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Revista do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional


Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional no 32 / 2005

Patrimônio imaterial
e biodiversidade
Organização Manuela Carneiro da Cunha
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

M I N I S T RO D A C U LT U R A
GILBERTO GIL MOREIRA

PRESIDENTE DO IPHAN
ANTONIO AUGUSTO ARANTES NETO

CHEFE DE GABINETE, INTERINO


ROGÉRIO CARVALHO

P RO C U R A D O R A - C H E F E F E D E R A L , I N T E R I N A
TEREZA BEATRIZ DA ROSA MIGUEL

D I R E T O R A D E PA T R I M Ô N I O I M A T E R I A L
MÁRCIA SANT’ANNA

D I R E T O R D E PA T R I M Ô N I O I M A T E R I A L E F I S C A L I Z A Ç Ã O
CYRO CORRÊA LYRA

D I R E T O R D E M U S E U S E C E N T RO S C U LT U R A I S
JOSÉ DO NASCIMENTO JUNIOR

DIRETOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO, INTERINO


FERNANDO CÉSAR AZEREDO

C O O R D E N A D O R A - G E R A L D E P E S Q U I S A , D O C U M E N TA Ç Ã O E R E F E R Ê N C I A
LIA MOTTA

C O O R D E N A D O R A - G E R A L D E P RO M O Ç Ã O E PA T R I M Ô N I O C U LT U R A L
GRACE ELIZABETH

O RG A N I Z A Ç Ã O
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA

GERÊNCIA DE EDITORAÇÃO DO IPHAN – EDITORA


ANA CARMEN AMORIM JARA CASCO

REVISÃO DE TEXTOS
ÁLVARO MENDES
MAÍRA MENDES GALVÃO
MARICI OLIVEIRA DO NASCIMENTO
SYLVIO CLEMENTE DA MOTTA

S E C R E TA R I A
VERA LÚCIA DE MESQUITA

ICONOGRAFIA
IMAGENS CEDIDAS PELOS AUTORES OU PESQUISADAS
PELA GERÊNCIA DE EDITORAÇÃO

DIAGRAMAÇÃO
EG.DESIGN / EVELYN GRUMACH E TATIANA PODLUBNY
a partir do projeto gráfico de Victor Burton

A Revista do Patrimônio é uma publicação do Instituto do I N S T I T U T O D O PAT R I M Ô N I O


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
Cultura. Os artigos são autorais, não refletindo necessaria- SBN Quadra 2 Bloco F Edifício Central Brasília
mente a posição do Iphan. 70040-904 Brasília - DF
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http://www.iphan.gov.br
webmaster@iphan.gov.br
Antonio Augusto Arantes Neto
A p r e s e n ta ç ã o

A C I O N A L
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A preservação do patrimônio imaterial é uma política de introdução recente no plano

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internacional e são notáveis a rapidez e a firmeza com que ela vem se desenvolvendo no
Brasil. A consistência e velocidade de sua breve trajetória devem-se a vários fatores.
Inicialmente, aos investimentos políticos e intelectuais realizados pelos dirigentes e técnicos

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do Iphan, principalmente desde 1997, quando da realização do seminário Patrimônio imaterial:

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estratégias e formas de proteção, em Fortaleza, Ceará. Essa atividade pode ser considerada o
marco inicial desse processo, uma vez que deu origem aos trabalhos que culminaram com a
aprovação e promulgação do Decreto n.° 8551, de 2000, que institui o registro de bens

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imateriais e dá outras providências. Além disso, aos resultados das pesquisas antropológicas,

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históricas e de folclore que vêm sendo realizadas sobre o país sistematicamente, sobretudo nas
universidades, há mais de um século. Elas ancoram as ações iniciadas e em curso por

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oferecerem um amplo panorama sobre a realidade cultural brasileira e sugerir métodos e
procedimentos para identificar e compreender os complexos processos envolvidos. O
estabelecimento da metodologia de inventário de referências culturais, que sistematizou e deu
consistência aos procedimentos de identificação que antecedem o registro e demais atividades
de salvaguarda, foi desenvolvido a partir de métodos etnográficos, por consultoria 5

especializada de natureza acadêmica.1 A colaboração com o meio intelectual tem sido de


importância crucial também para a elaboração de outros procedimentos de trabalho e de
projetos e a formulação de programas.
As ações empreendidas pelo Governo brasileiro nessa área respondem a uma agenda
interna emergente e, ao mesmo tempo, incluem uma problemática que vem se configurando
no âmbito do que se poderia designar como uma esfera pública cultural global, atualmente
em plena consolidação. A Unesco ocupa, sem dúvida, posição de destaque na estruturação
dessa arena supra-nacional, ao lado de organismos multilaterais como a OMPI2 e a OIT3.
Esses espaços institucionais somam-se às redes regionais, como a CPLP4 e o Mercosul, e às
que congregam número significativo de instituições não-governamentais. A pauta que se
consolida mundialmente inclui, entre outros, a crítica aos revezes da globalização, assim
como a construção de agendas positivas de fortalecimento da paz e de combate à pobreza e à
exclusão social.
Pelo menos dois temas de política cultural perpassam essas esferas. Um é o do patrimônio
cultural intangível, com destaque para a proteção dos conhecimentos e formas de expressão
Apresentação tradicionais, assim como dos direitos com muita propriedade esse panorama,
culturais e intelectuais a eles associados. O realimentando oportunamente a colaboração
outro, não menos importante e igualmente entre técnicos, militantes e pesquisadores
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urgente, é a proteção da diversidade acadêmicos que tem produzido as grandes


cultural, tanto associada a questões sócio- inflexões do trabalho de preservação no
Antonio Augusto Arantes Neto

ambientais – terreno em que as agências Brasil, e o faz incluindo a palavra das


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culturais vêm ensaiando os seus primeiros organizações não-governamentais envolvidas.


passos – quanto aos bens e serviços Os artigos criteriosamente reunidos por
produzidos no contexto da economia global. Manuela Carneiro da Cunha, curadora
A

A compreensão dos meandros e convidada, oferecem um leque abrangente


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mediações que articulam a esfera nacional e de estudos de caso e de reflexões críticas


a global é um desafio ao estabelecimento de que o refinamento das bases da política em
políticas, já que as prioridades decididas no construção, apesar de recente, vem
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espaço político internacional não demandando avidamente. Eles põem em


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repercutem automaticamente e de forma destaque os efeitos possíveis e prováveis da


idêntica em cada país, ao mesmo tempo em salvaguarda promovida pelo Estado sobre as
que há filtros atuando no sentido inverso. realidades sociais locais, especialmente em
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Mais do que simplesmente promover a relação aos povos indígenas e às chamadas


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importação de discursos, pleitos e “populações tradicionais”, que apenas agora


argumentos a respeito da realidade cultural passaram a integrar o universo social de
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de determinado país ou região, a articulação referência das políticas de patrimônio.


entre o global e o local no caso brasileiro O recém criado Programa Nacional do
tem servido para criar propostas e respostas Patrimônio Imaterial5 e a implementação das
às demandas culturais de um universo de ações que o constituem, respondem
6 agentes sociais que se encontra em ampla diretamente e de várias maneiras a esse
diversificação, situados em um complexo entre jogo de demandas e possibilidade
campo de forças sociais. internas e externas, conforme aqui
Esse tem sido um importante elemento esboçado, partindo de uma reinterpretação
catalisador da rápida consolidação da da missão institucional do Iphan provocada
preservação de bens intangíveis pelo Iphan. pela Constituição Federal de 1988. De fato,
A sociedade brasileira, através de suas sem excluir os sentidos consagrados do
organizações, demanda que a instituição patrimônio – histórico, artístico,
desempenhe o seu papel de mediador e etnográfico, arqueológico e paisagístico, de
facilitador dessa articulação supra-nacional, e valor excepcional e documental – nossa
construa, para efeitos internos, instrumentos Magna Carta redefiniu o objeto da prática
e procedimentos de trabalho que tornem preservacionista oficial, e o fez pelo menos
rapidamente viável o amadurecimento dessa triplamente.
vertente da política de patrimônio. Em primeiro lugar, o conceito de
O presente número da Revista do patrimônio praticado pelo Estado passou a
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional retrata incluir realidades culturais intangíveis, que
foram identificadas em outro instrumento relevante observar que a Convenção para a

Apresentação
legal6 – de forma não exaustiva – como Salvaguarda do Patrimônio Imaterial,
abarcando celebrações, formas de expressão, aprovada pela Unesco em 2003, parte do

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lugares e saberes. Hoje, demanda-se que o mesmo princípio ao declarar em seu Artigo
registro de bens imateriais passe a incluir 2.1 que integram essa categoria os bens

Antonio Augusto Arantes Neto


também a diversidade lingüística e a reconhecidos por indivíduos, comunidades e

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oralidade. Além disso, a Constituição grupos como fazendo parte de seu próprio
agregou o valor referencial dos bens culturais patrimônio cultural.
aos demais critérios que justificam, perante a Essa mudança conceitual explicita um dos

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lei, a inclusão dessas realidades no rol do sentidos políticos principais do patrimônio

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patrimônio nacional. E, ainda, o texto legal na atualidade, pois destaca com clareza a
explicitou a diversidade como princípio condição externa da ação governamental e
inerente à identificação dos sujeitos das sua responsabilidade frente aos universos

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ações patrimoniais – portanto, dos culturais afetados pela preservação. Note-se

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detentores dos direitos próprios a este que essa mudança no texto legal data de
campo – deixando explicitamente de incluir 1988 e apenas hoje há o empenho
apenas os segmentos sociais hegemônicos. institucional necessário a sua

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As implicações sociológicas desses novos implementação.

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parâmetros constitucionais são muito A mobilização da sociedade brasileira nas
importantes do ponto de vista da décadas de 1980 e 90 trouxe à tona a

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formulação de políticas públicas de reivindicação dos segmentos sociais
patrimônio, e não só no âmbito federal. Elas marginalizados (étnicos, de gênero, etários)
dizem respeito à natureza e valor dos por direitos culturais e intelectuais (de
objetos a serem preservados e, além disso, à informação, de expressão, de inclusão e não-
posição dos agentes sociais envolvidos, o seu discriminação, entre outros). Ao mesmo 7
papel em relação aos procedimentos de tempo, a Carta Magna instituiu uma idéia de
salvaguarda, a começar pelo que diz respeito nação que é não mais suficientemente
a sua identificação. representada por práticas e valores
Ao adotar a noção de referência cultural hegemônicos, mas plural, internamente
e associando-a a grupos sociais específicos, a diversificada e socialmente heterogênea. A
lei abre-se aos sentidos simbólicos cidadania passou a exigir do Estado brasileiro
atribuídos a artefatos e práticas enquanto a ampliação de seus programas e projetos, de
marcadores de fronteiras de identidade e modo a legitimar e promover a inclusão dos
diferença. Em conseqüência disso, os valores segmentos sociais não-dominantes. A criação
localmente atribuídos passam a ser das práticas de salvaguarda de bens culturais
necessariamente considerados – e devem ser intangíveis resulta desse novo contexto
respeitados – pelas políticas, ao lado de político e, ao recolocar em pauta no debate
parâmetros intelectualmente construídos cultural questões associadas à diversidade e à
conferindo, portanto, legitimidade ao desigualdade, traz de volta a problemática da
conhecimento local. A este respeito, é hegemonia e a questão nacional, através da
Apresentação inserção e valorização de marcos culturais de patrimônio (tais como as Ciências Sociais
étnicos e populares nas representações e o áudio-visual), e o compartilhamento de
oficiais da nação. decisões com um novo público.Tornou-se
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Nada seria mais falacioso e causaria mais inescapável, aos órgãos de patrimônio,
danos às políticas culturais do que naturalizar interagirem com agências e agentes sociais
Antonio Augusto Arantes Neto

os vínculos das camadas populares e grupos identificados com os meios populares,


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étnicos com os bens imateriais e, indígenas e dos demais grupos etnicamente


complementarmente, das elites com aqueles diferenciados, que não pautam
de natureza material. Aqui, como em outros necessariamente suas estratégias de
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países, o fato desta ser uma linha de trabalho negociação pelos códigos burocráticos e
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emergente torna amplamente prioritária a jurídicos vigentes.


salvaguarda de manifestações culturais com Portanto, a decisão aparentemente
risco de desaparecimento e o viés elitista das simples de ampliar o universo de bens
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políticas até recentemente desenvolvidas culturais protegidos possui um importante


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projeta na linha de frente as culturas potencial transformador que afeta as práticas


minoritárias.Torna-se grande, portanto, o institucionais como um todo. O verdadeiro
risco de se obscurecer a dimensão material desenvolvimento da prática preservacionista
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do patrimônio associado aos diversos grupos depende, portanto, de se evitar a absorção


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minoritários, assim como dos bens imateriais dos novos objetos e projetos pelas antigas
desenvolvidos pelos segmentos cultos da rotinas e estruturas institucionais.Trata-se,
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sociedade. Outro desafio é não perder de antes, de estimular a crítica dos seus
vista o sentido nacional do imenso universo fundamentos ideológicos, reformular sua
patrimonial cultivado nos meios populares, missão, e construir os meios técnicos
como ocorre no Brasil, por exemplo, com o adequados ao seu cumprimento. Aliás, como
8 samba em pelo menos algumas de suas tenho defendido, a criação de instrumentos
variantes, e com elementos da culinária para a salvaguarda do patrimônio imaterial
associados a rituais religiosos. Estas são criou a possibilidade de se caminhar em
questões que ainda precisam amadurecer e direção à esperada síntese integradora que
farão parte, sem dúvida, da agenda do permite restituir aos objetos materiais
patrimônio nos próximos anos. (tomados em suas várias dimensões
Tendo em vista o caráter tangíveis), as práticas que os constituem (os
predominantemente popular desse universo saberes neles consubstanciados) e as práticas
de bens culturais, a inclusão dos bens sociais que lhes dão sentido.
intangíveis nos programas proteção e Tome-se o registro – instrumento
salvaguarda realizados pelo estado vem jurídico de proteção do patrimônio
acarretando, portanto, além da construção imaterial – e que é a contrapartida do
de procedimentos técnicos adequados aos tombamento e guarda algumas semelhanças
novos objetos, o diálogo com áreas de formais com ele (por exemplo, quanto aos
conhecimento consideradas até agora menos procedimentos de instrução e tramitação
relevantes para a orientação dos programas processual). Sua implementação e o
estabelecimento de jurisprudência a participação da agência governamental na

Apresentação
específica, das normas e pressupostos pelos dinâmica cultural local.
quais esse instrumento torna-se O caráter atual (bens imateriais são

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progressivamente realidade, caminha em patrimônio, por assim dizer, vivo),
trajetória própria, dando origem a planos processual e virtual dos objetos a que se

Antonio Augusto Arantes Neto


dinâmicos de salvaguarda das condições de referem os planos de ação de salvaguarda

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reprodutibilidade desses bens culturais, não acarreta a adoção do princípio de que estes
de sua conservação tal e qual, que no limite não devem induzir a fixação das formas
é o que inspira o tombamento. Um (o (tangíveis ou intangíveis) resultantes dessas

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registro) busca identificar e salvaguardar práticas. A salvaguarda deve, antes,

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processos de produção em comum acordo estimular e fortalecer as condições de
com os seus produtores, obviamente; o circulação (troca) e a reprodutibilidade
outro (o tombamento) busca a conservação (transmissão e mudança) dos bens

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de produtos do engenho humano, muitas protegidos, ou seja, contemplar a natureza

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vezes contrariando os interesses privados dinâmica e mutável de seus objetos.
dos seus proprietários. São, como se vê, O registro de determinado bem e sua
instrumentos absolutamente distintos, que proclamação como patrimônio cultural do

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servem a fins diversos. Brasil tem como efeito a legitimação pelo

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Tanto no caso brasileiro, quanto nas Estado, em nome do interesse público, de
reuniões promovidas pela Unesco de que uma realização específica de determinado

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participei, visando ao estabelecimento de um item do repertório local. Se o procedimento
glossário a ser adotado pela Convenção do jurídico-administrativo contemplar apenas
Patrimônio Imaterial,7 a distinção entre uma determinada performance, versão ou
proteção e salvaguarda tem sido objeto de variante de determinado bem, haverá
longas e acaloradas discussões. Quanto ao obviamente pesada interferência sobre a 9
Iphan, no que diz respeito às especificidades importância relativa dessa versão e de seus
da salvaguarda (por contraste a proteção), executantes ou guardiões sobre todos os
alguns pontos são praticamente consensuais: outros possíveis, o que interferirá
A identificação e documentação de sobremaneira sobre as condições de sua
determinada ocorrência, quando de sua reprodução no contexto local.
inscrição em um dos Livros de Registro, Os planos de ação habilitam o acesso aos
produz uma representação oficial de benefícios materiais e simbólicos
referência desse bem. Este documento decorrentes do registro. As conseqüências
orientará a elaboração do plano de ação a ser da introdução de insumos de salvaguarda no
implantado em decorrência da proclamação contexto local ainda são pouco conhecidas.
desse bem como Patrimônio Cultural do Sabe-se que nem sempre ela produz efeitos
Brasil. Portanto, a base teórica e conceitual positivos, previsíveis, ou controláveis.
que orienta a sua delimitação é matéria de Torna-se, portanto, essencial na construção
importância estratégica para o dos planos de ação, considerar as diversas
estabelecimento dos termos em que se dará variantes e versões de determinada prática,
Apresentação assim como identificar o modo como tais dos problemas enfrentados e soluções
conhecimentos se transmitem e são encontradas em diversos foros
conservados, ou seja, as condições de internacionais. O pleno desenvolvimento
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inserção da prática considerada no contexto dessa nova vertente enfrenta o peso inercial
da vida local. de quase 70 anos de atividades organizadas
Antonio Augusto Arantes Neto

Tendo em vista que a salvaguarda é predominantemente segundo outro


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atividade que desencadeia a produção de paradigma. Embora avanços significativos


novos sentidos e que ela propicia mudanças venham ocorrendo nos últimos anos,8 é
totalmente previsíveis e controláveis, o necessário caminhar firmemente para a
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Iphan tem construído suas ações de forma superação dos conflitos acumulados interna e
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compartilhada, a partir de iniciativa do externamente e dotar a instituição dos


grupo afetado, ou com o consentimento conhecimentos e da infra-estrutura
deste. Assim mesmo, é necessário necessários ao cumprimento de sua nova
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minimizar e monitorar os efeitos dessas missão.


A T R I M Ô N I O

ações e, para tanto, construir indicadores Assim como a opinião pública que tende a
que permitam avaliá-los. associar preservação a conservadorismo, as
O ponto-chave desta nova política de políticas públicas – inclusive as de cultura –
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patrimônio encontra-se, portanto, na são por demais refratárias à idéia de


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natureza e qualidade da articulação que os aproximar o patrimônio e os processos


agentes oficiais estabelecem com as agências criativos, desenvolvidos com as linguagens e
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e atores políticos locais. possibilidades tecnológicas do presente.


A proteção dos direitos coletivos de .Não obstante, nada me parece mais urgente
autor e de imagem sobre os conhecimentos em tempos de globalização e de
e formas de expressão tradicionais torna-se desterritorialização do que valorizar os
10 responsabilidade inescapável do Iphan em sentidos de localização e garantir às
sua nova missão, acarretando a ampliação populações tradicionais o controle dos bens
(ou reformulação) do exercício de seu desenvolvidos por seus antepassados,
poder de polícia. Desta forma, o registro – garantindo a sua transmissão às novas
noção cunhada para ressaltar as gerações.
especificidades do patrimônio intangível, O principal sentido da preservação é
frente ao de pedra e cal – possui também garantir às gerações futuras condições de
uma dimensão de proteção, com as desenvolvimento de seus horizontes morais,
implicações jurídicas cabíveis, à semelhança intelectuais e tecnológicos, com pleno acesso
do que ocorre com o tombamento. ao que foi acumulado pelos que os
antecederam. Por essa razão, impõe-se a
O Iphan mantém o seu pioneirismo em necessidade de refletir sobre os limites e
assuntos de patrimônio. Ele é hoje uma das limitações da atividade consagrada. E nesse
instituições mundialmente precursoras afã, uma vez mais, são realidades distantes e
dessas transformações, e tem respondido distintas das que nos são mais familiares as
adequadamente à apresentação e discussão que decisivamente podem contribuir para a
crítica e o conhecimento de nossas práticas e

Apresentação
convicções. Uma vez mais, o pensamento se
enriquece ao colocar lado a lado o que é

A C I O N A L
familiar e o que se apresenta como distinto.
É o que propõe a curadora Manuela

Antonio Augusto Arantes Neto


Carneiro da Cunha para este volume da

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Revista do Patrimônio, que muito enriquece
o amadurecimento deste tema no quadro das
políticas que se encontram em

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desenvolvimento no Iphan.

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1. Andrade e Arantes. Metodologia de Inventário de
Referências Culturais. Campinas, 2000.

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2. Organização Mundial da Propriedade Intelectual.

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3. Organização Internacional do Trabalho.
4. Comunidade dos países de língua portuguesa
5. Cf. Anexos e artigo de Ana Gita Oliveira neste
volume.

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6. Decreto 8551/2000.

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7. Unesco. Reuniões de especialistas realizadas no Rio

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de janeiro, em janeiro de 2002 e em Paris, em junho
de 2002.
8. Cf. Relatório do Iphan 2003/2004 (Iphan, Brasília,

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2005) e Relatório de 2005, em preparação.

Descanso em papel machê


com samambaia, produzido 11
em Aiuruoca, Minas Gerais.
Artesã: Mariene Bayer.
Patrimônio imaterial
e biodiversidade
Manuela Carneiro da Cunha Pa r t e I I Pa r t e I I I
Políticas Culturais Pat r i m ô n i o i m at e r i a l
Introdução 15
e seus efeitos e suas condições
Pa r t e I de produção
Dominique Tilkin Gallois
A produção cultural da
Os Wajãpi em frente Beatriz Góis Dantas
diversidade biológica:
da sua cultura 110 “Tu me ensina a
instrumentos e
fazer renda” 224
instituições Geraldo Andrello
Laure Emperaire Nossa história está escrita Robin Wright
A biodiversidade agrícola na nas pedras: conversando Da atribuição de valores às
Amazônia brasileira: recurso sobre cultura e patrimônio tradições religiosas
e patrimônio cultural com os índios indígenas 244
30
do Uaupés 130
Cristina Azevedo Edilene C. de Lima
e Teresa Moreira Ana Gita de Oliveira Kampu, kampo, kambô:
A proteção dos conhecimentos e Beatriz Muniz Freire o uso do sapo-verde entre
tradicionais associados: Nota sobre duas experiências os Katukinai 254
desafios a enfrentar patrimoniais 152
44
Pedro Cesarino
Juliana Santilli Maíra Bühler De cantos-sujeito a
Patrimônio imaterial e direitos Desafios na compreensão dos patrimônio imaterial:
intelectuais coletivos efeitos locais das políticas a tradição oral Marubo 268
62
de fomento ao artesanato
Laurence Bérard no Jequitinhonha 166 Maria Dina Nogueira Pinto
e Philippe Marchenay Sabores e saberes da casa
Biodiversidade e indicação Bruna Franchetto de Mani: a mandioca nos
geográfica: produções agrícolas Línguas em perigo e línguas sistemas culinários 280
e alimentares locais como patrimônio imaterial:
80
duas idéias em discussão 182 Hermano Vianna
Vinicius Lage Tradição da mudança:
e Cristiano Braga Christopher Ball a rede das festas
A origem geográfica como Fazendo das línguas objetos: populares brasileiras 302
patrimônio: implicações Línguas em perigo de extinção
e diversidade cultural 206 Marcela Coelho de Souza
para políticas públicas
As propriedades da cultura no
e desenvolvimento
Brasil central indígena 316
de negócios 94
Nota biográfica
dos autores 336
Texto escrito pelo Professor Amatiwana Matipu, que escreve sobre tipos
de vegetação no Alto Xingu, curso de formação de professores indígenas. Anexo 340
Padrão jãvi pire (casca de jabuti). Obra de Iria, 2005.
Manuela Car neiro da Cunha
Introdução

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Este número da revista do Iphan pretende Em abril de 2001, fui chamada pela

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subsidiar políticas públicas que tratam do Unesco para uma reunião encarregada dessa
patrimônio imaterial. Algumas questões definição. Éramos alguns poucos
parecem demandar reflexão mais antropólogos (em meio a vários juristas):

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aprofundada. A própria divisão em patrimônio Lurdes Arizpe, que havia sido vice-

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material e imaterial é fruto de uma história presidente da Unesco, Peter Seitel, da
muito mais do que analiticamente evidente. Smithsonian Institution, Georges
A Constituição Federal de 1988, por Condominas e eu. Enfatizamos, naquele

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exemplo, reúne no mesmo artigo 216 o momento, o que nos parecia central no

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material e o imaterial em uma definição conceito, a saber:
global do patrimônio cultural brasileiro: que patrimônio imaterial se compõe de

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Art 216: Constituem patrimônio cultural processos tanto, e provavelmente mais, do
brasileiro os bens de natureza material e que de produtos;
imaterial, tomados individualmente ou em que ele não se compõe de formas fixas,
conjunto, portadores de referência à mas de uma recriação permanente que tem a
identidade, à ação, à memória dos diferentes ver com um sentimento de continuidade em 15

grupos formadores da sociedade brasileira, relação às gerações anteriores, ou seja, que


nos quais se incluem: ele é ao mesmo tempo dinâmico e histórico;
I – as formas de expressão; que suas condições de reprodução
II – os modos de criar, fazer e viver; dependem, entre outras coisas, de acesso a
III – as criações científicas, artísticas e território e a recursos naturais.
tecnológicas; Esses aspectos da definição foram
IV – as obras, objetos, documentos, essencialmente preservados na Convenção
edificações e demais espaços destinados às para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial,
manifestações artístico-culturais; finalmente assinado em Paris a 17 de
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor outubro de 20031.
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, O que se deve então entender por
paleontológico, ecológico e científico. salvaguarda desse patrimônio? Como
Coloca-se assim a questão, de saída, sobre garantir sua continuidade, ou seja, ao
o que se deva entender por patrimônio mesmo tempo a transmissão dos saberes e
imaterial. a inovação permanente?
Introdução Para abordar tais questões, um primeiro que envolva as populações tradicionais, a
conjunto de artigos neste volume Academia, a empresa privada e o Estado.
concentra-se na produção humana da Um segundo conjunto de artigos aborda
A C I O N A L

diversidade biológica. Pretende-se iluminar, as políticas culturais – suas normas e o que


assim, a dimensão cultural e social da almejam – e avaliam seus efeitos locais –
Manuela Carneiro da Cunha

biodiversidade, ou seja, o trabalho e o muitas vezes surpreendentes ou paradoxais.


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conhecimento embutidos na diversidade dita De um lado, portanto, o quadro normativo


natural. Mas há também um propósito e os pressupostos que o orientam; de
diretamente pragmático: as primeiras outro, a dinâmica local posta em marcha
A

normas operacionais de proteção do por essas políticas.


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I S T Ó R I C O

patrimônio imaterial e as primeiras normas Um terceiro conjunto, enfim, trata do


relativas ao acesso aos recursos genéticos e que se poderia entender por patrimônio
conhecimentos associados datam, no Brasil, imaterial, da dificuldade de aplicar o
H

do início da década de 2000. As primeiras, conceito a sociedades indígenas e de suas


A T R I M Ô N I O

contidas no Decreto n.º 3.551/2000, são da condições locais de produção e


alçada do Ministério da Cultura, as outras, continuidade. Estudos de casos em que
na Medida Provisória n.º 2.186-16/2001, processos de transmissão e de inovação,
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da alçada do Ministério do Meio Ambiente. organização social e condições materiais são


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Apesar dessa distinção operacional, as analisados mostram a complexidade desses


interseções entre os dois temas são problemas, ao mesmo tempo que indicam
R

evidentes e os debates relativos às normas suas principais dimensões.


de acesso ao conhecimento tradicional
ligado à diversidade biológica, mais Mercado e/ou
acirrados porém menos conhecidos, talvez, c o n s e r va ç ã o
16 pelos órgãos culturais, podem ser úteis para
a discussão. É amplamente sabido que “proteção”, o
Nesse sentido, o artigo de Cristina termo preferencialmente usado por órgãos
Azevedo e Teresa Moreira nesta coletânea, como a OMPI, a Organização Mundial de
sobre os debates relativos ao conhecimento Propriedade Intelectual, no seio das Nações
tradicional associado aos recursos genéticos, Unidas, e o INPI, no Brasil, se refere
dá a medida da complexidade do assunto. primariamente a instrumentos de
Aponta para a conexão entre o registro de propriedade intelectual e à sua atuação no
bens culturais de natureza imaterial, mercado; em contraste, “salvaguarda” consta
realizado pelo Iphan, e a proteção aos do vocabulário dos órgãos relacionados à
conhecimentos tradicionais no âmbito da cultura, como a Unesco,
Convenção da Diversidade Biológica, e para internacionalmente, e o Iphan, no Brasil. As
a necessidade de integração na política dos conotações desses dois termos são distintas,
Ministérios da Cultura e do Meio Ambiente. mas unem-nos duas preocupações comuns,
Mostra, enfim, que não se podem esperar diferentemente enfatizadas: a de assegurar
soluções justas e duradouras sem um diálogo os direitos intelectuais e a remuneração de
produtores ou detentores de patrimônio Marchenay, de Vinicius Lage e Cristiano

Introdução
cultural, em particular de conhecimentos, e Braga e o de Juliana Santilli, neste volume,
a de assegurar a perpetuação de formas chamam a atenção para o potencial e os

A C I O N A L
culturais de produzir. Até que ponto esses mecanismos desses instrumentos. Em
dois objetivos são compatíveis é assunto de vários aspectos, as indicações geográficas se

Manuela Carneiro da Cunha


largas discussões que se arrastam na OMPI e conformam à peculiaridade da dinâmica

N
R T Í S T I C O
outras instâncias há quase uma década. cultural: além de se preocuparem com as
Essa é, como veremos, a pergunta formas de produção, e não só com os
fundamental: o mercado está implicado na produtos, entendem-nas como coletivas e,

A
produção cultural e, em vários casos, parece ainda, mutáveis. As restrições que impõem à

E
I S T Ó R I C O
ser determinante. Os artigos de Beatriz Góis concorrência não são limitações temporais e
Dantas sobre rendeiras de Divina Pastora e temporárias, como as patentes e direitos
de Poço Redondo em Sergipe, e de Maíra autorais que caducam após um período

H
Bühler sobre as ceramistas do Jequitinhonha variável, mas fronteiras espaciais e

A T R I M Ô N I O
chamam a atenção para esse papel generativo históricas. Desse modo, são de certa forma
do mercado: afinal, a renda e a cerâmica, de imprescritíveis. Cabe ao artigo de Laure
certa forma, foram criadas por ele e Emperaire, uma defensora de primeira hora

P
D O
dependem dele para sua perpetuação. Mas do uso das denominações de origem,

E V I S T A
será o mercado, nas formas que conhecemos, alertar-nos também, como veremos adiante,
a panacéia da produção cultural2? para seus limites.

R
Um instrumento de propriedade
intelectual, no entanto, tem chamado a A produção cultural da
atenção por seu potencial de “salvaguarda”: diversidade biológica
são as indicações geográficas e, dentre elas,
muito particularmente, as denominações de A diversidade biológica e a diversidade 17
origem controlada que associam um cultural têm uma interdependência evidente
território a saberes e modos de produzir e nos sistemas agrícolas, pastorais e naqueles
que ligam um grupo cultural a um produto. baseados na caça e na coleta, em que o
Seu florescimento na França, aplicada trabalho humano, expresso na seleção
primeiro aos vinhos, e, desde 1996, a uma cuidadosa de espécies e variedades, na
pletora de alimentos, não é fortuito: trata-se adaptação às condições físicas e bióticas
de defender, em um país que se sente locais, influem diretamente na
ameaçado na sua cultura do paladar e no biodiversidade.Talvez essa presença cultural
comércio pela invasão de produtos se estenda além dessas situações: Bill Balée,
estandardizados mais baratos do resto da afinal, sustenta que a floresta amazônica é,
Europa, um mercado para produtos feitos em larga medida, produto da atividade
de forma mais ou menos tradicional, com humana (B.Balée 1994).
características específicas que se prendem O sentido primeiro da palavra cultura,
tanto à cultura local quanto ao meio historicamente, é o do cultivo da terra, e só
geográfico. Os artigos de L. Bérard e de Ph. vicariamente se estendeu ao que hoje se
Introdução entende comumente pelo termo. É dizer o e culturais que descrevemos, a produção da
quanto cultura e agricultura têm em comum. diversidade biológica da mandioca no Alto
Seja qual for a extensão da origem cultural Rio Negro estanca.
A C I O N A L

dos ecossistemas, não há dúvida de que a


cultura (termo, como acabamos de Políticas como práticas
Manuela Carneiro da Cunha

mencionar, derivado do seu uso original no e r e p r e s e n ta ç õ e s


N
R T Í S T I C O

contexto agrícola) está eminentemente


presente na agricultura. Nesta, como escreve Políticas são objetos que, como os outros,
Laure Emperaire, “a diversidade está ligada ao se manifestam a um tempo como práticas e
A

funcionamento global de cada sociedade e ao como representações. A “política de


E
I S T Ó R I C O

funcionamento do agrossistema que ela patrimônio imaterial” é, ela própria,


produz”. Assim, como ela mostra em seu simultaneamente um ser material e imaterial
artigo, e como Chernela (1986) já havia e ambas as dimensões devem ser abordadas.
H

analisado, o sistema de casamentos dos Enquanto sua materialidade se manifesta


A T R I M Ô N I O

grupos indígenas do Alto Rio Negro, em que nas práticas que enseja, e nos efeitos dessas
as esposas agricultoras provêm práticas, sua imaterialidade é ligada a
necessariamente, de grupos lingüísticos histórias e práticas particulares, que se
P
D O

diferentes dos maridos e saem, para casar, de incrustam no conceito e sobrecarregam-no


E V I S T A

suas aldeias de origem, em que há um gosto com suas conotações. Essa sedimentação, que
pela diversidade, pelas coleções de variedades faz aparecer como evidente e inelutável o
R

de mandioca, em que há intensa circulação de que é na realidade uma construção histórica,


variedades em um raio de centenas de impõe limites à imaginação institucional.
quilômetros, em que se preservam e cultivam Bastará aqui enfatizar dois aspectos dessa
não só clones obtidos pelas estacas mas sobrecarga de sentido. O primeiro está
18 também variedades novas resultantes da embutido na consagração do uso do termo
reprodução sexuada dessa planta, todos esses “patrimônio”, dando como natural um termo
fatores sociais e culturais resultam em uma associado a uma ontologia de propriedade
diversidade máxima de variedades de que foi penosamente construída a partir do
mandioca na área. O gosto cultural pela século XVII. Foi nessa época que as gráficas-
diversidade agrícola, que transcende o simples editoras de Londres, sentindo-se
interesse produtivo ou ecológico, aliado a prejudicadas por edições escocesas,
traços específicos de organização social, conseguiram criar e fazer prevalecer a figura
resulta em um acervo de variedades dos direitos autorais, com o propósito de
riquíssimo e sempre em transformação. É o que esses direitos pudessem lhes ser cedidos
que mostram o artigo citado de Emperaire e em exclusividade. Esses direitos autorais
o de Maria Dina N. Pinto. foram configurados como sendo de
Note-se desde já o quanto a produção da propriedade intelectual dos autores sobre
diversidade, em constante renovação, suas obras. Para realizar essa transfiguração
depende de condições de produção metafórica, estendeu-se a noção de trabalho
específicas. Na ausência das condições sociais à criação literária e equiparou-se esse
“trabalho” autoral a outro tipo de trabalho – produzidos. Mas o “imaterial” não consiste

Introdução
o trabalho da terra, aquele que, segundo em objetos mas sim na virtualidade de
Locke, era a origem mesma da propriedade. objetos, sua concepção, seu plano, o saber

A C I O N A L
Se criar e escrever era trabalho, então a sobre eles. Conservar virtualidades, ou seja,
relação do criador e de sua obra deveria ser o imaterial, é conservar processos. A ênfase,

Manuela Carneiro da Cunha


de propriedade. O que quero salientar aqui é no primeiro caso, é no produto, no segundo,

N
R T Í S T I C O
que a estabilização da noção de propriedade é sobre o processo de produção. Passar da
intelectual não foi evidente e que resultou lógica do produto à lógica do processo é
de um processo político e cultural. Esse justamente o busílis3.

