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FAMÍLIA ESCRAVA NAS PLANTATIONS DO MARANHÃO:

Demografia e sociabilidades (1785/1825).1


Prof. Dra. Antonia da Silva Mota
Depto. de História, Mestrado em História Social – UFMA
Pós-doutoranda junto ao NEPO/UNICAMP
e-mail: motaufma@gmail.com

O objetivo maior deste artigo é expor os dados quantitativos referentes à família dos
escravos constantes nos inventários post mortem da ribeira do Itapecuru, no período de 1785 a 18252.
Nossa amostra é constituída pelos documentos avulsos encontrados no Arquivo do Tribunal de Justiça
do Maranhão, que trazem os espólios de proprietários dessa importante área de produção agrícola.
Devido as distâncias temporais existentes entre os documentos, resolvemos dividi-los em dois
momentos: os primeiros representam bem a conjuntura das primeiras fazendas implantadas na região,
ainda sob os efeitos da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-75), em que os
titulares faleceram na década de oitenta do século XVIII. Em outro momento, com registros
representativos do final da Colônia, ficaram preservados outros tantos, datados das primeiras duas
décadas do século XIX.
Analisamos os plantéis de escravos constantes em 27 inventários post mortem, com
registros referentes a 2.561 escravizados, estando entre estes 1.407 africanos, atingindo um percentual
de 54, 93%. Os comissários avaliadores anotavam quando havia laços conjugais e de consanguinidade
entre os escravos, tendo sido feitas 440 anotações, cujos membros foram reconhecidos como fazendo
parte de grupos familiares, com diferentes perfis: nucleares, matrifocais, patrifocais e extensas.
Os documentos foram distribuídos na Amostra por ano, como indicamos abaixo:

1
Essa pesquisa foi apresentada no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP, ocorrido em São
Pedro/SP, de 24 a 28 de novembro de 2014.
2
Gostaria de agradecer o empenho de Nádia Maria Santos Ribeiro e Sâmia Cristina Sousa Silva, alunas do curso de
graduação em História/UFMA e bolsistas de iniciação científica da FAPEMA e do CNPQ, que digitalizaram os dados dos
inventários no banco de dados apresentado.
Inventários post mortem das plantations da Ribeira do Itapecuru-MA (1785 a 1825)

Ano do Quantidade Números Escravos Famílias


Inventário de de Africanos/ cativas
documentos escravos Porcentagem anotadas
arrolados
1785 01 56 05* 14
1788 01 76 51 (67,1%) 17
1800 03 186 95* 26
1801 01 200 99 (49,5%) 45
1802 01 43 39 (90,7%) 04
1804 03 235 173 (73,6%) 61
1805 02 105 48 (45,7%) 14
1806 01 137 60 (43,8%) 23
1813 02 253 155 (61,3%) 30
1814 02 286 125 (43,7%) 55
1816 02 322 168 (52,2%) 51
1817 01 49 45 (91,8%) 04
1818 01 31 14 (45,2%) 02
1819 01 109 48 (44,03%) 22
1821 02 134 80 (59,7%) 10
1824 02 146 81 (55,5%) 19
1825 01 193 115 (59,6%) 43
Totais 27 2.561 1.407 440
Fonte: Arquivo do Tribunal de Justiça do Maranhão. Processos avulsos de Inventários post
mortem de proprietários da Ribeira do Itapecuru-MA (1785 a 1825), Comarca de São Luís.
Nota: observamos que dois inventários destoam da maioria, foram os casos das titulares Maria
de Moraes Rego(1785) e de Izabel Cantanhede (1800), em que escravarias numerosas
apresentam poucas indicações sobre a origem étnica dos trabalhadores.

Na capitania do Maranhão, a ribeira do Itapecuru era a região mais densamente povoada,


para qual dispomos ainda de inúmeros outros registros, como os testamentos, os assentos batismo, e
um censo feito em 1801. Utilizaremos tais conjuntos documentais para matizar aspectos da formação
e manutenção das relações familiares entre os sujeitos escravizados.

No estado do Grão-Pará e Maranhão importantes mudanças se deram na segunda metade


