico dedicou seu pensamento em direção a
expressões desse realismo contemporâneo”.

O passo 1D, do move 2, é mais bem destacado em artigos da área de


Linguística, como evidenciado nos exemplos acima, visto que em sua maioria
sempre apresentam ou a continuidade de um estudo, ou algo a ser
melhorado nesse estudo. O uso do verbo alinhar – presente no LING1 – traz
um significado de prosseguimento. As introduções da área de Literatura,
embora tragam a ideia de continuar em uma abordagem especifica de um
estudo, tendem a recorrer mais ao move 1, passo 3, resenhando pesquisas
anteriores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente projeto, ansiamos situar a importância da pluralidade


existente em uma escrita acadêmica consciente, viabilizada pela análise
das trinta introduções de artigos publicados em revistas renomadas e de
áreas disciplinares distintas que – embora tenham suas divergências –
seguiram uma linearidade quanto a estrutura do gênero proposto.

No decurso das análises dessas trinta introduções, observamos


estratégias diversas para que fosse possível atingir o que é pedido nessa
secção. Foi mais comum perceber, por exemplo, o move 3, passo 1A,
esboçando propósito, nos artigos de Linguística do que nos de Literatura. Isto
é, ambas as disciplinas – em sua maioria – cumpriram com os propósitos
comunicativos exigidos numa secção de introdução.

462
Os resultados da pesquisa – a nível de consciência do gênero – foram
satisfatórios em ambas as áreas. As duas disciplinas apresentaram
introduções que correspondiam à proposta do modelo CARS, mas também
houve introduções que inovaram em alguns pontos, o que não prejudicou
em nada a mensagem a ser passada.

No que se refere às marcações linguísticas, foi possível visualizar


estratégias diferentes entre as áreas que, no caso das introduções de
Literatura, recorriam a textos mais longos e com mais aprofundamento do
tema abordado, enquanto que as introduções em Linguística optavam pela
objetividade.

Dessa forma, esse estudo viabiliza um olhar mais sensível a construção


de uma secção, parte de um gênero prestigiado no ambiente acadêmico,
em duas áreas de ensino, o que comprova aquilo que Hyland (2000) falou a
respeito de cada cultura disciplinar ter suas especificidades, desde que exista
uma consciência a respeito do propósito comunicativo no qual aquele
gênero está inserido, atendendo assim ao que determinada comunidade
discursiva espera dele.

REFERÊNCIAS

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acadêmicas. 2001. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de
Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2001.

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(Doutorado em Letras) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2006.

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resumos de dissertações. 1998. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de
Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina,
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464
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originados na América Latina. Indicadores FAPESP de ciência, tecnologia e
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SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research settings.


Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

465
INVESTIGAÇÃO SOBRE ABORDAGENS ACADÊMICAS A RESPEITO
DA AQUISIÇÃO DA LIBRAS TÁTIL POR CRIANÇAS SURDOCEGAS
CONGÊNITAS

Émile Assis Miranda Oliveira 65

Adriana Stella Cardoso Lessa-de-Oliveira, 66

RESUMO:Este estudo objetiva investigar o quadro de abordagens acadêmicas sobre a


aquisição linguística de crianças surdocegas congênitas. A surdocegueira, condição
humana singular diferente da somatória entre surdez e cegueira, apresenta-se em diferentes
tipos e períodos da vida, sendo caracterizada como congênita, quando ocorre antes da
aquisição da linguagem, ou adquirida, se ocorrer após este período. Com base na visão
chomskiana, compreende-se que, como ser humano, a pessoa surdocega é
geneticamente dotada da faculdade da linguagem e, como tal, possui potencialidades
para adquirir uma língua natural. Contudo, muitas crianças surdocegas ficam alheias ao seu
ambiente linguístico devido à privação sensorial, não tendo acesso amplo a uma língua,
pela carência de inputs que lhe sejam disponibilizados pelo canal tátil. Diante disto,
buscamos responder a seguinte questão: quais as abordagens teóricas presentes em
trabalhos acadêmicos - teses e dissertações - que investigaram a aquisição linguística de
crianças surdocegas congênitas? Utilizamos para tanto uma metodologia de pesquisa
qualitativa de caráter bibliográfico que confronta as discussões sobre a aquisição lingística
de crianças surdocegas congênitas com os pressupostos inatistas (CHOMSKY, 1997; 2009).
Tomamos como aporte teórico também os autores: Rosa (2010); Grolla e Silva (2014); e
Kenedy (2019). A partir da análise desenvolvida, observamos que, até agora, praticamente
toda discussão acadêmica sobre a pessoa surdocega concentra-se na necessidade de
aprendizagem da língua ou na dependência total do outro pelo surdocego, no processo
de aquisição linguística. Concluímos que há necessidade de ampliação dessa investigação,
podendo-se abordá-la com base no pressuposto inatista gerativista, a partir do qual é
possível verificar como se constitui um input tátil de aquisção da linguagem, observando
diferenças e semelhanças entre a Libras Tátil e a Libras frente aos respectivos constextos de
inputs, diferenciados, respectivamente, por sua natureza tátil ou visual.
Palavras-chave: Surdocegueira, Libras Tátil, Teoria Gerativa.

65 Mestranda em Linguística pelo Programa de Pós Graduação em Linguística da


Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia-UESB, emile.assis@uesb.edu.br.
66 Professora Orientadora e coautora, doutora em Linguística, Universidade Estadual do

Sudoeste da Bahia-UESB, adriana.lessa@uesb.edu.br.

466
INTRODUÇÃO

A aquisição da linguagem é um campo de estudo amplo que


faz parte dos estudos da Linguística. O interesse por esta área do
conhecimento surgiu ainda na Idade Antiga (SCARPA, 2001). Segundo a
mesma autora, os estudos preliminares na área surgiram com os chamados
“diaristas” no século XIX, os mesmos escreviam em um diário o
desenvolvimento linguístico dos seus filhos, mas ainda sem nenhum rigor
científico.

São várias as correntes que buscam compreender e explicar a


aquisição linguística, dentre as quais citamos a teoria comportamentalista de
Skyner, o gerativismo de Chomsky, a teoria construtivista de Piaget, o
construtivismo de Vigotsky, a teoria sociointeracionista, o interacionismo,
entre outras. Dentre essas, a teoria gerativista se destaca das outras pela sua
tese inatista modularista sobre o processo de aquisição da linguagem.

A aquisição da linguagem foi um dos primeiros objetos de estudos do


linguista estadunidense Noam Chomsky, fundador da Teoria Gerativa. Esse
linguista busca responder o dilema intitulado Problema de Platão, sobre a
aquisição linguística, formulado na questão: como uma criança exposta a
estímulos tão pobres consegue desenvolver uma capacidade linguística tão
complexa? Chomsky postulou que um conhecimento tão complexo como a
linguagem não seria adquirido por estímulo-resposta, muito menos por
imitação. Para ele a capacidade para linguagem é uma herança genética
inata.

No âmbito desse contexto teórico, procuramos analisar a condição de


aquisição da linguagem de surdocegos, considerando que a surdocegueira
é uma condição humana única, gerada pela perda conjunta dos sentidos
distais da visão e da audição, não se caracterizando como a adição de duas

467
deficiências (LAGATI, 1995). A surdocegueira pode ser classificada em
congênita, quando ocorre antes do nascimento, antes da aquisição da
linguagem, ou adquirida, quando ocorre após a aquisição da linguagem
( ALMEIDA, 2015). A autora Lupetina (2018) fez um levantamento sobre as
pesquisas na área da surdocegueira e constatou que as mesmas são poucas
e incipientes, se comparadas a outras áreas da Educação Especial.

Em outras palavras, verifica-se que a aquisição linguística de crianças


surdocegas congênitas é um tema pouco discutido em trabalhos
acadêmicos, fazendo-se necessária a ampliação de estudos sobre o tema,
em diferentes abordagens teóricas. Assim, a pergunta desta investigação foi:
quantas e quais são as abordagens teóricas presentes em trabalhos
acadêmicos – teses e dissertação – que investigaram a aquisição linguística
de crianças surdocegas congênitas? O nosso objetivo foi investigar o quadro
de abordagens acadêmicas sobre a aquisição linguística de crianças
surdocegas congênitas, com vistas a ampliar o estudo sobre o tema,
trazendo para a discussão as contribuições da análise gerativista, cuja
proposta teórica muda o foco da investigação, colocando o problema da
aquisição linguagem como uma questão interna e não externa ao indivíduo;
o que, no âmbito da surdocegueira, torna-se uma abordagem com
perpectivas ampliadas para a explicação das possibilidades de aquisição
da linguagem.

1 METODOLOGIA

Esta é uma pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico que confronta


as discussões sobre a aquisição lingística de crianças surdocegas congênita
com os pressupostos inatistas (CHOMSKY, 1997; 2009). Segundo Lakatos e

468
Marconi (2003, p.158) “a pesquisa bibliográfica é um apanhado geral sobre
os principais trabalhos já realizados, revestidos de importância, por serem
capazes de fornecer dados atuais e relevantes relacionados com o tema.”

Para a coleta de dados foi realizada uma pesquisa no site do Instituto


Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia- IBICTOASISBR, no dia 27
de abril do corrente ano, com o descritor “aquisição linguística de
surdocegos”, e foram encontrados seis trabalhos.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A surdocegueira é uma deficiência gerada pela perda sensorial


dupla da visão e da audição conjuntamente. Conforme (ALMEIDA, 2015),
existem diferentes dipos de surdocegueira gerada pelos diferentes graus de
perdas sensoriais da visão e da audição. Não se considera surdocego
apenas o indivíduo que possui perda total dos dois sentidos distais, mas
também os que apresentam perdas parciais que impactem em sua
comunicação, bem como em sua mobilidade.

Como já mencionado, a surdocegueira ainda pode ser classificada


em congênita ou adquirida. A congênita, anteriormente chamada de pré-
linguística, é aquela que ocorre antes do período de aquisição da linguagem,
podendo ocorrer no período pré-natal, peri-natal, ou pós natal, mas antes
da aquisição linguística (GALVÃO, 2010). Na surdocegueira congênita, a
criança fará uso do tato para acessar o ambiente, para ter acesso aos inputs
linguísticos e, consequentemente, para adquirir a sua língua. Já a
surdocegueira adquirida, anteriormente chamada de pós-linguística, ocorre
posterior a aquisição da linguagem. Segundo Almeida (2015):

469
Para aqueles surdocegos pós-linguísticos que já possuem
experiências linguísticas, seja pela língua oral ou pela Língua de
Sinais, e considerando a presença de resíduos sensoriais, a
necessidade de desenvolver formas de comunicação ocorrerá a
partir da realidade individual de cada um quanto ao meio, ao grau
de funcionalidade da deficiência, aos estímulos cognitivos que lhes
são proporcionados no seu desenvolvimento. (p.174)

Assim, o sujeito com surdocegueira adquirida precisará ressignificar sua


linguagem diante da sua nova condição, fazendo uso do seu conhecimento
linguístico, bem como dos seus resíduos sensoriais, para interagirem
linguisticamente com seus pares e com o ambiente, na modalidade tátil.

Dessa forma, por conta dos diferentes tipos de surdocegueira, existem


diferentes formas comunicativas entre indivíduos surdocegos, as quais se
baseiam: na língua oral falada – tadoma, fala ampliada, sistema Malossi,
sistema Lorm; na língua escrita – escrita na palma da mão, braille tátil, finger
braille; e na língua de sinais – Língua Brasileira de Sinais (Libras) em campo
adaptado e Libras Tátil. (CAMBRUZZI, COSTA, 2016; CANUTO, 2019).

Esse contexto da surdocegueira, um contexto tão diverso de aquisição


da linguagem, traz para a ciência linguística elementos importantes na
discussão do fenômeno de aquisição da linguagem. Assim, podemos
colocar o fenômeno de aquisição da linguagem na surdocegueira frente a
cada uma das teorias que procuram explicar como o ser humano adquire a
linguagem.

Segundo Langacker (1975), duas correntes embasam as teorias sobre


aquisição da linguagem, o empirismo e o racionalismo. No empirismo a
linguagem é culturalmente transmitida, há a necessidade de ensiná-la a
criança, que nasce desprovida de capacidade específica para a
linguagem. Assim, o adulto terá por função transmitir o conhecimento
linguístico às crianças. Em contrapartida, o racionalismo preconiza a

470
capacidade inata para a linguagem de todos os seres humanos. Segundo
esta corrente, nascemos com o potencial linguístico congênito, nela a língua
que será adquirida pela criança já está pré-progamada, mas necessita da
experiência proveniente do ambiente para que o processo seja iniciado.

Entre as teorias empiristas está o Behaviorismo de Skynner, que


concebe que a criança é uma ‘tábula rasa’ pronta para ser ‘preenchida’
pelo conhecimento linguístico do adulto, a partir do estímulo-resposta-
reforço. Outras correntes empiristas como as construtivistas (de Piaget e de
Vigotsky) e as interacionistas concebem o processo de aquisição da
linguagem numa perspectiva diferente da behaviorista, em que o
desenvolvimento do conhecimento gramatical da língua aprendida
depende de um trabalho de observação da fala do adulto, feito pela
criança via sentidos, que, na concepção interacionista, é intermediado pelo
outro, nas situações de interação comunicativa.

Num sentido bastante diferente das propostas na linha empirista, a


Teoria Gerativa, baseia-se no racionalismo, na ideia de linguagem inata ao
sujeito. Esta teoria estuda a natureza da linguagem, o modo como esta é
processada no cérebro/mente humano. A teoria foi revolucionária nos
estudos da linguagem e considera a aquisição linguística como um processo
natural e inato. Diferente do que tem sido abordado nos estudos já
realizados, o gerativismo tem como objeto a gramática individual, a língua
interna, seu funcionamento e sua capacidade de gerar, por meio de
elementos linguísticos finitos, possibilidades infinitas na língua.

Conforme a Teoria Gerativa, todo Homo sapiens é dotado


geneticamente de capacidade inata para produção linguística, esta
capacidade é conhecida como faculdade da linguagem, a qual
corresponde a um módulo da mente humana que abriga os princípios
linguísticos universais, os quais darão origem à língua individual da criança. O

471
seu estágio inicial chama-se Gramática Universal (GU), que é composta de
princípios fixos, comuns a todas as línguas naturais e por princípios flexíveis
chamados parâmetros, que variam de uma língua para outra. A partir de
inputs linguísticos presentes no ambiente em que a criança vive, estes
parâmetros serão marcados, o que gerará mudanças de estágios até que
se atinja o estágio estável chamado de Língua-I (individual, intensional e
internalizada) (KENEDY, 2019; GROLLA, SILVA, 2014).

Segundo Perroni (1996, p. 209-2010), para Chomsky:

A relação entre língua e outros sistemas cognitivos como a


percepção, a memória e a inteligência, é indireta e a aquisição da
linguagem – ou desencadeamento da Gramática Universal junto
com a fixação de parâmetros – não depende, necessariamente, de
outros módulos cognitivos, muito menos de interação social.

Mas vale ressaltar que, mesmo que a aquisição não dependa


diretamente da interação social “... Há evidências de que o ambiente é
necessário para servir de gatilho à faculdade da linguagem” (ROSA, 2010,
p.78). Desta forma, por ser a linguagem uma capacidade inata, já temos
programação genética para a linguagem, não necessitando assim ser
aprendida, mas adquirida.

Conforme Kenedy (2019, p.97), “a GU possui ativos os Princípios da


linguagem desde o início da vida de um indivíduo, enquanto seus
parâmetros precisam ser ativados ao longo do tempo, de acordo com a
língua do ambiente da criança”. As crianças surdocegas são privadas da
experiência linguística, tendo em vista que os seus sentidos distais não
acessam, parcial ou totalmente, o ambiente em sua volta. O input não dá
conta sozinho da aquisição, uma vez que, segundo Pietta (2016 p.3) o mesmo
é “degenerado, pobre e desordenado”, sendo assim, sua função será a de

472
ativar o mecanismo linguístico inato à criança para o desencadeamento da
aquisição. Diante disto, sem acesso ao input linguístico tátil, a GU desta
criança permanece potencialmente latente.

Assim, a aquisição linguística de crianças surdocegas depende de


mãos que proporcionem acesso ao input e, uma vez que a faculdade da
linguagem já lhe é inata, a língua é acionada. A diferença está na natureza
do input, que pode ser sonoro, visual ou tátil. No caso da criança surdocega
congênita, a Teoria Gerativa vai ocupar-se da competência linguística
acionada por um input tátil, para falar uma língua de naturaza articulatória
também tátil. Então, não se trata da necessidade de ensinar uma linguagem,
por meio do tato, a uma criança surdocega, mas da promoção de input de
uma língua tátil, que dispara nesse indivídual a aquisição da linguagem e o
torna falante de uma língua humana tátil.

Esse processo não foge da dicotomia entre aprendizagem e aquisição,


no que se refere à linguagem. Como discutido acima, muitas teorias
enfocam a necessidade da interação social como imprescindível para a
aquisição linguística. A Teoria Gerativa não desvaloriza a interação no
processo aquisicional, mas entende que a mesma fornece experiência
linguística, não sendo em si o suficiente para que a aquisição ocorra. Somos
dotados de capacidade linguística, e isto independe de termos ou não uma
deficiência física ou sensorial. Os 46 cromossomos que identificam a espécie
humana e suas características, trazem consigo uma das principais
características distintiva entre os homens e os demais animais: a língua.

Destarte, as pessoas com surdocegueira não podem ser rotuladas


como incapazes de adquirir uma língua, a oportunidade de acesso ao input
é um direito que precisa ser assegurado a estas crianças,
independentemente da etiologia que ocasionou a surdocegueira. A
experiência linguística precisa chegar ao seu canal de recepção favorável:

473
o tato. Estudos como os de Dammeyer et al. (2015) confirmam que a criança
surdocega congênita com acesso ao input tátil tem sua aquisição linguística
como qualquer criança. A latência linguística das crianças surdocegas
congênitas precisa ser apenas despertada para que a produtividade
linguística dessas crianças possa emergir.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em nossa busca no IBICTOASISBR, já mencionado, encontramos seis


trabalhos, dos quais foram selecionados quatro: duas teses e duas
dissertações. O critério de exclusão foi a abordagem sobre o tema proposto.
Assim, foram descartados dois trabalhos que tratavam de outros temas,
distantes do que investigamos. Um desses trabalhos tratava da
sistematização de recursos comunicacionais e o outro da análise de
enunciados sobre Helen Keller. O quadro abaixo apresenta os trabalhos
considerados em nossa análise, com suas respectivas abordagens teóricas.

Quadro 1: Trabalhos sobre a aquisição de pessoas surdocegas

Trabalhos Autor (a) Abordagem teórica

Tese: A aquisição da Célia Aparecida Sociocognitivista -


linguagem por uma Faria Almeida (2008)
Interacionista
surdocega pré lingüística
numa perspectiva
sociocognitivista.
Baseado em Lyons (1987).

474
Dissertação: A criança Luis Carlos Souza Sociointeracionista
surdocega e a linguagem Bezerra (2010)
(Claudia Lemos)
no contexto escolar e
familiar

Tese: Alicerces de Maria Aparecida Sociointeracionista


significados e sentidos: Cormedi (2011)
Aquisição de linguagem
na surdocegueira
congênita

Dissertação: Ver e ouvir a Sueli Fernandes da Sociointeracionista


surdocegueira: Silva Rached (2011)
o emergir da
comunicação

A partir da análise desenvolvida, observamos que, até agora,


praticamente toda discussão acadêmica sobre a pessoa surdocega
concentra-se na necessidade de aprendizagem da língua ou na
dependência total do outro pelo surdocego, no processo de aquisição
linguística. Conforme o quadro 1, nenhum dos trabalhos elencados estudam
o fenômeno da aquisição da linguagem por crianças surdocegas congênita
a luz da Teoria Gerativa.

Todos os trabalhos encontrados nesta investigação têm seus


referenciais no empirismo. As teorias sociointeracionistas, bem como
sociocognitivistas interacionistas dão ênfase à necessidade da
aprendizagem e do desenvolvimento da linguagem por crianças
surdocegas congênitas. Acredita-se que a linguagem deva ser transmitida a
ela, ou mesmo que a criança deva se colocar na língua do adulto para
construir a sua gramática. Em uma citação do seu trabalho, Almeida (2008)
discorre que:

475
O surdocego não tem acesso ao input oral ou gestual. Por isso, a mãe
de J. tem um papel fundamental no processo de aquisição da
linguagem de sua filha, e conhecimento de mundo, uma vez que
Samara vai funcionar como reguladora ou mediadora de todas as
informações que J. recebe do meio. ( p.43)

Observamos nesse trecho primeiramente que o input, que é


compreendido no âmbito do que pode ser alcançado pela audição ou pela
visão, é tratado como inacessível. Isto obviamente dentro da visão
interacionista, que dá ao mediador um papel cujo peso corresponde à
concepção de que a língua é aprendida mediante o outro, que, nesse caso,
regula essa aprendizagem. Assim, não só a aquisição da linguagem, mas a
própria capacidade para essa aquisição é confundida com o input.
Desconsidera-se aí que haja um potencial linguístico inato, bem como que a
barreira possa estar no acesso ao input tátil, desconsidera-se que a produção
linguística do indivíduo suplanta as informações linguísticas pobres recebidas
do ambiente.

Rosa (2010) cita em seu trabalho vários casos de crianças


denominadas ‘selvagens’ que foram privadas da experiência linguística e
apresentaram dificuldade na aquisição da primeira língua. Dentre os casos
citados, a autora mencionou Helen Keller, a surdocega congênita mais
famosa do mundo, que adquiriu a surdocegueira aos 19 meses de vida e
alcançou a competência linguística a partir do ‘gatilho’ disparado pelos
inputs táteis da sua professora Anne Sullivan. A autora discorre que Helen, no
período anterior a surdocegueira, teve acesso ao ambiente linguístico, fato
que, segundo ela, deve ter servido de base para a aquisição de Helen,
mesmo sendo esta tardia. Ou seja, apesar da total falta de acesso auditivo
ou visual à língua, desde os 19 meses de idade, essa menina foi capaz de
adquirir uma gramática altamente complexa.

476
A crítica gerativista a propostas empiristas é que se está supondo
nessas propostas que a criança pode desenvolver um conhecimento
linguístico, que altamente complexo, a partir de dados que tecnicamente
não estão presentes por completo na fala do adulto (daí a pobreza de
estímulos), partindo apenas de observações via sentidos, ainda que seja a
partir da interação comunicativa com o adulto. No caso da surdocegueira,
em que os sentidos para a comunicação ficam limitados ao tato, tal
explicação pode se configurar como ainda mais inviável. Ou seja, a
aquisição da linguagem do surdocego precisaria ser concebida num
movimento, de fora para dentro, completamente dependente dos sentidos.
Entretanto, se faltam ao surdocego os sentidos da visão e audição, como
explicar a aquisição da linguagem, nessa perspectiva, diante de uma
pobreza de estímulos agravada?

E o que a proposta gerativista oferece de diferente à discussão da


aquisição da linguagem por surdoscegos? A diferença está na concepção
da existência de uma GU inata. Nessa perpectiva, o surdocego passa a ser
compreendido como alguém que possui o mesmo potencial interno, que
possuem ouvintes e videntes, para aquisição da linguagem. E, se o papel dos
sentidos na percepção do input é reduzido a um disparador de ‘gatilhos’
para marcação dos parâmetros gramaticais na aquisição da linguagem, a
capacidade de aquisição de gramáticas complexas por surdocegos
congênitos fica muito mais pláusivel, pois tais gatilhos são encontrados no
input tátil.

477
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que, com a surdocegueira há perdas sensoriais distais,


os surdocegos ficam sem acesso ou com acessos limitados ao input, que
deverá ser, preferencialmente, tátil. A surdocegueira é uma condição
humana que pode gerar grandes impactos na vida de uma pessoa, mas que
não lhe tira o potencial linguístico, caracteristicamente humano. Há
necessidade de compreensão da importância do input tátil para uma
criança surdocega, de proporcionar-lhe experiência linguística que não às
ensinarão uma língua, mas que acionarão a sua capacidade
potencialmente latente, que lhe proporcionrá a aquisição de uma língua
tátil.

Identificamos que grande parte dos trabalhos sobre surdocegueira


enfocam a interação social como fator preponderante para aprendizagem
linguística dos surdocegos, estando, portanto, fundamentadas nas correntes
teóricas empiristas. Além disso, praticamente toda discussão acadêmica
sobre esse tema concentra-se na necessidade de aprendizagem da língua
ou na dependência total do outro pelo surdocego, no processo de
comunicação.

Portanto, consideramos que há necessidade de ampliação dessa


investigação, podendo-se abordá-la com base no pressuposto inatista
gerativista, a partir do qual é possível verificar como se constitui um input tátil
de aquisição da linguagem, observando diferenças e semelhanças entre a
Libras Tátil e a Libras frente aos respectivos contextos de inputs, diferenciados,
respectivamente, por sua natureza tátil ou visual.

478
REFERÊNCIAS

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linguística numa perspectiva sociocognitivista. PAPIA: Revista Brasileira de
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481
CONTRIBUIÇÕES DAS GRAMÁTICAS FUNCIONAL E GERATIVA NO
TRABALHO COM DOIS EIXOS DO COMPONENTE LÍNGUA
PORTUGUESA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Cindy Mery Gavioli-Prestes 67


Cláudia Maris Tullio 68

RESUMO: Homologada em 2017, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a


Educação Básica passa a ser referência para a elaboração dos currículos e das propostas
pedagógicas no Brasil. No que diz respeito ao componente Língua Portuguesa, ela considera
quatro eixos, a saber: oralidade, leitura, produção de textos e análise linguística/semiótica
(BRASIL, 2017). Esses eixos, de certa forma, devem garantir o desenvolvimento das
competências específicas desse componente. Tendo isso posto, nosso propósito é discutir o
trabalho com esses eixos, focando em dois deles: o de produção de textos e o de análise
linguística/semiótica. Partindo da hipótese de que tanto a gramática gerativa quanto a
gramática funcional podem ser utilizadas no trabalho com eles, o intuito deste trabalho é
apresentar e discutir essas possíveis contribuições para o ensino de língua portuguesa como
língua materna nos anos finais do Ensino Fundamental. Para isso, inicialmente, trazemos
reflexões acerca do ensino sob o olhar da gramática gerativa chomskiana e da gramática
funcional, na perspectiva da sistêmico funcional. Em seguida, apresentamos os eixos de
Língua Portuguesa e tecemos nossas considerações acerca de nossa proposta. Nossa
pesquisa está respaldada em autores como Pilati (2017, 2018, 2020), Pires de Oliveira e
Quarezemin (2016, 2020) Roeper; Maia e Pilati (2021), Fuzer e Cabral (2014), Campo;
Machado e Castanheira (2016), Silva (2019), Silva e Gomes (2019) dentre outros. Com esta
pesquisa, verificamos que essas gramáticas contribuem de forma significativa com o que
está exposto na BNCC e permitem um ensino mais amplo e eficaz da língua portuguesa
enquanto língua materna. Ademais, essas reflexões contribuem também para a formação
docente.
Palavras-chave: BNCC, Formação de docentes, Gramática, funcionalismo, gerativismo.

67Doutora em Letras e Professora adjunta do Curso de Letras da Universidade Estadual do


Centro-Oeste – Pr, cprestes@unicentro.br. Pesquisadora nos grupos de pesquisa
“Gramática(s) em perspectiva”, “Ensino de língua e literatura” e “Linguística Forense”.
68 Doutora em Estudos da Linguagem e Professora adjunta do Curso de Letras da

Universidade Estadual do Centro-Oeste – Pr claudiamaris@unicentro.br . Pesquisadora nos


grupos de pesquisa “Linguística Forense”, “Gramática(s) em perspectiva” e “Ensino de língua
e literatura”.

482
INTRODUÇÃO

O ensino de língua portuguesa como língua materna é sempre objeto


de estudo e de discussão. O que se tem observado nos últimos anos é um
movimento trazendo pesquisas que apresentam contribuições da linguística
(dita teórica) para esse ensino. Com isso, inúmeras pesquisas acerca disso
sob perspectivas teóricas como o gerativismo e o funcionalismo, por exemplo,
têm sido produzidos.

É nessa esteira que o presente trabalho se coloca, buscando contribuir


com essas discussões, com o intuito de refletir acerca de um olhar ainda mais
efetivo em relação ao ensino de língua portuguesa nas escolas.

Com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (doravante


BNCC), em 2017, o currículo escolar brasileiro passa a ser pensado e
estruturado com base nesse documento. Dessa forma, as escolas e os livros
didáticos devem contemplar o que está colocado ali.

Nosso intuito aqui é, então, demonstrar que tanto a gramática gerativa


quanto a gramática funcionalista têm muito a dizer e a contribuir com o
ensino, levando em consideração a BNCC. Para isso, realizamos uma
pesquisa de abordagem qualitativa, de caráter interpretativista, sendo que
os métodos utilizados foram a revisão bibliográfica e a análise documental.
Fizemos um recorte em relação aos quatro eixos propostos dentro do
componente língua portuguesa da BNCC do Ensino Fundamental, focando
em dois deles: o eixo da produção textual e da análise linguística/semiótica.

Para atingirmos os objetivos ora propostos, inicialmente, analisamos a


BNCC, enfatizando o componente Língua Portuguesa e seus eixos. Em
seguida, apresentamos, de forma mais ampla, o gerativismo e o
funcionalismo. Por fim, relacionamos essas perspectivas com a proposta da

483
BNCC, discutindo as contribuições que elas podem trazer para o ensino de
língua portuguesa.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

Como nosso intuito é discutir as contribuições do gerativismo e do


funcionalismo para o ensino de língua portuguesa, de acordo com a Base
Nacional Comum Curricular, nossa discussão está embasada teoricamente
em três pontos: a BNCC, o gerativismo e o funcionalismo. Dessa forma,
apresentaremos inicialmente acerca do documento em questão e em
seguida faremos uma breve exposição do gerativismo e do funcionalismo.
Essas teorias serão retomadas na próxima seção, ao mostramos e discutirmos
nossos resultados.

Na introdução da BNCC, esse documento é colocado como sendo:

de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo


de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação
Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de
aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que
preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento
normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, [...] e está
orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à
formação humana integral e à construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva [...]. (BRASIL, 2017, p. 7, grifos do autor).

Dessa forma, tal documento pretende ser a base para a formação dos
currículos escolares brasileiros. Por essa razão, discuti-la é de suma
importância para o ensino, no nosso caso, da língua portuguesa enquanto
língua materna nas escolas.

484
A BNCC está dividida em três etapas, a saber Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Ensino Médio, sendo que as duas últimas são divididas em
áreas, que, por sua vez, estão subdivididas por componentes. Nosso foco
aqui é o componente “Língua Portuguesa”, presente na área de Linguagens,
dentro da etapa do Ensino Fundamental.

Considerando a linguagem a partir da perspectiva enunciativa-


discursiva, o documento toma o texto como o elemento central das aulas de
língua portuguesa nas escolas brasileiras. Portanto, é a partir deles que o
aprendizado ocorrerá. Com isso, deve-se “proporcionar aos estudantes
experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma
a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais”
(BRASIL, 2017, p. 65, grifos nossos). Assim, o grande objetivo é promover
letramentos aos alunos.

Para tornar isso possível, esse componente se constitui de quatro


diferentes eixos: leitura, produção de textos, oralidade e análise
linguística/semiótica.

O eixo da leitura contempla as práticas leitoras, relacionadas tanto ao


uso quanto à reflexão, de diferentes textos – orais, escritos ou multissemióticos,
sempre de forma contextualizada e buscando articular diferentes
habilidades. Dessa forma,

[l]eitura no contexto da BNCC é tomada em um sentido mais amplo,


dizendo respeito não somente ao texto escrito, mas também a
imagens estáticas (foto, pintura, desenho, esquema, gráfico,
diagrama) ou em movimento (filmes, vídeos etc.) e ao som (música),
que acompanha e cossignifica em muitos gêneros digitais. (BRASIL,
2017, p. 72).

485
De forma semelhante, o eixo da produção de textos contemplará
também a interação e a autoria dos mais diversos textos, com diferentes
finalidades, e sempre de forma contextualizada. Portanto, ele “compreende
as práticas de linguagem relacionadas à interação e à autoria (individual ou
coletiva) do texto” (BRASIL, 2017, p. 74), levando em consideração “situações
efetivas de produção pertencentes a gêneros que circulam nos diversos
campos de atividade humana” (BRASIL, 2017, p. 76). Buscando, assim,
ampliar as possibilidades de recursos que podem ser contemplados na
produção, gerando, assim, uma maior autonomia dos alunos. Além disso,

[o] tratamento das práticas de produção de textos compreende


dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão, tais como:
[...] condições de produção dos textos [...], dialogia e relação entre
textos, alimentação temática, construção da textualidade, aspectos
notacionais e gramaticais, estratégias de produção. (BRASIL, 2017, p.
77, 78).

No eixo da oralidade, encontramos também o trabalho com diferentes


gêneros textuais, nesse caso, os orais, buscando levar o aluno a uma escuta
ativa e uma produção fluida e reflexiva.

Por fim, o eixo da análise linguística/semiótica é colocado como uma


proposta complementar às práticas de leitura e de produção textual, visto
que a centralidade é o texto. Ele “envolve os procedimentos e estratégias
(meta)cognitivas de análise e avaliação consciente [...] das materialidades
dos textos, responsáveis por seus efeitos de sentido, [...] no que se refere às
formas de composição dos textos [...], [e] aos estilos adotados” (BRASIL, 2017,
p. 80). Já “os conhecimentos grafofônicos, ortográficos, lexicais, morfológicos,
sintáticos, textuais, discursivos, sociolinguísticos e semióticos que operam nas
análises linguísticas e semióticas” seriam abordados ao longo do Ensino
Fundamental.

486
Assim, as práticas de leitura/escuta e de produção de textos orais,
escritos e multissemióticos oportunizam situações de reflexão sobre a
língua e as linguagens de uma forma geral, em que essas descrições,
conceitos e regras operam e nas quais serão concomitantemente
construídos: comparação entre definições que permitam observar
diferenças de recortes e ênfases na formulação de conceitos e
regras; comparação de diferentes formas de dizer “a mesma coisa”
e análise dos efeitos de sentido que essas formas podem
trazer/suscitar; exploração dos modos de significar dos diferentes
sistemas semióticos etc.” (BRASIL, 2017, p. 81, grifos nossos).

Portanto, reflexões acerca do uso e da análise da língua(gem) estão


previstos pela BNCC. Em suma, esse eixo contempla o trabalho com a fono-
ortografia, morfossintaxe, sintaxe, semântica, variação linguística e
elementos notacionais da escrita (BRASIL, 2017, p. 83).

A partir do exposto aqui, é possível compreendermos a organização e


a proposta de encaminhamento de trabalho referente ao ensino de língua
portuguesa nas escolas.

Seguindo a proposta de que a linguística pode contribuir com esse


ensino, focaremos em duas perspectivas teóricas linguísticas já consolidadas:
o gerativismo e o funcionalismo.

Assumimos aqui o gerativismo chomskiano (CHOMSKY, 1981, 1995),


levando em consideração a capacidade gerativa das línguas. Para
Chomsky,

[o] papel fundamental da linguística é tornar explícito, isto é,


descrever com objetividade científica, o conhecimento linguístico
dos falantes. Para ele, a teoria linguística deve descrever os
procedimentos mentais que “geram” as estruturas da linguagem,
como as palavras, as frases e os discursos. (KENEDY, 2013, p. 17).

Essa gramática que gera sentenças, por exemplo, traz também uma
concepção de língua que merece ser mencionada. Nessa gramática

487
gerativo transformacional (GGT), encontramos a dicotomia chomskiana (cf.
Chomsky, 1994) que assume uma língua-I, que seria interna e estaria na
mente do falante, e uma língua E, que seria externa, um “fenômeno
sociocultural, histórico e político que corresponde um código linguístico [...]”
(KENEDY, 2013, p. 29, grifos do autor).

Com base nisso, passamos a entender qual é a intenção da GGT. Assim,

[a] GGT estuda competências individuais como uma forma de


capturar o real objeto de estudo, que é a capacidade cognitiva da
espécie homo sapiens sapiens para o desenvolvimento e o uso de
competência gramatical. Em última instância, o objeto de estudo é
o que se chama de Faculdade da linguagem cuja existência
Saussure (1916: 24-27) já reconhecia, [...]. Para Chomsky, essa
faculdade de se constituir uma língua já seria, ela própria, uma
espécie de protogramática dada pela dotação biológica de cada
espécie, um conjunto de mecanismos gramaticais básicos que
subjazem a toda e qualquer língua-I humanamente possível. Isso se
relaciona com a noção de Gramática Universal, [....]. (GUIMARÃES,
2017, p. 107).

Dessa forma, interessa-nos o caráter científico proposto aqui e,


principalmente, esse conhecimento internalizado, essa Faculdade da
Linguagem, que temos como falantes de uma língua. São esses os pontos
centrais a que nos deteremos na seção seguinte.

A outra perspectiva teórica com a qual trabalharemos aqui é o


funcionalismo. Este, segundo Dillinger (1991), descreve a língua como um
instrumento de interação social. Fato este que reporta ao estudo do uso da
linguagem e do significado no decorrer das interações comunicativas.

Cabe salientar que dentre as várias vertentes dos estudos funcionalistas,


o presente trabalho segue a linha da linguística sistêmico-funcional (LSF) a
qual compreende a linguagem como um sistema sociossemiótico (CUNHA;
SOUZA, 2007; HALLIDAY, 1994), cujo “foco reside na análise de produtos

488
autênticos da interação social, considerando suas relações com a cultura e
contexto social nos quais esses produtos são negociados (EGGINS, 2004, p. 2)

Para Halliday (1994), a linguagem comporta três metafunções, haja


vista, a metafunção constituir a estrutura interna da língua. É importante
salientar que cada uma das metafunções tem um sistema o qual torna
possível a realização de seus significados. A Metafunção Ideacional
preocupa-se com a representação de experiência e do mundo, e é
realizada pelo sistema da transitividade. A Metafunção Interpessoal, por sua
vez, é responsável por verificar a interação dos participantes no discurso e
acontece através do sistema de modo, de modalidade e de valorização.
Por último, a Metafunção Textual une partes de um texto em um todo
coerente, organizando e associando esse texto a contextos situacionais
através do sistema temático.

Tendo posto os principais aportes teóricos que norteiam nossa pesquisa,


apresentamos os resultados e discussão.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir do exposto, passamos para nossa análise acerca das


contribuições das gramáticas gerativa e funcional para o ensino, focando
em dois eixos do componente língua portuguesa da BNCC (BRASIL, 2017): o
eixo da produção de texto e o eixo da análise linguística/semiótica.

A gramática gerativa, como mencionado, busca compreender,


cientificamente, o conhecimento linguístico do falante. É justamente dessa
forma que ela tem muito a contribuir com o ensino de língua portuguesa: o
aluno já conhece essa língua. É partindo desse conhecimento prévio que o
trabalho na escola irá se realizar, como já proposto por Pilati (2017), ao propor

489
a linguística ativa. Assim, a intenção é tornar o aluno como ator e não como
detetive (PIRES DE OLIVEIRA; QUAREZEMIN, 2016), ou seja, os discentes não
têm que ficar procurando por “desvios da norma padrão”, mas sim buscar
refletir, indagar, pensar sobre a língua que os cerca.

Trazendo esses apontamentos para o trabalho com os eixos do


componente Língua Portuguesa da BNCC, temos no eixo da Análise
Linguística/Semiótica questões de ordem “gramatical”, como a
morfossintaxe e a sintaxe, por exemplo. As práticas de análise linguística,
termo cunhado pelo linguista João Wanderley Geraldi, na década de 1980,
estariam relacionadas não apenas com questões gramaticais, mas também
com reflexões acerca delas bem como com questões da ordem textual,
discursiva etc., permitindo com que o aluno pudesse ampliar seu domínio
acerca também da leitura e da escrita.

De certo modo, a gramática gerativa pode permitir algo semelhante,


que é o que pretendemos expor aqui.

Nas últimas décadas, temos verificado um aumento considerável no


número de pesquisas que discutem o ensino da língua portuguesa como
língua materna em sala de aula e propõem formas de se trabalhar com ela,
levando em consideração a gramática gerativo-transformacional. Dentre
eles, podemos citar Pilati (2017, 2020), Pires de Oliveira e Quarezemin (2016,
2020), Foltran; Knöpfle e Carreira (2017), Medeiros Junior (2020), dentre outros.

Tendo as discussões e as propostas feitas por esses autores como base


também, apresentamos nossas reflexões.

Vejamos, a seguir, um quadro apresentado na BNCC no que se refere


ao 8º ano, em relação ao eixo da análise linguística/semiótica.

490
Quadro 1: Habilidades 8º ano, eixo da Análise Linguística/Semiótica

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 189)

No quadro 1, fizemos o recorte de algumas habilidades previstas para


o 8º ano em relação à análise linguística/semiótica. Ao observarmos EF08LP06,
temos o texto como elemento central, que é o proposto pela BNCC, e é a
partir dele que a identificação dos termos constitutivos da oração. Na
sequência, temos a diferenciação de complementos verbais, identificação
de voz ativa e passiva e interpretação dos sentidos possíveis, e a
interpretação dos efeitos de sentido de modificadores.

A gramática gerativa, nesse momento, contribui justamente na


concepção e na compreensão desses termos previstos. Para poder
identificar o que é conhecido como sujeito e predicado, é preciso entender
de alguma maneira como a oração está estruturada. Sem essa
compreensão, não há como realizar esse trabalho. Usando ou não a
metalinguagem técnica apresentada aqui, a reflexão acerca dessa

491
estrutura deve ocorrer. Portanto, de alguma maneira, o docente precisará
trabalhar com seu aluno esses elementos.

A partir da Faculdade da Linguagem, da gramática que o aluno já


possui, refletir acerca disso fica mais “plausível”. É possível verificar
construções possíveis e não possíveis na língua, para pensar essa noção de
sujeito, como por exemplo, a existência de sentenças como as que temos
em (1) e (2).

(2) a. João comeu o bolo com o


(1) a. João abriu a porta com a
garfo.
chave.
b. *O bolo comeu.
b. A porta abriu.
c. *O garfo comeu o bolo.
c. A chave abriu a porta.

Inúmeras são as reflexões acerca da estrutura da língua que podemos


realizar 69 a partir desses dados, como: (i) pensar o funcionamento desses
verbos, (ii) questionar o porquê de isso ocorrer, (iii) verificar a ocorrência disso
com outros verbos, (iv) observar de que forma os constituintes estão
relacionados dentro da sentença, (v) questionar o porquê de produzirmos
sentenças como as em (1), mas não as em (2b) e (2c) e assim por diante.

A GGT pode contribuir com as respostas para essas perguntas e com a


possibilidade de levar o aluno a pensar sobre como a gramática de sua
língua se configura. Pode, inclusive, levá-lo a comparar com outras línguas

69Outras possibilidades são encontradas também nos trabalhos de Pilati, Sandoval,


Zandomênico (2016), Pires de Oliveira e Quarezemin (2016, 2020), Pilati (2020), Medeiros
Junior (2020), dentre outros.

492
que ele conhece e com outras variedades linguísticas existentes em sua
língua70.

Dessa forma, o pensamento científico se faz presente na escola, o que


auxilia na percepção do mundo, como a BNCC propõe. A ´gramática´ pode
ser trabalhada por meio de um olhar científico na escola. Como afirma
Borges Neto (2013, p. 75), precisamos levar os alunos ao “desenvolvimento
[...] de um raciocínio científico sobre fenômenos linguísticos”. E a GGT pode
contribuir com isso.

Essas reflexões podem ser levadas também para o trabalho com o


texto. Vejamos o quadro 2.

Quadro 2: Habilidades 8º e 9º anos, eixo da produção textual

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 185)

No quadro 2, propõe-se a produção de uma resenha. A constituição


desse gênero pode ser compreendida por meio de outras teorias da ordem
do texto. No entanto, as marcas linguísticas presentes nele podem ser
percebidas por meio de reflexões que a gramática pode nos oferecer. Ao
entender a estrutura de sentenças (e parágrafos), posso pensar acerca dos
sentidos e dos efeitos de sentido que vão sendo construídos dentro de um

70 A GGT considera que cada indivíduo tem uma gramática. Não entraremos nessa
discussão aqui por conta do limite do artigo. No entanto, remetemos o leitor para §2.7 de
Guimarães (2017, p. 85) para uma compreensão adequada acerca disso.

493
texto, ou seja, o que quero dizer ao usar uma estrutura em detrimento de
outra. Exemplificando: se a posição de sujeito está ou não preenchida, se
faço uso de um verbo na voz ativa ou passiva, dentre outros, o que esses usos
interferem na construção do texto e do discurso.

Vincular gramática ao texto pode [...] favorecer a vivência de


experiências de análise, leitura e produção textual que levem os
estudantes a refletir sobre questões relativas à organização sintática
e à criação de pontos de vista, estratégias de ênfase ou de
apagamento de informações, além de relações entre efeitos
comunicacionais ou expressivos do uso consciente de expressões
gramaticais. (PILATI, 2021, p. 163).

Portanto, a GGT pode sim contribuir com esses dois eixos, visto que
permite reflexões acerca da estrutura da língua, a partir de conhecimentos
que os discentes já possuem de sua língua.

De forma semelhante, o funcionalismo também se coloca como


importante aliado na prática de sala de aula ao se pensar o ensino de língua
portuguesa.

Assim como o gerativismo propõe uma linguística ativa, o


funcionalismo também o faz na medida em a gramática sistêmica funcional
compreende a língua como um sistema semiótico, no qual as escolhas do
sujeito são subordinadas por três fatores: a relação deste com o mundo, com
o outro e com a língua (as estruturas linguísticas). É importante mencionar
que esta última conexão é vinculada às pressões oriundas das demais, isto é,
da situação comunicativa (HALLIDAY, 1994).

Destarte, o aluno além de ser participante ativo, sujeito do processo (cf.


NETO, 1996), ele reflete, pensa a respeito da língua a partir do fato que
participa da construção desta, dependendo do momento discursivo em que

494
se encontra, faz as devidas escolhas lexicais, semânticas, semióticas, dentre
outras considerando o outro.

Além disso, o Funcionalismo é uma corrente teórica a qual preconiza a


linguística que observa a relação entre texto e contextos (NEVES, 1997;
SOUSA, 2015) Vejamos como aparece na BNCC:

Quadro 3: Condições de produção e recepção de textos na BNCC

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 72)

Primeiro ponto a ser enfatizado é o de que a abordagem funcionalista


coincide com a teoria da enunciação bakhtiniana – o alicerce
epistemológico da BNCC – e com ele, a noção de enunciado concreto
relativamente estável. Para além do sistema, estão os aspectos funcionais,
situacionais, contextuais (comunicacionais) do uso da língua – inquietações
tanto dos estudiosos funcionalistas quanto dos sociointeracionistas que
consideram o texto como unidade empírica / material da análise e o gênero
de discurso como o propósito de análise e de ensino. Nesta esteira,
observam-se os contextos os quais auxiliam na construção do gênero e do
próprio texto, como vemos a seguir:

495
Quadro 4: Condições de produção de textos na BNCC

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 77)

Posteriormente, o funcionalismo, em específico a linguística sistêmico


funcional auxilia o processo de ensino no tocante às questões de
metafunções, modalidades/modalizações, transitividade etc. (FUZER;
CABRAL, 2010; BENTO, 2010; FAIRCLOUGH, 2003, dentre outros),
principalmente na análise linguístico semiótica.

Quadro 5: Aspectos semânticos BNCC

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 83)

Ao tratar dos propósitos comunicativos dos enunciadores, das ações


por eles emanadas e da interação com os interlocutores por eles pretendida,
o professor pode trabalhar com as metafunções desenvolvidas por Halliday
e comentadas anteriormente. Aqui, hipoteticamente, podemos focar a
atividade na metafunção interpessoal, seu sistema de uso e análise, e por
uma de suas principais ferramentas: a modalidade.

496
Dentre a categoria das modalidades, pode-se destacar a modalidade
deôntica, por meio da qual se exige ou autoriza uma ação do interlocutor
em um tempo futuro. Na sequência, analisa-se um determinado gênero
discursivo e como a modalidade deôntica está presente em seu interior,
justificando. Um exemplo clássico é o gênero sentença judicial, em que a
modalidade deôntica é predominante.

Essa forma de modalidade, portanto, “situa-se no domínio do dever


(obrigação e permissão), [que] pode corresponder, pois, a atos diretivos de
fala, ligando-se ao imperativo, que é característico de interações
espontâneas, nas quais se pode esperar que um locutor leve outro a fazer
algo. [...]” (NEVES, 2002, p. 196). Aos modos oracionais declarativo e
interrogativo (pergunta e oferta) também se pode aplicar a modalidade
deôntica (FUZER; CABRAL, 2010, p. 112).

A perspectiva sistêmica funcional parte da ideia central de que a


forma é subordinada à função (HALLIDAY, 1994).

Quadro 6: Aspectos da análise linguística na BNCC

Fonte: Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, p. 83)

497
A partir dos estudos funcionalistas viabilizou-se refletir a respeito da
função dos elementos da língua, seu uso e não apenas “decorar” regras e
regras que a gramática normativa vem apresentando a nós, sem uma
explicação plausível do “porquê” daquela regra. Cabe a nós, meros mortais,
a decodificação e decorar a regra, com a justificativa que cai em concursos,
vestibulares etc. Com a mudança de perspectiva, muitas universidades têm
adotado provas de língua em que privilegiam a reflexão sobre o uso da
língua.

Se observarmos o proposto na BNCC no quadro 6, fala-se em analisar


o funcionamento, conhecer e analisar, correlacionar o funcionamento para
então o aluno compreender a razão de o substantivo ser substantivo e assim
por diante.

a linguagem é uma atividade sociocultural; a estrutura serve a


funções cognitivas e comunicativas; a estrutura é não-arbitrária,
motivada, icônica; mudança e variação estão sempre presentes; o
sentido é contextualmente dependente e não-atômico; as
categorias não são discretas; a estrutura é maleável e não rígida; as
gramáticas são emergentes; as regras de gramática permitem
algumas exceções (GIVÓN, 1995 apud MARTELOTTA e ÁREAS, 2003,
p. 28).

Acima, Givon (1995, apud MARTELOTTA; ÁREAS, 2003) sintetiza a


concepção funcionalista da linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos aqui trazer contribuições de duas perspectivas


teóricas da linguística, o gerativismo chomskiano e a sistêmico-funcional,
para o ensino de língua portuguesa como língua materna nas escolas,

498
levando em consideração a BNCC, visto que é esse o documento que
embasa os currículos escolares nacionais.

O que verificamos é que essas teorias podem contribuir para que o


aluno passe a ser o protagonista e consiga compreender e refletir a estrutura
da língua e os sentidos que podem ser obtidos por meio dela.

Nesse viés, é pertinente afirmar que a gramática não se movimenta


sozinha, ou seja, não podemos desvincular os padrões gramaticais do meio
social em que são produzidos. Logo, essas perspectivas podem contribuir
com isso. Expomos algumas reflexões, mas novas discussões ainda merecem
(e precisam) ser feitas.

REFERÊNCIAS

BENTO, A. L. Quem vai pagar a conta? O papel dos sistemas de transitividade


e de modo (mood) no anúncio da tributação das cadernetas de poupança
em manchetes de oito jornais brasileiros. São Paulo: Annablume, 2010.

BORGES NETO, J. Ensinar gramática na escola? ReVEL, edição especial, n. 7,


p. 68-83, 2013.

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Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2017.

CHOMSKY, Noam. Lectures on Government and Binding. Dordrecht: Foris,


1981.

CHOMSKY, Noam. O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso.


Lisboa: Caminho, 1994 [1986].

CHOMSKY, Noam. The minimalism program. Cambridge: The MIT Press, 1995.

499
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systemic functional linguistics. London: Continuum, 2004, p. 1-22.

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research.


London: Routledge, 2003.

FOLTRAN, Maria José; KNÖPFLE, Andrea; CARREIRA, Marcos Barbosa. A


gramática como descoberta. Diadorim, Rio de Janeiro, Revista 19, volume 2,
p. 22-47, Jul-Dez 2017.

FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à gramática sistêmico-funcional em


língua portuguesa. Santa Maria: UFSM, 2010. Mimeo.

GUIMARÃES, Maximiliano. Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. London, 1994.

KATO, Mary A. Formas de funcionalismo na sintaxe. D.E.L.T.A. São Paulo: EDUC,


v. 14.

KENEDY, Eduardo. Curso básico de linguística gerativa. São Paulo: Contexto,


2013.

MARTELOTTA, M; AREAS, E. A visão funcionalista da linguagem no século XX.


In: CUNHA et al. Lingüística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
MEDEIROS Junior, Paulo. Gramática sim, e daí? Reflexões acerca do ensino
de gramática nos anos da educação básica. Curitiba: CRV, 2020.

MEURER, J. L.; BALOCCO, A. E. A linguística sistêmico-funcional no Brasil:


interfaces, agenda e desafios. In: Anais do SILEL, 2009. V. 1, EDUFU.

500
NETO, Antonio Gil. A produção de textos na escola: uma trajetória da palavra.
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NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins


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(Org.). Gramática do português falado. V. VI: Desenvolvimentos. 2. ed.
Campinas: Unicamp, 2002, p. 171-208.

PERINI, Mario A. Para uma Nova Gramática de Português. São Paulo: Editora
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PILATI, Eloisa Nascimento Silva; SANDOVAL, Alzira Neves; ZANDOMÊNICO,


Stefania Caetano Martins de Rezende. Revisão de textos nas aulas de
gramática: uma prática eficiente. Interdisciplinar-Revista de Estudos em
Língua e Literatura. São Cristóvão: UFS, v. 25, mai./ago., p. 217-229, 2016.

PILATI, Eloísa. Contribuições do conhecimento gramatical para o processo da


escrita: a proposta da GRAMATICOTECA. In: ROEPER, Tom; MAIA, Marcus;
PILATI, Eloísa. Experimentando linguística na escola: conhecimento
gramatical, leitura e escrita. Campinas, SP: Pontes Editores, 2020.

PILATI, Eloísa. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. Campinas, SP:


Pontes, 2017.

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; QUAREZEMIN, Sandra. Artefatos em gramática:


ideias para aulas de língua. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. Recurso eletrônico.
Disponível em: https://negr.paginas.ufsc.br/files/2020/05/Artefatos-em-
gram%C3%A1tica.pdf.

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; QUAREZEMIN, Sandra. Gramáticas na escola.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

501
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola? Campinas:
mercado das Letras, 1996.

SOUSA, R.S.N. A teoria sistêmico funcional: uma contribuição para trabalhar


como texto. Margens. Revista Interdisciplinar. VOL.9. N. 13. Dez 2015. p. 208-
219.

502
FENÔMENOS LINGUÍSTICOS EM VARIAÇÃO: A SOCIOLINGUÍSTICA
EDUCACIONAL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Emily Fernandes Faber

Vera Maria Ramos Pinto

RESUMO: Com a divulgação dos resultados de pesquisas que buscaram compor um retrato
bastante fiel da realidade linguística, com especial interesse na descrição do Português
Brasileiro (PB), houve a preocupação de sociolinguistas brasileiros em transformar os
resultados dessas pesquisas em instrumental pedagógico capaz de interferir nas práticas de
educação sociolinguística, isto é, nas formas de ensinar a Língua Portuguesa nas escolas. E,
nesse contexto, a Sociolinguística Educacional começa a ganhar espaço. Assim, levando
em consideração que o processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa deve
desenvolver e ampliar as competências comunicativas do aluno, de forma a ponderar, na
prática educativa, a realidade social, cultural, política, histórica e linguística em que ele se
insere, objetivamos apresentar, neste artigo, as contribuições da Sociolinguística
Educacional para o ensino da língua portuguesa e propostas de atividades para o trabalho
com fenômenos linguísticos em variação, o estudo da alternância entre os pronomes
tu/você e nós/a gente no paradigma pronominal do Português Brasileiro, por meio das
mensagens extraídas de anúncios publicitários, a fim de explicitar e abordar esses
fenômenos, contrapondo, desse modo, o uso ideal da língua, norma-padrão, com o uso
real da língua, norma culta, e o uso vernacular, norma popular. O embasamento teórico
deste trabalho será pautado nos estudos de Labov (2008), Bagno (1999; 2003; 2007), Bortoni-
Ricardo (2005; 2009), Faraco (2008, 2015), Antunes (2007), Görsky e Coelho (2009), dentre
outros autores.

Palavras-chave:. Língua Portuguesa; Variação linguística; Paradigma pronominal;


Sociolinguística Educacional.

INTRODUÇÃO

Documentos oficiais de ensino, como a Base Nacional Comum


Curricular (BNCC, 2017), preconizam que, no processo de ensino e
aprendizagem da língua portuguesa, seja abordada não só a gramática
normativa, a norma padrão, mas também a variação da língua em todos os
seus aspectos: fonéticos- fonológicos, morfológicos, sintáticos, léxico-

503
semânticos e discursivos, levando em consideração os comportamentos da
sociedade diante dos usos linguísticos nas mais diversas situações
comunicativas.

Para tanto, devemos compreender a linguagem como uma atividade


interativa, “entre dois ou mais interlocutores, que se realiza sob a forma de
textos orais ou escritos, veiculados em diferentes suportes, com diferentes
propósitos comunicativos, e em conformidade com fatores socioculturais e
contextuais” (ANTUNES, 2007, p. 146).

Essa concepção de linguagem aponta-nos para um trabalho, em sala


de aula, que considere a dimensão social, discursiva e funcional da
linguagem, concebendo a língua “não como um objeto homogêneo, mas
um conjunto de variedades, que não são deturpações nem corrupções”
(Faraco, 2008).

Entretanto sabemos que os estudos sobre a variação linguística ainda


não é bem visto por muitos professores e, com isso, a abordagem das
variedades linguísticas nem sempre é feita nas aulas de Língua Portuguesa
(LP), predominando o estudo da norma padrão da língua, modelo idealizado
de “língua certa”, com foco no ensino da gramática normativa e prescritiva,
no ensino de conteúdos gramaticais descontextualizados.

Sendo assim, entendemos que, no contexto escolar, a prática


pedagógica pode ser melhorada, e muito, com contribuições da
Sociolinguística Educacional, vertente da Sociolinguística que busca estudar
e compreender os vários fenômenos da variação linguística que ocorre no
Português Brasileiro (PB), mostrando suas implicações no processo de ensino
e aprendizagem da linguagem, sobretudo, em relação ao ensino da língua
portuguesa no ensino fundamental e médio.

504
Bortoni – Ricardo, a esse respeito, afirma:

[...] o estudo e o conhecimento advindo dessa corrente pode


contribuir para melhorar a qualidade do ensino da língua portuguesa
porque trabalha sobre a realidade linguística dos usuários dessa
língua, levando em conta além dos fatores internos à língua
(fonologia, morfologia, sintaxe, semântica) também os fatores de
ordem externa à língua (sexo, etnia, faixa etária, origem geográfica,
situação econômica, escolaridade, história, cultura, entre outros).
(BORTONI - RICARDO, 1999, s. p.)

Considerando, então, que o processo de ensino e aprendizagem da


língua portuguesa deve desenvolver e ampliar as competências
comunicativas do aluno, de forma a considerar, na prática educativa, a
realidade social, cultural, política, histórica e linguística em que ele se insere,
objetivamos apresentar, neste artigo, as contribuições da Sociolinguística
Educacional para o ensino da língua portuguesa.

Também apresentar atividades práticas com fenômenos linguísticos


em variação, nas aulas de Língua Portuguesa, adaptadas de Görski e
Coelho (2009). Dentre os muitos fenômenos linguísticos existentes em nossa
língua e estudados por nós, apresentamos o estudo da alternância entre os
pronomes tu/você e nós/a gente no paradigma pronominal do Português
Brasileiro, por meio das mensagens extraídas de anúncios publicitários, a fim
de explicitar e abordar esses fenômenos, contrapondo, desse modo, o uso
ideal da língua, norma-padrão, com o uso real da língua, norma culta, e o
uso vernacular, norma popular.

O embasamento teórico deste trabalho foi pautado nos estudos de


Labov (2008), Bagno (1999; 2003; 2007), Bortoni-Ricardo (2005; 2009), Faraco
(2008), Antunes (2003; 2007), Görski e Coelho (2009), dentre outros.

505
1 METODOLOGIA

À luz da Sociolinguística Variacionista e da Sociolinguística


Educacional, o método principal usado neste artigo é o bibliográfico,
introduzido numa pesquisa descritiva. O procedimento bibliográfico tem
como aporte teórico autores como Labov (2008), Bagno (2007), Faraco
(2008), os quais enfatizam a importância de uma educação linguística, cujo
objetivo está pautado na reflexão do aluno pela sua linguagem, olhando,
não somente para uma maneira de uso, mas sim, analisando-a em relação
às demais variedades.

Também Bortoni-Ricardo (2005; 2009), que busca, em suas pesquisas,


melhorar a prática educacional para o ensino de língua materna, precursora
da Sociolinguística Educacional, dentre outros.

Para o corpus da pesquisa, buscamos anúncios publicitários de


diferentes décadas do século XX e do século XXI, extraídos de revistas e da
internet, de sites especializados em propagandas de diferentes épocas
como: o de propagandas históricas e o de propagandas em revistas,
considerado um dos maiores acervos digitais de propagandas em revistas:
https://www.propagandashistoricas.com.br/;https://www.propagandasemr
evistas.com.br.desafiodocodigo.com.br/.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A Sociolinguística é uma subárea da linguística que estuda a língua


falada na sociedade, tendo como escopo a variação linguística. Seu objeto
de pesquisa é a língua observada, descrita e analisada em situações reais
de uso.

A história da Sociolinguística, segundo Alkmin (2001) começa no ano

506
de 1964, em um congresso na Universidade da Califórnia, em Los Angeles
(UCLA), quando importantes nomes da área, como Dell Hymes, Gumperz,
Labov e Fisher reúnem-se para compartilhar seus estudos e dar início à área
que buscava uma inserção mais robusta de elementos sociais no estudo da
língua (ALKMIN, 2001).

E, Willian Labov, citado acima, é considerado o fundador da


Sociolinguística Variacionista, introduzindo em seus estudos novas discussões
sobre a heterogeneidade da língua, inaugurando uma vertente de pesquisa
anti-saussuriana, que, ao invés da langue - língua, como fez Saussure, centra-
se na parole-fala/uso, enfocando ainda, o ponto de vista coletivo e não
individual.

Com seus estudos, preocupou-se em incluir os elementos sociais no


estudo da língua, bem como defender esta prática no contexto social,
analisando sua estrutura, historicidade e evolução por meio de uma
sociedade, pois a língua não deve ser entendida como uma estrutura isolada
e por si só, ela é analisada e considerada dentro de um contexto social e
linguístico.

Esse embasamento, reflete na comunidade de fala que se caracteriza


não pelo fato de se constituir por pessoas que falam do mesmo modo, mas
por indivíduos que se relacionam, por meio de redes comunicativas diversas,
e que orientam seu comportamento verbal por um mesmo conjunto de
regras.

Este fato é inerente à teoria da variação linguística, refletida não


somente na comunidade, mas também, no processo de ensino e
aprendizagem das escolas, trazendo à tona os preconceitos linguísticos
mediante as diversas falas e utopias criadas pela sociedade, os estigmas
sociais, a forma como é realizada sua abordagem no ensino da Língua

507
Portuguesa em sala de aula, bem como os enfrentamentos pelo professor e
aluno, priorizando a norma-padrão, não dando ênfase nos estudos da norma
culta e popular.

Assim, Bortoni-Ricardo (2014, p. 157), adepta dos estudos de Labov,


afirma que “[...] a Sociolinguística é uma ciência que nasceu preocupada
com o desempenho escolar de crianças oriundas de grupos sociais ou
étnicos de menor poder econômico e cultura predominantemente oral”.

Desse modo, é possível observar que os estudos sociolinguísticos


labovianos influenciaram também o contexto educacional. “O
reconhecimento da variação linguística em sua estreita correlação com a
heterogeneidade social tem redirecionado as concepções de língua e de
ensino de língua nas diretrizes oficiais e na prática pedagógica em sala de
aula” (BAGNO, 2008, p.10).

Diante disso, desde a publicação do Parâmetros Curriculares Nacional


(PCN, 1998), há uma nova visão de ensino da Língua Portuguesa, pautado
em uma perspectiva interacionista que pressupõe a adequação dos
modelos de ensino e dos conteúdos a partir de uma concepção de língua
para além de uma gramática prescritiva ou normativa.

Já, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento de


ensino, em vigor desde 2017, é preconizado que, nas competências
específicas de ensino de Língua Portuguesa, os alunos devem:

Compreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social,


variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso,
reconhecendo-a como meio de construção de identidades de seus
usuários e da comunidade a que pertencem. [...] Compreender o
fenômeno da variação linguística, demonstrando atitude respeitosa
diante de variedades linguísticas e rejeitando preconceitos
linguísticos. 5. Empregar, nas interações sociais, a variedade e o estilo
de linguagem adequados à situação comunicativa, ao(s)
interlocutor(es) e ao gênero do discurso/gênero textual (BNCC, 2017,

508
p.83).

Isto posto, observamos que, na BNCC de Língua Portuguesa, assume-se


uma perspectiva de progressão de conhecimentos que vai das
regularidades às irregularidades e dos usos mais frequentes e simples aos
menos habituais e mais complexos da língua.

Nas aulas de Língua Portuguesa, deve-se levar em consideração que a


língua não é homogênea, ela sofre muitas mudanças, variando no tempo e
no espaço. Quando falamos em língua portuguesa, estamos falando de
uma unidade que se constitui de muitas variedades. E mesmo havendo no
Brasil uma aparente unidade linguística e apenas uma língua nacional, é
possível observar variação em diversos níveis da estrutura linguística:
morfológico, sintático, semântico e lexical.

É nesse contexto que a Sociolinguística Educacional se estabelece,


principalmente, com o desenvolvimento das pesquisas que buscaram
compor um retrato bastante fiel da nossa realidade linguística, com especial
interesse na descrição do Português Brasileiro (PB).

Pinto (2018, p. 63) afirma

Com a divulgação dos resultados dessas pesquisas para um público


maior, na tentativa de transformar os resultados das pesquisas em
instrumental pedagógico capaz de interferir nas práticas de
educação sociolinguística, isto é, nas formas de ensinar a Língua
Portuguesa nas escolas, a Sociolinguística Educacional começa a
ganhar espaço.

Menciona ainda que pioneirismo desse movimento é dado à


sociolinguista Stella Maris Bortoni-Ricardo (PINTO, 2018, p. 64) , a qual “[...] se
dedica intensamente em fortalecer o campo de ação da Sociolinguística

509
Educacional, área teórico-metodológica que ela inaugurou entre nós”
(BAGNO, 2004, p.7).

Bortoni-Ricardo denomina de Sociolinguística Educacional “[...] todas


as propostas e pesquisas sociolinguísticas que tenham por objetivo contribuir
para o aperfeiçoamento do processo educacional, principalmente na área
de ensino de língua materna” (2005, p.128).

Cyranka (2016, p.169), sobre a educação sociolinguística, pondera:

A Sociolinguística Educacional propõe que se leve para as salas de


aula a discussão sobre a variação linguística, orientando os alunos a
reconhecerem as diferenças dialetais e, mais importante, a
compreenderem que essas diferenças são normais, legítimas e que
devem ser consideradas na seleção das estruturas a serem utilizadas
a depender das condições de produção, isto é, das necessidades
do leitor/escritor, falante/interlocutor, a partir do contexto em que se
encontra.

Para Bortoni-Ricardo e Freitas (2009, p.220), o que a Sociolinguística


Educacional faz é

[...] buscar respostas para questões educacionais dentro do universo


da escola. Com isso, essa vertente da Sociolinguística envolve-se em
temas consideravelmente mais amplos que se inserem no contexto
social maior, conciliando os aspectos micro e macro do processo. E
é para esse contexto que a escola deve preparar o indivíduo.

Além do mais, de acordo com as autoras, o objetivo dessa subárea da


Sociolinguística é “[...] construir novas metodologias que auxiliem professores
a desenvolver em seus alunos as habilidades cognitivas necessárias a uma
aprendizagem mais ampla, à expansão de sua competência comunicativa

510
e à capacidade de desempenhar tarefas escolares cotidianas” (BORTONI -
RICARDO e FREITAS, 2009, p.278).

Diante disso, considerando o que o próprio nome sugere, a


Sociolinguística, aplicada à educação “[...] concentra seus estudos nas
questões ligadas à variação e à mudança linguística, que repercutem no
processo escolar de ampliação da competência comunicativa dos alunos,
tornando a escola e o ensino de línguas alvo dessa vertente da
Sociolinguística” (CYRANKA, 2016, p. 167).

Entretanto sabemos que a Sociolinguística Educacional no âmbito


escolar tem sido alvo de muita discordância na prática pedagógica, pois
muitos professores ainda seguem fielmente o que é apresentado na norma
gramatical, composta por regras.

Diante disso, sabemos que, para trabalharmos com a variação


linguística nas aulas de Língua Portuguesa, é preciso olhar para os dados da
fala do dia a dia e relacioná-los às teorias gramaticais, pois seu uso depende
de diversos fatores variáveis, que não podem ser deixados de lado.

Bagno (1999) afirma que a ideia de que existe uma única língua
correta baseada na gramática normativa, de que o português é uma língua
difícil, de que o certo é falar assim porque se escreve assim, entre outras
utopias, impedem que o estudante tenha conhecimento de que a maneira
como ele fala, não é considerada “errada” e tão pouco inapropriada no
contexto de seu uso.

Para mudar essa perspectiva, o professor precisa combater essas ideias


propondo atividades que possam instrumentalizar os alunos a usarem a
linguagem de acordo com a situação de comunicação.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017) preconiza que a


instituição escolar deve comprometer-se com a multimodalidade de

511
linguagens existentes no âmbito sociocultural, assegurando-o como um
direito de aprendizagem do estudante, pois ela reconhece e concebe a
língua como dotada de variações no meio sociocomunicativo do falante.

Outro aspecto que a BNCC traz a esse respeito é que os enunciados


ou textos são produzidos em uma situação de enunciação, determinada por
condições históricas e sociais, por meio de discursos que instauram relações
de poder. O aprendizado da leitura, da escrita e da oralidade culta envolve
a compreensão dessas situações. (BRASIL, 2017).

Essa análise permite identificar os estudos da variação linguística,


ligadas ao preconceito linguístico, sendo tratado de uma maneira indireta,
mas específica, além de que, o documento reitera este posicionamento ao
ressaltar as condições históricas e sociais pertencentes à língua.

Como sabemos que todas as línguas variam, sofrem mudanças, o que


as tornam heterogêneas. Assim, tanto a variação linguística quanto a
mudança são observáveis na fala das pessoas, fato que demonstra que não
há dois falantes que se expressam igualmente, nem mesmo um falante que
se expresse da mesma maneira em diferentes situações de comunicação,
pois essas variantes linguísticas dizem respeito aos vários modos de se dizer a
mesma coisa em um mesmo contexto e valor.

Nesse sentido, os estudos sociolinguísticos abordados neste trabalho, a


exemplo dos estudos de Bagno (2007), Faraco (2008, 2015), Bortoni - Ricardo
(1999), apontam a necessidade da abordagem da variação linguística no
contexto escolar, nas aulas de Língua Portuguesa, para que os alunos
conheçam a realidade linguística do Português Brasileiro (PB), dos usuários
dessa língua, levando em conta os fatores externos à língua como o tempo,
a origem geográfica, sexo, etnia, faixa etária, escolaridade, história, cultura,
entre outros que contribuem para que a variação aconteça nos níveis

512
internos à língua, o fonológico, morfológico, sintático, semântico e lexical,
objetos de nosso estudo.

Neste artigo, vamos explicitar apenas os níveis internos de variação,


devido a serem o foco do nosso estudo. A variação no nível fonológico
consiste na abordagem de uma mesma palavra sendo pronunciada de
forma diferente, por exemplo, quando os falantes de uma região
pronunciam /baca/ por vaca, trocando o fonema /v/ por /b/. Nesta
variação, o fonema /b/ está em oposição ao fonema /v/. Como é sabido, a
pronúncia das palavras no Brasil é diferente das mesmas palavras em
Portugal, o que constitui uma variação de natureza fonética (por exemplo,
/qual/ pronuncia-se no Brasil /quau/).

Já a variação do nível morfológico, varia a forma de uma palavra ou


o seu gênero ou a sua flexão, etc. Por exemplo, no plural, as palavras aldeão
e Verão têm as formas aldeãos e verãos em oposição a aldeões e Verões. A
marca do plural em -ãos está em oposição à marca em -ões. Segundo
Coelho et al (2010, p.58) “ a variação morfológica é, em sua maioria, um
caso de variação morfofonológica ou morfossintática.”

Existe a variação sintática quando varia a construção frásica ou a


regência de um verbo ou a concordância, etc. Por exemplo, a construção
/estou a pensar/ é substituída no Brasil por /estou pensando/. Um outro
exemplo é o do emprego dos pronomes: em Portugal, numa oração
absoluta afirmativa o pronome segue o verbo (posição enclítica), enquanto
na fala espontânea no Brasil o precede (posição proclítica): «Ele vê-se ao
espelho.» em oposição a «Ele se vê».

A variação semântica é quando uma mesma palavra é utilizada com


significados totalmente diferentes, como, por exemplo, a palavra camisola
que em Portugal é utilizada para designar uma peça de vestuário que se usa

513
em vez da camisa ou por cima ou por baixo da camisa, ou com uns calções
como equipamento desportivo (as camisolas dos jogadores de futebol, por
exemplo), e que no Brasil se usa para designar uma camisa de dormir, peça
de vestuário feminino.

Já a variação no nível lexical é quando a mesma realidade é


designada por vocábulos diferentes conforme a região, como por exemplo
a palavra macaxeira/aipim/mandioca ou quando uma mesma forma
expressa significados diferentes de acordo com região (quitanda: em geral
significa mercearia, em Minas Gerais denomina iguarias e doces feitos com
massa de farinha).

3 FENÔMENOS LINGUÍSTICOS EM VARIAÇÃO: PROPOSTA DE ATIVIDADES

Apresentamos, neste tópico, algumas sugestões de atividades para o


trabalho com a variação linguística nas aulas de LP, extraídas de Görsky e
Coelho (2009).

Devido ao espaço exíguo, escolhemos, dentre os muitos fenômenos


linguísticos existentes em nossa língua e estudados por nós, a alternância
entre os pronomes tu/você e nós/a gente no paradigma pronominal do
Português Brasileiro (PB), que são fenômenos em variação do campo
morfológico (COELHO, et al. 2010).

O paradigma pronominal da língua portuguesa apresenta-se de duas


formas: o que está exposto nas gramáticas tradicionais e na maioria dos livros
didáticos (Paradigma 1), e o paradigma em uso pela maioria dos falantes do
Português Brasileiro (Paradigma 2).

Ao confrontarmos os dois paradigmas, observamos que há variação,

514
conforme o quadro que segue.

QUADRO 1. Descrição dos paradigmas pronominais tradicional e em uso efetivo no PB

Paradigma 1 Paradigma 2

Eu Eu

Tu Tu/você

Ele (a) Ele (a)

Nós Nós/a gente

Vós Vós/vocês

Eles (as) Eles (as)

Fonte: Görski e Coelho (2009,p. 84)

As formas “invasoras” você(s) e a gente são advindas de nomes ou


expressões nominais: de tratamento de base nominal Vossa Mercê e do
substantivo gente, respectivamente, por um processo de gramaticalização”
(GÖRSKI e COELHO ,2009, p.85),

Assim, ao assumirem determinadas propriedades, valores e funções essas


novas formas passam a fazer parte de uma nova categoria (ou classe), a de
pronome.

515
4 O PARADIGMA PRONOMINAL: PROPOSTA DE ESTUDO EM ANÚNCIOS
PUBLICITÁRIOS

Görski e Coelho (2009, p.88) propõem as atividades com o fenômenos


relacionados ao paradigma pronominal que podem ser desenvolvidas, com
a devida adequação no Ensino Fundamental anos finais e no Ensino Médio,
como: leitura e discussão de diferentes textos do português dos séculos XVIII,
XIX, XX e XXI para que possa ser observado o percurso diacrônico da
mudança pronominal (Cf. quadros 1, 2 e 3) ao longo das diferentes épocas
e leitura de textos de gêneros diferentes (mais argumentativos e mais
narrativos, por exemplo) para que possa ser verificada a distribuição estilística
dos pronomes, isto é, se textos mais formais ainda preservam traços do
paradigma pronominal antigo e de todas as formas pronominais
correspondentes.

Diante das proposições das autoras, apresentamos atividade para


estudo do paradigma pronominal da língua portuguesa por meio do gênero
anúncio publicitário, com adaptações. O plano de aula elaborado tem
como título: Pronomes pessoais: um passeio histórico pela publicidade.

Por meio dessa aula, vamos explorar variação linguística em textos


publicitários de várias décadas do século XX e do século XXI a fim de estudar
fenômenos linguísticos em variação do paradigma pronominal da Língua
Portuguesa: o uso do tu/você e do nós/ a gente contrapondo a prescrição
da norma padrão com o uso da norma culta nas mensagens publicitárias.

516
5 ORIENTAÇÕES SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE

Em aulas anteriores, é necessário que os alunos já saibam i) o que é


variação linguística, ii) conheçam os fatores externos que contribuem para
que a variação linguística aconteça, fazendo com que a língua apresente
variação e mudanças; iii) conheçam os níveis internos de variação; iv) já
tenham conhecimento dos conceitos de norma padrão, norma culta e
norma popular e v) conheçam o quadro tradicional dos pronomes pessoais
da língua portuguesa.

Para essa atividade, apresentamos vários anúncios publicitários de


várias décadas dos séculos XX e XXI, os quais, em sala de aula, devem ser
mostrados aos alunos por meio de slides.

1-Anúncios para análise do uso dos pronomes nós/a gente

Anúncio sabão em pó Rinso 1965 Anúncio bonecas Atma 1974 Anuncio Salgadinhos Fritex 1982

517
Anúncio da palha de aço Bombril, 1998 Anúncio palha de aço Bombril, 2012

Anúncios para análise do uso dos pronomes tu/você

Anúncio Câmera Kodak 1963 Anúncio Coca-Cola 1977 Anúncio chocolate Lollo da Nestlé 1983

518
Anúncio sorvete fura bolo da Gelato, 1996 Anúncio do creme dental Colgate, 2013 Anúncio Chocolates Cacau
Show, 2021

Em seguida, pedir aos alunos para fazerem leitura analítica-reflexiva


das mensagens dos anúncios exibidos nos slides e responderam as questões:

1- De acordo com o que foi exposto, o que é possível observar com relação
ao uso dos pronomes nós/ a gente e tu/você no anúncios publicitários de
diferentes décadas do século XX e XXI?

2-O uso do pronome de tratamento da 2a pessoa do discurso, muitas vezes,


estabelece concordância com a 3a pessoa do singular, o que nos mostra
diferenças que acarretam a readaptação do sistema verbal de nossa língua.
É notória essa diferença nos anúncios?

3-A expressão a gente, também linguagem informal, substitui o pronome nós,


de primeira pessoa do plural, vindo a competir com o pronome nós, qual é a
forma que mais aparece nos anúncios publicitários apresentados?

4-O paradigma pronominal tradicional da Língua Portuguesa passa por


transformação, evidenciando um novo paradigma pronominal em uso no
português falado no Brasil, por que isso acontece?

519
5-A linguagem utilizada no anúncio publicitário aproxima ou distancia-se do
leitor, por quê?

5.1 FECHAMENTO

Projetar em slide essa citação de Bagno (2007) “Toda a língua está


irremediavelmente sujeita à variação e mudança”.

Estimule os alunos, apoiando-se nos anúncios analisados, a mostrar de


quais maneiras a mudança e a variação podem acontecer. Registre as
contribuições dos estudantes no quadro.

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por meio dessa análise de anúncios de diferentes décadas do século


XX e de anúncios do século XXI, esperamos que: os alunos entendam que
toda língua está sujeita à variação e à mudança; observem que, na
linguagem publicitária, há uma maior aproximação da língua em uso do dia
a dia das pessoas.

O pronome você, por exemplo, preferido e utilizado pelos brasileiros na


linguagem informal, originou-se da forma Vossa Mercê, evoluindo para você.
Esse novo elemento gramatical, pronome de tratamento da 2a pessoa do
discurso, estabeleceu concordância com a 3ª pessoa do singular, o que nos
mostra diferenças que acarretam a readaptação do sistema verbal da nossa
língua.

Assim, expressão a gente, também linguagem informal, substitui o


pronome nós, de primeira pessoa do plural, vindo a competir com o pronome

520
nós. Esse novo pronome (a gente) desencadeia nova alteração no
paradigma verbal, que conta agora com mais uma forma homônima: você
foi/a gente foi/ele foi;

Além disso, que observem e entendam que o paradigma pronominal


tradicional da Língua Portuguesa passa por transformação, evidenciando
um novo paradigma pronominal em uso no português falado no Brasil.

Esperamos, portanto, que os alunos observem que a língua pode


mudar no tempo e variar no espaço geográfico. A língua pode, também,
em um mesmo espaço, variar em função da inserção social dos
interlocutores ou do grau de intimidade entre eles, caso das mensagens
publicitárias, que buscam maior aproximação com o público alvo, os
possíveis consumidores dos produtos ofertados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando tudo o que foi exposto neste artigo, para o


desenvolvimento de um trabalho com os fenômenos linguísticos em
variação, focado nos preceitos da Sociolinguística Educacional, é necessário
que se tenha consciência dos usos que fazemos de nossa língua.

Sendo assim, todos nós professores precisamos exercitar em nossas


práticas pedagógicas o ensino da língua portuguesa voltado, também, à
variação linguística tão presente nos meios comunicativos, no dia a dia,
rompendo, desse modo, com o mito que envolve a visão equivocada de
que só existe uma forma “correta” de falar, de comunicar-se.

Necessário se faz, portanto, orientarmos os alunos quanto às variações


da língua, mostrando que as características de cada variação constituem
regras gramaticais perfeitamente explicáveis pela vertente sociolinguística,

521
como o caso dos fenômenos que envolvem o paradigma pronominal,
estudado neste trabalho.

Com esse estudo, portanto, buscamos alinhar a proposta de atividade


apresentada às preconizações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC,
2017), que sugere o trabalho com gêneros multissemióticos, como o anúncio
publicitário, e que façamos abordagem da variação linguística nas aulas
de Língua Portuguesa.

Segundo o documento, deve-se “[...] fazer uso consciente e reflexivo


de regras e normas da norma-padrão em situações de fala e escrita nas
quais ela deve ser usada'' (BNCC, 2017, p.160).

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem


pedras no caminho. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São


Paulo: Parábola, 2003.

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da


variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo:


Edição Loyola, 1999.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a


sociolinguística em sala de aula. São Paulo: Parábola, 2005.

BORTONI- Ricardo, Stela Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?


Sociolinguística & educação. São Paulo. Parábola Editorial. 2005.

BORTONI-RICARDO, Stela Maris,; FREITAS VAL. Sociolinguística Educacional. In:

522
ABRALIN: 40 ANOS EM CENA. João Pessoa: Editora Universitária. 2009.

BORTONI- RICARDO, Stela Maris. Contribuições da sociolinguística


educacional para o processo ensino e aprendizagem da linguagem. 1999.
Disponível em:<https://mail-attachment.googleusercontent.com/> .Acesso
em: 09-09-2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação


é a base. Brasília: MEC, 2017.

COELHO, Izete Maria et al. COELHO, Izete Lehmkuhl [et al]. Sociolinguística.
Florianópolis:LLV/CCE/UFSC, 2010. Disponível em:
<http://ppglin.posgrad.ufsc.br/files/2013/04/Sociolingu%C3%ADstica_UFSC.p
df>. Acesso em: 26 mai. 2021.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São
Paulo: Parábola, 2008.

GÖRSKI, Edair Maria; COELHO, Izete Lehmkuhl. Variação linguística e ensino


de gramática. In: Work. pap. linguíst., 10 (1): 73-91, Florianópolis, jan. jun., 2009.
Disponível em:
https://mail.google.com/mail/u/3/?ogbl#inbox/FMfcgxwLttGdFzZjxkPWTZKXv
KflZVrN?projector=1&messagePartId=0.8 Acesso em: 15 de maio de 2021.

LABOV, Willian. Padrões Sociolinguísticos. Trad.: Marcos Bagno; Marta Scherre


e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.

PINTO, Vera Maria Ramos. Por uma educação sociolinguística consciente nos
cursos de Letras. 2018. 247f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) –
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2018.

523
Sites consultados:

https://www.propagandashistoricas.com.br/;https://www.propagandasemr
evistas.com.br.desafiodocodigo.com.br/.

524
A LITERATURA ORAL DAS LOAS DO MARACATU RURAL COMO
ESTRATÉGIA PARA A AMPLIAÇÃO DO LETRAMENTO LITERÁRIO DE
ESTUDANTES DA 4ª FASE DA EJA.

Joseane do Nascimento Rocha 71


Josivaldo Custódio da Silva. 72

RESUMO: A pesquisa aqui apresentada partiu do princípio de valorização da identidade


cultural da Zona da Mata Canavieira, das produções do maracatu rural e das loas que
fazem parte do cenário cultural, artístico e social da população desse território para, a partir
da experiência leitora, através das abordagens da Estética da Recepção do Método
Recepcional e do Letramento Literário desenvolvermos uma proposta de introdução ao
letramento literário para estudantes da EJA – Ensino de Jovens e Adultos do Ensino
Fundamental. Os estudantes participantes desta pesquisa são do município de Lagoa do
Carro, matriculados na escola Dagoberto Lobo, no ano 2019 e cursaram a IV Fase da EJA.
Esta pesquisa caracteriza-se como quali-quantitativa. Sendo qualitativa, com abordagem
interpretativa, e também quantitativa. A proposta aqui apresentada dialoga com o
Letramento Literário e o Método Recepcional e associa-se a diversas contextualizações, de
acordo com as condições de leitura, dos leitores e das possibilidades levantadas pela
pesquisadora. As dificuldades de interpretação foram sendo superadas a partir das
contextualizações que avançaram gradativamente. Os resultados das oficinas nos
proporcionaram uma análise quali-quanti das frequências de cada índice de
contextualizações e teses identificadas, como é possível observar nos gráficos desenvolvidos
através do questionário, dos textos analisados e das produções escritas. Identificamos
avanços comparados desde o início dos trabalhos até sua conclusão, assim como do
produto final, das apresentações dos TCEF’s – Trabalhos de Conclusão do Ensino
Fundamental – cuja temática se desenvolveu acerca da pesquisa e do maracatu rural, do
desenvolvimento perceptível pelos próprios participantes.
Palavras-chave: Letramento Literário, Estética da Recepção, Método Recepcional.

71 Mestrado em Letras pelo PROFLETRAS – UPE – Campos Nazaré da Mata - PE,


joseanerocha3112@gmail.com
72 Professor orientador: Doutorado em Letras (Literatura e Cultura) pela Universidade Federal
da Paraíba – PB e Pós-Doutorado: Universidade Federal de Pernambuco, UFPE – PE,
josivaldo.silva@upe.br.

525
INTRODUÇÃO

A oferta da modalidade EJA – Educação de Jovens e Adultos – é


destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade dos estudos no
Ensino Fundamental e Médio na idade própria e agora lhes será garantido,
de acordo com a LDB 9.394/96 e com a Instrução Normativa/PE 02/2004,
15/2008 e 02/2011, o acesso à escola com uma linguagem específica para
esse público.

As loas de maracatu fazem parte do universo lúdico, carnavalesco,


artístico, cultural e social da comunidade do município de Lagoa do Carro,
Zona da Mata Norte de Pernambuco – lócus de aplicação do projeto.

Propusemos um mergulho nos versos das loas do maracatu rural, para


os estudantes, aqui denominados participantes, mergulhassem no universo
imaginário dos mestres do maracatu rural, utilizando textos oriundos das
sambadas e apresentações do folguedo, dando início ao letramento
literário a partir dos versos do imaginário popular das sambadas de
maracatu, das loas do repente.

As sambadas são uma prática conhecida na região da Mata Norte


pernambucana, uma expressão da cultura popular, conhecida intimamente
não somente no carnaval. Desta forma, compreendemos que esse gênero
já faz parte do universo sonoro e poético dos estudantes.

Diante disso, a pesquisa teve como objetivo geral analisar a leitura e


interpretação de textos literários de alunos da IV Fase da modalidade EJA, a
partir da literatura popular e das loas do maracatu rural como forma de
inserção no universo leitor e sua expansão. Consideramos como objetivos
específicos apresentar aos estudantes o gênero loa como experiência
estética e literária; analisar contextualizações e possíveis teses da Estética da

526
Recepção nas produções escritas dos alunos; realizar a leitura oral e
interpretativa de textos literários na sala de aula; avaliar a compreensão e a
interpretação do texto literário, desenvolvidas pelo aluno.

1 METODOLOGIA

Considerando o Método Recepcional e as sequências didáticas do


letramento literário, optamos por fundir os dois métodos, criando nosso
próprio formato metodológico e prático, visando a uma melhor possibilidade
de atendimento e interpretação do texto literário por parte dos alunos. Para
cada oficina realizada, seguimos os passos do Método Recepcional
introduzindo a sequência básica do Letramento Literário, seguida de
algumas contextualizações da sequência expandida, conforme
apresentadas por Cosson, (2011).

A metodologia utilizada nessa pesquisa é de caráter quali-quantitativa,


segundo Günther, Elali e Pinheiro (2008), sendo qualitativa, de acordo com
Bortoni-Ricardo (2008), através do Método Recepcional proposto por Aguiar
e Bordini (1988) interligado com a sequência básica e algumas
contextualizações do Letramento Literário, de Cosson (2011), com
abordagem interpretativa, segundo Vergara (2009), Flick (2009), Lüdke e
André (1986) e também quantitativa, conforme Polit, Bercker e Hungler,
(apud GERHARDT e SILVEIRA, 2009).

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Compreendamos o texto poético/literário segundo Frantz que “[…]


pode ser identificado a partir da plurissignificação, do caráter conotativo da

527
sua linguagem. Na literatura define-se, portanto, a partir da utilização
especial que se faz da linguagem” (2011. p. 35). Essa observação nos faz crer
que o texto literário trata a linguagem de uma forma especial e conota uma
qualificação no trato linguístico. A literatura tem sua importância na
formação humanizadora do homem (CANDIDO, 2011). Através da leitura
desses textos, é possível incorporar novos olhares, compreender novas
culturas e adquirir novos saberes.

As diferentes possibilidades de perspectivas e alternativas reais ou não,


proporcionadas pela linguagem literária, não dependem apenas do caráter
polissêmico da linguagem, mas sobretudo do horizonte cultural do leitor (grifo
nosso) e do contexto histórico-social em que tais leituras são absorvidas. A
obra torna-se um “objeto social [...] É, portanto, no processo de interação
que constitui (constituem) o(s) sentido(s) do texto, sendo, por isso,
fundamental a participação do leitor.” (FRANTZ, 2011, p. 37).

O gênero poema tem como características a versificação, a


organização dos versos em estrofes, a possibilidade de rimas, a estética das
diferentes possibilidades de formas e ritmos. O poema lapida a palavra com
musicalidade, fazendo uso de recursos como a polissemia, o jogo de
palavras e infinitas possibilidades de interpretações. Esse gênero nos
possibilita reflexões sobre o cotidiano e nos torna mais sensíveis às realidades,
ampliando a percepção linguística e enriquecendo o vocabulário, as ideias
e os pensamentos diversos.

O caráter libertador da arte literária ocorre porque, segundo Zilberman


(1989, p. 54), “A natureza eminentemente liberadora da arte, fundindo os
papéis transgressor e comunicativo, explicita-se pela experiência estética,
composta por três atividades simultâneas e complementares – a poíesis, a
aisthesis e a katharsis”. A poíesis corresponde ao primeiro plano e

528
“corresponde ao prazer de se sentir co-autor da obra” (ZILBERMAN, 1989, p.
55).

Relacionado mais a própria experiência estética, o segundo plano, a


aisthesis, diz “respeito ao efeito, provocado pela obra de arte, de renovação
da percepção do mundo circundante” (ZILBERMAN, 1989, p. 55). Já a
katharsis, Jauss a define como “a concretização de um processo de
identificação que leva o expectador a assumir novas normas de
comportamento social, numa retomada de ideias expostas anteriormente”,
conforme comenta Zilberman (1989, p. 57), ou seja, “o espectador não
apenas sente prazer, mas também é motivado à ação” (ZILBERMAN, 1989, p.
57).

Jauss (1994), além da discussão sobre a experiência estética, também


deseja implantar cientificamente o método da hermenêutica literária, indo
além das hermenêuticas regionais, de teor teológico ou jurídico, com
interpretação de textos históricos do passado, conforme comentam
Zilberman (1989) e Figurelli (1988), respectivamente.

Segundo, Jauss, “[...] só a Estética da Recepção pode levar o


espectador a abandonar a atitude de contemplação passiva e, graças a
uma reformulação da poiesis, a participar ativamente da experiência de
criação da obra de Arte” (FIGURELLI, 1988, p. 269-270). O deleite, a fruição e
a experiência são defendidos por Jauss como momento da experiência do
primeiro estágio da percepção estética.

Jauss, por sua vez, apresentou propostas de intervenção ao estudo da


Literatura através das chamadas sete teses (JAUSS, 1994), nas quais,
contextualiza e analisa diferentes abordagens para o estudo literário.

529
1ª tese: a historicidade da Literatura não se dá pela cronologia das
obras, mas pelo diálogo dinâmico com a obra literária por parte de seus
leitores;

2ª tese: a experiência literária do leitor pressupõe um “saber prévio” –


apontando para suas expectativas de interesses;

3ª tese: diz respeito à distância estética – o afastamento ou não-


coincidência entre o horizonte de expectativas do leitor e o horizonte de
expectativas suscitado por uma obra.

4ª tese: os sentidos de um texto são construídos ao longo da história. O


tempo histórico do leitor influencia na construção desses sentidos no texto.

5ª tese: O lugar de uma obra na série literária não pode ser


determinado apenas em razão de sua recepção inicial, precisa ser analisada
também numa perspectiva diacrônica.

6ª tese: a história literária deve considerar não apenas as sucessivas


recepções da obra (aspecto diacrônico) ao longo do tempo, mas também
em relação à recepção no momento de sua produção (aspecto sincrônico)

7ª tese: observa os aspectos diacrônico e sincrônico e abarca a


experiência cotidiana do leitor, “o relacionamento da literatura e a vida
prática”

O papel do leitor é fundamental para a própria definição de objeto


estético e, nessa perspectiva, a teoria da recepção tem seu desdobramento
a partir dos estudos do polonês Ingarden, na década de 30, e do tcheco
Felix Vodicka, na década de 40. A soma desses estudos deu formato ao
chamado Método Recepcional a partir das transformações possíveis do
trabalho artístico do criador em objeto estético do leitor (AGUIAR e BORDINI,
1988 p. 81-82).

530
Segundo Zilberman (apud AGUIAR e BORDINI, 1988 p. 83), o autor e o
leitor interpretam a obra a partir dos seguintes aspectos: intelectual,
ideológico, linguístico e literário. Além dos aspectos afetivos que funcionarão
como determinantes para a aceitação ou não dos demais aspectos.

O Método Recepcional obedece as seguintes etapas:

1) Determinação do horizonte de expetativas.


2) Atendimento do horizonte de expectativas.
3) Ruptura do horizonte de expectativas.
4) Questionamento do horizonte de expectativas.
5) Ampliação do horizonte de expectativas.

Sobre o letramento literário, compreendamos a partir das concepções


de letramento, a leitura do texto literário. Cosson (2011) desenvolveu uma
metodologia a qual denominou sequência básica, constituída por quatro
passos: motivação, introdução, leitura e interpretação.

A sequência básica literária consiste numa proposta metodológica


para o desenvolvimento da prática de leitura do texto literário na escola.
Essa proposta visa uma perspectiva de letramento a partir da literatura. As
estratégias de motivação e introdução deverão valorizar o texto literário a
ser estudado, dando-lhe a importância necessária para manter os leitores
interessados e motivados à leitura.

A leitura e interpretação do texto vislumbra o “ápice” do texto na


experiência do letramento literário. Como metodologia, a sequência básica
apresenta uma proposta de acessibilidade que disponibiliza o texto para não
apenas uma apreciação de leitura, mas, sobretudo de interpretação
significativa.

A sequência básica literária apresentada por Cosson (2011, p. 51)


aponta para a importância do trabalho sistemático para a construção

531
objetiva de uma metodologia consistente para o ensino de literatura. Fazia-
se necessário acrescentar algo aos estudos já realizados e à aplicação da
metodologia já apresentada, o que chamou de sequência expandida.
Através desta, o autor acrescenta outras duas aprendizagens da literatura
dentro dos passos iniciados na sequência básica. “A sequência expandida
vem deixar mais evidente as articulações que propomos entre experiência,
saber e educação literários inscritos no horizonte desse letramento na escola”.
(COSSON, 2011, p. 76).

A sequência expandida permite outros níveis de interpretações,


dividida em duas etapas que se subdividem. Na primeira interpretação, o
leitor será conduzido à diferentes formas de contextualização, tais como:
contextualização teórica, contextualização histórica, contextualização
estilística, contextualização poética, contextualização crítica,
contextualização presentificadora e contextualização temática. Na
segunda forma de interpretação, há um aprofundamento de uma ou
algumas das contextualizações anteriores. É um mergulho mais profundo no
traço escolhido e/ou conduzido pelo professor e/ou pelo leitor.

O maracatu rural surge no canavial da Zona da Mata Norte de


Pernambuco e passa a ser a festa do caboclo de lança. Essa região é palco
do nascimento e da tradição desse folguedo e traz, até hoje, essa tradição
que vem passando seus mistérios de geração em geração, com a
manutenção dos elementos religiosos, dos sagrados e da tradição oral. Esta
última, do nosso interesse, tornar-se-á objeto de estudo e instrumento de
ação para o trabalho pedagógico.

Sobre a poética da literatura oral e da cultura popular, Zumthor vem


desvendar os mistérios da poética oral: “O simbolismo primordial integrado
ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da linguagem,
e é aí que se enraíza toda poesia” (2010, p. 08). Para o autor, a distinção de

532
voz e linguagem implicam em um distanciamento conceitual que
proporciona a discussão e o estudo distintos.

Todo ato de fala é proferido por quem detém o direito de se colocar


oralmente e estabelece um ato de autoridade, único. Esse ato nomeia o
próprio ato feito, dizendo-o. As análises dos atos de fala passam a ser objetos
de estudo da estética da recepção.

Compreendendo sambadas e loas: O espetáculo tem como palco,


além das apresentações carnavalescas, o que somente ocorre anualmente,
os terreiros das periferias, dos sítios e comunidades rurais, quando as festas,
chamadas sambadas, ocorrem. Estas têm diversos motivos: ensaiar,
confraternizar, celebrar, cultuar, manter a tradição viva que, normalmente,
é familiar.

[...] ‘sambadas’ – onde dois mestres encaram o desafio do improviso.


Esses podem ser ‘curtos’ (samba de 6 ou 4) ou ‘longos/compridos’
(samba de 10), mas tal diferença surge apenas no horizonte da
poesia expressa nas loas/toadas, uma vez que o ritmo, permanece o
mesmo [...] E, por fim, temos o galope, considerado pelos brincantes
um momento de ‘despedida’, pois se sabe que, após a execução
do mesmo, surgirá uma ‘marcha de despedida’ normalmente
agradecendo a participação dos envolvidos. (BRASIL, 2013, p.115-
116, grifos do autor).

Os duelos de outrora são representados hoje pelas toadas dos mestres


do maracatu, pois estes são os grandes líderes de suas nações. É o mestre
quem define as características rítmicas de cada grupo. Ele é considerado o
poeta, pois é ele quem precisa criar e declamar as poesias tiradas de
repente e proferidas num espetáculo chamado sambada.

533
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para melhor preparar a receptividade dos textos, iniciamos as etapas


definindo o horizonte de expectativas e destacamos, abaixo, alguns pontos
do questionário analisado:

1. Você gosta de ler? Justifique sua resposta:

Gráfico 01

Gostam

Não gostam
20%
40% Mais ou menos
10%

10% Para ensinar aos filhos


20%
Ajuda a entender as
coisas

Observamos, no gráfico 01, que a maioria dos estudantes informou ter


gosto pela leitura, sem muita justificativa, dentre as quais, a necessidade do
uso instrumental da leitura para auxiliar aos filhos. São respostas frágeis e
podem estar associadas à intenção de não desapontar ao professor.
Observem as respostas livres quanto aos motivos que os fizeram responder
a questão anterior, externando de diferentes formas.

534
2. Quais tipos de textos você gosta de ler?

Gráfico 04

Romance

Poesia e romance
10% 10%
10% Todos
20%
10% Bíblia

Contos e aventuras
10%
30% Dramáticos

Mensagens

Dadas as respostas, no gráfico 04, podemos observar que o pronome


indefinido todos disfarça a falta de objetividade, ou mesmo, clareza para
definir os gêneros preferidos. Apesar da nomenclatura “tipos” textuais ter
sido utilizada, considerando que o uso desta, sobressai-se ao termo gênero
e percebermos a indefinição conceitual, optamos por utilizar
preferencialmente, este.

3. Já leu algum livro de poemas, crônicas, contos, romance ou texto


dramático?

Gráfico 10

30% Sim
Não

70%

535
Observemos que no gráfico 10, 30% dos estudantes declararam nunca
terem lido um livro e 70% já fizeram algumas leituras.

Gráfico 11

20% Romances

50% 10% Poemas

Vários
20%
Não gostam

No gráfico 11, 50% dos estudantes declararam não terem lido nenhum
livro. E 50% declararam já terem lido, sendo 20% leitores de romances, 10%
de poemas e 20%, vários. Um cenário de metade que declararam não gostar
de ler.

4. Já ouviu falar em poesia popular? Justifique sua resposta.

Gráfico 12

25% 25% Sim Não

25% 25%

536
Gráfico 13

Não se interessa

10%
10% Não entende

60% 20% Não lembram

Não informaram

De acordo com o gráfico 12, a metade dos informantes já ouviu a


terminologia, porém não apresentou interesse perceptível, naquele
momento.

No gráfico 13, 60% não informaram os motivos pelos quais,


aparentemente, não têm interesse. A cultura popular parece algo
desinteressante para esses participantes que, apesar de conviverem em
regiões de tantas atividades culturais, parece manterem-se alheios às
manifestações dos folguedos da região.

5. Você gosta de maracatu rural? Justifique sua resposta.

Gráfico 15

7%
31% Sim Não
31%

31%

537
Gráfico 16

Evento agradável
10%
30% Por causa da religião
20%

Chato
40%
Não informaram

As informações apresentadas nos gráficos acima nos surpreenderam,


pois o fato de a maioria desses estudantes não gostarem do folguedo, pôs
em cheque toda a motivação para a iniciativa desta pesquisa.

No gráfico 15, o fato de 80% dos estudantes informarem não gostar


do maracatu rural, preocupou-nos bastante, e o desdobramento dessa
resposta no gráfico 16, apresenta as respostas espontâneas dos mesmos,
onde apenas 10% diz ser agradável. Quanto aos outros 10% que afirmaram
gostar no gráfico anterior, ficaram entre os 30% que não informaram a
motivação. Sendo 80% os que informaram não gostar do folguedo por
motivos como: religião, achar a brincadeira chata ou mesmo não
informarem. Essas justificativas não foram conclusivas e nos lançaram uma
incógnita quanto às motivações, apontando-nos para resistências quanto
à abordagem do contexto cultural deste trabalho.

A partir das respostas observadas nesse questionário, 04 oficinas foram


aplicadas, seguindo a metodologia da sequência literária (segundo Cosson,
(2011) e o Método Recepcional (AGUIAR e BORDINI, 1988).

A partir dos resultados obtidos das respostas do questionário aplicado,


observamos que os estudantes informaram uma preocupante relação com
a literatura e com a cultura popular. Ao mesmo passo em que a relação

538
com os textos literários são claramente restritos aos espaços escolares, em
sua maioria, a cultura do maracatu rural, mesmo sendo nativa da região em
que a pesquisa foi aplicada, é desconhecida e, até mesmo, depreciada
por parte dos estudantes, por motivos religiosos, demonstrando o
preconceito e a falta de informação.

A linguagem “matuta” ou coloquial regionalizada, utilizada pelo


autor, aproxima e captura a atenção dos estudantes. A escolha do texto foi
feliz e atendeu às expectativas de interação e participação de toda a turma
que o leu, discutiu e produziu breves textos escritos sobre suas lembranças
despertadas com o texto Paisagem de Interior.

Portanto, o atendimento ao horizonte de expectativas se deu na


forma de um poema narrativo para melhor receptividade.

Oficina I: Atendimento ao horizonte de expectativas: (2 aulas de


40min): Atendimento/receptividade – A Poesia Matuta de Jessier Quirino.
Texto 01: Paisagem de Interior(texto anexo).

A partir das produções escritas, observamos a contextualização


presentificadora e a contextualização temática das paisagens do interior,
inerentes às paisagens das recordações da maioria dos estudantes
informantes nessa pesquisa, a partir das experiências vividas e
compartilhadas em sua infância.

Oficina II: Ruptura do Horizonte de Expectativas: (2 aulas de 40min):


Nesse momento, apresentamos o gênero loa a partir do samba curto. Texto
02: O maracatu (Poema anexo).

A segunda oficina propôs a Ruptura do Horizonte de Expectativas. A


análise das produções escritas, realizadas a partir da loa: O Maracatu, do
Mestre João Paulo (Texto anexo).

539
Uma linguagem simples, de pouca complexidade e muita
expressividade sobre a cultura representada e a linguagem literária.
Observamos os textos produzidos pelos participantes e analisamos o quanto
conseguiram atingir a interpretação, através das contextualizações e de
algumas teses de Jauss (1994).

A experiência estética perpassa pela apropriação do objeto estético.


Fez-se necessário que os estudantes conhecessem os modos de produção
das loas, do maracatu e das sambadas para mergulharem no universo lúdico
e estético das produções artístico-literárias das loas do maracatu rural.

Percebemos que, apesar de grandes dificuldades de expressão verbal,


a capacidade de inferência e das contextualizações aqui identificadas,
apresentam uma ruptura na recepção estética do texto, na adesão à
discussão temática que, inicialmente, apresentou grande dificuldade, e
assim, um rompimento no horizonte de expectativas tanto do gênero, quanto
da percepção estética e temática.

Oficina III: Questionamento do Horizonte de Expectativas (02 aulas de


40 min). Com esta atividade, a proposta era ultrapassar as expectativas
anteriores e tratar da leitura de um texto literário, que provocasse
questionamentos e discussões com relação aos textos anteriores. Texto 03:
Morte do sambador – samba em 10 – formato de Décima (dez versos de 07
sílabas poéticas) – Siba e Barachinha – (CD – Siba e Barachinha no baque
solto somente, 2003) (poema anexo).

O poema apresentado aqui tem um nível maior de complexidade.


Primeiro, por representar um dueto onde os poetas interagem e disputam em
um duelo chamado sambada do maracatu rural. Segundo, pela
preocupação dos poetas em sobressair-se com alegorias e figuras de
linguagens que permitam aos ouvintes escolher um, em detrimento do outro,

540
pela forma de uso das palavras e pelo estranhamento que cada colocação
pode apresentar e, ao mesmo tempo, expressar uma ideia em favor do
mestre (poeta) ou da nação representada por ele. Em terceiro lugar, os
versos de ambos valorizam a figura do poeta ao descrever como seriam suas
mortes, suas ausências e o legado deixado por eles.

A possibilidade de interpretações e contextualizações a partir desse


poema extrapola o texto, portanto, atinge o extratexto. A familiaridade com
a linguagem oral e com a temática da morte nos proporcionou um grande
leque de possibilidades de discussão e questionamentos, afinal, o texto foi
escolhido para proporcionar a ruptura e o questionamento sobre a
linguagem, sobre a cultura e a religiosidade, já que a temática aborda um
aspecto pragmático das experiências religiosas que é a morte. Outro ponto
conflitante, por se tratar de experiência religiosa.
A fé é um tema delicado e solene, contudo, é tratado no texto de
forma carnavalizada. Para alguns, essa familiaridade e naturalidade de
tratar o tema “morte” foi algo tranquilo e até satírico. Para outros, heresia
pura. De forma que essa leitura foi regada à religiosidade e moralismo. Ainda
assim, foi possível atender às expectativas da proposta da oficina de
Questionamento do horizonte de expectativas, perceptível no discurso oral.
Também observamos incidências interpretativas através da 2ª e 7ª
teses de Jauss (1994), presentes nos textos dos participantes que, por vezes,
dialogam com as contextualizações, segundo Cosson (2011). Infelizmente,
não identificamos um nível de compreensão muito profundo sobre o texto e
limitaram-se a respostas objetivas e simplificas sobre os questionamentos. No
discurso oral, houve mais inferências e discussões, no entanto, o registro
escrito foi mais limitado. Os que de fato mergulharam e interagiram,
conseguiram desenvolver uma percepção e questionamentos que
romperam com seus conceitos, com suas visões e, no mínimo, com suas

541
posturas sobre o respeito às diferenças de pensamento e de conduta
sociocultural.
Oficina IV: Ampliação do Horizonte de Expectativas: (2 aulas de 40min):
nessa oficina, a proposta foi trazer aos participantes a oportunidade de
conhecer um dos clássicos da literatura brasileira e ampliar os horizontes na
linguagem, na poética, temática e interpretações utilizando as teses de Jauss.
Texto 04: Motivo, de Cecília Meireles (Poema anexo).

Na quarta oficina, propusemos a ampliação do Horizonte de


Expectativas. A análise das produções escritas realizadas a partir do poema
Motivo, de Cecília Meireles (Poema anexo).

Nesse ponto da pesquisa, observamos os textos escritos pelos


participantes após a leitura e discussão sobre o texto “Motivo”, de Cecília
Meireles e suas produções a partir de uma tentativa de escrita poética,
versificada, sem preocupações com rimas, porém uma observância pela
estilística e poética.

O poema representa uma reflexão sobre o fazer poético e a


importância de ser poeta e o papel social do poeta e sua contribuição para
o mundo e os estudantes escreveram, após a leitura do texto sobre: “ o que
é ser poeta”. Apesar de sua complexidade, o poema traz consigo uma
linguagem simples sobre o que é ser poeta, sobre os sentimentos, as formas
de lidar com os problemas da vida e da morte.

O nível de complexidade pretendia atingir seu objetivo de


rompimento com o horizonte de expectativas, de compreensão e
interpretação sobre a contextualização temática, a contextualização
presentificadora, contextualização poética e estilística assim como, da
observação das teses de Jauss (1994), segundo a Estética da Recepção,
também considerada neste trabalho.

542
A contextualização temática, possivelmente a mais elementar,
evidencia-se em primeiro plano e possibilita a reflexão sobre as relações de
presentificação, observadas na maioria dos textos produzidos pelos
estudantes. Quanto à linguagem poética, pretendíamos que os
participantes percebessem a diferença linguística e de estilo literário. Estas
últimas, também evidenciam-se pela linguagem, pela abordagem e pela
formalidade. A leitura do texto explicitou o distanciamento estilístico entre
os poemas anteriores e do uso da norma padrão e provocaram ensaios da
escrita do texto lírico.

O uso da língua-padrão é evidente e do estilo mais suave e delicado,


embora claro e sucinto. A subjetividade sobre a temática não seria
suficiente para impedir sua compreensão, e os estudantes já estariam aptos
para atender às expectativas de rompimento com a linguagem coloquial
e regional na leitura do texto literário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância do uso adequado de uma metodologia que seja


eficiente e permita o atendimento dos horizontes de expectativas e que
tenha o potencial de expansão dos horizontes do leitor, proporcionando o
crescimento intelectual, cultural e social dos sujeitos envolvidos é uma
relevante contribuição para o letramento literário dos estudantes.

O texto literário suscita o exercício hermenêutico de interpretação dos


significados de um texto enigmático. A obra de ficção apresenta-se como
um modelo de leitura por excelência. Por isso, a necessidade de estratégias
metodológicas para a experiência com o texto literário na escola. Jauss
(1994), já nos apresentou a estética da recepção como possibilidade de

543
introdução ao estudo de literatura, e as autoras Aguiar e Bordini (1988),
sistematizam essa teoria através do Método Recepcional, que visa à reflexão
do leitor sobre sua própria leitura como elemento atuante no processo.
Objetivando a atitude participativa do aluno/leitor sobre sua própria práxis,
faz-se necessária uma reflexão sobre suas práticas leitoras para que o
estudante perceba e reflita sobre seu próprio comportamento e horizonte.

O processo de recepção do texto é anterior à própria leitura. O


horizonte do leitor é o seu próprio limite que pode ser transformado
constantemente, expandindo-se. Esse limite está em tudo que povoa sua
própria vivência, experiência sociocultural, histórica, filosófica, religiosa,
estética, ideológica, jurídica que lhe norteia, dando-lhe orientações sobre
seus modos de pensar e agir. Através destas referências, o leitor lança o seu
olhar sobre o texto e tenta enquadrá-lo nesse seu horizonte.

Os estudantes envolvidos apresentaram visíveis evoluções nas


produções escritas e nas discussões sobre seus horizontes de expectativas e
seus respectivos rompimentos, tanto do ponto de vista literário quanto
cultural.

REFERÊNCIAS

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do leitor: Alternativas Metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: introdução à


pesquisa qualitativa. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

BRASIL. Maracatu Baque Solto. Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Brasília.


Ministério da Cultura. 2013.

544
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Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: Teoria e Prática. São Paulo: Contexto,


2011.

FIGURELLI, Roberto. Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção. Revista


Letras. Curitiba, vol. 37, UFPR, p. 265-285, 1988.

FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução Joice Elias Costa. 3.


ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.

FRANTZ, Maria Helena Zancan. A Literatura nas séries iniciais. Petrópolis, RJ:
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em estudos pessoa-ambiente: características, definições e implicações. In J.
d. Q. Pinheiro & H. Günther (Eds.), Métodos de pesquisa nos estudos pessoa-
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JAUSS, Hans Robert.A história da literatura como provocação à teoria literária.


Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LÜDKE, Menga ; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens


qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

VERGARA, Sylvia Constant. Métodos de coleta de dados no campo. São


Paulo: Atlas, 2009.

ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo:


Ática, 1989.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira,


Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

545
LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS: UMA ANÁLISE
A PARTIR DO GÊNERO TEXTUAL RESENHA

Sarah Ribeiro73

Romário Duarte Sanches74

RESUMO: O processo de leitura, interpretação e produção de textos de cunho científico tem


sido um grande desafio para alunos que acabam de entrar na universidade. É nesse
momento que a maioria entra em contato pela primeira vez com leituras mais densas e que,
até então, não faziam parte da vivência desses alunos. Em razão disso, este trabalho tem
como finalidade promover uma reflexão sobre os processos de letramentos acadêmicos.
Para isso, levamos em consideração questões relacionadas ao modo de leitura,
interpretação e produção de textos científicos/acadêmicos produzidos por alunos do
projeto de extensão “Letramentos Acadêmicos”, da Universidade do Estado do Amapá –
UEAP, no ano de 2020. Como suporte teórico, utilizamos as discussões de Solé (1998), Silva
(1999), Grossi (2008), Linard e Lima (2008), Rojo (2012) etc. A metodologia da pesquisa é de
abordagem qualitativa, visando interpretar os dados coletados e qualificá-los. Neste caso,
analisamos o gênero acadêmico resenha crítica. Os resultados obtidos apontam três
recorrentes dificuldades no processo de leitura, interpretação e produção textual
acadêmica dos alunos investigados, a saber: (i) os textos produzidos apresentaram
argumentos superficiais ao abordar o assunto solicitado, (ii) a descrição dos temas presentes
na leitura do texto-base foi feita de forma mecanizada e (iii) não houve senso crítico na
produção do gênero resenha crítica.

Palavras-chave: Letramentos, Gêneros textuais, Leitura, Resenha crítica.

73Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras/Espanhol da Universidade do Estado do


Amapá - UEAP. Bolsista Voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UEAP
- PIBEX. E-mail: sarahhh.rbeiro@gmail.com.
74Professor do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá - UEAP. Doutor e mestre

em Linguística pela Universidade Federal do Pará - UFPA. E-mail:


romario.sanches@ueap.edu.br

546
INTRODUÇÃO

O processo de leitura é altamente complexo, haja vista que o ato de ler não
se restringe apenas a decodificação de signos linguísticos, muito pelo contrário, ler
requer percepção, entendimento e significação daquilo que está sendo lido.
Segundo Cabral (1986), a leitura é composta por quatro etapas: decodificação,
compreensão, interpretação e retenção. A partir dessa visão, pode-se afirmar que,
o processo de leitura só será efetivo se passar por todas essas etapas. Diante disso,
surge a seguinte problemática: como está sendo o processo de leitura e
interpretação na educação brasileira?

Atualmente, a prática de leitura está ligada ao estereótipo de que só são


considerados leitores aquelas pessoas que leem livros literários, pessoas que
possuem alguma formação na área da leitura e literatura ou até mesmo pessoas
cultas, deixando de lado os diversos tipos de leitores existentes. Esse pensamento
deve-se muito ao fator cultural e histórico repassado de geração a geração por
uma classe intelectualizada, a qual se limitava a ler apenas os grandes clássicos
literários e periódicos da época. Contudo, praticar leitura não se restringe apenas
aos textos escritos e literários, mas também abrange os inúmeros tipos de leituras
existentes na língua portuguesa, as quais partem de uma simples leitura de uma
placa de trânsito e chegam aos textos mais complexos, como por exemplo, os
textos de gêneros acadêmicos e científicos.

Conforme pesquisa realizada pelo PISA (2010)75, os dados apontam variados


problemas no que tange a habilidade e o desempenho em leitura de muitos
estudantes, principalmente universitários. O principal problema tem sido a falta de
interpretação e construção de sentido diante de textos mais complexos, fazendo
com que os estudantes apenas memorizem o conteúdo, sem que haja uma
compreensão mais aprofundada e uma construção do senso crítico do aluno. Esse
problema pode ter diversas origens, indo desde a falta de incentivo à leitura da

75Programa Internacional de Avaliação dos Alunos (PISA).

547
família, até ao mal uso ou a falta de metodologias nas escolas que busquem ensinar
o aluno a fazer leitura de modo que ele possa reconhecer as particularidades
empregadas e assim realizar uma boa interpretação do que ler.

Diante do exposto a respeito do processo de leitura e interpretação textual,


surgiu a necessidade de observar o uso dos gêneros textuais acadêmicos no âmbito
universitário, visto que muitos alunos ingressam nas universidades apresentando
dificuldades em relação à leitura crítica e a produção de sentido dessas leituras.

Em virtude dos problemas citados anteriormente, este artigo objetiva


compreender o processo de leitura e interpretação textual de gêneros acadêmicos
por meio de produções de alunos do projeto de extensão “Letramentos
acadêmicos”, promovido pela Pró-Reitoria de Extensão (PROEXT) da Universidade
do Estado do Amapá - UEAP. Desta forma, o presente artigo está organizado da
seguinte maneira: (i) introdução, (ii) referencial teórico, (iii) materiais e métodos, (iv)
resultados e discussão, (v) considerações finais e (vi) referências.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

Como referencial teórico têm-se os estudos de Solé (1998), Silva (1999),


Severino (2002), Grossi (2008), Linard e Lima (2008) e Rojo (2012) os quais
trazem contribuições relevantes com diferentes pontos de vista voltados para
uma melhor discussão acerca da prática de leitura e de interpretação de
textos.

Sobre as concepções de leitura, Silva (1999) identifica duas vertentes,


uma concepção redutora que compreende a leitura nos seguintes aspectos:

- Ler é traduzir a escrita em fala;

- Ler é decodificar mensagens;

- Ler é dar respostas a sinais gráficos;

548
- Ler é extrair a ideia central;

- Ler é seguir os passos da lição do livro didático;

- Ler é apreciar os clássicos.

Numa perspectiva interacionista de leitura, tendo em vista os


problemas gerados pela concepção reducionista apresentada acima, a
segunda vertente, busca elementos que permitam perceber a
complexidade do ato de ler. Deste modo, a leitura é entendida como
prática social de interação e deve compreender os seguintes aspectos:

- Ler é interagir;

- Ler é produzir sentidos;

- Ler é compreender e interpretar.

Com isso, a leitura não significa mais ler somente um texto escrito em papel,
em uma direção pré-determinada, ou seja, de cima para baixo e da esquerda para
a direita. Hoje em dia, após a intensificação do uso da Internet, essa concepção de
leitura precisou ser reformulada. No ambiente digital, como afirma Rojo (2012), a
comunicação passa a ser multimodal, ou seja, a informação é fornecida não
apenas em forma de texto escrito, mas também através de signos multissemióticos.

O hábito de ler abre diversas portas para um indivíduo dialogar e


discutir sobre determinados temas, diante disso, se uma criança é inserida
desde pequena em um ambiente de leitura, ela poderá se tornar um sujeito
questionador e terá um bom senso crítico, sabendo se posicionar diante de
diversos assuntos, como aponta Grossi (2008, p. 3):

Pessoas que não são leitoras têm a vida restrita à comunicação oral
e dificilmente ampliam seus horizontes, por ter contato com ideias
próximas das suas, nas conversas com amigos. [...] é nos livros que
temos a chance d entrar em contato com o desconhecido,
conhecer outras épocas e outros lugares – e, com eles abrir a
cabeça. Por isso, incentivar a formação de leitores é não apenas

549
fundamental no mundo globalizado em que vivemos. É trabalhar
pela sustentabilidade do planeta, ao garantir a convivência pacífica
entre todos e o respeito à diversidade.

O incentivo à inclusão a leitura deve partir de todas as áreas do


convívio humano, as quais são: familiar, escolar, cultural e político. Baseando-
se nisso, principalmente, no incentivo político, Linard e Lima (2008, p. 9)
abordam a seguinte questão:

É fundamental que as políticas de incentivo à leitura se


descolem da mera organização de feiras ou da criação de
bibliotecas e salas de leitura. O mais urgente é investir em
material humano, com a formação de mediadores e
bibliotecários capazes de semear o prazer da leitura por todo
o país. Mediadores são os instrumentos mais eficientes para
fazer da leitura uma prática social mais difundida e
aproveitada.

Outro aspecto relevante é a interpretação de textos acadêmicos através da


leitura, meio pelo qual o aluno constrói sentidos, adquirindo conhecimentos sobre o
que foi lido. Para isso é necessário que o mesmo possua conhecimentos prévios e
alguma experiência com textos científicos.

Segundo Solé (1998), as estratégias de leitura e interpretação de textos são


as ferramentas necessárias para o desenvolvimento da leitura proficiente. Sua
utilização permite compreender e interpretar de forma autônoma os textos lidos e
pretende despertar no professor a importância em desenvolver um trabalho efetivo
no sentido da formação do leitor independente, crítico e reflexivo.

Sem essas estratégias os alunos passam por inúmeras dificuldades durante


sua formação acadêmica, como expressa Severino (2002, p. 47):

Os maiores obstáculos do estudo e da aprendizagem, em ciências e


em filosofia, estão diretamente relacionados com a correspondente
dificuldade que o estudante encontra na exata compreensão dos
textos teóricos. Habituados a abordagens de textos literários, os

550
estudantes, ao se defrontarem com textos científicos ou filosóficos,
encontram dificuldades logo julgadas insuperáveis e que reforçam
uma atitude de desânimo e de desencanto, geralmente
acompanhada de um juízo de valor depreciativo em relação ao
pensamento teórico.

A partir da abordagem de diferentes teóricos acerca do assunto, faz-


se necessário salientar que o tema tratado é muito amplo e requer um
cuidado especial. Portanto, para almejar sucesso na realização da leitura e
interpretação de textos, é necessário que haja uma base sólida, para depois
aplicar os níveis mais elevados no que diz respeito à leitura e interpretação.

Atualmente, as concepções de escrita como um processo


socialmente contextualizado e as de leitura como um processo discursivo e
interativo já estão bem consolidadas cientificamente na área da Linguística,
especialmente sobre os processos de multiletramentos. Logo, espera-se que
os cursos de graduação, sobretudo os de licenciatura, trabalhem com essas
concepções durante toda a formação dos graduandos, uma vez que eles
serão os formadores dos novos leitores e escritores.

2 METODOLOGIA DA PESQUISA

A temática abordada para a realização deste artigo é de caráter


qualitativa, já que o foco da pesquisa é mostrar a descrição, a compreensão
e a interpretação do fenômeno em questão. A pesquisa qualitativa, segundo
Marconi e Lakatos (2005), fornece análise mais detalhada sobre as
investigações, hábitos, atitudes, tendências de comportamentos etc.

Desse modo, esta pesquisa foi realizada na Universidade do Estado do


Amapá através do Projeto de Extensão “Letramentos acadêmicos”, o qual
tinha como finalidade discutir, refletir e mostrar as práticas de escrita, de

551
leitura, de interpretação de textos acadêmicos, buscando sanar as
dificuldades encontradas por graduandos em relação às práticas de
linguagem que permeiam a esfera universitária, bem como: fichamento,
resumo, resenha, artigo científico, seminário acadêmico, ensaio etc. O
Projeto foi organizado em dez oficinas, as quais foram ministradas na
modalidade on-line através das ferramentas: Google Classroom e Google
Meet. Inicialmente, as oficinas serviram para nortear os alunos sobre as
práticas de letramentos acadêmicos e traçar uma investigação sobre o perfil
desses alunos através de questionários, com o intuito de diagnosticar as
dificuldades enfrentadas por eles. Após a realização dos questionários, foram
ministradas oficinas específicas sobre gêneros textuais acadêmicos, na
ocasião os alunos passaram a produzir seus próprios textos, os quais foram
considerados aqui como objeto de estudo desta pesquisa.

Para o levantamento de dados acerca das dificuldades encontradas


pelos alunos no momento de leitura e interpretação de textos acadêmicos,
foram utilizados textos de cinco colaboradores, todos acadêmicos do
primeiro semestre do ensino superior e participantes do projeto de extensão
“Letramentos acadêmicos”, segue abaixo o Quadro 1 com as características
dos colaboradores:

Quadro 1: Perfil dos participantes do projeto


Colaboradores Idade Concluiu o Capacidade Você tem Sua família A escola Capacidade Capacidade
ensino de escrita dificuldade em estimulou estimulou de crítica e
médio em: acadêmica produzir textos você a ler você a ler compreender reflexiva em
acadêmicos? o sentido dos relação aos
textos gêneros
textuais
Colaborador 1 18 Escola pública Média Não tem Não sabe Às vezes Média Baixa
experiencia
Colaborador 2 20 Escola pública Média Sim Não sabe Às vezes Razoável Razoável
Colaborador 3 18 Escola privada Baixa Sim Sim Não Muito boa Razoável
Colaborador 4 20 Escola pública Média Sim Sim Sim Muito boa Razoável
Colaborador 5 19 Escola pública Baixa Sim Sim Sim Razoável Média

Fonte: Elaboração dos autores.

552
Para identificar os problemas relacionados à falta de leitura e
interpretação textual desses alunos, foi selecionado o gênero textual resenha
crítica, uma vez que o objetivo dessa pesquisa é compreender o processo
de leitura e interpretação na produção desses gêneros textuais. As resenhas
analisadas são produções dos colaboradores do projeto “Letramentos
acadêmicos”, as quais foram solicitadas pelo professor regente.

O texto-base para a produção dessas resenhas foi o texto


“Celebração a Santiago numa comunidade negra da Amazônia”, de
Marilucia Barros de Oliveira, que trata da festividade religiosa de Santiago na
comunidade afro-brasileira de Mazagão Velho, localizada no Estado do
Amapá. Dessa forma, os meios para dar um diagnóstico sobre as produções
dos alunos estão presentes no texto-base, em seguida foi observado se os
alunos conseguiram entender o objetivo central do texto, se eles
conseguiram filtrar as ideias principais das secundárias, se a escrita
acadêmica deles está de acordo com as regras de produção da resenha
crítica e por fim se eles conseguiram alcançar o senso crítico exigido pelo
gênero textual em análise.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com base no que foi proposto aos alunos participantes do projeto de


extensão em relação à elaboração dos textos, será apresentado a seguir
uma análise das cinco resenhas selecionadas para a verificação do
processo de leitura e interpretação textual.

O texto do colaborador 1 apresenta uma boa assimilação do


conteúdo, ele conseguiu filtrar as ideias principais e parafrasear os assuntos
abordados no texto-base, no entanto, foram encontrados alguns problemas

553
como o uso de ideias superficiais, em que o colaborador fez um apanhado
muito breve do tema e deixou de colocar dados relevantes do texto-base,
como podemos observar no trecho a seguir: “No primeiro subcapítulo
“Mazagão Velho Nos Dias de Hoje” OLIVEIRA, M. esclarece o porquê a
celebração a Santiago é tão importante para os afro-brasileiros residentes
em Mazagão”.

Foi encontrado também no texto o uso de vocabulário limitado, a qual


afeta diretamente a escrita, como podemos observar a seguir: “O artigo
aparentemente tem como objetivo trazer informações para a sociedade
que não tem conhecimento da história da festividade”. A falta de criticidade
sobre o assunto foi um problema detectado no penúltimo e último parágrafo
da resenha, a seguir podemos observar essa problemática: “creio que o
texto foi minucioso e esclarecedor”, “Portanto, para aqueles que pretendem
participar da festa recomendo que leiam este artigo”. Foi identificada
também a falta de harmonia entre as palavras no 2º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º
parágrafo, o que acabou gerando um mal entendimento do texto, como
podemos observar nos seguintes trechos: “O Artigo de OLIVEIRA M. compõe-
se 3 Laudas, divididas em...”, “No quarto subcapítulo ‘O Baile de Máscaras’
continuam a encenar”, “No quinto subcapítulo ‘Homem a São Tiago e a São
Jorge’ neste item específica...”

O texto do colaborador 2 apresenta uma boa extração das ideias


abordadas no texto-base, contudo o mesmo não apresenta análise,
comentários ou críticas acerca do tema abordado. Não houve o
desenvolvimento de argumentos e nem senso crítico a respeito do assunto.
A descrição dos tópicos do texto foi realizada de maneira mecanizada,
fugindo das normas exigidas para a produção do gênero resenha crítica, e
consequentemente, o texto passou a ser um simples resumo informativo. Os
trechos a seguir mostram essas características:

554
(...) O texto de Oliveira (2019) aborda sobre a celebração a Santiago
em uma comunidade negra da Amazônia. Contém 3 laudas e são
divididos em doze subtítulos organizadas cronologicamente (...) é
apresentado o contexto histórico da comunidade e sua população
formada por negros (..) O contexto histórico resumido nos conta a
origem de Mazagão(...) O texto nos mostra de forma organizada
cada etapa da programação e como a cada ano essa celebração
vem ganhando visibilidade por muitas pessoas (COLABORADOR 2).

O texto do colaborador 3 apresenta boa sintetização e organização


das ideias do texto-base de forma muito satisfatória, tornando-o mais leve e
mais fácil de entender, esse resultado positivo deve-se ao fato de que ao
produzir a resenha o colaborador fez uso de sinônimos, conseguindo
parafrasear os assuntos do texto-base com muita excelência e seguindo as
regras exigidas para a produção do gênero em questão. O colaborador 3,
fez uma análise sobre os temas abordados pela autora e expôs a sua crítica
sobre o texto. Os trechos a seguir deixam nítidas essas qualidades:

(...) É um artigo curto, de 3 páginas que é dividido em 13 subcapítulos


que dissertam vários pontos do festival (...). O artigo tem como
objetivo apresentar a curiosa celebração de um festival de origem
hispânica numa comunidade negra, vinda diretamente da África(...)
neste sentido, a autora consegue alcançar muitos resultados bons
com sua pesquisa neste pequeno artigo que, de forma super
dinâmica, nos apresenta a esta cultura e nos deixa ver através de
imagens as encenações(...) Artigo muito recomendado a quem
busca conhecer mais a cultura e história mazaganense, uma
comunidade negra e de predominante crença cristã
(COLABORADOR 3).

O texto do colaborador 4 apresenta as principais questões tratadas no


texto-base, e está muito bem organizado. O autor utilizou sinônimos, citações
diretas da autora e paráfrases do assunto. O colaborador 4 interpretou as
atribuições solicitadas para a produção do gênero resenha de maneira
eficaz e expôs a sua crítica de forma categórica, confirmando seus

555
argumentos através de exemplos retirados do texto-base. Nos trechos a
seguir podemos observar essas atribuições:

(...) A autora apresenta uma descrição a respeito da celebração


feita a São Tiago no município de Mazagão localizado atualmente
(...) realiza um panorama histórico que explica o motivo de existência
da festividade, sua importância para os locais e sua origem(...) o
artigo pode ser entendido por diversos públicos desde do
acadêmico até os estudantes do ensino básico. Além de ser
organizado didaticamente com imagens, tabelas explicativas e
panorama histórico o mesmo vem a ser de suma importância para a
sociedade amapaense, pois é um meio de conhecimento da história
local (COLABORADOR 4).

Já a resenha do colaborador 5 explorou as ideias do texto-base de


forma superficial, pois o mesmo fez apenas um leve apanhado do assunto,
não relatou sobre todos os tópicos presentes no texto-base e não apresentou
as principais ideias presentes no texto. A análise foi realizada de forma breve,
o qual resultou no uso de vocabulários limitados e alguns erros ortográficos, o
que acabou afetando diretamente a escrita e a estética do texto. Observou-
se também que não houve interesse por parte do aluno para expor a sua
crítica em relação ao assunto. Dessa forma, os trechos a seguir deixam
perceptivos os principais problemas encontrados no texto:

(...) A autora trás uma breve visão da comunidade nos dias atuais.
Cita Gomes (2003) onde faz uma alusão de como era o cotidiano
dos moradores da Mazagão marroquina(...) trás um apanhado do
cronograma da celebração e acontecimentos, no qual a autora
destaca o aumento de participantes na festa, principalmente no dia
25 de julho(...) Nos demais subtítulos a autora aborda os diferentes
quadros das encenações e eventos ocorrentes na festa. Assim a
autora trás traz um panorama do evento. (...) Em suma, a forma
exposta pela autora cumpre seu desígnio de mostrar uma das
culturas que se destaca na comunidade afro-brasileira da Amazônia,
a festividade de Santiago de Mazagão Velho (COLABORADOR 5).

556
A partir da pesquisa realizada a respeito das produções das resenhas,
evidenciou-se a falta de habilidade da grande maioria dos alunos perante a
produção do gênero resenha. Verificou-se também a falta de assimilação e
organização dos temas em análise e a dificuldade de interpretar o que foi
proposto para a realização desse gênero. Contudo, esses não foram os
únicos problemas encontrados e também não são os que mais preocupam,
mesmo sendo de total relevância para a discussão deste artigo. Os
problemas que mais chamaram atenção foram a superficialidade ao
abordar o tema, pois nem todos os colaboradores tiveram a preocupação
de explorar com mais profundidade as ideias contidas no texto-base,
trazendo apenas alguns fragmentos.

A falta de senso crítico sobre o assunto foi perceptível durante a


correção das resenhas, além da dificuldade e/ou o desinteresse para
elaborar as suas próprias críticas, alguns colaboradores interessaram-se
apenas em sintetizar as ideias da autora do texto-base e não disseram se as
ideias apresentadas ali eram relevantes para a comunidade.

Desse modo, as dificuldades apresentadas por esses colaboradores,


de se apropriarem das ideias da autora e depois produzirem seus próprios
argumentos, podem estar associadas à ausência de experiência na
produção de trabalhos acadêmicos que visem à formação crítica desses
alunos.

Partindo das problemáticas encontradas na pesquisa, os resultados


identificados evidenciam as deficiências recorrentes na grande maioria das
universidades brasileiras. No percurso deste trabalho foi possível perceber
também que as dificuldades apresentadas por esses colaboradores podem
ser explicadas pelo perfil leitor em que eles se encontram, uma vez que, o
processo de leitura e interpretação textual abrange várias esferas da
vivência dos alunos.

557
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo principal compreender o processo


de leitura e interpretação textual, com ênfase no gênero resenha crítica, a
fim de entender as principais dificuldades encontradas por acadêmicos
recém-ingressos nas universidades.

Com a finalização dos estudos e das reflexões realizadas nesta


pesquisa, foram observados variados problemas recorrentes na produção
escrita, como por exemplo, dificuldade na construção de senso crítico,
superficialidade ao abordar determinado assunto e a falta de autonomia
para produzir seus próprios argumentos.

Em relação a futuras contribuições, este artigo, juntamente com o


projeto de extensão “Letramentos Acadêmicos”, traz dados que podem
servir como base para elaboração de novos estudos voltados para
diagnosticar os principais motivos ligados à falta de leitura e interpretação
textual acadêmica.

REFERÊNCIAS

CABRAL, L. S. Processos psicolinguísticos de leitura e a criança. Letras de Hoje,


Porto Alegre, v. 19, n. 1, pp. 7-20, 1986.

GROSSI, G. P. Leitura e sustentabilidade. São Paulo: Nova escola, 2008.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo:


Atlas, 2008.

LINARD, F.; LIMA, E. O X da questão. São Paulo: Nova escola, 2008.

558
ROJO, R. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de
linguagens na escola. In: ROJO, R.; MOURA, E. (Orgs.). Multiletramentos na
escola. São Paulo: Parábola, 2012.

SEVERINO, A. J. Educação, sujeito e história. São Paulo: Ed. Olho d'Água, 2002.

SILVA, E. T. Concepções de leitura e suas consequências no ensino. Revista


Perspectiva. Florianópolis, v. 17, n. 31, p. 11-19, jan.-jun., 1999.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto alegre: Artes médicas, 1998.

559
PERCEPÇÃO DE UMA COMUNIDADE ACERCA DO DISCURSO
COLONIZADOR

Ana Maria Barbosa Jorge76

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as temáticas da colonização, ocupação
e desenvolvimento de um bairro no município de Sinop-Mato Grosso, tomando como ponto
referencial os discursos existentes na percepção de uma realidade, na qual se considera o
contexto migratório e ocupacional. Buscou-se verificar, por meio da relação dialógica,
como moradores de um bairro periférico da cidade, percebem a colonização deste
ambiente em seus relatos de experiências, considerando a posição em que se encontram
nas relações discursivas, sociais e econômicas e quais são os fatores que influenciam na
interpretação do discurso a que são submetidos. Para tanto, utilizou-se o método de
pesquisa qualitativa, a pesquisa de campo e entrevista semiestruturada com atores do
processo de ocupação dos espaços geográficos. A revisão dos conceitos pautou-se na
pesquisa bibliográfica com base referencial ancorada em Eni P. Orlandi e Michel Foucault,
autores que discorrem sobre um poder que controla o sujeito discursivo que se vê obrigado
a conviver com uma multiplicidade de discursos dominantes existentes no local em que está
situado. Buscou-se, analisar como se dá a concepção da colonialidade e ocupação desses
espaços na visão desses sujeitos participantes da pesquisa. Os resultados mostram a
percepção dos intérpretes sociais no processo do desenvolvimento e progresso estratégico
de ocupação frente a expansão da fronteira territorial da região e evidencia a inclusão
dos fatos de que o discurso dos que discorre sobre a colonização, em partes confirmam,
porém em partes se opõem.
Palavras-chave: Contexto ocupacional, Interpretação, Discurso.

INTRODUÇÃO

Sinop é um município brasileiro do Estado de Mato Grosso, localizado na


região Centro-Oeste do Brasil, conhecida como a capital do nortão e polo de
referência em todo o norte mato-grossense. O nome “Sinop” incide de
“Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná” projeto responsável por sua

76Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras), da Universidade do


Estado de Mato Grosso (UNEMAT) Sinop, Mato Grosso, Brasil. E-mail: jorge.ana@unemat.br.
Este estudo integra o GEPLIAS- Grupo de Estudos e Pesquisa em Linguística Aplicada e
Sociolinguística do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado de
Mato Grosso – Unemat-Sinop/MT.

560
colonização e de outras cidades vizinhas, a exemplo Vera, Cláudia e Santa
Carmem. Seu processo de colonização ocorreu em 1972, fundada
oficialmente em 1974 e emancipada em 1979, segundo informações do site
da prefeitura municipal de Sinop.

Um projeto reconhecido na época, como um dos mais bem-sucedidos


da região amazônica, tomado como apoio para outras regiões que, na
época dependiam de Cuiabá, a capital do estado de Mato Grosso, como
podemos observar na fala a seguir “[...] aos poucos definindo sua vocação
comercial e industrial para ser cidade apoio a outras regiões, que antes
dependiam exclusivamente de Cuiabá” (OLIVEIRA, 2005. p. 111).

Sinop possui grande potencial de investimento e crescimento


populacional, sua população em 2020 era estimada em mais de 146
mil habitantes segundo informações do Instituto Brasileiro de IBGE. Seu
crescimento se deve ao fato de que na década de 1970, recebeu grandes
incentivos do Governo Federal para ser colonizado, em face do contexto da
política de criação de novas fronteiras econômicas, integração e ocupação
da região amazônica praticamente intocada, ocorreram muitas ações
adotadas pelo Governo federal nessa década, como relata o professor
historiador Erardi Santos “ocorreu, na época, um processo migratório de
grandes proporções de famílias vindas de outros Estados brasileiros, que
carregavam o sonho de adquirir um pedaço de terra para que pudessem
colonizar”. (SANTOS, 2011, P.16).

Assim, as famílias pioneiras que aqui residem, vieram quase em sua


totalidade dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul em
um processo migratório e ocupacional que ocorreu nos anos de 1972 e 1973,
vieram atraídas pelo discurso de uma paisagem plana e a presença de mata
intensa da floresta amazônica, denominada Amazônia Legal.

561
No entanto, Sinop mudou rapidamente, estudos realizados sobre esse
processo constata que na década de 1970 houve a abertura de novas
fronteiras, compostas por uma vasta área localizada no médio e centro norte
do Estado de Mato Grosso. atualmente o município conta com uma grande
diversidade econômica, como o setor madeireiro e empresas dos mais
diferentes segmentos, sendo eles no comércio, prestação de serviços, saúde,
agropecuário e educação. Além de atender aos moradores locais, também
atendem cerca de 30 municípios propínquos.

Segundo o historiador Erardi Santos (2011), o objetivo principal da


colonização não era somente atrair migrantes para a frente de trabalho, mas
também fixá-los na região amazônica por meio de estímulos e planos do
Governo Federal, apoiados pela propaganda da mídia jornalística fator que
influenciou fortemente o discurso de propagação e ocupação desses
espaços, o que se confirma em A ordem do discurso de
Foucault (1970) “para que um sistema se mantenha necessita, além de
produção e circulação, também de um discurso sólido e convincente
.” O que se confirma na citação a seguir.

O discurso do progresso em Sinop é muito presente. E essa euforia é


confirmada pelas realidades visíveis da urbanização planejada e
controlada, do crescimento econômico, da industrialização e do
grande fluxo de migrantes de outras partes do país que chegavam
(e chegam) ao município, reconfigurando o padrão demográfico e
cultural da cidade, onde populações pobres escapam aos seus
planos intrincados, ocupando áreas reservadas para a especulação
imobiliária futura. (SOUZA, 2007, p. 106).

Assim, o presente estudo caracteriza-se como pesquisa participativa


cujo objetivo é compreender alguns aspectos fundadores de uma realidade
ocorridos na formação inicial do processo de colonização na visão de
moradores do bairro Jardim do Ouro, localizado as margens da BR 163, lado

562
norte do município de Sinop. Os participantes são parte do processo
migratório de famílias que se deslocaram de diferentes regiões do país que
se locomoviam em busca do sonho de um lugar melhor para se viver.

A pesquisa buscou comprovar no discurso dos sujeitos participantes da


pesquisa, se realmente há a confirmação dos discursos existentes nas mídias,
escritos ou oralizados e se as oportunidades são concedidas por meio de um
processo democrático a todos os moradores ocupantes desses espaços.

Dessa forma, este texto tem a finalidade de refletir sobre as diferentes


percepções de um mesmo contexto que cercam um acontecimento político
e social, refletir como a influência daqueles que detém o poder estão
presentes no discurso da minoria. Como proferiu Foucault (1979)” O poder
não é fechado, ele estabelece relações múltiplas, caracterizando e
constituindo o corpo social”.

1 METODOLOGIA

As análises dos dados da pesquisa foram realizados pelo método


qualitativo por possibilitar uma abordagem que se preocupa com
características abstratas, como a interpretação dos participantes, não
descritos em número e gráficos, mas de maneira que os dados coletados
surgem a partir de um contexto de ressignificação, por meio de entrevistas
semiestruturadas, diálogo e depoimentos, espontâneos, com o
consentimento de todas as participantes em colaborar com a pesquisa por
meio de seus depoimentos em uma entrevista presencial, faz-se necessário
esclarecer que a coleta dos dados fora realizada em 2019, data que

563
antecede à pandemia da 77 Covid-19 e não havia a necessidade do
distanciamento social por não haver riscos de contaminação.

Com o objetivo principal de descrever e analisar a percepção de duas


antigas moradoras do bairro Jardim do Ouro, local de realização da coleta
dos dados, fora produzido um questionário elaborado antes de sair a
78campo para a realização das entrevistas , com questões norteadoras da
temática, na busca de encontrar respostas que possibilitassem compreender
alguns aspectos que influenciaram a tomada de decisão dessas moradoras,
as motivações, ações e implicações que as levaram a participar desse
processo migratório,

A pesquisa apresenta em sua organização a composição de tópicos


teóricos conceituando a análise, o discurso, e o texto na construção dos
sentidos. De acordo com a concepção doa autores em que da Análise do
Discurso em uma breve textualização interpretativa seguir há uma
contextualização do material coletado na pesquisa de campo
conceituando-os numa metodologia sob o viés da teoria e da Análise do
Discurso.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para suporte a essa pesquisa, partimos da definição de análise como


algo que se configura em um estudo detalhado de cada componente que
compõe um todo, para tomar conhecimento de forma mais acentuada de

77 A Covid-19 é uma infecção respiratória aguda causada pelo Coronavírus SARS-CoV-2,


potencialmente grave, de elevada transmissibilidade e de distribuição global. Disponível em:
https://abre.ai/cZGC. Acesso em:02 de jul. de 2021.
78 Vale lembrar que a coleta foi realizada em outubro de 2019 e na época não havia a

pademia da Covid-19 e nenhum risco aos participantes, por isso a coleta se deu de forma
presencial.

564
sua natureza, suas funções, suas analogias, suas causas. Trata-se da
historicidade do texto investigativo, que para Orlandi (1983) “São os
acontecimentos do texto como discurso, [...] os trabalhos dos sentidos nele,
que chamamos de historicidade”. Porém, possível de ser investigado por
meio de um conceito construído por teorias e métodos, que são mecanismos
onde funciona o discurso. Ou seja, passa a existir pelo discurso presente,
como define Orlandi (1999), em Discurso e Leitura. “A possibilidade de
análise em análise do discurso deriva da consideração do discurso como
parte de um mecanismo de funcionamento”.

Foucault conceitua discurso como um conjunto de regras anônimas e


históricas determinadas pelo tempo e espaço que, segundo ele: “definiram
em uma dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou
linguística dadas, as condições de exercício da função enunciativa”.
(FOUCAULT, 1960. p.43), dessa forma o discurso é uma prática que relaciona
a língua com outras práticas sociais, onde as práticas discursivas se
caracterizam e se organizam em uma unidade de enunciados aplicados nas
relações sociais que, por vezes determinam modas de comportamento em
determinada época. Dessa forma, Análise do Discurso conceitua a relação
de linguagem e ideologia e reflexiona a respeito da relação existente entre
a ideologia e a língua que possibilita diferentes significações.

Assim temos um fenômeno de formação social a ser investigado e


analisado, que é o discurso e a ideologia em um ato de colonização tomada
como modelo na produção do discurso da maioria – elementos formadores
de opinião- que vai determiná-lo diante de um discurso dos sujeitos
considerados minorias – pessoas que foram sujeitadas nesse processo de
investigação.

Para tomar posse desta compreensão é preciso considerar que temos


em mãos um instrumento que é decisivo nessa forma de investigação – o

565
discurso das moradoras do Jardim do Ouro – confrontando as teorias
discursivas em outros contextos de produção.

Sobre esse tipo de análise Orlandi, parafraseando Maingueneau (1976,


P. 23) destaca que: “em grande parte, a sua tarefa explícita ou implícita é
distinguir modelos de discurso, articulando esses modelos sobre condições de
produção”. Ainda definindo discurso como uma relação que é fundadora
de uma realidade, visão de um determinado grupo ou pessoas sobre um
discurso já dado, uma realidade já predeterminada pelo sistema de registros
escritos, falados ou determinados na história que constrói essa realidade.
Dessa forma, na visão Focaultiana, Foucault in (SAMPAIO, 2004) “discurso é
uma representação culturalmente construída pela realidade, para ele o que
está em jogo são os sentidos, o sujeito precisa pertencer a uma sociedade
para que seja possível sua identificação”.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram investigados nesta pesquisa questões relativas à análise do


discurso numa perspectiva de realidade de sujeitos controlados pela mídia
ou por outros discursos que chegam até eles considerados verdades
absolutas, pois se encontram numa posição de assujeitamento por suas
posições sociais e econômicas. Isso influencia fortemente a percepção da
realidade ou a condição de analisar o discurso ao qual são submetidos. Há
então o controle de suas razões e aceitações. É isso que afirma Foucault:
"Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é
simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por
um certo número de procedimentos. (FOUCAULT, 1970, P.2).

566
Conforme citado acima, o discurso é controlado, ele não acontece
no ocaso ou num contexto desorganizado. É preciso atentar que é no
discurso que se constrói o conhecimento do fato dado pelo texto distribuído
em suas categorias. Quanto à possibilidade de investigar os fatos dados por
intermédio da pesquisa bibliográfica só é possível segundo o deslocamento
do dado para o fato, segundo Orlandi: “Um deslocamento para a Análise
do Discurso é o que permite passar do dado para o fato” (ORLANDI, apud
CASTRO,1996. p.209). Ou seja, ao analisarmos um fato, os dados são os
discursos. E para ela os discursos não são objetos empíricos e sim os efeitos
de sentido entre locutores:

O discurso, sempre construído a partir de hipóteses histórico-sociais,


não pode se confundir nem com a evidência dos dados empíricos, nem com
o texto. (ORLANDI. 1996, P.211). Aqui temos o texto que provoca sentidos,
logo só é considerado texto se há uma compreensão, uma interlocução
entre os sujeitos no ato da comunicação. Nessa perspectiva, para Orlandi
(20015) o texto é o fato da linguagem por excelência, e se os estudos não
tratam da textualidade não tem relação com a conhecimento da língua,
ainda sobre os sentidos do texto a autora diz que:

O sujeito, ao produzir seu discurso sofre as interferências que são


resultado de conjuntos discursivos anteriores, que foram por ele
interiorizados em função da exposição sócio-histórico a partir da qual
discursamos no mundo. (ORLANDI, 2001, P. 09).

Para ela, as interferências sofridas determinarão a capacidade de


compreensão do sujeito no ato do discurso, é certo que as experiências
anteriores se manifestarão no momento de interação com as diferentes
formas de discursos, e que isso dará ao sujeito o valor interpretativo em sua
capacidade de interpretações. Assim, para que uma palavra tenha sentido

567
é preciso que ela seja provida de textualidade, ou seja, é preciso que sua
interpretação derive de um discurso que a sustenta, que a provê de uma
realidade significativa.

Há a percepção de que o progresso permeia questões efetivas na


sociedade, e que esta, por sua vez, desenvolveu uma espécie de relações
de interesses individuais se tornando indiferentes ao outro. Busca-se entender
melhor essas percepções sociais que envolvem o contexto do progresso, de
maneira a confrontar as ideologias existenciais em questionamentos como,
para que ou para quem serve o progresso e o domínio do desenvolvimento
econômico.

No processo inicial de colonização, muitas famílias se deslocaram de


seu lugar de origem. Porém, os desafios eram constantes como na fala da
senhora Geraldina Clara dos Anjos. “Era difícil, não tinha nada, ficamos 40
dias morando debaixo de um barraco de lona, mas valeu a pena” (SANTOS,
2014. P.15). As oportunidades foram concedidas com a doação de terras
pelo Governo federal, aos que se aventurassem em fixar moradia em um
lugar até então desconhecido.

Essa ocupação se deu às custas de muitas dificuldades iniciais, as


famílias trazem as histórias da ocupação em seus discursos de sofrimentos e
coragem desbravadora, em busca de ofertar melhores condições de vida
aos seus familiares ou de adquirir posse de terras ofertadas na época, pelo
Governo Federal. Assim observamos no relato do Sr. Samuel Swambach,
pioneiro e um dos primeiros a chegar em Sinop nesse período:

A gente chegou aqui praticamente dentro do mato, só havia uma


clareira aberta, praticamente dentro do mato mesmo. E, no começo
era assim: depois devagarzinho ia vindo outras famílias e umas vindo
e outras indo embora que não se acostumava com o clima ou se
assustaram com a mata. E no começo foi difícil por esta razão, né?
Muitas vezes vinha uma mudança e no mesmo caminhão voltava

568
outra. Mas a gente ‘guentou’ firme aqui, sempre com a esperança e
vendo que a cidade iria muito crescer. (ARRUDA, 1997, p. 94.).

Aqui percebe-se melhor os fatos dados do que acontecia na


época. Com a permanência dessas famílias, criaram-se laços e se afirmaram
em uma esperança de um futuro melhor. Apesar das dificuldades
enfrentadas, acreditam que foi uma decisão certa, como relata Darcília
Tessaro Paula. “Era diferente e muito difícil, a gente só tem que agradecer a
Deus por hoje estarmos aqui” (SANTOS, 2014. P.160).

Devido ao processo migratório, Sinop mudou sua paisagem dando


origem ao que seria futuramente uma potência que muito, como relata o
chefe geral da Embrapa/ MT, o Sr. João Flávio Veloso Silva: ‘Dá um orgulho
muito grande a gente fazer parte de um processo de construção, onde as
pessoas sonham, nós viemos para cá, trabalhar com sonhos e convencer
muitas pessoas a sonhar conosco.” (SANTOS, 2014. p.16). O morador enfatiza
aqui a satisfação de poder fazer parte desse processo de construção da
cidade e dos sonhos das pessoas que vieram para a localidade.

4 ANÁLISE DOS DADOS

Por meio da análise há a possibilidade de melhor compreendermos


certos fenômenos sociais, assim, na perspectiva de ampliar a pesquisa, foram
analisados alguns dados colhidos por meio da entrevista de campo,
tomando como interlocutoras duas moradoras do Jardim do Ouro. Para isso,
utilizamos o aporte teórico da análise do discurso, como base referencial
bibliográfica, partimos do pressuposto de que, para compreender esse
processo discursivo é preciso ouvir os sujeitos que fazem parte do sistema de
construção das ideologias.

569
Para preservar a identidade das entrevistadas serão tratadas por
“moradoras” e o uso de suas informações serão utilizadas somente para fins
científicos sem riscos de danos ou riscos de natureza física ou psicológica.

A entrevistada 1, uma senhora aposentada com idade de 69 anos,


viúva e mãe de 09 filhos. Na entrevista, ela relatou, de forma espontânea,
um pouco da sua vida. Nos contou que antes de vir para Sinop, morava no
Paraná, na cidade de Guaraniaçu, veio para cá atrás de alguns filhos que
vieram primeiro.

Durante a conversa, ela relatou de forma espontânea, um pouco


da sua vida, contou que antes de vir para Sinop, morava no Paraná, na
cidade de Guaraniaçu, próxima a Cascavel e que veio para cá atrás de
alguns filhos que vieram primeiro, em busca de um sonho de adquirir terras
e “melhorias de vida”. Disse que seu marido havia cometido suicídio, e que
não sabe bem o motivo pelo qual ele teria feito isso, mas que acredita ser
porque ele já não conseguia mais trabalho, pois tinha 70 anos, e estava
sem perspectiva de vida.

Segundo ela informou, vive com o dinheiro da pensão do falecido e


que não consegue se aposentar. Falou também dos filhos, dois quais três
moram lá mesmo no bairro, bem próximos a ela e que até cuida de um
dos netos, disse ainda que não sabe ler e escrever, pois estudou quando
era jovem e que apesar de se virar bem, de conhecer dinheiro e até saber
voltar um troco, gostaria muito de ter estudado, pois reconhece que sem
estudo, tudo fica mais difícil.

Embora não tenha estudado, sempre esforçou para que os filhos


frequentassem a escola, assim seus filhos mais velhos cursaram até 3ª ou 4ª
série e os mais novos concluíram o Ensino Fundamental, mas com muita

570
dificuldade e sem conseguir dar continuidade, pois precisavam trabalhar
para ajudar no sustento da família.

Segue abaixo, a entrevista.

Moradora 1: “Vim de Guaraniaçu, Paraná... eu sempre trabalhei só em casa,


porque não tenho estudo, não sei ler e escrever. E sem estudo, é difícil. Eu
consigo me virar assim, mas queria ter estudado.

No que diz respeito ao processo migratório fica comprovado, porém


há uma controvérsia no discurso da “educação para todos”, essa
entrevistada não teve opção de frequentar uma escola, pois sendo viúva,
precisava cuidar da família.

Ainda sobre o discurso da moradora 1:

Moradora 1: “A cidade era bem pequena em vista do que é agora. O bairro


ainda estava com poucas pessoas morando aqui. Aí foi chegando mais e
agora já mora bastante gente. Mas antes era chamado de sem teto.” “[...]
aqui no bairro nem tinha casas construídas assim, a gente teve que morar em
barracos de lonas por muito tempo. Não tinha água encanada e nem luz.
Era sofrido, mas o bom era que o governo mandava alimento, só não
mandava carne. “[...] Eu queria que aqui tivesse um Posto de Saúde, porque
o mais perto fica lá no Gente Feliz e fica longe”.

Nesse discurso, vale lembrar que os indivíduos estão sempre em


constante movimento procurando novos espaços e se adaptando a eles em
busca de outras experiências, ou melhores condições de vida. Visam
melhores empregos, saúde, educação, ou por vezes, simplesmente fogem

571
de lugares que estão em decadência financeira, em virtude de não
oferecerem possibilidades de melhorias. O bairro Jardim do Ouro, localizado
no município de Sinop, trata-se de um bairro pequeno, com 9 ruas e vias
pavimentadas que interligam o bairro com outras pontas da cidade.

A segunda entrevistada foi a senhora Deuzalina Pereira de Oliveira


Silva, 76 anos, viúva, com vários filhos e aposentada. Relatou um pouco
sobre as dificuldades enfrentadas quando aqui chegaram, moravam em
uma fazenda, com o marido e os filhos, mas, segundo ela, o patrão foi
embora e os deixou na mão, sem pagar os seus direitos e que não os registrou
no serviço e que dessa forma, sem lugar para morar, resolveram vir “tentar a
vida aqui”. relatou que sobrevive com o dinheiro que recebe da
aposentadoria e que o marido fora assassinado há alguns anos em outro
lugar, não foi difícil perceber que a vida dela não foi nada fácil como
podemos constatar na fala a seguir.

Moradora 2 “Moro há bastante tempo, acho que uns 12 anos ou mais. Gosto
daqui porque é bem sossegado., mas não gosto da poeira que ainda tem
aqui”.

Percebemos nesse discurso a confirmação de que a linguagem por ela


utilizada não se dá por evidências, mas esse discurso aqui apresentado abre
uma perspectiva de análise em que “a linguagem não se dá como
evidência, mas oferece-se como lugar de descoberta. Lugar do discurso”.
(ORLANDI, 2007, p. 96). O que significa para a Análise de Discurso a
linguagem como “lugar de produção de sentidos e de processos de
identificação dos sujeitos na relação do homem com a sua realidade”.

Moradora 2 “Vim de Peixoto. A gente morou muitos anos lá numa fazenda,


onde trabalhava. Mas aí o patrão não pagou os nossos direitos, a gente não

572
era registrada. E como a gente não tinha onde morar depois foi embora e
que o fazendeiro foi embora, aí, a gente veio para cá. [...]. “A cidade era
bem pequena, tinha pouca coisa. A farmácia que lembro que tinha, era a
do Marçal. Os mercados, era o Machado e o São João. Era bem diferente
de hoje. O bairro ainda estava começando, não tinha quase nada e as
casas eram de lona”.

Moradora 2: “Porque aqui conseguimos um lugar para viver, um terreno que


compramos por dois mil reais, e a gente pagava parcelado. Era difícil morar
nos barracos de lona, só tinha água de poço e sem luz. “[...] já morei em
outro bairro, mas gosto daqui e não gostaria de mudar. Só se ganhasse outra
casa”. “[...] gostaria que aqui tivesse uma creche e um Posto de Saúde”.

Verificamos o contraste na fala das moradoras com os discursos


anteriores. Elas são fruto dos discursos ideológicos da maioria dos moradores
que vivem em condições precárias e acreditam que estão melhor do que
em qualquer outro lugar. São participantes do aumento populacional que
segundo Arruda (1997), passa a ocorrer a partir de 1990, faz com que a
cidade passe por inúmeras transformações, tanto no aspecto populacional,
como econômico e espacial.

Eni Orlandi, em seu livro Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos,


discorre sobre as noções teóricas da Análise de Discurso pensando o
funcionamento da linguagem. A autora conclui a obra com a seguinte
citação: “E assim, podemos dizer que esse percurso que apresentamos ao
leitor abre uma perspectiva de trabalho em que a linguagem não se dá
como evidência, oferece-se como lugar de descoberta. Lugar do discurso”.
(ORLANDI, 2007, p. 96). O que significa para a Análise de Discurso a

573
linguagem enquanto lugar de descoberta, lugar de produção de sentidos e
de processos de identificação dos sujeitos na relação do homem com a sua
realidade.

Assim, para a autora “o dizer não é propriedade particular. As palavras


não são nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em
outro lugar também significa nas nossas palavras”. (ORLANDI, 2001, P.32).
Percebe-se, portanto que a Análise do Discurso, trabalha as entrelinhas, na
opacidade da linguagem, ou seja, há sentido implícito no texto e por isso a
necessidade de se construir a discursividade na compreensão dos fatos
dados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante os relatos expostos, Sinop é uma cidade que fez parte de um


projeto de colonização que teve um desenvolvimento acelerado que
persevera nos dias atuais, tem um grande potencial e desenvolvimento
econômico. Porém, nas falas das moradoras do Jardim do Ouro, há um
contraste com evidências de que, por pertencerem à população menos
favorecida, sem privilégios sociais e econômicos, se veem obrigadas a
acreditar no discurso que lhes são impostos, porém esses discursos contrastam
com o discurso dessas moradoras e participantes do processo de
colonização. Ao utilizar os discursos das moradoras como dados confiáveis,
foi possível constatar que as pessoas entrevistadas sabem como surgiu o
bairro onde residem, porém desconhecem o que realmente aconteceu no
processo de colonização de Sinop, salvo o que ouviram pela mídia.

. Em síntese, podemos observar que essa temática se faz relevante


mediante a necessidade de compreender e ouvir os que são silenciados na

574
sociedade, é preciso ouvi-los, se posicionar por meios empíricos para que
haja um retorno que faça diferença na vida dessas pessoas que de fato são
silenciadas pelos discursos dominantes. É evidente também a percepção de
significados que um mesmo enunciado produz o que depende da pessoa
que o interpreta e a maneira que compreende, ou seja, um mesmo discurso
ou enunciado pode apresentar mais de um sentido para a mesma pessoa
ou quando se trata de grupo de pessoas, podem ter percepções diferentes
uma da outra.

Dessa forma, os resultados obtidos por meio desse estudo, nas falas das
participantes da pesquisa que vivem na mesma condição social e cultural,
com idades muito próximas, há a confirmação de um discurso que em parte
se confirma, porém em parte contrasta com a realidade em que vivem
diariamente. Porém faz-se necessário um estudo mais aprofundado para
compreender melhor esse processo de desenvolvimento e colonização de
maneira a lutar pela classe que vive às margens da sociedade.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Zuleika Alves. Sinop: Território(s) de Múltiplas e Incompletas


Reflexões. Dissertação de Mestrado -UFP/Recife- PE, 1997.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura F. A Sampaio. São


Paulo: Ed. Loyola, 2004.

FOUCAULT, Michel. (L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de


France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971.).

GC Notícias. Ruas são pavimentadas no Jardim do Ouro. 23 de novembro de


2016. Fonte: Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Sinop. Disponível
em: http://www.gcnoticias.com.br/geral/ruas-s-o-pavimentadas-no-jardim-

575
do-ouro/34443200. Acesso em: 25 de jun. de 2021

MORADORA 1. Percepção acerca do discurso colonizador. Izaura Padilha,


69 anos, viúva, mãe de 9 filhos. [Entrevista cedida a] Ana Maria Barbosa Jorge.
Sinop, out. 2019.

MORADORA 2. Percepção acerca do discurso colonizador. Deuzalina


Pereira de Oliveira Silva, 76 anos, viúva, com vários filhos e aposentada.
[Entrevista cedida a] Ana Maria Barbosa Jorge. Sinop, out. 2019.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino in: Mato Grosso S/A. Amazônia revelada. 2005.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas:


Pontes, 2007.

ORLANDI, Eni et alii, ed. Unicamp, 1994. Texto e discurso. Brasiliense, São Paulo,
1983.

ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos.


Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, E. Discurso: fato, dado, exterioridade. Departamento de Linguística.


Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp. In: CASTRO, Maria Fausta
Pereira de. O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas.
Unicamp. 1996.

ORLANDI, Eni P./ Lagazzi-Rodrigues, Suzy (Orgs.) Introdução às ciências da


Linguagem- Discurso e Textualidade. Pontes Editores. 2015. Campinas. SP. 3ª
Edição.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez; Campinas:


Unicamp 1999. Linguagem e Método: uma questão de análise de Discurso.

PELLEGRINI, Fabio. Chegada a Sinop: a cidade que um dia foi floresta. ((O))
ECO. 29 de outubro de 2012. Disponível em:
https://www.oeco.org.br/especiais/direto-do-nortao/26602-chegada-em-

576
sinop-a-cidade-que-um-dia-foi-floresta/. Acesso em: 25 de jun. de 2021.

SANTOS, F. E. Luiz, Raízes da História de Sinop. Midiograf. Sinop 2011. Disponível


em: https://www.oeco.org.br/especiais/direto-do-nortao/26602-chegada-
em-sinop-a-cidade-que-um-dia-foi-floresta/. Acesso em: 25 de jun. de 2021.

SOUZA, Edison Antônio de. História e diversidade. Reflexões acerca da história


de Sinop/MT: imigração e fronteira agrícola. Disponível em:
file:///C:/Users/USU%C3%81RIO/Downloads/2749-9177-1-PB%20(3).pdf.
Acesso em 27 de jun. de 2021.

577
A APRENDIZAGEM CRIATIVA EM AULAS PARTICULARES DE LÍNGUA
PORTUGUESA PARA ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL-ANOS
FINAIS: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA

Jônatas Miranda Amaral 79

RESUMO: O ser humano possui um grande potencial criativo, e esse potencial pode ser
desenvolvido a partir de exercícios, tal qual um músculo em uma academia. Este trabalho,
portanto, parte da perspectiva da aprendizagem criativa como uma ação em que o
professor é um mediador do conhecimento, responsável por construir ambientes de
aprendizagem criativa em suas aulas, de modo a favorecer o ensino-aprendizado. Desta
forma, este relato de experiência tem por objetivo descrever e analisar práticas de
atividades com foco na criatividade realizadas com alunos do sexto ao oitavo ano do ensino
fundamental, em aulas particulares presenciais e online durante a pandemia de Covid-19.
O trabalho utiliza-se, como base teórica, os trabalhos de Plucker, Begheto e Dow (2004)
Rocha (2014), Luckesi (2002;2006) e Freire (1997;2015), Rosas (2008) As atividades
desenvolvidas com os alunos focalizaram na compreensão de conceitos sobre o gênero
textual conto maravilhoso e acerca de figuras de linguagem. Sendo criados pelos alunos:
um suporte de conceitos em formatos diferenciados, tirinhas e resumos criativos. Os alunos
inicialmente sentiam constantemente que deveriam ser guiados, justamente por conta de
práticas educativas que, constantemente, não permitem que a criatividade do aluno seja
valorizada, cerceando as possibilidades dos alunos. Foi importante estabelecer uma
proposta e permitir que em torno dela os alunos criassem. A partir da aplicação do processo
de aprendizagem criativa, foi possível perceber que o ambiente lúdico e com ação ativa
dos alunos favoreceu uma melhor aprendizagem do conteúdo, além de ter sido possível
que estes se percebessem como operadores do conhecimento (MORIN, 1987), ao se
sentirem livres, dentro de um ambiente lúdico (LUCKESI, 2002), para propor novas ideias
diante do que foi proposto pelo professor, favorecendo ainda que o aluno produza
tecnologias e coloque os conhecimentos linguísticos em contextos significativos.
Palavras-chave: Aprendizagem Criativa; Ensino de Língua Portuguesa; Ludicidade.

79Graduado do Curso de Letras- Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará – UFPA;


Graduando do Curso de Pedagogia do Instituto Federal do Pará (IFPA). Professor Particular
na Instituição LC Aulas Particulares e Reforço Escolar em Belém/Pa.
jonatas.ma@yahoo.com.br;

578
INTRODUÇÃO

Trabalhar criativamente é um desafio colocado aos professores diante


de um sistema de educação que muitas vezes valoriza mais o simples
conhecer, desvalorizando um saber-fazer mais efetivo. As práticas
educativas geralmente tendem ao tradicional, quando faltam os recursos e
os incentivos de múltiplos setores e sujeitos que compõem a educação:
direção, coordenação, secretarias, família, entre outros.

Contudo, é importante compreender que estabelecer práticas


criativas na sala de aula, não se limita somente ao uso de recursos digitais ou
propriamente pré-construídos, não engendra-se apenas aos jogos
educativos, eles são possibilidades para fomentar o que Luckesi (2004),
chama de estado lúdico, no qual a criatividade pode ser um fruto em que a
aprendizagem possa ser mais significativa.

As metodologias ativas são ferramentas que têm sido cada vez mais
reconhecidas e trabalhadas em sala de aula, principalmente com a
imposição do ensino remoto, diante da pandemia de Covid-19, que
alcançou o Brasil em março de 2020, fazendo com que as escolas fechassem
suas portas, adotando o modelo remoto para continuar o ano letivo. As
escolas particulares, em sua maioria, conseguiram estabelecer melhor este
formato, ainda que tenham enfrentado os problemas técnicos mais básicos
deste modelo: falta de conexão, dificuldade de acesso e um letramento
digital falho de muitos alunos e familiares.

Esta situação fez com que muitas famílias recorressem a professores


particulares para auxiliar os alunos em suas tarefas ou para reforçar os
conteúdos, principalmente levando em consideração que muitas crianças
não conseguiam acompanhar o novo modelo de aulas. Muitos professores

579
inicialmente tentaram apenas transportar para o online a mesma dinâmica
do ensino presencial, algo que para muitos não foi satisfatório,
principalmente levando em consideração os pressupostos da educação à
distância.

O trabalho do professor particular, portanto, torna-se relevante nesse


sentido, pois cabe a este planejar de forma mais individualizada um plano
de atividades que possam favorecer o melhor aprendizado. Nesse sentido, o
fator da criatividade acaba sendo relevante, para que o reforço escolar
possa ser efetivo. Estes profissionais, em geral, são autônomos e durante a
pandemia também buscaram se adaptar aos modelos estabelecidos.

Este trabalho, portanto, tem por objetivo relatar experiências de


atividades com foco na criatividade realizadas com alunos do sexto ao
oitavo ano do ensino fundamental, em aulas particulares presenciais e online
durante o primeiro semestre de 2021. As aulas foram realizadas nas
residências dos alunos, seguindo os protocolos de segurança sanitária,
diante da pandemia de covid-19, e também em aulas via aplicativo Zoom
Mettings.

Partiu-se da seguinte questão que norteia este trabalho: De que modo


as atividades com foco no estímulo a criatividade podem favorecer uma
aprendizagem mais significativa e lúdica?

As atividades desenvolvidas junto aos alunos voltaram-se para


compreensão de conceitos acerca do gênero textual “conto maravilhoso”
e acerca das figuras de linguagem. Para tanto se utilizou da perspectiva da
aprendizagem criativa, para estimular os alunos a se tornarem operadores
do conhecimento, como afirma Morin (1987), de modo a construírem
produtos educacionais em que os conceitos pudessem ser esquematizados,
colocados em contexto ou fixados. Para tanto se utilizou das atividades:

580
resumo criativo, tirinhas e suporte de conceitos. Deste modo, este trabalho
descrever e analisa, tendo como base a abordagem qualitativa, de acordo
com Minayo (2016).

Sendo assim, este trabalho apresenta inicialmente a metodologia


adotada para cada atividade, em seguida são apresentados a concepção
de criatividade, por meio dos trabalhos de Pluker Begheto e Dow (2004) e
Rocha (2014), além dos pressupostos da aprendizagem criativa através do
trabalho de Rosas (2008) e Burd (2018) e a concepção de ludicidade e
estado lúdico de Luckesi (2002; 2006), por fim são apresentados resultados
obtidos com a aplicação dos resultados e seus benefícios para
aprendizagem dos alunos.

1 METODOLOGIA

Este trabalho possui uma abordagem qualitativa e também apresenta


um caráter descritivo e exploratório, na medida em que visa relatar
experiências de um ponto de vista analítico.

As atividades foram desenvolvidas entre os meses de fevereiro e março


de 2021, com quatro alunos do ensino fundamental – anos finais, sendo dois
alunos do sexto ano e dois alunos do oitavo ano, sendo estes advindos de
escolas particulares da cidade de Belém, e que também possuem aulas
particulares de professores de uma empresa especializada em reforço
escolar e ensino individualizado, chamada LC Aulas Particulares e Reforço
Escolar.

Após observações do desempenho dos alunos na escola através das


suas provas bimestrais e aplicação de avaliação diagnóstica na primeira
aula particular, buscou-se criar planos de aula em que a criatividade

581
pudesse ser estimulada, a fim de alcançar melhor aprendizagem dos
conteúdos a serem estudados.

Para os alunos do sexto ano, os assuntos principais eram o conceito e


as características do gênero textual “Conto Maravilhoso”. Para tanto,
elaborou-se duas atividades, descritas no quadro a seguir:

Quadro 01 – Planos de aula 01 e 02

PLANO DE AULA 01 - 6º ANO – PLANO DE AULA 02 - 6º ANO –


RESUMO CRIATIVO SUPORTE DE CONCEITOS

Conteúdo: Conto maravilhoso Conteúdo: CONTO MARAVILHOSO

Objetivo: Compreender as Objetivo: Compreender a estrutura


características do conto textual dos contos maravilhosos
maravilhoso e sua estrutura.

Momento 01 – leitura e Momento 01 – Leitura de conto


interpretação de contação do maravilhoso escolhido pelo aluno
conto maravilhoso africano “As
garras do leopardo”

Momento 02 – Análise das Momento 02 – Análise das


características do conto principais características
apresentando a estrutura (situação
inicial, conflito, clímax e desfecho).

Momento 03 – Elaboração de Momento 03 – Elaboração e


Resumo Criativo criação de um suporte para

582
apresentar os conceitos de cada
um.

Materiais: Livro, Material Impresso, Materiais: conto escolhido pelo


Papel, Canetas Coloridas. aluno impresso, papel, cartolina,
canetas coloridas, cola.

Modalidade: Presencial Modalidade: Presencial

Fonte: O autor

Do mesmo modo foi elaborado o plano de aula para os alunos do


oitavo ano, que necessitavam estudar as figuras de linguagem,
especificamente a metáfora, comparação, metonímia, antítese, paradoxo
e prosopopeia. Para tanto elaborou-se o plano de aula a seguir:

Quadro 02 – Plano de aula 03

PLANO DE AULA 03 - 8º ANO – TIRINHAS

Conteúdo: figuras de linguagem

Objetivo: Compreender as características do conto maravilhoso e sua


estrutura.

Momento 01 – Apresentação das figuras de linguagem em tirinhas, por


meio de slides.

Momento 02 – Exercícios de análise de tirinhas

583
Momento 03 – Elaboração de tirinhas com uso de figuras de linguagem em
papel

Materiais: slides, computador, plataforma Zoom, Papel, caneta, lápis.

Modalidade: Remota

Fonte: O autor

É importante destacar que foram dadas algumas instruções


específicas para realização das atividades, como necessidade de tratar os
temas estudados, seguir as características dos gêneros, porém deixou-se a
cargo do aluno escolher o formato, história, modelo e estilo das três
atividades.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A criatividade é definida por Plucker, Beghetto e Dow (2004 apud LIMA,


2015, p.02) como “a interação entre atitude, processo e ambiente, pela qual
um indivíduo ou grupo cria um produto que, dentro de um contexto social, é
definido como novo e útil”. A criatividade, portanto, pode surgir em um
ambiente em que se estimule a inovação, o sair do convencional ou pensar
fora da caixa, tendo o erro como parte do aprendizado e estímulo para
mostrar caminhos possíveis ou não diante do que é apresentado.

Geralmente, esta é anulada das práticas educativas escolares, como


afirma Lima (2015), prevalecendo um ensino tradicional em que a ênfase é
uma homogeneização, onde o erro é estigmatizado, nunca colocado como
parte do processo. Desta forma, a escola, na maioria das vezes, subestima a

584
imaginação e a criatividade, sendo negada em favor de um rigor, de um
acerto pelo acerto. O fruto disto é, em geral, a frase “Professor, eu não sou
criativo”, gerando no aluno um desestímulo a práticas que tenta ir à
contramão desta concepção de ensino.

Fasko (2001), citado por Lima (2015) defende que partindo do


pressuposto de que todos são criativos e a criatividade pode ser
desenvolvida em um ambiente escolar propício,

O papel da escola se torna mais complexo: ao invés de ser um mero


provedor de informação, deve se transformar no espaço em que os
alunos desenvolvam as habilidades desejadas para a sociedade do
conhecimento – é fundamental aprender a ser criativo e a ‘pensar
fora da caixa (FASKO, 2001 apud LIMA, 2015, p. 18).

A inovação, portanto, como um ato de colocar uma ideia em ação é


fundamental para que haja uma aprendizagem enriquecedora. Quando um
professor ou uma instituição preza por atitudes inovadoras, ou seja, novos
processos, novos produtos, novos métodos aplicados na organização do
trabalho escolar, é possível que haja um ambiente mais produtivo (ROCHA,
2014).

Deste modo, para Rocha (2014, p. 19) a “criatividade é ter a ideia e


inovar seria colocar a ideia em ação”, sendo, portanto, a inovação posterior
a criatividade. Logo, quando um aluno cria em sua mente uma ideia, e esta
se concretiza em um produto, o aluno está inovando dentro de seus
conhecimentos.

O estímulo à criatividade dos alunos tem influência positiva no ensino


e na aprendizagem, pois o aluno é exposto a práticas que o leva a inovar, o
leva a curiosidade, a criar novas formas de expor determinado conteúdo,
determinado conceito, que não se limita a apenas decorar o conceito, mas

585
aplicá-lo. É nesse sentido que as múltiplas tecnologias, também, auxiliam
nesse processo.

Sendo assim, a Aprendizagem Criativa, sendo uma filosofia de


educação em que se busca desenvolver o pensamento e uma prática
educativa de forma criativa, proposta por Mitchel e Resnick, inspirada nas
ideias de Seymour Papert concentra-se na construção de ambientes de
aprendizagem centrados em quatro pilares, os chamados 4P’s: Projetos
(projects), Paixão (passion), Pares (peers) e Pensar brincando (play). (BURD,
2018)

Assumindo o pensamento de Paulo Freire para delimitar Educação


como prática da liberdade (1967), a discussão sobre criatividade vai exigir
outros pressupostos, condicionando criatividade e ação criativa à práxis
educativa “horizontal”, “comunicativa”, “democrática” e “criticamente
esperançosa” (ROSAS, 2008, p.218).

Burd (2018) afirma que

É importante considerar que podemos desenvolver a criatividade.


Todos nós temos um potencial criativo. E essa capacidade de olhar
o mundo com olhares diferentes, de pensar soluções alternativas
para uma mesma questão, se desenvolve a partir do exercício, como
se fosse um músculo que exercitamos na academia. Se não
exercitamos um músculo, ele atrofia e seu movimento fica mais
restrito. (BURD, 2018, p. 11)

O professor tem dois papéis principais na Aprendizagem Criativa: o de


designer do espaço, de modo que este “cria o contexto, o enredo, a história,
escolhendo os materiais, a disposição da sala” (BURD, 2018, p. 14). Outro
papel do educador é o de mediador, de facilitador do processo, no qual
“Ele verifica se as crianças estão ou não motivadas, se estão com
dificuldades em algum aspecto do projeto, por exemplo. É um papel

586
diferente do professor tradicional como fonte de conteúdo.” (BURD, 2018, p.
14).

Sendo assim, é importante considerar o aspecto lúdico, que para


Luckesi (2002) é um estado interno do sujeito, sendo a ludicidade a
característica de quem está em estado lúdico, ou seja, para o autor nem
sempre será possível perceber a ludicidade no meio externo, o que será
percebido são as ações lúdicas (reações principalmente). Deste modo, nem
sempre uma atividade será lúdica para todos os sujeitos, e dependerá do
estado interno do sujeito frente a atividade proposta para que de fato, a
imersão aconteça.

Contudo, quando essa se estabelece, é possível que a criatividade


frente ao desafio proposto possa fluir e entregar inovações dentro do
conhecido pelo aluno, diante das ferramentas que este detém, ou seja, dos
conhecimentos e habilidades do aluno.

Luckesi (2004) afirma que a atividade lúdica é aquela que propicia à


pessoa que a vive, uma sensação de liberdade, um estado de plenitude e
de entrega total para essa vivência, deste modo, “o que a ludicidade traz
de novo é o fato de que o ser humano, quando age ludicamente, vivencia
uma experiência plena. [...] Não há divisão” (LUCKESI, 2006, p. 2).

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os alunos do sexto ano, em aula presencial, foram expostos ao um


momento de possibilidade lúdica no início da aula, por meio da leitura em
voz da alta do conto “As garras do Leopardo”, de Ana Maria Machado, e
por meio deste foi iniciado uma discussão com os alunos sobre o que
compreenderam da história, que trata acerca do espirito de sabedoria,

587
coragem e lealdade. O conto com seu enredo forte e carregado de
imagens gerou nos alunos forte conexão emocional, percebida através das
reações aos acontecimentos da história.

Após esse momento, foi apontado aos alunos as principais


características do conto maravilhoso através de uma ficha de leitura, além
da utilização de aspectos por Wladimir Propp, acerca dos contos. Através
dessa ficha, os alunos puderam observar detalhe a detalhe do conto, desde
sua ambientação, personagens, estilo, tempo, enredo, conflito, clímax e
desfecho.