A
processo histórico é hoje apagado da O patrimônio imaterial e a política que o

E
I S T Ó R I C O
memória a tal ponto que a expressão concerne assentam-se assim em um conjunto
“direitos de propriedade intelectual” surge heterogêneo que agrega e consolida
de pronto e irrefletidamente no cidadão mutuamente um certo tipo de vocabulário

H
comum. Por que não outros direitos (“patrimônio”, “bens”, “perigo de

A T R I M Ô N I O
intelectuais que não sejam de propriedade? extinção”,...) , instituições, projetos sociais,
Outro aspecto está manifesto na história pedagogia, financiamentos público e privado,
legal e institucional. Os instrumentos legais etc. Um bom exemplo dessa constelação é

P
D O
que tratam do patrimônio imaterial derivam dado nesta coletânea pelos artigos de

E V I S T A
histórica e logicamente daqueles elaborados Franchetto e de Ball, que tratam do conceito
para o patrimônio material. As instituições, e das políticas voltadas para as “línguas em

R
por sua vez, seguiram rotas paralelas à da perigo”. Ball e também R. Moore (2004)
legislação: por isso o patrimônio imaterial é mostram como o discurso para tratar de
hoje um departamento sui generis e línguas em perigo se moldou no discurso das
necessariamente especificado – “marcado”, espécies em perigo que irrompeu com toda
como diriam os lingüistas – do Instituto do a força nos anos 90. 19
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, A sorte e a dificuldade ao mesmo tempo
cuja missão original se centra, como o nome nessa situação é que a política de patrimônio
indica, no testemunho material (e, no mais imaterial é aplicada a camadas sociais ou
das vezes, de pedra e cal ) do passado. É povos com histórias, com regimes culturais
certo, como sublinha Juliana Santilli, que diferentes desses que descrevemos: impõe-
não se pode desvincular a cultura material da se uma tradução para contextos diversos.
cultura imaterial – afinal, lugares e festas Será regularmente uma tradução cheia de
têm uma existência material, embora caibam mal-entendidos mas por isso mesmo
no registro (real e metafórico, material e produtiva e surpreendente.
imaterial) do patrimônio imaterial. Se são Um dos temas deste número são as
vinculados os dois aspectos, onde reside surpresas. Quisemos trazer material
então a diferença? A diferença entre ambos empírico para reflexão, dados que pudessem
está na atitude que comandam, nas medidas surpreender e tornar mais complexa a
que elicitam. Conservar o patrimônio análise dos casos. Para obter esse efeito, na
material é, sobretudo, conservar objetos já maioria das vezes, basta se aprofundar nos
Introdução contextos e incluir uma dimensão temporal. juízes tentam se entender em um arranjo
Todas as etnografias aqui contidas o fazem, e convencional em que se afeta que um
notadamente as de Dominique Gallois, de mesmo termo tem, para todos os
A C I O N A L

Beatriz Góis Dantas, de Maíra Buhler, de envolvidos, o mesmo significado: aquilo, em


Robin Wright, de Edilene C. de Lima, de suma, que Paul Bohannon famosamente
Manuela Carneiro da Cunha

Pedro Cesarino, de Marcela C. de Souza, de chamou de working misunderstanding.


N
R T Í S T I C O

Geraldo Andrello. ‘Cultura’ é sem dúvida um desses signos que


Se olharmos detalhadamente as formas se prestam ao papel: usada reflexivamente
de produção de coisas – estou evitando de como “cultura” (Carneiro da Cunha 2004)
A

propósito a palavra “bens” culturais – , em ações inter-étnicas ou intergrupos, suas


E
I S T Ó R I C O

veremos quanto é difícil “patrimonializá-las” aspas, no entanto, não são necessariamente


sem efeitos secundários e, sobretudo, sem perceptíveis. Para que o diálogo possa
uma larga medida de simplificação, e talvez persistir, faz-se de conta que não existem.
H

de simplismo. Uma questão interessante passa então a ser


A T R I M Ô N I O

o efeito recíproco da conexão operada por


Regimes culturais uma política de Estado entre regimes
culturais diversos. O artigo neste volume de
P
D O

Chamaremos de regimes culturais esse Marcela Coelho de Souza aponta para a


E V I S T A

conjunto heterogêneo que evocamos, feito importância de uma etnografia desses efeitos
de instituições, de vocabulários, de direitos e entre os Kisedjê (mais conhecidos cá fora
R

deveres aplicáveis nesse campo, normas de como Suyá). O artigo de Ana Gita de Oliveira
acesso e de transmissão e, claro, de práticas e Beatriz Muniz Freire ilustra alguns dos
de todos os tipos, pedagógicas, de projetos, efeitos recíprocos. Digo recíproco porque os
de mercado, de financiamento, etc., tudo efeitos são, sem dúvida, de parte a parte.
20 isso conformando (e sendo reciprocamente
formado por) uma noção do que venha a ser O poder do registro
o objeto a que se refere, a “cultura”.
Pouco importa que a noção de cultura Um exemplo: a política do patrimônio
esteja longe de ser unívoca e que tenha imaterial se apóia na idéia de registros e com
acepções e referentes muito diversos, de algum privilégio do registro escrito sobre
acordo com os grupos sociais envolvidos ao outros suportes. Essa não é só uma política
mesmo tempo que de acordo com os governamental, mas uma concepção muito
contextos em que a usam. Estamo-nos mais generalizada na nossa sociedade e que
detendo aqui em um tipo de situação- aparece como evidente. Ora, o privilégio da
fronteira entre grupos e contextos, aquela escrita tem múltiplos efeitos sobre o regime
em que o signo que circula é chamado de de representação: afeta, por exemplo, como
‘cultura’. Exemplos de situações-fronteira mostra Dominique Gallois, o status da
podem ser a de escambo entre gente que transmissão oral, tende a apagar o contexto
não fala a mesma língua, um tribunal em de produção e homogeneíza abusivamente o
que aborígines, advogados, antropólogos, que é um conjunto de variantes, como fica
patente na análise por Robin Wright da longa cogitar “oficializar” no registro de lugares

Introdução
história de registro de narrativas Baniwa. Há uma das versões da geografia espiritual.
também efeitos de poder que resultam desse Estimulado pela disputa pelo espaço urbano

A C I O N A L
privilégio da escrita: as relações entre em Iauaretê, um clã importante Tariano, os
gerações se alteram entre os Wajãpi. Koivathe, procuraram, assim, garantir o selo

Manuela Carneiro da Cunha


O caso dos grupos indígenas do Alto Rio do Estado para a dimensão espacial de sua

N
R T Í S T I C O
Negro, descrito aqui por Geraldo Andrello, Gênese específica. Seria, se tivesse sucesso,
é, nesse sentido, particularmente o início de uma nova Jerusalém.
elucidativo. Simplificando um pouco: os

A
Tariano, de língua Arawak, convivem Coletivização da

E
I S T Ó R I C O
espacialmente na região de Iauaretê, com cultura?
grupos de língua Tukano. Socialmente,
mantêm com estes a relação algo ambígua de Em final de maio de 2005, um senhor

H
“cunhados”, ou seja, participam da rede de Yawanawa, em uma reunião de líderes

A T R I M Ô N I O
intercasamentos lingüísticos que prevalece indígenas do Acre da qual participavam
na área. A geografia espiritual ou mítica, ou também seus filhos adultos, insurgiu-se
seja, a localização espacial de eventos que quando se falou do kampô – a chamada

P
D O
deram origem ao mundo, à humanidade e à “injeção de sapo” (descrito neste volume por

E V I S T A
sobre-humanidade, e, por fim, aos índios Edilene C. de Lima) e do oni – também
Tariano sobrepõe-se com a geografia mítica conhecido como ayahuasca. “O oni”, disse

R
de outros grupos indígenas da região. Essa ele, “não é cultura”! E explicou: só certas
sobreposição é acolhida localmente com um pessoas sabem e podem prepará-lo. Da
senso de relativismo: cada grupo tem sua mesma forma o kampô só pode ser aplicado
Gênese e o fato de ela marcar espaços por bons caçadores.
coincidentes, em princípio, não causa O que significa esse protesto? Não foi 21
conflitos.Tanto assim que a publicação, difícil entendê-lo. Um dos problemas no uso
principalmente na última década, de inter-étnico que se faz da “cultura”, a “nossa
narrações míticas de várias etnias não cultura”, é que ela introduz uma dinâmica de
suscitou problemas. Já Levi-Strauss notara coletivização do que, quando visto do
que todas as versões, por mais diferentes, de interior, é percebido como um agregado de
um mesmo mito eram acolhidas com sutis distinções de papéis e prerrogativas. A
interesse e placidez pelos ouvintes. Era, de cultura Yawanawa, diante do resto do
certa forma, como se essa geografia mundo, é de todos os Yawanawa, o oni
espiritual de cada grupo não abolisse a dos inclusive, e não exclusivamente das pessoas
outros, como se elas pudessem coexistir: que detêm certos direitos sobre eles. Esse é
algo como o convívio que já existiu, séculos um dos aspectos perversos da primazia da
atrás, entre judeus, cristãos e muçulmanos cultura dita material que é usada como um
em seu triplo lugar sagrado, Jerusalém. “distintivo” cultural: todos os índios sabem
A iniciativa de registro do Iphan trouxe da eficácia, em situações de confronto com
uma nova dinâmica. De repente, podia-se não-índios, de ostentarem cocar, arco e
Introdução flecha. Esse uso, normalmente feito pelas mais geral de esoterização das práticas
gerações mais novas, deixa em segundo exotéricas. Essa é uma tendência desde
plano o que é, pelo menos, igualmente muito perceptível nos grupos indígenas do
A C I O N A L

crucial, porém mais difícil de arvorar Nordeste e, de forma mais geral, nos
diacriticamente, a delicada teia de papéis e chamados grupos emergentes: um exemplo
Manuela Carneiro da Cunha

competências diferenciais dentro da é o uso reservado da língua fulniô e seu uso


N
R T Í S T I C O

sociedade. Um dos resultados da ênfase nos em rituais vedados a estranhos ao grupo.


distintivos culturais tangíveis é uma oposição Essa mesma tendência está agora se
entre gerações mais novas e gerações mais alastrando nas sociedades indígenas em
A

velhas, e o sentimento destas de que suas geral, estimulada por dois movimentos
E
I S T Ó R I C O

competências específicas estão sendo curiosamente muito distantes entre si: por
coletivizadas pelos jovens. O percurso um lado, o regime mainstream de
Wajãpi, descrito aqui por D. Gallois, é propriedade intelectual que valoriza o
H

particularmente ilustrativo: mostra uma conhecimento reservado e deprecia –


A T R I M Ô N I O

passagem – à medida aliás que os jovens vão financeiramente pelo menos – o domínio
ficando mais velhos – para uma valorização público; por outro lado, os efeitos no
da cultura não mais simplesmente como um público em geral do movimento New Age e
P
D O

conjunto de traços materiais, mas como esse o prestígio que investe nos “xamãs”. Um
E V I S T A

outro nível mais complexo que inclui o da bom exemplo disso é a “xamanização” do
competência e etiqueta lingüísticas. uso da secreção do kampô entre os
R

Podemos detectar uma resistência análoga Katukina, descrita por Edilene Coffaci de
à coletivização na reserva que muitas vezes Lima neste volume.
as artesãs opõem às “oficinas” e cursos que se Mas esses exemplos, de que se poderia
lhes pedem para ministrar. É freqüente o erroneamente depreender a melancólica
22 regime cultural em que cada artesã conclusão de que o mercado corrompe
considera seu saber assunto exclusivo de inexoravelmente a cultura indígena, não
família.Transmiti-lo a qualquer aprendiz esgotam, nem de longe, o assunto. São só
(fora dos laços de parentesco ou vizinhança) momentos ou aspectos de um processo
através de oficinas, com o propósito de muito mais complexo. Enquanto, por uma
perpetuar a “tradição”, contraria essa mesma parte, a ênfase é no desempenho da
“tradição” em uma dimensão crucial: a “cultura” objetificada para olhares e
distribuição social das competências. legitimação externa, desencadeia-se ao
Registros escritos e orais, com a melhor das mesmo tempo um processo político-
intenções, podem contribuir para isso. cultural interno aos grupos, que pode, por
exemplo, revalorizar gerações mais velhas.
Xamanização A descrição de Dominique Gallois do
percurso ao longo de décadas da discussão
Outro exemplo: a xamanização dos cultural entre os Wajãpi mostra a tensão e a
conhecimentos indígenas (B. Conklin passagem de um culturalismo simplista
2002), caso paradigmático de um fenômeno centrado no material para uma atenção para
as formas mais elaboradas e sutis – os alternativa a essa, tem um impacto

Introdução
modos adequados de se falar, por exemplo igualmente relevante, por vias ideológicas. É
– de produção cultural. que as populações tradicionais são vistas

A C I O N A L
como paradigmáticas de sociedades que só
Mudanças praticam direitos coletivos e não conhecem

Manuela Carneiro da Cunha


direitos de propriedade intelectual

N
R T Í S T I C O
O que isso mostra é que os regimes individual. No caso indígena brasileiro,
culturais (os deles como os nossos) são extrapola-se ao conjunto dos direitos o fato
passíveis de mudanças que não são apenas de não existirem direitos individuais (ou de

A
induzidas externamente: elas seguem também subgrupos como linhagens, clãs) sobre o

E
I S T Ó R I C O
uma dinâmica interna. Falei acima do regime cultivo da terra.
mainstream de propriedade intelectual que Nada mais falacioso: o ciúme com que
tende a se apoderar cada vez mais de um várias sociedades indígenas tratam seus

H
conjunto cada vez maior de coisas: é provável direitos imateriais é bem documentado (para

A T R I M Ô N I O
que a restrição ao uso de Mickey Mouse seja uma resenha da questão entre grupos de
mais longeva do que minha geração. Mas é língua Jê, vide o artigo de Marcela C. de
sabido o quanto esse regime está sendo Souza neste volume). Na realidade, os

P
D O
contestado, em particular pelo movimento do regimes culturais indígenas parecem ter

E V I S T A
Software Livre e várias outras iniciativas que estabelecido muito antes do G-8 objetos
preconizam a ampliação do domínio público e originais de direitos intelectuais: os nomes

R
a limitação da propriedade intelectual, em próprios entre os Jê são talvez os mais
nome de uma criatividade maior e com famosos. Nomes, cantos, papéis rituais,
menos entraves. Esse movimento, interno ao desenho e composição de adornos são
sistema hegemônico que é o dos países do G- sujeitos a vários tipos de direitos exercidos
8, encontrou grande ressonância em países do por diferentes segmentos da sociedade: os 23
G-20, e o Brasil é, desde 2003 pelo menos, “donos” de um ritual Borôro não pertencem
um exemplo e uma ponta-de-lança do ao clã que tem o direito (ou o dever, mais
movimento. apropriadamente) de executar esse ritual;
Levantei este ponto por duas razões: distinguem-se, como lembra Marcela C. de
primeiro, por ser um bom exemplo de Souza, “donos” “mestres” e “controladores”
contestação interna no Ocidente de um de cantos, de outros objetos, de recursos e
regime cultural, donde se infere que essa de potências sócio-cósmicas entre os
contestação pode ocorrer em qualquer Kisedjê ou Suyá (Seeger 1981, 1993 apud M.
regime cultural, inclusive em sociedades C de Souza); distingue-se o direito/dever de
indígenas (como mostram os artigos já citados transmitir um nome entre os Kayapó do fato
de Gallois e de Wright, por exemplo). de “ter” esse nome. Entre os Marubo, como
A segunda razão pode parecer mais mostra Pedro Cesarino neste volume, os
paradoxal: é que não é só o regime cultural “donos” de certos cantos são espíritos, e
mainstream que impacta as sociedades certos especialistas apenas acolhem esses
indígenas. A tendência contestatária, cantos, emprestam-lhes seu corpo e sua voz,
Introdução para que eles possam ser ouvidos: esses indígena de propriedade cultural. Novamente
cantos, por definição, não são deles (e a similitude aparente oblitera as diferenças.
portanto “patrimonializá-los” seria um Que exista, em muitas sociedades
A C I O N A L

contra-senso cultural) . Os exemplos indígenas, uma noção de propriedade sobre


abundam. Note-se que a nossa noção de algo que se poderia entender como cultura
Manuela Carneiro da Cunha

propriedade cultural, que conjumina a - independentemente de sua imbricação


N
R T Í S T I C O

performance e a “propriedade” – na qual, com outros regimes culturais - não deixa


por exemplo, o escocês que tem direito de dúvida, como já vimos. Corresponde por
usar o desenho específico ao um clã, seu exemplo à noção de “riqueza” associada às
A

tartan, é necessariamente membro desse clã, caixas de adornos cerimoniais que os


E
I S T Ó R I C O

ou na qual quem tem “domínio” de uma grupos do alto Rio Negro detêm (ou
língua é quem a fala4 - não dá conta dessa melhor, detinham), e das quais se sentem
complexidade. “roubados” pelos missionários (G.
H

Embora não tenham a noção da Andrello). “Riqueza” é também uma das


A T R I M Ô N I O

propriedade individual da terra, sociedades traduções dos nekrêtch, a par de


indígenas souberam complicar os direitos “propriedade, mercadoria, enfeite,
sobre o intangível muito além da nossa privilégio, prerrogativa” (Salanova apud
P
D O

imaginação5. Alçados apesar disso a Gordon apud Marcela C. de Souza).


E V I S T A

protótipos e campeões do domínio público Também se pode argumentar que existe,


por aqueles que são seus aliados, os índios entre vários grupos de língua jê, a distinção
R

podem ter certa dificuldade em se ajustar do patrimônio material e do imaterial.


às expectativas6. Segundo recapitula neste volume Marcela C.
A coletivização da cultura, por um lado, e de Souza, há evidências de que os termos
sua xamanização, por outro, parecem Kayapó nekrêtch e kukràdjà (e suas variantes nas
24 caminhar em direções opostas. A questão, no outras línguas Jê) se opõem aproximadamente
entanto, não é bem essa, e sim a de tentar como o objetificado e o virtual.
entender o que muda ou tende a mudar com Essas analogias, essas semelhanças,
a patrimonialização da cultura. obscurecem, no entanto, que se está falando
O que muda, em ambos os exemplos, é a de regimes culturais dessemelhantes.
repartição dos papéis sociais, o modo de Um dos paradoxos indígenas, por
produção. A ênfase de parte a parte (nossa e exemplo, é que a propriedade cultural
deles) na cultura material ostensiva, a raramente se confunde com autoria cultural
atenção aos “produtos” mais do que à sua ou invenção. Por definição, os bens
produção mascara a mudança talvez mais culturais dos grupos Jê vêm de fora: por
importante, que é a da teia social. troca, roubo ou freqüentemente
conquistados pelo poder das armas sobre
Falsos amigos outros grupos; ou então obtidos de seres
não-humanos (Marcela C de Souza). Aos
Um mal-entendido análogo vigora também cantos e rituais mais centrais desses grupos
quando se discute a existência de uma noção atribui-se em geral uma origem estrangeira.
São, na realidade, troféus: como se a ceramistas por excelência e os Kuikuro, os

Introdução
“referência cultural” dessas etnias fosse fazedores de colares de conchas. É, como já
integralmente importada7. muito se comentou, como se a especialização

A C I O N A L
As analogias não passam, portanto, do e o comércio estivessem a serviço da teia
que em lingüística se chama de “falsos social e não o inverso: o valor da troca tendo

Manuela Carneiro da Cunha


amigos”: superficialmente parecidos, são precedência sobre o valor de troca.

N
R T Í S T I C O
armadilhas para a compreensão. A própria concepção indígena,
mencionada acima, de que “toda cultura é
P at r i m o n i a l i z a ç ã o importada” implica que a circulação dos

A
e teias sociais. bens culturais (afetados de sua história e

E
I S T Ó R I C O
“Nossa cultura” origem) é valorizada: algo como o clássico
kula da Melanésia.
É, como dissemos, na teia social e nas No Alto Rio Negro, os casamentos inter-

H
significações locais que se localizam as lingüísticos, o valor atribuído à diversidade

A T R I M Ô N I O
principais mudanças induzidas pela nas variedades de mandioca e na circulação
patrimonialização da cultura. dessas variedades produziram, como mostra
A dimensão da sociabilidade está presente Laure Emperaire em seu artigo, um acervo

P
D O
em todos os estudos de caso aqui publicados. altíssimo de diversidade varietal da mandioca

E V I S T A
Em Sergipe, por exemplo, o sucesso de nessa região. Essa diversidade depende,
certas técnicas de fazer renda ou redendê portanto, desses mecanismos, entre os quais

R
estão explicitamente associadas ao maior ou a troca é um elo essencial. É nesse valor da
menor contato social que ensejam. A renda troca que a patrimonialização irá incidir, na
de bilro, com sua pesada parafernália, é um medida em que remunera, mesmo que só
trabalho solitário. A renda irlandesa e o simbolicamente, a exclusividade, seqüestra
redendê, ao contrário, permitem o convívio bens culturais e engessa a circulação. Os 25
das rendeiras (B. Góis Dantas). efeitos nefastos dessa política sobre a
A patrimonialização interfere diretamente criatividade foram bem percebidos pelos
nessas redes sociais. Para voltarmos aos movimentos que combatem a expansão dos
exemplos indígenas, já se enfatizou que a direitos de propriedade intelectual, e o
especialização cultural é, de certa forma, o artigo de Hermano Vianna neste volume
“gancho” para relações intergrupos, na ilustra essa posição.
medida em que ela abre a possibilidade para Recentemente introduzidas nessa esfera
várias outras trocas. Os Achuar do Equador de mercado de conhecimento e de cultura,
valorizam as zarabatanas dos seus vizinhos postas em alerta por uma campanha
não porque não saibam fazê-las mas porque nacionalista contra a biopirataria apresentada
através delas flui um intercâmbio bem mais como um roubo – sempre por estrangeiros,
amplo. No Alto Xingu, existe uma divisão do como se não existisse apropriação indébita
trabalho cultural que faz de cada grupo o por brasileiros – de incalculáveis tesouros,
especialista em determinados itens: as as sociedades indígenas se tornaram
mulheres Waurá são, por exemplo, as extremamente sensíveis no que toca ao que
Introdução passaram a considerar seu “patrimônio” no MOORE, Robert E. Memor(ial)izing words: ways of
sentido do nosso regime cultural. A writing in the politics of access to endangered languages.
Apresentação no seminário Semiotics, Culture in
bioparanóia alastrou-se para todos os Context, Chicago, 11 nov. 2004.
A C I O N A L

campos da cultura. RUMSEY, Alan. Language and territoriality in aboriginal


Em maio de 2005, um jovem e Australia. In:WALSH, C. e YALLOP, Colin (eds.).
Manuela Carneiro da Cunha

inteligente índio do Acre se perguntava (e Language and culture in aboriginal Australia. Canberra:
N

Aboriginal Studies Press, 1993.


R T Í S T I C O

nos perguntava) sobre os motivos SEEGER, Anthony. Nature and society in Central Brazil:
inconfessos que poderiam estar por trás do the Suyá Indians of Mato Grosso. Cambridge, Mass:
interesse que missionários, antropólogos e Harvard University Press, 1981.
A

lingüistas haviam sempre demonstrado pelas _________. Anthony. Ladrões, mitos e história: Karl
E

von den Steinen entre os Suyá: 3 a 6 de setembro de


I S T Ó R I C O

línguas indígenas. Elas podiam, afinal, ter 1884. In: COELHO,V. P. (org.), Karl von den Steinen:
grande valor de mercado e serem úteis de Um século de antropologia no Xingu. São Paulo: Edusp,
vários modos. Por estranho que pareça, é 1993, p. 431-443.
H

verdade: a língua dos Navaho foi usada pelos TURNER,Terence. Dual opposition, hierarchy and
A T R I M Ô N I O

value: moitey structure and symbolic polarity in


EUA na Segunda Guerra Mundial como um central Brazil and elswhere. In: GALEY, J. C. (ed.).
código secreto, equivalente ao célebre Différences, valeurs, hiérarchies: textes offerts à Louis Dumont.
sistema de codificação “Enigma” dos Paris: EHESS, 1984, p. 335-370.
P
D O

alemães. Ainda não sei se essa era a origem


N o ta s
E V I S T A

da suspeita sobre todas as atividades


lingüísticas, mas resta o fato de que a ligação
1 Em meados de 2005, essa Convenção ainda não
R

entre patrimonialização e mercado induz entrou em vigor, já que necessita de 30 países


efeitos perversos. signatários e só conta por enquanto com 14. O Brasil,
que ainda não aderiu a essa Convenção, antecipou-se
no entanto a ela, com seu Decreto 3.551, de 4 de
Bibliografia
agosto de 2000, que cria o Programa Nacional do
26
Patrimônio Imaterial e os registros de bens culturais.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela, Culture in politics:
2 A história do Jequitinhonha e de suas oleiras é
intellectual rights of indigenous and local people.Actas del
particularmente melancólica: foram a Acesita e o
IX Congreso de Antropología de la Federación de Asociaciones
plantio de eucaliptos, na década de 1970, que criaram
de Antropología del Estado Español, Barcelona: Institut
o deserto em que vivem. A valorização da cerâmica
Català d´Antropologia. 2003.
pela Codevale atuou como uma compensação, não
_________. “Culture” and culture: traditional knowledge
obedeceu portanto às regras do mercado puro e duro.
and intellectual rights. Marc Bloch lecture, 2004.
Quando este se instaurou realmente, trouxe consigo
(Manuscrito).
uma série de conflitos (M.Buhler).
BOYLE, James. Shamans, software and spleens. Law and the
3 É certo que no mundo supralunar, segundo
construction of the information society. Cambridge Mass.:
Aristóteles, a forma imaterial e a sua realização
Harvard University Press, 1996.
material não se distinguem, são uma coisa só. Mas no
CHERNELA, Janet. Os cultivares de mandioca na área
mundo infralunar em que vivemos, eles não se
do Uaupês (Tukâno. In: RIBEIRO, B. (org.). Suma
confundem. A política do patrimônio histórico foi
Etnológica Brasileira. v.1, Etnobiologia. Petrópolis: Ed.
toda voltada para a preservação da realização material.
Vozes/ Finep, 1986, p. 151-158.
Trata-se de passar dessa preservação do material à
CONKLIN, Beth. Shamans versus pirates in the
conservação da forma imaterial. E conservar a forma
Amazonian treasure chest. American Anthropologist, n.
imaterial é, repetimos, conservar processos, não
104, v. 4, 2002, p. 1050-1061. s./l.
preservar produtos.
4 Como lembra Chris Ball neste volume, a propriedade

Introdução
da língua em grupos aborígines australianos estaria
ligada a lugares e não à competência lingüística. Assim,
um grupo pode ser dono de uma língua sem

A C I O N A L
necessariamente a falar, pela sua associação com um
lugar específico (Alan Rumsey 1993).

Manuela Carneiro da Cunha


5 É significativo que essa criatividade institucional

N
indígena se aplique ao que chamamos de imaterial,

R T Í S T I C O
termo que em inglês é sinônimo de insignificante, sem
importância. Em sociedades onde, como mostrou
Turner (1984), o valor está na produção da beleza e de

A
pessoas, nomes, cantos, adornos e papéis rituais são

E
valores fundantes.

I S T Ó R I C O
6 É interessante notar que Boyle e Lessig, pioneiros na
defesa do domínio publico e articuladores do nexo
entre conhecimentos tradicionais, direitos sobre

H
linhagens de células e direitos sobre software, não

A T R I M Ô N I O
caíram nessa armadilha. Se preconizam a ampliação do
domínio publico, não estendem a receita aos
conhecimentos tradicionais porque consideram que há
um equilíbrio a restabelecer após muitos séculos de

P
espoliação (J. Boyle 1996).

D O
7 Esta não é uma característica apenas amazônica. Em

E V I S T A
outro texto, discuto vários casos melanésios
semelhantes a este (vide M. Carneiro da Cunha 2004).

R
Tigela grande de papel
machê de bagaço de
cana, produzido em 27
Conceição das Alagoas,
Minas Gerais. Artesãs:
Glória e Deides.
A produção cultural
da diversidade biológica:
instrumentos e instituições
Parte I
Na Amazônia, os agricultores cultivam, em geral, uma ampla
diversidade de mandiocas agrupadas em duas grandes
categorias: as brancas e as amarelas. Rio Marau, Ti Saterê-
Mawê, Nova Esperança, Amazonas, 1999. Foto: Emperaire,
acervo pessoal. Copyright: @ IRD Emperaire.

página seguinte:
Uma experiência de valorização dos produtos locais: a marca
regional de Farinha de Cruzeiro do Sul, Acre, 2002. Foto:
Emperaire, acervo pessoal. Copyright: @ IRD Emperaire.
Laure Emperaire
A biodiversidade agrícola

A C I O N A L
na Amazônia brasileira

N
R E C U R S O E P A T R I M Ô N I O

R T Í S T I C O
A
Introdução alimentares, medicinais e outros destinados

E
I S T Ó R I C O
ao autoconsumo e à venda. Além disso,
As espécies e as variedades cultivadas são como Altieri (1999) ressalta, seu interesse
objetos biológicos que atendem a critérios justifica-se também em termos de vantagens

H
culturais de produção, de denominação e de ecológicas e agronômicas (adaptação a

A T R I M Ô N I O
circulação, em constante interação com as ambientes diversos, maximização da
sociedades e os indivíduos que os produzem utilização de nutrientes, água e luz,
e modelam. São objetos cuja conservação da fertilidade dos

P
D O
existência se insere em tempo e solos, resistência às pragas e

E V I S T A
em espaço definidos por doenças e flexibilidade do
exigências biológicas, mas calendário agrícola),

R
que são também parte da elementos que levam a
vida cotidiana e certa estabilidade dos
constantemente readaptados sistemas agrícolas locais.
a um contexto ecológico, Hoje, num contexto
econômico e sociocultural. simultaneamente marcado por 31

O leque das variedades uma erosão da diversidade agrícola


selecionadas pelas populações tradicionais, e por um interesse cada vez maior por
indígenas e outras, é imenso. Exemplos esses recursos enquanto reservatórios de
disso, entre muitos outros, são o sistema moléculas ou de genes com potencialidades
agrícola dos Kkaiabi, em que mais de 140 econômicas, a questão do futuro da
variedades pertencentes a trinta espécies são biodiversidade agrícola é levantada com
cultivadas nas roças (Silva, 2002); o dos intensidade, e ultrapassa a problemática
Ianomami, com 49 variedades (Milliken, restrita da conservação de recursos
Albert, 1999); ou ainda o dos seringueiros fitogenéticos: deve ser tratada em termos de
do alto Juruá, em que as três principais uma reflexão sobre o futuro de um
espécies cultivadas, mandioca, banana e patrimônio cujo suporte é biológico, mas
feijão, recobrem, respectivamente, 17, 14 e cuja existência é resultado de uma
9 variedades (Pantoja et al., 2002). construção humana. Conseqüentemente,
Esta alta diversidade permite atender a trata-se também da conservação de um
uma demanda local diversificada de produtos patrimônio cultural, devendo ser abordada
A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira como tal. Os trabalhos de Sauer (1986), et al., 1997) e de sua eficácia, foram
inicialmente publicados em 1963 no rapidamente evidenciados. Além disso, como
Handbook of south american indians, chamavam afirma Parry (1999), essas coleções,
A C I O N A L

já a atenção para a diversidade dos cultígenos dissociadas do contexto social, ecológico e


da região neotropical e os qualificavam de cultural em que as variedades foram
artefatos vivos, salientando assim, seu produzidas, tornaram-se instrumentos de
N
R T Í S T I C O

enraizamento na cultura. apropriação, de concentração dos recursos e


Após breve exposição sobre a evolução de controle da circulação não somente do
das modalidades de conservação, material mas também das informações
A

mostraremos, a partir do caso da mandioca associadas, marginalizando as populações


E
I S T Ó R I C O

– principal planta cultivada na Amazônia locais destes processos. Ainda hoje, as


brasileira – como a diversidade ligada a esse discussões a respeito dos direitos de
cultígeno é associada a lógicas culturais de propriedade sobre os recursos fitogenéticos
H

produção e de manejo1. registrados nos bancos de germoplasmas,


A T R I M Ô N I O

nacionais e internacionais, continuam


D a c o n s e r va ç ã o e x s i t u acirradas. Exemplo disso é o recente acordo
à c o n s e r va ç ã o o n f a r m sobre o retorno das coleções de batatas às
Laure Emperaire
P
D O

comunidades andinas (IIED, 2005).


E V I S T A

Assiste-se, ao longo dos últimos cinqüenta Entretanto, apesar de seus limites e desde
anos, a uma evolução dos paradigmas da que as condições de titularidade e de acesso
R

conservação que, inicialmente fundados às coleções sejam determinadas com a


sobre modalidades ex situ, passaram participação das populações locais, a
progressivamente a modalidades in situ, e em conservação ex situ continuará a ser um
seguida a modalidades on farm. Estas duas instrumento de interesse para certas
32 últimas qualificações, que encobrem variedades ameaçadas de extinção.
objetivos diferentes, são freqüentemente As recomendações feitas no âmbito da
assimiladas uma à outra. Conferência Técnica Internacional sobre os
Os sinais de alarme sobre a erosão dos Recursos Fitogenéticos de Leipzig (1996),
recursos genéticos soaram na esteira da em prol de uma conservação in situ,
revolução verde dos anos 1960-70. Foi a constituem um avanço. A ênfase é dada à
partir de 1970 que foram criados os 13 necessidade de conservar fluxos de genes
Centros Internacionais de Pesquisa Agrícola entre parentes silvestres e espécies
(Cira) do Grupo Consultivo para a Pesquisa domesticadas, de modo a manter uma
Agrícola Internacional – CGIAR, cujos ampla base genética tanto de interesse
objetivos são a melhoria e a conservação do econômico quanto adaptativo. Os processos
material fitogenético. Para tanto, coleções de evolução e de adaptação às mudanças
importantes de plantas tropicais, alimentícias ambientais seriam, pois, preservados.
ou não, foram criadas a partir de recursos Porém os relatórios nacionais elaborados
locais. Porém os limites dessa conservação ex por ocasião da Conferência de Leipzig
situ, em decorrência de seu custo (Epperson mostram que os conhecimentos sobre a
diversidade agrícola são fragmentários (Fao, carboidratos. Esse cultivo encontra-se em

A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira


1995) e limitam-se, em grande parte, aos diferentes contextos ecológicos (terra
bancos de germoplasmas do sistema CGIAR firme/várzea) e socioculturais (populações

A C I O N A L
ou de outras entidades nacionais, e que a indígenas, mestiças ou de colonos). A
verdadeira diversidade, a que é cultivada mandioca é tanto um alimento das áreas
nos campos e roças, é desconhecida. Da urbanas como das áreas rurais. A produção de

N
R T Í S T I C O
mesma forma, se os fenômenos de erosão mandioca é sinônimo de autonomia
genética são visíveis e previsíveis, alimentar, e seus derivados constituem
continuam mal avaliados, tanto quantitativa também uma das raras produções agrícolas

A
quanto qualitativamente. Diante desta comercializáveis em um mercado ativo,

E
I S T Ó R I C O
constatação e seguindo as recomendações porém mal remunerado; diversos tipos de
da Convenção sobre a Diversidade farinha – tapioca, tucupi – são vendidos nos
Biológica, que colocaram em primeiro níveis local e regional.Trata-se de uma

H
plano o papel das populações locais na espécie da maior importância na vida

A T R I M Ô N I O
conservação dos recursos biológicos, novas cotidiana, material, cultural e econômica da
concepções de conservação se afirmam e Amazônia.
apóiam formas locais de manejo dos A mandioca foi objeto de vários trabalhos2

Laure Emperaire
P
D O
recursos. Emerge o conceito de que a estudaram a partir de diferentes

E V I S T A
conservação on farm, com a participação das prismas. Por exemplo, os estudos de Boster
populações locais, agora consideradas como (1980, 1984a, 1984b, 1985) na Amazônia

R
quem pode garantir uma alta diversidade peruana têm como objeto a percepção da
agrícola. Assiste-se, portanto, a uma diversidade; os de Chernela (1986)
ampliação da noção de conservação, evidenciam a importância das redes sociais
embora esta permaneça principalmente no sobre as quais se sustenta a circulação do
campo dos agrônomos e geneticistas. germoplasma no alto rio Negro. A pesquisa 33
desenvolvida por Grenand (1996) mostra,
A mandioca, também para a região do rio Negro, a
u m m o d e lo d e e s t u d o estreita ligação que existe entre fatores
culturais e diversidade varietal da mandioca.
A mandioca, pela sua importância No que nos diz respeito, desenvolvemos,
alimentar e sua alta diversidade de entre 1998 e 2000, uma abordagem
variedades, é um bom modelo para analisar a comparativa do manejo da mandioca3 em
dimensão cultural do manejo de um nove áreas da Amazônia brasileira (mapa
cultígeno.Todas as mandiocas cultivadas n°1) para fim de compreender como um
pertencem à espécie Manihot esculenta Crantz, mesmo recurso é apreendido e manejado em
originária da Amazônia, provavelmente da diferentes contextos humanos e ecológicos.
região sudoeste, na fronteira do Brasil com a Essas áreas correspondem, aproximadamente,
Bolívia (Olsen, Schaal, 2001).Trata-se, hoje, a um gradiente oeste-leste de inserção numa
da principal espécie cultivada na Amazônia, e economia de mercado. As regiões e
seus tubérculos constituem a maior fonte de populações em questão situavam-se:
A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira • No noroeste da Amazônia, nas terras capoeira de dez anos, nas áreas de pouca
indígenas do alto rio Negro, no Içana, em pressão sobre as terras, e de dois a três anos,
duas comunidades indígenas baniwa em áreas periurbanas.
A C I O N A L

(arawak); no alto rio Negro, em uma Os dados de campo indicam grandes


comunidade baré (arawak, mas atualmente diferenças na amplitude da diversidade, com
de língua nheengatu); no rio Uaupés, entre médias que vão de três a 26 variedades por
N
R T Í S T I C O

agricultores de diversas etnias, falantes da agricultor e valores extremos de uma a 48


língua tukano oriental, morando fora mas variedades. As curvas cumuladas de
próximos das terras indígenas; em São variedades por agricultor evidenciam esta
A

Gabriel da Cachoeira, numa população diferença (Figura n° 1), com um perfil de


E
I S T Ó R I C O

multiétnica originária do alto rio Negro; e forte diversidade associado às populações


por fim no médio rio Negro, nas regiões de indígenas do alto rio Negro, região que
Barcelos e de Santa Isabel do Rio Negro, aparece como um pólo de diversidade, e um
H

entre agricultores de origem indígena, outro perfil de diversidade mais fraco, com
A T R I M Ô N I O

chamados regionalmente de caboclos. diferenças somente graduais, para as


• No médio Amazonas, entre agricultores populações das outras regiões.
caboclos situados cerca da Terra Indígena
Laure Emperaire
P
D O

Saterê-Mawê e entre os saterê-mawê (tupi)


E V I S T A

de duas aldeias situadas nesta Terra.