do século XVIII, pois na tentativa de sanar a grave crise econômica, ocasionada pelos baixos preços
do açúcar no mercado internacional e o esgotamento das minas de ouro e diamantes de Minas Gerais,
a Coroa portuguesa decidiu explorar suas potencialidades. Foram implementadas ações coordenadas
pelos ministros do rei através da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, criada em 1755,
com o objetivo de estimular e diversificar a produção agrícola e inserir essa imensa região no mercado
agroexportador. Para impulsionar o cultivo do algodão e do arroz foram concedidas terras,
empréstimos, insumos e mão-de-obra vinda do continente africano a baixos preços e a prazo para
aqueles que cultivassem gêneros agrícolas para exportação. Sobre a entrada de mão-de-obra para
trabalhar nas lavouras de algodão e arroz, calcula o historiador Mathias Assunção que, “no período
da Companhia foram trazidos 12.000 africanos, estes números passam para 35.000 entre 1778 e 1800,
crescendo para, pelo menos, 48 mil entre 1801 e 1820” (ASSUNÇÃO, 1999, p. 30).
Logo levas de migrantes de origem europeia acorreram à nova fronteira agrícola. Em
poucas décadas, começaram as exportações de algodão, arroz, cacau, madeira, couros e outros
produtos, em larga escala. Particularmente, o algodão encontrou um mercado consumidor altamente
favorável com o desenvolvimento da indústria têxtil na Inglaterra. Ante o “boom” econômico e o surto
demográfico decorrente, logo se dinamizou também a importação de produtos manufaturados vindos
da Europa. Nesse movimento, os comerciantes foram altamente favorecidos: controlavam a
importação de mercadorias e de escravizados vindos da África e ainda escoavam a produção local.
Naquele momento, a ribeira do Itapecuru era a região econômica mais produtiva,
concentrava 2/3 de toda a atividade agrícola. Navegável a partir da cidade de São Luís, sede da
capitania e do principal porto, decorreu daí sua importância, fato que nos permite apreendermos os
padrões demográficos e econômicos no que se refere às fazendas, seus proprietários e trabalhadores.
Os naturalistas Spix e Martius, vindos da vila de Oeiras-Piauí e passando pela importante vila de
Caxias em direção à cidade de São Luís, atravessaram a ribeira do Itapecuru, em 1819, e deixaram
suas impressões:
[...] Caxias (Vila desde 1812), antigamente Arraial das Aldeias Altas, é uma das mais florescentes vilas do
interior do Brasil. Monta a 30.000 o número de habitantes do seu termo. Deve a sua prosperidade à cultura
do algodão, explorada desde uns vinte e tantos anos, com afinco, em seu interior, e fomentada em toda a
província pela Companhia de Comércio do Maranhã e Grão-Pará, assim como à atividade comercial de seus
habitantes, entre os quais se encontram muito europeus. Mais da metade de todo o algodão produzido na
província é despachado daqui para a capital, e, nos últimos anos, o número de fardos embarcados em Caxias,
cada um do peso de 5 a 6 arrobas, subiu a 25.000 e até 30.000, que, avaliando baixo, mesmo no interior,
vale uns 1.650.000 ou 1.980.000 florins. [...] Comunica-se Caxias com a capital do Maranhão apenas pelo
Rio Itapicuru. Os caminhos por terra, que passam ao longo dele, de uma fazenda para outra, só servem para
cavaleiros e são apenas transitáveis para os cargueiros, [...] A metade da viagem até a Vila de Itapicuru-
Mirim foi de navegação demorada e monótona; a barcaça ora topava com rochas e bancos de areia, ora
ficava presa entre troncos de árvores, trazidas pela grande inundação deste ano. [...] Esta última vila, está
situada numa elevação e apenas dá a perceber exteriormente o considerável comércio que se movimenta
daqui para a capital e ao longo de toda a ribeira do Itapicuru. Este lugar[Itapecuru-Mirim], antigamente
denominado Feira, deve a sua origem ao comércio de gado bovino, pois aqui os sertanejos negociam a venda
das boiadas, vindas do Piauí e do interior do Maranhão, em troca de tudo que precisam. Na maioria das
casas, acham-se lojas, onde estão expostas à venda grandes quantidades de chitas, artigos de ferro,
porcelanas e louças de barro, vinhos, licores e gêneros de Portugal. Aqui reside o vigário colado de extensa
freguesia, que se dilata até aos limites de Caxias. [...] O número de fazendas estabelecidas à beira do rio,
daqui em diante, é cada vez maior; fazem parte da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário, chamada
vulgarmente de Itapicuru Grande (Grifo nosso) (SPIX & MARTIUS, 1981, pp 231 a 241).

A partir do relato dos naturalistas fica claro que era uma única região econômica, formada
por algumas vilas importantes - como Caxias [antes, Arraial das Aldeias Altas], Itapecuru e Rosário
– e inúmeras fazendas implantadas em suas margens. A partir da vila de Caxias, localizada
estrategicamente na antiga rota das boiadas, área de confluência de Pernambuco, Piauí e Maranhão, o
trânsito de pessoas e mercadorias era intenso pelo rio Itapecuru, utilizando embarcações de vários
portes, movimento que desaguava já nas proximidades de São Luís.
Nas fazendas implantadas no vale do Itapecuru, quanto ao perfil étnico dos trabalhadores,
os registros nos dão conta de plantéis de trabalhadores formados majoritariamente por indivíduos
oriundos do continente africano. Observamos também que se multiplicavam as famílias moldadas
pelo cativeiro: grupos unidos por laços de convivência e consanguinidade, compostos por poucos
indivíduos, que seguiam um padrão social, como vemos no rol de bens registrado abaixo:
[...] Escravos

Manoel, benguela, de idade de quarenta anos, avaliado em cento e vinte mil réis .............................120$00
Rita, mina, sua mulher, vinte e cinco anos, avaliada em cento e quarenta mil réis ............. 140$000
Bonifácio, mandinga, vinte e oito anos, quebrado nas virilhas, sessenta mil réis ..... 60$000
Luzia, caxeu, sua mulher, de idade de vinte e cinco anos, avaliada em cento e vinte mil réis ..... 120$000
Úrsula, crioula, filha dos ditos, de idade de seis anos, avaliada em sessenta mil réis.... 60$000
(Arquivo do Tribunal de Justiça do MA. Inventário post mortem de Bento da Cunha, 1788).

Estabelecido na Ribeira do Itapecuru, o proprietário rural Bento da Cunha plantava