Diante disto, foi pedido aos alunos que elaborassem um resumo criativo
acerca das principais características do conto maravilhoso, de modo que
estes pudessem fixar os conceitos. Os alunos inicialmente verbalizaram uma
frase que sempre perpassa os alunos no início de atividades como esta:
“Professor, não sou criativo”. Contudo, essa dificuldade inicial foi superada
com o diálogo e mediação para que este pudessem perceber as inúmeras
possibilidades para realização da atividade.

Por fim, os alunos optaram por resumos com características de tirinha ou


charge, com uso de personagens do conto lido no início da aula (IMAGEM
01). A interação entre o verbal e o não-verbal teve um resultado positivo para
gerar um estado lúdico nos alunos, ainda que um estivesse mais imerso na
atividade do que o outro, o que é compreensivo, como aponta Luckesi
(2002), já que este estado lúdico é algo interno ao sujeito, e pode ser maior
ou menor mediante ao grau de entrega do sujeito àquela atividade, seu
interesse ou mesmo sua satisfação.

588
Figura 01 – Resumo Criativo

Fonte: O Autor

Na aula seguinte, já com os conhecimentos acerca das características


do conto maravilho já explorada, foi possível reforçar os conteúdos através
da leitura de um conto escolhido pelo estudante. De modo a favorecer isto,
foi proposto ao aluno (nesta aula somente um aluno participou) a criação
de um suporte de conceitos, no qual o aluno escolheria o formato, estilo e
apresentação, tendo por exigência apenas a presença dos conceitos
fundamentais estudados.

Deste modo, o aluno com o uso de cartolina, canetas coloridas, papel


e cola, decidiu criar um suporte no formato de um prédio (FIGURA 02), no
qual estariam contidos nas janelas os conceitos fundamentais, criando assim
um cartaz informativo sobre os conceitos. A imbricação de gêneros tornou o
produto educacional mais rico e criativo.

589
Figura 02 – Suporte de Conceitos

Fonte: O autor

Os alunos do oitavo ano, em aula online, por meio da plataforma Zoom


Meetings, foram desafiados através da elaboração de tirinhas, em aula
voltada para este gênero, de modo que estes visualizassem o uso das figuras
de linguagem presentes nelas. Para tanto foram selecionadas tirinhas como
exemplificação de cada figura de linguagem estudada, e estas foram
analisadas junto com os alunos, destacando suas características e
favorecendo a interpretação. Do mesmo modo, foram destacados os
elementos que compunham as tirinhas.

Ao final da aula, foi solicitada aos alunos a elaboração de três tirinhas,


tendo como critério a presença de pelo menos uma das figuras de
linguagem estudadas na aula. É interessante perceber que esta atividade
conseguiu estabelecer uma interação mais efetiva com os alunos, diante de
uma modalidade de ensino, em que as crianças não estavam acostumadas
e que facilmente perdem a atenção.

590
Contudo, a presença do elemento criativo e que estava nas mãos deles
a decisão do tema, enredo e escolha das figuras de linguagem, tornou
possível um momento de aprendizagem lúdica e significativa, no qual os
alunos puderam produzir textos concretos e aplicar os conhecimentos.

Figura 03 – Tirinha “Comparação”

Fonte: O autor

A figura 03 apresenta uma tirinha em que o aluno utilizou-se da temática


do amor entre o fogo e um cristal para estabelecer a figura de linguagem
“comparação” no primeiro e segundo quadrinho. O aluno teve por base
uma tirinha apresentada ao longo da explanação da aula, estabelecendo
novos personagens e situações.

Do mesmo modo, na figura 04, partindo da explanação, o aluno criou


uma tirinha em que a metonímia é fator fundamental para a construção do
sentido da tirinha, ao utilizar da figura do Sherlock Holmes, personagem
estudado pelo aluno naquele semestre. Ou seja, o aluno conseguiu criar a
partir dos seus conhecimentos prévios e aplicar os conceitos em um contexto
real de produção.

591
Figura 04 – Tirinha “Metonímia”

Fonte: O autor

Inicialmente, os alunos sentiam constantemente que deveriam ser


guiados, justamente por conta de práticas educativas que, constantemente,
não permitem que a criatividade do aluno seja valorizada, cerceando as
possibilidades dos alunos.

Foi importante estabelecer uma proposta e permitir que em torno dela


os alunos criassem. A partir da aplicação do processo de aprendizagem
criativa, foi possível perceber que o ambiente lúdico e com ação ativa dos
alunos favoreceu uma melhor aprendizagem do conteúdo, além de ter sido
possível que estes se percebessem como operadores do conhecimento
(MORIN, 1987), ao se sentirem livres, dentro de um ambiente lúdico (LUCKESI,
2002), para propor novas ideias diante do que foi proposto pelo professor,
favorecendo ainda que o aluno produza tecnologias e coloque os
conhecimentos linguísticos em contextos significativos.

592
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo relatar experiências reais de ensino e


aprendizagem, em que a criatividade foi estimulada a partir de atividades
envolvendo elaboração de textos, construção de suporte e remodelagem
de gêneros como resumo. Foi possível perceber que, muitas vezes, estas
atividades acabam se tornando complicadas de serem realizadas por
permitirem que os alunos se expressem e se tornem operadores do
conhecimento, algo que os alunos não estão acostumados no ensino regular.

Diante de um cenário em que a educação precisou, às pressas, se


atualizar no que se refere as tecnologias digitais e se remodelar, também se
tornou fundamental que a criatividade seja fortalecida nas salas de aulas
seja na modalidade presencial ou online.

Portanto, as atividades com foco no estímulo a criatividade podem


favorecer uma aprendizagem mais significativa e lúdica, na medida em que
estas favorecem a imersão do aluno em produções e criações inventivas
diante dos desafios propostos.

A escola é um espaço propício para isto, assim como as aulas


particulares à domicílio ou online, sendo um serviço educacional em que o
ensino individualizado pode colaborar o desenvolvimento de habilidade e
práticas criativas, de modo que os alunos possam ser estimulados em
contextos extra classe aplicar e estudar de forma criativa.

593
REFERÊNCIAS

BURD, Leo. O que é aprendizagem criativa?. Revista Faber-Castell de


Aprendizagem Criativa. Agosto, 2018. Disponível em:
<https://issuu.com/leituraprima/docs/fabercastell_baixa> Acesso em 30 de
junho de 2021.

LIMA, Jailson. Criatividade como ferramenta de ensino. Ei! Ensino inovativo.


Volume 2.2015. P. 17-21

LUCKESI, C. C. Ludicidade e atividades lúdicas: uma abordagem a partir da


experiência interna. Salvador: GEPEL, Programa de Pós-Graduação em
Educação, FACED/UFBA, 2002. (Coletânea Educação e Ludicidade – Ensaios
02).

LUCKESI, C. C. Ensinar, Brincar e Aprender. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic.


da Educação Vitória da Conquista, Ano IX, n. 15, p.131-136, 2015. Disponível
em:<file:///C:/Documents%20and%20Settings/Jo%C3%A3o/Meus%20docum
entos/ensinar%20brincar%20e%20aprender%20luckesi.pdf> Acesso em 30 de
junho de 2021

MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade.


Petrópolis: Vozes, 2016.

MORIN, Edgar. Complexidade e Transdisciplinaridade: a reforma da


universidade e do ensino fundamental. Natal, EDUFRN, 1999.

ROCHA, Helena do S. C. da (org.). Tecnologia educacional:


instrumentalização para o trato com a diversidade etnicorracial na
educação básica. Belém: IFPA, 2014.

594
ROSAS, Agostinha da Silva. Paulo freire na trilha da criatividade libertadora.
Interritórios. Revista de Educação: Universidade Federal de Pernambuco,
Cuaruaru, Brasil, 2016. Vol. 02. N. 02.

595
O USO DO SOFTWARE ANTCONC NA PESQUISA EM TERMINOLOGIA:
APLICAÇÕES DA FERRAMENTA NA SELEÇÃO E ANÁLISE DE
CANDIDATAS A TERMO DA ÁREA DA GESTÃO ESCOLAR

Claudiuscia Mendes do Carmo80

RESUMO: Compreendendo que para analisar os termos de uma área de especialidade é


necessário organizar um corpus com um número expressivo de textos produzidos pelos
especialistas, as ferramentas computacionais têm sido um importante auxílio nas pesquisas
com viés terminológico, nas etapas de seleção e análise dos termos. A partir disso,
objetivamos, com este artigo, descrever o uso do software AntConc na seleção e análise
das candidatas a termo da área da Gestão Escolar. Para isso, inicialmente, abordamos a
interface da Terminologia com a Linguística de Corpus, com base, principalmente, em
Krieger e Finatto (2019) e Sardinha (2000). Para caracterizar o software, recorremos às
informações próprias do site do programa, principalmente ao tutorial em língua portuguesa
de Gonçalves (2016) e a estudos com foco na análise da contribuição das ferramentas
computacionais nas pesquisas terminológicas, como Maciel (2001a), além de pesquisas que
tiveram como enfoque o uso dessa ferramenta, como Alberts-Franco (2015). Como
resultados, apontamos que, no processo de seleção dos termos da Gestão Escolar, utilizamos
cinco das sete ferramentas do programa, descrevendo de que forma cada uma delas
auxilia o pesquisador a analisar o seu objeto de pesquisa. Por fim, enfatizamos que o uso do
software possui como principais contribuições aos pesquisadores maior agilidade na
organização das informações e também maior confiabilidade aos dados coletados.

Palavras-chave: AntConc, Terminologia, Gestão Escolar.

INTRODUÇÃO

O surgimento da Informática trouxe inúmeras contribuições aos mais


diferentes campos da vida humana. Podemos citar as transformações nas
relações sociais, provocadas pela crescente facilidade de comunicação e,
de forma acentuada, a potente disseminação do conhecimento científico,

80 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio


Grande do Norte (UERN). E-mail: claumdc.23@gmail.com.

596
por meio das mais diversas plataformas digitais, responsáveis por veicular
informações com a publicação de livros e artigos científicos, vídeos e tantos
outros recursos que potencializam a divulgação da ciência e facilitam o
acesso a diversos tipos de conteúdo.

Dentre essas contribuições, destacamos o papel das ferramentas


tecnológicas para os estudos linguísticos, tendo em vista que, com a
possibilidade de organizar bancos de dados com informações diversas, as
pesquisas de viés linguístico têm ampliado diferentes abordagens de estudo
com o uso desses recursos. Um exemplo é a aplicação da Informática nas
pesquisas em Terminologia, uma das Ciências do Léxico, responsável pelo
estudo linguístico das áreas de especialidade (BIDERMAN, 2001). Nos últimos
anos, os softwares voltados a estudos linguísticos têm se tornado ferramentas
fundamentais para a organização e análise de diferentes objetos de
pesquisa.

Neste estudo, damos ênfase às funcionalidades do software AntConc,


ferramenta desenvolvida pelo pesquisador Lawrence Anthony, da
universidade japonesa Waseda.81 Destacamos que o programa vem sendo
utilizado em diferentes pesquisas, com destaque para estudos que têm como
foco a Terminologia. Uma das principais motivações é a necessidade de lidar
com a análise de corpora com grande número de textos, no intuito de
identificar as características das áreas de especialidade, a partir de um
objeto de pesquisa específico.

Ressalta-se que este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado em


andamento, intitulada “A variação denominativa na terminologia da Gestão
Escolar”. 82 Dessa forma, temos como objetivo de pesquisa, neste recorte,

81 Informações disponíveis em: https://www.laurenceanthony.net/resume.html


82 Dissertação qualificada junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UERN.

597
analisar a funcionalidade do software AntConc nas etapas seleção e análise
das candidatas a termo da área da Gestão Escolar.

O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira seção


apresentamos os aspectos introdutórios da pesquisa; em seguida, expomos
a metodologia utilizada; na terceira seção, traçamos o referencial teórico,
subdividido em dois aspectos: o primeiro versa sobre a interface dos estudos
da Terminologia, com base em Krieger e Finatto (2019) e da Linguística de
Corpus, com base em Sardinha (2000), com ênfase para a importância do
uso das ferramentas computacionais na pesquisa terminológica;
posteriormente, pontuamos as características gerais do software AntConc.
Na seção 4, resultados e discussão, tratamos sobre o uso da ferramenta
computacional para a extração e seleção dos termos. Para finalizar, nas
considerações finais, pontuamos nossas observações sobre as
funcionalidades do software e as possibilidades de pesquisa a partir das
discussões pautadas no artigo.

1 METODOLOGIA

A presente pesquisa é um recorte da dissertação em andamento


intitulada “A variação denominativa na terminologia da Gestão Escolar”, de
base qualitativa, com objetivo explicativo e exploratório, tendo em vista o
propósito de discutir os termos específicos que circulam nos textos da área
em estudo (SEVERINO, 2007).

Para a composição do corpus da pesquisa utilizamos os critérios de


seleção propostos por Sardinha (2000) e selecionamos 30 textos acadêmico-
científicos que tivessem como característica principal a presença da
palavra-chave “Gestão Escolar” e que fossem produzidos a partir de estudos

598
voltados à Educação. Dessa forma, foram selecionados dez artigos,
produzidos por doutores e devidamente publicados em periódicos da CAPES,
dez dissertações e dez teses de programas de pós-graduação em Educação
de universidades brasileiras.

Os textos, inicialmente em pdf, foram codificados com a primeira letra


de cada gênero (A para artigo, D para Dissertação e T para Tese), em
maiúsculo, seguido do número de ordem (01 a 10). Logo após, foram
convertidos para o formato docx e passaram por um processo de “limpeza”,
que diz respeito à retirada de todas as informações que não são objeto da
investigação. Posteriormente, foram convertidos para o formato txt (texto
sem formatação) para, assim, serem utilizados no AntConc.

De posse desse corpus, iniciamos o processo de extração e seleção de


candidatas a termo, seguindo critérios de reconhecimento específicos, que
resultou em uma lista com oitenta e oito unidades. Nas seções subsequentes,
iremos explorar de que forma utilizamos as ferramentas do AntConc para a
organização dessa lista de candidatas a termo, que serviu de base para a
investigação proposta na dissertação.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Nesta seção, apresentamos apontamentos gerais sobre os estudos


terminológicos e sua vinculação à Linguística de Corpus, com base,
principalmente, em Kriger e Finatto (2019) e Sardinha (2000). Também
expomos uma caracterização geral da ferramenta AntConc, com base em
Gonçalves (2016) e nas informações constantes no site oficial do programa.

599
2.1 A PESQUISA EM TERMINOLOGIA E A LINGUÍSTICA DE CORPUS

A Terminologia, enquanto disciplina com objetos teórico-


metodológicos próprios é um ramo de estudos relativamente novo. Embora
o uso de termos técnicos esteja presentes na comunicação humana desde
a Antiguidade, com as primeiras composições de campos de trabalho ou
estudos, a sistematização de uma área específica que tratasse dos termos
surge com as pesquisas do engenheiro austríaco Eugen Wüster (1998).

Conhecido como o fundador da Terminologia, Wüster (1998) propôs


uma teoria que tratasse da sistematização dos termos técnicos, com um viés
descritivo, que apontava para o estudo dos termos do ponto de vista da
univocidade e monorreferencialidade (KRIEGER; FINATTO, 2019).

Embora tenha sido o pontapé inicial para o desenvolvimento dos


estudos terminológicos, a proposta de Wüster, denominada Teoria Geral da
Terminologia (TGT) possibilitou diversas reflexões sobre o entendimento dos
termos, provocando o surgimento de outras teorias que tratam da presença
de diferentes fenômenos linguísticos, com ênfase nos aspectos
comunicativos e pragmáticos, na sistematização das terminologias.

Citamos, por exemplo, a Socioterminologia, de Gaudin (1993), que tem


como viés a presença da variação na comunicação especializada, a partir
das contribuições da Sociolinguística; a Teoria Sociocognitiva da
Terminologia, de Temmerman (1997), que, a partir dos estudos da Semântica
Cognitiva, aborda o estudo dos termos a partir de categorizações; e a Teoria
Comunicativa da Terminologia, de Cabré (2005) e os colaboradores do

600
IULATERM 83 , que tem como cerne o entendimento de que o léxico
especializado faz parte do léxico comum e que os termos possuem uma
perspectiva poliédrica, com uma face linguística, uma cognitiva e uma
comunicativa.

A Terminologia possui uma interface com a Linguística de Corpus (LC),


tendo em vista que, para analisar o comportamento dos termos nos textos
especializados, há a necessidade de trabalhar com corpora linguísticos.
Devido a essa necessidade, a LC é uma forte aliada no processo de
identificação dos termos de uma área de especialidade, a partir da
construção e análise do corpus das pesquisas com viés terminológico.

Segundo Sardinha (2000), para a constituição de um corpus linguístico,


é necessário obedecer a quatro critérios específicos:

1. Autenticidade (textos produzidos naturalmente, ou seja, que não


tenham como objetivo serem corpus de pesquisa);
2. Escritos em língua nativa;
3. Critérios de escolha específicos;
4. Representatividade (relacionado, além de outros aspectos, à
extensão do corpus, como o número de textos, palavras e gêneros
textuais).

É importante destacar que os preceitos da Linguística de Corpus


agregam elementos como confiabilidade às análises realizadas nas
pesquisas em Terminologia, tendo em vista que os textos produzidos pelos
especialistas são o hábitat natural onde circulam os termos das áreas de
especialidade (LIMA, 2017).

83 O grupo IULATERM é parte do Instituto de Linguística Aplicada da Universidade


Pompeu Fabra (Barcelona) e foi fundado por Maria Teresa Cabré em 1994, atuando nas
áreas de Léxico e tecnologia. Site oficial: https://www.upf.edu/es/web/iulaterm

601
A LC possui vinculação às ferramentas da Informática, tendo em vista
a necessidade de compilação e análise de um volume de textos geralmente
extenso. Com isso, o pesquisador conta com os softwares voltados à análise
linguística, no intuito de obter maior rapidez e fidedignidade com os dados
coletados. Maciel (2001a, p. 373) esclarece a importância do uso das
ferramentas tecnológicas para as pesquisas com viés terminológico:

Como se sabe, a publicação de textos especializados se


multiplica em progressão geométrica, tornando impraticável a
pesquisa terminológica tradicional feita, até há bem pouco
tempo, a ponta de lápis e a olho nu. A utilização de recursos
informatizados torna-se, portanto, uma exigência logística. De
outro lado, a necessidade de tais recursos decorre
fundamentalmente de uma posição teórica que vê o termo
como a unidade lexical cuja especificidade é ativada na sua
manifestação textual. [...]
[...] Ainda que não possa substituir o trabalho pessoal do
terminológo, o computador contribui para reduzir o tempo e o
esforço físico e mental empregados no exame de enorme
quantidade de textos. [...] Isto não quer dizer que se vá
substituir o homem pela máquina, mas sim que serão
oferecidas ao humano ferramentas para a agilização do seu
trabalho de pesquisa.

Após essa breve explanação sobre a interface entre Terminologia e


Linguística de Corpus, apesentaremos, no subtópico a seguir, uma
caracterização geral sobre o software AntConc.

2.2 CARACTERÍSTICAS GERAIS DO SOFTWARE ANTCONC

O AntConc é um software desenvolvido pelo pesquisador Laurence


Anthony, professor e coordenador do CELESE (Center for English Language

602
Education in Science and Engineering), na universidade japonesa Waseda.
Essa ferramenta é compatível com diversos sistemas operacionais e está
disponível para download gratuito no site
https://www.laurenceanthony.net/software/antconc/.

O AntConc é caracterizado como um extrator de termos, sendo


bastante utilizado nas pesquisas voltadas à Linguística de Corpus, com
ferramentas diversas e específicas, que são extremamente úteis ao processo
de coleta de dados para análises linguísticas. O site do programa oferece
amplas informações sobre o uso do AntConc, além dos guias em arquivos no
formato pdf, em diferentes idiomas, dos quais destacamos o guia em língua
portuguesa, organizado por Gonçalves (2016). Além disso, há um canal na
plataforma YouTube, com tutoriais em vídeos sobre o uso de cada
ferramenta do programa84.

Abaixo, na Figura 01, apresentamos a tela inicial do AntConc, onde é


possível identificar algumas dessas ferramentas. Em seguida, fazemos uma
breve descrição de cada uma delas.

84 https://www.youtube.com/user/AntlabJPN

603
Figura 1: Tela inicial do AntConc

Fonte: https://www.laurenceanthony.net/software/antconc/

As primeiras informações da tela dizem respeito às configurações


gerais do programa. Em Files, é possível selecionar as opções referentes aos
arquivos que compõem o corpus da pesquisa, que devem estar previamente
salvos no formato txt (texto sem formatação). Nessa aba, é possível
selecionar um ou todos os arquivos do corpus.

Na sequência, temos as configurações gerais (global settings), que


possibilitam modificações nas cores e fontes das letras utilizadas no programa,
por exemplo. Nesse item também é possível configurar os símbolos presentes
nos arquivos que sejam importantes na pesquisa desenvolvida, como sinais
matemáticos, por exemplo.

No terceiro item (tool preferences), é possível configurar cada uma das


ferramentas do programa, a partir do objetivo da pesquisa a ser realizada.
Por fim, no item ajuda (help) é possível encontrar informações gerais sobre o

604
programa, como instruções gerais de uso e também sobre a licença do
software.

De acordo com a figura, logo abaixo dos itens de configuração do


programa, temos o “Corpus Files”, onde são alocados os textos que
compõem o corpus em análise. Ao lado, temos uma lista horizontal
composta pelas sete ferramentas que realizam a análise do corpus, cada
uma com uma função específica, descritas, resumidamente, abaixo, com
base em Alberts-Franco (2015):

● Concordance: apresenta as concordâncias presentes no corpus de


acordo com o termo selecionado;

● Concordande Plot: é uma espécie de resumo das ocorrências do


termo no corpus, indicando em quais textos aparece e quantas vezes está
presente em cada um;

● File View: mostra o termo em análise no arquivo selecionado;

● Clusters/N-Grams: gera uma lista de combinações dos termos em


análise em ordem alfabética, de frequência, entre outros;

● Collocates: gera uma lista ordenada das palavras próximas ao termo


em análise;

● Word List: gera uma lista de todas as palavras do corpus;

● Keyword List: gera uma lista de palavras-chave, comparando-se a


frequência das palavras do corpus de estudo com a frequência das palavras
de um corpus de referência.

O AntConc é uma ferramenta com leiaute simples e de fácil manuseio


e representa um recurso de grande auxílio às pesquisas com viés
terminológico, tendo em vista que a extração de termos de uma área de
especialidade por meio de uma ferramenta tecnológica facilita o trabalho

605
do pesquisador e produz resultados fidedignos, a partir do corpus
selecionado. Como afirma Gonçalves (2016 p. 4), “o AntConc suporta um
grande número de documentos em uma mesma análise e oferece opções
avançadas que permitem um melhor manuseio dos dados de acordo com
suas necessidades”.

Após essa caracterização, expomos, na seção a seguir, o modo como


aplicamos as ferramentas do programa na seleção e análise das candidatas
a termo da área da Gestão Escolar, de acordo com o objeto de estudo
proposto na dissertação.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Conforme as etapas descritas na metodologia, o corpus da pesquisa


foi devidamente selecionado, codificado, limpo e convertido para o formato
txt para que pudesse ser utilizado no AntConc.

O primeiro passo da pesquisa foi elaborar uma lista das unidades


linguísticas presentes no corpus. Para esse passo, foi utilizada a ferramenta
Wordlist (Figura 2). Essa ferramenta gera uma lista com todas as palavras
presentes no corpus, em ordem de frequência. É importante frisar que, para
a Terminologia, a frequência com que uma unidade linguística aparece no
corpus não indica que ela seja necessariamente um termo da área de
especialidade analisada. É essencial realizar uma investigação linguística
mais completa, com critérios específicos, a partir do comportamento das
unidades nos textos especializados, seu hábitat natural, para assegurar que
a unidade analisada seja, de fato, um termo representativo da área.

606
Figura 2: Ferramenta Wordlist

Fonte: Dados do corpus da Gestão Escolar em uso no programa AntConc

Todavia, a lista “bruta” de todas as unidades presentes no corpus


permite que o pesquisador mobilize critérios, a partir dos objetivos de sua
pesquisa, para delimitar quais dessas unidades serão candidatas a termo. No
corpus da Gestão Escolar utilizamos os seguintes critérios de seleção, a partir
dos estudos de Lima (2017): a) pertinência temática, que diz respeito ao
termo stricto sensu, ou seja, que pertence à área; b) pertinência pragmática,
que são termos lato sensu, isto é, que pertencem a outras áreas de
especialidade, mas fazem parte do léxico da área em estudo (MACIEL,
2001b); c) classe gramatical dos substantivos e sintagmas nominais; d)
confiabilidade, a partir do teste de fiabilidade, realizado com especialistas
da área.

De posse da lista “bruta” das unidades do corpus, utilizamos o terceiro


critério de seleção das candidatas a termo, eliminando as palavras
gramaticais, como os artigos, preposições e outros elementos que não eram
objetos da pesquisa.

607
É importante frisar que o AntConc não salva as informações coletadas
no programa. Isso significa que, sempre que for necessário analisar o corpus,
será preciso realizar todo o passo a passo novamente. Porém, o software
possui uma ferramenta denominada clone results, localizada na parte de
baixo da tela, no canto direito, com a qual é possível migrar os dados para
uma planilha que pode ser salva no computador.

Com a lista gerada pela ferramenta Wordlist e devidamente lapidada,


foi utilizada a ferramenta Concordance (Figura 3). Essa é uma ferramenta
muito importante na seleção das candidatas a termo, pois com ela é possível
identificar os contextos onde as unidades linguísticas estão presentes, o que
auxilia o pesquisador na identificação de quais delas pertencem ao universo
da área de estudo.

No exemplo exposto na figura 3, digitamos a palavra “gestão” no


campo de busca. A ferramenta Concordance disponibiliza os diferentes
contextos onde a unidade lexical aparece, com a indicação dos arquivos
onde o contexto está disponível. Com isso, é possível analisar o
encadeamento textual em torno da unidade selecionada.

Figura 3: Ferramenta Concordance

Fonte: Dados do corpus da Gestão Escolar em uso no programa AntConc

608
Outra ferramenta de bastante auxílio nessa etapa é a ferramenta
Concordance Plot (Figura 4), onde é possível observar o comportamento da
unidade selecionada nos arquivos que compõem o corpus. Essa ferramenta
é uma espécie de gráfico e aponta os dados estatísticos da candidata a
termo. Com isso, é possível observar em quais arquivos a candidata está
presente e quantas vezes ocorre em cada um deles. Além disso, a
ferramenta indica em que posição do texto a unidade aparece com maior
frequência, tendo em vista que o gráfico gerado no Concordance Plot é
semelhante a um “código de barras” e consegue demonstrar esse aspecto.

No exemplo exposto na figura 4, observamos que a unidade “gestão”


está presente nos arquivos A01 a A06 (expostos na tela do print), sendo que,
ao lado de cada gráfico consta a quantidade de ocorrências da unidade
no arquivo. Aqui, vemos que o texto A02 possui um número bem mais
expressivo de ocorrências (104) em comparação com os demais. Isso indica
que as análises do termo “gestão” terão um foco mais acentuado nesse
texto.

Figura 4: Ferramenta Concordance Plot

Fonte: Dados do corpus da Gestão Escolar em uso no programa AntConc

609
A ferramenta File View (Figura 5) também foi bastante utilizada na
pesquisa, pois com ela é possível verificar o contexto completo da candidata
a termo nos textos do corpus. Nessa ferramenta, o pesquisador consegue
selecionar cada ocorrência da candidata no texto e, com isso, elaborar sua
análise a partir do seu objeto de pesquisa. No nosso caso, como analisamos
o fenômeno da variação denominativa no corpus, a análise de cada
ocorrência foi importante para identificar os contextos de uso das
candidatas a termo e, dessa forma, delimitar as situações de autovariação,
por exemplo, que é quando os termos possuem variantes dentro de um
mesmo texto (FREIXA, 2002).

No exemplo exposto na figura 5, o termo “gestão” está sendo indicado


no texto T02, a partir das suas 41 ocorrências, apontadas no item “hit
location”. Aqui, observamos que é possível investigar as diferentes
contextualizações do termo no corpo do texto do corpus, o que possibilita
uma análise mais acentuada.

Figura 5: Ferramenta File View

Fonte: Dados do corpus da Gestão Escolar em uso no programa AntConc

610
Outra ferramenta de grande auxílio foi a Clusters/N-Grams (Figura 6).
Com ela, é possível observar as combinações entre as unidades e, dessa
forma, a identificação de candidatas a termos compostos torna-se mais fácil.

No exemplo da figura 6, observamos as diferentes combinações


realizadas a partir do termo “gestão”, acompanhadas da frequência de
cada uma no corpus. Aqui é possível identificar as seguintes candidatas a
termos compostos: gestão escolar, gestão democrática, gestão pública,
gestão educacional, gestão participativa, gestão pedagógica e gestão
gerencial. Assim, essa ferramenta possibilita o reconhecimento das unidades
compostas constantes no corpus, o que facilita as análises do pesquisador
na composição da lista de candidatas a termo.

Figura 6: Ferramenta Clusters/N-Grams

Fonte: Dados do corpus da Gestão Escolar em uso no programa AntConc

As cinco ferramentas citadas acima foram de suma importância para


a seleção das candidatas a termo da Gestão Escolar. Por meio delas, foi
possível construir uma lista com oitenta e oito unidades que serviram de base

611
para as análises realizadas na pesquisa de mestrado. As outras ferramentas,
Collocates e Keyword List, não foram utilizadas no processo, pois não
atendiam ao objetivo das análises realizadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste artigo foi discutir as funcionalidades do software


AntConc na pesquisa em Terminologia, utilizando como base o processo de
seleção e análise dos termos da Gestão Escolar. No percurso da pesquisa,
observamos que o uso do programa facilita o manuseio das informações,
além de agilizar o processamento dos dados constantes no corpus, a partir
da análise realizada e da ferramenta utilizada (figuras 2 a 6).

Apontamos, a partir das discussões propostas nas seções anteriores,


que os principais pontos positivos do software são a facilidade de acesso e
instalação. Além disso, há muitas informações sobre o uso do programa,
tanto por meio de vídeos quanto de guias em pdf, em diferentes idiomas,
disponíveis no site oficial do AntConc. Essas informações didatizam o uso do
programa, o que o torna de fácil entendimento e manuseio, mesmo por
parte de pesquisadores que possuam pouco conhecimento sobre
Informática, a nosso ver.

Outro ponto importante é que as ferramentas se complementam na


busca de informações sobre uma unidade linguística selecionada, ou seja,
ao clicar na unidade, é possível mobilizar os diferentes itens do programa
para ser possível analisá-la a partir de perspectivas diferentes. Com isso, o
pesquisador possui uma gama de opções de análise, o que acarreta um
maior aprofundamento ao seu objeto de pesquisa.

612
A partir dessas considerações, cremos que as discussões propostas
neste artigo suscitam, principalmente, estudos que tratem do detalhamento
e da importância das ferramentas tecnológicas de apoio às pesquisas
linguísticas, a partir de seus objetivos específicos.

REFERÊNCIAS

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programa AntConc e a extração de termos em alemão. The Especialist, vol.
36, n. 2 (182-202) 2015. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/esp/article/view/23977 Acesso em: 20 Abr. 2021.

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https://www.laurenceanthony.net/software/antconc/ Acesso em: 20 abr.
2021.

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textos de diferent grau d’especialització de l’àrea de medi ambient. Tesis
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Disponível em: https://www.tdx.cat/handle/10803/1677. Acesso em: 11 abr.
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institutionnelles. Rouen, Publications de l’Université de Rouen, 1993, 254 p.

613
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https://www.laurenceanthony.net/software/antconc/resources/help_AntCo
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ed. São Paulo: Contexto, 2019.

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(Doutorado Acadêmico em Linguística Aplicada) – Universidade Estadual do
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Temas de terminologia. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Universidade/ UFRGS/
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291p. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2001b.

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WÜSTER, E. Introducción a la Teoría General de la Terminología y la


lexicografía terminológica. Barcelona: Documenta Universitária, 1998.

615
ENSINO DE LITERATURA NO FUNDAMENTAL II: UMA EXPERIÊNCIA DE
PRÁTICA LITERÁRIA

Lucas Evangelista Saraiva Araújo 85

Antonia Eduarda Trindade 86

RESUMO: O Ensino de Literatura nos Anos Finais do Ensino Fundamental, 6º ao 9º ano, pauta-
se geralmente pela abordagem da Língua nos desintegrais textos literários contidos nos livros
didáticos. Para extrapolar essa abordagem mínima dos textos literários nesses livros e visando
atender o que diz a BNCC quanto à educação literária, o Projeto Apoio à Aprendizagem –
PAA, que foi instituído pela Resolução SE-68, de 27 de setembro de 2013 para atendimento
às demandas pedagógicas dos anos finais do ensino fundamental e das séries do ensino
médio na rede pública estadual da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-
SP), é um exemplo dessas práticas de linguagem. Tal projeto voltado aos alunos do 6º ao 9º
ano, em específico, na disciplina de Português, foi desenvolvido por um dos proponentes
dessa comunicação oral, no qual abordou a leitura literária, em roda de conversa, de
gêneros literários diversos; do poema ao romance, mediante o nível de cada série. Nosso
objetivo é apresentar o Projeto de Apoio à Aprendizagem – PAA, enquanto uma prática de
leitura literária em sala de aula. Para tanto, nos apoiamos em: JAUSS (1994), BAJOUR (2012),
AMORIM (2017), dentre outros. Em nossos resultados, pode-se inferir diante da
discussão/reflexão levantada, que o PPA transcende o ensino de literatura no fundamental
II e a abordagem da leitura e dos textos literários nos livros didáticos, pois coloca o aluno
enquanto leitor e a prática de leitura literária em primeiro plano.
Palavras-chave: Práticas, Leitura Literária, PAA.

INTRODUÇÃO

O ensino de literatura nos anos finais do ensino fundamental, 6º ao 9º


ano, pauta-se geralmente pela abordagem da Língua nos desintegrais textos
literários contidos nos livros didáticos. Essa abordagem mínima dos textos
literários reflete num ensino também mínimo. Inserida nesse ensino, a leitura

85 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí,


lucasevansaraiva@gmail.com
86 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí,

dhuda09hotmail.com

616
literária nesses anos, tende a ser desproporcional quanto se trata das
competências e habilidades leitoras desses alunos.

Os livros didáticos nesses anos apresentam os textos literários como


suporte para o ensino da gramática e/ou da língua portuguesa. Se os livros
em sala de aula tratam os textos literários dessa forma, é possível inferir que a
leitura desses textos também é tratada como tal. As recentes pesquisas dos
pesquisadores como Nascimento (2019), nos dão um norte dessa situação.

Mesmo que documentos oficiais como o guia do PNLD e a BNCC


prescrevam que os textos devam proporcionar uma experiência de leitura
que, ao longo prazo, fomente a formação do leitor literário, ainda persiste
nos anos finais do ensino fundamental, uma leitura que desprivilegia essa
experiência e o próprio aluno enquanto leitor. É diante dessa realidade, que
nosso relato de experiência reverbera.

Para extrapolar essa abordagem mínima dos textos literários nesses


livros e visando atender o que diz a BNCC quanto à educação literária, o
Projeto Apoio à Aprendizagem – PAA, que foi instituído pela Resolução SE-68,
de 27 de setembro de 2013 para atendimento às demandas pedagógicas
dos anos finais do ensino fundamental e das séries do ensino médio na rede
pública estadual da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-
SP), é um exemplo dessas práticas de linguagem.

Adiante, abordamos o Eixo Leitura da BNCC, que ver as práticas de


linguagem como uma interação entre o leitor e os textos escritos, a partir de
uma fruição estética (BARTHES, 1973). Logo em seguida, nosso relato de
experiência de uma prática de leitura literária permeada ao ensino de
literatura nos anos finais do ensino fundamental. A inserção dessa
experiência se faz necessária pelo fato de que nos textos literários nos livros

617
didáticos a leitura e os textos literários são meros pretextos para ensinar
gramática.

Diante disso, nosso objetivo é apresentar o Projeto de Apoio à


Aprendizagem – PAA, enquanto uma prática de leitura literária em sala de
aula. Para alcançarmos essa meta, fizemos metodologicamente uma
fortuna crítica acerca da temática em questão e fizemos uma
discussão/reflexão sobre o Projeto de Apoio à Aprendizagem, o que ele
reverbera e nos revela no que diz respeito à pratica de leitura literária nos
anos finais do ensino fundamental.

O PAA reverbera uma transcendência de abordagem da leitura e do


livro didático nesse nível de ensino e coloca em primeiro plano, a leitura e o
leitor literários. Por isso, enquanto prática de uma leitura essencialmente
literária, o PAA cumpre com sua função de dá apoio/reforço à
aprendizagem dos leitores (alunos) do 6º ao 9º ano. É o que veremos logo
mais, ao debruçarmos sobre uma leitura em literatura compromissada e
coletiva (roda de conversa). Para tanto, contamos com JAUSS (1994),
BAJOUR (2012), AMORIM (2017), dentre outros.

1 METODOLOGIA

Nossa pesquisa contou previamente com uma pesquisa bibliográfica,


por meio de fichamentos. Por não envolver coleta de dados, focamos nas
leituras de obras que abordassem a nossa temática e que subsidiasse nossa
discussão/reflexão, por isso, nossa pesquisa é qualificativa e descritiva, sendo
exequível quando abordamos nosso relato de experiência.

Levantamos o que poderíamos abordar enquanto estudo em nosso


artigo e em seguida delimitamos nossa temática a partir dessas leituras

618
prévias e por meio da experiência em sala de aula permeada pela
abordagem da leitura literária nos anos finais do fundamental II. Segundo
Prodanov e Freitas (2013), esse tipo de pesquisa possui uma análise mais
qualitativa/descritiva.

2 A BNCC E O ENSINO DE LITERATURA

A literatura, com certeza, é uma das bases de grande importância


para o ensino, para aprendizagem e no processo de formação educacional
do corpo docente. A grande maioria dos estudantes pensam que ela é uma
disciplina destinada a leitura de livros e paradidáticos em disciplinas da
língua portuguesa, no entanto, ela deve e pode sim, ser contemplada nas
mais diversas áreas do conhecimento.

Com efeito, não há uma delimitação da literatura como um


componente curricular específico, mas mesmo assim, a literatura está
inserida em toda a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em vários
setores do documento e em vários segmentos do ensino e visa ser ensinada
em vários aspectos não só do texto Ficcional, mas também pela língua
portuguesa.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é, com certeza, um dos


maiores documentos que define a base do aprendizado durante toda a
formação e trajetória do aluno, desde a educação infantil até o ensino
médio.

Isso, trata, portanto, de uma importante ferramenta para funcionar


como um guia para as escolas no tocante a elaboração e atualização dos
currículos e disciplinas a serem abordadas em sala, funcionando como uma
referência primordial dos objetivos do ensino e aprendizagem em cada

619
etapa da formação dos alunos, enquanto estudantes da educação básica.
Esse documento, também, leva em consideração as particularidades da
sociedade, das regiões, e em termos culturais e metodológicos de cada
instituição de ensino que são consideradas singulares.

Essas medidas têm o fito intuito de estabelecer uma educação


igualitária, que leve uma educação de qualidade e que abarque todo o
território nacional, pois um dos objetivos da BNCC é a formação dos
cidadãos brasileiros. Quanto a abordagem da BNCC, sua estrutura leva em
consideração uma formação fundamental e uma formação a nível médio,
ou seja, Ensinos fundamental e médio, com há uma divisão do conhecimento
em cinco campos da experiência e do infantil que são: O eu, o outro e o nós;
Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala,
pensamento e imaginação; Espaço, tempo, quantidades, relações e
transformações.

Além disso, a Base Nacional Comum Curricular, também um caráter


normativo estabelecendo objetivos para a aprendizagem que são definidos
mediante as competências e habilidades essenciais. Com isso, a literatura
está, inicialmente, contemplada sobretudo na terceira das dez
Competências Gerais da Educação Básica, essa competência diz respeito a
escola ser um local propenso as manifestações artísticas, em aproximação
da literatura com as artes, não sendo apenas a leitura de obras e estudos
voltados as escolas literárias.

Dessa forma, a BNCC descreve o ensino de literatura da seguinte


maneira: valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas, das locais às
mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção
artístico-cultural. A primeira situação da literatura na BNCC diz respeita em si,
ao papel da escola sendo um local propício às manifestações de arte. Com

620
isso, os estudantes podem ter acesso a literatura de diversos países, como,
também outras culturas, no intuito de enriquecer o ensino-aprendizagem.

3 A ABORDAGEM DA LITERATURA NO ENSINO FUNDAMENTAL SEGUNDO A


BNCC

No ensino fundamental, a literatura, conforme a Base Nacional


Comum Curricular BNCC, entende a formação do leitor e está
compreendido dentro da disciplina de Língua Portuguesa e está assim
discriminada:

Compreender as linguagens como construção humana, histórica,


social e cultural, de natureza dinâmica, reconhecendo-as e
valorizando-as como formas de significação da realidade e
expressão de subjetividades e identidades sociais e culturais.
Conhecer e explorar diversas práticas de linguagem (artísticas,
corporais e linguísticas) em diferentes campos da atividade humana
para continuar aprendendo, ampliar suas possibilidades de
participação na vida social e colaborar para a construção de uma
sociedade mais justa, democrática e inclusiva. (p. 62)

Para o ensino fundamental, espera-se que o aluno compreenda a


importância da leitura como uma das dimensões da literatura, de modo a
continuar ampliando seu repertório sócio cultural. Espera-se, também, que o
aluno desenvolva interesse por obras clássicas da literatura, tenha interesse
por textos desconhecidos e desafiadores, com o fito intuito de formar o leitor-
fruidor. Outro ponto importante do ensino de literatura dentro do ensino
fundamental diz respeito ao envolvimento do aluno e a progressão das
atividades e das práticas de leitura.

O professor deve propor a prática da leitura de obras e textos literários,


bem como o estudo dessas obras, a interação do aluno com o diferente e o

621
despertar do aluno para novos horizontes da leitura para a ampliação do seu
repertório sócio cultural. Ainda, dentro da língua portuguesa, o campo de
estudo da literatura dialoga fortemente com o artístico-cultural, assim
compreendo a formação do aluno, também como um sujeito social e
cidadão. Esse campo do artístico-literário objetiva, de forma especial e
ampla, a valorização dos textos literários, proporcionando o fruir na
formação do leitor-fruidor e do cidadão:

Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar aos


estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos
letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e
crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela
oralidade, pela escrita e por outras linguagens (p. 68).

A Escola e o ensino de literatura, sem dúvidas t um grande papel na


formação de leitores, assim o contato do aluno com diversos textos e obras
literárias o ajudam a entender a dinamicidade social das artes e o
incentivam a ler. Dessa maneira, o ensino de literatura no ensino fundamental
é inserido dentro do ensino de língua portuguesa e está atrelado as práticas
do letramento.

4 A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DE LITERATURA

A literatura é conhecida como a arte da palavra, mas também é um


instrumento de interação social, cultural e do saber, além de ser uma
importante ferramenta de comunicação. É por meio das obras literárias que
o autor expõe seu ponto de vista, traz importantes considerações de épocas
históricas e leva o leitor a refletir sobre si, sobre o outro e a interação do si e
do outro. Através disso, a literatura, assim como a arte de forma geral vão
contribuir ainda para refletir o senso comum, estimulando pensamentos

622
críticos e fundamentais para o processo de transformação e integração
social.

O posicionamento crítico confere aos estudantes questionar diversas


atitudes e se relacionar com diversas áreas do conhecimento para resolução
de seus problemas. Além disso, a leitura propícia o prazer imensurável e
intelectual. Através da leitura há o contato com personagens e com a ficção,
há a identificação dos alunos com esses personagens estimulando várias
reações, mas acima de tudo respeito e empatia em situações adversaras.

Para essa empreitada cabe ao Professor ser alicerce para que o aluno
se adentre a literatura, com isso os livros e obras literárias pode ser incluído
em projetos pedagógicos e até em projetos interdisciplinares quando esses
tratam de aspectos históricos, geográficos e ambientais, meio ambiente, de
determinada região. O desenvolvimento de práticas como essas têm muito
a contribuir, tanto para o exercício de letramento dos alunos como para
formação intelectual, pessoal e social.

Para possibilitar esses projetos e vários outros que podem surgir ao


longo do percurso de ensino e da aprendizagem, a Base Nacional Comum
(BNCC) prevê e instaura a formação do leitor-fruidor e, posteriormente, o
leitor- protagonista ao longo de todas as etapas escolares para que o corpo
discente possa se adentrar e usufruir dos benefícios dessas práticas escolares.
A Literatura na BNCC é apresentada como uma maneira de promover uma
imersão dos alunos em obras diversas e no experimentar das artes, com a
finalidade de formar alunos com um pensamento crítico, aberto às
diferenças e com pelo desenvolvimento das habilidades suscitadas para o
século atual.

623
5 O PROJETO DE APOIO À APRENDIZAGEM – PAA, COMO PRÁTICA DE LEITURA
LITERÁRIA: O VALOR DA ESCUTA

Mesmo com avanços, no nosso caso, nos anos finais do ensino


fundamental (6º ao 9º ano), o ensino de literatura ainda é pautado,
majoritariamente, por uma abordagem desintegral de textos literários
contidos nos livros didáticos. Se os textos não são integrais, mesmo avaliados
e disponibilizados pela PNLD), é possível imaginar como se dá a leitura desses
textos. Diante disso, se faz necessária a extrapolação dessa abordagem
mínima dos textos literários nesses livros.

Como vimos, a BNCC aponta: “O Eixo Leitura compreende as práticas


de linguagem que decorrem da interação ativa do
leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de
sua interpretação, sendo exemplos as leituras para: fruição estética de textos
e obras literárias” (p. 71). Nesse contexto, a prática da leitura literária em sala,
mesmo que obviamente, deve garantir essa fruição (BARTHES, 1973).
Enquanto direito e dignidade (CANDIDO, 2004).

As fronteiras da discussão teórica devem ser extrapoladas, de modo a


proporcionar a aplicação de práticas de leitura literária no ensino de
literatura dos anos finais do ensino fundamental. O Projeto Apoio à
Aprendizagem – PAA, que foi instituído pela Resolução SE-68, de 27 de
setembro de 2013 para atendimento às demandas pedagógicas dos anos
finais do ensino fundamental e das séries do ensino médio na rede pública
estadual da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP), é um
exemplo dessas práticas de linguagem (literária).

O Projeto Apoio aprendizagem funcionava da seguinte maneira: um


professor entrava na sala de aulas do 6º ao 9º ano para substituir um professor

624
que faltasse em determinado dia. O professor substituto deveria desenvolver
com os alunos um projeto que reforçasse o ensinoapredizagem desses alunos.
Em nosso caso, esse reforço/apoio se deu na disciplina de língua portuguesa,
especificamente nas aulas de leitura em literatura. Tal projeto é voltado aos
alunos do 6º ao 9º ano e desenvolvido, no nosso caso, na disciplina de
português. A leitura literária de gêneros literários diversos foi o foco do projeto.
Lia-se poemas a romances, mediante o nível de cada ano e essa leitura era
feita sempre em roda de conversa (BAJOUR, 2012.

Enquanto tal professor, desenvolvi um projeto de leitura literária


coletiva, na qual os alunos eram protagonizados no processo literário
levantado por mim. Para cada ano, um gênero literário para trabalhado, isto
é, eram utilizados de poemas à romances. A configuração dessa leitura era
feita mediante a uma roda de conversa, cuja a escuta era o principal
objetivo da leitura; o ouvir nas entrelinhas (BAJOUR, 2012). Segundo a autora,
“construir significados com outros sem precisar concluí-los é condição
fundamental da escuta, e isso supõe a consciência de que a construção de
sentidos nunca é um ato meramente individual” (p. 25). Isto é, o valor da
escuta perpassa uma prática de leitura como essa.

De acordo com Jauss (1994), o leitor é o fio condutor do processo


literário e é ele quem recepciona o texto literário. Por isso, os alunos eram
ouvidos nas entrelinhas e na roda de conversa, nas pausas das leituras feitas,
ele manifestava sua opinião e indagava sobre coisas a respeito da dessas
leituras. Dessa maneira, os professores enquanto mediadores “entre os
leitores e os textos, é enriquecedor pensar como leitura esse momento do
bate-papo sobre o lido, o intercâmbio acerca dos sentidos que um texto
desencadeia em nós [...] Falar dos textos é voltar a lê-los” (BAJOUR, 2012, p.
23)

625
É válido a inserção da teoria em práticas como essa, contudo, “a
teoria é mobilizada a partir daquilo que os leitores dizem sobre os textos, e
não de antemão: quando ela precede a leitura, condiciona e fecha
sentidos”. Ou seja, o leitor e ele pensa precisam ser levados em consideradas
no momento da aplicação de qualquer teoria, que por sua vez, deve ser a
base para o desenvolvimento de uma prática de leitura em sala de aula, e
não o contrário.

Sobre isso, Amorim (2017, p. 76) afirma “a necessidade da


incorporação do texto literário na prática de ensinagem de língua sem que,
no entanto, maiores discussões sejam apresentadas”. Isto é, A leitura literária
fica em segundo plano e abordagem dessa leitura nos livros didáticos é
precária e dificultam a incorporação do texto literária na prática do ensino
de literatura.

Nesse cenário,

Uma concepção importante para o trabalho com a leitura literária


nas escolas brasileiras é a de letramento literário. Entendido como o
processo de apropriação da leitura enquanto linguagem literária,
esse letramento deve ter início, se pensarmos somente na
escolarização, na educação infantil e acompanhar toda a vida
escolar do indivíduo. Além disso, esse letramento envolve a
apropriação dos textos, ou seja, a possibilidade de se ressignificar os
textos lidos de acordo com as vivências de cada leitor, atribuindo-
lhes sentidos que dialogam com as experiências relacionadas ao
mundo de cada um (NASCIMENTO, 2019, p. 141-142).

O letramento a partir da leitura literária requer um esforço mútuo do


professor, enquanto mediador, e do alunado, enquanto leitor, ambos
precisam se apropriar dessa leitura e do processo literário envolto à ela.
Sendo assim, “em experiências de leitura compartilhada, os mediadores que
aprendem a ouvir nas entrelinhas constroem pontes e acreditam que as
vozes, os gestos e os silêncios dos leitores merecem ser escutados. Se assim
for, quando é assim, ler se parece com escutar” (BAJOUR, 2012). A leitura e o

626
letramento literários estão intrínsecos ao que diz Bajour, pois é na escuta que
ambas as práticas se constroem, já que por meio do PAA, o texto literário
transcende o livro didático, fomenta a leitura e contribui com o letramento
essencialmente literário.

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Projeto Apoio Aprendizagem no contexto das práticas de leitura


literária cumpre sua missão de dá suporte à aprendizagem, especialmente,
ao ensino de literatura para além da abordagem desintegral do texto
literário nos livros didáticos dos anos finais do ensino fundamental. Posto isso,
é possível dizer que o PAA é uma prática de leitura que visa transcender essa
abordagem e que sem querer, contribui com o letramento literário. Ouvir o
que pensam os alunos, compreender o valor da escuta após a leitura literária
em roda de conversa se assemelha a ler.

O que para Bajour (2012), é uma possibilidade, para nós enquanto


professores e mediadores dessa leitura, é algo real, apesar das dificuldades.
Para além do que diz a BNCC no Eixo da Leitura. Pode-se inferir diante da
discussão/reflexão levantada, que o PPA transcende o ensino de literatura no
fundamental II e a abordagem da leitura e dos textos literários nos livros didáticos,
pois coloca o aluno enquanto leitor e a prática de leitura literária em primeiro plano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão/reflexão aqui levantada pretendeu apresentar uma


prática de leitura literária em que o leitor e a escuta foram os protagonistas
do processo literário envolto a essa leitura. Para mais, o Projeto Apoio à
Aprendizagem torna a leitura literária um momento de ouvir nas entrelinhas

627
(BAJOUR, 2012). Para além da teoria, discutimos/refletimos acerca da leitura
nos anos finais do fundamental como forma de reconectar o ensino de
literatura ao gosto pela leitura por meio da roda de conversa e da mediação
dessa leitura através do professor. O leitor é quem recepciona e atualiza o
texto literário, e nesse contexto, “os textos literários nos tocam e nos
questionam acerca de nossas visões sobre o mundo e nos convidam a
perguntarmo-nos como viveriam os o que é representado nas ficções”. A
leitura torna prático aquilo que é estático e perpassa a escuta, transcendo-
a, quando extraímos dela aquilo que é real.

REFERÊNCIAS

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I/LE. In: ______. Ensino de literaturas: perspectivas em linguística aplicada.
Campinas, SP: Pontes, 2017. p. 71-93.

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BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. Maria Margarida Barahona. Lisboa:


Edições 70, 1973.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,


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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de


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628
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Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Projeto Apoio à


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<http://www.educacao.sp.gov.br/lise/sislegis/detresol.asp?strAto=201412290071>.
Acesso em 25 jun. 2021.

629
TIPOLOGIA DE PERGUNTAS EM ATIVIDADES DE LEITURA PRODUZIDAS
NO CONTEXTO DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO DE LÍNGUA
PORTUGUESA

Bidamatcha Na Mam87

Maria de Lurdes Nazário88

RESUMO: Neste estudo analisam-se as perguntas sobre as dimensões linguística e textual de


dois textos usados em atividades de leitura produzidas por estagiárias/os do curso de Letras
no contexto do Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa (UEG), problematizando as
tipologias das perguntas elaboradas. O objetivo é compreender quais concepções de
linguagem/língua, de leitura e de sujeito-aluno subjazem às perguntas e refletir com as/os
estagiárias/os sobre tais escolhas didáticas. O estudo se fundamenta nas discussões sobre
leitura como prática social, sobre o uso do texto como pretexto para o ensino classificatório
da língua portuguesa e sobre como explorar em atividades de leitura a funcionalidade da
língua nos textos, pensando na construção dos sentidos. A pesquisa é um projeto da
Iniciação Científica, que se configura como um estudo quanti-qualitativo e de natureza
aplicada por propor uma ação de colaboração com a formação dos professores de língua
portuguesa a partir dos resultados encontrados. É assim uma pesquisa-ação por procurar
intervir no contexto pesquisado ao realizar uma roda de conversa com as/os discentes para
tal fim. Contou com a participação 19 alunos que elaboraram duas atividades de leitura
com o gênero crônica. A pesquisa está em andamento, mas já se observa que, apesar de
haver uma maioria de comandos sobre as dimensões linguística e textual que não
promovem a reflexão (questões do tipo cópia, objetiva, metalinguística), há muitas
perguntas que consideram os textos como uma atividade colaborativa e que exigem um
trabalho de compreensão mais complexo por parte do aluno leitor (questões do tipo
inferencial, global e subjetiva). Esse resultado foi discutido com as/os estagiárias/os,
momento em que puderem revisitar suas concepções e objetivar seus conhecimentos
teóricos e didáticos com a finalidade de construir novos conhecimentos sobre a produção
de um material de leitura.
Palavras-chave: Atividades de Leitura, Tipologia de Perguntas, Dimensões Linguística e
Textual.

87 Graduando do Curso de Letras da Universidade Estadual de Goiás, bolsista PIBIC, e-mail:


namabidamatcha@gmail.com
88 Doutora e Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás, professora

do curso de Letras da Universidade Estadual de Goiás, orientadora da pesquisa de Iniciação


Científica, e-mail: mariadelurdesnazario@gmail.com

630
INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a tipologia de


perguntas feitas sobre as dimensões linguística e textual de dois textos
explorados em atividades de leitura elaboradas pelas/os estagiárias/os do
curso de Letras da UEG/Anápolis, no contexto de Estágio Supervisionado de
Língua Portuguesa e Literatura, no ano de 2020.

No trabalho com a leitura na escola, é fundamental refletir sobre o


material didático usado pelo professor, focalizando os tipos de questões,
indagações que este elabora/seleciona para as atividades, visando à
formação de um leitor crítico e mais autônomo. Assim, o presente trabalho
se compromete com o estudo dos tipos de perguntas encontrados nas
atividades de leitura produzidas pelas/os estagiárias/os do curso de Letras,
com objetivo de compreender que concepções de linguagem/língua,
leitura e sujeito-aluno em formação subjazem as escolhas didáticas dessas/es
professoras/es em formação. Pretende-se ainda refletir sobre a abordagem
de ensino de língua portuguesa que se indicia com as perguntas propostas.
Essa reflexão sobre tais questões procura compreender se são perguntas de
identificação/classificação da língua, do texto e/ou se exploram a
funcionalidade dos elementos linguísticos e textuais na construção dos
sentidos das crônicas lidas.

Esta pesquisa faz parte dos estudos de Linguística e Ensino, os quais


formulam uma compreensão teórica sobre como ensinar a língua
portuguesa nas escolas de forma significativa para o aluno. Para tanto, o
trabalho se fundamenta nos estudos sobre leitura (KLEIMAN, 2004;
MARCUSCHI, 2008), sobre texto, leitura, tipologia de perguntas e análise de
material didático (MARCUSCHI, 1996, 2008; CARVALHAES, 2016), sobre análise
linguística (GERALDI, 2011; MENDONÇA, 2006) em atividades de leitura.

631
A pesquisa tem uma abordagem quanti-qualitativa, propondo-se a
descrever a tipologia das perguntas em duas atividades de leitura
elaboradas por graduandas/os do 7º período do curso de Letras da Unidade
Universitária de Ciências Socioeconômicas e Humanas da UEG. Tais questões
foram descritas e analisadas seguindo a tipologia de perguntas descrita por
Marcuschi (1996), em sua pesquisa que investigou o trabalho com a
compreensão de texto em livros didáticos.

O texto inicia-se com uma exposição de como tem se pensado língua,


texto e leitura, fazendo uma discussão da perspectiva da análise linguística
no ensino de leitura e apresentando a tipologia de perguntas explorada na
análise. Em seguida, faz-se um detalhamento dos procedimentos
metodológicos adotados. Finaliza-se o artigo com os resultados preliminares
e sua discussão.

1 CONCEPÇÕES QUE FUNDAMENTAM O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

A realização da pesquisa desde a elaboração do plano de trabalho à


análise dos dados, se fundamenta na compreensão de língua como
interação na perspectiva bakhtiniana (MARCUSCHI, 2008; CARVALHAES,
2016), como ação interlocutiva situada (MENDONÇA, 2006). Ou seja, a língua
como sistema semiótico, histórico e socialmente construído. Sendo assim,
defende-se que o trabalho com texto na escola deve se fundamentar na
concepção de texto como evento comunicativo (BEAUGRANDE, 1997 apud
MARCUSCHI, 2008).

Compreender o texto como um processo comunicativo significa que


a sua produção e recepção envolve a negociação dos sentidos entre os
integrantes envolvidos no processo, de modo que “o sentido não está no

632
leitor, nem no texto, nem no autor, mas se dá como um efeito das relações
entre eles e das atividades desenvolvidas” (MARCUSCHI, 2008, p. 242).

Nessa concepção, o texto tem caráter inacabado porque admite


leituras diferentes, ou melhor, interpretações outras são possíveis pela
materialidade linguístico-textual num dado contexto de produção e
recepção. Como bem disse Marcuschi (2008, p. 242), “o texto é uma
proposta de sentido e se acha aberto a várias alternativas de compreensão”.
Em outras palavras, o sentido do texto está sempre em diálogo, em
negociação e em constante elaboração e reelaboração, possibilitando
assim leituras contextualizadas nas diversas condições sociais, culturais,
geográficas e temporais.

No entanto, o texto como uma proposta de sentido não quer dizer que
qualquer interpretação é possível. Há sim intepretações equivocadas e até
impossíveis de serem feitas, considerando que a “textualidade se dá como
sistema equilibrado entre forma e conteúdo” (MARCUSCHI, 2008, p. 242). Isto
é, há princípios de textualidade que asseguram leituras possíveis. É necessário
atentar-se para a estratégia argumentativa usada pelo autor, procurando
compreender suas intenções comunicativas e suas escolhas de uso da língua
num dado contexto.

Partindo desse conceito de texto como evento comunicativo, a leitura


é encarada essencialmente como atividade de compreensão, assim
distanciando-se do conceito da leitura como mera decodificação, em que
se busca apenas as informações objetivas e dadas no texto. Ler pressupõe
um leitor, de acordo com Angela Kleiman (2004), relativamente
independente, capaz de decodificar, inferir as informações e interpretar, a
partir de mobilizações diversas dos conhecimentos linguísticos,
enciclopédicos e socioculturais. Portanto, a leitura se torna uma atividade
criativa e sociointerativa. Como disse Marcuschi (2008, p. 252):

633
“compreender é, essencialmente, uma atividade de relacionar
conhecimentos, experiências e ações num movimento interativo e
negociado”.

Considerando o exposto, explorar nas aulas de leitura conhecimentos


das dimensões linguística e textual (como também discursiva, pragmática,
conceitual (OCEM, 2006)) se mostra fundamental no trabalho com essa
habilidade na educação básica.

A seguir, expõe-se a perspectiva da análise linguística no trabalho com


a leitura na escola.

2 A PERSPECTIVA DA ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO DE LEITURA

Considerando os estudos na área da Linguagem e Ensino de Língua


Portuguesa, a perspectiva da análise linguística (GERALDI, 2011) como
proposta pedagógica capaz de mediar diferentes conhecimentos sobre os
usos da língua no processo de ensino e aprendizagem se mostra eficiente.
Geraldi discorre sobre essa perspectiva em O livro na sala de aula (2011)
objetivando o trabalho com o texto produzido pelos alunos.

Conforme o estudioso, em sala, tais textos devem ser lidos, discutidos,


reescritos a partir da análise linguística direcionada pelo docente, tendo
nesse momento preocupações de aprendizagem que vão muito além de
questões normativas. A análise linguística se preocupa com questões
tradicionais de gramática, como também com a questão da coesão e da
coerência, questões da ordem estrutural do texto, análise dos recursos
textuais, discursivos, estilísticos, pragmáticos. O objetivo nessa perspectiva é
auxiliar o aluno no trabalho com seu texto, potencializando a sua

634
competência discursiva, textual e gramatical/linguística (MENDONÇA, 2006),
a fim de que possa atuar linguisticamente de forma eficiente no mundo.

A análise linguística não descarta o ensino de gramática, sendo esse


um aspecto importante no aprendizado da língua portuguesa na escola,
mas propõe uma metodologia diferente para o ensino de fenômenos
gramaticais juntamente com o estudo dos textuais e discursivos (MENDONÇA,
2006). Mendonça (2006) explicita que a real diferença entre duas formas de
ensinar a língua “começa pela própria concepção que se serve de base a
toda reflexão sobre o ensino de língua materna: o que é língua(gem)”, [pois
ao] “assumir determinada concepção de língua implica repensar o que é
importante ensinar nas aulas de português e também como realizar esse
ensino” (2006, p. 206).

Desse modo, a forma como se concebe a língua tem uma influência


direta na escolha da metodologia, nas escolhas didáticas do professor, em
como a língua é ensinada. Se a língua for concebida como sistema fechado,
transparente, e o texto como uma realidade objetiva e dada, tende-se a
privilegiar uma metodologia voltada ao tratamento da língua como um
sistema autorregulado e desassociado da realidade sociocultural dos
falantes e do texto como uma estrutura acabada. Por outro lado, se a língua
é concebida como mecanismo de interação social e o texto como evento
comunicativo, a abordagem de ensino a ser adotada tende a privilegiar a
reflexão crítica na abordagem dos conteúdos que contempla a realidade
sociocultural dos falantes.

Nesse sentido, é coerente a argumentação de Mendonça que


demonstra o potencial dessa perspectiva para o ensino de língua
portuguesa, ao dizer que a análise linguística

635
surge como alternativa complementar às práticas de leitura e
produção de texto, dado que possibilitaria a reflexão consciente
sobre fenômenos gramaticais e textual-discursivos que perpassam os
usos linguísticos, seja no momento de ler/escutar, de produzir textos
ou de refletir sobre esses mesmos usos da língua. (2006, p. 204).

E ainda quando expõe que

um trabalho de AL é a reflexão recorrente e organizada, voltada


para a produção de sentidos e/ou para a compreensão mais ampla
dos usos e do sistema linguísticos, com o fim de contribuir para a
formação de leitores-escritores de gênero diversos, aptos a
participarem de eventos de letramento com autonomia e eficiência.
(2006, p. 208).

Diante da exposição da autora, compreende-se que essa é uma


perspectiva de ensino importante também no trabalho com a leitura de
textos produzidos por escritores experientes. Analisar a escolhas linguísticas,
textuais, discursivas de um autor, considerando o contexto comunicativo, as
condições de produção e recepção do texto é habilidade fundamental no
processo de compreensão.

Neste trabalho, parte-se então da compreensão de que essa


perspectiva de ensino tem muito a contribuir com o trabalho realizado com
leitura na educação básica, explorando as diferentes dimensões dos textos
lidos – linguística, textual, discursivo-prágmática e conceitual (OCEM, 2006)
de forma reflexiva e crítica.

3 TIPOLOGIA DE PERGUNTAS EM ATIVIDADES DE LEITURA

Partindo dessa compreensão teórica e didática para o ensino de


língua portuguesa, especialmente aqui, para o ensino de leitura, esse

636
trabalho depende de como o professor pergunta para seu aluno, de como
o professor suscita reflexões sobre as leituras feitas. Para se pensar sobre essa
questão, a descrição das tipologias de pergunta de compreensão em livros
didáticos de língua portuguesa, desenvolvida por Antônio Marcuschi (1996,
2008) e adotada (com ligeira readaptação) por Wesley Carvalhaes (2016),
tem uma contribuição teórica fundamental para a formação de professores
nos cursos de Letras e Pedagogia. A descrição de Marcuschi (1996, 2008)
apresenta nove tipos de pergunta: cavalo branco (CARVALHAES, 2016)
renomeou esta de evidente em sua pesquisa), cópia, objetiva, inferencial,
global, subjetiva, impossível, vale-tudo e metalinguística.

Faz-se aqui uma exposição teórica a partir do trabalho de Marcuschi


(1996, p. 51-53), uma vez que não se vê acréscimos na formulação da
tipologia em seu texto publicado em 2008. Conforme o autor, as questões
cavalo branco (ou evidente) trazem na sua formulação a resposta, sendo
conhecida por reproduzir a ideia de um modelo de pergunta já bem
discutida pelos professores: “Qual é a cor do cavalo branco de Napoleão?”.

Já os tipos cópia e objetiva correspondem às questões que não


exigem esforço reflexivo para serem respondidas. A cópia lida com a
transcrição literal de uma palavra ou de uma expressão/frase do texto, com
uma estrutura como “Copie a fala do trabalhador”. Nessas questões é
comum o uso de verbos como: copie, retire, aponte, indique, complete,
identifique, entre outros. E por sua vez o tipo objetiva visa identificar
objetivamente a resposta já dada no texto numa atividade de
decodificação, como em “Quem comprou a meia azaul?” (MARCUSCHI,
1996). Há uma relação muito próxima entre questões cópia e objetiva.
Aquela objetiva a transcrição literal como resposta, o que não ocorre
necessariamente com esta, porém as duas lidam com o mesmo processo
não reflexivo e as respostas inscritas no texto.

637
Na categoria de questões reflexivas, segundo Marcuschi (1996), há os
tipos inferencial e global. Nessa categoria, é exigido um processo de reflexão
mais complexo e acurado, em que conhecimentos extra-textuais são
acionados. No primeiro tipo, parte-se de aspecto específico do texto para
tecer a reflexão, acionando conhecimentos pessoais, contextuais,
enciclopédicos, regras de inferência e análise crítica em busca da reposta,
como: “Há uma contradição quanto uso da carne de baleia no Japão.
Como isso aparece no texto”. Ao passo que, no segundo tipo, se consideram
o texto no seu todo e aspectos extratextuais, “envolvendo processos
inferenciais complexos”( MARCUSCHI, 1996, p. 52), a fim de responder à
pergunta, como em: “Qual a moral dessa história?”.

A tipologia subjetiva, como mostra Marcuschi (1996), faz parte da


categoria de questões não testáveis como impossível e vale-tudo, mas muito
se diferencia destas. Na subjetiva, pede-se opinião do aluno, lidando com o
texto de forma superficial e permitindo respostas não verificáveis, como: “Do
seu ponto de vista, a atitude do menino diante da velha senhora foi correta?”.
Inicialmente, perguntas que aceitam qualquer resposta podem ser
questionadas, mas compreende-se que, com a subjetiva, há a possibilidade
de o aluno participar de outra forma ativa no processo de ensino e
aprendizado ao focalizar sua subjetividade. Parece que essa questão pode
se configurar nas questões reflexivas, uma vez que abre caminho para que
aluno reflita e demonstre sua percepção particular, emita sua impressão e
leve seu cotidiano para o contexto de sala de aula de forma mais objetiva.

As questões metalinguísticas cobram conhecimento sobre aspectos


formais da estrutura do texto, do léxico e de partes textuais, como em
“Quantos parágrafos tem o texto?”.

Por último, o tipo vale-tudo são questões que admitem qualquer


resposta por não ter qualquer relação com o texto em questão, como em:

638
“De que passagem do texto você mais gostou?”. Já as questões do tipo
impossível trabalham com o conhecimento enciclopédico externo e não
contido no texto. São questões como “Caxambú fica onde?” que faz
referência a essa cidade sobre a qual o texto não fala (MARCUSCHI, 1996, p.
51-53).

4 METODOLOGIA

Este trabalho tem uma natureza aplicada por objetivar descrever um


fenômeno em busca de compreender seu funcionamento e propor uma
ação de colaboração no contexto pesquisado (SEVERINO, 2007). Nesse
sentido, configura-se como uma pesquisa-ação porque “além de
compreender, visa intervir na situação, com vistas a modificá-la” (SEVERINO,
2007, p. 120). A pesquisa tem uma abordagem quanti-qualitativa por
descrever a tipologia de perguntas sobre as dimensões linguística e textual
de dois textos usados em atividades de leitura e quantificar os dados, com a
finalidade de refletir sobre os resultados encontrados.

Além da pesquisa teórica realizada e anteriormente discutida, o


trabalho de campo se efetivou no contexto do Estágio Supervisionado do
curso de Letras da UEG de Anápolis, contando com a participação de 19
estagiárias/os do 7º período no primeiro semestre de 2020. A professora de
estágio Maria de Lurdes Nazário propôs a produção de duas atividades de
leitura com duas crônicas de autores brasileiros (Inimigos de Luís F. Veríssimo
e Debaixo da Ponte de Carlos D. de Andrade).

O corpus, então, deste trabalho se constitui dessas duas atividades,


contendo 114 questões da primeira atividade e 100 da segunda, totalizando
214 questões recebidas para apreciação. A partir desses dados, foram

639
aproveitadas para a pesquisa 97 questões que abordam aspectos
linguísticos e textuais das crônicas. Nessa etapa da análise, foram
identificadas questões com mais de um comando, questões que pediam
mais de uma resposta. A decisão metodológica foi considerar para a análise
cada comando separadamente na contagem dos dados, contabilizando
no final 120 comandos.

No processo de análise dessas questões, foi adotada a tipologia de


perguntas elaborada por Marcuschi (1996, 2008). Realizaram-se, então, a
identificação e a descrição dos tipos das questões para posterior
interpretação dos resultados. O modelo desenvolvido pelo estudioso postula
nove tipos de perguntas apresentados no referencial teórico (cavalo branco
de Napoleão, cópia, objetiva, inferencial, global, subjetiva, impossível, vale-
tudo e metalinguística) analisados. É importante deixar claro que na análise
faz-se uso das palavras questões, perguntas, comandos como sinônimos a
fim de contribuir com o processo coesivo do texto.

A partir dos resultados encontrados, empenhou-se em um trabalho de


reflexão dos mesmos à luz das teorias sobre ensino de leitura na escola, sobre
os tipos de perguntas mais eficazes no processo de compreensão de um
texto. Tais resultados foram apresentados e debatidos em uma roda de
conversa com as/os estagiárias/os realizada no mês de março de 2020, com
finalidade de problematizar as escolhas didáticas dessas/esses futuras/os
professoras/res e contribuir com sua formação. A seguir, apresentam-se os
resultados preliminares da pesquisa e sua discussão.

640
5 RESULTADO PRELIMINAR E DISCUSSÃO

Ao longo da pesquisa buscou-se compreender que concepções de


linguagem/língua, de leitura e de sujeito-aluno em formação fundamentam
as escolhas didáticas das/os estagiárias/os, analisando as duas atividades
produzidos no contexto do Estágio Supervisionado de Letras. Olhando para
os dados, ou seja, para os 120 comandos sobre as dimensões linguística e
textual, observou-se um resultado relativamente positivo, porque 35% das
questões exploram essas dimensões procurando fazer reflexão sobre os
sentidos dos textos. Dito de outra forma, há uma representação bastante
significativa ao somar as ocorrências das tipologias inferenciais (24%), globais
(5%) e subjetivas (8%). Os tipos inferenciais e globais, segundo Marcuschi
(1996, 2008), são importantes no trabalho com a compreensão de texto por
demandarem uma reflexão maior por parte do aluno, mais diálogo com o
texto e com o extratextual, o que pressupõe a língua como uma interação
verbal.

O número de 29 comandos inferenciais (24%), portanto, mais


complexos, explorando o conhecimento linguístico de forma reflexiva, como
em “(44) Relacione a escolha gramatical das palavras, ‘Ela’, ‘Essa aí’,
‘Aquilo’, com as possíveis interpretações da crônica pelo leitor”, demonstra
que as/os estagiárias/os estão atentas/os à importância dessa abordagem
no ensino de leitura. O autor da questão (44) pede uma ação reflexiva que
vai além da decodificação desses elementos linguísticos, pois, para ser
satisfatoriamente respondida a questão, o aluno precisa conhecer os usos
discursivos e pragmáticos desses pronomes, em situações de comunicação
em que tais pronomes são usadas para denegrir, desqualificar o outro.

641
Tais informações não estão inscritas na crônica e só podem ser
recuperadas a partir de informações extratextuais, considerando os usos
discursivos e pragmáticos (é o marido que chama a mulher de “essa aí” e
“aquilo” depois de algum tempo casados) que se faz dos pronomes. Na
crônica, o narrador demonstrar o desgaste da relação de um casal em
função do tempo (inimigo do amor), de forma que o esposo, que no início
do casamento chamava a esposa de Quequinha, passa a se referir à esposa
com esses termos com uma carga semântica negativa. Para compreender
o uso desses pronomes, é preciso acessar conhecimentos extra-textuais,
significados históricos e culturalmente construídos para se referir a uma
pessoa (mulher/esposa) em uma situação social como a do texto. Desse
modo, a pergunta 44 configura-se na tipologia inferencial, que requer um
processo de reflexão para além do texto (MARCUSCHI, 1996, 2008).

Ocorreram 6 comandos do tipo global (5%) que assim como a


inferencial exige uma reflexão também mais acurada, demandando
conhecimentos extratextuais para serem respondidas satisfatoriamente. Para
elucidar melhor, segue-se o exemplo: “(23) De acordo com a sua
interpretação, qual é a mensagem que o texto apresenta quando Norberto
chama Maria Tereza por vários apelidos em diversos momentos? ”. Nessa
indagação, pode-se perceber o caráter abrangente dessa tipologia, que
contempla o texto no seu todo, não concentrando num aspecto especifico
da crônica, como acontece no tipo inferencial, mas o estagiário pede
mensagem central do texto que se pode obter pelas diferentes formas com
as quais a tal personagem Maria Tereza é nominada no texto.

Foram contabilizadas 10 questões subjetivas (8%) como: “(32) Na sua


opinião, qual o possível sentimento da mulher ao ser referida como ‘aquilo’
por alguém que ela compartilhou anos?”. Nessa pergunta, a resposta
esperada é um posicionamento individual do aluno, que depende do seu

642
contexto de vida; de modo que o professor, pela natureza da questão, não
tem parâmetro para avaliar a resposta. Esse tipo de questão ajuda o
professor a ter mais conhecimento do cotidiano de seus alunos que
participam centralizando sua subjetividade no processo educativo.

Por outro lado, segundo Marcuschi (2008), além dessa tipologia lidar
com o texto de forma superficial, pode ainda ocorrer de a opinião do aluno
ser moldada pela opinião do professor, ou seja, ocorre de este ser uma
influência sobre o que aquele pensa. Essa possibilidade exige cuidado e
cautela da parte do docente a fim de não usar da sua posição privilegiada
para ditar o que o outro deve pensar/dizer.

Dito isso, considerando a importância da participação ativa dos alunos


no processo de ensino-aprendizagem, a tipologia subjetiva, quando bem
formulada/explorada (talvez pensar em critérios de elaboração, como
sugere Marcuschi (2008)), parece se configurar como uma oportunidade de
centralizar em sala de aula os posicionamentos, as crenças, os valores e as
avaliações sociais dos alunos de forma mais clara e objetiva, considerando
as temáticas dos textos, enquadrando-se na categoria reflexiva.

Falando ainda do aspecto positivo da pesquisa, constataram-se


poucas ocorrências das questões evidentes (2%, 2 ocorrências) e impossíveis
(4%, 5 ocorrências), e nenhuma ocorrência do tipo vale-tudo, que
materializam uma escolha didática equivocada nas atividades de leitura.
Um exemplo do tipo evidente foi: “(18) Na sua opinião, os pronomes relativos
e os pronomes demonstrativos apenas indicam algo ou também podem
‘carregar’ outras funções, como ironia, desprezo, entre outros. Por quê?”. A
pergunta já traz no corpo da formulação que os pronomes, também, servem
a outras funções (ironia e desprezo), que é a sua resposta.

643
A pergunta “(19) Sabemos que a concordância verbal é a relação
estabelecida de forma harmônica entre sujeito e verbo. Na oração
Moravam debaixo da ponte, com qual sujeito o verbo ‘moravam’ está
relacionado? ” exemplifica o tipo impossível. Essa questão se configura
como tal porque, na frase destacada, o sujeito é indeterminado, de modo
que não há possibilidade de ser respondida.

Apesar desses resultados positivos, há ainda um elevado número de


questões que exploram a leitura como decodificação ou o texto como
pretexto para o ensino formal da língua, tais como cópia (13%), objetiva (10%)
e metalinguística (34%), as quais juntas computam 57% dos dados da
pesquisa. Esse resultado indicia uma concepção de linguagem/língua e de
texto ainda estrutural, formalista para o trabalho com leitura, que pressupõe
um sujeito aluno passivo. Uma possível explicação para esse resultado pode
ser a cultura conservadora para o ensino de língua portuguesa muito ainda
presente nas escolas, com uma abordagem não reflexiva quando se quer
discutir aspectos linguísticos e textuais dos textos lidos.

A tipologia com maior número de questão foi a objetiva (12


ocorrências, 10%), que são comandos que indagam “sobre conteúdos
objetivamente inscritos no texto” (MARCUSCHI, 2008, p. 271), com intuito de
identificar as respostas ali já dadas, sem precisar envolver uma reflexão,
como em: “(105) Quais [são] os personagens [do texto]? [...].”.

Já o tipo cópia (15 ocorrências, 13%) se dá como no comando final da


questão (21), que inicia com o verbo “retirar”: “(21) Para que haja
concordância entre o sujeito e o verbo é necessário ter uma sequência
específica, por exemplo, o verbo depois do sujeito, ou o sujeito após o verbo,
ou não quanto faz? Retire uma oração do texto que exemplifique sua
explicação”. Esse segundo comando pede a transcrição literal de trecho do
texto como resposta. Diferentemente da objetiva que pode ser respondida

644
com sinônimos das palavras contidas no texto, a tipologia cópia não permite
essa possibilidade de substituição, pois tem como única resposta válida as
palavras ou expressões dadas no texto.

E, por fim, a tipologia metalinguística (41 ocorrências, 34%) cobra um


conhecimento formal da língua e do texto. Como exemplo, segue-se o
seguinte: “(22) Na oração Ninguém lhes cobrava aluguel, o verbo ‘cobrava’
está em harmonia com qual sujeito? Por que ‘lhes’ está no plural e o verbo
está no singular?”. Verifica-se aqui como a crônica lida foi usada apenas
para ensinar a classe gramatical, servindo de pretexto para ensinar a
gramática.

Contudo, vale ressaltar que as questões objetivas, cópias e metalinguísticas


são válidas em atividades de leitura, sendo importantes e interessantes na
composição de comandos híbridos (objetiva + inferencial). Enfim, essas
questões podem funcionar como uma preparação para introduzir uma
reflexão, como em: “(42) O autor faz atribuição de valor social ao
relacionamento dos personagens por meio de algumas escolhas lexicais
para a construção de sentido no texto. Cite trechos que representem essas
escolhas e comente”. O foco dessas questões são informações inscritas no
texto, não envolvendo um processo de inferenciação, mas somente de
decodificação. As informações por elas objetivadas são importantes no
processo de aprendizagem do aluno, mas não são suficientes para o
trabalho colaborativo nas práticas de leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os resultados preliminares, compreende-se que as/os


estagiárias/os ainda se prendem a uma concepção linguagem/língua como

645
sistema, apesar de haver um indício de reflexão e mudança de ampliação
de suas concepções quando se esforçaram por explorar conteúdos
linguísticos e textuais com a finalidade de contribuir com a compreensão do
texto. Essas questões mais reflexivas contribuem para que o ensino da língua
materna ocorra de forma interativa e crítica, sinalizando para uma
compreensão de linguagem/língua como interação.

As questões reflexivas (inferencial, global e subjetiva) configuram a


atividade de leitura como uma atividade colaborativa, uma prática
indissociável do cotidiano do aluno, abrem espaço para diálogo, para o
exercício do pensamento crítico-reflexivo em sala. Tal resultado é
surpreendente e animador, especialmente porque foram analisadas
somente questões sobre as dimensões linguísticas e textual. Na década de
1990, o professor Marcuschi verificou somente 10% das questões mais
complexas (inferenciais e globais) nos seus dados. Não há pretensão de
comparar os resultados das duas pesquisas, pois se deram em condições
metodológicas muito diferentes, mas ainda assim é uma citação pertinente.

Considerando a roda de conversa com as/os estagiárias/os, parece


plausível a hipótese de uma convivência de práticas do paradigma
tradicional no ensino da língua materna com práticas que buscam construir
uma perspectiva reflexiva, talvez de análise linguística, nesse trabalho com a
leitura. Essa conjectura se justifica numa das falas de uma das estagiárias ao
relatar que o fato de estar mais envolvida com a abordagem crítica da
linguagem na faculdade lhe ajudou na formulação das questões reflexivas.

Apesar disso, há ainda um número importante de questões que


exploram a leitura como decodificação ou que usam o texto como pretexto
para ensinar estrutura da língua e formas do texto, o que evidencia a força
de uma tradição de ensino de língua portuguesa que impera há décadas
no sistema educacional brasileiro.

646
REFERÊNCIAS

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Gramática contextualizada: limpando “o pó das ideias simples”. São Paulo:
Parábola, 2014.

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, Códigos


e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 2006.

CARVALHAES, W. L. O livro didático de português: abordagem discursiva


de exercícios de compreensão de texto. 174 f. Tese de Doutorado (Letras e
Linguística), Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras, Programa
de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Goiânia, 2016.

GERALDI, J. W. (Org). Unidades básicas do ensino de português. In: ______. O


texto na sala de aula. São Paulo: Átila, 2011.

MARCUSCHI, L. A. O livro didático de língua portuguesa em questão: o caso


dacompreensão de texto. In: COLÓQUIO DE LEITURA DO CENTRO-OESTE, 1.,
1996,
Goiânia. Caderno do I Colóquio de Leitura do Centro-Oeste. Goiânia: FL/UFG,
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______. Processos de Compreensão. In: MARCUSCHI, L. A. Produção textual,


análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

MENDONÇA, M. Análise linguística no ensino médio: um novo olhar, um novo


objeto. In: MENDONÇA, M.; BUNZEN, C. Português no ensino médio e
formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006.

KLEIMAN, Angela B. Abordagens da leitura, Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 14,


p. 13-22, 1º sem. 2004.

647
SEVERINO, A. J. Modalidades e metodologias de pesquisa científica. In: ______.
Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2007.

648
ANÁLISE DE QUESTÕES DO PAVE E REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE
PORTUGUÊS NO ENSINO BÁSICO

Camila Martins Vellar 89


Paula Fernanda Eick Cardoso 90

RESUMO: O PAVE – Programa de Avaliação da Vida Escolar – é um processo de avaliação


contínuo que ocorre durante os três anos do ensino médio para estudantes de escolas
públicas e privadas, constituindo, assim, uma modalidade alternativa de seleção para os
cursos de graduação da UFPel – Universidade Federal de Pelotas. Nesse sentido, esse
processo objetiva definir os parâmetros de um processo seletivo que busque a avaliação da
aprendizagem significativa, em que seja privilegiado o ato de refletir sobre o de memorizar,
a qualidade sobre a quantidade de informações, o ensino sobre o adestramento e o
processo sobre o produto. Além de que, busca-se adotar a contextualização interdisciplinar
como eixo estruturador da avaliação, dando-se ênfase ao desenvolvimento das
competências e habilidades. Neste trabalho, buscamos apresentar a análise de questões
de Língua Portuguesa da primeira etapa da edição 2006/2008, bem como uma análise da
correção de uma redação realizada na terceira etapa. Apresentamos a análise de algumas
questões das provas desse processo seletivo, com o intuito de justificar a correção de uma
das alternativas e excluir as demais. Assim, esse trabalho visa a proporcionar uma reflexão
sobre o ensino de língua portuguesa no ensino médio a partir da natureza dos raciocínios
cobrados dos alunos envolvidos nessa seleção. Com essa análise, constatamos que as
questões da prova são coerentes com os objetivos desse processo contínuo de avaliação,
além de que se privilegiem questões que conduzem o aluno a, efetivamente, refletir sobre
os usos da língua, não apenas necessitando decorar e aplicar mecanicamente regras
tradicionais da gramática. Nesse contexto, notamos uma “evolução” na perspectiva de
ensino adotada pelos elaboradores das questões da prova, visto que, em muitos outros
vestibulares ou concursos, as questões são elaboradas a partir de regras da gramática
tradicional e exigem uma memorização de regras para a sua realização.

Palavras-chave: PAVE, Língua Portuguesa, Gramática, Ensino.

89 Graduanda do Curso de Bacharelado em Redação e Revisão de Textos pela Universidade


Federal de Pelotas - UFPel, camilamartinsvellar@gmail.com;
90 Doutorado em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do

Sul - PUCRS, paulaeick@terra.com.br.

649
INTRODUÇÃO

O PAVE – Programa de Avaliação da Vida Escolar – é um processo de


avaliação contínuo que ocorre durante os três anos do ensino médio para
estudantes de escolas públicas e privadas do município de Pelotas e região.
Constituindo, assim, uma modalidade alternativa de seleção para os cursos
de graduação da UFPel – Universidade Federal de Pelotas. O objetivo desse
processo é que os alunos não sejam avaliados em uma única oportunidade
como ocorre, por exemplo, com o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio.
Nessa perspectiva, o aluno participa de um processo de avaliação gradual
e sistemático, desenvolvido no decorrer dos anos do ensino médio, tendo a
oportunidade de corrigir suas falhas individuais a cada etapa do processo.

Nesse sentido, outro objetivo desse processo é definir os parâmetros de


um processo seletivo que busque a avaliação da aprendizagem significativa,
em que seja privilegiado o ato de refletir sobre o de memorizar, a qualidade
sobre a quantidade de informações, o ensino sobre o adestramento e o
processo sobre o produto. Além de que, busca-se adotar a contextualização
interdisciplinar como eixo estruturador da avaliação, dando-se ênfase ao
desenvolvimento das competências e habilidades. Nas duas primeiras
etapas, as provas são apenas compostas por questões de múltipla escolha,
divididas entre as disciplinas presentes na grade curricular do ensino médio.
Na terceira etapa, além de questões de múltipla escolha, há uma prova de
redação.

Neste trabalho, buscamos apresentar a análise de questões de Língua


Portuguesa da primeira etapa da edição 2006/2008, bem como a proposta
de redação presente na 3ª etapa. Apresentamos a seguir algumas questões
das provas desse processo seletivo e a respectiva análise, com o intuito de

650
justificar a correção de uma das alternativas e excluir as demais. Além disso,
este trabalho é constituído pelos critérios de correção empregados na
avaliação dos textos dissertativos da 3ª etapa do PAVE. Após a discussão dos
critérios, apresentaremos a análise de uma das redações retiradas do banco
de textos com as redações do PAVE e do vestibular da UFPel.

Esse trabalho visa a proporcionar uma reflexão sobre o ensino de língua


portuguesa no ensino médio a partir da análise das questões da prova do
PAVE, visto que apresenta a natureza dos raciocínios cobrados dos alunos
envolvidos nessa seleção. Constatamos, ao final, que ao invés de avaliar a
capacidade do candidato memorizar regras subjacentes a uma língua que
não é falada por nenhum brasileiro, essas provas verificam se o candidato
conhece e sabe usar os mecanismos linguísticos disponíveis em nosso idioma
para construir o sentido.

1 METODOLOGIA

Este estudo trata-se de uma Pesquisa Aplicada, visto que tem por meta
elaborar e fornecer reflexões acerca de um conhecimento que possua
aplicabilidade de fato. Nesse sentido, o estudo tem por finalidade refletir
sobre o processo de ensino de Língua Portuguesa a partir da análise de
questões presentes na prova do PAVE. O tipo de pesquisa realizada é
considerado descritivo, tendo em vista que procuraremos esclarecer o
assunto, descrevendo ao máximo a análise, as informações e resultados
obtidos. Quanto à natureza, é considerada bibliográfica, porque serão
utilizados, para a análise, provas de edições anteriores desse processo
seletivo.

651
Desse modo, para a realização desta pesquisa, em um primeiro
momento foi feita a coleta das provas das edições já realizadas do PAVE e,
em um segundo momento, foi realizada a análise das questões das
disciplinas de Língua Portuguesa e Literatura. A análise foi constituída com
base nas teorias do âmbito da Linguística Aplicada ao Ensino de Língua
Portuguesa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Tradicionalmente, o ensino de gramática ocupa parte significativa do


tempo nas aulas de Língua Portuguesa, há uma cultura de que não há como
ensinar língua sem ensinar gramática. No entanto, Possenti (1996) ressalta
que os professores de língua materna precisam estar convencidos de que o
domínio efetivo da linguagem dispensa o domínio de uma metalinguagem
técnica. O autor enfatiza ainda que conhecer uma língua e conhecer sua
gramática são saberes distintos e que saber utilizar uma regra é diferente de
saber qual é essa regra. Nesse sentido, vale lembrar que o papel da escola
é ensinar a língua padrão, ou seja, fazer com que o aluno saiba usar
efetivamente a língua, não apenas memorizar regras.

Possenti (1996) afirma que quando se discute a questão de abolir as


aulas de gramática dos anos iniciais do ensino básico, logo são apontadas
questões como o fato de que em vestibulares, testes, concursos públicos são
exigidos conhecimentos acerca das classificações gramaticais, mas se
verificarmos outros contextos percebemos que esse conhecimento não é
importante para o cotidiano do sujeito. Assim, o autor sugere que as questões
desses processos seletivos passem a priorizar a interpretação textual, a
literatura, a produção de textos.

652
Batista (2011) constatou na sua pesquisa sobre a imagem dos
professores de Língua Portuguesa em concursos públicos que:

No que tange ao papel atribuído à gramática, pôde-se


perceber o expressivo número de gramáticas entre os livros
mais indicados em oposição à pequena quantidade de livros
sobre variação linguística, apesar de os PCNs privilegiarem o
trabalho com as diferentes variedades em detrimento da
gramática normativa. Na prova, essa tendência também se
manifestou pelo enfoque gramatical dado às perguntas de
língua portuguesa. Por meio da análise das questões gerais [...]
constatou-se que prevaleciam questões cujo foco era a
correção gramatical de variedades não tidas como padrão.
(BATISTA, 2011, p. 121)

Desse modo, buscamos enfatizar que um modelo ideal de ensino de


Língua Materna objetiva desenvolver as competências comunicativo-
discursivas nos alunos, tornando-os capazes de refletir sobre o nível de
linguagem e o gênero textual adequados para cada contexto de uso. Não
basta que os alunos decorem regras, é necessário que eles consigam
compreender o que leem, que consigam se expressar de modo adequado.
Nesse sentido, cabe ressaltar que

Um traço equívoco da política linguística adotada no Brasil e


em Portugal durante um grande lapso de tempo (de 1820
[digamos] a 1920 [digamos]) foi um ensino da língua que
postulava uma modalidade única do português – com uma
gramática única e uma “luta” acirrada contra as variações até
de pronúncia. (HOUAISS, 1985, p. 25)

Assim, Soares (2002) aponta que a disciplina de português manteve por


muito tempo a tradição da gramática devido ao fato de que tinham acesso
à escola os grupos privilegiados economicamente e esses consideravam útil
e necessária essa aprendizagem. Nesse momento, os preceitos do bem falar

653
e do bem escrever eram uma exigência social, portanto foram criadas
inúmeras gramáticas para uso escolar, muitas das quais permanecem sendo
utilizadas até hoje.

À vista disso, acreditamos que é necessária uma mudança de


perspectiva no ensino de Língua Portuguesa para brasileiros, buscando
aprimorar as competências e habilidades que os alunos já possuem.
Conforme Oliveira

O professor que vê a língua segundo a concepção


estruturalista pouco ajuda seus alunos na tarefa de desenvolver
seus recursos linguísticos para interagir nas mais variadas
situações sociocomunicativas. Ele apenas contribui para
reforçar o mito de que há uma única forma correta do
português, reproduzindo um preconceito linguístico que
estigmatiza milhões de brasileiros. (OLIVEIRA, 2010, p. 34)

Por isso, consideramos imprescindível discutir essa temática, para que


professores que já atuam na educação básica possam vir a refletir sobre suas
práticas e acadêmicos dos cursos de letras possam iniciar sua jornada
docente tendo em mente que o ensino de português não pode ser baseado
no ensinamento de regras da gramática tradicional.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesse contexto, buscamos analisar as provas de Língua Portuguesa do


PAVE e notamos uma “evolução” na perspectiva de ensino adotada pelos
elaboradores das questões, visto que, em muitos outros vestibulares ou
concursos, as questões são elaboradas a partir de regras da gramática
tradicional e exigem uma memorização de regras para a sua realização.

654
Desse modo, a seguir, apresentamos algumas questões e a respectiva
análise.

Questão 1 - Leia a tira:

Figura 1 – Tira Libório

Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/pave/provas-anteriores/>.

Marca a alternativa que apresenta o motivo principal do humor da tira.

(a) Um dos personagens sente-se superior aos demais e é punido por isso no
desfecho da história.
(b) Jurema exige de Libório um comportamento que não é habitual a ele.
(c) Libório, no segundo quadrinho, é designado por uma expressão agressiva,
mas compatível com suas características pessoais.
(d) Libório mostra-se cordato às solicitações de Jurema.
(e) Do ponto de vista de Libório, a promessa feita a Jurema foi cumprida.
(f) I.R.

Notamos que a questão procura verificar a capacidade de leitura e


compreensão da linguagem verbal e da linguagem não-verbal presente em
uma tira. Essa tira satiriza basicamente o comportamento rude atribuído ao
homem gaúcho, o qual, para expressar sua masculinidade, deve agir de
forma grosseira.

Nesse texto, Libório é o protagonista e ele representa o conjunto de


valores da sociedade machista do Rio Grande do Sul. No primeiro quadro da
tira, Jurema – a esposa de Libório – pede a seu marido que lhe faça uma

655
promessa. Jurema deseja que Libório não bata em ninguém. O protagonista
atende à solicitação de forma pouco convicta. O motivo principal do humor
da tira gira em torno dessa promessa. Depois de ser ofendido verbalmente
por um outro personagem, Libório utiliza um subterfúgio para revidar a ofensa,
sem descumprir, em sua visão, a promessa feita à Jurema. Libório bate no
coadjuvante da tira, utilizando a mão daquele personagem. Logo, a única
alternativa correta é a letra (e), a qual registra o motivo principal do humor
da tira.

As alternativas (a) e (b) são compatíveis com a tira, entretanto elas não
apresentam o motivo principal do humor do texto. A alternativa (a) refere-se
ao fato de o personagem secundário julgar-se superior a Libório, muito
provavelmente em termos de força, e exigir do protagonista uma atitude
subalterna. Esse aspecto apenas contribui para o motivo central do humor.
Já a alternativa (b) refere-se à promessa feita por Libório à Jurema. A
expressão facial do protagonista indica que a promessa foi feita muito a
contragosto, visto que ela implicaria a alteração de um hábito de Libório.
Esse aspecto também contribui para o humor da tira.

A alternativa (c) está incorreta, pois o humor da tira independe de


Libório ter ou não características de um colono caipira. A alternativa (d)
também está incorreta. Libório não atende de forma solícita ao pedido de
Jurema, visto que, no último quadrinho, ele acaba por agredir o personagem
secundário.

656
Questão 2 – Leia a tira:

Figura 2 – Tira Samanta

Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/pave/provas-anteriores/>.

A forma verbal “soaria” presente no terceiro quadrinho da terceira tira


indica um tipo de atitude da personagem frente aos julgamentos
apresentados por sua amiga sobre o filme ao qual assistiam. Essa atitude é
de

(a) dúvida.
(b) possibilidade.
(c) ironia.
(d) comprometimento com o que é dito.
(e) credulidade.
(f) I.R
Notamos que a questão trata da função dos tempos verbais na
construção do sentido do texto. O verbo “soar” aparece no terceiro
quadrinho da última tira conjugado no futuro do pretérito do indicativo. Esse
tempo verbal é empregado no texto em questão para indicar uma
possibilidade. Uma das personagens da tira critica um filme ao qual ela e
sua amiga estariam assistindo, e a outra diz que acreditaria nas opiniões
emitidas sobre esse filme desde que a personagem em questão não se
escondesse atrás do sofá sempre que terminavam os comerciais. Portanto,
seria possível crer em algo desde que certas condições fossem observadas.

657
Não é possível sustentar que a forma verbal “soaria” indique dúvida. O
locutor da frase não está incerto sobre a veracidade do que disse. Ao
contrário, o comentário foi motivado exatamente pelas atitudes do outro
personagem. O verbo “soar” presente no terceiro quadrinho também não
expressa ironia. O locutor da frase não pretende transmitir o sentido oposto
do que é literalmente dito nem é representado visualmente com um ar de
escárnio, de deboche.

A forma “soaria” também não expressa comprometimento com o que


é dito. O locutor não assume um compromisso com aquele conteúdo. Ele
apenas aventa uma possibilidade. Além disso, não podemos afirmar que o
locutor tenha proferido tal conteúdo com ingenuidade, ou seja, de forma
crédula.

Questão 3 – Leia a tira:

Figura 3 – Recruta Zero

Disponível em: <https://wp.ufpel.edu.br/pave/provas-anteriores/>.

Na tira anterior, há a frase “Ei! Isso dá certo!”, a qual foi proferida pelo
sargento. Nessa frase, o pronome “isso” refere-se

(a) à qualidade do aparelho de barbear, que parece desempenhar


adequadamente a sua função.
(b) à autoestima do protagonista da tira, o qual se julga um grande homem.
(c) à hipótese de que o barbear inspira os grandes homens, pois o
protagonista teve uma ideia.

658
(d) à submissão do personagem designado como “Zero”, que não esboça
nenhuma reação à atitude grosseira de seu superior.
(e) ao tom ríspido utilizado pelo protagonista para se dirigir ao seu
subordinado; esse tom é representado pelas letras em itálico do segundo
quadrinho da tira.
(f) I.R.
A questão trata da capacidade de interpretação dos mecanismos
coesivos presentes em uma tira. No primeiro quadrinho dessa tira, o sargento
faz um comentário sobre as inspirações que os grandes homens teriam no
momento de se barbear. No segundo quadrinho, o protagonista intimida seu
subordinado – o recruta Zero – com a ameaça de que o transformará em
uma vassoura caso não se levante. No terceiro quadrinho, o sargento volta
a se referir ao fato de o barbear inspirar os grandes homens. Essa referência
é realizada pelo anafórico “isso”, o qual permite a retomada de uma
informação que havia sido mencionada anteriormente. Concluímos, pois,
que o sargento se considera um grande homem e que, em sua opinião,
transformar o recruta em uma vassoura é uma ideia. Logo, a única
alternativa que pode ser assinalada é a letra (c).

A alternativa (a) não pode ser assinalada, visto que em nenhum


momento o texto discute a qualidade dos aparelhos de barbear. A
alternativa (b) também está incorreta, porque não resgata a informação
referente às ideias que acometem os grandes homens no momento do
barbear. A alternativa (d) não pode ser assinalada, pois, embora o
personagem Zero seja mencionado na tira, ele não aparece. Portanto, não
é possível dizer quanto a esse texto que o recruta tenha uma atitude de
submissão frente ao sargento. Por fim, a alternativa (e) também está
incorreta. O pronome “isso” não se refere ao tom ríspido utilizado pelo
sargento para se dirigir ao seu subordinado.

659
Questão 4 - Em algumas construções da língua portuguesa, a simples
inversão na ordem de colocação dos elementos resulta em diferença de
significado, como exemplificado por “amigo cachorro” e “cachorro amigo”.
Marca a alternativa em que uma possível inversão da ordem dos
constituintes daria à tira o sentido sugerido.

(a) Na terceira tira, a substituição de “mortos-vivos” por “vivos-mortos”


implicaria uma mudança no teor do filme assistido. Nesse caso, a
personagem poderia adotar a estratégia de fuga por recear um julgamento
às suas atitudes acríticas.
(b) Na segunda tira, a substituição de “grandes homens” por “homens
grandes” faria referência à aparência física do sargento, cuja estatura
observa os critérios postulados pelas forças armadas e confere a ele um porte
atlético.
(c) Na primeira tira, a substituição de “colono caipira” por “caipira colono”
ampliaria demasiadamente o conteúdo agressivo da ofensa, visto que
Libório não suportaria ser confundido com paulistas do interior, os quais são
designados pela alcunha de “caipira”.
(d) Na terceira tira, a substituição de “terror barato” por “barato terror”
classificaria o filme como algo vulgar, banal, que é uma conotação oposta
àquela pretendida originalmente no texto.
(e) Na terceira tira, a substituição de “mortos-vivos” por “vivos-mortos”
apresentaria uma explicação mais persuasiva para a atitude da
personagem, uma vez que o temor aos vivos é mais compreensível do que o
temor aos mortos.
(f) I.R.

A questão aborda um fenômeno muito interessante da língua


portuguesa. Em algumas construções, a inversão da ordem dos constituintes
pode implicar mudança de significado, como acontece com o exemplo
apresentado no enunciado do exercício. Em “amigo cachorro”, o elemento
que tem a função caracterizadora é “cachorro”, no caso apresentada com

660
um caráter pejorativo. O mesmo não se verifica em “cachorro amigo”, pois,
nesse último caso, o elemento caracterizador é “amigo”. Logo, essa
expressão transmite um sentido positivo.

A alternativa (a) está correta, pois a expressão “mortos-vivos” alude a


um estado de existência sobrenatural, já a expressão “vivos-mortos” trata de
vivos que estariam por algum motivo se comportando como mortos. Nesse
caso, a substituição de uma pela outra provocaria alteração no teor do filme
assistido, porque, de fato, a personagem, ao se esconder atrás do sofá
sempre que terminam os comerciais, poderia ter adotado uma estratégia de
fuga, receando ser comparada aos supostos personagens do filme.

A alternativa (b) está incorreta porque, embora a expressão “grandes


homens” refira-se à elevação moral enquanto a expressão “homens grandes”
refira-se ao tamanho corpóreo, não é possível dizer que o sargento goze de
um porte atlético.

A alternativa (c) está incorreta, visto ser impossível sustentar a


ampliação exacerbada do significado da expressão “colono caipira” pela
alteração da ordem dos constituintes. Além disso, o termo “caipira” está
presente em ambas as construções, portanto não apenas a segunda, mas
também a primeira expressão retomaria a alcunha utilizada para designar os
paulistas do interior.

A alternativa (d) está incorreta, pois não é possível dizer que, ao


classificar o filme como “terror barato”, a personagem não desejasse que ele
fosse avaliado como algo vulgar, banal. A alternativa (e) está incorreta, pois
a substituição proposta perderia a alusão ao gênero de filme sobrenatural
de que a personagem tem um pavor excessivo.

Proposta de redação - Em relação à proposta de redação da terceira


etapa, é essencial o candidato ter em mente que a prova de redação é

661
também uma prova de leitura, uma vez que dificilmente produzimos um bom
texto quando não conhecemos o assunto do qual objetivamos tratar.

Nessa concepção, os critérios de correção procuram avaliar o grau de


leitura do candidato sobre o tema (em razão disso, a coletânea da prova do
PAVE prima por muni-lo de informações, quando o tema é menos corrente),
a habilidade em construir textos de uma ou outra tipologia textual
(dissertação ou carta argumentativa) e a habilidade de escrever na
modalidade padrão de nossa língua. Dessa maneira, os critérios de
avaliação da redação do PAVE englobam tema e coletânea, coerência,
tipo de texto, modalidade e coesão. A seguir, apresentamos uma redação
de um participante do processo seletivo e a respectiva análise.

Quadro 1 – Redação.

Maioridade penal reduzida para 16 – solução de problemas

A redução da maioridade penal é fruto de discussão em diversos países do


mundo. Países como o Canadá e os Estados Unidos têm legislações estaduais que
determinam maioridades diferentes para dirigir, comprar bebidas alcoólicas e até
para ser preso. No Brasil a redução da maioridade penal para 16 anos poderia
contribuir para a diminuição da violência urbana.
A Constituição Brasileira prevê julgamento pela Justiça Comum e reclusão
pelo Estado somente às pessoas maiores de 18 anos. Menores deverão ser julgados
por Vara da Infância e Juventude e poderão ficar no máximo três anos reclusos às
instituições socioeducativas. Mas será que um jovem de 16 ou 17 anos não têm
consciência do que faz quando puxa o gatilho de uma arma? O pequeno intervalo
de dois anos entre o que poderia passar a ser a maioridade penal (16 anos) e o que
hoje o é (18 anos) não é suficiente para amadurecer de maneira tão abrupta um
ser humano. Não obstante sejam menores de idade, inúmeros jovens dirigem,
bebem e fumam. Então, não há motivo para não diminuir a maioridade penal.
Um caso ficou nacionalmente conhecido em meados deste ano. Um rapaz
de dezessete anos, juntamente com dois homens maiores de idade, estuprou uma
garota e a matou, depois de ter assassinado o namorado da jovem. O episódio
ocorreu enquanto o casal acampava no interior de São Paulo. Os dois homens
maiores de idade foram condenados por homicídio doloso, e o menor sofreu
apenas internação em uma instituição socioeducativa. Seguramente a justiça não
foi feita. Em breve, este menor infrator estará de volta à sociedade.

662
Jovens de 16 anos podem escolher o futuro de seu país e muitos as suas
futuras profissões, logo também têm consciência para saber se matar e roubar é
mesmo o que desejam fazer. A redução da maioridade penal seria a solução para
muitos problemas culturais e sociais do Brasil, além de passar muito mais segurança
à população que vive assustada.
Fonte: < https://wp.ufpel.edu.br/pave/>.

Com relação ao critério “tema e coletânea”, é importante ressaltar


que o candidato não deve ter a preocupação de desenvolver suas ideias
de acordo com um suposto ponto de vista da banca corretora. Na verdade,
o candidato deve expor suas impressões pessoais de forma original e crítica,
cuidando apenas para não ferir princípios éticos e morais.

Considerando o universo de redações deste processo seletivo, o texto


acima tem um desenvolvimento do tema acima da média. Como podemos
observar, há a extrapolação da coletânea com a apresentação de
informações que não constavam na prova, as quais são extremamente
importantes para a argumentação. O candidato menciona, por exemplo, o
tratamento atribuído à maioridade em outros países. Além disso, ele aborda
um fato ocorrido no Brasil naquela época, o qual contribuiu para reacender
a discussão acerca da maioridade penal porque o líder do grupo que
praticara atos de extrema violência e crueldade era um jovem de dezessete
anos.

Além disso, o texto apresenta “autoria”, visto que segue um projeto


claro e particular, sem a observação de modelos preconcebidos, nos quais
há normalmente a exposição de aspectos positivos e negativos acerca de
um determinado assunto com a ausência da tomada de posição por parte
do candidato. O ponto de vista do candidato mantém-se ao longo da
redação e ele articula elementos com diferentes graus de relevância para
sustentar suas ideias. Observemos que no segundo parágrafo ele apenas

663
cogita algumas implicações acerca das consequências advindas da
redução da maioridade penal, mas no terceiro parágrafo ele apresenta
dados no mínimo perturbadores sobre os efeitos da permanência da atual
legislação, procurando, assim, sensibilizar o leitor.

Não é possível dizer, portanto, que o texto apresenta desenvolvimento


muito ruim e/ou tangencial do tema, visto que o candidato não se refere ao
tema de forma superficial. Não é sustentável também a avaliação de um
desenvolvimento razoável do tema, pois os argumentos apresentados estão
integrados no texto. Além disso, não há um desenvolvimento meramente
bom do tema, pois o candidato apresenta ideias originais e críticas. Por fim,
o desenvolvimento não é apenas muito bom, visto que, além de crítico, o
texto apresenta informações não fornecidas pela coletânea. Portanto, a
redação recebe nota 10,0 no primeiro critério.

Tomando sempre por base o universo dos textos deste processo


seletivo, a redação acima recebe nota máxima no critério coerência. Como
podemos notar, não há problemas graves nem sérios na articulação das
ideias. Elas são facilmente unidas porque o texto mantém-se coerente.
Tampouco notamos contradições com o mundo externo, pois o texto não
apresenta informações questionáveis, duvidosas.

A redação em análise não apresenta “circularidade” no


desenvolvimento das ideias, uma vez que há uma progressão importante na
apresentação dos argumentos. Além disso, não observamos nenhum tipo de
perturbação, e o texto apresenta um ponto de vista criativo de modo a
sensibilizar o leitor.

O texto acima é uma dissertação, na qual identificamos introdução,


desenvolvimento e conclusão. No primeiro parágrafo, o candidato
apresenta o tema sobre o qual a redação vai tratar – redução da

664
maioridade penal – e expõe o posicionamento que será defendido –
favorável à redução da maioridade penal.

Nos dois parágrafos seguintes, o candidato desenvolve o tema a partir


do levantamento de fatos através dos quais procura justificar seu
posicionamento favorável à redução da maioridade penal. Em primeiro
lugar, ele afirma que uma pessoa de 16 anos tem a capacidade de escolher
o que deseja ou não fazer. Além disso, menciona que o intervalo de dois anos
entre os dezesseis e os dezoito anos é incapaz de promover um
amadurecimento significativo nos jovens. Por fim, relata um episódio ocorrido
no Brasil com o intuito de exemplificar o grau de violência que pode ser
identificado nas atitudes de um jovem.

No último parágrafo, ocorre o fecho da redação no qual o candidato


retoma rapidamente o que havia sido dito anteriormente no texto e reafirma
seu posicionamento. Portanto, todas as partes do texto cumprem o seu papel
e, além disso, estão integradas de forma criativa e competente.

Cabe ainda notar que a divisão em parágrafos reflete uma boa


organização semântica. Os parágrafos têm certa autonomia, pois expõem
informações diferentes, mas contribuem conjuntamente para a defesa da
tese central. Entretanto, por não ser o título significativo nem original, a
redação recebe nota 8,0 neste critério.

No texto acima, não há erros que reflitam desconhecimento de regras


da língua escrita-padrão. Ao contrário, verifica-se a observação das
convenções ortográficas, o uso de maiúsculas e minúsculas, a realização da
concordância verbal, como em “A Constituição Brasileira prevê (...)”, em que
o verbo concorda com o sujeito, e a realização da concordância nominal,
como em “(...) legislações estaduais (...)”, em que o adjetivo concorda com
o substantivo.

665
Nota-se ainda o respeito à regência nominal, como em “ (...) redução
da maioridade penal (...)”, em que a preposição “da” acompanha o
substantivo “redução”, e o respeito à regência verbal, como em “(...) o
menor sofreu apenas internação (...)”, em que o verbo “sofrer” não exige a
presença de uma preposição obrigatória entre ele e o complemento
“internação”. Verifica-se também o emprego da pontuação, como em “Os
dois homens maiores de idade foram condenados por homicídio doloso, e o
menor sofreu apenas internação em uma instituição sócio-educativa”, em
que a vírgula separa orações com sujeitos diferentes.

O texto não possui estruturas da linguagem oral e há complexidade


sintática, como em “Não obstante sejam menores de idade, inúmeros jovens
dirigem, bebem e fumam.”, em que o verbo “ser” concorda corretamente
com o sujeito posposto “inúmeros jovens”.

É importante também ressaltar que não há imprecisão ou


inadequação vocabular. As palavras foram empregadas nas frases com o
sentido apropriado. Além disso, não há frases sem fim. Portanto, o texto
recebe nota máxima no quarto critério.

Além de coeso e bem estruturado, o texto demonstra sofisticação no


uso dos recursos coesivos, como podemos observar no emprego do futuro
do pretérito para indicar possibilidade na frase “(...) a redução da
maioridade penal para 16 anos poderia contribuir para a diminuição da
violência urbana”; nas substituições lexicais em “um rapaz de dezessete
anos” e “o menor” no terceiro parágrafo. Além disso, o texto possui
diversidade e aprimoramento no uso dos nexos frasais, como, por exemplo,
com o uso de “mas” e “não obstante” para expressar oposição. Logo,
recebe nota máxima no quinto critério.

666
Com essa análise, podemos constatar que as questões da prova são
coerentes com os objetivos desse processo contínuo de avaliação, além de
que privilegiam-se questões que conduzem o aluno a, efetivamente, refletir
sobre os usos da língua, não apenas necessitando decorar e aplicar
mecanicamente regras tradicionais da gramática, como acontece muito
em outros vestibulares e concursos públicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho apresentamos a análise de algumas questões


das provas de língua portuguesa do processo seletivo PAVE 2006/2008, bem
como examinamos a proposta de redação desse processo seletivo. No que
diz respeito à prova de língua portuguesa, estudamos cuidadosamente as
alternativas apresentadas em cada uma das questões, com o intuito de
verificar as razões que asseguravam a correção de uma delas e a incorreção
das demais.

Quanto à prova de redação, primeiramente apresentamos os critérios


utilizados para avaliar as dissertações daquele processo seletivo. Depois,
propusemos o estudo de um texto, no qual observamos a aplicação dos
critérios.

Concluímos que a prova não salienta a teoria gramatical. Na verdade,


há um trabalho com o vocabulário e com os recursos expressivos da língua
portuguesa. As questões procuram verificar se o candidato sabe a língua em
vez de examinar se ele sabe regras. A leitura e a interpretação textual não
servem simplesmente como pretexto para gramática, análise sintática,
pontuação, acentuação, ortografia. Não observamos, portanto, uma
obsessão gramatical nesse processo seletivo. Há um convite à leitura de

667
assuntos atuais e polêmicos, sobre os quais o candidato pode se posicionar
criticamente.

Além disso, as redações não são vistas como mera aplicação de regras
gramaticais que devem ser memorizadas pelos candidatos. Os critérios de
avaliação procuram privilegiar o conteúdo e a criatividade do aluno e
evitam assinalar implacavelmente todos os erros de grafia, pontuação,
sintaxe. A nota não é atribuída por subtração na base das deficiências do
candidato. O objetivo é que o candidato possa fazer a redação para
expressar através da linguagem escrita suas ideias, reflexões.

REFERÊNCIAS

BATISTA, A. S. Imagens do professor de português em concursos públicos da


Grande São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, 2011. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde02082011094403/publ
ico/2011_AdrianaSantosBatista.pdf>. Acesso em 19 de abril de 2021.

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668
O CÂNONE E A INSTITUIÇÃO LITERÁRIA: CAMINHOS PARA
CONSTRUÇÃO CANÔNICA EM AMOR DE PERDIÇÃO DE CAMILO
CASTELO BRANCO

Helen Suzandrey Maia Sousa91

RESUMO: Este texto tem por finalidade demonstrar em que medida se dá a importância da
construção canônica do autor Camilo Castelo Branco em sua obra Amor de Perdição, uma
contribuição na investigação do ensino da literatura no que diz respeito a composição de
um elenco de obras e autores que configuram um espaço privilegiado e construído a partir
de um conjunto de fatores dos quais perpassam o tempo, a história, a recepção e a crítica
que envolve a obra. Mas para isto, a priori, lançamos mão dos conceitos sobre o que seria
cânone, além de estabelecer de que modo obras e autores se tornam um instrumento
balizar para uma lista de grandes obras que ultrapassaram o tempo e continuam entre nós
sob o conceito de obras clássicos.

Palavras-chave: Cânone; Literatura; Camilo Castelo Branco; Amor de Perdição.

INTRODUÇÃO

Antes de estabelecer uma relação entre obra, autor e cânone é


importante considerar alguns princípios que irão balizar e fomentar as
discussões em torno da construção do cânone. Para isto, devemos retomar
o conceito básico de cânone, este que segundo o E-Dicionários de termos
literários 92, grega "kanon" que designava uma espécie de vara com funções
de instrumento de medida; e com o passar do tempo foi resinificado e hoje
está mais para um padrão ou modelo a ser aplicado, e que se caracteriza

91 Doutoranda da Universidade de Coimbra do curso de Literatura de Língua Portuguesa,


mestre em Ciência das Religiões na Universidade do Estado do Pará (UEPA), Especialista em
Estudos linguísticos e análise literária pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
92 http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/canone/

669
como um conjunto de regras (ou, frequentemente, como um conjunto de
modelos). Mais tarde o seu significado evoluiu para o de padrão ao aplicar
como norma, ora bem, se temos um conjunto de instrumentos pelos quais se
estabelece em via de regra um conjunto de parâmetros na formação
cânone.

Diante disso, nos questionamos o que faz de Camilo Castelo Branco e


sua obra amor de Perdição, cânone da literatura? Mas, antes de
respondermos tal indagação é importante ainda responder de que modo
esses modelos canônicos se constroem ao longo do tempo, e isto de alguma
forma perpassa pela ideia de literatura e sua condição social, Antônio
Candido em uma palestra, que designou “A literatura e a formação do
homem”, onde proferiu sobre a função humanizadora da literatura, ou seja,
sobre a capacidade que ela tem de confirmar a humanidade do homem,
esclarece:

Voltando aos pontos de referência mencionados acima: na medida


em que nos interessa também como experiência humana, não
apenas como produção de obras consideradas projeções, ou
melhor, transformações de modelos profundos, a literatura desperta
inevitavelmente o interesse pelos elementos contextuais. Tanto
quanto a estrutura, eles nos dizem de perto, porque somos levados a
eles pela preocupação com a nossa identidade e o nosso destino,
sem contar que a inteligência da estrutura depende em grande
parte de se saber como o texto se forma a partir do contexto, até
constituir uma independência dependente (se for permitido o jogo
de palavras). Mesmo que isto nos afaste de uma visão científica, é
difícil pôr de lado os problemas individuais e sociais que dão lastro às
obras e as amarram ao mundo onde vivemos. (CÂNDIDO, 1999, p. 02)

Almeida Garrett em seu texto Viagens na minha Terra nos dá, de certo
modo, uma formulação daquilo que para ele significa construir um romance,
que diante das possibilidades de recepção (elite aristocráticas romanesca)

670
faria grande sucesso e promove pistas para a construção deste que seria um
guia na formação de obra literária bem sucedida, diz:

Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje
em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar
segredo, depois desta desgraça não me importa já nada. Saberás
pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar
a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os
edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem
cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da
natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho
difícil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo
tacto!... Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe
explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de: Uma ou duas damas,
mais ou menos ingénuas.
Um pai — nobre ou ignóbil.
Dois ou três filhos, de dezanove a trinta anos.
Um criado velho.
Um monstro, encarregado de fazer as maldades.
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios
e centros.
Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de
Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que
precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde,
pardo, azul — como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e
scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece;
não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se
às crónicas, tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões velhos;
com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-
se... (estilo de pintor pinta-monos). — E aqui está como nós fazemos
a nossa literatura original.
E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi!
(GARRET, 1847, p. 22)

Garret faz uma descrição de um modelo quase sempre empregado


na construção de um romance, isto de alguma maneira nos remete a o que
Luísa de Carvalho em “O ensino do Português. Como tudo começou”,
publicado em Coimbra em 2011, ressalta: “a canonicidade não é, de todo,

671
uma propriedade intrínseca das obras, mas sim da sua transmissão, na
relação que mantém com outras, num determinado universo discursivo”
(CARVALHO, Pg. 259), ou seja, o modelo de romance que Garret reproduz
em sua fala é o que recepcionado pela aristocracia vigente da época, ou
para além disso, era um instrumento social e elitizado e de alguma forma
“aceito” em sua recepção, crítica e sociedade da época. Fátima
Mendonça, reitera:

Na verdade, o desejo (consciente ou não) de nação vai


sedimentando temas e formas discursivas como parte de um novo
sistema literário, mas a sua existência só é assegurada por um
reconhecimento posterior, pelos diversos elementos de recepção –
crítica, reconhecimento nacional e internacional, prémios e edições
nacionais e traduções – que, integrados no sistema de ensino –
curricula, programas, manuais – reproduzem conceitos e valores que,
actuando em cadeia, convergem para a instituição do novo
cânone, a literatura nacional.” (MENDOÇA, 2028, p. 23)

De fato, o tempo será a melhor resposta para construção do cânone,


já que para se estabelecer dentro de sistema é necessário que haja degraus
a serem percorridos, e que de certa forma, está para além de ser apenas
uma literatura erudita ou de padrão, ela precisa do tempo para que possa
ser objeto de crítica por parte de sua recepção, e fomentação de ideias que
irão a posteriori aguçar a curiosidade dos leitores e da fortuna crítica que
envolve determinado autor e obra. Neste sentido, a construção cânone se
dá em via de regra a partir da composição de uma série de pressupostos
que muitas vezes são inerentes aos desejos editorias, mas que também rege
a sequência e o andamento da formação de uma lista aparentemente
emergente.

Diante disso, deve-se existir uma delimitação permanente e coerente


já que existem inúmeras obras, autores e períodos, e que de alguma forma,

672
teve sua importância em determinado espaço temporal, porém nem sempre
autores que em um determinado momento histórico, político, social esteve
entre as mais importantes obras de seu tempo, estarão necessariamente na
constelação vigente, restando apenas sua luz no céu, que não terá força
suficiente para permanecer entre os astros, esta relação segundo Mendonça
ainda pode ser vinculada ao poder do Estado, pois ressalta:

Foi esta, portanto, a primeira forma de equacionar a questão da


literatura nacional que, com todos as reticências de um corpus
literário nacional que, integrado nos sistemas de ensino, fortemente
controlado pelo Estado/Partido (curricula, programas, manuais),
reproduzia conceitos e valores que, actuando em cadeia,
convergiram para a instituição do novo cânone, a literatura
nacional. (MENDONÇA, 2008, p. 28)

Sabemos que apesar de estarmos cada vez mais inclinados a discutir


a formação do cânone, a modernidade e suas consequências para
instalação de novas tendências literárias, este movimento, apesar de ter mais
força a partir do século XIX, com a divulgação das ideias nacionalista
veiculadas no Romantismo, de idealizar uma lista, da qual seria referência,
vem de muito mais tempo do que se imagina, segundo Thomas Bonnici a
tentativa de se estabelecer um cânone iniciou por volta de 323 30 a.C. no
período helenista, relembra ainda:

A tradição de fabricar uma lista de livros considerados excelentes foi


adotada em Alexandria, Egito, durante o período helenístico (323 30
a.C.). Rose (1959) e lista autorizada, que incluía Homero, nove poetas
líricos gregos (por exemplo, Safo), dez oradores áticos (entre eles
Demóstines), os cinco dramaturgos trágicos (entre eles Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes), sete autores de comédia (entre eles
alexandrino, já que classic é a representação latina do termo grego
Kanõn aplicado às listas que as autoridades da biblioteca de
Alexandria redigiam referentes aos autores que consideravam serem
os parâmetros nas classificações literárias. (BONNICI, 2011, p. 104).

673
Assim o termo canônico pode indicar uma lista de obras extraordinárias
que coincidem eventualmente com a ideia de obras ditas clássicas, estas
listas apesar de não serem estáticas, mudam com pouquíssima frequência,
Carvalho diz que a primeira constituição de cânone está inteiramente ligada
a valores linguísticos e literários veiculados pelas obras dos “clássicos” e
reconhecidos pela tradição, evitando juízo de valores por parte dos
contemporâneos, e sobretudo aos ainda vivos. (CARVALHO, 2011, p. 260).
Para Harold Bloom esta perspectiva vai além, pois para ele a condição não
está simplesmente no plano linguístico/literário, mas é o desejo de “escrever
grandiosamente” é o desejo de estar em outra parte, num tempo e lugar
nossos, numa originalidade que deve combinar-se com a herança, com a
ansiedade da influência. (BLOOM, 2010, p. 24,).

É prudente observarmos o entrelace que o conceito de literatura, ou


mesmo do que pertence a nicho literário, nos traz no sentido de estabelecer
parâmetros para construção de um certo arcabouço canônico, que de
alguma forma já é uma maneira de estabelecer um padrão que irá sinalizar
o conjunto de obras e autores que farão parte das obras clássicas e
consequentemente do cânone, seja ele nacional, ou de caráter universal,
segundo Compagnon (2010), o sentido de literatura moderna (romance,
teatro e poesia), está inteiramente ligada ao conjunto de características que
se desenvolveram a partir do século XIX, com ascensão do Romantismo, e
ainda explica que a:

(...) afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto,


em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade
do cânone estético. Restrita à prosa romanesca e dramática, e à
poesia lírica, a literatura é concebida, além disso, em suas relações
com a nação e com sua história. A literatura, ou melhor, as literaturas
são, antes de tudo, nacionais. COMPAGNON (31-32: 2010)

674
Para que definitivamente tenhamos um lastro do conceito sobre
cânone para que assim possamos identificar a importância da Obra Amor
de Perdição como um ícone da Literatura Portuguesa, Victor Aguiar e Silva
ressalta ainda que Cânone Literário corresponde à necessidade, sentida e
expressa em todos os tempos, de cada comunidade cultural preservar,
organizar e ordenar a sua memória, o seu passado e sua herança linguístico-
literário (AGUIAR E SILVA, 2010, p. 243).

Seguindo esta formulação o que faria com que o Camilo Castelo


Branco pertença, ou mesmo permaneça em uma lista tão institucionalizada,
e por que não dizer sofisticada? O que haveria de tão excêntrico nas obras
de Camilo que o fizera estar entre nós até hoje?

1 A VIDA É UM FOLHETIM: CAMILO CASTELO BRANCO

Para melhor entender a obra de Camilo Castelo Branco, é importante


que conheçamos um pouco de sua vida, pois muitas das suas obras contêm
aspectos autobiográficos, é o caso, por exemplo, da obra Amor de Perdição,
como podemos notar no prefácio escrito pelo próprio autor para segunda
edição da obra, que a história do romance se trata da vida do seu tio, que
era contada para ele, autor, durante sua vida por sua tia, a então irmã de
Simão Botelho, como se ratifica:

Desde menino, ouvia eu contar a triste história de meu tio paterno


Simão Antônio Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha
curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto, aligado à sua
mocidade. Lembrou-me naturalmente na cadeia muitas vezes meu
tio, que ali deverá estar escrito no livro das entradas no cárcere das
saídas para o degredo. Folheei os livros desde os de 1800, e acabei
a notícia com pouca fadiga e alvoroços de contentamento, como
se em minha alçada estivesse adornar-lhe a memória, como

675
recompensa das suas trágicas e afrontosas dores em vida tão breve.
(BRANCO,1900, p. 13)

A vida Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco, foi marcada por


momentos que de alguma forma já é um folhetim, cheios de histórias
conturbadas, e de escândalos que o levaram a prisão. Nascido em Lisboa,
numa casa da Rua da Rosa a 16 de Março de 1825, era de uma família
considerada abastarda, filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco
que teve uma vida boêmia entre Vila Real, Viseu e Lisboa, onde faleceu a 22
de Dezembro de 1835, tomado de amores por Jacinta Rosa do Espírito Santo
Ferreira (Sesimbra, Santiago, 27 de Janeiro de 1799 - 6 de Fevereiro de 1827),
com quem não se casou, mas de quem teve os seus dois filhos.

Camilo foi assim reconhecido por seu pai em 1829, como “filho de mãe
incógnita”. Ficou órfão de mãe quando tinha um ano de idade e de pai aos
dez anos, o que lhe criou um caráter de eterna insatisfação com a vida. Foi
“criado” por uma tia chamada Emília de Vila Real e, depois, por uma irmã
mais velha, Carolina Rita Botelho Castelo Branco.

Recebeu uma educação irregular através de dois Padres de província.


Na adolescência, formou-se lendo os clássicos portugueses e latinos e
literatura eclesiástica. Com apenas 16 anos, Camilo (18 de Agosto de 1841),
casa-se em Ribeira de Pena, filha de lavradores, e instala-se em Friúme. O
casamento precoce parece ter resultado de uma mera paixão e não resistiu
muito tempo. No ano seguinte, prepara-se para ingressar na universidade,
indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha.

Camilo Castelo Branco teve uma vida atribulada, o que lhe serviu
muitas vezes de inspiração para os seus folhetins, envolveu-se algumas vezes
com mulheres casadas, a mais conhecida é a de Ana Plácido, esta que o
levou a passar um bom tempo da cadeia, sob o crime de adultério, em

676
consequência ao fato de estar preso os jornais portuenses recusaram a
publicar os seus escritos, por temerem uma má repercussão, porém durante
sua passagem pelo cárcere, Camilo não deixou de escrever, pelo contrário,
escreveu um dos seus mais famosos romances, e ainda: O retrato de
Ricardina, A Brasileira de Prazins, A filha do Regicida, Memória de Cárcere e
Eusébio Macário. Em 1888, Camilo e Ana se casam e nessa ocasião já têm
dois filhos. Já cego, em 1890, Camilo Castelo Branco se suicida.

Foi o primeiro escritor de língua portuguesa a viver exclusivamente dos


seus escritos literários. Apesar de ter de escrever para o público, conseguiu
manter uma escrita muito original. Uma delas a obra em questão Amor de
perdição, distinguindo-se das outras por se tratar de um texto que trouxe uma
carga emotiva ainda mais intensa, aos moldes do romantismo da segunda
fase, a novela atingiu grande popularidade entre o público português do
século XIX. Esse fato se deu tanto por aspectos internos da obra (construção
das personagens, poucas descrições), como por aproximação do autor com
o fato narrado, tendo em vista seu grau de parentesco com o protagonista.

Diante de uma vida regada a mulheres, boêmia e de uma família que,


de alguma forma, foge aos padrões da época, século XIX, Camilo se
apresenta irreverente, tendo uma certa atração por situações que estão
longe dos moldes daquele tempo, talvez tenha sido um dos motivos pelos
quais os leitores tinham grande apreço, polêmicas sempre rondaram a vida
do autor, isto deu a ele uma gama expressiva de imagens que
contemplaríamos em seus textos.

Usava como porta de entrada para suscitar e alimentar sua mente fértil
nas construções de texto que ficariam marcados na memória da sociedade
Portuguesa até hoje. Isto pode ser constatado com a presença de estátuas
pelas cidades Portuguesas de Lisboa e Porto, além de nomes de ruas e
parques (jardins) que lembram o célebre autor português Camilo Castelo

677
Branco e sua popularidade. Em Lisboa sua estátua está situada no Jardim
Camilo Castelo Branco, na freguesia de Santo António, antiga freguesia do
Coração de Jesus em frente do Hotel Dom Carlos, e em Porto está localizada
na antiga Cadeia Relação onde Camilo foi preso pelo crime de adultério.

Estas são de alguma forma marcas que colocam Camilo em uma lista
de autores que apesar de não estarem de maneira clara no cânone da
Literatura Portuguesa institucionalizada, faz parte de uma lista de autores que
pertencem ao cânone popular. Segundo Luísa Carvalho, a primeira relação
de autores reconhecidos por suas obras foi datada de 1822, esta que, de
nenhuma forma, Camilo se fazia presente, porém em dezembro de 1884, o
jornal de Coimbra O imparcial, fez uma enquete sobre quem seriam os
autores da atualidade reconhecidos como os mais importantes pelo “povo”,
mas ignorados pelo meio acadêmico e governamental, e nesta lista Camilo
Castelo Branco aparece como o primeiro, lista que está longe de ser igual a

678
de autores do Cânone oficial. Isto se deve em grande parte, porque a
construção do cânone oficial considera autores que já haviam morrido e
desconsideram autores vivos, no entanto, ganha uma especial relevância
autores como Camilo por apresentar um grande sucesso editorial enorme e
emergente.

Um dos marcos para construção de um cânone é a presença


constante e contemporânea do escritor na vida e na rotina da sociedade
portuguesa, este que como marco de efetiva demonstração de importância
foi estabelecida como museu a casa que teria vivido a grande com sua
grande paixão Ana Plácido, que fora mandado construir pelo primeiro
marido, e que por volta de 1863, por ocasião de seu falecimento, Camilo e
Ana mudam-se com o filho dela, e que posteriormente daria a luz ao filho do
casal. A primeira casa foi destruída por um incêndio em 17 de março de 1915.
Reconstruída, foi transformada em museu camiliano em 1922. Ao final da
década de 1940 foi objeto de extensa campanha de restauro, ficando,
desde então, muito semelhante à que fora habitada pelo romancista.
Encontra-se classificada como Imóvel de Interesse Público desde 1978. Hoje
a casa museu, além de abrigar um enorme acervo sobre a vida e a obra do
escritor português, ainda conta com um centro de estudos Camilianos, e foi
considerado em 2006 um dos melhores museus pela Associação Portuguesa
de Museologia.

2 AMOR DE PERDIÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO CÂNONE

Amor de Perdição, assim como muitas outras novelas camilianas, tem


uma narrativa que ocorre de maneira muito rápida, sem muitas descrições e
com muitos diálogos, que levam o leitor a não se cansar com a leitura, a

679
cada momento da narrativa encontram-se ações decorrente aos fatos, um
sucessivo ao outro, tarefa que somente com um autor de alta performance,
digo no sentido de escrever muitas novelas, consegue ter, no que concerne
à construção da narrativa, da qual o leitor quer mais a todo instante. Camilo
tem esse poder, prende atenção do leitor cria uma cadeia de
acontecimentos, de fatos, e de ações que o leitor não tem outra fora se não
ler toda a novela.

Amor de Perdição, publicado em 1862, narra a história de Simão


Botelho e de Teresa de Albuquerque, que se apaixonam, mas não podem
ficar juntos, pois pertencem à famílias que se odeiam, mas antes de se
apaixonarem perdidamente Simão Botelho era um fanfarrão, vivia uma vida
boêmia, e que havia perdido o ano letivo na universidade de Coimbra, o
que o fez retornar a Viseu, onde seu pai ameaçava expulsá-lo de casa,
porém sua mãe, sempre intercede por seu filho, Simão já era comedido pela
paixão avassaladora, e que foi a maior responsável pela mudança no seu
caráter. Como podemos notar a seguir:

Dona Rita pasmava da transformação, e o marido, bem convencido


dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse a
palavra.
Simão Botelho amava. Ai está uma palavra única, explicando o que
parecia absurda reforma aos dezesseis anos.
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira,
regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que
ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela
incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o
também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
(CASTELO BRANCO, p. 34)

Camilo e Teresa tentam manter um namoro, mas a família faz de tudo


para combatê-lo. Tadeu de Albuquerque (o pai de Teresa) queria casar a
filha com um primo, Baltasar, mas Teresa nega-se e por isso o pai a manda

680
para um convento. Simão acaba por se esconder na casa de um ferreiro,
que o trata muito bem porque devia um favor a seu pai. A filha do ferreiro
João da Cruz, Mariana, também se apaixona por Simão e faz tudo para o
satisfazer, como podemos identificar ao se deparar com Simão:

Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga
do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu
estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou
estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que
seu pai vinha laureado de todas as feiras e romarias. (BRANCO, p. 93)

Teresa e Simão mantêm contato através de cartas, enviadas por


Mariana ou por uma senhora muito pobre. Simão procura resgatar Teresa do
convento quando ela ia ser transferida para um outro local, mas Baltasar
tenta impedir, e Simão mata-o. É preso e condenado à morte. Depois de
algum tempo, através de uma ajuda do pai, Simão consegue comutar sua
pena para dez anos de degredo na Índia.

Ao embarcar para o degredo, junto com Mariana (que quis


acompanhá-lo), Simão vê Teresa em uma janela do convento acenando
com um lenço, depois disso ela morre. Simão fica doente no trajeto para a
Índia e morre. Mas quando vão lançar o corpo ao mar, Mariana, filha do
ferreiro, lança-se junto. Morrem os três amantes.

O grau de dramaticidade evidente na obra do começo ao fim, ações


de execução rápidas, com poucas descrições, porém com muitos diálogos,
o que demonstra a habilidade que Camilo tinha em construir uma narrativa
que consequentemente o levaria a popularização de seu texto, este que já
participava do rol de autores que, de alguma forma, já se destacavam. O
discurso utilizado por Camilo através das personagens são um dos destaques
a parte, pois são recheados de romantismo, lirismo e poesia, principalmente

681
se tratando das cartas que eram trocadas entre Simão e Tereza, essas que
são o principal atração para os leitores, já que a através delas que grande
parte da narrativa se desenrola, e é por elas que sabemos fatos que irão
ocorrer, e principalmente a carga sentimental que envolve os textos, é o
caso do momentos finais da narrativa, onde ao ingressar a nau, Simão avista
Teresa no mirante e chega questionar a Mariana se realmente é Teresa, por
não reconhecer a enferma.

Ouviu-se a voz de levar âncora e largar amarras. Simão encostou-se


à amurada da nau, com os olhos fitos no mirante. Viu agitar-se um
lenço, e ele respondeu com o seu àquele aceno. Desceu a nau ao
mar, e passou fronteira ao convento. Distintamente Simão viu um
rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de
Teresa aquele rosto: seria antes um cadáver que subiu da claustra ao
mirante, com os ossos da cara inçados ainda das herpes da sepultura.
- É Teresa? - perguntou Simão a Mariana.
- É, senhor, é ela - disse num afogado gemido a generosa criatura,
ouvindo o seu coração dizer-lhe que a alma do condenado iria
breve no seguimento daquela por quem se perdera. De repente
aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um
movimento impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de
Teresa e do vulto de Constança, que ele divisara mais tarde.
(CASTELO BRANCO, p. 205)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Indiscutivelmente Camilo Castelo Branco é um dos autores


portugueses mais importantes da Literatura romanesca de todo o país, por
representar um dos mais importantes períodos da literatura portuguesa do
século XIX, com uma vasta opção temática que reúne um arcabouço
extenso de assuntos ainda a serem abordados. Amor de Perdição, como o
autor faz questão de enfatizar, foi escrita em 15 dias e se tornou uma das

682
novelas mais bem recepcionada pelo público, texto esse que tem uma série
de características que favorecem essa bem sucedida narrativa.

Podemos destacar sua importância para construção e a formulação


canônica na Literatura Portuguesa, já que como mencionamos
anteriormente Camilo constitui até hoje um dos mais importantes e populares
autores da Literatura nacional, essa “fama”, tem diversos fatores, mas o que
nos chama atenção é a aproximação do autor e leitor, esta conexão foi
frequentemente estabelecida por Camilo, sua vida boêmia e cheia de
grandes histórias representou, em certa medida, a própria vida da sociedade
portuguesa da época o que aproximou seus textos da realidade.

Manzatto afirma que existem diversas interpretações do fazer literário,


visto que, para ele, a literatura é uma arte que, em geral, adquiriu
importância ímpar na cultura, nesse ponto pode ajudar a completar a visão
que se tem do homem, na medida em que ela apresenta também uma
compreensão do que significa ser humano. Nesse aspecto, de fato,
podemos elucidar uma das mais importantes preocupações de Camilo
Castelo Branco, explorar o mais íntimo sentimento humano: o amor, que até
hoje muda vidas, caminhos e transforma o homem, a exemplo do
protagonista de Amor de Perdição Simão Botelho que por amor mudou
completamente sua vida.

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canone-literario--2709362.html

684
CAPOEIRA: LUGAR DE RESISTÊNCIA E MEMÓRIA

Ivalda Kimberlly Santos Portela93


Magno Santos Batista94

RESUMO: A capoeira constitui-se como um lugar de resistência e memória, porque a sua


prática apresenta aspectos de ordem étnico-racial, cultural, social e histórico dos sujeitos
pertencentes a comunidade afrodescendente. Além disso, a Capoeira como prática
cultural dos afrodescendentes, trilhou os caminhos mais árduos e difíceis da cultura brasileira,
por séculos foi marginalizada, excluída e criminalizada pelas elites escravistas. Esse estudo
objetiva-se em discutir a prática da capoeira como lugar de memória e resistência para as
comunidades afrodescendentes. Do ponto de vista teórico- metodológico percorreremos
as leituras de Le Goff (2003), Evaristo (2016), Ribeiro (2019), dentre outros. Para as análises da
resistência e da memória, selecionamos cantigas que retratam os aspectos socioculturais,
religiosos, de resistência e memória. Por fim, os resultados apontam que a prática da
Capoeira carrega consigo a história, a cultura e a luta de um povo que, desde antes da
chamada “Abolição da escravatura”, para ser reconhecida e ser valorizado nas diversas
dimensões, social, humana e histórica. Nessa batalha, a Capoeira conquista “status” de
arma contra o preconceito, a indiferença e representa também o veículo propagador da
cultura, identidade e história do povo afrodescendente. Além de que se tornou uma das
manifestações cultuais brasileiras de maior representativa a nível mundial, abrangendo todo
o território nacional e países do exterior, espalhando-se por todos os continentes.

Palavras-chave: Pertencimento, História, Identidade.

INTRODUÇÃO: A MEMÓRIA NA CAPOEIRA

O Brasil é um país afrodescendente, sendo assim, a cultura dos nossos


ancestrais está presente em vários espaços artísticos em termos históricos,
sociais e culturais. Contudo, há uma visão preconceituosa e de apagamento
dessa cultura. Ao longo do tempo, representatividades negras buscaram de

93 Graduanda do Curso de Educação Física da Universidade do Estado da Bahia – UNEB,


kportela44@gmail.com
94 Professor substituto da - Universidade do Estado da Bahia- UNEB campus X – Teixeira de

Freitas. Doutorando do Programa em Língua e Cultua da UFBA. E-mail: msbatista@uneb.br

685
forma individual ou coletiva o espaço que lhes foi negado. Na leitura da
cultura brasileira faz-se necessário destacar a deriva do agrupamento das
culturas: indígenas, europeias e africanas. Vale a ressalva que a
heterogeneidade da cultura brasileira se dá a partir dos povos que vieram
ou já estavam no Brasil, por isso: “somos uma cultura sincrética, um povo novo,
que apesar de fruto da fusão de matrizes diferenciadas, se comporta como
uma só gente, sem se apegar a nenhum passado.” (Ribeiro, 1996).

No retorno ao passado, o encontro com os produtos culturais é


inevitável, e também a sua importância nas manifestações culturais no
contemporâneo. Dentre os produtos culturais que atravessaram o passado e
alcançou o contemporâneo está a Capoeira. Manifestação cultural que
representa o campo performático artístico e corporal e uma expressão
cultural, que traz consigo relações entre performance, memória, corpo e
conhecimento. Além do mais, a partir dessas relações os sujeitos envolvidos
transmitem mensagens de preservação de saberes e o estilo artístico afro-
brasileiro.

O surgimento da capoeira percorre algumas hipóteses referentes à


sua origem, porém é inquestionável a presença negra nessa prática desde a
aparição de suas dimensões múltiplas. Mesmo com a mistura de raças e sua
expansão mundial, a capoeira continua sendo uma cultura de
pertencimento e apropriação do povo negro. Esse âmbito salientado é
perceptível por meio dos instrumentos utilizados, haja vista que estes
remetem à tradição ancestral do povo negro que veio habitar neste país.

A performance capoeirista representa uma das tradições orais dos


povos africanos. Em relação à performance, Leda Martins (2002) explica:

Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência banto ou nagô-


iorubá, as coreografias côncavas e convexas que criam um espaço

686
de circunscrição do sujeito e do cosmo remetem-nos não apenas ao
universo semântico e simbólico da ação ali reapresentada, mas
constituem em si mesmas a própria ação, instituída e constituída pela
performance do corpo. Dançar é performar, inscrever. A
performance ritual é, pois, um ato de inscrição, uma grafia. Nas
culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as
indígenas, por exemplo, o corpo é, por excelência, o local da
memória, o corpo em performance, o corpo que é performance
(MARTINS, 2002).

É possível observamos, a partir da citação acima, que a tradição


herdada do povo negro, muitas vezes, não foi registrada de forma gráfica,
tendo em vista que o modo de transmissão de saberes se deu/aval a partir
do universo oral. Desse modo, é a memória presente nos sujeitos e
materializada em seus corpos que faz perpetuar os conhecimentos, tradições
e histórias de tal comunidade. Assim, ao performatizar o jogo de capoeira no
presente e em solo brasileiro, os sujeitos que dele participam e se apropriam
transmitem uma série de conhecimentos acumulados por mais de 500 anos
de história.

Através de movimentos corporais, é praticada a “vadiagem’’. Essa


consiste em atos simbólicos, musicais e místicos religiosos. A expressão da
história desse povo é performada nas rodas de capoeira, permeada
intensamente pelas marcas da negritude. No terreno da histórico, o político
se faz presente e se torna uma marca importante na luta contra o
preconceito e instituição da capoeira como símbolo de resistência e história.
Nesse sentido:

No terreno político, negritude serve de subsídio para a ação do


movimento negro organizado. No campo ideológico, negritude
pode ser entendida como processo de aquisição de uma
consciência racial. Já na esfera cultural, negritude é a tendência de
valorização de toda manifestação cultural de matriz africana
(DOMINGUES, 2005).

687
Nas ações políticas e históricas, a memória africana é diretamente
ligada a um dos traços mais marcantes da capoeiragem, essa vem
carregada de marcadores de exclusão de um povo, que deu origem à arte
como resistência da negritude em solo brasileiro. Estes que por quase 400
anos, em meio a condições desumanas, sofreram a diáspora de seu
continente natal e viveram aqui como escravos. Por mais que tenha sido
abolida, a escravização deixou suas marcas cruéis de discriminação étnico-
racial, maquiada até hoje no Brasil e camuflada na forma de uma
pseudodemocracia racial.

Na atualidade, a Capoeira sofre processos de transformações, esses


incluem as perdas das referências africanas. E um dos aspectos que
contribuiu para as perdas foi “o racismo que descolou essa relação histórica
entre negritude e capoeira e criou apropriações distorcidas, como a
capoeira gospel”. Para Larissa Ferreira apud Débora Brito (2020)., por mais
que essa prática seja oriunda do povo negro, ela vem passando pela
descaracterização de sua identidade e afastando principalmente a
presença da mulher, em especial, da mulher negra.

Nesse contexto, outro fator importante a se destacar é sobre a


presença da capoeira no mundo. O processo de internacionalização da
capoeira não é novo, sua expansão e popularização global deve-se a
grandes nomes de mestres (as), contramestres (as) e professores (as) que a
popularizaram mundialmente. Nos dias de hoje, são encontrados grupos de
capoeira nos cinco continentes, com maiores números de praticantes latino-
americanos e europeus.

No Brasil, as cidades de referência são Salvador, Rio de Janeiro e


Recife. A capoeira surgiu na região portuária, sendo apresentada por
escravizados vindos do continente africano. Salvador por sua vez, consiste
na capital com maior número de descendentes africanos do país e é

688
considerada a cidade mais negra fora da África, segundo os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2017).

O presente trabalho estabeleceu como objetivo geral discutir a prática


da Capoeira como um lugar de resistência e memória das comunidades
afrodescendentes aqui no Brasil. A principal motivação para sustentar o
presente artigo, reside na importância que consideramos a discussão uma
luta histórica dos sujeitos pertencentes a comunidade afrodescendente.

1 METODOLOGIA

A metodologia adotada constitui-se de uma análise qualitativa de


cunho bibliográfico e interpretativa, que conforme Gil (2006) esse tipo de
pesquisa propõe a descoberta, a interpretação contextualizada e o relato
de modo aprofundado dos fatos sociais do cotidiano. Para realização dessa
pesquisa percorremos as leituras de Le Goff (2003), Evaristo (2016), Ribeiro
(2019), dentre outros.

Para a análise, selecionamos como corpus 5 (cinco) cantigas


cantadas nas rodas de capoeira. A seleção justifica-se porque as cantigas
retratam os aspectos socioculturais, religiosos, resistências e memórias da
comunidade afrodescendente. Esse estudo atravessa as discussões
pautadas dos Estudos Culturais e a História. Por fim, as memórias construídas
nas cantigas evidenciam vivencias e a capoeira como um caminho de
resistência da comunidade afrodescendente.

689
2 REFERENCIAL TEÓRICO

A performance dos capoeiristas na roda de Capoeira representa


resistência e luta da população negra a partir do instante em que os negros
foram caçados em seu país de origem e escravizados em vários países. A
Capoeira, nominalmente chamada de arte-luta conquistou símbolo de
representatividade cultural, histórica e social e transpõe as fronteiras
geográficas do Brasil e alcança o mundo.

Por fim, as linhas a seguir apresentam a discussão da capoeira sob a


perspectiva teórica.

2.1 CULTURA E RESISTÊNCIA

A diáspora africana transatlântica, a escravidão e o ódio destilado


contra os nativos formam um dos capítulos mais cruéis e tortuosos da história
do território brasileiro. Os navios negreiros e suas condições precárias e
desumanas, o comércio de negros escravizados, a tortura, a objetificação
de homens e mulheres, o abuso sexual e a dominação cultural e religiosa
foram algumas dessas cenas cruéis.

Durante um fasto tempo de perseguição corpos negros


sofreram/sofre as amarguras da cruel sociedade e foi nesse cenário que
nasceu a resistência negra. Os quilombos, o candomblé, a umbanda, o
samba, o jongo e a capoeira são símbolos dessa resistência física, militar e
cultural. Assim, a Capoeira constitui-se como uma das manifestações de
resistência.

690
Além disso, a Capoeira se tornou uma das manifestações culturais
mais importantes no Brasil, assim como o carnaval, o samba e o futebol, isto
é, faz parte do conjunto dos grandes ícones contemporâneos
representativos da identidade cultural brasileira. Sua prática surge como
traço da cultura afro-brasileira excluída da sociedade, visto a princípio,
como resistência a escravidão, como algo sem valor, clandestina, ilegal,
violenta e perseguida pelos senhores de engenho.

Documentos que comprovem onde, como, quando e com quem


nasce à capoeira não existem, no entanto, para Santos (1957) não há
dúvidas de que a capoeira veio para o Brasil com os negros, procedente
principalmente de Angola, mas não necessariamente como meio de defesa
pessoal, e sim, como uma dança religiosa. Desprovidos de outras armas, foi
a partir dos golpes e dos movimentos de defesa da capoeira que, com
seus corpos, os escravizados resistiram à violência dos senhores de engenho,
capitães do mato e feitores. A partir dos golpes e dos movimentos de defesa
da capoeira, com seus corpos negros buscaram a liberdade, a reconexão
com o próprio eu e com os que vieram antes.

A história da capoeira foi marcada por perseguições policiais, prisões,


racismo e outras formas de controle social que os agentes dessa prática
cultural experimentaram em sua relação com o Estado brasileiro. O processo
de migração da população negra para a capital do país fez com que as
manifestações culturais afro-brasileiras, como o samba, o candomblé e a
capoeira fossem intensificados abrangendo as várias regiões.

Assim como nas demais esferas sociais tudo que não venha do
patriarcado representado pela branquitude é inferiorizado, e com a
Capoeira nãos seria diferente. Como nas escolas de samba e nos terreiros,
existe uma permanente invasão de povos que não tem lugar de fala nesses
espaços, não por atitude antirracista, mas por apropriação indevida de tudo

691
que é preto e só se torna “legítimo”, “legal”, culturalmente aceito, quando é
arrancado de nossas mãos, retirado do contexto de nossa história, a ponto
de ser renegado por nós.

É extremamente importante recuperar as evidências históricas da


Capoeira, enquanto práticas multiculturais, que se mantém vivas tanto na
memória coletiva quanto na individual de seus agentes sociais com tudo
nortearem os valores relevantes ao real valor como patrimônio cultural como
possível ferramenta educacional libertadora.

É uma história complexa, perdida nos escaninhos da tortuosa


memória brasileira que por séculos tentou sonegar a devida importância de
suas origens básicas africanas ou indígenas, e os reflexos desse conflito
identitário permanecem até os dias atuais. Esta mesma materializa-se em
objetos, vestimentas, cantos, instrumentos, ritmos, movimentos, e outros
aspectos que compõem o fazer cotidiano da prática.

2.2 DA MARGINALIZAÇÃO AO RECONHECIMENTO

A história da Capoeira desde sua a gênese apresenta-se como


significado de luta e resistência de um povo. Durante séculos essa prática foi
criminalizada e excluída. No Brasil, Rio de Janeiro, Recife e Salvador (BA)
foram às cidades que mais receberam a influência da Capoeira. Esse fato se
justifica devido essas cidades receberem a maior quantidade de navios
negreiros, já que nesses estados eram desembarcados e comercializados a
maior parte do contingente de negros vindos da África. Desde a chegada
dos negros no Brasil, a capoeira era praticada pelos escravos. Contudo, em
1980, os negros foram proibidos de “jogar capoeira” e a luta transformou-se
em crime e, caso, fossem pegos em flagrante poderiam ser presos.

692
A Capoeira é considera herança deixada pelos negros bantos, vindos
de Angola como escravos, foi cultivada e praticada por escravos fugitivos
que, ameaçados de recaptura, defendiam-se, usando a técnica. Para não
levantar suspeitas, os movimentos da luta foram adaptados às cantorias
africanas para que parecesse uma dança.

Esse cenário de marginalização se modificou no século XX. A partir


desta, a Capoeira adquiriu status e relevância na cultura brasileira. Em 15 de
julho de 2008, o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto de
Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional (IPHAN) deliberou sobre o registro e
tombamento da Capoeira como patrimônio imaterial brasileiro.

A Roda de Capoeira foi inscrita no Livro de Registro das Formas de


Expressão, em 2008, e considerada elemento estruturante de
uma manifestação cultural, espacial e temporal. Além do mais, expressa
simultaneamente o canto, o toque dos instrumentos, a dança, os golpes, o
jogo, a brincadeira, os símbolos e rituais de herança africana - notadamente
banto - recriados no Brasil (IPHAN). Logo na sequência, a roda de capoeira
foi laureada com o status de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade
pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO).

A expansão e o reconhecimento não se delimitaram apenas em solo


brasileiro, a capoeiragem é praticada em todo o mundo, e a sua prática
abrange todos os continentes. Além disso, a capoeira pode ser considerada
um atrativo de grande relevância dentro do turismo étnico cultural,
representando a cultura afro-brasileira como símbolo da resistência e como
patrimônio cultural imaterial. Devido ao movimento de resistência e luta dos
escravos, ao longo do processo histórico vivenciado pelos negros no Brasil, a
capoeira atraiu e até hoje atrai pessoas de idades e lugares diferentes, de
cor e culturas diversificadas.

693
2.3 AS CANTIGAS RETRATOS DA MEMÓRIA E RESISTÊNCIA DA POPULAÇÃO
NEGRA.

As Cantigas de capoeira compreendem a valorização da expressão


oral, da corporeidade e da arte, isto é, a dança, marcas da cultura de raiz
africana, do patrimônio cultural afro-brasileiro. Por todos esses aspectos, as
cantigas precisam ser preservadas, analisadas e difundidas.

As composições resgatam a memória, perpetuam as tradições e


promovem o constante repensar das lutas e batalhas da população negra.
Nas rodas, ao capoeiristas evocarem às canções as cenas dos feitos heroicos
dos negros evidenciam os ensinamentos dos ancestrais e a competência dos
sujeitos envolvidos para a luta ecoam com a música e contribuem para dar
forma ao jogo.

Na procura por harmonia e ritmo, os capoeiristas usam o berimbau,


objeto que determina a cadência rítmicas e melódica do jogo. Além disso,
o cantador sugere o maior ou menor grau de malícia entre os lutadores. As
palmas acompanham o conjunto percussivo e o coro ressoa amplificando a
cena instaurada. Todos os elementos se interdependem para que a roda de
capoeira aconteça como unidade.

Na análise das cantigas, aspectos como a marginalização, a


identidade e a memória são acionados para a formação de atos de
resistência e força da população negra. Em relação à marginalização, vale
a ressalva, que dois aspectos são importantes na análise: a origem e a
identificação dos capoeiristas. A descendência africana carrega consigo
particularidades culturais originárias dos povos africanos, dentre elas:
capoeira de angola. As marcas identificatórias dos movimentos da capoeira

694
contribuem para a configuração da roda de capoeira e a formação rítmica
e melódica das cantigas.

A origem e a identificação são registros dos capoeiristas, escravizados,


negros e pessoas socialmente marginalizadas. Marcas evocadas com
frequência nas cantigas. A África, os lugares do Recôncavo Baiano, a
cidade de Salvador, o cais, o mercado, os locais das festas populares
retratam em suas ruas, arquitetura, falares, gastronomia, a história da
capoeira e dos indivíduos que a praticam, assim como à cultura afro-
brasileira. (ALVAREZ, 1997)

Essas marcas contribuem para a constituição identitária do povo negro,


da memória de uma civilização que transforma a performance dos
movimentos nas rodas de capoeira em luta e resistência. Os discursos
preconceituosos procuram a todo instante marginalizar e apresentar um
caráter genérico às cantigas. Mas as narrações instituem conflitos urbanos,
memorialísticos e identitários em que o ponto principal é resistir contra as
autoridades opressoras.

No excerto abaixo, percebemos essas marcas.

Iê!
Tava em casa
sem pensar nem maginar
delegado no momento
já mandou foi me intimar
é verdade meu colega
com toda diplomacia
prendero o capoeira
dentro da delegacia
para dar depoimento
daquilo que num sabia

695
Iê! (DAS AREIAS, 1983)

Esta ladainha do Mestre Caiçara, faz referência aos anos de


perseguição, quando a polícia reprimia a prática da capoeira, proibida
segundo a lei. O texto expressa um sentimento, por parte do capoeirista, de
ser tratado com injustiça. Além disso, representa os atos opressores da lei, da
sociedade preconceituosa e o depoimento de resistência dos capoeiristas.
Na cantiga duas lutas são travadas a do opressor e a do oprimido. Lutas que
resvalam a memória da perseguição e da força contra os atos de repressão.

No segundo excerto, a memória e a identitária cruzam fronteiras e o


tempo das brincadeiras na terra estrangeira.

Luanda ê pandeiro
Ô, Luanda é Pará
Oi Tereza samba deitada
Ô, Idalina samba de pé
Ô, lá no cais da Bahia
Na roda de capoeira
Não tem lelê
Não tem lá
Não tem lelê
Nem lalá
Ô, laê, laê, lá
Ô, lelê
Ô, laê, laê, la
coro (DOWNEY, 1994)

Luanda e Salvador aparecem num mesmo texto. O cais da Bahia era


um lugar onde os capoeiristas costumavam se encontrar. Reuniam-se no cais
os marginalizados e oprimidos: malandros, boêmios, meninos de rua,
prostitutas, trabalhadores, e as rodas surgiam espontaneamente. Além do

696
mais, a identificação e a origem se dão na lembrança do país em que foram
caçados e trazidos à força para o Brasil. O cais e o lelê também registram a
condição de escravo, não somente pela sua cor de pele, mas também
através da luta contra a sua condição de vítima de opressão e
marginalização ao longo dos séculos.

No terceiro e último excerto, a memória do sofrimento, da submissão e


da inferioridade é evidenciada e marcada na melodia da cantiga abaixo.

Antigamente

Era assim que acontecia


Se o negro não obedecesse
O capitão lhe prendia
Pra bater na covardia
Sinhá mandou chamar...
coro: Sinhá mandou chamar
Sinhá mandou dizer
Que se o negro não vim vai apanhar
Mas nego não quer saber
Sinhá mandou chamar...
Hoje em dia é diferente
Com a abolição da escravatura
Corda que amarrou o negro
Hoje eu trago na cintura
Sinhá mandou chamar (Boa voz)

A chamada Abolição, as dores do tronco, o sangue que marchou os


chicotes dos capangas e senhores de engenho atravessa o ritmo e a melodia
da canção. No jogo de palavras entre negro, apanhar, nego, abolição,
cintura surgem a rememoração do tratamento subalterno, inferioridade e
submissão. Além dos gritos de dor e choros evocados a cada acoitada. Essa

697
memória triste e carregada de sofrimento é relatada em várias cantigas de
capoeira.

Se antes a cantiga anunciava as dores e as alegrias, hoje, representa


a resistência a partir da rememoração dos fatos e o resgaste da identidade
de uma população que sofre/sofreu com os açoites dos chicotes. Por fim, as
cantigas atravessam gerações e firmam as ideias de resistência, memória e
identidade nos espaços onde acontecem as rodas, na corda, instrumento
usado para aprisionar, hoje, é utilizado como um dos principais elementos da
capoeira, sobretudo, na denominada Capoeira Regional a corda remete a
graduação do aluno na grande roda.

Portanto, é notário que mudanças aconteceram e vem acontecendo


a todo momento, mediante a essa linha do tempo percorrida nas cantigas
de Capoeira é perceptível que hoje em dia essas mesmas demonstrações
orais estão vivas e sendo reproduzidas nas rodas com o objetivo de reafirmar
a historicidade perpassada pelo povo negro e de (re)existência da Capoeira
ao longo desse itinerário.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao nos referimos ao campo performático artístico e corporal, sabemos


que nos é aberto um leque prático e conceitual. Um dos exemplos dessa
expressão é a capoeira, Segundo (Martins, 2002) nesse ritual é transmitida
toda uma mensagem de preservação de saberes do estilo artístico afro-
brasileiro.

Desse modo, é a memória presente nos sujeitos e materializada em


seus corpos que faz perpetuar os conhecimentos, tradições e histórias. Assim,
ao performatizar o jogo de capoeira, os sujeitos que dele participam se

698
apropriam e transmite uma série de conhecimentos acumulados por mais de
400 anos de história.

A pesquisa permitiu rememorar fatos e constituir a capoeira como o


lugar de resistência na sociedade. No decorrer da pesquisa compreendeu-
se a importância dos negros enquanto protagonistas de um processo de lutas
e exclusão que pouco foi valorizado pelo poder público e incompreendido
pela sociedade. Esse fator, de fato, impossibilitou que a Capoeira tomasse
maiores proporções em lugares que deveriam estar atualmente. Dessa forma,
foi possível também dar voz às memórias silenciadas por muito tempo,
referentes à origem da Capoeira e compreender os motivos pelos quais as
memórias entram em disputas para garantir legitimidade.

Os resultados apontam que a prática da Capoeira carrega consigo a


história, a cultura e a luta de um povo que desde antes da chamada
“Abolição da escravatura” para ser reconhecida e ser valorizado nas
diversas dimensões, social, humana e histórica. Nessa batalha, a Capoeira
conquista “status” de arma contra o preconceito, a indiferença e a
representa também o veículo propagador da cultura, identidade e história
do povo afrodescendente. Além de que se tornou uma das manifestações
cultuais brasileiras de maior representativa a nível mundial, abrangendo todo
o território nacional e países do exterior, espalhando-se por todos os
continentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A capoeira é uma das manifestações culturais mais importantes em


nosso país, assim como o carnaval, o samba e o futebol, esta faz parte do
conjunto dos grandes ícones contemporâneos representativos da

699
identidade cultural brasileira. Sua prática surge como traço da cultura afro-
brasileira excluída da sociedade, visto como resistência a escravidão, como
algo sem valor, se manifestando de forma clandestina, ilegal, violenta e
perseguida. Essa história foi marcada por perseguições policiais, prisões,
racismo e outras formas de controle social que os agentes dessa prática
cultural experimentaram em sua relação com o Estado brasileiro. Portanto,
desde sua a gênese apresenta-se como significado de luta e resistência de
um povo.

Dando ênfase às questões sugeridas, podemos concluir que, as


mensagens transmitem claramente os valores da capoeira, narrando toda
uma epopeia do passado dos ancestrais, salientando conflitos sociais,
reportando-se ao contexto sociocultural dos afro-brasileiros e evidenciando
as suas lutas por liberdade, dignidade e cidadania. E a memória e a
resistência exaltadas nas cantigas, nos possibilitou penetrar nesse universo
tão carregado de dores, alegrias e luta.

REFERÊNCIAS

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BRITO, Débora. Mulheres usam roda de capoeira como espaço de luta pela
igualdade: Prática pode incentivar resgate da identidade racial. Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/mulheres-usam-
roda-de-capoeira-como-espaco-de-luta-pela-igualdade. Acesso em: 6 nov.
2020.

DAS AREIAS, Almir. O que é capoeira. Brasiliense, 1983.

700
DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas para negros no Brasil: o início de
uma reparação histórica. Revista brasileira de educação, n. 29, p. 164-176,
2005.

DOWNEY, Greg (ed) 1994 Universo Musical da Capoeira: VIII Oficina mostra e
II Encontro Internacional de Capoeira de Angola. Salvador. Grupo de
Capoeira Angola Pelourinho, Comissão de Documentação e Acervo.

EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Pallas Editora, 2016.

FERREIRA, Larissa. “Entrevista”. In: BRITO, Débora. Mulheres usam roda de


capoeira como espaço de luta pela igualdade: Prática pode incentivar
resgate da identidade racial. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/mulheres-usam-
roda-de-capoeira-como-espaco-de-luta-pela-igualdade. Acesso em: 6 nov.
2020.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2017. Pesquisa Nacional


por Amostras de Domicílio Contínuas. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-
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Acesso em 20 de nov.2020.

IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2021. Roda de


Capoeira. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66.
Acesso em 24 de abril.2021.

LE GOFF, Jacques et al. História e memória. 2003.

MARTINS, L.; “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX,


Márcia. Performance, exílio, fronteiras: errâncias, territoriais e textuais. Belo
Horizonte: UFMG, 2002.

701
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. Cadernos de Ciência & Tecnologia, v. 13, n.
2, p. 245-249, 1996.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. 2010.

SANTOS, Luiz Silva, 1957 – Educação: educação física: capoeira/Luiz Silva


Santos. Mariná, 1990.

702
A POÉTICA DO VAZIO EM “EIS A NOITE”, DE JOÃO ALPHONSUS

Cilene Margarete Pereira95

RESUMO: Apesar de bastante elogiado pela crítica, o escritor mineiro João Alphonsus tem
sido alvo de poucos estudos, identificando-se apenas três ensaios fundamentais. Em João
Alphonsus: tempo e modo, de 1965, Fernando Côrrea Dias apresenta uma visão geral da
obra do escritor mineiro, reportando-se ao entendimento de sua importância dentro da
história literária daquele momento. João Alphonsus - ficção, de 1971, de João Etienne Filho,
pertence à coleção “Nossos clássicos”, que, como se sabe, apresenta um modelo já
determinado: dados biográficos, apresentação (dividida em situação histórica e estudo
crítico) e uma antologia de textos do autor. Em 2011, o crítico Ivan Marques dedicou um
capítulo do livro Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de
Belo Horizonte à ficção de João Alphonsus, destacando aspectos particulares de sua obra,
sobretudo de seus contos. Considerando este percurso crítico, importante para o
entendimento da obra de João Alphonsus, proponho aqui uma leitura do conto “Eis a noite”,
publicado na coletânea de mesmo nome em 1943. A narrativa se constrói sob o vazio
existencial da protagonista do conto, Madalena. Normalmente, as narrativas curtas de João
Alphonsus são construídas em “torno do nada”, conforme observou Antonio Candido (1999,
p. 88). Tal ideia de falha e incompletude (emanada da própria forma do conto de João
Alphonsus) se mostra também na construção de suas personagens, que parecem dotadas
de uma existência nula, em que o não acontecimento dos contos e sua não finalização são
formas de mimetizar esta existência falhada.

Palavras-chave: João Alphonsus; contos; poética do vazio.

INTRODUÇÃO

Ainda que bastante elogiado pela crítica, a obra de João Alphonsus


tem sido alvo de poucos estudos. Uma análise de sua fortuna crítica identifica
apenas três ensaios fundamentais. Os livros de Fernando Côrrea Dias, de
1965, e de João Etienne Filho, de 1971, e mais recentemente, em 2011, Ivan
Marques, em seu livro sobre o modernismo mineiro, dedicou um capítulo à

95Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP);


Professora Visitante do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal
de Alfenas (UNIFAL-MG), cilene.pereira@unifal-mg.edu.br

703
ficção de João Alphonsus, destacando aspectos de sua obra,
particularmente de seus contos.

Considerando essa pequena, mas importante fortuna crítica,


fundamental para o entendimento da obra de João Alphonsus, proponho
aqui uma leitura do conto “Eis a noite”, evidenciando um aspecto que me
parece fundamental na narrativa do escritor mineiro: o vazio existencial de
suas personagens, inscritas no cotidiano miúdo, amesquinhado, burocrático
da grande cidade, monótona e abafada, que a faz “intolerável”, conforme
a caracteriza Carlos Armando, personagem do conto “Morte burocrática”.96

1 METODOLOGIA

Considerando o objetivo deste trabalho, destaca-se o uso da


pesquisa bibliográfica-documental, com o fim de analisar como se dá o
processo de construção do vazio existencial da personagem principal do
conto “Eis a noite”, Madalena. A pesquisa bibliográfica considera a leitura
como “instrumento de estudo e pesquisa”, devendo consistir “numa
atividade metódica, atenta, rigorosa e crítica” (SOUZA, 2016, p. 80). Foram
selecionadas referências teóricas que tratavam da obra de João Alphonsus
com o objetivo de “proporcionar acesso a novas informações que se
acrescentem ao repertório do leitor, tendo em vista aperfeiçoar

96 Carlos Drummond de Andrade reconhece no estilo composicional de João Alphonsus “[...]


sinais de sua passagem pela banca da repartição pública, a principiar pela metodização
calma da narrativa, que se desenvolve lenta, mole, aparentemente desinteressada, sem
fugir mesmo à banalidade de incidentes ou de expressão, e contudo segue um fio lógico,
vai ganhando corpo e vigor, impondo-se no seu caráter doloroso ou dramático inexorável”
(ANDRADE, 1976, p. 17).

704
indefinidamente seus conhecimentos” (SOUZA, 2016, p. 81) a respeito do
assunto tratado:

A pesquisa bibliográfica utiliza fontes constituídas por material já


elaborado, constituído basicamente por livros e artigos científicos
localizados em bibliotecas. A pesquisa documental recorre a fontes
mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como:
tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais,
cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas,
vídeos de programas de televisão, etc. (FONSECA, 2002, p. 32).

Por se tratar de uma pesquisa no âmbito dos estudos literários, que


promove a análise de textos literários, sua abordagem é qualitativa, uma vez
que a “palavra escrita ocupa lugar” central, “desempenhando um papel
fundamental tanto no processo de obtenção dos dados quanto na
disseminação dos resultados”, explica Godoy (1995, p. 62). A pesquisa de
abordagem qualitativa

Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e


processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a
situação estudada, procurando compreender os fenômenos
segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da
situação em estudo. (GODOY, 1995, p. 58)

2 REFERENCIAL TEÓRICO

João Alphonsus de Guimaraens nasceu em Conceição do Serro em


seis de abril de 1901. Filho mais velho do ilustre poeta simbolista Alphonsus de
Guimaraens, começou sua carreira literária pela poesia – notadamente
influenciado pelo pai. Foi participante do Grupo literário “A revista” e, no
periódico dirigido por Carlos Drummond de Andrade e outros, publicou seu
primeiro poema, “Janeiro” (1925). Mas apesar do começo poético e da

705
influência do pai, foi na prosa que João Alphonsus se destacou, publicando
em sua curta vida literária dois romances, Totônio Pacheco (1935) e Rola-
moça (1938); e três livros de contos, Galinha cega (1931);97 Pesca da baleia
(1941)98 e Eis a noite! (1943),99 ano anterior à sua morte, em 24 de maio.

Os dois romances de João Alphonsus têm como cenário a construção


e formação da cidade de Belo Horizonte, sendo ambos “romances
consciente e reconhecidamente de costumes, de costumes belorizontinos”,
segundo observou Fernando Dias (1965, p. 30). Totônio Pacheco acompanha
a trajetória de decadência do fazendeiro que dá título romance e divide-se
em três partes: a primeira narra o retorno Fernando Pacheco, filho de Totônio,
à fazenda da família às vésperas da morte da mãe. Nesta primeira parte, a
descrição minuciosa da fazenda e dos costumes interioranos ganha força,
sobretudo porque, a segunda parte, centrada no cenário social de Belo
Horizonte, marca uma nítida oposição espacial, inserindo-se na tradição
temática do campo versus cidade, do arcaico contraposto ao moderno a
partir da descrição da cidade em expansão e de seus aspectos burocráticos.
Essa segunda parte centra-se, desse modo, na difícil adaptação do coronel
Totônio, que deixa o interior depois da morte da esposa, e em seus
desentendimentos com o filho. Na última parte do romance, o conflito entre
pai e filho é acentuado a partir da aproximação do coronel a uma prostituta,
levando-o, de vez, à decadência física, moral e social. O romance é
bastante episódico, sendo construído por meio da mistura de descrições,
episódios narrativos e diálogos excessivos.

97 A coletânea Galinha cega contém quatro contos: “Galinha cega”; “Oxianureto de


mercúrio”; “Godofredo e a virgem” e “O homem na sombra ou a sombra no homem”.
98 A coletânea Pesca da baleia contém seis contos: “Pesca da baleia”; “Morte burocrática”,

“Uma história de Judas”; “O guarda-freios”; “O imemorial apelo”; “Sardanapalo”.


99 A coletânea Eis a noite! contém oito contos: “Eis a noite!”; “Mansinho”; “Foguetes ao

longe”; “A noite do conselheiro”; “O mensageiro”; “O guerreiro”; “A ordem final”; “O


caracol”.

706
Em Rola-moça, seu segundo e último romance, o procedimento de
divisão da história volta a aparecer; entretanto, as três narrativas que
compõem o livro apresentam certa independência entre si, localizadas em
ambientes diversos de Belo Horizonte. Em um sanatório para tuberculosos
passa-se os acontecimentos em torno da jovem Clara, moça carioca que
vem a Belo Horizonte em busca de tratamento. O segundo ambiente-
narrativo é a residência burguesa de Anfrísio da Conceição, bacharel em
Direito e funcionário público, que está localizada entre uma favela próxima
de ser desocupada e o sanatório citado. O terceiro cenário do romance é a
própria favela. Como se vê, João Alphonsus constrói sua narrativa a partir do
movimento entre os três espaços, tendo o palacete e a figura de Anfrísio
como “problematizadores” da cidade (partida) ainda em construção. Rola-
moça, mais que Totônio Pacheco, evidencia uma tendência de João
Alphonsus à fragmentação do enredo, centrado nas pequenas peripécias
de suas personagens. Tal fato parece sugerir sua vocação para o conto,
forma literária de predileção do autor:

Quer você que eu confesse [...] os momentos de plena realização


intelectual. Responderia que tais momentos estão nos meus contos,
gênero que me atrai e satisfaz quase que exclusivamente, tentador
e difícil mas tão compensador quando se consegue alguma coisa
que nos pareça verdadeiramente realizada. (GUIMARAENS apud
DIAS, 1965, p. 26).

Em acordo com as considerações de João Alphonsus, os poucos


estudos críticos destinados à sua obra têm destacado seus contos. Para
Fernando Dias, por exemplo, o conto “é o gênero em que melhor se realizou,
conforme ele próprio reconheceu e o confirmam vozes autorizadas, que
realizaram o balanço do moderno conto brasileiro; Edgar Cavalheiro, Alceu

707
Amoroso Lima, Nelson Werneck Sodré exaltam as virtudes do contista.” (DIAS,
1965, p. 25).

Ainda que bastante elogiado pela crítica, a obra de João Alphonsus


tem sido alvo de poucos estudos. Uma análise de sua fortuna crítica identifica
apenas três ensaios fundamentais. Em João Alphonsus: tempo e modo, de
1965, Fernando Côrrea Dias apresenta uma visão geral da obra do escritor
mineiro, reportando-se ao entendimento de sua importância dentro da
história literária daquele momento. O ensaio de Dias concentra-se em dois
objetivos bem definidos: apresentar uma visão, por vezes bem panorâmica,
da obra de João Alphonsus, destacando temas e estilo e a representação
da cidade de Belo Horizonte e evidenciar a figura do intelectual e suas
relações com o grupo modernista mineiro de “A revista”, do qual participou
juntamente com Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Pedro Nava e
Abgar Renault.

O livro de João Etienne Filho, João Alphonsus - ficção, de 1971,


pertence à coleção “Nossos clássicos”, que, como se sabe, apresenta um
modelo já determinado: dados biográficos, apresentação (dividida em
situação histórica e estudo crítico) e uma antologia de textos do autor, dos
quais se destacam trechos de seus dois romances e quatro contos, entre eles
“Eis a noite”.100 O livro de Etienne Filho tem o mérito de apresentar, de forma
bastante sucinta (não mais que 10 páginas no formato livro de bolso),
algumas vozes contemporâneas de João Alphonsus. Diz o crítico, por
exemplo: “Mário de Andrade, Sérgio Millet, Alcântara Machado o saudaram
efusivamente” (FILHO, 1971, p. 10), a respeito do conto “Galinha Cega”.

100Os outros contos destacados são “Galinha Cega” e “Godofredo e a virgem” de sua
primeira coletânea (Galinha Cega, de 1931), e “Sardanapalo”, do volume A pesca da baleia
(1941).

708
Recentemente, em 2011, o crítico Ivan Marques dedicou um capítulo
do livro Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes
de Belo Horizonte à ficção de João Alphonsus, destacando aspectos
particulares de sua obra, sobretudo de seus contos.101

Normalmente, as narrativas curtas de João Alphonsus são construídas


em “torno do nada”, conforme observou Antonio Candido (1999, p. 88). Tal
ideia de falha e incompletude (emanada da própria forma do conto de
João Alphonsus) se mostra na construção de suas próprias personagens, que
parecem dotadas de uma existência nula, em que o não acontecimento
dos contos e sua não finalização são formas de mimetizar esta existência
falhada. Por isso, suas narrativas são alicerçadas no vagar lento do cotidiano
da vida de suas personagens, sem muito que contar, fazer, viver.

Para Waltensir Dutra e Fausto Cunha, em Biografia crítica das letras


mineiras, obra de 1956, o que caracteriza a prosa de João Alphonsus é
justamente este “sentimento da tragicidade inútil da vida, que se oculta sob
os acontecimentos miúdos do cotidiano”. (DUTRA; CUNHA, 1956, p. 104-105).
Este aspecto, segundo os autores, dá um contorno de universalidade à sua
prosa, aproximando-o da perspectiva machadiana.

Em Evolução do conto brasileiro, Edgar Cavalheiro, apesar de endossar o discurso a favor


101

do contista “esplêndido” (CAVALHEIRO, 1954, p. 42), dedica poucas linhas ao escritor


mineiro, ressaltando, no entanto, dois aspectos que marcariam a crítica relativa à obra de
João Alphonsus: a repercussão do conto “Galinha cega”, que o levou a quase ser o autor
de um conto único, e a predileção pelos animais, que se tornaria uma tópica comum tanto
em sua obra quanto na voz uníssona da crítica.

709
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

No belíssimo conto “Eis a noite!”, a revelação do vazio existencial se dá


por meio da personagem feminina. Madalena, no dia em que comemora
trinta anos de idade, celebra, diante do leitor, o vazio que constitui sua vida
incompleta.

[...] bocejou mais uma vez, apagou a luz, aquietou-se na cama,


sobre o lado direito, dobrada sobre si mesma, as pernas encolhidas,
os braços juntos sobre os seios. Hora máxima de abandono, em que
se encolhia assim, se resumia no leito estreito, como que procurando
desaparecer. (GUIMARAENS, 1976, p. 129).

A descrição acena não só para a caracterização da personagem


feminina, abandonada em si mesma, projetando sua volta à origem (em
clara posição fetal), seu não nascimento, sua não existência, mas também o
estilo composicional de João Alphonsus, revelando, em uma cena
carregada de ações banais, o desespero de existir. Não por acaso, o conto
segue um ritmo enfadonho e monótono, mimetizando a vida de Madalena,
sem grandes lances, sem a vivência do mundo lá fora, sem uma vida sua:

Madalena esperou (era bom esperar, embora jamais soubesse para


que) as pancadas da meia-noite no relógio distante. O tempo
noturno caminhava devagar. O soldado a cavalo caminhava
devagar, o soldado tornava a passar na rua lentamente. Naquele
recanto obscuro e humilde da cidade, o policiamento era feito por
dois soldados de cavalaria, vagarosos e calmos. Vezes infinitas já
escutara as ferraduras da montaria contra as pedras do calçamento.
Daí a pouco o soldado voltaria: novamente as ferraduras contra as
pedras do calçamento. (GUIMARAENS, 1976, p. 129-130, grifos meus).

710
No trecho, a sensação de vazio da personagem é dada pela
repetição e lentidão das ações, que dizem respeito, afinal, a objetos e a
outras pessoas, enquanto ela apenas espera. Termos como “esperou”,
“devagar”, “lentamente”, “vagarosos”, “calmos”, “novamente” dão a ideia
de não movimentação e de letargia. Para Ivan Marques, essa ausência de
ação em muitas narrativas do escritor, se por um lado, “estimula a análise
psicológica”; por outro, também pode ajudar na construção de
“personagens caricatos ou incaracterísticos” (MARQUES, 2011, p. 163)

Ao se lembrar de que uma das funções do policiamento noturno é


preservar a moral e os bons costumes, à caça de casais furtivos nos matos
do bairro, a piedade de Madalena emerge, mas não só para estes, mas para
todos e para si mesma:

Essa recordação lhe provocou naquele momento um sorriso de


piedade. Coitados dos pretos. Mas uma tremenda amargura
transpassou-as, numa ampliação da piedade que a envolvia
também. Coitados dos morenos, dos brancos, de todos. Mundo
incompreensível, irrealizável. Que é que vale? Não perceberia que
a pergunta era ridícula, afinal de contas, no seu aniversário de trinta
anos descurados, sem nada ter realizado porque a vida não
permitirá, toda entregue aos cuidados de dona de casa para o pai
funcionário público exemplar e dorminhoco, para os irmãos farristas
que só buscavam o lar pela madrugada... (GUIMARAENS, 1976, p.
130, grifos meus).

O narrador de João Alphonsus observa a compaixão da moça


estendida a todos e a si mesma, numa clara constatação da irrealização da
vida, ao mesmo tempo em que a mostra consciente, em profundo, do vazio
de sua própria vida e da de todos: “Que é que vale?”. A pergunta retórica
leva à ideia de morte, sobretudo porque o que a personagem constata é
sua morte em vida, a morte de todos em vida.

