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O objetivo maior deste artigo é expor os dados quantitativos referentes à família dos
escravos constantes nos inventários post mortem da ribeira do Itapecuru, no período de 1785 a 18252.
Nossa amostra é constituída pelos documentos avulsos encontrados no Arquivo do Tribunal de Justiça
do Maranhão, que trazem os espólios de proprietários dessa importante área de produção agrícola.
Devido as distâncias temporais existentes entre os documentos, resolvemos dividi-los em dois
momentos: os primeiros representam bem a conjuntura das primeiras fazendas implantadas na região,
ainda sob os efeitos da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-75), em que os
titulares faleceram na década de oitenta do século XVIII. Em outro momento, com registros
representativos do final da Colônia, ficaram preservados outros tantos, datados das primeiras duas
décadas do século XIX.
Analisamos os plantéis de escravos constantes em 27 inventários post mortem, com
registros referentes a 2.561 escravizados, estando entre estes 1.407 africanos, atingindo um percentual
de 54, 93%. Os comissários avaliadores anotavam quando havia laços conjugais e de consanguinidade
entre os escravos, tendo sido feitas 440 anotações, cujos membros foram reconhecidos como fazendo
parte de grupos familiares, com diferentes perfis: nucleares, matrifocais, patrifocais e extensas.
Os documentos foram distribuídos na Amostra por ano, como indicamos abaixo:
1
Essa pesquisa foi apresentada no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais da ABEP, ocorrido em São
Pedro/SP, de 24 a 28 de novembro de 2014.
2
Gostaria de agradecer o empenho de Nádia Maria Santos Ribeiro e Sâmia Cristina Sousa Silva, alunas do curso de
graduação em História/UFMA e bolsistas de iniciação científica da FAPEMA e do CNPQ, que digitalizaram os dados dos
inventários no banco de dados apresentado.
Inventários post mortem das plantations da Ribeira do Itapecuru-MA (1785 a 1825)
A partir do relato dos naturalistas fica claro que era uma única região econômica, formada
por algumas vilas importantes - como Caxias [antes, Arraial das Aldeias Altas], Itapecuru e Rosário
– e inúmeras fazendas implantadas em suas margens. A partir da vila de Caxias, localizada
estrategicamente na antiga rota das boiadas, área de confluência de Pernambuco, Piauí e Maranhão, o
trânsito de pessoas e mercadorias era intenso pelo rio Itapecuru, utilizando embarcações de vários
portes, movimento que desaguava já nas proximidades de São Luís.
Nas fazendas implantadas no vale do Itapecuru, quanto ao perfil étnico dos trabalhadores,
os registros nos dão conta de plantéis de trabalhadores formados majoritariamente por indivíduos
oriundos do continente africano. Observamos também que se multiplicavam as famílias moldadas
pelo cativeiro: grupos unidos por laços de convivência e consanguinidade, compostos por poucos
indivíduos, que seguiam um padrão social, como vemos no rol de bens registrado abaixo:
[...] Escravos
Manoel, benguela, de idade de quarenta anos, avaliado em cento e vinte mil réis .............................120$00
Rita, mina, sua mulher, vinte e cinco anos, avaliada em cento e quarenta mil réis ............. 140$000
Bonifácio, mandinga, vinte e oito anos, quebrado nas virilhas, sessenta mil réis ..... 60$000
Luzia, caxeu, sua mulher, de idade de vinte e cinco anos, avaliada em cento e vinte mil réis ..... 120$000
Úrsula, crioula, filha dos ditos, de idade de seis anos, avaliada em sessenta mil réis.... 60$000
(Arquivo do Tribunal de Justiça do MA. Inventário post mortem de Bento da Cunha, 1788).
Nas propriedades dessa região predominavam plantéis numerosos espalhados por várias
unidades produtivas. Explicamos: por maior que fosse a posse de escravos, plantar arroz e algodão
nos moldes maranhenses não demandava um plantel maior que quarenta trabalhadores. No caso de
Pierre Lamagnère, o plantel estava dividido entre seu solar na rua da Paz, as três fazendas de
plantações de algodão e arroz, uma fazenda de criação de gado e um engenho de moer cana, sendo
que todas as unidades de produção estavam situadas em localidades diversas na ribeira do Itapecuru.