algodão e arroz utilizando a força de trabalho de setenta e seis escravos, em sua imensa maioria
africanos, de diversas etnias. Em meio ao rol dos escravos foram identificadas quinze famílias, donde
vimos que seis delas eram formadas apenas pelo casal, em cinco outras foi registrada a presença do
casal e filho, e três famílias um pouco maiores: apresentando pai, mãe e dois filhos. Havia ainda uma
matrifocal, representada pela mãe e filho recém-nascido.
O português Bento da Cunha morava com sua família na rua Formosa em São Luís, como
a maioria dos “lavradores” deste período que, direcionados pelas determinações centralizadoras do
ministério pombalino, residiam nos centros urbanos com suas famílias e deixavam suas propriedades
rurais entregues a administradores e feitores. Constatamos que mais de dois terços dos plantadores de
algodão e arroz não possuíam casas de vivendas nas fazendas, mas construíram suntuosas moradias
nas proximidades do porto de São Luís (MOTA, 2012, p.89). Portanto, o plantel de cativos desse e de
muitos outros proprietários rurais maranhenses encontrava-se dividido entre a casa na cidade e as
fazendas; tal particularidade incide no cômputo da razão entre os sexos nos planteis, uma vez que as
mulheres eram a maioria no serviço doméstico junto às famílias dos senhores.
Inventário de Bento da Cunha, distribuição etária e por sexo, 1788.
Faixa etária Homens Mulheres Razão de sexo
(0-14) 11 05 2,2
( 15-49) 35 21 1,6
(50/+) 02 02 1,0
Fonte: ATJMA, Inventário avulso de Bento da Cunha, Comarca de São Luís, 1788.
Os dois inventários que iniciam a amostra, um de 1785, pertencente à família de Maria de
Moraes Rego, e outro de 1788, de Bento da Cunha, apresentam informações sobre cento e vinte e
nove escravos, a maioria com a indicação de origem “Caxeu” e “Guiné-Bissau”, portos no continente
africano. No segundo inventário, do mesmo Bento da Cunha, foram arrolados 76 escravos, sendo que
desses, 67% era de africanos em idade adulta. Entre os escravos adultos, a razão de sexo ficou em 1,6,
indicativo da preferência do elemento masculino na composição dos plantéis em fazendas voltadas
para agroexportação. Tal razão provavelmente seria maior se excluíssemos as escravas arroladas logo
após a casa de vivenda em São Luís.
O segundo bloco de documentos que perfazem nossa amostra, apresenta o perfil de
propriedades rurais cujos donos faleceram nas primeiras décadas do XIX. O conjunto encontra-se
formado por 25 documentos, que abarcam o período de 1800 a 1825, quando constatamos mudanças
no perfil étnico e aumento no preço dos escravos. No entanto, quanto à estrutura das posses em tais
propriedades nenhuma mudança se verificou, pois continuaram a predominar plantéis acima de
cinquenta escravos, como vemos abaixo:
Estrutura da posse dos escravos, Ribeira do Itapecuru (1800 a 1825)
Faixa Tamanho da Propriedade Número de proprietários
Grande (20-49) 09
Muito Grande (50-99) 07
Mega plantéis(100/+) 09
Fonte: ATJMA, inventários post mortem avulsos do período 1800 a 1825, São Luís.
Como vemos na tabela acima, não confirmamos a existência nem de pequenos, nem de
médios plantéis entre os plantadores de algodão e arroz desse período. Por outro lado, sobre o perfil
social dos proprietários, em estudos anteriores (MOTA, 2012) indicamos que a maioria fazia parte de
famílias ligadas a funcionários régios, a maioria portugueses, e que no período da Companhia
receberam sesmarias e incentivos para produzir com vistas ao mercado internacional. Anotamos
também que alguns “estrangeiros” - devidamente naturalizados e casados com moças oriundas de
famílias portuguesas pioneiras, chegaram a atingir grandes fortunas, como foi o caso de Pierre
Lamagnère, capitão de navios de origem francesa que se casou com uma moça pertencente à uma das
mais importantes famílias do início da colonização. Quando seu filho, Pedro Miguel Lamagnère
morreu, em 1816, deixou a seus herdeiros maranhenses espólio composto por duzentos escravos,
sendo que 45,5% haviam nascido no continente africano. Embora os africanos ainda fossem maioria,
se somarmos os nascidos em África e seus filhos, verificamos que os crioulos em idade adulta
começaram a se manifestar nas estatísticas.
Inventário de Pierre Lamagnère, distribuição etária e por sexo, 1816.
Faixa etária Homens Mulheres Razão de sexo
(0-14) 15 33 0,45
( 15-49) 87 47 1,85
(50/+) 06 08 0,75
Nota: quatro escravos eram “crias de peito”, sem definição de sexo e idade.
Fonte: ATJMA, inventário post mortem de Pedro Miguel Lamagnère, 1816, São Luís.

Nas propriedades dessa região predominavam plantéis numerosos espalhados por várias
unidades produtivas. Explicamos: por maior que fosse a posse de escravos, plantar arroz e algodão
nos moldes maranhenses não demandava um plantel maior que quarenta trabalhadores. No caso de
Pierre Lamagnère, o plantel estava dividido entre seu solar na rua da Paz, as três fazendas de
plantações de algodão e arroz, uma fazenda de criação de gado e um engenho de moer cana, sendo
que todas as unidades de produção estavam situadas em localidades diversas na ribeira do Itapecuru.
Estudos especializados têm comprovado que quanto maior o plantel, maiores as
possibilidades do surgimento de laços familiares entre os que nele labutavam. De fato, entre os
duzentos escravos em posse desse senhor foram indicados vinte núcleos familiares: dois constituídos
apenas do casal, oito o casal com filhos, oito matrifocais e duas em que apenas o pai e os filhos
aparecem. Na fazenda “Vamos ver”, onde labutavam trinta e nove escravos, foi anotada a família
formada a partir da crioula Felícia, que fugia aos padrões da região:
Foi dado mais a descrever uma escrava de nome Felícia, crioula, com quarenta e cinco anos [...] avaliada
em cento e vinte mil réis.... 120$000
Foi dado mais a descrever um crioulo de nome Inácio, filho da dita, de vinte e dois anos, oficial de
carpinteiro, avaliado em trezentos mil réis ... 300$000
Outro crioulo, filho de Felícia, de nome João, com dezessete anos, avaliado em duzentos e cinquenta mil
réis ...............250$000
Foi dado outra crioula de nome Felicidade, filha de Felícia, de vinte anos, avaliada em duzentos mil réis
........ 200$000 (ATJMA, Inv. de Pedro Miguel Lamagnère, 1816, p. 94).

O grupo familiar acima era formado já por “crioulos”, o que denota um contexto em que
aparecem nas escravarias já os descendentes das primeiras levas de populações trazidas na segunda
metade do século XVIII, embora o contingente de escravos adultos nascidos no continente africano
ainda fosse maioria. Outra particularidade: a chefe desse grupo manteve junto a si três filhos adultos,
o que não era normal, pois a maioria dos agrupamentos formados em cativeiro apresentava filhos em
tenra idade.
Talvez se mencionarmos famílias de “privilegiados” dentro da escravaria ajude o leitor a
visualizar melhor a estrutura das famílias surgidas em condições tão adversas. Em 1824, foram
arrolados os bens de Bernardino Pereira de Castro, em que aparecem trinta e sete escravos, a maioria
deles trabalhadores de sua fazenda de cultivo de algodão e arroz na ribeira do Itapecuru:
Declarou o tenedor e administrador Fernando Pereira de Castro a este inventário um escravo casado por
nome Benedito, feitor, de nação mina, de idade que mostrou ter sessenta anos, pouco mais ou menos [...]
avaliado em duzentos mil réis ... 200$000
Uma escrava por nome Micaela, mulher do dito, de idade que mostrou ter quarenta anos, de nação bijagó,
avaliada pelo preço de cento e sessenta mil réis ... 160$000
Um escravo crioulo, por nome Paulino, casado, de idade que mostrou ter trinta anos [...] avaliado em
trezentos e cinquenta mil réis ... 350$000
Uma escrava crioula por nome Ana, mulher do dito, de idade que mostrou ter trinta e cinco anos [...] avaliada
em duzentos e oitenta mil réis ... 280$000
Um escravo por nome Lourenço, crioulo, filho dos ditos, de idade de cinco anos, avaliado em cinquenta mil
réis ... 50$000 (Grifo nosso).
(ATJMA, Inv. de Bernardino Pereira de Castro, 1824)

Embora os chefes de famílias acima mencionados se distinguissem do resto da escravaria


por suas funções e por sua origem étnica, pois o primeiro cabeça de casal era feitor e o segundo um
crioulo com mais de trinta anos, conseguiram legitimar seus laços conjugais, destoando da estrutura
dos núcleos familiares encontrados na região, como veremos mais adiante.