711
Por isso apenas em sonho ou por poucos minutos (protegida pela
fortaleza do sobrado) a personagem parece dotada de algum poder de
ação (e desejo), mesmo que esta ação esteja condicionada à existência de
outro, a algo fora dela, para além dos limites de sua própria realidade física.

[...] se acentuou a insônia com a inesperada recordação daquele


sonho que ela tivera há muito tempo, talvez há anos. Uma cidade
com milhões de luzes, uma cidade muito maior do que Belo Horizonte,
talvez a maior do mundo. Ela contemplava os milhões de luzes, de
um terraço solto no espaço, inexplicado. O rapaz veio do fundo de
sombra (não lhe lembrava bem o rosto; mas era forte, bonito), cingiu-
a docemente pela cintura, estreitou-a vagarosamente, com
segurança mas sem violência, e lhe disse calidamente no ouvido:
- Eis a noite! Vamos dormir.
Madalena procurara afastar-se dele, mas o conquistador repetira
maciamente:
- Eis a noite! Nesta cidade infinita, quem saberá?
Fora só isso, pois logo despertara, trêmula, desambientada, no
mesmo quarto onde agora outra noite lhe trazia a lembrança do
sonho... (GUIMARAENS, 1976, p. 129).

Se por um lado, o conto insiste na existência falhada da personagem


de João Alphonsus; por outro, em “Eis a noite!”, esta vivência está associada
ainda à privação do mundo feminino, que encerra seus desejos e ações,
capazes de reverberar apenas no sonho e na imaginação. O sonho de
Madalena, associado à sua limitação ao mundo da casa, em que funciona
como ordenadora da vida alheia, revela sua não realização como sujeito,
que está condicionada, na própria experiência feminina do conto, à morte
do pai:

Se ele tivesse morrido? Não teve o menor susto com tal pensamento,
dentro do absurdo avassalador, livre e leve como se o fato já se
houvesse consumado e passado [...] e ela já estivesse distante de
tudo isso, sozinha e libertada... (GUIMARAENS, 1976, p. 131).

712
O convite à vivência da noite, promovido pelo homem sem feições do
sonho, é a manifestação de seu próprio desejo sexual, que só se torna
possível com a ausência paterna e em uma cidade estranha e menos
convencional que a provinciana Belo Horizonte.

A cena do sonho, rememorada não por acaso na noite de seus trinta


anos, será reproduzida, no plano de uma realidade sensorial e bastante
onírica, com um dos guardas responsáveis pelo patrulhamento do bairro.
Pautada entre uma sedução ativa e passiva ao mesmo tempo, Madalena
ofertará a noite (metáfora sensorial para o sexo) a um dos policiais, num jogo
em que seu domínio é também falho, visto que não se realiza concretamente.

O conto promove, neste sentido, uma espécie de espelhamento entre


sonho e realidade, como se as cenas fossem iguais, complementares e
extensivas uma da outra. Se a cena do sonho é sintética e bastante clara; a
da realidade é longa, vagarosa, com silêncios abafados e duplicidades. O
conto termina com a negação da vivência sexual por parte de Madalena e
com a constatação de que o outro é um animal bruto, enraivecido e
preparado para desferir um golpe, que mata o pouco de vida que resta em
cada um:

- Quer saber de uma coisa? Hospício para uma!


E [o policial] gargalhou cinicamente, cinismo e decepção; uma
risada gutural, cortante como navalhada.
Madalena fechou a janela. (GUIMARAENS, 1976, p. 135).

713
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as narrativas curtas de João Alphonsus, é possível


apontar dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, seus contos são
protagonizados por personagens comuns e incompletas, que “vivem em
clima de exaustão, em que não frutifica sequer o desespero”. (MARQUES,
2011, p. 163). Outro aspecto que parece unir as narrativas curtas de João
Alphonsus diz respeito ao senso de tragicidade de suas vidas, inscritas no
cotidiano miúdo, amesquinhado, burocrático de Belo Horizonte, ora
monótona e abafada.

O encerramento do conto “Eis a noite” dá-se, assim, mimetizado pelo


fechamento da janela, do trânsito entre o lá fora (mundo público) e o aqui
dentro (mundo privado), evidenciando outro fechamento, este talvez mais
importante do ponto de vista da construção da personagem: Madalena
encerra-se, em definitivo, em seu mundo, no qual a manifestação do desejo
só tem espaço no sonho, no onirismo que a leva para longe do mundo tal
qual se apresenta no conto, amesquinhado, embrutecido, mecanizado.
Disto resulta uma sensação de sufocamento e de desconforto que perpassa
as narrativas curtas de João Alphonsus, tornando o espaço da história algo
“intolerável”.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. João Alphonsus. Poesia Completa e Prosa. Rio


de Janeiro: Ed. Aguilar, 1973.

714
CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira (resumo para
principiantes). 3ª ed. São Paulo: Humanitas, 1999.

CAVALHEIRO, Edgar. Evolução do conto brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério


da Educação e da Cultura, 1954.

DIAS, Fernando Corrêa. João Alphonsus: tempo e modo. Belo Horizonte:


Imprensa da UFMG, 1965.

DUTRA, Waltensir; CUNHA, Fausto. Biografia crítica das letras mineiras. Brasília:
INL, 1956.

FILHO, João Etienne. João Alphonsus – ficção. Rio de Janeiro: Ed. Agir, 1971.
(Coleção Nossos Clássicos).

GODOY, Arilda. Schimdt. Introdução a pesquisa qualitativa e suas


possibilidades. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 35, n. 2,
Mar./Abr. 1995, p. 57-63. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/rae/v35n2/a08v35n2.pdf. Acesso em 20 de mai.
2020.

GUIMARAENS, João Alphonsus. Contos e novelas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed.


Imago; Brasília: INL, 1976.

GUIMARAENS, João Alphonsus. Rola-moça. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Imago;


Brasília: INL, 1976.

GUIMARAENS, João Alphonsus. Totônio Pacheco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ed.


Imago; Brasília: INL, 1976.

MARQUES, Ivan. Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros


rapazes de Belo Horizonte. São Paulo: Ed. 34, 2011.

SILVA, Fabiana Sena da. Metodologia científica e pesquisa aplicada. In:


GUERRA, Rafael et al. Cadernos CB Virtual. Joao Pessoa: Ed. Universitária, 2011.
Disponível em:

715
http://portal.virtual.ufpb.br/biologia/novo_site/Biblioteca/Livro_2/8-
METODOLOGIA.pdf. Acesso em 11 de dez. 2020.

SOUZA, Roberto Acízelo. Um pouco de método nos estudos literários em


particular, com extensão às humanidades em geral. São Paulo: É
Realizações, 2016.

716
EDUCAÇÃO LITERÁRIA E O ENSINO

Larissa Mendes Rosa102


Lucilo Antonio Rodrigues103

RESUMO: O presente estudo almeja esboçar um panorama reflexivo sobre o atual ensino e
aprendizagem da Educação literária. A todo momento estamos sendo bombardeados de
novidades e informações, a atenção das crianças não se concentra por muito tempo em
um único assunto, despertadas pelas oportunidades dinâmicas da internet e do universo
tecnológico fora da sala de aula, no contexto escolar a mesma dinâmica é solicitada ao
professor. Neste contexto refletiremos, por meio da obra Pós-modernismo: a lógica cultural
do capitalismo tardio, de Fredric Jameson (1997), sobre o efeito das telas de computadores,
celulares e televisão, que trazem milhares de informações instantaneamente, e em face do
grande número de imagens que nos distraem e embaralham a nossa noção de tempo e
espaço. Para o autor essa fragmentação, diferentemente da fragmentação surrealista (que
ainda apresentava um referente lógico, no caso a teoria dos sonhos de base freudiana) a
dispersão contemporânea se aproximaria de uma estética esquizofrênica. Assim,
considerando essa hipótese como o centro de nossas perquirições nos perguntamos: como
podemos pensar a educação literária em sala de aula de forma que ela possa ser
compreendida além do superficial, ou seja, como podemos acolher o movimento
tecnológico em sala de aula? Sabemos que ensinar literatura na escola atualmente propõe
ir além dos livros literários, há de se pensar em uma pedagogia com novos insumos
tecnológicos em uma perspectiva de construir pensadores, quebrando paradigmas em um
mundo cercado pelo consumismo, possa ser transformado, não se deixando levar pelo
simulacro do pós-modernismo.

Palavras-chave: Educação Literária, Ensino, Contemporaneidade

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como fundamento a busca por entender o que


é Educação literária atualmente. Tentaremos compreender como podemos
pensar a leitura literária em sala de aula.

102 Discente do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual de Mato


Grosso do Sul (UEMS) – Paranaíba, larissamdarosa@gmail.com;
103 Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual de Mato

Grosso do Sul (UEMS) – Paranaíba, luciloterra@terra.com.br.

717
Para contextualizar este estudo precisamos primeiramente definir quais
as principais mudanças ocorridas que nos trazem as questões atuais. Assim
buscaremos essa contextualização em Fredric Jameson, no obra Pós-
modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.

Antes demais nada é importante esclarecer que atualmente existem


diferentes teorias do pós-modernismo. A tese proposta por Jameson é
específica e atual na medida em que o vídeo e as tecnologias digitais de
uma maneira geral estão condicionando as nossas vidas. Pode-se questionar
também se o termo “pós-modernismo” é adequado atualmente. Para que
não haja dúvida a este respeito salientamos que nesse estudo consideramos
o pós-modernismo jamensiano a referência para pensarmos a
contemporaneidade, tendo consciência, contudo, de que há outras teorias
concorrentes.

De acordo com Jameson (1997, p. 31), o pós-modernismo se conecta


a uma lógica cultural dominante condicionada pelo atual estágio do
capitalismo transnacional. Assim, partindo de textos e objetos culturais da
contemporaneidade, Jameson (1997, p. 32), nos apresenta os elementos
constitutivos do pós-modernismo que seriam: uma nova falta de
profundidade; um consequente enfraquecimento da historicidade; um novo
tipo de matiz emocional básico e a profunda relação de tudo isso com a
tecnologia.

Para que possamos compreender os elementos constitutivos do pós-


modernismo, devemos primeiramente entender como foi o modernismo para
Jameson. Na modernidade, segundo Jameson (1997, p.33), a cultura possuía
ainda um referencial apesar da fragmentação. Assim, segundo o autor, na
obra Um par de botas, de Van Gogh é possível perceber um sentido utópico,
no qual ao mesmo tempo em que ocorre a disforia nas imagens caricaturais,

718
há também uma explosão de cores, onde se vê um gesto de esperança, de
que tudo podia mudar.

(...) materialização de pura cor em pintura à óleo, deve ser


interpretada como um gesto utópico, um ato de compensação que
acaba por produzir um domínio utópico dos sentidos totalmente
novo, ou, pelo menos, um domínio daquele sentido supremo – a
visão, o visual, o olho – que agora se reconstituí para nós como um
pedaço semiautônomo, parte de uma nova divisão do trabalho no
interior do capital, uma nova fragmentação de um sensorial
emergente que replica as especializações e divisões da vida
capitalista, ao mesmo tempo que busca, precisamente tal
fragmentação, uma desesperada compensação utópica.
(JAMESON, 1997, p. 33)

Desta forma, podemos dizer que para Jameson a modernidade é o


momento no qual podemos distinguir o que era moderno do que era arcaico,
existindo de alguma forma um princípio de historicidade. Não apenas isso,
era possível ainda um gesto utópico, um salto para um futuro, ainda que
incerto.

A falta de profundidade do pós-modernismo para Jameson se


encontra presente tanto nas argumentações superficiais dos teóricos pós-
modernos, quanto na cultura da imagem, como demonstra sua
comparação entre o quadro Diamond dust shoes, de Andy Warhol e os
sapatos de Van Gogh:

(...) entre os sapatos de Van Gogh e os de Andy Warhol. (...) o


aparecimento de um novo tipo de achatamento ou de fata de
profundidade, um novo tipo de superficialidade, no sentido mais
literal, o que é talvez a mais importante característica formal de
todos os pós-modernismos, à qual teremos ocasião de voltar em
vários outros contextos. (JAMESON, 1997, p. 35)

719
O quadro de Warhol não possui um elemento utópico, estando
disperso na história. O brilho presente nele sugere uma sensação de euforia
que está relacionada ao nosso desejo de comprar, apenas uma vontade
superficial de consumir imagens, como ocorre hoje no Facebook, Instagram,
Tic-toc, entre outros. Esse desejo consumista é tão rápido quanto o desejo por
aquela mercadoria que acabamos de ver e já nos sentimos saturados dela.
Essa falta de profundidade no contexto da lógica do simulacro 104 , que
segundo Jameson (1997, p. 72), com sua transformação e novas realidades
em imagens de televisão, faz muito mais do que meramente replicar a lógica
do capitalismo tardio: ela a reforça e a intensifica.

Segundo Jameson, “o que antes era uma obra de arte agora se


transformou em um texto, cuja leitura procede por diferenciação, em vez de
proceder por unificação” (JAMESON, 1997, p. 57). Esse enfraquecimento da
historicidade encontra-se pautado em uma “consciência esquizofrênica”,
na qual não se obtém uma clareza do sujeito com relação ao seu passado,
presente e com dificuldade com relação a imaginar o futuro, sendo que as
produções são muito parecidas, perdendo a noção de localidade. Assim
como o novo tipo de matiz emocional básico, denominado por ele de
“intensidades”, seria um enfraquecimento da integridade psíquica
relacionados aos novos fenômenos tecnológicos. Fredric Jameson
argumenta a esse respeito que:

[...] Se somos incapazes de unificar o passado, presente e futuro da


sentença, então somos também incapazes de unificar o passado, o
presente e o futuro de nossa própria experiência biográfica, ou de
nossa vida psíquica. Com a ruptura da cadeia de significação, o

104[...] esse apetite, historicamente original, dos consumidores por um mundo transformado
em mera imagem de si próprio, por pseudo-eventos e por “espetáculos” (o termo utilizado
pelos situacionistas). É para esses pseudo-objetos que devemos reservar a concepção de
Platão do “simulacro”, a cópia idêntica de algo cujo original jamais existiu (JAMESON, 1997,
p. 45).

720
esquizofrênico se reduz à experiência dos puros significantes
materiais, ou, em outras palavras, a uma série de puros presentes,
não relacionados no tempo. (JAMESON, 1997, p. 53)

O presente perpétuo apresentado por Jameson, pode ser


contextualizado quando pensamos na tecnologia. Ao ficarmos frente a
frente com computadores, celulares e televisões, o acesso a milhares de
informações de forma instantânea, juntamente com os afazeres do
cotidiano, faz com que percamos a noção do tempo diante de grande
quantidade de imagens que nos seduzem, as quais, segundo Jameson, pode
ser exemplificada da seguinte forma:

O espectador pós-moderno, no entanto, é chamado a fazer o


impossível, ou seja, ver todas as telas ao mesmo tempo, em sua
diferença aleatória e radical; tal espectador é convidado a seguir a
mutação evolutiva de David Bowie em The man who fell to earth
(que assiste a 57 telas de televisão ao mesmo tempo) e elevar-se a
um nível em que a percepção vívida da diferença radical é, em si
mesma, uma nova maneira de entender o que se costuma chamar
de relações: algo para que a palavra collage (grifo do autor) é uma
designação ainda muito fraca. (JAMESON, 1997, p. 57)

O desenvolvimento avassalador do capitalismo que nos é


apresentado por Jameson, modificou a nossa experiência social e intelectual,
que agora estaria condicionada ao que é meramente visual. Desse modo,
no mundo do consumismo e da mídia, tudo se torna um “repositório de
imagens e de simulacros” (JAMESON, 1997, p. 45). Assim, a cultura se tornou
a substância da vida social, portanto os padrões de exigências estéticas
foram modificados, para se tornar artefato de consumo, um consumo rápido
e sem sentido, que ao mesmo tempo que é consumido, também é
descartado.

721
Diante de tantos fatores, de uma sociedade de certa forma
fragmentada, como podemos acolher a educação literária em sala de aula?
De forma que ela pode ser compreendida além do seu uso distraído?

Como metodologia do trabalho foi utilizada a pesquisa bibliográfica e


documental, bem como o método dedutivo – indutivo. A pesquisa
bibliográfica procura discutir o tema com base em referências teóricas,
publicadas em livros, revistas, periódicos e outros. Ela não é apenas uma
mera repetição do que já foi escrito, mas sim um reexame do assunto sobre
um novo enfoque, chegando a novas conclusões.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao iniciarmos uma reflexão a respeito do enfraquecimento do ensino


da literatura devemos começar com quebra da centralidade ou da
objetividade, como observamos em Jameson (1997) e bem esclarecida por
Cechinel (2019):

(...) se a leitura literária, por um lado, costuma estar vinculada a um


exercício principalmente individual, autocentrado e solitário, que
demanda atenção, esforço e concentração, aquilo que
conhecemos como modernidade tardia ou pós-modernidade, por
outro lado, é caracterizado pela imagem da dispersão, do consumo
rápido, do descarte e do fluxo, de tal forma que o conhecimento de
fôlego a ser incentivado e praticado na escola se vê cada vez mais
inviabilizado por uma nova dinâmica leitora, repleta de estímulos,
imagens e sons em profunda sintonia com a “sociedade excitada”
do tempo presente. (CECHINEL, 2019, p. 4)

A ocorrência da distração não pode ser definida como ausência de


conhecimento ou atenção, mas com o excesso de produções que, de
alguma forma, seduzem o leitor. A distração conduz, frequentemente, a um

722
estado de imobilidade e ausência de criticidade daquilo que lhe é
apresentado.

O papel principal da Literatura em situação de ensino é despertar o


interesse do aluno pelo texto literário, sem cair na mera teatralização
(montagem de peças, saraus literários, cartazes, enfim, distrações que mais
tem a ver com as redes sociais do que com o ensino de literatura).

Entendemos que a literatura em situação de ensino é um modo de


funcionamento de diversos elementos, intrínsecos e extrínsecos. Trata-se de
uma rede dialógica que conecta os diferentes locais de produção e
circulação das obras literárias: a família, o clube, a igreja, a empresa em que
trabalha e, finalmente a escola. Os esforços para uma teorização da
literatura no ambiente escolar têm se intensificado nos últimos anos, mas
ainda são incipientes:

Embora [...] tenha ocorrido a intensificação das publicações sobre


a relação da literatura infantil com o ensino, ainda estamos longe de
ter uma farta produção na área. Ao contrário, os estudos de
literatura infantil ainda são marginalizados pelos teóricos, temos uma
carência de pesquisas e publicações sobre o tema e premência por
preencher as lacunas teóricas e práticas na formação dos
professores que trabalham com as crianças em fase inicial de
escolarização. (DALLA-BONA, 2018, p. 11)

Evidentemente, muitas mudanças ocorreram no ensino de literatura,


sobretudo no que diz respeito à literatura infanto-juvenil. Entretanto
precisamos nos preocupar com as teorias sobre estudos literários na teoria e
prática. Apesar de parecer existir uma preocupação quanto ao ensino desta,
precisamos de muitos estudos sobre a formação daquele que irá ensinar,
segundo Dalla-Bona, “com investimentos na formação dos professores que
atuam com as crianças pequenas na educação infantil e nos anos iniciais
do ensino fundamental” (DALLA-BONA, 2018, p. 12). A formação mais

723
específica destes profissionais ocorre no sentido de serem eles quem
apresentam o mundo da literatura para as crianças.

Para Santos Júnior, “incentivar a leitura literária desde a mais tenra


infância suscita grandes possibilidades desse hábito ser permanente e
incorporado por toda a vida pelos pequenos leitores” (SANTOS JÚNIOR, 2015,
p. 159). O estímulo da imaginação e da criatividade é mais suscetível as
crianças, ao impulsioná-las há, uma maior probabilidade de se obter leitores,
pois que será para eles algo natural, que desde muito pequeno foi adquirido,
de forma que a literatura educa, atuando de forma profunda na
subjetividade de cada pessoa, e que apesar de envoltos pela ficção
possamos compreender realidade, assim:

A literatura é, portanto, atividade de socialização que permite aos


infantes o primeiro contato com o código e suas estruturas. O
contato surge mesmo antes de se aprender a decodificá-lo e, pela
observação do adulto, ouvindo histórias, percebendo rimas e se
encantando pelo fascinante universo das palavras, as crianças
iniciam o percurso mágico de tornarem-se leitores literários. (SANTOS
JÚNIOR, 2015, p. 168)

Para que isso ocorra o processo de contação de histórias deve ser feito
de forma a instigar a imaginação e interesse das crianças, o responsável pela
atividade deve se envolver e gostar, utilizando de entonação e
demonstrando interesse, para cativar aqueles que lhe ouvem e fazer com
que esse processo seja prazeroso. No processo de desenvolvimento da
linguagem, a educação informal é fator primordial, de modo que estimula a
criança em diversas maneiras de conversar e se expressar, contribuindo com
a linguagem oral, abrindo as portas para o mundo dos livros.

Maria da Glória Gohn, faz apontamentos esclarecedores a esse


respeito: “a educação não-formal é aquela que se aprende “no mundo da

724
vida”, via os processos de compartilhamento de experiências,
principalmente em espaços e ações coletivos cotidianas” (MARIA DA
GLÓRIA GOHN, 2006 p. 28-29), ou seja, é aquele conhecimento adquirido dia
após dia. Diferentemente da educação informal, que se desenvolve a partir
da espontaneidade e do senso comum e sem a expectativa de resultados,
a educação não-formal é intencional, ou seja há regras de convivência,
processos e metodologias que podem ser desenvolvidos de maneira geral
ou em função de uma situação específica.

Desse modo, a literatura, por participar tanto da vida cotidiana quanto


da vida escolar está frequentemente é associada à distração. Entendemos
que a leitura distraída é exatamente aquele tipo de educação informal que
recebemos espontaneamente no nosso cotidiano. A leitura literária, que
pode ser entendida como a leitura literária escolarizada, pode ser realizada
na modalidade não-formal, por exemplo, em cursos livres na internet. No
entanto as metodologias para a educação não-formal ainda estão em fase
de desenvolvimento e são poucos os profissionais habilitados. O mais comum
é que nesses cursos o profissional responsável pela educação esteja mais
interessado em vender o seu curso e fidelizar os seus clientes do que
realmente levar o aluno a uma melhor compreensão da literatura.

Assim, o estudo sistemático da literatura acaba por receber muitos


ataques, uma vez que se acredita que o seu papel é apenas distrair. A
contação de história, por exemplo, pode ser uma boa ferramenta para
conduzir o aluno a uma maior autonomia nos processos de leitura, mas
requer métodos que não seja apenas aqueles ligados à teatralidade das
falas e dos gestos. Por evidente, não podemos esperar isso dos pais, que com
muita razão aproveitam o momento de leitura para partilharem momentos
especiais da experiência familiar que também são importantes. Contudo, o
professor contador de histórias precisa ser um profissional preparado para

725
levar o aluno a um tipo de letramento específico, que poderíamos, por ora,
chamar de letramento literário.

Lembramos aqui que não podemos definir uma pessoa letrada como
aquela que sabe ler e escrever, esse tipo de conhecimento vai muito além
dessa definição, nas palavras de Souza (2011):

(..) o letramento feito com textos literários proporciona um modo


privilegiado de inserção no mundo da escrita, posto que conduz ao
domínio da palavra a partir dela mesma. Finalmente, o letramento
literário precisa da escola para se concretizar, isto é, ele demanda
um processo educativo específico que a mera prática de leitura de
textos literários não consegue sozinha efetivar. (SOUZA, 201, p. 102)

É importante que se compreenda que o letramento literário vai além


de uma simples habilidade na qual se consegue realizar a leitura de textos
literários. Ele exige uma constante atualização do leitor, não podendo ser
definido como um saber, mas pode-se dizer que é uma experiência que traz
sentido ao mundo por meio de palavras que atravessam o tempo e o espaço.

Segundo Azevedo e Balça (2017), a educação literária tem como


intuito oferecer ao leitor conhecimentos sobre textos, autores, assim como as
convenções, temas e estilemas literários e intertextuais, de forma a pensar
além daquele pequeno contexto. Ainda de acordo com Azevedo e Balça
(2017):

O conceito de educação literária ultrapassa, assim, o nível do ensino-


aprendizagem da literatura – o aprender a ler os textos como
literários, obedecendo à convenção estética ou ao protocolo de
ficcionalidade, ou o aprender a apreciar a literatura –, referindo-se
ao desenvolvimento de competências que permitem ler o mundo de
uma forma sofisticada e abrangente e contribuem para a formação
de sujeitos críticos, capazes de ler e interrogar a práxis. (AZEVEDO E
BALÇA, 2017, p. 134)

726
Essa formação auxilia o leitor a questionar o mundo, de forma a pensar
nele como alternativa, que segundo Azevedo e Balça, “liberto das
constrições do mundo empírico e histórico-factual” (AZEVEDO E BALÇA, 2019,
p. 8). A literatura adentra a parte mais profunda do ser e acaba
desconstruindo o que pensávamos estar pronto, trazendo diversas
indagações que muitas vezes não possuem respostas, mas que transformam
o ser. De modo que por meio do conhecimento obtido através da educação
literária e com a prática de fazer a leitura de múltiplos planos é que ela irá
ocorrer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, a lógica cultura do capitalismo tardio nos condiciona


cada vez mais à desorientação histórica e à uma avidez cada vez maior por
novidades que rapidamente esquecemos. Passos a vida distraídos correndo
atrás desses brilhos e nos esquecemos de nós próprios. Perdemos a
capacidade de refletir sobre o mundo e sobre a nossa vida e perdemos
também a faculdade mais elementar do ser humano que é imaginar a
possibilidade de existir um mundo melhor.

Diante disso é importante reiterar que é indispensável a mudança na


percepção dos professores da educação infantil quanto ao ensino da
literatura, de forma que este possa conhecer todos os conceitos por ela
aplicados, passando a utilizá-los em sala de aula, transformando o intelecto
de seus alunos, abrindo a porta para o conhecimento literário, para que
possam vislumbrar um mundo cheio de descobertas desde a tenra idade.

A busca pelo conhecimento é algo inerente ao ser humano e as


adequações quanto as escolhas de obras para a prática deste ensino

727
devem ser feitas de acordo com cada turma que o educador recebe,
observando o repertório de cada aluno.

Ensinar literatura no modelo atual de educação é algo desafiador, mas


necessário, para que ocorra uma percepção entre os gêneros textuais
presentes no dia a dia escolar e a leitura literária, ao passo que cada
educador consiga quebrar paradigmas, e construir pensadores, para que
em um mundo envolto pelo consumismo haja mais reflexão e conhecimento
daquilo que se vê, não se deixando levar pela distração proporcionada
pelas novas tecnologias.

A literatura enquanto Literatura continuará existindo


independentemente dos esforços dos professores. A cada geração os
adolescentes tem os seus repertórios literários favoritos e não caberá ao
professor sugerir o que deve e o que não deve ser lido. Assim se há leitores
que estão lendo livros de literatura fora da escola é do interesse do professor
trazer esses textos para interior da sala de aula. É do interesse do professor
levar o aluno de sujeitos distraídos a Leitores.

REFERÊNCIAS

BALÇA, Ângela; AZEVEDO, Fernando. Educação literária em Portugal: os


documentos oficiais, a voz e as práticas dos docentes. Revista Linhas.
Florianópolis, v. 18, n. 37, p. 131-153, maio/ago. 2017. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.5965/1984723818372017131>. Acesso em: 08/07/2020

______ Práticas de educação literária e de promoção da literatura. Revista


Textura. Canoas, v. 21, n. 45, p. 6-29 jan/mar. 2019. Disponível em: <
https://doi.org/10.17648/textura-2358-0801-21-45-4791>. Acesso em:
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728
CECHINEL, André. Literatura e atenção: notas sobre um novo regime de
percepção no ensino de literatura. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 24,
e240035, 2019. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413247820190001
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DALLA-BONA, E. M.; SOUZA, R. J. de. Apresentação: Literatura infantil e ensino:


polêmicas antigas e atuais. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 72, p.
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GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade


civil e estruturas colegiadas nas escolas. Ensaio: avaliação e política públicas.
Educ. [online]. 2006, vol.14, n.50, pp.27-38. ISSN 1809-4465. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0104-40362006000100003>. Acesso em: 24/06/2020

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.


Tradução de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática, 1997. p. 27 a 79.

SANTOS JÚNIOR, M. G.; SILVA, M. V. Formando pequenos leitores: o direito e o


poder da literatura na Educação Infantil. Revista Língua & Literatura (Online),
v. 17, p. 159-174, 2015. Disponível em: <
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SOUZA, R. J.; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de


aula. São Paulo: UNESP/UNIVESP. Disponível em:
<http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/

123456789/40143/1/01d16t08.pdf>. Acesso em: 14/07/2020.

729
A IRRUPÇÃO DO PERSONAGEM E SUA CONSTRUÇÃO NO CONTO “
A ESCRAVA” DE MARIA FIRMINA DOS REIS.

Rafaela Cristina Araújo dos Santos105

Jefferson Gomes Oliveira106

Vanda Maria Sousa Rocha107

RESUMO: Este trabalho apresenta um estudo da obra A Escrava, da escritora e romancista


Maria Firmina dos Reis, publicado pela primeira vez na Revista Maranhense no ano de 1887.
Buscamos nesta pesquisa destacar as demarcações que revelam a construção do feminino
na escrita de Maria Firmina dos Reis. Para tal, adotamos os pressupostos da Estilística, ramo
mais moderno para o estudo da língua enquanto sistema de signos afetivos, a partir da
definição e classificação defendidas por Charles Bally (1865-1947), o pai da estilística,
considerando esse estudo como uma análise dos tipos expressivos que, em um dado
período, servem para traduzir os movimentos do pensamento e do sentimento dos falantes
e que estudam os efeitos produzidos espontaneamente nos ouvintes pelo emprego dessas
expressões. Neste estudo, será discutido como o estudo da estilística segundo Bally é tecido
na obra e como se dá a relação da expressividade da língua em função da estrutura da
narrativa. Para impulsionar tal reflexão temos como critério de análise os significados
representacionais circunscritos no texto A Escrava, possibilitando-nos compreender a
constituição de um texto, sua conservação ou mudança dentro de uma sociedade.
Somam-se também a esse estudo os nomes de Pierre Guiraud, Damaso Alonso, Leo Spitzer,
que serão indispensáveis para a verticalização dessa discussão e dessa temática em
consonância com a obra em destaque foram usados como suporte outros campos da
literatura que já versam sobre a temática do negro emoutros contextos e, que faz referência
à literatura afro-brasileira.
Palavras-Chave: Representação; Narrativa Abolicionista; Mulher Negra.

105 Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa na


Universidade Estadual do Maranhão – (UEMA). E-mail: rafaelaletras15@gmail.com
106 Pós Graduando em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura na Universidade Federal
de Lavras- (UFLA). E- mail:jstar1604@gmail.com
107 Professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão - (UEMA). E-mail:
3

vmsrocha15@gmail.com

730
INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta um estudo da obra A Escrava, da escritora e


romancista Maria Firmina dos Reis, publicado pela primeira vez na Revista
Maranhense no ano de 1887. Buscamos nesta pesquisa destacar as
demarcações que revelam a construção do feminino negro na escrita de
Firmina. Para tal, adotamos os pressupostos da Estilística, ramo mais
moderno para o estudo da língua enquanto sistema de signos afetivos, a
partir da definição e classificação defendidas por Charles Bally (1865-1947),
o pai da Estilística, considerando esse estudo como uma análise dos tipos
expressivos que, em um dado período, servem para traduzir os movimentos
do pensamento e do sentimento dos falantes e que estudam os efeitos
produzidos espontaneamente nos ouvintes pelo emprego dessas
expressões.

O conto A escrava, de Maria Firmina dos Reis, foi escrito no auge da


campanha Abolicionista, poucos meses antes da promulgação da Lei
Áurea, e é considerada uma das grandes obras afro-brasileiras, pois
apresenta o negro na perspetiva do negro, abordando temas como o seu
papel na sociedade e como era visto no Brasil, do século XIX. Tendo emvista,
a condição social e política em que o Brasil se encontrava na época em
que Maria Firmina dos Reis escreveu Úrsula, uma sociedade mais favorável
para a libertação dos escravos africanos e dos afrodescendentes, o que
influenciou gradativamente a literatura da época.

Observou-se que Maria Firmina dos Reis construía a identidade das


suas personagens a partir de seu olhar e vivencia de mulher negra, escritora
e abolicionista na sociedade do século XIX, em que as mulheres não tinham
poder de fala, ou seja, não tinham voz e nem espaço para expressarem

731
sentimentos e ideias, destinadas a serem somente donas de casa e mães.
Como forma de luta a autora carrega seus textos com personagens
femininas que estão presentes em lutas não só pelo seu espaço enquanto
mulher, mas estão em busca de algo com real significado, que faria com
que tivessem espaço e fossem vistas como membros fundamentais na
sociedade.

Para analisar um texto literário e classificá-lo como pertencente da


literatura afro- brasileira, o crítico/pesquisador, Duarte (2005. p.14), lembra,
“não pode se reduzir a simplesmente verificar a cor da pele do escritor, mas
deve investigar, em seus textos, as marcas discursivas que indicam (ou não)
o estabelecimento de elos com esse contingente de história e cultura.”

Faz-se importante refletir acerca da exclusão da voz e da escrita de


mulheres como Maria Firmina dos Reis dos cânones literários, bem como
sobre sua representação no processo de constituição da nacionalidade,
considerando-se as diferenças de gênero,raça e classe social.

A escolha por visibilizar representações de mulheres negras ocorre


por compreendermos que há um papel fundamental das estruturas sociais
e conjunturas históricas na constituição das representações, já que as ideias
que fundamentam percepções sobre as coisas, as pessoas ou os processos
são produzidas socialmente.

Mediante isso, esta pesquisa vem apontar o estudo da estilística,


segundo Charles Bally entendia a língua como uma expressão dos
pensamentos que refletiam determinadaafetividade na fala e na escrita do
autor, e é nesse sentido que o texto já citado será discutido, observando os
níveis morfológicos, fônicos e semânticos por compreender que o jogo de
relações do texto em foco sugere tais reflexões.

O estudo da Estilística, segundo Bally, é tecido na obra e como se dá

732
a relação da expressividade da língua em função da estrutura da narrativa.
Dessa maneira, em seu estudo sobre Estilística, Bally se fundamenta na
premissa de que o domínio da Estilística é o da língua falada, da observação
e a análise, dentro dela, dos matizes afetivos. Para impulsionar tal reflexão
temos como critério de análise os significados representacionais circunscritos
no texto A Escrava, possibilitando-nos compreender a constituição de um
texto, sua conservação ou mudança dentro de uma sociedade.

Somam-se também a esse estudo os nomes de Pierre Guiraud,


Damaso Alonso e Leo Spitzer, que serão indispensáveis para a
verticalização dessa discussão e dessa temática em consonância com a
obra em destaque. Foram usados como suporte outros campos da
literatura que já versam sobre a temática do negro em outros contextos e,
que faz referência à literatura afro-brasileira.

1 METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste trabalho buscou, inicialmente, fazer


um levantamento bibliográfico com o intuito de reiterar o referencial
teórico da estilística para servir de alicerce para essa pesquisa. A pesquisa
seguiu com a escolha das categorias linguísticas que serviram para a análise
dos fragmentos retirados da obra e, posterior a isso, deu-se a classificação
desses fragmentos, considerando as categorias de análise selecionadas.

733
Destarte, deu-se início às análises levando em conta o contexto
social no qual a obra está inserida, as lutas sociais e as relações de poder.
E, por fim, buscou-se comprovar a evidência de representações femininas
negras na escrita de Maria Firmina dos Reis e a importância dessas
personagens para o cenário de mudanças sociais no Brasil. Este trabalho
parte de uma pesquisa que surgiu através de uma grande indagação,
frente à inquietação por reconhecer muito além de valores impostos pela
sociedade machista e escravagista do século XIX.

A pesquisa segue com a abordagem qualitativa, ainda, por


compreender quepoderemos de maneira mais assertiva, entender as
relações dos significados definidos pela Estilística de acordo com Bally, a
partir da análise de fragmentos retirados da obra, corpus deste trabalho.
Como dito anteriormente, foram utilizados como método de análise, nesta
pesquisa, a estilística e como se dá a relação da expressividade da língua
em função da estrutura da narrativa, definidos por Charles Bally como
ferramentas de metodologia de análise sustentadas nos pressupostos
teóricos da estilística.

Sendo assim, esta pesquisa através do uso dessas categorias busca


analisar a construção das personagens femininas, visando fortalecer a
afirmação da construção do feminino negro, da autora Maria Firmina dos
Reis, no conto A Escrava. Assim, este trabalho buscou demonstrar como
essas marcações deixadas pela autora em pauta servem de alicerce para
o feminismo e das representações presentes no século XIX, e como a
imagem da autora perpassa para a sua obra que servem como exemplo
e inspiração para a idealização positiva da mulher negra na sociedade.

734
2 REFERENCIAL TEÓRICO

A estilística estuda os fatos da expressão da linguagem


do ponto de vista do seu conteúdo afetivo, isto é, a
expressão dos fatos da sensibilidade mediante a
linguagem e a ação dos fatos da linguagem sobre a
sensibilidade. (BALLY, 1951, p.4).

O objetivo do estudo de Charles Bally na Estilística dá-se no


enfoque da língua entre os planos emocionais e intelectuais,
delimitando e identificando os fatos da expressão, ou seja, como seus
componentes articulam as características presentes no texto de forma
afetiva, em que Bally divide em efeitos naturais (valor pejorativo,
aumentativo, diminutivo) e efeitos por evocação (tom, línguas de época,
classes sociais, grupos sociais, as regiões, atos biológicos).

A estilística da expressão é o estudo do valor estilístico dos meios


de expressão; dos matizes afetivos, volitivos, estéticos, didáticos
e outros, que dão colorido à significação. Há valores expressivos
que traduzem os sentimentos, os desejos, o caráter, o
temperamento, a origem social, a situação do indivíduo falante;
e valores expressivos que representam suas intenções
deliberadas, a impressão que ele quer produzir, valores, de
grande importância na expressão literária. (GUIRAUD, 1970.p.97).

A Estilística é uma ciência recente, fundada no século XX, pelo


suíço Charles Bally e o alemão Karl Vossler, porém um saber antigo que
remonta à tradicional retórica dos gregos. Tendo em comum o estudo da
expressividade. A partir do século XX, que a Estilística passou a configurar
como disciplina ligada à linguística. Vários autores, entretanto, destacam
semelhanças entre seus aportes conceituais e alguns preceitos da
Antiguidade que já apontavam interesse pela questão da linguagem, a

735
exemplo de obras como os poemas homéricos e a retórica.

Guiraud (1978, p. 13), aponta a identidade da moderna estilística


com a antiga retórica ao analisar que: “O conjunto dos processos de estilo
constituía, entre os antigos, o objeto de um estudo especial, a retórica,
que é a arte da linguagem, uma técnica da linguagem considerada
como arte; simultaneamente, gramática da expressão literária e
instrumento crítico para a apreciação das obras.”

A Retórica, entretanto, não era uma disciplina científica para a


antiguidade como a estilística é para a modernidade. Tratava-se da arte
de compor as intervenções para apolítica e as tribunas. Apesar disso,
muito das antigas sistematizações foram de grande proveito para as
teorias acumuladas pela atual estilística e para a linguística.

A noção de gênero não só se tornou fundamental na literatura a


partir de classificações nascidas da Retórica, como vários dos gêneros
conhecidos até hoje são considerados, como o gênero lírico (expressões
vivas de sentimentos da alma), o gênero épico (relatos de aventuras
heroicas, maravilhosas e consideradas importantes), o gênero dramático
(representações da vida em ação), o gênero didático (ensinando
verdades morais ou outras), o gênero histórico (relato de fatos verídicos
importantes), o gênero romanesco (narrativas de aventuras e paixões)
etc.

Nesta concepção, passam a figurar os diálogos cotidianos, os


universos profissionais, os enunciados científicos, as obras literárias, etc. O
autor afirma que a variedade dos gêneros do discurso é infinita, pois se
trata da variedade da atividade humana. Herança da antiga retórica e
umbilicalmente ligada aos gêneros do discurso, está a noção de estilo:

Para Guiraud, (1978, p. 13), “O estilo de stilus, punção ou estilete que

736
servia para escrever em tabuinhas, antes da época do papel e da
pena de ganso é a maneira de escrever, a utilização pelo escritor dos
meios de expressão para fins literários, distinguindo-se, portanto, da
gramática, que define o sentido e a correção das formas.” Guiraud
define as noções de gênero e de estilo como inseparáveis, pois os
estilos se constroem a partir dos gêneros do discurso. Na Antiguidade,
distinguiam-se três estilos elementares, ligados à aquela dinâmica social;
o simples, o temperado e o sublime, dependendo do que e de que
modo se iria contar ou cantar poeticamente. Essas classificações, assim
como a retórica, estenderam-se pela Idade Média, indo até o início do
século XIX. Apreciada durante séculos, a retórica passa a entrar em
decadência no século XVIII e nada surge para substituir a ciência da
eloquência.

Martins explica uma das fases passadas pela Estilística (1989, p. 19-
20),revelando que “as mudanças ocorridas no pensamento da época do
Romantismo, como a valorização do individual e o repúdio às normas
estabelecidas, levam a Retórica a perder o seu prestígio, chegando a ser
ridicularizada.” A transição da retórica para a estilística reflete uma
transformação histórica em que os valores estéticos da linguagem
deixaram de ser verdades absolutas, convertendo-se em uma relação do
homem com a produção e a experiência sensível.

Portanto, Bally conduz suas observações sempre no âmbito da


língua. A seu ver,caberia à análise de estilística apenas a constatação de
que determinada forma pertença a esta ou aquela classe, e se preste a
este ou aquele tom. A metodologia de Bally, com uma frase retirada de
uma peça e percorre o provável caminho de análise do autor, que
identificaria o fato de estilo, explicitaria o fato de que ele pertence à
linguagem familiar (GUIRAUD, 1978).

737
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Conforme o exposto, os resultados preliminares desse estudo,


tomaram como referência os estudos de Charles Bally sobre a Estilística,
somaram-se também a esse estudo os nomes de Pierre Guiraud, Damaso
Alonso e Leo Spitzer, que serão indispensáveis para a verticalização dessa
discussão e dessa temática em consonância com a obra em destaque.
Foram usados como suporte outros campos da literatura que já versam
sobre a temática do negro em outros contextos e, que faz referência à
literatura afro-brasileira.

Buscamos destacar as evidências que corroboram com a afirmação


defendida no corpus deste trabalho, a presença da estilística de Bally, que
explicam a representatividade feminina negra presente na obra de Maria
Firmina dos Reis, e como, essa perspectiva era contrária ao contexto da
sociedade brasileira da época, e como é fundamental para a
construção das personagens Joana e da Senhora (que durante todo o
conto não foi mencionado um nome.

A presente pesquisa, baseou-se nas teorias de expressividade


da língua que representaram as expressões afetivas que o leitor pode
identificar em um texto e em verificar o reflexo do autor na obra, e o
significado representacional no presente texto deMaria Firmina dos Reis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível, que os recursos estilísticos são elementos


fundamentais na construção de textos emotivos, expressivos e subjetivos,

738
de modo que através dessas marcas estéticas são possíveis os meios de
comunicação efetivos entre o autor e o leitor. Nesse sentido, a Estilística é
imprescindível no estudo dos recursos estilísticos e suas funções, de modo
que assim percebemos a presença das vozes do eu-lírico e autora, os
efeitos emotivos e expressivos, a linguagem conotativa e subjetiva e as
figuras de linguagem. Promovendo assim, o emprego de sentidos
particularizados e de efeito possibilitando a compreensão da mensagem
passada.

Assim, buscamos demonstrar nessa pesquisa como Maria Firmina


dos Reis constitui os personagens negros em suas escritas de forma a
atribuir-lhes características próprias, ou seja, buscamos mostrar como a
escritora representou a sua própria subjetividade negra na forma literária
no começo da segunda metade do século XIX.

O conto a A Escrava, foi escrito no momento em que a expectativa


abolicionista para o fim do escravismo era grande. No ano de 1887, as
fugas maciças de escravos das fazendas de São Paulo, por exemplo,
haviam obrigado grandes cafeicultores e seus representantes políticos, a
trocar de lado, defendendo o fim da escravidão com indenização para
os senhores e incentivando políticas de financiamento para a imigração
europeia.

Compreendemos que Maria Firmina dos Reis elaborava seus


personagens negros de forma a não os caracterizar a partir da ideia de
inferioridade humana, concentrada no sentimento de piedade e
vitimização, isto é, a partir de uma relação entre as diferentes raças,
sendo essa, contudo, a abordagem predominante dos textos jornalísticos
ou literários que estavam inaugurando o debate antiescravista, durante
a década de 1850 em todo o mundo. Ela traça os contornos de seus

739
personagens de maneira diferenciada, mas igualando-os em dignidade
e em igualdade de reconhecimento com relação aos personagens
brancos.

Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra e livre em um Brasil


oitocentista que encontrou no caminho da literatura, seu meio de
subsistência, é um exemplo entre os literatos que procuraram não apenas
pensar na sociedade brasileira de seu tempo, mas também transformá-
la por meio da literatura.

Entretanto, viveu durante toda sua existência, na província do


Maranhão, não alcançou na posteridade nada mais do que o silêncio,
pelo menos até os anos de 1975, quando seu primeiro romance Úrsula foi
salvo do esquecimento. Alguns estudiosos e pesquisadores ousam até a
dizer que foi o primeiro romance abolicionista, que deve ter desagradado
a muitos donos de escravos. Em meados do século XIX, ela havia tratado
do tema da escravidão, isto é, antes mesmo do movimento abolicionista.

Desse modo, o trabalho com a Estilística de um modo geral


contribui para a ampliação dos conhecimentos estimulando no que
confere aos textos a função da expressividade e da significação trazidas
através do emprego dos vocábulos validadas pelo sentido e a estrutura

Tendo em vista o que foi exposto, conclui-se que A escrava constitui,


além de um “verismo construtivo na literatura” (DUARTE, 2004, p. 275),
como propôs Eduardo de Assis Duarte, uma importante fonte para a
compreensão tanto da retórica quanto da atuação abolicionista nos
anos finais da escravidão no Brasil.

740
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Michail. (2003) Estética da criação verbal. São Paulo: Martins


Fontes. BALLY, C. El linguaje y la vida.Trad. de Amado Alonso. Buenos Aires:
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Klincksieck- Librairie Geog e Cie,1951.

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lexicografia, terminologia. Campo Grande: Ed. UFMS. BERND, Z. Negritude
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acesso: 28 out. 2020.

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BassaneziPinsky (coord. de textos) 10. Ed. 1° reimpressão. – São Paulo.

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ficção afro-brasileira.Posfácio. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula

741
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R. de B.Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
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742
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Bally, Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. Trad.
de Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix,
1975.

743
A DIALETOLOGIA DO INTERIOR DE PERNAMBUCO

Edmilson José de Sá108

Resumo: Estudos de descrição linguística voltados ao falar de Pernambuco têm sido


realizados por pesquisadores de todo o país. Monografias, dissertações e tese já
documentaram fenômenos fonéticos, léxicos e morfossintáticos, mas, numa perspectiva
extralinguística, os trabalhos obtiveram maior destaque a fenômenos da capital e
alguns estudos isolados de fenômenos do interior. Porém, em 2009, surgiu a Dissertação
de Mestrado em Dialetologia: o Atlas Linguístico da Mata Sul de Pernambuco – ALMASPE,
construído por Edilene Almeida. A partir daí, outros trabalhos foram realizados, incluindo
o Atlas Linguístico de Pernambuco (SÁ, 2013), não eximindo o corpus de dados do Atlas
Linguístico do Brasil, cujos fenômenos do interior ainda serão publicados em volumes
posteriores. Pretende-se, então, apresentar o atlas estadual e os demais atlas que
cartografaram marcas dialetais fonéticas e léxicas do interior pernambucano,
perfazendo o total de oito trabalhos concluídos, além de dois projetos em fase de
organização, cujos inquéritos serão feitos brevemente.

Palavras-chave: Dialetologia. Pernambuco. Interior do Estado.

INTRODUÇÃO

Há algum tempo pesquisadores têm se deparado quer a nível de


construção ou a nível de simples consulta com trabalhos voltados para a
descrição linguística. Para eles, o respaldo teórico-metodológico cabe à
Sociolinguística, a partir da qual são trabalhados elementos diastráticos
como faixa-etária, sexo, escolaridade; à Dialetologia, ciência
responsável por trabalhar a língua sob a égide da variação espacial e à

108Mestre em Linguística (UFPE), Doutorado em Letras (UFPB), Pós-doutor em Letras


(UFPA). Professor de Língua e Literatura no Centro de Ensino Superior de Arcoverde
(CESA) e Professor colaborador no Mestrado Profletras na Universidade de Pernambuco
(UPE) - Campus Garanhuns

744
Antropologia, de modo a explicar a língua e sua interface com a cultura
do falante.

Neste trabalho, pretende-se dar ênfase à Dialetologia, cujo


método aplicado compete à Geografia Linguística, em cujo registro são
feitas cartas que, compiladas, resultam em atlas linguísticos, com a
distribuição diatópico-diastrática das ocorrências coletadas em
inquéritos realizados em diferentes pontos do município ou estado
escolhido para a formação do corpus.

No Brasil, já existem atlas de quase todos os estados e alguns estão


em fase de planejamento ou elaboração e o Nordeste já com cinco atlas
dos seguintes estados: Bahia, Sergipe, Paraíba, Ceará e Pernambuco.
Além desses, há atlas nomeados de ‘pequeno domínio’, construídos
como produtos de monografias, dissertações e teses mas que já
delimitam os falares regionais de modo bem-sucedido.

O objetivo do artigo em tela é fazer uma descrição dos atlas


linguísticos já construídos do Estado de Pernambuco, bem como elencar
projetos a serem desenvolvidos em um curto espaço de tempo.

1 DIALETOLOGIA E GEOLINGUÍSTICA: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Muito se tem discutido acerca dos conceitos de Dialetologia e


Geolinguistica, haja vista a existência de estudos que consideravam as
duas vertentes como sinônimas.

Por isso, para se entender, com precisão, de que se trata


Geolinguística, é preciso estabelecer alguns conceitos importantes, quais
sejam: língua, dialeto e falar. A língua, segundo encontrado em Houaiss
(2009), se constitui de um sistema de representação constituído por

745
palavras e por regras que as combinam em frases que os indivíduos de
uma comunidade linguística usam como principal meio de
comunicação e de expressão, falado ou escrito. Saussure (1986), por sua
vez, considera o sistema abstrato de signos inter-relacionados, de
natureza social e psíquica, obrigatório para todos os membros de uma
comunidade linguística, enquanto Dubois et al (2007) ainda menciona
que o funcionamento da língua é regido por regras e coerções.

Houaiss (op cit) conceitua o dialeto como um conjunto de marcas


linguísticas de natureza semântico-lexical, morfossintática e fonético-
morfológica, restrito a uma comunidade inserida numa comunidade
maior de usuários da mesma língua. É, portanto, uma forma da língua
falada em um ambiente específico, com um sistema particular.

Ferreira (1986) caracteriza o termo falar por uma forma da língua


usada para estabelecer comunicação, ou seja, qualquer manifestação
concreta da língua.

Ainda em Houaiss (2009) o termo falar se caracteriza por uma


variedade de uma língua peculiar a um quadro geográfico; tem-se o
falar regional, próprio de uma área mais ampla, como o exemplo do falar
nordestino e o falar local, próprio de uma cidade, de uma vila ou
qualquer ambiente.

Como se pode perceber, há autores que tratam os termos dialeto


e falar quase como sinônimos, o que leva alguns a considerarem o
primeiro como forma de variação regional e o segundo como forma
particular de comunicação.

O método mais presente de se estudar o dialeto é através da


Geografia Linguística, que usufrui da cartografia para analisar a língua
diatopicamente. Assim, a Dialetologia passou a ser considerada não

746
apenas como disciplina ou modelo de estudo descritivo dos limites da
língua, mas como ciência que estuda a fala característica seja através
da inserção das realizações mais proeminentes no mapa ou pela simples
catalogação dessas realizações através de modelos distintos de análise.

2 O QUE SÃO ATLAS LINGUÍSTICOS?

Conforme encontrado em Câmara Jr. (1981), a Geolinguística,


como é chamada, é a técnica de análise linguística que consiste no
levantamento de cartas da distribuição geográfica de cada traço
dialetal, ou seja, trata-se, segundo Coseriu (1987), de um:

[...] método dialetológico e comparativo que pressupõe o


registro em mapas especiais de um número relativamente
elevado de formas linguísticas (fônicas, lexicais ou gramaticais),
comprovadas mediante pesquisa direta e unitária numa rede de
pontos de determinado território, ou que, pelo menos, tem em
conta a distribuição das formas no espaço geográfico
correspondente à língua, às línguas, aos dialetos ou aos falares
estudados.

As bases para a Geolinguística foram desenvolvidas pelo linguista


suíço Jules Guilliéron, professor na École Pratique de Hautes Études em
Paris. Ele foi o responsável pela primeira publicação da área, o Atlas
Linguistique de la France, em 1910.

Convém ratificar que a Geolinguística usufrui da Cartografia para


a documentação das marcas dialetais e através da criação de atlas
com uma certa quantidade de cartas necessárias, são contempladas as

747
principais realizações fonético-fonológicas, semântico-lexicais,
morfossintáticas, pragmáticas e prosódicas.

Os principais atlas criados na América e na Europa são: o Atlas


Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, Atlas Linguístico e
Etnográfico dos Açores, Atlas Linguístico Italiano, Atlas Linguístico da
Alemanha, Atlas Linguístico da Inglaterra, Atlas Linguístico do Peru, Atlas
Linguístico-Etnográfico da Colômbia, Atlas Linguístico e Etnográfico do
Chile, Atlas Linguístico do México e o Atlas Linguístico Diatópico e
Diastrático do Uruguai.

No Brasil, os estudos geolinguísticos só adquiriram seu lugar de


destaque com o primeiro Atlas Linguístico elaborado no Brasil por Nelson
Rossi e sua equipe. O Atlas Prévio dos Falares Baianos, concluído em 1963,
serviu de inspiração a outros atlas regionais, enquanto o desejo de
Nascentes (1958) de ter um atlas nacional não se torna realidade.

Mas foi Nascentes (op cit) que intencionava construir uma


descrição planejada no idioma falado no Brasil. Nada obstante, esse feito
não tão fácil quanto ele pensava. A esse respeito, o autor expressa que:

[...] embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo


no país inteiro, pois o fim não é muito distanciado do início, os
Estados Unidos, país vasto com belas trilhas, preferiram a
elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas geral.
Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também
é vasto (NASCENTES, op cit, p. 07).

Depois do atlas baiano, vieram outros trabalhos a saber: o Esboço


de um Atlas Linguístico de Minas Gerais – 1977, o Atlas Linguístico da
Paraíba – 1984, o Atlas Linguístico de Sergipe –1987, o Atlas Linguístico de
Paraná – 1994, o Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil –

748
2002, o Segundo Atlas Linguístico de Sergipe – 2005, o Atlas Linguístico
Sonoro de Pará – 2004, o Atlas Linguístico do Amazonas – 2004, o Atlas
Linguístico de Paraná - II – 2007, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul
– 2007, o Atlas Linguístico do Estado do Ceará – 2010, Atlas Linguístico de
Pernambuco – 2013, o Atlas Linguístico do Amapá – 2017, o Atlas
Linguístico do Estado de Alagoas – 2017 e o Atlas Linguístico do Acre –
2018.

Também estão em fase de construção mais cinco Atlas Regionais


nos estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rondônia,
Pará, além de outras dissertações e pesquisas já concluídas ou em
elaboração, enfocando atlas microrregionais, sem esquecer o recente
Atlas Linguístico do Brasil, publicado em 2015 com um corpus coletado
em mais de 200 municípios brasileiros a partir de inquéritos relacionados
à fonética, ao léxico e à morfossintaxe.

3 PERNAMBUCO: DESCREVENDO A ‘VENEZA BRASILEIRA’

O Estado de Pernambuco está localizado na Região Nordeste do


Brasil com 98. 311 km2 e está dividido em 5 mesorregiões que comportam
19 microrregiões geográficas, conforme encontrado em Sampaio (2008a).

As mesorregiões do Sertão Pernambucano, São Francisco


Pernambucano, Agreste Pernambucano, Mata Pernambucana e
Metropolitana do Recife abrangem, ao todo, 185 municípios, incluindo o
arquipélago de Fernando de Noronha. No censo de 2000, realizado pelo
IBGE, Pernambuco computava 7.918.344 habitantes, índice, obviamente
superado.

749
Os primeiros registros étnicos apontam para a povoação de
indígenas, portugueses, holandeses, judeus, africanos e espanhóis
(SAMPAIO, 2008b). Há, ainda, colônias japonesas no interior do Estado.

O nome Pernambuco, por sua vez, foi originário do tupi Paraná-


Puca e significa “onde o mar se arrebenta”, pois grande parte da faixa
litorânea se encontra protegida por paredões de recifes de coral.

A economia do Estado surge da base parte da agricultura, dos


serviços comerciais e da indústria. No primeiro nível, destacam-se os
produtos algodão, banana, feijão e cana de açúcar. No segundo, são
predominantes as indústrias de natureza alimentícia, química,
metalúrgica, têxtil e eletrônica e no terceiro, destacam-se os centros
comerciais, de ciência e tecnologia e de turismo. Graças a esses
aspectos, tudo leva a crer numa realidade linguística variável, o que dá
margem a investigações dos mais variados pontos de vista.

4 ATLAS LINGUÍSTICOS DE PERNAMBUCO: O QUE TEM E O QUE ESTÁ POR


VIR

O primeiro atlas linguístico do Brasil surgiu em 1963, capitaneado


por Nelson Rossi que, munido de uma equipe de alunos e colaboradores,
organizou o que ele chamou de Atlas Prévio dos Falares Baiano (APFB).
Depois desse, o Nordeste teve o Atlas Linguístico da Paraíba (ALPB), com
diferença de mais de vinte anos da construção do primeiro, graças à
professora Maria do Socorro Aragão e equipe.

Pernambuco só despertou para a Dialetologia e para a


Geolinguística em 2009 na Universidade Federal da Paraíba com a

750
dissertação de Mestrado de Edilene Maria Oliveira de Almeida, que
elaborou o Atlas Linguístico da Mata Sul de Pernambuco (ALMASPE) sob
a orientação da professora Socorro Aragão.

Nesse trabalho, foram escolhidos seis pontos de inquérito da Zona


da Mata Sul Pernambucana, quais sejam: Barreiros, Belém de Maria,
Palmares, Ribeirão, São Benedito do Sul e Sirinhaém.

O perfil dos informantes teve como requisito a naturalidade no


ponto pesquisado ou migração com menos de 8 anos de habitação, mas
que sua filiação fosse da mesma localidade. Concernente à faixa etária,
foram inquiridos habitantes com 18 a 30 anos e de 40 a 65 anos, sendo a
faixa inicial do segundo nível inferior ao sugerido no Atlas Linguístico do
Brasil - ALiB.

Foi aplicado o Questionário Semântico-Lexical (ALiB, 2011) e, de


posse dos resultados, foram elaboradas 7 cartas introdutórias e 45 cartas
linguísticas, conforme ilustrado na figura a seguir:

Figura 1: Carta com designações de libélula do Atlas Linguístico da Mata Sul de


Pernambuco

Fonte: Almeida (2009)

751
Um segundo atlas linguístico construído sobre o falar
pernambucano foi realizado como trabalho monográfico de
Especialização Lato Sensu em Língua Portuguesa da Universidade de
Pernambuco (UPE), sob a autoria de Joseane Cavalcanti Ferreira.
Priorizou-se, nesse trabalho, o município de Buíque, no Agreste do Estado.

Para o atlas construído por Ferreira (2011), foram selecionados 20


informantes distribuídos em cinco bairros de maior representatividade no
município, não sendo feitos inquéritos na zona rural, por não ser esse o
foco do trabalho e a escolha dos informantes seguiu o perfil sugerido na
metodologia do ALiB.

Aos informantes foi aplicado o Questionário Semântico-Lexical do


ALiB, com suas 202 questões distribuídas em 14 campos semânticos e
ainda 08 questões voltadas para uma das especificidades do município,
o Sítio Arqueológico Vale do Catimbau.

Mesmo sendo um trabalho de pequeno porte, vale a pena


reconhecer o pioneirismo deste atlas municipal em Pernambuco, talvez
com falhas teórico-metodológicas, mas que pode servir de inspiração
para o despertar de outros estudiosos da Dialetologia e da Geografia
Linguística no Estado, a fim de que se dignem a investigar marcas
dialetais ainda ocultas ou ratifiquem mais pormenorizadamente aquelas
já registradas.

752
Figura 2: Carta com designações para assassino pago do Atlas Linguístico de Buíque

Fonte: Ferreira (2011)

Em 2010, outro trabalho monográfico surgiu sobre o léxico


pernambucano, mas, desta vez, envolvendo a toponímia (descrição de
nomes de lugares). Como o estudo foi feito sobre o nome das ruas,
recebeu o título de Atlas Eponímico de Tupanatinga (AETUP), que
registrou todas as ruas do município e as catalogou conforme as
taxonomias encontradas em Dick (1990) adaptadas especialmente para
o trabalho.

753
Figura 3: Carta com Antropo-epônimos do Atlas Eponímico de Tupanatinga

Fonte: França (2010)

A primeira publicação oficial de um atlas linguístico de


Pernambuco coube ao Esboço de um atlas linguístico rural de
Pernambuco: agreste centro-meridional de Pernambuco organizado por
Sá e Andrade Neto (2013).

Esse atlas rural, pioneiro no Estado de Pernambuco, é produto de


inquéritos realizados em cinco comunidades rurais pertencentes aos
municípios de Alagoinha, Arcoverde, Buíque, Caetés, Custódia e Ibimirim.
Em termos quantitativos, o atlas contabilizou 112 informantes distribuídos
entre pessoas de 12 a 19 anos de ambos os sexos que foram escolhidos
nas 29 comunidades escolhidas, considerando a importância histórica e
cultural para o Estado. A eles foram feitas 75 questões com temas

754
especificamente rurais distribuídos em 15 campos semânticos: agricultura
familiar, agroecologia, associativismo, caatinga, caprinos, convivência
com o semiárido, cooperativismo, criação de gado, criação de galinhas,
ervas daninhas, extrativismo, hortifruticultura, plantas medicinais, pragas
na agricultura e suinocultura. As respostas produtivas resultaram em 43
cartas, sendo três introdutórias e 40 semântico-lexicais, exemplificadas
pela figura 4.

Figura 4: Carta com designações para canga no Esboço de um atlas linguístico rural
de Pernambuco

Fonte: Sá e Andrade Neto (2013)

O projeto para a construção do ALiPE segue os parâmetros do Atlas


Linguístico do Brasil (ALiB), com a seleção de quatro informantes em cada
ponto de inquérito, distribuídos equitativamente quanto ao sexo, a duas
faixas etárias (18 a 30 anos e 50 a 65 anos) e a escolaridade que não
tenha ultrapassado o quinto ano do ensino fundamental (antiga quarta

755
série), à exceção da capital, que também requer informantes com curso
superior completo.

Foram, então, escolhidos 20 pontos de inquérito distribuídos nos


quatro cantos do Estado, escolhidos segundo sugestões de Ferreira &
Cardoso (1994), segundo as quais, é necessário ter mente a realidade
socioeconômica, os aspectos históricos e a importância do município
para o Estado.

Os pontos escolhidos foram 1 – Afrânio; 2 – Petrolina; 3 – Santa


Maria da Boa Vista; 4 – Ouricuri; 5 – Salgueiro; 6 – Floresta; 7 – Tacaratu; 8
– Serra Talhada; 9 – Custódia; 10 – São José do Egito; 11 – Tupanatinga; 12
– Arcoverde; 13 – Águas Belas; 14 – Garanhuns; 15 – São Bento do Una; 16
– Taquaritinga do Norte; 17 – Caruaru; 18 – Palmares; 19 – Limoeiro; 20 –
Recife.

Aos informantes foram feitas questões que possibilitam análises


fonético-fonológicas, semântico-lexicais e morfossintáticas A elas são
acrescentadas perguntas de cunho pragmático e prosódico, que são
responsáveis por reflexões sobre graus de formalidade e sobre a
construção de orações das mais variadas tipologias. Tais questões foram
retiradas dos Questionários do ALiB (2001) e, junto a elas, também foram
inseridas questões de cunho especifico do Estado, usando, para tanto,
campos semânticos sobre frevo, maracatu, renascença e barro,
totalizando, assim, a quantia de quatrocentos e sessenta e uma questões.

756
Figura 5: Carta 23 com designações do gambá no Atlas Linguístico de Pernambuco

Fonte: Sá (2013)

O que se observa a partir da descrição dos atlas até agora é uma


limitação de trabalhos que precisa ser superada, considerando que, até
o momento, nem metade dos municípios de Pernambuco foi pesquisada
acerca do modo de falar.

Vale, aqui, salientar o projeto de Pós-Doutorado acerca,


justamente do falar quilombola, mas, a julgar pelo posicionamento de
Cardoso (1999) sobre o reconhecimento de Nascentes acerca das
dificuldades advindas sobretudo da extensão territorial e da
precariedade das vias de comunicação”, a opção inicial parece
delimitar o campo de pesquisa. Assim, a proposta parte apenas para
comunidades encontradas no Sertão do Moxotó e do Ipanema
pernambucanos, abrangendo, por ora, cinco pontos de inquérito, mas o

757
sonho de completar o mapeamento linguístico dos quilombolas ainda
não se esgotou e poderá se tornar realidade num curto espaço de tempo.

Figura 6: Carta 23 com designações de estrela cadente no ALQUIMIPE

Fonte: Sá (2018)

A despeito de trabalhos à luz da sociolinguística e da descrição


eminentemente linguística, não há estudos geolinguísticos relacionados,
por exemplo, dos pescadores das áreas costeiras, da língua ia:the, dos
índios funi-ô da cidade de Águas Belas e tantas outras classificações
étnicas que fizeram e ainda fazem parte da História e da Geografia de
Pernambuco.

758
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentou-se aqui um panorama dos estudos dialetais em


Pernambuco, destacando os atlas linguísticos já construídos e a carência
de trabalhos que podem vir a ser realizados.

Após uma breve exposição acerca dos pressupostos teóricos da


Dialetologia e da Geolinguística, seguindo-se da caracterização do
objeto de pesquisa, o Estado de Pernambuco, foi possível exibir os
parâmetros metodológicos da construção dos atlas e exemplos
cartografados do que eles têm registrado.

Porém, como se viu, nenhum trabalho geolinguístico contempla


todos os fenômenos sejam esses de natureza fonética, lexical ou
morfossintática. Há, portanto, muito a se fazer e os atlas já concluídos são
a prova viva da riqueza linguística que Pernambuco, com seu falar
imitado por toda parte, detém em sua extensão territorial.

Com os resultados dos Atlas Linguísticos de Pernambuco, foi


possível ainda que aproximativamente, delimitar as áreas dialetais do
Estado e compreender que a história e realidade geográfica dos pontos
de inquérito investigados em consonância com dimensões diastráticas
dos falantes resulta numa realidade linguística variável passível de
confrontos com outros falares nordestinos e, pelo continuum, com falares
de todo o Brasil. A realização de outros estudos geolinguisticos no Estado
só ratificarão a heterogeneidade do português brasileiro.

759
REFERÊNCIAS

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(ALMASPE). Dissertação de Mestrado. UFPB, João Pessoa, 2009.

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761
OLHADA SEMIÓTICA DO CONTO « A FELICIDADE
CLANDESTINA » DE CLARICE LISPECTOR.

Nada El ahib109

Resumo: Se quisermos encarnar o feminismo brasileiro no início do século XX, não iriamos
excluir a Clarice Lispector, uma autora que defendeu a questão feminina e conseguiu
por meio dos seus contos plasmar a realidade da época. O nosso objetivo fundamental
é apresentar uma leitura semio-narrativa seguindo a escola estruturalista francesa de
Greimas. Sendo a semiótica uma ciência do signo (linguístico e não linguístico), pois
serve-nos para ler as relações entre os signos e revela a lógica da ordem dos eventos
narrativos. Optamos pelo conto A felicidade clandestina de Clarice Lispector,
publicado pela primeira vez em 1967, no Jornal do Brasil. O próprio título nos deixa
perante um paradoxo que ía ser descoberto através da interpretação semiótica que
faremos.
Palavras-chave : Leitura semio-narrativa, Literatura brasileira, Clarice Lispector, signo
linguístico.

Sendo a Literatura de origem polissémica, o material literário


sempre encarna alguma interpretação conforme a cultura ou a
arbitrariedade das coisas.

Clarice Lispector, uma das autoras que marcou a sua trajetória


com um caráter específico: obriga o leitor a ficar atento porque a escrita
dela está coberta de confusão.

Temos de ressaltar que a semiótica de linha francesa delimita três


níveis de análise de texto: o fundamental, mais profundo e elementar, em
que se projetam categorias opostas; o narrativo, em que ocorrem as
relações lógicas entre sujeito e objetos e, finalmente, o nível discursivo,

Professora investigadora do Instituto de Estudos Hispanolusófonos (IEHL) , Universidade


109

Mohammed V-Rabat (Marrocos). elahibnada@gmail.com

762
mais complexo, em que se focalizam as estratégias de argumentação e
persuasão mais diretamente ligadas ao plano enunciativo.

O conto, sujeito de nossa análise, começa com uma descrição


física da antagonista e protagonista. Uma descrição que define as
atitudes das mesmas, o que revela tensão e processo ascendente dos
acontecimentos.

O título apresenta uma sensação misteriosa e forte sentimento de


satisfação da protagonista.

Existem no conto vários signos linguísticos que nos chamam a


atenção para interpretá-los.

Os conceitos predominantes segundo a protagnista são :


perplexidade ; sofrimento ; felicidade ; orgulho ; tristeza. Ditos conceitos
plasmam debilidade, inferioridade, pobreza, humilhação e convição do
destino e da dor.

Contrariamente à menina do pai, dono da livraria cuja realidade


lhe dá mais posse ; orgulho ; crueldade . Pois, os termos indicam
superioridade, domínio da situação, amor pela tortura e o sadismo.

Se quisermos apresentar um modelo actancial que nos resume o


conto, podemos manifestá-lo do modo seguinte:

763
Destinador : autora Objeto Destinatário : leitor

possuir o livro é um prazer

Elemento ajudante Sujeito Elemento


oponente

Mãe da filha A menina A filha do dono da livraria

O conto apresenta uma história real da própria autora Clarice


Lispector durante o período de adolescência. Entre ficção e realidade,
junta-se a memória com o tempo presente.

A autora nos revela um período crítico e crucial que acompanha


e determina a personalidade de cada indivíduo : ajusta os seus
comportamentos e controla as atitudes dela perante o outro.

A tipologia da escrita de Lispector carateriza-se pela procura do


humilde e simples nos atos cotidianos. Uma descoberta do íntimo e do
escondido em nós com estilo elegante e sublime.

A felicidade clandestina, título do conto, está a unir dois conceitos


antagónicos. Onde a felicidade reina o ser humano tenta escondê-la
para que não foge dele.

764
1 COMO A FELICIDADE PODE SER CLANDESTINA ?

Do ponto de vista da filha do dono da livraria : sente-se felicidade


por ter toda uma livraria em posse. Clandestina revela esta crueldade de
não partilhar aquilo que é belo com os demais, nomeadamente a
antagonista que lhe prometeu emprestar o livro mas não fez.

Do ponto de vista da protagonista : a felicidade foi ato repetitivo


antes do posse do livro ; pois durante a caminhada para procurar o livro,
nem contava o tempo perdido nem caiu no chão.

Clandestina porque a mãe lhe emprestou o livro e não determinou


um prazo para recuperá-lo, depois de ter o livro, fingia perdê-lo para
alongar o prazo do empréstimo e com ele dilatar o prazo da felicidade.

O quadro semiótico vem do modo seguinte :

Forma da expressão Forma do conteúdo

[Felicidade] ……… [Tristeza]

[Não Tristeza] ……… [ Não Felicidade]

Substância da expressão Substância do


conteúdo

765
As palavras de sentido pejorativo que designam caráter da
antagnosita são : crueldade ; ferocidade ; vingança ; sadismo ; tortura.

A postura da mãe : protetora, afetuosa, justa, determinada


perante o ato da filha.

Temos de relembrar de que a semiótica greimasiana parte de uma


ambiguidade essencial: o jogo tensivo entre o ser e o parecer.

O objeto da semiótica é o sentido. [...] A semiótica se


interessa pelo ‘parecer do sentido’, que se apreende por
meio das formas da linguagem e, mais concretamente, dos
discursos que o manifestam tornando-o comunicável e
partilhável ainda que parcialmente110

As oposições marcadas no conto são: tortura Vs. bondade; posse


Vs. falta.

Ditas dicotomias podem formar outro conjunto que carateriza


união confome o comportamento : A tortura está associada à posse. Pois
se não houver posse do objeto de desejo, a filha não iria torturar a
protagonista e a bondade também pode estar acompanhada com a
falta, sentindo falta, a pessoa tem que ser boa para obter os seus desejos.
O que a autora explica nete excerto : “Como essa menina devia nos
odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas,
de cabelos livres”111.

Bertrand, Dennis 2003. Caminhos da semiótica literária. São Paulo: EDUSC.


110

Excerto do conto « A felicidade clandestina » de Clarice Lispector, Jornal do Brasil,


111

1967

766
A tortura foi arma invisível da menina que usou como elemento
ajudante para humilhar a protagonista e privá-la do empréstimo do livro
que deseja ler. À medida que a tortura se prolongue, a protagonista não
desiste e a dona do livro aumente o ritmo de maldade.

Como a tortura durou muito tempo, a mãe da filha do livreiro


interveio na conversa das duas e percebeu a atitude da filha; então
emprestou o livro à protagonista pelo tempo que desejasse.

A mãe neste caso, desempenhou o papel de elemento ajudante :


pois descobriu que tipo de filhas tem, e como recompensa do sofrimento
silencioso da protagonista, ofereceu-lhe o livro sem precisar prazo de
devolução, coisa que a protagonista estimou muito.

A filha do dono da livraria sentiu a falta da protagonista e o desejo


de ter o livro a posse. Dito desejo faz com que a tortura dure muito tempo,
mas o estranho era o facto de resistir da protagonista perante esta
humilhação com a finalidade de conseguir o livro :

Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de


Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era
um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.
E, completamente acima de minhas posses 112.

O objeto de desejo tem o valor de um ser humano « um amante »


com quem a protagonista deseja ficar toda a vida.

O conhecimento da filha deste amor pela leitura da protagonista


foi elemento ajudante para alargar a tortura dela.

112 Excerto do conto.

767
Relativamente à estrutura do conto : o facto de descobrir a
existência do livro com a filha do dono da livraria, a protagonista
começou por viver uma felicidade enorme interna : “até o dia seguinte eu
me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar
num mar suave, as ondas me levavam e me traziam”113.

Desde o início do conto, estavam marcadas as caraterísticas da


protagonista e a antagonista :

A protagonista e seus colegas são imperdoavelmente bonitinhas,


esguias, altinhas, de cabelos livres, como também era humilde, sem
muitas condições financeiras, mas gostava muito de ler. As caraterísticas
que resumiriam a protagonista seriam a paciência, a resignação e a
humildade.

Contrariamente à antagonista, cujo pai é dono da livraria, mas


não oferecia presentes de grande valor. O físico dela também não
chamava a atenção de ninguém: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de
cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto
enorme, enquanto nós todas éramos achatadas”114.

O conto encarna a vida infantil da própria Clarice, vivendo no


Recife. O livro objeto de desejo da menina é o mesmo para a autora. O
amor pela leitura cresceu com ela e tornou-se uma necessidade vital, até
personificar todo livro que lhe é caro como se fosse um amante misterioso
e clandestino tal como a felicidade dela que foi desde sempre
clandestina, muda e discreta.

113 Ibid, ibidem


114 Ibid, ibidem

768
Também temos de mencionar que a vida estudantil de Clarice
não foi uma vida normal: pois sofria de marginalização sendo ucraniana
e de origem judaica.

Voltando ao nosso propósito, a realização pressupõe um percurso


que vai da: a) potencialização do sujeito, passando por b) sua
virtualização e c) sua atualização, antes de mudar seu estado inicial de
disjunção, e chegando à d) realização. Em outras palavras, a
protagonista precisou a) perceber sua não-conjunção com o objeto, b)
querer ou dever alterar esse estado, c) munir-se dos saberes e poderes
necessários para efetuar a mudança antes de, propriamente, d) realizá-
la.

Para poder efetuar todo esse processo pelo meio da palavra


(signo linguístico), temos de estar atentos à estrutura do conto : começou
por descrever o estado físico da menina e da protagonista a fim de
identificar essa diferença que era uma das causas de ciúmes da menina.

A maioria das meninas não tinham cabelos crespos nem gordas,


contrariamente à antagonista que tinha um busto enorme. O facto de
ser a menina diferente das outras crianças, deixou-lhe incapaz de
estabelecer amizade e engendrou ódio e solidão. Sendo a protagonista
numa posição inferior do que a menina, pois esta última possui um livro
que a protagonista não pode comprar, e percebendo esta falta,
começa por praticar uma tortura chinesa : manipulando a menina cada
dia com a promessa de dar-lhe o livro.

Passando os dias, e a menina não hesitava em humilhar a


protagonista, até que um dia a mãe dela interveio para parar esta
humilhação, é neste momento que o estado inicial de disjunção mudou
para a união do sujeito com o objeto valor que é o livro. Temos de

769
mencionar que, a menina não passou pelo estado b) visto que não tinha
a mínima ideia de parar este sofrimento, um sofrimento segundo ela que
vai-lhe facilitar o posse do livro.

Claro, a intervenção da mãe foi decisiva, pois graças a ela, sendo


oponente do sujeito, a menina conseguiu ter o livro e por um período
indeterminado ainda, o que lhe ofereceu uma felicidade enorme que
nunca tinha imaginado.

A relação entre a menina e o livro desejado é parecida a uma


relação entre namorados : esta felicidade descrita como algo
clandestino, plasma a intimidade da autora desde a infância com os
livros: « Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela
me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela
não lia. » 115

A protagonista, guiada pela paixão da leitura, aceitou as


humilhações da menina, o que lhe deu a esta última uma vantagem
para torturá-la cada vez mais e mais.

Neste caso, a antagonista teve como elemento ajudante o posse


dos livros e a protagonista como elemento oponente a paixão dela pelos
livros.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO da SILVA Amorim Rosana. Análise do conto « felicidade


clandestina » de Clarice Lispector In, Estudos IAT, Salvador, v.4, n.2, p. 42-

115 Excerto do conto

770
49, set. 2019.

DENNIS Bertrand. Caminhos da semiótica literária. São Paulo: EDUSC.


2003.

FRICKE MATTE Ana Cristina; MUNIZ PROENÇA Lara Glaucia. Um panorama


de Semiótica Gremasiana. UNESP, ALFA, São Paulo, pp 339-350, v. 53 (2),
2009.
LISPECTOR Clarice. A felicidade clandestina. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

MACHADO GARCÍA Lucilene. Clarice Lispector em Felicidade


clandestina: a poética do eu, In. La Palabra (30), Tunja, pp. 217-230, enero
- junio de 2017.

Anexo

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos,


meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda
éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,
por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança
devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de


pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-
postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo,
onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia
com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós

771
que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos
livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia:
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim
uma tortura chinesa.

Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho,


de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses.
Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o
emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu


não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me
traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava
num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar.
Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo.
Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me
tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu
modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí:
guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes
seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava,
andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

772
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da
livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de
sua casa, com um sorriso e o coração batendo.

Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que
eu voltasse no dia seguinte.

Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia


seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já
começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes
adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer
me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.


Às vezes ela dizia:

pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã,
de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a
olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde
e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando
a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais
estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa
entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas
este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

773
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em
silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha:
você vai emprestar o livro agora mesmo.

E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem?
Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o
que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o


livro na mão. Acho que

eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre.
Saí andando bem devagar.

Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra
o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco
importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para
depois ter o susto de o

ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo,


fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga,
fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns
instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina
para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...
Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

774
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo,
sem tocá-lo, em

êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu
amante.

775
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA: ANALISANDO PRÁTICAS DOCENTES

Isabelle Sedícias Nascimento Ferreira116

Maria Cristiana de Santana117

Lívia Suassuna118

RESUMO: Neste trabalho, objetivamos empreender uma análise crítico-reflexiva do


resultado de observações de sala de aula realizadas durante o Estágio Curricular
Supervisionado em Português II, componente curricular obrigatório da licenciatura em
Letras-Português da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para tanto,
analisamos diferentes processos e modelos de ensino-aprendizagem e avaliação nas
áreas de língua portuguesa e literatura desenvolvidos por duas docentes da rede
estadual de ensino de Pernambuco em dois grupos-classe distintos: um do nível
fundamental ‒ anos finais ‒ e outro do nível médio. Com base em Soares (1998),
pontuamos as concepções de linguagem e discutimos a importância de o professor
conceber a linguagem como interação. Alicerçadas em Silva e Cox (2002) e Antunes
(2009), ressaltamos a importância de o professor considerar o texto como unidade
básica de ensino e trabalhar com diversos gêneros textuais, tanto orais quanto escritos.
Além dos autores supracitados, recorremos a Silva (1999), Barbosa (2010), Leal (2003),
entre outros, e discutimos sobre os eixos de ensino de língua portuguesa na atualidade,
a saber: leitura, análise linguística, produção escrita e oralidade, bem como sobre
literatura e letramento literário na escola. Os procedimentos metodológicos incluíram a
observação e o registro em diário de campo de diferentes práticas de ensino-
aprendizagem e avaliação nas áreas de língua portuguesa e literatura desenvolvidas
pelas professoras, além da aplicação de questionários. Após a análise de dados,
percebemos que o trabalho com a oralidade na sala de aula, realizado por ambas as
docentes, é praticamente inexistente. Ademais, observamos, também, que, no ensino
médio, as aulas de literatura ainda são voltadas para o ensino da história da literatura,
em detrimento do contato do aluno com o texto literário.

116 Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),


isabellesedicias@gmail.com.
117 Licencianda em Letras-Português pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

santanacristiana45@gmail.com.
118 Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora

Doutora do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino e do Programa de Pós-graduação


em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
liviasuassuna60@gmail.com.

776
Palavras-chave: Ensino de língua portuguesa, Ensino de literatura, Prática docente.

1 INTRODUÇÃO

Na segunda metade da década de 1980, época da


redemocratização do Brasil após a ditadura militar, “a concepção de
língua como instrumento de comunicação e um ensino nela inspirado já
não encontravam apoio nem no contexto político e ideológico [...], nem
nas novas teorias” (SOARES, 1998, p. 58). Silva e Cox (2002) afirmam que
os estudos sobre a enunciação e o discurso, e os estudos sobre a
educação progressista levam a rever os objetivos, os pressupostos e as
estratégias pedagógicas do ensino de língua portuguesa. Diante disso,
“[...] rediscutem-se as questões da correção linguística, das práticas de
leitura e de escrita e do ensino de gramática” (SILVA; COX, 2002, p. 29).
Assim, segundo os autores, daquele momento em diante, fez-se
necessário reorientar o ensino de língua portuguesa a partir da
perspectiva interacionista da linguagem, pois as concepções de
linguagem como sistema e como instrumento de comunicação haviam
se tornado “[...] alvos de críticas enquanto concepções a sustentar a
análise e o ensino de língua materna” (SILVA; COX, 2002, p. 29).

Considerando a importância de o professor trabalhar com os


diferentes eixos de ensino de língua portuguesa ancorado na
concepção interacionista da linguagem, neste trabalho, objetivamos
empreender uma análise crítico-reflexiva do resultado de observações
de sala de aula realizadas durante o Estágio Curricular Supervisionado em
Português II, componente curricular obrigatório da licenciatura em Letras-
Português da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

777
Com base em Soares (1998), trazemos aqui três diferentes
concepções de linguagem, quais sejam: linguagem como sistema, como
instrumento de comunicação e como interação, e discutimos a
importância de o professor ancorar-se na concepção interacionista da
linguagem para realizar um ensino de língua portuguesa que seja mais
produtivo. Alicerçadas em Silva e Cox (2002) e Antunes (2009),
ressaltamos a importância de o professor considerar o texto como
unidade básica de ensino e trabalhar com diversos gêneros textuais,
tanto orais quanto escritos. Além dos autores supracitados, recorremos a
Silva (1999), Barbosa (2010), Leal (2003) e Magalhães (2008) e discutimos
sobre os eixos de ensino de língua portuguesa na atualidade, a saber:
leitura, análise linguística, produção escrita e oralidade. Por fim,
ancoramo-nos em Souza e Cosson (2011) para falar sobre literatura e
letramento literário na escola.

Para atingirmos o objetivo proposto no presente trabalho,


realizamos a observação e o registro em diário de campo de diferentes
práticas de ensino-aprendizagem e avaliação nas áreas de língua
portuguesa e literatura desenvolvidas por duas docentes da rede
estadual de ensino de Pernambuco; além disso, aplicamos questionários
com as professoras observadas.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

De acordo com Soares (1998), até aproximadamente os anos 1950,


o ensino de língua portuguesa objetivava levar ao (re)conhecimento das
normas e regras de funcionamento do dialeto das camadas privilegiadas
da sociedade. Diante disso, o ensino fundava-se na gramática e no

778
contato com textos literários, através dos quais se desenvolviam as
habilidades de leitura e escrita. A autora afirma que, com a Reforma
Pombalina, instituída em 1759, e, consequentemente, com a
obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa em Portugal e no Brasil,
“[...] esse ensino seguiu a tradição do ensino do latim, isto é, definiu-se e
realizou-se como ensino da gramática do português, ao lado do qual se
manteve o ensino da retórica e da poética” (SOARES, 1998, p. 54). Nesse
período, a concepção de linguagem vigente compreendia a língua
como sistema: ensinar português era ensinar a (re)conhecer o sistema
linguístico.

Em contrapartida, ainda conforme Soares (1998), nos anos 1960,


surge uma nova concepção de linguagem para o ensino de português:
linguagem como instrumento de comunicação, a qual visava
desenvolver os comportamentos do aluno como emissor-codificador e
como recebedor-decodificador de mensagens, ou seja, buscava-se
desenvolver habilidades de expressão e compreensão de mensagens
verbais e não-verbais. No entanto, segundo a autora, na segunda
metade dos anos 1980, quando essa concepção de linguagem começa
a sofrer críticas e, portanto, a se enfraquecer, surge uma nova: linguagem
como interação, a qual “[...] inclui as relações da língua com aqueles
que a utilizam, com o contexto em que ela é utilizada, com as condições
sociais e históricas de sua utilização” (SOARES, 1998, p. 59).

Ao adotar-se a concepção de linguagem como interação para o


ensino de língua portuguesa, de acordo com Silva e Cox (2002), a
unidade básica de ensino passa a ser o texto, ao invés da palavra ou
frase isoladas, visto que, “quando interagem pela linguagem, os
interlocutores não produzem palavras e frases, mas enunciações
consubstanciadas em textos” (SILVA; COX, 2002, p. 34). Os autores

779
afirmam que encarar o texto a partir da concepção dialógica e
interacionista da linguagem significa “[...] considerá-lo em suas múltiplas
situações de interlocução, vê-lo como resultado de trocas verbais social
e concretamente situadas que configuram a dinâmica de uma dada
comunidade linguística” (SILVA; COX, 2002, p. 35).

Assim, conforme Antunes (2009), os gêneros textuais podem


propiciar um estudo da língua bem mais significativo, pois estes se
vinculam a práticas sociais e discursivas e para o ensino,
consequentemente, consideram-se os modos de construção dos textos
concretos, historicamente situados no tempo e no espaço. Diante disso,
segundo a autora, cabe à escola possibilitar o contato do aluno com os
diferentes gêneros textuais que circulam oralmente ou por escrito na
sociedade, de modo que ele perceba que “[...] a língua usada nos textos
‒ dentro de determinado grupo ‒ constitui uma forma de
comportamento social” (ANTUNES, 2009, p. 54, grifo da autora) e, junto a
isso, perceba, também, o caráter regular dos gêneros textuais, devido à
ocorrência de certos elementos específicos de determinados textos, a fim
de prever o conteúdo de determinado gênero, quando este lhe for
solicitado, tanto oralmente quanto por escrito, nas mais diversas situações
de interação. Entretanto, cabe ressaltar que, “[...] apesar de típicos e de
estáveis, os gêneros são também flexíveis; quer dizer, variam no decorrer
do tempo, das situações, conforme a própria trajetória cultural
diferenciada dos grupos em que acontecem” (ANTUNES, 2009, p. 55).

780
2.1 O TRABALHO COM OS EIXOS DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA
ANCORADO NA CONCEPÇÃO INTERACIONISTA DA LINGUAGEM

Na tentativa de delinear um modelo interacionista do processo de


leitura, Silva (1999) apresenta antes algumas concepções redutoras do
ato de ler: a) ler é traduzir a escrita em fala; b) ler é decodificar
mensagens; c) ler é dar respostas a sinais gráficos; d) ler é extrair a ideia
central; e) ler é seguir os passos da lição do livro didático; f) ler é apreciar
os clássicos. De acordo com o autor, essas concepções acabam
reduzindo a complexidade processual da leitura, visto que desprezam
elementos fundamentais da mesma e não consideram as múltiplas
facetas do ato de ler. Assim, para não reduzirmos a leitura a concepções
simplistas, como as anteriormente citadas, precisamos compreender que
“ler é sempre uma prática social de interação com signos, permitindo a
produção de sentido(s) através da compreensão-interpretação desses
signos” (SILVA, 1999, p. 16, grifo do autor), ou seja, faz-se necessário
encarar a leitura como prática social e histórica, como interação entre
indivíduos socialmente determinados, pois ler é interagir, produzir
sentido(s) e compreender e interpretar.

Em relação à prática de análise linguística, Barbosa (2010) afirma


que, a partir da década de 1980, a organização do ensino de língua
portuguesa começa a ser proposta em termos de práticas: prática de
leitura, prática de produção textual e prática de análise linguística, as
quais devem girar em torno do texto enquanto objeto de ensino, de
maneira articulada, tanto nas atividades de compreensão quanto nas
de produção de textos, sejam eles orais ou escritos. Conforme a autora,
com isso, intenciona-se que os conteúdos gramaticais passem a ser

781
focados no interior das práticas de análise linguística, na medida em que
estas devem estar relacionadas às práticas de uso da linguagem. “Visto
dessa forma, o trabalho com a gramática deixa de se basear em
classificações descontextualizadas e volta-se para a exploração de
recursos linguísticos colocados à disposição dos sujeitos para a
construção de sentidos [...]” (BARBOSA, 2010, p. 158).

Quanto à produção de texto escrito, considerando a perspectiva


interacionista da linguagem, segundo Leal (2003), pensar o ensino de
produção textual requer pensar que o texto manifesta-se como produto
de um sujeito que busca relacionar-se com seu interlocutor. Diante disso,
quando solicitados a produzir textos na escola, os alunos devem ser
encarados como “[...] sujeitos que interagem verbalmente, isto é,
produzem discursos em uma determinada situação comunicativa e o
fazem a partir de um lugar social e histórico determinado” (LEAL, 2003, p.
56). Assim, com o intuito de conceber o ensino-aprendizagem da
produção textual através do entendimento dos processos de escrita e do
funcionamento do texto, a autora sugere ao professor: a) encarar o aluno
como um sujeito que produz discursos em determinados contextos, a
partir de determinadas condições sócio-históricas; b) reconhecer que o
aluno escreve para ser lido e compreendido e não apenas para ser
corrigido; c) definir propósitos e explicitar objetivos para a produção
textual; d) levar o aluno a compreender o caráter dialógico da
linguagem, mediante estratégias significativas, e a aprender a escrever,
através da interação contínua com os atos de fala (LEAL, 2003).

No que concerne ao trabalho com a oralidade, Magalhães (2008)


chama a atenção para a supervalorização da escrita na escola em
detrimento da oralidade, o que, de acordo com ela, além de
preconceituoso, desqualifica a cultura oral do aluno. Diante disso, como

782
a escola já tem uma política para a escrita, a autora afirma que “[...] uma
pedagogia do oral não estaria na contramão das ações educacionais,
uma vez que a fala pública é solicitada ao cidadão nas diversas
situações do seu dia a dia” (MAGALHÃES, 2008, p. 139). Assim, ainda
conforme Magalhães (2008), levando em consideração o texto como
unidade básica de ensino, o trabalho com a oralidade precisa envolver
os gêneros textuais da modalidade falada, através de atividades de
escuta, produção e análise linguística, visto que estas permitem o
treinamento, o uso e a reflexão, respectivamente, com o intuito de
construir “[...] conhecimentos e conceitos sobre a linguagem, sobre os
papéis sociais envolvidos na interação, bem como a inserção do aluno
em atividades de oralidade letrada” (MAGALHÃES, 2008, p. 147).

2.2 LITERATURA E LETRAMENTO LITERÁRIO NA ESCOLA

Segundo Souza e Cosson (2011), o letramento literário diz respeito


a um dos usos sociais da escrita. No entanto, diferentemente dos demais,
esse letramento tem relação mais estreita com a escrita, pois leva ao
domínio da palavra partindo dela mesma. De acordo com os autores, o
letramento feito com textos literários requer um processo educativo
específico, por isso, precisa da escola para concretizar-se. Entretanto, faz-
se necessário compreender que o letramento literário “[...] não é apenas
um saber que se adquire sobre a literatura ou os textos literários, mas sim
uma experiência de dar sentido ao mundo por meio de palavras que
falam de palavras, transcendendo os limites de tempo e do espaço”
(SOUZA; COSSON, 2011, p. 103). Diante disso, Souza e Cosson (2011)
afirmam que “o letramento literário enquanto construção literária dos

783
sentidos se faz indagando ao texto quem e quando diz, o que diz, para
que diz e para quem diz” (SOUZA; COSSON, 2011, p. 103), a partir do
exame atento dos detalhes do texto, da configuração de um contexto e
da inserção da obra em um diálogo com outras obras, a fim de chegar
à formação do repertório do leitor. Para isso, faz-se necessário levar o
aluno a desenvolver estratégias de leitura, quais sejam: conhecimento
prévio; conexão; inferência; visualização; perguntas ao texto;
sumarização; e síntese (PRESSLEY, 2002 apud SOUZA; COSSON, 2011).

3 METODOLOGIA

Considerando o objetivo do presente trabalho, a saber:


empreender uma análise crítico-reflexiva do resultado de observações
de sala de aula realizadas durante o Estágio Curricular Supervisionado em
Português II, observamos e analisamos os diferentes processos e modelos
de ensino-aprendizagem e avaliação nas áreas de língua portuguesa e
literatura desenvolvidos por duas docentes da rede estadual de ensino
de Pernambuco em dois grupos-classe distintos: um do nível fundamental
‒ anos finais ‒ e outro do nível médio.

O Estágio Curricular Supervisionado em Português II consiste em um


componente curricular obrigatório da Licenciatura em Letras-Português
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fazendo parte de um
bloco composto por três outros componentes curriculares obrigatórios
pertencentes ao referido curso, a saber: Estágio Curricular Supervisionado
em Português I, II, III e IV, sendo os dois primeiros de observação e os dois
últimos, de regência. O Estágio II, aqui analisado, tem carga horária total

784
de 90h, subdividido em 30h de atividades realizadas na UFPE e 60h de
atividades realizadas nas escolas-campo.

O corpus do presente trabalho compõe-se pelo registro das


observações em diário de campo; além da aplicação de questionários
com as docentes. Para garantir o anonimato das professoras, vamos
nomeá-las aqui apenas com as letras iniciais de seus nomes: L, para a
docente do ensino fundamental, e P, para a docente do ensino médio.
Passemos, então, para a análise de dados e discussão dos resultados.

4 ANÁLISE DE DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Durante a realização do estágio curricular no ensino fundamental,


acompanhamos as aulas ministradas pela professora L numa turma de 6º
ano. Em relação ao trabalho com a leitura, a docente coloca os alunos
em contato com diferentes gêneros textuais, como sugere Antunes
(2009), e compreende o texto como espaço de interação entre autor e
leitor, visto que procura partir do conhecimento prévio dos alunos,
importância ressaltada por Silva (1999), no que diz respeito à visão
interacionista da leitura, quando ele afirma que “[...] o leitor, através do
seu repertório prévio de experiências [...] dialoga com um tecido verbal,
que [...] possibilita a produção ideacional de determinados referenciais
de realidade” (SILVA, 1999, p. 16), que são recriados por ele ao longo
dessa interação, a partir do seu repertório. Além disso, a docente
costuma levantar questionamentos para o grupo-classe que não se
encerram apenas nas características formais dos textos trabalhados, mas
que são relevantes para o desenvolvimento da criticidade dos alunos. Em
uma das aulas observadas, na qual a professora L trabalhou a leitura de

785
textos instrucionais, ela questionou os alunos sobre quem era o leitor a que
se destinavam as receitas culinárias trabalhadas, ao que o grupo-classe
respondeu “mulheres”. Diante da resposta, a docente realizou outros
questionamentos, com o intuito de levar os alunos a refletirem sobre
questões de gênero e promover uma leitura crítica.

Quanto ao trabalho com a prática de análise linguística, a partir


da leitura de panfletos de campanhas de combate à dengue, a
professora L levou os alunos a perceberem que pequenas ações
realizadas por eles no dia a dia podem contribuir positivamente para
evitar a propagação do mosquito da dengue, à medida que chamou a
atenção do grupo-classe para a recorrência de verbos no infinitivo e no
imperativo em textos do gênero textual panfleto. Assim, observamos que
a docente compreende o texto como objeto de ensino e trabalha
questões gramaticais articuladas às práticas de leitura e produção
textual, evitando, com isso, que o ensino de gramática seja pautado a
partir de classificações descontextualizadas, como sugere Barbosa
(2010).

No que concerne ao trabalho com a produção de textos escritos,


após a leitura de cordéis e do poema “Cidadezinha qualquer”, de Carlos
Drummond de Andrade, a professora L solicitou aos alunos a produção
de um cordel, a partir do tema “O lugar onde vivo”, e pediu que eles
levassem em consideração, no momento da escrita, um leitor literário
que não conhece o Recife. Como dito, conforme Leal (2003), o texto
manifesta-se como produto de um sujeito que busca relacionar-se com
seu interlocutor. Nesse sentido, a estratégia utilizada pela docente, ao
solicitar que o grupo-classe considerasse um leitor literário específico,
embora imaginário, mostra-nos que ela compreende os alunos enquanto

786
sujeitos que interagem verbalmente, a partir de determinadas situações
comunicativas e de determinadas condições sócio-históricas.

Em síntese, no período do estágio curricular, percebemos que a


professora L trabalha de forma consistente e sistemática com as práticas
de leitura, análise linguística e produção de textos escritos. O trabalho
com a oralidade, contudo, é praticamente inexistente. No entanto,
segundo Magalhães (2008), a fala pública é requerida ao cidadão nas
mais diversas situações cotidianas. Ademais, “[...] analisar a linguagem
oral minimiza o preconceito instalado em nossa sociedade contra o falar
não padrão” (MAGALHÃES, 2008, p. 141). Por isso, o trabalho com a
oralidade na sala de aula não pode ser ignorado.

Durante a realização do estágio no ensino médio, acompanhamos


as aulas ministradas pela professora P no 3º ano A. Em relação à prática
de leitura, notamos que a docente prioriza a leitura de fruição. Com o
intuito de desenvolver nos alunos o hábito de ler, a professora P propôs a
criação de um aplicativo, no qual foram catalogados todos os livros
disponíveis na biblioteca da escola, e solicitou que os alunos escolhessem
um para ler. À medida que os alunos finalizavam a leitura, a docente
conversava individualmente com eles sobre a obra, a fim de observar se
os alunos haviam realmente lido, mas sempre ressaltando para eles o
prazer da leitura. A professora P solicitou, também, que os alunos falassem
sobre o livro na sala de aula e, em seguida, expusessem os comentários
tecidos no aplicativo. No comentário, eles deveriam resenhar o livro, ou
seja, realizar a sua apreciação crítica, indicando ou não a leitura e
justificando o porquê. Diante disso, observamos que a docente concebe
a leitura como produção de sentidos e compreende que “[...] repertórios
diferentes produzirão diferentes sentidos ao texto [...]” (SILVA, 1999, p. 16).

787
Quanto ao trabalho com a prática de análise linguística,
observamos que a professora P utiliza o texto como pretexto para
abordar questões gramaticais, pois ela não articula a prática de análise
linguística com as demais práticas, como sugere Barbosa (2010). O
trabalho com crase, por exemplo, foi feito a partir de placas de
sinalização com foco no que a gramática tradicional estabelece como
correto para o uso desse recurso linguístico. Além disso, a docente
solicitou que os alunos pesquisassem regras gramaticais, estabelecidas
pela gramática tradicional, referentes ao uso correto do sinal de crase e
as classificassem em três categorias distintas: “Uso”, “Não uso”, “Uso se
quiser”. Assim, percebemos que o trabalho realizado pela professora P
baseia-se em classificações descontextualizadas e metalinguagem
excessiva. Diferentemente disso, de acordo com Barbosa (2010), os
conteúdos gramaticais devem ser focados no interior da prática de
análise linguística, à medida que esta relaciona-se com as demais
práticas.

O trabalho com a produção de textos escritos realizado pela


professora P teve como foco a redação do Exame Nacional do Ensino
Médio (doravante ENEM). A docente trabalhou com os alunos as
características do texto dissertativo-argumentativo e, em seguida,
solicitou a produção da redação, informando que eles deveriam
adequá-la às exigências do ENEM. Diante disso, percebemos que a
professora P encara a produção textual dos alunos apenas como um
texto para ser corrigido, ignorando, desse modo, que o aluno escreve
para ser lido e compreendido. Assim, o trabalho com a produção de
textos realizado pela docente “[...] longe de se constituir em espaço
dialógico para a produção de sentidos, transforma o texto escrito em um
objeto fechado em si mesmo” (LEAL, 2003, p. 54).

788
As atividades realizadas pela professora P voltadas para o eixo da
oralidade consistiram em debates, nos quais a docente dividia os alunos
em grupos, distribuía temas diversos, a saber: a violência contra a mulher,
o respeito à diversidade religiosa, entre outros, e solicitava que eles
pesquisassem sobre os temas propostos e, depois, compartilhassem as
informações selecionadas pelo grupo com os colegas de classe, com o
intuito de defender seus posicionamentos. No entanto, as atividades
realizadas pela professora P não podem ser consideradas, de fato,
trabalho com a oralidade, visto que o foco da docente estava na
exposição do conteúdo e na defesa do ponto de vista por parte dos
alunos, desconsiderando-se, portanto, a importância de refletir sobre a
função social e as características estruturais do gênero oral debate para
a realização de um trabalho consistente e sistemático com a oralidade.
Conforme Magalhães (2008), o trabalho com a oralidade na sala de aula
não pode ser ignorado pelo professor, pois faz-se necessário levar o aluno
a desenvolver a capacidade de transitar pelas diversas instâncias sociais,
tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita.

No que concerne ao trabalho com a literatura, após discutir sobre


o Modernismo, a partir de aulas expositivas acerca da Semana de Arte
Moderna de 1922, e apresentar ao grupo-classe características
recorrentes em poemas que se inserem nesse período da literatura
brasileira, mas sem analisá-los, a professora P solicitou que os alunos
escolhessem um poema da primeira geração modernista e
representassem o mesmo através de uma fotografia. As fotografias foram
socializadas com a classe e os alunos comentaram sobre elas para os
colegas e, em seguida, o material foi exposto na escola. Diante disso,
consideramos que o ensino de literatura realizado pela docente centra-
se no ensino da história da literatura, com foco no contexto histórico da

789
obra, na vida do autor e no movimento literário em que a obra se insere.
Embora o trabalho realizado com as fotografias tenha sido interessante e
auxiliado os alunos a refletirem sobre as relações do texto literário com
outras artes, segundo Souza e Cosson (2011), o objetivo do letramento
literário ou do ensino da literatura na escola deve ser, em primeiro lugar,
formar leitores, “[...] mas um leitor capaz de se inserir em uma
comunidade, manipular seus instrumentos culturais e construir com eles
um sentido para si e para o mundo em que vive” (SOUZA; COSSON, 2011,
p. 106), o que dificilmente irá acontecer se o trabalho com a literatura na
sala de aula for realizado com ênfase na história da literatura, em
detrimento do contato do aluno com o texto literário.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a realização deste trabalho, percebemos a importância de o


professor ancorar-se na concepção interacionista da linguagem para
realizar o ensino de língua portuguesa de forma mais produtiva. Ademais,
observamos que o trabalho com a oralidade, realizado por ambas as
docentes analisadas, é praticamente inexistente. No entanto, a fala
pública é requerida ao cidadão nas mais diversas situações cotidianas
(MAGALHÃES, 2008). Por isso, a oralidade precisa ser contemplada na
sala de aula. Por fim, observamos, também, que, no ensino médio, as
aulas de literatura ainda são voltadas para o ensino da história da
literatura, em detrimento do contato do aluno com o texto literário.

Concluímos que as docentes pesquisadas, ao mesmo tempo em


que tentam desenvolver certas práticas apoiadas na visão de linguagem
como interação, também reproduzem modelos cristalizados de ensino,

790
evidenciando uma mescla de abordagens. Frente a essa constatação,
ratificamos a importância da formação tanto inicial quanto continuada
para a reconfiguração do ensino de língua portuguesa e literatura.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.

BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Análise e reflexão sobre a língua e as


linguagens: ferramentas para os letramentos. In: RANGEL, Egon de
Oliveira; ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Língua portuguesa: ensino
fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010, p. 155-182.

LEAL, Leiva de Figueiredo Viana. A formação do produtor de texto escrito


na escola: uma análise das relações entre os processos interlocutivos e os
processos de ensino. In: VAL, Maria da Graça Costa; ROCHA, Gladys
(org.). Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto: o sujeito-
autor. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 53-67.

MAGALHÃES, Tânia Guedes. Por uma pedagogia do oral. Signum: Estud.


Ling., Londrina, n. 11/2, p. 137-153, dez., 2008.

SILVA, Mauro Mendes da; COX, Maria Inês Pagliarini. As linhas mestras do
novo paradigma do ensino de língua materna. In: Polifonia. Cuiabá:
EdUFMT, n. 5, p. 27-48, 2002.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Concepções de leitura e suas


consequências no ensino. Perspectiva. Florianópolis, v. 17, n. 31, p. 11-19,
jan./jun., 1999.

791
SOARES, Magda. Concepções de linguagem e o ensino da Língua
Portuguesa. In: BASTOS, Neusa Barbosa (org.). Língua Portuguesa: história,
perspectivas, ensino. São Paulo: EDUC, 1998, p. 53-60.

SOUZA, Renata Junqueira; COSSON, Rildo. Letramento literário: uma


proposta para a sala de aula. Acervo digital da UNESP, 2011. Disponível
em:
<https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.p
df>. Acesso em: 01 de outubro de 2019.

792
ANÁLISE DAS TRANSFORMAÇÕES FONOLÓGICAS E LEXICAIS
DO LÉXICO DA LIBRAS APOIADAS PELO SISTEMA ELiS

Leandro Andrade Fernandes 119

RESUMO: As línguas de sinais nem sempre tiveram o espaço merecido, com o estudo
de Stokoe (1960) estas línguas ganham seu merecido destaque, sendo alvo de
investigação por diversos pesquisadores. No Brasil a Língua Brasileira de Sinais – Libras,
ganha seu reconhecimento a partir da Lei 10.436/02, correspondendo como a língua
das comunidades surdas do Brasil. Diferentemente do que se pensa, a Libras é uma
língua natural com estrutura própria, e por este motivo passa pelos mesmos fenômenos
que as línguas orais, como empréstimos e variações do léxico em uma perspectiva
sincrônica e diacrônica. O presente trabalho tem como objetivo analisar o léxico da
Libras, dispondo como ponto de partida a primeira obra dicionarística que se tem
notícia, sendo este o trabalho de Gama (1875), para a comparação das prováveis
mudanças em uma perspectiva diacrônica o mesmo será comparado ao dicionário de
Capovilla et al (2017). Interessante observar que os dois dicionários registram o léxico da
Libras a partir de ilustrações, no entanto, para o cotejo e análise das possíveis
transformações das entradas, sejam elas em nível fonológico ou lexical, nos
beneficiaremos do Sistema Brasileiro de Escrita das Línguas de Sinais – ELiS. Contudo, as
possíveis modificações serão apresentadas apoiadas em sua própria escrita, de forma
a considerar aspectos inerentes à estrutura das línguas de sinais.

Palavras-chave: Libras, ELiS, Mudanças Lexicais.

INTRODUÇÃO

A língua conforme alude Saussure (1972, p. 17) “é um todo por si e


um princípio de classificação”, portanto é a partir da língua que

119Doutorando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Catalão –


UFCAT. Docente do Instituto de Ciências Humanas do Pontal, da Universidade Federal
de Uberlândia – ICHPO/UFU. Coordenador de área em Estudos Lexicográficos do
Laboratório de Leitura e Escrita das Línguas de Sinais – LALELiS da Universidade Federal
de Goiás. Participa do GEPLELL – Grupo de Estudos e Pesquisas em Leitura, Escrita, Livros
e Linguagens vinculado ao Núcleo de estudos e pesquisas em gênero, educação e
diversidade – NEPGED, UFU/Pontal. E-mail: leandroandrade.letras@gmail.com.

793
organizamos nosso conhecimento de mundo. Logo, a língua representa
um papel primordial para a sociedade, o de possibilitar não apenas a
classificação, mas também a interação e a transmissão de
conhecimento e cultura. A língua Brasileira de Sinais, doravante Libras é
reconhecida pela Lei 10.436/02 como a língua das comunidades surdas
do Brasil. Apesar deste reconhecimento ser recente, a Libras sempre
esteve presente na sociedade.

Diferentemente da Língua portuguesa, a Libras não possui uma


escrita oficial. Há alguns sistemas de escrita utilizados socialmente, no
entanto, a educação de surdos em sua modalidade escrita, como
previsto no Decreto 5.626/05 deve ser em língua portuguesa. A escrita
nada mais é do que a representação da fala ou no caso da Libras de
sua sinalização, conforme ressalta Saussure (1972, p. 34) “[...] a palavra
escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual é a
imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por
dar maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio
signo”. Contudo, é sabido da importância da escrita para a sociedade,
por conseguinte para os estudos de uma língua, já que esta pode ser
revisitada diversas vezes em diferentes momentos, diferentemente da
língua em sua modalidade vocal/sinalizada, que é momentânea.

O presente trabalho tem como objetivo apresentar modificações


diacrônicas do léxico da Libras, à vista disso, será realizado um cotejo
entre dois dicionários da referida língua sendo eles Iconographia dos
signaes dos surdos-mudos elaborado por Gama (1875) e o Dicionário da
língua de sinais do Brasil: a Libras em suas mãos, organizado por Capovilla
et al (2017). E a partir da transcrição das imagens para o Sistema Brasileiro
de Escrita das Língua de Sinais – ELiS, realizaremos as análises, de forma a

794
demonstrar as modificações sofridas pelo léxico confirmadas nos
verbetes selecionados.

Logo, trataremos da consolidação do léxico da Libras, tendo como


foco fatores históricos, assim como argumentar sobre a importância do
dicionário como instrumento de estudos da língua em perspectiva
diacrônica, de modo a ilustrar não apenas as modificações estruturais
dos lemas, mas também da cultura daqueles que utilizam a Libras.

Tratamos aqui do dicionário por percebê-lo como instrumento


normatizador de uma língua, ou seja, é a partir do registro de uma lexia
em uma obra dicionarística que uma unidade linguística passa a fazer
parte do léxico de uma determinada língua. Como mencionado, o
dicionário normatiza a língua, indicando lexias ditas aceitáveis e não
aceitáveis na norma padrão.

Por conseguinte, além de ser o dicionário o repositório do léxico e


da cultura de uma determinada comunidade, em um determinado
momento, ele também proporciona a possibilidade de estudos
comparativos relacionados à variação e às mudanças que ocorrem em
uma mesma língua, permitindo explorar essas transformações linguísticas
tanto em seu nível sincrônico quanto diacrônico.

1 METODOLOGIA

A presente pesquisa tem como objetivo apresentar as mudanças


fonológicas e lexicais ocorridas no léxico da Libras em uma perspectiva
diacrônica. Isto posto, selecionamos dois dicionários de Libras. Logo,
optamos pela primeira obra dicionarística em Libras, sendo essa a

795
Iconographia dos signaes dos surdos-mudos, elaborada por Gama (1875)
e o Dicionário da língua de sinais do Brasil: a Libras em suas mãos,
organizado por Capovilla et al (2017).

O dicionário de Gama (1975) ilustra o total de trezentos e oitenta e


dois sinais e está organizado em ordem onomasiológica nos seguintes
grupos temáticos: “Alimentos e Objetos da Mesa”, “Bebidas e Objetos
para escrever”, “Objetos de Aula”, “Individualidade e Profissões”,
“Animais”, “Pássaros”, “Peixes e Insetos”, “Adjetivos e Qualidades Morais”,
“Pronomes e os três tempos absolutos do indicativo”, “Verbos”,
“Advérbios”, “Preposições e Conjunções”, “Interjeições e Interrogações”.
Já a obra de Capovilla et al (2017), é atualmente a mais representativa
do léxico da Libras, registrando mais de treze mil sinais em Libras e está
organizado em ordem semasiológico, levando em consideração a
ordem alfabética da língua portuguesa.

Como ponto de partida, valemo-nos do trabalho de Gama (1975),


assim, como a obra foi organizada em categorias semânticas, optamos
pela de Adjetivos e qualidades morais, justificado por ser este o grupo
que mais acomodava verbetes, perfazendo o total de oitenta e cinco
sinais. Após a definição da categoria a ser analisada, realizamos uma
averiguação dos verbetes, de forma a preferir por aqueles que nos
possibilitava compreender a ilustração e/ou as informações sobre a
forma de sinalização, ou seja, a descrição do sinal. Contudo, de modo a
apresentar dados fidedignos, das oitenta e cinco entradas, algumas
foram descartadas por diferentes pretextos, como a impossibilidade da
visualização do equivalente em língua portuguesa e a imprecisão da
leitura da ilustração em Libras, como pode ser observado nas imagens a
seguir:

796
Imagem 2: Sinais desconhecidos.

Fonte: Gama (1875, p. 17 e 20).

Por utilizarmos o dicionário como instrumento para a coleta do


nosso corpus, selecionamos unicamente aquelas entradas que possuem
a mesma escrita em língua portuguesa, nos dois dicionários eleitos,
desconsiderando formas flexionadas e aquelas que não estavam
presentes nas duas obras de referência para nossa análise, sendo elas:
grande, grosso, porco, falante, surdo-mudo, espesso, delgado, curvo, fino,
frio, tenro, branco, preto, obediente, desobediente, casto, malecolo,
estudioso, preguiçoso, agradável, colérico, sóbrio, guloso, instruído,
mentiroso, sensato, mentecapto, prudente, imprudente, aplicado,
orgulhoso, relaxado, piedoso, pacífico, briguento, avarento, clemente,
vingativo e falante.

Contudo, serão analisados o total de quarenta e quatro (44) sinais.


Após a seleção e delimitação dos verbetes a serem cotejados, passamos
a realização da transcrição dos mesmos para o sistema ELiS. As entradas
a serem analisadas são: pequeno, gordo, magro, delgado, moço, velho,
rico, pobre, bonito, belo, limpo, forte, fraco, comprido, curto, largo,
estreito, alto, baixo, reto, pesado, ligeiro, novo, velho, usado, quente,

797
duro, vermelho, azul, verde, ignorante, sincero, distraído, bom, mal,
modesto, discreto, curioso, corajoso, hipócrita, generoso, inteligente,
idiota e silencioso. Contudo, a partir da seleção e transcrição dos
supracitados sinais, intentamos identificar o processo de variação
fonológico e lexical em nível diacrônico. Logo, reiteramos a natureza da
Libras como uma língua natural, que se modifica ao logo do tempo a
depender das necessidades de seus utentes.

2 A SOCIOLINGUÍSTICA E OS ESTUDOS NA LIBRAS

Partindo do princípio das comunidades de fala, em consonância


com Gesser (2009), percebe-se que as línguas de sinais não são iguais, ou
seja, constitui-se um mito considerar as línguas de sinais como uma língua
mundialmente unívoca. Assim, os pesquisadores das línguas viso-
espaciais no mundo se preocuparam como afirmam Souza e Segala
(2009), das questões mais internas das línguas espaciais, na tentativa de
elevar o seu status linguístico, desse modo, de acordo com os
supramencionados autores a teoria gerativista foi largamente utilizada, o
que refletiu na percepção desses sistemas como homogêneos.

Buscava-se descrever os princípios internos, identificando uma


regularização estrutural das línguas de sinais em comparação às
orais, centrada na competência linguística dos indivíduos ou nas
comunidades isoladas que desenvolveram, sem contato com
outras línguas de sinais, uma língua com propriedades
semelhantes às anteriormente estudadas. Só a partir da década
de 1970 se iniciou a preocupação em resgatar os dados
concernentes à emergência e desenvolvimentos de línguas
sinalizadas dentro de uma metodologia sociolinguística
(ANDRADE, 2013, p. 50-51).

798
Inicialmente os estudos de variação das línguas de sinais se
vincularam às mudanças lexicais. Já na década de 70 os estudos
associados as variações fonológicas dos sinais tiveram sua largada, muito
se deve às questões ligadas às línguas orais, uma vez que, se tinha mais
conhecimento sobre as formas de lidar com essa modalidade linguística,
como afirma Andrade (2013).

Após, as contribuições de Stokoe (1960) e Battison (1974; 1978) e a


produção conceitual dos cinco (5) parâmetros que parte da prerrogativa
de decomposição dos sinais, nota-se que “os parâmetros da língua de
sinais podem ser considerados traços distintivos, assim como ocorre nas
línguas orais” Andrade (2013, p. 55), aspecto este que será melhor
abordado na próxima seção.

Além disso, estudos como o Battison, Markowicz e Woodward (1975)


que pesquisaram sobre a extensão do dedo polegar, Woodward, Erting
e Oliver (1976) que investigaram a variação da realização dos sinais na
mão e na face, produzidos por moradores de Nova Orleans e Atlanta
revelaram que os residentes em Nova Orleans selecionavam
naturalmente sinais produzidos na face, enquanto que os de Atlanta
elaboravam sinais mais ligados às mãos como ponto de articulação. Em
suma, estas e tantas outras pesquisas contribuíram para o
desenvolvimento da sociolinguística variacionista no campo das línguas
de sinais.

Foi, ainda, observado por autores como Lucas (2003), Gesser (2009)
e Schembri e Johntson (2012, 2013) que a variação nas línguas de sinais
pode ocorrer tanto nos níveis fonológicos, quanto morfológicos e
sintáticos. E os fatores relevantes para que essa mudança ocorra são as
mesmas variáveis sociolinguísticas das línguas orais, sendo elas: raça;

799
escolaridade; geografia; idade, sexo, entre outros. Portanto, a seguir
apresentamos os aspectos fonéticos e fonológicos da Libras para assim,
compreendermos as variações diacrônicas no corpus selecionado para
a realização de nossa análise.

3 ASPECTOS FONÉTICOS E FONOLÓGICOS DA LIBRAS

A Libras, apesar de ser reconhecida como língua com a


promulgação da lei 10.436, já fazia e faz parte da realidade de muitas
comunidades surdas do Brasil, sendo utilizada pelos surdos nos mais
diversos espaços sociais, como escolas, igrejas, empresas e outros.

Ferreira (2010, p. 21) reitera que “[...] a Libras é uma língua natural,
com estrutura própria, regida também por princípios universais” por ser a
Libras uma língua natural, passou por transformações em seu léxico ao
longo dos anos. Logo, as alterações ocorreram em conformidade com
as necessidades dos sinalizantes, pode ser observadas mudanças
fonológicas, morfológicas, semânticas e lexicais e estas modificações
podem ser fontes de estudo para a história da língua e da cultura da
comunidade utente.

O léxico de uma língua possibilita a comunicação e a interação


entre os membros de uma determinada comunidade, no entanto, para
que haja uma comunicação efetiva, a língua necessita de um elemento
interno a ela, sendo este a gramática. A gramática estrutura a língua,
indica o que é possível e o que não é em um enunciado, conforme
aponta Neves (2001, p. 19) a gramática é percebida “como busca do
mecanismo interno à língua, como busca do sistema de regras
responsáveis pelo cálculo das condições de produção de sentido,

800
precedeu a gramática como descrição, com vista à prescrição, de
determinados usos da língua”. Assim, neste trabalho, teremos como foco
os aspectos estruturais da Libras, dispondo como ponto de partida para
nossas análises o sistema ELiS.

Os sinais da Libras são formados pelos elementos denominados de


parâmetros, sendo eles: Configuração de Mãos (CM), Orientação da
Palma (OP), Ponto de articulação (PA), Movimento (M) e Expressões não
manuais (ENM). Estes componentes funcionam como sons, se
comparados a língua oral e cada grupo possui suas unidades distintivas,
e a partir da união de um elemento de cada parâmetro se forma um sinal.
Assim, os sinais devem ser pensados como símbolos complexos e
abstratos passíveis de se decompor em unidades menores e não apenas
como uma figura realizada em um espaço pelas mãos, como pode ser
observado a seguir

Quadro 1: Estrutura do sinal em Libras, sinal conhecer.

Fonte: Elaborado pelo autor.

O sinal conhecer foi escrito em ELiS, interessante observar que o


primeiro grupo configuração de dedos (CD), refere-se ao parâmetro CM,
no entanto, para a representação deste elemento pela ELiS, a mão não
é vista como um todo, mas sim descrita dedo a dedo, por este motivo a
mudança da conceituação. Além disso, o parâmetro ENM é incluído ao
grupo de M, justificado pois:

801
Muitas expressões não manuais não são representadas na ELiS
por considerarmos que: a) são intrínsecas ao sinal, como o
movimento de olhos que acompanham o uso de pronomes
pessoais ou demonstrativos; b) são previsíveis pela sintaxe, como
alguns movimentos de cabeça e sobrancelha em algumas
frases subordinadas e em frases interrogativas, em que os
próprios sinais de pontuação levam o leitor a realizá-los; c) são
dadas pelo contexto de leitura, como o girar de tronco para
marcar o turno de interlocutores (BARROS, 2015, p. 22).

A fonética articulatória segundo Roberto (2016, p. 18) “descreve e


promove a classificação dos sons da fala humana a partir do modo
como eles são produzidos pelo aparelho fonador”. Por extensão,
podemos entender que a fonética articulatória da Libras realiza a
descrição e classificação dos parâmetros produzidos pelas mãos e pelo
corpo do sinalizante. Dentre a fonologia há o conceito de fonema sendo
este a menor parte de uma palavra que sozinha não possui significado.
Ao analisarmos os sinais da Libras um fonema nada mais é do que um
parâmetro isolado e por este motivo sem significado. O sistema ELiS
descreve satisfatoriamente os fonemas da Libras, chamado por Barros
(2015) de visema e por sua vez sua representação escrita de visografema:

A ELiS é um sistema de escrita alfabético e linear, cujos


caracteres, denominados visografemas, foram desenvolvidos
especialmente para ela. Os visografemas representam os
elementos visuais que compõem as línguas de sinais, a saber, as
configurações de mão, orientações da palma, pontos de
articulação, movimentos e expressões não-manuais. Esses
elementos são organizados em uma estrutura própria, que segue
a dinâmica natural de formação dos sinais, ou seja, sua natureza
sequencial cumulativa, que resulta em simultaneidade (BARROS,
2015, p. 15).

Os estudos fonéticos da Libras ocorrem em sua maioria a partir da


análise de ilustrações e fotos, no entanto, entendemos que pesquisas
desta natureza podem ser melhor representadas se realizadas apoiadas

802
por um sistema de escrita. A fonética e a fonologia são áreas
interdependentes, posto que, a fonética é essencialmente descritiva e a
fonologia interpretativa. Contudo, para se compreender as análises e
discussões das transformações do léxico da Libras julgamos necessário
uma singela apresentação do sistema ELiS, auxiliando na compreensão
das unidades mínimas e na estrutura gráfica dos sinais. Uma vez que, o
sistema representa graficamente os visemas, que são os parâmetros
formadores dos sinais.

Justifica-se a utilização da escrita para a análise dos dados uma


vez que a Libras e a Língua portuguesa são de modalidades diferentes,
esta oral-auditiva e aquela viso-espacial. É normal percebermos em
trabalhos o uso de glosas120 para a representação do léxico da Libras, no
entanto, estas são realizadas utilizando o alfabeto latino da língua
portuguesa.

Isto posto, percebemos que a utilização gráfica da língua


portuguesa para a representação do léxico da Libras – que é visual, não
reflete aspectos próprios da fonologia da língua alvo. Logo, elementos
importantes, inerentes a estrutura da língua não são percebidos, tal como
denota Silva (2015, p. 139) “o modelo de glosas reduz e simplifica uma
língua (corp)oral em relação ao detalhamento dos articuladores não
manuais (olhos, ombro, tronco, espaço, entre outros), que ocorrem
simultaneamente à produção dos sinais”. Organizamos, a seguir, um
exemplo para ilustrar os possíveis elementos não registrados pelas glosas,
vejamos:

120De acordo com Silva (2015, p. 62) “O sistema de glosas é um sistema, em que uma
palavra em inglês (no nosso caso em Português) é grafada em maiúsculo como
representação do sinal manual com sentido equivalente”.

803
Imagem 1: sinal ele/a, gritar e muito.

Fonte: Capovilla et al (2017, p. 1039, 1367 e 1754).

Como pode ser observado, a representação da sentença


utilizando a glosa não reflete os parâmetros constituintes do sinal em
Libras, já que os elementos gráficos do alfabeto latino representam os
sons, elementos estes ausentes nas línguas de sinais. Com a utilização da
ELiS, é possível não apenas representar os elementos constituintes do sinal,
mas também partículas inerentes às línguas de sinais, como a expressão
específica do sinal gritar em que se refere a
necessidade de a boca estar aberta durante a realização do sinal, ponto
este inexistente na representação pela glosa.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Após a seleção dos sinais a serem analisados, passamos para a


transcrição dos mesmos para o sistema ELiS, para assim alcançarmos
nosso objetivo, cotejar e averiguar os sinais que sofreram modificações
fonológicas e lexicais a partir do sistema de escrita ELiS. Assim como em
Capovilla et al (2017), a obra de Gama (1875) apresenta uma descrição

804
da forma do sinal, tendo este o objetivo de auxiliar os consulentes na
realização dos sinais. No entanto, em Gama (1875), nem todas os
verbetes possuem a descrição dos sinais, por este motivo, levamos em
consideração as imagens para suas escritas no sistema ELiS. Logo, serão
apresentados os sinais que sofreram modificações fonológicas e
posteriormente as lexicais.

Tabela 1: Sinais com mudanças fonológicas.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Como pode ser observado, apenas 6 dos 44 sinais analisados


apresentam modificações fonológicas. Estes sinais evidenciam pequenas
alterações em um de seus parâmetros ou mesmo a inclusão do M, como
pode ser observado na tabela a seguir:

Tabela 2: Sinal Comprido e Vermelho transcritos em ELiS.

Fonte: Elaborado pelo autor.

805
Percebe-se que o sinal “comprido” apresenta uma única
modificação, sendo esta no parâmetro CM, que em Gama (1875) a
mesma se apresenta com o polegar estendido lateralmente e demais
dedos estendidos e unidos pelas laterais , enquanto que em Capovilla
et al (2017) os dedos estão fechados, com exceção do indicador que
está estendido . O sinal “vermelho” possui o acréscimo do M
, ausente em Gama . A seguir serão apresentados os
sinais que salientaram mudanças lexicais.

Tabela 3: Sinais com mudanças lexicais.

Fonte: Elaborado pelo autor.

806
Encontramos o total de 45 sinais que manifestam mudança lexical,
ou seja, sinais que apresentam um novo lexema para um mesmo
referente ou objeto. A grande quantidade de sinais com mudança lexical
pode ser justificada pois, a Libras em 1875 estava se constituindo, com a
vinda de E. Huet da França para o Brasil a pedido de D. Pedro II, fundou
o Instituto Imperial de Surdos-Mudos em 1857, sendo hoje conhecido
como Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Doravante, a
Libras realizou empréstimos linguísticos da Língua de Sinais Francesa, de
modo a constituir seu léxico.

O corpus selecionado apresentou 3 sinais que permaneceram o


mesmo ao longo dos anos e que, portanto, foram registrados da mesma
forma nos dois dicionários analisados. Por isso, como pode ser observado
a seguir, quanto à escrita ELiS não houve quaisquer alterações.

Tabela 4: Sinais que não sofreram modificações.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Interessante observar que, na obra de Gama (1875) não foram


registradas variações, diferentemente do dicionário de Capovilla et al
(2017), que registra as variações de um mesmo sinal conforme o local
onde o mesmo foi coletado. O sinal curto, além de possuir a mesma
unidade lexical nas duas obras, Capovilla et al (2017)
salienta o local de utilização de cada unidade como

807
utilizado em São Paulo e Rio Grande do Sul e sua variação ,
utilizada em Mato Grosso do Sul, Paraná e Rio Grande do Sul.

As variações de uma mesma unidade linguística podem ser


percebidas em Capovilla et al (2017), como nos sinais: Ignorante

; Verde e , entre outros.


Dentre os sinais não selecionados para nossa análise, destacamos “surdo-
mudo”, que apesar de o mesmo não ter sofrido alterações, o termo
surdo-mudo não é mais utilizado, já que nem todo surdo é mudo,
perdendo assim a unidade justaposta “mudo”, na língua portuguesa. A
entrada surdo-mudo expressa o juízo de valor naquele momento em
relação aos surdos, indicando que estes por serem surdos eram rotulados
também como mudos.

Destacamos aqui a importância do registro do Léxico da Libras, seja


ele por imagens, ilustrações, fotos ou pela sua própria escrita, pois é a
partir de estudos diacrônicos que podemos perceber as diversas
modificações que a Língua sofre, sem estes registros estudos como este
se tornam inconcebíveis. Contudo, reforçamos o caráter natural da Libras,
realizando empréstimos internos e externos à própria língua, além de se
modificar, ou seja, se adaptar às necessidades dos sinalizantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de conclusão, o presente trabalho de cunho documental


ratifica a Libras como uma língua natural, passível de transformações em
nível fonológico e lexical. Apesar de um corpus restrito, foi possível
comprovar a realização de mudanças diacrônicas ocorridas na Libras,

808
assim como a variação de uma unidade linguística em nível sincrônico
de uma mesma lexia. Interessante observar que tais variações são
fenômenos previsíveis nas línguas naturais, pois, a língua se adapta às
necessidades dos utentes, e por representar a cultura, um mesmo
referente pode possuir um signo linguístico próprio em diferentes regiões.

Em relação aos dicionários, vale ressaltar a importância destas


obras para o registro da língua e da cultura, pois, como documento,
registra o léxico de uma determinada língua, possibilitando recorrer a
língua em momentos diferentes da história. Por ter um papel, mesmo que
secundário de normatizar a língua, salienta as normas gramaticais
vigentes em um momento exato da história. Além de exteriorizar o juízo
de valor socialmente vivenciado por uma comunidade, fato
apresentado na entrada “surdo-mudo” analisada em nosso trabalho.

Em relação à escrita, apontamos a existência de escritas próprias


para as línguas de sinais, em especial o sistema ELiS, no entanto, não são
reconhecidas por lei. A escrita objetiva registrar a língua em sua
modalidade gráfica e utiliza para tal, elementos internos à língua, sendo
estes os visemas. A ELiS realiza satisfatoriamente a representação gráfica
dos fones das línguas de sinais, possibilitando assim, a reprodução dos
sinais em sua modalidade escrita, de forma a considerar aspectos
inerentes a estrutura das línguas de sinais. por este motivo, a ELiS se provou,
mais uma vez, eficaz na representação e na análise fonológica e lexical
do léxico da Libras.

Contudo, esperamos contribuir significativamente para os estudos


da linguística histórica e variacionista, tal como ratificar a importância da
criação de dicionários da referida língua, possibilitando assim, o registro
e estudos históricos da variação lexical da Libras.

809
REFERÊNCIAS

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810
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812
O ESPELHO ALEGÓRICO NO SERMÃO DO DEMÔNIO MUDO DO
PADRE ANTÔNIO VIEIRA

Helen Suzandrey Maia Sousa121

RESUMO: O presente artigo visa observar a construção alegórica do Espelho em o


Sermão do demônio Mundo do Padre António Vieira. Para isso, discorreremos acerca
do contexto da recepção para entendermos as escolhas do orador e as reformulações
alegóricas que Walter Benjamim desenvolveu para distingui-las dos símbolos. E como
essas imagens significativas fortalecem a linguagem tanto na dialética do clérigo
quanto na persuasão feminina. É compreensível, nos dias de hoje, condenar a postura
de Vieira ao atribuir em seu discurso uma culpabilidade exclusiva às monjas reclusas por
seus atos pouco ortodoxos no interior do claustro; mas, se olharmos o seu tempo, seu
discurso sintoniza-se com o pedido da rainha em relembrar os compromissos das internas
sob presteza do sermão desse eloquente orador, e as possibilidades de diálogo com a
parte do problema que não lhe condenaria à inquisição por insubordinação e
deslealdade. Diante disso, recorremos aos seus textos como evidencia de modificação
de comportamento de uma sociedade.

Palavras-chave: Antônio Vieira; Discurso; alegoria; Símbolo; Dialética.

INTRODUÇÃO:

Se lido afastado de seu contexto original, o Sermão do Demônio


Mudo, de padre António Vieira, pode soar como rígido demais e até
levemente cruel com as mulheres; por vezes autoritário e cínico. No
entanto, ainda que o texto de Vieira sobreviva às transformações sociais
posteriores ao clérigo, uma compreensão mais apurada de sua obra
exige a contextualização social, temporal e religiosa do seu tempo. Não

121Doutoranda da Universidade de Coimbra do curso de Literatura de Língua


Portuguesa, mestre em Ciência das Religiões na Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Especialista em Estudos linguísticos e análise literária pela Universidade do Estado do
Pará (UEPA).

813
se detendo a essa necessidade, cai-se em um risco verdadeiro de
interpretações anacrônicas quase criminosas com a memória e o legado
Vieirianos. Dessa forma, observemos em que situação, para que público
e em que condições históricas essas pessoas se encontravam.

O Sermão do Demônio Mudo foi proferido em 1651, no convento


de Odivelas às religiosas beneditinas. O convento, fundado em 1295, por
D. Dinis, passaria, alguns séculos depois da morte do rei, a ser
denominado Mosteiro de São Dinis122. O local escolhido pelo soberano
para edificar o mosteiro sempre fora rico em nascentes de água, o que
facilitava o plantio de frutas e legumes, e poderia oferecer uma vida
tranquila para as jovens beneditinas da Ordem de Cister viverem na
clausura e se dedicarem às suas obrigações como Esposas.

No transcorrer da história, esse mosteiro seria cenário para


relevantes acontecimentos no campo cultural e político da corte. O Auto
de Cananeia, peça escrita por Gil Vicente, por encomenda da
abadessa Violante Cabral123, foi representado nesse local em 1534; onde
também foi residência de Madre Paula e da Abadessa de Milão cujas
histórias entrelaçam-se diretamente com a vida privada de alguns
monarcas.

O acontecimento histórico do Convento que nos interessa aqui é


justamente o sermão que António Vieira, recém regressado a Portugal
(1651) e instalado em Coimbra, a pedido de D Luísa de Gusmão, proferiu
às religiosas do mosteiro. Vieira, que era confessor da “regente 124 ”,
gozava de certos privilégios da rainha, pois essa lhe tinha muita

122 Onde se localiza o túmulo do rei Dinis, desde sua morte em 1325.
123 Violante Cabral era irmã do navegador Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil.
124 Isabel de Gusmão, Rainha consorte de Portugal entre 1640 e 1656, nomeada regente

por testamento até a maioridade do filho, D. Afonso VI.

814
admiração. Ela, tementes as insinuações a respeito do comportamento
pouco clerical das internas do convento, sugeriu ao padre que, com seu
poder de persuasão ímpar, proferisse esse Sermão às internas. Ou seja,
estamos diante de um texto redigido para atender a uma necessidade
bastante específica do reino, naquele momento.

Mais tarde, a rainha foi deposta e o filho D Afonso VI assume o trono.


Vieira não tem com o novo rei o prestígio que dispensava sua
antecessora. E com isso passa a ser perseguido pela Inquisição sob a
acusação de heresia por seus manuscritos sebastianistas e a sua teoria
do Quinto império exposta publicamente em uma missiva destinada ao
bispo do Japão 125 . Vieira foi condenado em 1667 e perdoado, por
intervenção Papal, em 1668.

Sobre o rei do Afonso VI, é mister lembrar de suas investidas no


convento das cistercienses em busca da libertinagem que tanto temia
sua mãe e contra qual pregara Vieira, anos antes. Em 1675, quando
retorna a Portugal, é recebido com desdém pelo então Regente, D Pedro
II, que será rei anos depois e pai de João V - esse último, assumirá uma
amante dentro do Convento que será tratada com pompas reais. Ou
seja, trata-se de um mosteiro, por receber mulheres muito jovens e as tê-
la sobre a tutela real e da igreja, marcado por escândalos sexuais,
disputas de poder e recorrentes intervenções da inquisição para conter,
em diversos momentos, egos inflamados de suas lideranças.

Vieira não viveu o tempo de D João V e não conviveu com um dos


maiores escândalos do convento - o caso do rei com a madre Paula com

125“Esperanças de Portugal, missiva escrita por Padre Antônio Vieira ao recém eleito
Bispo do Japão, André Fernandes, onde apresentara as teses que seriam perseguidas
pela Inquisição. (HANSEN, 2003, p. 268)

815
quem teve três filhos 126 - e as mulatas de Salemas 127 , acusadas de
atentarem contra a vida do rei. Também não viveu para saber da
participação de Bartolomeu de Gusmão e suas investidas sexuais no
convento. Nem soube do caso que inspiraria Camilo Castelo Branco a
escrever A caveira de Mártir128, quando vinte freiras foram condenadas
por viver situações amorosas dentro do convento129. Também não viria a
saber sobre os “outeiros” por vezes bastante pervertidos que os poetas
do século XIX organizavam no pátio do convento, com a participação
das freiras. Mas os fatos dos quais Vieira fora contemporâneo são as visitas
constantes que o Dom Afonso VI fazia ao mosteiro de Odivelas.

Não fora ele o primeiro rei a fazer isso, mas até o momento havia
sido o mais explícito. D Afonso VI mantinha algumas amantes no
convento, D. Ana de Moura, a quem D. Afonso VI prometera fazer rainha,
ficando apenas a promessa, afirmando-se o mosteiro uma vez mais como
um ninho de alcova. Nessa mesma época, havia no mosteiro a abadessa
D Feliciana de Milão (1642-1705). Uma das poucas a entrar para a
clausura por vocação, se opunha fortemente contra os hábitos de suas
iguais, condenando, inclusive, o romance de D Afonso VI com D Ana
Moura conforme trecho da carta enviada por ela ao monarca relatando
seu posicionamento sobre o caso. Carta que fora publicada pelas

126 Meninos de Palhavã foram denominados os filhos bastardos (rapazes) de D. João V


(D. António, D. Gaspar e D. José) devidamente reconhecidos por este em documento
que fixou em 1742, mas apenas publicado depois da sua morte.
127 Uma tentativa desesperada de reduzir as influências que Madre Paula tinha sobre o

rei. Bartolomeu de Gusmão e outras internas encomendaram o feitiço às já conhecidas


bruxas de Setúbal. No entanto, segundo historiador Julio Dantas, ao que consta os
feitiços fortaleceram ainda mais as relações entre o rei e a madre, que perdurara até a
morte do monarca. (DANTAS; 1916, p. 121)
128 A caveira de Mártir, 1876.
129 Na biblioteca Nacional conservam-se manuscritos nos quais existe uma lista de 20

freiras que durante o reinado de D. João V foram condenadas por “delitos amorosos”.
Esta mesma lista serviu de inspiração a Camilo Castelo Branco para escrever o romance
“A Caveira da Mártir”.

816
historiadoras Maria Paula Lourenço, Ana Cristina Pereira e Joana Troni
(2008), em obra que acompanha a vida conjugal e extraconjugal das
quatro dinastias portuguesas:

Me Monarca, vosso amor, e vosso emleyo amorozotanto tem de


primorosoquanto de Rey, e Senhor; mas inda assi cauza dor,e
naõ com pouca razaõ,uer que esta uossa affeiçaõmotivo tem
que a desdoura, poes adoraes huã Mourasendo uos hum Rey
chistaõ. Freira podereis achardiscreta que possa terfee para uos
merecer discriçaõ para agradar; isto naõ he enuejaressa mais
que ditosa Anna; que ainda que Soberanatam endiozada está,
Anna felice será, mas nunca Feliciana ( LOURENÇO, 2008, p. 62).

A seriedade e devoção de D. Feliciana de Milão seriam


relembrada em diversas crônicas e poemas da posteridade, mas a fama
do convento já estava consolidada. Enfim, trata-se de um convento que,
mesmo com as fortes investidas de ordens inquisidoras na tentativa de
conter a libertinagem e garantir a sacra castidade como ordena as
escrituras religiosas, a Igreja não obtém muito sucesso e, com o passar do
tempo, as resistências às liturgias e as atitudes nada ortodoxas das
internas poderia culminar em atos de insurgência.

Diante da realidade em que se encontra o convento, quando D.


Luísa de Gusmão pede a Vieira que escreva e faça o seu sermão para
as freiras, o Padre buscará apontar as atitudes condenáveis da “traição”
ao casamento divino, mas terá como objetivo principal, a construção de
uma alegoria da vaidade como elemento fundamental para justificar os
desvios de conduta das servas do Senhor. A fortificação da imagem
alegórica para o convencimento das ouvintes será a preocupação
central do orador na construção do seu discurso e é nessa busca pelo
fortalecimento da imagem que vamos continuar observando o texto.

817
2 PRESTEZA NA ADAPTAÇÃO DISCURSA

Conhecedor das técnicas de persuasão e convencimento como o


discurso de autoridade, quando recorrentemente, cita trechos bíblicos
para sustentar suas afirmações, as comparações e metonímias que
atribuem ao seu sermão o caráter generalizador, e as analogias que
retomam, mesmo que descontextualizadas, passagens históricas como
forma de exemplificar suas afirmações, é na alegoria que a fala de Vieira
mais se fortalece. Essas alegorias auxiliam, inclusive, na confecção de um
texto que enlace elementos filosóficos complexos à imagens facilmente
assimiladas pelos ouvintes.

A princípio a construção alegórica dialoga com os preceitos e


figurações de fundamentação cristã, quase sempre retirados das
sagradas escrituras. Apelando aos ouvidos sensíveis e temerosos das
narrativas do velho testamento, ou simulando comparações entre textos
que legitimam caráter reflexivo e não meramente reprodutor dos
ensinamentos divinos. No início, o demônio, já representado em outros
momentos como uma figura sobrenatural e assustadora, agora, sobre a
forma de um Leão surge como elemento nocivo ao homem e
incontestavelmente perigoso. O demônio, vosso inimigo, como Leão
bramindo, cerca e anda buscando a quem tragar (VIEIRA, edição 2016:
2). Na introdução de seu Sermão, quando ainda organiza as premissas
de seu discurso, outra comparação é atribuída ao demônio, e agora de
maneira direta sugere o ambiente da clausura. Pois, de maneira
aparente, as reclusas do Mosteiro Dom Dinis eram popularmente
conhecidas por suas devoções e inúmeras manifestações em defesa dos
interesses da Inquisição. A alusão a um demônio que poderia atingir,

818
sumariamente, às defesas das cistercienses, só poderia ser construída a
partir de uma imagem que, soturnamente, usurpasse da expiação e
sentinela; portanto, um demônio que não bramisse. Um demônio mudo,
pois abaixo do mesmo silêncio em que se esconde o perigo, descansa e
adormece o cuidado (VIEIRA, edição 2016: 2). Observa-se, como bem
pontuou João Reis ao analisar como a receção dessa expressividade se
dá, que o elemento alegórico, revelado no início do discurso, com sua
conhecida forma aparente e pouco dotado, por sua configuração
epistémica, de elementos de surpresa, passa a ser substituído por um
outro demônio, cuja principal arma é a discrição. Se o Leão,
alegoricamente, preenche muito bem a imagem do primeiro demônio,
qual elemento Vieira usará para alertar suas ouvintes de uma ameaça
maior: O espelho. Vieira consegue, ainda no início de seu sermão, utilizar
dois elementos alegóricos que atendem à significantes íntimos da
recepção e poderá, através desta orientação discursiva, conduzir seu
raciocínio e seu convencimento para além do texto. Técnica essa
característica dos autores que viveram durante a Contrarreforma.

Forma hegemônica no período colonial até o fim do século XVII


e mesmo além, essa cultura ibérica barroca da Contra Reforma
era capaz de soldar num mesmo todo o alto e o baixo, as elites
e a grossa massa do povo, tendo por mediação fundamental
esta forma por excelência sensível, sensual, essencialmente
estética, de transmissão de um ethos e de uma visão de mundo
representada pela alegoria (REIS,1991, p. 19).

Quando Walter Benjamin discute o modelo alegórico proposto


pelos românticos que sustentam seus ideais de beleza e contrastes
baseados nos modelos barrocos, o crítico sugere que faltaram aos
românticos uma leitura mais dialética com a literatura barroca. Nesse
ínterim, o filósofo alemão redefine o conceito de alegoria e, baseado nas

819
reflexões de Friedrich Creuzer130, sugere uma distinção entre alegoria e
símbolo fundamentado no caráter efêmero de cada um deles. A leitura
que Benjamin faz de Creuzer a respeito, propõe que:

O símbolo religioso exagera na sua tentativa de exprimir o


indizível, o inefável, e, através da busca de expressão, acabará
por destruir, com a força infinita de sua essência, a forma terrena,
o recetáculo demasiado frágil. Para Creuzer, a força da
essência divina seria tamanha que o homem não seria capaz de
suportar a sua visão. Assim, a tentativa de dizer o indizível por
meio da representação no símbolo teológico, que visa a
verossimilhança, produziria exageros e excessos na própria
representação, algo que, por sua vez, obnubilaria a visão clara
da beleza no objeto, restando apenas um espanto mudo
(BENJAMIN, 2011, p. 23).

Já no símbolo artístico (alegórico), segundo Benjamin, a essência


não aspira ao excesso, mas, obedecendo à natureza, ajusta-se à sua
forma, penetra-a e anima-a. Dissipa-se, assim, aquele antagonismo entre
o infinito e o finito, na medida em que o primeiro, autolimitando-se, se
humaniza. (BENJAMIN, 2011: 45). E aqui a imagem do Espelho de Vieira se
fortalece mais que qualquer imagem de demônio que pudesse ser
construída. O inimigo está intrínseco nas atitudes das monjas, nas suas
hipervalorizações de si mesmas, no egocentrismo e, por definição mais
ampla, na vaidade. Esse, o verdadeiro demônio mudo, assume a forma
do objeto, aparentemente inofensivo, mas extremamente revelador de
suas potencialidades como se pode ver no trecho do sermão em que
Vieira conta sobre o relato de um religioso a vossa Santidade após uma
missão de visitar conventos, observar o hábito das freiras, e lhes retirar
tudo o que pudesse desviá-las do compromisso com seu Esposo. Fez o
religioso um esticado elogio ao comportamento das virgens que não

130 Deutsche Barockdichtung (Leipzig, 1924).

820
resistiram a retirada de seus pertences das celas, com exceção de um,
conforme relatou o homem: A primeira a que fiquei persuadido, com boa
vênia de tão venerável comunidade, é que nos conventos e celas das
religiosas o espelho é o diabo mudo (VIEIRA, edição 2016:3).

O espelho não é um simples símbolo de autoveneração, mas sim,


conforme se pode entender no discurso de Vieira, um forte incentivo para
se desviar dos objetivos e dos compromissos com a Fé, posto que, uma
visão incessante de si mesmo pode, e inevitavelmente, induzir a
observadora a se interessar mais pelo imagético reflexo. No entanto, o
orador, de maneira bastante ponderada, atribuí ao demônio mudo não
a culpa pela autovalorização, e sim às atitudes que possam colocar a
missão e o Matrimônio celestial em segundo plano.

Diz S. Paulo que o demônio algumas vezes se transfigurou em


anjo de luz: Ipse enim Satanas transfigurat se in angelum lucis
(2Cor. 11,14)- E estas são as transfigurações que cada dia faz o
diabo mudo. Vê-se talvez qo espelaho uma figura só por sua
antiguidade venerável; e quando aos que a vêem de fora lhes
parecer aquela cara menos feia que um demônio, ela, depois
que se viu, sai tão transfigurada, que na confiança e estimação
da própria beleza, só lhe faltam as asas para cuidar que é anjo.
(VIEIRA, edição 2016, p. 6)

Victor Aguiar e Silva, retomando a análise de Benjamim em


conferência sobre o tema, afirma que para o filósofo alemão a alegorese
é a lei estilística dominante, em particular do apogeu do Barroco, e que
seria a técnica da alegoria, e não a arte do símbolo, a característica
própria da representação e do estilo do Barroco (SILVA, 2010, p. 114).
Dadas as naturais contradições do homem e as fortes dubiedades
características do Barroco, conclui o pensador alemão que a essência
do alegórico se solidifica e ascende em seu caráter humano (BENJAMIN,

821
2011:71). O demônio mudo habita a vaidade alimentada pelo apreço

exacerbado de si mesmo. Um exercício temerário que resultará,


inevitavelmente, num desvio de conduta ou, tal como fez Lúcifer, numa
insustentável insubordinação. E, na visão de Vieira, aqui ilustrada como
sítio de interesse do demônio pelo emprego da devoção, não existe
terreno mais fértil para a disseminação dessa vaidade insustentável, que
um convento de reclusão, castração dos impulsos sexuais e rígidas
ordenações. Percebe-se, na elevação do espelho à alegoria do mal a
necessidade de uma retórica bem construída, fundamentada e
comparativa; pois está em jogo a ressignificação de um objeto
aparentemente inofensivo em uma perigosa armadilha do nome.

A alegoria aqui é uma necessidade para que se concretize uma


consciência transformadora e resguarde as internas da ameaça que já
se manifestara em outros momentos em outros sítios de devoção, mas
principalmente neste mosteiro de Odivelas. O texto de Vieira não almeja
uma mera advertência, pois para isso seu discurso poderia se constituir
num símbolo, há aqui a intenção de transcender ao tempo de sua
narrativa e ao contexto em que se aplica. A lógica de renovação
efémera que o autor sugere em cada trecho do sermão, necessita de
imagens que acompanhem essa inovação e transcendam aos limites
espaço-temporais de sua produção. E esse caráter imagético que
propõe a ideias no fluir do tempo, na sucessão histórica, por conseguinte
no domínio do contingente, da transiência e da morte (SILVA, 2010: 114)
um dos objetivos da literatura em Vieira; pois, como na leitura que
Benjamin faz de Creuzer, ao somente o símbolo artístico (o alegórico)
detém essa gênese renovadora.

822
3 A FORMOSURA E A PERSUASÃO

Ao elevar o espelho à alegoria, Vieira elabora suas características


à partir do mutável espírito humano em seus desejos e desmandos,
expostos na superfície do reflexo que aqui se dá em um espelho, mas que
é possível ser visto em outros lugares como nas margens de um rio, ou nos
chamados “espelhos da natureza”. Portanto esses reflexos não estão no
objeto, mas nos olhos e aqui Vieira fará a sua principal observação:

Que as filhas de S. Bernardo os não deixem, mas que os troquem,


e que esta troca se faça vendo-se daqui por diante ao espelho
não mudo, senão eloquente; não lisonjeiro, senão verdadeiro;
não do mundo, senão do céu, qual é o que o mesmo santo
patriarca compôs, para que todos os seus monges e monjas se
visse e compusessem a ele. (VIEIRA, edição 2016, p. 8).

A mutabilidade inevitável que reconhece o orador não deve ser


impelida, até porque vai contra a natureza do ser humano, mas sim
condicionada a determinados objetivos e valores que não permitam que
essas transformações se encadeiem para o autoextermínio. Ou seja, a
efemeridade é natural, mas deve-se ater para uma transformação
dialética, crítica e elevada, nos moldes do pensamento filosófico-
religioso que sustentam os discursos de Vieira:

Aristotélico-tomista não pode deixar de ter sido a formação


filosófica de António Vieira, que de qualquer modo não foi muito
extensa nem profunda. E já não era entre os jesuítas tão rigorosa
como antes fora. De Aristóteles podemos pressupor em Vieira
influências da lógica, fontes da retórica, da poética, da ética,
da política, da física, da psicologia e certamente poucas da
metafísica. De São Tomás de Aquino, as influências principais
terão sido, com grande probabilidade, as defluentes da Summa
Theologiae. ( PATRÍCIO, 2011, p. 143)

823
O reconhecimento dessa mutabilidade e a necessidade de um
ação crítica diante dela supera os limites do convento, do tempo, de
Portugal e fazem do discurso de Vieira um objeto literário e filosófico, não
apenas por retomar fundamentos da retórica e da dialética aristotélica,
mas principalmente por se apresentar como uma reflexão emergencial
à humanidade diante dos demônios-mudos que se apresentam de
tempos em tempos.

Vimos que a alegoria, na reformulação de Benjamim, se difere do


símbolo sobretudo por sua ausência de excessos que, em abundância
nos símbolos, imputam uma significação mais anímica, mais intensa e,
consequentemente, mais passageira. A alegoria suscita a reflexão
permanente, ao questionamento ressignificador. E um dos principais
elementos que promoveram o saber dialético está na linguagem. O
diálogo com Deus deve ser objetivo, grave, sobretudo para aqueles que
servem a Ele, ainda mais se estiverem em terreno divino:

(...) os conventos são as cortes e palácios de Deus, e uma das


coisas em que se hão de distinguir dos palácios do mundo é a
linguagem. Antes pareça do monte que da corte: Rusticanus
pontius, quam urbanus” (VIEIRA, edição 2016, p.11).

O que Vieira condena aqui é a vaidade da linguagem trabalhada,


quase sempre em busca de aprovação do outro ou de sinal de
autovalorização; mas ao reforçar que essa vigília deve ser uma
obrigação dos servos e principalmente das servas, precisamos retomar o
contexto do discurso. Às servas, Esposas de Cristo, uma linguagem mais
rebuscada, constituída de longos períodos, orações coordenadas,
reflexivas, subordinações eloquentes, adversativas…podem significar
mais do que um mero exercício estilístico. Podem suscitar o

824
questionamento à submissão. E por que isso preocupa nas mulheres mais
do que nos homens? Para responder a essa questão, que não foi posta
pelas ouvintes, mas prevista pelo próprio Vieira, o mesmo resgatará o que
aconteceu com Eva que, se tivesse espelho no Paraíso, teria se rendido,
nas palavras do Padre, com muito mais afinco do que se rendeu a uma
serpente que fala. Pois, diante do espelho mudo refletindo sua formosura
natural, a Eva falaria a vaidade e a autocontemplação permitira em si o
abandono dos ditames de Deus, ou, no primeiro momento o seu
questionamento.

E porque essa experiência não se deu com Eva, porque ainda


não havia espelhos, bem se viu, depois que os houve, o apetite
que herdaram da mesma Eva as suas filhas. E por isso há tantas
no mundo – e fora do mundo- que gastam horas e perdem os
dias inteiros em se estar vendo, revendo e contemplando no
espelho, como se não tiveram nem esperaram outra glória.
(VIEIRA, edição 2016, p. 9).

A “formosura” natural das mulheres pode ser o veneno da serpente


no ego das filhas de Eva, quando contemplada em demasia. Contudo,
a vigília mais rígida às mulheres que propõe o discurso está também na
principal arma utilizada pelo demônio, após “envenenar” as Esposas de
Cristo, no combate aos planos de Deus: A persuasão. Tal como no
“pecado original”, em que o convencimento de Adão se dá através do
diálogo de Eva que semeia a dúvida e o questionamento por meio da
linguagem. Voltando ao contexto de Vieira e aos inúmeros atos de
libidinagem atribuídos ao convento em questão no passado e prevendo
os que viriam no futuro, vale-se compreender a respeito da postura do
Padre que pôs-se a fazer ouvir a uma plateia que, por reverência ou
temor a sua autoridade, poderia receber tal intervenções de maneira
relativamente natural, sem garantias de aplicação; mas o outro lado

825
envolvido, não permitiria ao padre tal manifestação, visto que seus
integrantes eram na maioria membros da corte, barões, donos de terra
e, não raro, monarcas.

É compreensível, nos dias de hoje, condenar a postura de Vieira ao


atribuir em seu discurso uma culpabilidade exclusiva às monjas reclusas
por seus atos pouco ortodoxos no interior do claustro; mas, se olharmos o
seu tempo, seu discurso sintoniza-se com o pedido da rainha em
relembrar os compromissos das internas sob presteza do sermão desse
eloquente orador, e as possibilidades de diálogo com a parte do
problema que não lhe condenaria à inquisição por insubordinação e
deslealdade.

Sabe-se que muitas das relações entre homens e as internas não se


estabeleciam de forma consensual, e que algumas madres aliciavam
internas com vista para interesses pessoais. Essas, de acordo com as
liturgias, não poderiam se salvar. Mas, cabe ao padre, tentar convencer
àquelas que viam nessas relações a possibilidade de obter mais regalias
e mais poder, sem necessariamente abandonar o convento, como no
exemplo de Madre Paula que mesmo após a morte de D. João V, e o fim
de seu relacionamento, enclausurou-se e manteve-se devota aos
desígnios de sua fé, mas sem abandonar aos faustos aposentos que o rei
lhe havia construído.

As discussões (análises) geradas a partir dos resultados deverão ser


criativas, inovadoras e éticas, de maneira a corroborar com as instruções
de pesquisa científicas do país. Levando em consideração a referência
a autores e teorias, bem como referenciando os resultados encontrados.

826
REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Trad. João Barrento.


Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

DANTAS, Júlio. O amor em Portugal no século XVIII. Lello & irmão. Porto,
1916. Disponível em
https://archive.org/details/oamoremportugaln00dant/page/n8/mode/2up
Obra integral. Acesso em 01/02/2020.

FIGUEIREDO, B. O Mosteiro de Odivelas: os casos de reis e memórias de


freiras. Lisboa: Livraria Ferreira, 1889.

HANSEN, J.A. Para ler as cartas de Padre Antonio Vieira. In Antônio Vieira.
Cartas do Brasil. 1ª edição. São Paulo: Hedra, 2003.

LOURENÇO, Maria Paula Marçal; PEREIRA, Ana Cristina; TRONI,


Joana. Amantes dos Reis de Portugal. Esfera dos Livros. Lisboa, 2008.

PATRÍCIO. Manuel Ferreira. Coordenadas Filosóficas do Pensamento do


Padre António Vieira in Padre António Vieira. O Tempo e os seus
Hemisférios. Colibri. Lisboa, 2011.

PIMENTEL, Alberto. As Amantes de D. João V. Bonecos Rebeldes. Porto,


2009.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Barroco. São Paulo, Cia das Letras, 1991.

SILVA, Vítor Manuel Aguiar e. A poética da alegoria e o Barroco. In D.


Francisco Manuel de Melo e o Barroco Peninsular. Imprensa da UC.
Coimbra. 2010.

SPINELLI, Miguel. Filósofos Pré-socráticos. Primeiros Mestres da Filosofia e


da Ciência Grega. 2ª edição. Edipucrs. Porto Alegre, 2003.

827
VIEIRA. Pe António. Obras Completas. Volume XV - Sermões 1ªedição.
Edições Loyola. São Paulo, 2016.

828
FAKE NEWS: UMA BREVE ANÁLISE DO FENÔMENO COMO
GÊNERO DO DISCURSO

Juliene Kely Zanardi131

RESUMO: No final do ano de 2016, dois eventos políticos tiveram grande repercussão no
cenário mundial: as eleições norte-americanas que culminaram na vitória de Donald
Trump e o processo de saída do Reino Unido da União Europeia, conhecido como Brexit.
Em ambos os casos, a possível influência da circulação de notícias falsas no resultado
das votações provocou amplo debate e controvérsias entre a opinião pública. A partir
disso, o termo fake news se consolidou e se popularizou como uma forma de referir a
difusão de conteúdo inverídico. Pesquisadores como o historiador Robert Darnton (2017)
têm argumentado, entretanto, que a divulgação de notícias falsas não seria uma
novidade na história da humanidade, havendo registros de sua existência desde o
século VI, pelo menos. Nessa perspectiva, o termo fake news configuraria apenas um
novo rótulo para uma prática antiga. Indo de encontro a essa premissa, o presente
trabalho se propõe a discutir o conceito de fake news, sinalizando as peculiaridades
que caracterizam os textos que circulam sob tal denominação como um gênero do
discurso contemporâneo, atrelado ao atual cenário sociopolítico e ao advento das
redes sociais. Para isso, tomaremos como base a teoria dos gêneros do discurso
desenvolvida pelo filósofo Mikail Bakhtin (2011) assim como trabalhos de pesquisadores
que se dedicam à análise do fenômeno das fake news, como Claire Wardle (2017),
Lucia Santaella (2018) e Nick Anstead (2021).

Palavras-chave: Fake news, Gêneros do discurso, Redes sociais.

INTRODUÇÃO

O presente artigo se insere em uma pesquisa de doutorado


desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade
de Estado do Rio de Janeiro (UERJ) acerca do fenômeno das fake news.
O objetivo principal da pesquisa consiste em realizar um levantamento
dos aspectos sociocomunicativos que caracterizam as fake news como

Doutoranda em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de


131

Janeiro – RJ, julienezanardi@gmail.com

829
um gênero do discurso para, a partir dessa caracterização, propor
práticas de leitura nas aulas de língua materna que auxiliem os alunos
não apenas a identificá-las mais facilmente, mas também a lidar
criticamente com a questão.

Considerando tal objetivo, a primeira etapa da pesquisa se volta


para a busca de uma definição do que se tem chamado de fake news.
Como esclarece a pesquisadora Claire Wardle (2017), não se trata de
uma tarefa simples, uma vez que o termo recobre um amplo ecossistema
de informações – que vai além do que conhecemos como “news”
(notícias) –, além de uma variedade de contextos de criação e de
divulgação de conteúdos que podem ser total ou parcialmente falsos.
Diante da complexidade da questão, a autora, inclusive, tem preferido
se referir ao fenômeno por meio das palavras “disinformation”, criação e
compartilhamento deliberado de informações sabidamente falsas, e
“misinformation”, a divulgação inadvertida de conteúdo falso.

Por sua vez, o professor e jornalista Eugênio Bucci (2019, p. 39)


sinaliza o uso amplo e irrestrito a que o termo tem sido submetido, sendo
associado a qualquer tipo de mentira veiculada. Assim, boatos em redes
sociais, propagandas de ambulantes, decisões de árbitros de futebol,
aquilo com o que não se concorda e até mesmo notícias divulgadas pela
grande mídia têm sido, indistintamente, chamadas de fake news.

Por fim, outra questão importante diz respeito à origem das fake
news como fenômeno discursivo. Acadêmicos como o historiador Robert
Darnton (2017), por exemplo, têm demonstrado em suas pesquisas que a
divulgação de notícias falsas não configura uma novidade na história da
humanidade. Segundo o autor, desde o século VI, pelo menos, há
registros da prática, como no texto intitulado “Anekdota”, no qual o

830
historiador bizantino Procópio teria propagado informações de caráter
duvidoso (“fake news”, nas palavras de Darnton) para arruinar a
reputação do imperador Justiniano.

A partir de tais considerações, se reconhecem duas questões


fundamentais para a definição do termo. Primeiramente, seriam as fake
news apenas uma nova nomenclatura para uma prática que perdura ao
longo da existência da humanidade ou o termo recobriria um fenômeno
específico da contemporaneidade? Em segundo lugar, o termo fake
news poderia ser empregado para referir à difusão de qualquer tipo de
conteúdo falso ou há particularidades que o caracterizam como um
gênero específico?

Com base na teoria dos gêneros do discurso formulada pelo


filósofo russo Mikail Bakhtin (2011) e em estudos de especialistas da área
do jornalismo e dos estudos linguísticos, como Claire Wardle (2017), Lucia
Santaella (2018) e Nick Anstead (2021), discutimos tais questões, em
busca de uma definição para o termo fake news que o caracterize como
gênero do discurso.

1 METODOLOGIA

Para traçar uma definição do termo fake news, a presente etapa


da pesquisa se baseia no levantamento bibliográfico de estudos e
pesquisas de especialistas da área do jornalismo e dos estudos linguísticos
que já se debruçaram sobre o tema. Além disso, tendo em vista a
caracterização das fake news como gênero do discurso, mostra-se
essencial analisar os dados de tais materiais tomando como base a teoria
dos gêneros desenvolvida por Mikail Bakhtin (2011).

831
Dando prosseguimento, a fim de demonstrar como os aspectos
sociocomunicativos que caracterizam as fake news como gênero do
discurso se manifestam na materialidade dos textos, outra etapa da
pesquisa se volta para a análise de fake news que circularam em redes
sociais durante o período da pandemia do novo coronavírus. O corpus
utilizado na pesquisa tem como fonte o trabalho de plataformas de fact-
checking como a Agência Lupa e o Projeto Comprova. Dados os limites
espaciais deste artigo, limitamo-nos aqui à análise de apenas uma das
fake news que compõem o corpus da pesquisa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A fim de caracterizar as fake news como um gênero do discurso,


faz-se necessária uma breve apresentação da teoria desenvolvida por
Mikail Bakhtin (2011). De acordo o filósofo (BAKHTIN, 2011, p. 261), a
utilização da língua se processa na forma de “enunciados (orais e
escritos), concretos e únicos”, que se relacionam com as diferentes
esferas da atividade humana (jornalística, publicitária, jurídica, literária
etc.), refletindo as condições específicas e as finalidades de cada uma
delas. Embora todo enunciado seja único e individual, cada uma dessas
esferas da comunicação humana elabora seus “tipos relativamente
estáveis de enunciado”, denominados de “gêneros do discurso”
(BAKHTIN, 2011, p. 262).

Percebe-se, a partir de tal definição, que o conceito proposto por


Bakhtin não atribui aos gêneros um caráter estático ou normativo. Mais
do que por suas peculiaridades formais ou linguísticas, os gêneros se
definem por suas características sociocomunicativas, visto que é em

832
função delas que seus elementos constitutivos se configuram. Como as
possibilidades comunicativas humanas são inesgotáveis e mutáveis, a
riqueza e a diversidade dos gêneros também são infinitas: eles existem
em número ilimitado, pois surgem, modificam-se ou desaparecem,
adaptando-se às necessidades comunicativas humanas. Assim, de
acordo com a teoria bakhtiniana, o que verdadeiramente importa no
estudo dos gêneros não é a catalogação ou a descrição de cada um
deles, mas a compreensão do processo de emergência e estabilização
dos diferentes gêneros, sua estreita vinculação com as variadas esferas
da atividade humana.

Segundo Bakhtin (2011), os gêneros do discurso são constituídos a


partir de três elementos: conteúdo temático, estilo da linguagem e
construção composicional. Todos eles se encontram indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pelas
especificidades da esfera da comunicação a que se relacionam.
Vejamos, pois, mais detalhadamente cada um desses elementos.

O conteúdo temático não remete ao assunto específico de um


enunciado, mas sim a um domínio de sentido de que se ocupa
determinado gênero a partir da esfera comunicativa a que se relaciona.
Por sua vez, a construção composicional se refere ao modo como o
enunciado é organizado, estruturado. Por fim, o estilo se relaciona à
seleção dos meios linguísticos (lexicais, fraseológicos e gramaticais) que
o autor opera em função da imagem que faz de seu interlocutor em
determinada situação sociocomunicativa, bem como da expectativa
em relação à compreensão responsiva ativa deste. Cabe ressaltar que,
quando se refere ao estilo como elemento composicional dos gêneros,
Bakhtin não tem em mente a expressão da individualidade de cada

833
autor, mas as características linguísticas do gênero determinadas pelas
condições específicas da esfera da comunicação a que está atrelado.

Cumpre reiterar que a maleabilidade é uma característica inerente


dos gêneros. Assim, embora possamos estabelecer traços típicos de
determinado gênero a partir de seus elementos constitutivos, isso não
significa que todos os enunciados a ele pertencentes sigam um padrão
único de composição. Além disso, a análise individualizada de cada um
desses elementos no âmbito deste artigo se dá para fins didáticos, uma
vez que, como já dito, não é possível dissociá-los no todo do enunciado.

Feitas tais observações, na próxima seção, apresentamos uma


análise do gênero discursivo fake news, evidenciando aspectos
relevantes de seu processo de criação bem como características
composicionais que se manifestam na materialidade dos textos.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Antes de analisar as fake news como gênero, cabe situar a


que grupo de textos nos referimos ao empregar o termo. Nesse sentido, o
pesquisador Nick Anstead (2021) identifica três usos instituídos nos
discursos público e acadêmico. Primeiramente, a expressão fake news
teria surgido como referência a programas ou portais de humor, como
The Daily Show e The Onion, que fazem paródias de gêneros jornalísticos.
Em 2016, no contexto da eleição de Donald Trump e do Brexit
(movimento de saída do Reino Unido da União Europeia), o termo passa
a ganhar ampla visibilidade como forma de referir à fabricação e difusão
de narrativas falsas, as quais teriam influenciado diretamente o resultado

834
de tais eventos políticos. Por fim, Anstead identifica como fenômeno mais
recente seu uso como dispositivo retórico, utilizado principalmente por
políticos populistas para atacar a grande mídia e a oposição em geral,
caracterizando as críticas que lhes são feitas simplesmente como fake
news. É partir da segunda acepção observada por Anstead que
abordamos o termo no presente artigo.

Ao tratar das fake news como gênero do discurso, um dos primeiros


pontos que convém analisar é seu vínculo com determinada esfera
comunicativa. Para isso, tomamos como ponto de partida o próprio
termo utilizado para nomear o fenômeno. A expressão de língua inglesa
fake news (“notícias falsas”) denota uma clara familiaridade com
gêneros do âmbito jornalístico (especialmente a notícia), no entanto a
própria adjetivação empregada já sinaliza que se trata de uma relação
enganosa. A partir disso, como bem elucida Bucci (2018, p. 38), antes
mesmo de veicular uma mensagem com conteúdo falso, a fraude das
fake news advém de uma falsificação de seu contexto de produção.
Segundo o autor, as fake news se apresentam como se fossem produto
do trabalho de uma redação profissional, reproduzindo jargões e
formatos típicos da esfera jornalística sem a ela, de fato, pertencer. Assim,
na visão de Bucci (2018, p. 41), trata-se necessariamente de um
fenômeno pós-imprensa, visto que não apenas herda desta seus
formatos, como também tenta tomar-lhe emprestada a aparência de
credibilidade.

Entendendo o caráter maleável dos gêneros, cumpre, entretanto,


fazermos acréscimos às considerações de Bucci. De fato, boa parte das
fake news em circulação emulam elementos composicionais de gêneros
atrelados à esfera jornalística. Todavia, até por sua relação direta com o
uso das redes sociais, outros formatos usados na interação digital

835
também têm sido apropriados pelas fake news, como é o caso dos
memes e de postagens com teor de denúncia que normalmente
circulam na rede.

Assim, concordamos que o falseamento do contexto de produção


é um aspecto central no fenômeno das fake news, uma vez que elas se
fazem passar por enunciados legítimos de outros gêneros. Esse
procedimento, entretanto, não se limita a gêneros do âmbito jornalístico,
englobando também outros que se valem das redes sociais como
suporte de divulgação, o que evidencia o vínculo estreito das fake news
com práticas comunicativas realizadas no contexto digital.

Nesse sentido, cabe compreender as fake news como algo


atrelado a mudanças tecnológicas e sociais que afetaram a hegemonia
dos veículos oficiais de imprensa. Estudos como os de Pariser (2012) e
Santaella (2018) apontam para a gradativa perda de espaço e de
credibilidade da mídia tradicional, a partir do advento da internet e,
consequentemente, de novas formas de produção e acesso à
informação. As fake news surgem nesse contexto, se apresentando como
uma fonte alternativa de transmissão de dados e de conhecimento.
Como pontua Anstead (2021, s.p.), elas configuram um ataque ao
sistema de legitimação da verdade socialmente estabelecido.

Dessa forma, mais do que por se apropriar do modo de enunciar


dos gêneros jornalísticos, as fake news se mostram como um fenômeno
pós-imprensa, pois buscam ocupar uma lacuna gerada pela perda de
prestígio da mídia tradicional, adentrando uma função social outrora
exercida por esta de maneira hegemônica. Para isso, elas não só simulam
gêneros da própria esfera jornalística, mas também outros em circulação
nas redes sociais que possam se apresentar como uma fonte, ainda que

836
não-oficial, de acesso à informação.

Outro aspecto central no fenômeno das fake news se relaciona ao


seu propósito comunicativo. Embora aparentemente se apresentem
como uma fonte alternativa de acesso à informação por divulgar fatos
supostamente não cobertos ou abordados de forma tendenciosa pela
imprensa tradicional, não há qualquer compromisso entre as fake news e
a veracidade das informações fornecidas. Seu objetivo é atrair a
atenção do destinatário, ludibriando-o para obter algum tipo de proveito
ou satisfação.

Assim, ainda que se inclua no fenômeno das fake news a


divulgação não intencional de conteúdo falso (misinformation), a lista
elaborada por Wardle (2017) ajuda a compreender as razões por detrás
de sua criação. A pesquisadora identifica oito motivos relacionados à
produção de conteúdo total ou parcialmente falso, os oito “Ps”. São eles:
1) poor jornalism (jornalismo de má qualidade), 2) to parody (parodiar),
3) to provoke ou to punk (provocar ou debochar), 4) passion (afeto
exagerado), 5) partisanship (apoio incondicional a uma causa ou
crença), 6) profit (lucro), 7) political influence (influência política) e 8)
propaganda (difusão de determinada ideologia).

A partir da lista proposta por Wardle, evidenciam-se diferentes tipos


de ganho vinculados à criação de fake news. Além da possibilidade de
obter lucro financeiro, a divulgação de conteúdo falso também pode
atender a interesses pessoais, políticos ou ideológicos de certos indivíduos
ou grupos sociais. Por meio das fake news, pode-se, por exemplo,
comprometer a imagem de um desafeto, conquistar a adesão de outras
pessoas a uma causa, influenciar o voto do eleitorado etc.

Por fim, um último aspecto relevante acerca do contexto de

837
produção e circulação das fake news se refere ao seu meio de
divulgação. Embora a falsificação ou distorção de informações seja uma
prática antiga, a novidade das fake news advém da forma como estas
são “produzidas, disseminadas e interpretadas” (Santaella, 2018, s.p.). O
advento da internet e o surgimento das redes sociais propiciaram novas
formas de criar, publicar, compartilhar e consumir informação, as quais
não sofrem o mesmo tipo de regulação das mídias tradicionais. Assim,
valendo-se das plataformas digitais como suporte, qualquer usuário da
rede pode postar ou compartilhar informações falsas (ainda que
inadvertidamente). Além disso, o uso das novas tecnologias faz com que
sua difusão atinja volume, alcance e velocidade sem precedentes.

Soma-se a isso outro fenômeno também atrelado ao contexto


virtual conhecido como filter bubbles (“filtros-bolha”), termo utilizado por
Eli Pariser (2012) para referir à personalização de conteúdos propiciada
pelo uso de algoritmos em sites de busca ou de oferta de produtos e
serviços e em redes sociais, como Google, Amazon e Facebook. De
acordo com Pariser (2012, p. 77), entre os efeitos negativos do uso dos
filtros está a sua interferência na maneira como vemos o mundo, uma vez
que tendem a “limitar a variedade de coisas às quais somos expostos,
afetando assim o modo como pensamos e aprendemos”. É como se o
usuário estivesse preso em uma bolha invisível em que tudo que vê ou
consome é reflexo de si próprio, dificultando o acesso a informações ou
opiniões que divirjam de suas preferências e convicções.

Em um contexto em que redes sociais como o Facebook e o Twitter


têm se transformado cada vez mais numa fonte de acesso a notícias, a
personalização do conteúdo tem um impacto direto na difusão das fake
news. Como os filtros individualizam o que o usuário recebe de acordo
com suas preferências, este tende a visualizar apenas notícias que

838
confirmem suas opiniões e visões de mundo, ainda que seu conteúdo
possa ser duvidoso. O apelo aos afetos do receptor é justamente um dos
mecanismos cruciais para a propagação de desinformação.

Embora a atuação de bots (softwares que simulam a ação


humana para gerenciar contas em redes sociais de forma automatizada)
e de trolls (perfis falsos em redes sociais administrados por pessoas reais)
seja apontada como um elemento importante na difusão de fake news,
é em perfis reais que elas encontram seus maiores divulgadores. Estudos
como o desenvolvido pelo Massachusetts Institute of Technology, em
2018, (apud MARINONI e GALASSI, 2020, s.p.) têm demonstrado o papel
central do usuário comum para a propagação massiva de conteúdo
falso, ao apontar os humanos e não os robôs como os principais
disseminadores de fake news.

Assim, ainda que redes especializadas na criação e divulgação de


fake news se valham de perfis falsos e/ou automatizados para disparar
conteúdo falso, a ação do usuário comum é fundamental para que sua
viralização seja bem-sucedida. Tal fato interfere diretamente no modo
como as fake news são criadas, visto que devem mobilizar os afetos do
público de forma a garantir a sua adesão e engajamento para que a
divulgação se torne massiva e efetiva.

Feitas tais considerações sobre o contexto de produção e


circulação das fake news, passemos a uma análise de seus elementos
constitutivos. No que tange à construção composicional, tomando
emprestado um termo empregado por Bucci (2018, p. 38), as fake news
se constituem em função de seu “mimetismo comunicacional”. Como
tentam se passar por enunciados legítimos da esfera jornalístico-
midiática, elas se apropriam de características formais de gêneros a esta

839
vinculados, como a notícia, a reportagem, a postagem de denúncia, o
meme etc. Assim, as fake news, a exemplo de outros gêneros como a
crônica e a sátira, não possuem um formato fixo. Seus atributos
composicionais serão definidos em função do gênero que pretendem
simular.

Cabe ressaltar, entretanto, que, como costumam ser produzidas de


forma massiva e por pessoas não especializadas, há detalhes que podem
denunciar a falsificação. Erros constantes no uso da modalidade escrita,
uso excessivo de pontuação ou caixa alta e ausência de fonte das
informações fornecidas são marcas típicas da estrutura das fake news132
e podem servir como parâmetro para diferenciá-las de um texto
autêntico de outro gênero.

Ainda no que tange à composição, o grande aspecto definidor


das fake news é a presença de conteúdo falso ou enganoso capaz de
induzir o receptor ao erro. Nesse sentido, é importante frisar que nem
todas as fake news apresentam teor inteiramente fabricado. Na verdade,
como pondera Wardle (2017), o número de casos em que isso ocorre é
relativamente baixo. Segundo a autora, boa parte das fake news em
circulação apoia-se em conteúdos já existentes para criar uma
informação falsa ou tendenciosa133.

Em relação ao conteúdo temático, é também do jornalismo que


as fake news herdam seu material de referência. Como apontam Fante,

132 A esse respeito, vale conferir a “anatomia” das fakes news apresentada pelo grupo
de divulgação científica Vydia Academics em manual destinada ao combate de fake
news sobre a pandemia do novo coronavírus. O material está disponível na página do
Jornal da USP pelo link
<https://drive.google.com/file/d/1J1LSiyenP74KkFZ6CiSJs6GyxGMkne59/view>. Acesso
em 05/07/2020.
133 A esse respeito, vale conferir a tipologia das fake news estabelecida por Wardle

(2017).

840
Silva e Graça (2020), as fake news se valem dos mesmos pressupostos que
tornam determinado evento notícia para fabricar informação falsa. São
os chamados “valores-notícia”, elementos que servem como base para
avaliar a noticiabilidade de um fato. A partir dos estudos de Traquina
(apud FANTE, SILVA & GRAÇA, 2020, p. 80), os autores identificam dez
valores-notícia que servem de base para a composição de notícias e,
consequentemente, de fake news. São elas: 1) a morte; 2) a notoriedade
(visibilidade do ator principal de um acontecimento), 3) a proximidade
(geográfica ou cultural), 4) a relevância (acontecimentos socialmente
importantes), 5) a novidade (fato novo ou informação nova sobre notícia
velha), 6) o tempo (atualidade do assunto, que pode gerar nova notícia
ou propiciar a retomada de notícias antigas), 7) a notabilidade (número
de pessoas impactadas), 8) o inesperado (fato surpreendente ou que
rompe as expectativas), 9) o conflito ou a controvérsia (violência física ou
simbólica), 10) o escândalo.

Embora se valham dos mesmos temas que tornam um fato


noticiável, existe uma diferença de abordagem nas fake news. Seu
recorte procura abarcar dados que teriam sido supostamente omitidos
e/ou manipulados pela imprensa tradicional ou órgãos oficiais. Assim, é
bastante comum a presença de teorias conspiratórias, como, por
exemplo, a que dá conta de que as vacinas contra covid-19 podem
alterar o DNA dos seres humanos ou serão usadas para implantar
microchips na população134.

Por fim, quanto ao estilo, o apelo emocional se mostra um fator


determinante na seleção de recursos linguísticos empregados nas fake

Cf. <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2020/12/03/vacina-nao-altera-
134

dna-nem-tem-microchip-as-mentiras-sobre-imunizacao-contra-o-coronavirus.htm>.
Acesso em 23/12/2020.

841
news. A depender do formato utilizado, diversas estratégias podem ser
empregadas para captar a atenção e mobilizar os afetos do interlocutor.
A seleção vocabular configura um dos aspectos mais relevantes, pois
tende a refletir os valores e interesses do campo ideológico a que o
conteúdo veiculado se filia. Além disso, recursos estilísticos, como o uso
de ironias, de comparações, de frases no imperativo ou de palavras em
caixa alta, são alguns dos artifícios empregados para cooptar o
destinatário e direcionar suas reações.

Também a linguagem não verbal se mostra como um recurso


importante para mobilizar os afetos do público. Muitas fake news são
acompanhadas de ilustrações, gráficos ou fotografias que têm por
objetivo não só conferir maior credibilidade ao discurso veiculado, mas
também apelar para o emocional do leitor e motivar seu engajamento.
Algumas vezes, quando buscam simular postagens de usuários comuns
das redes sociais, nota-se o uso frequente e/ou repetitivo de emojis –
figuras que são agregadas ao texto escrito para compor a mensagem,
tipicamente empregadas em interações informais realizadas no contexto
online. Nesse sentido, destaca-se especialmente o uso de emojis que
representam expressões faciais de raiva, espanto ou desespero, na
tentativa de sugestionar a reação emocional do leitor por meio da
imagem.