Estudos especializados têm comprovado que quanto maior o plantel, maiores as
possibilidades do surgimento de laços familiares entre os que nele labutavam. De fato, entre os
duzentos escravos em posse desse senhor foram indicados vinte núcleos familiares: dois constituídos
apenas do casal, oito o casal com filhos, oito matrifocais e duas em que apenas o pai e os filhos
aparecem. Na fazenda “Vamos ver”, onde labutavam trinta e nove escravos, foi anotada a família
formada a partir da crioula Felícia, que fugia aos padrões da região:
Foi dado mais a descrever uma escrava de nome Felícia, crioula, com quarenta e cinco anos [...] avaliada
em cento e vinte mil réis.... 120$000
Foi dado mais a descrever um crioulo de nome Inácio, filho da dita, de vinte e dois anos, oficial de
carpinteiro, avaliado em trezentos mil réis ... 300$000
Outro crioulo, filho de Felícia, de nome João, com dezessete anos, avaliado em duzentos e cinquenta mil
réis ...............250$000
Foi dado outra crioula de nome Felicidade, filha de Felícia, de vinte anos, avaliada em duzentos mil réis
........ 200$000 (ATJMA, Inv. de Pedro Miguel Lamagnère, 1816, p. 94).
O grupo familiar acima era formado já por “crioulos”, o que denota um contexto em que
aparecem nas escravarias já os descendentes das primeiras levas de populações trazidas na segunda
metade do século XVIII, embora o contingente de escravos adultos nascidos no continente africano
ainda fosse maioria. Outra particularidade: a chefe desse grupo manteve junto a si três filhos adultos,
o que não era normal, pois a maioria dos agrupamentos formados em cativeiro apresentava filhos em
tenra idade.
Talvez se mencionarmos famílias de “privilegiados” dentro da escravaria ajude o leitor a
visualizar melhor a estrutura das famílias surgidas em condições tão adversas. Em 1824, foram
arrolados os bens de Bernardino Pereira de Castro, em que aparecem trinta e sete escravos, a maioria
deles trabalhadores de sua fazenda de cultivo de algodão e arroz na ribeira do Itapecuru:
Declarou o tenedor e administrador Fernando Pereira de Castro a este inventário um escravo casado por
nome Benedito, feitor, de nação mina, de idade que mostrou ter sessenta anos, pouco mais ou menos [...]
avaliado em duzentos mil réis ... 200$000
Uma escrava por nome Micaela, mulher do dito, de idade que mostrou ter quarenta anos, de nação bijagó,
avaliada pelo preço de cento e sessenta mil réis ... 160$000
Um escravo crioulo, por nome Paulino, casado, de idade que mostrou ter trinta anos [...] avaliado em
trezentos e cinquenta mil réis ... 350$000
Uma escrava crioula por nome Ana, mulher do dito, de idade que mostrou ter trinta e cinco anos [...] avaliada
em duzentos e oitenta mil réis ... 280$000
Um escravo por nome Lourenço, crioulo, filho dos ditos, de idade de cinco anos, avaliado em cinquenta mil
réis ... 50$000 (Grifo nosso).
(ATJMA, Inv. de Bernardino Pereira de Castro, 1824)
Portanto, para além da visão inicial, de considerar o registro cartorial de tais ajuntamentos
como um reconhecimento de sua humanidade, fica claro que os senhores tinham interesses na
formação das famílias entre os escravizados, com vistas a manter o domínio senhorial.
Existem interpretações díspares sobre tal fenômeno social, Robert Slenes sintetizou as
várias concepções sobre o tema em fala realizada em simpósio temático:
Florestan Fernandes argumentava que a destruição da família escrava era essencial para a manutenção do
escravismo. Criando escravos anômicos, sem capacidade política consequente, é que os senhores podiam
viver sossegados. Recentemente, Florentino e Góes têm posto este argumento de cabeça para baixo. Era só
criando escravos com compromissos entre si que os senhores podiam garantir a paz nas senzalas. Nos
estudos destes autores, a existência da família escrava é considerada, explicitamente, como uma condição
estrutural para a continuidade do escravismo (Tempo, revista da UFF, Vol. 3 – nº 6, Dezembro de 1998).
Robert Slenes discorda da argumentação dos dois autores citados, embora reconheça que,
“em todas as sociedades, quem está com mais de trinta anos e com compromissos familiares
dificilmente se tornará um revolucionário”, conclui o autor:
A família cativa emerge de um processo de conflito entre escravo e senhor. O senhor é forçado a ceder um
certo espaço para os escravos formarem famílias, encarando isso porém como parte de uma política de
desmonte de revoltas. A política funciona até certo ponto, pois ao dar ao escravo algo a perder, ela o torna
mais vulnerável, transforma o cativo em refém. A médio e longo prazo, contudo, o espaço acaba sendo
altamente subversivo, pois é usado pelos escravos como lugar de criação e transmissão de uma identidade
própria, antagônica à dos senhores e forjada a partir da descoberta de tradições africanas compartilhadas
(Folha de São Paulo – ilustrada, 12/2/2000).