• Na região de Altamira, no Pará, entre
R

colonos provenientes de diversas regiões do


Brasil, vindos durante a abertura da
Transamazônica, ou descendentes de colonos
que se instalaram no início do século passado.
34 • No estado do Acre, na região do alto
Juruá (sudoeste da Amazônia, próximo da
Figura n° 1 : Curvas acumuladas do número de variedades cultivadas
fronteira com o Peru), entre agricultores e por agricultor segundo as áreas estudadas (TI: Terra Indígena,
seringueiros descendentes dos imigrantes do Resex: Reserva Extrativista; AC: Acre, AM: Amazonas, PA: Pará).

Nordeste do Brasil trazidos para a Amazônia


no início do século passado, durante o A interpretação deste gráfico suscita
apogeu da época da borracha. questões sobre três conjuntos de elementos.
Com exceção dos seringueiros do Acre, Primeiro, sobre o significado da unidade
que cultivam principalmente mandiocas elementar estudada, ou seja – o que é
mansas, todos os outros grupos cultivam coberto pela noção de variedade? Segundo,
preferencialmente mandiocas bravas, que questões sobre seu reconhecimento – como
necessitam uma destoxificação antes de são identificadas e denominadas as
serem consumidas.Todas essas populações variedades? E, finalmente, sobre os
têm em comum o fato de praticarem uma fenômenos biológicos e sociais que dão
agricultura de queima e pousio, com dois ou origem a essas diferenças, isto é – como é
três ciclos de mandioca e períodos de produzida a diversidade?
A n at u r e z a d a va r i e d a d e De fato, do habitante da cidade ao

A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira


geneticista, cada um definirá seus próprios
Conforme os atores, a noção de variedade recortes na diversidade biológica. A

A C I O N A L
pode ter vários sentidos e cobrir diferentes diferença limitar-se-á, provavelmente, à
níveis de homogeneidade biológica. No caso categorização que distingue as mandiocas
dos agricultores locais, uma variedade é um mansas das bravas5, no primeiro caso, e irá

N
R T Í S T I C O
conjunto de indivíduos considerado até os clones, no segundo caso.Trata-se, num
suficientemente homogêneo e caso, de uma propriedade bioquímica que
suficientemente diferente de outros grupos será a base da identificação da variedade e,

A
de indivíduos para receber um nome em outro, de uma homogeneidade definida

E
I S T Ó R I C O
específico e ser objeto de um conjunto de por características genéticas.
práticas e conhecimentos, ao longo de seu No caso dos agricultores amazônicos, a
ciclo, ou em uma etapa particular deste, que análise morfológica de 304 pés de mandioca

H
lhe serão específicos.Trata-se da unidade de diversas variedades permitiu afinar tal

A T R I M Ô N I O
mínima de percepção e manejo da noção. Ela mostra que a característica maior
diversidade agrícola, o que pode ser em que repousa o reconhecimento de uma
traduzido em língua vernácula como variedade é o porte da planta, ou seja, um

Laure Emperaire
P
D O
qualidade ou tipo de uma dada planta. Essa conjunto de traços arquiteturais. Em

E V I S T A
definição evidencia a dimensão cultural da segundo lugar, é a cor do pecíolo e, por
percepção da diversidade e, paradoxalmente, fim, as características do tubérculo

R
não está tão longe da proposta por diferentes (Emperaire et al., 2003).
instrumentos jurídicos, entre os quais a Lei Esses resultados refletem-se no sistema de
dos Cultivares4. denominação local das mandiocas do alto rio

35

Retorno da roça:
tubérculos de mandioca
arrancados no dia para
preparo de farinha. Rio
Marau, Ti Saterê-Mawê,
Nova Esperança,
Amazonas, 1999. Foto:
Emperaire, acervo
pessoal. Copyright: @
IRD Emperaire.
A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira Negro, região de forte diversidade. De fato, é cultural marca com seus recortes mais ou
a parte epigéia da planta – a que recebe os menos distantes as variações contínuas das
cuidados, desde o plantio da estaca às características morfológicas das mandiocas, o
A C I O N A L

diferentes capinas – que tem sentido, em que remete à hipótese de Boster (1985)
termos de diversidade. É ela que recebe um sobre a seleção de novos morfotipos em
nome e não o conjunto da planta, incluindo a função de sua perceptual distinctiveness.
N
R T Í S T I C O

parte subterrânea. Em tukano, o nome é


construído com o sufixo dı̃kı̃ (caule da O n o m e , u m at r i b u t o
mandioca) para formar nomes de variedades essencial
A

como ne’ê dı̃kı̃, bu’u dı̃kı̃, akê dı̃kı̃ ,


E
I S T Ó R I C O

respectivamente, caule de mandioca de O nome é um atributo essencial da


buriti, de tucunaré e de macaco. Cerca de variedade, e todas as variedades são
cem nomes dessas variedades foram nomeadas. Nos grupos de populações de
H

levantados. A parte hipógea, a do tubérculo, é implantação relativamente recente, os nomes


A T R I M Ô N I O

denominada kii e é pouco discriminada, de variedades são geralmente descritivos e se


distinguindo-se apenas dois conjuntos referem a uma particularidade morfológica
classificatórios principais, o dos tubérculos de (grande, pequena, vermelha, etc.) ou a uma
Laure Emperaire
P
D O

polpa branca e o dos tubérculos de polpa origem (do Pará, do Solimões, dos brancos,
E V I S T A

amarela. Em baniwa, a lógica de etc.). Nos grupos indígenas e caboclos do


denominação é a mesma, com o sufixo -ke rio Negro, faz-se uma distinção clara entre
R

usado para designar a parte epigéia e o termo variedades introduzidas, ou pelo menos cuja
kaini para designar o tubérculo. Há, portanto, origem se supõe não ser local, e variedades
uma percepção diferenciada da diversidade locais. Os nomes descritivos aplicam-se
segundo a parte em questão da planta. somente às primeiras. As variedades locais,
36 Um outro resultado desta análise indica porém, são designadas por nomes de plantas
que não existe diferença considerável no ou de animais que pertencem ao cotidiano,
espaço morfológico ocupado por cada em particular peixes, palmeiras e outras
conjunto de variedades oriundas de um dado plantas cultivadas. Objetos ou substâncias
lugar. Em outras palavras, cada um desses associados a mitos, banco, cuia, cachimbo,
espaços morfológicos é capaz de gerar uma tapioca, etc. também podem servir de
diversidade equivalente de morfotipos, mas, suporte aos nomes.
segundo as formas de manejo da diversidade No caso das mandiocas cultivadas pelas
e a importância que lhes é dada, uma parte etnias do grupo tukano do alto rio Negro, as
mais ou menos importante desses denominações oferecem dois níveis de
morfotipos é diferenciada. Isto quer dizer leitura. A atribuição de um nome é, com
que a malha desse espaço é fina nos grupos freqüência, justificada por uma analogia
que manejam uma alta diversidade e muito qualquer: tubérculos pequenos para a
mais ampla nos grupos que manejam uma variedade caroço de inajá; um porte esguio
fraca diversidade. Assim, segundo seu para a variedade açaí; um epiderme rugoso
interesse pela diversidade, cada grupo do tubérculo para a variedade jabuti, etc.
Um segundo nível de leitura é dado não mais práticas agrícolas e nos mitos que cercam

A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira


pelo significado de um nome de variedade, seu aparecimento. A atitude com relação à
mas pelo significado do conjunto dos nomes mandioca reflete-se num discurso sobre o

A C I O N A L
de variedades cultivadas. Este constitui um modo de tratar o vegetal: uma variedade é
conjunto de bens, isto é, portador de bem- criada e não somente cultivada ou plantada.
estar, de plenitude material, recriando, no Estabelece-se uma relação de filiação entre a

N
R T Í S T I C O
espaço da roça, um universo de abundância e agricultora e as variedades cultivadas. As
diversidade. Dos 80 nomes levantados na variedades têm uma dimensão humanizada
região de Iauaretê, uns 50 se referem a que é a tela de fundo do manejo da

A
espécies cultivadas, palmeiras, caça, peixes, diversidade varietal.

E
I S T Ó R I C O
ou outros recursos do meio ambiente.
Assim, não é tanto o nome da variedade que P r á t i c a s lo c a i s e
faz sentido quanto a totalidade dos nomes, diversidade

H
que se insere em um amplo patrimônio de

A T R I M Ô N I O
bens. Da mesma forma, no alto rio Negro A manutenção de uma alta diversidade
não é a variedade que é a unidade de manejo varietal está ligada a dois conjuntos de
da diversidade, mas a coleção de mandiocas práticas: um é resultado de normas sociais –

Laure Emperaire
P
D O
cultivadas. A riqueza de denominações, as trocas de germoplasma – e outro, de

E V I S T A
portadora de um significado cultural, é sem fenômenos biológicos mais ou menos
dúvida nenhuma um fator da alta diversidade controlados pelos agricultores – o manejo da

R
local. Existe um gosto pela diversidade que multiplicação sexuada.
vai além do interesse ecológico e produtivo No alto rio Negro, as trocas de manivas
de um amplo leque de recursos agrícolas. (ou estacas) são intensas, ativas e baseiam-se
O nome reflete também uma filiação e em normas de constituição de linhagens ou
uma história. Uma estaca de mandioca de clãs. Além disso, elas resultam de um 37
recebida sem nome perde o interesse. A interesse constante pela novidade e pela
importância desse laço como componente da experimentação. As variedades circulam
identidade das variedades é destacada a num raio de centenas de quilômetros entre o
contrario pelas denominações dos morfotipos Brasil, a Colômbia e a Venezuela. Em outras
oriundos das sementes (cf. infra) que regiões estudadas, as trocas com freqüência
evidenciam a ausência de filiação: são limitam-se à vizinhança. São ocasionais e,
chamados sem nome, sem pai, achada ou ainda geralmente, mais motivadas pela necessidade
semente. Mas trata-se, na maioria das vezes, de obter material de propagação do que por
de um estado de transição, e essas um interesse particular pela diversidade
mandiocas, após serem multiplicadas, (Pinton, Emperaire, 2001).
receberão o nome de uma variedade A outra fonte de diversidade é a
morfologicamente, e muitas vezes multiplicação sexuada da mandioca. A
geneticamente, próxima. mandioca é uma planta de multiplicação
Os laços entre a mandioca e seu universo vegetativa habitualmente propagada por
sociocultural expressam-se também nas estacas. Conserva, no entanto, a capacidade
A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira de frutificar e de produzir sementes viáveis. regional. O manejo dinâmico e rápido da
Na maturidade, o estouro dos frutos de diversidade permite pensar que o suporte
mandioca provoca a dispersão das sementes biológico da variedade, também ela
A C I O N A L

que se espalham sobre o solo da roça, são constituída por clones morfologicamente
enterradas em maior ou menor grau e próximos, é, em certa medida, efêmero
entram em dormência. Após dois ou três numa escala de uma ou várias gerações; que
N
R T Í S T I C O

ciclos de coleta de tubérculos e um período é a todo instante renovado e que o principal


de capoeira de vários anos, essas sementes elemento perene da diversidade é o nome da
germinam quando se abre uma nova roça no variedade que será aplicado a morfotipos
A

local.Todos os agricultores conhecem o com certas características morfológicas,


E
I S T Ó R I C O

fenômeno de surgimento desses jovens pés agronômicas e organolépticas.


de mandioca no momento da queimada. No
entanto, o tratamento reservado a essas Quais são as
H

plântulas varia de acordo com o contexto. perspectivas?


A T R I M Ô N I O

Nas regiões com baixa diversidade, os


agricultores consideram que os novos A abordagem comparativa desenvolvida
morfotipos interferem na diversidade já indica claramente que a diversidade está
Laure Emperaire
P
D O

construída e os arrancam. Porém, no ligada ao funcionamento global de cada


E V I S T A

noroeste da Amazônia, eles são considerados sociedade e ao funcionamento do


como uma fonte de diversidade. Depois de agroecossistema que ela produz. As duas
R

uma fase de multiplicação, são muitas vezes situações extremas de forte e fraca
incorporados ao estoque de variedades e, diversidade caracterizam-se, de um lado, por
nessa altura, recebem o nome de uma um manejo dinâmico baseado numa
variedade próxima, contribuindo assim para renovação contínua da diversidade por meio
38 o aumento da diversidade genética intra- de sementes e trocas e, por outro, por um
varietal. Entre os saterê-mawê, no médio manejo estático que visa a selecionar um
Amazonas, as mandiocas que aparecem nos número reduzido de variedades em função
locais das antigas queimadas são consideradas de uma série de limitações locais,
variedades ancestrais. Ainda que econômicas e ecológicas. Num caso, é a
geneticamente diferentes das variedades que adaptabilidade que é privilegiada,
puderam ser cultivadas nesse lugar, são o permitindo frente a mudanças ecológicas,
testemunho de uma continuidade histórica. por exemplo – uma redução do tempo de
A combinação desses dois elementos, a pousio –, recorrer a um estoque importante
intensa circulação das variedades e a de variedades, sempre renovado; em outro, a
produção de novos morfotipos faz com que adaptação ou especialização com um manejo
toda nova combinação genética entre mais estático de um conjunto reduzido de
rapidamente na rede de circulação das variedades. As duas formas de manejo estão,
variedades e (em razão da multiplicação de respectivamente, associadas a dois modos de
clones da mandioca que fixa toda nova percepção da diversidade global, onde a
variedade) que seja conservada em escala coleção é a unidade pertinente de manejo,
ou individualizada, onde a dimensão
privilegiada de manejo é a variedade
individualmente percebida.
O que deve ser levado em conta na
definição de medidas de conservação e de
valorização da diversidade agrícola é,
portanto, um objeto complexo, integrado a
redes sociais, com especificidades biológicas
e ecológicas, e portador de valores e de
saberes. Além disso, esse objeto tem uma
história. Foi forjado, com freqüência, num
contexto diferente do atual, e nem sempre
corresponde às demandas e expectativas dos
agricultores que, cada vez mais, devem
atender a imperativos de mercado a serem
inseridos em suas estratégias de subsistência.
Dessa forma, passa-se, progressivamente,
de uma problemática de conservação aplicada
aos recursos fitogenéticos à problemática
ligada à conservação e à valorização de um
patrimônio. A questão da eficácia das práticas
locais na manutenção de uma alta diversidade
biológica deve ser tratada à luz da dimensão
cultural associada aos recursos.
Como indicam Juhé-Beaulaton e Roussel
(2002), a respeito de um estudo sobre os
sítios sagrados da África ocidental, o
componente biodiversidade é apenas um O preparo da farinha, base
elemento de um complexo conjunto que da alimentação em grande
parte da Amazônia, requer
pode depender de várias categorias de várias etapas para
patrimônio. É também para isso que chama a detoxificação: a massa
prensada antes de ser
atenção Nazarea (1998) a respeito da cultura torrada. Tapereira, rio Negro,
da batata-doce nas Filipinas. Deve-se notar, Amazonas, 1990. Foto:
Emperaire, acervo pessoal.
de passagem, que a conservação dos recursos Copyright: @ IRD Emperaire.
fitogenéticos constitui-se num objeto de Torrefação da fécula de
estudo pluridisciplinar que, da alçada mandioca no forno para
obtenção da tapioca.
exclusiva de agrônomos e geneticistas, se Tapereira, rio Negro,
estende à de antropólogos e etnobiólogos. Amazonas, 1990. Foto:
Emperaire, acervo pessoal.
A experiência francesa em matéria de Copyright: @ IRD Emperaire.
patrimonização de produtos oriundos da
A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira biodiversidade é uma pista a ser manejo desses sistemas agrícolas e de seus
prospectada. Baseia-se no sistema de componentes, a exemplo do modelo dos
indicações geográficas, com formas mais ou Patrimônios – culturais e biológicos – da
A C I O N A L

menos estritas conforme as legislações. Não Humanidade da Unesco (Fao, 2004).


há dúvida de que comporta problemas Uma experiência interessante a ser
específicos. Bérard et al. (2004) mostram analisada detalhadamente é a do projeto do
N
R T Í S T I C O

bem os escolhos dessa patrimonização dos Gef sobre a conservação on farm da


conhecimentos quando integrada nas diversidade agrícola em comunidades
indicações geográficas, na medida em que camponesas, em particular sobre a batata nos
A

envolve a aplicação de normas legais sobre Andes (Gef, 2000). Com a organização de
E
I S T Ó R I C O

elementos, saberes e práticas que se eventos locais, um pouco à imagem das


encontram em contínua interação com seu feiras agrícolas, o projeto reativou as trocas
contexto sociocultural. Ora, o elemento entre agricultores e estimulou o interesse
H

essencial a conservar não é o saber em si, pelas variedades locais. Contudo, esse tipo
A T R I M Ô N I O

mas as condições para a sua produção e sua de ação, como no caso da conservação dos
atualização (Cunha, 2004). espaços naturais, deve responder a demandas
Apesar destas reservas, no atual contexto, locais, de forma a assegurar sua perenidade.
Laure Emperaire
P
D O

marcado por uma integração inelutável das É preciso também questionar como essas
E V I S T A

populações locais a uma economia de medidas podem ser integradas aos outros
mercado, um sistema de indicações instrumentos jurídicos internacionais
R

geográficas é de grande interesse, em (especialmente o CDB, já que o Brasil ainda


decorrência de sua dimensão territorial e não ratificou o Tratado sobre os Recursos
coletiva. A Etiópia, com o apoio do Fundo Fitogenéticos da Fao) e nacionais (Lei de
Francês para o Meio Ambiente Mundial Proteção de Cultivares e decreto sobre o
40 (FFEM), está implementando um sistema de acesso aos recursos genéticos e aos
Denominações de Origem Controlada. O conhecimentos associados) e como essas
Brasil, por meio de experiências ainda medidas podem garantir uma real proteção
pontuais, lançou-se também nesta via. legal dos recursos fitogenéticos compatível
Uma outra pista a analisar é a da com as normas locais. Por exemplo, a noção
articulação entre conservação dos recursos de variedade, tal como é reconhecida a nível
fitogenéticos e conservação das áreas local, deve ser confrontada com sua noção
protegidas. Da mesma forma que a legal. Para garantir a proteção de novos
biodiversidade espontânea é objeto de ações cultivares (de cultivated variety), esta última
de proteção, por que não reconhecer como se apóia em critérios de novidade, distinção,
áreas de conservação regiões de grande homogeneidade e estabilidade genética,
interesse por seus recursos agrícolas? A Fao, enquanto a noção local de variedade aceita a
com os sistemas de Globally Important variabilidade, funda-se numa base genética
Ingenious Agricultural Heritage Systems (GIAHS), extensa e é resultado de manejo coletivo e
abriu uma discussão a esse respeito ao não de um bem individualmente apropriado
propor um sistema de áreas-piloto para o e melhorado. Pelo menos foi o que ficou
demonstrado no caso da mandioca CHERNELA, J.M. Os cultivares de mandioca na área

A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira


(Emperaire, 2001).Vêem-se aqui os do Uaupês (Tukâno). In RIBEIRO, B.G. (org.). Suma
Etnológica Brasileira. vol.1, Etnobiologia. Petrópolis, Ed.
antagonismos entre sistemas de
Vozes/ Finep, 1986, p. 151-158.

A C I O N A L
conhecimentos locais e normas legais. EMPERAIRE, Laure. Elementos de discussão sobre a
Estes resultados afirmam a importância da conservação da agrobiodiversidade: o exemplo da
abordagem regional para uma reflexão sobre mandioca (Manihot esculenta Crantz) na Amazônia

N
brasileira. In CAPOBIANCO J. P. (org.). Biodiversidade

R T Í S T I C O
o futuro da biodiversidade agrícola. A da Amazônia. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p.
pesquisa desenvolvida sobre a mandioca 225-234.
evidencia que o que está em jogo na ___________. A agrobiodiversidade, o exemplo das

A
conservação e na valorização da diversidade mandiocas na Amazônia. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v.

E
32, n.187, 2002, p. 28-33.

I S T Ó R I C O
agrícola não se limita ao recurso fitogenético, EMPERAIRE, L., MÜHLEN, G., FLEURY, M.,
mas sim ao patrimônio cultural associado. ROBERT,T., McKEY, D., PUJOL, B., ELIAS, M.
Approche comparative de la diversité génétique et de la

H
diversité morphologique des maniocs en Amazonie
B i b l i o g r a f i a c i ta d a

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Laure Emperaire
P
D O
E V I S T A
R

Cultivo e domesticação:
dois gradientes

É importante diferenciar os termos domesticação de se reproduzir por meio de manivas; no caso dos
42 de cultivo, muitas vezes utilizados como sinônimos. cereais, a capacidade de produzir sementes de
O cultivo refere-se ao conjunto das práticas agrícolas grande porte que, na maturidade, não se soltam do
que fazem com que uma dada planta vá se pé materno.
desenvolver em condições determinadas pelo A diferenciação pode ser mais ou menos
agricultor. Insere-se portanto num espaço e num profunda. Insere-se num gradiente do silvestre ao
tempo relativamente limitados. domesticado, da mesma forma que o cultivo se insere
A domesticação, por sua vez, refere-se a um num gradiente do espontâneo ao cultivado, com
processo evolutivo que se dá numa escala de tempo pontos intermediários, como a proteção ou o manejo
longa e que acarreta uma diferenciação genética do de populações. O ponto extremo da domesticação é
ancestral silvestre em função de pressões seletivas dado por espécies que só podem existir em estado
tanto humanas quanto ambientais. O conjunto das cultivado, ou seja, num ambiente completamente
características que diferencia uma espécie modificado pela ação humana, como uma roça. Uma
domesticada de uma espécie silvestre constitui a vez estes espaços abandonados, num prazo de dois a
síndrome de domesticação. Por exemplo, no caso da três anos para a mandioca e de dez anos para a
mandioca os elementos dessa síndrome de pupunha, essas espécies terão desaparecido. A
domesticação são, entre outros, a capacidade de domesticação é acompanhada pela especialização
produzir tubérculos ricos em amido e a capacidade ecológica da planta a meios em geral abertos.
N o ta s

A biodiversidade agrícola na Amazônia brasileira


1 Os aspectos relativos à simbologia alimentar da
mandioca foram objeto de diversos trabalhos, como os

A C I O N A L
de Hugh-Jones (1979) ou de Uzendoski (2004), mas
não fazem parte do contexto desta discussão, mais
voltada para a diversidade biológica.

N
2 Para uma revisão das fontes bibliográficas a respeito

R T Í S T I C O
da mandioca na Amazônia: cf. Emperaire (2001).
3 Programa “Manejo dos recursos biológicos na
Amazônia: A diversidade varietal da mandioca”,

A
realizado no âmbito da cooperação IRD (Instituto de

E
Pesquisa para o Desenvolvimento) / ISA (Instituto

I S T Ó R I C O
Socioambiental) – CNPq (Centro Nacional de
Pesquisas Científicas e Tecnológicas) e financiado pelo
Escritório de Recursos Genéticos – BRG, pelo CNPq,

H
pelo IRD e pelo Programa Meio Ambiente,Vida e Sociedade

A T R I M Ô N I O
do CNRS com o apoio logístico do ISA. Participaram
das pesquisas de campo: Laure Emperaire, Florence
Pinton, Sylvain Desmoulière, Grégory Le Blanc, Lúcia

Laure Emperaire
P
van Velthem e Geraldo Andrello.

D O
4 Lei dos Cultivares, Art. 3, IV - “Cultivar: a
variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal

E V I S T A
superior que seja claramente distinguível de outros
cultivares conhecidos por margem mínima de

R
descritores, por sua denominação própria, que seja
homogênea e estável quanto aos descritores através
de gerações sucessivas e seja de espécie passível de
uso pelo complexo agroflorestal, descrita em
publicação especializada disponível e acessível ao
público, bem como a linhagem componente de 43
híbridos” (Brasil, 1997).
5 O teor dos tubérculos em glicosídeos cianogênicos é
a base da diferenciação das mandiocas doces e amargas.
Esse teor varia de 20 a 30 ppm de peso fresco de
tubérculo a mais de 500 ppm. As variedades de teor
superior a 80-100 ppm devem sofrer um complexo
processo de destoxicação. São, em geral, empregadas na
fabricação de farinhas, beijus e de cachiris. As
variedades de teor inferior a 80-100 ppm são
consideradas como não-tóxicas e, ainda que possam
sofrer os mesmos preparos que as variedades amargas,
elas são, em geral, consumidas simplesmente cozidas.
Após a CDB, os países
passaram a ter soberania
sobre seus recursos
genéticos, 2004. Foto:
Marcos Guião, acervo
Articulação Pacari.
Cr istina Mar ia do Amaral Azevedo
Teresa Cr istina Moreira

A C I O N A L
A p r ot e ç ã o d o s c o n h e c i m e n t o s
tradicionais associados:

N
R T Í S T I C O
1
D E S A F I O S A E N F R E N T A R

A
Introdução Convenção foi responsável pela mudança de

E
I S T Ó R I C O
paradigma com relação aos recursos
O avanço da biotecnologia e a sua genéticos, os quais deixaram de ser
aplicação em diversos setores produtivos patrimônio da humanidade e, portanto, de

H
deram outra dimensão à exploração livre acesso, para estarem sujeitos à

A T R I M Ô N I O
econômica de recursos genéticos e de soberania dos países.
conhecimentos tradicionais a estes associados. A CDB, entretanto, não inovou apenas ao
Os recursos genéticos, desde sempre alterar o status dos recursos genéticos, ela

P
D O
considerados patrimônio da humanidade também reconheceu o valor intrínseco da

E V I S T A
devido à sua importância, passaram a ser biodiversidade e a importância da
apropriados, com exclusividade, por diversidade cultural dos saberes tradicionais

R
empresas, por meio do seu patenteamento para a sua conservação e uso sustentável. A
ou de produtos e processos derivados do seu sua implantação tem ampliado o uso do
uso, sem que qualquer benefício fosse termo “conhecimento tradicional associado”
compartilhado com os países de origem da que designa “o conhecimento, inovações e
biodiversidade. O mesmo tem ocorrido com práticas das comunidades locais e populações 45
os conhecimentos tradicionais associados a indígenas com estilos de vida tradicionais
estes recursos genéticos, sem que tenha sido relevantes à conservação e à utilização
obtido, ao menos, o prévio consentimento sustentável da diversidade biológica”,
dos seus detentores. conforme o disposto em seu artigo 8j.
A geopolítica desta relação polarizou os A CDB, ao reconhecer o direito soberano
hemisférios – norte e sul: o primeiro, mais dos países sobre seus recursos naturais,
pobre em biodiversidade, concentra as estabelece que a autoridade para determinar
nações mais ricas em tecnologia; o segundo o acesso aos recursos genéticos pertence aos
concentra os países mais bio e sociodiversos, governos nacionais e está sujeita à legislação
porém com pouca tecnologia. nacional.3 De modo equivalente, preconiza o
A perda crescente de biodiversidade, respeito, a preservação e manutenção dos
aliada à polarização referida, levou à conhecimentos tradicionais associados, em
elaboração de um dos tratados internacionais conformidade com a legislação nacional,4 e
de maior adesão: a Convenção sobre incentiva sua aplicação com a aprovação e
Diversidade Biológica, CDB.2 Esta participação dos detentores desses
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a conhecimentos, bem como encoraja a incertezas quanto à possibilidade de se
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
repartição eqüitativa dos benefícios oriundos realizar pesquisas envolvendo recursos
da sua utilização. genéticos e conhecimentos tradicionais
A C I O N A L

A implementação da CDB em nível associados entre 2000 e 2002.


nacional tem levado os países a
estabelecerem legislação específica para I m p l e m e n ta ç ã o d a
N

Medida Provisória
R T Í S T I C O

regulamentar o acesso aos recursos genéticos


e conhecimentos tradicionais ou a alterarem 2.186-16/01
legislações ambientais já existentes.
A

No Brasil, a CDB passou a vigorar apenas a Durante os dois primeiros anos de


E
I S T Ó R I C O

partir de março de 1998, com a promulgação trabalhos do CGEN, 2002 e 2003,


do decreto no 2.519 pelo presidente da priorizou-se a regulamentação da MP no que
República, embora sua ratificação pelo diz respeito às pesquisas científicas
H

Congresso tenha-se dado em 1994. envolvendo recursos genéticos e ao


A T R I M Ô N I O

Em 1995 teve início, no Senado, por intercâmbio científico com instituições


iniciativa da então Senadora Marina Silva, o estrangeiras. Neste período ficou
processo de elaboração de uma legislação esclarecido, entre outros pontos, que acesso a
P
D O

específica para regulamentar o acesso aos componente do patrimônio genético não é


E V I S T A

recursos genéticos, aos conhecimentos equivalente à coleta; que as remessas de


tradicionais associados e à repartição de amostras para o exterior só deveriam seguir
R

benefícios provenientes de sua utilização.5 as regras estabelecidas pela MP quando


Em 2000, o Congresso Nacional ainda não houvesse a previsão de acesso ao patrimônio
havia aprovado a legislação sobre a matéria genético para uma das finalidades previstas
quando foi surpreendido pela medida pela MP: pesquisa científica, bioprospecção e
46 provisória 2.052 6 (em vigor atualmente sob desenvolvimento tecnológico.12 Outras
o no 2.186-16/01). Como todas as medidas medidas também foram tomadas no sentido
provisórias, esta foi sendo reeditada até a de otimizar a tramitação de solicitações de
superveniência da emenda constitucional nº autorizações de acesso a patrimônio genético
32/2001, culminando na versão em vigor. e a conhecimento tradicional associado.13
A medida provisória 2.186-16/01 (MP) Em 2003, no início da atual gestão do
determina que o acesso ao conhecimento Ministério do Meio Ambiente, a Ministra
tradicional associado7 e ao patrimônio Marina Silva solicitou que o CGEN fosse
genético existente no País 8, bem como a sua aberto à sociedade. Como possibilitar a
remessa para o exterior 9, somente sejam participação efetiva – com direito a voto –
efetivados mediante autorização da União10, de representantes da sociedade no Conselho
e institui como autoridade competente para necessitaria de uma alteração da MP, a
esse fim o Conselho de Gestão do Ministra solicitou ao CGEN que elaborasse,
Patrimônio Genético – CGEN.11 Entretanto, por meio de um processo participativo, um
este Conselho só iniciou suas atividades em anteprojeto de lei14 para ser encaminhado
abril de 2002, o que gerou uma situação de pelo Executivo Federal ao Congresso
Nacional, a fim de reativar o processo a conhecimentos tradicionais associados, bem

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
legislativo interrompido pela edição da MP. como a busca, por detentores destes
Enquanto a MP não é substituída por uma conhecimentos, de mecanismos de proteção,

A C I O N A L
lei, a participação da sociedade tem se dado levou o CGEN a priorizar a regulamentação
por meio de convidados permanentes do da MP nas áreas afetadas. Esta
Conselho, com direito a voz. Estes são regulamentação tem-se dado por meio de

N
R T Í S T I C O
representantes dos povos indígenas, das resoluções16 que detalham e esclarecem as
comunidades locais, do Ministério Público regras gerais estabelecidas pela MP.
Federal e dos setores acadêmico, empresarial

A
e ambientalista. A participação da sociedade

E
Resolução no 5 anuência prévia,

I S T Ó R I C O
no CGEN, a partir de 2003, embora ainda dos detentores, para acesso a
conhecimentos tradicionais
sem direito a voto, trouxe mais associados para fins de pesquisa
transparência às atividades do Conselho e científica, sem potencial ou

H
perspectiva comercial.
enriqueceu os debates.