Para melhor ilustrar as características sociocomunicativas e


composicionais mencionadas, procederemos à análise de uma fake
news, já verificada por agências de fact-ckecking. Trata-se de um texto
sobre a pandemia do novo coronavírus veiculado em 08 de Agosto de

842
2020 pela página intitulada Relevante News 135 e replicada em redes
sociais como o Facebook. O enunciado busca emular o gênero notícia,
replicando suas características formais típicas, como a presença de
manchete e lide. Além disso, como a Imagem 1 evidencia, até mesmo a
configuração da página busca reproduzir padrões de portais de
jornalismo, como, por exemplo, a presença de um logotipo semelhante
aos utilizados por veículos oficiais de imprensa e a divisão em seções,
como “política”, “economia” e “comportamento”.

Imagem 1 – Print extraído da página relevante.news

135Texto completo em: <https://relevante.news/internacional/medicos-da-espanha-


questionam-pandemia-e-denunciam-possivel-fraude-
mundial/?fbclid=IwAR0UTRe06pbD2tQRRQtaOy7MlE251VTZtN2N1pZdlFOrYrofiMOoay_o
5SQ>. Acesso em 08/10/2020.

843
A falsa notícia gira em torno da reunião de um grupo de médicos
espanhóis que teriam se encontrado em Madri para questionar
publicamente a versão oficial da Organização Mundial de Saúde (OMS)
acerca da pandemia do novo coronavírus. Além de denunciar
informações supostamente equivocadas fornecidas pela OMS, como a
recomendação do uso de máscaras e a adoção de medidas de
isolamento, o texto aponta como referência um relatório produzido pelo
Ministério do Interior Alemão que teria sido apresentado no encontro e
cujo teor demonstraria que os riscos da pandemia foram superestimados.

Segundo checagem realizada pela Agência Lupa, os fatos


apresentados na suposta notícia são parcialmente verdadeiros. De fato,
houve o encontro em Madri de um grupo de médicos que se autointitula
“Associação dos Médicos pela Verdade”. Trata-se de um grupo
negacionista da pandemia da Covid-19. No entanto, tanto o teor quanto
a autoria do documento divulgado durante o evento e tomado como
base para as afirmações feitas ao longo do texto foram verificados como
falsos. Consoante a Agência Lupa, o relatório citado começou a ser
divulgado na mídia em maio de 2020 e foi prontamente desmentido por
nota do próprio Ministério do Interior Alemão, cujo trecho reproduzimos
abaixo:

Esta ‘análise’, que foi realizada de forma independente, ocorreu


fora da responsabilidade substantiva do autor e da unidade
organizacional no Ministério Federal do Interior para a qual
trabalhava. Não houve pedido nem autorização para esta
compilação. A integração estrutural de todas as unidades
organizacionais envolvidas na equipe de crise, como é
obrigatória e habitual para análises sérias, não ocorreu aqui.
(Apud RÔMANY, 2020, s.p.).

Assim, não se trata de um documento oficial do Ministério do

844
Interior Alemão, mas de um texto produzido por um funcionário que se
apropriou indevidamente do nome da instituição para dar credibilidade
ao seu discurso. Além disso, as próprias afirmações feitas no relatório (e
replicadas como fato no corpo da falsa notícia) são desmentidas pela
Agência Lupa, que demonstra estudos oficiais que corroboram a
efetividade do uso de máscaras e de medidas de isolamento no
combate à propagação do novo coronavírus, além de explicarem o
funcionamento dos testes de PCR, cuja confiabilidade também foi
questionada no suposto documento.

Com base no exposto, nota-se que as informações falsas


aparecem camufladas em um relato que simula a aparência de um texto
do âmbito jornalístico para conferir credibilidade ao que é dito. Além de
apresentar o formato típico da notícia e de ter um aparente portal de
jornalismo como suporte, os quais podem enganar o leitor à primeira vista,
a falsa notícia se vale de recursos típicos do gênero como a referência a
uma suposta fonte oficial que ancora as afirmações feitas e o uso de uma
linguagem que se pretende passar como objetiva e formal. Também a
temática tratada remete aos valores-notícia usados como parâmetro
para a produção de notícias verdadeiras, uma vez que a pandemia do
novo coronavírus é um evento de clara notabilidade e relevância.

Para além da verificação da fonte, que deveria ser um


procedimento padrão a ser adotado por qualquer usuário que busque
informações na rede, cabe evidenciar aspectos da falsa notícia
analisada que possam servir como pistas para identificá-la como uma
fake news. Em primeiro lugar, embora remeta a um assunto em evidência
no momento da publicação, a falsa notícia apresenta supostos fatos que
contrariam a “versão oficial” divulgada por órgãos internacionais como
a OMS e replicada pelos veículos de imprensa tradicional. O termo

845
pandemia, inclusive, aparece entre aspas já na manchete, demarcando
uma adesão a um discurso que questiona aquilo que vem sendo
veiculado pela grande mídia e por autoridades competentes.

Além disso, ainda que sejam atribuídas ao relatório e ao grupo de


médicos presentes no encontro, diferentemente do que costuma ocorrer
em notícias veiculadas pela imprensa tradicional, quase não há
modalização que relativize as afirmações feitas. A lista que aparece ao
final do texto, por exemplo, apresenta de forma categórica as
proposições defendidas pelos membros do encontro, ainda que estas
contrariem estudos amplamente divulgados na grande mídia, como é o
caso da frase: “95% dos contaminados não apresentam a doença,
embora a PCR tenha testado positivo, eles são pessoas assintomáticas,
ou seja, não estão doentes nem são contagiosas”.

Há, inclusive, a reprodução de todo um vocabulário que


desqualifica o trabalho da OMS, atribuindo a ela a divulgação
“irresponsável” de informações baseadas em estudos científicos “não
comprovados” e de medidas sanitárias “erradas”, sem que se apresente
a versão dos fatos ou a resposta da entidade citada. Assim, embora se
aproprie do formato da notícia, o texto reproduz como fato a opinião de
um grupo que “questiona publicamente a versão oficial” sobre a
pandemia e vem trazer “alertas” à população.

Por fim, cabe notar também os erros constantes quanto ao uso da


norma-padrão apresentados no texto. Além de erros de digitação
(“referete”), de ortografia (“auto-contaminação”) e de concordância
(“questiona-se dados”), há problemas sérios de coesão como se observa
na frase reproduzida abaixo:

Diversos alertas foram proferidos pelos profissionais como sobre


a transmissão ocorrer por espirros e tosse, não pelo ar, objetos,

846
água, fala ou ar condicionado ou que o uso permanente de
luvas ou tiras de queixo não ser recomendado, pois causam
doenças respiratórias e da pele.

Embora desvios gramaticais possam ser deliberadamente usados


na produção de fake news, não se trata do caso, já que o texto em
questão busca simular a composição de uma notícia, em que tais erros
seriam reprováveis e teriam impactos negativos em sua credibilidade.
Ainda que notícias veiculadas por canais oficiais de imprensa possam
eventualmente ser publicadas com erros, pressupõe-se um trabalho de
revisão que, ao menos, impediria uma incidência tão notória de desvios
às regras da norma-padrão.

A partir de elementos concretos do texto como os que aqui


evidenciamos e de um conhecimento prévio sobre o processo de
criação e de circulação das fake news, um leitor atento teria critérios
para perceber o enunciado em questão como uma notícia falsa em
potencial. Embora contenha marcas composicionais que a identifiquem
como uma notícia (principalmente no que tange à forma), a maneira
como o tema é conduzido, evidenciada principalmente pelos aspectos
estilísticos do texto, denuncia que não se trata de um texto jornalístico
genuíno.

Além da variedade e recorrência de incorreções gramaticais, que


não seriam esperadas do trabalho de uma redação profissional, o texto
expõe opiniões como dados factuais, sem apresentar o contraditório e
praticamente não empregando recursos modais para denotar
objetividade e neutralidade na abordagem do tema. Ao contrário,
observa-se uma parcialidade clara na adesão irrestrita ao discurso
veiculado pelos médicos mencionados.

847
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, buscamos, à luz dos escritos teóricos de Bakhtin


e de estudos de especialistas no assunto, analisar o contexto de
produção e divulgação das fake news, bem como os seus elementos
constitutivos, a fim de traçar uma definição coerente do fenômeno.
Apesar da complexidade da tarefa, uma vez que as fake news
englobam um ecossistema de (des)informação vasto e intrincado, a
partir da discussão desenvolvida, foi possível identificar alguns
parâmetros para melhor compreensão da questão.

Tomando como base, em grande parte, a lista proposta por Bucci


(2019, p. 41-2), estabelecemos os seguintes critérios para delimitar o que
definimos como fake news no âmbito do presente artigo:

1) Trata-se de um fenômeno necessariamente atrelado à internet e


às tecnologias a ela associadas, especialmente as redes sociais;
2) Sua circulação ocorre em volume, escala e velocidade sem
precedentes na história da humanidade, sendo, portanto, um
fenômeno contemporâneo;
3) Apresentam conteúdo falso/enganoso, podendo este ser
inteiramente fabricado ou fruto da manipulação/adulteração de
conteúdo verdadeiro;
4) Valem-se do apelo emocional para atrair o público e torná-lo
predisposto a aceitar conteúdo falso como verdadeiro e engajá-lo
ao compartilhamento;
5) Ainda que o usuário comum seja uma peça importante ao
compartilhar inadvertidamente esse tipo de conteúdo, trata-se de

848
uma prática intencional que visa a algum tipo de ganho
(financeiro, político, ideológico etc.);
6) Sua autoria quase sempre é desconhecida ou forjada e as
informações divulgadas provêm de fontes normalmente
desconhecidas e/ou inacessíveis;
7) Violam direitos, uma vez que se valem das emoções do público
para influenciá-lo a tomar decisões com base em informações
falsas;
8) Configuram um fenômeno pós-imprensa, pois surgem atreladas ao
âmbito

Traçados tais critérios de definição, buscamos levantar aspectos


centrais do processo de criação e disseminação das fake news,
evidenciando como estes influenciam diretamente sua composição
como gênero. Nesse sentido, uma das características fundamentais
observadas foi o que denominamos, a partir das proposições de Bucci
(2019), de “mimetismo comunicacional”. Para além da presença de
conteúdo falso, as fake news configuram uma fraude do próprio processo
de produção, uma vez que tentam se passar por textos legítimos de
outros gêneros do discurso do âmbito jornalístico-midiático. Isso tem
implicação direta na materialidade dos textos que circulam como fake
news, uma vez que emulam elementos composicionais dos gêneros que
imitam.

Há, todavia, como demonstramos, traços composicionais que


denunciam sua real identidade. No que tange ao conteúdo temático,
embora se valham dos mesmos pressupostos que tornam um fato
noticiável no âmbito jornalístico, o tratamento dado aos assuntos
abordados se dá pela via da contestação ao discurso oficial da mídia ou
órgãos especializados e da difusão de teorias conspiratórias. Quanto à

849
construção composicional, é comum a presença de erros ou exageros
na apresentação do conteúdo (como incorreções gramaticais e uso
excessivo de emojis) que indiquem a familiaridade do texto com o
processo de produção de fake news. Por fim, em relação ao estilo, são
observadas escolhas que marcam clara parcialidade e têm como
objetivo apelar para os afetos do interlocutor, na tentativa de mobilizar
sua adesão e engajamento.

A partir de tais considerações, propomos, com base no


instrumental teórico aqui apresentado, a promoção de um trabalho de
leitura e de análise de fake news nas escolas que possibilite aos alunos
não apenas elencar critérios que os auxiliem na identificação de uma
notícia falsa em potencial, mas também desenvolver a competência
necessária para observá-los concretamente em situações de interação
nas redes sociais. Cremos que tal competência, associada a orientações
sobre como checar a veracidade de conteúdos, tornará o combate às
fakes news mais efetivo e seus efeitos menos danosos.

REFERÊNCIAS

ANSTEAD, Nick. What do we know and what should we do about fake


news? Londres: Sage, 2021. (e-book).

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São


Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

BUCCI, Eugênio. “News não são fake – e fake news não são news”. In:
BARBOSA, Marina. Pós-verdade e fake news: reflexões sobre a guerra de
narrativas. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 37-48.

850
DARNTON, Robert. “Notícias falsas existem desde o século 6, afirma
historiador Robert Darnton”. Entrevista. In: Folha de S. Paulo, 18/02/2017.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859726-noticias-
falsas-existem-desde-o-seculo-6-afirma-historiador-robert-darnton.shtml>.
Acesso em 07/10/2020.

FANTE, Alexandra; SILVA, Tiago Mathias da & GRAÇA, Valdete da. “Fake
news e Bakhtin: Gênero Discursivo e (Des)Apropriação da Notícia”. In:
TOURAL, Carlos; CORONEL, Gabriela & FERRARI, Pollyana (Orgs.). Big data
e fake news: na sociedade do (des)conhecimento. Avieiro: Ria Editorial,
2020. p. 70-88.

MARINONI, Bruno e GALASSI, Vanessa. “Aspectos da desinformação,


capitalismo e crises”. In: MARTINS, Helena (Org.). Desinformação:crises
políticas e saídas democráticas para as fake news. São Paulo: Veneta,
2020. (e-book)

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você.


Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

RÔMANY, Italo. “#Verificamos: Post cita relatório não oficial para atacar
medidas preventivas durante pandemia da Covid-19”. In:
https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/09/18/verificamos-relatorio-
medidas-pandemia/. Acesso em 08/10/2020.

SANTAELLA, Lucia. A Pós-Verdade é falsa ou verdadeira? Barueri: Estação


das Letras e Cores, 2018. (e-book)

WARDLE, Claire. “Fake news. It’s complicated.” In: First Draft, 16/02/2017.
https://medium.com/1st-draft/fake-news-its-complicated-d0f773766c79.
Acesso em 07/10/2020.

851
ESTUDOS LÍNGUÍSTICOS: FENÔMENOS DO FALAR CACERENSE

Wellington Dias Silva136


Lucas Rodrigues Souza 137

RESUMO: O presente estudo realiza uma descrição e análise da variação linguística do


português brasileiro a partir da fala de uma moradora do estado de Mato Grosso. O
objetivo é identificar fenômenos linguísticos no falar do nativo mato-grossense e registrar
os fenômenos encontrados. A metodologia utilizada foi uma entrevista de uma falante
nativa do estado de Mato Grosso, nascida no município de Cáceres, moradora de
Tangará da Serra, à 240 km da capital Cuiabá. A entrevista foi gravada em áudio com
aparelho portátil e os dados foram coletados e analisados e em seguida, selecionados
aqueles que possuíam as ocorrências mais interessantes para figurar no presente artigo.
Podemos compreender que o falar mato-grossense possui características particulares e
também comuns comparando ao falar das demais regiões do país e que cada
diferença deve ser respeitada e jamais considerada um erro.

Palavras-chave: Fonética, Falar mato-grossense, Cáceres, Variação.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo identificar fenômenos


linguísticos no falar do nativo mato-grossense com base na análise de
dados coletados por uma falante nascida em Cáceres, cujo seus
ascendentes também pertencem à mesma região. Com a pesquisa
buscou-se identificar e coletar os processos fonéticos mais comuns ou
mais interessantes encontrados no falar mato-grossense, em especial o

136Graduado em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. E-mail:


wellington.dias1@unemat.br;
2 Graduado em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. E-mail:

lucas.rodrigues@unemat.br.

852
cacerense, tendo como suporte teórico os estudos da Fonética e da
Fonologia do português brasileiro (PB).

O PB é uma língua riquíssima que apresenta variações na


oralidade em diversas condições interpretadas por seus falantes. Existem
muitos fenômenos diferentes espalhados pelas comunidades brasileiras
formando as variedades geográficas que enriquecem a língua do país.
O foco da pesquisa é o falar nativo mato-grossense, e foi possível
perceber diversos fenômenos comuns. As variações linguísticas de
algumas regiões, como a baixada cuiabana e a de Cáceres, identificam
determinadas localidades e apresentam similaridades ao falar de outras
regiões.

Podemos considerar o PB uma língua rica de palavras, significados,


termos, sotaques, gírias e regionalismos. Tudo contribui para uma
comunicação eficiente e intencional. Dentro dessa riqueza semântica,
gramatical e do léxico é impossível tornar-se invariável. Essas variações
existem e são importantes, merecendo estudos e teses, pois contribuem
para a valorização da linguagem e, antes dela, do ser humano. Todas
essas variações que serão apresentadas estão no PB e requerem um
olhar mais clínico e acentuado em sua leitura. Podemos observar que o
município de Cáceres possui uma rica e grande fonte de material para
vários tipos de pesquisa, principalmente para os linguistas, pois, a cidade
apresenta aspectos linguísticos e culturais que foram trazidos tanto pelos
colonizadores quanto pelos imigrantes que vieram para essa região.

Iniciamos com uma pesquisa para encontrar falantes nascidos no


estado de Mato Grosso, cujos pais também fossem do mesmo estado. Foi
realizada uma entrevista em mídia eletrônica para coleta dos dados que

853
foram posteriormente analisados e estão expostos no decorrer deste
trabalho.

De todo modo, muito embora já tenhamos começado a


levantar questionamentos acerca da variação Linguística,
parecemos estar cumprindo um primeiro passo de nossa tarefa:
verificar que as línguas variam. É verdade que a maioria dos
exemplos aqui apresentados vem do PB, mas basta entrar em
contato com outra língua para que o falante se dê conta de
que a variação está presente nos diferentes níveis. (FIORIN, 1979,
p.167)

A variação linguística é um movimento comum a todas as línguas


que apresentam, verbalmente, diferenças comuns e naturais e que
derivam de diversos fatores sociais, culturais e históricos. As variações
podem ser regionais, de gênero, idade, classe social, diatópicas,
fonéticas, sintáticas, lexicais, semânticas... Cada uma apresenta sua
particularidade, suprindo as necessidades comunicativas, adaptando
conforme as intenções e necessidades dos falantes. É algo em constante
mudança, afinal, a língua é viva e sofre alterações e transformações com
o tempo. Essa variação, presente também no falar cacerense, é viva e
notável na medida em que se percebem os sotaques e particularidades
do dialeto.

Este artigo está organizado em mais quatro seções: na próxima


seção falamos sobre a formação histórica e social do município de
Cáceres; na seção seguinte, a metodologia. Os resultados obtidos para
esta pesquisa são reportados na seção quatro; e, na última seção, são
apresentadas as considerações finais.

854
2 HISTÓRIA E IMPORTÂNCIA DE CÁCERES

Cáceres é uma cidade do Mato Grosso, localizada à 230 km da


capital do estado, Cuiabá. É localizada na mesorregião Centro-Sul do
estado e na microrregião do Alto Pantanal. Tem uma população de
87.942 habitantes, segundo o censo demográfico do IBGE de 2010, e
extensão territorial de 24.965,94 Km², fazendo fronteira com a com a
cidade de San Mathias na Bolívia.

No contexto histórico, em 6 de outubro de 1778 foi fundada a vila


de São Luís de Cáceres, pelo tenente de Dragões Antônio Pinto Rego
e Carvalho, determinado pelo quarto governador e capitão-general da
capitania de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres. O município até então tinha o nome de Vila-Maria do Paraguai,
homenageando a rainha de Portugal. No início a cidade não passava
de uma aldeia, centrada em torno da igrejinha de São Luiz de França. As
razões para a fundação do povoado variaram desde a necessidade da
comunicação entre a vila e a capital do estado, pela fertilidade do solo
no local e também pela comunicação do Rio Paraguai com a capitania
de São Paulo. Em 1860 já havia Câmara Municipal na vila, que em 1874
foi elevada à categoria de cidade, porém com o nome de “São Luiz de
Cáceres”, em homenagem ao padroeiro e ao fundador da cidade. Já
em 1938, o município passou a se chamar apenas Cáceres. (Decreto–Lei
nº. 208, de 26 de outubro de 1938).

De acordo com Mendes (2009), a população cresceu


gradativamente a partir de 1950 e então Cáceres recebeu novos
migrantes. No período de 1961 a 1963, com o então prefeito José Esteves
de Lacerda, ocorreu a inauguração da Ponte Marechal Rondon sobre o

855
Rio Paraguai, abrindo então vida de comunicação com o extremo oeste
mato-grossense.

Por apresentar aspectos linguísticos e culturais que remetem o


período do Brasil-colônia, os moradores da cidade, possuem algumas
características particulares no sotaque. De acordo com Ferreira (2001, p.
405), a primeira penetração de não índios na região de Cáceres
“retrocede a tempos anteriores à fundação de Cuiabá”. A cidade além
da sua importância histórica, também teve uma extrema importância
para o ensino superior no estado do Mato Grosso, quando em, 1978, o
então prefeito municipal Ermani Martin, autorizou a criação do Instituto
de Ensino Superior de Cáceres (IESC) que se transformou na Universidade
do Estado do Mato Grosso (UNEMAT)

Fundada no século XVIII, Cáceres possui inúmeros prédios e


elementos arquitetônicos de alta relevância e por todo o conjunto
urbanístico e paisagístico da cidade de Cáceres, foi tombado pelo Iphan,
em 2010. Além do centro histórico, existem fazendas e usinas e a sua pré-
história constituída por dezenas de nações indígenas e milhares de
habitantes. Destacam-se as construções como as da Fazenda
Descalvados com capela, casa grande, alojamento de operários e
galpões industriais, que ainda são utilizadas pelo ecoturismo.

3 METODOLOGIA

A presente pesquisa teve várias etapas de estudo e análise.


Inicialmente foi feita uma pesquisa para encontrar falantes naturais de
Mato Grosso com o requisito de que os pais também fossem nativos do

856
mesmo estado. Foi selecionada uma falante do sexo feminino, de 42 anos
de idade, casada, um filho. É natural de Cáceres e vive em Tangará da
Serra há cinco anos. Cursa o ensino superior em universidade pública à
noite e trabalha no período diurno.

Para a execução deste trabalho foi realizada uma entrevista


gravada, em mídia digital com dispositivo móvel, de dezesseis minutos
em uma sala de aula silenciosa na Universidade do Estado de Mato
Grosso (UNEMAT). A entrevista continha aproximadamente doze
perguntas que envolviam diversos temas, a fim de permitir à entrevistada
falar à vontade sem se preocupar com a variedade padrão da língua,
na intenção de verificar estruturas e eminências de seu próprio dialeto e
produzir material linguístico suficiente para análise.

Após a entrevista gravada, o áudio foi transferido para um


computador e analisado diversas vezes em duas velocidades, normal e
lenta, para identificar minuciosamente os detalhes do dialeto e os
fenômenos presentes no discurso. Durante a análise do áudio, foi-se
escrevendo e anotando as variações detectadas no decorrer da fala da
entrevistada.

Com as transcrições ortográficas e fonéticas, foram analisados os


fenômenos presentes no falar da entrevistada, sendo possível identificar
diversas fenomenologias fonéticas que são comuns ao falar mato-
grossense e outras presentes em diversas regiões do país, como
apresentaremos na próxima seção.

857
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O objetivo da pesquisa é realizar uma análise da variação


linguística do PB a partir da fala de uma moradora do estado de Mato
Grosso para identificar fenômenos linguísticos no falar do nativo mato-
grossense e registrar os fenômenos encontrados. A partir dos dados
coletados, foram observados muitos fenômenos linguísticos no falar da
entrevistada, que serão apresentados a seguir. É, contudo, necessário
que fique claro que, quando falamos de variação fonética, é sempre
provável que existem outras variantes, além daquelas mais obviamente
perceptíveis e marcadas no lugar em que são usadas.

Os resultados encontrados estão expostos a seguir, organizados


com a descrição do fenômeno e em seguida os termos encontrados e
suas respectivas fenomenologias. Acrescentamos também a palavra
escrita gramaticalmente correta, a representação fonética dos termos e
a classe gramatical.

O primeiro fenômeno que encontramos no falar da entrevistada


foi a ditongação. A ditongação é uma mudança fonética que consiste
na união, em uma mesma sílaba, de uma vogal silábica e uma semivogal,
formando um ditongo, que gramaticalmente não existe na palavra. Ao
tratar dos casos de ditongação na língua portuguesa moderna, Câmara
Jr. diz que:

No português moderno deve-se a ditongação em dois casos: 1.


vogal tônica em hiato, quando a) média anterior com o
desenvolvimento de um ditongo /éy/ ou /êy/, indicando na
grafia moderna (idéia, veia); b) média posterior fechada com o
desenvolvimento de um ditongo /ôw/ não indicado na grafia e
inexistente nas zonas dialetais em que houve a monotongação

858
do ditongo /ôw/ - boa – bôwa. 2. Dialetalmente, pela vogal
tônica final travada por /s/ pós-vocálico, com o
desenvolvimento dos ditongos de pospositiva /y/, pás, és, fez, sós,
flux, cãs, pronunciadas / pays, feys, sóys, fluys. Dá-se então a
neutralização da oposição entre ditongo e vogal simples,
desaparecendo a distinção, no caso 2, por exemplo – pás e pais;
sós e sóis, flux e fluis, cãs e cães. (CÂMARA JÚNIOR, 1977, p. 143)

Vejamos os fenômenos de ditongação encontrados no falar da


entrevistada:

O apagamento é outro fenômeno observado no dialeto mato-


grossense nesse estudo. Esse fenômeno consiste em apagar, isto é, não
pronunciar uma sílaba ou parte de uma palavra. A seguir,
exemplificamos com termos que foram analisados após a entrevista.
Podemos perceber que há muitos casos deste fenômeno, que envolvem
a não pronúncia de vogais e consoantes principalmente no final das
palavras. Há mais de um caso em que uma sílaba da palavra não foi
pronunciada.

859
A Harmonia Vocálica (HV) possui uma alta frequência no
funcionamento das línguas e é bastante recorrente no PB. O processo de
HV ocorre quando há a assimilação de um ou mais traços vocálicos.

Segundo Bisol (1981) quando se menciona a presença da HV


detectada na fala dos adultos brasileiros, ela diz: “é processo variável que
tem como alvo as vogais médias altas /e/ e /o/, as quais assimilam o traço
de altura da vogal alta da sílaba subsequente (exs.: m[i]nino, c[u]ruja).”
(p. 32).

Os seguintes exemplos extraídos dessa pesquisa apontam a


presença desse fenômeno no falar cacerense:

860
O alçamento vocálico é caracterizado pela elevação do traço
da altura das vogais médias altas [e] e [o] que se realizaram como as
vogais altas [i] e [u], respectivamente. Essa variação pode-se dar por
fatores linguísticos, extralinguísticos, ou por fatores sociais. Nossa
entrevistada apresentou muitos traços de alçamento, como podemos
observar a seguir:

861
A despalatização é um fenômeno comum, entretanto, em nossa
pesquisa foi detectado apenas um termo no qual a falante fez uso desse
fenômeno. É a perda da palatal de um fonema, como podemos
observar no dado a seguir:

Assim como a despalatização foi observado outro fenômeno


isolado no falar desta mato-grossense, como a monotongação. Vejamos
a seguir sua definição e o termo que encontramos no discurso da falante.

O termo monotongo não é usado com muita frequência, a não


ser quando se trabalha com a monotongação. Alguns autores se referem
a ele quando tratam de monotongação e/ou ditongação, para mostrar
o processo de redução do ditongo que perde sua semivogal e passa a
uma vogal simples, neste caso, monotonga-se, ou ao caso da vogal
simples, monotongo, que se estende num ditongo.

Câmara Jr. ao falar sobre monotongação reforça seu caráter


puramente fonético ao mostrar que apesar do ditongo ser monotongado,
na grafia ele permanece. Em suas palavras, monotongação é:

Mudança fonética que consiste na passagem de um ditongo a


uma vogal simples. Para pôr em relevo o fenômeno da
monotongação chama-se, muitas vezes, monotongo, à vogal
simples resultante, principalmente quando a grafia continua a
indicar o ditongo e ele ainda se realiza numa linguagem mais
cuidadosa.

862
PALAVRA/FRASE PRONÚNCIA REPRESENTAÇÃO FENÔMENO CLASSE GRAMATICAL
FONÉTICA

Dinheiro “Dinhêru” [dƷi’ɲeɾʊ] Monotongação Substantivo


Alçamento

Todos estes dados foram analisados e cuidadosamente


escolhidos para integrarem este trabalho. Evidentemente, há outras
variações dentro da mesma região e nem todas correspondem a todos
os falantes. Contudo, vale ressaltar que são fenômenos perceptíveis no
dialeto de uma falante desta região e cada item da variação pode,
tranquilamente, adequar-se a falantes de outras localidades do país,
desde que apresentem esses traços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo analisamos a variação linguística no falar mato-


grossense, mais precisamente de uma falante nativa, nascida na cidade
de Cáceres e moradora de Tangará da Serra. A entrevistada apresentou
a ocorrência de diversos fenômenos, entre eles os mais vistos foram os de
ditongação, alçamento, apagamento e harmonia vocálica. Esses traços
na linguagem podem ser considerados atitudes positivas em relação ao
seu modo de falar, pois acarreta todo um contexto histórico desde a
criação da Vila-Maria do Paraguai até a criação do município de
Cáceres. Sendo assim, fatores culturais criam condições para
características no falar.

863
A variedade da língua é uma colaboradora da vida humana. As
diferenças constroem e motivam a buscar aquilo que ainda é
desconhecido. A linguagem contextualizada em suas diversas
plataformas e segmentos nos revelam como são imensas as diferenças e
abre cada vez mais possibilidades de conhecer seu próprio universo
infinito. Cada fenômeno ou regionalismo caracteriza o falar de alguma
comunidade linguística, que se constitui pela linguagem, assim como o
homem. Evidentemente, há ainda muitos outros fatores, muitos outros
fenômenos nessas extensões brasileiras que precisam ser explorados.
Cada característica é pessoal, assim como a fala. E, invariavelmente a
comunicação é bem sucedida, pois a força da linguagem promove uma
interação sensacional que está em constantes mudanças, felizmente.

Essa pesquisa apresenta uma contribuição para o conhecimento


do português falado no Estado do Mato Grosso.

REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Ditongação X Monotongação no


falar de Fortaleza. Revista Graphos, v. 5, n. 1, 2000.

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: Novela sociolinguística. 17. ed., 4ª


reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2015.

BISOL, Leda. Harmonização vocálica: uma regra variável. 1981. Tese


(Doutorado em Lingüística. Área de concentração: Lingüística e Filologia)
– Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 1981.

CÂMARA JR. J. M. Dicionário de linguística e gramática. Petrópolis: Vozes,


1977.

864
FERREIRA, João Carlos Vicente. Mato Grosso e seus Municípios. Cuiabá-
MT: Buriti. 2001

FIORIN, José Luiz. Introdução a linguística volume I e II. São Paulo:


Contexto, 2003.

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IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cáceres. Disponível em:


<http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=510250&se
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IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cáceres.


Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/367/> Acesso
em 15 fev. 2017.

MENDES, Natalino Ferreira. História de Cáceres: história da administração


municipal. 2. ed. Cáceres, MT: Editora da UNEMAT, 2009

Prefeitura de Cáceres - MT. Disponível em


http://www.caceres.mt.gov.br/Caceres-Historia/> Acesso em 15 fev.
2017.

ROCHA, Sidnei Alves da; OLIVEIRA, Valdenor Santos. Análise de processos


fonológicos observados na Escola Municipal Vista Alegre, do município
de Terra Nova do Norte –MT. Disponível em <
http://revistanativa.com/index.php/revistanativa/article/view/197/pdf >
Acesso em 8 fev. 2017.

XAVIER, M.F. et MATEUS, M.H.M. Dicionário de termos linguísticos. V. I.


Lisboa: Cosmos, s.d., p. 123

865
FORMAÇÃO CONTINUADA EM SERVIÇO: REFLEXÕES ACERCA
DAS PRÁTICAS DOCENTE

Fernanda de Fátima de Oliveira Spirandeli 138

Brenda Pereira dos Santos 139

RESUMO: A formação permanente é ação necessária do profissional da educação,


uma vez que ele está inserido em ambiências de constantes mobilidades sociais,
culturais, econômicas e políticas. No que diz respeito à formação continuada, são
amplas as formas de manifestações, seja ela através de cursos ou até mesmo
participações em palestras. A formação continuada em serviço - aquela que ocorre
dentro dos muros escolares - é, nesse sentido, um processo fundamental para a
qualidade na área da educação, não apenas para o melhoramento do processo de
ensino-aprendizagem, como também para a reflexão crítica do professor sobre suas
práticas educativas. Assim sendo, este artigo tem como objetivo apontar a relevância
da formação continuada em serviço como ação reflexiva para as práticas docentes
dentro do processo de ensino-aprendizagem. Os principais autores utilizados para
fundamentar teoricamente nossas reflexões foram: Andrade (2005); Barcelos e Villani
(2006); Canário (1998); Schön (1995); Terrazzan e Gama (2012), dentre outros. A
metodologia empregada nesta pesquisa foi de abordagem qualitativa, de objetivo
descritivo e de cunho bibliográfico. Dessa forma, concluímos que a formação
continuada em serviço é ferramenta essencial para a educação, pois através do seu
ambiente de trabalho, o professor conhece os desafios e problemas vividos no seu dia
a dia e compartilha informações com os demais profissionais, tendo, a partir dessas
ações, a possibilidade de refletir criticamente sobre sua prática e dando autonomia
para tomada de decisões.

Palavras-chave: Formação Continuada em Serviço. Práticas Docente. Ensino-


Aprendizagem.

138 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade


Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, email: dir.fernanda@hotmail.com.
139 Licenciada pelo Curso de Letras – Português/ Espanhol da Universidade Federal do

Triângulo Mineiro - UFTM, email: breendapsantos@gmail.com;

866
INTRODUÇÃO

A formação continuada de professores é de suma importância no


processo de formação do profissional da educação. Ela, em seu amplo
sentido permite que ele continue se desenvolvendo, adequando e
melhorando sua prática, sua teoria e sua didática, uma vez que a ideia
da formação continuada é justamente fazer com que o professor
continue sempre aprendendo, e que essa aprendizagem possa refletir
em sua atuação no âmbito escolar.

Nessa perspectiva, destacamos que a formação continuada em


serviço se faz essencial nesse contexto, já que ela permite que esse
processo ocorra na própria ambientação profissional do educador.

A concepção de se continuar aprendendo através de reflexões


que sejam direcionadas diretamente para as necessidades da escola na
qual o educador trabalha, dão a esse tipo de formação uma grande
relevância, pois ela, diferente das outras, pauta suas reflexões nas
dificuldades e desafios a serem enfrentados naquela determinada
realidade.

Assim, refletir sobre sua importância e pesquisar como melhorar a


aplicação da formação continuada em serviço se faz necessário para
que a vivência escolar possa avançar em vários aspectos.

É importante salientar que muitos profissionais ainda não têm ideia


da real importância e necessidade desse tipo de formação, e outros por
sua vez, não têm em suas escolas a formação continuada em serviço
implementada, fazendo assim com que não haja um conhecimento mais
aprofundado acerca do assunto.

867
Por esse motivo, é significativo que cada mais se aborde e
contextualize essa prática, mostrando os resultados provenientes dela e
pontuando aos educadores a necessidade real de se ter essa formação
nas escolas e as consequências positivas que ela pode gerar, tanto para
a escola, quanto para o próprio educador.

Acreditamos que não há prática sem reflexão e, por isso, o


profissional necessita sempre estar em contato com o processo de ensino-
aprendizagem, seja para aprender sobre novas teorias a respeito do
conteúdo, ou até mesmo para se adequar às novas formas de didática.
Ensino e aprendizagem caminham lado a lado e, como destaca Freire
(2015), a educação deve ser emancipadora, tanto para o aluno quanto
para o professor.

Enfatizar que a formação continuada tem maior relevância, não é


de forma alguma menosprezar os outros tipos de formações, é identificar
que ela vem resultando em algo mais proveitoso para a realidade escolar,
se tornando assim mais significativa.

O professor pode, assim, fazer uso desse modelo de formação


continuada, como também pode convergi-lo aos outros modelos, de
modo a construir amplas formas de agregar conhecimento e se formar
como profissional.

Dessa forma, o objetivo geral delineado nesta pesquisa, é


justamente apontar a relevância da formação continuada em serviço
como ação reflexiva para as práticas docentes dentro do processo de
ensino e aprendizagem. Já os objetivos específicos são mostrar como
essa formação é trabalhada e destacar de que maneira ela agrega a
vivência do professor tanto dentro quanto fora de sala de aula.

868
Por conseguinte, buscando possíveis respostas às nossas
inquietações, este estudo se apoia na pesquisa bibliográfica, de
abordagem qualitativa e com objetivo descritivo, pois nos permitiu
aprofundarmos em uma temática de contexto amplo e de importante
relevância dentro do cenário educacional brasileiro.

Organizamos deste modo, o trabalho no seguinte formato:


primeiramente apresentamos a metodologia empregada nesta
investigação; na sequência, apontamos os principais autores utilizados
para embasar o trabalho, a partir de suas reflexões; logo após
discorremos sobre os resultados e as discussões acerca da formação
continuada em serviço como ferramenta essencial para a construção do
professor reflexivo, dando esteio às suas práticas vivenciadas dentro de
sala de aula; e por fim, expomos as nossas considerações finais para
concluir as reflexões realizadas e adicionamos as referências.

Em suma, a pesquisa se baseia em uma concepção de educação


pautada na reflexão, em que a construção do eu é permeada através
do contato com o outro. A formação continuada em serviço é, por sua
vez, uma ferramenta de construção de saberes indispensável, no que diz
respeito à realidade atual da educação no Brasil.

1 METODOLOGIA

Este artigo está constituído por uma pesquisa de abordagem


qualitativa, de objetivo descritivo e de cunho bibliográfico. Nessa
perspectiva, a ideia é fazer uma contextualização do tema, apontando

869
e ressaltando autores pertinentes para a fortuna crítica necessária para
discussão.

Segundo Minayo (2012, p. 21), a pesquisa qualitativa “responde a


questões muito particulares''. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com
um nível de realidade que não pode ser quantificado. Cabe salientar,
que as pesquisas qualitativas não se baseiam em conclusões
quantificáveis, pois está ligada a resultados subjetivos, por se pautar em
questões sociais.

Estudos de objetivo descritivo, investigam características


específicas de determinado grupo ou fato, e logo as comparam (GIL,
2008).

Pesquisas bibliográficas são aquelas produzidas a partir de


conteúdos que já estão confeccionados, seja artigos, dissertações, teses
e livros.

Uma das vantagens desse modelo de investigação, se dá pelo fato


de que o investigador pode atingir uma abrangência maior de
fenômenos, pois “esta vantagem se torna particularmente importante
quando o problema de pesquisa requer dados muito dispersos pelo
espaço” (GIL, 2008, p. 50).

Dessa forma, com base nas referências que apontamos,


salientamos que este artigo, se baseia em uma metodologia que busque
reflexões através da fortuna crítica apresentada, a respeito da temática
da formação continuada em serviço.

870
2 REFERENCIAL TEÓRICO

Abordar a formação continuada é de suma importância, tanto no


âmbito da pesquisa quanto da prática escolar. Nessa perspectiva, se faz
relevante tratar aqui, em um primeiro momento, dos processos pelos
quais o profissional da educação passa, até que se encontre imerso na
formação continuada de fato.

Andrade (2005) destaca que a formação inicial é, então, o primeiro


passo a ser dado. Ela contextualiza também que já na graduação o
educador tem contato com as primeiras experiências de uma formação
continuada, através de suas atividades extracurriculares, como a
iniciação científica, monitoria, dentre outras.

Essa afirmação é muito pertinente, pois traz à tona a definição da


formação continuada em sua prática efetiva, que é justamente se
aprofundar e melhorar determinados aspectos necessários na sua
prática como professor.

É importante enfatizar aqui que a noção de formação continuada


deve ser estabelecida a partir de uma convergência a ideia da
formação continuada em serviço e, por essa ótica, nos referimos a
concepção de que o professor, ao entrar em contato com novas
experiências que retomam sua formação inicial, não está reafirmando
aquilo que já sabe, mas sim incorporando novos conhecimentos aos já
adquiridos, refletindo sempre de maneira profunda acerca de todos eles.

Como versa Silva (2020), a necessidade da formação precisa se


constituir por meio tanto da escola quanto do professor. Assim sendo,
destacamos que deve haver um consenso em prol do que pode ser

871
melhor para a realidade da escola, adequando a formação às
necessidades daquele contexto.

Por conseguinte, o professor neste processo é peça integrante, assim


como os outros membros da escola, como diretores e coordenadores. A
partir de uma necessidade observada pela escola, é que se faz
pertinente a indexação da formação continuada em serviço, para que
a experiência seja proveitosa e enriquecedora, a fim de proporcionar
debates relevantes e resultados proveitosos.

Oliveira (2017, p. 8), evidencia “a formação continuada em serviço


como um espaço permanente de reflexão e de significabilidade na
ação do professor junto aos seus educandos, contribuindo para a
integração de conhecimentos teóricos e práticos, por meio de diferentes
estratégias e instrumentos formativos”.

Teoria e prática, nesse sentido, devem sempre caminhar juntas, uma


vez que a acumulação de conhecimento só se torna concretiza a partir
das experiências vividas pelo professor, tendo em vista que é a partir
delas que ele coloca suas reflexões em prática.

É por isso que a formação continuada em serviço se destaca dentre


outras formações, uma vez que possibilita que teoria e prática possam
confluir, melhorando tanto didática, quanto conteúdo, através de
discussões sobre como esses dois vieses são dependentes um do outro.

Os programas de formação continuada frequentemente


consistem de uma série de atividades pedagógicas prontas, na
esperança de que os professores sejam capazes de reproduzi-
las em sala de aula. No entanto, essas propostas parecem
desconsiderar os contextos específicos do ambiente macro e
micro escolar em que atuam os professores participantes e, por
isso, não chegam a ser incorporadas como um saber ativo
(BARCELOS; VILLANI, 2006, p. 74).

872
Também salientamos que a formação continuada vem avançando
gradativamente, entretanto, ainda há muito que ser feito nesse sentido;
observamos assim, que há pesquisas sinalizado que são necessárias
mudanças imprescindíveis para que se impulsione a formação a sair do
tradicionalismo, a tornando mais voltada justamente para um processo
de reflexão e humanização (MOYANO, 2015).

Por essa perspectiva, destacamos que a formação continuada


dos professores também se diferencia das demais justamente por esse
processo humanizador, em que há a oportunidade de se abordar as
falhas, de maneira a se aprender com elas.

O educador deve estar consciente de que faz parte de um


progresso, um movimento que institui a educação e, é a partir dele que
se permeiam as ideias a serem ou não seguidas. É preciso que todos os
integrantes, desde o professor ao gestor, estejam imersos nesse processo
para que os resultados possam acontecer.

Canário (1998, p. 6) pontua que “trata-se, então, de construir


dispositivos de formação que permitam optimizar as potencialidades
formativas dos estabelecimentos de ensino”.

A educação no Brasil vem, ao longo dos anos, passando por


reformulações necessárias, se pautando em metas para que os objetivos
propostos pelos documentos nacionais, como a Base Nacional Comum
Curricular, sejam cumpridos.

Nesse sentido, a escola carece de meios que possibilitem que essa


educação humanizadora e emancipadora, se torne parte da vivência
de professores e alunos, fazendo assim com que essa realidade deixe de
ser utopia, para ser parte integrante do dia a dia escolar.

873
Canário (1998) também disserta que devemos nos atentar a
dimensão coletiva e enfatiza que ela possibilita que os indivíduos
aprendam através da organização, reforçando não somente a questão
coletiva, mas também a sua capacidade autônoma de mudança
(CANÁRIO, 1998).

Dessa maneira, a formação continuada em serviço é, como pode


ser notado a partir das reflexões feitas, de suma importância para o
contexto educacional, já que possibilita a todos os profissionais
envolvidos reflexões voltadas para a realidade do contexto escolar e,
para além disso, agrega informação ao conhecimento já adquirido ao
longo dos anos, por meio da formação continuada.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Após a contextualização da temática a partir do referencial


teórico, apontamos aqui que o papel do professor dentro do contexto
educativo, considerando o fato de que ele está imerso no campo social,
cultural e político, é tarefa complexa.

Segundo Freire (2015, p. 25), “ensinar não é transferir conhecimento,


conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma,
estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado”.

Nessa perspectiva, podemos dizer que o educador precisa exercer


a função de mediador, compartilhando, semeando e despertando o
conhecimento.

Todavia, ressaltamos que não compete ao professor moldar o


aluno, ou delimitar ações, mas sim, apontar caminhos, conduzir o aluno

874
para que ele desabroche. O professor nesse contexto tem apenas a
função de mediar a partir da troca, já que ele também é sujeito e
também aprende.

Enfatizamos também que a formação docente apresenta alguns


pressupostos formativos: 1) é uma dupla formação, adquirindo
conhecimentos pedagógicos e científicos; 2) é uma formação que forma
para a atuação profissional, como as demais; 3) é uma formação que
forma formadores, o profissional é preparado para capacitar outros
indivíduos (FERRY, 1990).

O educador, a partir das reflexões de Ferry (1990), tem sua formação


construída através de pressupostos que viabilizem que o conhecimento
esteja sempre em constante transformação, tanto a partir de sua prática
quanto de sua pesquisa.

Nesta direção, a aprendizagem por meio da troca, da experiência


é essencial, e não há um sujeito que se forme sozinho, sendo necessária
interação diária com o outro, para que esse processo de conhecimento
se concretize (CANÁRIO, 1998).

Tendo em vista que a formação do professor não se esgota em sua


formação inicial, uma vez que existem vários entraves, mudanças sociais
e políticas, dentro do contexto educativo, exigindo a constante
aquisição de conhecimentos, teorias, práticas, métodos, queremos
agora adentrar ao tema de interesse da nossa pesquisa, ou seja a
formação continuada.

A formação continuada em serviço, a partir das reflexões aqui


pontuadas, tem justamente esse objetivo da aprendizagem por meio da
troca, uma vez que os profissionais, direcionados a partir de reflexões

875
feitas em conjunto, buscam melhorar e agregar experiências a sua
jornada como profissional da área da educação.

É sobretudo obsoleta a ideia que se tem sobre a real finalidade da


formação continuada do professor, de que é apenas um mecanismo de
aperfeiçoamento da formação inicial docente, para aprimoramento da
sua didática e técnica (IMBERNÓN, 2011).

Assim como a formação docente, falar sobre a formação


continuada é ação abstrusa, possuindo diversas definições no decorrer
dos tempos; mas podemos apontar aqui que ela já foi considerada como:
aperfeiçoamento teórico, atualização do conhecimento, melhoramento
da prática, qualificação profissional, dentre outras definições.

Assim sendo, a profissionalização docente assume uma via de mão


dupla, pois além de permitir a própria formação do professor, o-forma
para formar outrem, sendo a sala de aula um ambiente em que tanto
docente quanto discente aprendem e ensinam concomitantemente.
Para Freire (2015, p. 25): “quem forma se forma e reforma ao formar
e quem é formado forma-se e forma ao ser formado”. Logo, a formação
se constrói dentro do processo, como um ciclo, em que o método é
reconstruído diversas vezes, de amplas maneiras, com sujeitos diferentes.

A formação continuada, ainda que seja um processo para a


melhoria da qualidade da formação do professor, não pode ser vista
apenas como um instrumento para acúmulo de conhecimentos ou
teorias. Ela precisa ser encarada como ação emancipatória,
possibilitando a reflexão, a criticidade e a construção identitária dos
profissionais.

Nóvoa (1992) ressalta que a formação se constitui pelos resultados


adquiridos nas experiências. A ideia não é que o professor faça o maior

876
número de cursos possíveis, mas sim que consiga, através tanto dos cursos,
quanto de palestras e outros meios, refletir e consequentemente melhorar
sua prática, para que haja resultados significativos no dia a dia escolar.

Por este viés, acreditamos que a formação continuada de


professores, não seja um fim em si mesma, ou seja, ela não se resume
exclusivamente no propósito da formação do professor, mas sim se
constitui como um momento enriquecedor para a prática, e como efeito,
resulta em novas formas de edificação para o ensino como um todo.

Quanto aos modelos de formação continuadas desenvolvidas em


território brasileiro, destacamos que, elas podem acontecer tanto vias
institucionais superiores ou básicas, quanto por unidades escolares,
previsto de acordo com a LDBN/96, art. 62-A: “Garantir-se-á formação
continuada para os profissionais a que se refere o caput, no local de
trabalho ou em instituições de educação básica e superior, incluindo
cursos de educação profissional, cursos superiores de graduação plena
ou tecnológicos e de pós-graduação” (BRASIL, 1996, grifo nosso).

Deste modo, amplos são os veículos para o desenvolvimento da


formação continuada de professores na atualidade, seja na modalidade
presencial ou à distância, É significativo salientar que, esta última
modalidade vem decorrendo de uma forte expansão, principalmente no
contexto da atualidade com a pandemia do COVID-19 e do ensino
remoto.

Contudo, neste trabalho não nos aprofundaremos na temática


assíncrona, mas sim relataremos sobre as diversas possibilidades a que se
permite o desenvolvimento da formação continuada de professores no
Brasil.

877
Nesta direção, as formações continuadas de professores, para
além dos formatos à distância, podem ocorrer por meio de cursos de
aperfeiçoamento, de extensão, de pós-graduação (lato e stricto sensu);
também podem ser viabilizados através de eventos curtos como: mini
cursos, seminários, congressos e palestras; e, além disso, mediante a
formação continuada em serviço, que são aquelas desenvolvidas no
chão da escola, e que reúnem todos os profissionais da unidade escolar.

Segundo as autoras Gatti e Barretto (2009): há muitas formas de se


desenvolver a formação continuada presencial, sendo elas desde formas
mais institucionalizadas, que conferem certificado como os cursos, ou até
mesmo menos formais, através de grupos de estudo e reflexão, por
exemplo.

Nosso foco de interesse nesta pesquisa, se pauta justamente nessas


formações que acontecem nas escolas, denominadas de amplas formas,
como: “em serviço”, “nas unidades de ensino”, “formação docente na
escola”, “encontros de formação”, dentre outros.

Ao longo dos anos, a definição de formação continuada do


professor, estava enraizada na ideia de que, ela é um processo facilitador
para que o profissional possa compreender o novo e se adequar às
mudanças, com um viés voltado para o cumprimento de regras e
incorporação de normas, moldando o profissional a uma determinada
circunstância.

Porém a formação continuada do professorado, pautada dentro do


âmbito escolar, tem função de provocar mudanças que ocorrem dentro
do professor e acabam, por consequência, a refletir em suas atitudes
(CANÁRIO, 1998).

878
De acordo com Canário (1998, p. 22) “A formação centrada na
escola estabelece uma ruptura com esta lógica adaptativa e
instrumental, em que as pessoas são formadas para agir, dando lugar a
uma perspectiva de agir para formar ou de formar-se agindo. Por isso se
torna tão importante a metodologia de projecto na concepção e
planeamento deste tipo de práticas formativas”.

Esse tipo de formação docente é um momento que engloba todos


os profissionais da unidade, seja professor, supervisor, coordenador
pedagógico ou diretor, mediante reuniões definidas pelas instituições
fomentadoras (rede municipal, estadual ou particular).

Este viés que concebe a formação continuada em serviço


como um processo centrado nos espaços institucionais é
relativamente recente, apresenta-se em diferentes áreas
profissionais e está relacionado a uma nova concepção de
trabalho. O trabalho, neste sentido, é um processo em constante
transformação; aberto e flexível às demandas sociais
emergentes. (TERRAZZAN; GAMA, 2012, p. 127).

Estes encontros são um ensejo que possibilita: a troca de


experiências sobre os momentos vivenciados no dia a dia; a exposição
de ideias e opiniões acerca de determinado acontecimento ou tema; a
reflexão e discussão sobre as práticas pedagógicas que estão sendo
executadas; a delineação de mecanismos para sanar problemas e
dificuldades enfrentados no cotidiano.

Canário (1998, p. 20), disserta que “o aspecto central da formação


centrada na escola, reside em reforçar o potencial formativo do
ambiente de trabalho, através de modalidades de trabalho e de
situações informais, frequentemente desvalorizadas”.

879
Isto posto, cremos que a formação desenvolvida nas escolas, seja
uma ferramenta para além da mera formação do professor, uma vez que,
a carreira docente não pode ser mais importante do que o próprio
processo educativo.

Por essa lógica, ressaltamos que a formação docente não é ato


isolado e prioritário, mas sim um caminho necessário para se alcançar o
ensino de qualidade. Nunes (2001, p. 27) evidencia que:

As pesquisas sobre formação de professores têm destacado a


importância de se analisar a questão da prática pedagógica
como algo relevante, opondo-se assim às abordagens que
procuravam separar formação e prática cotidiana. Na
realidade brasileira, embora ainda de uma forma um tanto
“tímida”, é a partir da década de 1990 que se buscam novos
enfoques e paradigmas para compreender a prática
pedagógica e os saberes pedagógicos e epistemológicos
relativos ao conteúdo escolar a ser ensinado/aprendido.

Em suma, pontuamos que a formação continuada em serviço é um


processo que se define como um movimento potencializador para a
qualidade do processo educativo, tendo em vista que, através dela, o
profissional da educação assume um papel de autonomia, de
identidade e de reflexão sobre suas ações e práticas dentro do sistema,
contribuindo de forma efetiva para a educação a que se busca.

Neste âmbito, justificamos esta pesquisa, pois acreditamos na


contribuição das formações continuadas desenvolvidas no chão das
escolas, como mecanismo relevante para o ensino.

E como já mencionado, se considerarmos o processo de ensino e


aprendizagem como eixo central, a formação continuada em serviço se
constitui como caminho possível a ser trilhado para se atingir uma

880
educação de excelência, pois permite aos profissionais da educação
refletir sobre suas práticas, pensar e questionar sobre os processos
educativos, fazendo com que a educação se torne um segmento mais
crítico e reflexivo, não a mera execução de técnicas dentro do processo.

Segundo Freire (2015, p. 40) “Na formação permanente dos


professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a
prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se
pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário
à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunda
com a prática”.

Neste sentido, o autor defende a permanente reflexão e análise


das práticas, uma vez que através dessas ações o professor consegue
pensar, refletir e reestruturar sua didática, possibilitando o alcance de
novas metodologias para a melhoria de suas funções. Schön (1995)
defende a reflexão do professorado “na prática” e “sobre a prática”, se
opondo apenas à apropriação de técnicas do processo educativo.

Segundo Pimenta (1999, p. 31) “a formação de professores na


tendência reflexiva se configura como uma política de valorização do
desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições
escolares, uma vez que supõe condições de trabalho propiciadoras da
formação como contínua dos professores”.

O professor deve reconhecer em seu exercício profissional, a


importância da sua atuação para o dinamismo reflexivo, a importância
do seu pensamento crítico, da sua autonomia para a tomada de decisão
e interferência no processo educativo, pois o docente é um profissional
que necessita estar além da competência tecnicista (GADOTTI, 2000).

881
Ele deve compreender seu papel e fazer uso de sua relevância,
dentro e fora de sala de aula, auxiliando, juntamente aos outros
profissionais, nas metodologias e ferramentas necessárias para
construção de uma educação em que metas, habilidades e objetivos,
presentes nos documentos, se tornem uma realidade.

Todavia, queremos salientar que apenas a reflexão sobre a prática


como uma ação isolada e inerte, sem a troca de experiências, não é
suficiente para a atuação ativa e independente do professor.

É preciso que o docente tenha consciência da importância dessas


ações formativas para o processo educativo, e principalmente coloque
essas práticas em movimento, para que as formações em serviço passem
a ser práticas interventivas, concretas e dinâmicas dentro do processo.

Desse modo, é muito importante que o professor saiba fazer um uso


correto das formas de formação continuada, absorvendo sempre o que
há de melhor em cada uma delas, sempre observando quais resultados
são mais significativos e pontuando, de forma efetiva, quais poderão
agregar a sua carreira como um todo, tanto de forma profissional quanto
de forma pessoal, haja vista que a educação, como já tratado aqui, é
também humanizadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após as considerações apontadas neste artigo, destacamos


a demasiada importância da formação continuada em serviço que,
apesar de ser relativamente recente, vem construindo resultados
significativos no âmbito escolar.

882
Há, cada vez mais, pesquisadores preocupados em destacar os
resultados obtidos através da aplicação da formação continuada em
serviço no âmbito escolar, e enfatizar a relevância dessa aplicação. Por
isso, se faz necessário refletir e conceitualizar, cada vez mais, o assunto,
para que ela possa adentrar de forma mais efetiva em um número maior
de escolas, se tornando assim significativa e essencial para os profissionais
da educação.

Canário (1998) aborda que para que ocorra mudanças em uma


organização, é necessário que se mude também as doutrinas, os valores,
e as atitudes das pessoas que as compõem. A formação é essencial para
o processo de modificações dos sujeitos atuantes, principalmente para
os professores.

A escola, como aponta Canário, deve mudar, assim como a


própria sociedade em questão, revisando conceitos e práticas, a fim de
propiciar um ensino que consiga suprir as amplas necessidades dos
alunos.

Dessa maneira, ressaltamos que a formação continuada em


serviço se tornará cada vez mais essencial na realidade das novas
escolas pois, ainda que haja atualmente uma movimentação acerca da
prática, muitas escolas ainda deixam a desejar nesse contexto e isso,
consequentemente, impacta de maneira significativa no dia a dia
escolar.

Assim, a busca por uma educação mais humanizadora, que


acolhe tanto alunos quanto profissionais, torna a adequação e utilização
da formação continuada em serviço uma necessidade emergente, para
todas as escolas, já que ela se propõe justamente a preencher essas

883
lacunas que as outras formações continuadas deixam, ao longo do
processo.

REFERÊNCIAS

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(Programa de Pós-Graduação em Educação), Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005.

BARCELOS, N. N. S.; VILLANI, A. Troca entre universidade e escola na


formação docente: uma experiência de formação inicial e continuada.
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BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei


de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez.
1996.

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Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1998.

FERRY, G. El trayecto de la formación. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica,


1990.

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educativa. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

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Brasília: UNESCO, 2009.

884
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MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa social: teoria método e criatividade. 32.


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MOYANO, J. A. O coordenador pedagógico e a formação continuada


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em serviço. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação),
Universidade de Brasília, Brasília, 2020.

885
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de formação continuada de professores em escolas públicas de
educação básica. Form. Doc., Belo Horizonte, v. 04, n. 07, p. 126-140,
jul./dez. 2012.

886
GLOSSÁRIO TERMINOLÓGICO DA UNILA (ATUALIZAÇÃO 2018 –
2022)140

Fidel Pascua Vílchez141

RESUMO: Pesquisa sobre a terminologia do marco normativo que rege a Universidade


Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). Com base em Pascua Vílchez (2019),
Cabré (2005), Krieger & Finatto (2004), entre outros, defendemos que o léxico do marco
normativo universitário constitui a terminologia de uma área específica e, portanto,
deve cumprir com o princípio de monovalência nesse dado contexto, embora seja
possível também a variedade terminológica. Justificamos a pesquisa por ser a Unila uma
universidade bilíngue que recebe estudantes e docentes tanto brasileiros/as quanto de
origens hispana e haitiana. Isso faz com que surjam dúvidas quanto à interpretação da
terminologia incluída no marco normativo da instituição. Como objetivos principais nos
propusemos a criação de um banco de dados terminológico e de um glossário
terminológico monolíngue com equivalências em espanhol; como objetivos derivados
destes: auxiliar a discentes, docentes, técnicos administrativos em educação (TAEs) e
comunidade externa vinculada à Unila como participante de projetos de pesquisa e/ou
extensão; contribuir para o projeto político-pedagógico da Unila e para a integração
latino-americana; resolver problemas de interpretação de documentos institucionais.
Quanto à metodologia aplicada, foi selecionado um corpus de documentos normativos
dos quais foram extraídos posteriormente os candidatos a termos, organizados em
árvore de domínio para mostrar suas relações conceptuais. Depois, as informações de
cada termo foram organizadas em fichas terminológicas dentro de um banco de dados
informático mediante o programa Microsoft Access 2016. Essas fichas serviram
finalmente para a elaboração do glossário. Atualmente, a pesquisa abrange o período
2018 – 2022. Concluímos que: o léxico do marco normativo da Unila constitui uma
terminologia específica, usada pelos membros dessa comunidade em contextos de uso
também específicos; existem problemas de interpretação dessa terminologia, tanto
monolíngue em português quanto pelos membros da universidade não brasileiros.

Palavras-chave: Terminologia do marco normativo universitário, Glossário monolíngue


com equivalências, Teoria Comunicativa da Terminologia.

140 Artigo resultado do projeto de pesquisa cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-


Graduação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
Atualização do Glossário Terminológico da UNILA, com código PIA 2042 – 2019.
141 Professor da área de Letras/Linguística na Universidade Federal da Integração Latino-

Americana (UNILA).

887
INTRODUÇÃO

Este artigo é o resultado de uma pesquisa na área da Terminologia,


norteada pelos postulados teóricos da Teoria Comunicativa da
Terminologia (TCT) e desenvolvida desde 2015 na Universidade Federal
da Integração Latino-Americana (UNILA), sediada na cidade de Foz do
Iguaçu – Paraná. O principal objeto resultante da mesma foi a
publicação em 2019 do Glossário Terminológico da UNILA. Atualmente,
estamos trabalhando na atualização do mesmo, a partir de um corpus
que abrangerá os documentos normativos da Universidade desde 2018
até 2022.

O Glossário Terminológico da UNILA foi criado com o intuito de


auxiliar a alunos, professores, técnicos, pessoal terceirizado e
comunidade externa vinculada à instituição através da participação em
projetos de pesquisa ou extensão.

Esta pesquisa, inspirada pelas teorias de Cabré (1999, 2000, 2005) e


outros teóricos da Terminologia, como Krieger & Finatto (2004),
Bevilacqua (2004) ou Wüster (1998), deu como resultado dois artigos
publicados em revistas especializadas (2015, 2016) e um capítulo de livro
(2015). Como conclusão principal, estabelecemos que o léxico
acadêmico incluído no marco normativo universitário constitui a
terminologia de uma área específica, ao estar presente dentro de um
corpus de documentos normativos e, portanto, deve cumprir com a
máxima de monovalência nesse dado contexto, apesar de que no uso
comum da língua possa ser polissêmico.

Quanto à metodologia aplicada, fizemos, em primeiro lugar, uma


delimitação do objeto de estudo: o marco normativo da UNILA,

888
selecionando os documentos que regem a nossa universidade; depois,
foram extraídos dos mesmos os candidatos a termos; na sequência,
organizamos os termos em árvores de domínio que mostrassem suas
relações conceptuais; finalmente, todas as informações foram
registradas em fichas terminológicas, usando el programa Access de
Microsoft Office, que serviram posteriormente para a elaboração dos
1927 verbetes do glossário.

Uma obra de caráter terminográfico diferencia-se das outras obras


lexicográficas, basicamente, por não estar destinada a todos os tipos de
usuários, por não estar concebida para um público geral, mas para um
grupo de especialistas ou de pessoas interessadas em um subcódigo
especializado da língua.

As obras desta natureza, em função das suas características,


recebem diferentes denominações: dicionários, glossários, léxicos,
terminologias, vocabulários, enciclopédias, nomencladores e
nomenclaturas.

De todas elas, a que melhor se adaptava ao tipo de obra proposta


era a de glossário:

Glossário: faz referência ao conjunto de palavras relacionadas


com uma disciplina ou campo profissional, científico ou
acadêmico, de sentido pouco claro ou difícil de entender para
quem não pertence a ele, ordenadas alfabeticamente e que
pode conter (embora não necessariamente) uma definição ou
um conteúdo breve sobre essas unidades; inclusive, costuma
estar vinculado a um texto mais amplo; por exemplo: glossário
de termos informáticos, glossário de economia, etc. (GONZÁLEZ-
JOVER, 2006, p171 – tradução nossa).

A classificação da obra como glossário está justificada, em primeiro


lugar, porque esta inclui termos próprios de um campo profissional,

889
científico y acadêmico, pois na universidade, os professores, alunos e
técnicos são os usuários específicos dos termos incluídos em seu marco
normativo, em suas comunicações especializadas, nos contextos
administrativos e acadêmicos.

Em segundo lugar, os termos selecionados são monovalentes em


seu contexto de uso. Isso faz com que, como destacava a supracitada
autora, sejam de sentido pouco claro para quem não faz parte do grupo
específico de usuários.

Portanto, a pessoa leiga em questões universitárias que ler ou


escutar o seguinte:

Cabe à Universidade promover o desenvolvimento da extensão


em todas as suas modalidades, prover recursos próprios para
induzi-la, apoiando, através da Pró-Reitoria competente, a
busca de financiamento junto aos programas de fomento na
área (UNILA, Estatuto, Art. 58, grifo nosso).

não saberia com exatidão o significado da palavra extensão,


porque no contexto universitário seu significado é um só, monovalente.

Em terceiro lugar, a obra está ordenada alfabeticamente, inclui


uma definição, um exemplo de uso extraído de algum artículo do marco
normativo da UNILA e, eventualmente, um comentário que possa servir
como esclarecimento adicional ao sentido do termo.

Portanto, em função das suas características, a obra deve ser


classificada como glossário.

Resolvida a questão da classificação do tipo de obra, fez-se


necessária a sua classificação também em função das línguas envolvidas.

890
Segundo a TCT, uma obra terminográfica pode ser classificada, em
função das línguas envolvidas, como: “monolíngue, monolíngue com
equivalências, bilíngue, bilíngue monodirecional, bilíngue bidirecional,
bilingualizada e plurilíngue” (GONZÁLEZ-JOVER, 2006, p326 – tradução
nossa).

Em síntese, um dicionário bilíngue é aquele que relaciona o léxico


de duas línguas através de equivalentes. Serve tanto para a codificação
de textos quanto para a decodificação em língua estrangeira, costuma
incluir exemplos de uso, informações gramaticais, pronunciação e
observações, mas nem sempre informações semânticas.

Por sua vez, o dicionário bilíngue apresenta duas variantes:


monodirecional e bidirecional. O primeiro é muito similar ao monolíngue
com equivalências, porque não permite a consulta da informação nas
duas direções; dentre essas duas variantes, o dicionário bilíngue
bidirecional é o mais comum dos de seu tipo. Caracteriza-se por permitir
o acesso à informação nas duas direções e as informações contidas têm
o mesmo peso nas duas línguas.

A classificação do glossário, a priori, no resultava fácil, pois esta


partia das necessidades dos possíveis usuários tanto monolíngues em
português ou espanhol quanto bilíngues em ambas línguas, com a
especificidade de que a UNILA, por um lado, estabelece em seu marco
normativo o bilinguismo como um dos seus eixos fundamentais e, por
outro, como instituição federal brasileira, deve cumprir as leis da União,
as quais estão escritas integramente em português, a língua oficial do
Brasil.

Com efeito, o objetivo principal era oferecer uma definição em


português para todos esses termos extraídos dos documentos

891
selecionados do marco normativo da UNILA, os quais, naturalmente,
estão todos escritos nesta língua. Por esse motivo, o glossário poderia
estar incluído na categoria dos dicionários monolíngues; no entanto, este
apresenta uma língua de partida e uma língua de chegada,
característica própria dos dicionários bilíngues.

Já que o glossário foi elaborado a partir de um corpus de


documentos monolíngue em português, deve ser classificado como
glossário monolíngue e, mais especificamente, como glossário
monolíngue com equivalências em espanhol, sendo impossível pelo
momento a elaboração de uma obra bilíngue, ao não existirem
documentos no marco normativo da UNILA redigidos em espanhol.

Toda obra lexicográfica ou terminográfica, pela sua própria


natureza, está elaborada pensando em que será útil para um tipo
específico de usuário, apesar de que, eventualmente, possa ser
consultada e ajude a qualquer pessoa em uma situação concreta.

Em virtude do anteriormente exposto, a obra está destinada a


possíveis usuários em contato com o léxico do marco normativo da UNILA,
por questões administrativas ou acadêmicas: alunos, professores,
pesquisadores, técnicos, pessoal terceirizado, comunidade externa
participante de projetos e, em geral, qualquer pessoa relacionada com
a mesma.

A grande maioria desses possíveis usuários mantém um vínculo


laboral ou acadêmico com a nossa instituição. Portanto, estão expostos
continuamente à recepção de termos incluídos em seu marco normativo:
Estatuto, Regimento Geral, Regimentos Internos, Portarias, Instruções
Normativas, Decretos, Editais, etc.

892
A principal distinção que debe ser feita entre as obras
lexicográficas está relacionada com o uso normativo das palavras. Desse
jeito, um dicionário, glossário, etc., pode ser prescritivo ou descritivo; ou
seja, prescreve sobre o uso das palavras ou descreve o léxico e não está
limitado pela norma.

De acordo com Cabré (2005, p129-49), o primeiro tipo propõe


simplificar e controlar ao máximo a variação e serve para a
padronização das comunicações internacionais, documentação,
estabelecimento de políticas linguísticas, engenharia do conhecimento
e linguística computacional; o segundo tipo serve para a tradução,
expressão especializada e normatização de línguas em contextos
sociolinguísticos regulamentados por políticas que admitem variação.

Desse jeito, os produtos lexicográficos e terminográficos


apresentam diferentes características em função da sua finalidade.

A Terminografia de orientação prescritiva tem como principal


objetivo evitar a dispersão denominativa e garantir a precisão
comunicativa entre os especialistas. Existem inclusive organismos
nacionais e internacionais de normalização. Por exemplo, aqui, no Brasil,
existe a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), cuja missão é
a de:

Prover a sociedade brasileira de conhecimento sistematizado,


por meio de documentos normativos, que permita a produção,
a comercialização e uso de bens e serviços de forma
competitiva e sustentável nos mercados interno e externo,
contribuindo para o desenvolvimento científico e tecnológico,
proteção do meio ambiente e defesa do consumidor (ABNT,
2014, p1).

893
O organismo internacional mais importante é o International
Standardization Organisation (ISO), o qual prescreve certas regras, não
somente em relação à Terminologia, mas também a outras questões
como produtos, processos industriais, unidades de medida, segurança
das pessoas e bens.

Por sua vez, os trabalhos terminográficos de caráter descritivo


tratam os termos como unidades in vivo; ou seja, em seu contexto de uso.

Desse jeito, guiados pelos princípios da TCT, este glossário não é


prescritivo, apesar de que os termos que o compõem foram extraídos de
documentos cuja natureza é normativa (Leis, Estatuto, Regimentos, etc.).
O documento pode ser normativo, porém a obra lexicográfica não.

Consequentemente, o Glossário Terminológico da UNILA é de


natureza descritiva e cumpre as funções de:

• Auxiliar na decodificação em língua portuguesa: seja a


usuários brasileiros ou hispanos, alunos, professores, técnicos,
terceirizados ou comunidade externa, quando surgir alguma
dúvida ou não entenderem determinado termo que
aparecer em algum documento do marco normativo da
UNILA.
• Auxiliar na codificação em língua portuguesa: nas situações
em que possam surgir dúvidas quanto à denominação de
pessoas, objetos, processos etc., relacionados com a UNILA,
pensando principalmente nos tipos de usuários supracitados.
• Auxiliar na codificação em língua espanhola: acreditamos
que este glossário possa ser de alguma utilidade na hora de
facilitar os equivalentes em espanhol dos termos extraídos do

894
marco normativo da UNILA aos membros lusófonos da
comunidade unileira.

1 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A estrutura do glossário está organizada em função do seu


propósito e das características e necessidades dos possíveis usuários.

A obra apresenta uma estrutura bilíngue monofocal, na direção


língua de partida português para a língua de chegada espanhol e está
composta por superestrutura, macroestrutura e microestrutura, seguindo
a organização proposta por Gelpí (1997):

O dicionário bilíngue, com a representação genérica, responde


a uma estrutura textual determinada que se desenvolve, no
mínimo, em três níveis que são: a superestrutura, a
macroestrutura e a microestrutura. A superestrutura
compreende a organização geral das informações da obra,
considerando as unidades das duas línguas e as informações
sobre as informações sobre as duas línguas. A macroestrutura
está formada pelo conjunto das entradas selecionadas para a
nomenclatura e abrange a seleção, a representação e a ordem
como estas aparecem na obra. E a microestrutura está formada
pelo conjunto das informações organizadas em cada entrada.
(GELPÍ, 1997, p110 – tradução nossa).

Consequentemente, a superestrutura do Glossário Terminológico


da UNILA está composta de:

• Introdução: texto introdutório que serve como apresentação


do mesmo ao usuário e dá as orientações para seu uso.
• Superestrutura monofocal: formada pela macroestrutura e
pela microestrutura na direção português – espanhol.

895
Resumimos a estrutura do glossário no organigrama da Figura 1:

Figura 1: Estrutura do Glossário Terminológico da UNILA.

Superestrutura

Superestrutura monofocal
português - espanhol

Macroestrutura Microestrutura

Entrada em
português

Definição em
português

Contexto em
português

Equivalente em
espanhol

Informações
adicionais

Fonte: o autor.

Por sua vez, a estrutura monofocal está composta por


macroestrutura e microestrutura.

A macroestrutura está composta pelos termos-entrada em


português, ordenados de maneira alfabética, aplicando uma
organização semasiológica e não onomasiológica; ou seja, dando
prioridade à definição do conceito que o termo representa e não ao
termo em si próprio, o qual pode representar vários conceitos. Desse jeito,
cada termo do glossário está associado a uma só definição ou conceito.

896
Nas situações em que dois ou mais conceitos estão representados
pelo mesmo significante, estes estão diferenciados mediante um numeral
exponencial, como, por exemplo, A, A¹, A²; credenciamento,
credenciamento¹, disciplina, disciplina¹, disciplina², etc.

Respeitamos o uso de maiúsculas na lematização dos termos-


entrada, de maneira que se estos foram redigidos em caixa alta nos
documentos do marco normativo da UNILA, seus verbetes
correspondentes no glossário também.

A microestrutura do glossário apresenta a seguinte organização:

1) Termo-entrada: a unidade terminológica (UT) em forma de lema


en português, organizado em ordem alfabética e com destaque em
negrito. Por exemplo: Conceito Preliminar de Curso, Departamento de
Promoção e Vigilância à Saúde, DISEG etc.

2) Definição: a definição terminológica está redigida na mesma


língua do termo-entrada; ou seja, em português, como pode ser
observado no Quadro 1.

Quadro 1: Exemplo de definição do glossário – UT credenciamento.

credenciamento Modalidade de ato autorizativo do MEC, pelo qual é


criada uma instituição de Ensino Superior como faculdade, centro
universitário ou Universidade, em função da sua organização e
respectivas prerrogativas acadêmicas.

Fonte: o autor.

3) Contexto: o contexto corresponde-se com uma citação textual


extraída de um documento do marco normativo da UNILA, na mesma

897
língua do termo-entrada; ou seja, em português. A citação mostra-se
entre aspas e está precedida do símbolo (fonte Wingdings, tamanho
12) que representa um computador, para uma rápida localização da
citação textual.

Além disso, na seção Contexto está sempre incluído um exemplo


de uso do termo entrada, entre colchetes angulares < >, igualmente para
facilitar sua rápida localização no texto.

Seguidamente, informa-se da fonte documentária da citação


textual selecionada, precedida do símbolo (fonte Wingdings, tamanho
12), com a forma, justamente, de documento, para sua rápida
localização no verbete, como se observa no Quadro 2:

Quadro 2: Exemplo de contexto do glossário – UT credenciamento.

“O início do funcionamento de instituição de educação superior é


condicionado à edição prévia de ato de <credenciamento> pelo
Ministério da Educação”. Decreto n° 5.773/2006, Art. 13.

Fonte: o autor.

4) Termo equivalente: mostra-se em forma de lema em espanhol e


precedido pela sigla ESP. Além disso, está destacado em negrito e itálico,
para destacar, por um lado, sua equivalência com o termo-entrada e,
pelo outro, que se trata de uma língua diferente, como se vê no Quadro
3:

898
Quadro 3: Exemplo de termo equivalente em espanhol – UT Certidão de
Nascimento:

ESP Certificado de Nacimiento

Fonte: o autor.

Devemos acrescentar que, no que tange aos termos equivalentes


em espanhol, estes não puderam ser extraídos de documentos do marco
normativo da UNILA, porque todos eles estão redigidos em português,
como determinado por lei para qualquer organismo público brasileiro.

Por esse motivo, foram tomados como referência termos extraídos


dos marcos normativos de outras universidades latino-americanas, como:
a Universidad de Buenos Aires, a Universidad Nacional del Este ou a
Universidad Nacional de Colombia, apenas para confirmar que a
equivalência proposta tinha existência real, tanto no que se referia ao
termo quanto ao conceito que representava.

Em outras ocasiões, os termos em português foram adaptados à


língua de chegada, mediante diversos recursos gramaticais, como:
derivação, prefixação o sufixação em espanhol: seleção/ selección,
credenciamento/ acreditación, egresso/ egresado etc.; também
mediante unidades polilexicais como, por exemplo, aconteceu no caso
de trancamento/ suspensión temporal de matrícula, o qual está
gramaticalmente bem construído, é totalmente compreensível em
espanhol e se relaciona de maneira clara com o termo-entrada em
português.

Em alguns poucos casos, quando não foi possível achar um


equivalente específico em espanhol, optamos por oferecer como termo
equivalente una perífrase, acrescentando as posteriores informações

899
adicionais que explicassem essa eleição. Esse foi o caso, por exemplo, de
bacharelado/ carrera de grado sin habilitación para la docencia, entre
outros.

Acreditamos ser necessário frisar que os termos equivalentes


propostos em espanhol não pertencem a uma variedade dialectal
específica dessa língua, nem se correspondem com termos que
expressam conceitos similares de outra universidade latino-americana.
Eles têm correspondência unicamente com termos extraídos do marco
normativo da UNILA e servem somente para seu âmbito de uso, embora
possam eventualmente ser entendidos e auxiliar a usuários de outras
universidades. Resumindo, estão em espanhol da UNILA.

5) Informações complementares: este campo não faz parte de


todos os verbetes do glossário. Inclui-se apenas nos casos em que a
informação oferecida através da definição e do contexto de uso não é
suficientemente esclarecedora, ou é preciso acrescentar alguma outra
informação relevante para completar seu sentido. Inclui-se também
quando existe alguma diferença específica, matiz ou detalhe, quanto à
equivalência entre o termo-entrada e o termo proposto na língua de
chegada, bem como possíveis variantes.

Formalmente, este campo está localizado fora do corpo do


verbete, separado por um espaço simples e introduzido pelo símbolo
(fonte Webdings, tamaño 12), que representa uma chamada de
atenção, para facilitar sua rápida localização. Além disso, dentro deste
campo estão incluídas as remissões a outros termos do glossário. Estas
remissões são introduzidas pelo símbolo (fonte Wingdings, tamanho 12),
em forma de mão apontando com o dedo indicador, com a mesma
função de facilitar sua localização no texto.

900
Oferecemos, em baixo, um exemplo de Informações
complementares no Quadro 4:

Quadro 4: Exemplo de Informações complementares – UT CAINTER:

Sigla Extinta. Atualmente, CRI. Coordenadoria de Relações


Internacionais.

Fonte: o autor.

Como complemento do já descrito, oferecemos um exemplo de


verbete completo (Quadro 5):

Quadro 5: Exemplo de verbete completo – UT CAINTER

CAINTER Sigla de “Coordenadoria de Relações Internacionais”. “O


Conselho Superior Deliberativo Pro tempore, da Universidade Federal da
Integração Latino-Americana – UNILA [...] resolve: Alterar, ad referendum,
a estrutura acadêmico-administrativa da UNILA, com a seguinte
hierarquia e distribuição de cargos de direção e funções: [...] 1.5.26.1
Coordenadoria de Relações Internacionais (<CAINTER>) – CD-4”.
Resolução 009/2013 CONSELHO SUPERIOR DELIBERATIVO PRO-TEMPORE,
p5. ESP CAINTER

Sigla Extinta. Atualmente, CRI. Coordenadoria de Relações


Internacionais.

Fonte: o autor.

901
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme o exposto, podemos concluir que o léxico do marco


normativo da UNILA constitui uma terminologia específica, usada pelos
membros dessa comunidade em contextos de uso também específicos.
Além disso, comprovamos que existem problemas de interpretação
dessa terminologia monolíngue em português pelos membros da
comunidade universitária, tanto brasileiros quanto não brasileiros.

Devemos acrescentar ainda como conclusão que, desde sua


conceição mesma, o Glossário Terminológico da UNILA foi considerada
uma obra aberta, pois, em primeiro lugar, estamos cientes de que é
impossível que estejam incluídos todos os termos do marco normativo da
UNILA.

Apesar de termos seguido una metodologia de pesquisa rigorosa,


comprovando todos os documentos disponíveis em Internet, estamos
seguros de que existirão termos que escapuliram aos nossos olhos ou que
simplesmente não apareceram nos documentos consultados. Outrossim,
a pesquisa foi desenvolvida com rigor positivista, registrando somente os
termos detetados nos documentos do marco normativo da UNILA e isso
inclui também alguns outros documentos que não têm origem na própria
Instituição, senão no Ministério da Educação e noutros entes públicos
brasileiros, como Leis, Decretos etc.

Em segundo lugar, porque o marco normativo da UNILA no é


imutável. Continuamente são publicados editais, pareceres, resoluções,
portarias etc., os quais introduzem novos conceitos ou tentam modificar
realidades já existentes. Por esse motivo, esta e toda obra terminográfica

902
deve ser revisada com uma certa periodicidade, para sua constante
atualização.

Ademais, esta obra, embora parta de um contexto normativo, no


foi criada com a intenção de prescrever uma definição ou uma relação
de equivalência entre conceitos de dois marcos normativos diferentes.
Estabelece-se, simplesmente, uma relação entre o conceito, o termo
pelo qual está representado em português, a definição que o contexto
indica de maneira explícita ou implícita e, por último, o termo equivalente
proposto em espanhol. Com todas essas informações, o eventual usuário,
a partir das mesmas, deverá decidir se concorda com a equivalência
proposta ou não.

Fizemos o possível para oferecer uma descrição organizada da


realidade do marco normativo da UNILA, com o complemento de sua
possível equivalência em espanhol. Com interesse descritivo, foram
coletadas as informações espalhadas em uma ingente quantidade de
documentos e foram organizadas da melhor maneira possível conforme
o nosso critério, com o intuito de criar uma ferramenta de consulta que
fosse de fácil uso.

Acreditamos, de toda maneira, que esta obra pode ser de alguma


utilidade para aquelas pessoas que procurarem nela informações para
sarar dúvidas quanto a terminologia da UNILA. Se, realizada a consulta, o
glossário não satisfazer plenamente ao usuário, ao menos lhe servirá
como primeiro auxílio e facilitará as indicações necessárias que lhe
encaminhem à informação que procura, seja através da definição
proposta, do contexto, da fonte documentária ou das informações
complementares.

903
REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. Missão. Disponible en:


<http://www.abnt.org.br/m3.asp?cod_pagina=951>. Acceso el 08 de
junho de 2021.

BEVILACQUA, C. R. Unidades Fraseológicas Especializadas Eventivas


descripción y reglas en el ámbito de la energía solar. Tese (Doutorado).
Barcelona/ Porto Alegre: Universidad Pompeu Fabra. Institut Universitari
de Lingüística Aplicada, 2004.

CABRÉ, M. T. El traductor y la terminología: necesidad y compromiso. Em:


Panace@, Madri, v. 1, nº 2, p.2. Dezembro, 2000.

______. Hacia una teoría comunicativa de la terminología: aspectos


metodológicos. Em: Revista Argentina de Linguística, Cuyo, nº 11, p129-
149. 1999.

______. La Terminología: representación y comunicación: elementos para


una teoría de base comunicativa y otros artículos. Girona: Documenta
Universitaria, 2005.

GELPÍ ARROYO, C. Mesures d´avaluació lexicogràfica de diccionaris


bilingües. Tese (Doutorado em Variació en el Llenguatge). Universitat de
Barcelona, 1997. Institut

Universitari de Lingüística Aplicada. Universitat Pompeu Fabra. Barcelona,


2003.

GÓMEZ GONZÁLEZ-JOVER, A. Terminografía, lenguajes profesionales y


mediación interlingüística. Alicante: Universidad de Alicante, 2006.

KRIEGER, M. D. G.; FINATTO, M. J. B. Introdução à Terminologia. São Paulo:

904
Contexto, 2004.

PASCUA VÍLCHEZ, F. Análise do léxico acadêmico universitário em


contexto normativo desde uma perspectiva terminológica. Em: Revista
da ANPOLL (Online), v. 1, n°39, p102-114, Florianópolis, 2015. Disponível em:
<https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/910/835>.
Acesso em: 08 de junho de 2021.

______.O glossário bilíngue português-espanhol/ espanhol-português de


termos acadêmicos. Em: Anise de Abreu Gonçalves D’Orange Ferreira;
Cristina Martins Fargetti; Clotilde de Almeida Azevedo Murakawa. (Org.).
Variedades do léxico. 1ed. Araraquara: Letraria, 2015, v. 1, p. 81-90.
Disponível em: << https://www.letraria.net/wp-
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______.O Princípio da Variação e o Princípio da Adequação em


Terminografia bilíngue: uma pesquisa sobre o marco normativo
universitário brasileiro, português e argentino. Em: (Con)textos Linguísticos,
v. 10, n°17, p83-101, 2016. Disponível em:
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA. Estatuto.


Disponible en:
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WÜSTER, E. Introducción a la Teoría General de la Terminología y a la


Lexicografía Terminológica. Barcelona: Institut Universitari de Lingüística
Aplicada, 1998.

905
O LÉXICO DO MARCO NORMATIVO UNIVERSITÁRIO E SEUS
PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO: O CASO DA UNILA142

Fidel Pascua Vílchez143

RESUMO: Pesquisa sobre o léxico do marco normativo universitário (MNU) e a


acessibilidade textual de seus documentos, relacionada com os problemas de
interpretação surgidos a discentes, docentes, técnicos administrativos em educação
(TAEs), bem como à comunidade externa vinculada à instituição de educação superior
através de projetos de pesquisa e/ou ações de extensão. Com base em Cabré (1993),
Krieger & Finatto (2017), Pascua Vílchez (2018), entre outros, analisamos a problemática
no âmbito da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) desde: a)
uma perspectiva monolíngue em relação aos membros da comunidade universitária
brasileiros e brasileiras; b) uma perspectiva bilíngue português – espanhol em relação
aos membros dessa comunidade não brasileiros ou brasileiras. Partimos da hipótese de
que deveriam existir problemas de compreensão dos Editais, Portarias, Resoluções e
demais documentos do MNU que regem a UNILA, devidos principalmente à ausência
de definições de termos especializados nesses documentos, as quais facilitariam sua
acessibilidade textual. Foram estabelecidos como objetivos principais: a) determinar
efetivamente a existência dos mesmos; e b) providenciar soluções. Como objetivos
específicos derivados dos anteriores, foram estabelecidos: criar um projeto de iniciação
científica com a participação de discentes e TAEs e elaborar uma ferramenta
lexicográfica para auxílio dos consulentes. Quanto à metodologia, foi feito o
levantamento das dúvidas mais frequentes, a seleção de um corpus de documentos
normativos, extração dos candidatos a termos, elaboração de fichas terminológicas em
uma base de dados informática e, finalmente, a composição de um glossário
monolíngue português com equivalências em espanhol. Concluímos que: a) existem sim
problemas de interpretação do MNU que atrassam os processos, causam desconforto
e eventuais prejuízos; b) o léxico do MNU constitui uma terminologia específica, ao ser
usado por uma comunidade de usuários também específicos em situações
comunicativas concretas; c) são necessários capítulos de definições em documentos e
ferramentas lexicográficas especializadas no âmbito universitário.

Palavras-chave: Terminologia da UNILA, Acessibilidade textual, Glossário monolíngue


com equivalências.

142 Artigo resultado do projeto de pesquisa Atualização do Glossário Terminológico da


UNILA, cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com código PIA2042 – 2019.
143 Professor da área de Letras/Linguística na Universidade Federal da Integração Latino-

Americana (UNILA).

906
INTRODUÇÃO

As instituições de ensino superior estão regidas por uma série de


normas, a fim de que os múltiplos setores que as compõem estejam
integrados entre si e estas possam funcionar como um sistema.

O conjunto de normas que regem as universidades estão expostos


nos documentos do marco normativo universitário (doravante MNU). Para
evitar problemas de interpretação e eventuais prejuízoa, estas devem ser
expressas de maneira clara sem dar lugar a equívocos. Além disso, cada
conceito relacionado a pessoas, processos e lugares da Universidade
deve estar recolhido sob uma só denominação, para evitar a polissemia
e, portanto, a ambiguidade.

Às vezes, o léxico que aparece no MNU pertence ao acervo


comum de uma língua. Palavras como professor, estudante, diploma,
não apresentam dúvidas para qualquer pessoa que ler um documento;
no entanto, podem aparecer também palavras e expressões que têm
um sentido específico no âmbito em que elas são usadas, diferente do
uso corrente da língua.

Por exemplo, a palavra extensão tem múltiplas acepções no


dicionário, mas no âmbito do ensino superior, refere-se apenas ao
processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a
pesquisa de maneira indissociável e viabiliza a relação transformadora
entre a universidade e a sociedade. Cada insituição terá suas
especificidades, mas o conceito geral comum a todas é esse.

907
Portanto, uma pessoa alhéia ao mundo universitário ou que esteja
apenas se inserindo nele não saberá interpretar devidamente um
enunciado do tipo:

Cabe à Universidade promover o desenvolvimento da extensão


em todas as suas modalidades, prover recursos próprios para
induzi-la, apoiando, através da Pró-Reitoria competente, a
busca de financiamento junto aos programas de fomento na
área” (UNILA, Estatuto, Art. 58, grifo nosso).

A dificuldade de interpretação do termo extensão nesse contexto


específico, pode acarretar ao leitor desavisado o não entendimento, no
geral, do documento em que foi inserido (Edital, Portaria, etc.), com
eventuais prejuízos em forma de demora, perda de praço, desconforto,
entre outros. Se esse problema já existe para os próprios membros da
comunidade universitária brasileiros, este se acrescenta no caso dos
membros não brasileiros.

No caso da UNILA, esta instituição recebe estudantes e docentes


da América Latina e do Caribe. Já desde os inícios, em 2010, seu marco
normativo considera o bilinguismo como eixo fundamental, junto com a
integração regional e a vocação latino-americana:

A UNILA destaca, dentre as condições culturais essenciais para


a realização do projeto de integração latino-americana e
caribenha, o princípio de bilinguismo (português e espanhol), o
qual se articula nos diversos âmbitos administrativos, científicos e
pedagógicos da universidade (UNILA, PDI 2013 – 2017, p. 17).

Constatou-se que, tanto no âmbito pedagógico quanto no


científico, isto se cumpre, já que as aulas são ministradas em português e
espanhol dependendo do docente e são desenvolvidas pesquisas, teses,

908
projetos em ambas línguas. No entanto, o mesmo não ocorre no âmbito
administrativo, pois os documentos do MNU são redigidos exclusivamente
em português e os servidores técnicos administrativos em educação (TAEs)
são todos de origem brasileira, sem a fluência necessária em espanhol e
sem o domínio da terminologia acadêmica universitária nesse idioma.

Partimos da hipótese de que deviam se produzir situações de


conflito linguístico nas secretarias acadêmicas da UNILA, tanto
monolíngues como bilíngues; aliás, que os textos do MNU não são
totalmente acessíveis para a comunidade acadêmica da UNILA, motivo
pelo qual estabelecemos os seguintes objetivos principais:

• Determinar efetivamente a existência dos mesmos.


• Providenciar soluções.

Como objetivos específicos derivados dos anteriores, foram


estabelecidos:

• Criar um projeto de iniciação científica com a participação


de discentes e TAEs para estudar a problemática.
• Participar de projetos de extensão voltados à tradução de
terminologia acadêmica.
• Elaborar uma ferramenta lexicográfica para auxílio dos
consulentes.
• Organizar cursos de capacitação destinados aos servidores
técnicos.
• Contribuir para a acessibilidade textual dos documentos do
MNU.

909
1 METODOLOGIA

Durante o período de matrícula, foi feito um levantamento das


situações de conflito linguístico entre os discentes e os técnicos da
Secretaria Acadêmica do Insituto Latino-Americano de Artes, Cultura e
História (ILAACH), a unidade acadêmica que realiza a gestão
administrativa dos cursos de: Antropologia – Diversidade Cultural Latino-
Americana, Cinema e Audiovisual; História – Licenciatura; História -
América Latina; Letras, Artes e Mediação Cultural; Letras – Espanhol e
Português como Línguas Estrangeiras; e Música.

Para o ingresso à UNILA os estudantes precisam apresentar


determinados documentos pessoais, como, por exemplo, certidão de
nascimento, comprovante de residência, histórico escolar, entre muitos
outros.

Foram registrados então todos os termos associados a nombres de


documentos, processos, órgãos da universidade, cargos e funções, etc.,
que íam surgindo nas dúvidas dos interessados em um banco de dados
informático criado mediante o programa Microsoft Access. Cada termo
levantado foi registrado como entrada de uma ficha terminológica, a
qual foi posteriormente complementada com outros campos: definição,
contexto de uso, documento normativo do qual foi extraído, equivalente
em espanhol e observações. Posteriormente, esse banco de dados
contribuiu para a elaboração do Glossário Terminológico da UNILA
(Pascua Vílchez, 2019), obra terminográfica em permanente atualização.
Atualmente, está sendo organizada a segunda edição da mesma,
abrangente do período 2018 – 2022.

910
Com o intuito de contribuir para a acessibilidade textual dos
documentos normativos que contém os termos motivo de conflito
linguísticos, esses termos e documentos foram analisados durante os
encontros do projeto de iniciação científica Terminologia em contexto
normativo relacionada com a entrada de estudantes na Universidade:
uma pesquisa sobre a UNILA e a UNE144.

O projeto contou com a colaboração de uma bolsista de IC, uma


colaboradora discente e uma servidora TAE. As três trabalharam
conjuntamente no levantamento de dados e na elaboração de um
artigo científico com os resultados:

As funcionárias relataram que dificilmente os estudantes


chegam pedindo na Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE)
da Universidade pelo documento de “hipossuficiência”, muitas
vezes confundem com “atestado de residência”, “auxílio
subsídio” ou pedem por “aquele documento”; entretanto, as
funcionárias não souberam explicar se existe um termo
equivalente em espanhol para facilitar a compreensão desta
palavra para os hispano falantes (DA SILVA, PASCUA VÍLCHEZ,
SCHMIDT, 2018, p. 53).

Com esses dados, os documentos eram analisados em função da


terminologia geradora de conflitos e providenciou-se aos discentes
brasileiros e hispanos uma redação alternativa que explicasse melhor o
conteúdo dos mesmos, facilitando a acessibilidade, a compreensão do
texto no geral.

144 Universidad Nacional del Este, sediada em Ciudad del Este, Paraguay.

911
2 REFERENCIAL TEÓRICO

A terminologia do MNU constitui um tipo de léxico especializado,


próprio das denominações técnicas, relacionado com cargos, encargos,
funções, órgãos, documentos, organização acadêmica, processos na
universidade, etc., usado em um contexto específico e delimitado
conceitualmente. Segundo Cabré (1993, p. 37.): “Para os especialistas, a
terminologia é o reflexo formal da organização conceitual de uma
especialidade, e um meio inevitável de expressão e comunicação
profissional”.

A modo de exemplo, os membros da comunidade universitária,


exceituando os recém chegados, não apresentarão dúvidas quanto ao
conceito representado pelo termo extensão, pois ele tem funcionamento
monossêmico e monorreferencial para esta comunidade em suas
comunicações especializadas. Portanto, o léxico acadêmico pode ser
entendido desde uma perspectiva terminológica. De acordo com
Krieger e Finatto (2017, p. 16):

Os termos compreendem tanto uma dimensão cognitiva, ao


expressarem conhecimentos especializados, quanto uma
dimensão lingüística, tendo em vista que conformam o
componente lexical especializado ou temático das línguas”
(KRIEGER; FINATTO, 2017, p. 16).

Aínda, a terminologia do MNU universitário não se limita a unidades


monolexicais, senão que inclui também fraseologia especializada. Pense-
se, por exemplo, em termos do tipo: reopção por curso diverso,
afastamento com ônus limitado, trancamento de matrícula,
transfêrencia externa, por citar apenas alguns.

912
No âmbito terminológico, segundo Bevilacqua (1996, p. 14), quem
considera principalmente a composição da unidade fraseológica e seu
domínio, podemos considerar a unidade fraseológica como: “Cadeia de
caracteres especializada, constituida por elementos invariáveis e
variáveis que assume, em conseqüência, o caráter de uma matriz
representativa de um domínio” (BEVILACQUA, 1996, p.114).

No entanto, ao se tratar de terminología do MNU universitário, se


considerarmos preferentemente o tipo de unidades lexicais que
constituem o termo do MNU, elas são em sua maior parte substantivos ou
equivalentes. Portanto, podemos também referirmos à definição de Blais
(1993, p. 52): “Combinação de elementos linguísticos próprios de um
domínio de especialidade, dos quais um é termo núcleo, que estão
ligados semanticamente e sintaticamente e para os quais existe uma
restrição paradigmática” (BLAIS, 1993, p. 52).

Além da análise terminológica do léxico do MNU, propusemo-nos


criar uma ferramenta de consulta destinada aos discentes calouros,
como objeto resultante do projeto de iniciação científica. Para tanto,
seguimos as recomendações de Krieger & Finatto (2017, p. 127) na sua
elaboração: seleção do corpus, extração dos candidatos a termos,
organização da árvore conceitual, criação de um banco de dados
terminológicos e, finalmente, a elaboração do glossário.

Quanto à análise dos documentos do MNU que apresentaram os


maiores problemas de decodificação foram muito relevantes para o
projeto as aportações de Finatto (2020) em relação à acessibilidade
textual.

De acordo com a autora (2020, p. 84 – 85), a terminologia de um


texto constitui, às vezes, uma dificuldade insalvável para o leitor leigo e

913
isso pode fazer com que o texto em seu conjunto, como um todo, não
seja entendido e, além disso, faça o leitor dessisitir, do memso modo que
um cadeirante dessiste de tentar acessar a um prédio ao se deparar com
alguma barreira arquitetônica.

Nesse sentido e seguindo a metáfora, nós tentamos criar essas


rampas de acessibilidade ao texto, redigindo-o de maneira mais
compreensível e fornecendo ferramentas terminográficas de apoio.

Relacionado diretamente com o conceito de acessibilidade


textual, deve se mencionar também a Roman Jakobson (1959, p. 233).
Este autor, ao formular sua teoria da tradução, estabeleceu a categoria
da tradução interlinguística ou reformulação, o tipo de tradução que
consiste na interpretação dos signos linguísticos mediante outros signos
da mesma língua. Foi justamente isso que nós fizemos durante as sessões
do projeto de iniciação científica.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao longo do período de matriculação, foram levantados até 77


términos extraídos dos editais, projetos pedagógicos, portarias e outros
documentos do MNU da UNILA. Esses termos foram organizados em fichas
terminológicas mediante o programa Microsoft Access 2016, incluindo os
campos seguintes: código numérico, área, subárea, português brasileiro,
fonte do termo, definição, fonte da definição, contexto de uso, fonte do
contexto, espanhol paraguaio, observações, conforme se mostra na
Figura 1:

914
Figura 1: Modelo de ficha terminológica em vista formulário.

Fonte: Pascua Vílchez; Schmidt; Silva, 2019, p. 63.

Posteriormente, essas fichas terminológicas serviram de base para


a elaboração dos verbetes (Quadro 1) de um pequeno glossário bilíngue
bidirecional português-espanhol/ espanhol-português, como ferramenta
de consulta e primeiro auxílio aos calouros.

Quadro 1: Exemplo de verbete no glossário: Processo Seletivo Nacional de alunos

Processo Seletivo Nacional de alunos m Processo de seleção de


alunos, conforme critérios estabelecidos pela Universidade, para o
preenchimento das vagas oferecidas nos cursos de Graduação e
destinadas a candidatos brasileiros participantes do ENEM. "Os
resultados do <Processo Seletivo Nacional de alunos> para o qual se
abrem inscrições neste Edital são válidos para o ingresso no primeiro
semestre do ano letivo de 2015." EDITAL PROGRAD Nº 095/2014. ESPPAR
Proceso Selectivo Nacional de alumnos m

915
☞Paráfrase. No Paraguai, não existe uma prova nacional de acesso
à Universidade; no entanto, algumas universidades mantém, como
requisito, em seus processos seletivos, superar algúm tipo de prova como
instrumento de avaliação dos conhecimentos dos candidatos.

Fonte: Pascua Vílchez; Schmidt; Silva, 2019, p. 63.

Os 77 verbetes gerados como resultado da pesquisa fizeram parte


depois do Glossário Terminológico da UNILA, obra terminográfica de
maior abrangência e composta por 1927 verbetes no total.

Além de aportar ferramentas terminográficas para resolver os


problemas de compreensão dos documentos do MNU, o que seria a
solução mais tradicional dentro dos estudos do léxico, o projeto foi além
disso e a equipe trabalhou também em providenciar acessibilidade
textual aos documentos durante os encontros, decifrando, reelaborando
ou redigindo os trechos que geravam mais dúvidas aos discentes
calouros, não apenas fazendo tradução interlinguística português –
espanhol, mas, sobretudo, fazendo tradução intralinguística na língua
meta, como, por exemplo:

4.1 O(a) candidato(a) latino-americano(a) ou caribenho(a)


(exceto brasileiro(a)) interessado em concorrer, por meio deste
edital, a uma vaga em curso de graduação da UNILA poderá se
inscrever em uma das duas modalidades de concorrência
abaixo descritas: a) Demanda Social: aberta a candidato que
comprove, nos termos do item 4.2 deste edital, hipossuficiência
econômica; e b) Ampla Concorrência: aberta a candidato que
não apresente documentos comprobatórios de hipossuficiência
econômica (UNILA, 2021, p. 3 – grifo nosso).
4.1 O(a) candidato(a) latino-americano(a) ou caribenho(a)
(exceto brasileiro(a)) interessado em concorrer, por meio deste
edital, a uma vaga em curso de graduação da UNILA poderá se
inscrever em uma das duas modalidades de concorrência

916
abaixo descritas: a) Demanda Social: aberta a candidato que
comprove, nos termos do item 4.2 deste edital, estar em situação
de carência financeira e não possuir recursos suficientes para o
próprio sustento; e b) Ampla Concorrência: aberta a candidato
que não apresente documentos comprobatórios de
hipossuficiência econômica (tradução intralinguística).

4.1 El/la postulante latinoamericano/a o caribeño/a (excepto


brasileño/a interesado/a en concursar a través de este aviso
oficial a una plaza en carrera de grado de la UNILA podrá
inscribirse en una de las dos modalidades de concurso descritas
a continuación: a) Demanda Social: accesible al/a la postulante
que demuestre, en los términos del ítem 4.2 de este aviso oficial,
contar con pocos recursos económicos y no poder mantenerse
por sí mismo; e b) Modalidad Abierta: accesible al/a la
postulante que no presente los documentos que comprueben
contar con pocos recursos económicos y no poder mantenerse
por sí mismo (tradução intralinguística na língua meta).

Outra contribuição importante para facilitar a compreensão de


documentos do MNU e sua acessibilidade textual é o projeto de extensão
Laboratório de Tradução, voltado principalmente, mas não só, à
comunidade discente da UNILA.

Desde 2016, o projeto trabalha na inserção dos alunos na prática


tradutória durante a primeira fase e no desenvolvimento posterior dessa
competência nos estágios mais avanzados, conscientizando-os das
dificuldades específicas na tradução de duas línguas tão próximas e
valorizando o bilinguismo institucional. Segundo Oliveira (2019, p. 16):
“Essa reflexão permitiu que o grupo não só identificasse tais aspectos ao
longo do processo tradutório, mas também desenvolvesse estratégias
coletivas que culminaram, muitas das vezes, em interessantes soluções
tradutórias” (OLIVEIRA, 2019, p. 16).

O projeto de extensão, as ferramentas lexicográficas


especializadas e o projeto de iniciação científica complementam-se
com os cursos de capacitação em espanhol para servidores técnicos

917
administrativos da UNILA. Eles possuem carga horária total de 102h e
estão organizados em dois encontros semanais, visando à adquisição da
fluência necessária para o atendimento aos alunos nas secretarias
acadêmicas dos quatro institutos que conformam a universidade
(ILAACH, ILAESP, ILACVN e ILATIT).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados expostos mostram que o léxico do MNU da UNILA e, por


extensão, das outras universidades brasileiras, constitui uma terminologia
específica usada pelos membros dessa comunidade em contextos de
uso também específicos. Devido à sua especificidade, as pessoas leigas
que chegam na universidade tem que se deparar no seu cotidiano com
todo esse linguajar dos editais, portarias, etc., que nem sempre é claro e
transparente, muito menos ainda se a pessoa não tem o português como
língua materna.

A nossa experiência e a análise feita demonstraram que existem


problemas de interpretação dessa terminologia, tanto desde uma
perspectiva monolíngue em português, quanto bilíngue considerando
que o espanhol é a outra língua oficial da UNILA. Essas dificuldades foram
manifestadas por discentes brasileiros e hispanos.

Na instituição, não é suficiente apenas uma tradução


interlinguística ao espanhol dos documentos redigidos em português
para resolver os problemas de compreensão. É preciso, por um lado,
facilitar a acessibilidade textual em português mediante uma tradução
intralinguística; por outro, fazer ao mesmo tempo uma tradução
interlinguística e intralinguística na língua meta, para assim criar essas

918
“rampas de acesso” à plena compreensão do documento específico
como um todo.

Os projetos de iniciação científica que visam a melhorar o


funcionamento da instituição, os projetos de extensão con ênfase na
tradução, os cursos de capacitação a técnicos em línguas adicionais e
as ferramentas lexicográficas especializadas contribuem para auxiliar
docentes, discentes, TAEs e comunidade externa vinculada à UNILA
através de diversos projetos e ações, na compreensão dos documentos
do MNU.

REFERÊNCIAS

BEVILACQUA, C. R. Unidades Fraseológicas Especializadas Eventivas


descripción y reglas en el ámbito de la energía solar. Tese (Doutorado).
Universidad Pompeu Fabra. Institut Universitari de Lingüística Aplicada.
Barcelona/ Porto Alegre, 2004.

BLAIS, Esther. La phraséologie. Une hypothèse de travail. Em:


Terminologies Nouvelles, n. 10, dez. 1993. Bruxelas, 1993.

CABRÉ, M. T. La terminología. Empúries: Antártida, 1993.

FINATTO, M. J. B. Acessibilidade textual e terminológica: promovendo a


tradução intralinguística. Em: Estudos Linguísticos, vol. 49, n° 1, p. 72 – 96.
São Paulo, 2020.

GOUADEC, D. Terminologie: constitution des données. Paris: Afnor, 1990.

HOUAISS, A. Novo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro: Editora Objetiva, 2009.

919
JAKOBSON, R. On Linguistic Aspects of Translation. Harvard University Press.
Cambridge, MA, 1959.

KRIEGER, M. D. G.; FINATTO, M. J. B. Introdução à Terminologia: teoria e


prática. 2ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2017.

OLIVEIRA, B. M. D. Laboratório de Tradução da UNILA: uma experiência


formativa na Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Em:
Letras & Letras, Vol. 35, n° 2. Jul. – dez. 2019, p. 1 – 17. Uberlândia, 2019.

PASCUA VÍLCHEZ, F. Glossário Terminológico da UNILA. Edunila. Foz do


Iguaçu, 2019.

______; SCHMIDT, I. M; SILVA, E. A. K. D. Terminologia em contexto


normativo relacionada con a entrada de estudantes à universidade: uma
pesquisa sobre a UNILA e a UNE. Em: Extretetextos, vol. 18, n°. 2., p. 53 –
72. Londrina, 2018.

UNILA. Edital n° 1/ 2021 – PROINT. Em: Boletim de Serviço n° 031, de 16 de


abril de 2021, p. 2 – 10. Foz do Iguaçu, 2021.

______. Estatuto. Foz do Iguaçu, 2012. Última versão de 05 de março de


2021. Disponível em: <estatuto_unila_5_mar_2021.pdf>. Acesso em: 07 de
junho de 2021.

______. UNILA - UNIVERSIDADE FEDERAL DA INTEGRAÇÃO LATINO-


AMERICANA. Plano de desenvolvimento institucional PDI (2013-2017). Foz
do Iguaçu, 2013. Disponível em:
<http://www.unila.edu.br/sites/default/files/files/PDI%20UNILA%202013-
2017.pdf>. Acesso em: 07 de junho de 2021.

920
MORTE E VIDA SEVERINA, AUTO DE NATAL PERNAMBUCANO -
LITERATURA, ORIGEM E ORALIDADE NO NORDESTE DO
BRASILEIRO

Francisco Acioly de Lucena Neto 145

RESUMO: O presente trabalho tem a intenção de estudar a identidade, a origem e a


memória cultural do nordeste do Brasil na obra poética Morte Vida Severina Auto de
Natal Pernambucano. A Literatura popular surgida na Galícia, também apresentada
em Portugal por intermédio de cantigas medievais. Músicas iniciadas no século XII eram
como um sistema de comunicação independente, se caracterizando como uma língua
regional. Pode-se dizer que o Brasil sofreu uma grande influência da cultura galego-
portuguesa, e principalmente na região nordeste do Brasil, a Literatura de Cordel é um
forte exemplo dessa influência. A Literatura de Cordel, que é assim chamada por sua
fabricação artesanal e para sua comercialização, as cartilhas são expostas em
cadarços nas feiras com a recitação de fragmentos pelo autor, como uma maneira de
divulgar seu produto e atrair o consumidor. Esses textos trazem elementos constitutivos
do cotidiano das pessoas que os consomem, fato importante na captação de leitores,
mas sua importância não se restringe apenas à representação de temas cotidianos, é
uma literatura que reúne história dos indivíduos e, que abrange temas universais,
consolidando a identidade de comunidades inteiras, o que contribui muito para a
conservação da memória cultural do nordeste do Brasil. Essas veias satíricos-literárias das
cantigas medievais, por sua vez, também se apresentam na literatura de Cordel, como
antes feita pelos menestréis galego-portugueses medievais. A literatura de cordel é
também uma fonte de trabalho, protesto, resistência, informação e lazer, são textos que
dão vida às feiras nordestinas brasileiras, seja incentivando-os com os cantores de
cordas, seja garantido o salário de poetas. A presença de traços muito fortes das obras
dos Autos de Natal das regiões da Galícia e Portugal nos séculos XIV e XV, marcados
principalmente pela oralidade. A herança poética nordestina brasileira tem seus traços
também na escrita, sendo aqui exemplificada pelo poema Morte e Vida Severina, Auto
de Natal de Pernambucano, de João Cabral de Melo Neto.

Palavras-chave: Literatura Brasileira, João Cabral de Melo Neto, Identidade.

145Graduando do Curso de Letras/Português da Faculdade Única de Ipatinga - MG,


francisco,aciolyneto@gmail.com

921
INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende estudar a oralidade e identidade da


memória cultural do nordeste do Brasil no poema Morte e Vida Severina
no Alto Pernambucano com a influência literária da tradição galega no
Nordeste do Brasil pela oralidade, identidade e memória, com a análise
do texto de João Cabral de Melo Neto.

O escritor Franklin Maxado escreveu um cordel cujo título é Cordel


del Cordel, ao construir seu folheto, ele se apropriou desse gênero para
definir o cordel:

Se Cordel vem do Galego

Este vem do Latim,

Vou cantar ainda melhor

Pra ninguém achar ruim.

Porque Cordel é cordão,

Barbante ou trancelim.

(...)

O Cordel veio da Europa

Com a poesia e repente.

Quando surgiu a imprensa,

Foi escrito para a gente

O que se falava e cantava

Na inspiração corrente.

[...](MAXADO, 1982)

922
A literatura popular surge na Galícia nas Cantigas Medievais, as
cantigas do século XII, como uma manifestação lixívia independente do
sistema de comunicação, por se caracterizar como uma língua regional.

O galego-português foi à língua falada na orla ocidental da


Península Ibérica em meados do século XIV. Derivado do latim emergiu
gradualmente como uma língua distinta antes do século IX, no nordeste
da península.

Neste sentido, podemos dizer que, em vez de designar uma língua,


a expressão galego-portuguesa designa especificamente uma fase
desta evolução, cujo desenvolvimento assumirá a forma de uma
pequena diferenciação fonética tolerável e segura entre o tempo
utilizado pelos galegos e os portugueses em Portugal.

No entanto, que a situação atual pode ser vista na estrutura da


linguagem e da comunicação, o que não é o caso do estilo de uso da
língua portuguesa no Brasil, e esse assunto gera numerosos debates na
atualidade, mas também, pode-se dizer que o Brasil sofre uma grande
influência da cultura galega.

Tal influência é dada pela diáspora galega durante os últimos três


séculos, por razões políticas inerentes à redemocratização espanhola,
mas também como conseqüência de novas análises conceituais sobre
minorias, identidades e nacionalidades, a imagem estereotipada do
galego como um emigrante pobre e ignorante.

No Brasil aconteceu que o povo galego levou com consigo sua


cultura, arte e literatura e a arte da xilogravura e, juntamente com a
literatura de cordel, que obteve terreno fértil para até os dias atuais,
tendo uma grande importância e força literária no Nordeste do Brasil.

923
No Brasil, ainda havia uma maneira onde o vendedor poderia
evadisse ou escapar, quando um guarda municipal ou fiscal aparecia, já
que o costume era sempre expor os panfletos no chão, em papel de
jornal ou em uma mala aberta nas feiras livres das pequenas cidadelas.

A literatura nordestina ou o cordel é um tipo de poesia popular,


originalmente oral, impressa em folhetos que são pendurados nas
barracas de feiras livre e populares por uma corda também chamado
cordão, portanto, na cadeia de nomes, cordão e / ou cordel como é
chamado na região de Portugal e da Galícia.

Alguns poemas e suas capas são ilustrados com xilogravura. E o


que importa no Cordel são os textos populares não é o autor, mas a
materialidade do Cordel, sua aparência e seu preço.

A partir desses pressupostos, presume-se que a identidade


nordestina está protegida em seus ritos e tradições mantidas até hoje na
forma de canções populares e repentistas (que são homens que cantam
o cordel com seus versos e suas violas).

Como exemplo destas músicas, entre as mais conhecidas, temos a


Literatura de Cordel, que é assim chamada por sua fabricação artesanal
e para sua comercialização, os folhetos são expostas em cadarços nas
feiras com a recitação de fragmentos pelo autor, como uma maneira de
divulgar seu produto e atrair o consumidor. Esses textos trazem elementos
constitutivos do cotidiano das pessoas que os consomem, fato
importante na captação de leitores, mas sua importância não se
restringe apenas à representação de temas cotidianos, é uma literatura
que reúne a história dos indivíduos e, que abrange temas universais,
consolidando a identidade de comunidades inteiras, o que contribui
muito para a conservação da memória cultural do Nordeste.

924
A veia satírico-literária, por sua vez, também se lembra na literatura
de Cordel, como antes feita pelos menestréis galegos medievais. A
literatura de cordel é também uma fonte de trabalho, protesto,
resistência, informação e lazer, são textos que conferem vida às feiras
nordestinas, seja incentivando-os com os cantores das cordas, seja
garantido para ganhar pão.

A literatura de cordel como registro cultural lida com as diferentes


questões que precisam ser analisadas: os fatos históricos não apenas das
versões oficiais (do discurso de políticos e jornais tendenciosos), mas
também das representações dadas. pelos poetas de cordel que, através
dos folhetos, mostram outras visões de momentos históricos vivenciados e
testemunhados por eles.

Como também, marcam na raiz tradicional galega o trovadorismo


dos repentistas nordestinos que são violeiro, como também na sátira dos
textos, ou mesmo nas declarações e no mal-estar, tendo em alguns
cordéis o tema da mulher amada e da traição.

Marcada pela oralidade, a herança poética nordestina tem seus


traços na escrita revelada por formas que abrangem tanto a forma do
cordel na escrita, como nas suas apresentações orais. Nas reproduções
em narrativas, também há extratos coletados da oralidade, como o
poema Morte e Vida Severina – Auto de Natal Pernambucano, de João
Cabral de Melo Neto, como veremos mais adiante.

925
1 BIOGRAFIA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Nascido em Recife, em 9 de janeiro de 1920, e falecido no Rio de


Janeiro, em 9 de outubro de 1999.

Ele era um poeta e diplomata brasileiro. Faz parte da terceira parte


do Modernismo no Brasil da geração de poesia de 1945, ao lado de
Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade faz o mais importante
trio de poetas brasileiros.

Sua obra poética, que vai de uma tendência surrealista à poesia


popular, mas caracterizada pelo rigor estético, com poemas e marcada
pelo uso de toantes rimados, inaugurou uma nova maneira de fazer
poesia no Brasil. Ele trabalha com a racionalização das palavras, a
intertextualidade, além de ser um poeta muito preocupado com a
interpretação pessoal de sua poesia.

Acusado de comunista em 1952 foi expulso pelo Presidente da


República.

Recebeu vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Neustadt,


considerado o "Nobel Americano", sendo o único brasileiro premiado
com tal distinção.

Quando ele morreu em 1999, especulou-se que ele era um forte


candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.

Irmão do historiador Evaldo Cabral de Mello e primo do poeta


Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral era amigo
do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa.

926
2 O ESCRITOR FOI MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS.

Foi eleito membro da academia em 15 de agosto de 1968 e


assumido em 6 de maio de 1969, recebido por Múcio León. Ocupou a
cadeira 37, anteriormente ocupada pelo jornalista Assis Chateaubriand,
com grande importância na literatura brasileira.

Principais Obras

• Pedra do Sono (1942)

• Os Três Mal-Amados (1943)

• O Engenheiro (1945)

• Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)

• O Cão sem Plumas (1950)

• Poesia e composição (1952)

• O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente


à Cidade do Recife (1954)

• Morte e Vida Severina (1955)

• Dois Parlamentos (1960)

• Quaderna (1960)

• A Educação pela Pedra (1966)

• Museu de Tudo (1975)

• A Escola das Facas (1980)

• Auto do Frade (1984)

927
• Agrestes (1985)

• Crime na Calle Relator (1987)

• Primeiros Poemas (1990)

• Sevilha Andando (1990)

• Tecendo a Manhã (1999)

Muitas de suas obras foram traduzidas para o espanhol, sendo elas:

- Seis poemas de "Serial". Tradução de Angel Crespo. Madri: Separata da


Revista de Cultura Brazileña, 1962.

- Poemas sobre Espanha de João Cabral de Melo Neto. Tradução de


Angel Crespo e Pilar Gómez Bedate. Madri: Separata de Cuadernos
Hispanoamericanos, 1964.

- Morte e vida severa. Tradução de Angel Crespo e Gabino-Alejandro


Carriedo. Madri: primeiro ato, 1966.

- Antologia poética. Selecção e tradução de Margarita Russotto.


Caracas: Fundarte.1979.

- Poemas Tradução de Carlos Germán Belli. Lima: Centro de Estudos


Brasileiros, 1979.

- Dois parlamentos. Tradução de Gabino-Alejandro Carriedo, Madri:


Poesia, 1980.

- Educação para a pedra. Tradução de Pablo del Barco. Madri: Viewer


Edition, 1982.

- Morte e vida severa. O carro do frade. Tradução de Santiago Kovadloff.


Buenos Aires: Legasa Edition, 1988.

928
- Antologia poética. Tradução de Angel Crespo. Barcelona: Editorial
Lumen, 1990. Prêmios e Decorações

- Grande Oficial da Ordem Militar de Sant'lago de la Espada de Portugal


(26 de novembro de 1987) - Portugal

- Prémio Camões - 1990 - Portugal

- Prêmio Internacional Neustadt de Literatura - 1992 - Estados Unidos

- Prémio Rainha Sofia para Poesia Ibero-Americana - 1994 - Espanha

- Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo de Portugal (9 de junho de 1998) -


Portugal.

3 RESUMO DO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA UM AUTO DE NATAL


PERNAMBUCO

É um poema dramático, regionalista e modernista, enquadrado


em 18 pinturas e cenas. E é dividido por títulos que explicam ao leitor a
ação que irá surgir. As primeiras doze pinturas visam mostrar a
peregrinação de Severino e as últimas 06 pinturas à chegada à cidade
do Recife e o encontro com a vida.

João Cabral de Melo Neto classificou sua peça de Natal de


Pernambuco, levando em conta tanto a forma popular dos versos curtos,
comum nos carros galego-portugueses medievais, quanto à
circunstância de lidar com um parto (Natal) e situado no sertão
nordestino do Brasil.

Uma característica da literatura medieval galega também consiste


nas denúncias sociais por meio de textos satíricos e com críticas a alguns

929
ombros da nobreza, tal adaptação proposta pelo autor, mostra a riqueza
estilística de sua obra literária, e a proximidade da cultura da oralidade
medieval.

O poema aborda questões relacionadas a reclamações sociais,


tais como:

- A seca que é a falta de água que ocorre em uma região semi-


árida ou seca poligonal no Brasil.

Nessa região é composta por 1.348 municípios, localizados nos


estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco,
Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, compreendendo grande parte do
nordeste geoeconômico brasileiro.

- A reforma agrária.

- Impunidade dos latifundiários por crimes cometidos contra a vida


humana.

- Este trabalho foi adaptado para o teatro, cinema, televisão e


musical com a participação dos cantores brasileiros Chico Buarque da
Holanda, Elba Ramalho e Tânia Alves. Como também foi transformado
em HQ Comics e Animation.

- O Carro de Natal foi muito forte nos séculos XIV e XV na região da


Galiza e Portugal, e muito presente no Nordeste do Brasil.

É uma história contada como se fosse o nascimento de Jesus Cristo


e dos gerentes, já que os carros de Natal são influenciados pelos
gerentes. Neste carro natalino o autor faz a adaptação da vida sofredora
da seca em retirada da região semi-árida do Brasil mostrando sua
jornada em busca de sobrevivência e vida.

930
Esta estrutura estilística deste poema é amplamente utilizada na
poesia galega no tratamento da nascente do menino Jesus, a realidade
sócio-política e a vida das pessoas simples desta região.

A história contará a história da "retirada de Severino", que deixa a


sua terra natal "Serra da Costelaa" e seguindo a rota do rio Capibaribe
chegará à cidade de Recife, que representa a grande capital da região
Nordeste do Brasil, tentando se resgatar ou até mesmo se livrar da morte
antes dos 30 anos, e nessa trajetória de busca pela sobrevivência ele
passará por várias tábuas mortais no desenvolvimento do poema.

É por isso que o autor inverte a lógica da frase no título do poema


"Morte e Vida Severina", já que a ordem natural seria "vida" e "morte", mas
quando observamos o tema, para o protagonista que é o Removedor é
a luta pela vida, sua vida como todos neste lugar, será um duelo
cotidiano com a "morte" que estará presente na fome e nas terríveis
condições climáticas e geográficas do ambiente em que o protagonista
do poema Daí o nome Severina no título do poema torna-se um adjetivo
de vida severa, difícil e árdua.

Texto 1 do poema:

- Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma


cabeça grande que a costa é que é equilibrada, na mesma barriga
crescida nas mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue que
usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de igual morte, mesma morte Severina: que é a morte da qual

931
morre de velhice antes dos trinta, de emboscada ante os vinte de fome
um pouco por dia.

No caso da "morte que precede a vida", no caso da "morte que


precede a vida".

- A obra poética é escrita com a estrutura da Literatura de Cordel,


e possui uma redondilha principal característica em 7 sílabas e uma
grande musicalidade do poema imitando a Literatura Oral. Esta
metrificação e reajustamentos são instrumentos estilísticos muito comuns
nos textos galegos medievais.

O trabalho começa com a jornada pela vida, deixando o mesmo


de sua terra natal, que é a Serra da Costela, havendo uma série de
mortes no curso da ficção literária.

A primeira morte que o Severino se aposenta é com outro Severino


que é morto de morte matada, e com o desenrolar do poema, que está
vinculado as denúncias sociais que compõem a obra, e nessa fase do
poema o autor usa a estrutura de litania religiosa católica.

A segunda morte é observada por Severino em sua caminhada


quando o mesmo ouve as vozes e continua na direção de uma casa
onde várias mulheres rezam e cantam para outro Severino que morre de
fome.

Na estrutura do poema observamos a terceira etapa que aparece


o caráter da Rezadeira e que oferece o uso para rezar pelas almas.

Na quarta passagem desta jornada, o Severino encontra uma terra


fértil e macia, sendo um momento feliz para o recuado, sendo que ele
observa outro rastro de outro Severino em uma região já próxima ao seu

932
destino que é chegar à cidade do Recife, e novamente o autor aponta
para outra queixa social em relação à luta pela reforma agrária.

Então o personagem chega ao final do seu "Rosário", chegando à


cidade do Recife e imaginando não ouvir mais sobre a morte, e quando
descansa vem as conversas dos "coveiros" falando sobre o seu trabalho,
já que se trabalha em um cemitério de isso é o cemitério de Santo Amaro
e funciona muito pouco, e o outro coveiro alega que ele está
trabalhando duro no cemitério do bairro de Casa Amarela, onde está
superlotado, porque muitos corpos de retirantes estão sendo
encaminhados, e ele diz o mesmo em seu discurso que "os retirantes vêm
em busca de água e encontram a terra seca da morte".

Agora Severino depois de ouvir essa conversa dos coveiros e


depois de chegar da longa jornada ao seu destino final que é a cidade
do Recife, resolveu morrer. É quando conhece o Mestre José de Carpina,
que no desenvolvimento do poema é São José Carpinteiro, pai de Jesus
Cristo, e que nasceu em uma cidade chamada Nazaré da Mata.

Então Severino pergunta ao Mestre José Carpina qual é o sentido


da vida? E o Mestre o aconselha a viver. E na hora do desespero de
Severino no poema, há a parte do "Nascimento de uma criança" que é
o momento especial da vida, e no Auto Natalino é a representação do
nascimento do menino Jesus em um lugar pobre e simples. E pela primeira
vez no poema a vida que nasce.

Observamos também a memória dos "Magos" com aqueles


presentes em uma representação da manjedoura. Para a criança pobre
e recém-nascida vizinhos oferecem presentes simples para valorizar a
vida e o amor de Natal.

933
Os ciganos:

O primeiro cigano vê na criança um futuro terrível e uma visão


muito pessimista da realidade na pobreza.

O segundo cigano observa um futuro melhor e mais positivo para


essa vida, sendo um momento lírico, poético e positivo.

O poema faz uma ótima pergunta: por que vale a pena viver?

Texto 2 do poema:

- Severino, retirante, deixa eu te dizer agora: não conheço bem a


resposta da pergunta que estava fazendo, se é melhor não pular da
ponte e sair da vida; que ele não se sente bem, que não se sente bem,
que não se sente bem. sua presença viva. E não há resposta melhor do
que o espetáculo da vida: vê-la desfazer seu fio, que também é
chamado de vida, ver a fábrica que ela própria, sabemos, é fabricada,
vê-la brotar recentemente em uma nova vida explorada; mesmo
quando a explosão é tão pequena, como a que ocorreu; como o
pequeno, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina.

934
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resposta vem com o texto, apesar das mortes, a vida vale a pena
ser vivida, apesar de ser uma vida "Severina", o enredo da história
começa com várias mortes e acaba com a vida.

REFERÊNCIAS

Diáspora Gallega. Disponível


https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1spora_galega>. Acesso em 22 \
04 \ 2021.

João Cabral de Melo Neto - Wikipédia. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto>.
Acesso em 19 \ 05 \ 2021.

Literatura galega. Disponível


https://pt.wikipedia.org/wiki/Literatura_galega>. Acesso em 22 \ 03 \
2021.

MAXADO, Franklin. Ou cordel. São Paulo, 1982.

Melo Neto, João Cabral de. (1955) Morte e vida Severina: Um Auto de
Natal Pernambucano. Nead, Núcleo de Educação à Distância, Belém,
Pará, Brasil. Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-
campinas.edu.br/services/e-
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935
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Massangana. Recife: Fundaj, Brasil. Disponível em
<https://cdnbi.tvescola.org.br/resources/VMSResources/contents/docu
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Morte e Vida Severina | Animação - Completo. Disponível em


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Sobre como cantigas - Cantigas Medievais Galego-Portuguesas.


Disponível

http://cantigas.fcsh.unl.pt/sobreascantigas.asp>. Acesso em 03 \ 05 \
2021.

936
A CENSURA DA LITERATURA FANTÁSTICA E DE HORROR NO
CONTEXTO ESCOLAR: REFLEXÕES SOBRE O LIVRO ABC DOIDO,
DE ANGELA LAGO

Leonardo Vinícius Sfordi da Silva 146

RESUMO: Na contemporaneidade brasileira, devido à consolidação de discursos e


políticas conservadoras, a censura a elementos artísticos está cada vez mais recorrente
nas diversas esferas do cotidiano e nas instituições sociais; de modo consequente, a
literatura infantojuvenil fantástica e de horror abordada no âmbito escolar não escapa
dessa conjuntura e se torna alvo fácil para a solidificação das perspectivas religiosas,
políticas, ideológicas conservadoras e acríticas favoráveis aos cerceamentos das
múltiplas artísticas. Baseado neste cenário vigente, este trabalho, de viés qualitativo e
pautado em uma revisão bibliográfica, tem como corpus de análise e discussão a
censura literária escolar feita no livro infantojuvenil ABC doido (1999), da escritora
Ângela Lago. Para tanto, esta pesquisa está alicerçada nas teorias da literatura
fantástica abordadas por Faivre (1991) e Todorov (2004), bem como nas teorias literárias
críticas pós-estruturalistas – com enfoque nos pressupostos epistemológicos da Estética
da recepção, de Hans Robert Jauss, e da Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser. Isto posto,
este estudo visa problematizar os discursos favoráveis às práticas de censura que
permeiam o contexto artístico e literário no ambiente escolar, bem como à
apresentação de argumentos e reflexões críticas em prol da resistência da livre
expressão das manifestações literárias fantásticas em sala de aula.
Palavras-chave: Censura, Escola, Literatura Fantástica.

INTRODUÇÃO

A censura à liberdade de expressão vem sendo recorrente nas


mais diversas instituições sociais brasileira, com grande destaque a escola
e a família, fruto de políticas e pensamentos conservadores que não
aceita ideias heterogeneidade de ideias. As artes também são afetadas

146Doutorando em Estudos da Linguagem, pela Universidade Estadual de Londrina (UEL),


mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), especialista em
Metodologia do ensino de língua portuguesa, pelo Centro Universitário Leonardo Da
Vinci (2018), graduado em Letras: Português/Inglês (UEM) e em História e Pedagogia
(UNICESUMAR). Leonardo_sfordi90@hotmail.com

937
por essa realidade cerceativa e deixam de ser lidas e exibidas em
múltiplos contextos ainda.

A censura então pode ser entendida como fruto, consciente ou


não, de perspectivas ortodoxas (políticas, religiosas e sociais) que não
aceitam a coexistência de ideias, modos de pensamento distintos e, por
isso, tem a tendência de corroborar com a manutenção do status quo.
Em síntese, o grupo favorável a censura vê no apagamento e na não
exposição das obras um artifício de opressão à heterogeneidade de
ideias.

A Escola é uma instituição social que reflete a realidade social ao


entorno de seus membros e, por isso, frequentemente vem censurando
algumas produções literárias, como é o caso do livro infantojuvenil ABC
doido, de Ângela Lago. A partir desse episódio, este artigo se faz
necessário para examinar o conteúdo do livro em questão, discutir os
argumentos pró-censura e se utilizar das teorias de teorias críticas de
literatura, desmistificando esta prática.

A literatura fantástica, por sua vez, é um dos gêneros literários com


maiores propensões de se tornar alvo da censura artística na escola, pois
este gênero questiona não apenas as convicções religiosas, mas
também as leis estabelecidas pela natureza com o intuito de provocar a
sensação de inquietação no leitor. Todorov (1939) aponta que a
definição de fantástico é uma intersecção a partir do real e do
imaginário, é “a hesitação experimentada por um ser que só conhece as
leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”
(1939, p.31).

De antemão é importante ressaltar que esta pesquisa comunga


com a perspectiva teórica presente em Antonio Candido de que a

938
Literatura é uma necessidade constante e basilar de todos os homens,
independentemente da geração e, por isso, trata-se de “uma
necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui
um direito” (CANDIDO, 1989, p. 112).

Dito isso, este artigo se justifica como uma forma de resistência as


ideologias sociais e políticas conservadoras que não aceitam a relação
dialógica que arte realiza com o público e sua função humanizadora.
Assim, este artigo tem o objetivo de (I) problematizar os discursos
favoráveis à censura do livro ABC Doido, de Ângela Lago no ambiente
escolar, (II) bem como à apresentação de argumentos e reflexões críticas
em prol da resistência da livre expressão das manifestações literárias
fantásticas em sala de aula.

A metodologia utilizada no primeiro momento deste estudo foi uma


revisão bibliográfica a partir dos casos de censura mais recentes e
também acerca dos pressupostos teóricos utilizados, a literatura
fantástica e a Estética da Recepção. Essa pesquisa também pode ser
entendida como um estudo de caso sobre a censura da obra ABC Doido,
uma vez que aplicamos esses conceitos no corpus literário, buscando
compreender o fenômeno da censura e suas peculiaridades nesta obra.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

O referencial teórico que este estudo utilizou se divide em dois, o


primeiro dele foi acerca da literatura fantástica para futuramente
caracterizar a obra ABC doido, de Ângela Lago, ao abordar suas
características e dinâmicas, utilizamos os autores Faivre (1991), Camarani

939
(2014) e Bozzetto (2004). Além disso, utilizamos as teorias literárias pós-
estruturalistas para discutir o impacto da censura, sendo os teóricos Hans
Robert Jauss (1994) e Wolfgang Iser (1996).

A temática do fantástico não é recente, de acordo com Faivre


(1991), anterior à sistematização e à consolidação da literatura fantástica,
que ocorreu no século XIX, “uma vasta literatura pré-fantástica constitui
o solo onde crescem temas e motivos que em seguida o fantástico
utilizará” com a função de “distrair, ensinar e enviar mensagens” (FAIVRE,
1991, p.1).

Isto posto, por conta do longo tempo para a consolidação da


literatura fantástica, a definição não é uma questão simplificada, assim,
a que adotaremos neste estudo é a evidenciada por Camarani (2014),
esta pontua a narrativa fantástica caracterizada “ao mesmo tempo pela
aliança e pela oposição que estabelece entre as ordens do real e do
sobrenatural, promovendo a ambiguidade, a incerteza no que se refere
à manifestação dos fenômenos estranhos, insólitos, mágicos,
sobrenaturais” (CAMARANI, 2014, p.7)

Dessarte, a temática abordada pela literatura fantástica é relativa


ao desconhecido e ao desconhecimento, com o fim de suscitar medo e
inquietação no leitor, deslocando-o para um mundo diferente de nossa
realidade referencial. Alguns dos temas mais evidentes são: Alquimia,
Astrologia, Bruxaria, Diabo, Duplo, Esoterismo, Magia, Morte, Ocultismo,
Paranormalidade, Parapsicologia, Religiões, Sociedades Secretas etc.
Ainda sobre a temática, sua proximidade com a religião é muito grande,
conforme pontua Bozzetto (2004):

940
A antiga ‘imaginação delirante’, ligada à produção de mitos
subentendidos pelas religiões, forneceu um número
impressionante de temas: a vida após a morte, a punição divina,
o purgatório, os diversos infernos, os fantasmas, os diabos, os
íncubos, os súcubos ou as mulheres-raposas. Esses temas, assim
como as figuras que encarnam alguns de seus aspectos – o
vampiro, o lobisomem, o zumbi, o possuído – serão recuperados
e reciclados. Inicialmente pelo folclore e naquilo que se chama
de maravilhoso feérico (a bruxa, o duende). Mas também nos
contos de assustar, no quadro do “maravilhoso noir”. Eles serão
usados num primeiro momento pelos romances góticos em que
se encontram abundantemente fantasmas, filtros, maldições,
depois pelos textos ditos fantásticos quando da elaboração
desses textos em gênero, no fim do século XVIII e no início do XIX.
(BOZZETTO, 2004, p.81)

Sintetizando, a narrativa fantástica diverge do nosso


conhecimento racional e empírico do mundo e das nossas expectações
intuitivas; entretanto, a entendemos por estar ligada, em menor ou maior
intensidade, a nossa realidade. “A ambiguidade própria a desencadear
o arrepio do fantástico supõe um universo de referência que seja
chamado de ´o real´” (VIEGNES, 2006, p.29). É errôneo, por essa razão,
supor que ela é completamente inverossímil, mesmo que apresente certa
liquidez em relação à realidade, está pautada nesta e apresenta a sua
verossimilhança interna.

Além da epistemologia sobre a Literatura fantástica, este trabalho


está pautado na teoria Estética da Recepção, de Hans Robert Jauss,
elaborada na Escola de Constança. A partir desta vertente teórica, o
texto artístico pode ser compreendido como um conjunto de ideias que
materializa de maneira heterogênea, a depender das condições
pessoais, sociais, culturais e históricas, uma vez que o autor não apresenta
mais domínio (como nas teorias estruturalistas) sob a verdade da obra
literária.

941
Assim, o postulado de Jauss diverge dos postulados positivistas, ao
dar luz ao leitor e sua importância no processo de significação literária,
logo ele “não se submete a tradição dominante, uma vez que sua base
teórica defende a ideia do ‘relativismo histórico e cultural, já que está
fundamentalmente convicta da mutabilidade dos objetivos, bem como
da obra literária dentro do processo histórico” (BORDINI, 1993, p.81).

A crítica literária por sua vez, a partir dos postulados de Jauss (1994)
não determinam a verdade de uma obra literária, eles apenas podem
trazer uma possibilidade de leitura a partir de seus horizontes de
expectativas subjetivos, uma vez que

A qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam


nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento,
nem tão-somente de seu posicionamento no contexto
sucessório no desenvolvimento de um gênero, mas sim dos
critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua
fama junto à posteridade. (JAUSS, 1994, p.8)

Em síntese, podemos visualizar uma ampliação do conceito de


leitura, a qual ultrapassa a decodificação do texto e a ideia de que ele
traz uma verdade universal com apenas uma possibilidade de leitura. A
significação está presente no momento de leitura do texto literário a partir
do confronto dos horizontes de expectativas prévios do leitor em
confronto com a obra.

Se a obra corrobora o sistema de valores e normas do leitor, o


horizonte de expectativa desse permanece inalterado e sua
posição psicológica é de conforto. Por outro lado, obras literárias
que desafiam a compreensão, por se afastarem do que é
esperado e admissível pelo o leitor, frequentemente o repelem,
ao exigirem um esforço de interação demasiado conflitivo com
seu sistema de referências vitais (BORDINI, 1993, p.84)

942
Em adição à teoria da Estética da Recepção de Jauss, a Teoria do
efeito, de Wolfgang Iser, também quebra os pressupostos estruturalistas
de leitura e comunga com a ideia de que a Literatura é um texto em
aberto para o leitor preencher conforme suas vivências. Conforme o livro
O ato da leitura: uma teoria do efeito estético (1996), o material literário
torna-se o lugar no qual a subjetividade do leitor ganha espaço, a partir
de suas vivências e repertórios de mundo, auxiliando na elaboração da
representação simbólica da literatura.

Para a perspectiva da Teoria do Efeito, de Wolfgang Iser, a


Literatura só se efetiva no processo de leitura, ou seja, no ato de ler. A
literatura pode ser entendida por essa vertente como um produto da
subjetividade do leitor em encontro com o texto, pois o sentido está
presente justamente nesta articulação. O entendimento da “verdade”
que o texto literário quer passar é impossível, pois para isso é necessário
um leitor perfeito e ideal, o que é

Uma impossibilidade estrutural da comunicação. Pois um leitor


ideal deveria ter o mesmo código que o autor. Mas como o
autor transcodifica normalmente os códigos dominantes nos
seus textos, o leitor ideal deveria ter as mesmas intenções que se
manifestam nesse processo. (ISER, 1996, p.65).

A Teoria do Efeito Estético, de Iser (1996), enfatiza a recepção do


leitor, e entende a literatura como o resultado de uma interação entre a
subjetividade do leitor (seu repertório, tanto literário quanto cultural) e o
texto literário. Todavia, ainda que o leitor literário tenha uma importância
primária, Iser (1996) entende que nem toda produção de sentidos é
válida, uma vez que o texto não comporta literalmente todas

943
possibilidades de leitura, há uma polissemia, mas não uma percepção
infinita.

Em suma, as duas perspectivas são essenciais para o


desenvolvimento deste trabalho, pois compreendem a impossibilidade
de haver uma verdade universal sobre o sentido das obras literárias, logo
há uma longa distância entre o efeito de sentido pretendido do autor, o
entendimento subjetivo de um leitor específico e a verdade da obra,
sendo esta impossível de mensurar.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

ABC Doido, de Ângela Lago, é uma obra da editora


Melhoramentos, tendo a primeira edição publicada em 1999,
classificada e catalogada como infantojuvenil e vencedora do prêmio
Ofélia Fontes – Hors Concours, na categoria de Melhor para Criança, em
2000, além do prêmio Jabuti de Melhor livro Infantil e Juvenil, também em
2000.

Para além de sua qualidade artística premiada, o livro também foi


recomendado de ser utilizado nas instituições escolares, como sugestão no
catálogo do Ministério da Educação (MEC), em 2012, no acervo de
Alfabetização e letramento nas diferentes áreas de conhecimento 147 .
Segundo o próprio MEC, na descrição do material:

147Acervo Alfabetização e letramento nas diferentes áreas de conhecimento disponível


em:<
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=126
96-acervoscomplementares-2013-site-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 8 jun. 2020.

944
A obra ABC doido traz adivinhas que brincam com o alfabeto e,
ainda mais, de trás pra frente. São charadas que chamam a
atenção para as diferentes formas de compor as palavras e suas
sonoridades. Bom pra ler em dupla, alternando quem lê a
advinha, ou em voz alta pela professora para o grupo classe,
para ver quem identifica primeiro o segredo de cada charada.
Quem está consolidando o processo de alfabetização terá um
desafio a mais: afinal, de que são feitas as palavras e qual o
papel das letras nessa composição? (BRASIL, 2012, p.63).

O conteúdo artístico da obra consiste em trazer o alfabeto de trás


para frente, sempre iniciando com uma charada para o leitor conseguir,
nas páginas posteriores, descobrir qual é a letra em questão. Um exemplo
de charada foi “Agora pensa... Espera! O que falta numa aula para ser
uma aula de Fera? A Letra J. J + AULA: Jaula” (LAGO, p.68-70). O material
brinca com a literatura fantástica, pois traz diversos personagens
integrantes deste universo, como: vampiros, fantasmas, lobisomem,
bruxas, o próprio capeta, entre outros personagens.

Figura 1 – Capa do livro ABC doido

Fonte: Lago, 1999.

945
A censura da obra ocorreu na cidade Taubaté, em São Paulo, em
mais de uma instituição social, tanto na esfera escolar – com o
questionamento do material em sala de aula, quanto no âmbito
legislativo, sendo colocado em debate na câmara dos vereadores a
relevância do material. Junto com a obra, mais três outros livros
destinados foram censurados, entre eles a Máscara da Morte vermelha,
de Edgar Allan Poe, Terríveis Romanos, de Terry Deary,

As acusações da comunidade escolar residem na alegação de


que a obra traz uma apologia ao satanismo e, por afetar o
desenvolvimento moral cristão dos alunos, deveria ser retirado das obras
selecionadas como paradidáticos. Conforme a mãe de um dos alunos
da rede municipal da educação de Taubaté-SP “no livro, a letra T é
associada ao tridente e, na página estão figuras do diálogo que ensina que
a letra T não é a da cruz” (G1, 2014a, on-line).

Figura 2 – Página do livro ABC doido

Fonte: Lago, 1999, p.30.

946
A utilização do material chegou a virar pauta de audiência pública
da cidade, conforme a notícia vinculada no site G1, Vale do Paraíba
(2014b, on-line) “Após a polêmica sobre o conteúdo dos livros didáticos
comprados para serem usados por 33 mil alunos da rede municipal
de Taubaté, o material será usado apenas como leitura complementar aos
estudantes. O acordo foi feito entre os vereadores e a secretária de
educação [...]”.

Assim, o que, na verdade, significa dizer que o material será utilizado


apenas como leitura complementar? Significa que ele não será trabalhado
juntamente com o docente em sala de aula, que, muito provavelmente, o
material estará perdido junto a outras obras na biblioteca escolar e que uma
quantidade ínfima de discentes terão acesso ao livro. Em outras palavras, o
material foi censurado em sala de aula, pois não haverá possibilidade de
uma sequência didática com a obra e, assim, desvendar a obra juntamente
com o horizonte de expectativa dos alunos.

A censura que este material está recebendo em sala de aula faz


parte de uma intolerância à diversidade religiosa e cultural que permeia
nossa sociedade, inclusive as escolas. Logo, conteúdos e materiais
artísticos que não recebem a roupagem da religião dominante,
cristianismo, ou correspondam aos seus critérios são censuradas sob a
justificativa de não serem adequadas.

O que é importante ressaltar aqui, a partir da teoria da Estética da


Recepção e da Teoria do Efeito, é que essa concepção de que ABC
Doido fere a moralidade cristã e, consequentemente, não deve ser
abordada no contexto escolar não passa de um horizonte de
expectativas pessoal introjetados na materialidade do texto. Assim, pelo

947
fato de algumas pessoas fazerem esta leitura, não significa que outros
leitores da obra corresponda a esse viés de interpretação.

Por consequência, a partir dos pressupostos das teorias pós-


estruturalistas citadas, não é possível dizer que a obra incita ao satanismo,
mas sim que essa possibilidade semântica está restrita a um viés de leitura,
horizonte de expectativas, particularizado. Logo, a censura deste
material pode ser entendida como uma posição política, posição esta
que desrespeita a pluralidade de ideais e a heterogeneidade de culturas
e identidades, com vistas à manutenção do Status quo.

É importante ponderar também que a censura lançada ao texto


desconsidera princípios básicos da literatura, também abarcados pelas
teorias recepcionais citadas, que são justamente seu teor (I) polissêmico
e seu caráter (II) gratuito. Em relação ao primeiro caso, o texto literário
tem em sua essência o caráter de não ser considerado objetivo, assim a
relação e a semântica textual são por essência múltipla; já para o
segundo, a falta de compromisso com a verdade e a realidade empírica
é uma das características que faz o texto literário sair da esfera
puramente informacional e ser arte.

É possível compreender também que a censura do material fere o


direito à literatura, postulado por Antônio Candido, uma vez que estas
crianças e adolescentes não terão a possibilidade de fruí-la no ambiente
escolar e, como destaca Jauss (1994) e Iser (1996), também não poderão
ter a possibilidade de ampliar seu horizonte de expectativas e seu
repertório literário. Além disso, essa censura diverge de documentos
constitucionais básicos, seja ele a Constituição Federal de, 1988, e
também da própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

948
Em relação à constituição, à censura infringe o artigo 220, “A
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto nesta Constituição” (BRASIL, 1988, on-line) e com
ênfase o segundo inciso, “É vedada toda e qualquer censura de natureza
política, ideológica e artística”. (BRASIL, 1988, on-line).

No âmbito escolar, a censura da obra ABC doido, de Ângela Lago,


diverge de vários preceitos da BNCC - documento que normatiza e
padronização o currículo escolar em território nacional - os quais pregam:
a formação crítica de leitores, o incentivo ao gosto particular, o debate
e articulação entre obras, o desenvolvimento e fruição da leitura literária.

Em síntese, esta pesquisa traz como resultado de que a censura do


livro ABC doido, de Ângela Lago, causa diversos impactos negativos na
formação de leitores literários, uma vez que (I) não está dando a
possibilidade desses jovens fruírem artisticamente das múltiplas obras, (II)
não possibilita o encontro e o diálogo com a heterogeneidade literária,
(III) não converge com os multiletramentos literário, (IV) Não deixa o aluno
ter sua própria percepção e crítica da obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aplicada ao contexto do ensino, a literatura do fantástico é um dos


múltiplos gêneros literários que deverão ser abordados em sala de aula e
o contato do discente com esta é indispensável para desenvolver e
aprimorar seu repertório literário cultural. Uma vez que esta literatura
apresenta suas particularidades, como alude Todorov (2004, p.100) “o

949
fantástico produz um efeito particular sobre o leitor - medo, ou horror, ou
simplesmente curiosidade -, que os outros gêneros ou formas literárias não
podem provocar”. Logo, como resultados, entendemos que a censura
deste material literário é inaceitável tanto pela sua infração aos
pressupostos de ensino, quanto aos pressupostos propriamente literários.

Finalmente, chegamos à consideração que o emprego do texto


literário fantástico em sala de aula, consequentemente, pode se tornar
um contra-argumento para ideologias e religiões ortodoxas, dado que
sua “função primordial seria transgredir a concepção de real que o leitor
possui” (ROAS, 2014, p.117), e é a partir de então que a censura ocorre
no contexto escolar. Dessa forma, para o aluno, a leitura desta arte pode
ser uma maneira de escape e transgressão de sua realidade, bem como
um modo de apresentar, metaforicamente, novas perspectivas e visões
sobre a heterogeneidade do mundo.

REFERÊNCIAS

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metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

BOZZETTO, R. & HUFTIER, A. Les frontières du fantastique: approches de


l’impensable em littérature. France, Presses Universitaires Valenciennes,
2004.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Educação é a Base. Brasília,


MEC/CONSED/UNDIME, 2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-
content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2021.

950
BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário
Oficial, 1988.

BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Acervos complementares:


alfabetização e letramento nas diferentes áreas do conhecimento /
Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Brasília, 2012.
140 p. Disponível em: <
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=downl
oad&alias=12696-acervoscomplementares-2013-site-pdf&Itemid=30192>.
Acesso em: 8 jun. 2021.

CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São


Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

FAIVRE, Antoine. Gènese d’un genre narratif, le fantastique (essai de


Périodisation). In: ___. et al. Colloque de Cerisy: la littérature fantastiique.
Paris: Albin Michel, 1991.

G1, GLOBO. Pais dizem que livros didáticos fazem apologia ao diabo em
Taubaté, SP. Vale do Paraíba, 14 mar. 2014. Disponível em:
<http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2014/03/pais-
dizem-que-livros-didaticos-fazem-apologia-ao-diabo-em-taubate-
sp.html>. Acesso em: 13 jun. 2021.

G1, GLOBO. Livros com alusão ao diabo serão 'leitura complementar' em


Taubaté, SP. Vale do Paraíba, 18 mar. 2014. Disponível em:
<http://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2014/03/livros-
com-alusao-ao-diabo-serao-leitura-complementar-em-taubate-sp.html>.
Acesso em: 13 jun. 2021.

ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução:


Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996.

951
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria
literária. Trad. De Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LAGO, A. ABC doido. 10. ed. Editora: Melhoramentos, 2003.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução: Maria


Clara Correa Castello. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. Tradução


Juli6n Fuks. - 1.ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014.

VIEGNES, Michel. L’envoûtante étrangeté: le fantastique dans la poésie


française (1820-1924). Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 2006.

952
A LEITURA NA ESCOLA E AS CONTRIBUIÇÕES DO PROFESSOR NA
FORMAÇÃO DE LEITORES CRÍTICOS

Thaís Oliveira Andrade148


Roseneide Passos Vitório de Oliveira149
CleizeAraujo Sandes150

RESUMO: Aletrar e explorar o contínuo aprimoramento da leitura na sociedade


contemporânea associam-se expressamente na qualidade das práticas escolares. Por
ser concebida como uma necessidade humana, a leitura deve ser valorizada em
âmbito social e propositivamente nos ambientes escolares. As práticas leitoras precisam
ultrapassar o sentido de aprendizagem apenas para codificação, decodificação e
aquisição do sistema de escrita alfabética. Logo, o presente trabalho buscou analisar
as reais funções da leitura na escola e como o professor contribui para a formação de
leitores críticos. A opção metodológica em detrimento da temática foi pela pesquisa
qualitativa e exploratória. Direcionamos e embasamos o estudo e análise de acordo as
postulações de teóricos que abordam e estudam sobre a temática em questão, como:
Freire (1985), Libâneo (1994), Tardif (2002) dentre outros. Os debates sobre leitura
precisam transcender o espaço acadêmico, deve estar vivo no espaço escolar, nos
meios educacionais, no mercado editorial e nas diversas mídias. Em suma, precisamos
compreender que quando abordamos sobre leitura, não estamos demarcando ou a
colocando na limitação da leitura voltada a um texto verbalmente decodificado, a
leitura recebe créditos magnânimos de elemento cultural da humanidade, sendo o
professor uma peça primordial como estimulador e mediador da constituição do
cidadão leitor.

Palavras-chave: Leitura, Professor Mediador, Leitores.

148Especialista em Educação Infantil pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -


UESB; Mestranda em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras- UNEB-
PPGEAFIN thaisoa04@gmail.com
149Especialista em Educação pela Universidade Federal da Bahia-UFBA; Mestranda em

Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras- UNEB-PPGEAFIN


roseneidepassos30@gmail.com
150Especialista em Gestão Educacional e Psicopedagogia pela Faculdade Dom Alberto

– ninhaysandes@gmail.com

953
INTRODUÇÃO

O presente artigo reflexiona sobre a substancialidade das práticas


de leitura embasadas na ação pedagógica do docente enquanto
mediatário e incentivador dessa prática. Buscou-se através da pesquisa
entender como acontece a prática leitora na unidade escolar e assim,
abarcar toda a representatividade social do hábito de ler, além da
premissa da escola ser um local estimulador e fundamental para a
formação do discente.

A escola é a instituição responsável pelo saber formal, local onde


o indivíduo adquire conhecimentos lineares para seu desenvolvimento
cognitivo e intelectual, desta forma, é nesse espaço que se espera a
mediação de conteúdos e saberes por profissionais capacitados. Assim,
o docente é o profissional que media todo trabalho intencional com o
aluno, por essa razão, torna-se fundamental que o professor seja um leitor.

A concretude do processo formacional de leitores perpassa pela


decodificação de letras e sílabas, engloba a interpretação e
compreensão do que se está lendo. Através de diferentes tipos de leituras,
tipologias e gêneros textuais, o novo leitor pode desenvolver o prazer
pela leitura tornando-se crítico e ativo socialmente. Para isso, o professor
poderá se valer de ações e orientações propostas por documentos
norteadores das ações pedagógicas como o Parâmetro Curricular
Nacional (PCN) e a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
buscando uma orientação para que o alunado venha participar desse
mundo letrado, bem como, seja capaz de agir intencionalmente para
melhoria da sociedade como um todo.

954
A prática desafiadora de objetar a leitura como algo interessante
para o discente, perpassa pela necessidade de ter ou criar um ambiente
estimulador com diversos tipos de materiais e um docente que tenha o
habito leitor, que compreenda a importância de variadas práticas de
leitura na escola e tenha intimidade com o material oferecido,
possibilitando o desenvolvimento de habilidades leitoras e interpretativas.
O acesso a essa cultura deixada através de gerações favorece a
formação de leitores confiantes, efetivos e críticos.

1 METODOLOGIA

A opção metodológica conforme ao objeto de estudo foi pela


pesquisa qualitativa de caráter exploratória. A pesquisa focou no caráter
subjetivo e objetivo das vivências realizadas no lócus da pesquisa, uma
unidade escolar de Ensino Fundamental I, buscando observar aspectos
importantes sobre questões direcionadas a leitura na escola, analisando
as práticas leitoras e a importância dos docentes na formação do leitor
no campo investigativo.

A escolha pela abordagem qualitativa permitiu a análise e


identificação do conjunto de ações voltadas para as práticas leitoras e
os direcionamentos propostos para a formação do leitor. O percurso da
coleta de dados procurou organizar e reunir informações sobre as
questões relacionadas ao objeto de estudo. As informações obtidas
através desta pesquisa foram aprofundadas por intermédio da pesquisa
bibliográfica e documental.

Os instrumentos utilizados na coleta de dados pautaram-se na


observação direta e participativa secundária, obtida sempre através do

955
contato com o objeto de estudo. Por meio da pesquisa de campo, da
observação sistemática e assistemática foi possível levantar dados sobre
as práticas leitoras utilizadas na sala de aula pelos professores e alunos. A
pesquisa foi efetuada baseando-se na relação entre os pesquisadores e
o objeto de estudo, o resultado desta investigação não foi fruto de um
trabalho individual, mas configura-se em uma atividade conjunta,
estruturada a fim de responder a problemática levantada pela pesquisa.

2 A LEITURA NA ESCOLA: FERRAMENTA SUBSTANCIAL E MAGNÂNIMA

As atribuições fundamentais da escola no processo de aquisição


da leitura são inegáveis. O prazer em ler pode ser desenvolvido em outras
instituições sociais como a família, por exemplo. No entanto, é no espaço
educacional que se espera a maior apresentação a materiais leitores e
diferentes tipos de textos que despertem a apreciação pela leitura.

Ao ler para um indivíduo o professor ou outro adulto apropria-se de


uma linguagem divergente da falada, introduzindo aprendizagens que
serão formalizadas futuramente, sendo esta uma prática que ajuda o
indivíduo ampliar o seu vocabulário, além de contribuir para que
descubram ambientes diferentes, bem como culturas, personagens,
pessoas, atitudes, sem levá-los corporalmente a sair de um determinado
espaço, apenas estimulando-os a utilizar a imaginação.

A leitura e a escrita surgem para documentar idéias e


acontecimentos históricos produzindo sociabilidade no meio em que se
vive. Essa aquisição perpassa pelo desenvolvimento da linguagem que
por sua vez acontece a partir desses mecanismos atingindo todas as
áreas do conhecimento. Por esse motivo, promover práticas e ensino da

956
leitura no contexto educacional de modo a envolver toda comunidade
escolar na ampliação do hábito leitor é basilar.

Todavia, na escola a presença de práticas repletas de conteúdos


e pouco espaço para as leituras prazerosas, como exemplo, a leitura
deleite ou outras vivências leitoras que não esteja voltada apenas ao
cunho conteudista ainda acontece. Preocupa-se tanto com disciplinas e
esquece muitas vezes, da ação valorativa que é ler. Ao professor,
enquanto, mediador dessa prática, a partir de sua vivência e experiência
com diferentes tipos de textos, cabe ser um promotor em despertar no
aluno o prazer da leitura, sendo a rotina um condutor fundamental para
essas práticas. Salienta Paro que:

A tarefa primeira do educador é oferecer ao aluno condições


propícias ao desenvolvimento de sua vontade de aprender.
Atente-se, portanto, para o fato de que o professor, no exercício
de seu poder de educar, produz no aluno não diretamente o
aprender, e sim, sua mediação: o querer aprender (PARO 2014,
p. 57).

A ação do professor em mediar esse aprendizado traz inúmeras


possibilidades de se fazer desejável o ato de ler, e é exatamente na
escola que se torna possível essa habilidade, que perpassa a mera
decodificação. A instituição escolar precisa trazer ações propositivas e
bem fundamentadas para que a prática social da leitura encontre-se
presente em todos os níveis de educação, desde a mais tenra idade até
o final da educação básica onde os leitores precisam ter habilidades
mais desenvolvidas e complexas de leituras.

Para tanto, atividades diferenciadas, projetos, cirandas e rodas de


leituras são excelentes propostas para o desenvolvimento do hábito leitor,
tendo sempre claro que toda e qualquer atividade inclusive a de leitura

957
precisa ser propiciada, respeitando o ambiente sociocultural do leitor.
Ações pautadas na fruição leitora também são de responsabilidade da
escola ao induzir o discente pelo mundo do letramento, os estímulos
diários e ações propositivas são capazes de desenvolver a imaginação,
ampliar o vocabulário, potencializar a oralidade, além de proporcionar
ganhos efetivos para o aprendizado e desenvolvimento cognitivo.

A escola precisa também tratar a formação integral do aluno


através de um ensino crítico pautado na ampliação da visão de mundo
e formação global desse sujeito, de modo que este possa agir sobre a
realidade.

O ensino crítico é engendrado no processo de ensino, que se


desdobra em fases didáticas coordenadas entre si que vão do
conhecimento dos conceitos científicos ao exercício do
pensamento crítico, no decurso das quais se formam processos
mentais, desenvolve-se a imaginação, formam-se atitudes e
disciplina intelectual; é nesse processo que se vai formando a
consciência crítica, que não é outra coisa que o pensamento
independente e criativo em face a problemas da realidade
social disciplinado pela razão científica (LIBÂNEO, 1994, p. 100).

A partir desse entendimento sobre o ensino crítico e


consequentemente sobre o leitor crítico, difere-se nesse contexto o
“saber ler” do “formar-se um leitor”. À escola advêm as duas práticas,
tanto do ensino dos códigos de leitura como a formação de um leitor
crítico e atuante capaz de compreender o que está sendo lido e fazer
associações ou se contrapor com a ideia do autor. Essa habilidade
acontece de maneira ativa e transformadora para o leitor.

Cabe à escola propor ações que contemplem o hábito diário da


leitura inserindo o discente a essa realidade social tendo o olhar crítico

958
de estimulá-lo a perceber seu entorno, suas necessidades, percebendo
as inúmeras diferenças sociais causadas pela simples inabilidade da
leitura como um dos motivos relacionados à exclusão social. Essa leitura
pode ser entendida a partir do que expõe Freire quando faz referência a
alfabetização e a pós-alfabetização. “... a leitura do mundo precede
mesmo a leitura da palavra. Os alfabetizandos precisam compreender o
mundo, o que implica falar a respeito do mundo”, pois “uma
alfabetização crítica, sobretudo uma pós-alfabetização, não pode
deixar de lado as relações entre o econômico, o cultural, o político e o
pedagógico”. (Freire, 2021, p. 84).

Para grande parte da população o único contato com livros e


textos ainda acontece através da escola. Este é outro grande desafio
para esta instituição que se vê formalmente responsável pela qualidade
do material a disponibilizar para essa população de modo a atingir seu
papel social de ensino crítico, fortalecendo o hábito leitor e sua prática.

A constituição do hábito leitor acontece por meio de experiências


e o trabalho da escola para desenvolvimento e inserção do sujeito nesse
universo faz-se através de estímulos extras e propositivos, desde a escolha
e aquisição de materiais ledores como práticas basilares até os mais
diversos documentos legais que norteiem a ação do professor. Uma
reformulação prática escolar pode ser necessária de modo a garantir
uma evolução na prática pedagógica da instituição que se
compromete com a ampliação da capacidade leitora dos seus alunos.
Ações voltadas para a aquisição de uma postura crítica e consciente se
fazem pressurosas na sociedade atual e acaba por fomentar a meta das
unidades escolares no que se refere a fruição e letramento.

959
3 PARÂMENTROS CURRICULARES NACIONAIS E A BASE COMUM
CURRICULAR: O QUE FALAM SOBRE A LEITURA NA ESCOLA?

Os documentos norteadores da Educação, como os Parâmetros


Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
são ferramentas de amparo pedagógico nas instituições escolares,
objetiva contribuir com os planejamentos, reflexões e práticas educativas
dos docentes em sala de aula, assim como em outros espaços
educativos.

O intuito do MEC (Ministério da Educação e de Desporto), ao


disponibilizar documentos norteadores para a Educação é de nortear as
práticas pedagógicas dos docentes e traçar intentos de qualidade que
colabore com o processo de aprendizagem dos discentes nos espaços
educacionais. Visualizam os discentes como cidadãos em formação que
precisam conhecer seus direitos que através das vivências educativas
encontram possibilidades de crescerem plenamente, enquanto,
cidadãos conscientes, reflexivos, autônomos e críticos.

O PCN e a BNCC quando são compreendidos e utilizados pelos


professores após reflexões sobre as metas propostas pelos documentos
oficiais e utilizados de forma adequada, podem ser concebidos como
elementos úteis no apoio aos diálogos pedagógicos, na construção de
projetos educativos, nos planejamentos de aulas, além de ser elemento
reflexivo das ações pedagógicas e base da análise do material didático
disponibilizado e utilizado. Os documentos oficiais podem favorecer a
formação dos profissionais da educação, visto que apontam
mecanismos didáticos que podem auxiliar o docente a refletir sobre as
metodologias usadas em sala de aula a favor da aprendizagem e
conhecimento do alunado.

960
Os Parâmetros de Língua Portuguesa referente ao Ensino
Fundamental I objetiva respaldar a execução do trabalho laboral do
professor, estabelecendo intenções no que tange às séries iniciais do
Ensino Fundamental I. Espera-se que o alunado adquira gradativamente
competências efetivas em relação à linguagem, possibilitando-lhe
alcançar sua plena participação no mundo letrado, sendo que a prática
da leitura na escola é, sobretudo, necessária.

O texto do PCN (1997, p.53) ressalta que o labor do professor na


unidade escolar direcionado à leitura “tem como finalidade a formação
de leitores competentes e, consequentemente, a formação de escritores,
pois a possibilidade de produzir textos eficazes tem sua origem na prática
da leitura”. Essa perspectiva do fazer pedagógico e docente com as
práticas de leitura na sala de aula ressignifica a compreensão e
significado da mesma, caracterizando-a como processo cujo leitor
pratica um exercício enérgico de construção de significados e não
extraindo apenas informações explícitas da escrita, decodificando-a,
reconhecendo letra por letra, palavras por palavra. Trata-se de uma
ação que exige compreensão, nos quais os sentidos começam a ser
constituídos antes mesmo da leitura formal ou propriamente dita.

Formar leitores competentes supõe formar alguém que


compreenda o que é lê; que possa aprender a ler também o
que não está escrito, identificando elementos implícitos, que
estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos; que
consiga justificar e validar a sua leitura a partir da localização de
elementos discursivos (BRASIL, 1997 p.54).

Um leitor autônomo só pode desenvolver-se mediante as


experiências constantes com práticas leitoras desafiadoras. O fazer
pedagógico referente às práticas de leitura precisa organizar-se em

961
torno da diversidade do ato de ler que circula socialmente. A
compreensão sobre a substancialidade da leitura na escola posta pelos
PCN demonstra que o conhecimento debatido a respeito dos processos
de leitura aponta que o ensinar a ler por meio de práticas centradas na
decodificação não são mais aceitáveis, é preciso oferecer aos alunos
inúmeras oportunidades de aprendizagem que o possibilite a ler usando
procedimentos que bons leitores utilizam.

Nesta perspectiva, o Estado busca adotar estratégias visando


alavancar a qualidade do ensino e universalizá-la, apoiando-se nas
múltiplas demandas da sociedade, as postulações de documentos legais
intentam conduzir tais ações. Dessa forma, a BNCC surge, após 20 anos
de postulações estabelecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais,
com o intuito de complementar as intenções e atualizar as ações postas
pelos documentos oficiais existentes.

Na Educação Básica a BNCC estrutura o componente curricular de


Língua Portuguesa conferenciando com as orientações e documentos
produzidos nas últimas décadas, procurando atualizá-los, considerando
as recentes discussões, pesquisas na área e avanços das Tecnologias da
Informação e Comunicação (TIC’s). Propaga um cenário discursivo da
linguagem, também produzida por outros documentos, cuja linguagem
é “uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade
específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas
sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história”
(BRASIL, 2018, p. 20).

Desse modo, no que tange à leitura e ao ensino das práticas


leitoras, o novo documento coloca a leitura como um dos “eixos
organizadores” no campo da Língua Portuguesa no Ensino Fundamental,

962
evidenciando-a como temática central da área e colocando-a como
ferramenta interdisciplinar. A leitura, de acordo a BNCC (2018) precisa
promover o desenvolvimento de habilidades que possibilite a
interpretação de textos, o entendimento da leitura proposta, bem como
o reconhecimento dos diversos gêneros textuais, elementos esses que são
de competência específica da área de Língua Portuguesa.

Nessa perspectiva, faz-se necessário induzir o aluno a internalizar


que a leitura é algo interessante e uma prática desafiadora, premissa que
desenvolvida globalmente possibilitará a autonomia e independência
ao indivíduo que passou pelo processo de aprendizagem efetiva. Então,
a escola deve promover práticas leitoras e sócio-educativas utilizando
recursos e técnicas metodológicas que enriqueça o desenvolvimento de
alunos confiantes e leitores efetivos.

As práticas leitoras quando valorizadas como ato complexo,


necessário ao conhecimento e produção de saberes, permite o
despertar e cultiva o desejo de ler. A formação do leitor requer condições
favoráveis para tal prática, à disponibilização de recursos variados é um
dos caminhos para a consolidação das práticas leitoras, os livros e
materiais impressos são elementos determinantes para o
desenvolvimento da prática e gosto da leitura, mas precisam estar
alinhadas as metodologias pedagógicas desenvolvidas nos espaços
escolares.

O trabalho laboral constante do docente está intrínseco também


na formação do leitor reflexivo que possa agir no meio social. No
desenrolar do processo de formação do leitor o professor precisa ter
domínio de diferentes técnicas de leitura (decodificação, coerência,
antecipação, inferência, coesão, verificação etc.) para ajustá-las as

963
diversas metas e situações presentes nos documentos oficiais e no mundo
do letramento.

Em síntese, a leitura é um fator de condução à cultura e a


aquisição de saberes, por essa razão, precisa ser valorizada e aplicada
não só na escola, mas em toda área social. Por considerar a
substancialidade da leitura como elemento magnânimo que a leitura
ganha espaço específico e valorativo dentro dos documentos oficiais,
nos debates, nas práticas educativas e na sociedade como um todo.

4 O PROFESSOR COMO MEDIADOR E CONSTRUTOR DE PRÁTICAS LEITORAS

O docente possui atribuição valorativa no processo de


aprendizagem, comprovando sua contribuição preponderante nas
relações desenvolvidas no trabalho prático na escola e na sala de aula.
A prática do professor já não é a mesma do passado, anteriormente, em
um tempo não muito distante, o docente detinha “todo” conhecimento
e depositava seus saberes de maneira impositiva aos seus alunos. Paulo
Freire (1985) conceitua esse tipo de prática educativa como Educação
Bancária, cujo aluno no processo de ensino aprendizagem apenas
recebe o depósito, isto é, a Educação Bancária visa depositar no corpo
“vazio” dos alunos os conteúdos a ser apreendidos, sem qualquer pauta
de reflexão ou criticidade.

Na sociedade contemporânea, o professor é concebido como o


mediador do saber, não pauta o ensino embasando-se no pressuposto
de poder, ganhando assim, adaptações relevantes. O docente começa
ser visto como o mediador do conhecimento, devendo existir sempre

964
uma troca de saberes entre professor e aluno. As práticas metodológicas
do professor precisam ser projetadas no aluno.

Sobre esse assunto, Tardif (2002, p. 22) afirma que as práticas


educativas precisam ancora-se nas “ideias de trabalho interativo, ou seja,
um trabalho que fundamente na interação humana”. Buscando
entender as constituições humanas que validam as interações,
conhecimentos e vivências dos elementos centrais que compõe a sala
de aula, isto é, o docente e o discente.

A prática docente não é apenas um objeto de saber da educação,


ela é uma atividade que mobiliza diversos campos dentro da sala de aula.
Os professores no exercício de suas funções e na prática de sua profissão
desenvolvem saberes, construídos a partir de seu labor diário e na
experiência com seu meio. Ensinar é uma questão de personalidade,
uma pessoa que é capaz de tomar iniciativas, de se interessar pelos seus
alunos, de dialogar com eles, de fazer projetos, pode estar inserida na
sala de aula.

A prática pedagógica do docente deve ser convidativa e


interessante a ponto de gerar satisfação pessoal. Proporcionando ao
aluno um convívio constante com a leitura, oportunizando que pratique
seu papel de leitor, que alargue por meio da leitura seus conhecimentos,
realizando também a leitura de mundo, assim, elevando as práticas
leitoras ao patamar de ação valorativa para aquisição de saberes
diversos.

Permitindo assim que o ensino da leitura crítica seja um


componente do processo de desenvolvimento e conscientização que
permite ao sujeito refletir cuidadosamente sobre as relações e atos sociais
nos quais estão inseridos. Tal fato vem completar que a condição

965
primeira para que isso aconteça é que o professor também goste de ler,
tenha preparo teórico e metodológico para selecionar materiais
interessantes, contextualizados, propositivos e de acordo aos elementos
norteadores propostos pelos documentos oficiais, currículos e projeto
político pedagógico, além de compreender as singularidades da
realidade escolar no qual trabalha.

A premissa pautada em termos como: “preparo teórico e


metodológico”, referimos aos quesitos referentes ao ensinar e aprender,
no âmbito escolar, como processo específico e intencional de organizar
e propor situações próprias para que ocorra determinada aprendizagem
ou que se alcance determinado objetivo. Tardif (2002) coloca que as
múltiplas articulações entre prática docente e os saberes fazem dos
professores um grupo social e profissional cuja existência dependa, em
grande parte, de sua capacidade de dominar, integrar e mobilizar
saberes, enquanto, condições básicas de sua prática.

A explicação de Tardif nos mostra que o professor não deve se


preocupar apenas com o conhecimento através da absorção de
informações, mas, considere as construções realizadas pelos alunos em
relação à cidadania, na condição de formar o aluno em aspectos sociais
e culturais, para além apenas do lado intelectual.

É o modo de agir do professor em sala de aula, mais do que suas


características de personalidade que colabora para uma
adequada aprendizagem dos alunos, fundamentam-se numa
determinada concepção do papel do professor, que por sua
vez reflete valores e padrões da sociedade (ABREU e MASSETO,
1990, p.115).

Jamais podemos esquecer que a composição do saber não é


definida como individual ou unilateral, a sapiência é a soma da atividade

966
humana, giratória, diversificada e conjunta, marcada socialmente e
culturalmente. O professor não é o detentor do saber indiscutível, pronto
e acabado, mas constitui-se como o intermediário do saber.

Seguindo as postulações de Rangel e Rojo (2010) o professor


precisa estabelecer uma metodologia adequada para transmitir ao
alunado os múltiplos saberes, necessário ao entendimento sobre o que é
realmente a leitura. Os docentes devem focar no que pretendem ensinar,
quais os objetivos das práticas leitoras, quais competências deseja
ensinar. Entretanto, a partir das observações das práticas leitoras
realizada nas escolas, parece que ainda não existe essa clareza, por
parte de alguns professores, sobre as metodologias e mecanismos que
podem ser utilizados para estimular os alunos a gostar ou criar o hábito
da leitura. Assim como, muitos professores ainda precisam compreender
que não é por ter a impressão direta e imediata do sentido consciente
do que lemos que esse entendimento não é resultado de uma atividade
complexa. A leitura, sua aquisição, aprendizagem e práticas leitoras não
são ações simples.

A leitura não se limita ou se resume na educação formal


sistematizada, mas da relação de conhecimento do sujeito com o
mundo, estimulando os indivíduos a buscarem nas diferentes formas de
compreensão e de reconstrução dos conhecimentos e saberes, a
transformação da realidade, principalmente a de quem se encontra no
seu convívio e, consequentemente, a sua própria.

967
5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Diante dos resultados coletados por meio das observações diretas


e indiretas, através dos diálogos com os docentes, torna-se notório que a
leitura possui caráter magnânimo, sendo as práticas leitoras instrumentos
propositivos no processo de ensino aprendizagem. Nos diálogos
constantes e nas análises obtidas através da observação direta fica claro
que a maioria dos docentes tem consciência de que as práticas de
leitura não se baseiam apenas na decodificação de letras, símbolos,
signos e palavras, mas vai além dessas premissas. Enquanto educadores
entendem que o ato de ler remete ao convívio com o mundo e se dá
através das vivências constantes, sejam elas na escola ou em qualquer
ambiente social. Tudo que está vinculado ao saber é leitura, seja ela oral,
gestual, escrita ou visual.

Compreendendo a importância em se trabalhar a leitura na


instituição escolar, não há como negar que o docente possui papel
relevante na formação do leitor. O reconhecimento de que o ato de ler
caracteriza-se no compartilhamento de vozes, por isso, na escola, o
professor leitor, que tem experiência com leituras diversas, pode
compartilhar com o aluno as mais variadas histórias. O professor oferta ao
seu alunado suas leituras, revelando como se constituiu como leitor,
como foi caminhando através do ato de ler. Por sua atribuição
mediadora, os docentes são figuras determinantes na construção das
relações entre os indivíduos e a cultura escolar.

Portanto, no que se refere à leitura, torna-se necessário que haja


primordialmente um processo de envolvimento entre escola, professores
e leitores em formação para que aconteça a envoltura desses agentes

968
com livros, textos, práticas e materiais a serem lidos, para que
subsequentemente seja possível uma associação significativa e cada vez
mais complexa. Formar sujeitos leitores requer insistência efetivas na
necessidade de fazer presente no cotidiano escolar práticas leitoras
significativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo contou com ampla pesquisa bibliográfica e de campo


sendo responsável por trazer a reflexão sobre um tema tão fundamental
para a educação formal que é a prática da leitura na escola,
vislumbrando os documentos norteadores a partir da mediação
contundente do professor.

Ao discorrer sobre essa temática, ficou claro que a escola como


espaço principal para o desenvolvimento e ampliação de saberes é
responsável também pela rotina leitora além de despertar o interesse dos
discentes por essa atividade. A partir de questionamentos e observações
ficou claro o grande desafio que se apresenta à escola na efetivação de
situações leitoras diárias nos espaços escolares.

A prática da leitura apesar de ser essencial no mundo atual, ainda


não se apresenta como uma realidade para os alunos da educação
básica, muitos leem por obrigação, mas ainda não adquiriram o hábito
da leitura como ação prazerosa e capaz de despertar outros olhares e
diálogos. A criticidade na leitura é fundamental para um bom leitor, o
acesso a um rico material também se constitui em ferramenta para essa
rotina e a capacidade em dialogar com diferentes tipos e gêneros

969
textuais observando sua real função é elemento basilar para o leitor
crítico e atuante.

A partir dos diálogos feitos através de leituras de autores


importantes como Freire e Tardif foi possível elencar ações possíveis de
auxiliar o professor nesse processo para ação leitora. Os documentos
norteadores como a BNCC e o PCN traz orientações importantes para o
profissional da educação, no entanto é realmente na efetivação da
prática pedagógica que se apresenta capaz de provocar mudanças
substanciais no hábito leitor dos discentes.

A pesquisa aqui apresentada não se esgota em suas questões e


proposições, mas se amplia à medida que outras instituições de ensino
serão visitadas e outros documentos nacionais serão analisados e
examinados. Percebe-se que muitas ações estão sendo tomadas na
direção da melhoria na formação leitora e outras tantas ações precisam
ser postas em prática a partir do interesse e visão social do professor e da
escola. Outras pesquisas e diálogos serão efetivados para continuidade
deste trabalho, mas o que foi apresentado contribui para o incentivo e
promoção de práticas leitoras no intuito de formar cidadãos críticos,
democráticos e atuantes na sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS

ABREU, Maria C. ; MASSETO, M. T. O professor universitário em aula. São


Paulo: MG Editores Associados, 1990.

970
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,


2018.

FREIRE, P., ; FAUNDEZ, A. (1985). Por uma pedagogia da pergunta. Rio de


Janeiro: Paz e Terra.

FREIRE, Paulo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. 8º ed.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.

LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.

PARO, Vitor Henrique. Educação como exercício do poder: crítica ao


senso comum em educação / Vitor Henrique Paro. – 3. Ed. – São Paulo:
Cortez, 2014. – (Coleção questões da nossa época; v. 4.

RANGEL, E. O.; ROJO, R. H. R. Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da


Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. V.19.

RICON, A. E. ; ALMEIDA, M.J.P.M. Ensino da Física e Leitura. In: Leitura:


Teoria e Prática. São Paulo (18), Ano 10, Dezembro/1991.

971
INTENCIONALIDADE, LITERATURA E CRIATIVIDADE: REFLEXÕES
PERTINENTES À FORMAÇÃO DE LEITORES

Igor D’ Aguiar Siqueira de Lemos 151


Renato Nésio Suttana 152

RESUMO: Essa escrita tem como tema a intencionalidade criativa por meio da literatura,
isto é, a ponte constituída a partir do alicerce literário para a composição reflexiva de
possíveis transformações escolares e extra escolares. Sob essa perspectiva, a pesquisa é
desenvolvida a partir de leituras de estudiosos preocupados com o ensino de literatura,
fundamentada em reflexões sobre o ensino literário e a mediação criativa, ou seja, uma
pesquisa de natureza teórica e reflexiva. O texto verterá em três partes: análises de
trabalhos teóricos para caracterizar estruturas basilares da literatura, em seguida haverá
a contextualização da tessitura escolar e extra escolar tendo como fundamento a
potência criativa e imaginativa dos sujeitos, por conseguinte, iremos incursionar a
fragmentada constituição do ser social e a intencionalidade intrínseca à constituição
da lida literária, de modo a texturizar a literatura como ínterim do escopo específico. A
posteriori será explanado o contexto de ensino, de modo a salientar a potência criativa
e imaginativa do sujeito social por meio da literatura. Por fim, a ênfase da
intencionalidade tem como base a possibilidade de refletir a mediação criativa, a
ponte entre os sujeitos participantes do processo e o alicerce que suporta a constituição
da ponte, isto é, a literatura.

Palavras-chave: Literatura, Criatividade, Leitor, Intencionalidade.

INTRODUÇÃO

O estado da arte iniciou-se por meio das disciplinas (Seminário de


Pesquisa; Literatura e Ensino; Teorias da Narrativa e Modos de
Representação) ministradas pelo Programa de Pós-Graduação em
Literatura da FACALE - Faculdade de Comunicação, Artes e Letras. As

151 Mestrando do Programa de Pós-Graduação - Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber


da Universidade Federal da Grande Dourados - MS, igordaguiar@hotmail.com; -
Financiamento CAPES - DS;
152 Professor orientador: Doutor, Universidade Federal da Grande Dourados - MS,

renatosuttana@ufgd.edu.br.

972
disciplinas foram o fio condutor para delimitar a reflexão intelectual
inscrita nessa escrita, de tal modo, é necessário constituir a obra literária
como ponto da linha de raciocínio contínuo, tanto na escrita desse
trabalho, como no trato literário em ambiente escolar. No âmbito do
estado da arte, os mecanismos de sentido compõem o literário, nessa
composição é necessário trazer a ciência humanística de CÂNDIDO
(2004), para o teórico a literatura é um direito humanístico que promove
ao sujeito a potência da fruição literária no desenvolvimento social,
devido a assertiva de CÂNDIDO (2004) foi possível refletir a literatura
como ferramenta humanizadora na construção contínua da sociedade.
Para que permaneça a fruição transformativa da sociedade, é
necessário que o trato literário seja bem efetivado, sob essa perspectiva
LAJOLO; ZILBERMAN (2020) expõe o quadro artístico do possível leitor, ou
seja, no ponto de fuga - a literatura -, haverá as linhas que pouco a pouco
comporão a abstração representativa da potência literária, em síntese
os leitores escorregadios. Portanto, diante da plurissignificação humana
haverá cores, texturas, perspectivas e formas que serão diferentes entre
si, porém, o ponto de fuga da futura imagem será a literatura. Em
continuidade TODOROV (2018) assunta que os elementos da obra
literária dialogam entre si para conjecturar a construção do literário intra
obra, em outra face, o leitor e suas fragmentações constituídas em
sociedade, interpreta estes elementos literários tendo como escopo a
obra literária em sua completude e a interpretação que proporciona
vida aos elementos literários, sendo, então, a obra e o leitor paralelos
entre si, solitários, mas embebidos de humanidade.