A família dos escravos: demografia, sociabilidades


Os estudos sobre a família escrava encontram-se bem avançados, seguindo uma
metodologia que pouco varia: abordam quase sempre uma localidade, onde realizam estudo
demográfico e depois análises mais qualitativas, tentando chegar aos aspectos culturais, no caso à
herança africana na formação e manutenção dos lares dos sujeitos escravizados. As pesquisas
realizadas para São Paulo e Minas Gerais utilizam basicamente os mapas nominativos de população
e os inventários post mortem. Estudando os municípios de Lorena e Campinas, Robert Slenes
desenvolve uma metodologia que ele intitula “cruzamento de fontes”, sempre valorizando a
“experiência” dos indivíduos, sob forte influência da história social thompsoniana. Sobre a formação
dos núcleos familiares entre os cativos, o autor sintetiza seus objetivos ao afirmar que “os escravos
tinham normas familiares próprias, que não eram simplesmente derivadas de seus senhores” e que “a
cultura, transmitida e reformulada entre as gerações, fornecia aos escravos recursos importantes para
enfrentar e subverter as condições de seu cativeiro”. Buscando através de estudos demográficos e
culturais o significado da formação de tais agrupamentos, Slenes conclui que, “a família é importante
para a transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre as gerações (2013, p.47 e 124)”.
Por seu turno, no nordeste brasileiro, Stuart Schwartz em seu clássico Segredos Internos
realizou um estudo demográfico das famílias escravas nas unidades açucareiras do Recôncavo baiano.
O autor apontou a proliferação dos núcleos familiares nas unidades produtivas, concluindo que a
família foi fundamental na vida dos escravos, pois lhes proporcionava apoio no cotidiano, por
exemplo, no caso de doenças, e consolo para suportar o cativeiro (1988, p. 330).
No entanto, trata-se de objeto de estudo complexo, que já deu margem para muitas
polêmicas. Por exemplo, o historiador Rafael de Bivar Marquese, em sua pesquisa sobre as estratégias
usadas pelos senhores no sentido de controlar seus escravos, apresenta outra visão sobre a proliferação
dos núcleos familiares sob condição escrava. Analisando os compêndios dos séculos XVI, XVII e
XVIII, verificou que o estímulo à formação das famílias era recomendado aos senhores, como se
observa no extrato abaixo, retirado de um manual sobre como tratar a escravaria:
Os senhores deveriam adotar uma disposição moderada, mas ativa, em relação à mão-de-obra. O fomento
ao estabelecimento de relações conjugais entre os cativos atuaria nesse sentido, pois seria um excelente meio
de lhes suavizar o jugo e os ter com resignação sujeitos ao domínio em razão da mulher e filhos, seus caros
penhores, que os retêm e consolam (MARQUESE, 2004, p. 179).

Portanto, para além da visão inicial, de considerar o registro cartorial de tais ajuntamentos
como um reconhecimento de sua humanidade, fica claro que os senhores tinham interesses na
formação das famílias entre os escravizados, com vistas a manter o domínio senhorial.
Existem interpretações díspares sobre tal fenômeno social, Robert Slenes sintetizou as
várias concepções sobre o tema em fala realizada em simpósio temático:
Florestan Fernandes argumentava que a destruição da família escrava era essencial para a manutenção do
escravismo. Criando escravos anômicos, sem capacidade política consequente, é que os senhores podiam
viver sossegados. Recentemente, Florentino e Góes têm posto este argumento de cabeça para baixo. Era só
criando escravos com compromissos entre si que os senhores podiam garantir a paz nas senzalas. Nos
estudos destes autores, a existência da família escrava é considerada, explicitamente, como uma condição
estrutural para a continuidade do escravismo (Tempo, revista da UFF, Vol. 3 – nº 6, Dezembro de 1998).

Robert Slenes discorda da argumentação dos dois autores citados, embora reconheça que,
“em todas as sociedades, quem está com mais de trinta anos e com compromissos familiares
dificilmente se tornará um revolucionário”, conclui o autor:
A família cativa emerge de um processo de conflito entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder um
certo espaço para os escravos formarem famílias, encarando isso porém como parte de uma política de
desmonte de revoltas. A política funciona até certo ponto, pois ao dar ao escravo algo a perder, ela o torna
mais vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo, contudo, o espaço acaba sendo
altamente subversivo, pois é usado pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade
própria, antagônica à dos senhores e forjada a partir da descoberta de tradições africanas compartilhadas
(Folha de São Paulo – ilustrada, 12/2/2000).

O que é consenso entre os historiadores é a importância de estudar a família escrava. No


Maranhão, embora proprietários de escravos reconhecessem tais vínculos entre os escravos, a grande
maioria não hesitava em quebrá-los, caso isto lhe fosse conveniente. Estamos nos referindo à prática
comum naquela formação social de legar a filhos e netos “escravinhos”, como vemos de forma
recorrente nas recomendações testamentárias:
Declaro que dei a minha neta Feliciana um crioulinho, filho da minha escrava Rita Quitéria, que se acha no
serviço da minha filha Luiza [...] Deixo a meu neto José Marcelino o segundo filho da mencionada escrava
Rita Quitéria [...] Declaro haver feito troca da minha escrava Andressa pelo crioulo George com a minha
filha Francisca, cuja troca ficou sendo firme valiosa desde que a dita minha filha se emancipou e que lhe fiz
entrega de sua legítima, razão porque não deve entrar em dúvida pertencer-lhe todos os “produtos” da
mesma escrava [Andressa], quanto à filha que esta tinha ao tempo que passou para o domínio da dita minha
filha (por nome Cândida) é bem constante que esta pagou por ela trinta mil réis (Grifos nossos) (ATJMA,
Test. Maria Magdalena Belfort, 1794, fl. 05).