A T R I M Ô N I O
R e g u l a m e n ta ç ã o d a p r ot e ç ã o e A resolução no 5 estabelece diretrizes para
do acesso a conhecimentos orientar o processo de obtenção de anuência

P
D O
tradicionais associados prévia,17 junto às comunidades locais ou

E V I S T A
indígenas, por instituições nacionais 18
O capítulo III da MP trata da proteção ao interessadas em acessar conhecimento

R
conhecimento tradicional associado. Neste tradicional associado ao patrimônio genético,
capítulo dispõe-se que o Estado reconhece o para fins de pesquisa científica, sem potencial
direito das comunidades locais a decidirem ou perspectiva de uso comercial.
sobre o uso de seus conhecimentos O processo de obtenção da anuência
tradicionais associados; e que o conhecimento prévia deve respeitar as formas de 47
tradicional associado integra o patrimônio organização social e de representação
cultural brasileiro; ele garante que a proteção política tradicional das comunidades
outorgada pela MP não pode ser interpretada envolvidas, esclarecer as comunidades, em
de modo a obstar a preservação, a utilização e linguagem a elas acessível, sobre a pesquisa e
o desenvolvimento do conhecimento sobre os direitos e responsabilidades de cada
tradicional; garante o direito às comunidades parte, e garantir o direito de as comunidades
indígenas e locais de terem indicada a origem recusarem o acesso ao conhecimento
do acesso em todas as publicações, divulgações durante o processo de anuência. O Termo de
e utilizações; e impede que terceiros não Anuência Prévia, devidamente firmado pela
autorizados utilizem e divulguem o comunidade,19 deverá ser apresentado ao
conhecimento e recebam benefícios pela sua CGEN acompanhado de um relatório que
exploração econômica.15 explicite o procedimento adotado para
A partir de 2003, o recebimento de obtenção da anuência, e conter as condições
consultas sobre a necessidade de estabelecidas entre as partes, conforme as
regularização de atividades envolvendo acesso diretrizes acima identificadas.
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a conhecimento que detêm, mas também nos
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados Resolução no 6 anuência prévia,
dos detentores, para acesso a casos em que são provedoras de amostras de
conhecimentos tradicionais
associados para fins de atividades componentes do patrimônio genético
A C I O N A L

com potencial ou perspectiva existentes em suas terras.


comercial, como bioprospecção ou
desenvolvimento tecnológico.
N

Resolução no 9 anuência prévia,


R T Í S T I C O

junto a comunidades locais e


A resolução no 6 difere da anterior por indígenas, para acesso a
componente do patrimônio genético
estabelecer diretrizes mais exigentes, em para fins de pesquisa científica,
A

sem potencial ou perspectiva


decorrência da finalidade de o acesso ter
E

comercial.
I S T Ó R I C O

potencial ou perspectiva comercial. Assim,


por exemplo, é estabelecido que, sempre
que for solicitado pela comunidade, a Esta resolução difere da resolução 5 porque
H

instituição interessada deverá prestar as regulamenta não o acesso ao conhecimento


A T R I M Ô N I O

informações em idioma nativo e deverá tradicional associado, mas o acesso ao


prover apoio científico, lingüístico, técnico patrimônio genético existente em Terras
e/ou jurídico independente, durante todo o Indígenas, áreas sob a posse ou propriedade
P

de comunidades locais e Unidades de


D O

processo de consulta. As modalidades e


formas de repartição de benefícios deverão Conservação da Natureza de domínio público
E V I S T A

ser estabelecidas em conjunto com a onde haja comunidades locais residentes cuja
R

comunidade. Este item é de importância permanência seja permitida por lei, como as
fundamental, pois seu resultado será a base Reservas de Desenvolvimento Sustentável ou
para o Contrato de Utilização do Patrimônio Reservas Extrativistas.
Genético e Repartição de Benefícios, exigido Entretanto, as diretrizes estabelecidas são
48 nos casos em que há potencial ou basicamente as mesmas, com exceção de
perspectiva comercial. detalhes procedimentais para os casos que
Nestes casos, em vez de relatório sobre o envolvem Unidades de Conservação das
processo de obtenção da anuência prévia, categorias anteriormente mencionadas, pois
elaborado pela instituição interessada, é quem anui é o órgão ambiental competente,
necessário que seja apresentado ao CGEN ouvidas as comunidades residentes.
laudo antropológico independente.20
Resolução no 12 anuência prévia
para acesso a componente do
R e g u l a m e n ta ç ã o d o a c e s s o a
patrimônio genético para finalidades
c o m p o n e n t e s d o p at r i m ô n i o com potencial ou perspectiva
comercial, como bioprospecção ou
genético providos por comunidades
desenvolvimento tecnológico.
i n d í g e n a s e c o m u n i d a d e s lo c a i s

A anuência prévia das comunidades Esta resolução estabelece diretrizes muito


indígenas e locais não é exigida apenas semelhantes às da resolução nº 6. Deve-se
quando estas permitem o acesso ao ressaltar, entretanto, que, pelo fato de o
patrimônio genético estar atrelado à área significado um aprimoramento da

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
onde ocorre, o anuente será aquele que legislação em vigor, estabelecendo
detém, no caso das comunidades locais, a diretrizes e, portanto, norteando o

A C I O N A L
posse ou propriedade da área e, no caso de cumprimento destes pré-requisitos, a
povos indígenas, o usufruto exclusivo dos prática tem demonstrado haver uma
recursos biológicos.21 questão anterior, qual seja, a do próprio

N
R T Í S T I C O
conceito de acesso ao conhecimento
Diretrizes para a elaboração e tradicional associado.
a n á l i s e d o s C o n t r at o s d e O art. 7, inciso II, da MP define o

A
U t i l i z a ç ã o d o Pat r i m ô n i o G e n é t i c o termo conhecimento tradicional associado

E
I S T Ó R I C O
e Repartição de Benefícios como sendo informação ou prática
individual ou coletiva de comunidade indígena
Como mencionado anteriormente, nos ou de comunidade local, com valor real ou

H
casos em que a finalidade do acesso, tanto a potencial, associada ao patrimônio genético.

A T R I M Ô N I O
conhecimento tradicional associado, como a Por sua vez, o inciso V do mesmo artigo
componente do patrimônio genético, tiver define o termo acesso ao conhecimento
potencial ou perspectiva de aplicação tradicional associado como sendo toda

P
D O
comercial, é necessário apresentar ao obtenção de informação sobre conhecimento ou

E V I S T A
CGEN, como pré-requisito para obtenção da prática individual ou coletiva, associada ao
autorização de acesso, o Contrato de patrimônio genético, de comunidade indígena

R
Utilização do Patrimônio Genético e ou de comunidade local, para fins de pesquisa
Repartição de Benefícios.22 científica, desenvolvimento tecnológico ou
Embora a MP estabeleça as cláusulas bioprospecção, visando à sua aplicação
essenciais que devem constar no Contrato,23 industrial ou de outra natureza.
o CGEN estabeleceu, por meio da resolução Desde o início da implementação da MP, 49
11, diretrizes para a sua elaboração. Estas várias consultas e solicitações de
detalham as cláusulas essenciais já previstas, autorização recebidas pelo CGEN
como aquelas referentes aos prazos, à demonstraram não estar suficientemente
repartição de benefícios e ao clara qual a extensão do termo acesso ao
acompanhamento pelos provedores da conhecimento tradicional associado, ou seja,
realização da atividade de bioprospecção ou quais conhecimentos sobre a biodiversidade
desenvolvimento tecnológico. – associados ao patrimônio genético – estão
incluídos na legislação. Do mesmo modo,
Necessidade de não há clareza sobre quais as formas de
esclarecer acesso a obtenção abrangidas pela legislação
conhecimento diretamente junto às comunidades, ou
tradicional associado indiretamente, em fontes secundárias.
Os exemplos abaixo demonstram alguns
Não obstante as resoluções sobre dos questionamentos surgidos a partir da
anuência prévia e contratos tenham implementação dessas definições:
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a Inventários da biodiversidade e do CDB, já que não há dúvidas quanto à
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
p at r i m ô n i o i m at e r i a l ; m a p e a m e n t o s relevância destas informações para a
s o c i o a m b i e n ta i s , l e va n ta m e n t o s conservação da diversidade biológica.
A C I O N A L

socioculturais Deve-se destacar que mesmo os projetos


considerados a priori sem finalidade
Atualmente, existem diversas iniciativas econômica, como inventários da
N
R T Í S T I C O

para realização de inventários da biodiversidade e socioculturais e estudos


biodiversidade no Brasil, algumas delas etnobotânicos e etnoecológicos, não estão
financiadas pelo próprio Governo federal,24 isentos da possibilidade de desnudarem
A

que muitas vezes envolvem metodologias dados com alto potencial de uso
E
I S T Ó R I C O

para a obtenção de informações junto às econômico, especialmente no que diz


comunidades indígenas e locais moradoras respeito a informações relacionadas com os
das áreas a serem inventariadas, em especial, usos da biodiversidade, incluindo a
H

na região amazônica. A questão que se coloca agrobiodiversidade. Isto não significa que
A T R I M Ô N I O

é se estas iniciativas deveriam estar inseridas projetos com e sem perspectiva de uso
ou não em um sistema de controle do acesso econômico devam ser equiparados do ponto
aos conhecimentos tradicionais associados. de vista de sua regulamentação, mas que em
P
D O

Entre as informações usualmente ambos os casos os detentores de


E V I S T A

procuradas pelos pesquisadores junto a estas conhecimento tradicional associado têm o


comunidades estão dados sobre a direito de receber prévia e plena
R

localização, distribuição geográfica, informação sobre os possíveis


classificações, nomenclaturas locais, usos e desdobramentos da pesquisa.
formas de manejo de recursos da fauna e da Também cabe lembrar que a MP, ao
flora. Estes dados têm sido utilizados para a definir acesso ao conhecimento tradicional
50 compreensão não só da biodiversidade, mas associado, não o restringe à obtenção de
também da interação entre esta e as informações com potencial de uso
comunidades, sendo considerados de grande econômico, ou com objetivo de uso
relevância para a elaboração de estratégias comercial, pois uma das finalidades reguladas
mais eficazes de conservação. é a pesquisa científica, que tem sido encarada
Muitos pesquisadores argumentam que o como sem potencial ou perspectiva
tipo de informação acessada não deveria ser comercial. Neste sentido, ao mencionar o
objeto de regulamentação, uma vez que, em “valor real ou potencial” dos conhecimentos
inventários da biodiversidade, tem apenas tradicionais associados, a MP nos remete à
caráter secundário, sem perspectiva de potencialidade destes conhecimentos para
aplicação econômica. Entretanto, se gerar informações diretas sobre as
considerarmos estritamente a definição de características dos seres vivos e, indiretas,
acesso ao conhecimento tradicional associado sobre o patrimônio genético.
adotada pela MP, nada justificaria a exclusão A interpretação que vem prevalecendo na
pleiteada, especialmente sob uma leitura aplicação destes conceitos trazidos pela MP
integrada com o que dispõe o art. 8j da tem adotado como critério o fato de as
Processos participativos são comumente utilizados em
inventários da biodiversidade e podem revelar
importantes conhecimentos tradicionais associados,
2004. Foto: Marcos Guião, acervo Articulação Pacari.
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
A C I O N A L
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A
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I S T Ó R I C O
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A T R I M Ô N I O
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D O

informações ou práticas de comunidades onde serão obtidas informações sobre a


E V I S T A

indígenas ou locais possibilitarem ou identificação, o uso e o manejo das espécies


facilitarem o acesso ao patrimônio genético. conservadas pelas comunidades locais
R

Para compreender estas questões, vale a visando à reconstituição das condições de


pena mencionar três exemplos:25 plantio em experimentos para caracterização
1. Projeto Diversidade Ecológica no rio das amostras (verificação da diversidade
Juruá: intersecção do conhecimento indígena genética entre as populações amostradas).
52 com sensoriamento remoto, no qual as paisagens Os casos 1 e 2, com base na interpretação
identificadas pelos indígenas serão analisadas apresentada anteriormente, não envolvem
quanto à sua refletância em imagens de satélite. acesso a conhecimentos tradicionais
2. Projeto: Influência da Caça dos Índios e associados, uma vez que as informações
A CDB reconheceu a de Fatores Ambientais Sobre a Comunidade obtidas pelos pesquisadores, embora
importância da
sociodiversidade para
de Mamíferos de Médio e Grande Porte do importantes para a compreensão dos
a conservação da rio Tapajós onde serão coletadas informações conhecimentos desenvolvidos pelos
biodiversidade, 2004.
Foto: Marcos Guião,
junto às comunidades indígenas sobre as indígenas a respeito da biodiversidade, não
acervo Articulação Pacari. técnicas de caça, de localização de animais e incluem informações que possibilitem ou
número de espécimes abatidos. Não está facilitem o acesso a componentes do
prevista a obtenção de informações sobre patrimônio genético.
componentes utilizados na caça (venenos, O mesmo não ocorre com o exemplo 3,
espécies utilizadas e modos de extração). no qual as informações obtidas pelos
3. Projeto: Mapeamento, Coleta, pesquisadores permitirão identificar
Conservação e Análise Genética de Etno- características genéticas das diferentes
variedades de Feijão no Estado da Bahia, variedades de feijão coletadas (como a
adaptabilidade a determinadas condições investigar as propriedades medicinais de

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
ambientais). espécies do cerrado a partir dos usos por
Deve-se ressaltar que a dificuldade para determinados povos indígenas, já descritos

A C I O N A L
consolidar uma interpretação está tais usos em publicações? Ou a um projeto
diretamente relacionada à sua aplicabilidade. de desenvolvimento de um repelente
Neste sentido, é importante lembrar que as comercial a partir do óleo de andiroba; ou

N
R T Í S T I C O
definições adotadas pela MP são mais ainda à compilação de conhecimentos
restritivas do que permite a abordagem do tradicionais associados já publicados para a
tema trazida pela CDB, pois se limitam aos elaboração de uma enciclopédia? Todos

A
conhecimentos tradicionais relacionados com deveriam seguir o disposto na MP por

E
I S T Ó R I C O
o patrimônio genético, enquanto a CDB se envolver o acesso a conhecimentos
refere mais genericamente a todo tradicionais associados? Deveriam ser objeto
conhecimento, inovação ou prática de de autorização pelo CGEN, apresentando

H
populações indígenas ou comunidades locais anuência prévia e Contrato de Repartição de

A T R I M Ô N I O
com estilos de vida tradicionais relevantes Benefícios? Em caso positivo, quem daria a
para a conservação e a utilização sustentável anuência e negociaria o contrato?
da biodiversidade.26 Desse modo, segundo o Alguns estudos têm apontado para o

P
D O
art. 8j da CDB, os exemplos 1 e 2 claro interesse no uso de conhecimentos

E V I S T A
mencionados anteriormente também tradicionais associados já disponibilizados
estariam sujeitos a autorização. em fontes secundárias em projetos de

R
bioprospecção, não só porque pode levar à
Conhecimentos amplamente descoberta ou ao desenvolvimento de
disseminados e fontes secundárias novos produtos ou processos, mas também
pelo custo relativamente baixo de obtenção
Outra questão relevante quanto ao escopo destas informações, quando já se 53
da MP diz respeito à regulamentação do encontram à disposição fora das
acesso àqueles conhecimentos que, embora comunidades que as produziram.
produzidos em contextos tradicionais, já se Um estudo realizado pela TKDL27 a partir
encontram disponibilizados fora destes, como de uma amostragem randômica revela
é o caso dos conhecimentos tradicionais à que foram concedidas, pelo USPTO,28
disposição em fontes secundárias, a partir de 762 patentes diretamente relacionadas com
pesquisas científicas, inventários e plantas medicinais; destas, 374 (49%) foram
mapeamentos, ou mesmo dos conhecimentos baseadas em algum conhecimento
amplamente disseminados junto à população tradicional. Outro estudo realizado pelo
regional ou nacional, dificultando identificar mesmo grupo, em abril de 2003, junto às
ao certo a(s) comunidade(s) na(s) qual(ais) bases de dados dos escritórios de patentes
foram originados. dos Estados Unidos, Reino Unido e União
Neste sentido, qual seria o tratamento Européia, relativo às plantas medicinais,
adequado a ser dado, por exemplo, a um revelou mais de 15.000 patentes na área
projeto de bioprospecção que vise a contra 4.896 em 2000 (Gupta, 2004: 7).
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a Segundo Cox (Ten Kate & Laird, 1999), Para se alcançarem mecanismos eficazes
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
são três as principais maneiras pelas quais de proteção dos conhecimentos tradicionais
uma informação etnofarmacológica pode associados é imprescindível, portanto, que
A C I O N A L

ser utilizada no desenvolvimento de drogas, se leve em consideração a relação existente


por exemplo: entre a divulgação de conhecimentos
1. como indicador geral de bioatividade tradicionais e o uso destas informações por
N
R T Í S T I C O

não específica, apropriado para um amplo terceiros. Não é sem razão que
rol de testes; pesquisadores, e mesmo as próprias
2. como indicador de bioatividade comunidades, têm demonstrado
A

específica, apropriado para determinados preocupação com as possíveis


E
I S T Ó R I C O

testes; conseqüências da publicação de dados ou


3. como indicador de atividade informações relacionadas com os
farmacológica para a qual testes ainda têm conhecimentos tradicionais associados.
H

de ser desenvolvidos. Um exemplo desta preocupação é a


A T R I M Ô N I O

Considerando a classificação apresentada consulta realizada à Secretaria Executiva


acima, nem sempre é fácil estabelecer a do CGEN em 2004, pela Articulação
correlação entre a bioprospecção Pacari, instituição não-governamental
P
D O

empreendida sobre determinada espécie ou responsável pela organização da 1ª


E V I S T A

grupo de espécies e o conhecimento Farmacopéia Popular do Cerrado, a qual


tradicional associado, o que é agravado nos apontou para a seguinte questão: como
R

casos em que o acesso é realizado sistematizar e divulgar os conhecimentos


indiretamente, por meio de consultas a tradicionais detidos por comunidades
fontes secundárias. locais, a fim de valorizá-los e preservá-los,
Esta dificuldade não pode, entretanto, possibilitando que um número ainda maior
54 significar um desafio intransponível para de pessoas se beneficiem destes saberes e,
garantir o direito dos detentores de ao mesmo tempo, garantir que estes
conhecimentos tradicionais associados, pois conhecimentos não sejam apropriados
mais da metade das empresas entrevistadas indevidamente por terceiros?
por Ten Kate & Laird (op.cit.) utilizam-se de Uma das questões a ser enfrentada quanto
conhecimento tradicional em suas atividades à regulamentação do acesso a conhecimentos
de pesquisa e desenvolvimento, sendo que tradicionais associados existentes em fontes
80% destas empresas acessaram estes secundárias diz respeito ao estabelecimento
conhecimentos indiretamente. Os resultados de mecanismos eficazes de controle do
obtidos por estas autoras sugerem que as acesso a estas informações. Se, por um lado,
publicações acadêmicas e a sua inclusão em formas de controle da acessibilidade em
bases de dados – mais do que coletas em bases de dados podem ser possível, o mesmo
campo por empresas – são as rotas mais não se pode afirmar a respeito de
comuns pelas quais o conhecimento informações contidas em publicações. A
tradicional deixa a comunidade e vai para o mesma complexidade surge em relação aos
laboratório comercial. conhecimentos amplamente disseminados
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
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A T R I M Ô N I O
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D O
por meio oral junto à população, como o uso existentes fora dos contextos tradicionais

E V I S T A
da espinheira-santa, planta que atualmente onde foram produzidos e àqueles já
pode ser adquirida no comércio. amplamente disseminados.30

R
Outro desafio é tornar exeqüível, nestes Representantes dos setores
casos, o atendimento aos requisitos, como a governamentais e da sociedade civil ligados às
anuência prévia e a repartição de benefícios, áreas de pesquisa e desenvolvimento temem
uma vez que pode ser impraticável a que o controle do uso destas informações
identificação da comunidade provedora da possa inviabilizar as atividades de pesquisa 55
informação, apesar dos esforços de quem que envolvem conhecimentos tradicionais no
deseja cumprir com a legislação. Brasil. Representantes de comunidades
indígenas e locais têm deixado clara sua
Esforços para o esclarecimento indignação quanto ao uso de conhecimentos Informações como a parte
a ser utilizada e a forma
do termo tradicionais associados à revelia das de preparo são de grande
comunidades detentoras desses saberes. interesse para a indústria
farmacêutica, 2004. Foto:
O esclarecimento do termo acesso ao A experiência tem demonstrado não Marcos Guião, acervo
conhecimento tradicional associado vem sendo haver um caminho fácil para a solução destas Articulação Pacari.

discutido pela Câmara Temática29 de questões, pois mesmo entre os


Conhecimentos Tradicionais Associados do representantes de comunidades indígenas e
CGEN desde sua 18ª Reunião, e deverá ser locais não há consenso quanto a mecanismos
objeto de orientação técnica. A principal a serem adotados para tais casos.
controvérsia relativa à proposta em discussão A consulta realizada pela Secretaria
envolve, exatamente, a questão do acesso aos Executiva do CGEN junto a alguns
conhecimentos tradicionais associados representantes de povos indígenas e
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a comunidades locais, em novembro de 2004, Existem hoje, basicamente, três abordagens
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
demonstrou que houve consenso entre os envolvendo a proteção dos conhecimentos
presentes quanto à necessidade de aplicação tradicionais, algumas das quais não se
A C I O N A L

da legislação ao acesso a conhecimentos restringem aos conhecimentos tradicionais


tradicionais associados existentes em fontes associados. Estas prevêem a proteção:
secundárias. Mas no que diz respeito aos a) por mecanismos de propriedade
N
R T Í S T I C O

usos que envolvem potencial econômico – intelectual já existentes;


como bioprospecção e desenvolvimento b) por mecanismos sui generis de
tecnológico – houve grande rejeição à propriedade intelectual;
A

proposta de eventual dispensa de anuência c) por mecanismos sui generis (stricto sensu).
E
I S T Ó R I C O

prévia ou de adoção de um Fundo de Um dos pontos de partida para a


Repartição de Benefícios,31 destinado às discussão, em qualquer das abordagens
comunidades indígenas e locais, para os casos mencionadas, diz respeito ao escopo (se
H

nos quais não fosse possível identificar a(s) abrangerá também conhecimentos
A T R I M Ô N I O

comunidade(s) provedora(s) dos tradicionais não associados a recursos


conhecimentos divulgados ou disseminados. genéticos) e a extensão (nacional ou
As alternativas propostas pelos internacional) do(s) sistema(s) a ser(em)
P
D O

participantes variaram consideravelmente adotado(s).


E V I S T A

conforme o setor representado (povos Alguns dos participantes da consulta


indígenas, quilombolas e outras comunidades pública mencionada anteriormente foram
R

locais), demonstrando que, dentro desta contundentes em afirmar que seus


diversidade cultural em que se encontra conhecimentos tradicionais não devem ser
inserido o debate, também há uma tratados de forma fragmentada, pois são
diversidade de valores e propósitos que holísticos, e merecem um tratamento que
56 devem ser considerados na adoção de respeite esta característica intrínseca. A
medidas para a proteção dos conhecimentos mesma questão é apontada por Dutfield
tradicionais, associados ou não, conforme (2004), para o qual a idéia de fragmentação
veremos a seguir. do conhecimento tradicional em unidades
sujeitas a distintas formas de proteção
O s d e b at e s e m t o r n o intelectual alienáveis pode ser totalmente
da proteção dos estranha para alguns grupos.
conhecimentos Em muitos países, a agressividade da
tradicionais associados demanda pelo uso dos conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade tem
A proteção dos conhecimentos impulsionado a elaboração de sistemas de
tradicionais associados não é, atualmente, proteção mais direcionados para este tipo de
um tema restrito a apenas um ou outro conhecimento. Contudo, estas iniciativas
fórum internacional, mas a muitos fóruns, podem constituir o estopim para uma
nacionais e internacionais, o que destaca a discussão mais ampla a respeito da proteção
importância e complexidade da questão.32 dos conhecimentos tradicionais.
Quanto à extensão territorial da proteção das bases de dados e dos registros na

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
dada aos conhecimentos tradicionais, é proteção dos conhecimentos tradicionais; f)
preciso avaliar com cautela propostas que explorar as formas existentes e novas formas

A C I O N A L
defendem, como um pré-requisito para a de proteção por propriedade intelectual.
elaboração de um possível sistema de Entretanto, tendo em vista não haver
proteção internacional, a necessidade de perspectivas de que qualquer proposta ou

N R T Í S T I C O
desenvolvimento dos sistemas nacionais. medida de proteção positiva seja
Como se sabe, as legislações nacionais, por efetivamente adotada a curto prazo, também
mais bem elaboradas e adequadas que sejam, tem sido apoiada a proposta do uso de

A
não são aplicáveis em território estrangeiro, instrumentos legais existentes de modo a

E
I S T Ó R I C O
o que reforça a premência de um regime garantir uma proteção defensiva dos
internacional. conhecimentos tradicionais e a coibir a sua
Esta alegada necessidade pode, muitas apropriação indevida.

H
vezes, ser utilizada como estratégia

A T R I M Ô N I O
protelatória de uma discussão mais
aprofundada sobre questões importantes
relacionadas com o tema, como a

P D O
aplicabilidade dos direitos de propriedade

E V I S T A
intelectual e o escopo da proteção.
O Brasil vem defendendo, tanto em nível

R
nacional como internacional, o
desenvolvimento de um sistema sui generis
(stricto sensu) de proteção dos conhecimentos
tradicionais associados, em especial no
âmbito da implementação da CDB. 57
A discussão sobre o desenvolvimento de
um sistema sui generis ocorreu na última
Conferência das Partes desta Convenção –
COP 7, realizada em Kuala Lumpur, em Feira de remédios de
plantas medicinais
fevereiro de 2005, e está refletida na durante o 4º Encontro de
demanda ao Grupo de Trabalho da CDB benzedeiras, parteiras e
raizeiras. Os
sobre o art. 8J: a) considerar formas de conhecimentos divulgados
proteção sui generis, não baseadas em Neste sentido é que vem sendo apontada, em feiras-livres também
são um desafio na
propriedade intelectual; b) desenvolver, desde 2002, a necessidade urgente de implementação da
como assunto prioritário, o que seriam os implementação do art. 31 da MP. Este legislação. Cerrado, Goiás,
agosto de 2004. Foto:
elementos de sistemas sui generis; c) rever a dispõe que “a concessão de direito de Marcos Guião, acervo
relevância e a aplicabilidade das Diretrizes propriedade industrial pelos órgãos Articulação Pacari.

de Bonn; d) fazer recomendações visando ao competentes, sobre processo ou produto


Regime Internacional de Acesso e obtido a partir de amostra de componente
Repartição de Benefícios; e) avaliar o papel do patrimônio genético, fica condicionada à
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
A C I O N A L
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A T R I M Ô N I O
P
D O

observância desta Medida Provisória, nacional como internacional, sob pena de se


E V I S T A

devendo o requerente informar a origem do repetirem as já conhecidas generalidades


material genético e do conhecimento ineficazes ou localismos globalizados.
R

tradicional associado, quando for o caso”. Atualmente, o Ministério do Meio


Outra ação considerada essencial é o envio, Ambiente e o Iphan estão avaliando a
para o Congresso Nacional, do anteprojeto de possibilidade de desenvolverem sistemas
Lei de Acesso, mencionado no início deste integrados de proteção, os quais podem
58 artigo. O anteprojeto contém um importante envolver mecanismos especializados e
capítulo sobre a proteção dos conhecimentos adequados às características dos
tradicionais associados, bem mais abrangente conhecimentos tradicionais, como a
e detalhado do que o existente na MP. integração da proteção prevista pela MP
Flor de Pacari, Entretanto, é necessário ampliar a sua ao sistema instituído pelo decreto
2004. Foto:
Marcos Guião,
discussão com representantes dos povos no 3.551/2000, que trata do registro de bens
acervo Articulação indígenas e comunidades locais, pois a culturais de natureza imaterial pelo Iphan.
Pacari.
elaboração deste texto contou com a presença
de poucos representantes do setor. Conclusões
Conforme observa Dutfield (op.cit.), a
participação direta dos detentores de A regulamentação do acesso ao
conhecimentos tradicionais associados (ou conhecimento tradicional associado, no
não) é essencial para a continuidade profícua âmbito da implementação da MP, tem
na elaboração de mecanismos e estratégias demonstrado ser necessário esclarecer este
de proteção destes conhecimentos, e deve conceito de forma a tornar clara a
ser adotada e amplificada tanto em nível abrangência e as limitações da legislação em
vigor. Um dos desafios a serem enfrentados Com relação aos princípios estabelecidos

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
é a garantia dos direitos atualmente pela legislação em vigor, não tem havido
reconhecidos dos povos indígenas e discordância quanto aos fundamentos éticos

A C I O N A L
comunidades locais, nos casos que do consentimento prévio informado ou da
envolvem a utilização de conhecimentos repartição de benefícios para o uso de
tradicionais associados já publicados ou conhecimentos tradicionais associados. A

N
R T Í S T I C O
amplamente disseminados. implementação destes, porém, ainda é
Dentre as obrigações assumidas pelos defendida com retórica pela maioria dos
países no contexto do art. 8(j) da CDB – (1) atores, especialmente os usuários.

A
respeitar, preservar e manter o A prática tem demonstrado que a

E
I S T Ó R I C O
conhecimento, inovações e práticas das elaboração de soluções exeqüíveis demanda
comunidades locais e populações indígenas; esforços reais de todos os envolvidos, e
(2) incentivar a sua aplicação com a especial transigência, não sendo possível

H
aprovação e participação dos detentores acreditar que apenas um setor conseguirá

A T R I M Ô N I O
desses conhecimentos; (3) encorajar a resolver isoladamente esta intrincada equação.
repartição eqüitativa dos benefícios oriundos
de sua utilização – apenas as duas últimas são N o ta s

P
D O
objeto de alguma regulamentação pela MP,
1 As opiniões emitidas neste artigo representam

E V I S T A
sendo consideradas insuficientes as
pontos de vista pessoal e são de exclusiva
oportunidades atuais de participação efetiva responsabilidade dos autores.

R
dos povos indígenas e comunidades locais 2 A Convenção sobre Diversidade Biológica é um
tratado internacional assinado em 1992, durante a
nos processos de decisão que envolvam
Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e
conhecimentos tradicionais associados. Desenvolvimento – CNUMAD, no Rio de Janeiro, e
Nesse contexto, é premente a adoção de entrou em vigor em 29 de dezembro de 1993,
contando hoje com 188 partes (www.biodiv.org –
políticas integradas que contemplem todas as acesso realizado em 27/01/2005). Esta Convenção
59
obrigações instituídas pela CDB, devendo-se objetiva a conservação da biodiversidade, o
destacar a relevância de medidas voltadas desenvolvimento sustentável e a repartição de
benefícios provenientes do uso dos recursos genéticos.
para a garantia do direito à terra e aos 3 CDB, Art.15.1.
recursos naturais necessários à produção e 4 CDB, Art. 8j.
reprodução dos conhecimentos tradicionais. 5 Para conhecer toda a história: Azevedo e Azevedo,
2000; Azevedo, Lavratti e Moreira, Revista de Direito
Outro aspecto fundamental diz respeito Ambiental. Editora Revista dos Tribunais, v. 37,
à participação dos atores envolvidos, jan./mar. 2005, p. 113-143.
6 Esta MP foi editada em decorrência da repercussão
especialmente das comunidades guardiãs
negativa das negociações ocorridas entre a multinacional
dos conhecimentos tradicionais. Para isso, farmacêutica Novartis Pharma AG e a Organização
é preciso investir em capacitação, uma vez Social Bioamazônia para bioprospectar recursos
genéticos existentes na Amazônia. Devido aos
que a maior parte dos povos indígenas e numerosos questionamentos que recebeu, muitos dos
das comunidades locais não dispõe de quais relacionados à inexistência de legislação nacional
recursos suficientes para o que protegesse adequadamente os recursos genéticos
em território nacional, esse Contrato não foi executado.
acompanhamento destas questões nos 7 Conhecimento tradicional associado: informação ou
múltiplos fóruns relacionados ao tema. prática individual ou coletiva de comunidade indígena
C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a ou de comunidade local, com valor real ou potencial, autorizado pelo CGEN, assim como o acesso ao
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados associada ao patrimônio genético (MP 2.186-16/01, patrimônio genético, para finalidades com potencial de
art. 7º, II). uso econômico, como bioprospecção e
8 Patrimônio genético: informação de origem desenvolvimento tecnológico.
A C I O N A L

genética, contida em amostras do todo ou de parte de 14 O anteprojeto de lei elaborado pelo CGEN
espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na encontra-se, desde o fim de 2003, em avaliação na
forma de moléculas e substâncias provenientes do Casa Civil, para posterior encaminhamento ao
metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos Congresso Nacional.
N

destes organismos vivos ou mortos, encontrados em 15 Conforme arts. 8º e 9º da MP.


R T Í S T I C O

condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos 16 Todas as Resoluções podem ser obtidas no site:
em coleções ex situ, desde que coletados em condições www.mma.gov.br/port/cgen.
in situ no território nacional, na plataforma 17 Embora internacionalmente seja utilizado o termo
A

continental ou na zona econômica exclusiva (MP “consentimento prévio informado”, a MP adota o


E

2.186-16/01, art. 7º, I). termo “anuência prévia”, que tem sido compreendido
I S T Ó R I C O

9 Art.19 da MP2.186-16/01. como equivalente, em seus princípios, ao primeiro. O


10 Art. 2º da MP 2.186-16/01. anteprojeto de lei elaborado pelo CGEN resgata o
11 Art. 10 da MP 2.186-16/01: “Fica criado, no termo “consentimento prévio informado”.
H

âmbito do Ministério do Meio Ambiente, o Conselho 18 A Medida Provisória 2.186-16/01 só permite o


A T R I M Ô N I O

de Gestão do Patrimônio Genético, de caráter acesso ao patrimônio genético ou a conhecimento


deliberativo e normativo, composto por representantes tradicional associado por instituição, portanto, pessoa
de órgãos e entidades da Administração Pública Federal jurídica, nacional; instituições estrangeiras só podem
que detêm competência sobre as diversas ações de que acessar quando em parceria com instituições nacionais
P

trata esta Medida Provisória”. O decreto 3.945, de 28 e sob a coordenação destas.


D O

de setembro de 2001, em seu art. 2º, estabelece a 19 Caso os signatários não possam firmar o Termo de
composição do Conselho: Ministério do Meio Anuência Prévia, tomar-se-ão as suas impressões
E V I S T A

Ambiente, Ministério da Ciência e Tecnologia, datiloscópicas (Resolução 05, Art. 4º, § 1º ). A


Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, Ministério obrigação de firmar o termo ou mesmo tomar as
R

da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da impressões datiloscópicas parecem estar gerando


Defesa, Ministério da Cultura, Ministério das Relações desconfiança entre algumas comunidades, pois temem
Exteriores, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e estarem comprometendo-se com outras obrigações
Comércio Exterior, Instituto Brasileiro do Meio (inclusive com relação ao direito à terra). Está em
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – avaliação a possibilidade de se aceitar o Termo de
Ibama; Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio Anuência e o relatório na forma de vídeo.
60 de Janeiro; Conselho Nacional de Desenvolvimento 20 O laudo deve conter no mínimo as seguintes
Científico e Tecnológico – CNPq; Instituto Nacional de informações: indicação das formas de organização
Pesquisa da Amazônia – Inpa; Empresa Brasileira de social e representação política; avaliação do grau de
Pesquisa Agropecuária – Embrapa; Fundação Oswaldo esclarecimento da comunidade sobre o conteúdo da
Cruz – Fiocruz; Instituto Evandro Chagas; Fundação proposta e suas conseqüências; avaliação dos
Nacional do Índio – Funai; Instituto Nacional de impactos socioculturais decorrentes do projeto;
Propriedade Intelectual – Inpi; Fundação Cultural descrição do procedimento adotado para obtenção da
Palmares. (para maiores informações: anuência; e avaliação sobre o grau de respeito do
http://www.mma.gov.br/port/cgen) processo de obtenção de anuência às diretrizes
12 Para maiores detalhes, acesse a Revista Eletrônica estabelecidas nesta resolução.
Biota Neotropica, v.5, n.1: www.biotaneotropica.com – 21 Constituição Federal, art. 231, § 1º e 2º .
Azevedo, Cristina (2005). 22 Medida Provisória 2.186-16/01, art 7º,VII; art. 16,
13 Todo o acesso a patrimônio genético para pesquisa § 4º e 5º; capítulo VII.
científica passou a ser autorizado pelo Ibama (sede); 23 Medida Provisória 2.186-16/01, art.28.
quando o acesso a patrimônio genético para pesquisa 24 Como é o caso do edital do Projeto de
científica prever a presença de estrangeiro no país, a Conservação e Utilização Sustentável da Diversidade
solicitação deve ser encaminhada ao CNPq, que a Biológica Brasileira – Probio (SBF/MMA) - Edital
encaminhará ao Ibama, após avaliar a participação do Probio 02/2001 - Apoio à realização de inventários nas
estrangeiro na pesquisa.Todo o acesso a conhecimento áreas prioritárias para a investigação científica.
tradicional associado (para pesquisa científica, 25 Estes exemplos trazem nomes fictícios de projetos,
bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico) é mas foram baseados em casos reais.
26 Conforme Art. 8j da CDB.

C r i s t i n a M a r i a d o A m a r a l A z e v e d o e Te r e s a C r i s t i n a M o r e i r a
A proteção dos conhecimentos tradicionais associados
27 Traditional Knowledge Digital Library.
28 USPTO – United States Patent Office.
29 O CGEN possui atualmente quatro Câmaras

A C I O N A L
Temáticas, que o subsidiam nos assuntos relacionados à
regulamentação e aplicação da MP.
30 Vide atas da Câmara Temática sobre Conhecimentos
Tradicionais Associados disponíveis no website:

N
www.mma.gov.br/port/cgen .

R T Í S T I C O
31 Com exceção dos representantes quilombolas que
admitiram a possibilidade de adoção de um Fundo,
desde que gerido com a participação das próprias

A
comunidades.