A documentação notarial maranhense guardou inúmeros registros como esse, em que avós
zelosas distribuem os filhos das escravas entre seus descendentes menores. À primeira leitura, parece
que entre os senhores o cuidado com os seus estava na mesma proporção que a desconsideração com
os filhos das escravas, pois eram tratados como coisa, como “produtos”, mercadoria: podiam ser
doados, trocados, vendidos, separados de suas mães. Vendo a questão mais de perto, as senhoras acima
mencionadas faziam parte do mesmo grupo social, eram mãe e filhas, provavelmente moravam em
fazendas próximas, então, pode ser até que tenha sido possível às escravas Rita e Andressa zelar de
longe por eles, vê-los por ocasião das festas de família ou religiosas, batizá-los com padrinhos de sua
conveniência, tecendo redes de solidariedade. Existe a possibilidade que as escravas tenham sido
privilegiadas por sua senhora, uma vez que saberiam onde seus filhos estavam, reduzindo as chances
de serem vendidos para longe de suas mães. São conjecturas, mas é um fato que alguns grupos
familiares entre os cativos conseguiram se manter unidos por gerações, jogando com as armas
possíveis dentro do escravismo.
Por outro lado, deduzimos que de tais práticas existentes entre os senhores escravistas
maranhenses reside a causa dos registros de tantos casais de escravos sem nenhum ou com apenas
filhos muito pequenos junto a si. Talvez seus filhos estivessem em fazendas próximas, separados que
foram por ocasião das partilhas. Outra possibilidade era de seus filhos estarem dentro do próprio
espólio, uma vez que os maiores de quatorze anos já eram considerados adultos.
Quanto ao aspecto moral, os estudiosos da colonização portuguesa se reportam às
admoestações da Igreja quanto à doutrinação cristã dos escravos, sendo esta a justificação maior do
escravismo: tirá-los do paganismo em África, salvar a alma dos infiéis. Imbuídos de tais propósitos
foi que muitos proprietários batizaram seus escravos, produzindo outra série documental importante,
como vemos no extrato abaixo:
No dia vinte e oito de setembro de mil oitocentos e seis, nesta freguesia de Nossa Senhora das Dores do
Itapecuru [...] batizei e pus os santos óleos, o reverendo Antônio Fernandes Pereira, a inocente Jacinta, filha
de Mônica, escrava do Dr. Henrique Guilhon, por padrinho Melchior, escravo dos órfãos de Joaquim
Antônio de Launé e para constar fiz este assento que assino est Supra. José Carlos Pereira de Burgos –
Vigário (Arquivo Público do Estado do Maranhão, Livro de Registros de Batismos, 1806-1813, fl. 02).
Tais registros eram raros, mas há que se notar que sempre os comissários avaliadores ao
inventariar os bens procuravam arrolar primeiro aqueles que tivessem companheiras e seus filhos,
depois os solteiros, o que pode representar um reconhecimento de tais uniões e a provável intenção
de mantê-las unidas. Seria necessário fazer um estudo das partilhas dos bens para confirmar se este
reconhecimento se concretizava em ações mantenedoras dos núcleos conjugais e consanguíneos
formados no cativeiro.
Neste ponto poderíamos avançar numa definição do que entendemos por família escrava.
Com certeza são agrupamentos humanos forjados sob condições as mais adversas, no entanto, eram
representados nos documentos como unidos por laços de convivência, no caso dos casais, e de sangue,
entre aquelas que possuíam filhos. Sempre respeitando uma ordem hierárquica própria da mentalidade
portuguesa: primeiro era nomeado o homem, depois a mulher, a seguir, os filhos, do mais velho ao
mais novo, com suas respectivas idades e valores. Dificilmente temos mais do que isto. Menções a
avós são uma raridade, e nunca tios ou primos. Uma vez que eram pessoas referidas juntas, deduzimos
que elas se reconheciam como família e eram aceitas como tal, pelos comissários avaliadores e por
seus proprietários.
Consta no Dicionário do Brasil colonial, organizado por Ronaldo Vainfas que, “os
Mandingas costumavam trazer ao pescoço amuletos na forma de pacotinhos contendo papéis com
versículos do alcorão e signos de Salomão” (VAINFAS, 2000, p. 46), um sinal claro das permanências
culturais de seus ancestrais.