A documentação notarial maranhense guardou inúmeros registros como esse, em que avós
zelosas distribuem os filhos das escravas entre seus descendentes menores. À primeira leitura, parece
que entre os senhores o cuidado com os seus estava na mesma proporção que a desconsideração com
os filhos das escravas, pois eram tratados como coisa, como “produtos”, mercadoria: podiam ser
doados, trocados, vendidos, separados de suas mães. Vendo a questão mais de perto, as senhoras acima
mencionadas faziam parte do mesmo grupo social, eram mãe e filhas, provavelmente moravam em
fazendas próximas, então, pode ser até que tenha sido possível às escravas Rita e Andressa zelar de
longe por eles, vê-los por ocasião das festas de família ou religiosas, batizá-los com padrinhos de sua
conveniência, tecendo redes de solidariedade. Existe a possibilidade que as escravas tenham sido
privilegiadas por sua senhora, uma vez que saberiam onde seus filhos estavam, reduzindo as chances
de serem vendidos para longe de suas mães. São conjecturas, mas é um fato que alguns grupos
familiares entre os cativos conseguiram se manter unidos por gerações, jogando com as armas
possíveis dentro do escravismo.
Por outro lado, deduzimos que de tais práticas existentes entre os senhores escravistas
maranhenses reside a causa dos registros de tantos casais de escravos sem nenhum ou com apenas
filhos muito pequenos junto a si. Talvez seus filhos estivessem em fazendas próximas, separados que
foram por ocasião das partilhas. Outra possibilidade era de seus filhos estarem dentro do próprio
espólio, uma vez que os maiores de quatorze anos já eram considerados adultos.
Quanto ao aspecto moral, os estudiosos da colonização portuguesa se reportam às
admoestações da Igreja quanto à doutrinação cristã dos escravos, sendo esta a justificação maior do
escravismo: tirá-los do paganismo em África, salvar a alma dos infiéis. Imbuídos de tais propósitos
foi que muitos proprietários batizaram seus escravos, produzindo outra série documental importante,
como vemos no extrato abaixo:
No dia vinte e oito de setembro de mil oitocentos e seis, nesta freguesia de Nossa Senhora das Dores do
Itapecuru [...] batizei e pus os santos óleos, o reverendo Antônio Fernandes Pereira, a inocente Jacinta, filha
de Mônica, escrava do Dr. Henrique Guilhon, por padrinho Melchior, escravo dos órfãos de Joaquim
Antônio de Launé e para constar fiz este assento que assino est Supra. José Carlos Pereira de Burgos –
Vigário (Arquivo Público do Estado do Maranhão, Livro de Registros de Batismos, 1806-1813, fl. 02).

Autoridades religiosas exortavam os senhores a que permitissem que seus escravos


frequentassem a missa aos domingos, que lhes fossem administrados os sacramentos, entre eles o
batismo e o casamento cristão. Neste ponto - da sacramentalização dos laços conjugais - surgiram
conflitos inevitáveis entre Igreja e senhores de escravos, uma vez que do ponto de vista moral separar
famílias unidas pela igreja ocasionava inúmeros problemas. A leitura dos documentos mostra que os
senhores, devido a diversos fatores, impunham obstáculos à formalização dos enlaces entre seus
escravos, mesmo assim muitos se casaram na igreja. No Censo feito em 1801 na capitania do
Maranhão, precisamente na paróquia Nossa Senhora do Rosário do Itapecuru, de um total de 12.718
pessoas, o vigário Antônio Rodrigues de Oliveira Tezo registrou que 7.479 eram cativos, entre
“pretos” e “mulatos”; portanto, quase sessenta por cento da população dessa freguesia era de cativos.
Conforme tal censo, feito por freguesias, entre os cativos mencionados, 4.266 pessoas eram casados,
sendo que os viúvos representavam 209 pessoas, os solteiros eram 3.004 pessoas (BPBL, Mapas
estatísticos da Capitania do Maranhão, 1801). Trata-se de dados aproximados sobre a formação dos
núcleos familiares, pois a Igreja os reconheciam apenas quando sacramentados, portanto, deveriam
existir muito mais famílias entre os escravizados que as anotadas pelo vigário Tezo.
Uma vez por ano os padres saíam em “desobriga” pelos povoados e fazendas, mas devido
a entrada massiva de escravizados no período, acreditamos que a maioria ficou sem os sacramentos.
Situação semelhante se dava na Bahia colonial, segundo Schwartz “embora os níveis de ilegitimidade
fossem elevados para a população baiana como um todo, para a população escrava eles eram o dobro
ou o triplo dos da população livre” (1988, p.318).
Mas existem exceções a esta regra. O inventário dos bens da família Gromwell, cujo
cabeça de casal era o inglês George, mostra uma grande incidência de casais abençoados pela igreja.
Ao morrer Ana Joaquina Gromwell, em 1806, foram arrolados os bens da família em São Luís e na
ribeira do Itapecuru. No documento, cento e vinte nomes de cativos aparecem em meio à
descrição/valores das terras, plantações, animais e ferramentas, portanto, representavam os
trabalhadores da unidade produtiva rural. Entre estes, vinte e seis famílias foram apontadas, sendo
onze formada apenas pelo casal, doze nucleares com filhos e três matrifocais. O que fugiu à regra foi
o alto índice dos nomeados como “casados”: dezesseis. Uma explicação possível seria a ocupação
principal do pai de dona Ana Joaquina – o Dr. Henrique Guilhon, que foi ouvidor-mor da capitania
por muito tempo e também proprietário rural na região. Talvez o fato de ter um magistrado tão
próximo de suas relações tenha influenciado a família Gromwell a sacramentar os laços surgidos entre
seus escravos. Outro diferencial das famílias representadas no inventário supracitado foi o tamanho
da prole de alguns casais, vários com mais de um filho, como vemos no extrato abaixo:
Deu mais a inventário o escravo Martinho, crioulo, oficial de pedreiro, casado, de idade de quarenta anos,
avaliado em duzentos mil réis................ 200$000
Deu mais a inventário a escrava Margarida, crioula, mulher do dito, de idade de trinta e oito anos, avaliada
em cento e oitenta mil réis........................ 180$000
Deu mais o escravo José Maria, crioulo, filho da mesma de idade de quatorze anos, avaliado em cento e
oitenta mil réis............... 180$000
Deu mais a escrava Maria Josefa, crioula, filha da mesma, de idade de doze anos, avaliada em cento e vinte
mil réis.................. 120$000
Deu mais o escravo Marcelino, crioulo, filho da mesma, de idade de oito anos, avaliado em cem mil
réis................. 100$000
Deu mais a crioulinha Constantina, filha da mesma, de idade de seis anos, sessenta mil réis................ 60$000
Deu mais outra crioulinha, filha da dita, de idade de dois anos, avaliada em cinquenta mil réis...........
50$0000 (MOTA, 2012, p.77).
Entre as famílias dos escravos eram raríssimas as compostas por cinco filhos, como a
indicada acima. Talvez isto se deva ao perfil de Martinho, crioulo e oficial de pedreiro, uma ocupação
que o distinguia em meio a uma escravaria composta em sua maioria por “escravos do eito” e por
africanos. Robert Slenes chama atenção para as políticas de domínio senhoriais, ressaltando que “o
escravismo não se baseava apenas na força, mas também numa política de incentivos paternalistas,
visando dividir a comunidade escrava contra si”. O autor destacou especialmente “os incentivos à
formação de famílias conjugais e à elaboração de estratégias para melhorar a sorte individual ou
familiar, via mobilidade ocupacional e alforria (2011, p. 28)”. Portanto, o sentido dos estudos
realizados por Slenes e outros autores da família escrava é tentar mapear as possibilidades de
autonomia escrava.
Obviamente que, aos senhores interessava a reprodução dos escravos, mas não era
conveniente que estas uniões fossem sacramentadas, o que lhes traria problemas caso precisassem
vender, separando tais famílias. No entanto, adentrando o século XIX, vimos surgir entre os senhores
escravistas alguns registros discordantes, que anunciavam o embate que se dava ao nível das relações
escravistas. Percebemos que alguns senhores já demonstravam alguma sensibilidade quanto à
separação das famílias cativas; vemos tal sentimento, por exemplo, no coronel João Belfort, que ao se
aproximar sua morte, deixou escrito em suas últimas vontades:
Declaro que é da minha vontade que quando hajam de se repartir os meus escravos, não se separem as mães
de seus filhos, procurando-se para os legados maiores famílias inteiras, e para os menores aqueles que não
tiverem filhos, ou dos que forem solteiros, afim de não se separarem as ditas famílias (ATJMA, Test. João
Belfort, 1814).