E
32 Este tema vem sendo amplamente discutido, entre

I S T Ó R I C O
outros organismos, na CDB (Convenção sobre
Diversidade Biológica – www.biodiv.org ), Ompi
(Organização Mundial de Propriedade Intelectual –

H
www.wipo.int ), OMC (Organização Mundial do

A T R I M Ô N I O
Comércio – www.wto.org) e Unesco (Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura –
www.unesco.org ).

P
Bibliografia

D O
E V I S T A
AZEVEDO, Cristina Maria e AZEVEDO, Eurico de
Andrade. A Trajetória Inacabada de uma

R
Regulamentação. Revista Eletrônica Comciência, SBPC,
Preparação de xarope. A partir da Medida Provisória, o uso
n.26, jun., 2000. de conhecimentos tradicionais associados para fins de
http://www.comciencia.br/reportagens/biodiversida pesquisa científica, a bioprospecção ou desenvolvimento
de/bio11.htm. tecnológico ficou sujeito à anuência prévia das
AZEVEDO, Cristina Maria; LAVRATTI, Paula C.; e comunidades que detêm estes conhecimentos e à
MOREIRA, Teresa C. A Convenção sobre Diversidade repartição dos benefícios derivados do seu uso, 2003.
Biológica no Brasil: considerações sobre sua Foto: Jaqueline Evangelista Dias, acervo Articulação Pacari. 61
implementação no que tange ao acesso ao patrimônio
genético, conhecimentos tradicionais associados e
repartição de benefícios. Revista de Direito Ambiental
(no prelo).
AZEVEDO, Cristina Maria. A Regulamentação do
Acesso aos Recursos Genéticos e aos Conhecimentos
Tradicionais Associados no Brasil. Revista Eletrônica
Biota Neotropica, v.5, n.1, 2005.
http://www.biotaneotropica.com.
DUTFIELD, Graham. New Forms of Sui Generis
Protection. In: International expert workshop on access to
genetic resources and benefit sharing, Draft, dez. 2004.
(documento obtido em
www.canmexworkshop.com/documents/papers/III.3.
2.pdf, em 04/02/2005).
GUPTA,V.K. IPRS and benefit sharing in respect of
tradicional kwowledge. Draft, documento disponibilizado
para a reunião dos Países Megadiversos e Afins,
ocorrida na Índia, jan., 2005.
TEN KATE, Kerry e LAIRD, Sarah.
Juliana Santilli
Pat r i m ô n i o i m at e r i a l
A C I O N A L

e direitos intelectuais coletivos


N
R T Í S T I C O
A

1. A evolução do multicultural do texto constitucional no


E
I S T Ó R I C O

conceito jurídico- conceito de patrimônio cultural, que


constitucional de consagra a idéia de que este abrange bens
p at r i m ô n i o c u l t u r a l culturais referenciadores dos diferentes
H

grupos formadores da sociedade brasileira,


A T R I M Ô N I O

A Constituição Federal representou um e no tombamento constitucional dos


grande avanço na proteção do patrimônio documentos e sítios detentores de
cultural brasileiro, consagrando uma nova e reminiscências históricas dos antigos
P
D O

moderna concepção de patrimônio cultural, quilombos. É a valorização da rica


E V I S T A

mais abrangente e democrática. Avançou em sociodiversidade brasileira, e o


relação ao conceito restritivo de “patrimônio reconhecimento do papel das expressões
R

histórico e artístico nacional”, definido no culturais de diferentes grupos sociais na


Decreto-lei nº 25/37 (a “Lei do formação da identidade cultural brasileira.
Tombamento”). Os novos conceitos constitucionais são
Verifica-se no texto constitucional uma fruto de um longo processo histórico de
62 clara ampliação da noção de patrimônio institucionalização de políticas de
cultural1, a valorização da pluralidade preservação cultural, que procuraram
cultural e um espírito de democratização abandonar a perspectiva elitista,
das políticas culturais, inseridos em um monumentalista e sacralizadora de
contexto de busca da concretização da patrimônio cultural, e valorizar a cultura
cidadania e de direitos culturais. O viva, enraizada no fazer popular e no
multiculturalismo permeia todos os cotidiano das sociedades2. Inspiraram-se no
dispositivos constitucionais dedicados à Movimento Modernista, cujo marco
proteção da cultura. Está presente na referencial foi a Semana de Arte Moderna de
obrigação do Estado de proteger as 1922, e englobam não só os bens culturais
manifestações culturais dos diferentes materiais como os imateriais.
grupos sociais e étnicos, incluindo O artigo 215 da Constituição é claro
indígenas e afro-brasileiros, que formam a quando estabelece que constituem
sociedade brasileira, e de fixar datas patrimônio cultural brasileiro os bens de
representativas para todos esses grupos. natureza material e imaterial, incluindo as
Vislumbra-se a orientação pluralista e formas de expressão, os modos de criar,
Mercado Ver-o-peso.
Belém, Pará, 2004. Foto:
Francisco Costa; acervo
CNFCP/Iphan
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos fazer e viver e as criações científicas, 2. Os conhecimentos
artísticas e tecnológicas dos diferentes tradicionais associados
grupos sociais brasileiros. A Constituição à biodiversidade e a
A C I O N A L

prevê o tombamento, instrumento jurídico Convenção sobre


voltado para a proteção de edificações, de Diversidade Biológica
obras de arte e outros bens de natureza
N
R T Í S T I C O

material, e a criação de novos Neste trabalho, pretendemos restringir-


instrumentos jurídicos, mais apropriados à nos à análise dos conhecimentos tradicionais
preservação de bens imateriais. O associados à biodiversidade, que são as
A

Governo federal editou o decreto práticas, inovações e conhecimentos


E
I S T Ó R I C O

nº 3.551/2000, que institui o Registro de desenvolvidos pelos povos indígenas,


Bens Culturais de Natureza Imaterial, quilombolas e populações tradicionais,
dividindo o registro nos Livros dos relevantes para a conservação e utilização
H

Saberes, das Celebrações, das Formas de sustentável da diversidade biológica.


A T R I M Ô N I O

Expressão e dos Lugares. A criação de um regime jurídico de


Não é possível compreender os bens proteção aos conhecimentos tradicionais
culturais sem considerar os valores neles associados à biodiversidade visa evitar sua
P
D O

investidos e o que representam – a sua apropriação e utilização indevidas por


Juliana Santilli
E V I S T A

dimensão imaterial – e, da mesma forma, terceiros, principalmente através de patentes


não se pode entender a dinâmica do e outros direitos de propriedade intelectual.
R

patrimônio imaterial sem o conhecimento Visa, ainda, dar maior segurança jurídica às
da cultura material que lhe dá suporte.3 relações entre os interessados em acessar
Procurou-se, desta forma, abranger as recursos genéticos e conhecimentos
manifestações culturais de caráter tradicionais associados (bioprospectores e
64 processual e dinâmico, geralmente pesquisadores acadêmicos) e os detentores
transmitidas oralmente. de tais recursos e conhecimentos,
Os bens imateriais abrangem as mais estabelecendo os parâmetros jurídicos a
diferentes formas de saber, fazer e criar, serem observados nessas relações.
como músicas, contos, lendas, danças, Nos últimos anos, os recursos da
receitas culinárias, técnicas artesanais e de biodiversidade e os conhecimentos
manejo ambiental. Incluem, ainda, os tradicionais associados tornaram-se alvo de
conhecimentos, inovações e práticas intensos debates, e das mais diversas
culturais de povos indígenas, quilombolas e denúncias de biopirataria. Embora não haja
populações tradicionais, que vão desde uma definição propriamente jurídica de
formas e técnicas de manejo de recursos biopirataria, é relativamente bem aceito o
naturais até métodos de caça e pesca e conceito de que a biopirataria é a atividade
conhecimentos sobre sistemas ecológicos e que envolve o acesso aos recursos genéticos
espécies com propriedades farmacêuticas, de um determinado país ou aos
alimentícias e agrícolas – os conhecimentos conhecimentos tradicionais associados a tais
tradicionais associados à biodiversidade. recursos genéticos (ou a ambos) em
desacordo com os princípios estabelecidos 3. Direitos intelectuais

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


na Convenção sobre Diversidade Biológica, coletivos
a saber: a soberania dos Estados sobre os

A C I O N A L
seus recursos genéticos; – o As tentativas de adaptação do sistema de
consentimento prévio e informado dos patentes – defendidas, internacionalmente,
países de origem dos recursos genéticos pela Organização Mundial de Propriedade

N
R T Í S T I C O
para as atividades de acesso, bem como a Intelectual – Ompi, e, nacionalmente, pelo
repartição justa e eqüitativa dos benefícios Instituto Nacional de Propriedade Industrial –
derivados de sua utilização. Inpi – desconsideram as próprias

A
Quando o acesso envolve conhecimentos, características e contextos culturais em que

E
I S T Ó R I C O
inovações e práticas de povos indígenas e são produzidos os conhecimentos tradicionais.
populações tradicionais, a Convenção sobre Os conhecimentos tradicionais são
Diversidade Biológica estabelece a produzidos e gerados de forma coletiva, com

H
necessidade de que a sua aplicação se dê base em ampla troca e circulação de idéias e

A T R I M Ô N I O
mediante a aprovação e a participação de seus informações, e transmitidos oralmente de
detentores e a repartição, com estes, dos uma geração a outra. O sistema de patentes
benefícios, ou seja, o objetivo fundamental da protege as inovações individuais (ou, ainda

P
D O
Convenção sobre Diversidade Biológica é que as inovações sejam coletivas, os seus

Juliana Santilli
E V I S T A
equilibrar as relações entre os países autores/inventores, que podem ser
detentores da biodiversidade (países em individualmente identificados), promovendo

R
desenvolvimento) e os detentores da uma fragmentação dos conhecimentos e a
biotecnologia (países desenvolvidos). dissociação dos contextos em que são
A fiel observância aos princípios da CDB produzidos e compartilhados coletivamente.
implica tanto a consulta aos países de Além disso, só são patenteáveis as
origem dos recursos genéticos e invenções que tenham aplicação industrial, e 65
conhecimentos tradicionais associados – muitos conhecimentos tradicionais não têm
como expressão de sua soberania, em face aplicação industrial direta, ainda que possam
de outros países – quanto a consulta, ser utilizados para desenvolver produtos ou
intermediada pelo Estado nacional, aos processos que a tenham. As patentes têm
povos e populações tradicionais detentores ainda um prazo de vigência determinado,
de tais recursos tangíveis e intangíveis, ou conferindo um monopólio temporário sobre
seja: devem ser reconhecidos aos povos a utilização de seu objeto. Em geral, não é
indígenas, quilombolas e populações possível precisar o momento em que
tradicionais direitos intelectuais coletivos determinado conhecimento tradicional foi
sobre os seus conhecimentos tradicionais produzido ou gerado (como precisar, por
associados à biodiversidade, sujeitando-se o exemplo, o momento em que os povos
acesso a eles ao consentimento prévio indígenas passaram a utilizar o ayahuasca com
fundamentado e à repartição justa e fins medicinais?).
eqüitativa dos benefícios oriundos de sua Embora a proteção aos direitos de
utilização com os seus detentores. propriedade intelectual sobre os cultivares
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos (variedades agrícolas cultivadas) seja mais Impossível definir um marco temporal de
branda do que as patentes, dificilmente as vigência para quaisquer direitos intelectuais
sementes e variedades desenvolvidas por sobre conhecimentos tradicionais – cuja
A C I O N A L

agricultores tradicionais serão eficazmente origem exata no tempo dificilmente poderá


protegidas pela Lei de Proteção de ser precisada – que serão transmitidos, de
Cultivares.4 A referida lei exige que as forma também indefinida no tempo, a outras
N
R T Í S T I C O

variedades agrícolas – para serem objeto de gerações. O monopólio conferido pelos


proteção, mediante a concessão de certificado direitos de propriedade intelectual contraria
de proteção de cultivar – apresentem, ao também a essência do processo de geração
A

mesmo tempo, as características de novidade, de conhecimentos tradicionais, com base no


E
I S T Ó R I C O

distinção, homogeneidade e estabilidade livre intercâmbio de sementes, de outros


materiais biológicos e de informações entre
comunidades locais e tradicionais.
H

É impossível conferir proteção jurídica


A T R I M Ô N I O

eficaz aos conhecimentos tradicionais


tomando-se por base um sistema baseado na
lógica de que quem obtém a patente em
P
D O

primeiro lugar passa a deter o monopólio


Juliana Santilli
E V I S T A

sobre a sua utilização, impedindo que outros


utilizem conhecimentos que são coletivos e
R

compartilhados.
O conceito de propriedade – o direito de
o proprietário usar, gozar e dispor da coisa,
e de reavê-la do poder de quem quer que
66 injustamente a possua ou detenha – é
excessivamente estreito e limitado para
abranger a complexidade dos processos que
Mercado de São Joaquim.
geram a inovação, a criatividade e a
página seguinte
inventividade nos contextos culturais em que
A baiana Tânia no
Farol da Barra. vivem povos indígenas, quilombolas e
à direita populações tradicionais. No direito
Tomates, pimenta, quiabos
ocidental, a propriedade – tanto sobre bens
do Mercado de São
Joaquim; Preparo do genética. Dificilmente as variedades materiais quanto imateriais – é um direito
quiabo e do camarão para
tradicionais atendem a tais requisitos, por se essencialmente individual, e de conteúdo
o Caruru de Santa Bárbara;
Acarajé e Caruru de Iansã, caracterizarem justamente por sua ampla fortemente econômico e patrimonial, e
Mercado de Santa Bárbara.
variabilidade e heterogeneidade genéticas. mesmo quando se trata de propriedade
Salvador, Bahia, 2004.
Ademais, a proteção de cultivares assegura a coletiva ou condominial, cada co-titular do
Fotos: Francisco Costa,
acervo CNFCP/Iphan. seus titulares um direito de propriedade sobre direito é plenamente identificável.
as variedades vegetais, de natureza individual Os processos inventivos e criativos de tais
e não coletiva, e por um prazo determinado. populações são, por essência, coletivos, e a
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos utilização das informações, idéias e recursos regime de proteção que atenda às
gerados com base em tais processos é peculiaridades e especificidades dos
amplamente compartilhada. Portanto, a conhecimentos tradicionais.
A C I O N A L

concepção de um direito de propriedade – Para compreender os elementos


pertencente a um indivíduo ou a alguns essenciais de tal regime, é preciso se
indivíduos determinados – é estranha e libertar de concepções positivistas e
N

formalistas do direito, nas quais a lei


R T Í S T I C O

contrária aos próprios valores e concepções


que regem a vida coletiva em tais contém todo o direito e com ele se
sociedades. Por tal razão é que se defende a confunde. O monismo jurídico – que
A

adoção do conceito de direitos intelectuais orienta a formação da maior parte dos


E
I S T Ó R I C O

coletivos (ou comunitários), para excluir a profissionais do direito – prende-se à idéia


propriedade, em virtude do seu caráter do direito estatal único, e de que o Estado é
exclusivista, monopolista e individualista.5 a única fonte de direito. O monismo
H

jurídico desconsidera a existência, no


A T R I M Ô N I O

4. A construção de um mesmo espaço territorial, de uma


regime jurídico sui sobreposição de ordens jurídicas,
generis de proteção aos concorrente com o direito estatal, e a
P
D O

conhecimentos diversidade de sistemas jurídicos


Juliana Santilli
E V I S T A

tradicionais associados desenvolvidos pelos povos tradicionais.6 A


à biodiversidade: essa pluralidade de ordenamentos jurídicos
R

e l e m e n t o s f u n d a m e n ta i s se dá o nome de pluralismo jurídico, que


reconhece que a nossa sociedade é plural e
4.1. Reconhecimento e tem ordenamentos jurídicos paralelos.
f o r ta l e c i m e n t o d a s n o r m a s Ao pretender criar um regime sui generis
68 internas e do direito costumeiro, de proteção aos conhecimentos tradicionais
não-oficial, dos povos indígenas, associados à biodiversidade, o direito
q u i lo m b o l a s e p o p u l a ç õ e s elaborado pelo Estado brasileiro deve avançar
tradicionais: o pluralismo jurídico no reconhecimento da juridicidade do direito
costumeiro, não-oficial, dos povos indígenas,
A criação de um regime jurídico quilombolas e populações tradicionais.
verdadeiramente sui generis e apropriado
para a proteção dos conhecimentos 4 . 2 . A t i t u l a r i d a d e c o l e t i va d e
tradicionais associados deve basear-se nas direitos intelectuais associados
concepções do pluralismo jurídico e no aos conhecimentos tradicionais. A
reconhecimento da diversidade jurídica co-titularidade de direitos sobre
existente nas sociedades tradicionais, conhecimentos compartilhados por
expressão da sua diversidade cultural. É diversos povos e comunidades e o
necessário socorrer-se dos conhecimentos livre intercâmbio e a troca de
produzidos por outras áreas e saberes informações entre os povos e as
científicos para construir, juridicamente, um comunidades tradicionais
Um dos pilares fundamentais do regime tradicionais vai além, transcendendo os

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


jurídico sui generis deve ser o reconhecimento limites de um só povo ou comunidade. Há
da titularidade coletiva dos povos indígenas, numerosas situações em que os

A C I O N A L
quilombolas e populações tradicionais sobre conhecimentos relativos às características,
os direitos intelectuais associados aos seus propriedades e usos de recursos biológicos
conhecimentos tradicionais, por se são detidos e/ou produzidos por vários povos

N
R T Í S T I C O
reportarem a uma identidade cultural indígenas, quilombolas e populações
coletiva e a usos, costumes e tradições tradicionais, e por várias comunidades. Eles
coletivamente desenvolvidos, reproduzidos e podem ser compartilhados por povos

A
compartilhados. Desse pressuposto decorrem indígenas que vivem em países diferentes, ou

E
I S T Ó R I C O
todos os demais. por povos indígenas e outras populações
É inconcebível a formulação de um tradicionais (seringueiros, castanheiros, etc.)
regime jurídico sui generis que não considere que habitam uma mesma região etnográfica,

H
os povos indígenas, quilombolas e populações ou uma mesma região ecológica, em geral

A T R I M Ô N I O
tradicionais como sujeitos coletivos dos coincidente com a área de ocorrência daquele
direitos intelectuais associados aos seus recurso biológico (Exemplo: o ayahuasca,
conhecimentos tradicionais. Pretender cujas propriedades medicinais são conhecidas

P
D O
atribuir a titularidade dos direitos sobre por dezenas de povos indígenas amazônicos,

Juliana Santilli
E V I S T A
determinado conhecimento, inovação ou que vivem não só no Brasil, como também no
prática a um único indivíduo, ou mesmo a Peru, e por outras populações tradicionais e

R
um grupo de indivíduos, é subverter a forma locais. Os índios Ashaninka, por exemplo,
como estes são gerados, e solapar as suas vivem tanto em território brasileiro quanto
próprias bases.7 Mais do que isso: pode peruano, e compartilham uma imensa gama
provocar competições e rivalidades altamente de conhecimentos ecológicos).
prejudiciais aos processos inventivos coletivos O compartilhamento dos conhecimentos 69
que pretende salvaguardar. tradicionais por diversos povos pode dar-se
Ainda que haja uma especialização, o de formas diversas: sobre uma mesma
exercício dos direitos intelectuais relativos a espécie, podem ser desenvolvidos
tais conhecimentos deve dar-se de forma conhecimentos tradicionais diversificados,
coletiva, com base nas instituições sociais e que podem variar de um povo ou
jurídicas de tais povos, e de forma que comunidade para outro, ou mesmo dentro
propicie o fortalecimento de suas instâncias de um mesmo povo. Os conhecimentos
coletivas de decisão. Os conflitos surgidos no tradicionais sobre uma mesma espécie
interior de um povo sobre a utilização de um podem variar quanto aos possíveis usos e
determinado recurso devem ser dirimidos propriedades, quanto aos modos de preparo,
de acordo com os seus próprios usos, formas de aplicação, dosagem, etc.
costumes e tradições, e respeitadas as suas A atribuição de direitos intelectuais
formas próprias de pacificação social. coletivos a um único povo, ou mesmo a uma
Entretanto, a natureza coletiva dos ou mais comunidades, pode excluir outros
processos inventivos e criativos de povos co-detentores, gerando uma lógica de
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos concorrência e rivalidades que se pretende comunidades tradicionais o intercâmbio e a
evitar.Tal lógica de concorrência e exclusão difusão devem ser livres.)? As respostas a tais
contraria a própria essência dos processos perguntas só podem ser buscadas nos
A C I O N A L

culturais a partir dos quais são gerados os sistemas jurídicos desenvolvidos pelos povos
conhecimentos tradicionais, com base no indígenas e tradicionais.
livre intercâmbio e difusão de informações e
N
R T Í S T I C O

dos próprios recursos biológicos. Quando 4.3. Reconhecimento dos sistemas


os conhecimentos tradicionais forem d e r e p r e s e n ta ç ã o e l e g i t i m i d a d e
compartilhados por mais de um povo dos povos indígenas e tradicionais
A

indígena, quilombola ou população


E
I S T Ó R I C O

tradicional, o exercício dos direitos por um O reconhecimento dos sistemas de


ou mais detentores não deve prejudicar ou representação e legitimidade dos povos
restringir os direitos de outros povos e indígenas e tradicionais é uma decorrência
H

comunidades. lógica do pluralismo jurídico, que reconhece


A T R I M Ô N I O

Assim é que se propõe o estabelecimento o sistema jurídico, não-oficial, dos povos


e o reconhecimento de direitos intelectuais indígenas e tradicionais como o mais apto e
coletivos sobre os conhecimentos capaz de dar respostas a questões como
P
D O

tradicionais, dando-se a máxima extensão legitimidade e representatividade dessas


Juliana Santilli
E V I S T A

possível ao próprio conceito de coletivo, para populações em atos e contratos.


que abarque não só os conhecimentos A legitimidade para representar um povo
R

compartilhados por um único povo, como indígena, quilombola ou população


também aqueles detidos por mais de um tradicional, em uma autorização de acesso,
povo ou comunidade. Dessa forma, estar-se-á só pode ser estabelecida por meio das
rompendo com o paradigma individualista do normas e critérios internos desses povos. A
70 nosso direito, que se limita a prever a enorme sociodiversidade brasileira impede a
titularidade ou co-titularidade individual de adoção de uma norma homogênea ou
direitos, e reconhecendo os povos critério único de representação – afinal, são
tradicionais como sujeitos coletivos de centenas de povos indígenas, quilombolas e
direitos, o que melhor traduz a sua realidade. populações tradicionais, com enormes
A previsão de direitos coletivos levanta, diferenças étnicas e culturais entre si,
entretanto, a seguinte questão: como se dará vivendo em distintos ecossistemas.
o exercício e a defesa de tais direitos? Quem Evidentemente, as normas de representação
pode exercê-los em nome da coletividade? E individual ditadas pelo nosso direito civil são
de que forma? Quando pensamos, por inapropriadas para contemplar a enorme
exemplo, na implementação do princípio do diversidade de sistemas de representação dos
consentimento prévio fundamentado, ocorre- povos tradicionais. Alguns povos indígenas,
nos de imediato: quem, e de que forma, por exemplo, se fazem representar por seus
pode autorizar o acesso aos conhecimentos caciques e chefes, cujos atributos para o
tradicionais (estamos falando do acesso por exercício do poder variam, como idade,
terceiros, já que entre os próprios povos e experiência, espírito guerreiro, aptidão para
o xamanismo, habilidades para caça, pesca e obrigatória ou a única forma de

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


agricultura. Outros povos indígenas, representação. Deve-se admitir,
entretanto, conferem o poder político juridicamente, que a representação coletiva

A C I O N A L
decisório aos conselhos de anciãos. O direito se dê pelos usos, costumes e tradições dos
estatal brasileiro deve, portanto, se limitar a povos tradicionais e de suas próprias
reconhecer e conferir validade jurídica a instituições e formas de organização, e não

N
R T Í S T I C O
essas formas de representação. A criação, exigir a criação de ficções jurídicas –
pelo direito brasileiro, de mecanismos de associações, fundações, etc. – nos moldes do
consulta que não atendam às formas próprias direito civil brasileiro.9 É fundamental,

A
de organização e representação dos povos portanto, que o direito brasileiro avance no

E
I S T Ó R I C O
tradicionais só produzirá divisões internas.8 reconhecimento da personalidade jurídica
Tem sido comum a constituição formal, dos povos indígenas,10 quilombolas e
por meio de registro em cartórios, de populações tradicionais, distinta da de seus

H
associações civis para representar povos membros, independentemente da

A T R I M Ô N I O
indígenas, quilombolas e populações constituição formal de associações.
tradicionais em contratos e outras As formas de organização e representação
negociações. Em determinadas coletiva dos próprios povos tradicionais

P
D O
circunstâncias e contextos, a criação de tais devem ser consideradas e respeitadas por

Juliana Santilli
E V I S T A
associações pode ser útil e conveniente, pois aqueles interessados em acessar recursos
facilita o acesso a fontes de financiamento, a genéticos em seus territórios ou seus

R
gestão de seus projetos, o controle sobre conhecimentos tradicionais, bem como na
operações bancárias, etc. repartição dos benefícios gerados pela sua
Não se pode esquecer, entretanto, que a utilização comercial.
associação é uma pessoa jurídica criada pelo
nosso direito, e sujeita às regras de 4.4. Distinção entre direitos 71
funcionamento estabelecidas pelo nosso intelectuais coletivos de conteúdo
direito. Uma associação constituída por m o r a l e p at r i m o n i a l
alguns membros de um povo indígena ou
quilombola, por exemplo, poderá – ou não – Quando pensamos no conteúdo normativo
ser representativa desses povos. Nada dos direitos intelectuais coletivos assegurados
impede, por exemplo, que dois ou mais a povos indígenas, quilombolas e populações
membros de uma determinada comunidade tradicionais sobre os seus conhecimentos
indígena criem uma associação, e a registrem tradicionais, deve estar presente a sua dupla
como Associação de Defesa do Povo Guarani, natureza: moral e patrimonial. Os direitos
sem que ela represente efetivamente o povo morais devem implicar a possibilidade jurídica
Guarani, ou que seus estatutos traduzam as – que deve ser expressamente assegurada –
formas de representação do povo Guarani. de se negar o acesso a tais recursos quando os
Portanto, ainda que se possa admitir que a povos tradicionais entenderem que há riscos
representação dos povos tradicionais se faça ou ameaças à sua integridade intelectual,
por meio de associações, ela não pode ser cultural e de valores espirituais.
Trata-se de um direito de objeção cultural, Os direitos morais dos detentores de

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


que implica também o direito de manterem conhecimentos tradicionais devem ser
tais conhecimentos sob sigilo e inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis,

A C I O N A L
confidencialidade. O direito de negar o acesso não podendo estar sujeitos a prazos ou lapsos
deve ser assegurado legalmente e garantido temporais. Os direitos intelectuais coletivos
pelo Estado por meio de ações preventivas e assegurados aos detentores de

NR T Í S T I C O
repressivas, e mediante demanda dos povos e conhecimentos tradicionais têm ainda
comunidades interessados.Tal direito implica conteúdo patrimonial, podendo-se falar em
a possibilidade de impedir terceiros de direitos patrimoniais. Os detentores podem

A
acessar ou utilizar, sob qualquer forma ou autorizar a utilização de seus conhecimentos

E
I S T Ó R I C O
para qualquer finalidade, os recursos tradicionais, exercendo, assim, os seus
genéticos situados em territórios ocupados direitos patrimoniais relativos a eles. O
por povos indígenas, quilombolas e exercício de direitos morais e patrimoniais

H
populações tradicionais,11 bem como os por um ou mais povos indígenas,

A T R I M Ô N I O
quilombolas e populações tradicionais não
pode, entretanto, impedir o exercício dos
direitos de outros povos e comunidades co-

PD O
detentores dos mesmos conhecimentos,

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E V I S T A
devendo ser vedada a autorização de
utilização exclusiva ou a concessão de

R
monopólios de exploração, ou ainda a
autorização por prazo indeterminado.

4 . 5 . O p a p e l d o E s ta d o b r a s i l e i r o :
conhecimentos tradicionais associados a tais garantidor do respeito à 73
recursos.12 Pode-se dizer que o direito de a u t o n o m i a d e v o n ta d e d o s p o v o s
negar/vetar o acesso integra o rol dos tradicionais e do cumprimento dos Seu Minervino e sua
oficina. Angical, São
direitos morais que devem ser assegurados às r e q u i s i t o s e s s e n c i a i s d e va l i d a d e
Francisco, Minas Gerais,
comunidades e povos detentores de d e at o s j u r í d i c o s 2005. Foto: Francisco
Costa, acervo
conhecimentos tradicionais associados à
CNFCP/Iphan.
biodiversidade. Entre os direitos morais,13 A intervenção do Estado brasileiro – seja
devem ser assegurados também os direitos à por meio do órgão gestor dos recursos
indicação e ao reconhecimento público dos genéticos,14 seja por meio das agências
detentores do conhecimento tradicional, em encarregadas de formulação de políticas
quaisquer publicações ou outras formas de públicas dirigidas a povos tradicionais –15
divulgação e utilização, comercial ou não, e o deve estar voltada para a garantia do respeito
de garantir a integridade intelectual e cultural às formas de organização e representação
dos conhecimentos tradicionais, impedindo- dos povos tradicionais e para a garantia do
se a prática de quaisquer atos que possam respeito aos direitos intelectuais coletivos
atentar contra eles. assegurados a esses povos, sejam eles de
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos conteúdo moral ou patrimonial. É no entanto, que as comunidades sejam informadas
importante salientar que o papel do Estado dos riscos e benefícios de um projeto, para então
deve ser sempre o de assistir, assessorar os dar de fato a sua autorização voluntária.16
A C I O N A L

detentores de conhecimentos tradicionais, e


nunca o de substituir a vontade e o Laurel Firestone aponta ainda que os
consentimento informado deles pela sua maiores desafios para a definição de critérios
N
R T Í S T I C O

própria vontade ou por seus próprios e parâmetros para o consentimento prévio


interesses. O Estado deve ainda garantir a fundamentado são as grandes diferenças entre
observância de requisitos essenciais de as comunidades, os diversos tipos de
A

validade dos instrumentos jurídicos que conhecimentos tradicionais e os vários tipos


E
I S T Ó R I C O

concretizam a vontade desses povos, e de uso de tal conhecimento. Entretanto,


assegurar que a manifestação de vontade dos alguns princípios comuns podem ser
detentores de conhecimentos tradicionais delineados, entre eles, o de que o
H

seja livre de vícios (simulação, fraude ou consentimento prévio fundamentado se


A T R I M Ô N I O

erro), e plenamente consciente e informada. aplica apenas ao objetivo e atividade


O consentimento prévio fundamentado específicos para os quais foi concedido;
pode ser definido como o procedimento permissão adicional deve ser obtida antes da
P
D O

pelo qual os povos e comunidades detentores utilização de recursos genéticos de maneira


Juliana Santilli
E V I S T A

dos recursos tangíveis e intangíveis da diferente daquela estipulada no acordo


biodiversidade autorizam, voluntária e inicial. O interessado no acesso deve divulgar
R

conscientemente, e mediante o ainda a natureza e o objetivo da atividade e os


fornecimento de todas as informações seus riscos efetivos e potenciais.
necessárias, o acesso a, e a utilização, por O consentimento prévio fundamentado
terceiros, de tais recursos. Deve ser deve ser firmado por escrito, e redigido em
74 considerado um processo ou procedimento linguagem acessível e compreensível para os
constituído de várias fases e etapas, e não um povos indígenas, quilombolas e populações
ato contratual isolado. Deve ser um processo tradicionais, devendo especificar, sob pena de
permanente de troca de informações, e nulidade (além dos requisitos já
obtido antes do acesso ou de qualquer mencionados): as finalidades e usos
utilização – seja do recurso genético, seja do pretendidos das atividades de pesquisa e/ou
conhecimento tradicional associado. Para bioprospecção a serem desenvolvidas; a
Laurel Firestone, o consentimento prévio instituição que financia tais atividades; data
fundamentado é a de início e duração; metodologia de pesquisa,
os procedimentos específicos exigidos pela
exigência de que as comunidades locais e atividade, área geográfica e métodos de
indígenas sejam consultadas para dar o seu coleta da pesquisa proposta, bem como
consentimento voluntário antes que uma pessoa, informações sobre o tipo de material e
instituição ou empresa tenha acesso a informações coletados; previsão expressa de
conhecimentos tradicionais ou recursos genéticos que compete à Justiça brasileira dirimir
dentro de seu território. É vital para essa definição, conflitos oriundos da autorização de acesso.
Quaisquer alterações e modificações genéticos e conhecimentos tradicionais

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


ocorridas no curso das atividades de pesquisa detidos por povos indígenas,17 quilombolas e
e/ou bioprospecção deverão ser informadas populações tradicionais, as atividades de

A C I O N A L
aos povos indígenas, quilombolas e coleta e pesquisa podem resultar na
populações tradicionais, e estarão novamente identificação de potencial ou perspectiva de
sujeitas ao seu consentimento uso comercial, e no desenvolvimento de

N
R T Í S T I C O
fundamentado. É importante mencionar produtos ou processos, passíveis, ou não, de
também que o interessado no acesso deve proteção intelectual. Em tal hipótese, o
arcar com as despesas necessárias à interessado deverá firmar previamente, com o

A
contratação de consultores técnicos, respectivo povo indígena, quilombola ou

E
I S T Ó R I C O
jurídicos e/ou científicos independentes, população tradicional, contrato de utilização
quando solicitado pelos povos indígenas, do material genético e de repartição de
quilombolas e populações tradicionais. benefícios. Deverão ser partes em tal contrato

H
O papel do Estado deve ser o de aferir o de repartição de benefícios à comunidade

A T R I M Ô N I O
cumprimento dos requisitos mínimos de detentora do recurso genético ou do
validade do instrumento jurídico que conhecimento tradicional e a parte interessada
concretiza o consentimento prévio em sua utilização, cabendo ao Estado garantir

P
D O
fundamentado, tanto para o acesso a recursos o equilíbrio entre as partes e a observância de

Juliana Santilli
E V I S T A
genéticos quanto para o acesso ao suas condições mínimas de validade.
conhecimento tradicional associado. Dessa O artigo 25 da Medida Provisória

R
forma, estará fortalecendo e equilibrando, nº 2.186-16/2001 prevê que os benefícios
minimamente, as relações entre as partes na decorrentes da exploração econômica de
autorização de acesso, e relativizando as produto ou processo desenvolvido com base
pressões econômicas sobre os povos em amostra do patrimônio genético ou de
tradicionais. Preferencialmente, o órgão conhecimento tradicional associado poderão 75
estatal deve realizar consulta in loco aos constituir-se, entre outros, de divisão de
detentores de conhecimentos tradicionais, lucros, pagamento de royalties, acesso e
deslocando os seus técnicos até os territórios transferência de tecnologias, licenciamento,
ocupados por eles, para que tenham melhores livre de ônus, de produtos e processos, e
condições de aferir a representatividade e a capacitação de recursos humanos. Outros
legitimidade de todo o processo do mecanismos incluem o pagamento de taxas
consentimento prévio fundamentado, bem de coleta e bioprospecção, para amostras de
como o respeito às formas tradicionais de material biológico/genético, e o pagamento
organização social e representação política. de taxas por cada etapa da pesquisa. Parece-
O Estado deve assegurar as condições nos, entretanto, que os mecanismos mais
mínimas para que o consentimento expresso eficientes e eqüitativos de repartição de
pelos detentores de conhecimentos benefícios são aqueles que implicam a
tradicionais seja livre, consciente e informado, participação e o envolvimento das
garantindo autêntica manifestação de vontade. comunidades nas atividades de pesquisa e
Uma vez autorizado o acesso aos recursos desenvolvimento, a sua capacitação e
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos treinamento para uma participação efetiva e Um dos mecanismos de repartição de
qualificada, e não apenas formal, o acesso a benefícios em discussão – tanto no âmbito
tecnologias, até mesmo a biotecnologias interno quanto no externo – é a criação de
A C I O N A L

protegidas por patentes e outros direitos de fundos de repartição de benefícios, que


propriedade intelectual, e a participação nos financiariam tanto projetos de conservação
lucros auferidos com a comercialização de da diversidade biológica nos territórios
N
R T Í S T I C O

produtos e processos desenvolvidos com a ocupados por povos tradicionais, como


utilização de recursos genéticos e projetos de sustentabilidade econômica,
conhecimentos tradicionais de que são social e cultural desses povos e
A

detentores. Pagamentos pontuais e comunidades, com a previsão do acesso


E
I S T Ó R I C O

momentâneos, como taxas de coleta e prioritário aos recursos para projetos


bioprospecção, que não promovem um apresentados por povos e comunidades co-
processo mais amplo e permanente de troca detentores de conhecimentos tradicionais.
H

de informações e de repartição de Quando é possível identificar as


A T R I M Ô N I O

benefícios, têm alcance limitado. comunidades detentoras dos conhecimentos


Os contratos que envolvem a repartição tradicionais, a melhor solução para a
de benefícios devem observar as formas repartição de benefícios é a negociação
P
D O

tradicionais de organização social e direta com elas. Entretanto, quando a


Juliana Santilli
E V I S T A

representação política dos povos titularidade dos conhecimentos é difusa, e


tradicionais, tanto na negociação com não se pode precisar quem são os seus
R

terceiros quanto no que diz respeito à detentores originários, a melhor solução é a


repartição interna (no âmbito da própria criação de fundos de repartição de
comunidade) dos benefícios. Caso contrário, benefícios, aos quais seriam destinados os
estarão promovendo conflitos internos e recursos econômicos oriundos de
76 desagregação cultural. Quando for possível mecanismos de repartição de benefícios
identificar a comunidade ou povo detentor (taxas de bioprospecção, royalties,
do conhecimento tradicional, o contrato de participação em lucros, etc.), geridos por
repartição de benefícios deve ser celebrado conselhos compostos por representantes de
diretamente com eles. Entretanto, grande órgãos públicos, da sociedade civil e de
parte dos conhecimentos tradicionais são organizações representativas de povos
compartilhados por diversas indígenas, quilombolas e populações
comunidades/povos, e a atribuição exclusiva tradicionais. Tais fundos devem destinar-se
de benefícios a um ou mais co-detentores, especificamente a projetos de povos e
em detrimento de outros co-detentores, comunidades tradicionais, e não podem ser
promoveria concorrências lesivas, e talvez confundidos com o fundo ao qual se
restrinja a própria troca e circulação de destinam os benefícios decorrentes do acesso
informações entre as comunidades, o que a recursos genéticos e de sua exploração
comprometeria a continuidade dos econômica, de natureza mais geral.
processos de geração e produção de
conhecimentos.
N o ta s plantio, exceto para fins reprodutivos, ou utilizam o

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


cultivar como fonte de variação no melhoramento
1 Sobre a proteção jurídico-constitucional à cultura, genético ou na pesquisa científica. Garante ainda o
além das obras já citadas, sugerimos a consulta de: direito de pequenos produtores rurais de multiplicar

A C I O N A L
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Direitos sementes, para doação ou troca, para outros pequenos
culturais como direitos fundamentais. Brasília: Ed.Brasília produtores rurais, no âmbito de programas
Jurídica, 2000; CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado governamentais ou autorizados pelo governo.
5 Nesse sentido, vale mencionar a proposta legislativa

N
na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Renovar,
desenvolvida pela rede de organizações Third World

R T Í S T I C O
1991; PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao
patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del Rey, 1994; Network, intititulada Community Intellectual Rights
RAMOS RODRIGUES, José Eduardo. A evolução da Act, segundo a qual as comunidades locais seriam
proteção do patrimônio cultural – Crimes contra o “custodians” (ou “stewards”) – guardiãs – de suas

A
ordenamento urbano e o patrimônio cultural. In: inovações, estando assegurado o livre intercâmbio entre

E
PURVIN DE FIGUEIREDO, Guilherme José (org.). as comunidades, e vedada a concessão de quaisquer

I S T Ó R I C O
Temas de direito ambiental e urbanístico. São Paulo: direitos de monopólio exclusivo sobre tais inovações.
Editora Max Limonad – Instituto Brasileiro de In: NIJAR, Gurdial Singh. In defence of local community
Advocacia Pública, 1998, p. 199-225; BATISTA DOS knowledge and biodiversity: a conceptual framework and

H
SANTOS, Márcia Walquíria. Proteção do patrimônio

A T R I M Ô N I O
cultural no direito italiano. Revista dos Tribunais, ano 83,
v. 706, agosto de 1994.
2 LONDRES, Cecília. Da modernização à
participação: a política federal de preservação dos anos

P
70 e 80. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico

D O
Nacional, n. 24, p.153 seg., 1996.