Nesse contexto acima é possível apreender acerca da inserção


teórica de LAJOLO; ZILBERMAN (2020) em relação ao leitor, de tal modo,
a contextualizar o leitor e os fragmentos que constituem e transformam

973
sua identidade continuamente na sociedade, essa é a problemática em
questão, delinear um trato literário para esse leitor(es) escorregadio(s) é
complexo pois a partir desse conhecimento será possível inserir a
representação literária em sua perspectiva de mundo. De tal modo, a
obra literária continua a ser o vento que apresentará o desconhecido ao
futuro leitor.

O conflito intelectual apresentado acima tem como espaço a


escola, por consequência da literatura ser uma prática escolarizada pois
está instituída em tal espaço social SOARES (2006), para a teórica o trato
literário deve ter adequação processual, isto é, respeitar os parâmetros
composicionais da obra literária, bem como a separação da autora
literária com a obra literária - o que veremos ao final da incursão dos três
passos descritos anteriormente -, de tal forma a obra literária continua a
ser o âmbito do escopo processual para a formação de leitores. Ainda
acerca do espaço escolar COSSON (2011), a literatura deve apresentar
a complexidade que perpassa a obra literária, de modo a não mutilar a
humanidade CÂNDIDO (2004), devido às rupturas entre a completude da
obra e o não estreitamento do trato literário, de forma a contemplar a
engenhosidade da obra literária em si, torna como processo à formação
de leitores na escola que não viabilizará a fruição que o literário pode
engendrar, nesse sentido, para CHARTIER (2007) o livro possibilita a
abertura para diferentes composições interpretativas, de tal modo, as
construções de sentido serão variáveis de um ser humano para outro,
porém a composição deve respeitar o escopo literário e os elementos
que se relacionam intra obra, isto é, os mecanismos que garantem
literariedade. Diante de tais incursões intelectuais, há que evidenciar,
também, LARROSA (1999) que disserta acerca da potência da
criatividade humana, em síntese o teórico labuta a transgressividade no

974
âmbito humano em relação às instituições, neste caso, a escola. Decerto
a estabilidade adequada que SOARES (2011) incutiu não contrapõe o
pensamento de LARROSA (1999), pois, é a partir dessa adequação no
trato literário que a estabilidade processual ocorrerá, como também,
manterá a possibilidade da transgressão e positiva abertura social de
perspectivas que agregarão na estabilidade transformativa que a obra
literária incorrerá aos sujeitos do processo escolar, em perspectiva, o
professor de literatura e o aluno.

A potência imaginativa na estrutura literária possui solidão, de


acordo com o teórico BLANCHOT (1987), a obra literária é essencialmente
solitária, porém, o teórico explora a possibilidade do leitor, como também,
o autor adentrar nessa solidão, de tal maneira, a obra literária é em si
uma ilusão representativa da vida criativa do autor, em consequência a
obra literária propõe por si e por seus elementos constitutivos sua solidão
única e distante do seu autor, neste escopo iremos analisar a posteriori os
conceitos mais densamente.

Diante da construção literária acima composta por estudiosos da


área e a contextualização do trato literário em ambiente escolarizado, é
pontuado, a intencionalidade de RICOEUR (1994), que abarca o
processo de formação de leitores em sua interioridade contextual, isto é,
a partir da intencionalidade será constituída a fenomenologia do literário,
em vistas à formação de leitores e ambiente escolarizado.

1 METODOLOGIA

A metodologia do artigo tem como base estudos bibliográficos


acerca dos conceitos eliciados durante a escrita, tendo como fio

975
condutor, a análise intuitiva dos estudos apresentados e as imbricações
teóricas entre os autores pesquisados. Para tanto foi explorado teóricos a
partir da exposição das aulas do PPG - FACALE, da UFGD, em
consonância com o aporte teórico já refletido em escritos contínuos no
âmbito da graduação concluída na UFCAT.

2 TEXTURA LITERÁRIA - ESCOPO ESPECÍFICO

Inicialmente, a literatura deve ser explanada por meio de


conceitos que constituem reflexões e desassossego ao trato teórico e
literário. Na escrita de CÂNDIDO (2004) é possível vislumbrar a literatura
como potência humanizadora:

Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no


homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o
exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição
para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a
percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo
do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de
humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos
e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
(CÂNDIDO, 2004, p. 182)

O excerto do teórico caracteriza objetivamente a literatura como


expoente à humanização, por conseguinte, o autor elabora a questão
estética e a perspectiva que corrobora para a compreensão da
complexidade social. De modo a objetivar a literatura com uma
finalidade, porém, essa finalidade não é utilitarista, pois, tem como
escopo a humanização, deste modo, a humanização é composta,
heterogênea e carregada de múltiplos sentidos. Decerto a escrita deste
trabalho, neste momento, buscará o escopo específico da literatura, não

976
obstante, haverá a apresentação do leitor como face importante para
o processo de formação de leitores, pois:

O texto ficcional toma a construção como tema simplesmente


porque é impossível evocar a vida humana sem mencionar esse
processo essencial. Cada personagem é obrigada, a partir das
informações que recebe, a construir os fatos e as personagens
que a cercam; nisso ela é rigorosamente paralela ao leitor, que
constrói o universo imaginário a partir de suas próprias
informações [...] a leitura se torna assim [...] um dos temas do livro.
(TODOROV, 2018, p. 134)

A escrita do teórico acima explora o teor substancial da


constituição da obra literária, bem como, o processo interpretativo do
leitor, desse modo, imbuir o conflito fragmentário e heterogêneo do leitor
e a complexa construção representativa desse fenômeno por meio da
obra literária é fundamental para delimitar o escopo específico da
literatura. Incutir a demanda de humanização de CÂNDIDO (2004) e a
literatura como meio para desenvolvimento humano é refletir o
complexo quadro da construção do leitor e a ilusão que a ficção literária
propõe, de acordo com MOTTA (2013) esse processo envolve
reflexividade contínua, além de proporcionar representações ficcionais
às sensitividades das experiências da vida, tendo como processo, a
constituição criativa da ressignificação subjetiva do contexto em que
está inserida, tendo em vista a especificidade da escola como contexto
de reflexão crítica. Nessa perspectiva, o autor FRYE (1957) corrobora a
interação do leitor com a obra literária por meio da formação crítica, ou
seja, o processo literário constituído continuamente por meio da lida
crítica do leitor de textos literários.

977
3 O TRATO LITERÁRIO E A CRITICIDADE CRIATIVA ESCOLARIZADA

De acordo com Soares (2011) a partir do instante que a literatura


adentra os contextos escolares, torna-se escolarizada:

Não há como ter escola sem ter escolarização de


conhecimentos, saberes, artes: o surgimento da escola está
indissociavelmente ligado à constituição de saberes escolares,
que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e
disciplinas [...] exigido pela invenção, responsável pela criação
da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de
aprendizagem. (SOARES, 2006, p. 20)

Assim, a teórica elucida o espaço escolarizado, de forma a


perspectivar a construção dos mecanismos escolares por meio da
invenção, esse aspecto inventivo é o cerne da proposição literária, de
acordo com a autora teórica, a literatura deve ser mediada de forma
adequada, para tanto, a adequação não restringe o trato literário, pois,
evoca a completude do texto literário e ao contrário de excluir elementos
composicionais da obra literária, exige a completude da obra como
ínterim do processo literário escolarizado, de fato o aparato
representativo e literário deve ser totalmente considerado na prática
mediativa, como também, a leitura, ação do leitor, necessita de crítica
subjetiva, tanto em direção à obra como a si mesma, por essa
proposição COSSON (2011) corrobora com a perspectiva de CÂNDIDO
(2004) da humanização em relação à literatura, nesse contexto, a
sensitividade representativa na intra obra e a sensitividade do leitor
promoverá a criticidade no âmbito escolar, para tanto, o afeto e/ou a
afetividade do processo incorrerá à extra escola, devido ao fato do leitor
possuir fragmentos que compõem sua subjetividade e imaginário na
interpretação da estória literária.

978
Após a explanação acima, é o momento de incursionar a solidão
da obra literária, bem como, a solidão criativa discutida por BLANCHOT
(1987), para o teórico é necessário o autor permanecer solitário “[...]
aquele que a escreveu é dispensado [...]” (p. 11), pois, a obra literária
torna vívida a partir de seus elementos, desse modo, o tempo é ausente
na obra literária em perspectiva ao leitor, que também é permeado pela
ausência fragmentada de sua subjetividade, entre faces, a
representação literária tocará a imaginação do leitor e o tempo ausente
verterá ao retorno de sua construção de sentidos:

O tempo da ausência de tempo não é dialético. Nele o que se


manifesta é o fato de que nada aparece, o ser que está no
fundo da ausência de ser, que é quando nada existe, que deixa
de ser quando existe algo: como se somente existissem seres
através da perda do ser, quando o ser falta. A inversão que na
ausência do tempo, nos devolve à presença da ausência, mas
a essa presença como ausência, à ausência como afirmação
de si mesma, afirmação que nada se afirma, em que nada deixa
de afirmar-se, na flagelação do indefinido, esse movimento não
é dialético. (BLANCHOT, 1987, p. 21)

Assim, a obra é um contínuo de possibilidades um ad infinitum,


como tal a partir da ausência de tempo a interpretação nova do leitor
constituirá, por consequência, a abertura para o retorno em busca de
suas potencialidades, Soares (2011) nomeia sentidos lacunares de
carências e as possibilidades de inferências na obra literária, nesse
contexto, a obra literária possui a ausência temporal de incursionar
interpretações à ausência de verdade homogeneizante, tal
configuração permite abordar a criatividade como processo à formação
de criticidade aos leitores, bem como, a possível transformação da
escolarização da literatura pois para Larrosa (1999) as instituições não
abarcam a humanização totalmente devido à ausência da perda do ser,

979
de modo a continuar a perscrutar o horizonte, em específico ao literário
e suas sensitividades , nesse contexto, a:

[...] literatura é coisa inesgotável, pela simples e suficiente razão


de que um único livro não é único. O livro não é uma entidade
fechada: é uma relação, é um centro de inumeráveis relações.
(CHARTIER 2007, p. 310)

A proposição do teórico, no excerto acima, expõe a ad infinitum


da literatura, neste caso o autor teórico elabora o ponto de fuga inscrito
neste trabalho como “centro de referência”, tal conjectura traz o escopo
específico da literatura. O que traz à tona amiúde o conceito da verdade
intra obra literária:

Tudo isso para dizer simplesmente que, quando o autor capitula


na ficção, o faz para conquistar; ele abre mão de alguns
privilégios e impõe certos limites para criar a ilusão da estória de
maneira mais eficaz, o que constitui verdade artística em ficção.
E é a serviço dessa verdade que ele põe toda sua vida criativa.
(FRIEDMAN, 2002, p. 182)

No fragmento acima o autor teórico explora o processo autoral da


obra literária, sem deixar de lado os aspectos da obra em si como vívida
e constituída pela construção de elementos intra obra, para tal a
ambiguidade inscrita na “verdade artística” imbui o contraditório à:

[...] solidão do escritor, essa condição que é o seu risco, proviria


então do que pertence, na obra, ao que está sempre antes da
obra. Por ele, a obra chega, é a firmeza do começo, mas ele
próprio pertence a um tempo em que reina a indecisão do
recomeço [...] essa necessidade em que aparentemente se
encontra de retornar [...] de preservar no recomeço do que para
ele jamais começa de pertencer à sombra dos acontecimentos,
não à sua realidade, à imagem, não ao objeto, ao que faz com

980
que as próprias palavras possam tornar-se imagens, aparências
- e não signos, valores, poder de verdade. (BLANCHOT, 1987, p.
15)

De tal modo, percebe-se a conjectura da expressão artística como


permanente transformação representativa no literário, tal aspecto
contextualiza a escolarização institucional como uma tentativa contínua
de apresentar a literatura como forma de proposições em delimitados
elementos intra obras e relacionais, sem finalidades pré-determinadas ao
leitor, a obra literária, então, terá como fundamento, neste trabalho, a
potencialidade de criar e recriar lacunas em direção à
representatividade do ilusório literário, como também, a intrínseca
relação fragmentária de sua subjetividade em composição ao espaço
ora escolar.

4 INTENCIONALIDADE LITERÁRIA: UM QUASE TANGÍVEL

De acordo com Ricoeur (1995) a costura da obra literária é já uma


quase intriga pois cria-se o comunicador literário isto é, o narrador que
rompe com o autor e toma a si as inter relações intra obra, tal aspecto
colabora para o estudo da arte incursionando até então, a lacuna por si,
ou seja o ad infinitum bem estruturado por Blanchot (1987) da tal
representação literária, elabora o ponto de vista que o autor e teórico
Ricoeur (1994) incutir no seu trabalho por meio da narrativa, de acordo
com o teórico:

[...] as histórias que tratam de unificação ou da desintegração


de um império, da ascensão e da queda de uma classe, de um
movimento social, de uma seita religiosa ou de um estilo literário,
são narrativas [...] A descontinuidade crítica incorpora-se, por aí
mesmo, à continuidade narrativa. Percebe-se, assim, de que
modo a fenomenologia aplicada a esse traço de toda história
narrada [...] é capaz de expansão, a ponto de incluir um

981
momento crítico no próprio coração do ato de base de seguir
uma história (RICOEUR, 1994, p. 217)

A estrutura conceitual do fragmento acima, inebria a narrativa e o


ponto crítica como expansão do horizonte humano, àquele permeado
pela conceito de literatura de Cândido (2004), tendo como base a
sensibilização humana, como dito por Ricoeur (1994) no “momento
crítico” há essa sensibilização que preenche a carência descrita por
Soares (2011), porém, tampouco, o ser humano será completo, como
também, a estruturação narrativa representativa da literatura, tal
contexto da obra por si deve ser perspectivada pela intencionalidade de
contínua ausência Blanchot (1987), pois a partir dessa ausência será
explorado o acontecimento afetivo da obra literária para o seu leitor,
assim:

[...] a noção de acontecimentos teve de perder suas


características usuais de brevidade e de imprevisibilidade para
igualar-se às discordâncias às rupturas que pontuam a vida das
estruturas econômicas, sociais e ideológicas de uma sociedade
singular. O quase das expressões quase-intriga, quase-
personagem, quase-acontecimento atesta o caráter altamente
analógico do emprego das categorias narrativas [...] essa
analogia exprime o laço tênue e dissimulado que retém a
história no âmbito da narrativa e preserva, assim, a própria
dimensão histórica. (RICOEUR, 1994, p. 327)

O mantenedor da literatura na sociedade, de tal forma, é a


escolarização entre outros espaços institucionais como bem lembra
Manguel (2000) em específico a Biblioteca, espaço de legado e memória
humana, bem como, a heterogeneidade das obras literárias, solitárias,
mas abertas ao leitor e suas lacunas que se (re)criam, tal aspecto denota
o quase tangível, a ausência que retoma em si a presença Blanchot
(1987), a dificuldade permanece na explanação lacunar do aspecto de
formação ao leitor, porém, busca explorar o estado da arte no horizonte

982
literário e teórico na constituição do leitor na representação do
imaginário subjetivo à coletividade institucional.

A lida literária é mutável devido aos agentes do processo literário,


isto é, alunos e professores que podem promover transformações de
tratamentos da leitura literária, bem como, organizações institucionais
que devem ser inclusivas e objetivar transformações socioculturais, pois
de acordo com Larrosa (1999, p. 185) “[...] não é o que está presente em
nossas instituições, mas aquilo que permanece ausente e não abrangível,
brilhando sempre fora de seus limites [...] essa apropriação nunca poderá
realizar-se completamente.”. Desse modo, não é possível apropriar-se
totalmente das perspectivas que o ser humano desenvolve durante sua
lida social, contudo, os professores podem inserir a mediação criativa, ou
seja, as representações dos sentidos e afetos humanos incluídas em obras
literárias.

Alberto Manguel (2000, p. 27) assevera que “ler nos ajuda a manter
a coerência no caos, não o eliminar [...]; a não confiar na superfície
brilhante das palavras, mas a investigar a escuridão”. Nesse sentido, a
criatividade envolve o olhar interpretativo para a escuridão perpassada
em meio ao texto literário e cada investigação tomará a forma e o
conteúdo da interpretação literária, isto é, aspectos culturais, sociais e
históricos que delineiam a leitura, ao passo que, cada incursão deverá
possuir atenção às diferentes possibilidades interpretativas.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A escrita vislumbrou a estruturação do processo intencional obra


literária à formação do leitor em ambiente escolarizado, tal conjunto de

983
sentido propôs a reflexão da ausência como forma criativa, a partir do
percurso traçado no desenrolar da caracterização da literatura, foi
possível observar a solidão como conceito necessário à criação do novo,
tendo como base a retomada contínua da busca pela ausência no
literário, foi explanada, também, a escolarização da literatura e sua
adequação em completude com vistas a não mutilação da fruição
humanizadora. Nesse ínterim situacional, a proposição acerca da
intencionalidade agrega a conectividade entre o escopo argumentativo
da intra obra e do leitor literário, portanto, o plano incursionado delineia
a pertinência da obra literária à formação de leitores em ambientes
escolares, não obstante, a abertura propôs reflexão acerca da
fragmentada composição humana, talvez ausente em contínua e
permanente mudança em um retorno intra escopo literário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do percurso realizado, há que lembrar das variáveis que


compõe os espaços institucionais, porém, a escrita pretende refletir sobre
a humanização destes espaços, tendo como base a ausência literária e
humana como retomada contínua de sentido. Dessa forma, é salutar o
desassossego que esta ausência imbui ao ser humano, por meio da obra
literária que em si também perpassa a solidão, o encontro entre faces
tem como finalidade a intencionalidade de preservar-se como literário e,
explanar o crítico na formação de leitores, um conflito árduo, mas que
evoca liberdade e disciplina de forma imbricada e agregadora.

Nesse contexto, estabelecer a extensão de posicionamentos


humanos e vivos, por meio da literatura como ferramenta de trabalho e
movimentação de encontros e pensares que podem divergir ou

984
concordar quando as discussões se realizam. A mediação criativa
permite elaborar e oferecer a escuta de possibilidades de existência,
tendo como ênfase o respeito às diferenças; aspectos que são
necessários para a constituição contínua da sociedade. Sob essa
perspectiva, ler é a ramificação da existência e o limiar da palavra
possibilita a construção de imagem do imensurável humano. O literário
se expõe por meio da escrita e tornam-se acessíveis ao ponto de haver
diálogos subjetivos para começar novos capítulos culturais, sociais e
históricos. A conceitualização da mediação criativa no ensino de
literatura é uma atividade processual que envolve aspectos libertários,
pois, cada leitor perpassa contextos sociais, culturais e históricos, por
consequência, o professor em conjunto com o alunado poderá agregar
à contínua transformação criativa.

AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES - DS pelo financiamento da minha


perscrutação intelectual, bem como, aos professores do PPG da FACALE
- UFGD -, que contribuíram com o direcionamento de textos teóricos que
compõem este trabalho. Agradeço também, ao meu orientador pelos
direcionamentos esclarecedores. Agradeço à minha mãe pelo apoio e
suporte emocional em meio ao contexto desafiador da lida científica. Por
fim agradeço ao III ERELIP pela abertura de espaços para o diálogo
científico.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

985
CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. São
Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004, p. 169-191.

CHARTIER, Roger. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, séculos


XI-XVIII. Tradução: Lusmara Curcino Ferreira. São Paulo: Editora Unesp,
2007.

COSSON, Rildo. A prática de letramento literário na sala de aula. In: Adair


Vieira Gonçalves; Alexandra Santos Pinheiro (Org.). Nas trilhas do
letramento: entre teoria, prática e formação docente. Campinas/São
Paulo: Mercado de Letras, 2011, p. 282-297.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de


um conceito crítico. Revista usp, n. 53, p. 166-182, 2002.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São


Paulo: Editora UNESP, 2020.

LARROSA, J. O enigma da infância ou o que vai do impossível ao


verdadeiro. In: Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Trad.
Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 183-198.

MANGUEL, Alberto. No bosque do espelho: ensaio sobre as palavras e o


mundo. Trad. de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:


EVANGELISTA, Aracy Alves Martins; BRANDÃO, Heliana Maria Brina;
MACHADO, Maria Zélia Versiani (organizadores). Escolarização da
leitura literária. 2ª ed., 3ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

TODOROV, Tzvetan. A leitura como construção. In: Os gêneros do


discurso. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

986
A REPRESENTAÇÃO DA PROSTITUTA NA LITERATURA BRASILEIRA
DO SÉCULO XX.

Jefferson Gomes Oliveira153


Rafaela Cristina Araújo Dos Santos154
Venúzia Maria Gonçalves Belo155

RESUMO: A presente pesquisa é uma análise acerca da obra Lucíola, de José de Alencar.
Nesse sentido, pretende-se discutir a representação da prostituta na literatura brasileira
do século XX e descrever as representatividades sociais da prostituta presente na
literatura. Publicado em 1862, o romance Lucíola causou polêmica porque trazia como
protagonista uma cortesã de nome Lúcia empurrada para a prostituição por problemas
familiares e financeiros e, que ganha a vida vendendo seu corpo, em um prostíbulo,
integrado ironicamente ao espaço social e moralmente aceito. Além disso, falava
também da reabilitação dessa cortesã pelo amor. Na época, tal temática representou
um escândalo porque para os rígidos padrões de conduta social e moral isso era algo
inaceitável, a obra chegou a ser rotulada como imoral. Essa temática ganhou destaque
no auge do romantismo brasileiro e a partir daí vários autores, em suas obras deram
espaços para esse grupo de forma bastante diversa e recorrente nas produções
literárias, fazendo com que estas apareçam em espaços cada vez mais surpreendentes
e denunciadores. Para a produção dessa pesquisa, o tema se sustenta nos trabalhos de
Michael Focault, Rodrigo Cánovas, Northrop Frye, Ricardo Guilherme Dicke, Jean
Shinoda Bolen Valéria de Marco, Luís Felipe de Alencastro, Luciana Nunes da Silva e na
abordagem da obra Lucíola. Vale ressaltar que foram usados como suporte outros
campos da literatura (Teoria Literária e Ciências Sociais), este artigo tem como objetivo
analisar o modo de representação da prostituta na obra Lucíola, de José de Alencar,
tomando como ponto de partida, o conceito de Ariágda dos Santos Moreira sobre
“mundo profano” (o espaço habitado pela personagem prostituta) e “mundo sagrado”
(o espaço social, regulamentado pela moralidade), tomando a personagem prostituta
como ponto de integração entre esses dois mundos e por entender que essa temática
ainda carece de discussões a respeito de sua representação em contextos literários.
Palavras-chave: Representação; Prostituta; Literatura brasileira.

153
Pós- Graduando em Ensino de língua portuguesa e Literatura na Universidade Federal
de Lavras - (UFLA.) E-mail: jstar1604@gmail.com
154
Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas na Universidade Estadual do
Maranhão – (UEMA). E-mail: rafaelacristinaarau@gmail.com
155
Professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão - (UEMA). E-
mail: venuziabelo@gmail.com

987
INTRODUÇÃO

Desde a antiguidade, as mulheres vêm sendo tratadas, estudadas,


analisadas e descritas por homens, tanto no campo literário como no
historiográfico ocidental, observamos que a mulher é construída pela
narrativa masculina. Em vários momentos da história vemos a construção
de um ideal de pureza, subserviência, do dom para a maternidade, para
o amor e os trabalhos domésticos, sendo estabelecidos pela
representação de uma mulher, cis156, mãe e religiosa.

Por outro lado, tudo que foge a este ideal, que está a margem, é
visto como o impuro, o patológico ou não corresponde aos padrões do
que é ser uma “mulher de verdade”. Nota-se que o direito das mulheres
e os preconceitos contra elas e outro grupos minoritários 157 estão
presentes na história desde a idade média.

Na literatura, por exemplo, por um grande período as mulheres não


podiam ler e nem escrever e assim como elas, outros grupos não tiveram
direitos ou nunca tiveram suas representações em narrativas, nem
puderam sequer escrever ou ter reconhecimento por suas produções.
Dentre esses grupos de mulheres que foram vistas como “anormais” estão
as mulheres negras, as prostitutas e as travestis.

Os textos que versam sobre as histórias das prostitutas cativam e


comovem há milhares de anos por ser considerada “uma das mais
antigas profissões do mundo”. Por mais que fossem julgadas como

156
A cisgeneridade é a condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde
ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Por exemplo, alguém que se identifica
como mulher e foi designada como mulher ao nascer é uma mulher cisgênera.
157
No sentido de representação nos espaços de poder.

988
profanas, as prostitutas nem sempre tiveram essa face. Segundo o
autor, Nancy Qualls-Corbett, em sua obra “A Prostituta Sagrada” (1990)
diz que: a "profissão mais antiga do mundo" teve sua face sagrada nas
nações latinas antigas. Nas civilizações gregas e romanas que viveram
antes da Era Cristã, as respeitadas prostitutas sagradas viviam tranquilas,
cercadas de atenção, conforto e muito respeito em suas comunidades
(Id: 14).

Para que uma mulher fosse eleita prostituta sagrada, nesse sentido,
ela tinha que possuir algumas qualidades especiais, como ser dotada de
algumas características físicas. Conforme Qualls-Corbett (1990), essa
mulher teria que ser "virgem, boa, alta e exoticamente bela" (1990, Id.,
ibid.14), sua imagem era associada a um modelo humano das deusas.
Vale situar que já na bíblia este grupo é representado negativamente e
que, em sociedades cristãs, esta representação impacta negativamente
na vida destas mulheres até hoje. Depois do fim do cristianismo, a faceta
sagrada da prostituta é esquecida e no mundo moderno, o que torna-se
interessante é o universo erótico, misterioso e profanado da prostituta.

O interesse pela pesquisa surgiu pela necessidade de identificar


como essas mulheres são representadas na literatura. Visto que elas
sempre foram consideradas impuras e julgadas pela sociedade, porém
sua representação é um estereótipo da visão do outro e não da sua
essência em si. Diante disso, essa pesquisa tem como objetivo realizar
uma análise acerca da obra Lucíola, de José de Alencar. Nesse sentido,
pretende-se discutir a representação da prostituta na literatura brasileira
do século XX e descrever as representatividades sociais da prostituta
presente na literatura.

989
1 METODOLOGIA

A metodologia de pesquisa utilizada será a teórica-analítica:


qualitativa, tendo como base a Teoria e a Crítica Literária, com o
propósito de estudar na obra Lucíola, a representação da prostituta na
literatura do século XXI.

Durante as nossas análises, o primeiro passo será a delimitação do


corpus teórico- analítico, o qual transitará por várias esferas do
conhecimento científico como a Teoria Literária, a Crítica Literária, a
Sociologia, a História e demais trabalhos que contemplam o tema da
prostituição na literatura, além de outros textos que falem sobre o escritor
José de Alencar e sua obra.

Será realizada uma pesquisa bibliográfica a fim de escolhermos os


instrumentos que fomentarão a consecução dos objetivos anteriormente
definidos. Os materiais selecionados para um estudo detalhado maior do
tema são: artigos, revistas, dissertações, pesquisa bibliográfica e a obra
Lucíola, que servirá de base para nossa análise.

Além disso, após nossas análises, definiremos o corpus teórico


usando como suporte, outros campos da literatura (Crítica Literária,
Teoria Literária e Sociologia) que já versam sobre a temática da
prostituição em outros contextos e que faz referência à literatura. Depois
da seleção do material bibliográfico, iniciaremos a análise da obra e sua
relação com os objetivos específicos citados.

990
2 REFERENCIAL TEÓRICO

A prostituição é caracterizada como um dos mais antigos


fenômenos sociais, tal fato se dá por meio de diferentes documentos
históricos, marcada com traços peculiares de diferentes épocas e
culturas. A palavra prostituir vem do verbo latino prostituere, que significa
oferecer-se sexualmente por dinheiro, degradar (se), corromper (se). Essa
palavra prostituição158 vem do latim “prostitutio”, de “pro” + “statuere”,
assim sendo, nessa pesquisa, preferiu-se trabalhar com o termo
prostituição, pela clareza e o objetivo da pesquisa.

Segundo Mota (2008), devido ao alcance mundial do referido


fenômeno, faz-se necessária a adoção da conceituação da
Organização das Nações Unidas (ONU) para a prostituição:

[...] processo em que as pessoas, mediante remuneração, de


maneira habitual, sob quaisquer formas, entregam-se às
relações sexuais, normais ou anormais com pessoas do mesmo
sexo ou do sexo oposto, durante todo o tempo”. Completa a
definição dizendo que o ato sexual comercial é como qualquer
ato comercial em geral, em que algo de valor seja dado ou
recebido por alguém (MOTA, 2008, p. 11 apud FILHO, 2007, p.18).

Para o autor, o conceito dessa palavra significa que essa prática


dar-se pela prestação de serviços sexuais em troca de remuneração, ou
seja, atos sexuais são realizados mediante remuneração permitindo
interação sexual e na maioria dos casos, não ocorre interação afetiva.

Ao longo do tempo a prostituição, vem sendo debatido no


campo literário e social. Nas palavras da referida autora, vem sendo

158 Segundo o dicionário Houaiss (2001).

991
“inserida em diversos tópicos de discussão, tais como, a degradação
social, a saúde pública, os comportamentos de risco, a tóxico-
dependência, a exploração sexual, o tráfico de mulheres e crianças”
(MOTA, 2008, p. 13), além da luta diária pelo reconhecimento da sua
profissão.

As prostitutas estão presentes na sociedade desde que o mundo


foi considerado civilizado, tanto as de elite como as de classes mais
baixas. O lado que muitas pessoas não conhecem diz respeito a imagem
delas relacionadas com a que conhecemos atualmente. Alguns
estudiosos acreditam que no período primitivo, existiam prostitutas
denominadas sagradas. A prostituição sagrada foi, na verdade, a
tradição do ritual sexual que persistiu desde a Idade da Pedra para se
tornar parte integral da adoração religiosa nas primeiras civilizações do
mundo, de acordo com Roberts (1988)159. Por mais que não se saiba qual
a razão, segundo Qualls-Corbett (2012), não há como se discutir que a
prostituição sagrada existiu por longos anos em muitas civilizações. A
prostituta sagrada era um componente integral da comunidade.

159 De acordo com Rodrigues (s./d.), bolsista Capes, aluna do Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários – Mestrado Acadêmico, Campus Universitário de
Tangará da Serra, Universidade do Estado de Mato Grosso, em seu trabalho intitulado
“Representação das personagens femininas em Lucíola e nome de guerra”, Nickie
Roberts é uma referência para a compreensão da origem da prostituição, da projeção
dos mitos e da condição feminina a que as personagens protagonistas nos romances
se submetem. Segundo Francisco Reginaldo de Sá Menezes, mais conhecido como Xico
Sá, jornalista e escritor brasileiro, Nickie Roberts é “[...] uma ex-stripper de Londres, autora
do mais vasto ensaio sobre as ditas mulheres de vida fácil [...] O livro é um show de [...]
compilações de dados históricos com finas citações de Hobsbawm, sobre as chamadas
“trabalhadoras do sexo” – como são politicamente tratadas”. In:
http://www.germinaliteratura.com.br/2009/volupiaverbal_xicosa_jun09.htm. Acesso em
13/06/2021.

992
As prostitutas ou meretrizes 160 , termo usado por Pereira(2012),
foram notadas pela sua alta inteligência e cultura, e também
comparadas a deusas, pelo fato de ser associada a elas a condição
primária para obtenção de maior poder e respeito ao lado da
população masculina da época. Essas mulheres sempre possuíram um
lugar de grande importância em certos momentos da história, porém,
com o passar os anos, sua posição de respeitada a imoral. Esta visão de
ser ou não ser bem vista é um olhar atual da sociedade sobre essas
mulheres. Conforme Vrissimtzis (2002, p. 18), a moralidade é instável “[...]
e afetada por vários e diferentes fatores e, muitas vezes, passa por
mudanças radicais: o que hoje se considera imoral pode em outra época
ter sido considerado correto e vice-versa”.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO: A MULHER RECATADA E DO LAR

Para conquistar seu espaço na sociedade moderna, a mulher


precisou sofrer, lutar e ainda luta até hoje para conquistar melhores
espaços. Ela precisou enfrentar obstáculos, empecilhos e romper com
preconceitos determinados por uma sociedade totalmente patriarcal.

Segundo (Duarte 2008), a mulher tem conquistado espaço na


sociedade de forma vagarosa. Na história, muitas mulheres enfrentaram
batalhas, colocaram-se a frente de manifestações em busca de seus
direitos, conquistaram grandes vitórias e deixaram seus nomes marcados
na história. Percebe-se que a conquista de espaço começou pelo
processo de alfabetização dessas mulheres em seus lares, essas que eram

160De acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), meretriz significa
prostituta.

993
proibidas de ler, passam a ler além dos textos sacros (pois, somente esses
eram permitidos) os romances.

Com o início da modernidade, a mulher passa a ser uma leitora


assídua, especificamente, as mulheres burguesas. Sendo assim, os
romances passam por grandes mudanças significativas, uma vez que os
interesses do público leitor também passa por certas mudanças. A mulher
começa a ter responsabilidade nas tarefas de casa, passa a ter uma
certa autonomia na educação dos filhos. Pelos padrões estipulados pela
sociedade, as mulheres eram educadas para ser dona de casa, boa
esposa e mãe, aprendiam a escrever e ler o básico, e isso já era o
suficiente.

[...] o universo da mulher brasileira é dos mais restritos, no que,


aliás, se afina bastante à sociedade em que vive. Iletrada na
maioria dos casos, a mulher brasileira faz parte de um mundo
para o qual o livro, a leitura e a alta cultura não parecem ter
maior significado (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 245-246 apud
OLIVEIRA; SANTOS; COSTA, 2016, p. 3).

Com base nas afirmações dos autores, nota-se que a maior parte
das mulheres era iletrada, sua educação foi essencial para que elas se
tornassem grandes leitoras, ainda que não fossem deixados de lado sua
principal intenção de prepará-las para as obrigações de ser esposa e
mãe.

A leitura feminina era fiscalizada pelo seu esposo. Com o


crescimento das cidades e o firmamento da burguesia, a educação
dessa mulher passar a ser mais consistente, a mulher torna-se mais ousada.
A mulher passa a tomar espaços nas ruas, nas casas de chás, isso significa
que ela começa a transitar mais pelas ruas. Isso permite que ela tenha

994
mais contato com outras mulheres e a partir desses encontros, elas
passam a trocar ideias e começam a escrever suas próprias histórias.
Além disso, passam a reivindicar e lutar pelos seus direitos de igualdade
ao sexo masculino, nota-se que os ideais da mulher europeia do século
XVIII começam a influenciar as mulheres brasileiras.

Destaca-se o nome de algumas das muitas mulheres que


revolucionaram o mundo com suas lutas e serviram de inspirações para
outras, como: Nísia Floresta Brasileira Augusto (pseudônimo adotado por
Dionísia de Faria Rocha); Narcisa Amália de Campos e Júlia Lopes de
Almeida, essas foram grandes revolucionárias que lutaram pelo direito de
educação e igualdade entre os sexos. Porém, ainda era predominante o
papel que elas tinham que exercer: o de ser esposa e mãe.

Nesse mesmo século, as mulheres passam a publicar seus


primeiros textos, usando pseudônimos pois ainda não eram bem aceitas
como escritoras, somente assim seus textos poderiam ser aceitos pelo
público. Adiante, o pseudônimo serviria de referência para ela que
surgiria no mundo literário como escritora. Essas mulheres que antes
escreviam em seus diários e deixavam esses textos escondidos passam a
publicar esses textos em jornais e revistas, mais tarde transformando em
grandes obras literárias.

Mesmo que a leitura e a escrita tenham sido pontos marcantes


para a conquista de espaços além do lar, ressalta-se que isso não quis
dizer que a mulher estaria livre de julgamentos e preconceitos da
sociedade pois, ainda prevalecia a ideologia que dizia que “O nome da
mulher, tanto quanto sua pessoa, devia se manter dentro de casal
(Machado, 2010, p. 312). Logo, conquistar espaço fora do lar não foi algo
fácil para a mulher, mantida sob os domínios masculinos.

995
4 A PROSTITUIÇÃO NO SÉCULO XX

No decorrer do século XIX, o Brasil passou por grandes


transformações, podemos citar: a consolidação do capitalismo, a
ascensão da burguesia, encarregada de coordenar a vivência familiar e
doméstica, bem como a atividades femininas e por que não dizer, a
sensibilidade e a forma de pensar o amor (D’INCAO, 2010).

Segundo Del Priore (2011, p.6), o cenário da sociedade


brasileira no período oitocentista é:

até o período em que se deu a independência, vivia-se na


América Portuguesa num cenário com algumas características
invariáveis: a família patriarcal era o padrão dominante entre as
elites agrárias, enquanto, nas camadas populares rurais e
urbanas, os concubinatos, uniões informais e não legalizadas e
os filhos ilegítimos eram a marca registrada. (2011, p.62 apud
OLIVEIRA; SANTOS; COSTA, 20162016, p. 4)

Na sociedade da época, os dizeres do patriarcado


predominavam, a mulher tinha sua função definida como de esposa e
isso permitia que ela fosse vista pela sociedade como honesta, sendo
responsável por suas funções no lar e o progresso da família. As mulheres
estrangeiras, especificamente, as francesas eram rotuladas com um
certo tipo de libertinagem, independentemente de serem apreciáveis ou
não. As chamadas “madames” que eram relacionadas aos maus hábitos
eram responsáveis por ensinar aos jovens burgueses tudo que sabiam
sobre os prazeres pois eram vistas como experientes no assunto.

Os bordeis são os lugares onde começavam essas relações


efêmeras. Para Del Priore (2006), o bordel era: o teatro onde se
encenavam o simulacro do eterno, o desejo o espetáculo de uma

996
transgressão protegida e controlada (DEL PRIORE, 2006 p. 85 apud
OLIVEIRA; SANTOS; COSTA, 2016, p. 6). Segundo o ponto de vista da
autora, graças aos prostíbulos que passa a surgir a ideia de prazer sexual.

Consequentemente, a burguesia começa a tomar forma nas


capitais e, é a partir desse momento que os valores familiares de trabalho,
poupança e felicidade vão se confrontar com luxo e prazer, ou seja, a
sociedade começa a enfrentar os direitos moldados pela sociedade.

5 A REPRESENTAÇÃO DA PROSTITUTA NA LITERATURA DO SÉCULO XX

O Romance Lucíola foi escrito em 1862, em seu texto José de


Alencar apresenta uma mulher que é julgada pelas sociedade, não
somente por ser mulher, mas pela posição que ocupa: ser prostituta. Não
estar em seu lar, exercendo o papel de mulher que a burguesia
considerava correto, é uma afronta.

Lucíola é um dos romances urbanos, de José de Alencar. O


enredo da obra diz respeito ao contexto do século XIX. A narrativa tem
como cenário, a zona urbana do Rio de Janeiro. Alencar em seu texto,
descreve os costumes e relata o cotidiano da sociedade burguesa da
época usando uma linguagem formal e culta.

Essa obra exibe um caráter moralista e é narrada em primeira


pessoa pelo personagem Paulo. O narrador conta a história de Maria da
Glória, uma jovem de quatorze anos de idade, pobre que tinha a
atribuição de cuidar dos pais, irmãos e tia, que tiveram a febre amarela.
Sua família não possuía condições financeiras para custear o tratamento
da doença e arcar os gastos com os remédios. Maria da Glória ao
perceber que sua família não apresentava melhora e só piorava, decidi

997
pedir ajuda ao vizinho, chamado Couto que se aproveita da inocência
da menina para corrompê-la.

Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro, sobre as quais me


precipitei, pedindo-lhe de joelhos que mais desse para salvar
minha mãe; mas senti os seus lábios que me tocavam, e fugi. Oh!
Não posso contar-lhe que luta foi a minha: três vezes corri
espavorida até a casa, e diante daquela agonia sentia renascer
a coragem, e voltava. Não sabia o que queria esse homem;
ignorava então o que é a honra e a virtude da mulher; o que se
revoltava em mim era o pudor ofendido. Desde que os meus
véus se despedaçaram, cuidei que morria; não senti nada mais,
nada, senão o contato frio das moedas de ouro que eu cerrava
na minha mão crispado. O meu pensamento estava junto do
leito de dor, onde gemia tudo o que eu amava neste mundo.
(ALENCAR, 1998, p. 109).

A moça deixava que o personagem Couto tocasse o seu corpo


em troca das moedas de ouro. Inicialmente, ela ficou com medo, mas
ao lembrar-se da condição de sua família enferma, voltava para a casa
do vizinho que, aproveitando-se da situação, ofertava moedas e troca
de sexo. Deste modo, a personagem Maria da Glória representa a mulher
prostituta na obra Lucíola. A moça ingênua e pura que foi abusada
sexualmente e corrompida pelo seu vizinho Couto em troca de dinheiro.

Apesar de perder sua honra, foi na prostituição que ela encontra


uma forma de ganhar dinheiro para salvar sua família da epidemia da
febre amarela no ano de 1850. Quando seu pai descobriu de onde ela
conseguia o dinheiro, expulsou-a de casa. Maria da Glória passa a morar
com a senhora Jesuína e uma amiga chamada Lúcia, que não tinha
parentes e veio a falecer. Para evitar que sua família sofresse e fosse
humilhada pela sociedade, ela diz seu nome para o médico e no
atestado de óbito de Lúcia ele coloca o nome de Maria da Glória e ela
passa a usar o nome de Lúcia.

998
O escritor nos leva a reflexão sobre a representação da mulher
prostituta, em seu romance, por meio de duas importantes fases da vida
da Maria da Glória/Lúcia. A primeira diz respeito ao período em que ela
possuía quatorze anos. Nessa fase, ela não tem consciência de vida e é
enganada por um homem dissimulado, que se aproveitou da sua
inocência e do seu desespero para se aproveitar dela. Lúcia se prostituiu
para ajudar sua família e não tinha idade para responder pelos seus atos
e nem raciocinar sobre as consequências que reincidiriam sobre ela.

Na segunda fase, o escritor apresenta a mesma personagem,


porém com o nome de Lúcia, representada por uma mulher de
dezenove anos, bela, sedutora, inteligente, elegante e rica que construiu
suas posses com o dinheiro da prostituição. Ela poderia deixar a
prostituição já que possuía um melhor conhecimento sobre a vida e já
poderia responsabilizar-se pelos seus atos, mas preferiu permanecer
como prostituta da alta sociedade. Ela era uma bela cortesã, desejada
pelos homens, utilizava o corpo como instrumento de trabalho e ganhava
muito bem como prostituta. Entretanto, percebe-se que Alencar
evidencia e critica as duas fases da vida da personagem, frisando que
ela poderia ter outro destino, pois nunca é tarde para mudar.

O narrador-personagem Paulo, provinciano, recém-chegado ao


Rio de Janeiro, narra o romance com Lúcia, a meretriz mais desejada do
Rio de Janeiro naquela época. Ele conta sua história de amor através de
cartas endereçadas a Maria da Glória, que após organiza-las, publica o
livro. Ao chegar ao Rio de Janeiro, Sá, o seu amigo, o apresenta para
Lúcia.

―Quem é esta senhora? Perguntei a Sá. A resposta foi um sorriso


inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e de fatuidade,

999
que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo,
profano na difícil ciência das banalidades sociais. — Não é uma
senhora, Paulo! E uma mulher bonita. Queres conhecê-la?.
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana que
confundira a máscara hipócrita do vício com o modesto recato
da inocência. Só então notei que aquela moça estava só e, e
que a ausência de um pai, de um marido ou de um irmão,
deviam-me ter feito suspeitar a verdade. (ALENCAR,2001, P.15
apud OLIVEIRA; SANTOS; COSTA, 2016, pág. 7)

Nesse diálogo fica clara a imagem da prostituta naquele século:


não é uma mulher que pode ser chamada pelo tratamento de senhora,
e por isso é desqualificada moralmente pela sociedade. Ao ser descrita
por Sá como uma mulher bonita, Sá insinua que são com mulheres
daqueles “tipos” que eles podem satisfazer seus desejos insaciáveis. Lúcia,
ou melhor, Maria da Glória, passa a usar o nome de sua amiga falecida
e torna-se prostituta para salvar sua família que está contaminada por
febre amarela.

Lúcia sentia-se incapaz de viver uma relação onde fosse possível


ser amada completamente, justamente pela condição vivida. Foi por isso
que muitas vezes renegou seu próprio desejo na busca de sua redenção.
Ela viu em Paulo uma forma de sair dessa condição vivida, ou seja, ela se
redimiria daquela vida pelo seu amor. Inicialmente nota-se uma mulher
transgressora, não só pela sua condição que já justificativa tal
transgressão, mas primeiramente por ser a única possuidora da verdade
com relação a sua história, isso a faz ser a senhora da situação. Ao
partilhar a verdade com relação a sua história de vida com Paulo, ela
torna-se submissa em relação a ele. Segundo Kolontai (2011 p. 23) ―a
mulher transforma-se gradativamente. E de objeto da tragédia masculina
converte-se em sujeito de sua própria tragédia.

1000
Na busca dessa redenção para viver um amor íntegro, Lúcia se
resigna no momento em que percebe a possível concretização desse
amor puro que ela tanto buscou, falece. O final nos deixa implícito de
forma velada o preconceito da época: um corpo que foi, principalmente,
marcado pela natureza jamais poderia ser dado a benção considerada
divina, que seria um filho.

Tem se por hipótese então que para a sociedade burguesa e


patriarcalista, felicidade e prostituição eram conceitos que não
poderiam andar juntos. No Romance, o escritor faz críticas diretas à
sociedade burguesa, mostrando-nos a representação da mulher
enquanto prostituta. A prostituta aristocrática da obra busca sua
redenção na tentativa de viver um amor puro, pois para Lúcia, a
prostituição “rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a
capacidade de sentir apaixonadamente o amor, essa paixão que
enriquece a personalidade pela entrega dos sentimentos vividos”.
(KOLONTAI, 2011, p. 31), e para isso passa a ser submissa ao seu amado,
na tentativa de pegar para ela o que seria uma espécie de “tábua de
salvação” para sair da prostituição.

Por meio da representação da sociedade da época, notamos


como as prostitutas eram vistas naquele período, tanto pelos homens
como para o resto da sociedade. José de Alencar propõe quase que
uma fotografia do período oitocentista, no que tange a representação
desta mulher dos salões.

1001
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um período marcado pelo preconceito, considerado até


hipócrita (Del Priore,2011) onde prevaleciam ideais burgueses como
lealdade, coragem e honra, predominavam moldes estipulados de
comportamento determinados, principalmente, ao público feminino,
elas eram obrigadas a seguir os moldes estipulados pela sociedade de
valores e princípios irretocáveis. E nesse cenário que o escritor José de
Alencar introduz Lucíola, considerada pela elite fluminense como
diferente, vista com certa repulsa inicialmente.

Nessa obra, o autor faz críticas pertinentes à sociedade burguesa,


mostrando-nos também como a prostituta é representada enquanto
mulher. A prostituta de José de Alencar busca viver sua vida de forma
determinada correta pela sociedade, por meio do sentimento que tem
por Paulo. Isso é perceptível no momento em que ela se entrega ao seu
amado, esse gesto é uma maneira dela deixar aquela vida, ou seja, um
tipo de solução para sair dessa situação.

A representação da sociedade da época através do romance


propicia que percebamos como as prostitutas eram percebidas naquela
época, tanto pelos homens como parte da sociedade. No que diz
respeito as mulheres, o autor faz uma leitura apresentando como elas
eram vistas no período oitocentista.

A temática dessas mulheres que sempre foram julgadas,


silenciadas e nunca escutadas, vem ganhando cada vez mais destaque
e reconhecimento tanto na academia quanto no mercado editorial. Essa
pesquisa possibilitou conhecer mais sobre esse tema e também
despertou o interesse de estudar as obras autobiográficas das prostitutas,

1002
na contemporaneidade. Por meio dos seus relatos, essas mulheres
escrevem sobre si e permitem que o outro possa conhecer sua vivencia,
para quem sabe no futuro os preconceitos, julgamentos contra essas
vozes dissidentes possam ser reduzidos.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, Série Bom Livro, 1988.

CORBETT,Nancy Qualls. A Prostituta Sagrada: A face eterna do feminino.


2a ed. São Paulo: Ed. Paulus, 1990.

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexo e erotismo na história do Brasil.


São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.

DUARTE, Constância Lima. Os anos de 1930 e a literatura de autoria


feminina. In: WERKEMA, Andrea Sirihalet al Literatura Brasileira 1930, Belo
Horizonte: UFMG, 2012.

D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e Família Burguesa. In: DEL PRIORE, Mary.
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora contexto, 2010.

FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres de Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary.


História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora contexto, 2010.

LITERATURA Germina. Disponível:


<http://www.germinaliteratura.com.br/2009/volupiaverbal_xicosa_jun09.
htm>. Acesso em 13/06/2021.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro, Ed. Objetiva, 2001

1003
KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. 2ª ed. São Paulo:
Expressão popular, 2011.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São


Paulo: Ática, 1998.

MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio


de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010.

MOTA, Karine Alves Gonçalves. Intervenção do Estado como Agente


Regulador e Fiscalizador da Atividade Econômica: Prostituição.
Dissertação apresentada ao 249 Programa de Mestrado em Direito da
Universidade de Marília, área de concentração Empreendimentos
Econômicos e Mudança Social. Marília, 2008.

OLIVEIRA, Fernanda Karyne De et al.. A representação da mulher


prostituta em Lucíola de José de Alencar. Anais XII CONAGES... Campina
Grande: Realize Editora, 2016. Disponível em:
<https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/18288>.
Acesso em: 20/06/2021 13:57

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução Ângela M. S.


Corrêa, São Paulo: Contexto, 2013.

ROBERTS, Nickie. A prostituta na história. São Paulo: Rosa dos Ventos, 1998.

VRISSIMTZIS, Nikos A. Amor, sexo e casamento na Grécia Antiga.


Tradução: Luiz Alberto Machado Cabral. São Paulo: Odysseus, 2002.

1004
JOÃO GILBERTO NOLL E A IDENTIDADE DO SUJEITO
PROTAGONISTA DO CONTO MARABÁ DO LIVRO A MÁQUINA
DE SER

Carmelinda Carla Carvalho e Silva161

RESUMO: Este artigo consiste na análise de um dos contos que compõe o livro cujo título
é A máquina de ser, de João Gilberto Noll, publicado em 2006, na perspectiva da
identidade. Com a base teórica de estudiosos acerca dessa temática, há respaldo
para uma discussão sobre a identidade dos indivíduos que Noll nos apresenta no conto
Marabá, um dos vinte e quatro contos que formam o livro. Como forma de constituir,
a identidade faz com que o indivíduo construa uma relação com o meio, o espaço, o
tempo e os demais membros que os cercam, sedimentando uma identidade que ora
está fixa e ora encontra-se em processo de modificação, já que o indivíduo possui
diferentes identidades em diferentes momentos nessa narrativa.

Palavras-chave: Conto. Identidade. Narrativa.

INTRODUÇÃO

Ao pensarmos um sujeito e seus comportamentos na sociedade,


faz-se necessário uma mínima compreensão acerca do eu desse
indivíduo. Em outras palavras estamos falando da identidade que cada
um de nós possuímos e, que esta é a responsável por caracterizarmo-nos
de acordo com nossas ações, sentimentos e até mesmo pensamentos.
O termo identidade aqui será utilizado para traçarmos um
panorama de análise das personagens do conto Marabá pertencente
ao livro A máquina se ser de autoria de João Gilberto Noll publicado em
2006, no que diz respeito a compreensão de determinadas atitudes que

161
Mestra em Literatura, Memória e Cultura – UESPI – Universidade Estadual do Piauí.
Emaiil: carmelinda.sig7@gmail.com

1005
a protagonista vivencia na narrativa.
No livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall
(2000) trata do surgimento do feminismo como crítica teórica e
movimento social, que trouxe toda uma forma nova de pensar as
teorizações a respeito das identidades sexuais e de gênero. O autor
esclarece que nas últimas décadas do século XX as transformações na
construção da identidade vêm se tornando mais frequentes, deixando o
sujeito em dúvidas ao ter que optar pelos novos ou velhos padrões.
Em síntese, para Hall, identidade, sociedade e cultura não se
separam, mas encontram-se fortemente ligadas através de um elo, que
molda as estruturas das identidades de cada sujeito. E é a partir do
transcurso dessas mudanças culturais que a fixidez de identidades é
então ainda mais abalada. Conforme Hall, 2000, p. 104) é com base nisso
que ocorrem construções de novas identidades no processo de
pluralização de culturas.

1 METODOLOGIA

Ao analisarmos o título do livro onde consta o conto aqui em


análise, A máquina de ser, percebemos que a máquina em questão é o
próprio homem nos dias atuais. É justamente o meio e a forma como este
se porta diante das necessidades diárias. É uma metáfora como se o
indivíduo fosse uma máquina que desenvolve sempre as mesmas tarefas
de forma programada e igual.
No conto Marabá, pertencente ao livro que contém ao todo 24
contos, Noll mostra-nos uma narrativa de uma corriqueira vida de um
casal que se encontra em crise no casamento e que de acordo com a
ambientalização do autor, vivem uma rotina onde os dois estão

1006
descontentes. No fragmento abaixo notaremos que a relação já é
desconfortante:

Mas, enfim, o que farei do dia de hoje? [...] eu imediatamente


finjo ser outra. Ponho um lenço azul nos cabelos, abro o estojo;
no espelho, retoco a sobrancelha. Não tenho ninguém para
o qual me retocar. (NOLL, 2006, p. 90).

A metodologia aqui abordada será o levantamento da teoria da


identidade baseada nos estudo de Hall (2004) com o livro A identidade
do sujeito na pós-modernidade, Freud (1973), Porto (2011) e em seguida
associar os elementos constitutivos da identidade que permeiam o
nosso objeto em questão, o conto Marabá pertencente ao livro A
máquina de ser de João Gilberto Noll para por fim mostrarmos como as
personagens se locomovem dentro da narrativa mostrando-nos as
fragmentações das identidades que assumem nas mais diversas
situações da narrativa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Para investigarmos as identidades no conto, utilizaremos como


suporte inicial, Stuart Hall (2000) que em seus estudos culturais, analisa a
crise da pós-modernidade, tomando como centrais as mudanças
estruturais que fragmentam/desconstroem as identidades culturais de
classe, gênero, raça, etnia e nacionalidade. O processo de
transformação dá-se devido às mudanças que vem ocorrendo e nos
levando a questionar como e em que a própria modernidade está sendo
transformada.
Com isso, Hall (2000) distingue três concepções de abordagem
dessas identidades no livro A identidade cultural na pós-modernidade,

1007
que trabalha de forma profunda a crise de identidade nos sujeitos. Nesta
obra o autor indica uma mudança vagarosa das identidades dos sujeitos,
confrontado a sociedade moderna com o avanço das sociedades
tardias.
A individualidade do sujeito vai sendo construída de acordo com
a evolução de sua consciência. Aos poucos essa identidade se firma no
indivíduo e torna-se uma característica que o particulariza. Hall (2000) nos
fala sobre isso, mostrando também que o tempo se encarrega de
solidificar tais identidades e que:

Ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo,


sempre sendo formada. [...] A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é "preenchida"
a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2000, p. 10)

Dias (2005), na resenha intitulada Modernidade e Identidade, traz


um posicionamento onde a identidade está relacionada diretamente
com o meio social onde o indivíduo se encontra. Aduz que o ‘eu’ vai
fixando sua identidade conforme as influências que encontra e que isso
é mais forte quando tal indivíduo se identifica como o responsável pelo
que se torna:

A discussão tem início com o reconhecimento de que, em


uma sociedade tradicional, a identidade social dos indivíduos
é limitada pela própria tradição, pelo parentesco, pela
localidade. A modernidade, caracterizada como uma ordem
pós-tradicional, ao romper com as práticas e preceitos
preestabelecidos, enfatiza o cultivo das potencialidades
individuais, oferecendo ao indivíduo uma identidade "móvel",
mutável. É, nesse sentido, que, na modernidade, o "eu" torna-
se, cada vez mais, um projeto reflexivo, pois aonde não existe

1008
mais a referência da tradição, descortina-se, para o indivíduo,
um mundo de diversidade, de possibilidades abertas, de
escolhas. O indivíduo passa a ser responsável por si mesmo e
o planejamento estratégico da vida assume especial
importância. (DIAS, 2005, p. 93)

Ao classificar as identidades pertencentes ao indivíduo, Hall indica


a primeira concepção discutida em sua obra, a de Sujeito do Iluminismo,
que está baseada em uma concepção de um ser humano inteiramente
centralizado, com o interior sólido e possuidor de razões, onde o interior é
o seu núcleo que aflora no nascimento e continua o mesmo por toda sua
existência, tornando a personalidade do eu, sua identidade fixa.
Essa que “surge não tanto da plenitude da identidade que já está
dentro de nós como indivíduos, mas também de uma falta de inteireza”
(HALL, 2000, p.10). Dessa forma, o sujeito permanecia o mesmo ao longo
da vida, sem alterações na construção do seu interior. Para ele:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da


pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo
interior, que pela primeira vez quando o sujeito nascia e com
ele se desenvolvia, ainda que permanecendo
essencialmente o mesmo — continuo ou "idêntico" a ele — ao
longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era
a identidade de urna pessoa. (HALL, 2000, p. 12)

Na segunda categoria, Hall (2000) evidencia o Sujeito Sociológico,


que reflete a variedade do mundo moderno e a consciência que ele não
é independente e detentor de todos os conhecimentos sobre o meio
externo, mas formado pela interação com o mundo social, que se refere
aos sujeitos que agregam intimidade nos ciclos de vida e que
representam relevância para aquele indivíduo.

1009
Nessa concepção, a identidade é formada pela convivência do
seu eu com a coletividade, perfazendo dessa forma, as lacunas
existentes entre o mundo interior que possui e os espaços vazios que não
considera como sendo importantes. Assim, essa relação entre o eu e a
sociedade é comparada a uma sutura, onde o sujeito é aproximado à
estrutura que o mundo social lhe proporciona. Conforme Hall (2000, p.13):

O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades


culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus
significados e valores, tornando- os "parte de nós", contribui
para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares
objetivos que ocupamos no mundo social e cultural.

Por fim, o Sujeito Pós Moderno definido como um sujeito que passa
por uma transformação contínua, devido às formas como são
representadas as identidades nos sistemas culturais, onde o sujeito possui
identidades diferentes em distintos momentos. Para esclarecer acerca
disso, lembra Hall (2000, p. 107):

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma


saturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção.
Há sempre “demasiado” ou “muito pouco” – uma
sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste
completo, uma totalidade. Como todas as práticas de
significação, ela está sujeita ao “jogo” da différance. Ela
obedece à lógica do mais-que-um.

Hall (1992, p. 108) afirma também que os sujeitos estão


constantemente em conflito e dúvida que os colocam sempre na
indecisão de como se comportarem diante de determinadas situações.
Apresentam-se contraditoriamente dependendo do momento em que
estão vivendo, e então, a identidade antes considerada fixa, vai sofrendo

1010
tais alterações:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes


momentos, identidades que não são unificadas ao redor
de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas. (HALL, 1992, p. 108)

Tais processos ocorrem, segundo Hall, por conta das mudanças


que se irradiam na elaboração da identidade do sujeito, que antes
buscava sua identidade nas tradições culturais, na era moderna, o que
deixa de acontecer na pós- modernidade, trazendo com isso os conflitos
pertinentes a um período diferente daquele em que o sujeito buscava a
identidade no meio social.
A ruptura da concepção de identidade como essência do sujeito
abalou o pensamento da era moderna. Em um capítulo do seu livro, Hall
aborda o “Nascimento e morte do sujeito moderno”, notabilizando como
o indivíduo focado na modernidade constrói uma nova identidade.
Nesta explanação, Hall (1992) explora os cinco momentos principais
dessa transformação:

Um outro aspecto desta questão da identidade está


relacionado ao caráter da mudança na modernidade
tardia; em particular, ao processo de mudança
conhecido como "globalização" e seu impacto sobre a
identidade cultural. Em essência, o argumento é que a
mudança na modernidade tardia tem um caráter muito
específico [...] (HALL, 1992, p. 108).

Com efeito, a Corrente Marxista afirma que o homem está preso à


sua vida histórica como condição humana, e que tal contexto influencia
na sua identidade, exteriorizando as diferentes formas de interpretação.

1011
Em seguida, lembra Hall (1992) da descoberta do inconsciente por Freud,
que aponta este elemento como responsável pelos processos de
formação do indivíduo, utilizando-se de métodos e símbolos como
alternância para a criação de um elo entre o consciente e o
inconsciente, solidificando identidades antes fragmentadas e sem base
estrutural. Essa percepção traz novos elementos para se pensar a
identidade.
Por outro lado, o desenvolvimento do estruturalismo linguístico de
Saussure apresenta a língua como sendo pré-existente e social, ou seja,
tudo o que fazemos é resultado de uma ação já antes praticada, já
produzida e que está sendo apenas reproduzidas quantas vezes se
fizerem necessárias. Este elemento, a linguagem, também influencia na
construção da identidade do sujeito. Hall (1992) indica ainda a ideia do
poder disciplinar proposta por Michel Foucault (1985), onde o sujeito deve
ser mantido com seus modos de ser e agir com disciplina e sem
modificações, buscando com isso, o controle de sua identidade.
Finalmente, Hall (1992) trata do surgimento do feminismo como
crítica teórica e movimento social, que trouxe toda uma forma nova de
pensar as teorizações a respeito das identidades sexuais e de gênero. O
autor esclarece que nas últimas décadas do século XX as transformações
na construção da identidade vêm se tornando mais frequentes,
deixando o sujeito em dúvidas ao ter que optar pelos novos ou velhos
padrões.
Em síntese, para Hall, identidade, sociedade e cultura não se
separam, mas encontram-se fortemente ligadas através de um elo, que
molda as estruturas das identidades de cada sujeito. E é a partir do
transcurso dessas mudanças culturais que a fixidez de identidades é
então ainda mais abalada. Conforme Hall é com base nisso que ocorrem

1012
construções de novas identidades no processo de pluralização de
culturas.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os contos no contexto literário de Noll, em A Máquina de Ser,


trazem personagens sem nome e no conto em análise, Marabá, não é
diferente. Esse, particularmente, mostra-nos uma mulher que em crise no
casamento, cria uma rotina de todos os dias sair de casa e ficar vagando
nas ruas enquanto o marido procura por emprego.
Logo no início da narrativa, encontramos uma mulher que embora
tenha essa ânsia de liberdade, que será visto mais adiante, é mostrada
como sendo submissa ao marido e que desempenha todas as ‘funções’
domésticas, mas que sente necessidade de viver sua própria vida e isso
podemos apontar como sendo a identidade iluminista onde o ’eu’ está
centrado desde o seu nascimento e permanece o mesmo ao longo da
vida, possui uma particularidade que não sofre alterações em
decorrências do que vivencia atualmente. Podemos associar essa ânsia
como indícios de um descentramento de identidade que mais adiante a
classificamos como identidade múltipla.
Nesses trechos iniciais notamos que ela pratica esses atos
baseando-se nas lembranças que possui de sua infância ao relatar que
age da mesma forma como a mãe fazia com o pai:

Para mim, como mulher é menos oneroso: fui acostumada a


ficar em casa ouvindo mistérios gozosos, sentada na poltrona,
observando meu pai tirar as meias na sala toda noite [...]
minha mãe o acordava para poder levá-lo pela mão a cama.
(NOLL, 2006, p. 89)

1013
A protagonista que embora não tenha um nome, sente-se como
uma mulher dominada pelo cônjuge, que além de tratá-lo com todos os
‘caprichos’, coloca-se na condição de ser pertencente ao esposo. No
meio da narrativa ela fala de como o trata, novamente tomando como
referência a forma como seu pai fora tratado por sua mãe. Ela serve
como sendo a responsável por satisfazer os caprichos e até mesmo lavar
os pés cansados deste:

Quando ele tirava os sapatos e as meias sentado na poltrona


predileta, eu lembrava do meu pai mas não lhe dizia nada –
apenas mirava os seus pés brancos, mais claros do que os do
meu pai; trazia da cozinha uma bacia d’água morna para
seu alívio. Depois de uns vinte minutos vinha com a toalha de
feltro bege, secava dedo a dedo, a sola do pé, observava de
muito perto cada veia, a bem dizer os relevos do seu corpo.
(NOLL, 2006, p. 91).

Após esse trecho, percebemos como a identidade da


personagem está fragmentada, uma vez que se dedica ao máximo ao
esposo e a satisfazer seus desejos e ora não se encontra naquele
relacionamento como uma pessoa feliz e realizada. Isso é possível de ser
percebido quando os dois encontram-se em um café e ela faz uma
reflexão sobre seus anseios.
Nesse momento é perceptível que a identidade passa por um
processo de transformação que Hall (2000) nomeia de identidade
sociológica, como já vimos que é onde o sujeito começa a ser
influenciado pelo meio e há uma relação estabelecida entre esse ‘eu’ e
a sociedade:

Sabe?, eu mesma não fui embora do café, quis ficar


fabricando umas esquisitices no papel, alguma coisa entre o

1014
desenho e a fábula sobre o balcão, de é mesmo. Adivinhava,
eu já não fazia parte de um casal, estava avulsa daquele
homem que nos chamava de parceiro. (NOLL, 2006. p. 91)

A identidade vai ainda mais se alterando conforme Hall (2000),


chegando a fase pós-moderna quando pelas vozes da protagonista,
essa já fala do companheiro de forma desinteressada e sem entusiasmo,
mas também percebemos que seu companheiro não sente o mesmo de
antes por ela. Os dois, pelos traços da narrativa, estão descontentes:

No que...? Ah, pobre dele, feito eu matando tempo, fazendo


hora, espichando as caminhadas para poder chegar em
casa só a tardinha, como se encenando um dia altamente
laborioso ou mais: extenuante. (NOLL, 2006,p. 91)

Nas passagens seguintes, a protagonista resolve sair para procurar


emprego e no meio do caos da cidade, resolve parar e observar o
mundo a sua volta. Nesse momento podemos associar como dissemos
anteriormente, que o título do livro A máquina de ser refere-se de fato
com a correria do dia a dia, do aceleramento das atividades, do pouco
tempo para si, de não conseguir interagir de forma mais delongada com
o meio em que se vive:

Queixava-me diante dos sinais fechados para os pedestres,


corria driblando os carros, suava, até parar de um golpe e
olhar enfim desencanada par o ar. Sentei num banco de
praça, pensei que eu podia, antes de possuir um emprego, vir
ler aqui diariamente. (NOOL, 2006, p. 92)

A partir desse momento ocorre o ápice da narrativa no conto. Ela,


durante o percurso de volta para casa, depara-se frente a um hotel que
o nome é justamente o título do conto em análise ‘Marabá’, ele fica bem

1015
no centro da cidade e ela fala que “sempre quis entrar ali, desde
criança” (NOOL, 2006, p. 92). Olhando em volta daquele lugar, ver do
outro lado da rua, um cartaz de anúncio do filme Feminices 162 de
Domingos de Oliveira, que ao analisarmos, trata-se de um documentário
real onde explora o feminismo e faz uma breve conexão de como as
mulheres podem e são independentes.
A protagonista por sua vez resolve entrar para assisti-lo. Quando
adentra escolhe dentre muitos assentos vagos, um que fica ao lado de
um belo homem que chama sua atenção. Aqui notamos como a
identidade que segundo Hall (2000) é inconstante, se mostra. Ela age
contrariamente a aquela mulher dominada, submissa e que só tem olhos
para seu esposo. Nesse momento a categoria de identidade pós-
moderna é evidente, pois ela age conforma seus desejos e o meio em
que está, a estimulam:

Entrei no cinema, a sessão começando. Não enxergava nada,


salvo a tela. Apalpei a primeira cadeira que se assemelhou a
tal objeto a minha trevosa vista. Não era um assento.
Tateando febrilmente encostos de cadeiras mais à frente, falei
não, desculpe, quis dizer e disse mesmo ao passar a mão por
uma perna claramente masculina por baixo de um veludo. No
mundo não haveria outra igual. (NOLL, 2006, p. 93).

A personagem mostra-nos objetivamente como sua identidade foi


sofrendo alterações até chegar na classificação de identidade pós-
moderna, onde o descentramento do sujeito é marca objetiva na
contemporaneidade. Giddnes em Modernidade e identidade (2003) não

162Documentário lançado em 2004 onde retrata confissões de três amigas que após
anos separadas reúnem-se e descobrem que todas estavam infelizes nos seus
respectivos relacionamentos até que tomam a iniciativa de reconstruírem suas histórias
em busca de liberdade.

1016
nos deixa esquecer que tanto a modernidade pode aproximar as
identidades, ela também pode afastá-la já que dependendo da
atmosfera, do meio e modo como vivem, indivíduo reagem de formas
diferentes nesse processo de construção.

De fato, divisões de classe e outras linhas fundamentais de


desigualdades, como as que dizem respeito a gênero ou
etnicidade, podem ser em parte definidas em termos do
acesso diferencial a formas de auto-realização e de acesso
ao poder. A modernidade, não se deve esquecer, produz
diferença, exclusão e marginalização. Afastando a
possibilidade de emancipação, as instituições modernas ao
mesmo tempo criam mecanismos de supressão, e não de
realização do eu. (GIDDENS, 2003, p. 13)

Ao final do conto em análise, a personagem exacerba os desejos


ocultos que possuía e que deixa nesse momento explorar-se. A
transgressão de identidade possui marca tão forte que chega-se a
pensar que trata-se outra pessoa quando a mesma relata:

Aqueles músculos da coxa pareciam muito mais a ideia da


excelência dos corpos, do que meramente uma perna
qualquer. Não tive dúvida, perguntei se a cadeira ao lado
estava ocupada. Ele tinha uma voz abaritonada, respondeu
que não; passei por ele, que gentilmente, já se botava de pé
para alargar a minha passagem -, agradeci. Agradeci e sentei.
(NOLL 2006, p. 93)

Os personagens de Noll estão lançados ao acaso, retratam bem os


sujeitos, bem como o da contemporaneidade. Vale ainda ressaltar ainda
que para Hall (2000) sobre o sujeito pós-moderno, este também é definido
como aquele que assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de eu ‘eu’ e

1017
que esse ‘eu’ seja coerente (HALL, 2000, p. 13).
Esse sujeito é encontrado no conto Marabá (2006) na personagem
de Noll, uma vez que as identidades estão submersas a esse abismo
descentrado do mundo contemporâneo. João Gilberto Noll trabalha
justamente com essa pluralidade do sujeito atual, e de certa forma um
ser proveniente de relações fragmentarias que estão sempre
perambulando geograficamente, seres desterrados, assim ele trata a
questão de identidade profundamente de forma substancial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após traçarmos um paralelo em relação as identidades defendidas


por Hall (2006) e tomando como base os postulados que evidenciam a
fragmentação da identidade mostrando-nos sujeitos com assumem
diferentes identidades em diferentes momentos e associando tais
aspectos com o objeto em análise, concluímos que em um mundo cada
vez mais globalizado, nenhum indivíduo é detentor de si em absoluto, e
sim que o meio externo, as pessoas com as quais se convive, o modo de
ver os fatos, e no caso do enredo do nosso objeto aqui analisado, a
frustação e descontentamento, influenciam diretamente na
fragmentação da personagem, compondo-a como possuidora de uma
identidade fragmentada e que por vezes a deixa em conflitos íntimos.

REFERÊNCIAS

DIAS, Rafaela Cyrino Peralva. Resenha: Modernidade e identidade.


Psicol. Soc. vol.17 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2005.

1018
GIDDENS, A. Modernidade e identidade (P. Dentzien, Trad.). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, Ed,DPA, RJ, 2000.


NOLL, João Gilberto. A máquina de ser. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.

1019
USO DE APLICATIVO PARA AUXILIAR NO DESENVOLVIMENTO DA
LEITURA E DA ESCRITA DOS EDUCANDOS COM DISLEXIA

José Wellington Macêdo Viana 163

Thais Faustino Bezerra 164

RESUMO: O uso da tecnologia na educação se tornou uma condição essencial para


desenvolver e estimular a capacidade de leitura e de escrita dos educandos nas séries
iniciais. Partindo dessa premissa, objetivou-se refletir sobre o uso de um aplicativo
chamado “As Minhas Histórias”, para auxiliar no processo de aprendizagem dos
educandos. Para tanto, sugerimos breves ações educativas no sentido de incrementar
a prática de leitura e escrita no âmbito educacional. Primeiramente, realizamos uma
breve revisão da literatura a fim de conseguir melhor aporte teórico sobre o uso do
referido aplicativo. Este contém diversas histórias infantis em português, englobando
imagens incluídas no texto para facilitar a compreensão do aprendiz no momento da
leitura individual ou conjunta com o educador. Além disso, apresenta um “quis”
colaborativo de perguntas para apoiar na fixação dos conteúdos e rememoração da
leitura da história infantil, critérios estes que consideramos inclusivos para a escolha
desse aplicativo. A partir disso, foram analisadas algumas histórias, tais como: “A Abelha
Chocolateira”, “A Menina do Leite”, “O Pássaro sem Cor”, “A Princesa e o Sapo”, dentre
outras. A partir da leitura e releitura de cada história, observamos que o educador pode
sugerir que sejam feitos desenhos correlatos ao tema, pedindo para os educandos
destacarem as vogais e consoantes dos textos, as palavras conhecidas e não
conhecidas, formular perguntas básicas, dentre outras ações educativas. Sem dúvidas,
o aplicativo é uma ferramenta colaborativa relevante para auxiliar os educandos no
desenvolvimento da leitura e da escrita.

Palavras-chave: Aplicativo, Aprendizagem, Histórias Infantis.

163 Graduado do Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade


Regional do Cariri - URCA, wellingtonmacedo1819@gmail.com;
164 Graduanda do Curso de Licenciatura da Universidade Regional do Cariri - URCA,

thaisfaustino00@gmail.com;

1020
INTRODUÇÃO

O uso das Tecnologias da Comunicação e Informação (TIC’s) na


educação se tornou uma condição considerada, por diversos autores,
imprescindível no desenvolvimento da aprendizagem, uma vez que
estimulam as capacidades de leitura e de escrita dos educandos,
ampliando, dessa forma, o processo educacional em todos os níveis de
ensino (SILVA, 2018; CONTE; HABOWSKI; RIOS, 2019). Segundo Souza e
Souza (2010), estudar e usar as tecnologias, sejam elas de informação ou
comunicação, permite transformar o que é complicado em útil, aderindo
praticidade e dinamicidade, além de ser mais estimulante.

Partindo deste contexto, Zanela (2007, p. 26) ressalta que a


tecnologia de forma geral se caracteriza como “[...] um novo sentido no
processo de ensinar desde que consideremos todos os recursos
tecnológicos disponíveis, que estejam em interação com o ambiente
escolar no processo de ensino-aprendizagem”. Nessa abordagem
tecnológica, destacam-se os chamados aparelhos móveis, considerados
facilitadores da aprendizagem ao superar os limites entre a
aprendizagem formal e a não formal (UNESCO, 2014). Neste sentido, os
aplicativos que podem ser baixados nos aparelhos móveis, dependendo
do contexto no qual se encontram inseridos e de seus conteúdos
predominantes, conjecturam-se como ferramentas auxiliadoras no
processo de leitura e escrita, principalmente para os educandos com
algum tipo de distúrbio do processo de ensino-aprendizagem, como é o
caso da dislexia.

Conforme Maia (2016, p. 85), “a dislexia é apresentada em várias


formas de linguagem, frequentemente incluídos problemas de leitura, em

1021
aquisição e capacidade de escrever e soletrar”. No sentindo mais amplo,
a dislexia é:

Uma incapacidade específica de aprendizagem, de origem


neurobiológica, caracterizada por dificuldades na correção
e/ou fluência na leitura de palavras e por baixa competência
leitora e ortográfica. Estas dificuldades resultam de um défice
fonológico, inesperado, em relação às outras capacidades
cognitivas e às condições educativas. Secundariamente podem
surgir dificuldades de compreensão leitora, experiência de
leitura reduzida que pode impedir o desenvolvimento do
vocabulário e dos conhecimentos gerais (PINTO, 2012, p. 22).

Dentro desta perspectiva, torna-se necessário o repensamento das


práticas de ensino-aprendizagem para alunos disléxicos no contexto
escolar a fim de minimizar a progressão da dislexia e sanar muitos dos
déficits a ela associados (BARBOSA, 2014). Por isso, compreender e utilizar
as tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica,
reflexiva e ética nas diversas práticas sociais, incluindo as escolares
adendas à educação inclusiva para os mais diversos estudantes, é
precípuo nas abrangentes facetas sócio-comunicativas imbuídas das
diferentes linguagens e mídias, no sentido holístico de produzir
conhecimentos, resolver problemas e desenvolver projetos tanto autorais
quanto coletivos. Para tanto, o professor deve estar familiarizado com os
métodos digitais de ensino, especialmente por meio dos aplicativos
móveis, uma vez que estes são baseados em um programa de linguagem
estruturada, que faz uso de todos os canais sensoriais envolvidos, como
audição e visão, e uso da memória, tanto na escrita quanto na fala
(TAVARES, 2008; BEZERRA et al., 2020).

Partindo dessa premissa, objetivou-se neste estudo refletir sobre o


uso de um aplicativo tecnológico chamado “As Minhas Histórias” para

1022
auxiliar no processo de ensino-aprendizagem dos educandos,
especialmente aqueles com dislexia.

1 METODOLOGIA

A nossa pesquisa caracteriza-se primacialmente como uma revisão


da literatura, por meio da qual pesquisamos trabalhos diretamente
voltados para a proposta de estudo usando a plataforma de busca
“Google Acadêmico” e “SciElo”. O critério de seleção dos trabalhos que
embasaram nossa proposta levou em consideração a existência de dois
eixos em específico: dislexia e tecnologia. Trabalhos que abordassem
essa temática, em concomitância ou não, foram permeados no
processo de inclusão e estão destacados no quadro da próxima página.

Partindo dessa base teórica, prosseguimos para a pesquisa do


aplicativo na loja virtual Play Store, para tanto usando nossos próprios
aparelhos tecnológicos. Foi selecionado o seguinte descritor: “Histórias
infantis”, para o qual apareceram diferentes opções correlatas de
aplicativos móveis. A partir disso, analisamos as principais características
de cada aplicativo, considerando suas possíveis contribuições para o
processo de ensino-aprendizagem do educando em um contexto geral.

Com isso, escolhemos o aplicativo chamado “As Minhas Histórias”


baseando-se na presença de uma ludicidade educativa mais interativa
a nosso ver, embasada na disponibilização de um quiz em cada história
ofertada. Partindo dessa escolha, sugerimos nesse trabalho breves ações
educativas no sentido de incrementar a prática de leitura e escrita no

1023
âmbito educacional, especialmente dos disléxicos, a partir do uso desse
aplicativo.

Quadro 1 - Trabalhos incluídos nessa revisão, com os respectivos nome(s) do(s) autor(es),
ano de publicação e título do artigo.

Sobrenome dos Ano de Título do trabalho


autores publicação

O Professor e o “laboratório”
de informática: navegando
Zanela 2007
nas suas percepções

O uso da tecnologia como


facilitadora da aprendizagem
Souza e Souza 2010
do aluno na escola

Movimentos colaborativos,
tecnologias digitais e
Pretto e Bonilla 2015
educação

Maia 2016 Necessidades Educacionais


Especiais

Silva 2018 A importância do uso das TICs


na Educação

Aplicativos móveis para a


alfabetização e letramento
Junior, Menez e 2018
no contexto do ensino
Wunsch
fundamental.

1024
Conte, Habowski e 2019 Ressonâncias das tecnologias
Rios digitais na educação

Bezerra et al., 2020 Jogos educativos na


aprendizagem dos alunos
disléxicos: relato de
experiência

Fonte: Quadro elaborado pelos autores.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Mediante as análises teóricas acima destacadas, foi possível


observar que o aplicativo “As Minhas Histórias” (figura 1) contém diversas
histórias infantis em português, englobando imagens incluídas no texto
para facilitar a compreensão do aprendiz no momento da leitura
individual ou conjunta com o educador. Além disso, o referido aplicativo
apresenta um quiz colaborativo de perguntas para apoiar na fixação dos
conteúdos e rememoração da leitura da história infantil, critérios que
consideramos inclusivos para a escolha do aplicativo.

1025
Figura 1 – Interface do aplicativo “As Minhas Histórias”.

Fonte: Imagem extraída da Play Store (2021).

Segundo Alves (2020), a união dos diversos recursos tecnológicos,


incluindo os aplicativos móveis, com os chamados objetos de
aprendizagem pode possibilitar ao professor o desenvolvimento de aulas
mais dinâmicas, com metodologias que visam promover atividades mais
interativas para seus alunos. Para Pretto e Bonilla (2015), isso proporciona
maior envolvimento das tecnologias digitais na educação, com
potenciais colaborativos das diferentes interfaces desses recursos dentro
do ensino para prevenir práticas de exclusão.

No aplicativo “As Minhas Histórias”, os objetos de aprendizagem se


caracterizam pela existência de inúmeras histórias infantis que o docente
pode trabalhar com o disléxico seguindo uma ordem específica ou
também aleatória usando o alfabeto, pedindo que o educando com
dislexia trabalhe o processo de formação das palavras por meio do nome
completo das histórias (Figura 2).

1026
Figura 2 – Algumas Histórias disponíveis no aplicativo.

Fonte: Imagem extraída da Play Store (2021).

Diante disso, procuramos avaliar o conteúdo de algumas histórias


infantis em destaque no aplicativo “As Minhas Histórias”, tais como: “A
Abelha Chocolateira”, “A Menina do Leite”, “O Pássaro sem Cor”, “A
Princesa e o Sapo”, dentre outras. Em geral, a linguagem das histórias é
bem acessível para o público infantil, permitindo um deleite na leitura
associada ao estímulo imaginário da criança em criar imagens reais dos
acontecimentos narrados. Tomemos como exemplo a história infantil
intitulada “A Abelha Chocolateira”, cujo trecho aparece na imagem
abaixo.

1027
Figura 3 – Trecho da história infantil “A Abelha Chocolateira”.

Fonte: Aplicativo “As Minhas Histórias” (2021).

Através dessa simples história, o educador pode fazer uma leitura


prévia de modo a instigar o educando com perguntas reflexivas: Qual o
título da história que acabamos de ler? Quais são os personagens? Quem
é a abelha? A abelha gosta de mel ou de chocolate? Você gosta de
chocolate? Posteriormente, o docente pode solicitar que o aprendiz faça
um recorte de quantas vezes apareceu no texto “abelha”, “mel”,
“chocolate”, dentre outras palavras-chaves, anotando-as no caderno e,
assim, estimular a capacidade cognitiva e a memória. Neste contexto, o
jogo da memória torna-se contributivo para que o disléxico desenvolva
melhor suas habilidades de rememoração do assunto trabalhado (Figura
4).

1028
Figura 4 - Jogo da Memória da Abelha Chocolateira.

Fonte: Elaborado pelos autores usando recursos disponíveis no Canva (2021).

De acordo com Domingos e Recena (2010), os jogos educativos


(virtuais ou não) são importantes ferramentas de aprendizagem que
auxiliam positivamente no progresso dos discentes na sua extensão pelo
estudo, facilitando a decodificação na maneira de escrever e ler
palavras simples ou compostas. Com base no jogo acima representado,
o professor consegue se apropriar de uma profunda correlação de
elementos visuais com a história lida, aguçando a capacidade e a
criatividade do aprendiz com dislexia.

Baseado nessa prática, o disléxico tem a vantagem de aprender


por meio do lúdico, facilitando seu processo educativo ao usar imagens
coloridas relacionadas aos respectivos elementos textuais (BEZERRA et al.,
2019). De fato, é a partir do lúdico que se configura um norteamento para
o entendimento dos conceitos ensinados pelo docente em sala de aula
(VIANA et al., 2020). Neste contexto, o lúdico pode ser albergado em sua
totalidade como promotor da aprendizagem nas práticas escolares,

1029
possibilitando a aproximação dos alunos ao conteúdo trabalhado
(TORRES, 2014).

Trabalhando em específico as formações silábicas associadas ao


lúdico, o educador pode pedir para que o disléxico observe em qual
imagem aparece a letra inicial das palavras, quais palavras podem ser
formadas com a letra “C” e se no texto lido aparecem mais palavras com
a consoante “C”. Diante disso, é possível agregar o processo de divisão
silábica (monossílabas, dissílabas, trissílabas e polissílabas) e formação das
palavras com imagens que retratem as diferenças e semelhanças entre
diversos nomes (Figura 5 e Quadro 2).

Figura 5 - Associação do lúdico com os nomes para divisão silábica.

Fonte: Elaborado pelos autores com recursos gratuitos do Canva (2021).

1030
Quadro 2 - Nomes próprios presentes na história “A abelha chocolateira”
para divisão silábica.

Principais nomes próprios Quantas silabas? Classificação silábica

Abelha

Anita

Mel

Beatriz

Fonte: Quadro elaborado pelos autores.

Em geral, a partir da leitura e releitura de cada história, o educador


pode sugerir que sejam feitos desenhos correlatos ao tema, pedindo para
os educandos com dislexia destacarem as vogais e consoantes dos
textos, as palavras conhecidas e não conhecidas, formular perguntas
básicas, dentre outras ações educativas que estimulem o aprendizado
por meio do uso de aplicativos ou similares. Neste sentido, Junior, Menez
e Wunsch (2018) relatam que os aplicativos educacionais surgem como
ferramentas que contribuem nesse processo de desenvolvimento
cognitivo, incorporando a integração de temas que explanam
interrogações por parte de educadores/as e pesquisadores/as:
tecnologia e alfabetização.

1031
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem dúvidas, o aplicativo “As Minhas Histórias” configura-se como


uma ferramenta colaborativa relevante para auxiliar os educandos com
dislexia no desenvolvimento da leitura e da escrita. Em suma, pode-se
observar que a sequência educativa desenvolvida com base no referido
aplicativo é o início de novos rumos de abordagens educativas para
facilitar o processo educativo dentro do contexto das histórias infantis.
Esperamos que os educadores possam visitar o aplicativo e usá-lo com
seus alunos em sala de aula, desenvolvendo as práticas citadas nesse
trabalho e criando novas ações educativas com base nas limitações dos
seus alunos, assistindo-os na progressão do ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

ALVES, T. R. de S. Os objetos de aprendizagem no ensino de química: um


levantamento exploratório junto a professores do ensino médio. Scientia
Naturalis, Rio Branco, v. 2, n. 2, p. 508-524, 2020.

BARBOSA, C. F. F. Dislexia: dificuldades de aprendizagem na escola. 2014


30 f. Monografia (Especialização em Educação: Métodos e Técnicas de
Ensino) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Medianeira, 2014.

BEZERRA, T. F.; BEZERRA, J. D. C. S.; ARAÚJO, J. F.; ARAÚJO, V. F.; De


ALENCAR, R. C.; DOS SANTOS, A. C. B. A dislexia no ensino de ciências:
uma prática educativa pelo jogo. Universidade Regional do Cariri – URCA,
XV Semana da Biologia: Ciência do Povo para o Povo, 08 a 14 de
Novembro, 2019, p. 104. ISSN: 2338 -2747.

1032
BEZERRA, T. F.; VIANA, J. W. M.; ARAÚJO, V. F.; ARAÚJO, J. F.; BEZERRA, J. D.
C. S.; Dos SANTOS, A. C. B.; De ALENCAR, R. C. Jogos educativos na
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EntreAções: diálogos em extensão, v. 1, n. 1, p. 70-84, 2020.

CONTE, E.; HABOWSKI, A. C.; RIOS, M. B. Ressonâncias das tecnologias


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Araraquara, v. 14, n. 1, p. 31–45, 2019.

DOMINGOS, D. C. A.; RECENA, M. C. P. Elaboração de jogos didáticos no


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1034
A ESCRITA ORTOGRÁFICA DE CANDIDATOS DO ENEM: UM
ESTUDO REFLEXIVO

Luíza Vignoli Lacerda 165

Ana Luiza de Souza Couto 166

Daniela Mara Lima Oliveira Guimarães 167

RESUMO: O domínio da escrita ortográfica, enquanto uma das facetas da língua, é


importante para a construção do sujeito letrado e capaz de usar a fala e a escrita nos
mais diversos contextos sociais (SOARES, 2004, 2018). No entanto, lamentavelmente, há
mitos em torno do ensino da ortografia enraizados nas escolas, que podem contribuir
para um desenvolvimento insatisfatório da escrita do aluno ao se tratar do domínio de
normas ortográficas ao longo da educação básica brasileira e, consequentemente,
prejudicar a formação do sujeito letrado. Neste contexto, este trabalho possui o duplo
objetivo de refletir sobre a escrita ortográfica de alunos concluintes do Ensino Médio,
última fase da educação básica brasileira, ou que já o concluíram, e propor caminhos
possíveis para o ensino da ortografia na sala de aula. Como metodologia, utilizamos a
análise qualitativa bibliográfica (PAIVA, 2019) dos documentos educacionais oficiais –
PCN (BRASIL, 1998, 2000) e BNCC (BRASIL, 2017, 2018) – e dos dados de escrita de
candidatos do ENEM 2018 (INEP, 2020). Para guiar nossas análises, pautamos nos
postulados teóricos da Teoria da Integração de Múltiplos Padrões (TREIMAN; KESSLER,
2014) e nos estudos de Soares (2018), Sartori et al. (2015). Como resultados, observamos
que há uma lacuna nos documentos educacionais em relação ao trabalho com a
ortografia, visto que a abordagem desse conteúdo é rasa, não direcionada e
sucateada. Além disso, esta lacuna pode ser constatada com os dados da escrita
ortográfica dos candidatos do ENEM, pois foram encontrados erros primários, que já
deveriam ter sido superados ao longo da educação básica. Portanto, é necessário
definir o lugar da ortografia nos documentos educacionais e propor práticas didáticas
com a ortografia ao longo da educação básica, a fim de derrubar os mitos
relacionados ao ensino e aprendizagem ortográfica na escrita.

165 Graduanda em Letras Licenciatura Português, na Universidade Federal de Minas


Gerais - UFMG, luizavignoli@hotmail.com;
166 Doutoranda em Estudos Linguísticos no Programa de Pós-Graduação em Estudos

Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,


annaluizasouzacouto@hotmail.com;
167 Professora orientadora: doutora, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG,

daniolive@yahoo.com.

1035
Palavras-chave: Escrita. Ortografia. Ensino Médio. ENEM. Práticas didáticas.

INTRODUÇÃO

A ortografia é definida como a grafia adequada da sequência de


letras de uma palavra e ela está presente em todos os sistemas de escrita
de uso social (SOARES, 2004, 2018). Em relação à ortografia do português
brasileiro (doravante PB), ela é considerada relativamente transparente
(SOARES, 2018), o que significa que o sistema ortográfico do português
tende a apresentar relações diretas e não diretas entre grafemas e
fonemas. Por isso, espera-se que os falantes de português aprendam a
sua ortografia mais facilmente, quando comparado com falantes de
outras línguas mais opacas, como Inglês e Francês (SEYMOUR et al., 2003).
No entanto, ainda que a ortografia do PB seja considerada de relativa
transparência e de “fácil” compreensão, a sua aprendizagem exige
reflexão e domínio de conhecimentos linguísticos que envolvam os
múltiplos padrões ortográficos, que podem ser de ordem fonológica,
morfológica, sintática, etimológica, entre outros (CASTRO; COUTO, 2021).

A aprendizagem da norma ortográfica do PB, se não abordada de


uma forma adequada na sala de aula, pautada na reflexão e na
compreensão dos múltiplos padrões da ortografia, pode dar espaço
para a falta de conhecimento sobre a ortografia e, consequentemente,
para o erro ortográfico persistente, o que, indiretamente, dificulta a
performance do aluno em outras níveis textuais (GRAHAM; SANTANGELO,
2014). Tal falta de conhecimento pode ser vista nos mais diversos
segmentos educacionais na realidade brasileira, pois há a persistência de
dúvidas e erros ortográficos na escrita de alunos em qualquer fase da
educação básica, como Ensino Fundamental I, (MIRANDA, 2020), Ensino

1036
Fundamental II (SENE, 2018), Ensino Médio (SARTORI et al., 2015) e até
mesmo no Ensino Superior (HENBEST et al., 2020). Essa realidade prejudica
não só o aspecto gramatical e ortográfico do texto, mas também a
qualidade dessas redações, uma vez que produções textuais com muitos
desvios ortográficos tendem a ser penalizadas mais severamente por
qualidade de ideias (GRAHAM; HARRIS; HEBERT, 2011; GRAHAM;
SANTANGELO, 2014). Isso acontece porque um leitor que se depara com
uma redação com muitos erros ortográficos precisa fazer mais pausas em
sua leitura, a fim de tentar entender melhor as palavras grafadas
erroneamente, assim, tais pausas não permitem uma leitura contínua, o
que prejudica a compreensão das ideias contidas no texto.

Por isso, percebe-se que há a necessidade de se refletir sobre o


ensino de ortografia, principalmente porque há mitos e preconceitos
acerca desse ensino, enraizados nas escolas, que contribuem para um
desenvolvimento insatisfatório ao se tratar do domínio de normas
ortográficas. O primeiro conceito inadequado que persiste na educação
básica é de que a ortografia é aprendida naturalmente, por meio da
leitura, sem a necessidade de intervenções pedagógicas. Contudo,
ainda que a leitura ajude o aluno a ter um maior contato com a língua
escrita e, com isso, criar uma maior noção dos padrões ortográficos, essa
prática sozinha não é suficiente para que o estudante passe a dominar a
ortografia de sua língua (GRAHAM; SANTANGELO, 2014).

O segundo mito é que o trabalho com ortografia deve ser feito


apenas nas primeiras etapas de escolarização, enquanto o aluno está
aprendendo a escrever. No entanto, essa concepção contribui para a
perpetuação de dúvidas, já que o trabalho com ortografia no Ensino
Fundamental II (EFII) e Ensino Médio (EM) se torna escasso (SARTORI et al.,
2015). Também há um terceiro mito, o qual diz respeito à crença de que

1037
corrigir a ortografia do aluno em suas produções textuais, sem propor
uma reflexão sobre os erros ortográficos cometidos, é suficiente para que
ele domine as regras ortográficas, que passarão a ser decoradas na
medida em que os erros são corrigidos (LEITE, 2007). Porém, o que esse
tipo de perspectiva estipula é que a ortografia é aprendida, apenas, por
meio de memorização de palavras, o que é comprovadamente falso,
pois é necessário, antes da aprendizagem efetiva da ortografia, a
reflexão sobre os padrões ortográficos envolvidos nas palavras corrigidas
nas produções textuais (CASTRO; COUTO, 2021).

Ainda, poucos estudos sobre o ensino de ortografia enfocam os


anos finais da educação básica, o que se configura como um empecilho
para que os professores possam lidar com os desvios ortográficos de
alunos no final do EFII e no EM. Tais desvios, no entanto, devem ser
discutidos, para que haja melhor orientação e preparo dos docentes, a
fim de que o ensino da ortografia possa ser mais direcionado, com vistas
a sanar as dúvidas ainda persistentes desses estudantes. Isso porque a
ortografia é uma das facetas da linguagem e, ao dominá-la, o indivíduo
se torna capaz de utilizar a escrita nos mais diversos contextos sociais
(SOARES, 2018).

Além dos mitos envolvendo o ensino da ortografia, há, também,


uma concepção negativa sobre o erro ortográfico. Muitas vezes, o erro
é visto como permissão para a punição, como incapacidade e falta de
conhecimento. Infelizmente, essa perspectiva, ao invés de possibilitar a
reflexão e o raciocínio daquela escrita tida como errada, muitas vezes,
resulta na punição por cometer algum erro ortográfico. Nesse viés, se
todo ser humano é passível ao erro e, após errar, geralmente, há o
desenvolvimento, pois é aprendido o porquê do erro, por que, então, o
aluno que erra a ortografia de alguma palavra é punido e não é

1038
estimulado a refletir sobre o motivo do erro?. Isso, atrelado aos outros
mitos, lamentavelmente, pode causar uma repulsa nos alunos, os quais
passam a afirmar que não sabem português e que é muito chato ter que
o aprender. Por isso, neste artigo, assumimos a palavra erro, mas não com
essa conotação de negatividade ou punição, mas sim numa concepção
de “elemento revelador do processo de aprender”, pois se trata de “um
processo de análise e reorganização e pode auxiliar aqueles que”
investigam o saber construído (MIRANDA, 2010, p. 14).

Neste contexto, este artigo possui, como objetivos, investigar se a


ortografia é abordada e como é tratada nos documentos educacionais
oficiais, os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN - (BRASIL, 1998; 2000)
e a Base Nacional Comum Curricular - BNCC - (BRASIL, 2017, 2018), refletir
sobre a escrita ortográfica de candidatos do Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM) e, por fim, propor caminhos possíveis para o ensino da
ortografia na sala de aula. Para que nossos objetivos fossem alcançados,
utilizamos, como metodologia, a pesquisa qualitativa bibliográfica
(PAIVA, 2019). A escolha por analisar textos de candidatos do ENEM se
deve ao fato de que eles são, em sua maioria, alunos que já concluíram
ou que estão concluindo o EM e, portanto, constituem-se como produto
da educação brasileira.

Infelizmente, constatamos que a ortografia não possui um lugar


definido nos documentos educacionais e que, por isso, há uma
dificuldade para a sua abordagem na sala de aula. Além disso, a escrita
ortográfica de alunos participantes do ENEM revela dificuldades que já
deveriam ter sido superadas no decorrer dos anos escolares. Neste
contexto, evidenciamos a necessidade de repensar o lugar da ortografia
nos documentos educacionais e, também, nas aulas de língua
portuguesa (LP).

1039
A ortografia precisa e deve ser vista como objeto de investigação
e análise, pois sua aprendizagem pode ocorrer por meio de instruções
sistemáticas e reflexivas. Portanto, esperamos que esta pesquisa possa
contribuir com reflexões sobre a importância da ortografia na sala de
aula. Além desta introdução, este artigo contém a Metodologia, o
Referencial Teórico, a Análise dos dados e discussão dos resultados, com
proposições práticas acerca do ensino da ortografia na sala de aula, as
Considerações Finais e as Referências Bibliográficas.

1 METODOLOGIA

Como metodologia, este artigo foi pautado na pesquisa qualitativa


bibliográfica (PAIVA, 2019), com intuito de investigar como os
documentos educacionais abordam a ortografia e refletir sobre a escrita
ortográfica de candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)
de 2018, que são alunos concluintes ou que já concluíram a educação
básica brasileira. Como corpus, utilizamos redações completas e alguns
excertos de candidatos ENEM 2018, especificamente relacionados à
Competência 1, que avalia o domínio do candidato em relação à
modalidade escrita formal da língua portuguesa. Como pesquisa
bibliográfica, utilizamos os documentos educacionais, os Parâmetros
Curriculares Nacionais - PCN - (BRASIL, 1998, 2000) e a Base Nacional
Comum Curricular - BNCC - (BRASIL, 2017, 2018), destinados ao Ensino
Fundamental II e Ensino Médio.

As redações e os excertos fazem parte do Manual de Correção


de Redação do Enem, destinado à formação do corretor oficial do
exame e disponibilizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas

1040
Educacionais Anísio Teixeira (INEP)168 em 2020 (INEP, 2020). Vale ressaltar
que tal Manual era sigiloso e não podia ser divulgado ao público. No
entanto, devido ao contexto da pandemia do coronavírus, iniciada em
2020, que exigiu, e ainda exige, o isolamento social para a contenção do
vírus, as escolas foram um dos muitos estabelecimentos fechados,
passando as atividades para o formato virtual, ou, lamentavelmente,
paralisando-as por tempo indeterminado, pela falta de acesso, de muitos
alunos, aos meios digitais. Neste contexto, o INEP teve a iniciativa de
divulgar o Manual de Correção para auxiliar os estudos de alunos
participantes do ENEM 2020.

A seguir, descrevemos o percurso do desenvolvimento desta


pesquisa.

● Análise dos documentos educacionais;

● Análise de 201 redações e excertos do Manual de Redação


do corretor do ENEM;

● Identificação de 807 desvios e descrição dos desvios


ortográficos encontrados nas redações e excertos;

● Correlação entre os documentos educacionais e a


realidade da escrita ortográfica dos candidatos do ENEM.

● Proposição de caminhos possíveis para o tratamento da


ortografia na sala de aula.

168 Disponível em: < http://portal.inep.gov.br/enem-outros-documentos >

1041
2 REFERENCIAL TEÓRICO

Como diretrizes teóricas, este trabalho se ancora no campo da


Linguística Aplicada, que visa à “teorização em que teoria e prática
sejam conjuntamente consideradas em uma formulação do
conhecimento” (LOPES, 2008). Em outras palavras, este trabalho
relaciona uma teoria linguística de aprendizagem da escrita - a Teoria da
Integração dos Múltiplos Padrões – IMP- (TREIMAN; KESSLER, 2014) - e a
prática - a escrita ortográfica de alunos concluintes ou que já tenham
concluído o Ensino Médio - para propor caminhos para a solução do
problema analisado - erros ortográficos -, trazendo as concepções
teóricas da linguística para a prática em sala de aula.

De acordo com a Teoria da Integração dos Múltiplos Padrões


(doravante IMP), proposta por Treiman e Kessler (2014), a escrita
ortográfica é constituída por múltiplos padrões integrados, que podem
ser de ordem gráfica, fonológica, morfológica, etimológica, entre outros.
Como evidenciado por Castro e Couto (2021, p. 1344), a ortografia da
palavra “casar”, por exemplo, é motivada por múltiplos padrões, tais
como o fonológico - o uso de <s> com som de /z/ em contexto
intervocálico -, o morfológico e o etimológico - palavras frequentes com
a mesma base etimológica que a palavra “casar”, como “casinha”,
“casebre”, “casado(a).”

Neste sentido, se a constituição da palavra perpassa múltiplos


padrões, seu o domínio também. Além disso, de acordo com a IMP
(TREIMAN; KESSLER, 2014), o estudante aprende ortografia de forma
implícita e explícita. Na primeira, o aluno se vale de uma aprendizagem
estatística, a qual depende do contato do aprendiz com o texto e, a

1042
partir da leitura, ele cria maior sensibilidade com os padrões da língua e,
na hora de escrever, desenvolve hipóteses sobre a grafia correta das
palavras (TREIMAN, 2017, 2018). Já a aprendizagem explícita depende da
interferência de um adulto, que irá instruir o aprendiz sobre os padrões
adequados da língua, em outras palavras, envolve instruções diretas
sobre os padrões ortográficos. Portanto, a aprendizagem implícita e a
explícita configuram como importantes caminhos para o ensino e
aprendizagem da ortografia (TREIMAN; KESSLER, 2014; TREIMAN, 2017,
2018).

A aplicação ideal da aprendizagem explícita deve ser feita a partir


dos desvios cometidos pelo próprio discente, uma vez que esses erros
demonstram as suas dúvidas e suas hipóteses equivocadas a respeito da
ortografia da língua. Partindo desses erros, o professor pode categorizar
esses desvios, a fim de entender quais os tipos de erros mais recorrentes
e, assim, promover uma reflexão dos estudantes acerca dos padrões
ortográficos. Ressaltamos que não há a necessidade, além de não ser
funcional, do tratamento de termos técnicos e nomenclaturas linguísticas
com os alunos. Ao observar as regularidades dos padrões ortográficos,
atrelados aos padrões da língua portuguesa, com os alunos, “a linguística
[...] pode ser empregada para despertar no aluno/aprendiz a
curiosidade pela sua própria língua” (QUAREZEMIN, 2017, p.67).

Como dito anteriormente, a ortografia do português é


relativamente transparente e, por isso, podem surgir dificuldades,
especialmente dentre as palavras irregulares da língua. Assim, o docente
precisa diferenciar os tipos de erros encontrados para que a forma de
discuti-los com os alunos seja mais adequada (SILVA; MORAIS, 2007).
Neste âmbito, Castro e Couto (2021) demonstram como o trabalho
explícito com a etimologia das palavras pode ajudar a sanar dúvidas dos

1043
discentes sobre a escolha de grafemas. A exemplo disso, tem-se o
grafema <s> que, quando entre vogais, assume o som de /z/, o que pode
causar diversas dúvidas nos aprendizes. Esse tipo de erro contextual, no
entanto, precisa ser abordado de forma categórica, para que o
estudante consiga estabelecer uma noção mais adequada dos padrões
da língua. Nesse trabalho, Castro e Couto (2021) propõem que o
professor crie uma rede de palavras com seus alunos (casa - casada -
casamento - casebre - casinha) e, a partir dessa instrução formal, os
discentes poderão estabelecer que todos os termos oriundos da palavra
“casa” serão grafados com <s>, assim, eliminando possibilidades de
desvios ortográficos.

Diante disso, evidenciam-se os benefícios da aprendizagem


explícita que são, principalmente, a ampliação da reflexão sobre a
língua (QUAREZEMIN, 2018; CASTRO; COUTO, 2021), a qual resulta em um
maior domínio da ortografia padrão. Também, ao propiciar um ensino
ortográfico reflexivo, contribui-se para a formação de um estudante
crítico em relação à própria língua, além de que esse tipo de abordagem
permite que o discente seja reconhecido como parte ativa do seu
próprio processo de aprendizagem. Com isso, o aprendiz pode se tornar
um ser letrado e capaz de utilizar a língua em seus diversos ambientes
comunicacionais (SOARES, 2004, 2018).

3 ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Levando em consideração a extensão territorial do Brasil, nota-se a


necessidade de documentos que estipulem as competências e
habilidades que são essenciais e devem, por isso, ser trabalhadas nas

1044
escolas, a fim de que haja uma maior homogeneidade entre os centros
educacionais (SANTANA, 2020). Assim, percebe-se a importância dos
PCNs (BRASIL, 1998, 2000) e da BNCC (BRASIL, 2017, 2018), documentos
que regulamentam as aprendizagens.

Os Parâmetros Nacionais Curriculares (BRASIL, 1998, 2000) são um


referencial de qualidade do ensino básico brasileiro e, para isso, visam a
garantir a coerência dos investimentos na educação nacional,
promovendo discussões, pesquisas e recomendações. Os PCNs
objetivam, também, oferecer subsídios para os profissionais da educação,
uma vez que há uma discrepância do acesso à informação no Brasil,
devido a fatores geográficos e econômicos (BRASIL, 1998). Em relação à
língua portuguesa (LP), tais documentos assumem uma perspectiva
enunciativo-discursiva da linguagem e adotam o texto como unidade de
ensino.

Já a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017, 2018), é uma


extensão dos PCNs, que se configura como um documento normativo,
voltado para a definição do conjunto orgânico e progressivo de
aprendizagens essenciais que é esperado que todo discente domine ao
fim do processo educacional básico. Igualmente aos PCNs (BRASIL, 1998,
2000), o objetivo deste documento é garantir uma aprendizagem mais
homogênea entre as diversas escolas nacionais (BRASIL, 2017, 2018). Além
disso, assim como os PCNs (BRASIL, 1998, 2000), a Base assume a
perspectiva enunciativo-discursiva, com centralidade no texto como
unidade de ensino.

Considerando a finalidade desses documentos norteadores da


educação brasileira, cabe averiguar a influência deles para o ensino-
aprendizagem de ortografia. Neste sentido, o PCN (BRASIL, 2000), ao

1045
versar sobre o aluno do Ensino Médio, estabelece que “Bem sabemos
que graves são os problemas oriundos do domínio básico e instrumental,
principalmente da língua escrita, que o aluno deveria ter adquirido no
Ensino Fundamental” (BRASIL, 2000, p. 17, grifo nosso). Essa citação revela
que se espera do estudante um domínio da norma ortográfica já no
Ensino Fundamental e que, caso isso não ocorra, tais desvios são
considerados graves. Contudo, os Parâmetros Nacionais Curriculares do
Ensino Médio (BRASIL, 2000) não especificam sobre como o docente
deve lidar com as dúvidas de ortografia dos alunos, no caso de haver
persistência de tais erros ao final do EM. Isto é, além de, logo após a
citação, propor um diagnóstico para averiguar as habilidades
dominadas pelo aprendiz, os PCNs (BRASIL, 2000) não fazem um
direcionamento para que o professor possa buscar as soluções dos
possíveis problemas que podem ser notados nessa averiguação.

Semelhantemente aos PCNs (BRASIL, 2000), a BNCC (BRASIL, 2018)


também não oferece instruções explícitas sobre o trabalho com
ortografia, pois, para os alunos de 9º ano, concluintes do Ensino
Fundamental II, determina-se que eles devem ser aptos a “escrever textos
corretamente, de acordo com a norma-padrão, com estruturas sintáticas
complexas no nível da oração e do período” (BRASIL, 2017, p. 185, grifo
nosso). Aqui, também se percebe que o domínio ortográfico é esperado
dentre esse público, uma vez que escrever corretamente também
abrange a grafia certa das palavras. A BNCC do Ensino Médio (BRASIL,
2018) segue a mesma lógica, definindo que os estudantes, quando nessa
fase de escolarização, precisam ser capazes de “Planejar, produzir,
revisar, editar, reescrever e avaliar textos escritos [...]” e prevê o “uso de
conhecimento dos aspectos notacionais (ortografia padrão, pontuação
adequada” [...] (BRASIL, 2018, p.500, grifo nosso). Esta, também, é a única

1046
menção feita pela BNCC do EM (BRASIL, 2018) à ortografia, em que a
Base apenas menciona a necessidade deste domínio. Com isso,
evidencia-se que esses dois documentos norteadores da educação
básica brasileira determinam que o domínio ortográfico deve ser
consolidado nos alunos enquanto estes estiverem nos anos iniciais do
processo educacional, mas não oferecem orientações para que tal
trabalho ocorra com êxito.

Todavia, apesar da determinação dos PCNs (BRASIL, 1998, 2000) e


da BNCC (BRASIL, 2017, 2018), os textos e excertos de candidatos do
ENEM 2018 ainda demonstram diversos tipos de desvios ortográficos, que,
de acordo com os documentos educacionais analisados, já deveriam ter
sido superados. Neste contexto, tendo em vista que os candidatos deste
exame são, em sua maioria, concluintes ou pessoas que já concluíram o
EM, nota-se uma disparidade entre o que é esperado pelos documentos
educacionais em relação ao domínio da ortografia dos alunos e o que,
de fato, ocorre nas escolas.

No Quadro 1, a seguir, exemplificamos alguns erros ortográficos


identificados nas redações dos candidatos do ENEM de 2018, às quais
tivemos acesso por meio do Manual do Corretor (INEP, 2020). Vale
ressaltar, neste momento, que não analisamos esses dados de forma
quantitativa, uma vez que não tivemos acesso a todas as redações feitas
pelos candidatos de 2018, por isso, não trataremos os desvios em números,
mas em uma perspectiva qualitativa, com intuito de refletir sobre a
ortografia de determinados candidatos. Ainda, é necessário frisar que
alguns dos erros analisados, destacados no quadro a seguir, encaixam-
se em mais de uma categoria, pois o nosso objetivo, também, não é
categorizar os desvios de forma exaustiva, mas utilizá-los como um
caminho para a reflexão.

1047
Quadro 1- Desvios ortográficos de candidatos do ENEM 2018

Dados

Troca de
Acentuação Segmentação Marcas de oralidade Hipercorreção
grafemas

cedentaria internete
dificúlta usala (usá-la) usa (usar)
(sedentária) (internet)

fazelidade enseno
íncrivel quenhe (quem é) ne todos (em todos)
(facilidade) (ensino)

precão descobremo
gravissimo apartir pro (para o)
(pregam) s

ousace medeo
influenciêm oque Us (Os)
(ousasse) (médio)

de feretes enternet
estar (está) impecilio encinamentos
(diferentes) (internet)

fachetaria (faixa deicam crearmos


video nóis
etária) (deixam) (criarmos)

distroe
excelencía afavor tá (está) atravez
(destrói)

Fonte: INEP (2020).

Na coluna 1, mostramos exemplos de erros de acentuação. Pode-


se observar que há casos de troca de acento, bem como ausência e
colocação de acento onde não seria esperado. Na coluna 2, temos erros
de segmentação, que, nos exemplos supracitados, evidenciam a
ocorrência de expressões juntas, enquanto “palavras fonológicas”, com
recorrência dos clíticos, por exemplo *apartir. Na terceira coluna, em
marcas de oralidade, há erros provenientes da relação oral/escrito,
alguns dos quais, como *nois, com relação estreita com a variação

1048
sonora. Nas trocas de grafema, nota-se que há a instabilidade na escrita
de grafemas irregulares, ou seja, palavras cuja ocorrência de um
grafema ou outro não têm relação direta com o som que representa,
mas com a história da palavra, propriamente, como em *deicam. Por
último, a coluna hipercorreção incorpora erros que poderiam, inclusive,
fazer parte de outras categorias, mas que se encontram sob este rótulo
justamente pelo fato de que se compreender que o erro decorre de um
raciocínio que visa, sobretudo, atingir a norma. Isso nos mostra que os
alunos concludentes do Ensino Médio podem apresentar erros de
diversas ordens e que precisam ser trabalhos de forma sistemática nas
aulas de língua portuguesa.

Interessante notar que o referido documento (Manual do Corretor)


incorpora a análise de dados, como estes acima, na subseção
desvio/desvios de convenção da escrita, seção que incorpora:
acentuação, ortografia, hífen, maiúsculas e minúsculas e separação
silábica. O manual, na Competência 1, caracteriza os desvios como
“elementos mais evidentes no texto” e que podem ser “facilmente
visualizados, justamente pela natureza dessas questões” (INEP, 2020, p.23).

Ao definir como elementos mais evidentes do texto, compreende-


se que são aqueles vistos como mais básicos, que saltam à vista já em
uma primeira leitura. Ainda, é relevante refletir sobre o que seria a
expressão “a natureza dessas questões”, seriam questões de natureza
mais elementar e simples da língua? Seriam “desvios” que se devem à
não apropriação em momento adequado do sistema de escrita? De
toda forma, compreende-se que o documento mostra uma visão dos
erros ortográficos como mais perceptível e rudimentar do que os demais.

1049
Junto aos dados exemplificados no Quadro 1, há um total de 806
desvios ortográficos analisados em 201 redações e excertos disponíveis
no Manual do Corretor. Tais desvios são de diversas naturezas que fogem
a qualquer categorização, no entanto, podem se referir às hipóteses
desenvolvidas por quem os escreveu e, portanto, envolvem a
aprendizagem implícita do candidato (TREIMAN; KESSLER, 2014). Por
exemplo, de uma mesma palavra, como internet, há diversos tipos de
grafia, como *internete, *inter net, *inte-net, que podem refletir em outros
padrões da língua, como o uso de <e> ao final de palavras pronunciadas
com [i], como pent[i], a segmentação de palavras, tal como de repente,
por isso, e o uso de hífen em palavra como anti-higiênico.

Além disso, foram encontrados desvios como *caza (casa), *denti


(dente), *andano (andando), *agente (a gente), *ispor (expor), *cuza
(cuja), *essecivamente (excessivamente). Erros que, qualitativamente,
são relacionados aos mesmos erros encontrados em trabalhos na fase
inicial da alfabetização, como o Ensino Fundamental I (MIRANDA, 2020),
e que possuem uma relação direta com a fala.

Frente aos dados do Quadro 1 e aos demais exemplos citados, nota-


se que há a persistência de dúvidas ortográficas dentre os alunos que
estão concluindo o EM, as quais deveriam ter sido superadas ainda nos
primeiros anos de escolarização, de acordo com os documentos
educacionais. Infelizmente, há uma discrepância em relação ao que os
documentos educacionais esperam em relação ao domínio da
ortografia por parte dos alunos. Além disso, a posição da ortografia não
está consolidada nos documentos educacionais, por isso, o professor,
dentro da sala de aula, não recebe um direcionamento sobre como
abordar tal conteúdo em suas aulas. Como visto no Quadro 1, há diversos
tipos de desvios ortográficos, nas redações de candidatos do ENEM,

1050
relacionados a diversos padrões ortográficos, isso evidencia a
necessidade de se consolidar o lugar da ortografia nos documentos
educacionais, para, também, consolidá-la nas aulas de língua
portuguesa.

Neste âmbito, faz-se evidente a necessidade de se trabalhar a


ortografia de forma explícita, com vistas a romper com a perpetuação
dos erros ortográficos. Como discutido no Referencial Teórico deste artigo,
a ortografia é constituída por múltiplos padrões (TREIMAN; KESSLER, 2014).
Por isso, a linguística pode ser inserida na sala de aula, com intuito de
tornar a língua um objeto de análise e despertar o interesse dos alunos
em investigar os padrões da própria língua materna (QUAREZEMIN, 2018).

Para o tratamento da ortografia na sala de aula, o professor pode


partir de exemplos de desvios ortográficos dos textos dos alunos e
construir, junto a eles, uma rede de palavras que se relacionam aos
padrões ortográficos das palavras que os discentes grafaram
incorretamente. Além disso, o docente pode discutir, com os estudantes,
por meios dos próprios textos dos discentes, acerca da relação entre as
duas facetas da língua, a fala e a escrita, como exemplificado a seguir.

Quadro 2 - Fala e escrita: as duas facetas da língua

Fala Escrita

impecilho -> [i] empecilho -> <e>

diferente -> [i] diferente -> <i>

us -> [u] os -> <o>

Fonte: Elaboração própria.

1051
Ressaltamos que a fala e a escrita não podem ser tidas como
concorrentes, ou que uma é mais “correta” que a outra. Ao contrário, a
fala e a escrita devem ser vistas como facetas da língua portuguesa
(SOARES, 2018), e deve ser evidenciado que cada uma possui suas
características e particularidades. Ainda, deve-se levar em conta a
variação linguística da sala de aula. A reflexão dessas duas facetas, de
acordo com determinado contexto geográfico, pode se tornar um
caminho para refletir a língua. Por exemplo, como no exemplo acima, há
padrões da língua que já são consolidados na fala, como o uso do som
[i] em palavras como empecilho, ao passo que a grafia desta palavra
seja com <e>. Em contrapartida, há palavras que são faladas com [i] e,
também, escritas com <i>, como em diferente. Tal discussão pode levar
os alunos a refletirem sobre os diversos padrões ortográficos da língua
portuguesa, além de evidenciar a multiplicidade entre fala e escrita.

Atrelado à reflexão ortográfica a partir dos textos dos alunos, os


docentes, também, poderiam levar para a discussão na sala de aula
textos das redes sociais, com intuito de discutir sobre o impacto da
ortografia no sentido do texto. Isso porque os jovens estão cada vez mais
conectados à internet e fazem, constantemente, uso de redes sociais.
Desse modo, com intuito de atrelar o interesse dos alunos à aula de língua
portuguesa, os memes, que são amplamente divulgados nas redes
sociais, poderiam ser uma das fontes para a discussão dos padrões
ortográficos. Vejamos o exemplo a seguir.

1052
Figura 2: Discussão de padrão ortográficos através de memes

Fonte: Google Imagens169

Por meio do meme anterior, o professor poderá, juntamente aos


alunos, discutir quais aspectos podem configurar o humor ao texto. Além
disso, o docente poderá levantar a discussão sobre a importância do
domínio da ortografia e quais os padrões ortográficos relacionados às
palavras entrarão e roubarão, como o morfológico e o semântico.

Há muitos caminhos que poderão ser percorridos na sala de aula


para o tratamento da ortografia, sempre com intuito de tornar o aluno
letrado capaz de usar as facetas da língua nos mais diversos contextos
sociais. Primeiramente, há a necessidade de consolidar a ortografia nos
documentos educacionais, para, posteriormente, o seu efetivo
tratamento da sala de aula. Enquanto isso não ocorre, os professores
podem desenvolver as próprias atividades, a partir do contexto da escrita
de seus estudantes, com intuito de tornar a língua portuguesa,
principalmente a ortografia, na perspectiva deste artigo, um objeto de
estudo, de investigação e reflexão no cotidiano escolar de seus discentes.

169 Disponível em: <https://pt.dopl3r.com/memes/engra%C3%A7ado/ha-44-minutos-


entrarao-na-minha-casa-roubarao-tudo-109-231-comentarios-b-curtir-comentar-tira-
tudo-e-leva-pra-outro-lugar-antes-que-aconteca/721813>. Acesso em: 22 jun 2021.

1053
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de toda esta discussão, podemos chegar à conclusão de


que há, de fato, uma ausência de direcionamento aos docentes, por
parte dos documentos oficiais de educação, PCNs (BRASIL, 1998, 2000) e
BNCC (BRASIL, 2017, 2018), sobre como abordar a ortografia na sala de
aula. Assim, devido a essa inexistência, o trabalho com ortografia se torna
raso, não direcionado e sucateado, principalmente nos anos finais de
escolarização, uma vez que, sem orientações e sem a concessão de um
espaço para o trabalho da norma ortográfica, os professores não
conseguem ensinar ortografia de forma explícita e contínua, o que é
essencial para o aprendizado, como já foi salientado previamente. Além
disso, notamos que há uma precariedade de ensino-aprendizagem dos
padrões ortográficos da língua, que foi evidenciada com os dados
trazidos das redações do ENEM 2018, pois esses candidatos são produto
da educação brasileira e, como mostramos, ainda possuem dúvidas
ortográficas, as quais deveriam ter sido superadas no ensino básico.

Por isso, é evidente a necessidade de que a ortografia assuma uma


posição definida nos documentos oficiais de educação, para que ela
possa ser ensinada de forma contínua e categórica, em todas as etapas
de escolarização. Como discutido antes, se não existem interferências
pedagógicas com o objetivo de ensinar ortografia, sua aprendizagem é
prejudicada e o domínio da norma ortográfica não é consolidado.

Por fim, frisamos a necessidade de serem desenvolvidos trabalhos


sobre o ensino da ortografia ao longo de toda a educação básica,
inclusive no Ensino Médio. Este artigo trouxe apenas alguns exemplos que
podem ser ampliados em trabalhos futuros com a constituição de um

1054
corpus mais amplo e direcionado. Além disso, esse ensino deve ser
reflexivo, instrutivo e capaz de contribuir para a formação do aluno
letrado, que sabe usar a escrita em diversos contextos sociais. Ademais,
os mitos acerca do trabalho com ortografia devem ser dissolvidos, a fim
de que os professores entendam a importância de instruir os estudantes
sobre os padrões ortográficos da língua e, dessa maneira, a ortografia
ganhe espaço nos anos finais da educação básica.

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1058
LITERATURA DE MULHERES NEGRAS: ANÁLISE DE UMA
EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

Aparecida Dias Terras Gomes170


Roselita Soares de Faria171

RESUMO: O interesse pela literatura afro-brasileira e africana é pouco visível, em especial,


no contexto escolar de Ensino Médio, devido a pouca divulgação dessa vertente e
talvez em virtude da falta de conhecimento de muitos professores acerca desse tipo de
literatura, que em muito, provoca reflexões acerca das desigualdades sociais e do
papel da mulher negra na sociedade. Este trabalho tem como objetivo fazer uma
reflexão pedagógica sobre o uso de literatura afro-brasileira e africana em sala de aula,
no ensino remoto, por meio de relato de experiência, com tertúlia literária, com e para
alunos do Ensino Médio utilizando obras das escritoras, Conceição Evaristo e Paulina
Chiziane. Para tal, tomar-se-á como objeto os contos, Insubmissas Lágrimas de Mulheres
e As cicatrizes do amor, que foram apresentados aos alunos para a práxis em sala de
aula por meio da tertúlia literária. Para análise, foram tomadas as “escrevivências” dos
alunos sobre suas vidas. Percebe-se, a partir deste, que: a) a condição de
subalternidade da mulher negra pode gerar resiliência; b) a literatura afro-brasileira
pode produzir impactos pedagógicos e humanitários substantivos na formação do
aluno; c) a literatura afro-brasileira, de mulheres negras, pode gerar visões mais
desenvolvidas acerca de questões de raça, gênero para as relações étnico-raciais.
Desta forma, a atividade com literatura de autoria de mulheres negras pode ser
considerada essencial, no contexto do Ensino Médio, por levar o aluno à reflexão das
questões de inclusão e exclusão no panorama literário e social afro-brasileiro e africano.

Palavras-chave: Estratégia Pedagógica, Condição de Subalternidade, Mulheres Negras.

170 Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Professora da Rede Estadual


do Espírito Santo no CEEFMTI “Manoel Duarte da Cunha” e-mail:
cidaterras@hotmail.com
171 Mestre em Gestão e Avaliação da Educação Básica. Professora da Rede Municipal

de Belo Horizonte na E. M. “Gracy Vianna Lage” e-mail: rfroselita36@gmail.com

1059
INTRODUÇÃO

A literatura afro-brasileira e africana ainda é pouco estudada na


educação básica, mesmo sendo um assunto que esteja em pauta em
vários eventos educacionais. O preconceito diante dessa temática ainda
é visível e urge por sua desconstrução.

A literatura produzida pelas autoras, Conceição Evaristo e Paulina


Chiziane, aborda questões de desigualdade social e do papel da mulher
na sociedade. Esses são assuntos de suma importância para a
construção de uma escola, de uma comunidade, enfim, de um país mais
democrático.

A relevância do trabalho acerca dessas temáticas faz se


necessária, sobretudo no contexto escolar, onde a maioria das pessoas
ainda não se conscientizou que empatia, é uma virtude, que precisa ser
praticada todos os dias e por todas as pessoas. Além disso, não se pode
pensar em um ambiente escolar excludente, ao contrário, esse espaço
precisa ser cada vez mais acolhedor.

Em função disso, o objetivo deste relato é mostrar que o estudo de


literatura afro-brasileira e africana pode levar o sujeito a desconstruir
pensamentos preconceituosos e, consequentemente, construir visões
mais desenvolvidas para as questões étnico-raciais.

Para tanto, em primeiro lugar, far-se-á uma breve análise


metodológica acerca deste relato de experiência. Em segundo lugar,
apresentar-se-á o referencial teórico, isto é, os autores e suas
concepções. Em terceiro lugar, relatar-se-á a experiência em sala de
aula acerca do estudo de literatura das autoras supracitadas. Em quarto
lugar, apresentar-se-ão resultados e discussão. Por fim, serão feitas as

1060
considerações finais acerca dessa estratégia de leitura e das temáticas
apresentadas na literatura afro-brasileira e africana com vistas à
transformação do(a) aluno(a) em um jovem ou uma jovem protagonista
partícipe de uma educação para as relações étnico-raciais.

1 METODOLOGIA

Este trabalho caracteriza-se por ser uma pesquisa qualitativa cujo


procedimento técnico consiste em um relato de experiência de uma
professora e sua turma da 1ª série do ensino médio, composta por 35
alunos, com faixa etária entre 15 e 16 anos de idade, em uma escola
estadual, em Pedro Canário – ES. A fim de enriquecer, consolidar e
aprofundar a competência e a proficiência leitora por meio da
metodologia, tertúlia literária. Bem como trazer a baila questões
relacionadas à desigualdade social e ao papel da mulher negra na
sociedade. Além disso, para a obtenção das informações fora realizada
uma pesquisa de revisão de literatura.

Para tal, elegeu-se como base teórica as reflexões de alguns


estudiosos acerca da temática como: bell hooks e Paulo Freire. A
educação assim como o seu ensino precisam ser embasados por
problematização e diálogo para que, de fato, ela se consolide e garanta
uma prática da liberdade. Assim como, pelo viés de reflexões
pedagógicas que nasceram da interação entre as pedagogias
engajada, crítica e feminista, o que lhe permite questionar as
parcialidades que reforçam os sistemas de dominação.

Este trabalho não possui a pretensão de apontar alguma solução


definitiva para as questões destacadas perante a crise do ensino

1061
brasileiro vigente no que diz respeito à proficiência de leitura. Muito pelo
contrário, o que se pretende é fomentar a reflexão dialógica sobre as
diferentes estratégias de leitura pelas quais se vislumbram alternativas de
intervenção, a fim de mitigar a falta de proficiência em relação à
competência leitora, pois, dominar essa competência é salutar para o
entendimento de todo o processo educativo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Como aporte deste trabalho, apropriar-se-á dos contos de autoria


de mulheres negras: Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição
Evaristo (2011) e As cicatrizes do amor, de Paulina Chiziane (1994) para
discutir questões acerca da desigualdade de gênero e do papel da
mulher negra na sociedade contemporânea. Bem como de obras que
abarcam a temática do patriarcalismo, isto é, dominação masculina, por
exemplo, os autores: Castells (2001), Bourdieu (1998) e Duarte (2002) que,
além disso, aborda também o determinismo, biologização e o
androcentrismo, intercruzando com concepções de outros teóricos para
sustentação deste trabalho. Outrossim, Freire (2005) e Flecha (1997) com
as categorias acerca da importância do diálogo para problematização
com vistas à liberdade do educando ao questionar e expressar suas
ideias. E, Hooks (2018) a respeito da “sororidade” entre as mulheres.

3 RELATO DE EXPERIÊNCIA

A educação, em tempos de pandemia, exigiu novos


conhecimentos e deixou muitos professores e alunos sem saber como

1062
lidar com tal situação, nunca antes vivenciada. Neste atual contexto,
ambos se viram obrigados a se apropriarem de outras estratégias de
ensino, por exemplo, a sala de aula invertida, bem como a participação
em tertúlia literária por meio da sala de aula virtual.

Em função disso, o processo fora se tornando cada vez mais


atrativo por meio dessas possibilidades de interação que, embora
soubessem da existência nunca haviam tentado trabalhar dessa forma.
A mudança geralmente assusta, contudo não se pode permitir que o
medo domine a curiosidade, principalmente quando se trata de
metodologias que podem favorecer o diálogo, a interação e a
cumplicidade entre docente e discente, a fim de descobrirem juntos a
irem superando os desafios .

Para a realização da tertúlia foram enviados dois contos: Shirley


Paixão presente no livro - Insubmissas lágrimas de mulheres e As cicatrizes
do amor – Conceição Evaristo (2011) e Paulina Chiziane (1994),
respectivamente, via Google Classroom e WhatsApp com quinze dias de
antecedência. No dia do encontro marcado, fora enviado o link do
Google Meet para a realização da tertúlia virtual.

É importante salientar que, nenhum aluno conhecia ou já tinha


feito alguma leitura de obras de autoria de mulheres negras. Dessa forma,
fica evidente que a literatura contemporânea de autoras negras é
pouco divulgada na Educação Básica.

Após a leitura dos contos, seleção do trecho ou dos trechos para


ler em voz alta e compartilhar com o colega de sala. A professora que
também foi a mediadora fez a inscrição dos alunos seguindo os
protocolos dessa estratégia de leitura. Como fora feita a inscrição? Em
média, 40% dos alunos presentes se inscreveram, cada um informou a

1063
professora qual fora o trecho ou os trechos escolhidos por ele para
participar da tertúlia literária. Abriu-se o primeiro turno, o primeiro aluno
inscrito leu em voz alta o trecho escolhido por ele e fez sua interpretação,
considerações e/ou associações do excerto lido com sua vida a partir de
suas vivências de mundo.

4 RELATO ACERCA DO CONTO, SHIRLEY PAIXÃO, DE CONCEIÇÃO


EVARISTO (2011)

O primeiro conto, em pauta fora, Shirley Paixão, presente no livro –


Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo (2011). Veja o
excerto que mais chamou a atenção dos alunos devido às temáticas
presentes nele, sobretudo, a violência masculina, a violência doméstica
e a violência sexual.

“Foi assim – me contou Shirley Paixão – quando vi caído o corpo


ensanguentado daquele que tinha sido meu homem, nenhuma
compaixão tive” (EVARISTO, 2011, p. 25). Predomina a narração
comovente da protagonista a partir da qual se conhece sua história e de
suas cinco filhas: três do marido, concebidas em outra relação, e duas
de sua relação com outro homem. Seni sofre abusos do pai e conta com
o amor e a proteção de Shirley que, ao descobrir a violência contra a
menina, agride o companheiro deixando-o quase morto. “Naquela noite,
o animal estava tão furioso – afirma Shirley chorando – que Seni, para a
sua salvação, fez do medo e do pavor, coragem. E se irrompeu em
prantos e gritos” (EVARISTO, 2011, p. 29).

1064
As personagens passam a ser (re)criadoras de sua jornada, ao
negarem imposições características dessa construção histórica patriarcal
em que seu espaço foi definido pelo o outro. Nos contos presentes no
livro supracitado, as protagonistas deslocam-se, transitam-se, mudam-se
de lugar para se encontrarem com a realização de seus anseios. A
negação de uma história e a afirmação de outra, são marcas dessas
narrativas em que destacam a resistência dessas mulheres.

Evaristo (2011) ao ceder voz às personagens, permite que elas


sejam, pelo breve espaço de um conto, partícipes da criação artística.
Ela assume posição de ouvinte nas narrativas desses contos e isso confere
respeito à voz, às experiências alheias, aliadas à identificação com as
dores vividas no corpo de mulher negra. Ao mesmo tempo, representa
peculiaridades da construção narrativa de alguém que conhece suas
tradições e traz a singularidade do encontro de duas histórias: a da
ouvinte griot, desejosa de conhecer o relato, e da vivência da
protagonista, ansiosa por compartilhar sua trajetória. Ambas
condensadas na “escrevivência” (EVARISTO, 2011, P. 9).

Geralmente, Evaristo escreve os contos em primeira pessoa,


mostrando também o momento em que ela se encontra com as
entrevistadas. Entretanto, ao longo da narrativa, a autora mescla as
vozes e dá o protagonismo para essas mulheres. De forma empática, a
escritora retrata as dores e a violência sofridas diariamente por negras na
sociedade.

Em função disso, os alunos se colocaram empaticamente no lugar


dessas mulheres, em especial, as moças. Contudo, muitos rapazes
também se sentiram comovidos com a situação de mulheres que ainda
sofrem qualquer tipo de violência, tais como: verbal, física e psicológica,

1065
bem como violências: doméstica e sexual. Dessa forma, a pesquisadora
também teve a oportunidade de conhecer melhor seu alunado, pois
alguns deles relataram abusos e opressões sofridos em casa, sobretudo,
pela figura masculina. Mostrando assim, que lamentavelmente, o sistema
patriarcal ainda impera em algumas famílias e na sociedade.

A leitura do conto permite, portanto, analisar o papel fundamental


da escola na atenção à criança, detectando e alertando para
problemas que, muitas vezes, a família vê sem maior preocupação, uma
vez que encontra explicações plausíveis para justificar o comportamento
da criança, por exemplo, o comportamento de Seni (a menina abusada
pelo pai) fora percebido pela professora, isso revela que a escola tem e
cumpri uma importante função, a de contribuir com a sociedade,
quando denuncia os maus tratos, os abusos e as opressões percebidas
nesse ambiente.

5 O RELATO ACERCA DO SEGUNDO CONTO, AS CICATRIZES DO AMOR,


DE PAULINA CHIZIANE (1994)

Ao tomar como base a teoria crítica feminista como perspectiva


do estudo dessa literatura As cicatrizes do amor, de Paulina Chiziane
(1994). Nesse conto, a escritora moçambicana, primeira mulher a
publicar um romance em seu país, permite tal abordagem ao elaborar
ficcionalmente uma problematização das relações de gênero e do
papel da mulher na sociedade contemporânea. Procurou demonstrar, a
partir do relato da personagem, Maria, a construção identitária e os
processos necessários à reconstrução da condição feminina, por meio

1066
de uma denúncia às opressões pelas quais passa, não só a personagem,
mas grande parte das mulheres.

Em muitas sociedades, as mulheres ainda são postas em uma


posição de subalternidade perante os homens. A eles são oferecidos
todos os privilégios, desde os melhores lugares à mesa, o acesso à
educação, a liberdade de escolher os rumos de suas vidas, até a
oportunidade de ascensão intelectual e social. Às mulheres,
simplesmente, o espaço doméstico, a responsabilidade de cuidar dos
filhos e a imposição à passividade, que visa à manutenção da
supremacia falocêntrica. “Em tais sociedades, vive-se sob essa égide do
patriarcalismo” conforme afirma (CASTELLS, 2001, P.169).

Ainda segundo ele, a autoridade sempre foi imposta à mulher e


aos filhos pelo homem por meio de uma herança patriarcal permeada
na sociedade, bastante notável na economia, na política, na cultura etc..
Os relacionamentos interpessoais e, consequentemente, a
personalidade, também são marcados pela dominação e violência que
têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo.

A construção ideológica de gênero impõe às pessoas modelos de


comportamento em função do seu sexo. Desse modo, em uma estrutura
patriarcal, todo o processo de socialização vai reforçar preconceitos e
criar estereótipos para os gêneros, como próprios de uma suposta
naturalização, apoiados no preconceito e na falsa ideia de
superioridade em virtude da arrogância e da intolerância.

Assim, baseado na diferença biológica, mesmo sem nenhuma


comprovação científica, apoia-se na desigualdade social e de gênero e,
toma uma aparência de naturalidade. E, é também nesse sentido,
enquanto atividade educadora, que a cultura “exerce uma ação

1067
psicossomática que leva à somatização da diferença sexual, ou seja, da
dominação masculina” (BOURDIEU, 1998, p. 18).

Com isso, as relações preconceituosas refletem concepções de


gênero, internalizadas tanto por homens quanto por mulheres, pois se
engana quem pensa que mulheres só sofrem preconceitos por parte de
homens. Em função disso, bell hooks (2018, p. 28) defende a “sororidade”,
isto é, união entre as mulheres, bem como a solidariedade, ao invés do
julgamento.

Em As cicatrizes do amor, a autora discorre sobre um fato ocorrido


em uma festa, que trará à tona um episódio do passado, colocando em
discussão valores da tradição e da modernidade. O conto é narrado em
primeira pessoa por uma voz feminina que, em algumas partes, se
apresenta presa aos costumes de seu lugar de origem – como mostra no
início da narrativa, ao afirmar: “Diabos me levem se não estou bem nesta
rodada de mulheres sentadas na areia e os homens nas cadeiras”
(CHIZIANE, 1994, p. 361), nessa passagem do texto que foi percebida
pelos alunos, destacam-se a evidência do patriarcalismo: homens
sentados nas cadeiras, mulheres na areia. Percebe-se, assim, a posição
privilegiada dos homens, pois estavam confortavelmente sentados nas
cadeiras.

Em outra passagem, os estudantes também perceberam que


houve uma crítica à protagonista: “Da blusa já levantada, espreitam os
seios surrados de mil beijos, desfraldadas as cortinas dos teus segredos, és
indecente, Maria!” (CHIZIANE, 1994, p. 364) – nesse momento os alunos
entraram em discussão em relação ao julgamento que Maria sofrera. E,
em outras, um pouco mais liberta de uma rigidez institucional, quando
aparenta estar quase solidária com a dor de Maria: “É uma revivência,

1068
um quadro bem evidente nos arquivos da tua memória, e nós não
largamos um só suspiro, hipnotizados pela tua dor” (CHIZIANE, 1994, p.
365).

Essa crítica feita à Maria é algo que as alunas sofreram e sofrem


quase que diariamente, essa falta de empatia e solidariedade que
muitas vezes se vivencia no ambiente escolar movido pela disputa e
concorrência em que uma mulher se julga superior à outra. Hooks (2018,
p. 28) convida às mulheres a se unirem por meio da “sororidade”, que é
o oposto da rivalidade feminina, visando combater o conflito e,
consequentemente, estimular o apoio e a união entre elas.

Voltando às ideias de Maria, note sua justificativa acerca desse


excerto.

– O que vocês não sabem – disse Maria – é que cada


nascimento tem uma história e cada acção uma razão. Na
minha juventude cometi o mesmo crime, ou melhor, ia cometê-
lo. Tudo por causa desse amor amargura, amor escravatura, que
transtorna, que enfeitiça, fazendo do amante a sombra do
amado (CHIZIANE, 1994, p. 362).

Nessa passagem, Maria justifica seus atos por canta do amor, Maria
estava desajuizada, enfeitiçada por esse amor, pois era jovem e talvez,
segundo os alunos, “quando se é jovem, a pessoa se joga sem pensar”.
No entanto, a sociedade não perdoa, sobretudo, a sociedade machista,
daí surgem os julgamentos, mesmo sem conhecer as razões.

A partir desse momento, abrem-se as trilhas do enredo de As


cicatrizes do amor. Aliás, o título do conto já denota um caminho de
compreensão, partindo do próprio sentido da palavra cicatriz: resultado
de uma lesão que, se for grave, pode durar a vida toda.

1069
Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo do cajueiro disse
sim, ao homem dos meus sonhos. O régulo de Matutuíne, meu
pai, disse não a esse pobre, sem gado para lobolar a filha do rei.
Ao meu homem ultrajado não restou alternativa senão procurar
o lenitivo das mágoas do outro lado da fronteira, em
Johannesburg, deixando-me o ventre semeado. Nos nove
meses de gesta, minha alma em suplício consumiu facadas.
Quinze dias depois do nascimento da criança, o meu pai disse:
fora desta casa (CHIZIANE, 1994, p. 363).

Vale refletir por meio dessa citação, acerca do fato de que, até
esse momento, Maria não aparece como sujeito de seu próprio desejo,
tampouco argumenta sobre o fato; esse silêncio representa a submissão
diante da lei. Isso se dá porque historicamente criou-se a concepção
essencialista de uma identidade feminina ou das mulheres, ou seja, uma
natureza comum a todas as mulheres (servil, frágil, incapaz).

A essa diferença, com base na biologização, está vinculada um


projeto de exclusão, que vai além de colocar o homem como o centro
e a mulher como a margem; encontra-se, também, a formação
androcêntrica de uma identidade que constrói um sujeito unificado,
autônomo, absoluto. Essa construção, fundamentada no determinismo e
na naturalização, fornece ao homem o discurso e à mulher, o silêncio.
Como esclarece Eduardo de Assis Duarte, tais organizações hierárquicas
e hegemônicas voltam-se, “portanto, não apenas para a imposição de
verdades tidas como essências absolutas, mas, sobretudo, para o
estabelecimento de procedimentos de controle social, cultural e político”
(DUARTE, 2002, p. 13).

É devido a tudo isso, que se verifica a relevância acerca desse


estudo de literatura, a fim de provocar reflexões para o exercício da
criação literária diferenciada, como a tertúlia literária, atividade que
possibilita discussões entre os alunos para que passem de objeto a sujeito

1070
de seu processo de diálogo e de problematização enriquecendo a
discussão a repeito das temáticas presentes nos contos, tais como:
violência contra mulher, estupro infantil, incesto, abandono, machismo,
patriarcalismo, entre outros, com vistas a desenvolver no sujeito visões
mais esclarecidas acerca dessas e de outras questões de opressão.

Portanto, a construção de conscientização e de transformação


humana urge para uma educação da liberdade com o intuito de
conquista cada vez maior da garantia de seu espaço de fala por meio
da luta constante e de resistência a seus opressores.

Note que depois de todas as angústias vividas por Maria, ela pôde
usufruir de seu encontro com o seu homem, aquele que fora culpado por
toda a sua tristeza. Paradoxalmente, também é o responsável por toda
a sua felicidade. “Como uma pena voando ao vento, balancei de poiso
em poiso, contornando vilas, cidades, até alcançar o objecto da minha
aventura: o meu homem” (CHIZIANE, 1994, P. 366).

O conto termina com Maria pedindo perdão a sua filha por tantas
vezes que pensou até em matá-la. Mas como prova de resistência e
resiliência concedida a essa personagem: “(...) – Mãe, eras capaz de
jogar-me na fossa, a mim? – Perdoa-me, querida. Eu não queria dizer
nada. Apenas gostaria que os seres humanos tivessem mais humanidade,
amor e fraternidade” (CHIZIANE, 1994, P. 367).

Acerca do excerto supracitado, os alunos comentaram o seguinte:


perceberam que Maria é uma personagem de resistência - por ter
resistido ao abandono por duas vezes, pois fora expulsa de casa, quinze
dias, após dar à luz sua filha. Além disso, fora abandonada pelo pai de
sua filha. Contudo, é também uma mulher de resiliência, pois não desistiu

1071
do sonho de reencontrar seu homem. Passou por muitas adversidades,
entretanto, superou cada uma delas.

Maria deixa uma espécie de conselho para todo o indivíduo, que


todos tivessem mais humanidade, amor e fraternidade. Quando toda a
sociedade tiver em seus corações essas três virtudes aconselhadas por
Maria. Certamente, a pessoas e, consequentemente, o mundo será
melhor.

A superação descrita no conto por meio das personagens, Shirley


Paixão e Maria, assim como as autoras desses contos estudados, Evaristo
e Chiziane, são também mulheres de resistência e superação. A primeira
resistiu à fome, a infância difícil para uma criança pobre, feminina e
negra. Sendo mais tarde, professora e escritora renomada e premiada. A
segunda, também resistiu à guerra em país de origem e ao preconceito
de gênero e raça. No entanto, também se tornou uma escritora
renomada e premiada, assim como Evaristo.

Estudar vida e obra dessas mulheres é por em pauta assuntos


relacionados à ancestralidade, isto é, a vida de muitas mulheres ligadas
à vida dos alunos, por exemplo, avó, mãe, tia, irmã e até mesmo,
algumas alunas. Problematizar e discutir essas questões revela que o
conto age como uma forma de denúncia encontrada pelas autoras
para tornar visíveis as questões de desigualdade de classe, raça e
gênero.

É salutar “tertuliar” acerca dessas temáticas que, ora denotam


dissabores, ora denotam alegrias. Dissabores em função do tratamento
dado às mulheres, alegrias por perceberem que as mulheres estão
lutando e resistindo à condição a elas impostas. E, seguindo o conselho
da personagem, Maria, é importante deixar o amor fluir no coração dos

1072
seres humanos para nunca se desesperançar, pois o amor pode ser a
esperança de toda a humanidade.

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A tertúlia literária virtual aliada à sala de aula invertida criaram


expectativas no aluno. Essas expectativas ficaram evidentes no corpo do
texto quando em alguns excertos dos contos os alunos perceberam a
relevância da realização de trazer em pauta para o debate algumas
questões presente nos contos: violência contra a mulher, machismo,
patriarcalismo, superioridade de gênero etc., que levam o sujeito à
reflexão com possibilidades de desenvolverem visões de conscientização
a respeito dessas questões.

Além disso, essa metodologia, tertúlia literária, é baseada no


conceito de aprendizagem dialógica, e que faz emergir tais
aprendizagens. A aprendizagem dialógica foi elaborada por Flecha
(1997), coadunado pelas elaborações de Freire (2005) sobre
dialogicidade. Freire trabalhou em ações educativas por várias décadas,
com o objetivo de transformar os contextos sociais autoritários e
exclusivos em contextos democráticos e mais igualitários, destacando a
educação como um ato político, que pode superar ou reforçar as
relações de opressão.

Nesse sentido da superação, propõe uma pedagogia dialógica,


horizontal, baseada na problematização da realidade a partir dos
conhecimentos que cada pessoa traz para a interação com o outro.
Ademais, essa interação por meio da tertúlia literária promoveu no
alunado sete princípios básicos que norteiam a aprendizagem, tais como:

1073
1 Diálogo igualitário: em que todos têm espaço e vez para exporem seus
argumentos sem medo de julgamentos, pois não há posição de poder
de uma pessoa em relação à outra.

2 Inteligência cultural: todas as pessoas possuem um repertório cultural,


fruto de sua origem, vivências e de seu conhecimento de mundo, por isso,
todos têm como contribuir com a discussão.

3 Transformação: as transformações vão acontecendo de forma


igualitária à medida que se vai dialogando e construindo o
conhecimento colaborativo sem imposição de ideias.

4 Criação de sentido: fica evidente quando os alunos associam suas


vivências a dos personagens. Isso mostra que o aluno é o sujeito de seu
conhecimento.

5 Dimensão instrumental: o acesso ao conhecimento instrumental,


advindo da ciência e da escolarização, é essencial para operar
transformações democráticas na sociedade letrada.

6 Solidariedade: a solidariedade é demonstrada pelo interesse coletivo


na construção da aprendizagem embasadas pela troca de interação e
diálogo principalmente por aqueles que não podem participar na
sociedade com as mesmas condições, assim, as vozes dessas pessoas
abrem possibilidades para todos.

7 Igualdade de diferenças: a aprendizagem dialógica é baseada na


igualdade das diferenças, afirmando que a verdadeira igualdade inclui
o mesmo direito de toda pessoa viver de modo diferente.

Além desses sete princípios explícitos, houve outros, que se somam


a esses na construção de uma pedagogia holística: interpretação
coletiva, desenvolvimento da oralidade, argumentação fundamentada,

1074
troca de conhecimento cultural etc., com vistas a aprofundar, enriquecer
e consolidar a aprendizagem para formação humana, tolerante,
democrática e igualitária como prática da liberdade, pois em uma
atividade como essa, os subalternos saem de sua posição de
subalternidade para assumirem o papel de protagonista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tertúlia literária por ser uma estratégia pedagógica que


desenvolve em seus partícipes, no mínimo, sete princípios, tais como:
diálogo igualitário, inteligência cultural, transformação, criação de
sentido, dimensão instrumental, solidariedade e igualdade de diferenças.

Notou-se que esses princípios são salutares para a vida em


sociedade, pois resguardam as peculiaridades de cada um. Ademais,
como não houve hierarquia de saberes, a individualidade e diferença de
todos foram respeitadas. O preconceito, a discriminação, a intolerância
como sempre, quando se trata de tertúlia, ficaram fora dessa dinâmica.

O sonho da pesquisadora e também de alguns alunos, assim como


era o sonho da personagem, Maria, é que, os indivíduos construam e
reconstruam vidas e personalidades embasadas no amor da
humanidade com esperança de dias melhores, a fim de que vislumbrem
em professores, alunos e sociedade melhores.

1075
REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina revisitada. In: LINS, Daniel; org.


A dominação masculina revisitada. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas:
Papirus, 1998, p. 11-27.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 3. ed. Trad. Klauss Brandini


Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2001. v. 2.

CHIZIANE, Paulina. “As cicatrizes do amor”. In: Lourenço do Rosário & M.


Lúcia Godinho. O conto moçambicano: Da oralidade à escrita. Rio de
Janeiro: Te Corá Editora, 1994, p. 361-367.

DUARTE, Eduardo de Assis. Feminismo e desconstrução: anotações para


um possível percurso. In: DUARTE, Constância Lima; DUARTE, Eduardo de
Assis; BEZERRA, Kátia da Costa; org. Gênero e representação: teoria,
história e crítica. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários, Faculdade de Letras / UFMG, 2002, p. 13-31.

EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte:


Nandyala, 2011.

FLECHA, Ramón. Compartiendo palabras - El aprendizaje de las personas


adultas a través del dialogo. Barcelona: Paidos, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: Políticas arrebatadoras. Rio


de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

1076
JOGOS VORAZES: UM FUTURO DISTÓPICO COM REFLEXOS DE
UM PASSADO OBSCURO

Lucas Santos de Assis172


Moisés Monteiro de Melo Neto173

RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a série de romances juvenis
Jogos Vorazes, da autora Suzanne Collins. Discorrendo como a literatura direcionada
aos jovens começa a ganhar destaque no século XXI, ressaltando algumas das suas
características que contribuem para cativar seu público leitor. Trazendo uma discussão
sobre os gêneros distopia e utopia, que se consagraram na atualidade como dois dos
maiores fenômenos da literatura mundial. Enfatizando como a série de Collins se
apresenta distópica, ao abordar os referidos traços distintivos deste intrigante estilo de
narrar mundos ficcionais, ou seja, mostra em sua obra um mundo pós-apocalíptico
controlado por um governo autoritário que faz o uso da violência e do medo para o
controle social, a repreensão das massas populacionais menos favorecidas e a fome,
que tanto se destaca na obra em análise. Fazendo, constantemente, relações com
fatores atuais e históricos da realidade humana, como a analogia ao Império Romano,
ao brutal sistema de controle populacional do Nazismo alemão e aos aparatos
tecnológicos do qual dispomos. Para a obtenção dos referidos resultados, foi realizada
uma pesquisa de cunho bibliográfico e de natureza qualitativa, seguindo os
pressupostos teóricos de Conceição (2018), Cordeiro e Nogueira (2010), Foucault (2010),
Guimarães (2020) entre outros. Concluindo que a obra é uma verdadeira distopia, pois
associa acontecimentos do passado e do presente da história real para nos descortinar
um futuro pós-apocalíptico, mesmo sendo fictício, com o objetivo de trilharmos
caminhos diferentes que não nos levem a esses cenários caóticos/distópicos que tanto
predominaram nos nossos antepassados e ainda perduram em algumas localidades.

Palavras-chave: Jogos Vorazes, Distopia, Governo autoritário.

INTRODUÇÃO

No mundo literário vemos um crescente índice de jovens leitores,


que corresponde ao público infantil e juvenil, em procurar se aventurar

172 Graduando do curso de Letras – Português da Universidade Estadual de Alagoas -


UNEAL, lucasassis3333@gmail.com;
173 Professor orientador: Doutor em Letras, Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL,

moises@moisesneto.com.br.

1077
pelos mundos idealizados por ilustres autores(as). Geralmente, os
personagens destes universos peculiares conseguem cativar o leitor
prendendo a sua atenção ao longo de toda a narrativa, seja por
apresentarem personalidades semelhantes à do público destinado, por
conseguirem construir um universo que foge da atual realidade humana
e adentra um cenário futurístico ou a um ambiente repleto de criaturas
mágicas e míticas.
Inicialmente, a literatura destinada ao público infantil e juvenil
possuía certo caráter pedagógico e moralizante, em que os personagens
destas obras não podiam se envolver ou praticar atos que viessem a
chocar seus leitores. Restando a iniciativa de desenvolver nos
personagens os devidos modos normativos de como uma criança ou
jovem devia se portar perante a sociedade, como a obediência aos pais.
Com o passar do tempo, tais características foram ficando mais rarefeitas
nessas obras, passando a desenvolver um personagem mais autônomo e
que se propunha a explorar cenários inóspitos e perigosos.
Tais figuras dramáticas são recorrentemente encontradas em
diversas produções literárias destinadas ao público infantil e juvenil
publicadas nas últimas décadas, que se tornaram um verdadeiro
fenômeno de leitura com milhões de adeptos ao redor de mundo, não
só do seu público alvo, mas também ganhando a satisfação do público
mais maduro, ou seja, os adultos. Começaram a ganhar adaptações
cinematográficas que contribuíram ainda mais para o enraizamento
deste estilo de literatura na vida do jovem contemporâneo que, ao assistir
ao filme baseado em determinada obra, passa a se familiarizar com seu
enredo e procura fervorosamente ao livro que originou tal história, em
busca de uma continuação ou para se aprofundar ainda mais nesse
novo mundo que o cativou.

1078
Inúmeros escritores e escritoras da contemporaneidade se
propõem, cada vez mais, em desenvolver narrativas que abordam um
cenário mundial futurístico, dotado de tecnologia e ciência
exorbitantemente superior. Porém, mesmo com esse tom de
superioridade, encontra-se mergulhado em desordem e caos.
Controlado por um regime governamental de atitudes tirânicas,
comparadas com os regimes totalitários que já existiram e existem no
mundo real.
As obras literárias dotadas desses traços são comumente
classificadas de distopias pelos críticos literários. Gênero esse que se
firmou durante os últimos anos como um dos favoritos dos jovens, tanto
em obras literárias como em produções cinematográficas onde, cada
vez mais, bebe da literatura como fonte de inspiração para seus enredos.
Sendo assim, este trabalho tem o objetivo de analisar o universo de
uma dessas obras considerada como um dos maiores sucessos literários
da atualidade, a série de romances Jogos Vorazes, da autora
estadunidense Suzanne Collins; que narra uma história futurística pós-
apocalíptica da espécie humana, focando na sobrevivência individual
em um país controlado por um governo absurdamente autoritário.
O corpus de estudo do trabalho é constituído pelos quatros
romances que compõe a série Jogos Vorazes, que são Jogos Vorazes
(2010), Em Chamas (2011), A Esperança (2011) e A Cantiga dos Pássaros
e das Serpentes (2020). Tendo como metodologia uma pesquisa
bibliográfica de cunho qualitativo, seguindo os postulados teóricos de
Conceição (2018), Cordeiro, Goes e Nogueira (2016), Foucault (2010) e
Oliveira (2019), entre outros.
O trabalho encontra-se estruturado em quatro seções. A primeira
traz um resumo sucinto da história narrada na série Jogos Vorazes. Na

1079
segunda discutimos acerca da literatura juvenil, e como esta se vale de
alguns estratagemas para chamar a atenção do seu público destinado,
da qual se destaca a semelhança entre personagens e leitores. A terceira
seção traz uma discussão sobre os mundos distópicos e como a obra
literária, objeto de estudo, se classifica como uma distopia. Já na quarta
mostramos alguns aspectos históricos de um passado obscuro da espécie
humana, que são encontrados com bastante clareza no decorrer de
toda a narrativa da trilogia objeto de estudo, o totalitarismo. Que
massacrou e continua a massacrar a população ao redor do mundo,
com seus métodos de controle da massa populacional e sua disciplina
punitiva de extrema violência física e mental, mostrado como a opressão
social é apresentada nos referidos romances. Finalizando o estudo com
as considerações finais.
Sendo possível perceber que a série Jogos Vorazes, assim como
todas as obras distópicas, nos revela uma sociedade futurística dotada
de meios tecnológicos avançados. Entretanto, caoticamente
desestabilizada e rigorosamente controlada por um governo tirânico que
faz o uso de métodos disciplinares bárbaros. Associando acontecimentos
do presente e passado da história real para aludir que sistemas
governamentais repressivos e desigualdades sociais podem surgir com
muita facilidade em provável futuro.

1 UM FUTURO DE TREVAS: A NARRATIVA DE JOGOS VORAZES

Após uma série de hecatombes ambientais como secas,


enchentes e a elevação do nível do mar, a população global cai em
uma enorme crise, e os sobreviventes desses acontecimentos lutam
desesperadamente pelo pouco que sobrou. Das cinzas deste antigo

1080
mundo, mas precisamente do que restou da nossa atual América do
Norte, surge o país de Panem, dividido em treze distritos e uma capital.
Que prosperam em um curto período de tempo, até que vieram os Dias
Escuros, o levante dos distritos contra a capital.
A Capital conseguiu sair vitoriosa, como punição o 13º Distrito foi
obliterado e com lembrete de que jamais poderiam vivenciar essa
traição novamente, cada um dos doze distritos restantes deve oferecer,
por meio de um sorteio, um garoto e uma garota entre 12 e 18 anos para
a Capital, que serão transferidos para uma arena, onde lutarão entre si
até reste somente um sobrevivente. Esse evento mórbido ganha o nome
de “Jogos Vorazes”. Uma espécie de reality-show que acontece
anualmente, transmitido para todo o território de Panem.
Jogos Vorazes é o primeiro livro de uma série de quatro romances,
sendo o último uma narrativa que precede os acontecimentos do
primeiro. Jogos Vorazes, sucedido por Em Chamas e A Esperança,
respectivamente, formam uma trilogia que narra a história de Katniss
Everdeen, uma garota do Distrito 12 que se oferece para participar da
septuagésima edição dos Jogos Vorazes no lugar da sua irmã, uma vez
que esta era muito jovem e tida como indefesa.
Katniss consegue sair vitoriosa, porém, por desafiar as regras dos
jogos, começa a ser tratada pelos distritos como um símbolo de levante
contra o poder supremo da tirânica Capital. E por intermédio do
Presidente Snow, que pretende fazer não só dela como dos outros
participantes um exemplo de que nem um deles pode superar o poderio
da Capital, retorna para uma nova edição dos jogos com mais outros 23
participantes vitoriosos de edições anteriores da disputa.
Nesta sua segunda participação no sangrento reality-show, Katniss
é resgata pelas forças rebeldes lideradas por um Distrito 13 que se

1081
mantinha no anonimato da aniquilação e aceita desempenhar o papel
de símbolo rebelde em uma nova guerra entre os distritos, que
procuravam a conquista de direitos igualitários e melhores condições de
vida, e a força bélica da Capital comandada pelo tirânico Presidente
Snow, que está no poder por décadas.

2 A LITERATURA PARA O PÚBLICO JUVENIL

Primordialmente, a literatura direcionada ao público juvenil ou


infantil, possuía caráter moralizante, consistindo em não demostrar
acontecimentos que viessem chocar seus leitores, focalizando nos bons
modos que estes devem possuir perante a sociedade, a exemplo da
obediência aos mais velhos. Contudo, uma vez que a obra em análise se
destina especialmente ao público juvenil, focaremos aqui, em especial,
na literatura direcionada a este segmento.
Diversos críticos já demonstraram que a literatura juvenil não era
digna de análise, por conter o estilo moralizante e por tanto ser
considerada como obras didáticas. Ressaltando que ao versar sobre
temas como manipulação genética, tecnologia avançada ou mundos
fantásticos com criaturas míticas e imaginárias, era algo risório. E também
por apresentarem fortes vínculos com a literatura infantil, seja nas capas
dos livros como em outros aspectos, que por vezes afasta um leitor mais
velho.
O que veio mudando ao longo do desenvolver dessa ramificação
literária, que se firmou como um dos maiores sucessos de vendas no
mundo, atingindo o topo de vendas em diversas localidades pelo mundo
e atraindo também o público adulto. Começou a deixar seu caráter
educativo/moral de lado e tende a desenvolver agora indivíduos

1082
conscientes de si e do meio em que vivem, que possuem voz ativa para
alterar o mundo ao seu redor e, geralmente, participam de eventos
perigosos. Esse avanço da literatura juvenil ocorre principalmente no final
do século XX, com a publicação de Harry Potter, da autora inglesa J. K.
Rowling.
O fato desse estilo literário cativar tanto seus leitores, é o colocar
de um personagem juvenil como protagonista da narrativa, e o jovem
leitor passa a se identificar com as características que são personificadas
nesse personagem fictício. Dessas características a busca da construção
de uma identidade pelo protagonista reflete no jovem da realidade, que
também almeja construir a sua imagem identitária que será apresentada
a sociedade ao seu redor.

O sujeito adolescente é, por excelência, um sujeito em transição,


e seu percurso, idealmente, deve culminar na passagem
satisfatória da infância para a vida adulta. A literatura oferece
uma forma de enfrentar os conflitos típicos dessa fase, ao
mostrar para o adolescente que é possível superar suas
dificuldades e que ele não é o único a enfrentá-las. (SANTOS &
CARDOSO, 2015, p. 126).

O jovem da atualidade se preocupa em desenvolver a identidade


que será apresentada ao mundo exterior, e nesse percurso encontra uma
série de desafios e pressões sociais que acarretam na preocupação em
demonstrar uma identidade que ao ser exibida seja estimada pelo seu
meio social. E vemos as representações desses percursos em diversas
obras literárias que possuem um adolescente como protagonista.
Nos romances da série Jogos Vorazes, Katniss ao se oferecer para
os jogos, começa a construir uma imagem identitária diferente da que
possuía, passando de uma simples caçadora que tinha como único
objetivo conseguir caça para alimentar sua família, para uma firme
batalhadora, afim de conquistar patrocinadores que a ajudem na arena.

1083
E com o decorrer da narrativa, é influenciada pelos rebeldes, que a veem
como um símbolo de coragem e de desafio contra o poder da Capital,
a assumir o papel simbólico do Tordo na guerra que se segue.
Em uma outra coleção de livros, que chamou atenção nos últimos
anos, a série Divergente, da norte-americana Veronica Roth. Temos a
protagonista Beatrice Prior, que ao completar seus dezesseis anos precisa
fazer uma escolha que refletirá no seu meio social e moldará a sua
identidade para sempre. Para maior entendimento escolhemos um
trecho da obra que evidencia a importância da escolha de Beatrice.

- Nossos dependentes agora têm dezesseis anos. Eles se


encontram no precipício da maturidade, e agora é
responsabilidade deles decidir que tipo de pessoas serão. – A
voz de Marcus é solene, distribuindo igualmente o peso de cada
palavra. (ROTH, 2012, p. 48).

Enfim, essa construção de uma identidade para ser revelada no


convívio social é um aspecto recorrente da literatura juvenil, geralmente,
apresentando uma história dividida em mais de um livro, onde serão
construídos os aspectos identitários e concepções ideológicas dos
personagens ao decorrer de seu amadurecimento acompanhando a
narrativa. Comumente, esses personagens são abordados em uma
literatura voltada para a imaginação de um futuro pós-apocalíptico, e
ao exemplo de Katniss e Beatrice, são autores de sua própria história e
enfrentam desafios para conseguirem sobreviver, essa literatura por sua
vez foi alcunhada de literatura distópica.

3 A DISTOPIA: UM MUNDO EM RUÍNAS

O mundo de Jogos Vorazes, idealizado por Suzanne Collins, mesmo


que seja situado em futuro pós-apocalíptico da espécie humana, nos faz

1084
refletir sobre um passado que a espécie humana tanto teme e que
mesmo assim ainda vigora no mundo atual, ou seja, o período dos
governos altamente autoritários que dizimou com a vida de milhões de
pessoas.
Ao conceber na narrativa um cenário futurístico resultante de uma
quase extinção da espécie humana onde os sobreviventes encontram
uma demanda de desafios para sobreviverem, surge um gênero
particular da literatura, que atualmente é um fenômeno global de
vendas, a distopia. Diversos teóricos explicam que a distopia se originou
a partir da utopia, embora cada uma possua um caráter divergente.
Enquanto a utopia visa um mundo totalmente idealizado e que o bem-
estar da população seja elevado ao máximo, a distopia nos revela um
mundo arruinado onde a miséria e a desigualdade social reinam. Sobre
a utopia, Oliveira (2019) afirma:

Refere-se à construção de uma sociedade perfeita, no quesito


estrutural e no de do bem-estar social. O conceito de utopia
advém de um não lugar, um lugar nenhum, logo, seria a
colocação de uma cidade impossível, tão perfeita que não
seria viável sua existência. O primeiro uso do termo dentro do
campo literário se deu pelo poeta inglês Thomas More, no século
XVI, com o lançamento de sua obra ficcional Utopia. (OLIVEIRA,
2019, p. 07).

Desse modo, podemos inferir que a utopia procura criticar as


normas vigentes da sociedade atual, tida como algo falho, ao descrever
uma comunidade absolutamente eficaz em que toda a população é
feliz, mesmo que isso seja algo um tanto impossível do nosso ponto de
vista. Entretanto, não nos revela os caminhos percorridos para se chegar
a tal ponto de perfeição social, apenas alude a idealização desta
sociedade um tanto divina.

1085
Nos transportando para uma dualidade indiscutível e por onde se
explica o surgimento da distopia ou anti-utopia. Diferentemente da
sociedade utopicamente idealizada, a distopia surge principalmente por
discorrer sobre caminhos tenebrosos que levam uma sociedade ao seu
declínio catastrófico. Nos revelando que as obras distópicas são mais
aceitáveis que as utópicas, pois os humanos já vivenciaram o desenrolar
de duas grandes guerras que praticamente deixaram o mundo de
joelhos, bem como o horror de governos tiranos, que ao transmitir um
ideal de sociedade perfeita, fizeram totalmente o inverso, sobrepujaram
e massacraram as massas sociais, como o Nazismo alemão.
Assim, conhecemos as consequências desastrosas de trilhar por um
dos caminhos que levaram essas catástrofes humanas a ocorrer. Mesmo
que a intenção inicial dos idealizadores desses movimentos aludisse a
sociedade perfeita em seus parâmetros, acabaram por propagar caos e
desordem. Dessa ilusão em almejar a sociedade perfeita/utópica, surgiu
a distopia, pois aquilo que é considerado utópico por um, pode ser visto
como distópico por um outro.

As distopias caracterizavam-se pelas narrativas ficcionais nas


quais os indivíduos eram despidos de sua liberdade em uma
sociedade repressora e vigilante, espelhada na realidade de
contradições pelas quais o mundo passava após as grandes
guerras mundiais. (CORDEIRO; GOES; NOGUEIRA. 2016, p. 261).

O marco central de uma obra distopica é discorrer sobre uma


sociedade com desequilíbrio de classes sociais, situada em um futuro pós-
apocalíptico controlada por um governo altamente autoritário e que faz
uso de métodos terríveis para o controle de sua população.
Apresentando uma ciência e meios tecnológicos bastante avançados,
aludindo para os fatores que fizeram com que está sociedade fictícia
surgisse, como a ambientação do universo de Jogos Vorazes.

1086
Ao longo da narrativa de Collins, são demonstrados os grandes
desastres ambientais e as guerras ocorridas no passado, que fizeram com
que toda a idealização contida na nova nação de Panem viesse à tona.
Como relata a personagem Katniss Everdeen no seguinte trecho:

Assim que o relógio da cidade dá as badaladas indicando que


são duas da tarde, o prefeito sobe ao pódio e começa a leitura.
É a mesma coisa todos os anos. Ele conta a história de Panem, o
país que se ergueu das cinzas de um lugar que no passado foi
chamado de América do Norte. Ele lista os desastres, as secas,
as temperaturas, as tempestades, os incêndios, a elevação no
nível dos mares que engoliu uma grande quantidade de terra, a
guerra brutal pelo pouco que havia restado. (COLLINS, 2020, p.
24).

Desse modo, a distopia relaciona a realidade atual com um


possível futuro ao discorrer sobre desastres ambientais ou guerra entre
nações, pois temos a plena consciência de que esses acontecimentos
possam ocorrer inesperadamente e na maioria das vezes são inevitáveis,
como os de natureza ambiental, que por sua vez são previsíveis em um
futuro não tão distante do nosso presente.
O romance distópico não só associa esses desastres que levam a
uma sociedade em ruinas, mas, traz a ideia de um futuro altamente
tecnológico com um viés científico e medicinal que os humanos
pretendem alcançar em um tempo prospero. Porém, fazendo
associações com as invenções e descobertas que já ocorreram no agora
do nosso mundo real, a exemplo podemos citar os avanços na genética
ou as viagens espaciais.
Lembrando que na obra de ficção é tratada com um caráter mais
evoluído, ou seja, enquanto na realidade não podemos viajar de uma
galáxia para outra, no universo fictício o humano viaja. Desse modo, fica
evidente que a distopia tende a usufruir da ciência, tendo como base as
descobertas existentes para a formulação de uma ciência previsível de

1087
um futuro próximo, criando a ideia de ficção científica. Como Conceição
(2018) reflete sobre as ideias de Ferneda (2015):

Para o autor, a ficção científica, por mais que tenha um caráter


ficcional, conduz o leitor a questões de um mundo real. As
concepções, as ideias, os valores, a visão de mundo, o
conhecimento e a experiência do escritor transbordam para a
narrativa e o leva a contextualizar o enredo a partir de um
mundo concreto. Portanto, o mundo narrado na ficção está
vinculado a realidade do mundo que o escritor experiencia e
que deseja partilhar com o leitor. Nesse sentido, segundo o autor,
a característica predominante da ficção científica é, a partir da
ilusão, nos fazer pensar sobre a realidade, os preceitos da
ciência e o mundo onde vivemos e convivemos. (CONCEIÇÃO,
2018, p. 346).

Na obra objeto de estudo, as tecnologias e o avanço da ciência


são referidamente destacadas em diversos momentos da narrativa,
principalmente quando Katniss Everdeen adentra o ambiente da arena
e começa a lutar pela sua sobrevivência em um duelo com outros 23
tributos. A avançada manipulação sobre a genética que a nação de
Panem possui é notada na manipulação de animais que a Capital veio
a criar como armas durante os Dias Escuros, e após o fim da guerra, foram
libertados na natureza. A exemplo citamos as “Teleguiadas”, espécie de
vespa altamente venenosa, que pica Katniss nos seus primeiros jogos.
Como meio tecnológico, a Capital faz uso de todo um aparato de
apetrechos como drones, veículos velozes como o trem que transporta
os tributos ou as aeronaves que ficam invisíveis, bem como, a própria
arena, dotada de um sistema de controle, que fica a critério dos
Idealizadores dos jogos escolherem o que acontece no seu interior.

1088
4 PANEM: O TOTALITARISMO E A POLÍTICA DO PÃO E CIRCO

Ao longo da história humana, os governos totalitários se ergueram


e se firmaram com muita facilidade, independente das forças existentes
que se opunham a esse tipo de sistema brutal. Por diversas vezes, são nos
apresentados os registros das mais diversas práticas inumanas que
persistiam durante os mandatos dos líderes autoritários. Consistindo em
práticas de tortura até os terríveis campos de concentração responsáveis
por aniquilar milhões de vidas humanas.
Não devemos considerar isso como um passado obscuro da
humanidade que por diversas vezes tentamos esquecer, uma vez que
precisamos dessa memória para compreender as consequências de
trilhar por caminhos ideológicos iguais aos que levaram a existência de
tais tiranias e, tristemente, não se encontram extintos, estando presente
na forma governamental de várias nações pelo planeta.
Como a literatura bebe da vida real, os reflexos de modelos de
governos do antepassado ou do presente são comumente narrados nos
mais diversos gêneros literários. A exemplo da distopia, que relata um
futuro em onde a espécie humana sobreviveu a uma série de desastres
de proporções apocalípticas, e se encontra rigorosamente comandada
por um governo altamente autoritário.
No mundo distópico de Jogos Vorazes, Panem é governada por
um presidente que se mantém no poder por décadas, caricato de um
verdadeiro ditador, pondo em prática os mais severos modos de punição
e contenção da massa populacional. Por ser situado no futuro, se vale
da tecnologia avançada para exercer tais práticas, como a vigilância,
por meios de drones e câmeras instaladas nos arredores dos distritos que
compõem esta grande nação.

1089
Logo de início é apresentado um termo interessantíssimo remetendo a
uma forma de governo predominante no passado, cristalizado no próprio
nome do país, Panem. Nos levando à política do pão e circo do Império
Romano, visível em um trecho do terceiro volume da série em estudo,
referente a um diálogo entre os personagens Katniss e Plutarch:

[...]
- É um ditado de milhares de anos atrás, escrito numa língua
chamada latim sobre um lugar chamado Roma – explica ele. –
Panem et Circenses se traduz por “pão e circo”. O escritor queria
dizer que em retribuição a barrigas cheias e diversão, seu povo
desistiria de suas responsabilidades políticas e, portanto,
abdicara de seu poder.
Penso na Capital. No excesso de comida. E na diversão mais
importante de todas: os Jogos Vorazes. (COLLINS, 2020, p. 241).

Em Panem, a Capital é a única que esbanja comida e qualidade


de vida. Enquanto os distritos, que são os responsáveis por suprir a Capital
dos mais diversos produtos como carvão, produtos agrícolas, madeira,
etc., são mantidos na verdadeira miséria. Além de fornecerem seus
jovens para lutarem até a morte no anual reality-show Jogos Vorazes.
Assim, é evidente a total alusão ao Império Romano, que fornecia
comida e entretenimento através das atratividades ocorridas no Coliseu,
em esperança do povo abdicar da sua voz ativa e consequentemente
manter seus líderes no poder, independentemente de quão bárbaros
sejam seus atos. O que é totalmente simbolizado em Panem uma vez que
a população da Capital é a única que possui algum tipo de poder
perante a política, enquanto os distritos são desprovidos, o atual líder
maior procura sempre manter o capitólio entretido com o evento anual
dos Jogos Vorazes, e exuberantemente alimentado.

A única coisa que consigo pensar é nos corpos flácidos das


crianças em nossa mesa de cozinha, enquanto minha mãe
receita o que os pais não têm condições de dar a elas. Mais

1090
comida. Agora que somos ricos, ela oferece um pouco para que
levem para casa. Mas antigamente, com muita frequência, não
havia nada a ser dado e a criança não tinha como ser salva. E
aqui na Capital eles vomitam pelo prazer de encher seus
estômagos initerruptamente. Não por causa de alguma
enfermidade do corpo ou da mente, nem por causa de alguma
comida estragada. É o que todo mundo faz numa festa. É o que
é esperado. Faz parte da diversão. (COLLINS, 2020, p.91).

Nesta passagem do romance Em Chamas, segundo volume da


série Jogos Vorazes, Katniss após ser consagrada como vitoriosa dos
Jogos, durante uma festividade na Capital em sua homenagem,
presencia um ato que a abala e começa a refletir. Enquanto nos distritos
as pessoas morrem de fome, na Capital vomitam para poder ingerir mais,
que pela grande quantidade de iguarias, seus estômagos enchem
rapidamente sem terem experimentado todos os pratos disponíveis e,
pretendendo desfrutar de todos esses petiscos, regurgitam para
prosseguir com a degustação.
Desse modo, os habitantes da ilustre Capital se despojam de seu
poder em troca que seu governante mantenha o tom boêmio de suas
vidas, mesmo que para isso force a população dos distritos a trabalharem
demasiadamente em troca de migalhas que mal os alimenta.
Segundo Strehl (2014) “... uma das características dos regimes
totalitários é fazer uso de expressões estéticas na forma de cultura de
massa, utilizando de forma peculiar a indústria cultural e toda sua
produção ...”. A indústria cultural como um todo é privilégio dos
residentes da Capital, que são os únicos a usufruírem de adereços de
beleza, roupas extravagantes, bem como meios de comunicação
avançados. Já nos distritos, os elementos culturais são tão escassos que
não entram em foco nos romances em estudo. Fazendo apenas a

1091
menção de cantigas narradas pelas próprias pessoas que habitam a
zona distrital.
Além de ser estritamente proibida a comunicação interdistrital,
não havendo notificações sobre as ocorrências fora de seu território,
usufruindo de meios de comunicação somente quando há algum
comunicado presidencial ou durante a exibição dos Jogos, eventos que
exigem a presença obrigatória da sociedade.
Em uma sociedade sempre existe uma ordem a ser mantida por
meio de restrições das mais variadas, mas, quando falamos em um
sistema político com um ditador impiedoso no controle, as restrições são
aplicadas rigorosamente. Pautando na disseminação do medo por meio
de punições rígidas aos indivíduos que quebrem ou pretendam causar
agitação nas normas estabelecidas.
Panem, faz o uso dos ditos Pacificadores, o esquadrão de força
militar do governo, para manter suas diretrizes respeitadas. Além da
comunicação inexiste entre os distritos, faz o uso de um sistema de cercas
elétricas que circundam os distritos, impedindo a população de se
locomover para além das áreas designadas. E como punição, caso
sejam pegos violando o perímetro estabelecido, são chicotas em público
ou fuzilamento.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce


uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o
aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua
sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo
mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente (FOUCAULT, 1997, p.127 apud GUIMARÃES, 2020, p.
65).

Foucault nos mostra que as formas disciplinares submetidas a um


determinado sujeito têm o objetivo de o tornar dócil. Para que assim seja
fácil de ser controlado e manipulado, de acordo com as pretensões dos

1092
superiores criadores das exigências estabelecidas. Na obra, todos os
distritos são responsáveis por produzir um bem material a ser entregue a
Capital em abundância.
Nesse viés, os serviçais distritais são submetidos a uma rígida carga
horária de trabalho e recebem tão pouco que não alimentam sua família
de forma devida, os levando a falecer por fome. Literalmente, se formos
traduzir o título original do primeiro romance da série, The Hunger Games,
traduziríamos para Jogos das Fome, e não Jogos Vorazes. Pois, a fome se
configura como um meio de submeter a população aos caprichos do
capitólio. Tendo em vista que manter a população faminta os obrigam a
adquirir uma cesta básica de alimentação, as chamadas “Tésseras”, em
troca de inserirem o nome de seus filhos mais uma vez nos Jogos.
Aumentando as chances desses jovens serem sorteados, conforme é
percebido no trecho a seguir do romance: “Mas aí vem a jogada.
Digamos que você esteja passando fome [...] Você pode optar por
adicionar seu nome mais vezes em troca de tésseras.”
Ainda sobre essa questão de controle da massa populacional, é
possível comparar os distritos com os Campos de Concentração
existentes no Nazismo Alemão. Pois, ao impossibilitar a locomoção dos
indivíduos para outras áreas não vigiadas, facilita com que estes sejam
aniquilados de forma rápida. O que de fato acontece quando Katniss,
no seu segundo Jogos, é resgatada da arena pelos rebeldes. O
Presidente Snow, enfurecido, ordena a total aniquilação do Distrito 12
com toda sua população.

Se o poder de normalização quer exercer o velho direito


soberano de matar, ele tem de passar pelo racismo. E se,
inversamente, um poder de soberania, ou seja, um poder que
tem direito de vida e de morte, quer funcionar com os
instrumentos, com os mecanismos, com a tecnologia da
normalização, ele também tem de passar pelo racismo. É claro,

1093
por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto,
mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de
expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou,
pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição,
etc. (FOUCAULT, 2010, p. 216).

Como Foucault discorre, a ocorrência do assassinato por pretexto

racista, não configura para o assassino como uma forma de aniquilação

de um igual a ele mesmo. Pois, a vítima é considerada como um ser

inferior. Aspecto este que serviu como base ideológica para a escravidão

e como conceito ideológico de governos totalitários que tinham o

propósito de aniquilar grupos sociais minoritários ou possuintes de uma

ideologia divergente. E desse modo, a nação fictícia de Panem é

construída nesse alicerce de superioridade dos habitantes da Capital e

inferioridade dos que vivem nos Distritos sendo massacrados a todo

instante. Perceptível neste trecho do quarto livro da série, que narra uma

história sessenta e quatro antes de Katniss surgir:

Atrás dos pacificadores havia um caminhão com caçamba e


um guindaste em cima. Bem no alto, o corpo cravejado de
balas da garota do Distrito 10, Brandy, estava pendurado no
gancho. Algemados na caçamba do caminhão, imundo e
subjugados, estavam os vinte e três tributos restantes. O
comprimento das correntes impedia que eles se levantassem,
então eles ficaram agachados ou sentados no chão de metal.
Era mais uma oportunidade de lembrar aos distritos que eles
eram inferiores e que haveria consequências negativas pela
resistência deles. (COLLINS, 2020, p. 146).

Como foi demonstrado, é evidente o poderio tirano da Capital


exercido sobre a população de Panem. Dotado de meios tecnológicos
que auxiliam na contenção e controle da massa social, que sofre com

1094
um sistema de caráter escravocrata, já que os distritos são forçados a
suprir o capitólio desde alimentos a utensílios de uso doméstico, sem o
direito de usufruir adequadamente dos bens que eles mesmos produzem.
Além de entregar seus jovens para serem assassinados como forma de
diversão.

CONCLUSÃO

Mediante os dados expostos no percurso deste trabalho


concluímos que a série juvenil Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, é uma
verdadeira obra distópica. Abordando as características que englobam
esse grande gênero literário como um futuro pós-apocalíptico da
humanidade, no qual seus sobreviventes lutam por sua própria
sobrevivência em um cenário repressor.
Centrado nas ruinas da América do Norte, que deu origem a
grande nação de Panem, brutalmente comandada por um sistema
político autoritário. Submetendo os residentes dos distritos aos mais
rigorosos métodos de disciplina exercidos pelas forças militares do
governo. Controlados em zonas estabelecidas para que sejam
impossibilitados de se locomoverem a localidades não vigiadas pelas
forças militares da Capital, sendo obrigados entregarem toda sua
produção em troca de migalhas que mal os alimentam ou possibilita um
meio de vida digno.
Seu verdadeiro tom totalitário é focado na figura de um presidente
que se mantém no poder por décadas. Sustentado pelos pilares da
política do pão e circo, que nos remete ao tempo do antigo Império
Romano. O universo fictício em análise, mantém essas alusões ao antigo
regime político da antiga Roma no próprio nome do país, Panem.