Tais registros eram raros, mas há que se notar que sempre os comissários avaliadores ao
inventariar os bens procuravam arrolar primeiro aqueles que tivessem companheiras e seus filhos,
depois os solteiros, o que pode representar um reconhecimento de tais uniões e a provável intenção
de mantê-las unidas. Seria necessário fazer um estudo das partilhas dos bens para confirmar se este
reconhecimento se concretizava em ações mantenedoras dos núcleos conjugais e consanguíneos
formados no cativeiro.
Neste ponto poderíamos avançar numa definição do que entendemos por família escrava.
Com certeza são agrupamentos humanos forjados sob condições as mais adversas, no entanto, eram
representados nos documentos como unidos por laços de convivência, no caso dos casais, e de sangue,
entre aquelas que possuíam filhos. Sempre respeitando uma ordem hierárquica própria da mentalidade
portuguesa: primeiro era nomeado o homem, depois a mulher, a seguir, os filhos, do mais velho ao
mais novo, com suas respectivas idades e valores. Dificilmente temos mais do que isto. Menções a
avós são uma raridade, e nunca tios ou primos. Uma vez que eram pessoas referidas juntas, deduzimos
que elas se reconheciam como família e eram aceitas como tal, pelos comissários avaliadores e por
seus proprietários.

A formação das famílias no cativeiro - limitações


A formação de casais sofria restrições dentro do sistema escravista, sendo a principal delas
a desproporção entre os sexos. Quantificando a população das fazendas escravistas pela idade, vemos
que estas eram comunidades atípicas, com predominância numérica do sexo masculino e baixa
porcentagem de crianças e velhos; havia um número anormal de adultos jovens. Predominava a faixa
etária mais produtiva economicamente, de quinze a quarenta e nove anos, o que confirma a tendência
dominante nas unidades de produção voltadas para o mercado: no ato da compra do escravo a
preferência pelos indivíduos do sexo masculino, mais resistentes ao trabalho pesado das lavouras
(MOTA, 2012, p. 70). Dentro da comunidade escrava, tal desproporção dificultava sobremaneira o
encontro de parceiros sexuais.
Outra forte restrição à formação de casais vinha da circunscrição dos escravos nas
fazendas. Todos os casais localizados por nossa amostra pertenciam ao mesmo senhor e à mesma
fazenda. Estamos analisando plantéis pertencentes a grandes propriedades rurais, com a mata aberta
pela primeira vez para cultivo de gêneros em grande escala, somente acessíveis via navegação fluvial.
Na tentativa de evitar fugas, os feitores cuidavam de limitar ao máximo a circulação dos escravos, o
que acabava por restringir as possibilidades de encontrar parceiros sexuais diferentes do convívio
cotidiano. Finalmente, outro fator limitante consistia na ausência da casa grande e da família do senhor
nas unidades produtivas, uma particularidade da conjuntura pombalina, diminuindo as possibilidades
de alforrias, de contatos da comunidade escrava com agregados e moradores livres ou libertos.
O cenário acima se assemelha à propriedade rural estudada pelo historiador Daniel
Barroso no Grão-Pará:
No Engenho não havia senzala e os escravos habitavam em “ranchos” próprios para a sua moradia. Estes
ranchos nada mais eram do que cabanas rústicas feitas de material leve, como a palha ou ramos de árvores.
Foram, ao lado da casa principal, morada do administrador do Bom Intento, Januário Antônio da Silva, o
único tipo de moradia especificado no inventário de Joaquim. Neste documento, também não encontramos
qualquer referência que pudesse indicar a presença de pessoas livres morando na propriedade. (BARROSO,
2014, p. 04)
No caso do Maranhão, plantações de algodão e arroz também não demandavam escravos
especializados, o que reduzia ainda mais o leque de opções de parceiros com vistas ao casamento. O
estudo qualitativo de testamentos e inventários post mortem do período nos levaram a concluir que,
por mais de meio século, na ribeira do Itapecuru, nas unidades de produção viviam apenas os feitores
e os escravos, sendo visitadas esporadicamente pelos proprietários, pelos padres, e talvez um
administrador (MOTA, 2012, p.89). Deduzimos que tal particularidade, se por um lado representou
um impedimento ao surgimento das uniões entre os escravizados, por outro lado permitiu que fossem
preservadas muitas das tradições africanas no que se refere ao casamento e a criação dos filhos.