Juliana Santilli
3 MINISTÉRIO DA CULTURA, INSTITUTO DO

E V I S T A
PATRIMÔNIO HISTÓRICO e ARTÍSTICO
NACIONAL E FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES.

R
O registro do patrimônio imaterial. Propostas,
experiências e regulamentos internacionais sobre a
proteção do patrimônio cultural imaterial. Dossiê final
das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
Patrimônio Imaterial. Brasília, jul. 2003, p. 125.
4 A lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997, conhecida
77
como Lei de Proteção de Cultivares, define “cultivar”
como a variedade de qualquer gênero vegetal
claramente distinta de outras cultivares conhecidas e
Trançando fibra de
que resulta do melhoramento genético realizado pelo
tucumã. Arapiuns,
melhorista. O melhorista é a pessoa responsável pelo
Santarém, Pará, 2004.
processo de melhoramento genético dos cultivares e Foto: Francisco Costa,
pela descrição das características que irão diferenciar acervo CNFCP/Iphan.
uma nova cultivar dos demais cultivares já conhecidos the essential elements of a rights regime. Penang,
da mesma espécie de planta. A Lei de Proteção de Malásia:Third World Network, Paper 1, 1996.
Cultivares foi proposta pelo Governo brasileiro a fim 6 CAMPILONGO, Celso. Pluralismo jurídico e
de possibilitar que o país aderisse à Convenção movimentos sociais. Palestra proferida na Semana
Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais Inaugural de 2000 da Fundação Escola Superior do
(Upov) (em inglês, International Union for the MPDFT. Campilongo considera que, embora o
Protection of New Varieties of Plants), ainda na versão pluralismo jurídico trabalhe com uma hipótese muito
78 (posteriormente foi editada a versão Upov 91). A interessante – a de que a fragmentação social provoca a
lei rejeita a dupla proteção de cultivares (por patentes fragmentação do modo de produção do direito –, ele
e proteção ao cultivar) e garante o chamado “privilégio precisa ganhar consistência teórica. Ele aponta que o
do agricultor”, que é o direito de o agricultor guardar pluralismo jurídico não oferece solução para a
sementes da colheita para o próximo plantio. Garante variabilidade das normas, para a normatividade
ainda o direito daqueles que usam ou vendem como especificamente jurídica e para o controle democrático
alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu da produção das normas.
Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos Consultar, a esse respeito: RANDERIA, Shalini. (org.). Humanismo latino e Estado no Brasil.
Pluralismo jurídico, soberania fraturada e direitos de Florianópolis: Fundação Boiteux, Fondazione
cidadania diferenciais: instituições internacionais, Cassamarca, 2003, p. 453-472.)
movimentos sociais e Estado pós-colonial na Índia. In: 9 A lei peruana exige que tanto a autorização de
A C I O N A L

SOUSA SANTOS, Boaventura de (org.). Reconhecer acesso e utilização quanto o contrato de licença do uso
para libertar: os caminhos do cosmopolitismo dos conhecimentos coletivos sejam celebrados com a
multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, “organização representativa dos povos indígenas dos
2003, p. 463-512. (Série: Reinventar a emancipação conhecimentos coletivos”.
N

social: para novos manifestos, v. 3). Randeria analisa a 10 O projeto de lei que institui o novo Estatuto das
R T Í S T I C O

dinâmica e as trajetórias do pluralismo jurídico e da Sociedades Indígenas – em tramitação no Congresso


transnacionalização do direito, contrapondo-se à Nacional – dispõe expressamente que “as comunidades
preocupação predominante nos estudos recentes indígenas têm personalidade jurídica de direito público
A

acerca do pluralismo jurídico transnacional, que se interno, e sua existência legal independe de registro
E

concentra na lex mercatoria e na produção autônoma e ou qualquer ato do Poder Público”.Wagner Gonçalves
I S T Ó R I C O

espontânea de direito por parte de uma pequena elite entende que o novo estatuto deve considerar as
de árbitros comerciais internacionais. Analisa o papel comunidades indígenas como “pessoas jurídicas de
das instituições internacionais, organizações não- direitos indígenas”, “o que lhes garantiria, na prática, o
H

governamentais e movimentos sociais como atores em reconhecimento de sua organização social”


A T R I M Ô N I O

uma paisagem jurídica heterogênea. (GONÇALVES,Wagner. Natureza jurídica das


7 A Medida Provisória nº 2.186-16/2001 estabelece, comunidades indígenas. Direito público e direito
em seu artigo 9º, parágrafo único, que: “Para efeito privado. Novo Estatuto do Índio. Implicações. In:
desta Medida Provisória, qualquer conhecimento SANTILLI, Juliana (org.). Os direitos indígenas e a
P

tradicional associado ao patrimônio genético poderá Constituição. Brasília: Núcleo de Direitos Indígenas;
D O

ser de titularidade da comunidade, ainda que apenas Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993, p.
um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha 241-250). O Código Civil, nos artigos 40 e seguintes,
Juliana Santilli
E V I S T A

esse conhecimento”. estabelece que as pessoas jurídicas são de direito


8 Exemplo disso é o acordo estabelecido entre a público, interno ou externo, e de direito privado.
R

Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e o povo Entendemos, entretanto, que em face do artigos 231 e
indígena Krahô, do Tocantins, visando a efetuar o 232 da Constituição é possível sustentar que as
levantamento etnofarmacológico de espécies da flora comunidades e povos indígenas têm personalidade
utilizadas em rituais de cura e práticas de xamanismo. jurídica própria, e não só as organizações indígenas.
Segundo Ela Wiecko V. de Castilho (procuradora Ver a esse respeito: SANTILLI, Juliana. Avaliação
federal dos direitos do cidadão), a pesquisa visa avaliar jurídica sobre direitos indígenas. Subsídios aos projetos
78 a eficácia simbólica do uso ritual das plantas, bem demonstrativos para populações indígenas, no âmbito
como sua eficácia material, mediante a verificação de do Programa Integrado de Proteção às Terras e
seus princípios ativos e toxicidade. Envolve, portanto, Populações Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL).
a coleta de plantas medicinais e o uso de Consultoria realizada para a GTZ (agência de
conhecimentos tradicionais relativos às suas cooperação técnica alemã), em 1998.
propriedades: cerca de quatrocentas espécies já teriam 11 Os atos de demarcação e de emissão de títulos,
sido coletadas, com base nas informações e receitas de por parte do Estado brasileiro, têm natureza
sete xamãs, o que teria resultado na identificação declaratória, e o exercício dos direitos desses povos
científica de 138 prováveis espécies com algum tipo de (indígenas e quilombolas) sobre o material genético
ação neurológica, sendo que apenas onze delas já existente em seus territórios tradicionais independe de
foram alvo de estudos farmacológicos e fitoquímicos. tais atos oficiais. Distinta, entretanto, é a situação das
Segundo relata Ela Wiecko V. de Castilho, a pesquisa populações tradicionais. As formas que o ordenamento
motivou conflitos e divergências internas entre os jurídico prevê para delimitação do território dessas
índios Krahô, tendo boa parte do povo Krahô se populações são, até o momento, a criação de reservas
revoltado contra o projeto da Unifesp, e exigido a sua extrativistas e de desenvolvimento sustentável, geridas
interrupção, porque os seus pesquisadores só por conselhos deliberativos de que participam as
consultaram uma parte das aldeias Krahô. populações tradicionais residentes.
(CASTILHO, Ela Wiecko V.de. Parâmetros para o 12 A Medida Provisória nº 2.186-16/2001, em
regime jurídico sui generis de proteção ao capítulo dedicado à “proteção ao conhecimento
conhecimento tradicional associado a recursos tradicional associado” (artigo 8º e seguintes), garante à
biológicos e genéticos. In: MEZZAROBA, Orides comunidade indígena e à comunidade local que criam,
desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento e a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao

Patrimônio imaterial e direitos intelectuais coletivos


tradicional associado ao patrimônio genético, os Ministério da Cultura, o órgão com atribuições afetas
direitos de: I – ter indicada a origem do acesso ao às comunidades de quilombolas. No âmbito do Ibama,
conhecimento tradicional em todas as publicações, foi criado, em 1992, o Centro Nacional de Populações

A C I O N A L
utilizações, explorações e divulgações; II – impedir Tradicionais e Desenvolvimento Sustentável.
terceiros não autorizados de: a) utilizar, realizar testes, 16 FIRESTONE, Laurel. Consentimento prévio
pesquisa ou exploração, relacionados ao conhecimento informado: princípios orientadores e modelos
tradicional associado; b) divulgar, transmitir ou concretos. In: LIMA, André & BENSUSAN, Nurit

N
retransmitir dados ou informações que integram ou (orgs.). Quem cala consente? Subsídios para a proteção

R T Í S T I C O
constituem conhecimento tradicional associado; III – aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto
perceber benefícios pela exploração econômica por Socioambiental, 2003, p. 23-52. (Documentos do Isa,
terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento 8) Firestone menciona ainda, entre os requisitos

A
tradicional associado, cujos direitos são de sua mínimos do consentimento prévio fundamentado: -

E
titularidade. Para efeito da medida provisória, implicações e conseqüências previsíveis das atividades

I S T Ó R I C O
qualquer conhecimento tradicional associado ao de pesquisa; - pessoa jurídica e filiação do interessado,
patrimônio genético poderá ser de titularidade da bem como dos seus patrocinadores; - indicação de
comunidade, ainda que apenas um indivíduo, membro acordos para repartição de benefícios, bem como

H
dessa comunidade, detenha esse conhecimento. benefícios que poderiam advir da obtenção de acesso

A T R I M Ô N I O
13 A distinção entre direitos morais e patrimoniais se ao recurso; - procedimentos e atividades alternativas
inspira na Lei de Direitos Autorais (9.610/98). possíveis; - descobertas feitas durante a condução da
14 O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – atividade que possam afetar a predisposição do povo de
vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, cuja continuar a colaborar; - apresentação do impacto

P
secretaria executiva é vinculada ao Departamento do ambiental em potencial da atividade de bioprospecção;

D O
Patrimônio Genético, da Secretaria de Biodiversidade e - informações precisas sobre o uso pretendido e o
Florestas – é responsável pela coordenação das políticas interesse comercial.

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E V I S T A
de gestão do patrimônio genético e pelas deliberações 17 A primeira autorização de acesso a conhecimentos
sobre autorizações de acesso e contratos de utilização tradicionais associados ao patrimônio genético foi

R
do patrimônio genético e repartição de benefícios, concedida pelo Conselho de Gestão do Patrimônio
entre outras atribuições definidas no decreto nº Genético em 29/07/2004, a um projeto de pesquisa
3.945/2001, alterado pelo decreto nº 4.946/2003.Tal desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas da
conselho é, entretanto, composto apenas por Amazônia (INPA), com o apoio do Instituto
representantes de órgãos e entidades da administração Socioambiental (ISA), para verificar a sustentabilidade
pública federal. Em agosto de 2002, entretanto, o da produção comercial da cestaria do povo indígena
governo Fernando Henrique Cardoso encaminhou ao Baniwa. Envolve o estudo do manejo dos corantes e 79
Congresso um projeto de lei que altera a composição fixadores naturais utilizados pelos índios na elaboração
do referido conselho, prevendo a participação de das peças. O projeto, intitulado “Ecologia e
“representantes de setores da sociedade civil afetos ao extrativismo de plantas utilizadas como fixadoras de
tema, na proporção de até 20% da totalidade de seus corantes no artesanato Baniwa, Alto Rio Negro”, é
membros”. Desde o início da gestão da Ministra Marina respaldado por um termo de compromisso firmado
Silva, em janeiro de 2003, entretanto, representantes entre Inpa, Isa e Oibi-Organização Indígena da Bacia
da sociedade civil (Associação Brasileira de do Içana, dos Baniwa. Para maiores informações,
Organizações Não-Governamentais e Fórum Brasileiro consultar: www.socioambiental.org. e o Boletim
das ONGs), de organizações indígenas, quilombolas e Eletrônico do Conselho de Gestão do Patrimônio
populações tradicionais, de instituições de pesquisa Genético, edição n. 1, jun./jul. 2004.
acadêmica e científica (Academia Brasileira de Ciências (www.mma.gov.br).
e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e
de empresários (Centro Empresarial Brasileiro para o
Desenvolvimento Sustentável – CEBDS e Federação Em 26/08/2004, o Conselho de Gestão do Patrimônio
Brasileira das Indústrias Farmacêuticas – Febrafarma), Genético concedeu à Embrapa autorização de acesso ao
passaram a ser convidados a participar das reuniões do patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado,
conselho e de suas câmaras temáticas, ainda que em para desenvolver pesquisa científica no âmbito do projeto
caráter informal. intitulado “Etnobiologia, conservação de recursos genéticos e
15 A Fundação Nacional do Índio – Funai, vinculada bem-estar alimentar da comunidade indígena Krahô”, na
ao Ministério da Justiça, é a agência indigenista oficial, terra indígena Kraholândia, no Estado do Tocantins.
Laurence Bérard e Philippe Marchenay
Biodiversidade e indicação geográfica:

A C I O N A L
P R O D U Ç Õ E S A G R Í C O L A S E A L I M E N T A R E S L O C A I S

N
R T Í S T I C O
A
Os produtos agrícolas e alimentares Espaço, tempo e saberes

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I S T Ó R I C O
locais estão quase sempre ligados ao mundo compartilhados
animal ou vegetal. Quer em estado bruto ou
já transformados, dependem de processos A diversidade é onipresente, refletida por

H
biológicos, cultivo, criação ou técnicas de uma quantidade enorme de bebidas, queijos,

A T R I M Ô N I O
preparo. Multiplicam-se as práticas e os charcutarias, carnes, azeites, confeiterias,
diferentes tipos de know-how, o que revela, confeitos, frutas, verduras.Também se traduz
caso isso ainda fosse necessário, a nas escalas de fabricação, nos modos de

P
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capacidade inventiva dos homens e a comercialização, no papel do produto na

E V I S T A
maleabilidade extrema do ser vivo. Algumas comunidade e na sua história, que podem ser
produções têm por base sistemas muito diferentes. Por vezes, um determinado

R
complexos, chegando a manter uma produto revela um rico envasamento cultural.
biodiversidade de amplo espectro, que vai Em outros casos, essa relação pode ser muito
da paisagem ao ecossistema microbiano, mais tênue. Para além desta grande
passando por variedades ou raças locais. As polimorfia, estes produtos alimentares
práticas e os saberes técnicos são os fatores mantêm todos uma relação particular com o 81

mais visíveis – porque mais diretamente espaço. Sua inscrição num lugar é sempre
observáveis – a influenciar tal diversidade acompanhada por uma anterioridade de
biológica. As indicações geográficas [IG] são práticas coletivas. Em outros termos,
debatidas hoje no mundo inteiro. A elas é atravessam o espaço, o tempo, e são objeto de
atribuída, cada vez mais, a particularidade diversos tipos compartilhados de know-how.
de contribuírem para a manutenção da Todos têm uma história cuja amplitude
biodiversidade em geral e dos recursos temporal pode variar, escalonar-se ao longo
genéticos em particular. São excelentes de muitos séculos ou de alguns decênios em
temas de estudo para se compreender como função da história local, mas a anterioridade
a combinação dos fatores naturais e que dá a espessura ao lugar está bem ali,
humanos pode influenciar a diversidade ligada à memória coletiva transmitida. Os
biológica e cultural. diversos tipos compartilhados de know-how
constituem outro componente a participar da
página anterior
definição dos produtos agrícolas e alimentares
Pereira em flor na Normandia.
Foto: Parque natural regional da Normandia, Maine. locais e tradicionais. Deixam de ser
Biodiversidade e indicação geográfica conhecidos fora da zona de fabrico – e não consumidor. Foi desta constatação que surgiu
raro de consumo. De acordo com o espaço a idéia de proteger o nome de um produto
ocupado pelo produto no grupo social, estas associado à sua origem geográfica.
A C I O N A L

práticas coletivas podem expressar até a


organização da sociedade inteira. D a r e g u l a m e n ta ç ã o e
Sua dimensão coletiva inscreve-os na proteção da origem na
N

França e na Europa
R T Í S T I C O

cultura local e permite que se decida sobre a


proveniência: vir de um lugar – de origem –,
ser desse lugar. São critérios de ordem Já faz muito tempo que o legislador
A

cultural que associam um lugar a uma história francês reconhece o uso de um nome
E
I S T Ó R I C O

e a um grupo social, critérios esses que geográfico a fim de se proteger um produto


ajudam a organizar e a pensar esta diversidade e de se identificarem suas contrafações,
e a caracterizar a natureza deste laço. produto esse cujas características estejam
H

Laurence Bérard e Philippe Marchenay

Alguns destes produtos são designados por ligadas a um terreno e a um know-how.


A T R I M Ô N I O

seus locais de origem, isto é, pelo nome Contudo, será preciso esperar pela lei de 6
geográfico do lugar onde foram elaborados. de julho de 1996 para que a appellation
Esta associação traduz o elo estabelecido d´origine [indicação de origem] passe a ser
P
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entre a qualidade, a origem e a notoriedade definida explicitamente:


E V I S T A

daí decorrente. Fala-se, assim, do beaufort, do


comté [tipos de queijo] e do poulet de Bresse Constitui uma Appellation d´origine a
R

[frango ou galinha criados em uma região do denominação de um país, de uma região ou de


Centre-Leste da França]. Esta prática é, a um uma localidade que sirva para designar um
só tempo, antiga e divulgada. Encontramo-la produto deles originário, e cuja qualidade ou
na Antiguidade Clássica, e não há país no características se devam ao meio geográfico,
82 mundo em que uma origem geográfica não se compreendendo fatores naturais e humanos.
encontre associada a produtos particulares. As
cenouras do oásis de Uadne, na Mauritânia, são Esta legislação teve de passar por
tidas como as melhores do país; a páprica de numerosos ajustes e foi-se consolidando por
Kalocsa, na Hungria, não tem rival em meio de crises, fraquezas e insuficiências
qualquer outro lugar. O stilton [tipo de queijo] identificadas e corrigidas. No início,
inglês chama para a aldeia do mesmo nome, concernia exclusivamente ao setor vitícola,
no condado de Leicestershire; poder-se-ia cujo peso é bem conhecido. Alguns produtos
prolongar a lista indefinidamente. É verdade – essencialmente queijos e certos legumes e
que esta prática tem seus inconvenientes, já frutas – beneficiaram-se desta proteção, mas
que a reputação associada a um lugar encoraja segundo procedimentos heterogêneos e sem
a sua apropriação abusiva para o produto terem sido controlados de modo formal. A
vender melhor. Este estado de coisas constitui lei de 2 de julho de 1990 amplia as
concorrência desleal aos produtores que se diligências de appellations d´origine ao
atêm a respeitar determinadas regras; e é, ao conjunto do setor agroalimentar e dá-lhe por
mesmo tempo, uma trapaça para o base de apoio as mesmas regras.
A efetivação do mercado único, abrindo transformação e/ou a elaboração são realizadas

Biodiversidade e indicação geográfica


fronteiras e dando aos produtores dos na área geográfica delimitada.
diversos países da União Européia a

A C I O N A L
oportunidade de venderem livremente seus A filosofia da AOP é proteger, por meio
produtos, não fez senão agravar o risco do de um nome, um produto único, não
roubo de nomes. Essa realidade apresenta o reprodutível em outro terreno. O conjunto

N
R T Í S T I C O
problema do que irá acontecer com os do processo de produção deve-se fazer numa
produtos de “qualidade particular” e, de só e mesma zona, da qual é necessário
modo mais amplo, dos que são específicos de demonstrar a coerência e a influência no que

A
cada país. Foi neste contexto geral que o se refere ao produto. A lógica da IGP, que

E
I S T Ó R I C O
Conselho das Comunidades Européias, em recorre também à proteção de um nome,
14 de julho de 1992, firmou regulamento baseia-se mais na reputação do produto, na
relativo à proteção das indicações geográficas sua história, ligada à de uma localidade,

Laurence Bérard e Philippe Marchenay


e das denominações de origem1. associada a características ou a qualidades

A T R I M Ô N I O
A Appellation d´origine protégée ou particulares. A IGP não impõe uma zona
Denominação de Origem Protegida -– AOP única em que deva desenvolver-se o conjunto
e a Indication géographique protégée, ou das operações: as matérias-primas, em

P
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Indicação Geográfica Protegida – IGP, particular, podem ser de outra proveniência.

E V I S T A
garantem a proteção da relação com um AOP e IGP reagrupam-se sob a designação
lugar. Ambas designam mais ampla de Indications Géographiques ou

R
Indicações Geográficas – IG.
o nome de uma região, de um lugar determinado
ou, em casos excepcionais, de um país, que sirva Biodiversidade cultural
para designar um produto agrícola ou um gênero e proteção da origem
alimentício originários dessa região, desse lugar 83
determinado ou desse país. Uma raça animal, uma variedade vegetal,
uma paisagem, um ecossistema microbiano
No caso da AOP, correspondem a um acúmulo de saberes, de
práticas e de ajustes. Estes variam conforme
a qualidade ou as características gerais devem-se a natureza dos produtos, eles mesmos
essencial ou exclusivamente ao meio geográfico, dependentes das condições ambientais e
compreendendo os fatores naturais e humanos, bem sociais. Esta combinação de fatores
como a produção, a transformação e a elaboração subentende e organiza níveis de
realizadas em uma área geográfica delimitada. complexidade biológica diferentes. A
biodiversidade, “conjunto de seres vivos, do
No caso da IGP, seu patrimônio genético e dos complexos
ecológicos em que evoluem”2, não poderia
uma qualidade determinada, a reputação ou uma existir sem as práticas e os saberes
outra característica podem ser atribuídas a esta desenvolvidos pelas sociedades que a criam,
origem geográfica e a produção e/ou a a mantêm ou a reduzem. Esta proximidade
Biodiversidade e indicação geográfica constante leva ao uso crescente da intensamente usada, a ponto de se tornar
expressão biodiversidade cultural3. A proteção verdadeiro alimento de subsistência.
de origem geográfica pode encorajar para Ocupando quase todo o espaço, o
A C I O N A L

que se leve em conta uma biodiversidade castanheiro deu a feição às paisagens e


cultural, e até que seja reativada. Para isto, marcou de maneira duradoura o
é indispensável levar em consideração não patrimônio, os costumes e a vida social da
N
R T Í S T I C O

só as características biológicas, mas também Ardèche. A châtaignerie tradicional é a um só


os conhecimentos e as práticas locais. Estes tempo testemunho de uma cultura, de uma
elementos, que são parte integrante da civilização, e um produto local intimamente
A

especificidade dos produtos, estão sendo ligado a um território. Em face do declínio


E
I S T Ó R I C O

levados em conta com uma atenção cada vez da châtaignerie, chegou a ser debatida a
maior para a listagem dos critérios a serem questão de se introduzirem variedades
respeitados e que deverão constar do cahier híbridas, que satisfizessem a determinados
H

Laurence Bérard e Philippe Marchenay

des charges. Essa relação com a delimitação critérios técnicos e comerciais. Mas esta
A T R I M Ô N I O

da zona de proteção constitui os dois pilares inovação, que implicaria um


da proteção de um nome. Exemplos comportamento muito diferente em tudo o
franceses aqui apresentados mostram como que se refere à châtaignerie, que passaria da
P
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se podem estabelecer pontes entre agrofloresta ao pomar intensivo, suscitou


E V I S T A

biodiversidade e proteção. grandes tensões.Tal contexto levou os


produtores a pensarem em uma AOC para a
R

A c a s ta n h a d a A r d è c h e castanha da Ardèche, que ao mesmo tempo


proporcionasse a possibilidade de se
Na Ardèche, no sul da França, as protegerem as variedades locais, um manejo
comunidades locais se organizaram, durante tradicional das árvores e um tipo de
84 séculos, em torno das atividades ligadas à paisagem. Hoje, está em curso o processo
châtaignerie, literalmente, o castanhal. O de obtenção da AOC, sendo que o cahier des
manejo dessas formações vegetais charges registra dezenove variedades
dominadas pela castanheira, chamada no principais, todas elas locais4.
Brasil, castanha de Portugal, levou os
homens a identificarem, a selecionarem e
depois a enxertarem uma quantidade
imponente de variedades das quais o
tamanho, a forma e as características
organolépticas dos frutos definem usos
diversificados, conforme as regiões da
Ardèche. Ao norte, os frutos fervidos da
variedade combae, que são cozidos, foram
durante muito tempo acompanhamento das
refeições, como se fosse pão. No sul desse Castanhal de Ardèche. Foto: Yves Vérilhac – Parque natural
departamento, a pourette é que foi mais regional dos Montes de Ardèche.
Biodiversidade e indicação geográfica
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Laurence Bérard e Philippe Marchenay


A T R I M Ô N I O
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Pomar normando. Foto: Parque natural regional da Normandia, Maine.

E V I S T A
C i d r e , c a lv a d o s e p o i r é de variedades é particularmente elevada. Sob

R
na Normandia a denominação calvados, por exemplo, são
enumerados, nos pomares identificados pelo
Cidre, pommeau, calvados e poiré são bebidas Instituto Nacional de Denominações de
fermentadas e em seguida destiladas, à base Origem (Institut National des Appellations
de maçãs ou de pêras, no caso da última d´Origine, – INAO)), 177 variedades de 85
denominação. Na Normandia, oeste da macieiras devidamente compiladas e 477
França, sua produção baseia-se – ainda em denominações (táxons)6.
boa parte – na exploração de um pomar Esta diversidade “tradicional” traduz os
associado à pastagem, chamado pré-verger. objetivos de produção, visto que
Este sistema de cultivo que combina estratos determinadas variedades são mais ou menos
arbóreos e herbáceos fornece, no mesmo adaptadas à elaboração das cidres, ou de
espaço, produtos complementares: frutas poirés de consumo, à destilação, à produção
selecionadas para bebida, pastagem, animais, do moût à pommeau ou mosto de maçãs.
leite e carne. No total, seis produtos Efetivamente, o resultado final encontra-se
provenientes da cidra e seis produtos leiteiros freqüentemente ligado à mistura judiciosa
e queijeiros são beneficiados por uma AOC5. de diversas variedades. A diversidade
O pré-verger da Normandia corresponde a procede igualmente de uma estratégia de
uma realidade histórica e atual que envolve a proteção contra os riscos de alternância ou
agricultura, o ambiente, a economia local, o doenças criptogâmicas, mas também da
patrimônio e a biodiversidade. A diversidade organização da polinização das árvores.
Biodiversidade e indicação geográfica A AOC do poiré Domfront, uma cidra à O boeuf de Charolles
base de pêras, obtida em dezembro de 2002,
é exemplar no que diz respeito às condições O bœuf (boi) de Charolles goza de uma
A C I O N A L

de produção. De um lado, a variedade notoriedade particular. A reputação dos


principal é o plant de blanc, bem conhecido animais desta região – que deu o nome à
nessa região, acompanhado de variedades raça – está assegurada há muito tempo.
N
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locais complementares. De outro, é a Adiantam-se duas razões: a tradição da


primeira AOC que define, de maneira muito seleção local que sempre deu maior
precisa como os recursos vegetais, aqui as importância às qualidades mais adequadas à
A

pereiras e os agroecossistemas associados, o produção de carne, e o valor agrícola das


E
I S T Ó R I C O

pomar, devem ser manejados.Técnicas de pastagens, que, associado à competência


poda, densidade de plantação, associação dos profissionais responsáveis pela engorda,
com pastagens são critérios locais de manejo possibilita uma produção excepcional.
H

Laurence Bérard e Philippe Marchenay

desses pomares. A integração das normas Com efeito, os tipos de know-how (idem)
A T R I M Ô N I O

locais e dos recursos associados na definição relativos aos solos e à vegetação são
da AOC introduz na economia da cidra uma específicos dessa zona e encontram-se
dimensão paisagística e inscreve-se em uma estreitamente associados ao potencial de
P
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perspectiva de conservação da crescimento do animal: cada pradaria tem


E V I S T A

biodiversidade cultural7. um nome, adequado ao modo como ela é


R

86

Bovinos de Charolles em paisagem arborizada. Foto: Eléonore Sauvageot, Sindicato de defesa e promoção da carne de boi de Charolles.
utilizada.O manejo do pasto constitui o categorias de usuários do meio e o papel da

Biodiversidade e indicação geográfica


fecho de abóbada do sistema de Charolles8. caça constituem os principais parâmetros
O know-how mais marcante está no que determinam o funcionamento desses

A C I O N A L
comportamento mesmo da criação, lagos “cultivados”. Aí, como nos exemplos
associada às pradarias de que dispõe cada anteriores, há sempre a paisagem que, desta
criador. Cerca de 3.500 fazendas vez, apresenta a particularidade de mudar

N
R T Í S T I C O
especializadas na produção de bovinos de continuamente de fisionomia, conforme se
corte ficam na zona do bœuf de Charolles. alternam os períodos com os lagos
Caracterizam-se por uma superfície inundados ou não. O peixe de Dombes está

A
agrícola útil constituída, no mínimo, por postulando, no momento, a obtenção de

E
I S T Ó R I C O
80% de pastos extensivos. uma IGP.
A AOC em curso de solicitação insiste
em que se leve em conta este manejo Os incontornáveis

Laurence Bérard e Philippe Marchenay


específico para a criação, estreitamente sistemas queijeiros

A T R I M Ô N I O
ligado ao pasto e a uma raça adaptada ao
meio. Bois, novilhas e vacas podem No cruzamento do biológico e do
pretender essa AOC, desde que associados a cultural, as produções queijeiras ocupam

P
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condições de criação bem identificadas. lugar de relevo. A partir de uma

E V I S T A
determinada matéria-prima, o leite, há uma
A carpa em Dombes enorme quantidade de tipos de fabrico, com

R
suas variações, oriundas de uma imensa
A agropiscicultura praticada nas lagoas da diversidade de práticas. Bem no centro, a
região das Dombes (departamento de Ain, interação do vivo com o cultural constitui a
ao norte de Lyon) está orientada para a originalidade dos queijos, particularmente –
criação de carpas. A atividade não é recente, mas nem sempre – nas AOC. Os sistemas 87
surgiu na Idade Média, devido à necessidade queijeiros possibilitam ligar saberes e
de se conseguir um peixe numa época em práticas em particular ao animal, ao vegetal
que as prescrições alimentares eram e aos microrganismos.
prementes. Hoje, ela se apóia em um O pasto, produção primária, constitui o
sistema extensivo que alterna a piscicultura recurso básico. De outro lado, os sistemas
e a cerealicultura no mesmo espaço. Este queijeiros modelam as paisagens, via
tipo especial de afolhamento leva à atividade pastoril, suporte da sua
intervenção de um conjunto de práticas existência. Em outras palavras, os sistemas
técnicas e culturais complexas que queijeiros mantêm paisagens. São
produzem biodiversidade, preservando, numerosos os exemplos: restolhos das
especialmente, numerosas espécies animais montanhas dos Vosges, com o queijo
e vegetais selvagens, incluindo-se plâncton e munster; paisagens de pradarias nos Alpes, os
microrganismos das águas e do solo. As alpages, nos Alpes do norte, com os famosos
modalidades de produção, os aspectos queijos beaufort ou o abondance; paisagens
fundiários, a grande diversidade das de cabanas de pastores no Maciço Central,
com o cantal; pradarias do alto Jura com o como a villard-de-lans, para o bleu de Vercors

Biodiversidade e indicação geográfica


comté, ou as paisagens abertas das Cévennes Sassenage ou a aubrac, para o cantal.
com o pélardon; sem esquecer os prados- Os microrganismos ocupam lugar muito

A C I O N A L
pomares do oeste da França, com os livarot, importante na elaboração dos queijos.
pont l´Évêque ou camembert. Em todos os Grande número deles são usados para a
casos, as práticas estão ligadas a saberes a fermentação natural do leite.Trata-se, nesse

N
R T Í S T I C O
respeito da natureza e do ambiente. Basta caso, de um capital biológico que faz parte
comparar, com o apoio de fotos, a integrante dos elementos do território,
fisionomia das zonas queijeiras em atividade mesmo que não possam ser vistos a olho nu.