Precisando melhor a origem étnica dos sujeitos escravizados trazidos para esta capitania,
quantificamos as informações colhidas nos inventários e encontramos o seguinte quadro
Origem étnica dos escravizados, Ribeira do Itapecuru (1785 a 1825)
Angola 321 12 %
Mandinga 257 9%
Caxeu 121 4%
Bijago 118 4%
Mina 113 4%
Cabinda 66 2%
Balanta 61 2%
Moçambique 53 2%
Fulupo 50 2%
Mulato 51 2%
Benguela 47 2%
Congo 44 2%
Guiné 37 1%
Papel 32 1%
Baiuno 23 1%
Fula 20 1%
Crioulo 864 32%
Fonte: ATJMA, Inventários post mortem avulsos (1785 a 1825), São Luís.
Sabemos da intensa polêmica que cerca a definição da origem étnica dos indivíduos
trazidos para as Américas e não pretendemos entrar nesse ponto, devido nosso pouco conhecimento
sobre tal questão. O resultado apresentado acima mostra que para as possessões portuguesas ao norte
do Brasil foram trazidos grupos étnicos tanto da África Ocidental, os “vulgarmente chamados
sudaneses”, entre eles os mandingas, quanto os angolas, do centro-ocidental do continente, os
“bantos”, conforme a denominação citada por João José Reis (2003, p. 308). Na tabela acima,
colocamos os “crioulos” por último, embora eles fossem a maioria, pois eram majoritariamente os
filhos dos cativos, menores de quatorze anos, pertencentes à primeira geração de africanos nascidos
nas Américas. Consideramos que os africanos eram hegemônicos nas plantations da época,
permanecendo tal situação por mais de meio século, donde decorreram importantes consequências, a
principal delas diz respeito ao processo de miscigenação, que foi retardada ao máximo na região
devido às particularidades do processo de centralização levada a efeito pelo ministério pombalino.
Quanto às uniões na comunidade escrava, observamos que até as últimas décadas do
século XVIII, era muito comum o homem angola se ajuntar com mulher angola, mandinga com
mandinga etc., comportamento que percebemos apontar uma tendência na formação dos casais por
indivíduos da mesma região, o que pode indicar uma preferência por parceiros da mesma cultura.
Depois, por conta da extinção da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, portanto, das
vicissitudes do tráfico Atlântico, multiplicaram-se as regiões de origem dos escravos. Os inventários
passaram então a indicar maior diversidade étnica e a formação dos casais também acompanhou esse
processo. O que corrobora as afirmações de Manolo Florentino, de que as oscilações do tráfico
negreiro acabaram influenciando na formação dos núcleos familiares.
Organização familiar dos cativos
Para um total de quatrocentas e quarenta famílias quantificadas nos referidos documentos,
notamos que as famílias nucleares formadas apenas pelo casal predominavam, foram cento e oitenta
e nove; seguidas de perto por aquelas em que havia a presença dos pais e alguns filhos, foram cento e
vinte e nove. As matrifocais somaram cento e onze; as patrifocais, são poucas, apenas seis.
Finalmente, aparecem aquelas extensas, onde foi registrada a presença de mais de uma geração em
convivência, totalizaram cinco grupos. Abaixo citamos uma família com organização característica
entre os escravos:
Deu mais a inventário o escravo Francisco, nação Fula, de idade de vinte e oito anos, avaliado em duzentos
mil réis ....................................... 200$000
Deu mais a escrava Juliana, nação Papel, sua mulher, de idade de trinta anos, doente de uma perna, que foi
avaliada por cento e sessenta mil réis...... 160$000
Deu mais o escravo Januário, Crioulo, filho dos ditos, de idade de nove anos, avaliado por cento e quarenta
mil réis.... 140$000
(ATJMA, Inv. José Joaquim da Silva Rosa, 1805).
O Coronel José Joaquim da Silva Rosa era possuidor de oitenta e três escravos em duas
propriedades, uma delas localizada no rio das Bicas, na ilha de São Luís, outra já no continente.
Dezessete famílias de escravos foram arroladas no seu plantel, onde citamos acima apenas uma delas,
de formação típica.
Averiguamos que a média de filhos por casal era muito baixa, não passando de 1,3 por
família. Por conta das limitações de tais registros, não sabemos se os poucos filhos por casal decorriam
da alta mortalidade infantil, em consequência das condições do cativeiro ou as mães evitavam filhos
usando métodos contraceptivos.
Observamos também que quase sempre o elemento masculino era mais velho; sendo a
diferença de idade entre os casais era de dez anos ou menos, o que no conjunto indica que a escolha
pelo parceiro era natural e não induzida por seus senhores. A maioria dos casais mencionados era
jovem, em média com 30 anos, e os filhos apresentados menores de dez anos, sendo a média de idade
das mães para o primeiro filho por volta dos vinte anos, ocorrendo quase sempre no final da
adolescência e início da idade adulta.