1095
Expressão em latim que consequentemente significa “pão e circo”.
Refletidos na arena do reality-show dos Jogos Vorazes, que seria o
circo/forma de entretenimento e o pão significado pelo excesso de
comida que os habitantes da Capital possuem, enquanto os residentes
dos distritos se esvaem de fome.
Não bastasse, os traços racistas presentes nos regimes autoritários
que já existiram e que ainda existem, também são demonstrados em
Panem. Tratando as pessoas fora da Capital, no caso os distritos, como
meros animais para o abate. Os obrigando a oferecerem seus jovens
todos os anos para a sangrenta disputa dos Jogos Vorazes com o mero
sentido de entretenimento.
Deste modo, concluímos que a série Jogos Vorazes, assim como
todas as obras distópicas, nos revela um futuro caótico e os caminhos
que levaram a tal situação. Associando características do passado e
presente da realidade para que possamos refletir sobre o que queremos
para o nosso amanhã. E que, mesmo os sistemas mais brutais que a
humanidade já provaram em seus antepassados, podem voltar em um
piscar de olhos se trilharmos pelos mesmos caminhos ideológicos que
fazem uma tirania surgir.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Andreza Tenório de; REIS, Thais Resende dos. Jogos Vorazes:
um dispositivo de análise da sociedade contemporânea. Revista Pandora
Brasil. Disponível em:
http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/edicao83.htm. Acesso
em: 10 de set. de 2020.

1096
COLLINS, Suzanne. A cantiga dos pássaros e das serpentes. 1ª. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 2020.
_________. A esperança. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
_________. Em chamas. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
_________. Jogos vorazes. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
CONCEIÇÃO, Verônica Alves dos Santos. FICÇÃO CIENTÍFICA: O ESCRITOR
E O LEITOR (DES)AUTORIZADOS PELA CIÊNCIA. Linha Mestra. n. 36, p. 345-
349, set. dez. 2018.
DA SILVA CORDEIRO, M. A.; SILVA GOES, B.; NOGUEIRA, W. DE S. Jogos
Vorazes e a questão da distopia na série de filmes de Gary Ross E Francis
Lawrence. Revista GEMInIS, v. 7, n. 1, p. 257-272, 6 jul. 2016.
EGAN, Kate. Jogos Vorazes: Em Chamas: guia oficial do filme. Trad.
Leilane Garcia, São Paulo: Prumo, 2013.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
GUIMARÃES, Mônica Lopes Névoa. JOGOS VORAZES: UMA REFLEXÂO
SOBRE O MUNDO CONTEMPORÂNEO. Orientadora: Fernanda Aquino
Sylvestre. 2020. 133 p. Tese (Doutorado em Estudos Literários) –
Universidade Federal de Uberlândia, Pós-graduação em Estudos Literários,
Uberlândia, 2020.
OLIVEIRA, Raissa Silva de; RIOS, Riverson. Gênero e Distopias: Uma Análise
Comparativa sobre a Representatividade Feminina de Jogos Vorazes
(2010) e de 1984 (1949). Disponível em:
file:///C:/Users/lucas/Documents/Trabalhos/Literatura%20Infantil%20e%20
Juvenil/Trabalho%20-%20Jogos%20Vorazes/Te%C3%B3ricos/representativi
dade%20feminia.pdf. Acesso em: 01 de set. de 2020.
ROTH, Veronica. Divergente. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

1097
SANTOS, Cássia Farias Oliveira dos; CARDOSO, André Cabral de Almeida.
UMA DISCUSSÃO SOBRE A LITERATURA JUVENIL. Anais do VI SAPPIL-Estudos
de Literatura, v. 1, n. 1, 2015.
SEIFE, Emily. Jogos vorazes: guia do tributo. Trad. Alice Klesck, São Paulo:
Prumo, 2012.
STREHL, Jerônimo Teixeira. A obra Jogos Vorazes: o consumo
ressignificado da estética nazista. Disponível em:
https://estudosdoconsumo.com/wp-
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A_obra_Jogos_Vorazes.pdf. Acesso em 01 de Out de 2020.

REFERÊNCIAS DE FILMES

A Esperança: Parte 1. Direção: Francis Lawrence. Estados Unidos: Color


Force, 2014. 122 min. Son. Color.
A Esperança: Parte 2. Direção: Francis Lawrence. Estados Unidos: Color
Force, 2015. 113 min. Son. Color.
Em Chamas. Direção: Francis Lawrence. Estados Unidos: Color Force, 2013.
146 min. Son. Color.
Jogos Vorazes. Direção: Gary Ross. Estados Unidos: Color Force, 2012. 145
min. Son. Color.

1098
FIGURAÇÕES DA MUSA NA LÍRICA DE MURILO MENDES

Luciano Marcos Dias Cavalcanti 174

RESUMO: Este artigo pretende analisar uma das figurações mais importantes do mito na
poética de Murilo Mendes, a Musa. Portadora do sagrado, do profano, representação
da memória e da própria poesia. A figuração do feminino na obra poética de Murilo
Mendes é ampla, em sua lírica há múltiplos desdobramentos da musa representadas
por várias figurações do feminino, que proporcionam a manifestação do poético. O
poeta está em busca de uma espécie de “memória profunda” da cultura, trazendo
para o presente um passado mítico exemplar. De acordo com essa perspectiva, é pela
poesia que o poeta deseja vivenciar um mundo inaugural entregue à inspiração, ao
mito e ao sagrado, configurado por imagens complexas e extraordinárias.
Palavras-chave: Murilo Mendes, Mito, Musa, Feminino.

INTRODUÇÃO

Murilo Mendes recorre frequentemente a mitologia para compor


seus poemas, são exemplares a presença em sua poética de variados
mitos, como: Orfeu, Prometeu, Proteu, Minotauro e as Musas. O poeta se
relaciona como mito em seu sentido tradicional greco-latino, como uma
narrativa sagrada, retrabalhando-o como representação simbólico-
metafórica da vida moderna revelando criticamente a relação do
homem com o mundo moderno e também como elemento próprio à
criação poética, no sentido de que o poeta se utiliza do mito como
elemento cultural exemplar, como procedimento, de criação poética.

Uma presença relevante do mito na poética de Murilo Mendes,


que nos interessa de perto nessa comunicação é a figuração da Musa,
portadora do sagrado, do profano, da pulsão poética, representação da

174 Doutor em Teoria e História Literária IEL-UNICAMP, e-mail:


bavarov@terra.com.br

1099
memória e da própria poesia. O próprio poeta revela a importância da
musa para sua poesia em sua “Microdefinição do autor”: “Vejo-me
empurrado pelo motor das musas (terrestres) inquietantes” (MENDES,
1994, p.46)

1 AS MUSAS

Na Grécia antiga, a figura da musa liga-se à memória, encarnada


pela deusa Mnemosine, mãe das nove musas. O poeta, inspirado pelas
musas, tinha a função de glorificar os fatos passados e futuros,
assemelhando ao profeta. É a testemunha inspirada dos “tempos antigos”
e da “idade das origens”. Segundo Vernant, em Mito e pensamento entre
os gregos, a memória (Mnemosine) caracterizava-se, no pensamento
mítico e arcaico grego, por ter o conhecimento do Tempo: o passado, o
presente e o futuro. Mnemosine tinha, igualmente, o conhecimento do
Espaço, do mundo do visível e invisível, do espaço dos vivos e dos mortos.
Mnemosine não era, como a memória comum, conhecimento de um
tempo passado, mas, ao contrário, memória de um tempo que continua
no presente e no futuro, pois é memória de um tempo arcaico (arché),
primordial, original da formação e organização do mundo. A memória
mítica e arcaica tem, portanto, segundo Vernant, a onisciência: ela vê
tudo em todos os momentos. Ela está além do começo e do fim. Ela tem
sabedoria suprema ao conhecer o passado, o presente e o ausente, o
todo do tempo e do espaço e, como que por adição, aquilo que excede
esse todo. Possuído pelas musas o poeta é o intérprete de Mnemosine.
(VERNANT, 1990, p.105-131). Logo, é com o auxílio da Musa que o poeta

1100
consegue superar os limites determinados pela espaço-temporalidade
ordinária e material e ir além do mundo sensível.

No momento em que o poeta é possuído pelas Musas, ele absorve


o conhecimento de Mnemosine e obtém toda a sabedoria expressa
pelas genealogias, atingindo o ser em toda a sua profundidade. É a
descoberta da origem, do movimento primordial: a gênese dos deuses,
o nascimento da humanidade, o surgimento do cosmos. É por meio da
memória que o poeta tem acesso ao indecifrável e consegue enxergar
o invisível.

2 A MUSA NA POESIA DE MURILO MENDES

A poesia de Murilo Mendes está recheada de uma grande


variedade de musas, nomeadas como: Berenice, Elionora, Cordélia,
Maria do Rosário, Jandira, entre várias outras que se elevam a um papel
muito mais amplo do que apenas a de companheira amorosa, revelando
a natureza feminina de maneira diversa. Nesse sentido, a mulher é
representada como: menina sedutora, mãe fértil que alimenta o filho,
esposa companheira, filha que dá continuidade da mãe, musa, Igreja,
etc. Mas, talvez, um de seus traços mais marcantes seja a fecundidade.
O que associa a mulher o poder da criação. Nesse sentido, como aponta
Fábio de Souza Andrade:

Murilo Mendes faz da Musa uma mediadora que permite


abandonar o mundo em direção à esfera da beleza e da
Perfeição, “o caminho suave do domínio místico”; mas essa
experiência erótico-amorosa modifica o olhar do poeta sobre as
coisas e representa em si, uma intervenção no mundo.
(ANDRADE, 1997, p.42)

1101
No poema “A musa”, de Tempo e Eternidade (1934), podemos
observar a grande importância e o significado que a musa recebe em
sua poesia. É por meio da musa que o poeta estabelece um diálogo com
Deus, como uma espécie de ponte que permite a comunicação entre o
plano terreno e o plano divino. É ela que inspira o eu lírico instigando a
sua criação para a “verdadeira” poesia, associada ao eterno/divino. A
musa é capaz de representar o que há por vir, afinal um dos poderes
concedidos a esta entidade mitológica é justamente o de conhecer a
totalidade do tempo: o passado o presente e o futuro. Ela tem a
capacidade, própria do mito, de organizar o caos presente em um
cosmo futuro. Este é um atributo importante que aproxima a literatura do
mito: a transformação do caos em cosmos, o que pode ser considerado
a própria essência do mito.

Tu és a relação entre o poeta e Deus.


Tu prefiguras uma imagem do Eterno
Porque a todo o instante organizas o mundo,
Sem ti minha poesia se extinguirá,
Sem ti eu ficaria mirando as construções do tempo.
Tu assistes aos movimentos da minha alma,
E aumentas minha sede do ilimitado.
Um dia, quando o Eterno me der a grande força,
Prenderei tua cabeça entre as constelações
A fim de orientar os poetas futuros.
(MENDES, 2004, p.254)

Também podemos observar no poema que o eu lírico é


dependente dos poderes inspiradores da musa para se realizar enquanto
poeta: criar seus poemas. Sem a musa o poeta se paralisaria no tempo e

1102
não conseguiria exprimir seus movimentos interiores. É a musa que
propicia o direcionamento do poeta para o infinito. A musa recebe um
caráter orientador dos poetas futuros, que o eu lírico diz querer, em um
futuro, ao receber poderes sobre-humanos de Deus, fazê-la de uma
constelação que servirá de referência, de um guia para a criação
poética. Como aponta Fábio Andrade: “A musa é o guia, sugestão da
afetividade como caminho pelo qual o poeta deixa ou se distancia, se
furta ao controle do tempo dividido e tumultuado da história,
preservando a possibilidade de uma nova ordem.” (ANDRADE, 1997,
p.46) Dessa maneira, a musa é uma entidade mitológica imprescindível
para capacitar o poeta a alcançar a elevação a mundos e ordens
superiores.

Em O visionário (1930-1933) aguça a presença do surrealismo na


poética muriliana, com suas imagens típicas. Encontramos mundos
fantásticos, o sonho se opondo a vigília, enumerações caóticas, frases
desconexas, a relação direta com os pintores surrealistas (como De
Chirico e Max Ernst), as figurações de estátuas, manequins, pianos,
máquinas, nuvens, etc. Nesse sentido, o estranhamento presente na
poética muriliana aponta para uma “nostalgia do mito, que mantém o
homem no mundo reificado, representa a possibilidade de uma relação
sujeito-objeto não corrompida pelo todo social, cujo único espaço de
realização possível é a arte, enquanto reduto autônomo preservado.
(ANDRADE, 1997, p.55).

O que se configura nesse momento na poesia de Murilo Mendes é


o predomínio da imagem sobre a mensagem e do plástico sobre o
discursivo. O poeta é um ser dilacerando e participa criticamente no
mundo social que vivencia sem perder seu humor característico.
Evidencia-se a presença crescente da figura feminina associada a

1103
problemática religiosa redimensionada e seus temas bíblicos. A mulher é
representada como um ser mítico, pelo qual incide toda uma
cosmogonia. A musa assume um sentido erótico, da criação do mundo,
como podemos ver no poema “Jandira” em que também notamos a
metamorfose da poesia em mulher.

O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:


Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:

O ar inteirinho ficou rodeado de sons


Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados,
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,


Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
De cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das
máquinas;

1104
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou um vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva,
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que
repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo

E o marido de Jandira
Morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.
(MENDES, 1994, p.202)

Jandira é figurada como uma espécie de mulher sedutora e fatal,


representada pelo poeta por meio de fragmentos corporais, como uma
colagem, esta mulher vai sendo criada a maneira de uma montagem
surrealista que a torna irresistível. O poder de sedução de Jandira
perturba seus amantes. Ela alcança um sentido universal e atemporal,

1105
pois não tem idade, ocupa todos os tempos e espaços e pertence ao
tempo dos primórdios, iniciado por seus seios, revelando a criação do
mundo através do elemento erótico e materno. De acordo com Nóbrega,
esse erotismo latente no poema, “força universal de atração que
possibilita a união entre os seres” – versão hesiodiana do mito de Eros, se
liga:

A noção de movimento e de união inerente à natureza impulsiva


de Eros que aproxima, mescla, une, multiplica e varia as espécies
vivas é um dos elementos mais significativos que estruturam a
narrativa mítica e permitem uma aproximação deste arquétipo
com a poética muriliana. O arquétipo de Eros ressurge na poesia
de Murilo Mendes sob uma perspectiva simbólica que seria
capaz de redimensionar o ser, tendo como elemento
impulsionador dessa nova realidade o verbo criador cheio de
valores metafísicos, capaz de realizar a união entre os opostos.
(NÓBREGA, 2005, p.124)

Uma mulher com tantos encantos se torna irresistível aos homens,


que sucumbem ao seu poder de sedução. Ela também é causadora de
tragédias, as pessoas morrem. Seu encanto é tão grande que ela se torna
imortal. O êxtase proporcionado por Jandira é coletivo, ela é a amante
imaginária de todos os homens. No entanto, seu poder diabólico de
sedução também é capaz de acolher a instabilidade do poeta. O poder
sedutor de Jandira é tão grande que a faz superar a temporalidade e
afrontar à morte, ou por causa de sua beleza ressurgir do mundo dos
mortos.

Jandira também é associada a signos tecnológicos do mundo


moderno, ela habita em meio a paisagem de “anúncios luminosos”, seu
corpo se mecaniza “seus cabelos cresciam furiosamente com as forças
das máquinas” à espera do “(...) juízo final”. Para José Paulo Paes, essa

1106
descomunal representação da musa do poeta no espaço ocupado por
signos do mundo tecnológico moderno, associados a uma escatologia
cristã-apocalíptica, “dá a medida da originalidade com que Murilo
Mendes irá utilizar por causa própria, durante a fase mais marcante da
sua produção poética, as virtualidades da interpenetração espacio-
temporal que, de Joyce a Picasso, de Eliot a Stravinsky, funda as poéticas
da modernidade.” (PAES, 1997, p.173) Para o crítico, a singularidade das
metáforas forjadas por Murilo Mendes, que podemos observar nesse
poema, como também nos livros posteriores do poeta, como o exemplar
As Metamorfoses, se dá pela “inversão do trajeto normal da metáfora, a
qual, em vez de ir buscar ao mundo natural ou cósmico, como de hábito,
símiles para exprimir aspectos do mundo humano (‘teus olhos são duas
estrelas’), toma destes símiles para exprimir aspectos daquele.” (PAES,
1997, p.176). Dessa maneira, as inversões feitas pelo poeta moderno, para
criar suas metáforas inusitadas, lembram bastante as metáforas
elaboradas pela poesia barroca. Em que “uma e outra têm predileção
pelos efeitos de surpresa, e os conseguem pelo recurso ao caráter
hiperbólico das metáforas de trajeto invertido, que aproximam ‘por uma
espécie de intrusão, realidades naturalmente distanciadas dentro do
contraste e da descontinuidade’” (PAES, 1997, p. 176).

É relevante notar que a configuração do corpo de Jandira


organiza o universo poético do eu lírico. Nesse sentido, a musa/mulher
revela o mundo pelas formas de seu corpo. Além de seu aspecto sedutor,
da mulher fatal, Jandira carrega em seu sentido simbólico a figura
materna que proporciona à criança a revelação dos primeiros
momentos do mundo por meio do corpo materno. Dessa maneira, o
poema mostra um sentido de origem na figuração da maternidade e
sensualidade de Jandira.

1107
Em A poesia em pânico (1936-1937), livro que adensa ainda mais a
experiência do poeta com o surrealismo, a representação da “Musa das
musas” pode ser vista no poema “Igreja mulher”, em que a relação entre
religião e a experiência erótica com a musa aparece de maneira efetiva.
Nesse sentido, a aproximação do eu lírico com o sagrado se dará através
do corpo, como manifestação de sua experiência religiosa, pela união
do espiritual com o carnal. De acordo com Davi Arrigucci Jr., Murilo
Mendes pratica um catolicismo singular – encarnado na vida cotidiana –,
que se caracteriza por conglomerar a “carnalidade erótica” à
espiritualidade, “formando uma estranha aliança entre religiosidade e
materialismo que desconcerta crédulos e ateus quando explode em sua
poesia, embora fizesse parte, sem qualquer arrepio, da doutrina de
Ismael, para quem não havia incompatibilidade alguma entre sexo e
espírito religioso.” (ARRIGUCCI JR., 2000, p.111).

A igreja toda em curvas avança para mim,


Enlaçando-me com ternura - mas quer me asfixiar.
Com um braço me indica o seio e o paraíso,
Com outro braço me convoca para o inferno.
Ela segura o Livro, ordena e fala:
Suas palavras são chicotadas para mim, rebelde.
Minha preguiça é maior que toda a caridade.
Ela ameaça me vomitar de sua boca,
Respira incenso pelas narinas.
Sete gládios sete pecados mortais traspassam seu coração.
Arranca do coração os sete gládios
E me envolve cantando a queixa que vem do eterno,
Auxiliada pela voz do órgão, dos sinos e pelo coro
[dos desconsolados.
Ela me insinua a história de algumas suas grandes filhas
Impuras antes de subirem para os altares.
Aponta-me a mãe de seu Criador, Musa das musas,
Acusando-me porque exaltei acima dela a mutável Berenice.
A igreja toda em curvas
Quer me incendiar com o fogo dos candelabros.
Não posso sair da igreja nem lutar com ela

1108
Que um dia me absolverá
Na sua ternura totalitária e cruel. (MENDES, 1994, p. 329)

Este poema concretiza, de maneira modelar, a junção do profano


com o sagrado na poesia de Murilo Mendes. A Igreja é comparada a
mulher que enlaça eroticamente o eu lírico, rompendo com a pureza da
casa de Cristo, como também a dispõe em posição inferior a musa
“Berenice”. O ambiente contemplativo e místico da Igreja é recoberto
por uma sensualidade ampla que possibilita cultuar tanto a Igreja quanto
a mulher, que se mostram acolhedoras. Dessa maneira o poema revela
a posição dicotômica ocupada pela mulher em sua poesia: entre o
sagrado e o profano, como bem observa Fábio Lucas:

Mário de Andrade já assinalara, com certa surpresa, o estranho


conúbio que se realiza, na poesia de Murilo Mendes, entre Igreja
e Bordel. É que amor carnal e erótico exerce poderosa atração
sobre o poeta, que se reparte na obsessiva contemplação da
morte, enriquecendo-a com a perspectiva religiosa, e na fé
profunda nos desígnios da Providência. Daí, o choque, bastante
visível, do tema do amor, “sutilmente sensual, quase perverso”
(Ruggero Jacobbi), com o “radicalismo evangélico” (Luciana
Stegagno Picchio), as quedas e levantes entre tempestade
eróticas e religiosas (LUCAS, 2001, p.29).

A força erótica se mostra presente no indivíduo de maneira natural,


contrapondo-se aos mandamentos da Igreja, objetados ao desejo de
prazer do homem hodierno, que de alguma forma, se confronta com a
espiritualidade e o erotismo. Essa situação é visível ao longo de todo A
poesia em pânico, livro em que podemos notar a dualidade do eu lírico
que em um momento cultua a Igreja, atribuindo-lhe atributos femininos e,
em outro momento, cultua a mulher em seus aspectos corporal e sensual.
O que revela um dilema profundo da poesia muriliana: a agonia de estar
no mundo presente e o desejo de transcendência. Dessa maneira, o eu

1109
lírico é um ser mutilado, como é mimetizado em seu poema, elaborado
por meio da justaposição de imagens díspares, recriando um mundo de
maneira a poder sobreviver.

Para Murilo Mendes a proximidade entre a religião e o erotismo se


dá no sentido de que ambos se fundam na experiência interior do
indivíduo. Segundo o poeta, é “Impossível separar o sexual do espiritual.
Mesmo o canto religioso provém de zonas subterrâneas.” (MENDES, 1995,
p.1282). Dessa maneira, a poesia muriliana promoverá a mistura dessas
duas forças, o erotismo e a espiritualidade, conectadas pelo feminino,
ligada a impulsos vitais, em busca da integridade do ser. A própria Igreja,
quando denominada de a “Esposa de Cristo”, “sacraliza um erotismo e
mitifica o amor. Murilo Mendes consegue verbalizar essa Desordem em
que o homem e o poeta, apesar de mudanças e dilaceramentos’,
encontram a sua Unidade.” (ARAÚJO, 2000, p.145)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que notamos na lírica muriliana é a estreita relação do texto


literário associado à dimensão mítica, no sentido de que, numa de suas
fortes marcas, o poema busca uma espécie de “memória profunda” da
cultura, trazendo para o presente um passado mítico exemplar. De
acordo com essa perspectiva, é pela poesia que o poeta deseja superar
a espaço-temporalidade do mundo, o próprio ritmo do poema é
entregue à inspiração, livre de quaisquer amarras e por suas imagens
complexas e inusitadas. Para isso, o poeta buscará o auxílio das musas e
da graça divina para construir seu poema. É pela ação das musas que o
poeta consegue superar os limites determinados pela espaço-

1110
temporalidade ordinária e material e ir além do mundo sensível. A musa
também está associada aos atos ligados à criação: inventar, medir,
refletir, cuidar. É através da memória, que a unidade é revelada. Nela,
presente, passado e futuro se fundem. No momento em que o poeta é
possuído pelas musas, ele absorve o conhecimento de Mnemosine, dessa
maneira, ele obtém todo conhecimento expresso pelas genealogias,
atingindo o ser em toda a sua profundidade. É a descoberta da origem,
do movimento primordial: a gênese dos deuses, o nascimento da
humanidade, o surgimento do cosmos. Esse poder ontofânico é
evidenciado na experiência poética muriliana quando o poeta funda
uma realidade própria, um mundo próprio.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Fábio de Souza. Jorge de Lima e Murilo Mendes: confluências


e divergências. In: O engenheiro noturno: a lírica final de Jorge de Lima.
São Paulo, Edusp, 1997.

ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes: ensaio crítico, antologia,


correspondência. São Paulo: Perspectiva, 2000.

ARRIGUCCI JR., Davi. Arquitetura da memória. In: O cacto e as ruínas: a


poesia entre outras artes. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

LUCAS, Fábio. Murilo Mendes: poeta e prosador. São Paulo: EDUC, 2001.

MENDES, Murilo. Poesia Completa e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,


1994.

NÓBREGA, Maria Marta dos S. S. Os impulsos de Eros na poética de Murilo


Mendes. Graphos. Revista da Pós-Graduação em Letras - UFPB João
Pessoa, Vol 7., N. 2/1, 2005 – p. 123-134. Disponível em :

1111
https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/graphos/article/download/945
3/5106/. Acesso em: 05-03-2021.

PAES, José Paulo. O Poeta/Profeta da bagunça transcendente. In: Os


perigos da poesia e outros ensaios. Rio de Janeiro, Topbooks, 1997.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de


psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

1112
O USO DE ELEMENTOS DE TEXTUALIDADE NA PRODUÇÃO
ESCRITA DE ALUNOS DO PROJETO DE EXTENSÃO “LETRAMENTOS
ACADÊMICOS”

Mara Silva dos Santos175

Romário Duarte Sanches176

RESUMO: As práticas de letramentos habilitam o sujeito a utilizar a escrita e a leitura nos


mais diversos contextos comunicativos. No campo universitário também é comum
construirmos e reconstruirmos sentidos continuamente, porém, o desenvolvimento de
saberes no âmbito acadêmico é mais difícil e requer de nós a propriedade de um
conhecimento mais organizado e científico. Deste modo, este trabalho busca identificar
os problemas de textualidade em textos produzidos pelos participantes do projeto de
extensão “Letramentos Acadêmicos”, da Universidade do Estado do Amapá. Como
aparato teórico, temos as discussões de Fávero (2003), Koch (2004), Marcuschi (2008) e
Koch e Travaglia (2015). A metodologia utilizada para pesquisa é de caráter qualitativa,
permitindo compreender a complexidade e os detalhes das informações obtidas
através de dados coletados. Como resultado, identificamos que os alunos tiveram seus
conhecimentos aprimorados por meio das práticas de letramentos acadêmicos
propostas pelo projeto de extensão. Durante o processo de produção escrita, foi
possível constatar a falta de conhecimento e domínio das normas técnicas que
envolvem a elaboração da resenha crítica. Em relação os elementos textuais presentes
nos textos analisados, identificamos que muitos elementos coesivos foram usados
inadequadamente. Essa situação pode se configurar com uma consequência da falta
de prática de escrita e leitura nas séries anteriores.

Palavras-chave: Letramento, Produção escrita, Textualidade.

175Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras/Espanhol da Universidade do Estado


do Amapá - UEAP. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UEAP -
PIBEX. E-mail: mara95silva@gmail.com.
176Professor do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amapá - UEAP. Doutor e

mestre em Linguística pela Universidade Federal do Pará - UFPA. E-mail:


romario.sanches@ueap.edu.br

1113
INTRODUÇÃO

A prática de letramento é um fenômeno social que não se limita


ao espaço e às relações escolares, mas engloba múltiplos processos de
leitura e escrita independentemente do espaço escolar. O letramento
habilita o sujeito utilizar a escrita e a leitura nos mais diversos contextos,
fazendo-o construir sentidos contínuos a partir de suas atividades sociais.
Em outras palavras, o indivíduo letrado é capaz de se informar por meio
de interação social, como ler jornais, seguir receitas, criar discursos,
interpretar textos, entre outros, ou seja, o indivíduo letrado sabe usar a
leitura e a escrita de acordo com as demandas sociais.

No campo universitário também é comum construirmos e


reconstruirmos sentidos, porém, o desenvolvimento dessa prática é mais
complexo e requer de nós a propriedade de um conhecimento mais
organizado e científico. Para que isso ocorra, precisamos nos encaixar
nas práticas de letramentos acadêmicos. Os alunos passam por diversas
fases de construção e desconstrução do conhecimento. Isso quer dizer
que os processos de escrita, de leitura e de interpretação de textos
acadêmicos também estão envolvidos nessas fases.

Sabe-se que para fazer uma boa produção escrita, é necessário


saber: ortografia, acentuação, pontuação, concordância, regência,
como também ter conhecimento das normas técnicas, como as
sugeridas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT. Porém,
os alunos nem sempre estão preparados para enfrentar tais desafios. A
falta de conhecimento e de prática na área da metodologia científica
produz certa frustração nos discentes em sua “vida acadêmica” por não

1114
conseguir acompanhar as discussões em sala de aula ou por não produzir
um texto de qualidade, conforme sugerido pelos professores.

Outro componente responsável pela produção textual dos alunos


tem relação direta com os elementos de textualidade, pois eles “dão
uma ancoragem ao texto em uma situação comunicativa determinada.
Sem eles, não poderia haver qualquer coerência na produção linguística”
(KOCH; TRAVAGLIA, 2015, p.81).

As dificuldades citadas acima juntamente com os déficits de


leitura e escrita na educação básica têm revelado que grande parcela
dos alunos, ao ingressarem no nível superior, possui uma maior dificuldade
ao produzir textos acadêmicos. Diversos desses estudantes se sentem
incapazes de produzir tais textos, chegando a abandonar o curso no
processo de formação.

Em razão disso, este artigo é um desdobramento do projeto de


extensão intitulado “Letramentos Acadêmicos”, da Universidade do
Estado do Amapá, e tem por objetivo identificar os problemas de
textualidade em gêneros acadêmicos produzidos pelos participantes do
projeto supracitado. Assim, o artigo está estruturado da seguinte maneira:
(1) introdução, (2) referencial teórico, (3) metodologia, (4) resultados e
discussões, (5) considerações finais, (6) agradecimentos e (7) referências.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

Este trabalho está embasado nas discussões sobre a Linguística


Textual – LT, especificamente, no que concerne aos elementos de

1115
textualidade. Para isso, faremos uma breve abordagem histórica sobre a
área de estudo.

Conforme Koch (2004), foi a partir de 1980 que as Teorias do Texto


começam a ganhar espaço nas discussões acadêmicas. Com essa
expansão, vemos as grandes investigações e as novas tendências para
o estudo e ensino da materialidade textual tanto em língua materna
como também estrangeira. Assim, o texto passa a ser o foco de estudos
dessa área linguística.

Uma das perspectivas adotadas pela teoria do Texto é


abordagem interacional, isto é, o uso da língua na interação social e num
determinado contexto. Sob essa perspectiva, a LT busca entender os
fatores e critérios/elementos de textualidade contidos na manifestação
linguística.

Para produção de um texto compreensível é importante saber


utilizar os elementos de textualidade como recursos facilitadores para a
construção do sentido. Os fatores de textualização são estudados por
Fávero (2003), Koch (2004), Marcuschi (2008), Koch e Travaglia (2015) e
entre outros autores brasileiros.

Koch e Travaglia (2015), por exemplo, mencionam que os fatores


de textualização dão suporte ao texto em uma situação comunicativa
determinada. Sem eles, não poderia haver qualquer coerência na
produção linguística (KOCH; TRAVAGLIA, 2015, p. 81). Esses critérios
ajudam a estabelecer o texto e sua coerência.

Os fatores de textualização funcionam como contextualizadores


do evento comunicativo. Em geral são sete: coesão, coerência,
intertextualidade, intencionalidade, informatividade, situacionalidade e
aceitabilidade.

1116
A coesão é uma espécie de ligação coerente entre as partes de
um texto, produzida por uma escolha correta de operadores textuais.
Para Koch (2014), esse elemento funciona como um conector entre frases
e parágrafos e tem como função agir, juntamente com a coerência,
dando sentido amplo ao texto.

No que tange à coerência, está ligada ao sentido do texto, isto é,


quando há unidade de sentido entre as partes que o constituem. A base
da coerência está centrada na continuidade de sentidos entre os
conhecimentos ativados pelas expressões do texto, atrelada à ordem
das ideias e dos argumentos. É totalmente ligada à coesão. Sem
coerência, o texto torna-se impossível de ser entendido e não comunica.
“Portanto, para haver coerência é preciso que haja a possibilidade de
estabelecer no texto alguma forma de unidade ou relação entre seus
elementos” (KOCH, 2014, p. 22).

Já a intertextualidade permite uma ligação na qual os textos se


comunicam com outros textos. Uma interdependência de um texto para
com o outro. Para Marcuschi (2008, p.130), “pode-se dizer que a
intertextualidade é uma propriedade constitutiva de qualquer texto e o
conjunto das relações explícitas ou implícitas que um texto ou um grupo
de textos determinados mantém com outros textos”.

A intencionalidade refere-se ao modo como os emissores usam


textos para perseguir e realizar suas intenções, produzindo, para tanto,
textos adequados à obtenção dos efeitos desejados. De acordo com
Koch e Travaglia (2015), não existem textos neutros, pois há sempre uma
intenção por trás do dito. Nesse sentido, há uma argumentatividade, a
fim de persuadir, convencer e criar um mundo com as próprias crenças,
convicções etc.

1117
A situacionalidade, por sua vez, é a adequação da manifestação
linguística a uma situação comunicativa do texto e está relacionada ao
contexto, sempre se referindo ao fato de relacionar o evento textual à
situação comunicativa. Koch e Travaglia (2015) apontam que a situação
ajuda a direcionar o sentido do discurso, tanto em sua produção como
também em seu entendimento.

No que diz respeito à informatividade, este critério faz com que o


texto se torne coerente no desenvolvimento dos tópicos referentes ao
conteúdo. Temos, no entanto, que tomar bastante cuidado, pois o
conhecimento sobre os temas a serem abordados precisam ser
aprofundados. A rigor, a informatividade diz respeito ao grau de
expectativa ou falta de expectativa, de conhecimento ou
desconhecimento e mesmo incerteza do texto oferecido (MARCUSCHI,
2008, p.132).

Por último, a aceitabilidade está relacionada à intencionalidade


e diz respeito à atitude do receptor do texto. De acordo com Marcuschi
(2008, p.128), “a aceitabilidade, parece ligar-se às noções pragmáticas
e ter uma estreita interação com a intencionalidade”. Este elemento
constitui a contraparte da intencionalidade e é inerente ao receptor,
porque analisa o nível de coerência e coesão que o texto utiliza, sendo
capaz de levar o receptor a aceitar o texto produzido e,
consequentemente, ampliar os seus conhecimentos, visto que um texto
é construído com uma finalidade que deve ser percebida pelo leitor.

1118
2 METODOLOGIA

A metodologia utilizada nesta pesquisa é de abordagem


qualitativa, pois esta busca interpretar e não quantificar dados,
pressupondo uma análise e interpretação de aspectos mais profundos.
De acordo com Lakatos e Marconi (2005), a pesquisa qualitativa “[...]
fornece análise mais detalhada sobre investigações, hábitos, atitudes e
tendências de comportamentos”.

Nesta perspectiva, analisamos os textos produzidos pelos alunos


participantes do projeto de extensão “Letramentos Acadêmicos”,
realizado de forma on-line, aprovado e ofertado pela Pró-reitoria de
Extensão da Universidade do Estado do Amapá, no ano de 2020, e
coordenado pelo Prof. Romário Duarte Sanches, juntamente com a
cooperação de três bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de
Extensão da Universidade do Estado do Amapá, todas acadêmicas do
curso de Letras.

O público-alvo do projeto constituiu em estudantes ingressantes do


primeiro semestre do nível superior que ainda não haviam cursado
disciplinas como metodologia científica e português instrumental. O
projeto foi desenvolvido com o objetivo de promover oficinas de prática
de escrita, de leitura e de interpretação de textos acadêmicos,
buscando introduzir os participantes no contexto de letramentos
acadêmicos como uma maneira de contribuir com sua formação
acadêmica e profissional.

Ao todo, foram selecionados 21 estudantes de graduação,


discentes de instituições públicas e privadas do estado do Amapá. As

1119
atividades desenvolvidas no projeto foram realizadas através de oficinas
organizadas da seguinte forma:

Quadro 1: Oficinas ofertadas

Oficina 1: Currículo Lattes: o que é e como criar;

Oficina 2: Saber fazer pesquisa: da escola à universidade;

Oficina 3: Introdução aos processos de letramento;

Oficina 4: Leitura, compreensão e produção de textos;

Oficina 5: Elementos de textualidade;

Oficina 6: Elaboração de fichamento e resumo


acadêmico;

Oficina 7: Elaboração de resenha acadêmica;

Oficina 8: Elaboração de seminário acadêmico;

Oficina 9: Elaboração de artigo científico;

Oficina 10: Elaboração de projeto de pesquisa.

Fonte: Elaborado pelos autores.

As oficinas ocorreram do mês junho até o mês de outubro de 2020,


acontecendo duas vezes por semana, tendo duração de duas
horas/aulas de execução, nas quais eram realizadas leituras, produção
de textos acadêmicos (resenhas, resumos, fichamentos etc.) e discussões
sobre temas variados.

1120
No decorrer das oficinas foram aplicados aos participantes
questionários que foram preenchidos através do google formulário, um
desses questionários teve o intuito de fazer um levantamento
socioeconômico dos estudantes, tendo em vista que uma boa produção
escrita não requer do estudante só saber escrever e interpretar textos,
mas é necessário ele tenha um espaço e condições apropriadas para
que isso ocorra.

Os dados obtidos através deste levantamento, segundo Sanches


(2021), mostram que 76,2% dos que responderam esse questionário foram
alunos de escola pública, 40% moram em residência alugada e 20% em
residência cedida, 60% dos alunos informaram que apenas uma pessoa
da família está empregada, 50% disseram que a renda familiar vai de 1 a
5 salários mínimos. No que diz respeito ao nível de escolaridade do
responsável da família, os dados mostraram que 20% possuem o Ensino
Fundamental incompleto, 20% o Ensino Médio completo e 20% o Ensino
Superior incompleto.

Diante disso, é relevante considerar que nem sempre o estudante


tem uma boa estrutura e aparato dentro de suas famílias para ter uma
boa escrita acadêmica, e que essa dificuldade precisa ser suprida dentro
das instituições de nível superior para que estes tenham um bom
desenvolvimento ao longo de suas carreiras acadêmico-profissionais.

No mês de agosto de 2020, foi ministrada a oficina 6 do projeto,


intitulada “Elementos de textualidade”, em que foi apresentado os
elementos necessários para se fazer um bom texto, com intuito de
habituar os alunos com essa perspectiva acerca da escrita acadêmica,
a partir de então, foram designados aos participantes atividades práticas
como realização de fichamentos, resumo, resenha, dentre outros.

1121
No mês de setembro do mesmo ano foi solicitado que fizessem
uma resenha crítica do texto-base "Celebração a Santiago numa
comunidade negra da Amazônia" de Marilucia Barros de Oliveira.

Assim, para que pudéssemos identificar os elementos de


textualidade nas produções escritas dos alunos, escolhemos o gênero
resenha como texto principal para análise, dentre outros gêneros
produzidos por eles e que serviram de material de apoio. Após a escolha
do gênero acadêmico, foi observado se os alunos compreenderam o
texto-base que serviu de apoio para produção escrita, e se as suas
escritas estavam em concordância com as normas da ABNT, além de
observar se eles fizeram uso adequado dos elementos de textualidade
em suas produções escritas, neste caso cita-se o gênero resenha.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A partir do que foi apontado nas seções 2 e 3, apresenta-se nesta


seção a análise de dados a partir do gênero acadêmico resenha crítica,
selecionado para a pesquisa. Cada autor da resenha será denominado
de colaborador 1, 2, 3 e sucessivamente. Apresentamos em nossa análise
trechos dos textos produzidos por eles como forma de sustentar a análise
correspondente ao uso dos elementos de textualidade.

No que diz respeito ao aspecto geral da produção textual,


observamos que o colaborador 1 apresentou palavras de forma objetiva
e clara, tornando o texto de fácil compreensão. A intencionalidade do
autor aparece de modo explícito, pois o colaborador 1 teve a
preocupação de descrever de forma precisa o processo histórico do

1122
tema exposto, permitindo que a ideia central do texto ficasse
visivelmente claro para o leitor, acarretando também uma boa
aceitabilidade de seu texto. No entanto, segue alguns exemplos em que
houve equívocos na escrita do colaborador.

(...) A autora expõe um contexto histórico sobre a cidade de


Mazagão, desde sua origem até os dias atuais e sua cultura, em
que compõe uma grande celebração a divindade em que
acredita-se ser o padroeiro protetor da população. (...) (TRECHO
1, COLABORADOR 1).

Como podemos observar no trecho 1, a palavra “acredita-se” está


escrita de forma inadequada, pois diante de pronomes relativos usa-se a
próclise, ou seja, segundo a norma padrão da língua portuguesa, a forma
adequada para escrever seria “se acredita”. Também no trecho 1 é
notório a repetição das palavras “em que” no mesmo parágrafo, além
desse conectivo outras repetições de palavras foram encontradas,
mostrando o limitado acervo vocabular do autor.

Outros pontos observados que não estão presentes no exemplo


acima, foi a falta de acentuação e a escrita de nome próprio com a
inicial minúscula. Logo, podemos considerar que coesão pode ter ficado
comprometida na produção do colaborador 1, pois a coesão dá a
organização formal para o texto, ou seja, o uso repetitivo de palavras,
falta de acentuação, o emprego inadequado de colocação pronominal
e de conectivos deixa o texto desarmonioso, em outras palavras, fica
desorganizado.

Em relação ao texto produzido pelo colaborador 2, há nitidez em


suas palavras, possibilitando um entendimento acessível do texto. A
intencionalidade do autor é visível, pois o colaborador 2 usa exemplos

1123
em sua produção para convencer o leitor de seu ponto de vista e de seus
argumentos a respeito do tema abordado. Observa-se que a
informatividade está fortemente presente em sua produção, pois há
informações importantes veiculadas no texto que levam o leitor a uma
compreensão necessária do contexto histórico e cultural do tema. É
necessário evidenciar que a produção do colaborador 2 apresenta o uso
adequado dos elementos de textualidade, pois seu texto está bem
desenvolvido, trazendo ideias de forma linear, fazendo com que o leitor
compreenda a ideia central, gerando, assim, coesão e coerência de sua
produção.

No que diz respeito à intertextualidade, o colaborador 2 trouxe


referências do texto, fazendo ligações entre o texto original e sua
produção. Os equívocos encontrados na produção do colaborador 2
não fazem referência a problemas de textualidade mas a normas
técnicas exigidas pela ABNT e erros de concordância.

(...) Além de ser organizado didaticamente com imagens, tabelas


explicativa e panorama histórico o mesmo vem a ser de suma
importância para a sociedade amapaense, pois é um meio de
conhecimento da história local. (...) (TRECHO 2, COLABORADOR
2).

No que diz respeito às normas técnicas que são exigidas para a


produção de uma resenha crítica, houve algumas falhas, por exemplo,
uma parte do texto estava alinhada à margem esquerda e outra parte
estava distribuída uniformemente entre as margens. Outro equívoco
detectado foi o espaçamento, de acordo com as normas da Associação
Brasileira de Normas Técnicas - ABNT, o espaçamento é de 1,5, porém, o
espaçamento que o colaborador pôs foi de 1,15. Observando o trecho

1124
2, podemos identificar a falta de pontuação, fato este que também é
encontrado em outras partes do texto. Seguindo a observação, nota-se
que a forma como as duas palavras foram escritas está inadequada, pois
estão escritas “tabelas explicativa”, acarretando, assim, problema de
concordância nominal, em que a norma padrão da língua sugere o uso
das duas palavras no plural.

Examinado o material do colaborador 3, foi percebido que em


sua produção há a presença da intencionalidade e aceitabilidade,
permitindo que as intenções comunicativas do texto fiquem claras para
o leitor. Outro ponto observado foi que o colaborador atendeu às normas
exigidas pela ABNT, apresentando seu trabalho com o formato correto
de uma resenha crítica. Porém, a seguir será exposto um trecho retirado
de sua produção, que mostrará alguns usos inadequados quanto à
coesão.

(...) No primeiro subcapítulo ela começa nos contando a história


de Mazagão, dizendo como uma cidade de Marrocos veio parar
até o outro lado do atlântico, chegando ao Cabo Norte, hoje
chamado de Amapá e como se desenvolveu, se dividiu e
criaram-se Mazagão Novo e Mazagão Velho (...) (TRECHO 3,
COLABORADOR 3).

Neste trecho, as ideias do colaborador 3 não ficam claras


devido aos desvios gramaticais contidos, estão sendo repetidos os
pronomes “se” e “e”, estes estão empregados de forma inadequada,
ocasionando assim uma desorganização no texto. Portanto, existe uma
pequena falta de coesão nas frases, deixando o texto incoerente.

O colaborador 4 apresentou um conteúdo composto por


palavras de fácil compreensão, trazendo uma linguagem coerente para

1125
quem o ler. Também foi observado que o colaborador tem um domínio
no que se diz respeito às normas exigidas pela ABNT. No entanto, no que
se refere à coesão textual, apresentou bastante dificuldade na
organização de suas ideias, tornando vários trechos de sua produção
incoerentes. A seguir, temos dois trechos em que foram encontrados
esses equívocos.

(...) Nos quatro primeiros tópicos do artigo, “Mazagão Velho nos


dias de hoje”, “Festa de Santiago: o percurso”, “A entrega dos
presentes” e “A passagem do bobo velho”, nos dois primeiros
tópicos a autora pondera como a celebração de São Tiago
chegou em Mazagão Velho, e como a celebração é feita nos
dias de hoje no município (...) (TRECHO 4, COLABORADOR 4).

Este trecho é de um parágrafo completo retirado da produção do


colaborador, é possível notar que o mesmo não conseguiu desenvolver
as ideias da primeira sentença “nos quatro primeiros tópicos...” e inseriu
logo em seguida uma nova sentença “nos dois primeiros tópicos”.

(...) No tópico final, “Chegando ao fim do caminho?”, onde


Marilucia encerra seu artigo comparando episódios da Grécia
antiga, na celebração “A entrega dos presentes”, como a “A
última batalha”, relacionando a um episódio bíblico como na
batalha de Josué em Jericó. Ela também dá ênfase na
quantidade de pessoas que frequentam a festividade em
Mazagão velho. e que é uma celebração reconhecida no Brasil
e até fora do país. (...) (TRECHO 5, COLABORADOR 4).

No trecho 5, notamos uma possível intertextualidade, em que o


colaborador 4 faz uma mescla de textos e contextos, entretanto,
também não soube organizar suas ideias, deixando o seu texto
incoerente. A falta de usos de conectivos para desencadear as ideias fez
com que o trecho ficasse um pouco sem nexo de um contexto para o

1126
outro, havendo, assim, a falta de coesão e coerência, uma vez que
houve uma ligação coerente entre as partes do texto.

O colaborador 5 mostrou em sua produção a falta de domínio


quanto aos elementos de textualidade, pois ele não conseguiu expandir
de forma coesa suas ideias, tornando uma leitura de difícil compreensão.
O colaborador tentou fazer a ligação entre o texto original e sua
produção, mas a intencionalidade não teve êxito, pois faltou mencionar
alguns aspectos relevantes como, por exemplo, o processo histórico do
qual trata o texto, para contextualizar e dar sentido a sua escrita, ou seja,
o colaborador não conseguiu prosseguir e realizar suas intensões.

(...) No oitavo subcapítulo “O sequestro das crianças cristãs” já no


comando de Caldeirinha (Rei dos Mouros) com uma atitude
desesperada ele manda sequestra as crianças do povo rival, para
vendê-las com intuito de arrecadar dinheiro para converter
Cristões indecisos e adquirir armas para uma batalha próxima (...)
(TRECHO 6, COLABORADOR 5).

Como podemos notar no trecho 6, o colaborador 5 não


desenvolveu a sentença “No oitavo subcapitulo...”, partindo logo para
outra sentença: “já no comando de Calderinha...”, gerando uma
desorganização em sua produção, logo, encontramos um problema de
coesão e coerência, pois não houve uma organização sequencial das
ideias no texto e nem o uso adequado dos conectivos, o que dificultou o
encadeamento harmonioso das frases. Há também problema de
coerência, pois o trecho não apresenta um início, meio e fim, deixando
seu conteúdo vago.

Como resultado, é perceptível a falta de conhecimento e de


prática na área da metodologia científica nos textos de alguns

1127
estudantes. A maioria dos textos analisados possui os elementos de
textualidade, principalmente a intencionalidade. Todavia, a maior
dificuldade encontrada foi em relação à coesão textual, pois foram
encontrados muitos conectivos e palavras usadas inadequadamente, o
que pode ser uma consequência da falta de prática de escrita e leitura
nas séries anteriores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou apresentar questões em torno das


dificuldades encontradas pelos alunos recém-chegados no nível superior
em relação à produção textual escrita. O projeto de extensão
“Letramentos Acadêmicos” buscou inserir os participantes nesse
contexto, oferecendo a eles conhecimento científico para que em suas
futuras produções textuais possam desenvolver trabalhos acadêmicos de
qualidade.

No decorrer das oficinas, foi possível observar que os alunos


tiveram seus conhecimentos aprimorados através das práticas de
letramentos acadêmicos propostas pelo projeto, compreendendo e
colocando em prática o que aprenderam como a aplicação das normas
da ABNT, do uso adequado de elementos de textualidade, das regras
gramaticais e ortográficas etc. Espera-se que o presente trabalho venha
contribuir futuramente para novas pesquisas no campo dos letramentos
acadêmicos.

1128
AGRADECIMENTOS

A Deus, por cuidar de mim nos pequenos detalhes e me dar um propósito


eterno, que inclui o ato de ensinar outras pessoas.

Ao professor Romário, pelo ensinamento, pela disponibilidade, pela


competência e paciência ao orientar este trabalho.

À minha mãe (in memoriam), eternizada em meu coração, que


despertou em mim o amor pelo ensino.

À minha tia do coração e mentora, Odete Dias, pelo carinho e apoio nos
momentos de angústia.

A meus irmãos, pela proteção e cuidado para eu ter as melhores


oportunidades de aprendizado.

A meus amigos, por compreenderem os momentos de ausência.

Aos participantes do projeto de extensão Letramentos Acadêmicos, pelo


envolvimento, entusiasmo e contribuição.

REFERÊNCIAS

FÁVERO, L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 2003.

FÁVERO, L.; KOCH, I. Linguística textual: introdução. 5. ed. São Paulo:


Cortez, 2000.

KOCH, I. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

LAKATOS, E; MARCONI, M. Fundamentos da metodologia cientifica 6. ed.


São Paulo: Atlas, 2005

1129
KOCH, I. O texto e a construção dos sentidos. 10. ed. São Paulo: Contexto,
2014.

KOCH, I.; TRAVAGLIA, L. A coerência textual. 18. ed. São Paulo: Contexto,
2015.

MARCUSCHI, L. Linguística textual: o que é e como se faz. São Paulo:


Parábola Editorial, 2012.

MARCUSCHI, L. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3.


ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SANCHES, R. Letramento acadêmico: o perfil de alunos leitores recém-


ingressos no Ensino Superior. In: OLIVEIRA, M. A.; SANCHES, R. Práticas de
ensino de línguas e suas literaturas na Amazônia. Curitiba – PR: CRV, 2021.
p. 133-151.

1130
O RACISMO E O LUCRO NO DISCURSO MIDIÁTICO: UMA
INVESTIGAÇÃO SOBRE O ENUNCIADO “ARBEIT MACHT FREI” EM
CAMISAS DE LOJAS VIRTUAIS

Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues 177

RESUMO: Esta pesquisa tem como objeto discursivo três anúncios de lojas virtuais que,
obedecendo a uma lógica antissemita e mercantil de oferta/demanda, comercializam
camisas com o enunciado Arbeit Macht Frei (O trabalho liberta) e suas variações. Tendo
essas palavras como escopo, o objetivo geral é analisar o horizonte ideológico
manifesto nas camisas dos anúncios, observando-se reflexos e refrações de sentidos em
cruzamento com vozes sociais que também (per)correm esses produtos. A partir daí,
através do contrato de comunicação firmado na situação de troca das instâncias
produtora e receptora, busca-se, especificamente, 1) verificar os dados externos no que
compete a condições de identidade, finalidade, propósito e dispositivo; e 2) examinar
os dados internos no que tange à locução, à relação e à tematização. A justificativa da
presente pesquisa se consagra no compromisso com o combate de manifestações
racistas, discriminatórias e intolerantes, inspirando-se nos valores dos direitos humanos
da Declaração de Durban (2001). A metodologia se fundamenta na interlocução
teórica entre os postulados de Bakhtin (2018), Medviédev (2016), Volóchinov (2018) e
Charaudeau (2010), havendo como procedimento metodológico, com efeito, a
seleção de três anúncios provenientes das lojas Koszulkolandia, Teesbuys e Ebay. Os
resultados permitem concluir que os três enunciados-anúncios estruturam um discurso
midiático que, imbricando instâncias de produção e recepção, reflete e refrata
semanticamente posicionamentos antissemitas. Nesse horizonte ideológico, o
enunciado Arbeit Macht Frei põe em diálogo vozes (neo)nazistas que, em um coro de
condenação e hostilidade, acentuam ecos da política segregacionista dos campos de
concentração poloneses.

Palavras-chave: Arbeit Macht Frei, Camisas de lojas virtuais, Discurso das mídias,
Contrato de comunicação, Horizonte ideológico.

177Mestrando em Estudos da Linguagem, pela linha de pesquisa Língua(gem), Discurso


e Ensino, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG, PPGLetras, CAPES, rodmaf2@gmail.com.

1131
INTRODUÇÃO

Esta pesquisa, realizada para o III Encontro Regional de Linguística


e Ensino de Língua Portuguesa (III – ERELIP), tem como objeto discursivo
três anúncios coletados de sites de lojas virtuais no ano de 2021. Nesse
contexto, o contrato comunicacional é, nesse sentido, pautado por uma
lógica antissemita e mercantil em que se comercializam camisas com o
enunciado Arbeit Macht Frei e suas variações I want to believe Arbait
Macht Frei (Eu quero acreditar, O trabalho liberta), Arbeit Macht Frei von
der Freizeit (O trabalho liberta do tempo livre). Ademais, é pela relação
entre instâncias produtora (loja) e receptora (consumidor) que, assim,
celebra-se o contrato de comunicação.

Tendo essas palavras como escopo, o objetivo geral é analisar o


horizonte ideológico manifesto nas camisas dos anúncios, observando-se
reflexos e refrações de sentidos em cruzamento com vozes sociais
expressas. A partir daí, através do contrato de comunicação firmado na
situação de troca das instâncias produtora e receptora, busca-se,
especificamente, 1) verificar os dados externos no que compete a
condições de identidade, finalidade, propósito e dispositivo; e 2)
examinar os dados internos no que tange à locução, à relação e à
tematização.

A presente pesquisa se consagra em duas dimensões. A primeira é


a social na medida em que se compromete com o combate de
manifestações racistas, discriminatórias e intolerantes, inspirando-se nos
valores dos direitos humanos da Declaração de Durban (2001). Mais do
que isso, traz à baila reflexões sobre a esfera midiática que veicula um
discurso antissemita desterritorializado, quer dizer, um discurso contra a
comunidade judaica disponível para qualquer ponto geográfico do

1132
planeta. A segunda é a teórica ao passo que tenta preencher uma
lacuna bibliográfica em nichos brasileiros de pesquisa a respeito do
enunciado circunscrito no arco de ferro da entrada de campos de
concentração, o trabalho liberta.

A metodologia se fundamenta na interlocução teórica entre os


postulados de Bakhtin (2018), Medviédev (2016) e Volóchinov (2018), por
vezes nomeados como Círculo de Bakhtin-Medviédev-Volóchinov, dado
que o objeto discursivo desta pesquisa enuncia e demanda o horizonte
conceitual dos pensadores russos, tal como horizonte ideológico,
enunciado/enunciação, relações dialógicas, vozes sociais e signo
ideológico. Mas não para por aí, pois as contribuições de Charaudeau
(2010) são cruciais tendo em conta o conceito de contrato
comunicacional estabelecido entre instâncias de produção e recepção.
Espera-se, com essas visadas, iluminar o objeto de maneira crítica e
reflexiva.

Com efeito, os procedimentos metodológicos a serem


empregados constituem uma abordagem dialógica do discurso. Nessa
linha, o objeto discursivo é concebido não como uma “coisa”, mas como
o discurso de sujeitos cronotopicamente situados. Trata-se, no processo
de análise e interpretação, de um confronto que dialeticamente põe em
diálogo a voz do pesquisador e a do objeto/discurso/sujeito, fazendo
com que, expressivamente, ela possa ressoar valores ideológicos. É a
partir dessa perspectiva que se avaliam os três enunciados coletados das
lojas Koszulkolandia, Teesbuys e Ebay.

Por fim, é importante dedicar algumas palavras para (d)escrever


estilística, composicional e tematicamente as próximas seções. Além de
introdução e considerações finais, tem-se a metodologia que explanará

1133
os caminhos metodológicos e a abordagem adotada nesta pesquisa. Em
seguida, parte-se para o referencial teórico no qual se expõe as principais
discussões teóricas, construindo a linha de raciocínio deste artigo. Após,
chega-se finalmente aos resultados sistematizando-se a análise dos três
anúncios antissemitas.

1 METODOLOGIA

Tal como se enunciou anteriormente, o objeto das Ciências


Humanas é, na verdade, esse ser expressivo e falante, já que se está
perante um sujeito cronotopicamente localizado, sendo (i)limitado em
seu sentido e significado. Por esse motivo, a relação semântica (relações
dialógicas) entre os enunciados é entre sujeitos e não entre “coisas” das
pesquisas positivistas (BAKHTIN, 2018). Evitando-se uma coisificação do
objeto numa pesquisa dialógica, o repetível e o acabado (relações
lógico-objetivas) dentro do enunciado se vinculam ao irrepetível e ao
inacabado a serem descobertos no processo de análise e interpretação
discursiva (BAKHTIN, 2018).

A bem escrever, ressalta-se que a pesquisa dialógica só se realiza


no encontro entre duas consciências (eu / outro), balizando-se entre
essas duas um movimento de exotopia. É importante reconhecer que o
objeto está inserido em um contexto dialógico, deixando-se fluir as
contradições e os confrontos em um “aprofundamento do sentido com
o auxílio de outros sentidos” (BAKHTIN, 2018, p. 399). A pesquisa dialógica
é, assim, heterocientífica tendo a avaliação como momento
indispensável do conhecimento dialógico. Nas palavras de Bakhtin (2018,
p. 401), tais são as etapas do movimento dialógico de análise e
interpretação: “o ponto de partida – um dado texto, o movimento

1134
retrospectivo – contextos do passado, movimento prospectivo –
antecipação (e início) do futuro contexto”.

Metodologicamente, usam-se três anúncios de camisas coletados


de lojas virtuais que, enquanto objeto discursivo, foram salvos a partir do
programa OBS Studio. Tal foi a decisão, porque, estando-se no meio
virtual, o objeto é extremamente volátil e, considerando esse fato, foi
necessário salvaguarda-lo. Registrado iconograficamente no
computador deste pesquisador, selecionaram-se os enunciados mais
relevantes a serem analisados nesta pesquisa com respaldo destes
critérios: temático; temporal; e qualitativo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

É certeiro Medviédev (2016) no momento em que aponta que o


sujeito está cercado por manifestações ideológicas, que, enquanto tais,
materializam-se “[...] na palavra, nas ações, nas roupas, nas maneiras, nas
organizações das pessoas e dos objetos, em uma palavra, em algum
material em forma de signo determinado” (MEDVIÉDEV, 2016, p. 48-49).
Mas, é fundamental sublinhar que esses fenômenos ideológicos estão
manifestas para os olhos, ouvidos e mãos na medida em que se situam
entre os sujeitos (MEDVIÉDEV, 2016). Ademais, esses mesmos fenômenos
ideológicos estão diversificados em “[...] tipos e categorias: palavras
realizadas nas mais diversas formas, pronunciadas, escritas; afirmações
científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de artes, e assim por
diante” (MEDVIÉDEV, 2016, p. 56).

Com efeito, tem razão Volóchinov (2018) ao teorizar que tudo o


que é ideológico é, também, semiótico. Sem um não pode haver o outro.

1135
Mas esse filósofo da linguagem vai mais além, pois (d)escreve que os
fenômenos ideológicos superam suas particularidades existenciais
refletindo e refratando realidades, visto que o signo, compreendido
metaforicamente como uma arena, é acompanhado por vários
horizontes ideológicos (VOLÓCHINOV, 2018). Isto é, o signo é,
dialeticamente, palco para embates de vozes sociais nas/pelas quais os
sentidos são multidirecionados. Basta observar, portanto, o signo gestual
romano imposto na Alemanha Nazista para saudar Adolf Hitler, não se
tratando tão somente de um levantar de mãos, mas, para os nazistas, a
fidelidade ao líder e, para os opositores ao regime, o autoritarismo.

O signo, com novo sentido a cada vez que enunciado, não pode
ser separado de sua base material no processo concreto de
comunicação discursiva. Nessa perspectiva, é correto afirmar que os
fenômenos ideológicos sígnicos transitam em distintos gêneros discursivos
de esferas de atuação humana (política, economia, literatura, linguística,
educação, midiática).

Sobre isso, a esfera midiática está inserida no espaço virtual o que


a faz circular diferentes vozes de várias nacionalidades, não se
restringindo a um espaço geográfico determinado. Logo, o anúncio é
essa conjunção entre esfera de atuação (midiática) e ato de linguagem,
voltando-se a lógicas contratuais, para a vida e para um público
(MEDVIÉDEV, 2016). Tendo que se atentar para um estilo, conteúdo
temático e composição estrutural desses produtos a serem vendidos.

Nessa direção, ao se pensar na transição do signo no discurso das


mídias, não se pode ignorar o contrato de comunicação celebrado
pelas instâncias de produção e recepção em dispositivos de encenação
(computador, celular, tablet, notebook). Para Charaudeau (2010),

1136
obedecendo a lógicas econômica e simbólica (e ideológica,
bakhtinianamente falando), esse contrato comunicacional consiste em
considerar restrições e circunstâncias sociológicas e discursivas. Em
relação aos dados externos, pode-se pensar na condição de identidade,
finalidade, propósito e dispositivo (CHARAUDEAU, 2010). No que compete
aos dados internos, pode-se refletir sobre a locução, relação e
tematização (CHARAUDEAU, 2010).

Na situação de troca, no que tange aos dados externos, a


identidade se articula a características de natureza social e psicológica
que indicam o status social, econômico e cultural daquele sujeito que
mobiliza a língua (CHARAUDEAU, 2010). Já a finalidade consiste em
relevar que todo ato de comunicação é pautado por um objetivo o que
encetam expectativas de sentido, repercutindo em quatro visadas: fazer-
fazer, fazer-saber, fazer-crer e fazer-sentir (CHARAUDEAU, 2010). O
propósito é justamente o domínio do saber que se envolve no ato de
comunicação, um macrotema (CHARAUDEAU, 2010). Mas, todo ato de
comunicação se desenvolve em condições materiais particulares
(dispositivo de encenação).

Mas, é preciso considerar aqueles aspectos propriamente


discursivos ou, como chama Charaudeau (2010), os comportamentos de
linguagem esperados quando os dados externos são percebidos,
reconhecidos na situação de troca (CHARAUDEAU, 2010). A locução é o
espaço no qual o sujeito falante impõe-se justificando o motivo pelo qual
tomou a palavra e identificando seu interlocutor ao qual ele se orienta
(CHARAUDEAU, 2010). A relação, ao construir-se como sujeito falante e
seu interlocutor, estabelece relações de força, aliança, exclusão,
inclusão, agressão (CHARAUDEAU, 2010). A tematização é o espaço em
que temas são introduzidos pelos participantes da troca ou então

1137
predefinidos pela situação de troca (CHARAUDEAU, 2010). Assim, o sujeito
falante posiciona-se em relação ao tema proposto pelo contrato
(aceitando, recusando), optando por modos de intervenção (retomada,
continuidade) e um modo de organização discursiva particular
(descritivo, narrativo, argumentativo) (CHARAUDEAU, 2010).

Em síntese, no contrato de comunicação, considerando-se essas


duas instâncias, os sentidos refletidos e refratados pelos signos se atrelam
a lógicas econômica, simbólica e ideológicas. Nesse caso, signos visuais
e verbais empregados para os anúncios se fundamentam numa relação
entre uma instância que produz/vende e outra instância que
recebe/consome. Mas, esse signo está envolto por horizontes ideológicos
tanto dos vendedores quanto dos compradores que representam
ideologicamente a realidade.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Segundo Mędykowski (2018), o signo “trabalho” pode significar o


provento da subsistência, o que é importante para a sociedade,
tratando-se de uma prática social. Agora, esse mesmo “signo” assume
novos significados quando transita para o contexto dos campos de
concentração nazista em tempos de holocausto. Nessa perspectiva,
tem-se o “trabalho forçado”, que, naquele tempo, divide-se em dois
momentos: trabalhar para ter o mínimo para sobreviver; e trabalhar para
se salvar da destruição iminente (MĘDYKOWSKI, 2018).

O primeiro momento começa com o estouro da Segunda Guerra


Mundial e termina com o início da Operação Reinhardt – o plano de se
exterminar todos os judeus (MĘDYKOWSKI, 2018). Nesse período, judeus já

1138
são mortos, deportados e explorados em guetos. O segundo momento
tem seu nascedouro com os primeiros passos do plano Reinhardt,
havendo a deportação em massa de judeus para campos de
concentração (MĘDYKOWSKI, 2018). Nesse tempo, os judeus eram
separados em duas filas: uma replete daqueles que poderiam trabalhar;
outra com aqueles que não o fariam/podiam, indo direito para as
câmaras de gás (EVANS, 2012; MĘDYKOWSKI, 2018).

A construção do primeiro campo de extermínio se deu em Bełżec,


cidade polonesa, no dia 1º de novembro de 1941, no lugar de um campo
de trabalho que lá estava (EVANS, 2012). Destaque-se que as câmaras
de gás eram feitas de madeiras e equipadas com canos, visto que,
através deles, a fumaça do escapamento de carros à gasolina passaria,
assassinando todas as vítimas (EVANS, 2012). Inicialmente, foram
massacrados pequenos grupos da comunidade judaica que foram
capturados, tal como aqueles trabalhadores, também judeus, que
auxiliaram na construção daquela câmara da morte (EVANS, 2012).

Em 17 de março de 1942, mais prisioneiros deportados chegaram


aquele lugar mortífero nazista e foram mortos com o gás. Pouco tempo
depois, mais precisamente em quatro semanas, 75 mil judeus haviam sido
mortos em Bełżec, sendo que 30 mil estavam em condição de
exploração em um gueto de Lublin (EVANS, 2012). Mas, os nazistas tinham
um discurso velado para tornar isso possível além de um estado opressivo
e autoritário: faziam parecer de que se tratava de um centro no qual eles,
os judeus, seriam desinfetados e receberiam roupas limpas (EVANS, 2012).
Para dar mais concretude a isso, as câmaras de gás tinham uma
aparência de chuveiros (EVANS, 2012). Uma ilusão!

1139
O segundo campo de extermínio foi construído perto de Sobibor,
onde inclusive havia um campo de trabalho forçado para mulheres
judias, dando continuidade aquele segundo momento descrito por
Mędykowski (2018). Nessa zona de morte, tal como em Bełżec, havia um
espaço de administração e, ainda, de recepção com um ramal
ferroviário. Naquele contexto, os membros da SS treinavam cachorros
para atacarem os judeus completamente nus, além, é evidente, de
serem surrados (EVANS, 2012). Até 1943, 250.000 judeus foram mortos
(EVANS, 2012).

Em Auschwitz, cidade polonesa, desde 1940 havia um campo


erigido para receber prisioneiros políticos. Com isso, os “lotes” de pessoas
chegavam, permaneciam por determinado tempo e eram redistribuídos
para outros campos. Bem na entrada, Rudolf Höss mandou construir um
arco de ferro com o enunciado Arbeit Macht Frei, já presente no campo
de Dachau. Para Evans (2012), Auschwitz transformou-se no maior centro
de chacina sob o comando nazista durante a Operação Reinhardt,
maior que Bełżec, Sobibor e Treblinka.

Retornado àquela reflexão sobre as filas. Na esquerda, iam aquelas


pessoas com menos de 16 anos de idade, mães e seus filhos, debilitados,
enfermos e idosos direcionando-se diretamente para as câmaras de gás.
Na direita, aquelas pessoas que podiam trabalhar eram levadas para os
campos de trabalho, os quais, inclusive, recebiam uma tatuagem com
um núcleo classificatório. No total, a chacina nazista deixou
aproximadamente 6 milhões de vítimas (EVANS, 2012).

Comprometidos com o horizonte ideológico nazista, a invasão do


Capitólio nos Estados Unidos da América reuniu diferentes organizações
racial-supremacistas (RODRIGUES, SARATT, 2021). Naquele episódio de

1140
tentativa de golpe, viu-se um homem com uma camisa com o
enunciado Camp Auschwitz Work Brings Freedom (Campo de Auschwitz,
O trabalho traz liberdade). Durante a investigação da presente pesquisa,
verificou-se que existem lojas que vendem a mesma camisa usada pelo
(neo)nazista na invasão do Capitólio, baluarte Poder Legislativo Federal.

Neste artigo, o objeto discursivo são, na verdade, três enunciados


de lojas virtuais. Percebe-se que, entre as lojas virtuais e seu público-alvo,
existe um contrato comunicacional no meio digital que se respalda em
condições sociológicas e discursivas. Esse contrato só é possível em razão
de instituições privadas e públicas que materializam o racismo da
estrutura da sociedade. As camisetas a serem vendidas, atravessadas por
relações simbólicas, econômicas e ideológicas, refletem e refratam
semântico-axiologicamente horizontes de valores de nossa época – não
se tratando meramente de fios de tecido a serem usados seres
psicofisiológicos. Veja-se o primeiro enunciado:

Figura 1 – Camisa antissemita

Fonte: Koszulkolandia

A primeira camisa a ser analisada é da loja Koszulkolandia cujo


preço é 29,99 zł, moeda polonesa. Na descrição do produto, a loja
defende que “As nossas camisas são fabricadas na Alemanha, a

1141
qualidade é uma das mais elevadas do mercado”, já que o material é
“durável, muito bom”. As camisas “são feitas de algodão de alta
qualidade – sua composição é 100% algodão”, pois “Nossas camisetas
não tingem na lavagem. A impressão é feita de forma profissional, o que
garante excelente qualidade, longevidade e resistência ao desgaste”.
As camisas são oferecidas com as cores branco, preto, castanho, azul,
verde, vermelho, amarelo e laranja do tamanho pequeno ao grande.

Depois de apresentar seu produto ideológico, a loja se identifica


como a “loja de camisetas que foi criada para preencher o vazio criado
no mercado de roupas”. Assim, “Nossa loja oferece um monte de
camisetas engraçadas interessantes e outro sortimento, para o uso diário,
bem como para qualquer ocasião, seja um presente, despedida de
solteiro, festa de aniversário. Nossos designs originais atendem a todos os
gostos, mesmo os mais exigentes”. Seguindo esse objetivo de “preencher
o vazio criado no mercado de roupas”, a loja explica que a motivação
de criar essa camisa foi devido a um roubo do arco de ferro Arbeit Macht
Frei de Auschwitz.

Para seu projeto de enunciação, a loja mobiliza aspectos exteriores


apresentando-se como uma empresa empenhada em acabar com o
vazio do mercado de roupas com camisas engraçadas em seu site. Mas
não para por aí, porque existem aspectos interiores como o
estabelecimento de uma relação econômica, simbólica e ideológica
entre a loja e seus possíveis consumidores tendo como mote a camisa
“cômica”. Destarte, sse produto reflete e refrata sentidos de um horizonte
de valores antissemitas assentado pela Operação Reinhardt.

1142
Figura 2 – Camisa antissemita

Fonte: Teesbuys

Aqui, essa camisa é da loja Teesbuys e tem o preço de $13.23 – $


20.13, estando na promoção para facilitar a venda. A loja narra que é
“sua fonte número um de lindas roupas personalizadas. Nós nos
dedicamos a oferecer a você o que há de melhor em tops, camisetas,
moletons e moletons, com foco na simplicidade e beleza”, tendo sido
fundada em 2014 na Flórida, Estados Unidos. Nas descrições do produto,
descreve-se que “Usamos apenas camisetas de alta qualidade e
duráveis. Contanto que as instruções de lavagem adequadas sejam
seguidas, nossas tampas não irão rachar ou desbotar nas primeiras duas
lavagens, como acontece com algumas das outras”.

A camisa é oferecida em preto, branco e cinza nos tamanhos


pequeno e grande tanto para homens quanto para mulheres.
Diferentemente da loja anterior, esta preferiu vender uma camisa em que
não só havia o enunciado verbal Arbeit Macht Frei, mas também trouxe
um enunciado visual, o que, a saber, confere concretude à
representação ideológica de um campo de concentração. De maneira
a construir um contrato comunicacional, apresenta-se enunciativamente
como uma loja que usa “apenas camisetas de alta qualidade e
duráveis”, porque “não irão rachar ou desbotar nas primeiras duas

1143
lavagens, como acontece com algumas das outras”, distinguindo-se do
que já há no mercado de roupas. O que, através do contrato, instaura
um diálogo entre vozes consumidoras (neo)nazistas que possuem o
extermínio de judeus como vislumbre de seus valores.

Figura 3 – Camisa antissemita

Fonte: Ebay

Nesse caso, tem-se uma camisa da loja Ebay que custa € 13,00. A
loja assevera que usam “apenas produtos de qualidade”, possuindo
“excelente capacidade de carga e resistência à lavagem” com um
produto que é “ecologicamente inofensivo”. A camisa é oferecida nas
cores azul, preto e branco do tamanho pequeno ao maior. Percebe-se
assim que, na formulação do contrato comunicacional com a instância
receptora (público), a instância produtora (loja) introduz como temas a
qualidade do produto, a resistência à lavagem e o fato de ser
ecologicamente inofensivo.

Tal como anteriormente analisado, esse contrato reflete e refrata


sentidos de um produto ideológico que representa na/pela linguagem
não só um campo de concentração, mas um compromisso com os
valores assentados por aqueles nazistas à época de Adolf Hitler. Não se
trata, então, somente de fios de tecido fabricados para compor uma

1144
camisa, mas de um produto que tem uma potencialidade para ser usado
em manifestações (neo)nazistas neste tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Charaudeau (2010, p. 67), “A situação de comunicação é


como um palco, com suas restrições de espaço, de tempo, de relações,
de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui
o seu valor simbólico”. Mas, esse quadro se instaura entre os sujeitos
cointencionalmente, ou seja, eles levam em conta os dados (internos e
externos) da comunicação.

O discurso midiático é, assim, imbricado por instâncias produtora


(loja) e receptora (público) que refletem e refratam semanticamente
posicionamentos antissemitas. Nesse horizonte ideológico, o enunciado
Arbeit Macht Frei põe em diálogo vozes (neo)nazistas que, em um coro
de condenação e hostilidade, acentuam ecos da política
segregacionista dos campos de concentração poloneses.

Portanto, a veiculação midiática de um discurso antissemita


depende de uma relação contratual que se estabeleça entre as duas
instâncias. Mais do que isso, a esfera das mídias é especial: porque,
estando desterritorializada, está presente em vários espaços ao mesmo
tempo, podendo ter seus produtos consumidos por diversos sujeitos de
localizações geográficas distintas. É bem por isso que, neste artigo, pode-
se trabalhar com uma loja de origem estadunidense, a primeira,
polonesa, a segunda, e alemã, a terceira, o que talvez possa demostrar
um processo de pan(neo)nazificação da cultura, estética e das mídias.

1145
No término desta pesquisa, denunciou-se à Safernet as três lojas
virtuais devido aos seus produtores serem uma manifestação
(neo)nazista, que, inclusive, acentua a pan(neo)nazificação cultural,
estética e midiática já explanada.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 6ª


ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. 2ª ed. São Paulo: Contexto,


2010.

EVANS, Richard. O Terceiro Reich em guerra. Tradução: Lúcia Brito e


Solange Pinheiro. São Paulo: Planeta, 2012.

MEDVIÉDEV, Pável. O método formal nos estudos literários: introdução


crítica a uma poética sociológica. Tradução: Ekaterina Vólkova Américo
e Sheila Camargo Grillo. 1ª ed. São Paulo: Contexto, 2016.

MĘDYKOWSKI, Witold Wojciech. Macht Arbeit Frei? German Economic


Policy and Forced Labor of Jews in the General Government, 1939–1943.
Boston: Foundation Remembrance Responsibility Future, 2018.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas


fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem.
Tradução: Sheilla Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora
34, 2018.

1146
A DISCIPLINA DE LITERATURA MARANHENSE NA GRADUAÇÃO:
MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE ESTUDANTES NO ENSINO
REMOTO

Marcos Antônio Fernandes dos Santos 178

RESUMO: O ensino de literatura constitui uma das práticas indispensáveis aos docentes
licenciados em letras, responsáveis por estimular o exercício da leitura literária e por
mediar conhecimentos a respeito da produção literária universal, nacional e regional,
propiciando aos estudantes um conjunto de experiências e aprendizados a respeito da
arte literária. Nos cursos de graduação em letras, os profissionais em formação possuem
amplas possibilidades de conhecer e discutir sobre saberes relativos às suas futuras
práticas, e nas aulas de literatura, o espaço é também de reflexão sobre como essa
arte tem poder de sensibilizar e humanizar, sendo, portanto, essencial à formação
humana. Nesse sentido, as literaturas produzidas em regiões específicas do Brasil, como
é o caso da literatura maranhense, também são importantes instrumentos de
conhecimento histórico e cultural da região, portanto, também devem fazer parte do
currículo, no contexto da formação de professores de línguas. A presente pesquisa
objetivou relatar as experiências com a disciplina de literatura maranhense, no curso de
Letras da UEMA, através da perspectiva de discentes que a cursaram em 2020.2, de
forma remota, por conta da pandemia do novo coronavírus. Quanto à metodologia, o
artigo consistem num relato de experiência e tem procedimentos bibliográficos. O
instrumento de coleta dos dados expostos, foram memoriais produzidos pelos discentes,
os quais resultaram da última avaliação da disciplina. No contexto do ensino remoto,
mesmo as universidades e os cursos de graduação precisaram se reinventar, e, o que a
experiência durante um semestre de aulas de literatura em formato remoto revelou, foi
que o ensino-aprendizagem pode acontecer de forma satisfatória,
independentemente da distância geográfica, e isso depende principalmente da
aproximação dos discentes com o curso e com a disciplina em questão. Em relação ao
caso que esse trabalho investigou, o uso da tecnologia foi fundamental para que as
aulas acontecessem, e a motivação dos estudantes foi um aspecto bastante relevante
para o êxito da turma para com a disciplina de literatura maranhense.

Palavras-chave: Ensino de Literatura. Relato. Ensino Remoto.

Doutorando em Letras (Estudos Literários), pela Universidade Federal de Mato Grosso


178

do Sul - UFMS, Bolsista CNPQ/CAPES. marcossantos@professor.uema.br;

1147
INTRODUÇÃO

O ensino de literatura consiste numa atividade de construção e


reflexão acerca da importância da leitura de textos literários, os quais
além de prazer estético, são capazes de despertar para diversas
questões fundamentais à existência humana. A literatura pode ser fonte
de conhecimento histórico, objeto da percepção de lugares e tempos
diversos, conhecimento sobre o potencial da linguagem, e objeto de
questionamento e crítica sobre aspecto sociais que fazem parte da vida
humana. Assim, a leitura literária é indispensável ao homem e, ao mesmo
tempo, uma necessidade que precisa ser pensada e levada para os
muitos âmbitos da vida, especialmente através do trabalho de
instituições de ensino.

Partindo dessa perspectiva, o ensino de literatura está incluído nos


currículos escolares e é respaldado pelos documentos e normativas que
regem o ensino no país. Se por um lado o acesso à literatura é garantido,
por outro é preciso pensar como o seu ensino está acontecendo e se de
fato a abordagem do texto literário satisfaz as necessidades de formação
de leitores competentes, que reconhecem as características do literário
e as possibilidades de leitura que esse tipo de texto promove. Pensar e
ensinar literatura desvinculando-a da abordagem estética e artística, é
deturpar aquilo que a caracteriza, portanto, é preciso, tanto em sala de
aula, como fora dela, priorizar o próprio texto e as suas peculiaridades.

No universo tecnológico contemporâneo em que estamos


mergulhados, marcado por constantes e intensas transformações, tudo
acaba sendo influenciado pelo aspecto da pluralidade, da
mutabilidade. É de se imaginar, portanto, que a literatura está incluída
nesse meio e que, dessa forma, acaba sofrendo influências desse

1148
contexto de transformações, o qual exige novas experiências e reflexões
sobre a literatura, seja em relação aos textos ou ao ensino, que, cada vez
mais, vem sendo mediado e envolvido pelas tecnologias. A literatura
digital, por exemplo, já é uma realidade. E mesmo a escrita literária que
é vinculada à tradição, objeto de leitura e ensino nas escolas, vem cada
vez mais dialogando com o contexto das tecnologias.

Para que se tenha a possibilidade de uma formação literária


consolidada para nossas crianças, jovens, e consequentemente, adultos,
o país investe em cursos para a formação de professores em nível superior,
que capacitem profissionais para o trabalho com literatura nos mais
diversos níveis de ensino da educação básica. Essa formação acontece,
mais especificamente, nas licenciaturas em Letras com habilitação em
literaturas, curso esse responsável pela base do ensino de língua
portuguesa e suas literaturas, nas instituições de ensino brasileiras. Assim,
a qualidade do ensino ofertado em nossas escolas está diretamente
relacionado com a qualidade na formação de professores e com o
trabalho em pesquisa e extensão, com ênfase aqui para a área de
literatura, nas universidades públicas.

Nesse sentido, a formação inicial de professores é importante, mas,


acima de tudo, a formação continuada, através da realização de cursos
de pós-graduação e de aperfeiçoamento, é ainda mais imprescindível
para se fazer a diferença em meio aos desafios encontrados
cotidianamente na sociedade, e principalmente em torno da educação
brasileira. A pandemia do novo corona vírus, por exemplo, foi uma
grande desafio enfrentado por todo o mundo, no âmbito de todas as
atividades cotidianas. Nesse contexto, para que não precisasse parar, a
educação precisou se reinventar, buscando novas formas de ensinar e
mediar conhecimentos entre professores e alunos.

1149
Assim, foi graças ao auxílio das tecnologias que a educação
continuou acontecendo, quando professores, alunos e demais
profissionais da educação precisaram reinventar suas práticas, seus
cotidianos, e com o auxílio da internet, de ambientes de aprendizagem
virtuais e de uma grande variedade de outros recursos, continuarem
ensinando e aprendendo. A literatura, então, foi objeto de discussão de
professores e alunos, através do universo da internet e do ensino mediado
por tecnologias, dando continuidade a um trabalho iniciado nas escolas
e no espaço da sala de aula física, que agora fora expandido. Por meio
da necessidade de distanciamento físico e geográfico, decorrente do
perigo de contaminação pelo novo corona vírus, através da indicação
de distanciamento social, pela OMS, o ensino remoto foi o meio
encontrado para que as instituições de ensino prosseguissem com suas
atividades.

Nesse contexto foram situadas as atividades de ensino no âmbito


da Universidade Estadual do Maranhão, desde o mês de junho de 2020,
em todos os campi e cursos ofertados pela instituição. O presente artigo
parte da experiência com o ensino de literatura no curso de Licenciatura
em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, e tem
como objetivo relatar as experiências com a disciplina de literatura
maranhense, no curso de Letras da UEMA, através da perspectiva de
discentes que a cursaram em 2020.2, de forma remota, por conta da
pandemia do novo coronavírus. Quanto à metodologia, o artigo consiste
num relato de experiência e tem procedimentos bibliográficos. O
instrumento de coleta dos dados expostos, foram memoriais produzidos
pelos discentes, os quais resultaram da última avaliação da disciplina.

1150
1 A FORMAÇÃO PARA O ENSINO DE LITERATURA, NOS CURSOS DE
LICENIATURA EM LETRAS

Se ao longo da vida escolar os estudantes têm contato com a


literatura, esse contato se torna bem mais aprofundado no ensino
superior, no caso de quem cursa a graduação em Letras. No curso, além
de conhecer e realizar leituras de textos literários, os futuros professores de
línguas estudam de forma aprofundada os conhecimentos teórico-
críticos a respeito da literatura, os quais possibilitam ampla compreensão
do fenômeno literário e das questões inerentes a ele. Tal aprofundamento
decorre da necessidade de conhecer com propriedade os conteúdos
que fazem parte de sua área de formação/atuação, e que são
imprescindíveis para o trabalho em sala de aula e em outras atividades
de ensino e pesquisa.

Às universidades, e mais especificamente aos cursos de


licenciatura, cabe a função de formar professores aptos a ministrarem
aulas nos mais diversos níveis e modalidades de ensino. No caso do curso
de licenciatura em Letras, fornecido por muitas instituições de ensino
superior no país, sejam elas públicas ou não, o profissional em formação
tem contato com as diversas áreas que englobam as Letras, como é o
caso da linguística e da literatura. Embora constituam campos de estudos
distintos, elas não se excluem e encontram suporte uma na outra, sendo,
portanto, complementares. Assim, todos os campos de atuação do
profissional de Letras são importantes e possuem sua relevância, embora
aqui o espaço de discussão seja para a formação literária do docente
de Letras, para o ensino de literatura.

1151
A preocupação com a formação do professor de literatura, uma
questão ainda atual, mas já que existe a bastante tempo, nos revela a
necessidade de

uma reciclagem do professor que ensina literatura não só em


função dos problemas que esse ensino apresenta, mas também
em função das novas perspectivas metodológicas que se abrem
para o ensino, onde o pensamento primeiro do professor deve
ser o de estabelecer contato contínuo do aluno com o texto,
através de objetos literários próximos desse aluno (ROCCO, 1981,
p. 88).

Todo professor carrega consigo uma enorme responsabilidade


para com a sociedade, pois em parte, cabe a ele o encaminhamento
de muitas crianças e jovens rumo ao futuro. Em relação aos professores
de línguas e literaturas, essa responsabilidade parece ser ainda maior,
porque em seu trabalho ele poderá ou não expandir universos, através
do trabalho com textos, entre os quais os literários, que abrem
possibilidades para muitas formas de ser e estar no mundo, bem como
para a ampliação das leituras de mundo, que são portas para o futuro e
para a vida em todas as suas dimensões. Sobre a relevância da literatura
em nossa vida, Antonio Candido (1989), defende que ela é um poderoso
instrumento na formação humana, indispensável, e de direito ao homem.
De acordo com o seu pensamento,

a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e


educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um
como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a
sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão
presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da
ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e

1152
denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de
vivermos dialeticamente os problemas (CANDIDO, 1989, p. 113).

Basta que façamos uma breve reflexão sobre o potencial da leitura


literária para que possamos verificar e compreender o que está em jogo
quando se trata do ensino de literatura: a vida humana. Portanto, pensar
a qualidade desse ensino é permitir a formação humana, a construção
de cidadãos conscientes de sua posição e capazes de transformar o
mundo. Não se trata apenas de promover a formação escolar, consiste
em algo maior. Por isso, os cursos de Letras carregam uma grande
responsabilidade, porque a formação de professores está intimamente
relacionada com a formação humana, e é nessa direção que
precisamos caminhar, rumo à consciência do papel que os cursos de
licenciatura possuem.

Mesmo diante dessa importância, por muito tempo a formação do


professor de literatura em cursos de Letras parece não ter sido o centro
das discussões. No Brasil, os primeiros sinais visíveis sobre essa
preocupação são demonstrados em Do ideal e da glória: problemas
inculturais brasileiros, de Osman Lins, publicado em 1977. A publicação
aborda questões que englobam, inclusive, os problemas encontrados
nas universidades brasileiras, campo de formação de professores. Sobre
o ensino superior, o autor parte de sua própria experiência como
professor de literatura brasileira na universidade, e analisa certas
características de professores e estudantes da área de Letras. Assim, ele
se volta para o ensino superior, onde a oferta do curso acontece,
apontando que

1153
Justamente aí, parece-me, está o ponto mais grave do
problema. Apesar das insuficiências dos alunos, altamente
imaturos e despreparados, continuam os professores a organizar
e ministrar seus cursos de graduação como se tivessem diante
de si alunos ideais, ou, ao menos, com alguma leitura, quando
não são raros os que chegam à faculdade sem nunca terem lido
uma obra literária sequer, como se deduz do questionário. (LINS,
1977, p. 82)

Segundo a concepção do pesquisador, que também identifica


problemas de ensino na educação básica, essas falhas estão
relacionadas com a própria formação dos professores, e a universidade,
como responsável por esse processo, também tem contribuído para que
o problema se prolongue, ao fechar os olhos para a realidade existente,
pois se a ideia de academia é lidar com um público “ideal”, o que se tem
ali são estudantes reais, com os problemas e dificuldades decorrentes da
realidade educacional brasileira.

É necessário aqui, chamar a atenção para o fato de que o


momento em que Lins estava situado e se reporta, é o final do século
passado, mas que, mesmo nos dias atuais, seus apontamentos ainda são
muito pertinentes, pois capta uma realidade não muito diferente. Assim,
reafirma-se a importância de se (re)pensar o papel dos cursos de Letras
na formação do professor de literatura, tendo em vista a qualidade e a
superação dos desafios que se encontram atrelados ao ensino de
literatura no país.

2 O ENSINO REMOTO

O ensino remoto não é necessariamente uma novidade na


educação, embora tenha sido a realidade vivenciada em muitas partes

1154
do mundo, diante da pandemia no novo corona vírus. O adjetivo remoto,
que caracteriza essa modalidade de ensino, sugere a ideia de
distanciamento geográfico. Na educação, o ensino remoto é uma
opção, especialmente quando nos encontramos diante de um
acontecimento imprevisto, e que por conta deste, os indivíduos são
impossibilitados de se encontrarem presencialmente no mesmo espaço.
De acordo com Moreira e Schlemmer (2020), através do ensino remoto,
o ensino presencial é levado para os ambientes digitais em rede.

Sobre o ensino remoto, os autores apontam que

O processo é centrado no conteúdo, que é ministrado pelo


mesmo professor da aula presencial física. Embora haja um
distanciamento geográfico, privilegia-se o compartilhamento
de um mesmo tempo, ou seja, a aula ocorre num tempo
síncrono, seguindo princípios do ensino presencial. A
comunicação é predominantemente bidirecional, do tipo um
para muitos, no qual o professor protagoniza vídeo-aula ou
realiza uma aula expositiva por meio de sistemas de
webconferência. Dessa forma, a presença física do professor e
do aluno no espaço da sala de aula geográfica são substituídas
por uma presença digital numa sala de aula digital (MOREIRA;
SCHLEMMER, 2020, p. 9).

Mesmo que a ideia do ensino remoto se paute nos mesmos


pressupostos do presencial, principalmente no que diz respeito ao foco
nos conteúdos, é de se ressaltar que o remoto tem como condição
básica o uso das tecnologias como instrumento de mediação, bem
como a associação de professores e alunos a ambientes virtuais de
aprendizagem. Nesse sentido, é graças às tecnologias digitais em rede
que a educação continua acontecendo, o que nos evidencia que nem
sempre o contato físico é essencial para que a aprendizagem aconteça

1155
de forma significativa. Esse é, inclusive, um dos pontos que muito de
discute atualmente, principalmente diante do crescente espaço que a
Educação a distância (EaD) vem assumindo em nossa sociedade.

Lembrando que ao nos referirmos a EaD, falamos numa


modalidade específica de educação, amparada por dispositivos legais,
que não se confunde com a proposta do ensino remoto, que entra em
cena, de costume, diante de situações emergenciais na educação. No
contexto da pandemia, por exemplo, as aulas escolares, bem como as
das universidades, foram suspensas presencialmente, e professores e
alunos passaram a se encontrar on-line, de forma síncrona, através de
plataformas como o Google Meet, Microsoft Teams, Zoom, entre outros,
para que os conteúdos das aulas fossem ministrados.

Nesse contexto, a Universidade Estadual do Maranhão, instituição


pública brasileira de ensino superior, continuou o desenvolvimento de
suas atividades de ensino, em todos os cursos que oferta, através do
ensino remoto, mediado por diversas tecnologias digitais em rede, com
uso preferencial e institucional, para os encontros e reuniões síncronas, da
plataforma Microsoft Teams. É a partir dessa realidade que se deram os
relatos apresentados posteriormente neste trabalho, referentes ao ensino
de literatura em curso de formação de professores de Letras.

3 METODOLOGIA

Para a construção do artigo, a metodologia utilizada foi de


abordagem qualitativa, que para a Minayo (2001), trabalha com o
universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,

1156
o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos
processos e dos fenômenos. Consiste num relato de experiência, o que
constitui uma pesquisa participante que, segundo Kauark, Manhães e
Souza (2010, p. 29) “se desenvolve a partir da interação entre
pesquisadores e membros das situações investigadas”.

Utiliza-se também de procedimentos bibliográficos, o que para Ruiz


(2006, p. 58) consiste no uso de “um conjunto de produções escritas para
esclarecer as fontes, para divulga-las, para analisa-las, para refuta-las ou
estabelece-las; é toda a literatura originaria de determinada fonte ou a
respeito de determinado assunto”. O instrumento de coleta dos dados
expostos, foram memoriais produzidos pelos discentes, os quais resultaram
da última avaliação da disciplina de Literatura Maranhense, no período
letivo 2020.2, no curso de Letras Português e Literaturas de Língua
Portuguesa, da Universidade Estadual do Maranhão, campus São João
dos Patos.

4 MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE ESTUDANTES NO ENSINO REMOTO,


ATRAVÉS DA DISCIPLINA DE LITERATURA MARANHENSE

Os relatos que sertão apresentados aqui, constituem-se de falas


dos discentes, retidas dos memoriais da disciplina, e que são reveladores
das experiências dos mesmo com o ensino de literatura, e em específico,
através do ensino remoto. Nesse mesmo sentido, ressalto que o contexto
da pandemia não é citado frequentemente em tais produções, o que
parece sugerir que mesmo com as mudanças presenciadas no ensino, as
memórias estão bem mais voltadas para a disciplina em si, seus
conteúdos e para o ensino-aprendizagem, do que para o contexto em

1157
que ela aconteceu, que em alguns textos é mencionado. Os estudantes,
em suas falas, serão nomeados através de letras do alfabeto, para que
assim suas identidades permaneçam em sigilo. Inicio por destacar a fala
de uma estudante sobre o curso de letras, que em seu relato, diz:

O curso de Letras ao contrário do que algumas pessoas pensam,


é extremamente abrangente, não se limita apenas a nos
apresentar o Português em sua forma gramatical, mas nos traz
um leque de caminhos e possibilidades. A Literatura é um desses
caminhos, que por sinal vai além de textos em prosa. Ela se
expande por entre a dramaturgia, o teatro, as poesias, as
histórias, os contos, as crônicas, os romances, as tragédias, os
dramas e inúmeras outras vertentes (ESTUDANTE A, 2021).

A percepção da acadêmica é importante de ser colocada em


evidência, porque corrobora questões já discutimos, inclusive, em
momentos anteriores desse artigo. Além disso, através desse pensamento
ela reconhece e valoriza a multiplicidade, bem como a potencialidade
da literatura, sendo ela indispensável à formação do professor de Letras.
Essa mesma aluna relembra momentos de aulas síncronas da disciplina,
relatando sobre como elas aconteciam e enfatizando a transmissão dos
conteúdos.

No decorrer das aulas síncronas, a mediação acontecia pelo


professor e também por nós alunos, nos dias em que
apresentávamos seminários ou trabalhos em grupos, que
encadeavam boas discussões a respeito dos assuntos
apresentados, e assim seguiram as aulas. Os conteúdos
explanados pelo professor foram vastos, aprendemos sobre as
gerações da literatura em diferentes épocas, sobre alguns
autores e também conhecemos grandes obras de escritores
maranhenses (ESTUDANTE A, 2021).

1158
O depoimento demonstra satisfação em relação à aprendizagem
e ao conhecimento sobre a literatura maranhense, seus autores e obras,
bem como a suficiência das discussões levantadas em meio às aulas
remotas, assim, os conteúdos não ficaram pelo meio do caminho e foram
percebidos com a mesma importância que teriam, caso ministrados de
forma presencial. A estudante enfatiza, ainda, a participação e sua
relevância para a construção em conjunto do conhecimento. Os relatos
de outra participante da disciplina, dialogam com os apresentados pela
estudante A, e acrescenta que os conteúdos foram transmitidos de forma
clara. A intitulada estudante B, diz que “as aulas foram bem produtivas,
realizamos atividades diversas como provas e seminários. Todas as aulas
foram transmitidas de forma clara e precisa, e contribuíram para a
construção dos conhecimentos e com a nossa jornada acadêmica”
(ESTUDANTE B, 2021).

Também houveram apontamentos sobre as dificuldades, sobre os


entraves decorrentes da necessidade de se depender das tecnologias
em rede para participar das aulas. O reconhecimento de que essa nova
realidade chegou de repente, quando muitos não estavam preparados
e precisaram então se adaptar, por isso alguns problemas individuais, mas
que também refletem no coletivo, foram identificados.

Aprendi muito com a disciplina e com os ensinamentos do


professor, que teve paciência com os estudantes, procurando
dar o máximo de conteúdo. Não foi fácil, pois, devido as aulas
terem sido remotas, vez ou outra me via dispersa e
desconcentrada. Acredito eu, que foi aí onde pequei, pois dava
para ter tirado mais proveito das aulas e acabei tendo algumas
dificuldades com as atividades. Creio que o ensino na
modalidade presencial, para mim, seria de maior valia
(ESTUDANTE C, 2021).

1159
Esse foi um dos casos em que ficou evidenciado dificuldades em
relação ao ensino remoto, em decorrência principalmente de questões
inerentes a aluna em questão. Mesmo citando seus esforços, bem como
os do professor, reconhece que poderia ter aproveitado mais, assim,
obtendo maior rendimento. Avalia, ainda, que o ensino presencial tem
suas vantagens em relação ao aprendizado e à transmissão dos
conteúdos da disciplina. Cabe lembrar que o ensino remoto foi
autorizado pela portaria n° 544 de 16 de junho de 2020, quem em seu art.
1° expõe o caráter excepcional e autoriza a substituição das disciplinas
presenciais, por aulas remotas que utilizem tecnologias digitais e de
comunicação seguindo limites da legislação em vigor (BRASIL, 2020).
Logo, o caráter excepcional do ensino remoto é declarado, sendo a
opção, enquanto durar a pandemia, pelo menos até segunda ordem,
para que as atividades de ensino continuem acontecendo.

Através da percepção de outro acadêmico, a disciplina de


literatura maranhense, que aconteceu de forma remota,

proporcionou diversos momentos prazerosos e de inseguranças,


inúmeras descobertas e momentos reflexivos, principalmente no
que diz respeito à própria literatura. Apesar de contemplar algo
“nosso”, a disciplina foi uma novidade para todos e de suma
importância para nós estudantes, ampliando nossos horizontes,
expandindo nossos olhares para novas obras, contribuindo de
forma positiva para nossa formação, e alimentando o desejo de
valorizar a literatura maranhense e buscar mais, além das aulas
(ESTUDANTE D, 2021).

Nesse mesmo caminho, com apontamentos semelhantes e


comentando a importância dos conhecimentos da disciplina para a
formação do professor de literatura, no âmbito do Estado do Maranhão,
outra acadêmica relata que:

1160
A disciplina foi de fato uma coisa nova para a nossa vida como
acadêmicos, porque até o presente período não tínhamos tido
um contato tão próximo com a literatura e os conteúdos que
foram abordados nas aulas. Foi uma ótima experiência,
pudemos aprender sobre assuntos e temáticas incríveis, que são
fundamentais para o nosso desenvolvimento e aprendizagem
enquanto futuros docentes (ESTUDANTE E, 2021).

De modo geral, fica evidente, através das muitas falas presentes


nos memoriais da disciplina, que a preocupação com a formação está
em primeiro plano, particularmente no contexto de uma disciplina de
literatura, que como os estudantes relaram, instigou a curiosidade e o
desejo de aprofundar em conhecimentos relativos a área, como forma
de seguir rumo a uma formação consolidada, pautada pela reflexão e
pela consciência da responsabilidade que cada futuro professor carrega
para com a educação e a leitura de textos literários, poderoso
instrumentos de transformação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto do ensino remoto, as escolas, as universidades e seus


cursos de graduação e pós-graduação precisaram se reinventar,
professores e alunos precisam se adaptar à nova realidade, tendo em
vista a continuidade das atividades de ensino e a construção do
aprendizado. Foram muitos os desafios encontrados, os quais vão desde
à formação dos professores, à disponibilidade de recursos para que os
estudantes pudessem acompanhar as aulas. Contudo, o que a
experiência durante um semestre de aulas de literatura em formato
remoto revelou, foi que o ensino-aprendizagem pode acontecer de
forma satisfatória, independentemente da distância geográfica, e isso

1161
depende principalmente da aproximação dos discentes com o curso e
com a disciplina em questão.

Em relação ao caso que esse trabalho investigou, o uso da


tecnologia foi fundamental para que as aulas acontecessem, e a
motivação dos estudantes foi um aspecto bastante relevante para o
êxito da turma para com a disciplina de literatura maranhense. Se por um
lado o ensino remoto vem sendo questionado, por outro, é graças a essa
possibilidade que a educação continua avançando, repensando
moldes e possibilidades de evoluir, buscando atender às demandas que
surgem de todas as partes, em diferentes momentos e rumando em
direção ao futuro. A literatura, por sua vez, segue presente na vida, e na
pandemia, seu ensino, bem como sua leitura, certamente fez a diferença.

REFERÊNCIAS

BRASIL. MEC. Portaria nº 544, de 16 de junho de 2020. Dispõe sobre a


substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais, enquanto
durar a situação de pandemia do novo conoravírus - Covid-19, e revoga
as Portarias MEC nº 343, de 17 de março de 2020, nº 345, de 19 de março
de 2020, e nº 473, de 12 de maio de 2020. Disponível em:
http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-544-de-16-de-junho-de-2020-
261924872. Acesso em: 02 mar. 2021.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3ª ed. revista e ampliada. São Paulo:


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Medeiros de. Metodologia da pesquisa: um guia prático. Itabuna, BA: Via
Litterarum, 2010.

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Paulo: Summus, 1977.

MOREIRA, José António; SCHLEMMER, Eliane. Por um novo conceito e


paradigma de educação digital OnLIFE. Revista UFG, Goiânia, v. 20, n. 26,
p. 1-35, jan., 2020.

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Petrópolis: Vozes, 2001.

ROCCO, Maria Thereza Fraga. Literatura/Ensino: Uma problemática. São


Paulo, Ática, 1981.

RUIZ, João Álvaro. Metodologia científica: guia para eficiência nos


estudos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

1163
RIOS DE MEMÓRIAS EM OLHOS D’ÁGUA

Meire Oliveira Silva 179

RESUMO: Olhos d’Água, de Conceição Evaristo, realiza uma análise pungente da


população afro-brasileira, descendente de uma estrutura histórica e social calcada na
escravização e nas amarras coloniais. Esses contos de 2014 retomam as agruras da
miséria e da violência urbanas flagrantes ao passo em que deflagram raízes ancestrais
envoltas em narrativas de força e resistência. O conto que intitula o volume, ao enfocar
a mãe, mulher e raiz firme da vida, embate-se à visão da terra continuamente
explorada (FANON, 2005) pelos desmandos colonizadores e escravocratas. Essa mulher
– mãe, terra e fortaleza – reverbera-se em outras mulheres de vários perfis como Ana
Davenga, Natalina, Luamanda, Zaíta. Essas tramas narrativas também desvelam
questões atreladas à formação da sociedade brasileira, envolta em racismo e sexismo
(GONZALEZ, 1984), mesmo carregadas de lirismo em uma prosa poética que
experimenta os limites das expressões por meio de recursos como a hifenização
aglutinadora de ideias e imagens inusitadas em permanente alusão a memórias e
tentativas de resgate de identidades sempre resistentes ao racismo e às opressões. A
reconstrução a partir de fragmentos (CANDAU, 2011) segue em busca das
subjetividades de mulheres em movimentos permanentes de resistência insurgente
contra opressões incessantes étnicas, de gênero e também de classe social;
interseccionalmente (AKOTIRENE, 2019). Essas condições perpetuam movimentos de
subalternidade (SPIVAK, 2014) que limitam as vozes e manifestações individuais. Sendo
assim, esta proposta de comunicação objetiva aproximar questões literárias que
aludam a epistemologias marcadas por tensionamentos histórico-sociais deflagrados
pelas imbricações de gênero, raça e classe que são denúncias sempre presentes nas
escrevivências de Conceições Evaristo.

Palavras-chave: Conceição Evaristo, Literatura, Ancestralidades, Interseccionalidade,


Memória.

INTRODUÇÃO

A obra Olhos d’Água, de Conceição Evaristo, em seus contos,


volta-se para o exame da população afro-brasileira, habitantes de
grandes e desiguais centros urbanos do país, por meio do exame de sua

Doutora em Teoria literária e literatura comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras


179

e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) – SP,


meire_oliveira@uol.com.br

1164
descendência atrelada às amarras escravocratas e coloniais. Os quinze
contos que compõem o volume datam de 2014 e referem-se às mazelas
da vida cotidiana metropolitana acirradas pelas violências raciais e de
gênero. Os enredos versam sobre as histórias de mulheres trabalhadoras,
mães e, na maior parte das vezes, as únicas responsáveis pelos seus
destinos. Suas raízes ancestrais de vigor e resistência deflagram um
passado recuperado por meio das memórias como símbolos de força da
terra da qual os povos africanos foram arrancados (FANON, 2005). E as
personagens reverberam esse grito ancestral frente aos infortúnios
opressores.

1 A LITERATURA, A SOCIEDADE E OS PRECONCEITOS

Por meio dos estudos literários imbricados aos fatores histórico-


sociais, buscou-se empreender uma metodologia de análise que
pudesse contemplar as questões de gênero vinculados aos de raça. O
conto homônimo que abre o volume, por exemplo, resgata questões
relativas à opressão pelo racismo de origens escravocratas ainda
persistente no Brasil contemporâneo.

As identidades são questionadas e precisam encontrar espaço


para afirmação diante de um contexto que se sobrepõe às memórias
ancestrais para desconsiderar as lutas anticoloniais e fazer valer, em um
território inclusive linguístico, a memória social das disputas de saberes e
poderes ainda eurocentrados e excludentes. O intuito, ao final das
análises aqui empreendidas, remete a um contexto que talvez possa
explicar uma formação pautada por elementos fragmentados que

1165
aludem a uma ideia de branqueamento e negacionismos crescentes na
atualidade.

Dessa forma, a literatura de Conceição Evaristo convoca as esferas


memoriais para ancorar-se sobre as reflexões de uma formação nacional
imbricada a uma identidade problemática repleta de fissuras. Esses
traços emergem dos contos a cada retrato social que parece romper
com o ficcional e narrar o país com ares jornalísticos subvertendo a
própria ideia estanque dos gêneros discursivos que se valem de
enunciações que ultrapassam a própria expressão para atingir um estado
de denúncia e revolta.

2 NARRATIVAS ENREDADAS EM EXCLUSÕES

Com o intuito de abarcar as especificidades das discussões


teóricas relativas aos estudos literários e suas imbricações com as
pesquisas voltadas às questões interseccionais que estabelecem um
recorte de classe, gênero e raça, os contos foram analisados.

Entre os emblemáticos títulos, a obra desenrola-se fazendo da arte


da palavra manifesto da escrita. O conto “Olhos d’água”, que dá nome
ao livro, traz uma poderosa figura feminina, a mãe que verte lágrimas,
forças das memórias e histórias, entre suas narrativas e olhares para o
mundo. Da resistência dessa mãe, a ancestralidade da fertilidade capaz
de levantar-se contra o ciclo de violenta fome é consagrada entre as
“lágrimas de Mamãe Oxum” (EVARISTO, 2018, p. 19). Da mesma maneira,
o escavamento das memórias e da invenção são presentificados por
meio do discurso transformador:

1166
Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por
isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de
minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum!
Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção.
Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas. Hoje, quando já
alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor
dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de
uma se tornam o espelho para os olhos da outra (EVARISTO, 2018,
p. 19, grifos meus).

O conto Olhos d’água, ao abrir o volume, volta-se ao passado


para a tentativa de resgatar explicações até transcendentes na alusão
à orixá símbolo do amor e da fertilidade como foi pontuado na citação
anterior. E, sobretudo, por meio das indagações da protagonista acerca
do olhar da mãe que inventava estórias e sonhos em meio a faltas e
privações. A força de suas palavras, dessa forma, parece capaz de criar
um novo universo, pleno de esperança de renascimento, até mesmo na
fome, na miséria e na dor. E esta trajetória de resistência materna inspira
a protagonista na construção de sua própria caminhada em meio a
outras mulheres. E é justamente por esse misto de admiração, amor e
inspiração que a culpa é instalada quando a narradora não consegue
reconstruir, por meio da reunião dos fragmentos de memórias, detalhes
do semblante de sua mãe, como a cor de seus olhos:

Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta


de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por
uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe,
aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de
dificuldades, como também sabia reconhecer, em seus gestos,
prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto,
me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor
seriam os seus olhos (EVARISTO, 2018, p. 16).

1167
No segundo conto, Ana Davenga, em narrativa potente
permeada por “gozo-pranto” do início ao fim, a vida da protagonista
homônima ao título destolda-se. Isso acontece em momentos que
rapidamente alternam alegria e tristeza extremas diante da descoberta
de que seu companheiro era o motor do paradoxo que passou a reger
sua existência entre céu e inferno concomitantes. E dessas constatações
originou-se a resignação com que ela aceitou a sina que pensava ser
somente sua e, na verdade, pertencia a ambos, duas existências
vitimadas às dores e lágrimas:

E todas as vezes que ela via aquele homem no gozo-pranto,


sentia uma dor intensa. Era como se Davenga estivesse sofrendo
mesmo, e fosse ela a culpada. Depois, então, os dois, ainda de
corpos nus, ficavam ali. Ela enxugando as lágrimas dele. Era tudo
tão doce, tão gozo, tão dor! Um dia pensou em se negar para
não ver Davenga chorando tanto. Mas ele pedia, caçava,
buscava. Não restava nada a fazer, a não ser enxugar o gozo-
pranto de seu homem (EVARISTO, 2018, p. 23).

Novamente, as águas fluidas e impossíveis de serem contidas ou


abarcadas dado o incessante jorrar de suas forças, permeiam a narrativa
que também espalha lágrimas e pesares na constatação final de que se
trata de um pranto ancestral e hereditário.

Já no conto Dudu Querença retrata-se a trajetória dessa mulher


que, pelo caminho, definha em meio a uma realidade tacanha na qual
foi inserida involuntariamente e à qual deveria resignar-se, apesar de
todos os sonhos e possibilidades nutridos em algum lugar de seu passado:
“Sorriu da lerdeza e da cãibra que insistiam. É, a perna estava querendo
falhar. Ela é que não ia ficar ali assentada. Se as pernas não andam, é
preciso ter asas para voar” (EVARISTO, 2018, p. 34). Novamente os ciclos

1168
hereditários, as sinas e as repetições de fatalidades aparecem operando
como obstáculos às existências desses corpos considerados dissidentes e
extermináveis por uma sociedade embrutecida e esquecida de seu
passado.

Igualmente, em Maria, a protagonista título representa a injustiça e


a virulência de um sistema racista e misógino que imputa às mulheres,
sobretudo as de origem negra, todo o rancor de uma sociedade imersa
em preconceitos de gênero, classe e raça. Encontrar seu passado, em
um ônibus, significa em sua vida apenas confrontar a verdade do ódio e
do aniquilamento ao qual sua existência e de seus iguais é
recorrentemente submetida:

Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha saudades de seu ex-
homem. Por que estavam fazendo isto com ela? O homem
havia segredado um abraço, um beijo, um carinho no filho. Ela
precisava chegar em casa para transmitir o recado. Estavam
todos armados com facas a laser que cortam até a vida.
Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a polícia, o corpo
da mulher estava todo dilacerado, todo pisoteado (EVARISTO,
2018, p. 44).

Já Quantos filhos Natalina teve? vai ao encalço do que significa a


gravidez de uma mulher e tudo que envolve sua condição em um mundo
assolado por esses cenários cíclicos de injustiças interseccionais. Com a
protagonista Natalina, novamente a mulher aparece como terra fértil
explorada, mas cheia de força para gerar outros modos de vida. Essa
subjetividade feminina, mais uma vez, apesar das adversidades, parece
condensar a raiz firme de suas vontades, embora não domine seu destino
e nem suas escolhas. O início do conto, em media res, já lança o leitor no
turbilhão das questões inerentes à gravidez, sem idealismos acerca do

1169
universo materno e questionando os lugares da mãe, da barriga ou do
feto. Tríade estranha entre si durante toda narrativa:

Natalina alisou carinhosamente a barriga, o filho pulou lá de


dentro respondendo ao carinho. Ela sorriu feliz. Era a sua quarta
gravidez, e o seu primeiro filho. Só seu. De homem algum, de
pessoa alguma. Aquele filho ela queria, os outros não. Os outros
eram como se tivessem morrido pelo meio do caminho. Foram
dados logo após e antes até do nascimento. As outras barrigas
ela odiara. Não aguentava se ver estufando, estufando,
pesada, inchada e aquele troço, aquela coisa mexendo dentro
dela (EVARISTO, 2018, p. 45).

Assim como o enredo de Beijo na face trata das nuances dos


significados em torno dos sentimentos de uma mulher oprimida por seu
próprio amor ou aquilo que condiciona a sua existência, apesar de toda
a violência diante dos preconceitos em relação às orientações sexuais
quando se apaixona por outra mulher:

Habituada ao amor que pede e permite testemunhas, inclusive


nas horas do desamor, viver silente tamanha emoção era como
deglutir a própria boca, repleta de fala, desejosa de contar as
glórias amorosas. E por que não gritar, não pichar pelos muros,
não expor em outdoor a grandeza do sentimento? Não, não era
a ostentação que aquele amor pedia. O amor pedia o direito
de amar, somente (EVARISTO, 2018, p. 62).

O relacionamento homoafetivo entre as duas personagens


vitimadas por uma sociedade repleta de preconceitos é descrito com
imagens que aludem à interdição das falas, dos toques e dos corpos
continuamente subjugados em existências silenciadas. Como no conto
Luamanda que também narra a vida de uma mulher plena de prazeres
que podem ser também seu martírio de alguma forma: “Não, a sua pele

1170
não denunciava as quase cinco décadas que já havia vivido. As marcas
no rosto [...] mentiam descaradamente sobre a sua idade (EVARISTO,
2018, p. 63).

No enredo do conto O cooper de Cida, está descrita a


desintegração a partir de um instante do cotidiano que põe em xeque
escolhas e trajetórias quando finalmente a protagonista pode parar e
mergulhar em si mesma em estado quase epifânico diante do

[...] mar [que] insistia em se mostrar diante dela. Só então,


naquele dia, ela percebera o mar. E como tudo era
desmesuradamente belo. Atravessou calmamente a rua, não
correu (EVARISTO, 2018, p. 73).

Na narrativa de Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, desde


a infância estão desvelados aspectos de percursos e fatalidades das
metrópoles em seu dia a dia a enredar destinos:

Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio


começava. Uma criança, antes de fechar violentamente a
janela, fez um sinal para que ela entrasse rápido em um barraco
qualquer. Um dos contendores, ao notar a presença da menina,
imitou o gesto feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse
abrigo (EVARISTO, 2018, p. 80).

As violências rondam esses indivíduos tidos como alvos em


qualquer idade. E esse mesmo aspecto de vigilante proteção diante das
diversas facetas da violência persiste no conto seguinte e nos
desdobramentos das narrativas que envolvem outras tantas crianças. Di
Lixão, ao acompanhar a vida de um garoto em situação de rua, mostra
também as mazelas de sua mãe, da mesma forma que Lumbiá que é

1171
forçado a trabalhar na insegurança das ruas em ciclos de miséria e
exclusão: “Di Lixão achava que a história da mãe do outro devia parecer
com a da sua mãe” (EVARISTO, 2018, p. 84).

No conto Os amores de Kimbá, as dores e a tragicidade do


triângulo amoroso revelam-se em uma busca constante pela identidade
indefinida e continuamente negada: “Ele detestava também ter de ser
dois, três, vários talvez. Dava trabalho mudar o rosto, o corpo, mudar até
o gosto. Seria tão bom se ele pudesse ser só ele. Mas (EVARISTO, 2018, p.
95). Já Ei, Ardoca envolve a intrigante vida de um homem e do trem real
a metafórico a reger sua existência desde o nascimento: “Ardoca
nascera quase que dentro daquela máquina” (EVARISTO, 2018, p. 103).

Da mesma maneira, em A gente combinamos de não morrer narra


a resistência involuntária na qual recaem indivíduos oprimidos por uma
existência marcada de violências na triste constatação de que “A morte
brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos” (EVARISTO, 2018, p.
107, grifos originais do texto) já que algumas vidas são mensuradas por
uma sociedade racista imersa em preconceitos: “Na lixeira, corpos são
incinerados. A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo. É e não é”
(EVARISTO, 2018, p. 107). Na trama de Ayoluwa, a alegria do nosso povo,
deflagra-se a narrativa de esperança no contínuo renascer de uma
menina, mesmo diante das maiores privações: “[...] então deu de faltar
tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos
pensamentos e sonhos, palavras para as nossas bocas, cantos para as
nossas vozes, movimento, dança, desejos para os nossos corpos”
(EVARISTO, 2018, p. 120).

As questões referentes à memória e à identidade, no caso da


mulher negra, apresentam-se como um persistente reconstruir de algo

1172
para sempre perdido na implacável constatação histórica do
irremediável ou irrecuperável, apesar dos movimentos de retomada das
memórias. A dilapidação identitária empreendida pelo processo de
colonização surpreende os trajetos cotidianos ainda muito vinculados a
uma formação histórica violenta que persiste disseminando o horror.

3 O RACISMO COTIDIANO

O levantamento das análises aqui empreendidas revela a


presença de estigmas de origens coloniais e escravocratas na memória
social do Brasil que desvelam discursos segregadores e violentos em
relação aos descendentes de povos africanos aqui escravizados. A
literatura de Conceição Evaristo questiona o país que foi transformado
em um território de extermínio de corpos considerados dissidentes “[...]
quando o estado de exceção em que eles se ligam e se indeterminam
torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma
máquina letal” (AGAMBEN, 2011, p. 131). O sistema racista e exterminador,
como fator incontrolável no curso da História, em reiterada cadeia de
opressão e injustiça, por meio da literatura, é repelido e questionado.

Talvez a questão primordial resida no confronto dos fragmentos


que interpelam e impedem a reconstituição de identidades
continuamente massacradas. Se houve apagamento e negação, como
recuperar o perdido que retorna sempre reverberado em violências
diversas? As angústias das lágrimas do povo negro brasileiro transcendem
a metáfora literária para retomar o curso histórico da luta e das dores do
passado, mas ainda existentes na sociedade erigida em meio a
extermínios naturalizados e institucionais em diversas esferas. A mãe

1173
África retorna continuamente em lágrimas e clamores ancestrais a fim de
demonstrar que não se calarão frente aos golpes históricos que, como
narrativas oficiais, contrariam o levante das vozes e existências
silenciadas e subalternizadas.

As questões sociais abordadas em Olhos d’água são


ressignificadas ao serem presentificadas em um tratamento lírico que
impõe a temas dolorosos uma sensibilidade pungente que desafia a
própria configuração narrativa em sua estilística. Os temas aludem a
diversas mulheres formadas por água fluída que não se pode apreender,
mas se consegue tocar em ilusões de concretude e permanência. São
subjetividades efêmeras, mas que impelem suas marcas no curso
históricos. E podem arrastar gerações igualmente marcadas pela
passagem do tempo fluído e inapreensível. São tramas que intercalam as
contradições da vida como a protagonista Natalina do conto homônimo
que gera filhos com a mesma capacidade – de velocidade e desapego
– com que os aniquila de seu convívio relegando-os ao mundo também
aniquilador. Os extermínios impregnam as subjetividades que expressam
as dores e os prazeres constituintes da condição humana, também
imensa, embora limitada pela própria vida fragmentada e finita.

As fissuras sociais deflagram tensionamentos sexuais, subjetivos e de


gênero no olhar acerca da existência humana. A constituição da
população descendente dos africanos aqui escravizados questiona as
lacunas históricas e apontam ao futuro de maneira reflexiva. Em um ciclo
que abrange mulheres crianças, jovens, adultas e idosa, as narrativas
metaforizam uma sociedade pautada por forças que configuram o
motor das vidas ali descritas em narrativas plenas de questões identitárias.

1174
A subalternidade a que são submetidas as diversas subjetividades
femininas na obra de Conceição Evaristo manifesta-se em Olhos d´água
e vai ao encontro das preocupações da autora em narrar as agruras
vividas pelas mulheres submetidas a uma sobreposição de opressões. A
temática então estende-se para uma estética que proporciona a
emersão de epistemologias insurgentes contra vozes, poderes e saberes
continuamente silenciados (SPIVAK, 2014).

Tal abordagem é capaz de questionar e até subverter o cânone a


fim de trazer à tona grupos marginalizados. As violências que vitimam, no
Brasil, os descendentes dos povos africanos escravizados no Brasil
perduram em acontecimentos que deflagram os movimentos de
extermínio de cunho colonial de teor racista e misógino. Nesse sentido,
são as mulheres que figuram como vítimas de uma sociedade ancorada
em uma formação colonial e escravocrata que se mantém irredutível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se perceber, portanto, nas 15 narrativas de Olhos d’água,


uma profunda alusão ao resgate de memórias e tentativas de resistência
diante das opressões e racismos cotidianos. A busca pela reconstrução
dos fragmentos identitários (CANDAU, 2011) atrela-se às subjetividades de
mulheres em insurgência em relação aos âmbitos étnicos, de gênero e
de classe. As denúncias de cunho interseccional (AKOTIRENE, 2019)
denunciam as condições de imposição da subalternidade (SPIVAK, 2014)
a limitar vozes e manifestações das existências. Portanto, o movimento
de apreensão das questões literárias remete a epistemologias
tensionadas por questões histórico-sociais desveladas pelas

1175
escrevivências atentas da escritora Conceição Evaristo, já consagrada
como uma das maiores vozes da Literatura brasileira contemporânea.

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LIMA, Márcia (Orgs.) Por um feminismo afrolatino-americano: ensaios,
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1176
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VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

1177
MEMES E CIÊNCIA: UMA INVESTIGAÇÃO HODIERNA - RECORTE
LINGUÍSTICO

Isabella Tavares Sozza Moraes 180


Janderson Lacerda Teixeira 181

RESUMO: Este artigo objetiva analisar e estudar os memes sob suas perspectivas
multimodais, utilizando conceitos das concepções biológicas; linguísticas; tecnológicas
e gerais do tema. Há a pretensão de analisar os memes sob estas perspectivas,
pautando-se principalmente sob a ótica de Algirdas Julien Greimas, Charles Sanders
Peirce e Richard Dawkins. Busca-se investigar e compreender os fenômenos
provenientes da internet e observar, pois, usos dos memes para auxílio em outras áreas,
resultante das perspectivas mencionadas. O artigo demonstra questões pertinentes
sobre os memes e a memética que é a ciência que compreende os memes com a visão
científica, porém, hodiernamente pautando-se nos meios multissemióticos e virtuais.

Palavras-chave: Dawkins; internet; memes; memética; Peirce.

INTRODUÇÃO

Os memes - do grego - mímese, são fenômenos presentes na


internet Podem ser textos, imagens, vídeos, slogans; e possuem o intuito -
na internet - de satirizar ou representar o cotidiano de forma humorístico.
Este artigo, objetiva estudar e compreender os memes como importante
forma de propagação; analisá-los sobre a ótica de Richard Dawkins e
Charles Sanders Peirce, além de compreender os fenômenos da internet
e principalmente o da viralização, aplicado aos memes biológicos e

180 Graduanda do Curso de Letras - português e literaturas de Língua Portuguesa da


Universidade de Santo Amaro - UNISA; Residente Pedagógica (CAPES); Pesquisadora de
Iniciação Científica (IC/UNISA). Isabellasozza@gmail.com;
181 Orientador; Mestre em educação pela Universidade metodista de São Paulo

(UMESP). E-mail: jlteixeira@prof.unisa.br.

1178
tecnológicos. Para que fosse possível a realização do artigo, utilizou-se
revisão bibliográfica de livros e artigos sobre o tema, e também de temas
correlatos. Destarte, a princípio, o primeiro meme foi concebido em 1921,
com a publicação da revista Judge Magazine. Richard Dawkins, na obra
O gene egoísta (1972), utilizou o termo meme, a princípio como parte do
estudo genético, memes para Dawkins, são reprodutores, fazem o
processo de replicação da cultura. Sendo assim, os memes por meio da
internet são tidos como reprodutores culturais, assim como nos estudos
genéticos, pois seguem uma estrutura equivalente e tem o mesmo
princípio: se replicar. Nas redes sociais, os memes sofrem alguns processos
para que sejam replicados, um dos fenômenos presentes é o da
viralização, pelas quais o objeto é replicado para grupos seletos por meio
dos princípios do lugar que foi postado. Os memes, sob essa ótica, podem
ser objetos de grande valor para a replicação de conteúdos e
informações de grande relevância, isso para usos convencionais ou não.
Por este conceito, os memes sob as duas óticas podem e devem ser
analisados totalmente, isso pela ótica da genética ou da semiótica. Para
que haja essa análise, é preciso saber o contexto, partes que compõem
o meme, legendas, cores e formas. A semiótica de Charles Sanders Peirce,
é um conceito elaborado por tríades, pelo autor, que concerne o signo
sob todos os seus aspectos, sendo assim, o uso dessa forma de análise,
aplicado aos memes da internet, é de grande relevância para haver a
compreensão totalizada sobre o objeto. Algirdas Julius Greimas, como
leitura complementar do artigo, realiza análises do signo sobre
quadrados semióticos, sendo assim, o autor utiliza de dualidades para
obter a significação do signo, além de seu contexto e corpus. Os memes
sob essa ótica, podem ser tidos como signos, ou questões multissemióticas
dos signos, pois representam não apenas a transmissão cultural

1179
demonstrada por Dawkins, mas transmissão de contextos, de sentimentos,
de cotidianos etc. Os memes sob a ótica geral, são transmissores e são
elementos que levam por si transmissões externas, DAWKINS (1972, p. 114)
diz que, “[...]Cada vez que um cientista ouve uma idéia e transmite-a a
outra pessoa ele provavelmente muda-a bastante.”, neste contexto, os
memes são transmitidos também de acordo com o enunciador para o
enunciatário, com isso observa-se que os memes, tanto da genética,
quanto da internet, mudam a cada vez que há a transmissão, por isso
concerne-se a falta de originalidade, pois de memes originais, estes se
replicam e as replicações nunca são iguais, sempre sofrem alguma
alteração. O autor conceitua, que: “Os memes estão sendo transmitidos
a você sob forma alterada.” (DAWKINS, 1972, p. 114), referindo-se a
transmissão dos genes, sendo assim, a transmissão dos memes em
quaisquer perspectivas, sempre será heterogênea.

1 METODOLOGIA

A metodologia utilizada no artigo, foi pautado em pesquisa


qualitativa, com base em livros e artigos sobre os temas de ciência e
semiótica, pretendendo-se observar os memes como meios
multissemióticos que são pautados não apenas virtualmente, mas como
uma reiteração de conceitos.

1180
2 REFERENCIAL TEÓRICO

182A semiótica Peirceana, inicia com o raciocínio pautado na tríade


de Kant, que tinha como princípio o silogismo e sua lógica de busca pela
verdade sob três variáveis. O autor explica que, “foi Kant quem primeiro
observou a existência, na lógica analítica, das distinções tricotômicas ou
tripartidas.”(PEIRCE, 2005, p. 18). Por essa razão, o autor relaciona as
tríades como valores que vão além de uma lógica exata, que é
necessário haver uma análise sintética a partir da terceira proposição em
completude com a segunda e a primeira, podendo, pois haver mais
proposições a partir destas. Para haver essa relação triádica na própria
teoria de Charles Sanders Peirce, o autor, em sua obra, inicia com a
máxima de que não é possível conceber o objeto analisado como
unidade, mas sim com outros termos: primeiridade, oriência ou
originalidade (p. 33), sendo assim, infere-se que a partir da lógica do
autor, não se pode conceber um signo de maneira exclusa e única, é
preciso que haja a relação triádica com seus subtermos. O autor refere-
se a estes termos como categorias ceno-pitagóricas, e prossegue
determinando novos termos que podem substituir os termos da
primeiridade, secundidade e terceiridade, refere-se à secundidade
como transuasão, pois para o autor, “é a modificação da primeiridade e
da secundidade pela terceiridade” (p. 36). Para haver sentido, é preciso
analisar o objeto, ou seja, os signos de maneira concreta, a partir das
categorias que o autor concerne em sua lógica e obra, por isso para o
autor:

Texto retirado do artigo Memes e ciência: uma investigação hodierna, sob a autoria
182

de Isabella Tavares Sozza Moraes - Brazilian Journal of development - publicado em 2021.

1181
[...]um signo é tudo aquilo que está relacionado
com uma segunda coisa. Seu objeto, com respeito
a uma qualidade, de modo tal a trazer uma
terceira coisa, seu interpretante, para uma relação
com o mesmo objeto e de modo trazer uma quarta
para uma relação com aquele objeto na mesma
forma, ad infinitum. (PEIRCE, 2005, p. 37)

Além da primeiridade, secundidade e terceiridade, o autor nomeia


subgrupos para estas questões, sendo: o índice, o ícone, o objeto, o
argumento, o símbolo, e outros. Cada termo possui sua relevância para
estabelecer o signo de maneira concreta e não concreta, pois todo o
signo tem uma relação de existência e isso traz o exercício do que são
ideias concretas, ou que são imagens acústicas, essa dualidade esta
presente nos signos, pois todo signo tem uma contextualização, uma
relação de existência, uma cor, um princípio, uma relação de sentido.
Signo para o autor, também pode ser representado por representamem,
pois representa-se a partir dele, conceitos, ideias e razões concretas.
Conceitua-se também, que a semiótica Peirceana é denominada de três
modos: o fundamento, o objeto e o interpretante. Por isso, o autor possui
por visão de signo, algo perceptível ou imaginável. (p. 55). Para o autor,
a divisão dos signos se dá a partir de tríades: relações triádicas de
comparação; desempenho e pensamento, pelas quais concebe-se o
signo sob todos os seus aspectos, não se reduzindo a apenas a análise
dos grafemas ou fonemas; ou a apenas pela imagem, objeto; e sim o
todo: imagem (acústica e concreta), texto e enunciado, contexto e
existência. O autor então, ao se referir em tais tríades, representa sob o
ponto de vista da lógica a relação triádica entre possibilidade, existência
e lei, que podem mudar conceitos entre si e demonstrar e partir da razão
o signo sob seus aspectos próprios mediante a visão fenomenológica. As
leis Peirceanas inferem que ao menos deve haver, no signo, relações

1182
diádicas(leis) existentes e os três grupos principais: primeiridade,
secundidade e terceiridade, representa-se como os subgrupos
mencionados e fazem mudanças entre si: lei, existência e possibilidade,
que podem intercalar-se ou apenas existirem de maneira única e sem
misturas.

Para Charles Sanders Peirce, as tríades podem ser determinadas


como grupos principais, sendo denominadas como: qualissigno, sinsigno
e legissigno. O primeiro como uma qualidade do signo, o segundo como
a existência do signo e o terceiro como uma lei (p. 60). A segunda
tricotomia dos signos, são denominadas como ícone, índice e simbolo. O
primeiro é o objeto, o segundo é o que pode afetar se referindo ao objeto,
e o terceiro é o sentido e a lei deste objeto (p. 61). A terceira tricotomia
dos signos são: rema, dicente e argumento. O primeiro, refere-se a uma
qualidade mediante seu interpretante, o segundo refere-se ao signo que
para seu interpretante é de suma existência, e o terceiro, é um signo que
para seu interpretante é um signo de lei. (p. 62) Sendo assim, o autor
concerne em sua obra as dez classes de signos, que são todos os
mencionados, porém, que fazem mudanças entre si e podem agregar
mais classes até haver o propósito do interpretante. São elas: um
qualissigno, um sinsigno icônico, um sinsigno indicial remático, um sinsigno
dicente, um legissigno icônico (p. 64), um legissigno indicial remático, um
legissigno indicial dicente, um símbolo remático (p. 65), um simbolo
dicente e, por fim, um argumento. (p. 66). Todos estes aspectos, para
Peirce, são segmentados na seguinte sequência: IV, III,, II, I, de maneira
horizontal de cima para baixo, percebe-se que a partir dessa visão, há
uma relação panorâmica de como observar o signo sob seus aspectos
mutáveis. Existem, pois, os signos degenerados que são réplicas dos signos,
que podem ser representados por objetos e seus auxiliares, essa

1183
sequência lógica deve ser complementado com as dez relações
triádicas do signo e observado sob seus aspectos concretos, outra
relação que o autor determina em sua obra, são as tricotomias dos
argumentos, que possuem em suas relações, subdivisões das dez tríades
mencionadas, tem-se por si se há verdade nas deduções ou falsidades,
ou se são prováveis ou improváveis, a partir disso há induções e
verificações experimentais do signo, para isso o signo sofre uma
argumentação proveniente de amostras, e por fim, após as questões
determinadas pelo argumento, há uma predição geral, como determina
o autor como abdução. (p. 68). Um ícone, de acordo com o autor, é o
“[...]fato de fazer com que se assemelhem quantidades que mantêm
relações análogas com o problema” (p. 75). Infere-se que para ser um
ícone, o signo passa por uma relação triádica e lógica, na seguinte
sequência: ícone + índice = símbolo, ou quaisquer outras relações
triádicas, o autor propõe que essa relação triádica, relacione com
relações lógicas e fenomenológicas, para haver o signo de maneira
concreta.

Sujeito e predicado para Charles Sanders Peirce, se relacionam


concomitantemente para poder haver razões hipotéticas, razões que
entre si fazem sentido quando em conjunto. Para isso o autor, relaciona
o sujeito como universal e afirmativo; além de relacionar possibilidades
em quartetos, sendo de valor positivo ou negativo. Destarte, utiliza, pois,
em tríades, relações para compor e supracitar os fenômenos e as frases
verbais, tendo em vista que o verbo é o princípio das análises sintáticas,
são elas: as relações condicionais: pode ou não, se ou senão; as relações
disjuntivas: pode ou pode; relações excludentes: pode não ou pode não,
senão e senão; relações independenciais: deve ou não pode; relações
conjuntivas: deve e deve; relações terciais: não pode e não pode. Os

1184
elementos citados acima, fazem parte dos dois grupos: hipotéticas
particulares negativas; hipotéticas universais afirmativas.(p. 105). Os
termos são repetitivos para os dois próximos grupos, porém, são melhores
elaboradas. Hipotéticas universais negativas; hipotéticas particulares
afirmativas; relações condicionais: em todo caso [aconteceria tal
fenômeno]; relações disjuntivas: em todo caso [ou] [ou]; relações
excludentes: em nenhum caso [tanto] [como]; relações independenciais:
pode [ocorrer algo] sem [ocorrer outra coisa]; relações terciais: pode ser
que nem [aconteça algo] nem [outra coisa]. Todas as razões hipotéticas
demonstradas, são caso que vão além do sintático, é estabelecido a
partir de proposições lógicas e ad argumentum. Para o autor, “os
substantivos são originariamente usados para denotar “perceptos de
sentido”, enquanto que orações hipotéticas são comumente usadas
para denotar situações que ás vezes ocorrem” (PEIRCE, 2005, p. 107). Para
Peirce, há tipos de predicado, sendo eles: a predicação analógica, pela
qual o sentido empregado é o sentido da razão; a predicação
denominativa: o ser é sujeito e é tomado como sujeito; predicação
dialética: resulta-se num argumento provável, irredutível e nada
antecedente. (p. 113); predicação direta: representa-se a extensão do
sujeito pertencente ao predicado. (p. 114); predicação essencial: o
predicado está contido totalmente na essência de sujeito; predicação
exercitada: distinção entre os tipos de predicado, porém exercida de
maneira essencial ou acidental; predicação formal: predicado no
conceito de sujeito; predicação natural - direta, indireta e idêntica -
indireta: sujeito relacionado ao predicado. direta: sujeito e predicado
relacionados com um terceiro elemento; idêntica: comparação entre os
sujeitos. Por essa ótica, infere-se que os tipos de sujeito e predicado, na
visão de Peirce, apesar de relacionada com o pensamento lógico da

1185
filosofia medieval e moderna, prossegue de maneiras explícitas na
linguagem e nas relações lógicas que existem em proposições,
vinculadas ao discurso, a fala e a escrita. (p. 115). A dedução e indução
neste sentido de sujeito enquanto ser concreto ou não, infere por tais
relações lógicas, podendo variar mediante contextos. O sujeito
enquanto ser composto ou simples, pode ser relacionado pela
predicação natural; já o sujeito desinencial, pode ser tido como parte
essencial da predicação formal. As predicações neste sentido mostram
variações para que se possa ter tido o genuíno contexto e uso destes
tipos de predicação, embora o fato de haver diversas predicações não
infiram ao sujeito de maneira tendenciosa. Para Algirdas Julien Greimas,
a representação visual cabe aos quadrados semióticos, neles contêm as
informações passíveis de análises e representações derradeiras de
antíteses, é um sistema lógico que determina fenômenos e possíveis
sentimentos por trás do objeto, porêm não se limita a estes conceitos.
Para haver um quadrado, é preciso haver linhas retas, ao menos quatro,
no esquema de greimas, todo início de linha que compõe o quadrado
deve possuir estas nomenclaturas (no sistema básico): s1; s2; -s1; -s2; num
primeiro esquema, o s1 e s2 seriam feminino e masculino, e o não-s1 e
não-s2 seriam a negação destes conceitos. Destas questões, podem
haver seis tipos de linhas: s1 - s2 = eixo contrário; -s1 - -s2 = eixo sub
contrário; s1 - -s1 = eixo positivo; s2 - -s2 = eixo negativo; s1 - -s2 = deixis
positiva; s2 - -s1 = deixis negativa. Todas essas relações, podem ser tidas
nas análises dos objetos, tendo em vista o que se contrapõe, há exemplos
de pinturas barrocas, em que se há a contraposição de luz e sombra;
vida e morte e outros conceitos; essas questões devem ser levadas em
consideração ao realizar as análises com base na semiótica grreimasiana.
Estes termos positivos, negativos e neutros (s e -s), são denominados por

1186
Greimas como termos sêmicos. De acordo com o autor, a noção
interpretante referente aos quadrados semióticos é tida a partir de a:

[...]substância do conteúdo - exige maior precisão.


Entendemos - como já insistimos ao falar do eixo semântico
- que a substância só pode ser proximizada e captada
com a ajuda de uma lexicalização. (GREIMAS, 1972, p. 21).

Com isso, a noção de substância, de acordo com o autor, é


encontrada dentro da análise do conteúdo utilizado, elabora-se, pois
uma relação de oposição e de complementação entre significante e
significado, pois presencia-se além do plano de expressão e de conteúdo,
tendo em vista que as análises são elaboradas de acordo com a
substância, ou seja, muda-se a maneira de análise, mas não a estrutura.
O autor, assim como Peirce, faz concernemente uma relação triádica do
signo, ao relacionar a categoria sêmica aos lexemas da língua francesa
(p. 22). Prosseguindo de maneira mais concreta, os quadrados
semióticos se relacionam não apenas numa relação de antíteses, mas
sim de categorias positivas e não positivas, negativas e não negativas,
Greimas institui em sua obra, relações de espacialidade;
dimensionalidade; verticalidade; horizontalidade; perspectividade e
interalidade do objeto, pela qual os semas e lexemas agem da maneira
declarada anteriormente: a partir de + e -; os valores positivos e negativos
do objeto, são tidos a partir das subcategorias lexemicas: baut, bas, long,
court, large, étrait, vaste e épais. Todos os lexemas declarados, possuem
relação de existência, os significados são relacionados à qualidades: alto;
baixo; comprido; curto; largo; estreito. De maneira sistêmcia, se fosse
analisado um objeto, cujo objeto principal seria o retrato de um ser
humano, com expressões faciais de medo, cuja as cores ao seu redor
fossem preto e vermelho-escuro, o quadrado semiótico de Greimas e
análises sêmicas ficariam desta forma: s1(medo) - s2 (não-medo); -

1187
s1(masculino - não medo) - s2(masculino - medo); por dentro deste
quadrado, seria retratado de maneira inferente ao quadrado, cortando
de ponta - a - ponta, retratando desta maneira: s - homem; -s - vida; s1 -
s2 = homem vivo; s2 - s1 = homem morto. A essência do conteúdo, seria
a temeridade do homem, mediante o contexto que seria descoberto de
acordo com informações complementares, tais como a data da obra, o
título, e o pintor, a partir disso se inferiria o contexto histórico, a época
literária e artística, além do estilo artístico, no caso do que foi escrito, seria
o barroco, época de antíteses, então infere-se que o contexto seria de
alguém que perde-se mediante sua crença em deus e a carnalidade,
deus seria o temor, enquanto a carnalidade seria o não-temor, sendo
assim as cores: preto, vermelho-escuro, demonstrariam primeiro: o preto
como a perdição, a falta de deus ou seja o não-s2, e o vermelho-escuro,
seria a carnalidade, em antítese com a ideia de deus. Todos estes
aspectos, aos serem analisados pela visão de Greimas, inferem algo além
das relações dos quadrados, pois o interpretante deve ter consciência
dos fatos históricos, literários, artísticos etc. 183

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para Charles Sanders Peirce, o signo deve ser analisado a partir de


tríades fundamentais, contendo, pois, seus contextos, suas relações
linguísticas e suas representações por meio do visual e do texto, ou seja,
objetos multissemióticos como os memes são meios facilitadores e com
mais elementos para haver essa análise de maneira totalizada. Para
haver a confrontação entre o sistema de Peirce e Greimas, foram

183 Fiz do texto retirado.

1188
elaboradas análises a partir das tríades de dois memes, de cunho
linguístico, para relacionar ambas as teorias e além de confrontar,
observar as diferenças de ambos os sistemas. Para que haja de maneira
concreta essa questão da análise triádica, é preciso que haja de maneira
explícita a primeiridade, secundidade e terceiridade, os três elementos
serão aprofundados com subgrupos triádicos que irão se relacionar entre
si para compor como única análise, além disso, a relação triádica do
signo evidencia as questões de maior importância do objeto analisado.

Imagem 1: meme sobre a vida acadêmica.

Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/537828380476363568/>, acesso em 22 dez. 2020.

1189
Tabela 1: análise do meme com base nas tríades.

Primeiridade: Secundidade: Terceiridade:


castanho-claro(terciário); amenidade; medo; espanto;
castanho-escuro(terciário); rosa efeito de desespero; ironia; falta de calma.
amarelado(terciário); amarelo espanto e ironia;
manchado(terciário); desconfiança.
preto(neutro); branco(neutro);
amarelo-creme(terciário);

quali-signo sin-signo legi-signo

ícone: índice: símbolo:


duas mulheres; cómodas; expressão de mulheres;
cama; janela. desespero da segunda cama; expressão de
mulher; cores escuras; ambas; cores.
mulher na cama com os
olhos fechados.

rema: dicente: argumento:


mistura de cores quentes falta de paz, fato ironizado
e frias com o enfoque em cores desespero, ironias, (legenda) mediante a
escuras com poucos pontos de situação desconfortável vida académica, pela
luz. Cores neutras (branco e de morte. qual um dos requisitos é
preto) representando a antítese a publicação de
de vida e morte. artigos.

A partir destes elementos destacados, infere-se que o contexto,


apesar de ter sido mudado para a fundamentação do meme,
demonstra questões além do que se observa na imagem, que podem ser
tidas com valor analítico e de conceitos literários, o enfoque tido no
meme é então a relação do mestrando com a publicação de sua tese,
para o doutorado, muitas vezes é um requisito para o ingresso no
programa. Além disso, o desespero mostrado na imagem, infere que o
fato de uma tese ser um elemento-chave e que é dificultoso para fazer,
elaborou o óbito da mulher deitada na cama, que como último desejo,
pediu que fosse publicado.

1190
Imagem 2: meme sobre banca de TCC

disponível em: <https://economia.uol.com.br/blogs-e-colunas/coluna/reinaldo-


polito/2015/08/25/ensaiar-defesa-de-tese-ajuda-a-vencer-bancas-de-pos-graduacao-
veja-dicas.htm>, acesso em 22 dez. 2020.

Tabela 2: análise do meme com base nas tríades.

Primeiridade: Secundidade: Terceiridade:


preto, cinza e ansiedade; efeito medo; espanto; falta
branco(neutras). de desespero; efeito de de calma.
fato sério; espanto.

quali-signo sin-signo legi-signo

ícone: índice: símbolo:


cinco homens e expressão de homens e mulher,
um mulher. desespero da mulher; mesa; simbolo antigo em
cores escuras; homens formato de escutura, sala,
com expressão de escuridão.
braveza; falta de
amenidade.

rema: dicente: argumento:


Apenas cores falta de paz, fato ironizado
neutras, representando desespero, situação (legenda) mediante a vida
falta de alegria e paz, desconfortável de morte, acadêmcia, pela qual um dos
com tom sério mediante espanto. requisitos é a participação da
o contexto banca, e no caso, a banca
dará a resposta de aprovação

1191
ou não, por isso o efeito de
espanto.

Observa-se a partir destas análises, que os conceitos são concretos,


diferentemente de outros sistemas de análise semiótica; de maneira
explícita, as tríades relacionam o objeto de maneira que haja todos os
componentes que fazem sentido no signo.

O sistema Greimasiano, permite, a partir de quadrados semióticos,


que haja a substância dos objetos, mediante seus contextos, suas
antíteses principais, suas cores e tonalidades e principalmente a relação
histórica e análise das legendas com determinação concreta nos memes.
Memes neste contexto serão utilizados como objeto de análise com base
nos conceitos de Greimas, que neste artigo é leitura complementar e de
confrontação de resultados mediante o autor principal deste artigo:
Charles Sanders Peirce, pois um determina análises mediante quadrados
semióticos e outro: a partir de tríades, compondo a essência do objeto
principalmente na relação imagética. Para haver de maneira totalizada
essa questão de análise dos resultados, foram escolhidos dois memes na
área de linguística, que por si inferem conceitos, imagens, objetos,
legendas, contextos etc, partes fundamentais que concernem o signo
como detentor de concretidades.

1192
Imagem 3: meme sobre fonética.

disponível em:
<http://anacrisprofessora.blogspot.com/2018/01/transformando-
conceitos-em-memes.html>, acesso em 22 dez. 2020.

Neste contexto, demonstra-se uma africação do fonema /f/,


representado como fenômeno fonético. O contexto histórico, seria
mediante ao meme, a estilística do meme, o formato, a qualidade da
imagem e a expressão das mãos, inferem ao ano de 2011 a 2014, quando
estava se popularizando a criação de memes no Brasil, possivelmente foi
utilizado o APP meme generator, para dispositivos móveis, que facilita a
criação de memes. A expressão da mão, infere uma causalidade de
elemento pacificador, a expressão da senhora, infere a uma quase não-
visão, que é tida quando as pessoas não tem certeza daquilo que falam.

1193
A antítese entre fome e não-fome, representado pela legenda, ironiza o
fato da fonética ser aberta a análises sociolinguísticas, por exemplo, pois
não infere como absoluta verdade a gramática, e sim as formas
pluralistas de se falar algo, por isso que na fonética há as diferenças entre
os fonemas: /ʧi/ e o /ti/ por exemplo, pois depende da fala do falante,
então pressupondo que seja esta a relação do meme, o termo: /’fome/
é a inferência fonética de /ba’Xiga/. As cores predominantes são:
branco; preto; castanho; rosa-amarelado (suave); e castanho-escuro. O
que preconiza uma relação de pacificidade do objeto principal: a
senhora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perfaz-se que os memes, além de meios de replicação, são meios


mutáveis e de extrema importância para a sociedade, principalmente
no meio digital. Como são replicadores, sempre há a replicação de
novos memes na internet, e sendo assim, das informações propagadas.
Observou-se neste artigo a grande busca memética e como esse estudo
científico percorre hodiernamente, apesar de maneira implícita. A
relação biológica dos memes, desde sua estrutura, até os conteúdos
propagados, sempre possuem similaridade com outros tipos de memes,
com outras nomenclaturas e maneiras de viabilizar o objeto principal.
Com o arrecadamento de materiais e estudos complementares, possuiu-
se a visão panorâmica dos memes, e não apenas uma única perspectiva,
sendo assim, se infere que os memes possuem valor cultural, linguístico e
tecnológico e por isso, são extremamente importantes propagadores de
conteúdos, por conta de sua estrutura e também pelo fenômeno da

1194
viralização. Os memes, são ferramentas fundamentais para
compreender o funcionamento da internet, para responder a
questionamentos do porquê, por exemplo, correntes são extremamente
propagadas, e também para uso como ferramenta de auxílio
educacional, análise linguística e semiótica como determina a
BNCC(2018) e também de divulgação científica, tendo em vista a
linguagem coloquial e imagens chamativas que podem auxiliar o público
externo a compreender as informações de maneira rápida.

REFERÊNCIAS

BRASIL. (2018) Base Nacional Comum Curricular: ensino Médio. Brasília:


MEC/Secretaria de Educação Básica. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>, acesso em: 10 dez. 2020.

DAVISON, P. The language of internet memes. In: Mandiberg, M (Org.).


The social media reader. Nova Iorque: NYU Press, 2012.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. 1a ed. São Paulo: Edusp, 1972.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. 2a ed. Edusp, Editora


Cultrix, 1972.

GREIMAS, Algirdas Julien. Quadrado semiótico. disponível em:


<http://bocc.ubi.pt/pag/fidalgo-quadrado-semiotico1.html> acesso em
22 dez. 2020.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 4a ed. São Paulo: Editora Perspectiva,


2010.

1195
MORANGOS MOFADOS DE CAIO FERNANDO ABREU: UM
LEITURA PLURAL DAS IDENTIDADES DOS PROTAGONISTAS

Carmelinda Carla Carvalho e Silva 184

RESUMO:Este trabalho tem como objetivo discutir a construção da identidade dos


personagens homossexuais dos contos do livro Morangos Mofados (1982), de Caio
Fernando Abreu, propondo uma visão sobre as identidades antes consideradas fixas e
então fragmentadas através do comportamento dos personagens dentro da narrativa.
Utilizou-se estudos teóricos e críticos presentes em dissertações de mestrados e teses de
doutorados, auxiliaram-nos nessa caminhada, além das teorias de Bataille (1987), Costa
(2008), Freud (1989), Foucault (1985), Giddens (1996), Hall (2004), Silva (2012) Souza (2010)
e Trevisan (1992).

PALAVRAS-CHAVE: Morangos Mofados. Identidade. Homoerotismo. Fragmentação.

INTRODUÇÃO

Este trabalho possui como objetivo principal, analisar os elementos


constitutivos da identidade homoerótica dos personagens dos contos de
Caio Fernando Abreu, mais precisamente do livro Morangos Mofados
(1982). Não se trata de uma temática corriqueira nos meios acadêmicos,
mas depois do advento dos estudos culturais e de identidade passou a
constar nas universidades e em periódicos sérios. Embora tenhamos um
bom número de autores da literatura brasileira que versa sobre o
homoerotismo, é somente a partir do século XX que ele surge de modo
mais aberto entre literatos e leitores. Por essa razão, esse trabalho se
justifica por contribuir com essa discussão tão nova e tão esparsa.

184Mestra em Literatura, Memória e Cultura pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.


E-mail: carmelinda.sig7@gmail.com

1196
1 METODOLOGIA

Aqui trataremos de mostrar como é construída a identidade dos


sujeitos homoeróticos dos contos Além do ponto, Terça-feira gorda e
Sargento Garcia, do autor Caio Fernando Abreu, elucidando como Hall
(1992) que estuda construção da identidade dos sujeitos, dividindo-as
em três categorias: sujeito do iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-
moderno. Em seguida traçaremos um paralelo entre essas concepções e
os personagens dos contos, expondo como essas identidades se
fragmentam por meio do comportamento dos personagens dentro da
narrativa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Dentro de seus estudos, Stuart Hall (1992) analisa a crise da pós-


modernidade, tomando como centrais as mudanças estruturais que
fragmentam/desconstroem as identidades culturais de classe, gênero,
raça, etnia e nacionalidade. O processo de transformação dá-se devido
às mudanças que vem ocorrendo e nos levando a questionar como e
em que a própria modernidade está sendo transformada.

Com isso, Hall (1992) distingue três concepções de abordagem


dessas identidades no livro A identidade cultural na pós-modernidade,
que trabalha de forma profunda a crise de identidade nos sujeitos. Nesta
obra o autor indica uma mudança vagarosa das identidades dos sujeitos,
confrontado a sociedade moderna com o avanço das sociedades
tardias.

A individualidade do sujeito vai sendo construída de acordo com

1197
a evolução de sua consciência. Aos poucos essa identidade se firma no
indivíduo e torna-se uma característica que o particulariza. Hall (1992) nos
fala sobre isso, mostrando também que o tempo se encarrega de
solidificar tais identidades e que:

Ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo,


sempre sendo formada. [...] A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é "preenchida" a
partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros. (Hall, 1992, p. 10).

Ao classificar as identidades pertencentes ao indivíduo, Hall indica


a primeira concepção discutida em sua obra, a de Sujeito do Iluminismo,
que está baseada em uma concepção de um ser humano inteiramente
centralizado, com o interior sólido e possuidor de razões, onde o interior é
o seu núcleo que aflora no nascimento e continua o mesmo por toda sua
existência, tornando a personalidade do eu, sua identidade fixa, que
“surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós
como indivíduos, mas também de uma falta de inteireza” (HALL, 1992,
p.10). Dessa forma o sujeito permanecia o mesmo ao longo da vida,
sem alterações na construção do seu interior. Para ele:

O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da


pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado,
unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e
de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia,
ainda que permanecendo essencialmente o mesmo — continuo
ou "idêntico" a ele — ao longo da existência do indivíduo. O
centro essencial do eu era a identidade de urna pessoa. (HALL,
1992, p. 12).

1198
Na segunda categoria, Hall (1992) evidencia o Sujeito Sociológico,
que reflete avariedade do mundo moderno e a consciência que ele não
é independente e detentor de todos os conhecimentos sobre o meio
externo, mas formado pela interação com o mundo social, que se refere
aos sujeitos que agregam intimidade nos ciclos de vida e que
representam relevância para aquele indivíduo.

Por fim, o Sujeito Pós Moderno definido como um sujeito que passa
por uma transformação contínua, devido às formas como são
representadas as identidades nos sistemas culturais, onde o sujeito possui
identidades diferentes em distintos momentos. Para esclarecer acerca
disso, lembra Hall (1992, p. 107):

A identificação é, pois, um processo de articulação, uma


saturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há
sempre “demasiado” ou “muito pouco”
– uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste
completo, uma totalidade. Como todas as práticas de
significação, ela está sujeita ao “jogo” da différance. Ela
obedece à lógica do mais-que-um.

Hall (1992, p. 108) afirma também que os sujeitos estão


constantemente em conflito e dúvida que os colocam sempre na
indecisão de como se comportarem diante de determinadas situações.
Apresentam-se contraditoriamente dependendo do momento em que
estão vivendo. E então, a identidade antes considerada fixa, vai sofrendo
tais alterações:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,


identidades que não são unificadas ao redor de um "eu"
coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas

1199
identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL,
1992, p. 108).

Tais processos ocorrem, segundo Hall, por conta das mudanças


que se irradiam na elaboração da identidade do sujeito, que antes
buscava sua identidade nas tradições culturais, na era moderna, o que
deixa de acontecer na pós-modernidade, trazendo com isso os conflitos
pertinentes a um período diferente daquele em que o sujeito buscava a
identidade no meio social.

A ruptura da concepção de identidade como essência do sujeito


abalou o pensamento da era moderna. Em um capítulo do seu livro, Hall
aborda o “Nascimento e morte do sujeito moderno”, notabilizando como
o indivíduo focado na modernidade constrói uma nova identidade.
Nesta explanação, Hall (1992) explora os cinco momentos principais
dessa transformação:

Um outro aspecto desta questão da identidade está


relacionado ao caráter da mudança na modernidade
tardia; em particular, ao processo de mudança
conhecido como "globalização" e seu impacto sobre a
identidade cultural. Em essência, o argumento é que a
mudança na modernidade tardia tem um caráter muito
específico [...] (HALL, 1992, p. 108).

Surge então a crise de identidade, derivada de um processo


contínuo de mudanças, que está movendo e desfragmentando as
estruturas e desenvolvimentos das então sociedades modernas,
impulsionando o eixo de equilíbrio do indivíduo no mundo social, antes
era central, para uma desordem.

Compreendido como são construídas e fragmentadas as

1200
identidades que os sujeitos assumem e como se classificam cada uma
delas, passaremos ao item seguinte, realiza a análise dos três contos
selecionados e que traça um paralelo entre os apontamentos de Hall
(1992) e os personagens de Caio Fernando Abreu, em Morangos Mofados
(1982).

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Relacionar a identidade homoerótica exclusivamente ao gênero


seria defini-la apenas como um item cultural. Evidentemente essa
identidade está associada aos caracteres pertencentes aos indivíduos
assim considerados, todavia, ela se faz com partes integrantes, tais
como os traços peculiares e interferências do meio externo. Desse modo,
todo indivíduo possui e assume obrigatoriamente uma identidade.

No caso dos sujeitos homossexuais, essa identidade é parte


fundamental no processo de aceitação da orientação sexual a que
pertencem. Costa (1992) revela que a identidade faz relação a tudo que
constitua o eu do sujeito e no caso da identidade homoerótica, o sujeito
está automaticamente ligado a essa peculiaridade.

O quinto conto da primeira parte de Morangos Mofados chama-se


Além do ponto aborda as dificuldades encontradas por um personagem
durante o trajeto até o apartamento de outro indivíduo que o aguarda.
Narrado em primeira pessoa, o conto explora a ansiedade vivenciada
pelo protagonista, um homem, ao ir ao encontro marcado com um
indivíduo também do sexo masculino.

Cercado de obstáculos inicia-se o caminho descrito pelo narrador,

1201
que cria um cenário imaginário, envolvente e sensual, cheio de desejos
e ideias para o encontro:

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao


encontro dele, sem guarda- chuva nem nada [...] e eu pensei
com força então que seria melhor chegar molhado da chuva,
porque aí beberíamos o conhaque [...] fumaríamos, beberíamos
sem medidas, haveria música e o olho dele posto em cima de
mim, ducha morna distendendo meus músculos. (ABREU, 2005, p.
45).

No entanto, o protagonista se decepciona, uma vez que o tal


encontro e as possíveis fantasias não se realizam, pois o homem que o
aguardava não abre a porta:

[...] eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar,


mas eu não ia indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade
[...] nem tentava outra coisa, outra ação, outro gesto além de
continuar batendo batendo batendo batendo batendo
batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca.
(ABREU, 2005, p. 48).

Como o próprio título remete, Além do ponto produz algo que


passa do limite. Isso é notável na ansiedade vivenciada pelo
personagem principal. O personagem vai, enquanto caminha para o tal
encontro, fazendo uma reflexão da própria vida, descobrindo o seu eu e
sua visão do mundo. Vai construindo, através dessa descoberta, sua
identidade.

O companheiro que o aguarda, de acordo com o protagonista, é


a referência que ele tem. Segundo Costa (1996, p. 67), “o referente ou
referentes da identidade homossexual não podem existir sem uma

1202
relação entre o gênero com que se relaciona”, ou seja, um indivíduo
masculino busca uma referência em outro do mesmo gênero para assim
firmar-se como homossexual.”

Como afirmamos antes, o desejo é essencial em uma relação, seja


ela homossexual ou não, mas de um modo particular, na relação entre
dois indivíduos do sexo masculino, esse desejo, segundo Freud (1973, p.
60) está associado ao desejo sexual feminino, ou seja, o possuidor de um
desejo sexual feminino terá fantasias sexuais que estejam relacionadas às
características femininas, onde um dos indivíduos desempenhará o papel
da mulher no ato sexual, seja por meio da forma como consumarão a
penetração ou através de gestos e palavras diante da prática libertina.

No conto Além do ponto isso não é apresentado. O narrador


personagem e o seu companheiro não esboçam características
afeminadas. Isso talvez não ocorra pelo fato de Caio Fernando Abreu não
ter elaborado os personagens com a identidade gay marcada
necessariamente nos modos como se comportam, mas simplesmente
pelo desejo por uma pessoa do mesmo sexo. Isto contraria o pensamento
de Souza (2010, p. 17), ao afirmar que “gay não é necessariamente
aquele que deseja uma pessoa do mesmo sexo, mas aquele que tem um
estilo de vida diferente [...] de ver e viver a vida”.

A atração que o personagem sentia naquele determinado


momento é tão forte que ele chega a inventar o desejo do outro por ele.
De modo que o que move o personagem principalé o desejo, esse ponto
como o próprio título fala, é ultrapassado justamente por esse exagero
de expectativas quanto ao encontro dos dois, afligindo a identidade do
personagem:

1203
[...] porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo
porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele
ponto de estar parado (...) eu ia daquele jeito estranho de já ter
estado lá sem nunca ter, hesitava, mas ia indo, no meio da
cidade com um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha.
(ABREU, 2005, p. 46-47).

A fragmentação da identidade nesse personagem é


inegavelmente percebida quando ele, que até então parecia conhecer
o companheiro, mostra que nem seu nome sabe. Que caminha rumo ao
desconhecido, a um encontro com um estranho que o aguarda para
executarem o coito sexual.

A necessidade de respostas, de descobertas acerca do eu, fazem


o protagonista ficar perdido e decepcionado ao descobrir que a pessoa
com quem tanto sonhou não existe ou simplesmente não possui o mesmo
desejo que ele. Ao chegar ao apartamento completamente molhado e
cheirando a conhaque, ele bate insistentemente à porta que não se abre:

E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem


me importar com que as pessoas da rua parassem para me olhar,
eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que
alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia. (ABREU, 2005,
p. 48).

Finalmente o narrador parece acordar do mundo de fantasias que


criou e admite que possa ter se enganado. Que não havia um homem a
sua espera e que tudo não passou de uma loucura criada pelo desejo
sexual que estava sentindo naquele momento.

O conto se encerra justamente nessa ocasião, deixando o leitor


frente a frente com uma narração possivelmente conhecida por todos
nós ao nos acharmos diante do desejo pelo outro. Criamos muitas

1204
expectativas, toda uma fantasia íntima e que, muitas vezes, acabamos
por nos decepcionar.

A fragmentação da identidade do eu ocorre, neste conto, através


do comportamento que o indivíduo apresenta. O personagem de Além
do ponto expõe comportamentos que ora pertencem ao desejo de
vivenciar uma relação com outro indivíduo do sexo masculino, ora
descobre que não existe essa pessoa, que se encontra completamente
sozinho. Tal comportamento, conforme Costa (1992) é
fundamentalmente parte do eu:

[...] é um termo genérico que designa tudo aquilo que o sujeito


experimenta e descreve como sendo ou fazendo parte do eu.
Portanto, o comportamento é parte do eu, mas o eu é mais que
o comportamento. No caso da identidade homossexual, além
do comportamento entendido ou não como conduta
intencional voltada para objetivos, existe um outro elemento, o
desejo ou atração homoerótica.” (COSTA, 1992, p 153).

A identidade fixa está associada diretamente ao comportamento,


ou seja, conforme os sujeitos homossexuais moldam a sua conduta
perante a sociedade, pode haver uma descentralização da identidade
antes possuída, apontando traços que tornam os desejos mais visíveis nas
relações mais diversas: desejos exacerbados, com vontade de explodir
tudo o que sentem e vivenciam em determinado momento.

Terça-feira gorda, conto também pertencente à primeira parte de


Morangos Mofados, O mofo, narra um encontro de um casal gay e o
comportamento da sociedade diante dessa relação, exposta em um
local público, uma festa de carnaval.

É um conto que trabalha de forma explícita o desejo entre dois


homens, identificados pelo narrador, em primeira pessoa, como sendo eu

1205
e ele. O descreve de maneira rica o encontro com seu parceiro, ao
mesmo tempo, nos mostra como os dois são recriminados pelos que ali se
encontravam. Embora o conto tenha um desfecho triste, retrata o que
na maioria das vezes acontece com indivíduos homossexuais que
expressam qualquer tipo de sentimento frente à sociedade. A narrativa
expõe também o prazer de ambos ao se encontrarem, como podemos
verificar no fragmento seguinte:

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para


mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre
as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase
sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna,
vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem
identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos
de plástico. (ABREU, 2005, p. 57).

Dos contos aqui analisados, esse é o que mostra identidades mais


sólidas, personagens que sabem e aceitam a orientação sexual que
possuem, não encontrando nisso nenhum empecilho para viver uma
relação afetiva. Ao contrário, expõem-se e pagam o preço diante dos
outros por essa exposição.

Eu estava todo suado. Todos estavam suados, mas eu não via


mais ninguém além dele. Eu já o tinha o visto antes, não ali. [...]
Havia o movimento, dança, o suor, os corpos meu e dele se
aproximando mornos, sem querer mais nada além daquele
chegar mais perto. (ABREU, 2005, p. 56).

É perceptível que o envolvimento entre os dois é descrito de uma


forma mais erótica e menos sexual. Por mais que sentissem atração e
desejo enquanto sambavam em uma roda, não deixavam esse desejo
transparecer de modo tão explícito. Falam das sensações que

1206
vivenciaram olhando um para o outro, dos desejos, como vemos a seguir:

Eu queria aquele corpo de homem sambando suado bonito ali


na minha frente. Quero você, ele disse. Eu disse quero você
também. [...] Sorriu mais largo, uns dentes claros. Passou a mão
pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. (ABREU, 2005,
p. 57).

Há nitidamente um processo de sedução na cena dos dois, e não


simplesmente um desejo animal por sexo. Nota-se todo um processo
erótico de conquista e sedução no encontro dos dois, quebrando
também o tabu da animalidade na relação entre dois homens.

Por outro lado, Souza (2010) nos esclarece que há indivíduos


masculinos que, em um relacionamento com outro do mesmo sexo,
assumem o papel da mulher. Nesses casos, as expressões utilizadas para
fazer referência a esses sujeitos são, na maioria das vezes, termos
pejorativos tais como: bicha, veado, baitola, tudo que evidencie um
homem fragmentado que assume a condição feminina para compor a
identidade.

Em Terça-feira gorda esse tipo denominação não existe. Os


personagens não sedeixam envolver pelas influências externas do meio,
isso é encontrado tanto na não utilização dos traços femininos em seus
comportamentos, bem como, no fato de não demonstrarem
preocupação com o que as pessoas ali presentes pensam ou não a
respeito do que estão vivendo, como se pode ver no trecho abaixo:

Na minha frente ficamos nos olhando. Eu também dançava


agora, acompanhando o movimento dele. Eu queria aquele
corpo de homem sambando suado bonito ali na minha frente.
Quero você ele disse. Eu disse quero você também. Mas quero
agora já neste momento imediato, quero aqui [...]. (ABREU, 2005,
p. 57).

1207
Os personagens do conto em análise podem muito bem estar no
âmbito daquilo que Hall (1992) chamou de sujeito pós-moderno, pois
sentem-se livres para viver a atração mútua, demonstrando que eles não
comungam das ideias gerais da sociedade acerca da relação afetiva,
que a concebe como normal apenas para heterossexuais.

Mais adiante há a cena em que trocam beijos e carícias, de forma


explícita. O personagem nos conta da comparação que fazem entre o
beijo e a fruta:

Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha.


Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da
faca uma cruz na extremidade mais arredondada e rasga
devagar a polpa revelando o interior rosado cheio de grãos.
Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta, mas uma flor
que abre para dentro (ABREU, 2005, p. 57).

O desfecho do conto é contrário à expectativa do leitor. Os dois


resolvem sair da festa e vão em busca de um local mais tranqüilo onde
possam conversar e ficar mais à vontade. O lugar escolhido é a praia,
onde já, em meados da noite, caminham em busca de sentirem o que
mais há de prazeroso entre eles. Entretanto, um grupo de pessoas
aparece no momento em que já estavam nus.

O terceiro e último conto aqui examinado, Sargento Garcia,


pertence à parte da obra chamada Os morangos. Dentre os contos
explorados, esse é o que exterioriza o homossexualismo de forma mais
ostensiva, mais clara, mais explícita. Através da narrativa e da descrição
dos atos eróticos das personagens, o conto apresenta a relação sexual
entre dois homens, deixando o leitor consciente de tudo que acontece
nesse contato afetivo e erótico.

1208
Também é nesse conto em que a identidade dos personagens é
trabalhada de forma transparente. O interesse homossexual é tratado de
modo crítico, como se o narrador estivesse fazendo uma crítica sobre a
posição de masculinidade com a qual se comportam os jovens que
servem o exército, uma vez que a narração revela a primeira experiência
sexual de Hermes, jovem pertencente a um grupo que se alista no serviço
militar, e que tem como chefe o sargento Garcia.

Garcia, então sargento do exercito, surge na narrativa como o


oposto do machão que serve à pátria. É ele, aliás, quem inicia Hermes na
vida homossexual. Isso já é perceptível nas primeiras linhas do conto,
quando o narrador personagem Hemes nos mostra que observa o
sargento e a forma como ele o provoca. Durante todo o conto, Hermes
se mostra consciente do interesse de Garcia por ele, escolhido no meio
de um grupo de adolescentes.

No primeiro contato do leitor com o conto, o personagem já é


apresentado como narrador e, portanto, do sexo masculino. Hermes
lembra que “Aos outros olhava nus, como eu” (ABREU, 2005, p. 79). O
personagem descreve o momento em que o sargento Garcia fazia a
inspeção dos jovens alistados para o serviço no exercito. Hermes fala da
apresentação dos jovens ao superior, todos em um pátio, nus e Garcia, o
sargento o chama com curiosidade a fim de saber a quem pertencia
aquele nome:

- Hermes.
- Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?
- Sou eu.
- Sou eu, meu sargento. Repita. (ABREU, 2005, p. 79).

1209
Mostrando-se superior e digno de todo respeito, Garcia faz pressão
nos jovens, e não por um acaso, escolhe coagir principalmente o tímido
Hermes, que via na figura do Sargento, um homem insuportável.
Analisava detidamente os seus traços:

Parecia divertido, o olho verde frio de cobra quase oculto sob as


sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava
a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo
rastejando AM volta da boca, cortina de veludo negro
entreaberta sobre os lábios molhados. (ABREU, 2005, p. 80).

Garcia provoca Hermes com perguntas que fazem o rapaz sentir


ainda mais receio do sargento. “Tem cera nos ouvidos, pamonha?”
(ABREU, 2005, p. 80) e quando Hermes o responde que “Não, meu
sargento” (ABREU, 2005, p. 80), o Sargento pergunta indiretamente se o
jovem ainda é virgem “E no rabo?” (ABREU, 2005, p. 80). Entendendo do
que falava o sargento, Hermes não esboçou nenhuma reação a não ser
permanecer em silêncio enquanto os outros rapazes riam
demasiadamente.

Era notório em Garcia o desejo homoerótico de transar com


Hermes sem que houvesse sentimento algum ou a menos a possibilidade
de existir futuramente. Nesse caso, podemos associá-lo, ao
posicionamento a cerca da identidade, como sendo formada tão
somente pelo desejo de vivenciar o ato sexual, como lembra Souza
(2010):

[...] o desejo homoerótico é o ‘impulso’ ou força de atração que


faz com que um indivíduo de um sexo sinta a ‘necessidade’ de
unir-se a outro do mesmo sexo, podendo ser essa união apenas
afetiva, apenas sexual, ou mesmo afetivo-sexual. (SOUZA, 2010,
p. 53).

1210
Em conformidade com Souza (2010, p. 55) “por um lado, a
identidade gay está sendo defendida ou rejeitada e, de outro, há uma
especificidade centrada no desejo homoerótico”. Ou seja, esse desejo
faz com que o personagem Garcia sinta-se atraído pelo jovem Hermes,
e queira vivenciar a prática sexual, transar e satisfazer sua fantasia com
o rapaz. Isso faz dele um sujeito em conflito, pós-moderno, fragmentado,
como nos diz Hall (1992): é o macho do exército que sente atração por
um garoto e consuma o ato sexual.

Após ser dispensado por Garcia, Hermes veste-se e então sai do


quartel em direção ao bonde que o levaria a sua casa. Não surpreso,
mas disfarçando tal reação, Garcia surge em seu carro e em um
pequeno diálogo convence Hermes a aceitar sua carona.

- Vai pra cidade?


Como se estivesse surpreso, espiei pra dentro. Ele estava
debruçado na janela, o sol iluminando o meio sorriso, fazendo
brilhar o remendo dourado do canino esquerdo.
- Quer carona?
- Vou tomar o bonde logo ali na Azenha.
- Te deixo lá – disse. E abriu a porta do carro. (ABREU, 2005, p. 85).

Já dentro do carro, Hermes vê o sargento fumando e pede-lhe um


cigarro, mesmo sem nunca ter fumado. “Me dá um cigarro – pedi. Ele
acendeu. Tossi.” (ABREU, 2005, p. 88). Hermes tenta adequar-se àquele
ambiente, o espaço do sargento, adquirindo característica do sujeito
sociológico que observa o outro deixa se influenciar pelo outro e pelo
meio.

Durante o trajeto, que até então seria para a casa de Hermes, o


sargento se mostra menos duro, deixando o garoto mais à vontade.

1211
Conversam sobre o quartel, a vida foradaquele ambiente: “Não parecia
mais um leão, nem general espartano. A voz macia era de um homem
comum, sentado na direção de seu carro.” (ABREU, 2005, p. 86).
Continuaram o percurso e Garcia indaga de Hermes se ele sentiu medo
dele quando o pressionou no quartel:

- Ficou com medo de mim?


- Não sei. [...] Bom, no começo fiquei um pouco. Depois vi que
o senhor estava do meu lado.
- Senhor não: Garcia, abagualada toda me chama de Garcia.
Luiz Garcia de Souza. Sargento Garcia. (ABREU, 2005, p. 86).

Percebemos nesse fragmento, que Garcia de desfaz da forma séria


com que os recrutas o tratam, Hermes vai perdendo a timidez até o
momento em que Garcia começa a falar que o viu de uma forma
diferente dos outros, achando-o educado e gentil comparado aos
demais e logo dá indícios de que quer levar Hermes para outro lugar que
não seja sua casa.

- Mas contigo é diferente.


- Diferente como?
- Assim, um moço fino, educado. Bonito [...] – Escuta, tu tem
mesmo que ir embora já? (ABREU, 2005, p. 87).

Hermes reponde que não, que pode demorar mais um pouco.


Garcia pergunta para o rapaz se este não que ir com ele a um lugar onde
possam ficar mais à vontade e Hermes indaga sobre que lugar seria esse:
“- Um lugar aí. Coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como
é. Ninguém incomoda. Quer?” (ABREU, 2005, p. 88). Com a resposta de
Garcia, Hermes entendeu a intenção real do sargento.

1212
O jovem permanece calado, mas Garcia não precisa da
afirmativa do garoto. O sargento fala: “Claro que quer. Estou vendo que
tu não quer outra coisa, guri” (ABREU, 2005, p 88). Neste momento, o
narrado Hermes nos mostra que não se assusta com a insinuação de
Garcia e nos conta o que acontece dentro do carro, antes de chegarem
ao destino em que o sargento o levará:

Pegou minha mão. Conduziu-a até o meio das pernas dele.


Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase
estourando a calça verde. Moveu-se quando toquei e inchou
mais. Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-
excitadas. (ABREU, 2005, p. 89).

Hermes tem um lapso de lembranças de quando na infância seus


primos o chamavam de “maricão, mariquinha” (ABREU, 2005, p 89) e
afirma para Garcia que nunca fizera aquilo.

O ápice da transa entre os dois acontece quando Garcia penetra


Hermes, sendo assim o ativo da relação. O rapaz sente um certo
incômodo quanto a penetração, embora goste. Chega a um
determinado momento em que a dor é tamanha que não suporta e
tenta afastar o sargento:

Com os joelhos, lento firme, ele abria caminho entre as minhas


coxas, procurando passagem. [...] Quis gritar, mas as duas mãos
se fecharam sobre a minha boca. Ele empurrou gemendo. Sem
querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma
caverna escondida. Mordeu minha nuca. Com um movimento
brusco do corpo, procurei jogá-lo para fora de mim. (ABREU,
2005, p. 92).

Garcia parecia ter uma fome insaciável quando o chama de “-


Seu puto [...] veadinho sujo” (ABREU, 2005, p. 92) e Hermes estava

1213
gostando da sensação de ter um pênis dentro de si. Foi então que o
rapaz deitou-se novamente de bruços a espera de Garcia, que se jogou
por cima e continuou a estimulá-lo mais ainda. O personagem-narrador
conta que:

Comprimiu o corpo inteiro contra o meu. Eu podia sentir os pêlos


molhados do peito dele melando a minha pele. Quis empurrá-lo
outra vez, mas entre o pensamento e o gesto, ele juntou-se
ainda mais a mim, de depois de um gemido mais fundo, e depois
de um estremecimento no corpo inteiro, e depois de um líquido
grosso morno viscoso espalhou-se pela minha barriga. (ABREU,
2005, p. 92).

Souza (2010) argumenta que há, na relação sexual entre dois


homens, uma necessidade de domínio, de violência como forma de
estimular e fazer sentir a ambos desejados e saciados. Utilizam-se “da
agressão física, para firmar a masculinidade” (SOUSA, 2010, p. 93), talvez
porque o desejo que sentem seja condenado pela sociedade,
considerado como pecado e vivem em um meio em que a consumação
carnal é rejeitada, daí os conflitos dos sujeitos pós-modernos: tem o direito
de viver o desejo, mas sabem que este desejo é condenado pela maior
parte da sociedade.

A falta de qualquer tipo de sentimento ou interesse de um pelo


outro é tamanha que após o gozo de ambos, Garcia pega um rolo de
papel higiênico para limpar o as partes íntima e Hermes apressadamente
veste-se, olha para trás e a última visão que tem antes de sair do quarto,
é o sargento Garcia limpando-se e sua farda verde jogada em cima de
uma cadeira. E tranqüilo, narra:

1214
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em busca de exibir a constituição da identidade do sujeito, a partir


da análise dos contos de Caio Fernando Abreu em Morangos Mofados,
fundamentados nos tipos de sujeito apresentados por Hall, chegamos à
conclusão de que nenhum dos três tipos apontados pelo teórico possui
caráter sólido e permanente, mas ao contrário, pois, independente da
identidadecom que o sujeito se identifique, ela se encontra em constante
transformação.

Baseados nisso, chegamos à constatação, através da observação


dos diálogos e descrições presentes nos contos de Caio Fernando Abreu,
de que os personagens dos contos investigados esboçam as
características típicas do sujeito pós-moderno, que está em constante
mudança, portanto, em conflito. Em alguns desses contos, como vimos,
há personagens que se apresentam aparentemente como sujeitos
centrados, com características que os enquadram como sendo donos
de si, decididos sobre o que desejam, mas, logo se desenrola a narrativa,
estabelece-se o conflito.

Percebemos que esses mesmos personagens se modificam,


tornando-se indivíduos cheios de dúvidas sobre seus desejos
homoeróticos, sobre sua sexualidade e sobre como se comportar diante
do desejo pelos parceiros. Assim, a fragmentação da identidade é
facilmente notável. Os personagens assumem diferentes características,
demonstram desejos distintos em diferentes momentos.

Entender como tais indivíduos se comportam dentro da sociedade


é importante para que se possa compreender como muitos sujeitos, de
fato, se sentem e quais os conflitos que vivenciam. No caso particular dos

1215
sujeitos com inclinações homossexuais, essa identidade é fortemente
influenciada pelo comportamento que apresentam pelo meio que os
cerca e pela convivência com seus parceiros, como vimos nas narrativas
em análise.

Verificamos ainda que há personagens nos contos que não


apresentam tanta desfragmentação da identidade, mas um conflito
com o eu, que por vezes se contradiz. Encontramos também, no caso
específico de Garcia, de o conto “O Sargento Garcia”, um sujeito
totalmente influenciado pelo desejo sexual, fazendo de Hermes seu
objeto de prazer, que logo saciado, vai embora sem nenhum sentimento.

Concluímos ao final deste trabalho e a partir dos personagens de


Morangos Mofados, que nenhum indivíduo é detentor de si em absoluto,
mas que o meio externo, as pessoas com as quais se convive, o modo
de ver o mundo, influenciam diretamente na constituição da nossa
identidade.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. São Paulo: círculo do livro,


1986.

BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo em questão. – Rio


de Janeiro: Dialogarts, 2006.

BATAILLE, Georges. O erotismo. tradução de Antonio Carlos Viana. —


Porto Alegre: L&PM, 1987.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de


Janeiro: Imago Editora Ltda. 1973.

1216
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Edições Graal Ltda, 1985.

HALL, Stuart. A identidade do sujeito na pós-modernidade. tradução


Tomaz Tadeu daSilva, Guaracira Lopes Louro- 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2004.

PORTO, Luana Teixeira. Fragmentos e diálogos: história e


intertextualidade no conto de Caio Fernando Abreu. Porto Alegre:
UFRGS, 2011.

SOUZA, Warley Matias de, Literatura homoerótica: o homoerotismo em


seis narrativas brasileiras. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

1217
TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA: O AUTO DA COMPADECIDA DE
ARIANO SUASSUNA ADAPTADO PARA O CINEMA

Carmelinda Carla Carvalho e Silva 185

RESUMO: O presente trabalho propõe-se a realizar uma análise da relação entre


literatura e cinema, tendo como objeto a obra de Ariano Suassuna O Auto da
Compadecida. Objetivou-se compreender como ocorre essa relação, a partir do
questionamento sobre a fidelidade no processo de adaptação. Para isso, buscou-se
investigar a “relação” entre duas linguagens: literatura e cinema, analisando quais
elementos do romance estão presentes na adaptação e verificando que aspectos
foram modificados. Como base teórica, buscamos apoio nas postulações de autores
como Tânia Franco Carvalhal (2006), Mirian Tavares (2006) e Marcel Martins (2003).

PALAVRAS-CHAVE: Comparação. Literatura e cinema. Obra literária. Adaptação fílmica.

INTRODUÇÃO

Sabendo da importância de trabalhos sobre viés da comparação


para a edificação da história da literatura e tendo em vista a esparsa
fortuna crítica em torno das obras fílmicas, propomo-nos a realizar uma
pesquisa de cunho bibliográfico a respeito da comparação entre obra
literária O Auto da Compadecida e sua adaptação para o cinema. Para
tanto, estabelecemos como principal objetivo investigar a “relação”
entre as duas linguagens: literatura e cinema. Além de analisar quais
elementos do romance estão presentes na adaptação. E verificar que
aspectos foram modificados na adaptação.
Assim, estabeleceremos a ligação entre a análise a qual nos
propomos e respaldo teórico, uma vez que percebemos que esses
estudos já são questionados e identificados como uma forma que liga as

185Mestra em Literatura, Memória e Cultura pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.