A
– que mostram uma paisagem aberta – e Outra abertura para a biodiversidade a partir

E
I S T Ó R I C O
com outras zonas em que a atividade já dos queijos: a cura (affinage), fase essencial
cessou –, paisagens que se fecham, da fabricação. A casca é um verdadeiro
invadidas pela vegetação, que volta a ecossistema microbiano. Bolores, leveduras e

Laurence Bérard e Philippe Marchenay


dominar. Manter as pastagens é um trabalho bactérias coevoluem numa complexidade

A T R I M Ô N I O
permanente e de longo prazo. extrema, com interações e sinergias,
O animal é o intermediário indispensável desencadeadas e controladas pelas práticas
entre o pasto e o produto acabado. As raças dos saberes.

P
D O
locais adquirem cada vez mais importância Enfim, não poderíamos falar de

E V I S T A
nas AOC queijeiras. A raça revela-se uma biodiversidade microbiana sem evocar os
combinação sutil de biologia e de cultura, lugares onde transcorre a cura (affinage),

R
adaptada a necessidades e a condições verdadeiros ecossistemas humanizados, cuja
específicas. Para diversas AOC, a raça ou as temperatura, umidade e outros fatores são
raças encontram-se especificadas no cahier fundamentais para a fermentação e a
des charges. Para outras, está sendo discutida, evolução dos queijos: são as caves, como nos
ou nem sequer se chegou ainda neste terrenos calcários do Aveyron, com suas 89
momento... Nas AOC, encontramos grande fleurines [fendas na rocha] naturais, as caves
diversidade de raças, principalmente d´alpage, grutas naturais onde se faz a cura
bovinas: salers, para o salers; vosgienne, para o de certos queijos locais. (Nota: para a
munster; normanda, para o livarot, o pont caracterização das roças bovinas na França, Pesca de reservatório
em Dombes (Ain).
l´Évêque ou o camembert; simmental francesa, ver o site: Foto: Laurence Bérard
ou brune, para o époisses; tarine ou abondance http://www.inapg.inra.fr/dsa/especes/ e Philippe Marchenay.

para o beaufort e o abondance, tarine e bovins.htm, e para os queijos AOC,


montbéliarde, para o reblochon; montbéliarde ou http://www.cidil.fr/ou o
simmental francesa para o comte, etc. Estas http://www.fromag.com.br/.
raças contam com efetivos mais ou menos
importantes, mas de nenhum modo estão E ainda mais...
ameaçadas de extinção. Porém, em certas
cadeias produtivas, poderá haver Azeitonas quebradas, azeitonas pretas e azeite
reintrodução e reativação de raças locais com do vale de Baux-de-Provence, azeite de Nice,
pequenos efetivos, ameaçadas de extinção, azeite da Haute-Provence, azeite de Aix-en-
Biodiversidade e indicação geográfica Provence, azeitonas pretas e azeite de Nyons A diferença entre estas duas concepções do
mobilizam numerosos cultivares e a lista, progresso, um progresso linear, automático, que
sem dúvida, aumentará em breve, surge mecanicamente da mudança técnica, e um
A C I O N A L

especialmente com os azeites da Córsega. progresso mais complexo, que pode satisfazer-se
Os quatro decretos relativos à lentilha verde com a conservação da memória, com a manutenção
do Puy, AOC desde 1996, à pimenta de usos que atingiram um alto grau de perfeição,
N
R T Í S T I C O

d´Espelette (2000), ao feijão coco e ao feijão conduz ao que é talvez a originalidade mais
de Paimpol (1998) e à cebola doce de Cévennes profunda da appellation d´orgine em face de
(2003) assinalam que os produtores têm a outros direitos de propriedade intelectual 9.
A

possibilidade de utilizar as sementes


E
I S T Ó R I C O

produzidas por eles mesmos. Neste Essa abordagem implica uma convicção
contexto, no que diz respeito às espécies, a da parte dos agricultores. Ela reveste um
moda de seleção é do tipo em massa, e pode caráter formal que leva à proteção jurídica
H

Laurence Bérard e Philippe Marchenay

abster-se da necessidade de um do nome. São os próprios produtores quem


A T R I M Ô N I O

intermediário melhorador. fixam as condições de produção no cahier des


charges validado pelo Institut National des
L e va n d o e m c o n ta a Appellations d’ Origine, com a ulterior
P
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biodiversidade possibilidade de o modificar.Tal


E V I S T A

c u l t u r a l : u m a n o va regulamentação autoriza a reconsideração


maneira de pensar a dos elementos no quadro dos protocolos
R

agricultura estabelecidos. Essa situação possibilita


deixar um espaço de negociação bastante
Ao contrário do que no início se poderia aberto, em particular no que concerne aos
pensar, os agricultores que investem nestas modos de produção.
90 novas abordagens se encontram muitas vezes Cada sindicato de produtores se
na ponta do desenvolvimento. A AOC confronta com as mesmas dificuldades no
permite pensar de modo diferente o quadro da concepção do cahier des charges
desenvolvimento agrícola. Afastando-se dos ou de sua modificação, anotando em
sistemas baseados numa lógica detalhe as diferentes informações sobre a
essencialmente de produção, ela proporciona elaboração do produto. As escolhas diferem
a oportunidade, a quem se dedica a esse tipo de um para outro, de um tipo de produto a
de exploração agrícola, de estabelecer seus outro, remetendo ao lugar que ele ocupa, à
esquemas de produção de acordo com sua dimensão identitária mais ou menos
outros modelos. abrangente ao papel que desejam fazê-lo
Neste quadro, as práticas, os usos locais, desempenhar. Para além da redação de um
as condições naturais particulares são o que regulamento técnico, as negociações entre
permite identificar e manter a produtores – prelúdio ao decreto que
especificidade de um produto. A jurista retomará seu conteúdo –, encontram-se na
Marie-Angèle Hermitte exprime assim este dependência da construção de um acordo
modo de pensar: sobre um bem comum10. A AOC cristaliza
Savóia. Foto:
Laurence Bonnet.
sobre um pasto na
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
Visão de um produto
de boa cepa: rebanho
91

Laurence Bérard e Philippe Marchenay Biodiversidade e indicação geográfica


Biodiversidade e indicação geográfica todas a dificuldades encontradas nas etapas
de identificação daquilo que faz tradição.
Fora as situações desiguais de uma
A C I O N A L

appellation a outra, ou ainda os casos de


inadequação relativamente à abordagem
adotada, e até os abusos, é preciso ressaltar
N
R T Í S T I C O

a originalidade de funcionamento desta


proteção que tem como finalidade definir –
para as proteger – produções que
A

pertencem coletivamente àqueles que


E
I S T Ó R I C O

souberam fazê-las emergir e são seus


depositários. Todos estes problemas se
apresentam atualmente de maneira muito
H

Laurence Bérard e Philippe Marchenay

aguda; devem continuar a ser debatidos


A T R I M Ô N I O

pelos detentores destes saberes queijeiros: camembert de Normandie, pont l´Évêque, livarot,
transmitidos, reinterpretados e modificados neufchatel, bem como a manteiga d’Isigny e o creme de
leite do mesmo nome.
ao longo de gerações, saberes que
P

6 Estes táxons não constituem necessariamente um


D O

constituem uma forma de propriedade material vegetal específico: contudo, a riqueza da


E V I S T A

intelectual coletiva. nomenclatura é um bom índice de biodiversidade


cultural. Além deste aspeto estritamente genético, a
maneira de descrever as variedades, a construção da
R

N o ta s nomenclatura vernácula, a escolha dos conjuntos de


variedades, as representações ligadas à árvore e aos
1 Communauté Economique Européenne, 1992 – frutos são outros tantos pontos de entrada
Règlement (CEE) n.208/92 du Conseil du 14 juillet 1992 interessantes.
relatif à la protection des indications géographiques et des 7 Décret du 20 décembre 2002 portant reconnaissance de
92 appellations d´origine des produits agricoles et des denrées l´Appellation d´origine controlée “Domfront” : Article 5 –
alimentaires. Journal officiel des Communautés Les poiriers de la variété plant de blanc doivent représenter
européennes, n.L, 208/9. au moins 10% des arbres de chaque verger identifié et au
2 Dynamique de la biodiversité et environnement, 1998.O moins 20% à partir de la récolte 2003.Les poiriers sont
programa do mesmo nome, lançado em 1993, é a conduits en haute tige avec une densité de plantation
contribuição francesa ao programa internacional inférieure à 150 poiriers par hectare selon les usages locaux.
Diversitas, que teve origem na conferência do Rio em Journal officiel n.299 du 24 décembre 2002.
1992. Para um enfoque geral, ver Chauvet e Olivier, 8 Lizet, L´herbe violente, 1993.
La biodiversité, enjeu planétaire, 1993. 9 Hermitte, Les appellations d´origine dans la genèse des
3 Caberia um debate sobre modo de nomear – droits de propriété intellectuelle, 2001, p.205.Ver também
dependendo do ângulo de focalização – esta Friedberg, Les droits de propriété intellectuelle et la
diversidade do que é vivo, operado pelas sociedades biodiversité: le point de vue d´une anthropologue,
humanas: agrobiodiversidade, etnobiodiversidade, 1999; bem como os desdobramentos provocados por
sociobiodiversidade, etc. este artigo: Hermitte, Le geste auguste du semeur n´est
4 Ver a este respeito: Dupré, Du marron à la châtaigne plus ce qu´il était, 1999; Friedberg, La question de la
d´Ardèche. La relance d´un produit régional, 2002. pérennité des valeurs liées au vivant, 1999.
5 Produções ligadas à cidra: calvados, calvados pays 10 De Sainte-Marie, Prost, Casablanca, Casalta, La
d´Auge, calvados Domfrontais, pommeau de Normandie, construction sociale de la qualité. Enjeux autour de
cidra Pays d´Auge e poiré Domfront. Produtos leiteiros e l´A.O.C., Brocciu Corse, 1995.
Referências anthropologue. In: Natures Sciences Sociétés, vol. 7 n° 3,

Biodiversidade e indicação geográfica


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HERMITTE, M.-A. Le geste auguste du semeur n’est
plus ce qu’il était. In: Natures Sciences Sociétés, vol. 7 n°
AUGÉ, Marc. Pour une anthropologie des mondes

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contemporains. Paris: Aubier, 1994.
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et la biodiversité : le point de vue d’une
no alto
Mandala grande,
confeccionada com
fios diversos, em
Montes Claros, Minas
Gerais. Artesão: Maria
Aparecida Marinho.

embaixo
Mandala,
confeccionada com
fios diversos, em
Montes Claros, Minas
Gerais. Artesão: Maria
Aparecida Marinho.

no meio
Mandala de flores do
Cerrado, feita de
papel machê, palha
de arroz e alumínio,
em Uberaba, Minas
Gerais. Artesã: Maria
Marques.
Vinicius Lages e Cr istiano Braga
A o r i g e m g e o g r á f i c a c o m o p at r i m ô n i o

A C I O N A L
I M P L I C A Ç Õ E S P A R A P O L Í T I C A S P Ú B L I C A S

N
E D E S E N V O L V I M E N T O D E N E G Ó C I O S

R T Í S T I C O
A
Introdução culturais no Brasil, enquanto elemento

E
I S T Ó R I C O
estratégico para a realização de negócios.
Este texto trata da utilização de Apresenta-se, portanto, como
instrumentos de apropriação de referências problematização de como a geografia física e

H
geográficas, como nomes de lugares, humana de certo lugar pode ser apropriada

A T R I M Ô N I O
toponímias, ícones culturais, iconografias, para fins de acessar o mercado, privatizando
elementos da identidade local e características bens públicos.
de tipicidade de um dado território, como

P
D O
formas de valorização econômica e proteção A g e o g r a f i a c o m o at i v o

E V I S T A
da propriedade intelectual e do modo de e s t r at é g i c o p a r a
fazer, produzir e agregar valor a bens e acessar mercados

R
serviços, no contexto brasileiro.
Trata, essencialmente, da Lei nº 9.279, A globalização econômica tem ampliado e
de 1996, que regulamenta as indicações aprofundado os processos de circulação de
geográficas como ferramentas de símbolos, signos e pessoas, por um lado
patrimonialização privada de ativos amalgamando traços distintivos de culturas, 95

materiais e imateriais relacionados com o por outro tornando esses elementos de


território, o espaço geográfico em que são singularidade objetos de desejo,
produzidos bens e serviços. De passagem revalorizando o local e sua tipicidade.
trata também dos processos envolvendo a Paradoxalmente, local e global se apresentam
produção desses bens e serviços, e de sua não como pólos antitéticos dessa equação,
conservação e sustentabilidade enquanto mas como complementares aos movimentos
práticas culturais que envolvem a e dinâmicas das inserções socioculturais e
transmissão de saberes, de conhecimentos econômicas contemporâneas.
tácitos e explícitos, mas que requerem Como destaca Arantes (2004, p.6),
inovação permanente, pois são articulados às observa-se também a criação de produtos
dinâmicas de mercado e aos interesses voltados para os padrões de consumo e
cambiantes das tendências de consumo. estilos de vida contemporâneos, num sentido
Busca-se analisar as implicações da de inflexão ecológica, cultural e
utilização desses instrumentos como politicamente correta, em setores como o
ferramentas de patrimonialização de bens turismo, o entretenimento, a moda, a
A origem geográfica como patrimônio alimentação, em especial a gastronomia, a legal e as instituições existentes no país para
produção artística e as indústrias criativas. esses fins? De quais nos ressentimos? Há
São cada vez mais valorizados os produtos vazios legais para tratamento do tema?
A C I O N A L

que têm relação explícita com contextos Na linguagem de uso comum, a noção de
socioculturais, ambientais e geográficos – patrimônio é geralmente utilizada para
produtos e serviços que podem enquadrar-se designar a riqueza de uma coletividade.
N
R T Í S T I C O

no que Gilmore e Pine (1999) chamam de Assim, temos o patrimônio cultural e o


produtos da economia da experiência, por patrimônio natural.
associarem experiências de bem-estar físico, Em economia, patrimônio designa o
A

psíquico e espiritual proporcionado por sua conjunto de bens suscetíveis de ter um valor
E
I S T Ó R I C O

fruição. Resulta desse contato direto com as monetário (preço), sendo possuído por um
verdadeiras raízes da vida, essencialmente a agente econômico num dado instante (Capua
natureza, o lugar e a cultura de seu povo e Garnier, 1996).
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

(Arantes, 2004, p.7). É como se a Como trataremos de ativos econômicos


A T R I M Ô N I O

abundância material da afluência avidamente relacionados com o conceito de patrimônio


buscasse o que ainda faz sentido, o que é cultural, precisamos que patrimônio cultural
raro, o que faz a diferença, não mais será entendido aqui como ativo ou bem
P
D O

encontrada no dia-a-dia de consumo comum de uma sociedade, herdado de seus


E V I S T A

opulento das mercadorias sem valor ancestrais, constituído pelo sistema de


simbólico, do supérfluo, do irrefletido. idéias, de conhecimentos, padrões de
R

Nesse sentido, o que Amazônia, Chapada comportamento, artefatos, obras de arte,


do Araripe, Champanhe, Bordéus, Parma, técnicas e outros que os caracterizem ou os
Toscana, Marajó, Seridó,Vale dos Vinhedos, individualizem.Trata-se daquilo que é
Rioja, Côte du Rhône, Porto, Serra da relevante por sucessivas gerações, que tem
96 Canastra,Vale do Napa ou Mendoza têm em permanência e que merece proteção por
comum? Por que produtos e serviços de acordo valorativo e legal.
certas regiões têm maior valorização de Saberes, toponímias, lugares, causos,
mercado? Quais são as formas de estórias, artes e ofícios, memória, história,
apropriação dos elementos distintivos desses símbolos, signos têm-se tornado objeto de
espaços geográficos que se transformaram tombamento, registro, certificação enquanto
em territórios apropriados pelo privado, patrimônio material e imaterial (ou tangível
que terminam valorizando não apenas o que e intangível, como muitos preferem),
ali se produz mas também seu solo, em enquanto bem público, bem comum.
especial quando nos referimos aos A legislação brasileira há muito prevê o
agronegócios e aos produtos da tombamento desses bens enquanto
biodiversidade desses lugares? patrimônio cultural brasileiro. O Instituto
Quais são os elementos dessas estratégias do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
de patrimonialização da geografia física e – Iphan, vinculado ao Ministério da Cultura,
humana na produção de bens e serviços com mas também o Instituto Nacional de
caráter qualitativo distintivo? Qual o marco Propriedade Industrial – Inpi, vinculado ao
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Nações Unidas para a Educação, a Ciência e

A origem geográfica como patrimônio


Comércio Exterior (MDIC), têm a Cultura – Unesco, têm papel fundamental
responsabilidade em alguns campos de nas ações de salvaguarda e revitalização do

A C I O N A L
proteção desse patrimônio. patrimônio cultural através das ações de
O Inpi é o principal órgão de registro de tombamento, assim como na junção de
propriedade intelectual, cabendo-lhe esforços de sensibilização para

N
R T Í S T I C O
atribuições específicas no que diz respeito ao reconhecimento e proteção desse patrimônio
registro de marcas e patentes, mas também cultural em âmbito mundial.
das indicações geográficas, como veremos Em função das crescentes demandas de

A
adiante. No que diz respeito ao patrimônio mercado por bens de informação, ou bens

E
I S T Ó R I C O
cultural, o Iphan, instituição de tradição de culturais (de alto valor cultural), tem
quase setenta anos de existência, tem crescido o interesse de empresas em
atribuições focadas na preservação do privatizar, em promover a

Vinicius Lages e Cristiano Braga


patrimônio cultural. apropriação privada de

A T R I M Ô N I O
Vale ressaltar a grande atenção que vem parte desses bens
recebendo do Iphan e do Ministério da
Cultura tudo o que diz respeito aos chamados

P
D O
bens culturais de natureza imaterial,

E V I S T A
estabelecidos em convenção no considerados
âmbito da Unesco como externalidades à

R
práticas e coletividade (externalidades
são os efeitos que extrapolam o
ambiente interno mas que têm influência
nos resultados esperados).
Nesse sentido, as referências de 97
representações – a localização, fazendo menção a um dado
par de conhecimentos, espaço geográfico, são elementos simbólicos
habilidades, instrumentos, objetos, importantes para valorização de produtos e
artefatos e lugares – reconhecidas por serviços no mercado. Isso se torna ainda Tutor para vaso,
feito de tubo de
comunidades e indivíduos como seu mais verdadeiro quando um dado território papelão, em Montes
patrimônio cultural intangível, consistentes é carregado de simbolismo, ou quando Claros, Minas Gerais.
Artesã: Adriene
com princípios universalmente aceitos de detém patrimônio intangível de alto valor, Tupinambá.
direitos humanos, eqüidade, sustentabilidade como tradições, saberes tradicionais, formas
e respeito mútuo entre comunidades de expressão, celebrações, história, acervo
culturais. Esse conceito cobre as expressões estético e iconográfico, e reputação.
orais, as performances artísticas, as práticas Quanto mais denso de patrimônio material
sociais e rituais e eventos festivos, além do e imaterial for um espaço geográfico, mais
conhecimento e das práticas sobre a natureza. esses elementos podem servir para uma
O Iphan e a Organização das Nações estratégia de valorização do que ali é
Unidas – ONU, através da Organização das produzido para sua inserção no mercado.
A origem geográfica como patrimônio As ondas de desejo de do seu simples valor de uso. Servem para nos
c o n s u m i r o i n ta n g í v e l locomovermos, marcar horas e escrever, mas
valem até mil vezes mais do que seus
A C I O N A L

Muitos criticam a globalização por ter similares pelo fato de serem bens simbólicos
transformado elementos de singularidade e não apenas commodities. Obviamente, são
que caracterizam a diferenciação entre artefatos de extrema qualidade, mas seu
N
R T Í S T I C O

culturas e países, amalgamando-os numa preço não está relacionado unicamente com a
geléia cultural global, numa mesmice capaz sua qualidade objetiva. Consumimos signos,
de ser encontrada em qualquer aeroporto, consumimos o imaterial.
A

shopping center ou rua das principais cidades As significações culturais presentes na


E
I S T Ó R I C O

do mundo. Parte desse sentimento de perda determinação de valor de uso, bem como no
do autêntico, do singular, do que tem raiz, valor de troca das mercadorias são, há muito
do que tem identidade cultural, é uma das tempo, objeto de pesquisa da sociologia e da
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

explicações da crescente busca de elementos antropologia. Chega-se mesmo a tratar de


A T R I M Ô N I O

da cultura, daquilo que é feito à mão, do que uma cultura do consumo, enfatizando que o
tem tipicidade (Sebrae, 2002). mundo das mercadorias e seus princípios de
Muitas práticas sociais contemporâneas estruturação são centrais para a
P
D O

apontam para motivações de consumo que compreensão da sociedade contemporânea.


E V I S T A

estão além da necessidade objetiva. Há Como analisa Featherstone (1995, p. 121),


tempos um relógio não é comprado apenas isso envolve um duplo sentido: em primeiro
R

para marcar horas, um automóvel para nos lugar, na dimensão cultural da economia, a
locomovermos ou uma caneta para escrever. simbolização e o uso de bens materiais como
A escolha desses produtos é também uma comunicadores, não apenas como utilidades;
escolha simbólica, além de sua utilidade em segundo lugar, na economia dos bens
98 objetiva. Assim, um Rolex, uma Ferrari ou culturais, os princípios de mercado – oferta,
uma caneta Mont Blanc têm valor muito além demanda, acumulação de capital,

Cesto médio, feito de capim carneiro, em Santa Rita do Sapucaí,


Minas Gerais. Artesã: Luíza Benedita Balbino Magalhães.

Jogo americano com anel, feito de palha de indaiá e algodão, em


Nova Era, Minas Gerais. Artesãos: Grupo Fogo de Palha.
competição e monopolização – que operam emocionais do consumo, os sonhos e os

A origem geográfica como patrimônio


dentro da esfera dos estilos de vida, bens desejos celebrados no imaginário cultural
culturais e mercadorias. consumista e em locais específicos de

A C I O N A L
Featherstone (1995, p. 131) identifica três consumo que produzem diversos tipos de
perspectivas fundamentais para a cultura de excitação física e prazeres estéticos. Este é
consumo, as quais consideramos pertinentes um campo explorado pela economia da

N
R T Í S T I C O
à problemática apontada neste texto. A experiência (Gilmore e Pine, 1999).
primeira é a concepção de que a cultura de
consumo tem como premissa a expansão da O marco legal das

A
produção capitalista de mercadorias, que deu indicações geográficas

E
I S T Ó R I C O
origem a uma vasta acumulação de cultura no Brasil
material na forma de bens e locais de
compra e consumo; em segundo lugar, há a A legislação brasileira avançou na

Vinicius Lages e Cristiano Braga


concepção estritamente sociológica de que a formulação de instrumentos de proteção da

A T R I M Ô N I O
relação entre a satisfação proporcionada propriedade intelectual, em especial no que
pelos bens e seu acesso socialmente diz respeito às indicações geográficas. As
estruturado é um jogo de soma zero, no qual indicações geográficas são instrumentos

P
D O
a satisfação e o status dependem da exibição públicos de proteção e valoração de

E V I S T A
e da conservação das diferenças em produtos, para além das formas tipicamente
condições de inflação. Neste caso, focaliza- privadas de sua valoração. Associam a um

R
se o fato de que as pessoas usam as local conhecido prestação de determinado
mercadorias de forma a criar vínculos ou a serviço ou a fabricação, produção ou
estabelecer distinções sociais. São os extração de determinado produto.
chamados bens posicionais que distinguem As indicações geográficas são um dos
aqueles que os consomem e os usam; em instrumentos de proteção intelectual no 99
terceiro lugar, há a questão dos prazeres marco legal internacional, previstas nos

Fruteira bateia costurada, feita com papel machê de bagaço de


cana, produzida em Conceição das Alagoas, Minas Gerais.
Artesãos: Garimpo das Artes.

Caixa de folia, feita em madeira e couro na Chapada do Norte,


Minas Gerais. Artesão: João Gualberto Pereira.

Galinha com pintinhos de madeira, produzidos em Januária, Minas


Gerais. Artesão: Lucindo Barbosa.

Cantil feito de cabaça e couro, em Teófilo Otoni, Minas Gerais.


Artesã: Maria do Socorro Alves de Souza.
A origem geográfica como patrimônio acordos de direitos de propriedade Já a denominação de origem refere-se ao
intelectual da Organização Mundial do nome de país, cidade, região ou localidade
Comércio. No Brasil, a matéria está de seu território, que designe produto ou
A C I O N A L

regulamentada pela Lei nº 9.279, de 1996. serviço cujas qualidades ou características se


De acordo com essa lei, as indicações devam exclusiva ou essencialmente ao meio
geográficas são originárias do esforço de geográfico, incluídos fatores naturais e
N
R T Í S T I C O

um grupo de produtores ou de prestadores humanos (art. 178).


de serviços que se organizam para defender Ambos são regulados pela Lei de
seus produtos ou serviços, motivados por Propriedade Industrial (nº 9279/96), sendo
A

um lucro de caráter coletivo. O produto ou o Inpi o responsável por estabelecer


E
I S T Ó R I C O

o serviço com indicação geográfica tem condições de registro (www.inpi.gov.br). As


identidade própria e inconfundível. indicações geográficas abrangem os seguintes
Buscando a perpetuação dessa identidade, artigos da Lei nº 9.279:
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

os produtores têm de respeitar as regras de


A T R I M Ô N I O

Art. 176 – Constituem indicações


produção, o que pode vir a elevar o valor geográficas a indicação de
de mercado. procedência ou a denominação de
origem.
As indicações geográficas podem ser de
P
D O

duas naturezas: as indicações de procedência e Art. 177 – Considera-se indicação de


procedência o nome geográfico de
E V I S T A

as denominações de origem. Assumem, assim, país, cidade, região ou localidade


de seu território, que se tenha
denominações semelhantes ao sistema tornado conhecido como centro de
R

francês que adota indications de provenance e atração, produção ou fabricação de


determinado produto ou de
appellations d’origine. prestação de determinado serviço.
A indicação de procedência refere-se à
Art. 178 – Considera-se
relação que um produto ou serviço tem denominação de origem o nome
geográfico de país, cidade, região
100 com um dado espaço geográfico (região,
ou localidade de seu território, que
território). Refere-se ao nome de um designe produto ou serviços cujas
qualidades ou característica se
país, cidade, região ou localidade de seu devam exclusivamente ou
território, que se tornou conhecido como essencialmente ao meio geográfico,
incluídos fatores naturais e
centro de produção, fabricação ou extração humanos.
de determinado produto ou de prestação
Art. 179 – A proteção estender-se-á
de determinado serviço (art. 177). São os à representação gráfica ou
figurativa da indicação geográfica,
empresários ou produtores que bem como à representação
reivindicam esse elo entre o que produzem geográfica de país, cidade, região
ou localidade de seu território cujo
e um dado lugar, registrando assim aquela nome seja indicação geográfica.
indicação de procedência. Não é
Art. 180 – Quando o nome
necessário, neste caso, que exista geográfico se houver tornado de
vinculação entre o que está sendo uso comum, designando produto ou
serviço, não será considerado
produzido com certa característica ou indicação geográfica.

qualidade atribuída ao lugar de produção, Art. 181 – O nome geográfico que


considerando-se apenas onde é produzido. não constitua indicação de
Castiçal tripé feito de
ferro, produzido em
Três Corações, Minas
Gerais. Artesão: Alberto
Acatio da Silva.

Cesta para pães, feita


de capim carneiro em
Santa Rita do Sapucaí,
Minas Gerais. Artesã:
Luíza Benedita Balbine
Magalhães.

Tapete de linha e
barbante, confeccionado
em Uberaba, Minas
Gerais. Artesãos:
Associação Uberabense
de Artesãos Artistas.
A origem geográfica como patrimônio procedência ou denominação de é produzido. São exemplos típicos dessa
origem poderá servir de elemento
característico de marca para valorização o café do Cerrado, os queijos da
produto ou serviço, desde que não Serra da Canastra, em Minas Gerais, os
induza falsa procedência.
A C I O N A L

bordados da Ilha do Ferro às margens do rio


Art. 182 – O uso da indicação
geográfica é restrito aos produtores
São Francisco, em Alagoas, a cachaça da
e prestadores de serviço região de Salinas, nesse mesmo estado, os
N

estabelecidos no local, exigindo-se,


R T Í S T I C O

ainda, em relação às denominações vinhos do Vale dos Vinhedos no Rio Grande


de origem, o atendimento de do Sul, a carne-de-sol e o queijo coalho da
requisitos de qualidade.
região do Seridó, no Rio Grande do Norte,
A

Parágrafo Único: O Inpi


os calçados de Franca, em São Paulo, mel e
E

estabelecerá as condições de
I S T Ó R I C O

registro das indicações geográficas. derivados da Serra do Araripe, no Ceará,


Piauí e Pernambuco.
As indicações geográficas são uma forma Esses produtos, ainda que hoje venham a
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

de agregar valor e credibilidade a um produto ter reconhecimento também por sua


A T R I M Ô N I O

ou serviço, conferindo-lhe um diferencial em qualidade específica e até por sua tipicidade,


função das características de seu local de são conhecidos por serem dessas regiões que
origem. Uma vez reconhecida e protegida adquiriram reputação no mercado pela
P
D O

junto ao Inpi, a indicação geográfica só qualidade de tais produtos. Não há


E V I S T A

poderá ser utilizada pelos membros daquela necessariamente nenhuma alusão ou


coletividade (associação, empresa, vinculação específica com propriedades
R

cooperativa) que requereu o registro. organolépticas, gustativas, medicinais ou


As indicações geográficas são de extrema outras qualidades intrínsecas ao fato de
importância quando o que é produzido serem produzidas nessas regiões.
numa certa região passa a obter reputação, Do ponto de vista do consumidor, a
102 reconhecimento público para além de suas grande vantagem é que essa certificação
fronteiras, passando a valorizar aquilo que ali assegura que tal produto é oriundo dessa ou

Boneca tradicional de argila, com roupa de fuxico, produzida em Minas


Novas, Minas Gerais. Artesã: Maria Neuzanir Borges dos Santos.

Boneca de tingui, confeccionada em madeira e tingui, produzida em


Montes Claros, Minas Gerais. Artesã: Edjalma Alves Santana.
daquela região, evitando contrafações ou (Chama-se rastreabilidade ao procedimento

A origem geográfica como patrimônio


aproveitamentos de tal reputação de mercado de varredura da qualidade dos produtos ao
para venda de produtos de outras regiões. longo da cadeia produtiva, desde os

A C I O N A L
Já as denominações de origem são mais processos iniciais de produção da matéria-
complexas e exigem maior nível de prima do futuro alimento buscando o
comprometimento com a qualidade daquilo histórico, a localização, a utilização de um

N
R T Í S T I C O
que é produzido, pois se refere à qualidade produto qualquer por meio de identificações
de um produto que possa ser produzido registradas).
apenas naquele local, em virtude de

A
condições especiais ali existentes. Vale dos Vinhedos: o

E
I S T Ó R I C O
Uma das grandes vantagens do uso das primeiro registro de
indicações geográficas é que estas ampliam indicação de
as condições de inserção diferenciada em procedência no Brasil

Vinicius Lages e Cristiano Braga


mercados, facilitando o acesso de produtos e

A T R I M Ô N I O
serviços através de uma marca coletiva e de As indicações geográficas na produção de
renome (reputação) como denominação de vinhos, queijos e embutidos estão
origem. Quanto mais qualidade tiverem os consolidadas em vários países, em especial

P
D O
produtos dessa região e melhor for na Europa. Na produção de vinhos essas

E V I S T A
comunicada aos consumidores, mais denominações avançaram sobremaneira, uma
reconhecimento os produtos terão e, vez que tratam de produtos de alto valor

R
conseqüentemente, mais valoração. Num agregado cuja diferenciação qualitativa é
contexto em que avança a rastreabilidade de parte essencial da estratégia de mercado,
produtos e serviços, é interessante para os associando-a a espaços geográficos precisos
consumidores que eles possam saber onde, (Albagli, 2004).
como, com que ingredientes e modo de Cresce no Brasil o interesse pelas 103
fabricação é produzido o que consomem. indicações geográficas como estratégia de

Toalha de mesa de tecido e linha, feita em Brasília de Minas, Minas


Gerais. Artesãos: Associação das Bordadeiras de Brasília de Minas.

Almofadas feitas de algodão tecido em tear, linha e lã,


confeccionadas em Curvelo, Minas Gerais. Artesãos: Dedo de
Gente Coopacen.
A origem geográfica como patrimônio mercado. O país finalmente acordou de uma municípios: Bento Gonçalves, Garibaldi e
longa fase centrada unicamente nas Monte Belo do Sul. Localiza-se num vale,
commodities agrícolas e passa a buscar agora para o qual foi apropriado o nome
A C I O N A L

nas singularidades de seu vasto território as geográfico Vale dos Vinhedos. Os produtos
diferenças edafoclimáticas e de variedades de protegidos são: vinhos tintos, brancos e
sistemas de produção capazes de trilhar o espumantes, na espécie Indicação de
N
R T Í S T I C O

mesmo caminho de uma agricultura de alta Procedência, sendo titular a Aprovale. Sobe
qualidade e com diferenciação, como é a mais de vinte o número de vinícolas
observado na Espanha, na França e na Itália. associadas à Aprovale que se podem
A

Nesses países, a mesma abordagem utilizada beneficiar deste qualificativo.