Origem étnica dos cônjuges


No que se refere às etnias dos cativos que foram trazidos para esta capitania, o historiador
Matthias Röhring Assunção afirma que:
A grande maioria dos escravos levados para o Maranhão provinha dos rios da Guiné, embarcados em Cacheu
(44%), Bissau (43%) e Angola (12%). Ao lado dos escravos Mina, Angola, Benguela, Congo e Cabinda,
aparecem especificamente, sete etnias da Guiné: Mandinga, Papel, Bijagó, Fula, Balanta, Cassange e Nalu.
Os Mandinga são, de longe os mais frequentemente mencionados, junto com os escravos denominados
Angola. Os Mandinga refere-se a uma língua, uma região e um legado cultural, Hoje, vários dialetos
Mandinga são falados por quase um milhão de pessoas na Guiné-Bissau, no Senegal e na Gâmbia. A herança
cultural remonta ao Império do Mali, um dos mais antigos grandes Estados no Ocidente africano, que existiu
entre aproximadamente 1200 e 1465. O Império do Mali controlava as rotas comerciais que atravessavam
o Saara ocidental, negociando com ouro, cobre, escravos, sal e tecidos de algodão. Os seus soberanos,
chamados “mansas”, eram reputados por sua opulência e acabaram adotando o islã. Os Mandinga são
reputados por sua rica tradição musical e sobretudo por seus contadores de história e guardiões das tradições,
os “griots” (ASSUNÇÃO, 2001, p.7).

Consta no Dicionário do Brasil colonial, organizado por Ronaldo Vainfas que, “os
Mandingas costumavam trazer ao pescoço amuletos na forma de pacotinhos contendo papéis com
versículos do alcorão e signos de Salomão” (VAINFAS, 2000, p. 46), um sinal claro das permanências
culturais de seus ancestrais.
Precisando melhor a origem étnica dos sujeitos escravizados trazidos para esta capitania,
quantificamos as informações colhidas nos inventários e encontramos o seguinte quadro
Origem étnica dos escravizados, Ribeira do Itapecuru (1785 a 1825)
Angola 321 12 %
Mandinga 257 9%
Caxeu 121 4%
Bijago 118 4%
Mina 113 4%
Cabinda 66 2%
Balanta 61 2%
Moçambique 53 2%
Fulupo 50 2%
Mulato 51 2%
Benguela 47 2%
Congo 44 2%
Guiné 37 1%
Papel 32 1%
Baiuno 23 1%
Fula 20 1%
Crioulo 864 32%
Fonte: ATJMA, Inventários post mortem avulsos (1785 a 1825), São Luís.

Sabemos da intensa polêmica que cerca a definição da origem étnica dos indivíduos
trazidos para as Américas e não pretendemos entrar nesse ponto, devido nosso pouco conhecimento
sobre tal questão. O resultado apresentado acima mostra que para as possessões portuguesas ao norte
do Brasil foram trazidos grupos étnicos tanto da África Ocidental, os “vulgarmente chamados
sudaneses”, entre eles os mandingas, quanto os angolas, do centro-ocidental do continente, os
“bantos”, conforme a denominação citada por João José Reis (2003, p. 308). Na tabela acima,
colocamos os “crioulos” por último, embora eles fossem a maioria, pois eram majoritariamente os
filhos dos cativos, menores de quatorze anos, pertencentes à primeira geração de africanos nascidos
nas Américas. Consideramos que os africanos eram hegemônicos nas plantations da época,
permanecendo tal situação por mais de meio século, donde decorreram importantes consequências, a
principal delas diz respeito ao processo de miscigenação, que foi retardada ao máximo na região
devido às particularidades do processo de centralização levada a efeito pelo ministério pombalino.
Quanto às uniões na comunidade escrava, observamos que até as últimas décadas do
século XVIII, era muito comum o homem angola se ajuntar com mulher angola, mandinga com
mandinga etc., comportamento que percebemos apontar uma tendência na formação dos casais por
indivíduos da mesma região, o que pode indicar uma preferência por parceiros da mesma cultura.
Depois, por conta da extinção da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, portanto, das
vicissitudes do tráfico Atlântico, multiplicaram-se as regiões de origem dos escravos. Os inventários
passaram então a indicar maior diversidade étnica e a formação dos casais também acompanhou esse
processo. O que corrobora as afirmações de Manolo Florentino, de que as oscilações do tráfico
negreiro acabaram influenciando na formação dos núcleos familiares.
Organização familiar dos cativos
Para um total de quatrocentas e quarenta famílias quantificadas nos referidos documentos,
notamos que as famílias nucleares formadas apenas pelo casal predominavam, foram cento e oitenta
e nove; seguidas de perto por aquelas em que havia a presença dos pais e alguns filhos, foram cento e
vinte e nove. As matrifocais somaram cento e onze; as patrifocais, são poucas, apenas seis.
Finalmente, aparecem aquelas extensas, onde foi registrada a presença de mais de uma geração em
convivência, totalizaram cinco grupos. Abaixo citamos uma família com organização característica
entre os escravos:
Deu mais a inventário o escravo Francisco, nação Fula, de idade de vinte e oito anos, avaliado em duzentos
mil réis ....................................... 200$000
Deu mais a escrava Juliana, nação Papel, sua mulher, de idade de trinta anos, doente de uma perna, que foi
avaliada por cento e sessenta mil réis...... 160$000
Deu mais o escravo Januário, Crioulo, filho dos ditos, de idade de nove anos, avaliado por cento e quarenta
mil réis.... 140$000
(ATJMA, Inv. José Joaquim da Silva Rosa, 1805).