O intervalo médio entre os filhos era quase sempre de dois anos, com algumas variações
que fugiam aos padrões de normalidade. Os dados apontam para uma atividade sexual baixa,
explicável pelo ritmo extenuante do regime escravista, em nada favorável à formação de uma prole
numerosa. Mesmo assim, encontramos filhos nascendo em uniões estáveis, com casais vivendo juntos
por muito tempo, alguns deles por décadas.
Eram dados nomes cristãos aos escravos e tudo indica que seriam os senhores a escolher
os nomes das crianças nascidas em cativeiro, pois as preferências quanto aos nomes eram as mesmas
dos pais. Certo é que não localizamos nenhum filho de escravo com o nome do pai, como chama
atenção Schwartz: “os estudiosos da família escrava no Brasil ainda não definiram até que ponto as
normas da vida em família expressavam uma realidade autônoma ou eram incentivadas e moldadas
pelos senhores, que lhes impunham sua própria noção paternalista de moralidade” (1988, p. 35).
A segunda formação familiar mais recorrente nos inventários são as matrifocais, com a
indicação da mãe e dos filhos, esses quase sempre em tenra idade, como vemos a seguir: “Andreza,
nação fulupa, com cria de peito de seis meses, e ela dita com vinte e três anos [...] avaliada em 220$000
réis. Uma escrava por nome Geralda, crioula, filha da dita Andreza, com idade de dois anos, avaliada
em 35$000 réis (ATJMA, Inv. do cel. João Belfort, 1814)”.
A média de nascimento do primeiro filho entre mulheres que encabeçavam famílias
permaneceu a mesma, donde concluímos que o desregramento entre os escravos é um mito, pois não
foram encontradas mães adolescentes nos plantéis. Outra observação que fazemos ao analisar a
relação dos escravos constantes dos inventários post mortem do período é a alta porcentagem de
solteiros. Pessoas que estão em idade de casar, na faixa etária entre quinze e quarenta e nove anos, e
que não foram representadas como fazendo parte de uma família. Por que uns se ajuntavam e outros
não, se existiam parceiros em idade compatível dentro da comunidade escrava a que pertenciam? Os
demógrafos apontam que mesmo em comunidades que se reproduzem naturalmente, composta de
pessoas de condição social livre, sempre existe uma porcentagem de pessoas que preferem manter-se
solteiras, mas observamos que nos plantéis de escravos tal índice é significativo, maior que o
considerado normal, talvez não quisessem formar vínculos e procriar vivendo em cativeiro.
Nossa intenção com esse estudo inicial foi quantificar dados constantes nos inventários de
uma das áreas de plantation na capitania do Maranhão. A partir daqui, pretendemos aprofundar a
análise fazendo o cruzamento com outras fontes, que nos permitam entender melhor a construção das
sociabilidades entre os sujeitos escravizados, portanto, comungando com as ideias de Robert Slenes,
que analisa que:
A “família cativa” não se reduzia a estratégias e projetos centrados em laços de parentesco. Ela expressava
um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de suas “esperanças e recordações”; ou melhor, ela
era apenas uma das instâncias culturais importantes que contribuíram, nas regiões de plantation do Sudeste,
para a formação de uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e
compartilhada por uma grande parte dos cativos (2011, p. 59).
Considerações finais
No estudo iniciado aqui, o principal objetivo foi mostrar que o absenteísmo dos senhores
maranhenses permitiu que durante mais de meio século os núcleos familiares formados entre os
cativos pudessem gozar de relativa autonomia, pois não sofreram tanto a interferência de outras
culturas, uma vez que tais comunidades eram constituídos por africanos recém-chegados e seus filhos.
Quais as implicações do fato comprovado nos dados quantitativos expostos? Acreditamos que muito
das tradições culturais africanas foram preservadas nessa região, mantendo-se praticamente intocadas
bem avançado o século XIX, quando adveio a falência do sistema agroexportador e as fazendas foram
abandonadas por seus senhores, muitas delas continuando a serem ocupadas por afrodescendentes.
Quem hoje conhece as comunidades remanescentes da experiência escrava pode sentir a força da
herança cultural africana, em especial, nas relações de parentesco. Por exemplo, o importante papel
das mulheres é notório, também a compreensão sobre o casamento é diferenciada da tradição europeia,
pois não consideram que sejam relações para toda a vida e não entendem o marido como o único
provedor, mas apenas o parceiro no cuidado dos filhos. Finalmente, chama atenção a forma de criar
seus filhos, ensinando-os no respeito aos mais velhos e aos laços parentais, persistências de tradições
ancestrais africanas.
Fontes manuscritas
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