E-mail: carmelinda.sig7@gmail.com

1218
duas literaturas. Apresentando novos olhares, procuraremos apontar
tópicos onde a adaptação se aproxima e se difere do romance físico a
fim de destacar e justificar nossos estudos embasados na Literatura
Comparada destacamos estudos que embasem tal discussão bem
como aproximar a teoria aqui proposta com o objeto em análise.

1 METODOLOGIA

Para realização desse artigo fez necessário o levantamento dos


principais estudos teóricos das concepções de Literatura Comparada
dentre os quais destacamos Tânia Franco Carvalhal (2006) e sobre a
relação Literatura e Cinema Mirian Tavares (2006) e Marcel Martins (2003).
Este trabalho apresenta no subtítulo 2 os pressupostos sobre a
Literatura comparada, que será base para nossa análise. Onde
conceituaremos a literatura comparada e apresentaremos ideias de
alguns teóricos (já citados acima). Em seguida reuniremos postulações
sobre a Literatura e o Cinema. Como essa relação é vista pelos críticos.
Após expormos a parte teórica, partiremos para um breve estudo
da obra literária, apresentando seus personagens e seus papeis para
apresentação da peça. Em seguida iniciaremos a análise, onde serão
apontados os elementos que se destacam na obra adaptada.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A princípio, quando nos propomos a conceituar “literatura


comparada”, a entendemos como uma maneira de afrontar as
literaturas, como forma de investigarmos suas características literárias.
Tania Franco Carvalhal (2006) destaca o procedimento de comparação

1219
como uma estrutura que faz parte do pensamento e da organização da
cultura. E comparar é um ato perceptível/presente em diferentes áreas
do conhecimento.
No entanto, no papel de crítico literário ao analisar uma obra, faz-
se necessário à relação de confronto entre obras de outros autores para
que se possa apresentar juízos de valores. Assim, para Carvalhal (2006), a
comparação é um meio de conferir se os objetos confrontados são iguais
ou diferentes.
De acordo com as postulações de Pichois & Rosseau apud Chervrel
(1997:9), a literatura comparada possibilita o enfoque de textos advindos
de diferentes épocas, de diferentes culturas. O que só destaca ainda
mais a importância de tal literatura e suas contribuição para o acervo
literário. Torna-se interessante destacar também as palavras de Carvalhal
(2006) sobre a proposta da literatura comparada, a qual pode guiar
pesquisas que englobam tal tema. A sugestão é a seguinte:

A investigação das hipóteses intertextuais, o exame dos modos


de absorção ou transformação (como um texto ou um sistema
incorpora elementos alheios ou os rejeita), permite que
observem os processos de assimilação criativa dos elementos,
favorecendo não só o conhecimento das peculiaridades de
cada texto, mas também o entendimento dos processos de
produção literária.
[...] Daí a necessidade de articular investigação comparativista
com o social, político, o cultural, em sua, com a História num
sentido abrangente.

Por meio das palavras da autora, citadas acima, observamos que


esses pressupostos servem como um meio de seguir nos estudos da
literatura comparada, como nos propomos neste trabalho. Analisar as
absorções, transformações e peculiaridade de cada meio (texto e filme)
para que possamos estabelecer a relação existente.

1220
A literatura comparada tem uma grande importância dentro do
contexto social, político, cultural e histórico, como já citamos, Carvalhal
(2006) ressalta que o comparativismo busca explicações para questões
literárias mais amplas, que exijam mais engajamento. Seu objetivo não é
tão/somente comparar obras.
Pois assim, buscará uma investigação de contextos diferentes.
Possibilitando a ampliação dos horizontes literários, estéticos. E torna tal
trabalho formidável, porque permite análise que contribuem para a visão
crítica literária dentro do contexto literário nacional.
Outro ponto interessante para destacar entre as comparações
feitas sobre os textos/obras em estudo é a relação invenção e imitação.
Como ocorre essa relação. Carvalhal (2006) destaca:

Modernamente o conceito de imitação ou cópia perde seu


caráter pejorativo, diluindo a noção de dívida antes firmada na
identificação de influências. Além disso, sabemos que a
repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto,
etc.) nunca é inocente. Nem a colagem nem a alusão e, muitos
menos, a paródia. Toda repetição está carregada de uma
intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer
modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao
texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando
acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-
o e (por que não dizê-lo?) o reinventa. Toda apropriação é, em
suma, uma “prática dissolvente”.

Assim entendemos que o que deve ser considerado é a proposta


por trás dessa ‘apropriação’. Que há uma intencionalidade e apontá-la.
Não apenas observar pontos controversos e sim que há muito a se ganhar
com análise de comparativa, já que essa é uma teoria muito pesquisada
e que é de grande relevância para os estudos acerca do cinema.

1221
2 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Sabemos que a literatura possibilita a relação com várias artes.


Com trajetos não apenas críticos, mas também metodológicos o que se
refere à leitura e forma de ver tais obras. Entre tantas relações literárias
destaca-se a relação entre obra literária e adaptação cinematográfica.
O cinema e a literatura são linguagens que além de se relacionar
podem se complementar. Alargando os horizontes interpretativos. O
cinema dá uma maior visibilidade à obra literária na sua forma de ‘contar
histórias’. Como percebemos no passar dos anos, com o surgimento de
novas formas literárias, a possibilidade de interação entre as artes.
Compreendemos que a literatura pode apresentar diferentes
formas de escrita que a em diferentes contextos. Neste trabalho
centralizamos a relação entre obra literária e cinema (adaptação
cinematográfica). Como ponto de partida destacaram as postulações
de Mirian Tavares (2006) em Cinema e Literatura: desencontros formais:

Quando a fotografia aparece, a pintura sente-se finalmente


liberta para seu grande voo formal. E enquanto o cinema surge,
a literatura sente que a sua hora chegou. Não mais narrar
simplesmente. A grande máquina narrativa acabara de nascer.
Agora era o instante mesmo da criação, dos desvios, do gozo
provocado pelas palavras que ultrapassam o contar, tornando-
se, elas mesmas, potenciais poemas. Deixam de ser habituais, e
ao ser retiradas desta obrigação do contar, tornam-se plásticas,
imagéticas. (TAVARES, 2006, p. 7).

Tavares (2006) exemplifica em primeiro lugar a relação da literatura


com a pintura. O que torna a literatura mais liberta, o que a faz levantar
voo. Se a pintura, que trabalha a imagem é libertadora, o cinema vem
como forma de grande potencial em contar histórias.

1222
Com o surgimento dessa nova arte iniciam-se várias análises
quanto à relação da obra literária e sua adaptação. Destacando-se os
pontos que tornam essa relação tão grandiosa. Uma das questões que
merecem destaque dessa relação é a formação da imagem que é
mental na leitura de obra literária e no cinema a imagem está diante do
espectador.
Neste caso, não significa que ele não precise detalhá-la para total
entendimento. Por meio desse viés, Marcel Martins (2003) em “A
linguagem cinematográfica destaca:

[A imagem] entrava em relação dialética com o espectador


num complexo afetivointelectual, e a significação que adquiria
na tela dependia, em última análise, quase tanto da atividade
mental do espectador quanto da vontade criadora do diretor
[...]. Tudo que é mostrado na tela tem, portanto, um sentido e,
na maioria das vezes, uma segunda significação que só
aparecem através da reflexão; poderíamos dizer que toda
imagem implica mais do que explicita. (MARTIN, 2003, p. 92).

A partir dessas palavras inferimos que, assim como na leitura da


obra literária há um jogo de entendimento entre as palavras e que há
essa formação de imagem, no cinema a relação também é de reflexão
de cada espectador. À medida que “lemos” as linguagens apresentadas
percebemos novos meios de compreensão.
Sobre o processo de adaptação pairam grandes questionamentos.
Deborah Cartmell, Timothy Corrigan e Imedla Whelehan na primeira
edição do periódico Adaptation (2008) apresentam dez razões sobre as
dificuldades enfrentadas pelas adaptações. São elas; A adaptação
como “cinema impuro”; Adaptação como “usurpações de obras-primas
literárias”; A questão instrucional; A crítica logocêntrica; Dinheiro e arte
não podem se misturar; A fetichização do gênio individual; O fantasma

1223
de Platão; A adaptação como perda; A concentração em textos
canônicos e o Pressuposto de origem única.
Entre as dez dificuldades encontradas destacamos a Adaptação
como cinema impuro; Adaptação como “usurpações de obras-primas
literárias e a adaptação como perda”. Alvaro Hattnher em Invertendo os
Vetores: filmes gerando literatura explicita a questão da Adaptação
como ‘cinema impuro’ que as adaptações para o cinema eram vistas
como impuras por serem opostos a uma dependência de suporte em
relação à literatura.
Em relação à Adaptação como “usurpações de obras-primas
literárias destaca que alguns autores achavam um ameaça a
literariedade em relação ao livro e sobre, e assim foram banidas dos
estudos literários a partir de 1992”.
No entanto o que se deve observar nas observações não é a
relação de “fidelidade”, mas a importância de produção em cada
contexto/meio. Quando fincamos o estudo na relação de fidelidade
podemos estar neutralizando elementos que diferencie uma obra da
outra.
Além do mais devemos observar quão grandioso é o trabalho que
o cineasta tem ao retratar o romance em obra fílmica. E os dilemas
enfrentados, já que muitas vezes ao tentar inovar causam consequências
diferentes das pretendidas. BAZIM (1991) destaca:

Considerar a adaptação fílmica como um exercício preguiçoso


com o qual o verdadeiro cinema, “o cinema puro”, não teria
nada a ganhar, é, portanto, um contra-senso crítico desmentido
por toadas as adaptações de valor. São aqueles que menos se
preocupam com a fidelidade em nome de pretensas exigências
da tela que traem a um só tempo a literatura e o cinema.

1224
É notório que haverá diferenças entre as artes comparadas. Entre
as analisadas percebemos que s diferenças partem do princípio do
discurso literário e fílmica é a questão do quantitativo (quando
analisamos as cenas tanto literária e fílmica) fazemos as relações de
tamanho em relação à outra. O que procuramos ressaltar dessa relação
é que ela é de troca ou correspondência, mesmo sendo independentes.
A troca que essa relação permite que possamos ver novos contextos,
novos significados.
O Auto da Compadecida, obra em análise, é uma peça teatral
escrita por Ariano Suassuna, a qual faz referência a elementos do teatro
popular. Suassuna foi um renomado escritor, um dos melhores, e
dramaturgo. Valoriza as artes populares.
Foi idealizador do Movimento Armorial, com objetivo de criar uma
cultura de caráter erudito baseada em elementos da cultura popular do
Nordeste. Em 1989 tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras,
ocupando a cadeira nº 32. Pertenceu a Academia Pernambucana de
Letras (1993) e Academia Paraibana de Letras (a partir de 2000).
Auto da Compadecida (1955) ganhou destaque quando foi
encenada no Rio de Janeiro, em 1957, no Festival de Amadores
Nacionais. Seu enredo tem por base os autos medievais de Gil Vicente e
a autores do gênero cordel.
O professor Marcílio B. Gomes Jr (2012), da Oficina do Estudante de
Campinas (SP) descreve a peça como: “Auto da Compadecida, peça
teatral de Ariano Suassuna, é um auto (peça de apenas um ato) que
consubstancia a tradição do teatro medieval português ao contexto
social e histórico do nordeste brasileiro.”.
Fazem parte da peça de Suassuna as seguintes personagens: o
palhaço (que apresenta a peça), João Grilo (inteligente e consegue sair

1225
de enrascadas) e Chicó (medroso e contador de causos); Antônio Morais
(homem de posses), Padre Antônio, o Sacristão, Padeiro e sua mulher,
Bispo, Frade, Severino de Aracaju, Cangaceiro, Demônio, Encourado
(Diabo), Manoel (Jesus) e a Compadecida (Nossa Senhora).
O cenário apresentado no livro é de um picadeiro de um circo,
onde acontecerão os atos da peça. Que no decorrer peça serão
organizados. A peça inicia-se com a fala do Palhaço “Auto da
Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade” (p.23).
Em seguida apresenta os personagens explicando ao público como será
a organização do cenário e que contará com a imaginação do mesmo.
A peça começa com o diálogo de João Grilo e Chicó sobre Padre
João, se ele benze ou não o cachorro, que pertence ao padeiro. Nesta
passagem da peça, percebe-se característica do Padre como
interesseiro, por não querer benzer o cachorro por se tratar não ser de
ninguém importante, até que João Grilo usa sua esperteza para dizer que
o animal é do Major Antônio (homem rico).
Fazem parte da cena da morte do cachorro, o padeiro, a esposa,
João Grilo, o Sacristão e o Padre. Estes últimos só aceitam enterrar o
cachorro, porque Grilo inventa que o animal tinha um testamento e que
deixava para os dois. Esse trecho encerra a Primeiro ato da peça.
Segundo ato acontece com o Major Antônio Morais reclamando
ao Bispo a atitude do Padre que chamou o seu filho de cachorro
(situação consequência da mentira de João). O Bispo é apresentado
como medíocre, anda na companhia do Frade, uma pessoa bondosa.
Interessante destacar que no momento que o Bispo procura o Padre, há
um diálogo entre Bispo e Palhaço.

1226
Quando Bispo de encontra com o Padre para reclamar de sua
atitude e Padre percebe que foi enganado por João, vai procurá-lo para
tomar satisfação. Grilo, muito esperto consegue salvar-se da acusação.
E ainda faz o Bispo perdoar o Padre pelo ocorrido, dizendo que ele
também é herdeiro. Mostrando mais uma vez a personalidade do Bispo.
João Grilo é ressentido com o Padeiro e a Mulher pela forma que
os tratavam. E resolve pegar uma peça neles, com a venda de um gato
que “descome” dinheiro. Na sequência desse acontecimento o Padeiro
vai tomar satisfações com João, que se encontra na Igreja, juntamente
cm o Padre, Sacristão, Bispo e Frade. No meio da confusão a Mulher do
padeiro chega desesperada anunciando a chegada de Severino de
Aracaju.
Quando Severino chega livra o Frade da morte, pois diz dar azar.
Manda matar o Padre, o Bispo, Padeiro e a Mulher. João Grilo consegue
enganá-lo convencendo que tem uma gaita mágica. Porém, é
assassinado pelo cangaceiro.
A partir desses pontos todos se encontram após a morte, onde
cada um é julgado. E onde aparecem os personagens Demônio,
Encourado, Manoel e a Compadecida, que intercede por todos. E que
são levados para o Purgatório. João pede para ir direto para o céu, mas
são relatados todos seus atos mentirosos. Deixa que volte a vida para ver
se aprende.
Ao retornar e encontrar com Chicó, pensa que está rico. No
entanto, o amigo havia prometido dar todo o dinheiro para Nossa
Senhora se João sobrevivesse. Ele fica triste, mas entende a situação e
acredita ser até melhor, pois teme que fiquem iguais ao Padeiro e a
Mulher, e assim os dois seguem.

1227
O filme que mostra aventuras de João Grilo e Chicó foi lançado em
10 de setembro de 2000 (Brasil) sobre a direção de Guel Arraes e o roteiro
de Guel Arraes e Adriana Falcão.
A obra fílmica, Auto da Compadecida, inicia-se com João Grilo e
Chicó anunciando o filme sobre a Paixão de Jesus Cristo, que se passará
na Igreja, sobre a organização do Padre João (apresentado como
ambicioso). Ponto a ser destacado é que aparece a voz do narrador
falando o nome do episódio: o testamento da cachorra.
João Grilo trabalha para o padeiro Eurico e convence Chicó a ser
ajudante. As cenas que se passam na padaria, mostrando padeiro e a
mulher (Dorinha) já deixa claro como são as características dos dois. Ele
mandado pela esposa e ela muito esperta. A qual tem um caso com
Chicó.
Há uma fala que Chicó cita no filme que não está na obra literária,
mas que deixa a obra mais cômica, que é ele dizendo que falou “I Love
you” e que significa morena em francês. Outra cena que não
encontramos no livro é a que a Dorinha vai se confessar com o padre e
Eurico é que está no local. No filme apenas menciona que ela o trai com
Chicó, na obra fílmica aparece outro amante, o Vicentão.
Como já citado o nome do episódio é o testamento da cachorra,
mas no filme se trata de um cachorro. Somente após aproximadamente
dezoito minutos de filme é que aparece Dorinha com sua cachorrinha.
Mostrando que ela gosta mais da cadela do que de qualquer outro ser.
Mas a cachorra fica doente e dona pede que chamem o padre para
benzê-la. Até aqui se assemelha com o acontecido no livro (com o
cachorro). Entre uma cena e outra Chicó conta seus causos. Sempre
usando o bordão: “Não sei! Só sei que foi assim!” quando lhe pedem
explicações.

1228
Major Antônio Morais ganha mais cenas no filme. Sua chegada
começa com a visita a padaria de Eurico e falando da chegada da Filha.
E que ela quer a benção do padre. Na obra literária o Major tem um filho.
João ouve que Major está na cidade e vai conversar com ele, para
poder se livrar da mentira inventada sobre a cachorra doente. O
encontro entre Chicó e Major; Major e Padre é bem parecido com as
cenas descritas no livro. Diferencia-se pelo fato que o Major após a
conversa com o Padre João e ficar revoltado como a forma que ele
tratou a filha, convida João para visitá-lo, algo que não ocorre na obra
de Suassuna.
A cena da morte da cachorra se difere do livro, pois que conta é
Chicó, e de forma bem engraçada. O enterro dela também é bem
parecido, só ocorre depois da invenção da existência de um testamento,
artimanha pensada por João Grilo, por saber da ganância do padre.
Nesta cena não existe o sacristão, como já citado.
Na obra literária o Major Antônio é que vai falar com o Bispo, já no
filme o Bispo faz questão de visitar o Major, um a pessoa tão importante.
Nessa visita, acontece uma cena muito engraçada: o Major soletrando
a palavra cachorra e soletra com x. O Bispo corrigi, mas tenta se explicar
dizendo cachorra com x não é palavrão.
O Chicó é um grande contador de “causos”, no filme ele conta um
que não é mencionado no livro. Quando um bispo se confessa com um
papagaio. Suas estórias sempre são uma forma dele dar exemplos de
situações semelhantes a que está vivenciando.
Outra cena envolvendo Chicó que não aparece no livro é o
encontro dele com a Dorinha e que Vicentão (o outro amante) aparece.
E Severino disfarçado de mendigo para avaliar como é a cidade, essa
cena também não consta na obra literária.

1229
Depois que descobrem que João os enganou, Dorinha e Eurico vão
procurá-lo e ele inventa uma falsa morte. A morte de João serve para
livrar a cidade da primeira invasão dos cangaceiros, pois ele fala para
Severino que “Padim Pade Ciço” pediu para não atacar a cidade. A
partir desse ponto acontecem novos fatos, como o Bispo se justificando
com o Major, a chegada da polícia e da filha do major na cidade,
Rosinha.
Sua chegada inicia o romance dela e de Chicó. E trapaças de
João Grilo para ganhar o dote de Rosinha, uma porca, herança da avó.
Par se dar bem ajuda o amigo a casar com a moça. Engana Vicentão,
o Sargento (personagem que não existia na obra literária). Para que tudo
dê certo para o casamento João tenta se passar pelo Severino, mas
nesse momento ele realmente aparece. E acontecem as mortes, que são
bem parecidas com a do livro.
A cena do encontro “pós-morte” é semelhante a do livro. Partes
que merecem destaque é quando João aceita ir para inferno
reconhecendo suas atitudes, porém a Compadecida intercede por ele
e Manoel lhe dá mais uma chance de voltar a viver. No livro João
considera-se tão “gente boa” que diz merecer ir diretamente para o céu
e o Encourado diz que ele deve ir para o inferno. Nesse momento Nossa
Senhora intercede. E Manoel o desafia a fazer uma pergunta que Ele não
possa responder e “danado” do João consegue.
Na adaptação, quando Chicó está fazendo o enterro do seu
amigo, ele volta a viver. Dando-lhe um grande susto, mais uma cena que
se destaca comicamente entre as demais. Após o ocorrido, lembram-se
do casamento com Rosinha e da dívida. Não sabiam como pagar, visto
que tinha dado todo seu dinheiro para pagar a promessa. Rosinha os
lembra da herança, a porca cheia de dinheiro.

1230
Após o casamento, quando vão quitar a dívida percebem que
continuavam pobres, pois o dinheiro não valia mais nada, de tão antigo
que era. Ajudado por Rosinha e João Grilo, Chicó consegue se livrar da
dívida. Além de todos esses novos fatos, termina Manoel disfarçado de
pobre pedindo esmolas e João duvidando que Jesus fosse aquele
homem.
Observamos que na obra literária original já apresentava pontos
ligados ao humor, na adaptação esses pontos ocorreram com mais
frequência. Além de ser acrescida uma história de amor, que também
era cômica. Foram inseridas falas mais contextualizadas. Ao fazer essa
comparação entre obra literária e fílmica, usamos as palavras de
Cardoso (2011) para explicar o processo de adaptação:

A adaptação, assim como a obra literária, é uma criação, e o


adaptador dispõe de liberdade para eleger elementos que
possibilitem a identificação do original, caso o deseje, seja pela
estrutura da narrativa, seja pela permanência dos personagens;
essa liberdade também lhe permite propor outras leituras. Por
isso, é impossível ver a adaptação somente pelo viés de sua
fidelidade - ou não - ao texto original. (CARDOSO, 2011, p. 9).

Assim, entendemos que não é necessário o cineasta ficar preso ao


roteiro da obra literária original, que estar livre para “adaptar” a obra
fílmica de acordo com o contexto em que está inserido e também de
acordo com o público que quer atingir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das ideias apresentadas, percebemos que a


comparação se encontra no objeto aqui em análise, sob o viés da
invenção e imitação. Não devemos nos prender e considerar importante

1231
apenas o que ficou fiel à obra literária original. Pois, o cineasta pode se
apropriar e recriá-lo, trazendo para si uma nova função.
A obra apresentada traz várias cenas “novas” e que condizem
com o contexto histórico do filme. Muitas delas apelando ao senso crítico
do espectador como na cena que Manoel diz a Nossa Senhora que se
ela continuar intercedendo por todos daquela maneira, o inferno vai virar
uma repartição pública. Existe, mas não funciona. Notamos nesse trecho
como uma crítica (engraçada) as repartições públicas. E finalizando o
filme mostra a questão do preconceito racial que estava presente no
contexto histórico do filme sobre não julgar pela cor da pele. Quando
João Grilo olha Jesus e fica admirado por ele ser negro.
Percebemos também que a adaptação fílmica traz uma
intertextualidade com a peça de Ariano Suassuna, O santo e a porca.
Pois o roteirista do filme faz uma parte da narrativa em torno de uma
porca cheia de dinheiro, fazendo referencia a peça citada acima.
Por fim, esperamos que, através desse estudo, possamos ter
contribuído, mesmo que minimamente, para ampliar os estudos críticos
sobre a comparação das obras literárias e adaptações. Finalizamos com
as palavras de (2014)

A fidelidade nos filmes não é algo pertinente, romances e


adaptações mesmo que calcados no mesmo enredo, cultivam
particularidades que os tornam produções artísticas singulares e
dispares cada uma delas com seu valor específico. As
especificidades são resultantes de diferentes expressões de artes,
que se dá em meios munidos de recursos e qualidades materiais
diversos e em períodos históricos e sociais peculiares, o que
contribui para a discussão estética da obra e engrandecer seu
poder de significar. Mesmo que o filme não leve fielmente a
narrativa escrita, isso não vem prejudicar a obra original, pois
como foi alegada, cada expressão artística é única e
independente. (TAVARES, 2014).

1232
Concluímos que, cada uma das obras possui seu valor e que não
devemos enaltecer uma e rebaixar a outra. Temos que procurar
compreender os objetivos a serem alcançados pela nova arte que se
espelha na obra original. Se a obra adaptada fosse fiel a original não
haveria a independência artística.
Almejamos ter realizado o trabalho ao qual nos propomos a fazer,
concretizando nossos objetivos. Esperamos que essa análise tenha sido
relevante e que tenha mostrado quão importante é para nossos estudos
literários.

REFERÊNCIAS

BAZIN, André. Por um cinema impuro: defesa da adaptação. In: BAZIN,


André. O cinema: ensaios. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
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1234
O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: POLÍTICAS
PÚBLICAS E FORMAÇÃO DOCENTE

Luzicréia do Carmo Oliveira Souza186


José Antonio de Souza187

RESUMO: A trajetória das políticas públicas encarregadas da avaliação, regulação e


distribuição do livro didático no Brasil pode ser demarcada por três momentos relevantes:
o primeiro, com a criação da Comissão de Instrução Pública, responsável por elaborar
projetos de leis que, apesar do curto tempo de existência, aproximadamente seis meses,
tinha o objetivo de promover os fundamentos da nacionalidade brasileira por meio da
educação. O segundo momento foi marcado pela criação de três comissões: a
Comissão Nacional do Livro Infantil (1936), a Comissão Nacional do Ensino Primário (1938)
e a Comissão Nacional do Livro Didático (1938). O terceiro momento é marcado pela
criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que ocorreu em 1985. Desde a
criação do PNLD, muito se avançou em relação às políticas de avaliação do livro
didático e um dos principais aspectos a ser ressaltado foi a incorporação da
participação docente na escolha do livro didático a ser utilizado, em sala de aula. Em
nosso trabalho, temos como principais objetivos: a) traçar um breve panorama das
políticas públicas em relação ao livro didático; b) tratar do PNLD, evidenciando avanços
e retrocessos em relação ao livro didático, particularmente o de Língua Portuguesa; e
c) evidenciar o papel do professor, tanto em relação à escolha, quanto em relação à
utilização do livro didático. Por meio de revisão bibliográfica, ancorados em
pesquisadores como Lajolo; Bittencourt; e Munakata, dentre outros, bem como por
intermédio da análise documental, é possível salientar que o poder público tem sido,
historicamente, o maior agente de avanços e retrocessos em relação às políticas
públicas relacionadas ao livro didático e, mais recentemente, especialmente em um
momento de visíveis retrocessos, verifica-se a necessidade de formação docente em
relação à análise e seleção do livro didático a ser adotado.

Palavras-chave: Livro didático, Políticas públicas, Formação docente.

186 Mestranda em Educação. Professora da rede pública estadual de Mato Grosso do


Sul. Aluna Regular do Programa de Pós-Graduação em Educação (PGEDU), da
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade de Paranaíba, vinculada
à linha de pesquisa Linguagem, Educação e Cultura e ao Grupo de Estudos e Pesquisas
em Práxis Educacional (GEPPE).
187 Doutor em Letras. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de


Paranaíba, vinculado à linha de pesquisa Linguagem, Educação e Cultura, pesquisador
integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Práxis Educacional (GEPPE).

1235
INTRODUÇÃO

O livro didático, instrumento de grande valor educacional, está


presente no contexto histórico do Brasil desde o período colonial (RIBEIRO,
2003). Mas, na época, tal material era privilégio de poucos, apenas os
detentores do poder, com uma condição social elevada, possuíam
acesso a livros. Somente nas décadas de 1970 e 1980 os livros didáticos
assumiram um papel muito importante em relação à prática pedagógica
no sistema educacional brasileiro via Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), sendo que diferentes agentes contribuem para a sua
implantação e valorização.

A esse respeito, Munakata (2012, p. 51-56) afirma que “no Brasil, a


relação entre o Estado e o mercado de livros didáticos é, atualmente,
mediada pelo PNLD, criado em 1985, pelo qual o governo compra os
livros solicitados pelos professores para serem distribuídos a todos os
alunos das escolas públicas”. No entanto, isso muitas vezes não acontece
na prática, sendo que em muitas escolas e para muitas turmas há falta
de livros, o que leva o professor a não utilizar o livro didático, ou a utilizá-
lo raramente, devido diversas dificuldades: a não existência do livro
didático para determinada disciplina/série, ou, em muitos casos, os livros
didáticos devem ficar “guardados” nas prateleiras das bibliotecas.

O livro didático era visto como capaz de uniformizar o currículo


escolar. No entanto, ainda neste período, começaram a surgir
questionamentos sobre a forma como os conteúdos eram organizados e
abordados, além de como os livros eram produzidos.

Salienta-se que os autores concebem obras encomendadas por


editoras, as quais possuem determinada demanda de pesquisa e tempo

1236
para se delinear os objetivos de uma coleção, quais as concepções de
língua e de aprendizagem, conteúdos e atividades coerentes com a
proposta de ensino para determinado ano e para público a ser atingido.

Assim, os editores tem bastante relevância na produção de livros,


influenciando e determinando a sua organização, os projetos gráfico-
editoriais, os objetos de ensino, mas também uma visão voltada para o
mercado (TEIXEIRA, 2012). Autores e editores precisam estar atentos a
questões administrativas e acadêmicas, as quais determinam as políticas
públicas de ensino no Brasil para que o livro didático tenha sucesso e seja
aprovado pelo PNLD, selecionado pela escola e, dessa maneira, vendido.

O professor é o principal agente conhecedor da realidade da


escola, por isso é essencial que tal profissional possa analisar e escolher
os livros a serem utilizados, uma vez que a decisão de escolher um ou
outro livro parte da seleção efetivada pelo docente. Tal escolha
necessita ser informada aos gestores do PNLD para conduzir a compra e
realizar a distribuição das obras.

No entanto, em muitas escolas, os professores realizam suas


escolhas de acordo com critérios externos: conhecimento prévio sobre o
livro e/ou autor, indicação de um colega, disponibilidade da FAE/MEC,
manipulação de editoras, entre outros fatores. Os professores não
escolhem depois de um exame minucioso do conteúdo do livro ou de
alguma experiência prévia com os alunos, mas, em alguns casos, por
comodismo, conformismo, o que faz com que muitas vezes escolham
livros de má qualidade, com conteúdos “mastigados”, com aula
prontinha do começo ao fim, sem que precise de preparação de aula,
pesquisa além do que está posto no próprio livro didático (MUNAKATA,
1997, P.151).

1237
Albuquerque (2006) afirma que “livro didático é um material
importante que deveria funcionar como um prolongamento da ação
pedagógica do professor, um recurso metodológico a mais, entretanto,
o que se observa é que o LD tem demonstrado a anulação do professor”.

Diante deste cenário, desenvolvemos este trabalho com o intuito


de verificar, por meio de revisão bibliográfica e análise documental,
como o poder público, com a inserção das políticas públicas, tem
tratado das questões relativas ao livro didático. Além disso, entender os
retrocessos e avanços do livro, principalmente o de Língua Portuguesa,
com o auxílio do PNLD. E, por último, evidenciar o papel do professor na
escolha e na utilização do livro em sala de aula, salientando sua
relevância como agente capaz de provocar transformações sociais no
contexto escolar.

Apesar de todos os problemas verificados sobre o livro didático,


pode-se perceber que ele é um “mal necessário”, uma vez que facilita o
trabalho do professor, orientando o seu fazer pedagógico e pode agilizar
o ensino, evitar a perda de tempo, por exemplo, em se passar, o tempo
todo, matéria na lousa.

1 AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS PARA O LIVRO DIDÁTICO

A trajetória das políticas encarregadas da avaliação, regulação


e distribuição do livro didático no Brasil foi marcada por três momentos
específicos, sendo o primeiro, a criação da Comissão de Instrução
Pública, responsável por elaborar projetos de leis que, apesar do curto
tempo de existência, aproximadamente seis meses, tinha o objetivo de

1238
promover os fundamentos da nacionalidade brasileira por meio da
educação, que de acordo com Souza, visassem “à melhor organização
pedagógica para a escola primária” (2000, p. 10).

O segundo foi marcado pela criação de três comissões: a


Comissão Nacional do Livro Infantil (1936), a Comissão Nacional do Ensino
Primário (1938) e a Comissão Nacional do Livro Didático (1938), a qual foi
criada na gestão do Ministro Gustavo Capanema, quando estava sendo
implantado o Estado Novo. Já no terceiro momento, podemos citar a
criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que ocorreu em
1985.

Em 1938, o Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema


sugeriu a criação de um Decreto-Lei para fiscalizar a elaboração do livro
didático para o governo controlar as informações que circulariam dentro
das escolas. Nessa época, o INL torna-se responsável pela produção e
controle dos materiais pedagógicos.

O ministro do Ministério Educação e Saúde, Gustavo


Capanema, durante o Estado Novo brasileiro, sugeriu a Getúlio
Vargas a criação de decreto-lei para fiscalizar a elaboração dos
livros didáticos [sic]. A comissão foi criada em 1938 e
‘estabelecia que, a partir de 1º de janeiro de 1940, nenhum livro
didático poderia ser adotado no ensino das escolas pré-
primárias, primárias, normais, profissionais, e secundárias no país
sem a autorização prévia do Ministério da Educação e Saúde’
(FERREIRA, 2008, p. 38).

A história do livro didático foi permeada de uma série de decretos,


leis e medidas governamentais, criadas desordenadamente a partir de
1930, época em que se desenvolve no Brasil uma política educacional
consciente, progressista e com pretensão democrática.

1239
O INL (Instituto Nacional do Livro) foi criado com o objetivo de
planejar as atividades relacionadas com o livro didático e
estabelecer convênios com órgãos e instituições que
assegurassem a produção e distribuição do livro didático
(FREITAG, 1985, p. 134).

Por meio do Decreto-Lei n. 1.006, é instituída a Comissão Nacional


do Livro Didático (CNLD), para controle de produção e circulação do
livro didático no país. A CNLD era a responsável por examinar e julgar os
livros didáticos, indicar livros de valor para tradução e sugerir abertura de
concursos para produção de determinadas espécies de livros didáticos,
que ainda não existiam no país. Desse modo, percebemos que essa
comissão tinha muito mais a função de um controle político-ideológico.

A concepção e as definições de uma política pública para o livro


didático desvelou uma postura centralizadora do Estado brasileiro, a qual
foi marcada, desde a sua origem, por uma demasiada burocracia e
incapacidade de executar e materializar a política do livro didático, o
que dificultou o processo pedagógico.

Nesse período percebe-se a incapacidade do Estado em


gerenciar seus princípios de defesa, em relação à sua ideologia, com
distorções entre o governo federal, estados e municípios. Assim, a intensa
ânsia para estabelecer uma identidade nacional e, desse modo, evitar a
proporção de outras ideologias, favoreceu para retardar ainda mais o
processo de autorização dos livros didáticos.

Após isso, em 1971 foi extinta a COLTED e criado o Programa do


Livro Didático (PLID), de acordo com o Decreto 68.728, de 08/06/1971.
Antes disso, em 1968, foi criada a FENAME (Fundação Nacional de
Material Escolar), a qual sofreu alterações em 1976 e passou a ser
encarregada de assumir o Programa do Livro Didático (FREITAG, 1985, p.

1240
134).

Tivemos durante toda a ditadura, a luta de professores pela


democratização política e pela universalização e ampliação da
educação oferecida à população. Nessa época houve vários impasses
entre governo militar e movimentos sociais da educação, sendo que, do
lado do governo, deterioram a carreira docente pela redução dos
salários e desvalorização da profissão. Além disso, aposentaram
compulsoriamente muitos professores, os quais discordavam da agenda
governamental. De outro lado, houve a criação de entidades de
professores das escolas públicas, bem como de nível superior.

Em 1981, pela Lei 7.091, é criada a FAE (Fundação de Assistência


ao Estudante), que assumiu a política do livro didático, colocando fim ao
sistema de coedição, em que o MEC passou a ser comprador dos livros
produzidos pelas editoras participantes, além disso, realizou a extinção
da avaliação federal dos livros didáticos em junho de 1980, por meio da
portaria n. 409, do então Ministro da Educação Eduardo Portella, que
passou a ser de inteira responsabilidade dos estados.

De 1940 até 1980, as políticas do livro didático foram marcadas por


discussões e permeadas de conflitos, uma vez que por meio de diretrizes
de um governo centralizador, o livro tornou-se um instrumento
privilegiado para o desenvolvimento do ensino e mecanismo e também
de difusão de uma ideologia.

Em 19 de Agosto de 1985, o Decreto n. 91.542, instituiu o Programa


Nacional do Livro Didático e dispõe sobre sua execução. Além disso, dá
outras providências, sendo que de acordo com o Art. 1º: “Fica instituído
o Programa Nacional do Livro Didático, com a finalidade de distribuir
livros escolares aos estudantes matriculados nas escolas públicas de 1º

1241
Grau”. O programa trouxe inovações para a produção e distribuição do
material didático, dentre as quais podemos citar a avaliação
pedagógica dos livros e a escolha realizada pelo docente. Além disso, a
aquisição dos livros passou a ser feita por meio de recursos do governo
federal.

O PNLD situa-se num movimento de reivindicação por democracia


e de melhora da educação pública, mas também irrigado por uma
concepção educacional conflituosa com o seu tempo por reforçar
relações desiguais de poder. Assim, tanto a Comissão Nacional quanto o
PNLD, por meio da função avaliativa e reguladora, determinam quais
manuais podem ser distribuídos e utilizados pelas instituições públicas
brasileiras.

Conforme Munakata (2012), por mais que os professores ainda


sejam capazes de ministrar ótimas aulas a partir de péssimos livros, o livro
didático é seu principal recurso em sala de aula e, portanto, muitas vezes,
um limitador de suas ações educativas e reflexivas. A esse respeito, o
autor ainda afirma:

O próprio PNLD lamenta que os professores adotem


sistematicamente os livros mal avaliados (...) simplesmente
ignoram o Guia do livro didático, não por acharem difíceis as
resenhas – como avaliou um documento do PNLD, e sim porque
preferem fazer suas escolhas “com o livro na mão”. (MUNAKATA,
2012, p. 44).

Podemos citar a continuidade e sustentação das políticas


educacionais e da gestão das políticas educacionais e da gestão dos
sistemas e das unidades escolares e o livro didático como estratégias de
desenvolvimento da educação básica para todos.

1242
O livro didático constitui um dos principais insumos da instituição
escolar. Os aspectos referentes à sua política, economia,
gerência e pedagogia são indissociáveis das demais
características da questão educacional brasileira. Embora
existam no mercado editorial livros de inegável qualidade, o país
ainda não conseguiu formular uma política consistente para o
livro didático que enfatize o aspecto qualitativo. O princípio da
livre escolha pelo professor esbarra em sua insuficiente
habilitação para avaliar e selecionar. A eficiência dos
programas é comprometida pelo processo de aquisição, o que
tem impedido que o livro esteja disponível na escola no início do
ano escolar (BRASIL, 1993).

É imprescindível ressaltarmos, ainda, que somente nas décadas de


1970 e 1980 os livros didáticos assumiram um papel muito importante à
prática pedagógica no sistema educacional brasileiro via Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), sendo que diferentes agentes
contribuem para a sua implantação e valorização: grande
desvalorização do ensino público e a falta de qualificação profissional do
educador.

A esse respeito Munakata (2012, p. 51-56), afirma que “no Brasil, a


relação entre o Estado e o mercado de livros didáticos é, atualmente,
mediada pelo PNLD, pelo qual o governo compra os livros solicitados
pelos professores para serem distribuídos a todos os alunos das escolas
públicas”. No entanto, isso muitas vezes não acontece na prática, sendo
que em muitas escolas e em muitas turmas há falta de livros, o que leva
o professor a sua não utilização ou a utilização raramente, devido à
dificuldade, o que faz com que, muitas vezes, estes fiquem “guardados”
nas prateleiras das bibliotecas.

Nos dias atuais, além do PNLD, o governo federal tem dois outros
programas sobre o livro didático: o Programa Nacional do Livro Didático
para o Ensino Médio (PNLEM), criado em 2004 e o Programa Nacional do

1243
Livro Didático para Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA), criado em
2007. É importante ressaltar que o livro didático sempre enfrentou um
impasse para saber quem realmente era seu público alvo: o professor ou
o aluno.

Desde seu início o livro didático trouxe uma ambiguidade [sic]


em relação ao seu público. A figura central era a do professor,
porém a partir da segunda metade do século XIX passou a se
tornar mais claro que o livro didático não era um material de uso
exclusivo deste, para transcrever ou ditar. Observou-se que o
livro precisava ir diretamente para as mãos dos alunos. Esta
mudança de perspectiva, passar a ver o aluno como
consumidor direto do livro, sinalizou tanto para autores quanto
editores, que era necessário modificar o produto para atender
novas exigências, transformando e aperfeiçoando sua
linguagem. Neste sentido, as ilustrações começaram a se tornar
uma necessidade, assim como surgiram novos gêneros
didáticos, como os livros de leitura e os livros de lições.
(BITENCOURT, 2004, p. 319)

Nesta época, de acordo com Bittencourt (1993, p.21),


“permaneceu a crença na força do livro didático escolar como peça
importante na viabilização dos projetos educacionais”. De acordo com
a mesma autora, os livros deveriam ser produzidos para “suprir as
necessidades de professores mal formados”, uma vez que estas obras
tinham a finalidade de auxiliar o professor, com o intuito de tentar sanar
as defasagens de sua formação.

No início os livros didáticos possuíam apenas textos, cabia ao


professor elaborar os exercícios, no entanto, devido ao aumento da
carga horária, eles passaram a ter menos tempo para preparar e corrigir
as atividades. Diante disso, os livros passaram apresentar exercícios e ter
influência direta na preparação da aula (SOARES, 1996).

O livro didático é um material que quando bem utilizado pode ser


de grande apoio ao professor e ao aluno, no entanto, este não pode e

1244
não deve ser a nossa única fonte de estudos e pesquisas, visto que os
conhecimentos são mutáveis, passíveis de transformações. Precisamos
levar o aluno a ter vários meios de estudo para, assim, ter uma
aprendizagem efetiva e satisfatória.

O conhecimento produzido por ele é categórico, característica


perceptível pelo discurso unitário e simplificado que reproduz,
sem possibilidade de ser contestado, como afirmam vários de
seus críticos. Trata-se de textos que dificilmente são passíveis de
contestação ou confronto, pois expressam ‘uma verdade’ de
maneira bastante impositiva. Os livros didáticos merecem ser
considerados e utilizados de acordo com suas reais
possibilidades pedagógicos e cada vez mais aparece como um
referencial, e não como um texto exclusivo, depositário do único
conhecimento escolar posto à disposição para os alunos.
(BITTENCOURT, 2004, p. 319)

Ao professor cabe fazer as alterações que considerar necessárias,


de acordo com a necessidade, uma vez que muitos livros trazem
respostas complexas, aquém da capacidade de absorção de muitos
alunos. Com esta linha de raciocínio, concordamos com Lajolo (1996):

Nenhum livro didático, por melhor que seja, pode ser utilizado
sem adaptações. Como todo e qualquer livro, o didático
também propicia diferentes leituras para diferentes leitores, e é
em função da liderança que tem na utilização coletiva do livro
didático que o professor precisa preparar com cuidado os
modos de utilização dele, isto é, as atividades escolares através
das quais um livro didático vai se fazer presente no curso em que
foi adotado. (LAJOLO, 1996, p. 8-9).

A autora ainda enfatizou que “o pior livro pode ficar bom na sala
de um bom professor, e o melhor livro desanda na sala de um mau
professor. Pois o melhor livro, repita-se mais uma vez, é apenas um livro,
instrumento auxiliar da aprendizagem.” (LAJOLO, 1996, p. 8).

1245
Diante disso, podemos afirmar que nenhum livro poderá ser capaz
de superar a presença do professor, o qual deverá utilizar em suas alunas
não só este recurso e, muito menos, se limitar a ele. O professor deve
sempre recorrer a várias outras bibliografias, jornais, revistas, filmes,
documentos, depoimentos, além dos recursos tecnológicos para ser
capaz de propiciar ao aluno aprender de forma significativa.

O livro didático trabalha com os diferentes aspectos do


conhecimento humano, sendo dividido em disciplinas, por isso deve ser
utilizado como um recurso alternativo e não como instrumento
predominante e/ou único, como ocorre em várias salas de aula.

A escolha do livro didático que será usado em sala de aula pelos


três anos seguintes, deve ser feita com muito cuidado e responsabilidade
pela escola e pelos professores, pois além do que foi citado o este livro
tem contribuído na formação de uma identidade nacional na escola, por
meio das narrativas dos textos didáticos como por meio das ilustrações,
ele deve estar em sintonia com os currículos das escolas.

O livro didático torna-se uma das mercadorias mais vendidas no


campo da indústria editorial. Daí a preocupação do Estado e
das editoras em publicar os livros que estivessem em perfeita
sintonia com os programas curriculares de História, Geografia e
demais disciplinas. Uma outra novidade, visando à aceitação
maior do livro didático, foi o lançamento dos manuais dos
professores, pela Editora Ática, em meados dos anos 60. Estes
manuais, além de trazerem a resolução de todos os exercícios
propostos, forneciam (e alguns ainda o fazem) os planejamentos
anuais e bimestrais prontos para o professor (FONSECA, 1994, p.
139).

Nada irá substituir o professor em sala de aula, mas a boa utilização


dos livros didáticos e de todas as novas tecnologias e recursos disponíveis
farão com que o trabalho em sala de aula seja mais eficiente e que ajude

1246
no objetivo final que é o de formar alunos conscientes do seu papel na
sociedade.

É importante destacar que os livros distribuídos pelo FNDE são


enviados às escolas na quantidade relacionada ao censo anterior do
ano de escolha, consequentemente, o número de matrículas no ano que
os livros chegam à escola é, em geral, superior. Nesse caso, ou a escola
fica sem livro, ou utiliza o livro didático adotado anteriormente ou, ainda,
o que não optou por não considerar adequado.

Assim, podemos verificar que o processo de escolha do livro


didático passa por três instâncias, visto que antes de ser escolhido pelo
professor, foi escolhido por um corpo docente universitário, em que esta
escolha foi realizada pelo Governo Federal. Submetido posteriormente a
licitação, ocorre uma tensa disputa entre as editoras para conseguir
apresentar o melhor livro didático.

Além disso, fazer com que o mesmo seja aprovado no guia do livro
didático e escolhido pelas escolas, pois a coleção mais adotada no
Estado é justamente aquela que vai para a reserva técnica, tendo assim,
o lucro garantido sobre a produção, pelo menos nos próximos três anos.

Para que a política do livro didático se efetive como um meio a


melhorar a formação básica dos estudantes, ela deve estar vinculada a
maneira como a proposta está sendo discutida e desenvolvida na escola
tomando como prioridade o desenvolvimento pedagógico em
detrimento aos demais. Neste âmbito, a escola pode ser compreendida
como um veículo que possibilita a disseminação da cultura ao entorno
escolar.

O LD complementa o planejamento do professor e proporciona


reflexões relacionadas às concepções pedagógicas. Desta forma ao

1247
utilizá-lo, o professor deve ter como meta a articulação com a sua prática
didática e uma correlação direta com a Proposta Pedagógica da escola.

Diante do exposto, percebemos que o livro didático tornou-se um


dos principais “instrumentos” da instituição escolar, no entanto, inúmeras
dificuldades ocorreram, sendo que a “livre” escolha realizada pelo
professor esbarra em sua incapacidade de realizar uma avaliação mais
sistematizada, visto que o governo tratava a questão do livro didático de
forma técnica, burocrática e assistencialista, sem avaliação política.

2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com inúmeras pesquisas, podemos perceber que o Livro


Didático de Língua Portuguesa tem contribuído muito para o ensino, uma
vez que representa um recurso fundamental por proporcionar a
aproximação dos discentes com uma diversidade de textos e usos de
diferentes linguagens.

O livro é visto como uma fonte para o estudo dos conteúdos e


metodologias, sendo importante para a prática docente, mesmo que em
vários aspectos apresente deficiências, há várias possibilidades de
aproveitá-lo de maneira que as aulas não fiquem apenas centradas na
“metalinguagem”.

No âmbito escolar, principalmente nas instituições públicas, o livro


didático de Língua Portuguesa representa a principal, senão a única
ferramenta a ser utilizada no processo de ensino e aprendizagem, no
entanto, os professores não podem e não devem usá-lo como único

1248
instrumento e nem considerá-lo como fonte de conhecimento legítimo,
o qual não pode ser questionado.

Os primeiros livros didáticos de Língua Portuguesa traziam algumas


divisões demarcadas, porém, ao longo dos anos, ocorreu uma maior
integração entre os eixos norteadores e os objetos de ensino. Há uma
fusão de imagens, com instruções de atividades e explicações dirigidas
aos alunos, com textos, propostas de escrita e gramática.

Assim, o livro didático de Língua Portuguesa apresenta e organiza


os objetos de ensino e atividades em lições, unidades, capítulos, em
função de uma progressão das escolhas curriculares, levando em conta
os interlocutores, os níveis de ensino e os critérios de avaliação do
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Até a década de 1940, o
ensino de Língua Portuguesa era pautado na gramática da língua e no
estudo de literários. A questão da formação de professores surgiu na
década de 1930.

Os professores eram estudiosos eram estudiosos, autodidatas da


língua e de sua literatura, com solida formação humanística, que,
a par de suas atividades profissionais... e do exercício de cargos
públicos que quase sempre detinham, dedicavam-se também
ao ensino... O professor da disciplina Português era aquele que
conhecia bem a gramática e a literatura da língua, a retórica e
a poética, aquele a quem bastava, por isso, que o manual
didático lhe fornecesse o texto... cabendo a ele - e a ele só –
comentá-lo, discuti-lo, analisa-lo e propor questões e exercícios
aos alunos. (SOARES, 2001, p. 151)

No entanto, na década de 1950, o autor do livro didático passa a


assumir a tarefa de formular exercícios, sendo que os professores passam
a esperar que eles assumam tal responsabilidade.

1249
O professor precisa ser visto como mediador, um profissional capaz
de atrelar o conhecimento teórico com a prática do ensino da língua.
Assim, é importante ressaltar que a formação do professor é
responsabilidade da instituição de ensino, que tem como função,
orientar os graduandos quanto ao uso do livro didático e também sobre
a seleção dos conteúdos e estratégias a serem utilizadas.

De acordo com Lajolo (1996, p. 5), o livro didático, mais


precisamente, o manual do professor “Precisa ser mais do que um
exemplar que se distingue dos outros por conter a resolução dos
exercícios propostos”, visto que o professor é “uma espécie de leitor,
privilegiado da obra didática, já que é a partir dele que o livro didático
chega às mãos dos alunos”.

O livro didático, embora não seja o único material a ser utilizado


por professores e alunos, é uma ferramenta fundamental no ensino e
pode ser decisivo para a qualidade do aprendizado. Entretanto, é
estritamente necessário que o professor que o professor utilize este recurso
de acordo com suas necessidades e propósitos.

Sabemos que o livro didático não é um material considerado


completo, no entanto, cabe ao professor fazer as adaptações
necessárias para o seu uso em sala de aula. Um livro ruim pode ficar bom
na sala de aula de um bom professor. Ele deve ser considerado apenas
como um auxiliador da aprendizagem.

1250
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o contexto atual em relação à aprendizagem de


Língua Portuguesa, salientamos a importância de oferecer aos alunos um
ensino eficiente, significativo e de qualidade. Sem dúvida, trata-se de
uma angústia crescente que nos faz refletir acerca da nossa
responsabilidade diária com a aprendizagem dos alunos. Nós professores
da rede pública contamos com algumas adversidades no dia a dia da
sala de aula no que se refere à falta de materiais, sucateamento das
escolas e, ainda, a carga horária exaustiva da maioria dos professores,
além de salas lotadas.

Com o uso do livro didático podemos verificar como o ensino se


torna mais eficiente e significativo para os alunos e para o professor. No
entanto, de acordo com Lajolo (1996), o livro acaba determinando
conteúdos e condicionando estratégias de ensino, delimitando o que e
como se ensina.

Por isso, o professor precisa estar sempre em formação, melhorar a


sua prática e possibilitar que o aluno aprenda de forma simples, porém
significativa. É necessário possuir estratégias de trabalho, utilizar variadas
metodologias para que as aulas não sejam tediosas, para que o aluno
tenha prazer em aprender.

Torna-se imprescindível trabalhar com uma gama de textos, de


diferentes gêneros, que façam com que o aluno se aproprie da
linguagem e a utilize de modo a ser bem compreendido. Ao professor
cabe escolher bem o livro didático, de acordo com as suas concepções,
vivências e aprendizado.

1251
Por meio do livro didático espera-se que a aprendizagem se
processe pela leitura das informações fornecidas pelo livro, mas também
pela realização das atividades que ele sugere, as quais devem ser
contextualizadas e realizadas de acordo com o conhecimento que cada
aluno possui interiorizado.

Diante do exposto, ao trabalhar com diferentes gêneros textuais, a


escola contribuirá para uma nova perspectiva no processo de leitura, de
escrita e de produção textual, tornando o aluno um leitor e escritor
competente e crítico, visto que os gêneros textuais atendem às
necessidades para a comunicação entre os indivíduos de forma variável,
apresentando diversos estilos e conteúdos temáticos.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, E. B. C. Mudanças didáticas e pedagógicas no ensino da


língua portuguesa: apropriações de professores. Belo Horizonte: Autêntica,
2006.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro Didático e Conhecimento


Histórico: Uma História do Saber Escolar. Tese de Doutorado apresentada
ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, 1993.

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Educação e Pesquisa v. 30, n.3, São Paulo: EDUSP, set/dez, 2004.

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para Todos. Brasília: MEC, versão atualizada, 1993.

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FERREIRA, Rita de Cássio Cunha. A comissão nacional do livro didático
durante o estado novo (1937 - 1945). Dissertação de Mestrado.
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(Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Programa de Estudos
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profissão. Revista Científica Eletrônica de Ciências Sociais da Eduvale, v.
4, nº 6, p. 1-9, 2000.

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Anais do VIII Congresso Nacional de Educação EDUCERE. Curitiba, PR:
PUC-PR, 2012, PP.772-811. Disponível em
http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2008/anais/pdf/772_811
.pdf. Acesso em 03/12/2020.

1254
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA NAS AULAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA NO RECIFE: UMA ANÁLISE DO CONTEÚDO DOS
GÊNEROS TEXTUAIS

Odailta Alves Silva188

RESUMO: De acordo com Bakhtin (1992, p. 274), os gêneros discursivos são


caracterizados por três elementos: a construção composicional, o estilo e o conteúdo
temático. É com foco nesse último elemento que desenvolveremos essa pesquisa com
o objetivo de analisar como os conteúdos presentes nos gêneros textuais, utilizados nas
aulas de Língua Portuguesa das escolas municipais do Recife, estão contribuindo para
o fortalecimento (ou não) da identidade negra. Ao selecionar apenas poemas de
Vinícius de Moraes e Cecília Meireles e invisibilizar as escritas de Conceição Evaristo e
Solano Trindade, por exemplo, o(a) professor(a) assume uma postura ideológica e
racializada, na qual projeta escritores brancos e silencia os negros. Por que não
trabalhar o gênero “biografia” a partir de uma personalidade negra? Quanto ao
trabalho com as temáticas dos gêneros textuais, dentro da perspectiva étnico-racial, os
educadores possuem dois caminhos: construir um imaginário positivo acerca da
negritude, ou fortalecer um imaginário racista que invisibiliza o povo negro no currículo
ou limita-o à escravidão, miséria e marginalização. Trata-se de uma pesquisa quanti-
quali, uma vez que observaremos a quantidade de escritores(as) brancos e negros e de
textos contemplando a temática, e também analisaremos a qualidade desses textos no
que se refere às questões raciais, como a identidade negras é construída a partir desses
gêneros discursivos. O corpus dessa pesquisa será o caderno de Língua Portuguesa, do
9º ano, do projeto “Aprova Recife”, baseado no “Aprova Brasil”, produzido pela editora
Moderna, e utilizado, desde 2017, nas escolas municipais da cidade do Recife. Essa
pesquisa é pautada nos estudos de Ribeiro (2019), Almeida (2018), Hall (2000-2005), Silva
(2001) e Bakhtin (1992). Como resultado da pesquisa, foi possível constatar que menos
de 5% dos textos são de autores negros e as abordagens, em sua maioria, fortalecem o
esteriótipo da marginalidade, exclusão, escravidão.

Palavras-chaves: Gênero textual, identidade, étnico-racial.

1 INTRODUÇÃO

Essa pesquisa analisará a abordagem conteudista dos gêneros

188
Mestra em Linguística-UFPE/SEDUC-PE

1255
textuais presente no caderno/livro de Língua Portuguesa, do 9º ano, do
projeto “Aprova Recife”, da editora Moderna, adotada pela Rede
municipal de educação do Recife, e entregue às escolas municipais nos
últimos quatro anos, para trabalhar em todo o Ensino Fundamenl. Para a
presente pesquisa, analisaremos apenas o caderno do 9º ano, com o
objetivo de observar a existência (ou não) de uma pluralidade étnico-
racial nesses textos, como orienta a Lei 10.639/03, e como a identidade
negra é construída a partir desse material. De acordo com Bakhtin (1992,
p. 274), “os gêneros constituem formas relativamente estáveis de
enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos:
conteúdo temático, estilo e construção composicional”, é
compreendendo a importância de os conteúdos abordados nesses
gêneros contemplarem as mais diversas identidades étnico-raciais que
desenvolveremos essa análise.

Ao citar acima a Lei 10.639/03, estamos recorrendo a um marco


legal, conquista de muita luta do movimento Negro Brasileiro, prestes a
completar vinte anos de existência, entretanto, ainda muito ignorado
pela maioria dos(as) educadores(as), uma lei que encontra muita
resistência para ser executada. Essa Lei tornou obrigatório o ensino da
História e Cultura afro-brasileira nas escolas da educação básica, sendo
trabalhado em todo currículo escolar, e, em especial, nas disciplinas de
História, Artes e Literatura, entretanto, muitos dos nossos estudantes
concluem o Ensino Médio sem conhecer uma escritora negra.

Compreendemos o quanto as escolas contribuem para a


construção das identidades na sociedade, trazendo em seu currículo um
padrão hegemônico, branco, heterossexual, cisgênero - desde os contos
de fadas, passando pelos clássicos da literatura do Ensino Médio, e,
igualmente, pelos gêneros textuais trabalhados nas aulas de língua

1256
Portuguesa, para Hall, “as identidades são, pois, pontos de apego
temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem
para nós” (p. 112, 2000), nesse sentido, fazem-se necessários alguns
questionamentos: que identidade as práticas discussivas das aulas de
Língua Portuguesa tem construído para os(as) alunos(as) negros(as)?
Qual é o corpo positivamente idealizado e o corpo silenciado ou
negativado nesses espaços? De acordo com Ribeiro, “quem possui o
privilégio social, possui o privilégio epistêmico” (2019, p. 24), e dessa
forma, a elite branca brasileira coloca-se como produtora de
conhecimento, fortalecendo o seu padrão e suas ideologias.

Essa análise se debruçará sobre gêneros discursivos presentes no


material pedagógico de Língua Portuguesa citado no início desse texto.
Será uma pesquila quanti quali, que buscará, além de constatar a
quantidade de textos, verbais e não-verbais, produzida por escritores(as)
negros(as) em comparação ao quantitativo escrito por pessoas brancas;
analisar também todos os textos que trazem elementos da negritude
(produzidos por pessoas negras ou não-negras), e como a identidade
negra é construída a partir desses textos, numa perspectiva qualitativa,
observando se as pessoas negras são projetadas de maneira positiva ou
ainda dentro de um esteriótipo de dor, escravidão e marginalidade.

2 METODOLOGIA

A princípio, levantou-se uma pesquisa bibliográfica acerca dos


conteúdos dos gêneros discursivos, da identidade negra, do racismo no
livro didático e da educação para as relações étnico-raciais. A pesquisa
propriamente dita segue uma abordagem quanti quali, que mescla

1257
aspectos quantitativos e qualitativos, uma vez que, ao analisar o
caderno/livro Aprova Recife, procederá uma contagem dos textos que
possuem autorias negras e dos textos de autores(as) brancos(as). A
também será analisada como a identidade negra é construída a partir
desses textos, se é possível perceber uma imagem positiva ou negativa
da pessoa negra; se a associação permanece voltada para a fome,
marginalidade, escravidão, ou outros reperenciais de sucesso, felicidade,
beleza são projetados nesses textos quando associados ao padrão
negro.

Nesse sentido, primeiro foram lidos todos os textos verbais que


introduziram os 19 gêneros textuais trabalhados no Aprova Recife,
também os textos que aparecem nos exercícios de cada lição; e
registrados os títulos, autores(as) e gêneros. Em seguida, partiu-se para a
contagem dos textos não-verbais e sua autorias. Após colher essas
informações, contamos quantos textos são de autores(as) negros(as) e
quantas são de autorias brancas, para tal, colocamos cada nome de
autor(a) no google, em busca de fotos que declarassem sua identidade
racial socialmente lida. Após essa etapa quantitativa, partimos à análise
quantitativa, a partir dos conteúdos dos gêneros textais, observando qual
é a imagem das pessaos negras projetadas nesses textos, se constroem
uma identidade positiva ou negativa acerca da negritude.

3 REFERENCIAL TEÓRICO

Sendo o último país a abolir a escravidão na América Latina, logo


após a assinatura da Lei Áurea, iniciam-se as políticas de branqueamento
da população, uma delas foi o Decreto 528, de 1890, que incentivava a

1258
entrada de europeus e restringia o acesso de pessoas vindas da África e
Ásia para Brasil. Outra estratégia foi construir um ideal positivo de
branquitude, naquele momento “as pessoas são persuadidas de que a
civilização do futuro será criada com sangue branco” (MBEMBE, p. 115, )
e negativar todo imaginário voltado para a população negra, sempre
atrelada ao feio, violento, ignorante e inferior, “a memória que lhe
inculcam não é a de seu povo; a história que ensinam é outra; (...) os livros
estudados lhe falam de um mundo totalmente estranho, da neve e do
inverno que nunca viu” (MUNANGA, 1988, p. 13).

Compreendendo que o livro didático é um dos principais materiais


pedagógicos utilizados pelos(as) professores(as) em sala aula, um
questionamento se faz necessário: como a identidade das pessoas
negras é construída no livro didático de Língua Portuguesa a partir dos
seus gêneros discursivos? Para responder essa questão, parte-se do
princípio de que, segundo Silva, “quase toda representação do negro no
livro didático pode concorrer para a sua autorrejeição e rejeição ao seu
outro assemelhado” (2001, p. 53)

As crianças, adolescentes e jovens, diante da imagem violentada,


historicamente construída do negro, formam suas identidades negando
as raízes africanas, sobre essa negação, Quilomba lembra que é um
“mecanismo de defesa (...) para resolver conflitos emocionais através da
recusa em admitir os aspectos mais desagradáveis da realidade externa”
(2019, p. 43). E ainda são culpabilizados por isso quando a sociedade
projeta o discurso de que “o negro é o primeiro a não se valorizar”, sem
refletir o quanto é difícil construir essa autoestima negra respirando numa
sociedade que rouba o seu ar, que o coloca como suspeito, que mostra
o estado pisando em seu pescoço até o último suspiro, Hall (2005, p. 06)
explica que “as noções de raça e etnia que compõem a construção das

1259
identidades negras devem ser vistas no interior de estruturas de
representações perpassadas pelas relações de poder”, poder que
legitima e ilegitima discursos, que garante privilégios e impede acessos a
diretos básicos. É nessa relação de poder que o padrão branco se
fortalece nos diversos textos, enquanto o preto dá sufocados passos em
busca de novas representatividades textuais.

Vinte anos após a promulgação da Lei 10.639/03, faz-se necessária


uma análise acerca das mudanças ocorridas nas salas de aulas no que
diz respeito às abordagens sobre as temáticas das relações étnico-
raciais. Portanto, essa pesquisa se debruçará sobre o componente
curricular de língua portuguesa, analisando como os textos verbais e
não-verbais dos livros didáticos representam a pessoa negra nos dias
atuais. O livro didático é um dos principais materiais pedagógicos do
cotidiano escolar e, muitas vezes, norteia as discussões estabelecidas em
sala de aula, por isso, será objeto dessa pesquisa, a fim de analisar qual
identidade negra é construída nesses materiais, se apresentam
perspectivas inovadoras ou continuam funcionado como mais um
instrumento para fortalecer e naturalizar um padrão hegemônico
branco por meio dos textos presentes.

No Brasil, as pesquisas sobre o racismo no livro didático iniciam-se


em 1950, com Dante Leite, em “Preconceito racial e patriotismo em seis
livros didáticos primários brasileiros”. Apesar de não ser um tema novo,
existe uma grande carência de trabalhos analisando a construção da
identidade negra nos livros de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental
II, a fim de constatar a realidade para poder agir sobre ela, exaltar os
avanços e questionar as violências implícitas e explícitas nesse material.
Perceber que a seleção textual que compõe o livro didático é muito
importante para que esse material traga uma perspectiva diferenciada

1260
sobre as diversas identidades raciais, por exemplo, se ao trabalhar o
gênero “poema”, o livro limita-se a trazer como referências Vinícius de
Moraes e Cecília Meireles e invisibiliza as escritas de Conceição Evaristo e
Solano Trindade, está contribuindo para o apagamento histórico dos
corpos negros como produtores de literatura, de arte, de
intelectualidade. Por que não se trabalhar uma biografia a partir de uma
personalidade negra? Por que não trabalhar o gênero artigo de opinião
problematizando questões raciais? Por que não trabalhar o gênero
receita a partir do acarajé?

Nesse sentido, os livros didáticos podem trilhar dois caminhos:


construir um imaginário positivo acerca da negritude, ou fortalecer um
imaginário racista que invisibiliza o povo negro no currículo ou limita-o à
escravidão, miséria e marginalização, de acordo com Baptista Silva,
“uma das possíveis formas de discriminação no interior da escola (entre
outras) é o uso de livros didáticos que naturaliza a branquitude de seu
público” (p. 10, 2008).

3.1 GÊNERO DISCURSIVOS E IMAGINÁRIO RACIAL

De acordo com Bakhtin, “qualquer enunciado considerado


isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que
denominamos gêneros do discurso” (BAKTHIN, 2000: 279, destaques do
autor). É fazendo uso dessas estruturas relativamente estáveis que os
conceitos são construídos por meios dos gêneros textuais, por exemplo,
ao estudar a estrutura de um poema, e selecionar como corpus o poema
“Clara”, de Cassimiro de Abreu, “Não sabes, Clara, que pena/ eu teria se

1261
- morena/ tu fosses em vez de clara!”, o(a) professor(a) está muito mais
do que trazendo a estrutura, mas também uma ideologia sobre o
conceito de beleza, historicamente construído pela sociedade racista,
“enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real,
estritamente delimitada pela alternância dos falantes” (BAKHTIN, 2000:
294).

Bakhtin considera os gêneros discursivos incalculáveis, tendo em


vista que as atividades humanas estão diretamente relacionadas ao uso
da língua, e é por meio do gênero que esta se realiza. Novos gêneros
surgem, antigos gêneros são modificados, mas, de uma forma geral, os
gêneros são repassados sócio e historicamente, ou seja, não é cada
indivíduo que constrói seus gêneros discursivos, eles reproduzem o que
lhes é posto:

Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados [...] Os


gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira
que a organizam as formas gramaticais. [...] Se não existissem os
gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de
construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal
seria quase impossível (BAKHTIN, 2000, p. 301-302).

De acordo com esse teórico, os gêneros são constituídos a partir de


três dimensões: estilo ou aspecto expressivo, relacionado à seleção
gramatical, lexical, frasal, ou seja, à forma de expressar que se constitui
de acordo com o gênero. A construção composicional ou aspecto
formal do texto, refere-se à estrutura do texto, composta a partir da
organização, procedimentos, relações de sentido e interlocução. E, por
fim, o foco dessa pesquisa, o conteúdo temático ou aspecto temático,
voltado para os sentidos, objetos, conteúdos, gerados numa esfera
discursiva com suas realidades socioculturais.

1262
Para Bakhtin, ao se comunicarem, as pessoas trocam enunciados
plenos de sentidos, não apenas vocábulos e orações, sendo assim, os
gêneros são construídos a partir desse uso comunitário da língua, dessa
relação dialógica que, muitas vezes, determina a escolha dos gêneros
para emitir determinados conteúdos.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA NO


“APROVA RECIFE

Essa pesquisa analisará o caderno “Aprova Recife”, do 9º ano, a fim


de observar os conteúdos projetados pelos gêneros discursivos,
observando se, estes contemplam a diversidade étnico-racial, e como
contribuem para fortalecer (ou não) o imaginário racista em torno da
identidade negra.

As lições do livro são todas pautadas nos estudos dos gêneros


discursivos, abaixo estão listadas as vinte lições, com cada gênero
trabalhado, título e autoria do texto.

• Lição 01 – Letra de canção – “Homem não chora” – Frejat

• Lição 02 – Diário – ““O diário de Zlata...” - Zlata Filipovic

• Lição 03 – Autobiografia - “O arco-íris” - Frei Betto

• Lição 04 – Biografia - “O menino-dínamo” - Marleine Gohen

• Lição 05 - “A glória do falso” - Moacyr Scliar

• Lição 06 - Notícia - “A maior invasão de hackers da história” - O Globo

• Lição 07 – Tira - “Palestra sobre os novos tempos” - André Dahmer

1263
• Lição 08 - Cartum e charge – Nanihumor/Nani

• Lição 09 – Crônica - “O homem rouco” - Rubem Braga

• Lição 10 - Verbete de enciclopé-dia e texto expositivo - “Saúde


Pública” - N.E.I.F.

• Lição 11 - Manual de instrução - “Ferro a vapor e ferro seco” – Mallory

• Lição 12 – Poema - “No mundo há muitas armadilhas” - Ferreira Gullar

• Lição 13 - Campanha publicitária - “Terra azul” - Ciência Hoje

• Lição 14 – Conto - “O homem nu” - Fernando Sabino

• Lição 15 - Texto de divulgação científica - “Envelhecimento do cérebro


começa a partir dos 24 anos” - Frederico Goulart.

• Lição 16 – Romance - “Noite dos Capitães de Areia” - Jorge Amado

• Lição 17 – Reportagem - “Estudo mostra que falta de escovação


dentária eleva risco de infarto” - Carmem Vasconcelos

• Lição 18 – Texto Expositivo - “Mais que ironia: sarcasmo” - Suzana Houzel

• Lição 19 – Texto Teatral - “Auto da Compadecida” - Ariano Suassuna

• Lição 20 - “Direitos e favores” - Luiz Fernando Viana.

4.1 QUEM SÃO OS AUTORES?

O caderno Aprova Recife, do 9º ano, trabalha vinte gêneros


discursivos (citados acima), todos os textos que introduzem os gêneros
são de autores(as) brancos(as). Dos 58 textos, presentes nas 150 páginas
do material, apenas quatro são de autoria negra, e aparecem nos
exercícios: uma carta de Machado de Assis ao amigo Quintino Bocaiuva

1264
(homem branco), pedindo a opinião sobre um texto escrito pelo autor.
Acerca de Machado de Assis, vale ressaltar a identidade branca
construída sobre ele, muita gente o ler como branco, afinal, no
imaginário racista, tal genialidade não poderia pertencer a um corpo
preto. Coletivos negros estão resgatando imagens de Machado
enquanto homem negro.

Outro texto de autoria negra é um poema do autor Cuti, chamado


Ferro, utilizado para comparar com o uso da palavra “ferro” no Manual
de instruções da Mallory, uma abordagem bem simplória para um
poema tão profundo. O terceiro autor negro é Adão Ventura, com o
poema Negro forro. E, por fim, o último autor negro, a ter seu texto no
“Aprova Recife”, é o cartunista Guto Dias, mais adiante, na análise dos
textos não-verbais, acessaremos seu cartum, que traz reflexões sobre o
desmatamento.

4.2 REPRESENTAÇÃO DO (A) NEGRO(A) NOS GÊNEROS TEXTUAIS

Ao analisar os 58 textos presentes no caderno Aprova Recife,


observamos que desses, 46 são textos verbais, e, em apenas três textos
temos como temática algo voltado ao universo da negritude. Dois de
autoria negras, Cuti e Adão Dias, e um autor branco, Jorge Amado. Algo
importante a ser observado é que os três textos, em perspectivas distintas,
remetem a identidade negra ao processo da escravidão. E temos
também uma tira, de Alexandre Beck, na qual se discutem as
desigualdades econômicas levando em consideração o quesito cor.

1265
Nos primeiros versos do poema Ferro, de Cuti, temos “Primeiro o
ferro marca/ a violência nas costas/ Depois o ferro alisa/ a vergonha nos
cabelos (...)”, fazendo menção à violência sofrida pelo povo negro no
tempo da escravidão, que eram queimados, espancados com ferro nas
costas e também reflete sobre o processo de alisamento dos cabelos de
mulheres negras com ferro quente, consequência de um processo
violento de agressão à autoestima dessas mulheres.

O poema “Negro Forro” já traz no próprio título esse diálogo com a


escravidão, que continua nos versos “minha carta de alforria/não me
deu fazenda,/nem dinheiro no banco,/nem bigodes retorcidos (...)”,
refletindo sobre o descaso sofrido pelas pessoas negras após o processo
de abolição que não desenvolveu nenhuma política de reparação, nem
de fortalecimento do povo negro, que, após anos de cruel escravidão,
partiram para uma “liberdade” sem grandes perspectivas.

Observamos, até então, que ainda se tratando de escritores negros,


a seleção textual do caderno prioriza textos que remetem à escravidão,
à dor, à miséria, à vergonha. Por que não trazer um texto com eu-lírico
negro(a) feliz, de bem com a vida, bem sucedido? Como esses textos
acabam mexendo com memórias que só violenta a construção positiva
da identidade negra, sobretudo, quando não se desenvolve um trabalho
crítico e aprofundado sobre a temática. Não dizemos com isso que não
se deve trabalhar esses textos, mas que abordar a temática apenas com
essa perspectiva é algo extremamente complexo para fortalecer a
autoestima dos alunos. Segundo Silva, “o livro didático apresenta o
passado histórico e a cultura do povo negro sob forma reduzida e
conveniente, quando não consegue inviabilizá-los completamente. O
fato histórico mais reduzido refere-se à escravidão.” (2001, p. 51)

1266
No terceiro texto, ao trabalhar o gênero romance, na lição 16, o
Caderno apresenta um trecho de Capitães de Areias, do autor Jorge
Amado, e, nesse texto, a identidade negra é cruelmente negativada, o
negro é o ladrão, analfabeto; o branco, mesmo fazendo parte da
quadrilha, é “professor” porque é o único que sabe ler, é o mais
inteligente. O texto apresenta o negro João Grande de forma
inferiorizada, “este negro é burro mas é uma prensa... nunca deixou de
ser convidado para as reuniões que os maiorais vaziam para planejar os
furtos. Não que fosse um bom organizador de assalto...doía-lhe a cabeça
se tinha que pensar”. Silva afirma que “isso tem um impacto sobre a
construção da identidade dos educandos de ascendência africana,
indígena e mestiça, que não encontram referências positivas a sua
origem, a sua cultura e a sua história, omitida ou mostrada de maneira
caricatural, estereotipada e folclorizada na escola” (2001, p. 135).

Quanto aos textos não-verbais e mistos, o caderno traz um cartum


de Guto Dias, na qual apresenta uma crítica ao desmatamento, apesar
de não tratar da nada envolvendo a escravidão, podemos perceber a
tristeza presente no personagem. E a tirinha com o personagem Maurício,
do autor branco, Alexandre Beck, observamos que abordam a má
distribuição de renda, mostrando que a pessoa branca é privilegiada na
distribuição de renda, é o homem branco que recebe mais, quem é mais
privilegiado nessa sociedade,

1267
Ao trazer apenas textos com perspectivas sofridas e marginalizadas
do povo negro o material invisibiliza outras identidades negras de sucesso,
de afeto, de poder. A escritora Chimamanda, encerra seu texto, O perigo
de uma história única, com a seguinte reflexão, “quando nós rejeitamos
uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma
história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso”, é
em busca do paraíso que outras histórias acerca da população negra
precisam ecoar nos materiais didáticos e nas grandes mídias,
apresentando referências positivas do nosso povo que existe.

1268
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os elementos trazidos ao debate sobre a construção da


identidade étnico-racial a partir dos conteúdos presentes nos gêneros
discursivos, embora resumidos em função dos limites deste artigo,
apontam para uma presença marginalizada, escravizada e triste
associada às pessoas negras. Observamos que dos 56 textos presentes no
Caderno “Aprova Recife”, apenas três são de autores negros homens,
dois poemas que remetem ao sofrimento da escravidão, dos poetas Cuti
e Adão Dias, e um cartum de Guto Dias, que apresenta um homem negro
triste em função do desmatamento. Analisamos também a imagem
marginalizada do negro no texto selecionado para trabalhar o romance,
colocando a personagem João Grande como ladrão e burro.

Muitos aspectos presentes no caderno não foram abordados aqui,


tendo em vista a necessidade da explanação reduzida, mas vale
salientar que aparecem apenas duas fotos de autores, e ambos são
pessoas brancas, um homem e uma mulher. Também é possível observar
em charges e tirinhas as pessoas negras nos locais de sofrimento e
marginalidade.

Não podemos naturalizar essa abordagem dos corpos negros, ainda


que o sofrimento e a marginalidade violentem essas pessoas, a projeção
de outras perspectivas positivas é fundamental para o fortalecimento da
identidade negra no espaço escolar. Como sentir orgulho de ser negro(a)
se o referencial é sempre negativo? As aulas de Língua Portuguesa, nos
trabalhos com gêneros discursivos, precisam ser repensadas também a
partir da educação para as relações étnico-raciais.

1269
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1270
REESCRITURA DA AMAZÔNIA ATRAVÉS DA SOBREVIDA DE
ALFREDO NO CICLO DO EXTREMO NORTE DO ESCRITOR
DALCÍDIO JURANDIR

Helen Suzandrey Maia Sousa 189

RESUMO: Este trabalho tem por finalidade analisar a complexidade e o fenômeno de


sobrevida da personagem Alfredo na saga dalcidiana do chamado Ciclo do Extremo
Norte. A existência desta personagem de ficção surge entrelaçada, ao longo desse
ciclo de uma dezena de romances, com as “vozes” do próprio escritor, e é a partir da
compreensão do conceito de transtextualidade de Gérard Genette, que
reconhecemos estas relações. Dalcídio Jurandir retrata em suas narrativas a vida de
personagens que constroem um enredo para a vida de Alfredo. Com uma peculiar
forma de descrever a Amazônia, fornece uma enciclopédia linguística que caracteriza
o povo daquela região: sons, narrativas, personagens que só existem neste território
brasileiro, tão pouco explorado pela literatura mundial. Diante disso, este trabalho tem
o escopo de reconstruir e criticamente analisar a trajetória de Alfredo, utilizando como
corpus textual cinco romances do Ciclo do Extremo Norte: Chove nos campos de
Cachoeira (1941), Primeira Manhã (1967), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão -
Pará (1960) e Ribanceira (1978), e estabelecendo, por fim, a relação da personagem
com os romances supracitados.
Palavras-chave: Personagem, sobrevida, Dalcídio Jurandir, Transtextualidade,
Amazônia.

INTRODUÇÃO

A fortuna crítica que envolve a literatura dalcidiana merece


destaque dentro do cenário de pesquisas em torno da Literatura Brasileira
de Expressão Amazônica, assunto que causou a defesa de opiniões
díspares no que diz respeito à compreensão e diferenças entre a
“Literatura Amazônica” e a de “Expressão Amazônica”. Desta maneira,

189Doutoranda da Universidade de Coimbra do curso de Literatura de Língua


Portuguesa, mestre em Ciência das Religiões na Universidade do Estado do Pará (UEPA),
Especialista em Estudos linguísticos e análise literária pela Universidade do Estado do
Pará (UEPA).

1271
faz-se necessário enfatizar a importância de alguns trabalhos
acadêmicos que se debruçaram em torno da concepção de um
arcabouço intelectual formado a partir dos textos de Dalcídio Jurandir,
além de sua importância cultural para a Amazônia, e para a inclusão do
mesmo no cânone literário brasileiro e, por extensão, universal. Um dos
trabalhos que merece relevância por ser um dos pioneiros, no sentido de
destaque acadêmico, sem dúvida, é a dissertação de Enilda Tereza
Newmam Alves, que ainda na década de oitenta do século XX, se
destacou por apresentar elementos que incorporam de forma
interdisciplinar a obra dalcidiana, Três casas e um Rio e a partir de
conceitos da psicanálise que exploram os meandros da mente humana.
O trabalho intitulado “Marinatambalo: construindo o mundo amazônico
com apenas Três casas e um rio”, foi apresentado no ano de 1984, na
PUC do Rio de Janeiro, e abriu as portas para vários outros trabalhos que
formam hoje um verdadeiro arcabouço de pesquisas de suas obras.

Dalcídio Jurandir é um dos autores mais relevantes da Literatura


Brasileira de Expressão Amazônica, e destaca-se por se tratar de um
verdadeiro arqueólogo da cultura amazônica. Sendo indiscutivelmente
um dos autores mais importantes do Norte do Brasil, porém, infelizmente,
continua a ser pouco conhecido fora deste horizonte geográfico-cultural.
Ainda assim, no meio acadêmico floresce, cada vez mais, sua forma de
enxergar o mundo e principalmente seu espaço. Demonstrou ao longo
do percurso de vida e criação um entusiasmo em explorar a cultura do
nortista brasileiro, trouxe para seus romances a evidência do
cumprimento do dever marajoara, a decadência humana, as mazelas,
a dor e o sofrimento, os sonhos e as lutas de quem vive em uma região
que, certamente, poucos conhecem tão bem como ele.

Jurandir retrata em suas narrativas a vida de personagens que

1272
constroem um enredo para a vida de Alfredo. Com uma peculiar forma
de descrever a Amazônia, fornece uma enciclopédia linguística que
caracteriza o povo daquela região: sons, narrativas, personagens que só
existem neste território brasileiro, tão pouco explorado pela literatura
mundial. Diante disso, este trabalho tem o escopo de reconstruir e
criticamente analisar a trajetória de Alfredo, utilizando como corpus
textual cinco romances do Ciclo do Extremo Norte: Chove nos campos
de Cachoeira (1941), Primeira Manhã (1967), Três casas e um rio (1958),
Belém do Grão - Pará (1960) e Ribanceira (1978), e estabelecendo, por
fim, a relação da personagem com os romances supracitados.

A Literatura é compreensão da sociedade, a folhagem cultural de


um povo, estrada pela qual se tem a compreensão de uma cultura em
sua totalidade. E foi a partir do século XIX que se estabeleceu como
representação sociocultural de um período histórico, mas que, por
apresentar elementos que estão diretamente relacionados com o ser
humano, tornou-se transtemporal e pode ser analisada como fonte de
informações que nos ajudam a compreender a formação de uma
determinada sociedade. Deste modo, o texto literário visto como lentes
de aumento tem em si uma condição palimpséstica, de modo que se
podem ver as questões humanas refletidas nas páginas dos romances
de Dalcídio Jurandir, e que de todo modo é um arcabouço de
informações que vão da língua aos costumes de uma parte do Brasil
pouco visitado.

1 METODOLOGIA

Considerando os objetivos delineados para este estudo,

1273
procederemos à leitura analítica das obras Chove nos Campos de
Cachoeira, Três Casas e um Rio, Belém do Grão - Pará, Primeira Manhã e
Ribanceira (obra que encerra o Ciclo do Extremo norte), tendo em vista
o objetivo de investigar a trajetória de Alfredo, personagem principal das
tramas, que será o foco central da pesquisa. No entanto, trechos de
outros romances do autor também poderão ser utilizados, quando
contribuírem para aprofundamento da proposta a ser defendida, e para
construção efetiva da sobrevida desta personagem.

Nessa fase subsequente, privilegiaremos a (re) leitura da


bibliografia crítica sobre as obras do autor, bem como a análise dos
diversos trabalhos que versam em torno da obra dalcidiana. Serão feitas
também pesquisa e leitura de textos históricos e de obras sobre o
contexto histórico-cultural e social do século XX, incluindo textos que
venham a contribuir para apresentar a relação de Dalcídio Jurandir com
o movimento modernista e toda mudança a nível da sociedade que, de
alguma forma, estabelece condição importante para a construção
teórica que solidifique a pesquisa em questão.

Retomamos a leitura e análise de bibliografia especializada sobre


os conceitos de transtextualidade, discursividade, sobrevida das
personagens e a relação intrínseca com o texto literário e, para além
disso, a concepção de espaço como vetor estruturante da condição e
vivência da personagem. Para fundamentar tais parâmetros, tomaremos
por base os conceitos de Transtextualidade de Gérard Genette em
Palimpsestes. La littérature au second degré. Haja vista que estes estudos
nos fornecerão as coordenadas teóricas e os instrumentos de análise
necessários para balizar e fundamentar a abordagem escolhida sobre os
aspectos ligados ao romance.

1274
Para Tânia Carvalhal em Literatura Comparada, a literatura se
estabelece a partir de análises comparativas entre textos, texto e
sociedade, ou momentos históricos. Essas possíveis relações voltam-se
então, não apenas com o objetivo de concluir sobre a natureza dos
elementos confrontados, mas, principalmente, para saber se são similares
ou diferentes. Recurso usual pela crítica literária quando o que busca é
estabelecer parâmetros de comportamento do próprio texto, o que
demais ele sugere ou investiga. Portanto, quando a comparação é
empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo-
se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de
método – e começamos a pensar que tal investigação é um “estudo
comparado” (CARVALHAL, 2006, p. 7).

2 REFERENCIAL TEÓRICO

Como um dos principais objetivos desta pesquisa é estudar a


permanência da personagem Alfredo nas obras do autor amazônico
Dalcídio Jurandir, sua sobrevida e a relação transtextual no hipertexto,
faz-se necessário estabelecer os conceitos que irão confirmar tais
relações.

Esta importância dada ao próprio texto nos revela que para que se
estabeleça uma relação “trans” dos textos, devemos mergulhar em seus
próprios enigmas, haja vista que esta compreensão nos aponta para um
caminho que, inevitavelmente, se estabelece a partir da compreensão
de transtextualidade de Gérard Genette, descrita em sua obra
Palimpsestes. La littérature au second degree (1982), pois esta tem sido
de grande valia para o entendimento do universo literário Dalcidiano, na

1275
condição hipertextual que subjaz às narrativas.

Na busca por um caminho teórico para nossa pesquisa,


destacamos seus estudos na intenção de propor uma maneira de
analisar textos, partindo do conceito de palimpsesto, que de forma mais
simples é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se
traçar outra, que não se esconde de fato, de modo que se pode lê-la por
transparência, o antigo sob o novo (GENETTE, 2010). Assim, quem ler por
último lerá melhor, já que o texto pode ler outro, até que se chegue ao
fim dos textos, que seria aqui conhecida como a literatura de segunda
mão. Apropriando-se desta assertiva, verifica-se que os romances de
Dalcídio Jurandir constituem-se de novas leituras a partir de seus próprios
textos, além da copresença de outros textos da literatura universal e, por
conseguinte, sua relação hipertextual. Mas, para além disso, fomenta a
possibilidade de transformação dos textos, e que se acrescentam a partir
da leitura, compreensão e da interpretação das narrativas, pois, segundo
Genette, “Não é preciso dizer que dois intérpretes ou grupo de
intérpretes, suponho que disponham dos mesmos instrumentos, nunca
executam de modo idêntico a mesma partitura, e aqui novamente a
capacidade de transformação é multiplicada por um fator virtualmente
infinito.”(GENETTE, 2010, p. 132)

Genette destaca sua preocupação em estabelecer critérios para


a construção do conceito mais eficaz para as categorias
transcendentais, por isso classificou em cinco as categorias específicas
de transcendência textual, enumeradas de maneira crescente de
abstração e implicação, são elas: intertextualidade, paratextualidade,
metatextualidade, hipertextualidade e a arquitextualidade. E sobre isso,
ainda enfatiza que:

1276
O objetivo da poética, como de certa forma eu já disse, não é
o texto, considerado na sua singularidade (este é antes, tarefa
da crítica), mas arquitexto, ou se preferirmos, a
arquitextualidade do texto (como se diz, em certa medida, é
quase o mesmo que a “literariedade da literatura), isto é, o
conjunto das categorias gerais ou transcendentes- tipos de
discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc. do qual
se desta cada texto singular. Eu diria hoje, mais amplamente,
que este objeto é a transtextualidade, ou transcendência
textual do texto, que definiria já, a grosso modo, como “tudo que
o coloca em relação, manifesta ou secreta com outros textos.”
(GENETTE, 2010, p. 4).

A partir dessas premissas, iniciaremos por definir o conceito de


Intertextualidade que nos será útil para compreender e analisar os
romances do Ciclo do Extremo Norte. Segundo as considerações de
Genette, que seria a relação de co-presença entre dois ou vários textos,
isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva
de um texto em outro190, é evidente esta relação nos textos de Dalcídio,
pois reiteradas vezes ele se apropria de momentos baseados em fatos
históricos para compor as narrativas. É o caso de Belém do Grão- Pará:
“Recordava Farias Brito, o filósofo que frequentava a casa, na 22, ao
tempo do lemismo.” (JURANDIR, 1960, p. 3).

Genette, ressalta ainda que este tipo de transtextualidade


corresponde a uma relação restrita, pois segundo o intertexto se define
como um “traço”, ou seja, uma alusão, uma figura pontual, um detalhe,
que implica em uma relação micro-textual 191 . Apesar de destacar a
importância do intertexto, nos ocuparemos de maneira mais ampla com
a Hipertextualidade que será nossa principal maneira de estabelecer
relações entre texto, espaço, personagens, momentos e a própria

190 GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La literature au second degré, p. 8, 2010


191 Ibid p.8

1277
concepção de sobrevida de Alfredo ao longo da obra de Jurandir.

Os romances de que nos ocuparemos nesta pesquisa também têm


uma força semântica profunda, quando nos voltamos para a relação
entre obra e título. Desse modo, para que possamos estabelecer um
parâmetro de análise, iremos utilizar o segundo tipo de transtextualidade:
paratexto, que se define através de suas relações e que, geralmente,
segundo Genette, estabelece-se a partir de um conjunto que forma a
obra literária como: título, subtítulo, intertítulos, prefácios, advertências,
prólogos, notas de rodapé, epígrafes, ilustrações, errata, capa e outros
sinais que são considerados acessórios. Além disso, enfatiza ainda que o
pré-texto dos rascunhos, esboços e projetos diversos, também são
considerados paratextuais 192 . Ressalta que geralmente o paratexto é
menos explícito e mais distante que o texto propriamente dito, pois o
paratexto é um ambiente de perguntas sem respostas193. Nesse sentido,
consideramos que os paratextos constituem conexões importantes para
a análise e compreensão da narrativa dalcidiana, isto porque
contribuem para o esclarecimento mais eficaz traçando uma linha de
sentido com a própria narrativa.

Considerando que Alfredo é uma personagem que traz consigo


todas as demandas desde sua infância até a fase adulta, e por ele
perpassam histórias e sentimentos de outros personagens que desaguam,
sobretudo, em narrativas, podemos considerar que as obras do Ciclo são,
de toda forma, obras hipertextuais, já que segundo Genette toda
relação que une um texto B (hipertexto) a um texto A (hipotexto), é
considerado um hipertexto, sendo este considerado a obra propriamente

192 Ibid p 09.


193 Ibid, p.11.

1278
dita, ou seja, a obra literária.

As diversas formas de transtextualidade são ao mesmo tempo


aspectos de toda textualidade e, potencialmente e em graus
diversos, das categorias de textos: todo texto pode ser citado e,
portanto, torna-se citação, mas a citação é uma prática
definida, que transcende evidentemente cada uma de suas
performances e que tem suas caraterísticas gerais, todo
enunciado pode ser investido de uma função paratextual, mas
o préfacio (diríamos de bom grado o mesmo do título) é um
gênero; a crítica (metatexto) é evidentemente um gênero o
arquitexto, certamente, não é uma categoria, pois ele é, se ouso
dizer, a própria classificação (literária): ocorre que certos textos
têm uma arquitextualidade mais pregnante (mais pertinente)
que outros, e, como ocasião de dizer em outro lugar, a simples
distinção entre obras mais ou menos providas de
arquitextualidade (mais ou menos classificáveis) é um esboço de
classificação arquitextuais. E a hipertextualidade? Ela também é
evidentemente um aspecto universal (no grau próximo) da
literariedade: é próprio da obra literária que, em algum grau e
segundo as leituras, evoque alguma outra e, nesse sentido,
todas as obras são hipertextuais. (GENETTE, 2010, p.23)

A partir da compreensão de transtextualidade que será


trabalhada nesta pesquisa, partiremos para o entendimento e o
conceito da personagem, considerando que nossa pesquisa versa sobre
uma personagem que norteia grande parte das histórias de todas as
obras que compõem o Ciclo do Extremo Norte, à exceção do romance
Marajó. Alfredo cresce ao longo destes romances, desenvolve-se,
compreende o mundo a sua volta e a partir da vida dura que viveu, o
que percebemos quando adentramos as camadas mais profundas da
memória afetiva do próprio autor, do imaginário fértil e rico de mitos e
lendas e da realidade que se sobrepõe e se cristaliza trazendo para a
superfície lacunas de uma sociedade cercada por problemas sociais.

1279
CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente, ao lermos as narrativas do Ciclo do Extremo Norte, a


importância que Dalcídio Jurandir dá aos espaços das histórias
vivenciadas pelas personagens; diríamos até que de maneira transtexto-
discursiva194, ele traz estes espaços para um lugar de debate, pois atinge
um patamar que desloca um eixo discursivo do qual o leitor questiona a
própria existência material deste lugar. Sua importância é tão grande
que representa e titula algumas dessas narrativas, é o caso de: Chove
nos Campos de Cachoeira, Belém do Grão-Pará e Marajó e outros que,
de forma indireta, representam este espaço amazônico, tão forte e, ao
mesmo tempo, tão fragilizado pelas mazelas sociais.

Neste sentido, trataremos da importância deste espaço para a


compreensão na formação das personagens e de que maneira esta
fragmentação desses espaços podem ter contribuído decisivamente
para a construção da personalidade de Alfredo. Para o pesquisador
Ozíris Borges Filho, em suas pesquisas em torno desta relação discursiva
entre espaço e literatura, ressalta:

Do ponto de vista de uma topoanálise, isto é, de uma teoria


literária do espaço, acredito que a oposição entre espaço e
lugar não é funcional e nada acrescenta à teoria. Ficamos com
a conceituação clássica da teoria literária. Por isso, preferimos
conservar o conceito de espaço como um conceito amplo que
abarcaria tudo o que está inscrito em uma obra literária como
tamanho, forma, objetos e suas relações. Esse espaço seria

194Tese de Eli Brandão da Silva defendida na Universidade Metodista de São Paulo


(UMESP) e que tem como título O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal
pernambucano como revelação poético-teológica da esperança: hermenêutica
transtexto-discursiva na ponte entre teologia e literatura. que encontrou no texto literário
de João Cabral de Melo Neto, inspiração para compor seus estudos e estabeleceu um
novo parâmetro para análise de textos.

1280
composto de cenário e natureza. A idéia de experiência,
vivência, etc., relacionada ao conceito de lugar segundo vários
estudiosos, seria analisada a partir da identificação desses dois
espaços sem que, para isso, seja necessário o uso da
terminologia ‘lugar’. Dessa maneira, não falaríamos de lugar,
mas de cenário ou natureza e da experiência, da vivência das
personagens nesses mesmos espaços. (FILHO, 2008, p. 1)

Neste momento da pesquisa, é importante salientar a relevância


do romance Belém do Grão-Pará, já que é por meio dele que o autor nos
fornece pistas necessárias para deflagrar as ruínas, e neste sentido,
novamente se discute as relações de poder dentro de um espaço que é
vinculado deliberadamente a respeito da Amazônia. Mas é a partir deste
momento que percebemos a derrocada da família dos Alcântaras,
centro de vários debates por parte dos estudiosos que fomentam as
discussões em torno do poder e o fim do ciclo da borracha. Furtado diz
ainda: “Major Alberto, inclusive, sofreu e sofre dissabores em virtude de
uma visão equivocada, que parece fazer parte do inconsciente coletivo
do brasileiro, a de quem está no poder, se não rouba o dinheiro público,
deve roubá-lo”. (FURTADO, 2002, p. 65)

Ainda neste capítulo serão debatidas as relações transtextuais e a


formação dos hipertextos, bem como os títulos, subtítulos e tudo que
possa ter relação com a construção do conceito de sobrevida de
Alfredo. Além disso, será analisada a participação das principais
personagens dos romances, de forma que assim possamos compreender
o projeto dalcidiano de composição das personagens, estrutura das
narrativas, enredo, bem como a vida e cotidiano do povo amazônico.
Sobre isso, manifesta-se Assmar:

As personagens se fazem agentes de amazonidade, trazendo


consigo um projeto cultural nacional, revelado pela visão mítica

1281
da vida como produto e criação de uma vontade natural ou
sobrenatural e da história, onde não há lugar para o
mascaramento das forças sociais. E um modo de a literatura ler
e dialogar com a história amazônica, resgatando significados
perdidos, forças vitais na apreensão e construção de um novo
tempo. (ASSMAR, 2002, p. 174)

Nesta direção, faz todo sentido estudarmos os romances do autor


marajoara, já que constitui em si um emaranhado de construção
memorística, que age tecendo fios, entre personagens, fluxo de
consciência, acontecimentos, espaços que os tornam cada vez mais
concentrados em estabelecer relações cognitivas entre elementos que
se complementam e recriam um lugar de memória afetiva que oscila
entre a realidade dura e cruel, e a liberdade de acreditar em um futuro
mais humano para aqueles que vivem à margem da sociedade na
Amazônia.

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Golbery de Oliveira Chagas Aguiar Rodrigues 196

RESUMO: A mulher nordestina é, constantemente, associada a predicativos como forte,


guerreira, sonhadora, esperançosa, dentre muitos outros. Na literatura isso não é
diferente, uma vez que diversas obras literárias representam o feminino nordestino
enquanto indivíduo que não desiste facilmente frente às adversidades e às
problemáticas enfrentadas ao longo da vida, como acontece, por exemplo, na
representação dos personagens femininos de Rachel de Queiroz, em “O Quinze”. Nesse
cenário, este artigo tem como principal intuito analisar, primordialmente, como se dá a
representação em torno da caracterização da mulher no poema intitulado “Uma
nordestina”, do escritor maranhense Ferreira Gullar. A escolha desse corpus se deu
devido à complexidade e à riqueza de detalhes que se encontram imbricadas na
poética literária de Gullar. Após realizada as análises, verificou-se que a mulher
representada no poema é concebida como aquela que traz em si mesma a essência
do “ser nordestina”, revelada por meio da descrição de sua aparência que confronta
dois lados opostos: em primeiro plano, a pobreza material; em segundo, a riqueza de
personalidade e de valores. Por fim, para o desenvolvimento deste trabalho, utilizou-se
de pesquisa qualitativa de caráter bibliográfico, e a fundamentação teórica se baseou
nos estudos de alguns autores, como Azevedo e Dutra (2019), Santos (2010) e Melo
(2005).

Palavras-chave: Poema, mulher nordestina, Ferreira Gullar.

195 Graduando do Curso de Licenciatura em Letras com habilitação em Língua


Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba – IFPB,
rian.lucas@academico.ifpb.edu.br;
196 Professor orientador: Golbery de Oliveira Chagas Aguiar Rodrigues, mestre,

Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, golbery.rodrigues@ifpb.edu.br.

1288
INTRODUÇÃO

O Nordeste é uma região bastante representativa quando se fala


em arte. É inegável a participação de nomes importantes, seja na
literatura, na música, na pintura, enfim, nas artes em geral. Devido a essa
riqueza simbólica, este trabalho trata, especialmente, acerca de um
escritor nordestino – maranhense, para ser mais específico – conhecido
como Ferreira Gullar, pseudônimo de José de Ribamar Ferreira.

Nascido em São Luís, em 10 de setembro de 1930, criou-se sob uma


família de classe média pobre e faleceu em 4 de dezembro de 2016, no
Rio de Janeiro. Aos dezenove anos, logo descobriu a poesia moderna ao
ler poemas de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. A partir
das leituras, ficou escandalizado com o tipo de poesia que estava sendo
apresentada, muito embora, posteriormente, aderiu a ela e adotou uma
atitude completamente oposta à que tivera antes, de modo que se
tornou um poeta radical. É válido pontuar que o escritor prezava muito
pela ausência de fórmulas e de regras, uma vez que o poema, em seu
entendimento, teria de ser inventado a cada instante.

Gullar foi poeta, jornalista, crítico de arte e, além disso, destacou-


se como um dos idealizadores do movimento neoconcretista brasileiro.
Nisso, é considerado como um dos maiores escritores brasileiros do século
XX, por meio de uma literatura bastante experimental, radical e forte
engajamento político, chegando a fazer parte da Academia Brasileira
de Letras (ABL) a partir do ano de 2014, sendo o sétimo ocupante da
cadeira n.º 37.

1289
O escritor197 transitou por diversos gêneros, sendo dono de uma
vasta obra literária ao escrever desde contos, crônicas e ensaios, até
biografias, críticas e traduções. Dentre suas principais obras, destacam-
se: Um pouco acima do chão (1949); A luta corporal (1954); Poemas
(1958); Teoria do não-objeto (1959); João Boa-Morte, Cabra Marcado pra
Morrer (1962); Cultura posta em questão (1964); Dentro da noite veloz
(1975); Poema sujo (1976); Uma luz no chão (1978); Na vertigem do dia
(1980); Sobre arte (1984); Etapas da arte contemporânea (1985); Barulhos
(1987); Indagações de hoje (1989); Argumentação contra a morte da
arte (1993); Muitas vozes (1999); Um gato chamado gatinho (2005);
Resmungos (2007); Em alguma parte alguma (2010); Autobiografia
poética e outros textos (2016).

Nesse sentido, o presente estudo objetiva, primeiramente, analisar


a caracterização da imagem feminina no poema intitulado “Uma
nordestina”, de autoria de Ferreira Gullar. A escolha desse texto literário
se deu por causa da complexidade, além da riqueza de detalhes que
estão inseridas na poética literária desse autor.

Após realizadas as análises, os resultados mostraram que a mulher,


no poema, é demarcada como aquela que traz, em seu processo de
construção de identidade, a essência de “ser nordestina”, caracterizada
por intermédio de dois lados antagônicos: no primeiro momento,
encontra-se a pobreza material e, em segundo plano, surge a riqueza de
personalidades e de valores.

197Essas e outras informações biográficas acerca da vida e da obra do autor aqui em


debate podem ser consultadas por meio do seguinte link:
https://www.ebiografia.com/ferreira_gullar/#:~:text=Ferreira%20Gullar%20(1930%2D201
6),o%20Pr%C3%AAmio%20Cam%C3%B5es%2C%20em%202010. Acesso em 21 de maio
de 2021.

1290
Metodologicamente, este estudo divide-se em dois momentos
principais: na fundamentação teórica será explorada os pressupostos
teóricos de alguns autores acerca da poética de Gullar, bem como do
que vem a ser o que intitulam de “ser nordestina”; por fim, há as
discussões e resultados que serão reveladas, por meio de excertos para
a comprovação, a forma como a mulher é apresentada no poema pelo
eu-lírico.

1 METODOLOGIA

Para o desenvolvimento deste trabalho, utilizou-se de uma


pesquisa de caráter qualitativo de cunho bibliográfico. Primeiramente,
foram buscados artigos em bases de periódicos científicos, a fim de
utilizá-los como pressupostos teóricos. Dessa pesquisa, três artigos foram
escolhidos para a utilização deste estudo: dois acerca da produção
poética de Ferreira Gullar (SANTOS, 2010); (MELO, 2005); além de um
artigo que se debruça sobre a prática da mulher na literatura,
exemplificando a essência daquilo que chamam comumente de “ser
nordestina” (AZEVEDO; DUTRA, 2019).

Acredita-se que ambos os trabalhos colaboram significativamente


para o presente estudo aqui desenvolvido, uma vez que auxilia nos
entendimentos não só acerca do escritor Ferreira Gullar, como também
nos mecanismos e ferramentas que caracterizam o ser nordestino, seja
representado na literatura, na música, no cinema e/ou nas artes em geral.

1291
2 REFERENCIAL TEÓRICO

Quando se fala em Nordeste, ainda se tem, infelizmente, uma ideia


arcaica e, por vezes, eivada de preconceitos por parte de pessoas que
desconhecem a realidade que é vivida nessa região. Seja por puro
desconhecimento – ou por ignorância? – sabe-se que o Nordeste ocupa
uma parcela bastante representativa no que se refere à temática das
artes em geral.

No cinema, por exemplo, há o clássico “O Auto da Compadecida”,


dirigido por Guel Arraes, roteirizado por Adriana Falcão, João Falcão e
pelo próprio diretor. O filme, dramatizado por grandes nomes da
dramaturgia brasileira, como Fernanda Montenegro e Selton Mello, foi
lançado em 2000, baseado na peça teatral de 1955, do escritor
nordestino Ariano Suassuna.

Figura 1 – Amostra da capa do filme “O Auto da Compadecida”

Fonte: https://arteeartistas.com.br/o-auto-da-compadecida/. Acesso em 21 de maio


de 2021.

1292
Na música, dentre muitas as representativas que existem nessa
região, destaca-se a canção “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, sendo
considerada como o Hino do Nordeste. Na pintura, por outro lado, nomes
como Pedro Américo e Romero Britto surgem como representantes
importantes para o Brasil e, sobretudo, para o Nordeste.

Figura 2 – Excerto da canção “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/798685315152400360/. Acesso em 21 de maio de


2021.

Na literatura, o campo é ainda mais vasto, como Jorge Amado,


João Cabral de Melo Neto, Augusto dos Anjos, Rachel de Queiroz, e
tantos outros que seriam impossíveis de serem citados devido a extensão.
Todavia, neste trabalho, coloca-se como foco o Nordeste na Literatura

1293
ao tratar acerca do escritor maranhense Ferreira Gullar, a fim de,
posteriormente, analisar um de seus poemas.

Figura 3 – Ferreira Gullar

Fonte: https://www.oliberal.com/cultura/ferreira-gullar-que-faria-90-anos-e-
homenageado-com-lives-e-novos-livros-1.304750. Acesso em 21 de maio de 2021.

De acordo com Melo (2005), a resistência e, sobretudo, a força


poética de Gullar ocorre pela crítica ora direta ora velada a tudo aquilo
que representa a desordem, uma vez que o poeta transita, na linguagem,
entre a sátira e a ironia, além da consciência cujo ideal revolucionário
não se compadece facilmente com as mazelas do tempo presente. O
autor é, portanto, “testemunha de uma realidade injusta e dilacerada,
cruzada por conflitos e múltiplas experiências culturais” (MELO, 2005, p. 4).

Consoante à autora, encontram-se, nas produções desse poeta,


não somente experiências, mas também perdas, angústias e esperanças
próprias do povo brasileiro. Nesse sentido, é central, em suas produções,
questões que se voltem à problematização do ser humano em suas mais
variadas esferas de comunicação e convívio social. Assim sendo, pode-
se afirmar que

1294
Gullar não está preocupado em agradar quem quer seja com o
que escreve. Suas palavras não são reconfortantes ou
apaziguadoras, ao contrário, elas nos inquietam e nos fazem
pensar. (...) A poesia de Gullar nasce da realidade brasileira, da
miséria e da fome estampadas no rosto de tantos excluídos
(SANTOS, 2010, p. 19 e 48).

Não é, pois, interesse e preocupação principal do poeta trabalhar


somente com aspectos ficcionais e com uma linguagem que conforte o
leitor, muito pelo contrário. Gullar estabelece em suas produções a
veracidade de fatos que ecoam por muito tempo na sociedade, cujos
assuntos polêmicos são bastante aproveitados em seus escritos, como a
temática da fome, da pobreza, da falta de saúde, de lazer e de
educação. Há, em sua veia poética, uma preocupação em representar
o real, mesmo que para isso o escritor se utilize de uma linguagem afiada,
pronta para dissecar o mal pela raiz.

Em seu poema “Uma nordestina” – que será apresentado na seção


seguinte – o poeta debruça-se sobre a apresentação de uma mulher
nordestina caracterizada sob dois ideias: o da pobreza e o da riqueza,
de modo que essa mulher traz, em si mesma, a essência de “ser
nordestina”.

As pobres mulheres nordestinas tinham que lutar por seu sustento,


sendo costureiras, fiadeiras, rendeiras, lavadeiras, roceiras,
trabalhando inclusive com a enxada como os homens o faziam.
As escravas trabalhavam principalmente na roça, mas também
como costureiras, carpinteiras, amas de leite, serviços
domésticos, trabalhando desde a infância. No entanto, é
importante mencionar que a mulher do sertão nordestino do
século XIX não era considerada uma cidadã política, pois estava
restrita ao espaço privado; além disso, não estudava e
raramente aprendia a ler, e quando o fazia era por meio de
professores particulares, ao contrário de seus irmãos, que
frequentavam a escola e aprendiam Filosofia e línguas
(AZEVEDO; DUTRA, 2019, p. 9).

1295
Conforme pontuam as autoras, “o ser nordestina” se encontra
atrelado aos lentos processos pelos quais essas mulheres tiveram de
passar ao longo de nossa história, bem como acerca de suas dificuldades
que as fizeram permanecer relegadas, por muito tempo, ao
esquecimento.

A lentidão de uma construção cidadã de mulheres nordestinas


pode ser comprovada na medida em que seus irmãos já possuíam direito
ao estudo e à educação, chegando até mesmo a estudar Filosofia e
Línguas, ao passo que as mulheres eram relegadas exclusivamente ao
trabalho doméstico, negando-lhes, assim, quaisquer avanços.

Nesse sentido, é a partir dessa visão de “ser nordestina” – por


essência – que o poema de Ferreira Gullar trilha a sua composição
poética, pois (trans)forma a imagem da mulher a dois níveis que se
opõem: falta de recursos econômicos para o sustento, mas presença
suficiente de características positivas relacionadas à sua construção de
identidade, baseadas em sua personalidade e valor.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Após esse breve levantamento teórico acerca do Nordeste nas


artes e da composição/produção poética literária de Ferreira Gullar, a
partir de agora, analisar-se-á o poema intitulado “Uma Nordestina”,
disponível integralmente logo abaixo.

1296
Figura 4 – Apresentação do poema

Fonte: elaborado pelos autores por meio do programa “Microsoft PowerPoint”.

Após a leitura do poema acima, é evidente que a mulher é


concebida como aquela que traz em si mesma a essência do “ser
nordestina”, tendo em vista que essa revelação se dá por intermédio de
sua aparência física que confronta, ao mesmo tempo, dois lados
antagônicos/opostos. Observe:

Figura 5 – Esquematização Representacional

Fonte: elaborado pelos autores

1297
No primeiro plano, isto é, no que se refere à pobreza material torna-
se evidente a atribuição de predicativos à mulher sobre sua própria
aparência física que resulta de uma caracterização de mulher pobre,
que sequer possui um calçado para usar, tampouco roupas mais
apresentadas, uma vez que se veste por meio de trapos, conforme se
observa na terceira estrofe:

De pés na poeira
de trapos vestida
é uma rainha
e parece mendiga:
a pedir esmolas
a fome a obriga
(GULLAR, 1999, p. 345-346).

Acima, é completamente evidente a pobreza econômica da


mulher neste poema que, apesar de ser uma rainha, aparenta ser uma
mendiga devido a sua aparência física. A pobreza também é
acentuada com maior tenacidade na medida em que é dito que a fome
obriga essa mulher a sair pedindo esmolas. Há, aqui, a necessidade de
depender dos outros para, ao menos, alimentar-se.

Em contrapartida, surge um segundo plano quando se analisa a


forma como o eu-lírico do poema apresenta ao leitor essa mulher: de um
lado, surge a pobreza material, resultado de um indivíduo feminino pobre
economicamente falando, por outro lado, há aspectos e características
positivas no que concerne à riqueza de personalidades e de valores
dessa mulher. Na segunda estrofe isso é bastante perceptível.

1298
Não importa a roupa
de que está vestida.
Não importa a alma
aberta em ferida.
Ela é uma pessoa
e nada a fará
desistir da vida.
Nem o sol de inferno
a terra ressequida
a falta de amor
a falta de comida.
É mulher é mãe:
rainha da vida.
(GULLAR, 1999, p. 345-346).

Essa riqueza de valores e de personalidades à mulher se dá devido


a diversos fatores, dentre os quais merecem ser citados: a) a esperança
dessa mulher que não importa a roupa que usa, muito menos a alma
repleta de feridas/dores, ela é uma pessoa cujo otimismo frente às
adversidades jamais a fará desistir da vida; as dificuldades enfrentadas
pela nordestina – o sol de inferno, a falta de amor e de comida – revelam
a força da essência típica do ser mulher nordestina, pois – embora possa
parecer uma mendiga – nada apaga, tampouco exclui o fato de que
ela é uma rainha.

Há, nesse sentido, uma dualidade entre dois planos à medida que,
de um lado, surge a pobreza material, de outro lado, por sua vez, surgem
as riquezas incalculáveis, ou seja, aquelas que constroem, de fato, a
identidade de uma mulher esperançosa, otimista, guerreira e
trabalhadora, que não desiste facilmente face aos obstáculos que lhe
são impostos.

1299
Esses lados opostos se enlaçam, na poética de Gullar, para conferir
ao poema um tom mais verídico à realidade que ainda é, infelizmente,
vista e vivida por muitas mulheres no Nordeste, além de demarcar com
mais intensidade a construção identitária dessa mulher nordestina.

A linguagem é simples, rápida e direta, de modo que as palavras


conseguem atingir o leitor com uma maestria potente e, ao mesmo
tempo, delicada, tendo em vista que o autor constrói, por meio de sua
linguagem, a construção de imagens poéticas típicas do povo
nordestino, como o sol quente de rachar o solo, os períodos de estiagem
que provocam a ausência de água em diversos lugares, bem como a
constante presença da fome, pois, sem água para regar a plantação,
significa sem alimento para nutrir o povo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste estudo, foi mostrado – embora se reconheça que


foi de forma bastante breve – acerca da representação do Nordeste em
alguns campos, como a Literatura, a Música, a Pintura. Nesse sentido,
torna-se evidente a necessidade de se falar e de se debater mais sobre
essa região, a fim de que achismos preconceituosos e arcaicos possam
ser substituídos por verdades, como o fato de que há importantes nomes
das artes na região nordestina.

Em seguida, debateu-se, teoricamente, sobre dois elementos


principais e, sobretudo, norteadores de todo o trabalho empreendido até
aqui: a força e a resistência poética das quais Gullar se utiliza em sua
linguagem durante a escrita de suas produções; a conceituação e

1300
delimitação do que intitulam “ser nordestina”, revelando as diversas
nuances e dificuldades ao ser mulher nordestina em um país ainda tão
lento em processos igualitários e justos.

Por fim, discutiu-se, também, sobre o poema, em que foi


disponibilizado na íntegra para uma leitura completa e, em seguida, foi
realizada uma análise acerca da caracterização da mulher nordestina
no poema, de modo que foi discutido elementos pertinentes ao povo
nordestino, como a sua força, esperança e constante otimismo face às
problemáticas vividas cotidianamente.

Acredita-se que esse estudo, portanto, colabora com as pesquisas


em torno da temática da mulher nordestina na medida em que
apresenta uma análise criteriosa sobre os diversos mecanismos que
permeiam a vida do ser nordestino, além de abrir margem e, acima de
tudo, espaço para que novas discussões sejam iniciadas, pois se
reconhece que este trabalho não sinaliza o final dessa jornada de
pesquisa, muito pelo contrário, mas apenas o início.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ana Karina Silva; DUTRA, Elza Maria do Socorro. Era uma vez
uma história sem história: pensando o ser mulher no Nordeste. Pesqui. prát.
psicossociais [online]. 2019, vol.14, n.2, pp. 1-14. ISSN 1809-8908.

GULLAR, Ferreira. Muitas vozes: poemas. Rio de Janeiro: José Olympio,


1999.

MELO, Cimara Valim de. A resistência poética de Ferreira Gullar. Nau


Literária, v. 01, n. 01, 2005.

1301
SANTOS, Viviane Aparecida. Do ressentimento à cicatriz: memória e exílio
em Ferreira Gullar. Diss. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Federal de São João del-Rei. São João del-Rei, 2010.

1302
RODAS DE LEITURAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA PROPOSTA
POSSÍVEL

Carmelinda Carla Carvalho e Silva198

RESUMO: O presente trabalho pretende abordar os conceitos de leitura, bem como sua
importância na formação do indivíduo e a utilização das rodas de leitura como forma
de despertar na criança o gosto por ler e assim transformar-se em um sujeito não apenas
decodificador no ato de visualizar textos, mas um leitor capaz de compreender, se
portar como um crítico e a partir de suas leituras expandir um leque de possibilidades
de interpretações onde esse leitor possui um papel consideravelmente ativo diante do
ato de ler. Para tal pesquisa nos utilizamos de teóricos tais como Cramer e Castle (2011),
Brandão e Rosa (2011), Cosson (2014), Freire (1997), Lajolo (1996), Coelho (2000), Paim
(2000) e Maricato (2005).

PALAVRAS-CHAVE: Formação. Crianças. Textos. Rodas de leituras.

INTRODUÇÃO

É de suma importância que todo e qualquer cidadão adquira a


prática de leitura para que se torne um leitor com uma ampla visão de
mundo englobando vivências tanto emocional, fantásticas e imaginárias
que a tal prática pode proporcionar.

Para que esse mundo possa acontecer na vida de uma criança,


entra uma personagem muito importante que é o professor, uma vez que
cabe a ele o papel de mediador com grande responsabilidade de inserir
a criança em um mundo cheio de símbolos. Em suas primeiras vivencias
escolares a leitura em voz alta desperta na criança o interesse por
conhecer tais símbolos gráficos que favorece uma comunicação
diferenciada e com horizontes de expectativas diversos.

Mestra em Literatura, Memória e Cultura pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI.


198

Email: carmelinda.sig7@gmail.com

1303
Com isso, o objetivo de nosso trabalho é explorar a importância das
rodas de leitura na educação infantil, onde o professor com seu papel
importante de despertar na criança a imaginação e de ampliar seus
conhecimentos com as palavras, ajudando no que chamamos mundo
imaginário diante de textos verbais e não verbais para que ocorra por fim
seu crescimento enquanto leitor prático.

A criança ao ter contato com a leitura adquire uma ampla


percepção de um mundo em sua volta. Para Freire (2011) esse processo
de leitura em uma criança possui um grande sentido. A criança começa
a associar o que leu com o mundo externo que a cerca e a partir de tais
inferências passa a enriquecer seus conhecimentos exteriores e em uma
próxima leitura fará uma conexão acerca do que leu, compreendeu e
reconheceu como sendo aquilo que foi compreendido.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras”, daquele contexto se


encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu,
nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na
forma das folhas, no cheiro das flores - das rosas, dos jasmins -, no
corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente
de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da
manga-espada, o verde da manga-espada inchada; o amarelo
esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras
da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o
desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação
e o seu gosto (FREIRE, 2011, p. 21, grifos do autor).

Segundo o pensamento freiriano, ler tem o papel de atribuir um


sentido ao texto assim incentivando o interesse da criança. Tal incentivo
à leitura desperta na criança o sentimento de estar em convívio com o
meio em que a cerca, fazendo com que ela re reconheça como parta
daquele ambiente proporcionando a ampliação de uma visão de
mundo diante da sociedade.

1304
Todavia, sabemos que essa leitura pode se realizar de diferentes
maneiras tanto através da escrita como por meio de desenhos, por
exemplo, mas não podemos associar o despertar pela leitura tão e
somente ao trabalho do professor, uma vez que a família também possui
o papel de mediadora, reconhecendo a necessidade da leitura desde
a infância.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

Sabemos que as crianças já possuem de forma involuntária suas


habilidades e facilidades nas mais diversas aptidões, quando se trata da
leitura. Também é de nosso conhecimento que esta é considerada como
pertencente a todos os indivíduos que dela se apropriam e que sejam
estimuladas e desenvolvidas com a ajuda dos membros próximos.

Conforme observa Lajolo (1996), a leitura é que responde pelo


resultado futuro do indivíduo e é consideravelmente um processo político
no que se refere à transformação social do leitor, desde que as condições
em que sejam realizadas proporcionem a este leitor possibilidades de
formação, conscientização e questionamentos acerca do que leu,
podendo tecer críticas e ampliar seu grau de compreensão.

A leitura é, fundamentalmente, processo político. Aqueles que


formam leitores – alfabetizadores, professores, bibliotecários –
desempenham um papel político que poderá estar ou não
comprometido com a transformação social, conforme estejam ou
não conscientes da força de reprodução e, ao mesmo tempo, do
espaço de contradição presentes nas condições sociais da leitura,
e tenham ou não assumido a luta contra aquela e a ocupação
deste como possibilidade de conscientização e questionamento
da realidade em que o leitor se insere. (1996, p. 28)

1305
Quando Lajolo (1996) nos fala da realidade em que o leitor está
inserido, devemos remeter-nos que nem sempre todos possuem com
facilidade esse acesso a leitura e que quando possuem, na maioria das
vezes não é de forma considerada como a mais adequada e isso faz
alusão à escassez de materiais, dificuldades para adquirir livros, faltas de
bibliotecas com amplas ofertas de leituras entre tantos outros motivos.

Nas rodas de leituras o mediador tem que saber valorizar o uso do


livro para que as crianças entendam que é por meio da leitura que
podem conhecer um mundo rico onde se formam em sujeitos críticos,
responsáveis pela formação de uma sociedade mais preparada para o
mundo. O professor ao ler finalizar a leitura para uma criança deve
procurar saber se a criança será capaz de falar sobre o que ouviu e se
suas falas correspondem ao que foi lido. Para que essa interpretação
aconteça, o professor possui uma grande importância uma vez que as
crianças que ainda não realizam as leituras sozinhas tem em si uma
capacidade de interpretação imaginária riquíssima.

O ato de ler para as crianças desde cedo faz com que


trabalhemos nelas as habilidades de concentração para observar os
detalhes da leitura e a criatividade para imaginar o que acontece após
o encerramento da mesma. A criança que trabalha essas habilidades
possui mais facilidade para recontar as histórias e expandi-las sem sair do
plano real que ouviu. Assim o Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil (1998, volume 3) explica que:

A intenção de fazer com que as crianças, desde cedo, apreciem


o momento de sentar para ouvir histórias exige que o professor,
como leitor, preocupe-se em lê-la com interesse, criando um
ambiente agradável e convidativo à escuta atenta, mobilizando

1306
a expectativa das crianças, permitindo que elas olhem o texto e
as ilustrações enquanto a história é lida. (RCNEI, 1998, v.3, p. 143)

Para a realização de uma leitura oral, o professor deve


primeiramente ter cuidado na escolha do material a ser utilizado, pois
para melhores resultados no que se refere ao interesse das crianças é que
os livros possuam figuras que facilitem na interpretação por meio do que
estão a ouvir e visualizar. Além desse cuidado existe uma atenção maior
que é o entusiasmo e expressões para motivar a criança a continuar
escutando e interpretando.

Ao realizar a leitura oral a criança começa a iniciar seu contato


com a alfabetização, mas para que a motivação pela leitura aconteça
e prossiga o professor não pode somente utilizar o livro, mas de toda a
sua criatividade com o uso de fantoches, fantasias, desenhos aguçando
o prazer nas crianças.

Quando nos referimos à utilização de meios diversos para o


interesse durante o processo de leitura, Cramer e Castle (2011, p. 121)
lembram-nos que devemos levar em consideração que sem modelos
efetivos e sem a oportunidade e o fácil acesso de manusear exemplares
impressos, o prazer pela leitura poderá não ocorrer espontaneamente,
ou seja, há falta de materiais que possam facilitar a prática desses
métodos em sala de aula.

As rodas de leituras são fundamentais para se alcançar êxito nas


práticas de leitura em sala de aula e como vimos, os materiais são de
suma importância, mas seu acesso é difícil. Enquanto pensamos que
somente precisamos nos atentar para o uso de materiais mais atuais e
dinâmicos, Maricato (2005, p. 87) nos diz que não basta termos acesso
aos materiais, precisamos envolver a criança na leitura, fazendo com que

1307
ela participe das rodas de leituras criando trechos, personagens, finais e
recontando conforme suas interpretações.

Para maiores resultados, Cramer e Castle (2011, p. 144-145)


explicam que não podemos esquecer que o ambiente que se cria em
sala de aula é de grande importância para gerar interesses antes,
durante e após as leituras e compete ao professor tornar este ambiente
propício para a execução de suas tarefas. As autoras citam alguns
exemplos como:

Cercar as crianças de livros. Desenvolver uma biblioteca de sala


de aula em que uma variedade de livros esteja facilmente
disponível. A biblioteca deve convidar a folhear e a selecionar
livros para serem lidos em casa.
Tornar o ambiente de leitura atrativo. Um tapete barato, alguns
pôsteres coloridos, um par de cadeiras confortáveis, e
possivelmente, uma ou duas lâmpadas de teto podem ser uteis
para realçar um canto de leitura na sala de aula.
Planejar quadros de avisos que reflitam o prazer da leitura. Os
temas podem incluir aventuras, esportes sazonais, animais,
dinossauros, férias, outros países e costumes, etc. Ilustrar os
quadros com capas de livros, títulos, figuras e comentários de
autores. (CRAMER; CASTLE,2011, p.144 e 145)

Todas essas dicas elencadas acima são de nosso conhecimento,


contudo na maior parte das vezes não são colocadas em prática e
quando não conseguimos os resultados esperados após uma atividade
de leitura em roda com nossos alunos, perguntamo-nos o que deixamos
faltar e eis que novas dúvidas surgem e acreditamos que a ausência diz
respeito ao método, ao desinteresse das crianças quando na verdade
com um pouco mais de dedicação tal realidade pode ser transformada.

Não podemos associar somente ao professor colocar em prática


tais métodos vistos acima, para que isso possa acontecer, cabe a escola

1308
fornecer suportes para o professor como, por exemplo, um ambiente
adequado para que as crianças, materiais didáticos atualizados,
materiais para decoração, fantasias, etc.

Além do ambiente, o professor tem que observar cuidadosamente


suas escolhas para a leitura sem esquecer que são crianças descobrindo
um mundo mágico de fantasias. É justamente nesse momento que o
contador de histórias deve escolher um determinado gênero textual
aonde possa estimular a leitura compartilhada e o interesse de todos os
ouvintes sabendo o tipo de leitura e temas que mais irão interessá-los.

2 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Em uma leitura da de roda na educação infantil o livro escolhido


pelo o professor não precisa ser propriamente só com símbolos, gráficos,
mas podendo usar desenhos, montagem, colagem ou outra forma
criativa que o professor possa utilizar. Isto posto, não podemos esquecer
que para as crianças da educação infantil há interesse maior quando se
referem as cores, formas e figuras que os livros possuem.

Vale ressaltar que as escolhas desses livros tem que ser de acordo
com a faixa etária da turma. Com isso o professor tem que ser um
caçador literário infantil, pois quando se trata de uma leitura
compartilhada é necessário ter um bom acervo, um estímulo para realizar
tal leitura.

Para as autoras Brandão e Rosa (2011) outras experiências durante


as rodas de leitura são responsáveis por motivar e criar expectativas,
incentivando as crianças à leitura. A maneira como o contador se porta,
a forma como executa a leitura, as dinâmicas utilizadas, tom de voz entre

1309
outros deixam as crianças desejando saber mais sobre as histórias
contadas.

[...] utilizando diferentes estratégias, tais como antecipação de


sentidos, formulação e checagem de hipóteses sobre o que
estaria escrito no texto, construção de inferências, entre outras,
os leitores criam sentidos em interação com os textos.
(BRANDÃO; ROSA, 2011, p.22 apud SOLÉ, 1998)

Ou seja, ao vivenciar práticas de leitura em grupo, mediadas pelas


professoras (os), os alunos expandem suas vivências de letramento e seus
repertórios textuais, desenvolvem estratégias variadas de compreensão
textual, introduzindo-se no mundo da escrita e promovendo-se como
leitor, por mais que ainda não saibam ler automaticamente, (BRANDÃO
E ROSA, 2011, p. 22).

Com isso o papel do professor tem a importância fundamental


para a formação e de incentivar os leitores nas primeiras vivências da
vida escolar, pois o professor ao praticar a leitura transmite de forma igual
os relatos para seus alunos, observando se todos estão na mesma sintonia
de pensamentos com relação a história contada e compreensão.

No que se refere às rodas de leituras desde cedo, o Referencial


Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998, volume 3)
acrescenta-nos fatores acerca de sua importância e utilização na
prática com crianças:

A intenção de fazer com que as crianças, desde cedo,


apreciem o momento de sentar para ouvir histórias exige que o
professor, como leitor, preocupe-se em lê-la com interesse,
criando um ambiente agradável e convidativo à escuta atenta,
mobilizando a expectativa das crianças, permitindo que elas
olhem o texto e as ilustrações enquanto a história é lida. ( RCNEI,
1998,v.3, p. 143)

1310
Observamos, portanto a necessidade de valorizar esse contato
com os livros desde a educação infantil seja em rodas de leitura em sala
de aula, seja em casa com a família sem que essa responsabilidade
recaia somente ao professor.

Para Paim (2000, p. 80) “o hábito da leitura se forma antes mesmo


do saber ler – ouvindo histórias se treina a relação com o mundo [...]. Com
isso a criança passa a conhecer, avaliar, se emocionar e a identificar-se
com as personagens desenvolvendo seu lado intelectual e psicológico e
após a roda de leitura a criança vai começar a imaginar as ações dessas
personagens da historia contada e situações que ouviu nas aulas

Assim Paim (2000, p. 81), destaca que paralelamente ao contar


histórias, os pais devem proporcionar desde cedo, o contato da criança
com os livros, contemplando gravuras e nominando-as. Assim, junto com
a linguagem, a criança desenvolve a afeição pelo livro. Mostrando
também as palavras associadas à gravura, a criança já está
estabelecendo um vocabulário onde associa imagens ao que ouviu nas
leituras feitas pelos professores e/ou familiares.

Na opinião de Coelho (2000) é nessa fase que acontece a


aprendizagem da leitura da criança, pois quando a criança é estimulada
a leitura ela já começa a identificar as letras e com o decorrer, começa
a identificar as sílabas, associar sons ouvidos nas rodas de leituras com
objetos e por conseguinte, a aprendizagem da leitura em si.Com as roda
de leituras e o seu incentivo à pratica na educação infantil, as crianças
tornar-se-ão indivíduos mais sensíveis, seguros e críticos.

Para os educadores e adultos responsáveis pelas crianças seu


papel de estimular o desenvolvimento da criança para a leitura é garantir
que é através dos livros que podem acontecer a transformação do

1311
indivíduo no que diz respeito ao seu aprendizado através de uma
prazerosa leitura.

Com bons planejamentos e estratégias, as rodas de leituras na


educação infantil desperta na criança um momento de afeto
compartilhado no instante em que o professor está lendo a história. Com
isso acontece que a medida que a criança vai crescendo os seus hábitos
da leitura começam a incentivar o desenvolvimento de sua criatividade,
assim o seu enriquecimento do vocabulário é imediato já que ao ouvir
palavras diferentes comecem a repeti-las.

O estímulo da leitura na educação infantil auxiliará a criança em


todas as fases da vida, já que a leitura é responsável pela imaginação
de criar e recriar suas próprias histórias, proporcionando novas situações
de vida. Assim mostra-nos a importância da leitura na educação infantil
e no seu crescimento individual ao longo de todo o seu processo
educacional posto que a criança ao ter contado com a leitura a partir
da educação infantil além de desenvolver o prazer pela leitura, aprende
e compreende o que leu, trabalhando seu senso crítico.

A valorização dos livros na educação infantil por meio do professor,


leva a criança à conhecimentos úteis para toda a sua vida, uma vez que
as escolhas que o leitor – no caso o professor – fará refletirá ao longo da
jornada estudantil da criança seja como recordação de uma leitura
prazerosa ou como traumática por não ter se identificado com a mesma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As rodas de leituras na educação infantil sempre terão como


consequência, o desenvolvimento das crianças pelo gosto de ler.

1312
Primeiramente irão desenvolver interesse pelas leituras com muitas
imagens que chama a atenção, depois por histórias mais longas e
quando os livros apresentam volumes de continuidade, irão procurar
efetuar mais e mais a leitura para se saber o desfecho das personagens
entre outras lacunas que serão preenchidas.

Por meio dessa rotina que a criança adquire na sala de aula, ao


chegar em casa irão procurar realizá-las também. É justamente nesse
momento que os pais tem que incentivar seja através da compra de livros,
leituras coletivas, antes de colocar a criança para dormir ou
simplesmente comentando sobre livros com histórias interessantes e
esperar a reação da criança para a curiosidade.

Os benefícios das rodas de leituras na educação infantil para as


crianças são de uma importância para toda vida, uma vez que é nesse
momento que a criança é levada a querer ler e a buscar compreender
tudo a sua volta, aumentando a sua habilidade de atenção ao escutar
e entender o que foi dito.

Com todo esse incentivo à leitura, a criança passa a ter uma


facilidade com as palavras e com a imaginação do que ela não está
vendo e sim escutando sobre as personagens, suas emoções e
identificando as sensações imaginadas por meio do que se ouviu nas
histórias.

Podemos dizer que as crianças além de se divertirem no momento


em que estão em uma roda de leitura, aprendem valores comuns como
a convivência com os demais membros do grupo, o respeito pelo
momento certo de falar e aceitar o pensamento dos demais colegas
sobre o que o professor leu em sala de aula. Esses valores são de grande

1313
importância para o conhecimento de si mesma e de relacionamento em
sociedade.

Hoje podemos dizer que as rodas de leituras na educação infantil


possuem um papel importantíssimo no interesse das crianças pelos livros
para o seu crescimento intelectual. A valorização da leitura na
educação infantil estimula a escrita, o desenho, percepção, criatividade
e temas diversos quanto a escolha de uma nova leitura. Nesse processo
o professor deixará marcas nos alunos que conforme Freire (1997) nos fala
que:

Quando aprendemos a ler, o fazemos sobre a escrita de alguém


que antes aprendeu a ler e a escrever com outro alguém. Ao
aprender a ler nos preparamos para imediatamente escrever a
fala que socialmente construímos. (FREIRE, 1997, p. 25)

Com isso, a roda de leitura deve resgatar um repertório que toda


história infantil tem a oferecer para as crianças mostrando desde as mais
diversas culturas até os indivíduos que fazem parte delas, ensinando-as a
lidarem com diversidades de forma ética, trabalhando as emoções
durante seu desenvolvimento.

Hoje uma das maiores dúvidas dos educadores é de como


incentivar a leitura na infância e de como fazer para se tornar um habito
saudável, pois a facilidade de acesso que os pais, ou seja, a sociedade
se encontra com a internet, os livros se tornaram pouco atrativo,
deixando a prática do livro físico de lado. Para isso as rodas de leituras
possuem papel importante na valorização dos impressos.

Segundo os PCNs,1997 , p.58 “para tornar os alunos bons leitores –


para desenvolver, muito mais do que a capacidade de ler, o gosto e o
compromisso com a leitura – a escola terá de mobilizá-los internamente,
pois aprender a ler (e também ler para aprender), requer esforço”.

1314
Esse é justamente o esforço maior que o professor tem em
desenvolver: apresentar a leitura de forma cativante para que desperte
nas crianças curiosidades e admiração pelo livro. Lembrando que o
Referencial curricular nacional para educação Infantil, 1998, p. 135:

O ato de ler é cultural. Quando o professor faz uma seleção prévia


da história que irá contar para as crianças, independente da
idade delas, dando atenção para a inteligibilidade e riqueza do
texto para a beleza das ilustrações, ele permite às crianças
construírem um sentimento de curiosidade pelo livro (ou revista,
gibi, etc) e pela escrita.

Cosson (2011, p. 103) nos fala que a leitura não se trata apenas de
uma simples busca por decifrar palavras, “mas sim uma experiência de
dar sentido ao mundo por meio de palavras que falam de palavras,
transcendendo os limites de tempo e espaço.” (COSSON, 2011, p. 103)

Daí a importância das rodas de leituras na educação infantil, pois


é um inicio de tudo estimulo para que possa se formar grandes leitores,
mas sem que esqueçamos que durante todo esse processo de
desenvolvimento da criança não podemos eximir que os pais são
responsáveis pela continuidade do estímulo a leitura, pois tal estímulo não
só acontece na escola, mas em casa também e cabe aos pais
aproveitarem o maior tempo disponível estimulando nas crianças, sua
criatividade de imaginar historias de interesse delas através de seus
brinquedos, imagens, desenhos, contos, fábulas entre tantas outras
possibilidades de leitura.

1315
REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester C. de Souza (org). Ler e


escrever na Educação Infantil. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica,2011.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: histórias. Teoria e análise. São


Paulo: Quiron, 2000.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo:


Contexto, 2014.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se


completam. 51. ed. São Paulo: Autores Associados - Cortez, 2011

LAJOLO, Marisa. A formação do leitor no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

MARICATO, Adriana. O prazer da leitura se ensina. Criança. Brasília. s/ v,


n. 40, p. 18-26, set. 2005.

Referencial curricular nacional para a educação infantil / Ministério da


Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. —
Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.: il.

1316
REBENTOS LIBIDINAIS; BANQUETE DE CORPOS: A SUBERSÃO
HISTÉRICA EM A CASA DOS BUDAS DITOSOS, DE JOÃO UBALDO
RIBEIRO

Silvio Tony Santos de Oliveira 199


Hermano De França Rodrigues200

RESUMO: Ao longo dos séculos, a histeria se mostrou enigmática e resistente ao


conhecimento científico. Desde os egípcios, mas, principalmente, nas culturas greco-
romana, a hystera, como era conhecida inicialmente, sempre esteve imbricada com a
sexualidade feminina, muito embora alguns de seus sintomas não apresentassem
relações diretas com tal diagnóstico. Todavia, diante dos olhares perplexos de nomes
da medicina clássica, como Hipócrates, esse fenômeno resistia a uma padronização ou
suas formas de encenar as insatisfações femininas. No período do medievo, a igreja é
incumbida do papel da medicina e, fazendo uso do discurso da salvação, considera os
fenômenos histéricos como arquiteturas demoníacas erguidas sobre os pilares de uma
sexualidade pecaminosa. Chegado o século XIX, a histeria começa a se desvincular das
amarras da ignorância e do estigma marginalizado, a partir dos primeiros estudos de
Jean Martin Charcot (1825-1893 e posteriormente com o jovem neurologista vienense
Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) que através de suas pacientes, estreita os laços
entre o fenômeno de conversão e a feminilidade. Freud também se confronta com a
irregularidade ou multiplicidades de manifestações sintomáticas, porém propõe a
etiologia de tais manifestações a partir da história edípica de cada paciente. Através
da interface literatura e psicanálise, propomos refletir acerca da arquitetura da
feminilidade da personagem CDL, na obra A casa dos budas ditosos (1999), de João
Ubaldo Ribeiro. Refletir a respeito de como se estabelecem os enlaces entre histeria e
erotismo, na estruturação psíquica, da personagem, é um dos motivos que nos motivam
na formulação dessa pesquisa.
Palavras-chave: Literatura, Psicanálise, Histeria.

199 Doutorando em Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB


silviophoenix@hotmail.com
Professor orientador: Doutor em Letras e professor do Programa de Pós-graduação
200

em Letras da Universidade Federal da Paraíba- UFPB. hermanors@gmail.com

1317
INTRODUÇÃO

No decorrer dos séculos, a feminilidade201 tem se mostrado como


algo a ser estudado de acordo com o contexto histórico em que está
inserido. O conceito de feminino, nas sociedades clássicas, por exemplo,
apresenta distorções latentes em relação às visões sobre os estereótipos
femininos do medievo, da renascença, entre outros momentos históricos.
Assim, é bem verdade que, ser mulher no século XIX, não é o mesmo que
ser mulher nos dias atuais. Cada sociedade impôs seu modelo ideal de
feminino, de acordo com suas necessidades e em consonância com os
parâmetros do patriarcado vigente. Nos mais variados contextos sócio-
históricos, a histeria esteve amalgamada à imagem do feminino. Nessa
perspectiva, o fenômeno histérico esteve imbricado à sexualidade
feminina e, na visão da medicina, até meados do século XIX, com o
advento da psicanálise, o antídoto para esse mal do útero, como foi
denominado desde as culturas greco-romana até o período oitocentista,
era ato sexual. O pênis era o remédio recomendado na profilaxia desse
fenômeno, visão, essa, que perdurou por vários séculos.

Entretanto, contrariamente à propagação de seu possível antídoto,


a histeria se mostrou insinuante nos mais diversos cenários sociais. As
múltiplas manifestações somáticas se configuraram de diversas formas,
nos mais variados contextos culturais. Essa inconstância, ou melhor, essa
falta de linearidade, dos sintomas histéricos, desafiou a ciência, a religião
e até filósofos. Se o feminino era amordaçado e moldado de acordo
com as conveniências de cada século, a sintomatologia múltipla da

201A terminologia aqui empregada difere do termo feminismo ou movimento feminista.


Feminilidade é o termo psicanalítico para se referir aos conjuntos de pulsões orais, anais,
genitais, normalmente com tendência passiva e aspectos socioculturais que
referenciam o conceito de feminino.

1318
histeria foi a subversão dessas amarras culturais. As histéricas de Freud não
encenavam, em seus corpos, as mesmas metáforas corporais ostentadas
pelas histéricas de Hipócrates, Platão ou até mesmo do Príncipe dos
metódicos Sorános de Éfeso (Séc. I). Todavia, o fio condutor da
sexualidade perpassa todas essas mulheres. Sendo assim, nossa pesquisa
se debruça sobre a obra A casa dos budas ditosos (1999), de J. Ubaldo
Ribeiro, na qual, vislumbramos o fenômeno histérico como aspecto
constituinte da feminilidade da personagem CLB.

Após receber algumas fitas, com gravações, em que a


protagonista, de 68 anos, narra suas próprias aventuras sexuais, desde a
adolescência, na fazenda dos avós, o autor decide transcrever as
narrativas, que culminaram na obra, as quais dividem leitores e críticos
com relação à veracidade dos fatos. As fronteiras entre o ficcional e real
se confundem. A compulsão de CLB em possuir inúmeros parceiros
sexuais diz mais do que aventuras eróticas, mas encena uma das
múltiplas faces da sintomatologia histérica: a sexualidade compulsiva e
exacerbada como forma de sanar as próprias faltas e angústias. Na
próxima seção, teceremos algumas reflexões teóricas acerca das
relações entre sexualidade e histeria.

1 HISTERIA E SEXUALIDADE: FRONTEIRAS ENTRE EROS E THANATOS

Como dito, anteriormente, a histeria se caracteriza como um


fenômeno que não se manifesta a partir de uma regularidade de
sintomas. Essa dificuldade de padronizar essas manifestações desafiaram
a ciência, ao longo dos séculos. A racionalização não conseguiu, de

1319
forma satisfatória, conceituar a Hystera202 de forma fixa e pragmática.
Essa constante necessidade, até certo ponto, compulsória, que o homem
apresentou historicamente, de definir plausivelmente a histeria, segundo
Israel (1995), é vista como mais uma tentativa de moldar, reduzir o
feminino a um conjunto ou modelo fechado.

Essa posição da autora nos auxilia nas reflexões no que diz respeito
ao posicionamento da ciência, ao longo dos séculos, sobre a etiologia
da histeria ligada ao útero como forma de minimizar o caráter
enigmático do fenômeno, mas, também, como forma de não
reconhecer a fragilidade de um corpo cientifico, dominado por homens,
que se mostra confuso e ineficiente em descobrir a origem de toda uma
gama de sintomas até então restrita ao feminino. Aceitar a
incapacidade de desvendar as brumas da histeria seria, de certa forma,
ascender o feminino acima dos homens.

Em Estudos sobre Histeria (1895), Freud discorre sobre suas primeiras


postulações com relação aos fenômenos histéricos vivenciados através
de suas pacientes em Viena. Além das variações sintomáticas que
estavam entre estrabismos, desmaios, delírios, afonia, cegueiras,
paralisias motoras entre outras, o psicanalista vienense observa, através
da hipnose e depois por meio do método da associação livre, que todos
esses fenômenos apresentavam uma ligação com alguma experiência
ou fantasia de caráter ou conteúdo erótico, normalmente relacionadas
com as figuras parentais.

Ana O. foi um dos casos que Freud descreveu nessa obra de 1895.
Inicialmente, o psicanalista concebe a jovem de vinte e poucos anos
como possuidora de uma grande capacidade intelectual e beleza,

202 O mesmo que matriz na cultura helênica.

1320
contudo criada em uma família de costumes puritanos, Ana O.
apresentava uma indiferença a sua vida sexual. O quadro veio a se
agravar, outros sintomas como delírios e paralisias dos membros
começaram a surgir, após a doença do pai e o impedimento da filha de
continuar com os cuidados prestados. Seguindo Freud, com a análise do
caso, afirma que, ao se colocar como cuidadora do pai, Ana O.
ocupava, assim, o lugar e o papel da mãe, com a qual já apresentava
um relacionamento conflituoso. Era pela doença, que Ana O. poderia ter
o pai e se tornar aquela que ele desejava.

Entretanto, a histeria e o erótico não estabelecem suas


imbricações apenas no âmbito dos sintomas de conversão simbolizados
ou manifestados no corpo. Durante a relação médico/ paciente, Freud
observou o desenvolvimento do fenômeno de transferência no qual a
paciente transfere, inconscientemente, para a figura do médico, toda a
pulsão erótica recalcada. Sobre isso, afirma-nos Freud:

O fato do surgimento da transferência em sua forma cruamente


sexual, quer afetuosa quer hostil, em qualquer tratamento de
uma neurose, embora isso não seja nem desejado nem induzido
pelo médico ou pela paciente, sempre me pareceu a prova
mais irrefutável de que a fonte das forças impulsionadoras da
neurose está na vida sexual... Quanto a mim, esse continuou
sendo o argumento decisivo, além dos achados mais
específicos do trabalho analítico. (FREUD Apud BRITTON, 2012,
pag. 40)

A psicanálise se desenvolveu como ciência e, com isso, autores


pós-freudianos se debruçaram sobre os fusionamentos entre histeria e os
pressupostos psicanalíticos. A histérica se apresenta como uma eterna
insatisfeita não apenas nas relações com os outros, mas em relação ao

1321
próprio self. 203 Essa insatisfação é levada também ao âmbito de uma
sexualidade que se apresenta nebulosa e conflituosa, pois pode se dividir,
ao mesmo tempo, entre um erotismo exacerbado e um rechaço do
mesmo.

A leitura de Nasio (1991), sobre a neurose histérica e sua


sexualidade, mostra-se bem esclarecedora. De acordo com o autor, a
sintomatologia histérica apresentaria duas vertentes de conversão que
não se excluem, mas que uma se mostra mais latente na subjetividade
do sujeito em relação a outra. Uma seria a conversão global que estaria
ligada ao corpo todo, ou seja, essa manteria influência sobre a
sexualidade/erotismo do indivíduo sobre seu corpo. Outra vertente seria
a conversão restrita a uma parte do corpo logo um sintoma que se instala
em locais mais específicos.

Ambas conversões teriam, em sua etiologia, uma angústia arcaica


que levaria o histérico a uma dupla conversão e expressão dessas
insatisfações inconscientes. Nossa pesquisa apenas se debruçará sobre a
conversão global, logo o erotismo do copo, algo que, em alguns casos
pode suscitar em um sujeito estigmatizado por um paradoxo, por vezes,
inconciliável na sua vida sexual: uma erotização do corpo como um todo
e uma certa resistência à erotização das zonas genitais. Entretanto, um
esclarecimento se faz necessário, em nosso entendimento, sendo assim,
deixemos que o próprio Nasio tome a palavra:

Deixemos claro, desde logo, que a inibição genital de que


falamos se traduz na vida sexual do histérico, não, como se
poderia supor, por uma indiferença perante a sexualidade,
porém, na maioria das vezes, por uma aversão, um verdadeiro

203Conceito de cunho Winnicottiano que se refere às imagens psíquicas do sujeito sobre


o próprio ego.

1322
nojo de qualquer contato carnal. A inibição sexual histérica não
significa retraimento, mas movimento ativo de rechaço. (NASIO,
1991, p. 44).

Ao contrário do que se pensa, no senso comum, a sexualidade


humana não se restringe ao contato ou relação sexual através da cópula
entre os órgãos genitais. E, com muita perspicácia, o histérico sabe
discernir esse equívoco. A necessidade de vivenciar o erótico está
latente nas múltiplas pulsões, que erotizam as diversas regiões do corpo.
A sexualidade é vivenciada, sim, através de um corpo, que encena as
mais variadas formas de sedução. Eros habita o corpo histérico. Essa é a
principal arma na arte de seduzir o outro. Assim, o que ocorre é um
rechaçamento das pulsões ligadas a região genital. Algo que acarretaria
em dificuldades de obtenção de prazer através das genitálias, aqui jaz
Thanatos.

Sobretudo, não se torna uma regra única e infalível que o sujeito


apresente todos os sintomas histéricos de forma regular e homogênea.
Aliás, essa foi a tentativa de Jean Martin Charcot e seus primeiros estudos
na Salpetrieré. 204 As conversões sintomáticas estão imbricadas com a
história edípica e a subjetividade psíquica do indivíduo, ou seja, podemos
vislumbrar sujeitos que podem apresentar um transbordamento libidinal
em sua vida sexual, sem apresentar alterações nas pulsões genitais. Logo,
“é deste mundo sexual infantil, deste mundo inconsciente, desta
realidade psíquica, que brotarão os sintomas psicopatológicos e no qual
terá que transcorrer a genuína investigação psicanalítica.” (MAYER, 1989,
pag. 24)

204O hospital salpetriere se tornou referência mundial nos estudos neuro/psiquiátricos


principalmente a partir dos estudos iniciados por Charcot em 1862.

1323
Obviamente, como nossa personagem, do corpus, é feminino,
doravante, iremos nos ater a sexualidade da mulher, na perspectiva
psicanalítica da histeria feminina. Porém, ressaltamos a possibilidade da
existência dos sintomas histéricos no masculino. Israel (1995) afirma que a
histeria feminina é caracterizada, primeiramente, por uma insatisfação
consigo mesma. Apesar de possuir uma capacidade de sedução
bastante significativa, a histérica se utiliza desses mecanismos eróticos e
de conquista para realizar um engodo das lacunas presentes no seu ego,
lacunas essas que são originárias dos períodos arcaicos edípicos de tenra
idade.

Desta maneira, a neurótica busca uma perfeição, no Outro, que


seria “as muletas” para lidar com sua própria falta. Mas que falta seria
essa? Para responder a essa questão recorrermos às contribuições da
referida autora, mas, principalmente, aos primeiros relatos de Freud com
as histéricas, pois “a mulher, diz Freud, é desprovida do pênis. É esse o
motivo do sofrimento das neuróticas, o penisneid, a inveja do pênis.
(ISRAEL, 1995, pag. 106)

Tanto Nasio (1991) como Israel (1995) comungam da ideia de que


a histérica sofre por suas fantasias arcaicas, com a figura materna,
supostamente fálica, ou, como o próprio Nasio prefere se referir, mãe-falo,
que culminam em sentimentos de desilusão e ódio. Ao reconhecer no
sexo oposto a presença do pênis/falo, a garotinha reconhece-se como
(des) aparelhada daquilo que seria a fonte vigorosa de seu poder. A
figura materna, também descoberta como não possuidora do falo, algo
que gera o sentimento de engodo na criança, é concebida, pela
menina, como a culpada de não lhe ter algo parecido com aquilo que
o menino ostenta e lhe garante força e o faz se sentir poderoso.

1324
Com relação a esse dilema do Édipo feminino, Freud em
Feminilidade (1932) utiliza o termo inveja do pênis para nomear tal conflito.
Em outro texto intitulado Édipo, Nasio (2007) discorda de Freud no
tocante a utilização desse termo. Para ele, o termo angústia é mais
adequado no complexo de castração do menino, pois esse, sim, tem
algo a perder, ou seja, o falo, e a apreensão da perda da fonte de seu
poder resultaria em angústia. A menina apresenta, segundo o autor, uma
dor de ser enganada pela mãe-falo, que não possui o falo, e não lhe deu
um igual. A menina passa por período de desolação, no qual a dor da
ausência de algo, que lhe oferte uma identificação, é inevitável. Desde
os primórdios, o feminino se confronta com o vazio e o continente
obscuro que lhe caracteriza e que surpreendeu Freud.

Através da sensualidade, que lhe é intrínseca, a histérica busca,


através de suas formas de sedução tanto corporais: sorriso, olhar, formas
de andar, entonação de voz ou como adereços: roupas, maquiagens,
penteados, a obtenção de um Outro que consegue se transformar
metaforicamente em seu falo, adequando-se, assim,
momentaneamente, aos contornos da falta, que se encontra nos pilares
da Hystera.

Assim, o feminino, movido por Eros e Thanatos amalgamados e


metaforizados na histeria, faz uso de um conjunto de atributos e fatores,
com a finalidade de encenar, para seu público/pretendentes, um ser
perfeito, seguro de si e, acima de tudo, detentor de uma capacidade
sedutora formidável, mas, que, na realidade, possui uma imagem
autodepreciativa e insatisfeita. Vale salientarmos que não
dimensionamos a histeria apenas em suas circunscrições patológicas,
como professa a ciência,, durante séculos. Associarmos Thanatos na
constituição histérica diz respeito a busca incansável, que o mesmo

1325
impõe ao indivíduo, por caminhos tortuosos, pois todos são fadados ao
fracasso, na tentativa de lidar com a tormenta da falta fálica.

Ao que nos parece, se pensarmos em uma relação entre


sexualidade histérica e as estruturas do funcionamento psíquico,
podemos observar um ego, que desde os primórdios da fase fálica, em
uma perspectiva freudiana de formação do Eu, confronta-se com
algumas problemáticas. Obviamente, a culpa e a angústia, diante do
amor inatingível, direcionado às figuras parentais, leva o ego a se
acarear com uma dualidade sentimental contraditória que culmina em
conduzir o sujeito à ambivalência de amar e odiar o (s) mesmo (s) objeto
(s) como bem afirma Nasio (2007). Sendo assim, esse conflito existente no
Eu se tenciona com um superego tirânico que impõe ao Ego a
depreciação a si próprio como forma de reparação ou fustigação pelos
desejos fomentados e direcionados às figuras parentais em outrora.

A outra questão seria a problemática identificatória peculiar da


histérica. Freud (1921) acentua o caráter da identificação do ego, que
apresenta uma relação de identificação com outro ego considerado
ideal, copiando, assim, os traços que o constituem. Traços esses que
podem ser características comportamentais ou sintomas. De acordo com
Mayer (1989), durante a trajetória edípica, a menina faz uma travessia
nebulosa entre os édipos negativo e positivo na qual a relação com esses
pais e suas funções simbólicas se tornam conflituosas.

O ego da menina apresenta dificuldades em reconhecer e


assimilar as características desses Outros. Os significantes materno e
paterno não são internalizados de forma satisfatória e isso acarreta
inclusive problemas de identificação do Eu na sexualidade. Segundo
Mayer (1989), essa problemática identificatória acarreta, no sujieto, um

1326
reencontro com o desejo incestuoso, a cada relação sexual, como um
Déjà vu das cenas edípicas primitivas, diferenciando, assim, as relações
sexuais genitais de suas relações amorosas. Conforme discutido, os
objetos sexuais, da histérica adulta, encenam suas fantasias primeiras e
em cada objeto busca obter novamente a possibilidade, fadada ao
fracasso, de obter o falo que lhe foi negado em ambos períodos do Édipo.
A seguir, discorremos acerca da sexualidade da personagem CDL e
como se arquitetura a problemática da histeria em suas aventuras sexuais.

2 (DES)AMPARO E PRAZER NA ANGÚSTIA HISTÉRICA: LUXURIA DE CORPOS


ARQUITETURAS DE FEMINILIDADES:

Transgressiva, subversiva, esses são apenas alguns adjetivos, que,


de forma bem limitada, podem caracterizar a personagem CLB. A
senhora de 68 anos, segundo a própria, apresenta-nos um arquétipo de
feminino que vai de encontro com os paradigmas patriarcais vigentes e
cristalizados a séculos no mundo ocidental. Uma mulher que, acima de
qualquer coisa, rechaça o modelo submisso de mulher e ascende o
erotismo feminino acima de tabus religiosos, culturais e morais.

A protagonista tem sua origem em um berço familiar, por muito,


contraditório em suas práticas e ideais. Criada no seio de uma família de
crença católica fervorosa, teve rígida educação na companhia dos
avós e pais. Entretanto, a estruturação familiar se apresentava em ruínas
com relações de traição da mãe em relação ao pai e por abusos sexuais
que a personagem, quando criança, sofria do seu tio. Assim, nesse
contexto, ergue-se um modelo de mulher que vivenciando sua
sexualidade, vai de encontro aos valores sócias inquestionáveis, e ao

1327
fazê-lo, denuncia as estruturas morais deterioradas e hipócritas quanto
ao sexo.

Antes de analisarmos as aventuras sexuais da personagem, é mister


refletirmos acerca do ego da personagem e suas vicissitudes. CLB faz
referência constante, em sua fala, à uma amiga que atende pelo nome
de Norma Lúcia. A protagonista encontra nessa amiga sua companhia
nas aventuras eróticas que vivencia no estado da Bahia. Vejamos como
CLB se reporta a referida personagem:

Mas nunca cheguei a ser como Norminha. Ela era diferente, era
realmente completa, sempre tive uma certa inveja dela. Inveja
sadia, eu não queria tirar o que ela tinha, queria somente ter
também o que ela tinha, ou melhor, ser como ela era. Uma
inveja a favor de admiração (...) (RIBEIRO,1999, p.51)

CDL, durante seu depoimento biográfico, deixa latente essa


identificação marcante com Norminha, como ela mesma chama.
Norma Lúcia, é retratada como uma mulher sensual, possuidora de uma
habilidade sedutora sem igual. Segundo a narrativa, os homens da
cidade se mostravam extremamente atraídos e galanteadores para com
a referida personagem. Esta, por sua vez, tinha o poder de conquistar o
homem que desejasse.

A feminilidade de Norminha é o modelo de identificação para o


ego de CDL que, muito provavelmente, fragilizado no tocante ao
processo de identificação com a feminilidade materna, encontra nesse
Outro sua referência do que é ser mulher. A feminilidade de Norma Lúcia
se transforma no sintoma, no traço do Eu que CDL faz uso para dar
contornos a sua própria sexualidade. “A este respeito, Freud postula que
“a identificação por meio do sintoma tornou-se assim o sinal de um ponto

1328
de coincidência entre os dois egos (...). (GORI, 2007, p.69). Sobre o
processo de identificação na histeria, assim se posiciona Israel:

Se a histérica se volta para as mulheres é porque ela tem uma


pergunta a lhes fazer, pergunta que ela própria não pode
responder. Ligar-se a uma mulher como um modelo ideal não
pressupõe um desejo preciso para essa mulher, mas a
esperança de um dia saber viver como ela. (ISRAEL, 1995, p. 109)

É indispensável refletirmos acerca daquilo que, ao longo dos


séculos, trouxe uma fama não muito admirada a histérica: sua
sensualidade. A mulher histérica, na busca de sua própria identificação,
encena as múltiplas faces do feminino. Talvez não exista aforisma
lacaniano melhor para definir a histérica do que “A mulher não existe”.
Verdade! Não existe o conjunto definido. A histeria permite que o
indivíduo encene variados papeis, variadas formas de um feminino, que
exala erotismo, como na cena em que retrata a sedução da
protagonista durante a conquista do seu professor universitário: “E Então
eu joguei tudo em cima dele, cada detalhe do vestido, do decote
abotoado descuidadosamente, das sobrancelhas, da boca, dos ombros,
do pescoço, dos joelhos, dos pés, dos quadris, das pernas, eu sabia, eu
sabia tudo.” (RIBEIRO,1999 p.70). Aqui, o significante da inocente
mocinha estudante, mas sedutora, dá os contornos da feminilidade de
CBL. Entretanto, lembremo-nos: é no Outro que a histérica busca a
confirmação de si mesma. E ainda sobre seu amante ela afirma: “ele
preenchia as condições objetivas e emocionais, pronto, falava à minha
neurose. (RIBEIRO,1999 p.62).

A histeria é um fenômeno, que por ser constituída por múltiplos


sintomas, apresenta-se conflitante diante de uma categorização

1329
científica que busca normatizar suas várias manifestações. O
transbordamento libidinal se exterioriza, como sintoma de conversão, tão
quanto as afonias, estrabismos, paralisias, desmaios encenados pelas
múltiplas mulheres, ao longo dos séculos, como forma de ostentar uma
feminilidade, que se confronta com a estrutura patriarcal vigente nesses
contextos sócio-históricos. Não é à toa que, para Kehl (2017), a histeria se
apresenta ora como um refúgio, ora como uma forma de subversão de
valores, que aprisionam a mulher em um estereótipo de feminilidade que
atende a manutenção da ordem patriarcal.

Sendo assim, além de encenar uma falta, uma angústia fálica,


normalmente gerada no período edípico, a histeria transpõe as
delimitações de uma patologia e se condiciona como umas das múltiplas
facetas da feminilidade. Na personagem, do corpus, essa realidade não
se distancia desse panorama: CLB ao mesmo tempo que narra suas
aventuras sexuais, denuncia a hipocrisia com o qual a sexualidade é vista
pela sociedade patriarcal. O desejo erótico da personagem, assim,
configura-se como uma reação diante de um conceito de sexualidade
ligado à heteronormatividade, ao prazer masculino e ao sexo como
procriação.

As cenas a seguir denotam um feminino histérico que, através de


seus extravasamentos libidinais, confronta e questiona valores
cristalizados do patriarcado: a família, a religião e a relação sexual
heteronormativa. O fragmento a seguir descreve uma relação sexual da
personagem com seu irmão consanguíneo, ou seja, a consumação do
incesto. Vejamos como se desenvolve a narrativa:

Fiz isso muito (...) eu e uma amiga, por exemplo, curtimos


intensissimamente uma noite que passamos com meu irmão

1330
Rodolfo e na qual, entre outras coisas, ficamos ambas de rabo
para cima, para ele nos penetrar alternadamente. E Rodolfo era
Rodolfo, fodeu as duas a noite inteira em todos os buracos e fez
questão de não ser grosseiro e esporrou também nas duas.
(RIBEIRO,1999 p.115)

A bissexualidade é algo bastante marcante na estrutura histérica. Os


conflitos arcaicos identificatórios, vivenciados no período edípico,
ressurgem, ou melhor, continuam a serem manifestados na sexualidade
adulta. As funções materna e paterna, as quais são para o sujeito suas
referências de feminilidade e masculinidade, encontram-se, digamos,
fragilizadas. Assim como afirma Freud (1905) que a pulsão não é definida
pelo objeto, o histérico apresenta uma propensão a viver uma conflituosa
identificação quanto a sua própria sexualidade, podendo direcionar sua
pulsão erótica para uma bissexualidade.

Outro aspecto é a interdição ao incesto que não se efetivou. Costa


(2010) ao fazer referência à teoria lacaniana sobre o Édipo, afirma que a
Lei paterna representa, além da inserção do sujeito no campo do
simbólico, ou seja, da linguagem, também se configura como a inserção
do sujeito na Lei do interdito do incesto. Todavia, ao que nos parece, essa
lei, também chamada de Nome do pai, não se efetivou de forma
satisfatória para a personagem, principalmente, pela fragilidade como o
pai real é descrito na narrativa. O significante, aqui utilizado por CDL,
para contornar sua falta, é o de ser a amante ou mulher do irmão. Na
sequência, a cena a seguir metaforiza o confronto entre o sagrado e o
profano. Acompanhemos:

Eu adorava quando podia ir como mulher de padre Pat, porque


ele era excelente marido e companheiro (...) ele ensinava as
coisas mais escabrosas, fazendo as caras mais inacreditáveis, e
eu ali, batalhando pelo Oscar de coadjuvante, aprendi muito

1331
com ele também. Às vezes ficava sentada com a boca junto ao
pau dele, assistindo transportada a ele bater uma punheta para,
na hora de gozar, dirigir o jato à minha boca aberta.
(RIBEIRO,1999, p. 108)

Obviamente, o deslocamento feminino aqui utilizado por CDL é


para a mulher profana que seduz aquele que seria, supostamente, o
representante do sagrado através daquilo que o sagrado mais ostenta
como virtude: a inocência/pureza. CDL se apresenta como aquela que
não possui todas as habilidades eróticas e se coloca como a aprendiz do
parceiro. Aquela que deveria ser iniciada. Torna-se redundante afirmar
que, mais uma vez, sua sexualidade aflorada se apresenta como
questionadora do patriarcado através de um dos seus pilares: a igreja.
Por fim, muitas passagens poderiam ser utilizadas para comprovar a
sexualidade histérica da personagem, como forma de questionamento
das ideias do patriarcado, com relação ao sexo. Obstante, ao que nos
parece, todas se mostram, digamos, insuficientes para representar tal viés
em sua plenitude. Contudo, uma curta, porém bastante significativa
passagem nos direciona no Norte que ansiamos: “A redução é a seguinte,
sabe o que é a vida? É foder. A vida é foder. “O meu enunciado é fruto
de muita vivência e processamento dessa vivência. A vida é foder, em
última análise.” (RIBEIRO,1999, p. 140). Assim foder é a forma de dar
sustentação as suas angústias e suas dores. Foder é o sintoma que
possibilita, através da conquista o do retalhamento do corpo do Outro, a
jovialidade e as ferramentas que dão forma e principalmente
sustentação psíquica à CDL.

A referida personagem, em nada se diferencia, quanto a busca de


significantes que ocupam, mesmo que momentaneamente, os vazios
angustiosos da alma, de outras personagens femininas da literatura. Assim

1332
como CLB, Letícia Fernandez protagonista de Cem homens em um ano
(2004), de Nadia Lapa busca em seus parceiros sexuais uma forma de
identificação de sua feminilidade. Algo que se mostra recorrente em
histéricas clássicas da literatura canônica como Emma, de Madame
Bovary (1857) e Aurélia, de Senhora (1875). Kehl (2017) se posiciona de
forma contundente ao vislumbrar através do enigmatismo da
feminilidade e suas variantes um deslocamento inerente à sexualidade
da mulher que ao fazê-los não se permite ser apenas CDL, Letícia, Emma
ou Aurélia, mas um Ser capaz de se deslocar em seus múltiplos
significantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através de um discurso marcado pelo erotismo, o corpus apresenta


um arquétipo feminino que busca, na ânsia compulsiva de devorar
sexualmente corpos, as sustentações tanto psíquicas como de um
modelo de feminilidade. O transbordamento libidinal de CDL se insinua
como seu sintoma histérico da personagem. Fato que se efetiva a partir
da sua falta fálica, mas, principalmente, como forma de subversão de
um modelo de feminino imposto pelo patriarcado e que é rechaçado
pela personagem. Assim como outrora, a histeria se imbrica com a
sexualidade da mulher a fim de dar vazão às renegações de uma
feminilidade aprisionada, não podendo ser visto, o fenômeno de
conversão, reduzido ao conceito de pathos. Se não vislumbramos no
discurso de CDL as manifestações psicossomáticas de outros tempos
como paralisias, desmaios entre outros, isso apenas nos diz da
complexidade que caracteriza a histeria quanto ao seu estudo. Algo que
estigmatizou esse fenômeno por períodos seculares.

1333
AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos mestres Severino Carneiro de Oliveira e Antônia


Cardoso dos Santos pelos referenciais morais, éticos e humanos que nos
inspiram em nossos itinerários.

REFERÊNCIAS

BRITTON, André. Anna O: primeiro caso, revisitado e revisado In Freud:


uma leitura atual. Porto Alegre: Artmed Ed, 2012.
ETZLSTORFER, Hannes; NOMAIER, Peter. Pense como Freud, aforismos
selecionados e grandes questões do pai da psicologia moderna. São
Paulo, Cultrix Ed. 2017.
FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade [1905]. Obras
Completas. Rio de Janeiro: Delta Ed, 1958.
FREUD, SIGMUND. Estudos sobre histeria [1895]. Obras Completas. Rio de
Janeiro: Delta Ed, 1958.
FREUD, Sigmund. Feminilidade [1932]. Obras Completas. Rio de Janeiro,
Delta Ed. 1958
GORI, Cláudia Andrea. Histeria feminina: a problemática identificatória.
São Paulo, Via Lettera Ed. 2007
ISRAEL, Lucien. A histérica, o sexo, e o médico. Tradução Celia Gambini.
São Paulo, Escuta Ed, 1995.
MAYER, Hugo. Histeria. Porto Alegre, Artes médicas Ed, 1989.
NASIO, Juan-David. Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa.
Rio de Janeiro, Zahar Ed, 2007.
NASIO, Juan-David. Histeria, a teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro,
Zahar Ed, 1991.

1334
RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro, Objetiva
Ed. 1999.

1335
ERRÂNCIAS ERÓTICAS; ITINERÁRIOS ESPECULARES: (RE)LEITURAS
DA SUBJETIVAÇÃO DO EU NO MITO DE NARCISO

Silvio Tony Santos de Oliveira 205

Hermano de França Rodrigues206

RESUMO: Na Grécia antiga, até meados do século V, o conceito de mito estava


associado com a necessidade humana de estabelecer uma racionalidade à realidade
natural. É pelos mythos que as brumas do desconhecimento humano sobre o mundo
são dissipadas. Esse logos imbricado com as narrativas de seres mágicos que detinham
poderes, muitas vezes relacionados às forças da natureza, norteavam a religiosidade
do homem, nesse período. Após o século V, com a ascensão da filosofia, o discurso
mítico passa a ser colocado em xeque e, dessa forma, as rupturas entre mythos e logos
são estabelecidas. Contudo, mesmo diante dessas adversidades, As narrativas míticas
reverberam, ao longo dos séculos e nas mais diversas culturas, aspectos basilares da
natureza humana. Através de seus personagens e técnicas narrativas, os mitos são
vislumbrados como mimese daquilo que é intrínseco a todos nós: as vicissitudes que
constituem, por excelência, a arquitetura da subjetividade. Assim como o homem
clássico da Grécia antiga, o psicanalista busca, através dessas narrativas clássicas,
teorizar sobre a essência humana, marcando em um tempo primordial fatos que dizem
de nossa generalidade como seres desejantes. O presente trabalho tem por objetivo
desenvolver uma leitura psicanalítica do mito de Narciso, na versão do livro
Metamorfoses de Ovídio. Um questionamento norteia, de forma geral, as diretrizes desse
estudo: quais os elementos do corpus reverberam na teoria psicanalítica que abarca os
pressupostos teóricos sobre o narcisismo primário? Outras indagações nos motivam,
entre elas: quais os pontos convergentes/divergentes entre as teorias psicanalíticas
adotadas acerca do narcisismo primário? Para tanto, recorremos as contribuições de
Sigmund Schlomo Freud (1856-1939); Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) e Françoise
Dolto (1908-1988). Cada um dos autores apresenta sua concepção sobre o narcisismo
infantil divergindo entre eles e reverberando aspectos do discurso mítico.

Palavras-chave: Literatura, Psicanálise, Histeria.

205 Doutorando em Letras da Universidade Federal da Paraíba – UFPB


silviophoenix@hotmail.com
Professor orientador: Doutor em Letras e professor do Programa de Pós-graduação
206

em Letras da Universidade Federal da Paraíba- UFPB. hermanors@gmail.com

1336
INTRODUÇÃO

Ao ansiar por uma designação do termo mito, não se pode deixar


de ressaltar as relações que essa definição possui com uma tradição da
oralidade instituída entre os gregos em seu período homérico. Essas
narrativas eram transmitidas de geração em geração não como histórias
inverídicas ou, talvez como se entende no senso comum de nossa época,
como fantasias instituídas a partir da narração de ações realizadas por
seres “mágicos”. As narrativas míticas, entre muitos aspectos que as
constituem, exprimem elementos ou circunstâncias que se imbricam com
as vicissitudes da natureza humana. Desta maneira, encontra-se inócuo
o discurso com o qual, por vezes, confrontamo-nos no contemporâneo,
que defende o princípio da extinção dos mitos ou da influência desses
sobre o homem dos dias atuais. Entretanto, não podemos deixar de
destacar que essa descrença nos mitos não é algo que tem sua etiologia
no contemporâneo. Esse pensamento de questionamento teria suas
primeiras manifestações no século V a. C. período da Grécia clássica no
qual o saber racional é implantado pelos filósofos.

A partir desse momento, uma racionalização é instaurada e o


mythos que tem seu alicerce no crer, passa a ser refutado pelo logos
(λόγος) conhecimento racional ou racionalizado. Dessa lógica, podemos
pensar, inclusive, na relação entre os vocábulos mito e mitologia. Essa
tem sua estrutura formada a partir de duas palavras: mythos e logos. Logo
o termo mitologia se configura, justamente, como o emprego de uma
racionalidade no estudo ou descrição das narrativas míticas. Um
exemplo dessa junção entre crer/razão é justamente uma das obras

1337
clássicas da mitologia grega a Teogonia 207 , de Hesíodo, em grego
Ἡσίοδος, (750 e 650 a.C. é a partir de Sigmund Schlomo Freud (1856-1939),
que Psicanálise e Literatura apresentam relações indissociáveis O mestre
vienense buscou, na arte literária, expressões ou exemplificações que o
inspiraram a desenvolver, teoricamente, muitos dos conceitos
psicanalíticos como, por exemplo, o complexo de Édipo (relações com a
tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles (496 a.C. 406 a.C) e o complexo de
narcisismo (relações com o mito de Narciso).

O presente estudo tem por objetivo realizar, através da interface


Literatura/Psicanálise, uma leitura do mito grego de Narciso, na versão
da Metamorfoses, de Ovídio. Para tanto, iremos nos debruçar sobre a
narrativa mítica supracitada, ancorados nos ensinamentos freudianos
sobre o narcisismo primário e pressupostos teóricos pós-freudianos como
os ensinamentos de Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) e Françoise
Dolto (1908- 1988) acerca de suas correspondentes concepções com
relação ao estádio do espelho. Uma das questões que alicerçam nossa
pesquisa é vislumbrarmos, a partir dos pontos teóricos elencados, as
relações/contribuições do corpus com a teoria psicanalítica que discorre
sobre o narcisismo primário. Como também, quais os enlaces entre o
comportamento do ser mítico Narciso e a imagem da criança sobre si
mesma? Essas são algumas das inquietações que nos motivam a construir
essa pesquisa.

207Do grego: Θεογονία ( theos, deus e gonia, nascimento), é uma obra clássica
composta por 1022 versos Hexâmetros escritos por volta do século VIII a. C. que contam
a origem ou a genealogia dos Deus gregos.

1338
1 LAÇOS INDISSOLÚVEIS: DIÁLOGOS E INTERAÇÕES ENTRE O MITO E A
PSICANÁLISE.

Nossa linha de raciocínio não pretende, de forma alguma, esgotar


todas as reflexões possíveis e imagináveis que delineiam o tema proposto.
Também não é nosso escopo realizar uma leitura psicanalítica detalhada
de todas as narrativas míticas que alicerçam os pressupostos
psicanalíticos. Nosso intuito consiste em discorrer, mesmo que
brevemente, a respeito das contribuições dos mitos, de uma forma geral,
à ciência do inconsciente. Em um segundo momento ousamos debater
a relação que alguns mitos, em sentido mais estrito ou narrativas
específicas, estabelecem ou alicerçam conceitos da psicanálise.
Parece-nos pertinente, antes de mais nada, definirmos qual a
concepção de mito para a psicanálise ou, dito de outra forma, qual o
conceito sobre mito utilizaremos para associá-lo com a ciência da psique.
De fato, como afirma Azevedo (2004), para a Psicanálise, o conceito de
mito se distancia e muito da concepção de narrativa fabulosa que
remete a fatos transbordados pelo fantástico e que, por isso mesmo, não
podem ser considerados reais ou verídicos. Ao contrário, a concepção
da psicanálise sobre o mesmo é de uma narrativa que demarca um fato
ou um acontecimento em um determinado tempo – esse inacessível.
Nesse sentido, a visão defendida é de narrativas que expressam e, ao
mesmo tempo, explicam fatos da natureza humana em um espaço
temporal inacessível. Vejamos como Winograd e Mendes (2012)
entendem a relação proximal entre as narrativas mitológicas e os escritos
freudianos:
De modo que, na teoria freudiana, o recurso ao mitológico –
como alegoria, como metáfora ou como uma anterioridade
inacessível e não-localizável na história do sujeito – expressa uma

1339
tentativa de pensar o que estaria entre, ou melhor, o que
conjugaria o pré- -psíquico (anterior à ou mais-aquém da
interioridade psíquica individual) e o pós-psíquico (ulterior e
exterior ao psiquismo individual). (WINIGRAD; MENDES, 2012, p.
226)

Ora, como todo cientista/pesquisador, por vezes, Freud se


encontrou diante de obstáculos conceituais. Dificuldades para definir
uma pedra angular de um determinado fato constituinte e imanente da
relação filogenética/ontogenética que constitui a natureza humana.
Vale ressaltar que o objeto de estudo psicanalítico é a subjetividade
humana e suas relações conflituosas com os fatores socioculturais. Isso
nos serve para rememorarmos o grau de complexidade que envolve o
objeto em questão. O caráter imensurável e não regular impõe, por vezes,
ao analista ou o pesquisador, dificuldades nas formulações teóricas. O
próprio Freud deixa evidente suas vicissitudes no labor científico ao
afirmar: “não é fácil tratar os sentimentos de modo científico”. (FREUD In
ETZLSTORFER; NOMAIER, 2017, p. 116) Por sua vez, a psicanalista Maria
Escolástica (1995) evidencia uma crítica rotineira feita pelos contrários
aos ideais psicanalíticos. Segundo eles, a teorização feita por Freud se
apresenta fragilizada, pois a mesma foi, em vários momentos, alicerçada
em explicações míticas. Ora, defende a autora, se a função do mito é
justamente explicar o inexplicável, Freud ao fazer uso de mitos nada mais
fez do que trazer à luz aquilo que estava imerso nas trevas. Dar sentido
àquilo que era impossível de formalizar teoricamente.

1340
2 OS (DES) CAMINHOS NOS ENLACES DA DUPLICIDADE NARCÍSICA

Ressaltamos que nossa intenção não é esgotar as múltiplas leituras


desse clássico da mitologia grega e tão importante ferramenta de
teorização, utilizada pela psicologia, sobre a subjetividade humana, mas
contribuir de forma significativa para o avanço no processo de
compreensão de como as narrativas mitológicas fomentam ou dão
forma as teorizações sobre a vicissitudes psíquicas humanas. Atentamos
também para o fato de que o corpus em questão apresenta inúmeras
versões, cada uma com suas especificidades, entretanto, para fins de
análise, debruçar-nos-emos sobre a versão de Ovídio presente na obra A
Metamorfose.

O deus Cefiso, levado pelo desejo, tomou, à força, a jovem Liriope


para relação sexual e fruto desse envolvimento conflituoso surgiu um Ser
dotado de expressiva beleza e vitalidade. Esse foi chamado, pela mãe,
de Narciso, admirado e cobiçado pelas ninfas e muitos jovens. Entretanto,
todos os olhares e desejos dirigidos ao mesmo eram rechaçados. À altura
da beleza do filho de Liriope, estava apenas a sua autossuficiência e
indiferença perante os sentimentos alheios. Por sua vez, Eco era uma das
mais belas ninfas mencionadas na mitologia helênica. Por ter o hábito de
falar muito e por ajudar o senhor do Olimpo nas aventuras amorosas,
distraindo Hera com suas conversas, a esposa de Zeus condenou a jovem
ninfa a não pronunciar mais nenhuma palavra. Ficaria restrita, apenas, a
repetir a última palavra que tivesse ouvido. Certa vez, Eco encontra
Narciso durante uma caçada e por este se apaixona. Entretanto é
rejeitada. Essa primeira parte ou sinopse, da narrativa mítica, servirá
como norte para desenvolvermos nosso raciocínio. Discutir as
particularidades do narcisismo primário, ao nosso ver, passa,

1341
necessariamente pela concepção ou ideia do duplo. Essa imago que,
na perspectiva freudiana, é desenvolvida pela figura materna e que nas
perspectivas de Lacan e Françoise Dolto é, também, vivenciada pela
influência da experiência da imagem do espelho. Inicialmente,
partiremos das contribuições freudianas acerca do narcisismo
formuladas no célebre texto psicanalítico Introdução ao Narcisismo
(1914). Nessa obra, o psicanalista vienense delineia sua teoria sobre o
desenvolvimento psicossexual da criança desde as experiências
autoeróticas até alcançar seu narcisismo. Para Freud, o ego não é uma
estrutura pré-formada ou pré-existente na psiquê humana. Vejamos
como nos ensina o pai da psicanálise:

As primeiras satisfações sexuais autoeróticas são


experimentadas em conexão com funções vitais de
autoconservação. Os instintos sexuais apoiam-se de início na
satisfação dos instintos do Eu, apenas mais tarde tornam-se
independentes deles; mas esse apoio mostra-se ainda no fato
de as pessoas encarregadas da nutrição, cuidado e proteção
da criança tornarem-se os primeiros objetos sexuais, ou seja, a
mãe ou quem a substitui. (...)Dizemos que o ser humano tem
originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e a mulher que o
cria, e nisso pressupomos o narcisismo primário de todo indivíduo,
que eventualmente pode se expressar de maneira dominante
em sua escolha de objeto. (FREUD, 1914, p. 22)

Anteriormente, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade


(1905), Freud vai discorrer a respeito da relação mãe/bebê. Segundo ele,
é através de carinhos, como beijar, abraçar afagar, e cuidados vitais
como amamentação e cuidados de higiene corporal, que a mãe, ou a
responsável, estimula os desejos eróticos e as zonas erógenas da criança.
O ego começa a ser construído através dos cuidados desse primeiro
objeto com o qual todos nós nos relacionamos em tenra idade. Essa visão

1342
de Freud reverbera na teoria lacaniana, uma vez que, a perspectiva da
relação criança/mãe é entendida como pertencente ao campo do
imaginário. O bebê é o falo da mãe e a mãe é o falo do bebê. Seria uma
relação ainda não transpassada pela cultura e pela linguagem. Sendo
assim, voltemos nossa atenção para o corpus e a seguinte passagem:

De fato, o filho de Cefiso tinha somado mais um aos seus quinzes


anos e poderia considerar-se tanto uma criança como um
jovem. Muitos, jovens, muitas donzelas o desejaram. Mas (havia
tão áspera soberba em tão aprazível beleza) jovem nenhum,
nenhuma donzela lhe tocou o coração. (OVÍDIO, 2017, p. 187)

Em outra passagem, é mencionada a ninfa Eco e a natureza de


seus enlaces com Narciso:

Ora, tendo visto Narciso a deambular por regiões isoladas, foi


tomada de amores por ele e, furtivamente, segue-lhe os passos.
E quanto mais o segue, mais próxima está da chama que arde,
exatamente como o inextinguível enxofre que reveste a
extremidade das tochas é incendiado pela proximidade da
chama. (OVÍDIO, 2017, p. 189)

Na perspectiva psicanalítica, de uma forma mais geral, o Ego é


uma instância do aparelho psíquico que se refere a imagem psíquica que
o sujeito constrói sobre si mesmo. Para Freud (1914), o Ego é construído a
partir da relação da criança com seus primeiros objetos, mais
especificamente, a figura que desempenha a função materna. Nos
enlaces entre a bela ninfa e jovem mancebo, podemos conceber que é
o desejo do Outro 208que constitui um egocentrismo em Narciso, assim
como na relação mãe/bebê pensada na perspectiva freudiana. Eco é

208 Instância da alteridade, daquilo que constitui o sujeito e aliena.

1343
a personagem que, na construção narrativa, terá a função de sintetizar,
em suas ações, todos os olhares e desejos daqueles que admiravam o
filho de Liriope. Eco será aquela que, com seu amor, desejo e admiração
dirigidos ao objeto (Narcisio), realiza, metaforicamente, a função ou o
papel que a mãe desempenha com seu filho: carícias, cuidados,
palavras sussurradas, exaltação da beleza da criança. Tudo isso se
resumindo em uma supervalorização do objeto. Aqui, encontramos um
pensamento teórico que permeia as visões de Freud e Lacan: o Ego não
é uma estrutura do psiquismo inata ou pré-formada no sujeito, mas é
forjada a partir da relação com o duplo – em Freud, a mãe. Em Lacan, a
imagem especular. Eco é aquela que dirige sua energia libidinal, por sua
vez, Narciso é aquele que recebe ou é o receptáculo desse investimento.
A ninfa admiradora também pode ser entendida como duplo do filho de
Cefiso quanto ao discurso da falta: a mãe é um ser desejante e assim o
é, pois reconhece sua falta. Algo lhe falta na sua subjetividade. Para a
figura materna, algo se perdeu no processo de castração209 e renúncia
dos seus primeiros objetos de amor. Por meio da maternidade, mesmo
que momentaneamente, o bebê se torna o falo da mulher. Aquilo que a
completa e que a faz reconhecer-se em sua feminilidade210 Nos enlaces
entre a mãe e a criança, o bebê se entrega e se sente completo por
estar nos braços daquela que, ao lhe fornecer os meios para sobreviver,
o erotiza com seus carinhos. Sendo assim, a relação de duplicidade é

209 A castração é um conceito psicanalítico que consiste no processo de abnegação


ou renúncia, por parte da criança, dos seus primeiros objetos de desejo (os pais), em
nome da sua inserção na cultura.
210 Esse termo de cunho psicanalítico não mantém relações com o termo feminismo

oriundo dos movimentos feministas. A feminilidade diz respeito a um conjunto de pulsões


orais, anais e genitais associadas a normas culturais que definem um modelo do que
viria a ser feminino.