O Coronel José Joaquim da Silva Rosa era possuidor de oitenta e três escravos em duas
propriedades, uma delas localizada no rio das Bicas, na ilha de São Luís, outra já no continente.
Dezessete famílias de escravos foram arroladas no seu plantel, onde citamos acima apenas uma delas,
de formação típica.
Averiguamos que a média de filhos por casal era muito baixa, não passando de 1,3 por
família. Por conta das limitações de tais registros, não sabemos se os poucos filhos por casal decorriam
da alta mortalidade infantil, em consequência das condições do cativeiro ou as mães evitavam filhos
usando métodos contraceptivos.
Observamos também que quase sempre o elemento masculino era mais velho; sendo a
diferença de idade entre os casais era de dez anos ou menos, o que no conjunto indica que a escolha
pelo parceiro era natural e não induzida por seus senhores. A maioria dos casais mencionados era
jovem, em média com 30 anos, e os filhos apresentados menores de dez anos, sendo a média de idade
das mães para o primeiro filho por volta dos vinte anos, ocorrendo quase sempre no final da
adolescência e início da idade adulta.
O intervalo médio entre os filhos era quase sempre de dois anos, com algumas variações
que fugiam aos padrões de normalidade. Os dados apontam para uma atividade sexual baixa,
explicável pelo ritmo extenuante do regime escravista, em nada favorável à formação de uma prole
numerosa. Mesmo assim, encontramos filhos nascendo em uniões estáveis, com casais vivendo juntos
por muito tempo, alguns deles por décadas.
Eram dados nomes cristãos aos escravos e tudo indica que seriam os senhores a escolher
os nomes das crianças nascidas em cativeiro, pois as preferências quanto aos nomes eram as mesmas
dos pais. Certo é que não localizamos nenhum filho de escravo com o nome do pai, como chama
atenção Schwartz: “os estudiosos da família escrava no Brasil ainda não definiram até que ponto as
normas da vida em família expressavam uma realidade autônoma ou eram incentivadas e moldadas
pelos senhores, que lhes impunham sua própria noção paternalista de moralidade” (1988, p. 35).
A segunda formação familiar mais recorrente nos inventários são as matrifocais, com a
indicação da mãe e dos filhos, esses quase sempre em tenra idade, como vemos a seguir: “Andreza,
nação fulupa, com cria de peito de seis meses, e ela dita com vinte e três anos [...] avaliada em 220$000
réis. Uma escrava por nome Geralda, crioula, filha da dita Andreza, com idade de dois anos, avaliada
em 35$000 réis (ATJMA, Inv. do cel. João Belfort, 1814)”.
A média de nascimento do primeiro filho entre mulheres que encabeçavam famílias
permaneceu a mesma, donde concluímos que o desregramento entre os escravos é um mito, pois não
foram encontradas mães adolescentes nos plantéis. Outra observação que fazemos ao analisar a
relação dos escravos constantes dos inventários post mortem do período é a alta porcentagem de
solteiros. Pessoas que estão em idade de casar, na faixa etária entre quinze e quarenta e nove anos, e
que não foram representadas como fazendo parte de uma família. Por que uns se ajuntavam e outros
não, se existiam parceiros em idade compatível dentro da comunidade escrava a que pertenciam? Os
demógrafos apontam que mesmo em comunidades que se reproduzem naturalmente, composta de
pessoas de condição social livre, sempre existe uma porcentagem de pessoas que preferem manter-se
solteiras, mas observamos que nos plantéis de escravos tal índice é significativo, maior que o
considerado normal, talvez não quisessem formar vínculos e procriar vivendo em cativeiro.
Nossa intenção com esse estudo inicial foi quantificar dados constantes nos inventários de
uma das áreas de plantation na capitania do Maranhão. A partir daqui, pretendemos aprofundar a
análise fazendo o cruzamento com outras fontes, que nos permitam entender melhor a construção das
sociabilidades entre os sujeitos escravizados, portanto, comungando com as ideias de Robert Slenes,
que analisa que:
A “família cativa” não se reduzia a estratégias e projetos centrados em laços de parentesco. Ela expressava
um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de suas “esperanças e recordações”; ou melhor, ela
era apenas uma das instâncias culturais importantes que contribuíram, nas regiões de plantation do Sudeste,
para a formação de uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e
compartilhada por uma grande parte dos cativos (2011, p. 59).

Considerações finais
No estudo iniciado aqui, o principal objetivo foi mostrar que o absenteísmo dos senhores
maranhenses permitiu que durante mais de meio século os núcleos familiares formados entre os
cativos pudessem gozar de relativa autonomia, pois não sofreram tanto a interferência de outras
culturas, uma vez que tais comunidades eram constituídos por africanos recém-chegados e seus filhos.
Quais as implicações do fato comprovado nos dados quantitativos expostos? Acreditamos que muito
das tradições culturais africanas foram preservadas nessa região, mantendo-se praticamente intocadas
bem avançado o século XIX, quando adveio a falência do sistema agroexportador e as fazendas foram
abandonadas por seus senhores, muitas delas continuando a serem ocupadas por afrodescendentes.
Quem hoje conhece as comunidades remanescentes da experiência escrava pode sentir a força da
herança cultural africana, em especial, nas relações de parentesco. Por exemplo, o importante papel
das mulheres é notório, também a compreensão sobre o casamento é diferenciada da tradição europeia,
pois não consideram que sejam relações para toda a vida e não entendem o marido como o único
provedor, mas apenas o parceiro no cuidado dos filhos. Finalmente, chama atenção a forma de criar
seus filhos, ensinando-os no respeito aos mais velhos e aos laços parentais, persistências de tradições
ancestrais africanas.

Fontes manuscritas

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encadernados e avulsos do período de 1780 a 1824.

___________. Livro de Registro de Batismo da Freguesia de Nossa Senhora das Dores do


Itapecuru e de Nossa Senhora do Rosário (1806 a 1824). São Luís.

BIBLIOTECA PÚBLICA BENEDITO LEITE. Mapas estatísticos da capitania do Maranhão. São


Luís, 1801.
ARQUIVO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MARANHÃO. Processos avulsos de Inventários
post mortem do período 1785 a 1825. São Luís, 1785.

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