1344
estabelecida entre ambos personagens, uma vez que Eco assume a falta
e Narciso renega sua falta como sujeito movido pelo desejo. Vejamos:

Eco, que jamais teria respondido, fosse a que som fosse, com
maior agrado, repetiu: “Encontremo-nos!” Secundando ela as
próprias palavras, sai da floresta e avança, disposta a abraçar o
cobiçado colo. Ele foge. E diz, ao fugir: “Retira as mãos deste
aperto! Antes morrer que seres, senhora, de mim! (OVÍDIO, 2017
p. 189)

Sob um olhar psicanalítico embasado no complexo do narcisismo,


aceitar o abraço seria, para Narciso, reconhecer sua falta, reconhecer
que é um ser incompleto e que esse Outro (Eco) tem a capacidade de
lhe completar. Também é válida a discussão a respeito do que
representa esse desejo ou esse transbordamento libidinal metaforizado
pela simbologia do abraço: de acordo com Freud (1914) abdicar no
narcisismo é, justamente, o sujeito conseguir transferir sua energia libidinal
para outros objetos que se diferenciam do próprio Eu do sujeito. A
diferença entre Eco e Narciso se encontra na capacidade que aquela
tem de dirigir sua libido a um objeto, enquanto que o ele dirige sua libido
a si mesmo. Podemos, inclusive, pensar no próprio discurso de Eco como
uma metáfora da falta que gera o desejo, pois ao repetir apenas as
últimas palavras, algo se perde, e é justamente essa perda que ela e nós
percorremos durante toda a vida para sanar inutilmente e
momentaneamente.

Eco, a hipervigilante, torna-se a imagem refletida do Narciso


inconsciente. Ele é intocável; anseia eternamente estar nos
braços dele. Narciso só pensa em si e é de um egoísmo
impiedoso, Eco só pensa nele, e sua autoestima injuriada
continua frágil mesmo na morte. Como Narciso não consegue

1345
identificar-se com os outros, transforma a voz deles na sua,
ampliando a sua personalidade. (HOLMES, 2005, p. 26; 27)

Diz a narrativa que Eco é rejeitada e, assim, encontra, na floresta,


refúgio para sua tristeza e vergonha. Passa a viver nas grutas e montanhas,
entretanto, mesmo à distância, não deixa de acompanhar os passos do
amado. Contemplar sua beleza, mesmo que distante, era a única forma
de amenizar sua dor de rejeição. As amarguras, diz o mito, consomem o
corpo da ninfa, concomitante com os sentimentos, o abandono lhe
corroei o corpo e os ossos se uniram às pedras montanhosas. Apenas sua
voz reverbera e é comprovada por aqueles que visitam esses locais. A
sequência narrativa, mais precisamente o fato que será mencionado
logo adiante, apresenta-se como fundamental para compreendermos
melhor os caminhos psicanalíticos acerca do narcisismo primário: um dia,
tomada pela curiosidade, Liriope procura Tirésias, conhecido por ter o
poder da predestinação do futuro, para pergunta-lo acerca da
longevidade do filho: como resposta obteve: “se ele não se conhecer”
(OVÍDIO, 2017. p. 187) De acordo com o mito, surgiu, entre os vários
pretendentes rejeitados por Narciso, um que fizesse à Deusa de
Ramnonte o seguinte pedido: “Oxalá ame ele assim! Assim não alcance
ele a quem ame!” (OVÍDIO, 2017, p. 191) Havia na região uma fonte de
água límpida e cristalina. A qual pastores e cabras não tinham acesso.
Diz a narrativa que um dia, após uma caçada, o belo jovem procurou
refúgio para sua fadiga, nas proximidades da fonte. Local descrito por
Ovídio como imaculado inclusive pela luz do sol.

Jacques Lacan, em seu texto O estádio do espelho como


formador da função do Eu, o qual faz parte dos Escritos (1901-1981/ 1998),
desenvolve, inicialmente, um comentário acerca de uma experiência na

1346
qual um bebê e um chimpanzé são comparados em nível de inteligência.
É relatado que, de início, a criança é superada, em inteligência
instrumental, pelo animal, mesmo que por período curto, pois,
rapidamente, a criança consegue reconhecer sua imagem diante do
espelho. Para Lacan, o estádio do espelho ocorre no período
compreendido aproximadamente entre 6 meses e 18 meses de vida,
porém essa demarcação cronológica apenas tem por objetivo teorizar
sobre um suposto período. Ela não é rígida em suas demarcações. Na
perspectiva lacaniana, nesse período, a criança se encontra ainda com
uma visão fragmentada sobre si mesma. Seu sistema nervoso se encontra,
ainda em formação, podendo ser constatado na locomoção feita com
extrema dificuldade. O psiquismo também ainda está em formação,
uma vez que os traços anímicos entre suas necessidades fisiológicas e
biológicas estão em processo de inscrição. Logo, tanto biologicamente
como psiquicamente a criança se encontra fragilizada ou, como diz
Lacan, com o corpo despedaçado. Vejamos como Veiga descreve esse
estágio do desenvolvimento infantil:

Entre todos os mamíferos é o único que não consegue mover-se


em direção à teta da mãe no mesmo dia em que nasce. É tão
descoordenado em seus movimentos que se for posto sobre
uma mesa plana e deixado lá, acabará por morrer de fome e
sede sem ter conseguido sequer cair da mesa. Os nervos que
comandam seus músculos são como fios que conduzem
eletricidade, só que nascem desencapados, causando uma
série de curto-circuitos minúsculos que não dão choque mas
resultam em contrações musculares desordenadas. (VEIGA,
2005, p. 16)

O bebê, no seu início de vida, encontra-se em um estado de total


dependência vital dos outros adultos a sua volta, mais precisamente
daquele que desempenha a função da maternagem, dito de outra

1347
forma, aquela(e) que realiza a função materna: acolher, alimentar,
dispor atividades higiênicas, etc. Mãe e filho se encontram sob o véu do
imaginário: o bebê é o falo da mãe e esta é uma extensão corporal da
criança. O infans não possui uma imagem completa, integrada do
próprio corpo. Diante do espelho, diz Lacan, o filhote humano se
descobre, reconhece-se como sujeito detentor de um corpo. Assim,
vejamos uma das possíveis definições lacanianas para o estádio do
espelho:

Basta-nos compreender o estádio do espelho como uma


identificação no sentido pleno que a análise dá a esse termo,
ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele
assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de
fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo
termo imago. (LACAN, 1998, p. 98)

Nessa perspectiva, a experiência especular diz respeito a um


encontro e o mais importante, os efeitos desse encontro, de um sujeito
com o reflexo de sua própria imagem. Nesse ponto, voltamos nosso olhar
para o momento em que Narciso, exausto de uma caçada e buscando
saciar sua sede, confronta-se com uma imagem nas águas límpidas da
fonte:

Ao procurar saciar a sede, brota nele uma outra sede. Enquanto


bebe, arrebatado pela imagem da beleza que avista, ama uma
ilusão sem corpo. Crê ser corpo o que apenas é água. Extasia-
se ante a si mesmo e fica imóvel, de rosto imóvel também, fica
hirto como uma estátua de mármore de Paros. Estendido no
chão, contempla dois astros, que são os seus olhos; contempla
os cabelos, dignos de Baco e dignos de Apolo; contempla as
faces, virginais ainda, o colo de marfim, a graça da boca e o
rubor misturado a nívea brancura. Admira tudo o que o torna a
ele digno de admiração. (OVÍDIO, 2017. p. 191)

Narciso, ainda sem se reconhecer, encontra-se em estado de


encantamento, de enamoramento pela imagem apresentada nas

1348
águas. Fica perplexo diante de tamanha beleza e perfeição. Traços
físicos que são comparados aos deuses e aos elementos da natureza
como os astros. Ora, não é difícil imaginar que as águas e a imagem
descrita no mito desempenham, metaforicamente, a mesma função que
o espelho e a imagem refletida na teoria psicanalítica. Lacan (1998)
afirma que a criança diante de sua imagem é tomada por um júbilo
inestimável. Ao tentar tocar, beijar, abraçar a imagem especular, o infans
tem a confirmação que aquele que tenta manter contato físico não é
outro, senão sua imagem refletida. É nesse momento que o Eu da criança
começa a se integralizar ou ainda, totalizar-se de maneira que a imagem
fragmentada de um corpo ainda fragilizado pela dependência
biológica e pela imaturação psíquica começa a ser substituída por uma
imagem totalizante do corpo. Jalley (2009) defende que inicialmente, a
criança reconhece a imagem, porém não reconhece seu próprio corpo
e nem a noção de exterior. O Eu, aos poucos, através de um processo
contínuo e, em uma perspectiva normal, sempre caracterizado por
avanços, ganha seu molde com base na imagem especular. Essa, diz o
referido autor, ao mesmo tempo que forma o Eu também usa da
alienação desse. No jogo do duplo, para Lacan, os efeitos positivos sobre
o bebê estão, justamente, no reconhecimento ou identificação com a
imagem especular. A energia libidinal, assim como ocorre com Narciso,
é dirigida para o Eu - aqui, vislumbramos um ponto de convergência
entre o pensamento freudiano e lacaniano. Essa experiência não é
considerada circunscrita no âmbito do campo do simbólico. Entretanto,
é o momento de iniciação da inserção da criança na linguagem e na
ordem da cultura. O bebê começa a entender que possui um corpo e
que esse não se mantém fusionado com o corpo materno. Dessa
maneira, podemos pensar nessa experiência do espelho como algo que

1349
oferece à criança a vivencia de um gozo211, uma vez que, ao mesmo
tempo que estimula o júbilo infantil por se reconhecer como detentor de
um corpo não- fragmentado, também essa consciência implica em um
prenúncio da separação da mãe e da tomada de consciência que o
corpo materno não é uma extensão de si.

Françoise Dolto apresenta uma outra perspectiva acerca do


estádio do espelho. Em uma obra célebre da literatura psicanalítica, A
criança no espelho (2008), a psicanalista francesa discute, em
colaboração com J.D. Nasio, seus principais pontos teóricos.
Primeiramente, entendemos ser salutar já distinguirmos alguns conceitos
básicos nas teorias lacanianas e doltoniana. Para Lacan, o espelho é
plano/refletidor e seus efeitos escópicos são fundamentais para a
unificação do corpo despedaçado da criança. Já Dolto, entende que a
experiência do espelho não é fundamental, mas complementar a uma
imagem inconsciente que a criança tem sobre si. O corpo do infans,
dessa forma, não se apresenta despedaçado como afirma a perspectiva
lacaniana. Logo, temos uma oposição de espelhos: plano/psíquico. Com
a finalidade de exemplificar a supremacia da imagem inconsciente do
corpo em detrimento da imagem especular, Dolto se utiliza dos casos
clínicos de crianças portadoras de deficiência visual:

Essas crianças cegas são dotadas de uma sensibilidade notável.


Quando, por exemplo, elas modelam uma escultura, as mãos da
bonequinha representada ocupam um lugar preponderante.
Ocorre-lhes traçar desenhos não sobre o papel, mas gravados
na massa de modelar achatada. E elas obtêm assim, com a
mesma mestria que as crianças que vêem, verdadeiras imagens

Lacan busca, na área jurídica, o sentido psicanalítico do gozo. Para ele, o gozo
211

implica em fazer uso de algo com determinado limite ou até certa medida. O gozo se
encontra nos limiares do prazer e da dor, da satisfação e da angústia, do êxtase e do
descontentamento. O gozo sempre é parcial.

1350
do corpo projetadas em seus grafismos. Ora, em suas esculturas
o tamanho das mãos é muito maior que nas modelagens das
crianças que vêem, e a razão disso é muito clara: é com as mãos
que as cegas vêem, é nas mãos que elas têm olhos. (DOLTO,
2008, p. 38)

Em Lacam, temos um narcisismo que se ergue ou ganha contornos


a partir da alienação do Eu feita pela imagem de um corpo (físico)
refletido do espelho. O estímulo é fundamentalmente escópico. Dolto, ao
nosso ver, teoriza partindo de um conceito de corpo não físico, não
pulsional, mas um corpo psíquico formado a partir da visão que o sujeito
tem sobre si mesmo e que se mantém nas brumas do inconsciente. Os
estímulos, para dar forma a esse corpo, não se restringem à imagens,
contudo são mais amplos e de uma complexidade mais acentuada. As
crianças cegas não tem acesso ao estímulo visual, porém mantêm
intactas as imagens psíquicas acerca dos seus corpos. Os olhos são
“deslocados” para as mãos pois essa é a forma de reelaboração da
simbologia. É a forma que encontraram para interagir simbolicamente
com o mundo a sua volta. É uma forma de conhecimento do Ser sobre o
Eu.

Se voltarmos ao mito de Narciso, mais precisamente na última


passagem selecionada, em que ele se encontra encantado com a
imagem refletida na água, podemos observar que o adolescente era
destituído daquilo que Dolto defende: a imagem inconsciente sobre si
mesmo. Estando amalgamado, apenas, a estímulos visuais, não
conseguiu se reconhecer ou melhor discernir que o que via era sua
imagem refletida na fonte, permanecendo preso em admiração à uma
imagem que ao mesmo tempo encantava e alienava. O próprio mito
antecipa os pressupostos teóricos de Dolto: “Estendido na erva, à sombra,

1351
contempla, com olhar insaciável, a enganosa imagem, e morre vítima de
seus próprios olhos.” (OVÍDIO, 2017. p.193) A passagem seguinte, contribui
de forma significativa para a discussão de outros conceitos psicanalíticos
entre Lacam e Dolto sobre o narcisismo:

Sem o saber, a si se desejava; é aquele que ama, e é ele o


amado. Ao cortejar, a si se corteja. Arde no fogo que ascende.
Quantos beijos inúteis deu na fonte que lhe mentia! Quantas
vezes, para abraçar seu pescoço, que via no meio das águas,
mergulhou os braços, sem neles encontrar! Não sabe o que vê;
mas o que vê consome-o! E a mesma ilusão que engana seus
olhos, excita-os. Ingênuo! Por que buscas em vão agarrar uma
fugitiva imagem? O que desejas não existe! O que amas,
retirando-te, perdê-lo-ás! (OVÍDIO, 2017. p. 193)

Jalley (2009) discute um dos importantes conceitos presentes na


teoria do estádio do espelho, na perspectiva lacaniana: o transitivismo.
Esse termo, segundo Jalley, é trazido do campo da psiquiatria para a
psicologia por Walon. Entretanto, Lacan, ao retomá-lo, não faz referência
às contribuições wallonianas. Jalley afirma que o psicanalista francês
compreende o transitivismo como uma das fases do desenvolvimento
psíquico da criança ocorrido concomitantemente com a experiência
especular. O transitivismo consiste em uma criança mais jovem atribuir
ações feitas por si a outra criança mais velha: “ele bateu em mim!” ou
“ele me empurrou!”. Na perspectiva lacaniana, esse processo se mostra
fundamental para o bebê, pois ele começa mesmo atribuindo ao outro
suas atitudes, a ter noção de uma totalidade e comando sobre seu
próprio corpo. Narciso também atribui ao reflexo da fonte as ações de
correspondência amorosa que, na realidade, são feitas por ele mesmo e
são, apenas, refletidas, assim como o bebê também atribui à imagem do
espelho ações que são feitas por ele mesmo. O bebê também almeja

1352
interagir com sua imagem ao tentar tocar, beijar abraçar a suposta outra
criança, assim como faz Narciso com seu reflexo:

Prometes-me nem sei que esperança em teu rosto amigo.


Quando eu te estendo os braços, também tu estendes os teus.
Quando rio, tu sorris. E notei algumas vezes tuas lágrimas, se eu
chorava. Respondes também com os teus aos meus sinais de
cabeça. E, quanto posso supor pelo movimento de tua bela
boca, formulas palavras que aos meus ouvidos não chegam.”
(OVÍDIO, 2017. p. 193; 195)

O processo de transitivismo é alicerçado sobre os pilares da


projeção, o qual consiste em projetar exteriormente – ou no outro- aquilo
que nos constitui interiormente. Mais uma vez, observamos que o júbilo
diante da imagem, defendido por Lacan, é vislumbrado em Narciso,
entretanto, como defende Dolto, é a imagem que o leva ao engano. Ela
coloca como essencial o processo de intermediação entre a criança e
a imagem do espelho:

Se a criança estiver sozinha no recinto, sem a companhia de


alguém para lhe explicar que se trata apenas de uma imagem,
ela fica aflita. É então que se dá a prova. Para que essa prova
tenha um efeitosimboligênico, é indispensável que o
adultopresente nomeie o que está acontecendo. É verdade
que muitas mães, nesse momento, cometem o erro de dizer à
criança, apontando o espelho: “Está vendo, isso é você “,
quando seria muito simples e correto dizer: “Está vendo, isso é a
sua imagem no espelho, assim como a que você vê ao lado é a
minha imagem no espelho.” (DOLTO, 2008, p. 39)

O que percebemos, com mais frequência, na teoria de Lacan é


uma criança, digamos, mais autônoma diante do espelho, ao passo que
Dolto defende a presença de um adulto para ajudar a mesma em seu
processo de simbolização. A imagem do espelho pode sim fragmentar

1353
212um corpo que não o era assim anteriormente. A criança possui uma
imagem inconsciente de si que precisa apenas ser moldada através do
processo de simbolização. Lacan defende que o sucesso se encontra na
criança se reconhecer no espelho. Dolto advoga que a experiência do
espelho gera no infans uma angústia e não júbilo e consequentemente
seria algo semelhante a castração.

A criança se sente angustiada diante do espelho. O adulto tem por


função estabelecer que a imagem é um reflexo e não a própria criança.
Aquele que desempenha essa função ou melhor o corpo deste acaba
por funcionar também como referência para a criança. Sendo assim,
observamos que Narciso é desprovido de um intermediador entre o Eu e
a imagem que observava. A angústia diante de um ser que
supostamente correspondia seus sentimentos, mas que não podia tocar,
fica evidente em suas palavras: “Por que troças de mim, jovem sem-par?
Para onde foges quando te busco? Não são, com certeza, nem o
aspecto nem a idade razão para que fujas, e até as ninfas me amaram!”
(OVÍDIO, 2017, p. 193) Os dizeres seguintes confirmam a ideia do
intermediador necessário, na perspectiva doltoniana: “Será, florestas,
que alguém amou com tão cruel sofrimento? Com certeza sabeis, pois
fostes, para muitos, refúgio oportuno! Tendo vossas vidas atravessado
tantos séculos, recordais-vos, nesse longo curso, de alguém que se haja
consumido assim?” (OVÍDIO, 2017, p. 193). Narciso clama por alguém que
lhe restitua a racionalidade levada pelo devaneio do enamoramento. A
única personagem que poderia desempenhar esse papel seria Eco,
contudo esta é impossibilitada por só conseguir pronunciar as últimas
palavras ditas por alguém. A angústia da impossibilidade de amar um ser

Dolto teoriza a fragmentação a partir do psíquico enquanto que Lacam teoriza a


212

mesma a partir do conjunto biológico e psíquico.

1354
que ao mesmo tempo corresponde aos gestos amorosos, mas que foge
daquele que dirige esses gestos toma conta do jovem. Sobre a imagem
especular: “ela distorce na medida em que mostra apenas uma única
face do sujeito, quando, na verdade, a criança sente-se inteira em seu
ser; tanto nas costas como na frente.” (DOLTO, 2008, p. 43) Lacan (1998)
entende que o narcisismo primário se inicia a partir do momento em que
a criança se reconhece diante do espelho. O Eu ganha contornos e
prenuncia sua inserção futura na ordem simbólica e consequentemente
na cultura. Dolto (2008), por sua vez, postula que o narcisismo primário se
instaura a partir do momento que a criança passa pela angustiosa prova
do espelho. Lograr êxito, nessa perspectiva, é não se reconhecer na
imagem, mas saber que aquilo que observa não é o Eu mas um reflexo
parcial de um corpo unificado. A passagem mítica seguinte nos oferece
reflexões infindáveis com base no pensamento desses dois teóricos da
psicanálise. Observemos:

Esse sou eu! Apercebi disso e nem a minha imagem me engana!


Abraso-me de amor por mim! Atiço e sofro o efeito das chamas!
Que hei de fazer? Requestar ou ser requestado? Que hei de
esperar? Em mim está o que cobiço. A riqueza me empobrece.
Oh! Pudesse eu separar-me de meu corpo! Estranho desejo de
quem ama, querer eu que o objeto do meu amor esteja longe!
A dor já me rouba as forças, e não me resta muito tempo de
vida. Sucumbo na flor da idade. A morte não me é pesada, ela
alivia-me as dores. Gostaria que aquele a quem amo tivesse
mais longa vida. Agora, cordialmente unidos, morreremos
ambos numa vida só.” (OVÍDIO, 2017, p. 195)

Narciso se reconhece! Enxerga-se naquele que ama. Sua


impossibilidade de amar agora não se restringe mais a um espelho de
água que separa dois amantes. Ele se descobre apaixonado si mesmo.
Dessa forma, deseja, inutilmente, separar-se de si mesmo como forma de

1355
viabilizar esse amor. Nessa cena, ao que parece, a teoria doltoniana
abarca melhor a problemática narcísica: após se deixar levar pelos
estímulos visuais, o jovem tem sua imagem corporal fragmentada.
Narciso não obtém sucesso na prova angustiosa do espelho. É se
reconhecendo que sucumbi! Ao contrário da perspectiva lacaniana que
defende o reconhecimento ou a identificação com a imago especular,
como forma de surgimento do narcisismo e integração de um corpo
fragilizado. Narciso, pela primeira vez, abdica de seu egocentrismo e se
mostra sensível ao sentimento do outro. Ele deseja que, mesmo que
custasse seu fim, o seu amado continuasse a existir. Porém, reconhece ser
inviável a consumação de seus desejos. Freud (1914) afirma que o
narcisismo primário necessita ser abdicado em nome de manutenção de
laços mais saudáveis ou sociáveis na fase adulta. Assim como diz Narciso
“extingo-me na flor da idade”, é na infância que a criança começa a
direcionar sua libido não mais ao Eu, mas aos objetos, primeiramente, no
decorrer do complexo de Édipo 213e, posteriormente, em outros objetos
de amor escolhidos na fase adulta. Freud ainda não acredita em um
direcionamento completo da energia do Eu para objetos. Nesse caso
encontramos ainda no corpus aspectos metafóricos que ressoam nesse
pressuposto freudiano. Narciso, após se entregar em contemplação a
sua própria imagem, começa a perder as forças vitais até ser recebido
no inferno. “No lugar do corpo, encontraram uma flor amarela com
pétalas brancas em volta do centro.” (OVÍDIO, 2017, p. 197) A flor de
Narciso, ao nosso ver, pode ser utilizada como metáfora daquilo que
Freud defende como resultado do narcisismo primário. De acordo com o

213Conceito psicanalítico formulado por Freud e depois retomado pelas inúmeras


escolas psicanalíticas. Diz respeito ao desejo incestuoso e que se sustenta, apenas, no
campo da fantasia, inato ao desenvolvimento psicossexual humano, que é dirigido
pelas crianças às figuras parentais.

1356
referido autor, a energia, que outrora fora dirigida ao Eu, é transformada
em dois elementos constituintes do psiquismo humano o “Eu-ideal” e o
“ideal-do-Eu”. O primeiro seria ainda resquícios de um narcisismo primário.
As aspirações ou idealizações que o Eu tem sobre si. Se pensarmos na
teoria lacaniana, o “Eu-ideal” estaria no âmbito do imaginário. Por sua
vez, o segundo diz respeito das projeções ou expectativas que os outros
socialmente esperam do sujeito, na teoria lacaniana estaria no campo
do simbólico. Assim como Narciso se transfigura em uma formosa flor, o
narcisismo primário não deixa de existir em sua totalidade, apenas se
modifica na forma de transferência libidinal existente entre o Eu-ideal e o
ideal-do-eu.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mito de Narciso, por vezes, ecoa nos pressupostos freudianos,


lacanianos e doltonianos, cada escola psicanalítica com sua perspectiva
acerca do fenômeno: o narcisismo primário passa pela questão do
duplo, seja em Freud, na relação mãe/bebê, em Lacan, na relação
criança e sua imagem especular e, em Dolto, com o sujeito com e
imagem inconsciente do corpo, estimulada pela imagem escópica do
espelho e intermediada por um adulto. Entretanto, como podemos
demonstrar o fio condutor que permeia as aproximações e minimizam as
divergências teóricas é o mesmo: a narrativa mítica. O corpus nos
oferece um arcabouço material, estruturado pela linguagem, que nos
permite vislumbrar, tanto na construção dos seus personagens como nas
ações desses, semelhanças com a nossa própria subjetividade no
processo de desenvolvimento psicossexual intitulado narcisismo primário.

1357
REFERÊNCIAS

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histeria, Três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos. Edição
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obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. IV. Rio de Janeiro.
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FREUD, Sigmund (1919). O estranho. Edição Standard Brasileira das obras


psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Rio de Janeiro. Ed.
Imago. 2006

FREUD, Sigmund (1920 -1922). Além do princípio de prazer, psicologia de


grupo e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das obras

1358
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XV. Rio de Janeiro. Ed.
Imago. 2006

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e


outros textos In obras completas Vol. 12. Rio de Janeiro. Ed. Companhia
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HOLMES, Jeremy. Conceitos da Psicanálise: narcisismo. Tradução carlos


Mendes Rosa. Rio de Janeiro. Relume Dumará: Ediouro; São Paulo.
Seguimento Duetto. 2005

JALLEY, Émile. Freud, Wallon, Lacan: a criança no espelho. Tradução


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Ed. Zahar. 2005

OVÍDIO, Publius Naso. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas de


Domingos Lucas Dias; apresentação de João Angelo Oliva Neto – 1
Edição. São Paulo. Ed. 34 Lt. 2017

VEIGA, Francisco Daudt da. A criação segundo Freud: o que queremos


para nossos filhos? Rio de Janeiro. Ed. 7 letras. 2005

WINOGRAD, Morah; MENDES, Larissa da Costa. Mitos e origens na


psicanálise freudiana. In Revista Cad. Psicanálise .-CPRJ, Rio de Janeiro, v.
34, n. 27, p. 225-243, jul./dez. 2012

1359
TERMINOLOGIA E TERMINOGRAFIA: UMA INCURSÃO AS BASES
TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Rejane Umbelina Garcez Santos de Oliveira214

Paulo Santiago de Sousa215

RESUMO: Este artigo objetiva apresentar os percursos da Terminologia no Brasil e fazer


uma reflexão sobre a importância da Terminografia como parte do fazer terminológico.
A Terminografia, face aplicada da Terminologia, realiza-se pela produção de glossários,
dicionários técnicos / científicos e bancos de dados. Ainda que essas obras não
obedeçam ao mesmo padrão, esta pesquisa se justifica pela necessidade de apontar
as especificidades do dicionário terminológico no que tange, principalmente, às
entradas dos verbetes, à macro e à microestrutura destes de acordo com o conteúdo
especializado em questão. Os produtos terminográficos traduzem o registro e a
organização, de forma sistemática, de um domínio científico ou de terminologia em que
o uso justifica o emprego oral e/ou escrito. O corpus utilizado para este estudo constituiu-
se de textos especializados impressos e eletrônicos e dicionários. Sob as orientações
teóricas, destaca-se, entre outros, Alves (1998), Krieger e Finatto (2004), Finatto · (2015),
Krieger e Bevilacqua (2008), Rey (1995), Barros (2004), Barbosa (2009), Almeida (2011),
Cabré (1998), Silva (2010) além de consultas a repositórios de universidades brasileiras,
verdadeiras fontes para elucidar as discussões nesse trabalho, delimitou-se o percurso
metodológico bibliográfico e qualitativo, pois além de embasar esta investigação
conduziu à análise de obras terminográficas e terminológicas, instrumentos
fundamentais utilizados por especialistas para disseminar a informação técnica e
científica que estruturam as linguagens especializadas, registrando, processando e
apresentando dados que resultam da pesquisa terminológica.

Palavras-chave: Terminologia, Terminologia no Brasil, Terminografia, Macro e


Microestrutura, Dicionários Técnicos e Científicos.

214 Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Pesquisadora do


GeoLinTerm. E-mail: rejane.garcez@gmail.com;
215 Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa - Universidade Estadual Paulista “Júlio

de Mesquita Filho” – UNESP/Araraquara, bolsista CAPES/PROEX. Mestre em Linguagens e


Saberes na Amazônia pela Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail:
profpaulosantiago@gmail.com.

1360
INTRODUÇÃO

Os últimos anos foram marcados pelo desenvolvimento


tecnológico e, em consequência, uma gama de unidades
terminológicas surgiu para explicar, descrever, caracterizar novos
resultados, procedimentos ou modos de se colocar em funcionamento
um produto ou em prática algum conhecimento. A Terminologia nunca
foi tão útil e a comunicação tão necessária.

Cabré (2004) concebe o termo “terminologia” como polissêmico e


o remete a pelo menos três noções: a) disciplina, b) prática e c) produto
gerado por essa prática. “Como disciplina, é a matéria que se ocupa dos
termos especializados; como prática, é o conjunto de princípios
destinados à compilação de termos e, como produto, é o conjunto de
termos de uma determinada área de especialidade” (CABRÉ, 2004, p. 10).

A língua materna é comum a todos os falantes do português


brasileiro, por exemplo, mas quando se trata do registro de uma
linguagem de especialidade, sabe-se que há especificidades a um
determinado grupo de socioprofissionais que a utilizam. Na língua
portuguesa, quando registramos as palavras que utilizamos, fazemos uso
da lexicografia para elaboração de dicionários. O léxico da língua
portuguesa é dicionarizado pelo fazer lexicográfico. Assim temos
dicionários como Houaiss, Aurélio, entre outros. Portanto, a Lexicologia
estuda o léxico de modo geral e a lexicografia é a ciência que registra
esse léxico em glossários, vocabulários, dicionários e bancos de dados.

Já em relação às linguagens de especialidade, esse registro


também ocorre com a inserção de unidades terminológicas constituídas
por termos e fraseotermos que buscam nomear, conceituar e descrever

1361
um conjunto de coisas e atividades peculiares a uma determinada área
técnica ou científica. A Terminologia ocupa-se em estudar os termos de
natureza técnica e cientifica e a Terminografia organiza e compila dados
terminológicos, bem como elabora materiais terminográficos. Muitos
estudiosos como Biderman (1984), defendem a Terminografia como uma
ciência que elabora dicionários. É, portanto, uma ciência que repertoria
e organiza sistematicamente um léxico em dicionário.

No capítulo reservado à Metodologia e a partir dos conhecimentos


teóricos, optou-se, a título de organização, por se fazer uma retrospectiva
da Terminologia, enquanto Ciência no Brasil para, em seguida, buscar-se
a importância da Terminografia como parte do fazer terminológico.

1 REFERENCIAL TEÓRICO

De acordo com o corpus selecionado para esta pesquisa, pode-se


afirmar que os produtos terminográficos traduzem o registro e a
organização, de forma sistemática, de um domínio científico ou de uma
especialidade em que o uso justifica o emprego oral e/ou escrito.

Várias questões costumam incomodar aqueles que trabalham


com pesquisas e elaboração de dicionários. Lexicografia ou
Terminografia? Essas duas ciências têm a mesma finalidade ou não? A
Terminografia é uma ciência atual que substitui a Lexicografia? Que
caminho seguir?

Na verdade, a Lexicografia, já recebeu diferentes definições.


Segundo Biderman (1984), por exemplo, é uma ciência que elabora
dicionários; e para Borba (2003), é uma técnica de se fazer dicionários.

1362
Ciência ou técnica, usando a linguagem de uso geral, a Lexicografia
repertoria e organiza sistematicamente um léxico em dicionário
observando os aspectos gramatical e contextual das unidades lexicais.

Já a Lexicografia Especializada, no Brasil, teve sua trajetória


marcada no livro Elementos de História da Terminografia Médica no Brasil,
de BARROS (2005). Segundo a autora, ao se procurar registrar o percurso
da Lexicografia no Brasil, não havia dicionários, glossários, mas textos que
apresentavam um saber terminológico, com tratamento dicionarístico
dos dados terminológicos em relação ao conceito ou significação. Assim,
o estudo da lexicografia brasileira foi realizado através de análise em
textos técnicos e científicos desde o período imperial. A Lexicologia é
estudada como uma ciência que pesquisa e descreve o léxico geral das
línguas naturais e a Lexicografia a parte prática da Lexicologia.

Terminografia é um termo mais recente. Estudiosos como Kudashev


(2007, p. 157-158), Hartmann e James (1998) e tantos outros consideraram
que assim como a Lexicografia está para a Lexicologia, a Terminografia
está para a Terminologia. Ciobanu (2003, p. 60), ao considerar a
Terminografia, levou em conta as variantes existentes como Lexicografia
de linguagens especiais, Lexicografia Terminológica, Lexicografia para
fins específicos e Lexicografia Especializada.

Marzá (2012) vê a Lexicografia Especializada como uma Teoria


fundamentada na TCT, de Cabré (1993,1999) associada à necessidade
da Terminologia no que tange à comunicação. Em decorrência,
percebeu-se que a Terminografia e a Lexicografia Especializada em
alguns pontos se assemelham, mas em outros não são equivalentes.

Finatto (2014, p. 248), entretanto, considerou a Lexicografia das


linguagens de especialidade um sinônimo de Lexicografia especializada

1363
ou Terminografia, cuja finalidade é a descrição linguística, conceitual e
pragmática das unidades terminológicas (Uts) de um ou mais domínios.
O objetivo é produzir dicionário, glossário ou vocabulário especializado.

As duas têm o mesmo objeto de estudo (o léxico), um mesmo


produto e um mesmo objetivo, que é a criação de dicionários
especializados. Em virtude disso, o engajamento que há entre elas tem
como condição produtos específicos a cada uma, assegurando, assim,
autonomia de modelos, métodos, técnicas e procedimentos de acordo
com a área de atividade em estudo.

Desse modo, Barbosa (2009, p.2), considera que,

(...) Lexicologia e Lexicografia configuram duas atitudes, duas


posturas e dois métodos, em face do léxico: a Lexicografia,
como técnica dos dicionários; a lexicologia, como estudo
científico do léxico. Na realidade, a complexa questão se
estende à própria multissignificação de tais disciplinas. Assim, por
exemplo, os discursos lexicográficos são concomitantemente
registro de palavras e objeto de estudo da Lexicografia como
investigação fundamental; esta, por sua vez, objeto da
metalexicografia, enquanto epistemologia da ciência
lexicográfica.

Para a pesquisadora, essas mesmas semelhanças entre Lexicologia


e Lexicografia existem entre Terminologia e Terminografia, embora não
deixe de observar que a Terminologia é o ponto de interseção entre
Lexicografia e Terminografia, ainda que sejam distintas como ciências.

A autora reforça esse enquadre teórico ao afirmar que uma


ciência se diferencia da outra porque uma obra lexicográfica recupera,
compila, armazena as unidades lexicais objetivando chegar aos seus
significados, explicando-os através de definições; enquanto que uma
obra terminológica ou terminográfica também recupera, compila e

1364
armazena, mas as denominações oriundas dos “recortes” científicos ou
técnicos. Dessa forma, não se pode dizer que a Terminografia substitui a
Lexicografia, mas deve-se considerar o que diz Krieger & Finatto (2004, p.
13): “... Ao lado de fundamentos teóricos, há também uma dimensão
aplicada [da Terminologia], refletida na produção de glossários e
dicionários técnicos, entre outros instrumentos de organização formal das
terminologias.”

Portanto, como ciência aplicada, a definição de Barbosa (2009, p.


7), “Ciência aplicada que elabora modelos que permitem a produção
de obras terminológicas/terminográficas no que tange a sua
macroestrutura, a sua microestrutura, ao seu sistema de remissivas”
favoreceu o alinhamento dessa investigação.

Estabelecidas as diferenças entre as duas ciências, procurou-se


descrever as especificidades relativas às macro e microestruturas
utilizadas em dicionários especializados e glossários. Para isso, o apoio
teórico de Rey-Debove (1995) e Cabré (1993) foram fundamentais, além
de outros estudiosos. Barros (2002, p.1) ao citar Rey-Debove, menciona
que a autora define dicionário e identifica alguns aspectos fundamentais
para isso, entre eles:

(...) o dicionário é uma obra de consulta em que o programa de


informação é constante e organizado por uma dada ordem; as
entradas são obrigatoriamente de natureza lingüística; o
dicionário possui um caráter didático; o enunciado lexicográfico
transmite informações sobre o signo-entrada; [...] normalmente,
as entradas destes dicionários seguem uma ordem puramente
formal; classificação pela forma (alfabética) ou pelo conteúdo
(sistemático): geralmente as classificações pelo conteúdo são
seguidas de um índice alfabético. A combinação destes dois
tipos de classificação é possível por meio de uma dupla
macroestrutura, ou seja, um agrupamento do conteúdo em um
verbete onde a entrada foi ordenada alfabeticamente. Neste
caso, a repetição da entrada é substituída no corpo do verbete
por um traço e os diferentes sentidos são indicados por um
número.

1365
2 METODOLOGIA

No decorrer da história da língua portuguesa pode-se constatar


que o idioma foi incorporando Unidades de Conhecimento Especializado
(UCEs) que denominam conceitos vinculados a várias especialidades em
algumas obras lexicográficas.

Com o status de Ciência, a Terminologia começa sua trajetória ao


lado da Lexicologia e Lexicografia, sobretudo nos cursos de Pós-
Graduação em algumas Universidades brasileiras, fortalecendo as
Ciências do Léxico.

Esta investigação, assentou-se no percurso metodológico de


caráter bibliográfico e qualitativo, pois teve o corpus definido a partir de
textos especializados impressos e eletrônicos como dicionários técnicos e
científicos prontos e publicados. Por tratar-se de uma pesquisa
qualitativa, a opinião dos pesquisadores está integrada ao estudo no que
tange às reflexões acerca do fazer terminológico e terminográfico.

Silva (2010, p. 101) fez os primeiros registros terminológicos em obras


lexicográficas portuguesas e destacou algumas que contem registros do
léxico temático ou de especialidade. São elas: Vocabulario portuguez e
latino (1712): Raphael Bluteau; Elucidário das palavras, termos e frases
(1798): Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo; Dicionário da língua
portuguesa (1789): Antonio de Moraes Silva; Novo dicionário da língua
portuguesa (1975): Aurélio Buarque de Holanda.

No percurso da Terminologia no Brasil, ao longo da história da


língua portuguesa, é possível se constatar que o português falado no
território brasileiro foi incorporando Unidades do Conhecimento
Especializado - UCEs que estão vinculadas a diversas áreas do

1366
conhecimento técnico. Essas UCEs, a princípio, estão presentes em
produtos lexicográficos, a exemplo do Novo dicionário da língua
portuguesa (1975), de Aurélio Buarque de Holanda, que registra grande
número de UCEs advindos de empréstimos recebidos do tupi e de línguas
africanas relativas à religião, fauna, flora, culinária.

No âmbito empresarial, a Terminologia tem sido aplicada com


finalidade normativa, principalmente entre os membros que compõem
as comissões da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) -
Normas de terminologia, juntamente com as normas de procedimento,
de especificações, de método de ensaio, de padronização, de
simbologia e de classificação elaborada por especialistas de várias áreas
(eletricidade, mecânica, veículos e autopeças, equipamento e material
ferroviário) (CUNHA, 1996).

Segundo Alves (1998), a Terminologia no Brasil começou a se


desenvolver e ser praticada de maneira sistemática a partir de meados
da década de 80. Em 1986 houve a criação do Grupo de Trabalho
Lexicologia e Lexicografia da Associação Nacional de Pós-Graduação
em Letras e Linguística (Anpoll). Em 1988, no III Encontro da Anpoll no Rio
de Janeiro – esse grupo de trabalho passou a denominar-se Lexicologia,
Lexicografia e Terminologia. No ano de 1990, o Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) publicou o Cadastro de
Fontes Terminológicas.

Quanto à formação em Terminologia, de acordo com Krieger &


Bevilacqua (2005) e SILVA (2010), alguns cursos dedicados ao ensino da
tradução já introduziram a disciplina Terminologia em sua grade curricular.
As Universidades pioneiras na oferta da disciplina Terminologia, sobretudo
nos cursos de pós-graduação em Linguística foram USP, UnB, UFRGS,

1367
UNESP/AR, UFPE. Posteriormente a UFC, UFU, UNESP/ASSIS/SJRP, UEM,
UFSCAR, UFMS também começaram a desenvolver pesquisas em
Terminologia, oferecendo este curso aos seus alunos pós-graduandos.

Na Cooperação Internacional – o Brasil tem participado


ativamente de comissões e associações, como a Subcomissão de
Terminologia do Mercosul, a Rede Iberoamericana de Terminologia
(RITerm), a Rede Pantalina de Terminologia (Realiter).

Atualmente há intercâmbios de pesquisadores brasileiros com


universidades e centros de pesquisa europeus e americanos.

O ano de 2004 foi marcante para as pesquisas terminológicas pela


publicação dos livros Introdução à Terminologia, de Kriger e Finatto e
Curso Básico de Terminologia, de Lídia Almeida Barros. Destacam-se,
ainda, as publicações dos nove volumes da obra as Ciências do Léxico
(GTLEX).

As perspectivas de trabalho em Terminologia ganharam espaço


em pesquisas e as línguas de especialidade tornaram-se importantes no
mapeamento do português falado no Brasil, a saber: Terminologia e
Cultura, Terminologia e Tradução, Terminologia e Neologia, Terminologia
e Informática, Terminologia e Dialetologia.

Os resultados das muitas pesquisas desenvolvidas determinaram


também uma ampliação de temas de interesse da terminologia,
desenvolvidos em dissertações e teses, tais como: estratégias tradutórias
em tratados internacionais franco-brasileiros; terminologia jurídica dos
tratados; a prefixação no vocabulário técnico-científico: um estudo
semântico; a terminologia do caju; a terminologia da cerâmica; a
terminologia da culinária; análise da formação de Unidades
Terminológicas Complexas; bases para um glossário dos termos da cana-

1368
de-açúcar; os termos da Lingüística da Enunciação; o léxico da indústria
moveleira; a elaboração colaborativa de terminologias para
intercâmbio e difusão de conhecimento especializado.

Considerando o exposto, procurou-se responder de que forma a


Terminografia pode ser refletida como parte prática da Terminologia. A
partir dessa questão, iniciou-se uma pesquisa sobre as disciplinas
consideradas ciências do léxico, digo, Lexicologia, Lexicografia,
Terminologia e Terminografia, observando de que forma se engajam e se
complementam nos estudos terminográficos, em especial a Lexicografia
e a Terminografia.

Com esse propósito, buscou-se na literatura outros estudos


semelhantes e as pesquisas se fixaram em produções terminográficas já
publicadas. As respectivas macro e microestrutura foram
comparadas. Após coletarem-se os dados necessários e organizá-los
sistematicamente, pode-se iniciar a interpretação das informações e a
análise dos dados.

Para a coleta dos dados, esta pesquisa buscou outros estudos que
culminaram em obras terminográficas como dicionários de
especialidade. As obras que constituíram fontes para nossas pesquisas
são de cunho terminológico e/ou socioterminológico, vinculadas ao
grupo de pesquisas GeoLinTerm, (Projeto Geossociolinguística e
Socioterminologia- Universidade Federal do Pará). Trata-se de um
macroprojeto que pesquisa a realidade léxica do Norte do Brasil,
coletando dados e traçando características nas áreas da
Geossociolinguística, da Socioterminologia e da Dialetologia. Encontra-
se sediado no Laboratório de Estudos da Linguagem da Universidade
Federal do Pará (UFPA), e é coordenado pelos professores Dr. Abdelhak

1369
Razky (UFPA/UnB), Drª Marilucia Oliveira (UFPA) e Dr. Alcides Fernandes
(UFPA).

A esse acervo foram adicionados outros dicionários de


especialidade que são de referência nacional e muito apoiaram este
estudo. Entre eles o Dicionário de Dermatologia (BARROS, 2009) e o
Dicionário Terminológico da Gestão pela Qualidade Total em Serviços
(SILVA, 2003).

Apesar das obras terminográficas não se restringirem apenas a


dicionários, nesta pesquisa toma-se o dicionário especializado como
modelo para a elaboração de uma obra terminográfica.

Devido ao grande número de textos terminográficos produzidos no


âmbito do GeoLinTerm/UFPA como produto de mestrado na área Análise,
descrição e documentação de línguas naturais, pertencente ao
Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado da Universidade
Federal do Pará (UFPA), para o corpus desta investigação foram
selecionados quatro dicionários, produzidos no período de 2010 a 2018:
Dicionário da Madeira, 2010; Dicionário do ciclo de produção do
alumínio, 2012; Dicionário Fraseológico do Futebol, 2017 e Dicionário do
Corte Bovino do Pará, 2018.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

O percurso dessa investigação segue a orientação de Krieger &


Finatto (p.50, 2004) ao considerarem que Lexicografia e Terminografia
têm a mesma finalidade de produzir dicionários, pauta-se, ainda, pela
certeza de que a primeira o faz na língua geral de um ou mais idiomas, e
a língua geral sempre apresenta termos de especialidade, mas estes não

1370
constituem seu objetivo. Diferente da Terminografia que prima pelas
linguagens de especialidade, pois parte da Terminologia referente a
algum domínio especializado. As obras terminográficas visam atender às
necessidades específicas de uma área, de determinado domínio
científico ou técnico e, por isso apresentam grande variedade tipológica,
uma vez que resultam dos diversos discursos daquele segmento em
análise.

Os estudos realizados evidenciaram que o dicionário ou qualquer


obra terminográfica resulta de um planejamento que tem como alicerce
a metodologia em que os objetivos específicos são diluídos de acordo
com a organização das diversas etapas do trabalho. Para isso, a
Terminografia sempre conta com o apoio da tecnologia desde a
compilação de um corpus, até o reconhecimento informatizado de
termos e da construção de bancos de dados eletrônicos.

Considerando que este trabalho objetivou abordar questões


relativas ao fato da Terminografia constituir-se em forma aplicada da
Terminologia e não apenas uma forma sinônima da Lexicografia ou
Lexicografia Especializada, buscou-se aqui apresentar algumas reflexões
a respeito de obras terminográficas, especialmente, os dicionários
especializados, no que tange a macro e microestrutura apresentadas
nesses produtos.

A análise das obras obedeceu a alguns critérios básicos


estabelecidos pela ISO (International Standardization Organization,
1990:10) como o nível de atualização lexical e à presença ou ausência
de definições e/ou dados enciclopédicos. A partir disso, pode-se
depreender que os tipos de obras terminográficas são classificados de

1371
acordo com a oposição dialética estabelecida por Muller (1968) entre
sistema, norma e fala.

De acordo com Barros (2002, p.2), Maria Aparecida Barbosa a partir


das considerações propostas por Muller,

(...) coloca as línguas de especialidade e as unidades


terminológicas ao nível da norma, mais especificamente da
norma de um universo de discurso. As relações acima são
representadas pelas três sequências sintagmáticas seguintes,
propostas pela autora: a. sistema - universo lexical - lexema -
dicionário de língua; b. norma (s) - conjunto-vocabulário /
conjunto terminológico - vocábulo/ termo - vocabulários
fundamentais / vocabulários técnico-científicos /
especializados; c. palavra - sistema de palavras - ocorrência -
palavra – glossário. (BARROS, 2002, p.2)

Ao colocar as UTs e línguas de especialidade ao nível da norma, a


pesquisadora considera que o dicionário de língua está no universo
lexical, no sistema linguístico, aquele que contém todas as unidades
lexicais e todos os vocábulos dos diferentes tipos de discurso; o conjunto
terminológico composto por vocábulo/termo, vocabulários
fundamentais e/ou vocabulários técnico-científicos ou especializados
encontra-se ao nível da norma(s) e engloba um ou mais universos de
discurso. Desse modo, o conjunto terminológico é um subconjunto do
universo lexical e o termo é sua unidade linguística padrão. Os
vocabulários técnico-científicos e especializados encontram-se neste
nível; e o que tange ao sistema de palavras, ocorrência/palavra/glossário,
encontra-se ao nível da palavra, da fala. O glossário aqui se insere ao
reunir as palavras-ocorrência de um texto específico.

1372
3.1 A ESTRUTURA DOS DICIONÁRIOS

O século XX, no Brasil, foi marcado pela produção dos dicionários


de língua geral. Os primeiros foram de produção brasileira e portuguesa
e todos os outros que vieram a seguir foram produzidos no Brasil. Os
Dicionários Especiais em língua portuguesa abrangem dicionários de
sinônimos, de verbos, de conjunções, de ortografia e tantos outros. Os
dicionários especializados são específicos de uma determinada área do
saber, técnica ou científica. O Diccionario Grammatical de João Ribeiro
(1906), por exemplo, é caracterizado como um dicionário especializado,
por apresentar uma seleção de termos da gramática portuguesa.

Desde então os estudos lexicográficos, mais especificamente a


lexicografia especializada atendeu às necessidades dos domínios de
especialidade até ocorrer à expansão dos estudos terminológicos,
quando houve o reconhecimento de que “Ao lado de fundamentos
teóricos, há também uma dimensão aplicada [da Terminologia], refletida
na produção de glossários e dicionários técnicos, entre outros
instrumentos de organização formal das terminologias.” (KRIEGER &
FINATTO, 2004, p. 13).

Apesar das diferenças tipológicas não serem de cunho universal,


Barbosa (2001, p. 39-adaptado), com essa abordagem, assim como
outros pesquisadores, definiu o se deve classificar como dicionário.
Seguindo essa orientação tipológica e visando cumprir com os objetivos
propostos, este estudo passou a observar como um dicionário
terminológico.

A estrutura de um dicionário especializado normalmente apresenta


três partes: textos externos, macroestrutura e microestrutura. Neste estudo,

1373
objetivou-se a caracterização das duas últimas etapas em dicionários
especializados, uma vez que se percebeu em muitas obras o cruzamento
dessas acepções.

A ordenação da macroestrutura em ordem alfabética é


considerada por HAENSCH (1982, p. 452) como o princípio de maior
importância. Porém, nada impede que essa ordenação seja feita por
famílias de palavras ou campos semânticos, desde que a primeira
entrada – um lema – seja seguida por suas derivações. Existem ainda
outras possibilidades de apresentação desse componente em obras
terminográficas.

Os dicionários que compõem o corpus aqui utilizado seguiram os


pressupostos de Cabré (1993, p. 329), com a apresentação em ordem
alfabética, mas que também poderiam ter seguido a ordem temática. O
essencial é que tanto na macroestrutura quanto na microestrutura,
segundo Krieger & Finatto (2004, p. 130), as necessidades dos usuários
sejam consideradas sem se negligenciar o objetivo final da obra
terminográfica.

A microestrutura observada nas obras durante a pesquisa constitui


a estrutura do verbete, a organização interna deste que seguindo os
postulados de Andrade (2000) deve apresentar basicamente alguns
paradigmas: informacional, definicional (obrigatório), pragmático e de
formas equivalente (em obras bilíngues, trilíngues etc). Entretanto, em
dicionários especializados, nem sempre essas informações são comuns a
todos os verbetes. Além da definição, geralmente há informações
enciclopédicas, históricas, avaliações, discussões, orientações ou
justificativas sobre o emprego do termo.

1374
As informações que compõem a microestrutura de um dicionário
terminológico são todas importantes, mas nenhuma é tanto ou quanto a
definição. É a partir dela que os verbetes são organizados em dicionários
especializados e o terminólogo/terminógrafo, usando seu conhecimento,
(re)significa uma UT.

Finatto (2001, p. 81) destaca que “a microestrutura ou verbete do


dicionário terminológico, também à semelhança do que ocorre na
lexicografia geral, pode ser considerada seu núcleo principal, quer por
seu conteúdo, quer por sua forma". Assim, a partir dessas considerações,
inicia-se o processo de descrição dos verbetes encontrados. Sem dúvida
que tais verbetes podem servir de modelo para futuros trabalhos que
objetivem a elaboração de obras terminográficas.

Como dito anteriormente e seguindo os postulados de


Finatto(2001), observou-se que em dicionários terminológicos a definição
é obrigatória na microestrutura do verbete e pode ser acompanhada de
informações enciclopédicas, históricas, avaliações, discussões,
explicações ou justificativas de usos para o emprego de determinando
termo; a indicação do termo que encabeça o verbete pode se
apresentar no plural, no feminino, verbos podem estar flexionados; é
comum a indicação de remissivas, com sinônimos, parônimos, antônimos,
termos relacionados ou aproximados, a fim de construir pequenos
conjuntos de termos interrelacionados, para complementar a
informação, ou pela necessidade de indicar a oposição; a
microestrutura do verbete terminológico traz pelo menos uma definição,
que corresponde a um ou mais significados do termo; em alguns casos,
como nos glossários de algumas normas técnicas, pode haver, apenas a
indicação de um sinônimo ou a apresentação de um contexto de uso do
mesmo; há casos na microestrutura do dicionário terminológico, em que

1375
o terminólogo/terminógrafo acrescenta à definição, ou apresenta como
nota explicativa, comentários e julgamentos que julga necessários ao
entendimento do verbete (ALVES COSTA, 2015, p. 88-89). A
representação do verbete configura-se de:

ENTRADA + CAMPO SEMÂNTICO + SUBCAMPO SEMÂNTICO + INFORMAÇÃO


GRAMATICAL + DEFINIÇÃO + CONTEXTO (FONTE) ± variante em português ±
variante em outra língua ± nota ± remissiva ± foto ± vídeo.

A microestrutura apresentada foi proposta por Faulstich (2010,


p.35), mas adaptada por Razky ao inserir a possibilidade de
segmentação das entradas em campos semânticos e subcampos
semânticos favorecendo a sistematização do léxico especializado, além
de direcionar à organização do mapa conceitual. Contempla, de forma
satisfatória, a descrição dos termos e fraseologias que compuseram os
dicionários pesquisados. Os itens antecedidos pelo símbolo de adição (+)
são obrigatórios nos dicionários analisados; já aqueles que são
antecedidos pelo símbolo de subtração logo abaixo de adição (±), não
são obrigatórios.

Sem dúvida que todas as decisões teóricas e metodológicas a


respeito da coleta de dados, extração das unidades terminológicas do
corpus, entradas, enquadramento conceitual, categorização, definição,
contextualização, variação, remissão e nota, deverão constar na
microestrutura da obra, que informará ao consulente por meio de Chave
de Leitura ou pelo próprio corpo do verbete.

Ainda no interior da microestrutura, segundo Bacellar (2002, p. 106-


107), as remissivas corrigem o isolamento das mensagens no nível da
microestrutura (reconstruindo seu campo semântico) e reúne entradas

1376
equivalentes, sinônimas. Nos dicionários terminológicos, as remissivas
costumam ser apresentadas pela etiqueta cf. As remissivas interligam
formas mais gerais com outras mais específicas. Enquanto as variantes
basicamente reúnem os sinônimos, as remissivas expressam conceitos
que interligam os hipônimos e hiperônimos.

Mesmo que um dicionário faça uso de todos os itens sugeridos


pelos autores, não se pode esquecer que tal referência é feita a partir da
possibilidade de inserção dos termos e fraseologias especializadas em
dicionário da língua geral.

Um dicionário terminológico deve proporcionar uma consulta


rápida que permita ao consulente chegar ao significado e às
características de uso de uma palavra, expressão ou frase peculiar a
determinado domínio. As entradas na obra terminográfica devem referir
conceitos peculiares a uma área científica ou técnica, ainda que sigam
as mesmas regras morfossintáticas, semânticas e pragmáticas do sistema
da língua portuguesa, o conteúdo e a forma de apresentação das
unidades terminológicas é diferenciado, uma vez que a definição
daquela unidade no texto especializado é que assume maior destaque.

A maioria dos dicionários terminológicos são eletrônicos ou


impressos, têm macroestrutura de ordem sistemática, seguindo o mapa
conceitual ou árvore de domínio, ou adotam a ordem alfabética,
podendo se apresentar também de forma mista. A microestrutura que
apresentam, ainda que poucos sejam eletrônicos, tem duas formas de
visualização: a comum, formatada assim como os dicionários impressos;
e a descritiva, em que a descrição do termo obedece a uma ordem
hierárquica.

1377
Considerando que tanto a macro quanto a microestrutura dos
dicionários devem resultar da combinação entre os objetivos pretendidos
pela obra e o público-alvo esperado, buscou-se o estudo realizado por
Oliveira; Razky (2016, p.287-310). Nele, os pesquisadores constataram o
pressuposto de que termos, fraseologias especializadas e variações
resultam sempre das percepções e dos usos que são realizados durante
o desenvolvimento das atividades técnicas ou científicas. Logo, a
importância, enfim, de obras terminográficas como um dicionário,
composto por termos e fraseologias especializadas, não só atende às
necessidades de um domínio especializado, mas pode ser um aporte
linguístico para o estabelecimento de relações científicas, técnicas,
comerciais, como também pode ser um registro de caráter eminente e
documental de um léxico de especialidade, ainda não realizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreenção das diferentes feições das terminologias, tornam-


se imprescindíveis à produção do conhecimento especializado e à
comunicação humana. É necessário o alargamento dos objetos de
estudo de natureza terminológica. No entanto, mais que a abrangência
temática, importa o aprofundamento e a complexidade dos estudos já
realizados e em desenvolvimento, fatores determinantes de um
reconhecimento cada vez maior de que esta área integra o campo das
ciências da linguagem no Brasil.

A luz dessas Ciências, as reflexões aqui expostas conduzem à


certeza de que a Lexicografia Especializada e a Terminografia
apresentam diferenças mais de cunho didático que prático. E as
fronteiras entre textos terminográficos são tênues, apesar deles ocuparem

1378
área bem restrita. Por isso, percebe-se que muitas vezes não há consenso
quanto à organização macroestrutural dos dicionários, do mesmo modo
que esse consenso não se mostra no nível microestrutural dessas mesmas
obras. Cabe, portanto ao terminógrafo/terminólogo tomar decisões de
acordo com o seu seus objetivos e seu público alvo. Portanto, os produtos
terminográficos são fundamentais para que o especialista possa
disseminar a informação técnico-científica, além de ser uma das
condições necessárias para o desenvolvimento desta. A partir disso
destaca-se a importância do conhecimento de que são muitos os fatores
que contribuem para a elaboração de um projeto terminográfico, além
de que as características tipológicas de uma obra dependem das
informações contidas em seus verbetes, do público que se quer atingir,
da extensão das entradas e outros.

Finalmente, nomear uma obra terminológica como Dicionário é


mais comum porque valoriza o produto em si. Mas um produto
terminológico como um dicionário especializado, por exemplo, deve ser
funcional, de modo que o especialista possa conciliar o conhecimento
técnico ou científico ao conhecimento linguístico da área em que atua.
Para se alcançar essa funcionalidade, alguns critérios importantes, mas
que ainda não são considerados, precisam ser adotados quando se
elabora um dicionário especializado, como conceituar com precisão
uma expressão idiomática e uma expressão fixa, de forma clara e ao
selecionar outras construções semelhantes, seguir a mesma
conceituação; inserir marcas de uso referentes a regionalismos ou de uso
geral; atualizar sempre a cada nova edição; de modo claro e completo,
apresentar significados; sempre indicar pelo menos um contexto que
exemplifique um termo ou fraseologia especializada inserida no
dicionário.

1379
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1384
TERTÚLIA LITERÁRIA DIGITAL E COLETIVA: RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA ESCOLAR PELO VIÉS FREIRIANO

Aparecida Dias Terras Gomes216


Roselita Soares de Faria217

RESUMO: Este trabalho apresenta um relato de tertúlia literária. Essa estratégia


faz parte do Projeto Político Pedagógico da escola onde aconteceu a
experiência. A tertúlia fora realizada, no ensino remoto, na turma do 6° ano, do
Ensino Fundamental, composta por 35 alunos. Os textos foram enviados aos
alunos via Whatsapp e Google Classroom. Eles tiveram a liberdade de
apresentarem outras sugestões de acordo com seus interesses, mas dentro do
mesmo gênero. Feito a escolha, selecionaram um trecho para compartilhar
com os colegas lendo em voz alta em uma aula virtual. Vinte alunos não
participaram devido à falta de acesso à tecnologia. Além da leitura do trecho
escolhido, o aluno justifica sua escolha, comenta a interpretação que faz do
trecho e relaciona o que foi lido com sua própria vida. Depois de encerrada
suas considerações, outro pode expor seu ponto de vista sem julgar o
comentário anterior. Nessa perspectiva, o aluno deixa de ser objeto e atua
como sujeito de sua aprendizagem. A professora é quem faz a mediação da
dinâmica, contudo, não consegue alcançar a todos devido à falta de recursos
tecnológicos. Percebe-se, a partir dessa prática, que: a tertúlia literária pode
construir impactos pedagógicos positivos no desenvolvimento da leitura,
permite que o estudante crie “elos” e se desenvolva como cidadão. Porém, o
poder público precisa garantir o acesso aos meios digitais para que não recaia
sobre o docente esta responsabilidade e não cause a exclusão daqueles que
não possuem acesso.

Palavras-chave: Tertúlia literária, Leitura digital, Estratégia pedagógica.

216 Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Professora da Rede Estadual


do Espírito Santo no CEEFMTI “Manoel Duarte da Cunha” e-mail:
cidaterras@hotmail.com
217 Mestre em Gestão e Avaliação da Educação Básica. Professora da Rede Municipal

de Belo Horizonte na E. M. “Gracy Vianna Lage” e-mail: rfroselita36@gmail.com

1385
INTRODUÇÃO

A tertúlia literária digital e coletiva é uma nova versão da tertúlia


que era promovida pela professora de forma presencial. Essa nova
alternativa tem suprido às necessidades de leitura dos estudantes de
forma virtual, pois assim, o aluno não fica sem exercer essa prática que é
essencial para compreensão das atividades escolares.

A tertúlia literária é uma metodologia de êxito que consiste em ler


um texto, selecionar um trecho e/ou trechos para no momento do
encontro marcado, fazer a leitura em voz alta do trecho escolhido e
também justificar a escolha do excerto lido, além de associá-lo com suas
vivências.

Essa metodologia é considerada exitosa, porque provoca o


alunado a interpretar de forma coletiva, a fomentar o diálogo, a
enriquecer a argumentação, a desenvolver a oralidade, a adquirir a
competência leitora, a aguçar a curiosidade, a contribuir com a
solidariedade, a promover direito à igualdade etc., lamentavelmente,
uma atividade como essa não atinge a todos devido à falta de acesso
aos meios digitais e à internet, em especial, daqueles em situação de
vulnerabilidade social, em função da falta de políticas públicas para a
educação.

Contudo, a professora e os alunos, do 6º ano, estão acostumados


a exercerem essa competência e ficar sem executá-la seria desfazer de
todo um trabalho que vinha sendo apreciado pelos estudantes. Essa,
então, fora uma solução para dar continuidade ao que já era feito pela
professora e solicitado pela instituição.

1386
Dessa forma, este relato pretende mostrar uma prática exitosa de
leitura, mesmo em meio às adversidades pandêmicas e a um momento
tão crucial para a educação com governos que estão alheios a situação
de pobreza, de falta de acessibilidade dos menos favorecidos.

Para tal, este trabalho tratar-se-á de: a) mostrar a metodologia


para este tipo de relato; b) fazer a fundamentação teórica por meio das
obras de Paulo Freire e outros colaboradores; c) desenvolver o relato de
experiência; d) apresentar os resultados e discussão; e) observar as
considerações finais acerca desse importante autor para a educação,
assim como para o desenvolvimento da criticidade, da problematização
e da libertação dos partícipes desse tipo de exercício, com vistas a
transformar o aluno em um ser protagonista, autor de sua própria história
e construtor de seu próprio aprendizado.

1 METODOLOGIA

Este trabalho caracteriza-se por ser uma pesquisa qualitativa cujo


procedimento técnico consiste em um relato de experiência de uma
professora e sua turma do 6º ano do ensino fundamental II, composta por
35 alunos, de faixa etária entre 11 e 12 anos de idade, com duração de
uma hora, em uma escola estadual, em Pedro Canário, norte do Espírito
Santo. A fim de, consolidar, enriquecer e aprofundar a competência e a
proficiência leitora por meio da metodologia, tertúlia literária. Além disso,
para a obtenção das informações fora realizada uma pesquisa de
revisão de literatura acerca da temática leitura.

1387
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Como aporte deste trabalho, apropriar-se-á de obras freirianas que


abarcam a temática “leitura”, intercruzando com concepções de outros
teóricos para sustentação deste. Paulo Freire (1987, 1989, 2003, 2012,
2018, 2020) com as categorias acerca - da importância do ato de ler, do
despertar para criticidade e problematização com vistas à liberdade do
alunado ao questionar e expressar suas ideias, assim como Rangel e Rojo
(2010), Magda soares (2004), Marieta Castle (2005) reforçando e
coadunando com Freire a respeito dessa importante temática. Além
disso, Marcel Mauss (2008) com a categoria de dar, receber e retribuir
para contribuírem com o debate.

Dessa forma, o presente trabalho não possui a pretensão de


apontar solução definitiva para a questão de leitura que é um dos
grandes problemas da educação. Muito pelo contrário, o que se
pretende é fomentar a reflexão crítica a respeito de uma temática de
grande relevância, como é a leitura, para a compreensão de todas as
demandas escolares.

3 RELATO DE EXPERIÊNCIAS

Tertúlia é o encontro de pessoas para dialogar e promover a


construção coletiva de significado, além da aproximação com a cultura
clássica universal e o conhecimento científico acumulado pela
humanidade ao longo do tempo. Favorece a troca direta entre todos os
participantes sem distinção de idade, gênero, cultura ou capacidade.

1388
Essas relações igualitárias envolvem a solidariedade, o respeito, a
confiança, o apoio, em vez da imposição.

O ato de ler foi durante muito tempo foi uma atividade de


exclusividade da elite, ou seja, de quem detinha o poder. A conquista
desse direito pela classe popular foi crucial para que subalternos
pudessem melhorar sua condição social e intelectual e, assim, lutar pelos
seus direitos, tais como: acesso à cultura, à modificação de sua vida
social e intelectual, a questionar determinadas estruturais pré-
estabelecidas, entre outros.

Em função disso, percebe-se, que o homem sem leitura é um


homem cego, pois vive a mercê do que os outros dizem sem a
oportunidade de comprovação. Por isso, veja o que diz Magda Soares
(2004).

O ato de ler tem sido ao longo da história uma prerrogativa das


camadas dominadoras; sua assimilação pela camada de base
popular denota a vitória de um elemento indispensável não
somente à preparação cultural, como ainda à modificação de
suas categorias sociais (SOARES, 2004, p. 48).

Segundo Paulo Freire (2012) em seu livro - Pedagogia do oprimido -


a libertação do homem, a fim de permiti-lo compreender a realidade, é
uma tarefa comum de educandos e educadores. Esse é um dos
principais elementos para que a educação seja real. Logo, a leitura é
uma ação essencial à educação problematizadora. O autor afirma que

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora,


que rompe com os esquemas verticais característicos da
educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem
superar a contradição entre o educador e os educandos. Como
também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo. Ninguém

1389
educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Os homens
educam entre si. Mediatizados pelo mundo (FREIRE, 2012, p.68).

Assim sendo, o relato desta metodologia, tertúlia literária, que tem


como foco a leitura e traz, exatamente, a experiência de uma prática
voltada pela ação dos alunos mediatizados por uma professora em uma
situação colaborativa, em que ambos estão na horizontalidade guiados
pelo processo de ensino e aprendizagem, imersos em uma via de mão-
dupla, em que, quem ensina também aprende, garantindo assim, a
prática da liberdade reverberada pela pedagogia dialógica.

Os textos literários foram enviados aos alunos pelo Whatsapp, pelo


Google Classroom e também de forma impressa pela escola. Os alunos
escolheram os textos para leitura com liberdade de poderem apresentar
outras sugestões de acordo com seus interesses, mas dentro do mesmo
gênero. Depois do texto lido, selecionaram um trecho para compartilhar
com os colegas lendo em voz alta, em aula virtual, pelo aplicativo
Google Meet. Devido à falta de acesso aos meios digitais, em média, 20
alunos não participaram. Além da leitura do trecho escolhido, o aluno
justificou sua escolha, comentou a interpretação que fez do trecho e
relacionou o que foi lido com sua própria vida. Depois que o aluno
encerrou suas considerações, outro pôde expor seu ponto de vista sem
julgar o comentário anterior. A professora fez a mediação da dinâmica
para garantir que todos tivessem vez e voz. Nessa perspectiva, o aluno
deixa de ser objeto e atua como sujeito de sua própria aprendizagem.

A professora enviou três contos, via Google Forms, para que os


alunos escolhessem um deles: Ali Babá e os quarenta ladrões, de autor
desconhecido; A doida, de Carlos Drummond de Andrade e Aladim e a
lâmpada maravilhosa, de Paulo Sérgio de Vasconcellos. O conto

1390
escolhido pela maioria dos alunos fora Aladim e a lâmpada maravilhosa,
presente no livro, As mil e uma noites. Os estudantes tiveram acesso ao
texto, leram e selecionaram um trecho.

No dia do encontro marcado para realização da tertúlia, a


professora fez a inscrição de pelo menos 40% dos alunos presentes, pois
é assim que se procede neste tipo de atividade. Um dos trechos mais
escolhidos pelos alunos fora: “(...) No dia seguinte, Aladim brincava com
outros meninos, quando de novo o mago se aproximou e lhe deu duas
moedas de ouro, dizendo: – Conte a sua mãe que esta noite eu irei visitá-
la e que ela deve preparar um bom jantar, pois comeremos juntos.”
(VASCONCELLOS, 2005, p. 80) Sobre esse excerto há um aluno que fez
uma interpretação inadequada, talvez por ter lido o texto de forma
mecânica sem fazer as devidas associações. Entretanto, não houve
julgamento, pois nessa estratégia de leitura, isso não é permitido.

Em contrapartida, houve outros alunos que interpretaram e fizeram


associações pertinentes, por exemplo, eles perceberam de imediato que
o possível tio, era um farsante. Assim, houve comentários e discussões a
respeito das temáticas: mentira, farsa, engano por aproveitar de pessoas
que vivem em condição de vulnerabilidade social – como era o caso de
Aladim – pessoas que se encontram nessa situação são muito assediadas
para fazerem “trabalhos ilegais” e exploratórios, muitos só percebem a
exploração tarde demais ou nunca percebem, isso acontece, devido à
falta de instrução. Assim, cada um contribuiu de acordo com suas
vivências, experiências de vida e conhecimento de mundo.

O interessante desta dinâmica é que a construção de sentido é


feita de forma homogênea e horizontal, já que a interpretação é
compartilhada por e com todos. Dessa forma, não há hierarquia de

1391
saberes conforme afirma Freire (1987, p. 68) “não há saber mais, nem
saber menos, há saberes diferentes”. E, é por meio desses saberes
diferentes que os alunos vão dialogando, desenvolvendo e (re)
construindo a completude de outros saberes.

Outro fragmento que chamou a atenção dos estudantes fora: “(...)


apareceu diante dele um gênio enorme, com um aspecto terrível, e
disse: – O que deseja? Estou pronto para obedecer! Sou escravo de quem
possui o anel. – Seja você quem for, faça-me sair deste lugar! – disse
Aladim.” (VASCONCELLOS, 2005, p. 83-84) Houve diversas contribuições
acerca desse excerto. A maioria dos alunos fez analogia com sua vida e
com o momento atual, de ensino remoto, por causa da pandemia da
COVID-19, em que eles estão impossibilitados de estudarem de forma
presencial. Então, quase que de forma unânime, disseram que se
tivessem a oportunidade de fazerem um pedido, pediriam: que houvesse
cura para o vírus da COVID-19, pois assim poderiam voltar a estudar de
forma presencial como sempre foi.

Segundo Freire (2020) em seu livro – Pedagogia da Autonomia:


saberes necessários à prática educativa - “ensinar exige alegria e
esperança” a pesquisadora concorda com autor, pois toda a prática
educativa precisa ser feita com alegria e com esperança para que
educador e educando possam caminhar juntos superando assim os
obstáculos que porventura surgirem como o do contexto atual,
pandemia da COVID-19, ambos vão juntos superando esses obstáculos e
criando esperança, pois segundo o autor, “a esperança faz parte da
natureza humana” (FREIRE, 2020, p.70).

O que chamou a atenção da pesquisadora foi o fato de que


grande parte dos alunos vive em situação de vulnerabilidade social e

1392
ainda assim, não pediram nada para si, pensaram na coletividade, em
uma forma de ajudar a todos. Isso mostra que a leitura não é só uma
tarefa escolar, ela vai, além disso. Por tudo que foi dito, fica evidente que,
a leitura leva o sujeito à reflexão, à construção do conhecimento.
Desenvolvendo assim, a criticidade, a problematização de assuntos
salutares para o debate dentro e fora de sala de aula.

Veja o que diz Freire (1989) sobre a prática de leitura em seu livro A
importância do ato de ler.

Não podemos duvidar de que a nossa prática nos ensina. E que


conhecemos muitas coisas por causa de nossa prática. Desde
muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos
rodeia. Mesmo antes de aprender a ler e escrever palavras e
frases, estamos “lendo”, bom ou mal, o mundo que nos cerca.
Mas este conhecimento que ganhamos de nossa prática não
basta. E é preciso ir além dele, conhecer melhor as coisas que já
conhecemos e conhecer outras que ainda não conhecemos
(FREIRE, 1989, p. 9).

Quando Freire cita o conhecimento apreendido por meio da


leitura, é esse conhecimento que faz com que uma atividade como,
tertúlia literária, seja uma metodologia criativa e exitosa. É por meio dela
que estudantes e professores refletem sobre o que estão lendo, fazem
associações, fazem considerações, criam empatias pelos personagens
por meio de suas vivências. Ademais, a partir dessa prática o professor
tem a oportunidade de conhecer melhor seu alunado.

O que se pretende com essa estratégia é que agucem a


curiosidade crítica dos educandos e que os textos não sejam lidos
mecanicamente. A interpretação não pode ser baseada na hierarquia,
nem em um discurso neutro e muito menos em um discurso manipulador,
pelo contrário, os discursos estimulam o educando a participação crítica

1393
e democrática no ato ler e de compartilhar conhecimento por meio da
junção de interpretações que vão se construindo ao longo da jornada.

Esse elo de solidariedade tem produzido efeitos dadivosos acerca


da categoria de Mauss (2008, p. 34) por meio da “ação de dar, receber
e retribuir”. Essa ação é essencial em todos os ambientes, em todos os
relacionamentos, em todas as pessoas e em todas as sociedades para
que se criem laços e se desenvolvam como cidadãos.

Ademais, essa ação de dar, receber e retribuir faz com que uma
rede de solidariedade seja alcançada de forma horizontal na construção
do conhecimento baseado no respeito mútuo, na igualdade de
diferenças, na associação de repertório cultural, na equidade. Uma das
ações promovidas por essa troca é o movimento de partilha sem
interesse próprio, movido apenas pelo intuito da solidariedade e
empatia.

Segundo Freire (2003, p. 9) é lendo que se têm respostas para todas


as perguntas, não só para responder aos professores quando lhes são
perguntados como também para entender o mundo que os rodeia, o
autor diz que “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Essa
fala dele reflete perfeitamente na interpretação que os alunos fizeram
acerca do conto lido, Aladim e a lâmpada maravilhosa, quando
associaram uma passagem do conto ao atual momento vivido por todas
as pessoas do mundo, sobretudo estudantes e professores, por conta da
COVID-19.

Ainda sobre isso, é válido dizer que o aprimoramento da leitura


pressupõe um leque de conhecimentos que reflete nas situações
cotidianas. Sem contar no benefício instigante que causa no indivíduo,
pois é a leitura que contribui para a realização da aprendizagem, do

1394
enriquecimento do vocabulário, e ainda torna o ser compreensivo e
crítico ao ponto de manifestar suas opiniões ao longo da vida. Rangel e
Rojo (2010) coadunam com as ideias de Freire quando afirmam que

Na leitura, não age apenas decodificando, isto é, juntando


letras, sílabas, palavras, frases, porque ler é muito mais do que
apenas decodificar. Ler é atribuir sentidos. E, ao compreender o
texto como um todo coerente, o leitor pode ser capaz de refletir
sobre ele, de criticá-lo, de saber como usá-lo em sua vida
(RANGEL & ROJO, 2010, p. 86).

Dessa forma, pode se afirmar que a leitura fora processada pelos


alunos, pois eles souberam se posicionar sobre o tema lido, certamente,
entenderam o contexto e fizeram associações coerentes para o
momento vivido. Por isso, compreende-se que a leitura é fundamental
para o desenvolvimento social e intelectual do educando.

Além disso, é necessário difundi-la desde cedo na vida da criança


para ir adquirindo o hábito diariamente conforme afirma Castle (2005):

Leio para meus filhos não em função das aulas sobre a segunda
infância da faculdade (não as tive), ou porque o pediatra tenha
nos recomendado isso (ele não o fez), mas porque meu pai lia
para mim. Portanto, quando chegou minha vez, eu sabia que
havia uma tocha a ser passada de uma geração para outra
(CASTLE, 2005, p. 20).

Infelizmente, nem todos os alunos tem pais ou responsáveis com


esse compromisso firmado. Talvez em função do trabalho, isto é, da lida
do dia a dia ou da falta de experiência com a leitura. Não cabe a
pesquisadora julgar. Contudo, é evidente, que essa habilidade quando
é passada de uma geração para outra, os resultados são positivos. Pois a

1395
leitura liberta o leitor das falácias enganosas da vida. Conferindo, assim,
a prática da liberdade.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante de tal situação, ficou evidente que a leitura é de suma


importância para a compreensão da vida e do mundo, sobretudo, a
leitura feita em voz alta, pois ela influencia mais as pessoas a terem um
prazer maior pelo ato de ler, e ainda, auxilia o aluno para que leia com
fluência, sem gaguejar. É um comportamento social que deve ser
passado de geração a geração e que os mediadores de leitura devem
usar em sala de aula seja ela presencial, seja virtual. “Leia em voz alta na
turma; coloque os alunos para lerem uns para os outros, porque os
próprios alunos são muito exigentes, mas são solidários e se ajudam
mutuamente quando estimulados” (RANGEL; ROJO, 2010, p. 99).

Ainda segundo os autores, a leitura em voz alta é uma excelente


estratégia, entretanto o aluno não pode ser pego de surpresa, pois o
planejamento é um momento essencial tanto para o professor quanto
para o aluno que quer ter sucesso no meio acadêmico.

Assim, para se realizar uma tarefa de leitura, é preciso determinar


os objetivos, ter isso de forma clara e evidente para que, da mesma
forma, fique claro para o aluno o que se pretende com a prática
específica. Pois um sujeito que lê abrange o mundo que o cerca e aguça
sua capacidade de questionar, criar hipóteses e argumentar com mais
propriedade e confiança. A leitura pode ser considerada como uma

1396
preciosa ferramenta facilitadora do desenvolvimento intelectual,
instrucional e social dos educandos.

A leitura precisa ser entendida como elemento indispensável na


edificação do conhecimento, é necessário que a sociedade enxergue a
leitura sob esse prisma. Neste contexto, a escola torna-se o palco ideal
para essa conscientização, e o professor assume a posição desafiadora
de mediador dessa prática, concomitante com o trabalho desenvolvido
por toda a comunidade escolar, inclusive, a família. A importância dessa
postura profissional é irrefutável no ambiente escolar, mesmo que esta
seja uma tarefa difícil.

A presença dos textos se fez e se faz notório em diferentes vivências


do educando, e nem por isso, é considerada estimulante ou instigante
por uma boa parte dos alunos. Com a interferência digital, e a dinâmica
dos acontecimentos, a leitura muitas vezes não acompanha todas as
novidades. Especialmente no contexto educacional, observa-se que os
currículos escolares necessitam urgentemente de reformulação para que
se adaptem aos interesses dos alunos.

Sendo assim, cabe aos responsáveis pela preparação dos


currículos se atentarem para essas questões assim como os professores
refletirem acerca do que ofertar ao seu alunado para que a ação de ler
não se torne algo mecânico, muito menos sem interesse. Por isso, é
essencial que haja diálogo entre professor e aluno para que juntos
reflitam na construção e democratização dessa estratégia pedagógica.

Em função disso, não se pode haver reflexão e atuação sem que o


homem se aproxime da realidade verdadeira e concreta. Freire (2018) em seu
livro – Educação e mudança - define compromisso verdadeiro como sendo
aquele ligado à solidariedade, não devendo ser um ato passivo, e define

1397
compromisso profissional como uma dívida do homem para com a sociedade,
assumida à medida que se fez profissional.

Por isso, a educação precisa ser uma troca de compromisso entre


educadores e educandos. Essa aliança denota uma visão desenvolvida
da prática pedagógica em que a educação está na intimidade das
consciências dos envolvidos e é movida pela bondade dos corações.
Segundo Freire (2012) é na teoria dialógica da ação em que os sujeitos
se encontram para a transformação do mundo em colaboração. E, já
que a educação pode fazer refletir, problematizar e transformar o
mundo, também pode impulsionar as mudanças sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aluno novo, a aluna nova bem como homem novo, a mulher


nova estão inseridos em uma nova forma de educação. Umas das
qualidades mais importantes do aluno, da aluna, do homem e da mulher
nova é a certeza de que tudo que é novo vai ficar velho se não se
renovar. A educação tem de ser nova também, uma educação pelo
trabalho que estimule a colaboração e não a competição, que dê valor
à ajuda mútua e não ao individualismo, que desenvolva a criatividade e
não a passividade, que se fundamente na unidade entre a prática e a
teoria, entre o trabalho manual e intelectual, que não favoreça a
mentira, as ideias falsas e a exclusão. Uma educação política, que não
tenta passar por neutra.

Assim é a leitura do mundo na perspectiva freiriana e significa a


problematização da realidade para a sua transformação, a crítica
acerca da injustiça com o próximo e/ou com o que não é justo. A

1398
educação libertadora precisa permitir a liberdade dos sujeitos para
vislumbrar a prática da liberdade carregada de esperança, de
boniteza, de utopia.

Diante de tudo que foi dito, percebe-se que a educação


libertadora fora promovida por meio da metodologia, tertúlia literária.
Logo, nessa prática em que todos têm o direito à leitura e à palavra, isto
é, todos têm vez, voz e podem se expressar sem medo de julgamento
com a certeza de que está sendo ouvido e que sua participação é
essencial para a construção e democratização do conhecimento.

REFERÊNCIAS

CASTLE, M. Ler e reler o mundo – Pátio, revista pedagógica. ArtMed.


Fev/abril – 2005. Disponível em: <
http://www.espcex.eb.mil.br/downloads/Revista_Pedagogica/Revista%
20Pedagogica%202017.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2021.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,


1987.

____________. A Importância do Ato de Ler - em três artigos que se


completam. 23. ed. São Paulo: Cortez Editora & Autores Associados, 1989.
(Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, v 4)- 49 páginas. Disponível em
<://educacaointegral.org.br/wp-
content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf>. Acesso em: 01 jun.
2021.

____________. A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Moderna, 2003.

1399
____________. Educação e mudança. Tradução: Lilian Lopes Martin. 39 ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. 63 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020.

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Tradução: António Filipe Marques.


Lisboa: Edições 70, 2008.

RANGEL, E. O.; ROJO, R. H. R. Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da


Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. V.19.

Resumo do Livro: Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire). Pedagogia ao


Pé da Letra, 2012. Disponível em:
<https://pedagogiaaopedaletra.com/resumo-livro-pedagogia-do-
oprimido-paulo-freire/>. Acesso em: 5 jun. de 2021.

SOARES, M. Alfabetização e Letramento: Caminhos e descaminhos.


Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004. Disponível em: <
https://www.slideshare.net/naysataboada/alfabetizao-e-letramento-
caminhos-e-descaminhos-71936117>. Acesso em: 22 jun. 2021.

VASCONCELLOS, P. S. de. As mil e uma noites: contos selecionados.


In._________. Aladim e a lâmpada maravilhosa. São Paulo: Editora Sol,
2005. v. 1. P.76-100. Disponível em:
<https://www.objetivo.br/arquivos/livros/as_mil_e_uma_noite.pdf>.
Acesso em: 22 jun. 2021.

1400
UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A NOÇÃO TEMPORAL EM
A HORA DA ESTRELA O PERÍODO PANDÊMICO: COMO OS DIAS
PASSAM A PARTIR DA MONOTONIA

Brenda Pereira dos Santos 218


Igor Rocha Camargo 219

RESUMO: A Hora da Estrela, livro publicado em 1977, é um dos livros mais importantes de
Clarice Lispector. A obra abrange amplas reflexões, que vão desde assuntos
predominantes na sociedade à concepções filosóficas, com uma abordagem temporal
muito importante; Macabéa, personagem principal, lida com seus dias de forma
monótona, de forma a não pontuar em sua rotina passado e futuro, o presente se repete
de modo cotidiano. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo relacionar a
construção temporal à realidade pandêmica vivida por todos os brasileiros. Assim, os
principais autores utilizados para fundamentar teoricamente nossas reflexões foram:
Nunes (1988), Candido (2004), Oliveira (2020), Cavalcante (2020), Santos e Oliveira (2016),
Lima (2020); dentre outros. A metodologia empregada nesta pesquisa foi de
abordagem qualitativa, com viés descritivo e de cunho bibliográfico. Logo, os resultados
obtidos foram os de que, após fazer uma análise mais profunda sobre a concepção
temporal do texto, observa-se que tanto na obra literária quando no dia a dia
pandêmico há convergências, ainda que as realidades abordadas sejam distintas (real
e ficcional), o mecanismo de rotina criado de forma a sustentar um sistema de apatia,
afetando diretamente os sentidos psicológicos, ou fazendo uma abordagem mais
contextualizada inerente à saúde mental.

Palavras-chave: Clarice Lispector, Pandemia, Literatura Brasileira.

Graduada do Curso de Letras da Universidade Federal do Triângulo Mineiro- UFTM.


218

Email breendapsantos@gmail.com;
219Bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba - UNIUBE, Pós-graduando em
Direito e Processo Civil pelo Centro Universitário União das Américas - UniÁmerica,
Graduando do Curso de Letras Português e Inglês da Universidade Federal do Triângulo
Mineiro - UFTM. Pesquisador nas áreas de Direito e Literatura, Análise do Discurso, Ensino
de Língua Inglesa e Educação de Surdos. E-mail: igorrochacamargo@gmail.com.

1401
INTRODUÇÃO

Estudar literatura é algo imprescindível para a nossa sociedade e,


como destaca Cândido (2004), ao conceber a literatura como uma
necessidade universal, entendemos nela uma satisfação que constitui um
direito.

Partindo desse pressuposto, ressaltamos a necessidade de se


pesquisar e observar como a literatura se prefigura em amplos contextos,
sejam eles teóricos ou sociais, convergidos em um único sentido - que é
justamente o de criticar ou refletir.

Nesse viés, escolhemos para a nossa análise a obra A hora da


estrela, publicada pela primeira vez em 1977, de Clarice Lispector, que
traz, justamente, a partir da análise da crítica literária, um encontro entre
o social e a teoria, já que dentro da obra podemos observar noções
como a metanarração e críticas sociais, com referências à época em
que o livro foi publicado.

Ao escolher uma obra que se passa em um outro período,


buscamos fazer analogias que demonstrem como a literatura pode ser
atemporal e trazer reflexões que perpassam contextos de diferentes
sociedades.

Nesse sentido, encontrar fragmentos na obra que possam


conectar ou assimilar a ideia de monotonia à realidade vivida
atualmente, não é de certa forma, buscar refúgios na literatura, mas sim,
mostrar a partir do próprio texto como as relações de significante podem
transcorrer a própria ideia de criação do escritor.

Destacamos assim, que ao escolher o objeto de análise do nosso


trabalho, também delimitamos nossos objetivos, quais sejam, analisar, a

1402
partir de uma noção temporal, a relação entre a obra A hora da Estrela
e o período pandêmico dentro do contexto da monotonia, bem como
apontar no texto fragmentos que possam relacionar/comprovar como a
obra se converge ao período de isolamento social, na medida em que
abarca e reflete sobre como a monotonia atinge os brasileiros,
observando os períodos em que livro e pandêmia ocorreram.

Para atingir nosso intuito, salientamos nossa metodologia, que


consiste em uma análise qualitativa, com um fim descritivo, de cunho
bibliográfico. A respeito do processo, dissertamos que nossa pesquisa
consiste em fazer uma revisão de textos teóricos, de autores como Lyra e
Ribeiro (2008), que versam sobre a temática da narrativa e a concepção
de tempo, elementos essenciais para nossa pesquisa e Lima, que faz um
panorama a respeito do período pandêmico, outro foco de nossa análise.

que possibilitem refletir, de maneira mais aprofundada, acerca da


temática abordada, que neste caso é a noção temporal pautada
através da monotonia, em convergência destacamos a leitura e análise
da obra de Clarice Lispector, para observação e retirada dos fragmentos
necessários para comprovação efetiva de nossa tese.

Nessa perspectiva, salientamos os resultados a serem enfatizados,


que é justamente a comprovação, a partir de trechos do livro, que
demonstram como uma produção de 1977 conflui e se alinha a uma
temporalidade tão distinta, que delimita a diferença de 44 anos desde a
primeira publicação da obra, até o momento atual.

Os resultados obtidos são muito positivos, já que possibilitam uma


análise profunda da temática, com base em toda a fortuna crítica
escolhida para reflexão e dos fragmentos extraídos. A pesquisa, em suma,

1403
consegue atingir seu objetivo, na medida em que a analogia se constrói,
dentro da nossa proposta.

Assim, nossa intenção não é apenas contextualizar, mas mobilizar


o leitor para como a literatura pode ter um papel importante socialmente,
já que possibilita estudos muitos ricos, que podem ser produtos tanto para
o meio literário, como também para outras áreas, como neste caso, a
psicologia.

1 METODOLOGIA

Nossa metodologia se constitui através de uma pesquisa de


abordagem qualitativa, de objetivo descritivo, cunho bibliográfico. Para
pautar nossa escolha, ressaltamos Minayo (2012, p. 21), que pontua:

A pesquisa qualitativa “responde a questões muito particulares''.


Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade
que não pode ser quantificado”. Cabe salientar, que as
pesquisas qualitativas não se baseiam em conclusões
quantificáveis, pois está ligada a resultados subjetivos, por se
pautar em questões sociais.

Em conseguinte, também destacamos a fala de Gil, que pontua


que os trabalhos de um análise descritiva, investigam características
específicas de determinado grupo ou fato, e logo as comparam (GIL,
2008). Ele também disserta sobre as vantagens desse modelo, tratando
do fato de que, através dele, se pode alcançar um número maior de
fenômenos.

Uma das vantagens desse modelo de investigação, se dá pelo


fato de que o investigador pode atingir uma abrangência maior

1404
de fenômenos, pois “esta vantagem se torna particularmente
importante quando o problema de pesquisa requer dados muito
dispersos pelo espaço” (GIL, 2008, p. 50).

A partir dessa breve contextualização, pontuamos que nossa


investigação se deu através da escolha da temática a ser abordada,
neste caso a noção temporal, a partir do conceito de monotonia. Por
conseguinte, escolhemos nosso material para análise, que foi a obra A
Hora da Estrela, de Clarice Lispector, e o momento pandêmico, vivido
atualmente por todo o mundo.

Para fundamentar nossas ideias, procuramos autores que


pudessem abranger conceitos como tempo, monotonia, literatura, entre
outros aspectos referentes à nossa observação analítica.

Por fim, registramos nossos resultados, por meio de fragmentos do


próprio texto, em confluência das ideias já apresentadas a partir do
próprio referencial teórico.

2 FORTUNA CRÍTICA

Entendemos a literatura como algo para além de um produto da


sociedade, feito puramente com o objetivo de ser um hobbie. Ela, por si
só, se constitui como um mecanismo de reflexão, não somente do meio
em que vivemos, sendo grande utensílio para análise histórica, como
também de experiência por meio da construção do eu, através de sua
relação com o mundo.

o processo que confirma no homem aqueles traços que


reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição

1405
do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento
das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do
mundo e dos seres, o cultivo do humor. (CANDIDO, 2004, p.180).

Neste contexto, destacamos que o estudo da literatura se abrange


para além do âmbito da aquisição de conhecimento; ela configura no
homem um processo que coloca em vão todos aqueles traços que
julgamos serem essenciais no homem. E, como apontaremos nesta
pesquisa, pode se relacionar a diversos contextos e estruturas.

De forma que o comparatista não está mais diante de blocos


fixos, fora de ordem e imóveis, que aguardam o arranjo definitivo
e a compreensão ideal. O comparatista está diante de objetos
culturais complexos, que esteticamente dizem de si, e que são
também discursos do silêncio e da verborragia, documentos da
cultura e da barbárie, processos de produção e recepção
atrelados aos seus contextos. Antes forçosamente liso e
imaculado, o objeto cultural é considerado em suas marcas e
sulcos. (KLEIN, 2010; p. 395).

Salientamos, a partir desse apontamento, a importância da


literatura comparada, que busca justamente permitir a reflexão da
literatura, em convergência a outros aspectos e vieses, demonstrando
como o texto pode valer por si só, mas também pode se relacionar a
outras concepções, se adaptando, reformulando e reconstruindo,
independente de tempo e sociedade.

Assim, ressaltamos a obra A hora da Estrela, objeto de análise


desta pesquisa. Sua publicação ocorreu em 1977, sendo esta
considerada uma das obras mais importantes de Clarice Lispector. O livro
conta com 87 páginas e, apesar de curto, traz em si cismas muito
relevantes acerca da sociedade da época, que se encaixam
perfeitamente no tempo atual.

1406
Quando LISPECTOR se dedica a falar sobre a vida de uma mulher
nordestina, a partir do ponto de vista e olhar de outro sujeito, ela traz
pontos até então esquecidos pela elite, público alvo de suas obras. O
apagamento de sua existência, sua redução a si mesma e a falta de
visibilidade diante das pessoas que a cercavam, denotam a Macabéa,
que até a página 43 não tem seu nome citado, um caráter de vítima,
tanto de si mesma, por ser quem se é, quanto da comunidade, por não
ter culpa de ser e viver presa a essa existência inútil, monótona e rasa,
que diante dos outros, não possui utilidade alguma.

Clarice em sua obra trata de muitos assuntos como a


metanarrativa, além de trazer questões filosófico-existenciais; assim,
seriam necessárias amplas pesquisas para adentrar mais a fundo nesses
vieses. Nosso objetivo, entretanto, é focar na questão da narrativa a partir
da noção temporal, construída por meio da monotonia.

Nesse sentido, destacamos como a autora consegue criar, de


forma magnífica, um texto que provoca em seu leitor diversos
sentimentos, como pena, nojo, inquietação, auto reflexão e tantos outros.
Ela, em A Hora da Estrela, causa em que a lê o mesmo que Rodrigo S.M.
sente ao descrever a vida de Macabéa. Observamos, por essa lógica,
uma aproximação ainda mais forte com o narrador, ao compreender sua
realidade não tão distante da nossa.

A narrativa articula, dessa forma, a experiência individual com a


história cultural da humanidade, tornando-a partilhada. Tal
articulação requer que o tempo humano, na sua forma narrativa,
selecione e organize os fatos da experiência. Esta seleção faz
com que a ação narrada possa ser, concomitantemente,
entendida como individual e única, mas também coletiva,
porque inserida em contextos simbólicos que pertencem à
história cultural da humanidade.. (LYRA E RIBEIRO, 2008; p.71).

1407
Consideramos assim, que a narrativa é o ponto preponderante
da obra, já que todo o enredo é construído por meio da narração de
Rodrigo S.M. Como o narrador descreve, a narrativa vai além de sua
significação primária, se concebendo, no decorrer das páginas, como
um desabafo. “Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida
primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui
a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos.”
(LISPECTOR, 1977; p. 13).

Outra função assumida pelo narrador é a função modalizante,


referente aos sentimentos causados pela história no narrador; há
ainda a função avaliativa ao analisar as considerações de
Rodrigo S. M quanto a história ser feita de ‘‘relatos ralos’’; a
função explicativa é outra muito frequente na obra, visto que
toda a narrativa é constituída de uma interrupção de S.M., ao
explicar ao narratário sobre o enredo da história; outra função
ainda é a generalizante ou ideológica exatamente pelas razões
já descritas de o narrador expressar seu mundo particular na
narrativa. (FERREIRA, 2020; p.15).

Partimos, diante dessa abordagem, para a delimitação do tempo,


aspecto essencial no que diz respeito a nossa pesquisa, que se constrói
por meio da noção de monotonia. Para versar sobre o tema,
primeiramente abordaremos a relação entre o tempo físico e o tempo
psicológico, que são muito pertinentes para nossas análises.

Enquanto o tempo físico se traduz com mensurações precisas,


que se baseiam em estalões unitários constantes, para o
cômputo da duração, o psicológico se compõe de momentos
imprecisos, que se aproximam ou tendem a fundir-se, o passado
indistinto do presente, abrangendo ao sabor de sentimentos e
lembranças, “intervalos heterogêneos incomparáveis”. (NUNES,
1988; p.19).

1408
Como Nunes ressalta, há uma divergência entre esses tempos,
sendo o físico mais preciso e o psicológico impreciso, fundindo-se entre
passado e presente. Essa é justamente a construção de tempo notada
na nossa obra de investigação, já que o narrador descreve a história de
Macabéa, em no tempo físico presente, enquanto traz memórias que
completam sua narração. Dessa primeira ideia de tempo como um
fenômeno da alma, decorre a segunda que diz que, se o tempo se passa
na alma, ele não pode existir como três: passado, presente e futuro, (LYRA
E RIBEIRO, 2008; pg.67)

Percebemos, por esse viés, que há uma mescla entre o concreto


e o psicológico. Enquanto conta sobre sua rotina entediante e desabafa
sobre sua existência e lugar no mundo, o narrador também procura no
passado pontos, para explicar tanto sobre a vida de Macabéa, como
justificar os fatos cotidianos que decorrem no cotidiano de ambos.

É importante também estabelecer a ideia de que há a presença


de uma metanarrativa, o que permite ao narrador contar e dirigir a
história, através de intervenções mais diretas, enquanto reflete sobre sua
própria escrita. Se constata, assim, que ele anuncia, a todo momento,
como nos trechos: “…. o que eu escreverei, sei que estou adiando a
história, mas a história de Macabéa tem que sair, senão eu explodo…”
(LISPECTOR, 1977), que irá finalmente escrever a história, enquanto ele

narra, de fato, a dita história. Ele assume, nessa perspectiva, funções


variadas no texto, intercambiáveis e complementares.

Ainda discorrendo sobre a concepção de tempo, pontuamos


como a narrativa de Rodrigo S.M. transita entre passado e presente,
sendo discorrida a partir da ideia de que a história de Macabéa tem um
começo, um meio e um fim, enquanto a sua é observada durante um

1409
presente, que se refaz e se reconstrói em si mesmo, já que os dias que se
passam são monótonos, presos na rotina e repletos de atitudes que
figuram um cenário de repetição.

“Como pensar o hoje, o nosso, o nosso hoje aqui e agora? Para


responder a essa pergunta temos que de algum modo colocar a
pergunta do que é pensar”. (CAVALCANTE, 2020; pág.10). A partir da
contemplação da autora salientamos que o que S.M faz é justamente
esse trabalho de analogia entre o pensar e o sentir. “ Pensar é um ato,
sentir é um fato”. (LISPECTOR, 1977, pg. 11) É importante frisar que, ainda
que a vida da nordestina se construa em uma linha temporal com
começo e fim, toda sua trajetória também é permeada de monotonia.

Em decorrência dessa explicação sobre a existência,


encontramos na existência autêntica a angústia, o único meio
capaz de reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade
como ser e então, poder recolher os seus pedaços que foram
reduzidos pela imersão na monotonia e indiferença da vida
cotidiana. Ela não é um sentimento, mas a disposição
ontológica fundamental. (SANTOS E OLIVEIRA, 2016; p.78).

Há nessa trajetória, uma existência que se angustia em seu estado


pleno de sobrevivência, sendo reduzida, como apontam SANTOS E
OLIVEIRA (2016), a uma imersão na monotonia e indiferença da vida
cotidiana. O grande clímax da obra é realizado, assim, por meio dessa
quebra de expectativa, tanto de Macabéa, quanto do próprio leitor, que
entende a ida na cartomante como a grande virada na vida da
personagem, de forma positiva.

Dessa forma, a personagem, que antes se via perdida na multidão,


como uma qualquer em meio a tantos, tem finalmente seu momento de
triunfo, como é possível notar em “só que agora pelo menos a espiavam,

1410
o que lhe dava uma existência” (LISPECTOR, 1977, pg. 81). Macabéa
estava, enfim, livre. Aqueles pequenos momentos que lhe permitiam
minúsculos instantes de liberdade, eram apenas um presságio de seu
grande momento de emancipação, tanto de si quanto de nós, os outros.

Podemos dissertar que o narrador evidencia, ainda na página 29,


que o triunfo da vida se figura na morte, como vemos no trecho: “Pois na
hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante
de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem
agudos sibilantes.” (LISPECTOR, 1977, pg. 29). A morte, neste contexto do
tempo, é um ponto de libertação, pois a vida em si só pode oferecer a
singularidade da repetição e da monotonia.

A partir desse conceito de tempo, observamos também como


ocorre a relação entre os indivíduos, processo fundamental no meio em
que vivemos. A interação com o outro é, nesse sentido, muito importante
para que possamos compreender até que ponto o isolamento atinge a
sociedade e os sujeitos integrantes dela. “Em Psicanálise o afeto possui
relação com a pulsão e ela será responsável em dar o tom qualitativo e
quantitativo para as vivências psíquicas do sujeito”. (OLIVEIRA, 2020; pág.
22).

Por conseguinte, tratamos sobre a concepção do tempo, em


convergência a noção de monotonia, dentro do contexto do período
pandêmico. Observamos, diante da mudança repentina da rotina dos
brasileiros, uma necessidade de adequação, juntamente a uma brusca
alteração na saúde mental de muitos.

As publicações advertem à população que, em situações de


distanciamento e isolamento, algumas formas de mal-estar são
comuns, como a sensação de impotência, tédio, solidão,

1411
irritabilidade, tristeza e medos diversos (de adoecer, morrer,
perder os meios de subsistência, transmitir o vírus), podendo levar
a alterações de apetite e sono, a conflitos familiares e a excessos
no consumo de álcool ou drogas ilícitas. (LIMA, 2020, p. 6).

O fato é que, com a pandemia e as situações de distanciamento


e isolamento, as pessoas passaram a ter algumas formas de mal estar,
como tédio, solidão e tristeza. Esses sintomas, ainda que fortemente
presentes nesse determinado contexto, se relacionam de maneira
demasiada à construção feita por Clarice, em sua obra A hora da Estrela.

Assim, obrigados a uma nova organização de vida, em


isolamento social, as famílias/pessoas passam a incorporar uma
realidade nunca vivida anteriormente por esta geração, com
uma mudança significativa nas rotinas das casas, gerando
questionamentos nos profissionais da área da saúde mental:
Como as pessoas reagem afetivamente com essa nova forma
de viver a partir da pandemia de convid-19? (OLIVEIRA, 2020;
p.21).

Essa nova realidade, provocou nos brasileiros, diversas reações,


que acabaram por impactar na maneira de se relacionar. “Facilmente
conseguimos transpor os sentimentos descritos por Freud para o período
da pandemia de covid-19, pois de fato algumas questões ficam muito
incertas quanto ao futuro, retomada da vida…” (OLIVEIRA, 2020; pg.21).

Todas essas questões levaram a problemática da pandêmica, e


tornaram os dias de isolamento, uma tortura, já que houve uma quebra
de relações, que possibilitava para muitos, uma fuga de problemas
internos.

Ao se deparar com a necessidade de se ter como única


companhia, muitas pessoas passaram a se comportar exatamente como
o narrador da obra, que é obrigado a consigo mesmo, em um processo

1412
de auto análise, que culmina em uma concepção de derrota,
inexistência de sentido e autopiedade. “Mas eu, que não chego a ser ela,
sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e
telefone.” (LISPECTOR, 1977, p. 32).

Por conseguinte, pontuamos como a vivência ao período da


pandemia, com a suspensão das atividades e restrições, pode gerar e
acarretar, construções psíquicas como a notada no personagem Rodrigo
S.M. “É frequente o relato de pessoas quanto a sentirem-se perdidas, com
uma sensação de confusão temporal e emocional, com uma
sobrecarga de difícil descrição, por não ser condizente com as atividades
diárias mas que geram grande exaustão.” (OLIVEIRA, 2020; p.21).

Dessa maneira, enfatizamos como o tempo da narrativa,


associado a uma noção temporal construída temporal e fisicamente,
reforça a ideia de monotonia, que se converge ao período pandêmico,
na medida em que o isolamento se torna uma necessidade, e a rotina
monótona passa a ser algo palpável, e não mais uma ideia, podendo
ou não se tornar real.

3 ANÁLISE DOS FRAGMENTOS TEXTUAIS A PARTIR DA NOÇÃO TEMPORAL


DE MONOTONIA

Após dissertar acerca da nossa fortuna crítica, apresentaremos a


seguir os fragmentos da obra que nos permitem observar e analisar de
que maneira A hora da Estrela se converge ao período pandêmico.

Para iniciar nossas análises, trouxemos o fragmento 1, que trata da


noção de tempo atrelada a monotonia, já que o narrador descreve sua

1413
angústia em meio aos dias monótonos, construídos por meio de hábitos
repetidos. Essa rotina, de certa forma, se refere também a uma
inquietação pessoal, de um não suportamento a um convívio consigo
mesmo.

Convergindo esse fragmento ao contexto pandêmico, nos


atentamos a ideia de que esse trecho reforça a concepção de que
muitas pessoas, ao se verem isoladas e presas em suas residências,
passaram a desenvolver alguns problemas psicológicos, como depressão
e ansiedade.

Na obra, a escolha do narrador para fugir dessa monotonia é


justamente a escrita, já que, como ele menciona, caso não escrevesse,
morreria simbolicamente todos os dias.

FRAGMENTO 1
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para
mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou
cansado, não suporto mais a rotina de me ser e não se fosse a sempre
novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.
(LISPECTOR, 1977, p. 21)

O fragmento 2, traz novamente a noção de monotonia.


Destacamos que a construção textual, ainda que tenha sido feita em
1977, confluem, de maneira demasiada, ao momento pandêmico.
Notem que o fragmento faz alusão a um ponto de vista da percepção
de dia norteado por meio da repetição e do isolamento, em que aquele
que narra está preso em sua casa, se abstendo de sexo e futebol, e não
tendo contato com ninguém.

Ainda que o motivo pelo qual os dois sujeitos (narrador da obra e

1414
cidadão pertencente ao período pandêmico), sejam completamente
distintos e pertençam a contextos diferentes, a realidade experimentada
por ambos é igual e talvez as consequências geradas por esse isolamento
também sejam.

Na obra, o narrador demonstra várias vezes que sua realidade,


constituída por meio da monotonia, gera nele, de certa forma, uma crise
existencial. Quando Rodrigo descreve a vida de Macabéa, e detalha ela
é traçada pela inutilidade existencial, ele também provoca em si uma
auto reflexão, que demonstra nele uma abertura para que ele se
reconheça também dentro desta inutilidade.

FRAGMENTO 2
Pois faz calor neste cubículo que me tranquei e de onde tenho a
veleidade de querer ver o mundo. Também tive que me abster de sexo
e de futebol. Sem falar que não tenho contato com ninguém.
(LISPECTOR, p. 23).

Reforçando a ideia do fragmento anterior, o fragmento 3 abrange


a noção temporal dos dias que se repetem em si. Quando Rodrigo
disserta que tanto ele, quanto Macabéa, vivem exclusivamente no
presente, ele nos mostra que todos os dias que se passam são iguais para
eles.

Não há, por exemplo, planos para o futuro, já que ambos vivem o
presente, de forma repetida, pois, ele reforça no fragmento, o sempre e
eternamente é o dia de hoje e o amanhã será um hoje, ou seja, todos os
dias serão hoje. Nesse sentido, o tempo físico transcorre, enquanto o
psicológico fica preso no instante do hoje, sendo a eternidade uma
construção temporal que reforça o agora.

1415
FRAGMENTO 3
Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim,
que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é
o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado
das coisas neste momento.

No fragmento 4, ao narrar e descrever Macabéa, Rodrigo S.M.


define sua vida como um limbo pessoal, não sendo possível a ela fazer
nada além de respirar. Há uma alusão à rotina de muitos, no que diz
respeito a essa concepção de crise existencial. Tanto Macabéa, quanto
boa parte dos brasileiros, ao se encontrar imerso nesse marasmo de
realidade, também se prefigura em uma monotonia do seu próprio ser e
de sua essência.

Analisando o contexto pandêmico, enfatizamos que as causas


dessa uniformidade existencial se derivam de muitos aspectos, como o
desemprego gerado pela pandemia, o isolamento social,
impossibilitando o contato pessoal e a própria questão da transmissão da
doença, que gerou em muitos, um alerta, que se transformou em um
medo, seguido de doenças psicológicas.

FRAGMENTO 4

Quanto a moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior
nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e
expirando. (LISPECTOR, p. 23).

Já o fragmento cinco remete novamente a ideia de dias iguais, em


que o presente se repete continuamente. O tempo se paralisa e as horas

1416
dos dias que seguem são exatamente iguais. Essa rotina, entretanto, irrita
o narrador, que enfatiza se dar mal com a repetição. Ele constata, em
sua própria autoanálise, que essa invariabilidade o afasta de conhecer
possíveis novidades em sua vida.

Notamos que a escrita, apontada no fragmento 1 como uma fuga


libertadora dessa prisão, passa com o tempo, a cansar Rodrigo, que se
vê farto da literatura, como vemos no trecho: “Estou absolutamente
cansado da literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo
é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte.
A procura da palavra no escuro.” (LISPECTOR, 1977, p.70).

FRAGMENTO 5

Na verdade saia do escritório sombrio, defrontava o ar lá fora,


crepuscular, e constatava então que todos os dias à mesma hora fazia
exatamente a mesma hora. Irremediável era o grande relógio que
funcionava no tempo. Sim, desesperadamente para mim, as mesmas
horas. Bem, e daí? Daí nada. Quanto a mim autor de uma vida me dou
mal com a repetição: a rotina me afasta de minhas possíveis novidades.
(LISPECTOR, p .41).

Essas considerações, extraídas por meio dos fragmentos presentes


na obra, reforçam a noção temporal convergida ao contexto do período
pandêmico, como posto nesta pesquisa. Elas são, em suma, a
comprovação de que a escrita de Clarice consegue se relacionar com
a pandemia, na medida em que a narrativa da obra aponta relatos de
um isolamento social, que viabiliza insalubridade de tempo psicológico.

1417
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos, a partir das reflexões e análises feitas nesta pesquisa,


como a literatura pode convergir e habitar amplos contextos. Nessa
perspectiva, o texto não se efetiva como um puro instrumento de lazer,
mas também se formaliza como objeto de comparação, entre áreas que
apesar de distintas, são conectadas por símbolos e significados, como a
literatura e a psicologia.

No que diz respeito a fortuna crítica e análise, pontuamos que os


autores abordados, como Cavalcante (2020) e Ferreira (2020), foram de
suma importância para o embasamento de nossas investigações,
apontando conceitos e informações muito relevantes e necessárias,
tanto no que diz respeito a questão da narrativa e noção temporal,
quanto na própria visão acerca da pandêmica e das consequências
causadas por ela, por meio de um viés social.

A partir do referencial teórico, salientamos a efetividade na análise


acerca da comparação entre a noção temporal em A hora da Estrela e
o período pandêmico, tomando como base a ideia de monotonia.

Com base nos fragmentos extraídos da obra, comprovamos de


que maneira os pontos citados se entrelaçam e o que pode ser
observado é extraído, com base nos pontos indicados e comentados.

Dessa forma, a pesquisa acerca da temática se constitui como


importante instrumento de estudo, partindo do pressuposto da literatura
comparada, que busca justamente contemplar questionamentos como
o realizado nesta pesquisa.

1418
REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4ª ed. São


Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004, p. 169-191.

CAVALCANTE, Marta. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v.29, n.46, p.8-
18, jan.-jun.2020

FERREIRA, Alany. A identidade feminina como uma construção do outro:


A partir da personagem Macabéa de Clarice Lispector. Tomé- Açu/PA.
2020

KLEIN, Kelvin dos Santos Falcão. Literatura comparada na era da


globalização. Miscelânea, Assis, vol.7, jan./jun.2010

LIMA, Rossano Cabral. Distanciamento e isolamento social pela Covid-19


no Brasil: impactos na saúde mental.Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, v. 30(2), e300214, 2020

LYRA, Maria, C.D.P; RIBEIRO, Anália Keila. O processo de significação no


tempo narrativo: uma proposta metodológica. Estudos de Psicologia
2008, 13(1), 65-73

NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 1988. Editora Ática. S.A

SANTOS, J.F.B.D; OLIVEIRA, Graça. Angústia: Conceito Heideggeriano


presente na obra “A hora da estrela” de Clarice Lispector. XIII Encontro
Interdisciplinar de Estudos Literários. Universidade Federal do Ceará-
Fortaleza- 2016

São Paulo: Cortez, 2012. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de


Janeiro: Francisco Alves, 1977.

OLIVEIRA, Luiza Carmem de. Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 9,


n. 1, p. 18-34, jun./jul. 2020

1419
UMA NARRATIVA PIAUIENSE: DESVENDANDO A ORGANIZAÇÃO
DISCURSIVA DO ROMANCE “VIDA GEMIDA EM SAMBAMBAIA”,
DE FONTES IBIAPINA220

Luis Felipe da Silva Castelo Branco 221

RESUMO: Enquanto manifestação linguageira, a Literatura é um espaço de construção


de realidades e, por isso mesmo, não deixa de remeter às suas circunstâncias de
produção. Partindo desse pressuposto, este trabalho surge com o objetivo de analisar
os modos de organização discursiva do romance Vida Gemida em Sambambaia (1985),
de autoria do literato piauiense Fontes Ibiapina, com base nos postulados teórico-
metodológicos da Análise do Discurso Semiolinguística (ADS), mais especificamente, das
contribuições de Charaudeau (2016). Para tanto, o enfoque recai para uma tentativa
de elucidação do funcionamento dos modos descritivo e narrativo nessa obra que,
embora ainda seja pouco conhecida e estudada, é de suma importância tanto para a
literatura local como também nacional. Desse modo, percebeu-se, de modo geral, que
os componentes e procedimentos de construção e encenação da organização
descritiva e narrativa desse romance caminham em direção a projetar efeitos de
realidade, algo que se manifesta, por exemplo, na identificação dos personagens e
espaços, apresentando-os e pintando uma história conforme um imaginário de
sofrimento e esquecimento inevitavelmente atrelados às circunstâncias sociais e
ideológicas de sua publicação. Com isso, ficou também evidente a aplicabilidade
deste referencial teórico para o trabalho com os discursos literários, reforçando a
existência de uma relação constitutiva entre a linguagem e a sociedade.

Palavras-chave: Análise do discurso, Discurso literário, Teoria Semiolinguística.

INTRODUÇÃO

A análise do discurso é uma área de pesquisa que permite um


trabalho com os mais diversos discursos sociais. A Literatura, embora seja

220 Este trabalho consiste em um recorte de uma pesquisa de iniciação científica


voluntária intitulada “A narrativa, a encenação e os imaginários sociodiscursivos no
romance Vida Gemida em Sambambaia, de Fontes Ibiapina”, realizada sob orientação
do Prof. Dr. João Benvindo de Moura (UFPI).
221 Graduando do Curso de Letras – Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa

da Universidade Federal do Piauí - UFPI, felipecastelobranco@ufpi.edu.br.

1420
um espaço construído, muitas vezes, sem um compromisso com a
realidade, isto é, abrindo possibilidades para a ficcionalização de um real,
não deixa de ser uma construção linguística de um sujeito, inserido em
um determinado contexto sócio-histórico e detentor de uma
determinada visão de mundo. Por isso mesmo, uma análise do discurso
literário, longe de confrontar as particularidades desse campo, tem muito
a contribuir para o seu entendimento enquanto produção discursiva.

Nesse sentido, a Teoria Semiolinguística do Discurso, encabeçada


pelo linguística francês Patrick Charaudeau, possuí um arcabouço
teórico-metodológico capaz de viabilizar o trabalho com esses textos.
Dentre os seus principais postulados estão a noção de ato de linguagem
como encenação e a de que os sujeitos concebem e tentam concretizar
suas intencionalidades por meio de seus dizeres, com base, é claro, nas
restrições da situação de comunicação. Em suma, acredita-se, nessa
perspectiva teórica, na existência de uma relação constitutiva entre os
fenômenos linguageiros e a sociedade.

Com base nisso, este trabalho surge com o interesse de analisar as


especificidades do discurso literário no romance Vida Gemida em
Sambambaia (1985), do literato piauiense Fontes Ibiapina, uma obra
regionalista que trata da passagem da Seca no sertão do Piauí,
apresentando as supostas singularidades dessa região, assim como o
drama de sua população diante da condição de abandono e
sofrimento em que se encontram. Apesar de ser uma obra clássica da
literatura de autores piauienses e, por isso mesmo, ter a sua importância
para a literatura nacional, esse romance ainda é pouco lido e
pesquisado, a nível nacional e até mesmo local. Por isso mesmo, de
maneira mais específica, utilizaremos, para fins de análise, da categoria
dos modos de organização do discurso, proposta por Charaudeau (2016).

1421
Dessa maneira, objetiva-se desvendar a organização discursiva deste
romance, preferencialmente os modos descritivo e narrativo, à luz da
perspectiva semiolinguística do discurso.

Sendo assim, trata-se de uma pesquisa qualitativa e documental.


Ela será apresentada, a seguir, a partir de uma breve explanação teórica
acerca da teoria trabalhada, seguida da uma análise e discussão dos
resultados encontrados. Ao final, espera-se demonstrar como uma
análise dos modos de organização discursiva dessa narrativa contribuiria
para ampliar a sua compreensão enquanto ato de linguagem.

1 METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa aplicada quanto à sua natureza, uma


vez que, fazendo uso de um determinado referencial teórico, se propõe
a aprofundar-se acerca do discurso literário de uma obra ainda pouco
estudada. No tocante à abordagem, de modo geral, ela pode ser
caracterizada como qualitativa, tendo em vista que analisa os
fenômenos atribuindo-lhes interpretações de natureza subjetiva. Quanto
aos objetivos, podemos considerá-la como descritiva, visto que pretende
esclarecer um assunto já conhecido. E, quanto aos procedimentos de
coleta de dados, apresenta-se como documental, pois não só utiliza de
fontes bibliográficas para a sua fundamentação, como também possui
como corpus uma obra literária.

Para a sua realização, foram seguidos, respectivamente, os


seguintes passos metodológicos: leitura detalhada do corpus e do
referencial teórico trabalhado, identificação e classificação dos

1422
fenômenos propostos, contextualização sócio-histórica e escrita da
análise dos resultados e do presente artigo como um todo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

De acordo com a Teoria Semiolinguística, a noção de discurso


projeta dois sentidos distintos; um primeiro ligado à noção de ato de
linguagem como encenação e um segundo relacionado aos saberes
compartilhados socialmente. Ao considerá-las, estamos diante de dois
espaços indissociáveis e constitutivos do evento linguageiro: o espaço do
dizer e o espaço do fazer. Nas palavras de Moura (2020, p.33):

O espaço do fazer é o lugar privilegiado ocupado pelos


responsáveis por esse ato, a saber, Euc e Tui. Nessa visão teórica,
encontramo-nos diante da instância situacional. Já o espaço do
dizer configura a própria instância discursiva que pode ser
considerada como uma encenação ou “mise em scène” da
qual participam os seres de palavra Eue e Tud.

Esta instância discursiva, em que se encontram os protagonistas do


ato de linguagem – os seres de fala –, não os parceiros – os sujeitos com
uma identidade social e inscritos historicamente –, que iremos focalizar
neste momento. Isto porque acreditamos que a significação de um ato
de comunicação não existe em si mesma, mas na interação entre os
sujeitos e, sobretudo, na forma como os elementos linguageiros são
dispostos de modo a projetar possíveis interpretativos. Assim, para
compreender esse processo, Charaudeau (2016, p.76) convida-nos a
pensar os modos de organização do discurso a partir dos “procedimentos
que consistem em utilizar determinadas categorias de língua para

1423
ordená-las em função das finalidades discursivas do ato de
comunicação”.

Eles podem ser agrupados e identificados a partir de quatro


diferentes modos de organização do discurso: o enunciativo, o descritivo,
o narrativo e o argumentativo. A cada um deles é possível apontar uma
função de base e um princípio de organização. Quando o locutor toma
a palavra, ele possui, em seu dizer, uma finalidade discursiva, capaz de
ser identificada na resposta aos seguintes questionamentos: “o que é
enunciar? descrever? contar? argumentar? Aliado a isso, suas intenções
serão concretizadas por meio de princípios de organização da
materialidade linguageira, que serão duplos no caso do descritivo,
narrativo e argumentativo, resultando não só em uma lógica de
construção (descritiva, narrativa, argumentativa), como também em
uma organização daquela encenação (descritiva, narrativa,
argumentativa). (CHARAUDEAU, 2016).

O enunciativo diferencia-se dos demais pelo fato de que


corresponde à atividade enunciativa do sujeito falante. Em outras
palavras, cabe a ele o posicionamento do locutor no discurso, seja em
relação a seu interlocutor, a seu dizer ou aos outros. Por essa razão que
dizemos que a encenação de cada um dos outros modos será
comandada por ele. (CHARAUDEAU, 2016).

No caso do nosso trabalho, por nos debruçarmos sobre um gênero


discursivo narrativo e descritivo por natureza, como o romance, os modos
narrativo e descritivo se apresentam como dominantes, algo que não
impede a manifestação dos demais. Tendo consciência disso, em
seguida, discorreremos de forma mais detalhada sobre os modos
descritivo e narrativo, que realmente guiarão nosso estudo.

1424
2.1 O MODO DE ORGANIZAÇÃO DESCRITIVO

Embora as atividades de contar e descrever estejam fortemente


relacionadas, devemos ter mente que se trata de coisas distintas,
inclusive, difíceis de diferenciar. Como lembra Charaudeau (2016, p.111):

Enquanto contar consiste em expor o que é da ordem da


experiência e do desenvolvimento das ações no tempo, e cujos
protagonistas são os seres humanos, descrever consiste em ver o
mundo com um “olhar parado” que faz existir os seres ao
nomeá-los, localizá-los e atribuir-lhes qualidades que os
singularizam.

Mesmo assim, para contar algo, é sempre importante descrever o


ocorrido, porque isso dá mais sentido aos acontecimentos. A fim de se
evitar maiores confusões, é sempre bom considerar, ao lado dos modos
de organização do discurso, também a situação de comunicação e o
gênero textual em questão. Com isso, conseguimos, dentre outras coisas,
compreender que uma “descrição” ou “narração” representam
totalidades ou resultados ao passo em que o “descritivo” e o “narrativo”
configuram-se como procedimentos de organização da matéria
linguageira.

Quanto a seus princípios de organização, o descritivo pode ser


pensado tanto a partir de sua construção como de sua encenação.

De modo mais específico, a construção descritiva está pautada


em componentes e procedimentos. Os seus componentes são de três
tipos: nomear, localizar-situar e qualificar. Eles são, ao mesmo tempo,
independentes e inseparáveis, cada um deles funcionando de modo a
atribuir uma identidade a um ser, situando-o em um espaço-tempo e
singularizando-o em relação aos demais. Estes componentes são

1425
incorporados aos procedimentos de organização da construção
descritiva, que podem ser de duas naturezas. De um lado, os
procedimentos discursivos: de identificação (para nomear), de
construção objetiva do mundo (para localizar-situar) e de construção
objetiva/subjetiva do mundo (para qualificar). De outro, utilizando de
categorias de língua a serviço dos componentes, estão os
procedimentos linguísticos. Quanto a eles, existem aqueles para nomear
(denominação, indeterminação, atualização etc.), localizar-situar (de
forma precisa ou imprecisa) e qualificar (acumulação de detalhes e de
precisões ou utilização de analogias). (CHARAUDEAU, 2016)

A encenação descritiva, por sua vez, também possuí seus


componentes e procedimentos de organização. Sendo assim, ela é
comandada por um sujeito falante, que podemos chamar de descritor.
Este, explicita ou implicitamente, conscientemente ou não, projeta
determinados efeitos através de suas descrições. São eles: efeitos de
saber, efeitos de realidade e de ficção, efeitos de confidência e efeitos
de gênero. Ademais, os seus procedimentos de composição revelam
sobre a construção semiológica dos textos. Ela demonstra a forma como
o sujeito descritor organiza a extensão descritiva, a disposição gráfica e
o seu ordenamento interno. (CHARAUDEAU, 2016).

2.2 O MODO DE ORGANIZAÇÃO NARRATIVO

Por volta dos anos 1960 e 1970, as pesquisas sobre narrativas


ganharam um novo impulso a partir dos trabalhos de Propp, um
acadêmico estruturalista, que foi precursor dos estudos em semiótica
narrativa, principalmente, a partir de suas análises de contos de fadas

1426
russos, abrindo portas para reflexões mais estruturais sobre o
funcionamento desses tipos de textos. Diante dessas influências, em uma
perspectiva semiolinguística, mesmo que ainda motivado por
inquietações de certo modo parecidas, o foco recaí não mais a
compreensão de um gênero ou tipo textual em específico, mas para os
componentes e procedimentos de um modo de organização do discurso
cuja análise permite ampliar o entendimento das diversas possibilidades
de significação de um texto, seja ele literário ou não. Isto posto, partindo
do pressuposto de que a narrativa seria uma totalidade e o narrativo o
seu modo de organização, consideramos que:

Para que haja narrativa, é necessário um “contador” (que se


poderá chamar de narrador, escritor, testemunha, etc.),
investindo de uma intencionalidade, isto é, de querer transmitir
alguma coisa (uma certa representação da experiência do
mundo) a alguém, um “destinatário” (que se poderá chamar de
leitor, ouvinte, espectador, etc.), e isso, de uma certa maneira,
reunindo tudo aquilo que dará um sentido particular a sua
narrativa. (CHARAUDEAU, 2016, p.153).

Assim sendo, o modo de organização narrativo seria uma


mecânica responsável pelos múltiplos efeitos de sentido que um texto
poderá projetar. Ao analisarmos a sua configuração, por exemplo, em
uma obra literária, longe de querer investigar as significações daquele
texto – tarefa mais adequada aos críticos literários –, o que
conseguiremos, certamente, será compreender como aquele modo de
organização contribuí para a produção de sentidos x ou y em
determinada narrativa.

Nessa direção, Charaudeau (2016) aponta algumas possível


funções e princípios de organização deste modo. A princípio, o narrativo
teria uma dupla função de construir uma representação do mundo –

1427
sucessiva, contínua e com início e fim – e de colocar o leitor diante de
um narrador, testemunha de algo a ser narrado, sendo isto ficcional ou
não. Além disso, ele seria caracterizado pela dupla articulação de uma
organização da lógica narrativa e de uma encenação narrativa; a
primeira mais voltada para o aspecto estrutural das narrativas, enquanto
a segunda para a construção dos universos narrados.

De maneira mais detalhada, a organização da lógica narrativa se


dá a partir da relação entre seus componentes e determinados
procedimentos. Os seus componentes podem ser de três tipos: os
actantes – os que assumem papéis associados a uma ação –, os
processos – responsáveis por guiar as ações dos actante – e as
sequências – que ligam os actantes e os processos a uma finalidade. Tais
componentes são configurados por meio de certos procedimentos de
organização da lógica narrativa. Eles podem dizer respeito à motivação
intencional dos agentes – voluntária ou não –, à cronologia – contínua ou
descontínua –, ao ritmo – condensado ou em expansão – e/ou à
localização espaço-temporal – apontando para ações situadas no
presente ou passado ou localizadas em um espaço fechado/aberto ou
com deslocamento/fixação.

Tais elementos seriam, no entanto, apenas suposições, baseadas


em recorrências, de como seria o “esqueleto” de uma narrativa. Esta só
vem a ganhar sentidos quando inserida em um contexto, ou melhor,
quando fizer parte de uma encenação narrativa. Para compreendermos
os componentes de sua encenação, observemos a seguinte
representação:

1428
Figura 1 – Dispositivo da encenação narrativa

Fonte: Charaudeau, 2016, p.184.

A figura acima nos mostra o dispositivo da encenação narrativa.


Nele, é possível perceber, primeiramente, dois circuitos, um interno e um
externo. No primeiro, estariam os seres de identidade social, ou seja, o
autor e o leitor reais, os dois parceiros daquela troca. Já no segundo
estariam os seres de identidade discursiva, isto é, o narrador e o leitor-
destinatário, os protagonistas. A depender do contrato de comunicação
estabelecido, o autor de uma narrativa pode incorporar dois tipos de
identidade; a de um autor individuo – mais conhecido pela sua pessoa
do que pelo trabalho como escritor – que, incorporando, por exemplo, o
papel de um narrador historiador – testemunha de um acontecimento
real – se propõe a contar uma história aparentemente verídica e
destinada a um leitor destinatário de uma história real, podendo ser
verificada ou não por um indivíduo na posição de leitor real; ou a de um
autor escritor – conhecido pelo seu trabalho com a escrita – que,
assumindo o papel de contador de histórias, narra uma história contada
como ficção, dirigindo-se a um leitor destinatário com a competência de
percebê-la como tal.

Diante do que foi exposto, é importante mencionar que esses


componentes da encenação narrativa só vêm à tona a partir de alguns

1429
procedimentos discursivos. Eles manifestam-se na identidade, estatuto e
nos pontos de vista assumidos pelo narrador. De modo geral, eles
apontam para a maneira como um narrador poderá intervir em uma
narrativa, a posição assumida para contá-la e a perspectiva adotada.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir de agora, nosso interesse será analisar como se dá a


organização descritiva e narrativa no romance Vida Gemida em
Sambambaia. Sendo assim, iremos separar nossa análise em dois
momentos, mas apenas para não gerar confusões, visto que estamos
tratando de dois modos que se complementam de diversas formas.
Devido às limitações do espaço, não será possível apresentar uma
discussão completa de todos os dados, mas, ainda assim,
apresentaremos, a seguir, respectivamente, alguns resultados
encontrados acerca dos modos descritivo e narrativo.

3.1 O MODO DE ORGANIZAÇÃO DESCRITIVO

No romance em questão, a situação de comunicação deve ser


vista a partir do contrato comunicacional estabelecido entre o autor e
leitor de obras de ficção. Isso faz com que o modo descritivo seja
mobilizado para atender à finalidade de contar e informar desse gênero
do discurso, descrevendo ações, espaços, personagens etc. Na instância
discursiva, isso ocorre, mais especificamente, por meio de um manejo
mais ou menos consciente de certas categorias de língua.

1430
É possível percebê-las em funcionamento verificando a construção
descritiva de determinados discursos. Para tanto, observemos,
primeiramente, o seguinte fragmento:

Alonso era mesmo um produto danado de rígido daquelas


caatingas. Rígido como a própria região, como a terra. Rígido
como as Secas. Nasceu, enterrou o umbigo e se criou em
Sambambaia, sem que nunca dali um dia retirasse os pés para
outro lugar. [...] Sua índole tinha raízes fincadas naquelas
caatingas. Era ele próprio o primeiro a dizer que dali só sairia
quando fechasse o paletó. Só mesmo quando fosse para a
cidade dos pés juntos (IBIAPINA, 1985, p.29, grifo nosso).

O fragmento acima consiste em uma apresentação de Alonso; o


personagem principal de Vida Gemida em Sambambaia. Observa-se
que o narrador utiliza dos três componentes da construção descritiva
para identificá-lo ao leitor. Ao nomeá-lo, o personagem ganha uma
existência em meio aquele universo ficcional. Mas isso não basta, o
narrador o insere em um determinado lugar, no caso, o povoado de
Sambambaia, onde Alonso passou toda a sua vida até aquele momento.
Em seguida, passa a qualificá-lo de acordo com o seu lugar de pertença,
como se a sua existência, a sua função e traços de caráter dependessem
disso. Alonso seria, então, alguém cujos sofrimentos enfrentados desde o
nascimento naquela terra o tornaram uma pessoa rígida, de fortes
valores e apegado à tradição. Um fato marcante é que esses são traços
que fazem parte de um imaginário acerca do homem sertanejo.

Aliado a isso, nesse romance, a identificação dos personagens


atende ao princípio de informar o leitor, situando-o diante daquele
universo narrado. A grande maioria dos personagens é apresentada por
meio de uma identificação específica, como no caso de Alonso, visto
logo acima, mas também de Ana da Chapada, Chico de Maria Isabel,

1431
Maria do Céu, Margarina de Pedro Antônio, Paulo da Bodega, dentre
outros. Como é possível perceber, é frequente a presença de
caracterizações identificatórias ao lado dos nomes de cada um deles;
um fenômeno recorrente em nossas análises, principalmente, para
construir identificações pessimistas dos espaços e personagens. Vejamos
alguns exemplos: “A matutada sambambaiense amanheceu de crista
caída” (IBIAPINA, 1985, p.13, grifo nosso); “O nosso velho Piauí sofrido
parecia querer pegar fogo de uma vez” (IBIAPINA, 1985, p.18, grifo nosso);
“O fim de um pobre pai de família que roubava a fim de os filhos não
morrerem de fome” (IBIAPINA, 1985, p.45, grifo nosso) “À noite, o pé-
d´água bateu novamente. Surpresa por demais agradável para aquele
povo faminto e cadavérico” (IBIAPINA, 1985, p.70, grifo nosso).

Outrossim, em Vida Gemida em Sambambaia, somos levados a


visitar um passado distante até mesmo para o narrador, como ele dá a
entender ao começar a história por suas lembranças de infância. Por isso
mesmo, é frequente o uso dos procedimentos de construção objetiva do
mundo, os quais, em respeito ao gênero ou não, acabam projetando
efeitos de realidade, descrevendo o cenário, muitas vezes, de forma
distanciada das impressões pessoais do sujeito que narra. Observa-se isso,
por exemplo, na descrição dos espaços da narrativa: “Pelas várzeas,
taboleiros e chapadas, viam-se carcaças e mais carcaças de animais
que encheram a barriga de légua e meia da Crise. Por todos os recantos
de socavões, encontravam-se ossadas, tampos de couro e carniças
secas” (IBIAPINA, 1985, p.84-85, grifo nosso).

No trecho acima, o recurso à terceira pessoa colabora com esse


suposto distanciamento do narrador, ajudando-o a construir um retrato
realista daquele mundo. Por outro lado, a construção descritiva dessa
narrativa é também baseada em procedimentos linguísticos. Para

1432
nomear, destacamos a categoria de denominação. Como já foi dito, na
maioria das vezes, os seus personagens são caracterizados a partir de
nomes próprios ou identificações específicas, assim como ocorre quando,
utilizando de categorias linguísticas para localizar-situar, é feito o seu
enquadramento espacial e temporal, investindo no detalhe e na
precisão para produzir um efeito realista àquele romance sobre a seca
no sertão piauiense. A começar pela sua abertura, o dia, mês e lugar já
é posto em evidencia antes mesmo de qualquer coisa: “Dezembro, dia
14. A matutada sambambaiense amanheceu de crista caída” (IBIAPINA,
1985, p.13).

Através dos procedimentos linguísticos para qualificar, a descrição


dos personagens é mais pautada na acumulação de detalhes, de
precisões e no uso de analogias. O seguinte recorte revela o tipo de
ênfase que comumente é dada a esses personagens:

Hoje mesmo passaram duas famílias de retirantes lá em casa,


que era uma coisa de causar pena e dó. Uma das ditas cujas
levava uma ninhada de oito filhos. Magros, que só couros e ossos.
Os pobrezinhos saíram pelo monturo, como um bicho qualquer,
apanhando e roendo tudo o quanto de garras de couro velho.
Pareciam um bocado de cachorros, que Deus me perdoe a
comparação (IBIAPINA, 1985, p.42, grifo nosso).

Essa descrição demasiadamente realista, isto é, no sentido de ser


crua, despreocupada em trazer apenas imagens belas e positivas sobre
o que está sendo dito, assim como os demais componentes e
procedimentos da construção descritiva de Vida Gemida em
Sambambaia, funcionam dessa forma pois estão de acordo com a sua
encenação descritiva, comandada por um sujeito falante, responsável
por projetar certos efeitos de sentido possíveis, sejam eles planejados ou
não.

1433
De maneira mais específica, a encenação descritiva desse
romance é ordenada por um sujeito descritor – o mesmo que assume o
papel de narrador. Ele descreve, nos capítulos iniciais da obra, a partir de
um olhar memorialístico para o seu passado, relembrando os seus tempos
de infância na fazenda de seus pais. No restante da obra, ele começa a
afastar-se, assumindo uma posição distante e tentando apagar-se diante
daquilo que passa a retratar, continuando a não revelar a sua identidade
explicitamente. Com isso, ele acaba projetando, por exemplo, efeitos de
saber, de realidade e de gênero.

Na abertura do romance, o sujeito descritor tenta passar uma


impressão de que aquilo que ele passa a descrever é verídico pelo
simples fato de que parte de suas memórias de outrora. “Todas as tardes
íamos ao mato. Parecia que aquele trabalho não se acabava mais. Eu
me recordava das histórias que o Papai contava da Seca de 15. E tinha
a impressão que estava vivendo em 15 mesmo” (IBIAPINA, 1985, p.24).
Essa lembrança, tomada como ponto de partida para continuação do
relato, projeta um efeito de saber, pois funciona como um forma de
legitimar o que virá adiante. É como se ele dissesse: “Eu vivi isso, sei
exatamente como foi; e, por isso, acreditem no que vou retratar a seguir”.

Isso é justificado pelo fato de que o romance assume, a partir de


sua configuração, um caráter realista, dando aparências de um relato
verídico de um acontecimento passado, projetando, assim, efeitos de
realidade. Essa encenação é reforçada, muitas vezes, por meio de
efeitos de um gênero realista, procurando, por exemplo, situar o quadro
construído pelo sujeito descritor em um lugar e em um tempo, deixando
sempre isso bem evidente. O trecho a seguir demonstra isso:

1434
1953 prometeu cantar mais uma canção triste, melhor dizendo:
um bendito de defunto, nas caatingas secas de Sambambaia.
Se apenas prometer, não seria nada. O danado foi que
prometeu e cantou mesmo. E pior do que todas. Uma Seca
quase que escanchada noutra Seca. Duas Secas com um
inverno fracateado entre as pernas. Em pleno janeiro, e a mata
completamente desfolhada. Todos os dias, o sol dava um banho
de fogo nas caatingas. Toda a terra assim como se uma fornalha.
Fornalha maior do que as fornalhas dos grandes engenhos dos
tempos da escravidão negra emendada umas às outras. As
roças mais limpas que terreiro preparado para jornadas de São
Gonçalo. Tudo só sinal de tristeza para o povo daquele chão
(IBIAPINA, 1985, p.155-156, grifo nosso).

No tocante aos procedimentos de composição da encenação


descritiva, no romance de Fontes Ibiapina, a descrição, como esperado,
é utilizada para contar. A sua extensão, por sua vez, está diretamente
ligada a isso, chegando a ser, na maioria das vezes, mais breve e incisiva.
Esses são elementos que reforçam a dramatização da narrativa, como
pode ser visto logo abaixo: E, como já foi dito, ao descrever os
personagens e espaços, o sujeito descritor não perde tempo dando
voltas para caracterizá-los para o leitor. Ele vai direto ao ponto; mas, se
observarmos o ordenamento interno dos elementos descritivos, veremos
que ele se dá por meio de um acúmulo de adjetivos e da descrição das
pessoas e dos objetos de um lugar, cada um recebendo, ao passo que
é apresentado, suas devidas qualificações. Quanto a estas,
frequentemente, remetem ao imaginário do sertão distante e seco e do
sertanejo sofredor e vivendo em misérias.

1435
3.2 O MODO DE ORGANIZAÇÃO NARRATIVO

A história ficcional contada ao leitor no romance em questão parte


de um narrador que se apresenta como uma testemunha da passagem
dos anos de seca pelo povoado de Sambambaia, localizado no interior
do município de Picos (PI), revelando os impasses e singularidades de um
povo que até então não havia sido tema para muitos relatos.

Partindo do pressuposto de que essa narrativa é resultante de uma


dupla articulação de uma lógica de organização e de uma encenação,
trataremos, a seguir, de cada uma dessas suas facetas, procurando
desvendar quais estratégias discursivas são mobilizadas para a sua
construção.

Primeiramente, é importante situar os componentes e


procedimentos da organização de sua lógica narrativa. A começar pelos
componentes, eles são de três ordens: os actantes, os processos e as
sequências. Basicamente, os seus actantes narrativos estão para dois
papéis centrais: o de agressor e o de vítima. Esses papéis são ocupados
por diferentes personagens, alguns principais e a grande maioria
secundários.

Apesar de não ser humana, consideramos a seca como um dos


personagens principais da narrativa, pois ela desempenha uma ação no
papel de agressor, de maneira involuntária e recebendo qualificações
negativas pelo narrador, que inclusive faz questão de sempre mencioná-
la utilizando de uma inicial maiúscula, isto é, enfatizando a sua existência
como personagem: “Só se falava mesmo em Seca e em sobre mais nada
no mundo” (IBIAPINA, 1985, p.17).

1436
Ao lado dessa personagem inusitada, estão os actantes no papel
narrativo de vítimas e injustiçados, os quais são preenchidos por vários
personagens, como é o caso de Alonso, o personagem principal cujos
passos são acompanhados ao longo do romance. Ele é a vítima da ação
da seca e é qualificado ora de maneira positiva, ora negativa. Além disso,
inicialmente, ele reage àquela situação colocada diante de si por meio
de uma resposta, tentando superá-la; mas, ao final, a fuga acaba sendo
a sua única salvação.

Em seguida, observamos que os processos narrativos estão ligados


a determinadas funções de base. Consideremos o caso do personagem
Alonso e os seus papéis narrativos de vítima e injustiçado. Ao praticar,
logo no início do romance, a ação/processo de furtar cabras, ele estava,
no fundo, indo ao encontro de uma função narrativa principal, no caso,
a de responder à ação na qual ele é vítima, tentando sobreviver às
privações da seca, algo que acaba se tornando o seu principal objetivo.

Tal ação, para ele e sua família, é qualificada como uma


benfeitoria, enquanto, para muitos dos outros personagens, ela é
qualificada como um crime imperdoável. Como pode ser visto no
seguinte trecho, Alonso age para se beneficiar de algo, buscando
degradar um estado inicial de miséria, mesmo que para isso tenha que
realizar sacrifícios e transgredir à lei:

Enterrou a fatança, os pés, o couro da cabrita. E levou


a carne pra casa por baixo da macambira, nos jacás.
E assim foi se acostumando. Se aquilo era uma necessidade
para continuação da própria vida, não seria feio de maneira
alguma. Muito pelo contrário!... Além do mais, tinha certeza
absoluta que descoberto jamais seria. Não era possível que Deus
praticasse um papel daqueles – deixar que fosse pegado no
furto, para a mulher e os filhos morrerem de fome. (IBIAPINA, 1985,
p.30).

1437
Essa ação de Alonso não é à toa nem isolada das demais que se
sucedem ao longo da narrativa. Todas elas fazem partes de sequências
narrativas, cada uma seguindo determinados princípios de organização.
A título de exemplo, observemos como se dá o funcionamento dos
princípios de coerência e encadeamento:

Tabela 1: Representação do princípio de coerência

Abertura: Os moradores de Sambambaia diante


da ameaça de mais um período de
secas.

Fechamento/abertura O drama de Alonso para sobreviver


àquele cenário, salvar sua família e não
deixar sua terra.

Fechamento/abertura Movido pela necessidade e desespero,


Alonso começa a lutar contra seus
princípios ao furtar uma cabra pela
primeira vez.

Fechamento/abertura Alonso é descoberto por Chico Capoeira


e passa a viver com medo de ser
descoberto.

Fechamento/abertura Mesmo assim, ele é pego no ato, acaba


sendo preso e saindo de lá decidido a
cometer um novo furto, mas dessa vez
para fugir para o Maranhão.

Fechamento/abertura Após ser preso novamente, Alonso, em


meio à volta das chuvas, adoece e
chega à beira da morte.

Fechamento/abertura Recuperado, decide mudar de vida e


reconstruir a sua dignidade.

Fechamento/abertura O período de secas volta novamente e


Alonso segue mais firme do que nunca
em seu propósito.

Fechamento/abertura A necessidade mais uma vez faz Alonso


furtar, quebrando a sua promessa, o que
resulta em mais uma prisão.

1438
Fechamento Não aguentando as punições e
humilhações recebidas, Alonso decide ir
embora de Sambambaia juntamente
com sua família, buscando melhores
condições para a sobrevivência.

Fonte: O autor

Todas essas ações, que se desenrolam após o acontecimento que


marca a abertura do romance, são dispostas de forma sucessiva, dando
uma ideia de abertura, desenvolvimento e fechamento para a narrativa,
não estando nenhuma descolada das demais, obedecendo assim a um
princípio de coerência. Esse efeito decorre sobretudo da obediência a
um princípio de encadeamento, que faz com que cada uma dessas
ações constituam sequências narrativas. Nesse caso, isso se dá
principalmente por meio de um tipo de encadeamento particular – a
sucessão –responsável por organizar cada uma dessas sequências de
forma linear e consecutiva, ou seja, uma implicando outra; e assim por
diante.

Ademais, essa proposta de descrição da lógica narrativa é


configurada por meio de alguns procedimentos. Primeiramente, os
procedimentos ligados à motivação intencional fazem com que o
personagem Alonso, por exemplo, seja tanto um agente voluntário,
consciente de suas ações, como também involuntário, já que passa a
agir a partir de uma manipulação sobre-humana, no caso, de um agente
não humano representante das forças naturais: a seca. De maneira
semelhante, os procedimentos ligados à cronologia fazem com que a
narrativa seja amarrada, utilizando, nesse caso, de uma cronologia
contínua em progressão, pois o narrador parte de um começo, expõe

1439
acontecimentos, ações e consequências seguindo sempre os
acontecimentos de forma linear.

Para que isso ocorra de forma clara e aparentemente objetiva, o


narrador utiliza de alguns procedimentos ligados ao ritmo, como os de
condensação – ao dar alguns saltos temporais na narrativa percorrendo
por diferentes anos em um curto espaço de tempo – e os de expansão –
quando a narrativa é interrompida para abrir espaços para descrições
ora dos personagens, ora dos espaços, produzindo efeitos de cena,
atmosfera e detalhe. Além disso, observamos que alguns procedimentos
ligados à localização espaço-temporal são utilizados para: a) situar no
tempo: produzindo não só efeitos de ficção histórica, ao contar a partir
de um momento historicamente conhecido, como também efeitos de
narrativa, ao colocar-se, por exemplo, como um narrador onisciente; b)
localizar no espaço: construindo um espaço aberto e com
deslocamentos para uma narrativa que percorre os quatros cantos do
povoado de Sambambaia.

Após analisarmos a estrutura narrativa dessa obra, veremos, agora,


como ela produz sentidos ao ser significada, isto é, inserida em uma
encenação. Esta é composta por um dispositivo que possuí dois circuitos.
No primeiro deles, o circuito externo, estão o autor e o leitor reais – ambos
seres de identidade social. São eles: o Fontes Ibiapina (EUc), um escritor
regionalista, que desempenha o papel social de escritor e tem um projeto
de escritura e um público leitor real (TUi), detentor de uma competência
de leitura e convocado a apreciar aquele romance, podendo reagir a
ele das mais diversas formas. Já no segundo deles, o circuito interno,
estão o narrador (EUe) e o público leitor esperado (TUd) – ambos seres de
identidade discursiva. Em outras palavras, o narrador de Vida Gemida em
Sambambaia desempenha o papel de contador de histórias ficcionais.

1440
Ele organiza a sua narrativa de acordo com os códigos daquele mundo
particular. Dessa forma, convoca um leitor-destinatário a receber aquela
história como pertencente a um universo ficcional, isto é, idealizado pela
sua imaginação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi apresentado, é possível concluir que, no


romance Vida Gemida em Sambambaia, do literato piauiense Fontes
Ibiapina, os modos de organização descritivo e narrativo são mobilizados
de modo a projetarem efeitos de realidade, denunciando uma condição
de abandono e sofrimento vivenciados em um sertão piauiense. Esse
fato, possivelmente, vai ao encontro das circunstâncias de discurso da
obra em questão, marcadas por uma necessidade de inscrever discursos
acerca do espaço piauiense que respondessem à uma histórica
condição de apagamento. Desse modo, a partir das contribuições da
Teoria Semiolinguística do Discurso, foi possível elucidar e reforçar a
existência dessa relação constitutiva entre a linguagem e a sociedade a
partir dessa narrativa piauiense.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2.


ed. São Paulo: Contexto, 2016.

1441
IBIAPINA, Fontes. Vida Gemida em Sambambaia. São Paulo: Clube do
Livro, 1985.

MOURA, João Benvindo de. Análise discursiva de editoriais do jornal Meio


Norte: um retrato do Piauí. Teresina: EDUFPI, 2020. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1xzM2rZt7a1Y2mQUMF5z_lgmKR6WsTgG9
/view. Acesso em: 21 fev. 2021.

1442
A ARGUMENTAÇÃO EM RESENHAS DA REDE SOCIAL SKOOB: UM
ESTUDO SOBRE A FUNÇÃO DO OPERADOR ‘MAS’

Jônatas Miranda Amaral 222

RESUMO: O advento da internet estabeleceu novas formas de interação, entre elas as


redes sociais. Nelas criaram-se novos gêneros textuais e, também, agregaram-se
gêneros já estabelecidos, porém com funções multimodais, como a resenha. Neste
trabalho, apresenta-se uma análise acerca da função exercida pelo operador
argumentativo “mas” nas resenhas da rede social SKOOB. O objetivo geral desta
pesquisa é caracterizar as formas de interação entre usuários da referida rede social por
meio do estudo da argumentação em vinte resenhas postadas na plataforma, para tal
verificou-se a ocorrência do operador “mas‟ nas resenhas selecionadas sobre o livro “A
culpa é das estrelas”; observaram-se as funções que o operador masPA exerce em dois
tipos de resenhas e descrevemos como este operador contribui para a construção da
argumentação dos resenhadores. Para a análise, foi selecionado um corpus de vinte
resenhas, divididas em dois grupos: 10 resenhas de apreciação negativa e 10 resenhas
de apreciação positiva. Sendo utilizados na análise os trabalhos de Ducrot (1981),
Guimarães (1987),Vogt & Ducrot (1989) e Koch (2010). Os resultados da análise dos
dados revelam três tipos de função do operador argumentativo “mas‟ nas resenhas: 1)
orientar para uma conclusão que será desenvolvida ao longo do texto; 2) orientar para
uma conclusão que auxilia como argumento para provar a tese principal do texto ou
do parágrafo e 3) orientar para uma conclusão que será desenvolvida no interior de um
ou dois parágrafos dentro do texto. Esta abordagem acrescentou subsídios para a
percepção de que entre os tipos de resenhas a diferença no uso do operador pode
estar no discurso proposto sobre a obra, pois numericamente e em termos de função
não foi observado diferenças. Por fim, diante dos resultados, concluiu-se que o operador
argumentativo estudado detém um papel importante na construção da
argumentação das resenhadas postadas no Skoob.

Palavras-chave: Operadores argumentativos; Redes sociais; Resenha.

222Graduado do Curso de Letras- Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará –


UFPA; Graduando do Curso de Pedagogia do Instituto Federal do Pará (IFPA). Professor
Particular na Instituição LC Aulas Particulares e Reforço Escolar em Belém/Pa.
jonatas.ma@yahoo.com.br;

1443
INTRODUÇÃO

Com os avanços das múltiplas tecnologias de informação e


comunicação (TIC), e consequentemente com o advento da internet, as
redes sociais surgem e se atualizam estabelecendo novas formas de
interação entre os usuários, além de ser um espaço rico de produção de
informação e conteúdo. Assim sendo, não tardou para que surgisse uma
rede social voltada para leitores. No Brasil, a maior rede social de leitores
atualmente é o Skoob, sendo uma ferramenta pela qual os usuários
divulgam e comentam suas leituras. Neste ambiente, são publicados
diariamente dezenas e mais dezenas de resenhas sobre os livros ali
cadastrados.

O gênero resenha, principal conteúdo produzido no SKOOB, detém


um caráter essencialmente argumentativo, na medida em que podemos
observar que o propósito do autor da resenha ao redigir seu texto é
evidenciar seu posicionamento sobre determinada obra com o intuito de
que o leitor concorde com seu ponto de vista. A esse respeito, Koch (2011)
afirma que o uso da linguagem é essencialmente argumentativo e detém
mecanismos que nos permitem identificar a essência de um discurso. Ou
seja, tudo o que produzimos tem um teor argumentativo: nossas escolhas
lexicais, a construção das frases. Isto é intrínseco à língua.

Desse modo, entre os mecanismos que a língua possui e que nos


permitem identificar a orientação argumentativa de um enunciado
estão os operadores discursivos ou argumentativos. Assim sendo, este
artigo visa apresentar uma análise específica do operador
argumentativo “mas” no âmbito do gênero resenha, mais
especificamente, em textos do gênero postados na rede social Skoob.

1444
Partindo disto, esta pesquisa buscou responder a seguinte
pergunta: com que função o operador argumentativo “mas” tem sido
empregado nas resenhas postadas por usuários da plataforma Skoob?
Tendo como objetivo geral contribuir para caracterizar as formas de
interação entre usuários na referida rede social por meio do estudo da
argumentação em 20 (vinte) resenhas postadas na sua plataforma. E por
objetivos específicos verificar a ocorrência do operador argumentativo
“mas‟ em resenhas de apreciação tanto positiva quanto negativa sobre
o livro “A culpa é das estrelas”; observar a(s) função(ões) que o operador
masPA exerce nos dois tipos de resenha e descrever como o operador
masPA contribui para a construção da argumentação dos resenhadores.

Este estudo poderá ampliar as análises em torno do conteúdo


produzido no Skoob, cujo foco é a leitura, já que vários estudos mostraram
que o uso desta rede social incentivou a interação entre internautas
sobre diversos títulos editoriais (literários ou não), possibilitando o retorno
e apreço pela prática de ler, porém, é ainda uma ferramenta que
carece de estudos mais aprofundados.

Deste modo, este trabalho apresenta uma análise qualitativa,


baseada na perspectiva de Minayo (2016), assim como nos trabalhos de
Ducrot (1981). Estabelece como marco teórico os trabalhos de
Guimarães (1987) e Ducrot (1981) acerca da argumentação na língua,
especificamente acerca das classes e escalas argumentativas, e
operadores argumentativos. De modo, que foi possível perceber as
funções exercidas pelo operador ‘mas’ nas resenhas na rede social
Skoob.

1445
1 METODOLOGIA

Com vistas à análise, utilizou-se da abordagem qualitativa que


para Minayo (2016, p. 21), “se aprofunda no mundo dos significados. Esse
nível de realidade não é visível, precisa ser exposto e interpretado, em
primeira instância, pelos próprios pesquisados, em segunda instância, por
um processo compreensivo e interpretativo contextualizado”. Deste
modo, realizou-se a coleta de vinte resenhas encontradas na sessão
“mais comentadas” da rede social Skoob, as quais compõem o corpus
desta pesquisa. Para fins de delimitação, a coleta se restringiu as resenhas
sobre um único livro, “A culpa é das estrelas”, do autor norte-americano
John Green.

A escolha do livro se deu por considerarmos ser ideal, para os


objetivos desta pesquisa, analisar as resenhas sobre um livro bastante
procurado e comentado na plataforma. O livro escolhido
constantemente figura entre os dez mais procurados no site diariamente.
Outro fator importante para a escolha do livro foi a grande divergência
de opiniões sobre a qualidade da obra, já que poderíamos considerar
dois tipos de construção argumentativa: uma orientada para mostrar e
destacar pontos negativos e a outra para enfatizar pontos positivos, ou
seja, desta forma, tornou-se possível ter uma ampla visão de como tais
resenhas são estruturadas argumentativamente.

Para esta seleção foram levados em consideração dois aspectos:


primeiramente, o número de comentários feitos sobre tais resenhas e, em
segundo lugar, a estrutura considerada mais próxima do gênero resenha.

As vinte resenhas coletadas foram subdividas em “resenhas de


apreciação positiva” e “resenhas de apreciação negativa”. Esta

1446
classificação se deu a partir das notas dos usuários (1 a 5 estrelas), sendo
4 a 5 consideradas como apreciação positiva e de 1 a 3, como
apreciação negativa da obra. Foi feita também uma catalogação com
levantamento de sexo, idade, nota e data de postagem. Sendo assim, o
corpus se constitui de dez resenhas de apreciação positiva e dez
resenhas de apreciação negativa.

Após a definição do corpus, com vista à análise, realizou-se o


levantamento das ocorrências do operador argumentativo “mas" nas
resenhas. Esse levantamento ocorreu primeiramente com uma pesquisa
automática no corpus, contudo, esta não foi suficiente para detectar
todas as ocorrências, por isso cada resenha foi lida atentamente e cada
ocorrência nos textos, destacada separadamente.

Cada ocorrência passou por uma análise levando em conta o


estudo de Guimarães (1987) sobre as conjunções do português, que fixou
alguns tópicos a serem considerados para observar o modo como as
frases articuladas se organizam na enunciação. Observou-se com mais
atenção a possibilidade de articulação por sobre o limite oracional, o
alcance da pergunta, o encadeamento no texto e a possibilidade de
divisão para dois locutores, já que estes tópicos caracterizam a
conjunção “mas" com a função relevante para este trabalho, ou seja,
com função argumentativa. Ao final, chegou-se aos seguintes dados:

Tabela 01 – Ocorrências do “mas” e resenhas de apreciação negativa e positiva.

Resenhas de Resenhas de
apreciação negativa
apreciação positiva

1447
Ocorrências 37 Ocorrências 31

do ‘mas’ do „mas‟

Fonte: O autor.

Com esses dados estatísticos, foi possível observar que a conjunção


“mas” era um operador argumentativo muito presente em ambos os tipos
de resenhas, tendo em cada resenha pelo menos uma ocorrência do
operador, tendo resenhas que chegavam a conter oito ocorrências.
Diante disso, passou-se a análise utilizando-se como base teórica os
trabalhos de Ducrot (1981), acerca da classe argumentativa e escala
argumentativa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A interação social mediada pela língua tem por base,


principalmente, a argumentatividade (KOCH, 2011). O ser humano
constantemente avalia, julga, critica, produz e reproduz discursos. Por
meio destes, procura influenciar o comportamento do outro, tenta levar
o seu interlocutor a se identificar ou concordar com suas ideias e
comportamentos. Pode-se afirmar que nenhum indivíduo é neutro, pois
sobre todo e qualquer discurso há uma ideologia. Sendo assim, o ato de
orientar um discurso em determinado sentido, advém com a finalidade
de obter uma determinada conclusão, ou seja, argumentar é um ato
linguístico fundamental.

1448
Segundo a concepção da ‘argumentação na língua’, defendida
por Ducrot, há na própria estrutura do enunciado algumas marcas que
detêm a função argumentativa, ou seja, o valor argumentativo de uma
frase não é só uma consequência das informações presentes nesta, mas
a frase “pode comportar diversos morfemas, expressões, termos que,
além de seu conteúdo informativo, servem para dar uma orientação
argumentativa ao enunciado, a conduzir o destinatário em tal ou qual
direção” (DUCROT, 1981. p.178).

Ademais, a teoria estabelece que a argumentação seja construída


no plano exclusivamente linguístico. Os pesquisadores, portanto,
estudam a “capacidade projetiva dos enunciados, da expectativa
criada por sua enunciação” (PLANTIN, 2008, p.32). Nessas condições, a
intuição gerada pelo enunciado advém da noção de orientação
argumentativa.

Entende-se por orientar argumentativamente o processo em que


um enunciado se apresenta para dar condições e permitir com que o
seu interlocutor alcance uma determinada conclusão, ou seja, “orientar
argumentativamente é dar A como uma razão para se crer em C. [...] O
que leva à conclusão é o próprio A” (GUIMARÃES, 1987, p. 25). O que
define o sentido de um termo, nesta perspectiva, é a orientação
argumentativa, ou seja, “o que um enunciado quer dizer é a conclusão
para a qual ele está orientado” (PLANTIN, 2008. p.34).

Koch (2010) contribui, seguindo os pressupostos desta concepção,


que o uso da linguagem é essencialmente argumentativo, já que
“pretendemos atuar sobre o(s) outro(s) de determinada maneira, obter
dele(s) determinadas reações (verbais ou não verbais)” (KOCH, 2010, p.
29), ou seja, buscamos dotar nossos enunciados de determinada força

1449
argumental. E, assim, toda língua oferece mecanismos que nos permitem
identificar a orientação argumentativa dos enunciados. Tais mecanismos
são comumente chamados de marcas linguísticas da enunciação ou da
argumentação.

2.1 CLASSE E ESCALAS ARGUMENTATIVAS

Para análise realizada neste trabalho consideramos duas noções


básicas: classe argumentativa (CA) e escalas argumentativas, segundo
a perspectiva de Ducrot (1981).

A noção de classe argumentativa (CA) pode ser verificada


quando

um locutor – entendendo-se por essa palavra um sujeito falante


inserido numa situação de discurso particular – coloca dois
enunciados p e p’ na CA determinada por um enunciado r, se
ele considera p e p’ como argumentos a favor de r (DUCROT,
1981, P. 180)

Deste modo, temos um conjunto de enunciados que podem servir


de argumento para uma determinada conclusão. Nas palavras de
Guimarães (1987, p. 27) “uma classe argumentativa é constituída pelos
enunciados cujos conteúdos, regularmente, se apresentam como
argumentos para uma conclusão que define a classe argumentativa”.

A noção de escala argumentativa se verifica quando se tem dois


ou mais enunciados de uma classe argumentativa se apresentando de
forma gradativa de força crescente no sentido de uma mesma
conclusão, ou seja, “uma escala argumentativa é uma classe
argumentativa em que se configura uma relação de força maior ou

1450
menor dos conteúdos dos enunciados” (GUIMARÃES, 1987, p. 28). Dessa
forma, “o enunciado p’ é mais forte que p, se toda classe argumentativa
que contém p contém também p‟, e se p‟ é nela, cada vez, superior a p”
(DUCROT, 1987, p. 182).

2.2 OS OPERADORES ARGUMENTATIVOS

No jogo comunicativo são vários os recursos possíveis que a língua


disponibiliza no que tange à argumentação. Os operadores
argumentativos são um dos tipos de marcas linguísticas que têm por
função indicar ou mostrar a orientação argumentativa de um enunciado.

Constantemente as conjunções são classificadas pela gramática


em coordenativas e subordinativas, sendo estabelecidas, também,
subclassificações. É evidente que as conjunções têm a função de ligar
orações, contudo, Guimarães (1987), por exemplo, utilizando-se da
perspectiva da Semântica da Enunciação, questionou essa taxonomia,
dando ênfase a outras funções que considera mais significativa.

Os operadores argumentativos estão em classes gramaticais


diversas, como conjunções, advérbios, locuções conjuntivas, ou mesmo
podem não estar incluídos em nenhuma das classes gramaticais. A
gramática tradicional não lhes dá a devida atenção, considerando-os,
como afirma Koch (2011, p.101), apenas como elementos meramente
relacionais, assim como o ensino de língua portuguesa. Contudo, os
estudos de Ducrot (1957) e Guimarães (1987) tornaram possível perceber
que estes também podem ter grande valor argumentativo.

1451
A conjunção “mas”, foco deste trabalho, é considerada por Ducrot
(1957) o operador argumentativo por excelência, por ser utilizado
frequentemente nos mais diferentes enunciados, uma vez que contrapõe
argumentos, sendo um recurso importante no encadeamento de
enunciados.

Segundo Vogt (1989, p. 104) a conjunção adversativa “mas‟ exerce


duas funções diferentes: masSN, advindo do espanhol “sino‟ e do alemão
“sondern‟ e o masPA utilizado em espanhol por “pero e em alemão por
“aber”“. O primeiro retifica, se apresentando após uma proposição
negativa, não tendo, portanto, uma função argumentativa. Já o
segundo têm a função de “introduzir uma proposição q que orienta para
uma conclusão não-r oposta a uma conclusão r para o qual p poderia
conduzir” (VOGT, 1989, P. 104), não exigindo que haja um enunciado
precedente que seja negativo, ou seja, o masPA serve para refutar um
enunciado anterior.

Desta forma, neste trabalho foi considerada apenas a ocorrência


do “mas‟ com a função masPA. Segundo Guimarães (1987) os
enunciados com operadores argumentativos “mas‟ têm a seguinte
orientação argumentativa:

X (A) mas Y (B)


~r
~r
A mas B

1452
Em que A é argumento a favor de r e B argumento a favor de ~r,
sendo este argumento predominante. Portanto A mas B é argumento
para ~r. A conclusão final, portanto, será a conclusão ~r.

2.3 SKOOB E SUAS FERRAMENTAS

Entende-se que as redes sociais, de acordo com Franco (2010), não


são ambientes de simples participação, mas de diálogo. Segundo
Recuero (apud GOMES, 2010, p.4), são os usuários os responsáveis por
formarem as redes, e não necessariamente o site em que esta interação
acontece, pois, “embora os sites de redes sociais atuem como suporte
para as interações que constituirão as redes sociais, eles não são, por si,
redes sociais”.

Tendo por base essa concepção, o Skoob


(https://www.skoob.com.br/) foi escolhido por ser uma rede social
brasileira colaborativa, cujos usuários, denominados de skoobers,
interagem uns com os outros a partir de suas leituras. A rede social foi
lançada em 2009 e desenvolvida por Linderberg Moreira. A experiência
proporcionada pelo Skoob é similar a outras, já existentes, como o
GoogleReads (https://www.goodreads.com/)

A rede social Skoob se destaca no ambiente virtual por ser um


canal de interação fácil e dinâmico, com uma interface bonita e
comandos intuitivos e práticos. A plataforma permite a interatividade
com outras redes sociais, assim como com lojas de comércio eletrônico.
As ferramentas bases que compõem a rede social Skoob são: o perfil do

1453
usuário, a estante virtual, metas de leitura, recados, grupos de discussão,
área de resenhas e vídeos.

Figura 1- Estante Virtual do Skoob

Fonte: Skoob

Dentre todas essas múltiplas ferramentas destaca-se a área de


resenhas, ferramenta que possibilita que o leitor exponha suas opiniões
por escrito, estimulando os outros usuários a ler a obra resenhada. As
resenhas são publicadas diariamente pelos usuários, não seguindo um
padrão de estrutura, contudo, sempre tendo o foco na opinião e
avaliação das obras.

O gênero textual é a concretização do texto em formato e função


definidos social e discursivamente. Não é estático, pois pode variar de
aspecto e significação, dependendo da situação de comunicação.
Desta forma, é bem localizável historicamente, uma vez que surge das
interações sociais.

São constantes a renovação e o surgimento de novos gêneros,


conforme a dinâmica social muda. Com o avanço das tecnologias, as

1454
interações virtuais têm aberto espaço para gêneros verbais e não verbais,
assim como estabelece novas estruturas para gêneros existentes.

A resenha, um gênero bastante acadêmico, tem força e presença


constante no cotidiano. Os estudiosos do gênero costumam considerar
dois tipos de resenhas: a descritiva e a crítica. A resenha crítica tem por
objetivo “oferecer informações para que o leitor possa decidir quanto à
consulta ou não do original. Daí a resenha dever resumir as ideias da obra,
avaliar as informações nela contidas e a forma como foram expostas e
justificar a avaliação realizada” (MEDEIROS, 146, p.146).

Nas resenhas postadas por usuários do Skoob, é notável que o


destaque de partes do livro e a avaliação final do livro são colocados em
destaque, em detrimento das informações descritivas do livro, já que
estas podem ser encontradas na área de informações sobre o livro na
rede social.

Nas resenhas produzidas nesta rede social, observa-se, ainda, a


imbricação do gênero resenha a algo que pode ser denominado de
gênero comentário. Este gênero tem por característica ser curto e ter
caráter puramente opinativo sobre um problema relacionado com um
texto escrito ou oral, comum nas interações virtuais em redes sociais.
Muitos textos no Skoob possuem essas características, textos por meio dos
quais os usuários emitem sua opinião sobre o seu conteúdo sem se
preocupar em expor informações adicionais mais precisas.

1455
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Como afirmamos, com base em Ducrot, o “mas‟ é um operador


que contrapõe argumentos para conclusões contrárias, ou seja,
apresenta um enunciado que orienta para uma conclusão contrária à
que se teria considerado com apenas o primeiro enunciado. Desta forma,
esse operador argumentativo pode exercer uma função importante na
construção da argumentação dos textos. Assim sendo, foram elaboradas
inicialmente duas hipóteses: o operador “mas” pode exercer a função
de orientar para uma conclusão que se torna um argumento contribuinte
para provar uma tese desenvolvida no texto e orientar para uma
conclusão que será desenvolvida no decorrer do texto inteiro.

Contudo, conforme a análise avançava foi possível levantar uma


terceira hipótese, acerca de uma terceira função que o “mas‟ poderia
exercer. Sendo assim, a análise dos dados tornou possível observar que o
operador argumentativo “mas” nas resenhas da rede social Skoob auxilia
na construção da argumentação destas com, de fato, três funções
possíveis: 1) orientar para uma conclusão que será desenvolvida ao longo
do texto; 2) orientar para uma conclusão que auxilia como argumento
para provar a tese principal do texto ou do parágrafo e 3) orientar para
uma conclusão que será desenvolvida no interior de um ou dois
parágrafos dentro do texto. Estas funções são encontradas em ambos os
tipos de resenhas analisadas, sendo as funções 2 e 3 mais recorrentes.

A fim de exemplificação, apresenta-se a seguir a análise de uma


resenha de apreciação negativa, com o código N#02 (ANEXO A) em
que podemos encontrar os três tipos de função.

1456
O título desta resenha – “Não foi tudo aquilo” - esclarece de
imediato que houve uma decepção com a obra. Esta decepção é
explanada nas primeiras frases da resenha, sendo, então, a tese
norteadora sob a qual a resenha se baseará. Neste primeiro parágrafo,
temos a primeira ocorrência do “mas”: “Eu escolhi ler o livro bem depois
de todo o burburinho para evitar decepção, mas nem assim consegui
escapar”, em que nota-se a seguinte orientação argumentativa:

1) ~r Ler depois do burburinho evitou Ler depois do burburinho


a decepção não evitou a decepção

r ~r
A (é uma obra bonitinha com mas B ( que não passa disso
uma mensagem válida

em que (B) orienta argumentativamente para a conclusão ~r= ler depois


do burburinho não evitou a decepção, sendo esta a que prevalece.
Podemos considerar que este enunciado (B) é um argumento para
reafirmar que as expectativas em torno do livro não foram supridas, ou
seja, o “mas” estabelece uma contraposição em relação ao enunciado
anterior, que nos leva a uma conclusão que comprova a tese principal
do texto.

A segunda ocorrência do “mas” nesta resenha ocorre no


penúltimo parágrafo do texto, em que o resenhista trata do final da obra,
que primeiramente é elogiado em (A), porém (B) orienta para a
conclusão de que o final é vazio, quebrado, e que, desta forma,
decepciona.

1457
2) ~r O final não decepciona O final decepciona
~r
A (O final é tocante e mas B ( ...falta algo..

O locutor, então, desenvolve sua argumentação a partir de (B),


quando diz que “o sentimento é de falta. E não é o vazio pelo final do
livro, mas sim a espera pelo algo a mais”. Desta forma, o “mas” insere
uma conclusão que é desenvolvida no restante do parágrafo e que
também pode ser considerado um argumento para comprovar a tese
principal do texto, que gira em torno de expectativas não supridas.

Podemos observar, também, que ambos os enunciados fazem


parte de uma mesma classe argumentativa, em que é definida a
conclusão “o livro não foi tudo aquilo” ou “o livro não supre as
expectativas”, e que os enunciados citados possuem conteúdos que
podem ser argumentos para tal conclusão, tendo o mesmo peso para
levar o destinatário a chegar a ela. Isto pode ser representado da
seguinte forma:

1458
O livro não foi tudo aquilo O livro não foi tudo aquilo
ou O livro não supre as ou O livro não supre as
expectativas expectativas

Eu escolhi ler o livro bem O final é realmente tocante e


depoisde todo o burburinho surpreendente. O que eu
para evitar decepção, mas pensei o tempo todo na
nem assim conseguir evitar. leitura não aconteceu, e isso
foi muito bom, mas sabe
aquela sensação de que
falta algo?

Essas ocorrências foram verificadas tanto nas resenhas de


apreciação negativa quanto positiva, sendo as funções 2 e 3 mais
recorrentes. Não há uma diferença que estabeleça que o operador
argumentativo ‘mas’ tenha mais força ou presença em algum dos grupos
de resenhas analisados, já que, mesmo havendo intenções diferentes em
cada grupo, as funções que o ‘mas’ exerce são as mesmas e não há,
numericamente, diferença significativa quanto à ocorrência do
operador argumentativo entre os grupos. O que se difere é o discurso
proposto pela obra.

As resenhas de apreciação positiva podem ser encaradas como


um discurso inicial sobre a obra, já que estas podem contribuir para
fomentar o hype, ou seja, as expectativas, o sentimento coletivo sobre a
obra. Em termos de conteúdo, as resenhas de apreciação positiva
costumam apresentar uma interpretação da obra, enaltecem as
personagens. Se observarmos os trechos com a ocorrência do "mas‟,

1459
vemos que não existe uma contraposição direta, em grande parte, se
referindo a expectativas, mas sim, muitas vezes, acrescentando
argumentos que fortalecem os detalhes comentados, podendo gerar,
inclusive, mais expectativa no leitor da resenha.

Nas resenhas de apreciação negativa, podemos observar a


ocorrência maior de argumentos veiculados pela mídia de modo geral e
comentários positivos dos resenhadores sobre a obra. Tais comentários
geraram expectativa nos leitores em torno de variados aspectos da obra,
principalmente em relação ao seu final e aos seus personagens. Podemos
considerar este um discurso externo que pode de imediato ser
recuperado durante a leitura da resenha, discurso este que fica, por
vezes, subentendido ou pressuposto no texto. Sendo este um discurso a
ser quebrado, ou seja, fazer os leitores das resenhas irem para um
caminho diferente, não tendo grandes expectativas em torno da obra.
Como antes afirmado, há nessas resenhas a menção às expectativas não
supridas pelo livro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a realização desta pesquisa, foi possível ter uma ampla visão
do ato de argumentar, algo tão intrínseco a linguagem e ao ser humano.
É interessante notar o quanto a interação virtual favorece um espaço de
opinião, de discussão, em que se pode opinar e discutir sobre diversos
assuntos. Destacamos a rede social Skoob como um espaço de
divulgação, opinião e discussão sobre literatura em geral.

1460
Desta forma, entender o que tem sido produzido nesta plataforma
é um trabalho interessante na medida em que esta é uma plataforma
nova com diversos recursos que podem oferecer auxílio a metodologias
de ensino que prevejam em sua sequência didática o uso de elementos
midiático que estimulem o aprendizado. Do mesmo modo, a rede social
pode ser um propulsor de estímulo para formar novos leitores, e também
um resgate pelo gosto da leitura daqueles que por algum motivo
deixaram de lado este hábito. Pode-se perceber que, por meio das
ferramentas disponíveis, a experiência de leitura torna-se ainda mais
interativa, afinal, se você gosta de uma leitura, você quer conversar sobre
ela.

Diante disto, levando em consideração os objetivos desta pesquisa,


foi possível perceber que esta conseguiu contribuir para caracterizar uma
das formas de interação entre usuários desta plataforma, apontando
aspectos da construção argumentativa destes usuários acerca dos livros
ali divulgados e cadastrados. O uso do operador argumentativo “mas”
mostrou-se fundamental nessa construção, pois era utilizado com funções
determinantes para apontar a tese principal do texto, orientar para uma
conclusão que auxilia como argumento para provar a tese principal do
texto ou parágrafo, ou orientar para uma conclusão que será
desenvolvida no interior de um ou dois parágrafos dentro do texto. Estas
funções ocorrem nos dois tipos de resenhas estudados, tendo como
diferença principal o discurso proposto por estas.

Esta diferenciação deixa em aberto um estudo mais aprofundado,


a fim de entender, entre outras coisas, como o marketing e as próprias
resenhas publicadas no Skoob, além dos outros locais onde há opinião
sobre literatura, influenciam na construção dos textos desses leitores que
se propõem a resenhar livros nesta plataforma.

1461
Por fim, acredita-se que este trabalho possibilita compreender e
caracterizar uma rede social que tem ferramentas interessantes, com
boas possibilidades de usos em diversos contextos, além de ter um
ambiente de discussão constante sobre literatura, em que a
argumentação é um fator fundamental. Desta forma, esses
conhecimentos e discussões aqui construídos estarão a partir de agora
abertos aos trabalhos vindouros.

REFERÊNCIAS

DUCROT, Oswald. Provar e Dizer: leis lógicas e leis argumentativas. São


Paulo: Global Editora, 1981.

FRANCO, Augusto. Redes são ambientes de interação,


não de participação. Disponível em:
<http://escoladeredes.net/profiles/blog/show?id=2384710%3ABlogPost%
3A67604&commentId=2384710%3AComment%3A68229.> Acesso em: 29
de junho de 2021.

GUIMARÃES, Eduardo. Texto e Argumentação: um estudo de conjunções


do português. Campinas, SP: Pontes, 1987.

KOCH, Ingedore Villaça. A Inter-Ação pela linguagem. (10. ed.) São Paulo:
Contexto, 2010.

MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade.


Petrópolis: Vozes, 2016.
PLANTIN, Cristian. A Argumentação: história, teorias, perspectivas. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.

VOGT, Carlos. Linguagem, pragmática e ideologia. São Paulo: Editora


Hucitec, 1989.

1462
ANEXOS
ANEXO A - RESENHA
N#02

Nota: 3 // Data da postagem: 16.10.2012 Não foi tudo aquilo

Eu sei que MUITAS pessoas vão discordar de mim nesta resenha. Justamente
porque eu estou discordando delas. Infelizmente minhas expectativas para o
livro A Culpa é das Estrelas do John Green estavam absurdamente altas. O que
aconteceu? Não foi tudo aquilo que eu imaginava. Eu escolhi ler o livro bem
depois de todo o burburinho para evitar decepção, mas nem assim consegui
escapar.

O livro que conta a história de Hazel e Gus. Dois adolescentes que tem
envolvimento com o câncer. Hazel é uma paciente terminal que tem câncer
desde os 13 anos e a grande dúvida dela não é se vai morrer, mas sim quando
irá morrer. Pode acontecer a qualquer momento e bem, a mãe dela só quer
que ela aproveite enquanto pode da sua vida. Hazel é uma personagem
irônica ao extremo e impaciente com a atitude das pessoas com os pacientes
de câncer. A vida dela muda completamente quando conhece Augustus
Waters em mais uma sessão do Grupo de Apoio a Crianças com Câncer.
Augustus é tudo que Hazel precisava para voltar a ter vontade de fazer as coisas.
O motivo. O problema é que Hazel não quer ser a grande bomba prestes a
explodir a qualquer momento em sua vida.

No começo eu fiquei bem cansada da Hazel, fiquei irritada com as atitudes dela
e argh, sem paciência para ler as páginas de lamentação por algo que ela não
queria lamentar (?). A história só me prendeu bem depois da metade do livro.
Com uma grande aventura de Hazel e Gus até então eu não tinha visto nada
demais no livro. O final é realmente tocante e surpreendente. O que eu pensei
o tempo todo durante a leitura não aconteceu, e isso foi muito bom. Mas sabe
aquela sensação de que falta algo? Apesar de ficar arrasada com o final,
penso que cadê tudo aquilo? O sentimento é de falta. E não é o vazio pelo final
do livro, mas sim a espera pelo algo a mais.

Minha dica para quem ainda não leu: Não vá com muita expectativa, tenho
medo que você se decepcione como eu. Aliás, torço para que sua experiência
seja melhor que a minha.

1463
Ocorrência do ‘mas’ em N#02

Eu escolhi ler o livro bem depois de todo o burburinho para evitar decepção,
mas nem assim consegui escapar.
O final é realmente tocante e surpreendente. O que eu pensei o tempo todo
durante a leitura não aconteceu, e isso foi muito bom. Mas sabe aquela
sensação de que falta algo?

1464
1465

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