E
I S T Ó R I C O

inicialmente para vinhos, queijos e Essa indicação de procedência é restritiva


embutidos hoje está sendo ampliada às em relação às variedades brancas e tintas
frutas, verduras, carnes e azeite de oliva, autorizadas para cultivo, sendo contempladas
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

entre outros produtos. somente aquelas de maior potencial


A T R I M Ô N I O

A primeira indicação geográfica enológico, atestado no local.


reconhecida no Brasil pelo Inpi, em 22 de Foi introduzido um rendimento máximo
novembro de 2002, foi a denominação Vale por unidade de área: pelo menos 85% da uva
P
D O

dos Vinhedos. É uma indicação geográfica da para produzir o vinho deve ser proveniente da
E V I S T A

espécie indicação de procedência (IP), tendo área delimitada. A elaboração, o


como titular a Aprovale Associação dos envelhecimento e o engarrafamento dos
R

Produtores de Vinhos Finos do Vale dos vinhos devem, obrigatoriamente, ocorrer


Vinhedos. Nessa Associação funciona o dentro da área delimitada, objetivando
conselho regulador desta indicação preservar o savoir-faire local e garantir a
geográfica, criado em 2001. genuinidade da produção. Existem controles de
104 A produção de uvas e vinhos na região produção vitícola e enológica suplementares
começou nos primórdios da colonização àqueles exigidos pela legislação brasileira de
italiana na Serra Gaúcha, em fins do século vinhos, sob controle do Ministério da
XIX. Com o passar do tempo, as técnicas Agricultura. Os controles incluem a
de cultivo das videiras se aprimoraram, comprovação da origem da produção de uvas
houve aumento da produção e a região e o acompanhamento enológico feito no local
ficou nacionalmente conhecida pelo vinho pelo conselho regulador.
ali produzido. Portanto, os produtores não podem
Essa reputação também se deve ao fato comercializar os vinhos que desejarem com
de que fazer um bom vinho é um dos indicação de procedência, mas somente
legados deixados à maioria dos descendentes aqueles que, além de serem aprovados em
italianos que moram no Vale dos Vinhedos. todos os controles citados, tenham
Além, evidentemente, das condições de solo igualmente sido aprovados em uma
e de clima. degustação às cegas feita por um grupo de
A área geográfica demarcada da IP é de especialistas que avalia o seu padrão de
81,23km2, abrangendo recortes de três qualidade e tipicidade.
Como analisa Tonietto (2003), a nos processos de produção ou mesmo nos

A origem geográfica como patrimônio


indicação geográfica Vale dos Vinhedos recursos naturais necessários.
incorporou inovações na legislação para Um outro aspecto se refere ao tratamento

A C I O N A L
produção de vinhos no Brasil, que incluem, a ser dado a produtos originários de certas
entre outras: coletividades e depositários de formas
• área geográfica de produção delimitada tradicionais de produção. Neste caso em

N
R T Í S T I C O
• conjunto restritivo de produtos vinícolas particular, a apropriação privada, os direitos
autorizados de propriedade são difusos, e existe um
• limites de produtividade máxima por vazio em termos do marco legal. Para tanto

A
hectare servem as ações de salvaguarda e registro,

E
I S T Ó R I C O
• padrões distintivos para o consumidor, criando mecanismos de proteção a esses
através de normas específicas de rotulagem bens, considerados parte da memória e
• conselho regulador de autocontrole identidade do país.Tais ações têm sido

Vinicius Lages e Cristiano Braga


desenvolvidas pela Unesco, através da

A T R I M Ô N I O
No Brasil existem outras áreas potenciais Convenção para Salvaguarda do Patrimônio
para registro de indicações geográficas, como Imaterial, e pelo Iphan, através do Decreto
a Serra do Sudeste e a Região da Campanha, nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que

P
D O
também no Rio Grande do Sul, e o vale “institui o registro de bens culturais de

E V I S T A
submédio do São Francisco, no Nordeste. natureza imaterial que constituem o
patrimônio cultural brasileiro”: Livros de

R
Q u e s t õ e s p a r a o d e b at e Registro dos Saberes, das Celebrações, das
Formas de Expressão e dos Lugares.
Alguns aspectos devem ser levados em Nesse sentido, um processo interessante
consideração ao se tratar do tema exposto. vem ocorrendo com o acarajé na Bahia,
Uma primeira questão deve levar em conta produto recentemente registrado como 105
que nenhum processo de certificação com patrimônio cultural brasileiro. É inegável a
vistas a reconhecer a qualidade diferenciada vinculação dessa iguaria com a dimensão
e/ou genuína de um bem ou serviço ocorre religiosa afro-descendente, de grande
de forma neutra. O processo para influência naquele estado. A ascensão dos
certificação exige o estabelecimento de um fast foods vendendo esse petisco, assim como
sistema de padronização em que muitas a apropriação por parte de membros de
vezes o padrão formal se sobrepõe ao outras religiões, que o vendem com o nome
genuíno, à tipicidade agregada ao produto, de bolinho de Jesus, estimularam as baianas de
podendo impor uma visão impessoal sobre acarajé a se organizarem para, através do
esse bem. Há que se garantir que os instrumento de registro, protegerem a
processos de certificação ponham em tradição e todo o seu repositório sincrético
evidência a dimensão sociocultural do formado pelo tabuleiro, indumentária,
produto. Além disso, é fundamental modo de preparar e referências religiosas;
estabelecer controles na relação com o assim também foi possível introduzir
mercado para não se provocar uma exaustão práticas seguras de manipulação e uso de
A origem geográfica como patrimônio utensílios diferenciados para seu melhor produtos e/ou técnicas de origem artesanal,
preparo e conservação. principalmente aqueles de cunho não
Há produtos, em certas regiões, que autoral, com direitos de propriedade
A C I O N A L

mesmo antes de organizarem um processo difusos, onde é provável o estabelecimento


voltado para a certificação da qualidade de uma indicação de procedência, sem
diferenciada, já suscitam, por parte do existir, contudo, aparato para denominações
N
R T Í S T I C O

mercado, uma percepção positiva. A falta de de origem, marcas coletivas, etc.


um processo de certificação, ou mesmo de Muito importante seria considerar os
salvaguarda, pode levar à apropriação, por necessários avanços deste marco regulador e
A

parte de outras localidades, dessa verificar as interfaces institucionais entre o


E
I S T Ó R I C O

possibilidade de agregação percebida pelos Inpi, o Iphan e o IBGE (sobre a definição de


mercados. Um caso interessante nesse regiões, sub-regiões, e os novos territórios
sentido diz respeito aos doces de Pelotas, de produção no Brasil), além do Inmetro, do
H

Vinicius Lages e Cristiano Braga

cujo nome é utilizado para a venda desse Ministério de Ciência e Tecnologia, do


A T R I M Ô N I O

produto em lojas especializadas de Porto Ministério do Desenvolvimento, Indústria e


Alegre sem, necessariamente, que ele tenha Comércio Exterior, do Ministério da
sido produzido naquele município. Isso se Agricultura e Pecuária, do Ministério do
P
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repete em relação a uma gama enorme de Desenvolvimento Agrário (pelo


E V I S T A

produtos no Brasil: a farinha e o queijo envolvimento dos saberes tradicionais e da


coalho no Nordeste são casos exemplares. agrodiversidade em uso pela agricultura
R

Sob o ponto de vista do marco legal, familiar) e do Ministério do Meio Ambiente.


existem alguns desafios a serem trabalhados. Por envolver instrumentos de recente
Um deles se refere à necessidade de aplicação no nosso país, é fundamental essa
compatibilizar, de demonstrar que o que articulação entre instituições não só para seu
106 funciona para o Brasil é compatível com as aperfeiçoamento, mas sobretudo para evitar
normas vigentes no cenário internacional, que seu uso seja banalizado, perdendo assim
sob pena de enfrentarmos calorosas batalhas, o valor estratégico de mercado e deixando de
como a que ocorreu recentemente com o ser um elemento de reforço para estratégias
Champagne da França. de valorização e preservação do patrimônio
Na agricultura, é inegável o avanço; material e imaterial de nosso país.
todavia, o campo regulador e de políticas
deve estimular uma certa iniciativa dos Bibliografia
produtores na construção de padrões que
compatibilizem os sinais de mercado com o ALBAGLI, Sarita. Território e Territorialidade. In:
BRAGA, Cristiano Lima; LAGES,Vinicius; MORELLI,
modo de organização, de produção e de
Gustavo (orgs.).Territórios em Movimento: cultura e
relação com esse mercado, fomentando identidade como estratégia de inserção competitiva.
junto àqueles o registro de marcas Brasília: Relume Dumará, 2004.
individuais, coletivas, de certificação e ARANTES, Antônio Augusto. Cultura e Territorialidade
em Políticas Sociais. In: BRAGA, Cristiano Lima;
indicações geográficas. Há um vazio
LAGES,Vinicius; MORELLI, Gustavo (orgs.).
regulador, porém, no que se refere aos Territórios em Movimento: cultura e identidade como
estratégia de inserção competitiva. Brasília: Relume

A origem geográfica como patrimônio


Dumará, 2004. p. 6-7.
CAPUA, Jean. e GARNIER, O. Dictionnaire d’Économie
et de Sciences Sociales, Hatier, Paris, 1996.

A C I O N A L
FEATHERSTONE, Michel. Cultura de Consumo e Pós-
Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p. 121
GILMORE, James. H. e PINE, B. Joseph. The Experience

N
Economy.Work is a theatre & every business is a stage. Havard

R T Í S T I C O
Business School Press. Boston. 1999. 254pp
TONIETTO, Jorge. Uvas viníferas para processamento em
Regiões de Clima Temperado, Embrapa Uva e Vinho,

A
Sistema de Produção nº 4, versão eletrônica, 2003.

E
SEBRAE, Cara Brasileira.A brasilidade nos negócios.

I S T Ó R I C O
Um caminho para o “made in Brazil”. Brasília: Edição
Sebrae, 2002.

Vinicius Lages e Cristiano Braga


Nota: todas as fotos que ilustram este artigo são de Miguel Aun,

A T R I M Ô N I O
acervo do Sebrae Minas Gerais.

P
D O
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R
107

Teatro de fantoches (Sítio


do Pica-Pau Amarelo),
confeccionados em tecido
e madeira, em
Leopoldina, Minas Gerais.
Artesãos: Grupo de
Artesãos Ponto de Fadas.
ignorar esta página
Parte II
Políticas culturais e seus efeitos
Dominique Tilkin Gallois
Os Wajãpi em frente da sua cultura

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111

Em novembro de 2003, a Unesco Orgulhosos com essa visibilidade nacional e


anunciou o resultado da segunda internacional, os líderes que estavam à frente
Proclamação de Obras-Primas do do processo encomendaram às suas esposas e
Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade. filhas a preparação de grande quantidade de
Entre as 28 obras selecionadas, registrava as caxiri e organizaram as festas do prêmio.
Expressões gráficas e orais dos índios Wajãpi, Ocorreram na virada do ano, em cinco
candidatura apresentada pelo Brasil.1 aldeias concomitantemente 2 e nenhum
karaikõ3 foi autorizado a participar. Esse viés
Composição em papel a partir dos padrões javi pire (casco de
reservado nas comemorações do prêmio
jabuti), pana (borboleta) e pira kãgwerã (espinha de peixe), 2000. representou mais uma etapa, entre muitas
Autor: Jawaruwa.
outras, de um longo processo de
página ao lado
Composição em papel, a partir do padrão rykyry (lima de ferro),
experiências dos Wajãpi em face à sua
2000. Autor: Arakura. cultura, que este artigo se propõe a descrever.
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a Os componentes do coisas do passado. Assim, a explicitação da
Dossiê e do Plano de dinâmica subjacente à transmissão cultural
S a lv a g u a r d a que embasa o dossiê wajãpi distancia-se dos
A C I O N A L

argumentos convencionais a respeito da


Várias razões explicam por que os Wajãpi chamada ancestralidade indígena e deixa claro
escolheram os padrões gráficos kusiwar e os que os Wajãpi não estão interessados em
N
R T Í S T I C O

saberes orais associados como mote do eternizar elementos de sua cultura. O


dossiê submetido à Unesco. Para os líderes objetivo é alcançar maior respeito e
mais jovens, a escolha relacionava-se com a compreensão de sua capacidade de integrar
A

dificuldade que vêm encontrando para objetos, técnicas e reflexões aos seus modos
E
I S T Ó R I C O

proteger sua arte gráfica de um uso de perceber e de se posicionar no mundo.


indiscriminado, para fins comerciais ou Sua expectativa é a de poderem executar o
Dominique Tilkin Gallois

publicitários. O que interessava aos mais conjunto de atividades propostas no Plano


H

velhos era afirmar a beleza das pinturas Integrado de Valorização dos Conhecimentos
A T R I M Ô N I O

corporais, para rebater argumentos dos Tradicionais para o Desenvolvimento


jovens, que alegam não as usar para não Socioambiental Sustentável da Comunidade
serem objeto de comentários Wajãpi do Amapá, que deve ser implementado
P
D O

preconceituosos por parte dos karaikõ que pelo Conselho das Aldeias Wajãpi/Apina
E V I S T A

freqüentam suas aldeias; também lhes com apoio de instituições parceiras.4


interessava consolidar o argumento de que A inclusão das formas de expressão
R

de nada adianta escrever se os jovens não são cultural dos Wajãpi no registro de Obras-
capazes de ouvir. Na verdade, as discussões Primas do Patrimônio Imaterial da Unesco
preparatórias evidenciavam que a escolha poderá assim representar uma oportunidade
das expressões gráficas e orais associadas excepcional para expor – se não para
112 adequava-se aos interesses tanto dos jovens resolver – toda uma série de contradições
como dos anciãos, assim como de seus na assistência fornecida a este grupo e a
parceiros, já que esse sistema gráfico outros grupos indígenas na Amazônia. Se,
encerra, de forma exemplar, a dinâmica da por um lado, organizações como a Unesco
transmissão de conhecimentos em que se preocupam em promover o valor das
desenho e narrativa se constituem criações tradições culturais de povos indígenas e se a
sempre inéditas, marcadas não apenas por legislação brasileira há muito tempo vem
um estilo próprio ao grupo – ou seja, assegurando aos índios o devido respeito às
uma tradição – mas pela autoria de quem suas formas de ocupação territorial, suas
as executa. formas de organização social e política, além
Essa capacidade de compor grafismos e do seu direito a uma educação diferenciada,
narrativas de modo sempre renovado ainda é muito problemática a
evidencia claramente a contemporaneidade implementação de medidas efetivas nesse
das culturas indígenas. Pois artes gráficas e sentido. É o que explicaram os Wajãpi, num
artes de narrar são plenamente tradicionais documento que entregaram ao Ministro da
justamente porque não são feitas apenas de Cultura, Gilberto Gil:
Nós queremos que os não-índios conheçam em termos fundiários como nas áreas de

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
nossa cultura para respeitar nossos conhecimentos educação, de saúde e, mais recentemente, no
e nosso modo de vida. Se os não-índios não âmbito das políticas ambientais. Pois é num

A C I O N A L
respeitam nossa cultura, até os nossos próprios ambiente jurídica e administrativamente
jovens podem começar a desvalorizar nossos controlado que se aprende a ser índio, uma
conhecimentos e modos de vida. Por isso, nós identidade que, quando plenamente

N
R T Í S T I C O
queremos apoio para continuar este trabalho com assumida, lhes permite imergir na sociedade
os nossos parceiros, de formação dos Wajãpi e brasileira, entendendo o lugar ambíguo que
também de formação dos não-índios para entender esta lhes reserva.5 Este é o contexto geral no

A
e respeitar os povos indígenas (07.11.03 – in qual jovens e adultos wajãpi vêm discutindo

E
I S T Ó R I C O
Museu ao Vivo, n° 25). intensamente, ao longo das últimas duas
décadas, suas posições ora divergentes, ora

Dominique Tilkin Gallois


Antecedentes: a convergentes. Como todos os grupos

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construção de uma indígenas, foram levados a produzir idéias,

A T R I M Ô N I O
identidade “indígena” projetos, traduções, neologismos,
performances, produtos e objetos, que
No que segue, apresento um breve responderam ao que se esperava deles:

P
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histórico do longo processo que levou os representar-se e explicar que possuem sim

E V I S T A
dirigentes do Apina a submeterem sua uma cultura wajãpi.
proposta à Unesco. Parece-me indispensável No caso em pauta, a apropriação dessa

R
pontuar a trajetória percorrida, pois, se condição de índio derivou diretamente de
registros promovem novas dinâmicas uma transformação radical no seu padrão de
culturais, a própria iniciativa da candidatura territorialidade, com a redução de seu
apresentada pelos Wajãpi já era o resultado território numa terra delimitada e depois
de políticas públicas; no caso, de sua demarcada. Uma terra, porém, indígena. Foi 113
aproximação à política indigenista brasileira. neste movimento, no decorrer dos anos 80
Tratar de trajetórias como essa, em do século passado, que os membros dos
qualquer parte das Américas, impõe-nos diferentes grupos locais dispersos se
considerar os modos particulares como, assumiram como Wajãpi, enunciando esse
historicamente, cada grupo construiu uma etnônimo em ocasiões que requeriam o uso
concepção própria de sua indianidade e de uma unidade social e política, antes
como, a partir de percepções variáveis, vem raramente utilizada e que continua não
formulando enunciados étnicos que fazendo muito sentido no âmbito de suas
dependem do contexto de suas relações com relações interpessoais ou intercomunitárias.
as sociedades nacionais. No caso das Wajãpi, na verdade, é uma referência à língua
populações indígenas brasileiras, é compartilhada por esses diferentes grupos,
fundamental considerar que essas formas de dispersos historicamente numa vasta região
indianidade são produtos da apreensão na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.
gradativa e variável dos direitos especiais Para seus falantes, o uso de variantes de uma
que, aqui, o Estado confere aos índios, tanto mesma língua nunca foi sinônimo de
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
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Dominique Tilkin Gallois


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qualquer unidade social, ou de algum justamente em função do valor cultural


consenso político, servindo, ao contrário, ao atribuído à diferença. Mas, para se
jogo de contraposições entre subgrupos que representar, especialmente diante da lógica
114 podiam, como podem até hoje, enunciar suas dos projetos, é preciso apagar divergências.
diferenças internas e suas dissensões.6 Esse, é com certeza, um dos aprendizados
No entanto, para atender à necessidade de mais difíceis nas condutas que a condição de
diálogo com os karaikõ, surgiram formulações “índio” exige. A idéia de unidade é
que se apóiam em aspectos relativamente demasiadamente contraditória para um povo
homogêneos – e necessariamente imprecisos que se pensa a partir das trajetórias
–, selecionando alguns elementos independentes de seus grupos locais e facções
compartilhados. Por exemplo, diz-se jane yvy, políticas.Veremos que se na primeira etapa
nossa terra, como se diz jane reko, nosso de produção de uma identidade wajãpi eles
modo de ser. É também nesse contexto que procuravam obliterar diferenças, na atual
foi criado o Conselho Apina, que pretende etapa essas diferenças voltam a ser
agregar todas as aldeias wajãpi. São explicitadas, justamente porque as lideranças
enunciados utilizados no palco dos karaikõ, mais jovens compreenderam que a cultura
quando os Wajãpi se esmeram em construir wajãpi pode ser valorizada como um
uma noção de consenso que, no cotidiano de instrumento de representação que permite
suas relações, é impossível de ser sustentada, enunciar diferenças, pontos de vista,
pequenas e grandes variações de nomes, de variados enunciados sobre cultura,

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
cantos, de formulas, de técnicas e de produzidos em diferentes etapas dessa
experiências históricas. Este é o contexto em trajetória; especialmente as reflexões

A C I O N A L
que noções de diferenciado e de cultura elaboradas por dez professores bilíngües que
apresentam real interesse para os Wajãpi. iniciaram sua formação em 1992, a respeito
Para eles, as diferenças que valem a pena, na do que consideraram, em diferentes

N
R T Í S T I C O
comunicação que a identidade lingüística momentos, elementos diferenciais de sua
permite, não se relacionam com um acervo cultura. Eles revelam uma série de
comum de traços culturais, mas, ao contrário, transformações nas relações entre gerações e

A
com a possibilidade de enunciação de sua entre grupos locais, como também entre

E
I S T Ó R I C O
diversidade interna. E é nesse sentido que a grupos ameríndios da mesma região.
aplicação particular que fazem hoje dessas Incluem ainda as avaliações que fizeram das

Dominique Tilkin Gallois


noções acaba invertendo o escopo da noção

H
de diferença cultural utilizada pelos agentes

A T R I M Ô N I O
convencionais da política indigenista. Se para
a maioria desses agentes o que é diferenciado
pressupõe um aglomerado étnico –

P
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supostamente indiferenciado –, para os

E V I S T A
Wajãpi as diferenças valorizadas são aquelas
que marcam distâncias entre seus subgrupos,

R
enfatizando variações nos acervos de
conhecimentos, ou afirmando autonomia nas
alianças políticas que cada subgrupo
estabelecer com não-índios, etc.
115

S u c e s s i va s e l a b o r a ç õ e s
de uma noção wajãpi de Pintura corporal nas

“cultura” costas, compondo padrões


variados, entre eles paku
ruwai (rabo de peixe
pacu), Aldeia Mariry, 1990.
A descrição que segue se situa no plano
Foto: Dominique Tilkin
pragmático, embasada no acompanhamento Gallois.

continuado que pude realizar, ao longo de página ao lado


A esposa do chefe
duas décadas, das sucessivas etapas de
Seremete aplica a base de
reflexão e discussão, com os Wajãpi, de urucum antes de compor
padrões kusiwa para a
questões de cultura e política. Para
pintura com jenipapo,
documentar esse processo de relações aldeia Kurumuripopy,
2004. Foto: Dominique
ampliadas, que engaja não apenas o coletivo
Tilkin Gallois.
que os Wajãpi vêm construindo para se
identificar diante dos karaikõ, mas também
novas formas de relações entre eles, registrei
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a transformações em curso em seu modo de Sentindo vergonha de
vida e soluções que propuseram, em d i a lo g a r c o m o s v e l h o s
diferentes momentos, para fortalecer a
A C I O N A L

cultura wajãpi. Aqui, para dar conta da No início dos anos 90, os jovens que se
progressiva tomada de consciência das tornaram hoje professores bilíngües e
particularidades lingüísticas, sociológicas e coordenadores do Apina foram os principais
N
R T Í S T I C O

políticas que embasam a especificidade do responsáveis pela produção de imagens do


que consideram hoje sua cultura, escolhi três coletivo wajãpi. Ao assimilarem aspectos dos
constatações dos professores bilíngües, que direitos especiais garantidos pela legislação
A

ilustram sucessivas etapas desse processo: brasileira, entenderam que a diferença


E
I S T Ó R I C O

cultural poderia ser desempenhada,


• sentimos vergonha de não saber responder (dar projetada para fora. Apesar da dificuldade
Dominique Tilkin Gallois

a réplica adequada) aos velhos, não saber mais o em vivenciar uma unidade, eles exercitavam
H

jeito certo de falar sua posição de intermediários com certa


A T R I M Ô N I O

• vamos aprender as coisas dos brancos na escola, neutralidade, apagando tensões nas relações
temos dois caminhos, o dos Wajãpi e o dos brancos entre diferentes comunidades locais. Esse
• queremos aprender a dizer os sentimentos, do exercício, como se mencionou acima, teve
P
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jeito dos velhos por objetos a luta pela demarcação de uma


E V I S T A

terra wajãpi, a construção de um conselho


O último enunciado corresponde à etapa reunindo o conjunto das aldeias e a
R

atual, em que os professores já conseguem comercialização de um artesanato wajãpi.


traduzir para as crianças e para os velhos Aprendendo a se distinguir entre tantos
tudo o que aprendem com os brancos, ao outros índios, e entendendo que o mundo se
mesmo tempo em que procuram divide em brasileiros, franceses, iraquianos,
116 reconectar-se com sua tradição e aprendem americanos, os jovens passaram a utilizar
a dominar formas de dizer e etiquetas que classificadores étnicos, nunca usados pelos
consideram específicas ao wajãpi reko, seu adultos, para quem a distinção entre não-
modo de ser. Essa conjugação exemplifica o índios não faz muito sentido, inclusive
que eles chamam “dois caminhos para o porque tampouco faz sentido a diferença
futuro dos Wajãpi”. Essa etapa mais recente entre aparai, yanomami ou kaiapó.
foi, sem dúvida, a mais interessante para o Identificações como essas são, de fato, muito
acompanhamento antropológico. Ela mais restritas que as categorias manejadas
permitiu compartilhar com eles o interesse pelos mais velhos, que estabelecem
pela complexidade das formas discursivas e contrapontos sutis, sempre vinculados à
modos de transmissão de pontos de vista, vivência histórica e a cálculos de distância
que alguns desses professores bilíngües social.7 Era perceptível como, quando se
decidiram redescobrir, agora enquanto falava de outros povos, de encontros ou
pesquisadores e não mais como incompetentes reuniões indígenas, aumentavam as
enunciadores nativos, como se sentiam dificuldades de interlocução e
numa fase anterior. compartilhamento de reflexões entre
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
A C I O N A L
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Dominique Tilkin Gallois


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gerações. Foi também nesse contexto que os até hoje atitudes desrespeitosas dos jovens, os
professores bilíngües afirmavam sentir quais – dizem eles – “passam por nós sem
vergonha de não conseguirem dar a réplica parar, sem dialogar, sem escutar”. Queixas
aos velhos no tom adequado, nem sustentar que incidem também sobre o desinteresse 117
um diálogo cerimonial; percebiam que os deles pelo repertório musical tradicional e
mais velhos manejavam um repertório sua fascinação pela música brega. Aqui Kaitona, presidente do

lingüístico refinado e um conjunto complexo também o desencontro é explicado pelo Apina, aprecia o trabalho
de jovens formandos em
de categorias de alteridade que eles, jovens, embaraço ressentido de não poderem atividades de pesquisa e

já não reconheciam 8.Tampouco se sentiam assumir o papel de cantador ou dono de uma sistematização do
conhecimento wajãpi.
habilitados às etiquetas de recepção de festa (moraita jarã), por não conseguirem Escola Aramirã, 2005.

visitantes, quando anfitriões e convidados levar o canto além das letras iniciais de ciclos Foto: Dominique Tilkin
Gallois.
emitem e avaliam – ou seja, atualizam – suas com trinta a trinta e cinco estrofes.
respectivas opiniões a respeito das tensões, Foi nesse ambiente relativamente tenso
alianças e eventos que afetam a rede de que a expectativa de prestígio que se
relações entre grupos familiares. Diálogos, poderia adquirir na escola foi crescendo. No
enfim, que produzem novas dissensões ou início dos anos 90, a escola era entendida
novas aproximações. Essa vergonha era como o lugar onde se poderia captar saberes
ressentida como fuga e amplamente criticada karaikõ. Expectativa, aliás, defendida por
pelos mais velhos, que continuam lamentando muitos chefes que desejavam ver seus filhos
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a ocuparem as posições até então controladas valorização cultural no âmbito das próprias
pelos não-índios, como professores, agentes aldeias não encontrava foco de aplicação.
de saúde, motoristas, etc. Por esse motivo, Reinava uma total tranqüilidade quanto ao
A C I O N A L

até 1998, tanto os chefes do Apina como os futuro e um certo desdém pela preocupação
professores em formação recusavam o uso dos antropólogos e educadores que
da língua materna na escola.9 O que se procuravam problematizar o desinteresse dos
N
R T Í S T I C O

esperava dessa nova instituição era a jovens pelas formas tradicionais de arte
possibilidade de dominar a escrita e a verbal, pintura corporal, ciclos rituais, etc.
matemática para se ter acesso a posições e a Para os jovens que freqüentavam a escola e
A

salários reservados aos não-índios. Até hoje, estavam cada vez mais interessados em
E
I S T Ó R I C O

muitos pais querem enviar os filhos a escolas ampliar sua experiência do karaikõ reko, o
da cidade para que aprendam a falar modo de ser dos não-índios era como se o
Dominique Tilkin Gallois

corretamente o português, a lidar com acesso ao conhecimento tradicional estivesse


H

dinheiro e contas de banco, enfim, a garantido pela própria existência de aldeias,


A T R I M Ô N I O

dominar técnicas que podem resultar em de uma terra demarcada ad infinitum.


contratação ou serviços remunerados por
agências governamentais. Por este motivo, Experimentos de
P
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alguns chefes de família continuam tradução cultural


E V I S T A

perplexos diante do tratamento da cultura


wajãpi na escola, questionando seu interesse Na medida em que se adensavam
R

para o futuro. reflexões propiciadas pelo cursos de


Nesse quadro, a transposição que faziam formação,11 os professores constatavam a
da idéia de cultura foi aplicada ao artesanato complexidade dos exercícios de tradução
wajãpi, ou seja, à adequação de alguns itens de cultural que estavam empreendendo.
118 sua cultura material para venda: miniaturas Assumindo inicialmente essa tarefa com
de arcos e flechas, miniaturas de cerâmica e entusiasmo, passaram a discutir abertamente
de cestos, criação de colares, de brincos, etc. – ao invés de ocultá-los – os problemas
A venda de itens da cultura continua advindos da clivagem entre gerações, no que
valorizada na medida em que reverte para a toca à interpretação das coisas e saberes dos
aquisição de armas de fogo, munição, pano, brancos. Ressentiam com angústia o quanto
panelas, etc.10 Também foram assumidos sua compreensão da situação interétnica
como a cultura wajãpi os simulacros de festas estava divergindo do entendimento e da
executadas em eventos públicos na cidade, a prática dos mais velhos. Merecem ser citados
pedido dos karaikõ e em troca de apoios alguns momentos das discussões em torno
locais. Fortalecia-se a idéia de que mostrar a da tradução de tópicos de historia indígena
cultura viabiliza apoios variados. Encontraram que apontam para as imensas dificuldades a
relativo sucesso, na medida em que a lógica que estão submetidos os jovens wajãpi, no
da maior parte dos financiamentos destinados âmbito de sua capacitação como professores
aos povos indígenas requer esse tipo de ou diretores de organizações indígenas.
visibilidade. Assim, nesta fase, a idéia de Assim, a tentativa de se produzir um texto
em língua wajãpi a respeito da chegada dos mesmo tempo, fica patente que a escrita de

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
portugueses, para explicar as comemorações um relato como esse – ou qualquer
dos 500 anos, foi elucidativa. Como traduzir comentário sobre encontros e experiências

A C I O N A L
portugueses, que não são exatamente os da colonização, por professores indígenas
ancestrais dos brasileiros e, portanto, não são sentados a uma mesa de escola – só pode
simplesmente karaikõ ? Como explicar quem resultar em dificuldades na medida em que,

N
R T Í S T I C O
eram os índios que viviam no litoral, como na prática interpretativa desse povo, a
os Tupinambá? As categorias disponíveis na escolha de uma ou outra categoria de
língua para se referir a grupos com os quais alteridade depende do contexto em que um

A
os Wajãpi querem marcar algum tipo de relato é enunciado. Na exegese oral de um

E
I S T Ó R I C O
distância, num gradiente que vai de aliados, evento relativo a conflitos passados não se
parceiros comerciais a categorias de inimigo: usam categorias fixas para identificar pessoas

Dominique Tilkin Gallois


janeanã, panary, apãgwerã, mojutapurukwerã. ou grupos, uma vez que sua qualificação

H
Mas nenhum desses termos foi julgado dependerá do ponto de vista, do tipo de

A T R I M Ô N I O
adequado, inicialmente, pois os tradutores relações que se está comentando, etc. Se
consideraram que se tratando de índios do uma das metas, porém, era escrever textos
passado, seriam então equivalentes aos seus para uso escolar, seria necessário escolher e

P
D O
próprios ancestrais, taimigwerã. No curso fixar uma única tradução, que permitiria

E V I S T A
seguinte, essa tradução foi também repassar uma interpretação semelhante aos
descartada.Voltaram às tentativas anteriores, alunos de diferentes aldeias. As experiências

R
intermediadas por conversas com os mais de escolha de termos para identificar
velhos que assistiam aos cursos. Estes, grupos, tipos de relações e mesmo objetos
quando entenderam que os Tupinambá costumam trazer grandes frustrações aos
praticavam canibalismo, julgaram que se professores bilíngües. Alguns preferem
tratava, então, de apãgwerã, ex-inimigos; mas desistir e continuam usando palavras da 119
os jovens, que queriam ao contrário língua portuguesa, mesmo se lamentando de
evidenciar que os povos extintos tinham, que os velhos não irão entender nada.
como os Wajãpi de hoje, sofrido os impactos Vejamos outro exemplo. Data de 1998 a
da ocupação de suas terras pelos karaikõ, primeira tentativa de tradução de um texto
preferiam janeanãkõ, aliados. Como tantos contendo terminologia jurídica, no caso, o
outros, esse debate não resultava em Estatuto do Conselho das Aldeias.12 A duras
nenhuma decisão. Os professores preferiram penas, o então presidente do Apina
concluir seus textos cada um do seu jeito, conseguiu transpor os artigos do estatuto,
afirmando que seria impossível decidir. Para mas deixou em português todos os termos
quem assiste a esses esforços de tradução que remetem a conceitos que não existem na
voltada para a escrita de textos ou para língua nem na prática histórica do grupo
explicações do saber dos brancos em língua (estatuto, assembléia, ata, maioria, registro,
wajãpi, fica claro que, para se chegar a um etc.). Quando tentaram usar esse material,
consenso, serão necessários muitos anos de constataram que sem a transposição desses
experimentos, acertos e desacertos. Ao conceitos o restante da tradução não seria de
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a instâncias como as posições de
representantes governamentais, o que
dificulta imensamente seu entendimento das
A C I O N A L

hierarquias e especificidades de cada setor.


Segundo os jovens, se os velhos continuarem
a se reportar a qualquer autoridade como
N
R T Í S T I C O

jovijã – sábio, ancião e chefe de aldeia – não


irão entender nunca as responsabilidades
diferenciadas de autoridades em diversos
A

escalões nos governos municipais, estaduais e


E
I S T Ó R I C O

federal. Se, além disso, jovijã é também o


termo utilizado para qualquer responsável por
Dominique Tilkin Gallois

uma equipe técnica (o chefe dos auxiliares de


H

enfermagem, ou dos professores, etc.),


A T R I M Ô N I O

restam poucas alternativas para explicar o


que é representação governamental e o que
é responsabilidade na coordenação de
P
D O

alguma atividade. Esse desafio animava os


E V I S T A

professores a proporem traduções para


nenhuma ajuda para as discussões que ajudar os mais velhos. Ao mesmo tempo,
R

queriam realizar com os mais velhos a para fixar usos comuns, faziam textos que
respeito de eventuais mudanças no estatuto. experimentavam nas escolas. Dois anos se
Em 1999, esses mesmos professores tinham passaram até concluírem que não
elaborado um conjunto de textos sobre a conseguiam usar os termos escolhidos para
120 demarcação de sua terra. Um ano depois, dialogar com os anciãos, pois os termos não
retomaram os textos para elaborar um eram nem wajãpi nem português. Precisaram
Os jovens pesquisadores material de ensino e empreenderam uma recorrer aos velhos, mais uma vez, para
entrevistam Nazaré, uma
revisão das traduções do pensamento do branco. discutir a viabilidade das traduções.
das especialistas nos
conhecimentos conexos ao Queriam, juntos, escolher neologismos que Reescreveram novos textos, que agora estão
sistema gráfico kusiwa,
pudessem usar para mediar as reuniões sendo usados num livrinho com relativo
aldeia Kwapo´ywyry, 2005.
Foto: Dominique Tilkin envolvendo chefes monolíngües e sucesso. Entre o primeiro texto e a
Gallois.
autoridades. Animaram-se com a conclusão desse experimento haviam
Professores bilíngües da
possibilidade de passar para sua língua transcorrido mais de dois anos.
turma I de magistério
wajãpi discutem e expressões como decreto, governo, federal, Vale a pena nos determos nestes
corrigem textos para a
estadual, etc. Foi árduo, mas construíram exemplos, pois o que me parece essencial
elaboração de um livro de
leitura. Escola Aramirã, diversas alternativas para diferenciar suas recomendar como procedimento de
2005. Foto: Dominique
próprias noções de chefia das formas de valorização cultural é a implementação de
Tilkin Gallois.
representação e governo do Estado situações em que vários setores e gerações
brasileiro. De fato, os mais velhos continuam de uma comunidade possam observar sua
usando termos wajãpi para designar tanto as situação de contato com o distanciamento
indispensável à percepção das O último exemplo dessa série, que

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
transformações culturais e, sobretudo, à também teve impacto significativo, foi um
compreensão da situação do grupo num exercício de matemática aplicada ao censo

A C I O N A L
mundo de relações ampliadas. Na fase que demográfico – estavam aprendendo a
comento aqui, os professores wajãpi calcular porcentagens –, que permitiu
realizaram um trabalho muito produtivo e debater as profundas mudanças nas

NR T Í S T I C O
com significativo impacto. Nos cursos, condições de transmissão de conhecimento.
encontraram múltiplos instrumentos para Verificaram que as pessoas chamadas de
essa reflexão crítica, ou para propiciar jovijãkõ – homens e mulheres na faixa de 45

A
avaliações que nunca seriam realizadas em a 75 anos, que sabem, ou seja, que sabem

E
I S T Ó R I C O
outro contexto. dizer a tradição – somavam apenas 7% da
população. Um argumento novo surgiu no

Dominique Tilkin Gallois


debate acerca da escola, de projetos, etc.:

H
“Os velhos estão acabando!”. Reaparecia,

A T R I M Ô N I O
assim, a necessidade de um novo tipo de
aproximação entre as gerações, para aprender
com os velhos, argumento que passou a ser

PD O
reiterado cada vez mais freqüentemente.

E V I S T A
Parece-me, portanto, que é no âmbito da
transmissão – muito mais do que na

R
performance cultural – que tal conscientização
seja possível. E, no caso em pauta, como em
muitos outros, essa reflexão sobre as
condições e alteração das formas de
transmissão envolve principalmente a 121
instituição escolar.
Jovem participante dos

Aprender a se ver no cursos de formação de


pesquisadores executa
olhar dos brancos composição de padrões
kusiwa em folha de papel.
Aldeia Kwapo´ywyry, 2004.
Outros contextos, no entanto, Foto: Giuliana Henriques.

contribuíram para adensar esse processo. Aluno do curso de


formação (Magistério II)
Desde 1998, procuramos incrementar a
estuda em sua casa.
participação dos Wajãpi na produção de Aldeia Kwapo´y wyry,
2004. Foto: Dominique
documentários em vídeo, de exposições e
Tilkin Gallois.
de livros de difusão que apresentassem
aspectos de sua cultura a diversificados
públicos não-indígenas.13 Na experiência de
capacitação de alguns deles para que
assumissem efetivamente o registro e edição
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a de vídeos, a composição de livros, a
disposição de objetos em exposições, etc.,
os ganhos mais significativos foram o
A C I O N A L

aprendizado da seleção de argumentos, de


imagens e de modos de identificação
destinados aos não-índios. Aliás, aprender a
N
R T Í S T I C O

produzir explicitamente argumentos para


fora é o que mais interessa aos Wajãpi. Pois
entre os jovens engajados na produção de
A

registros destinados às aldeias, continuavam


E
I S T Ó R I C O

pairando dúvidas: “Por que escrever o que já


sei?”, “Por que filmar para minha aldeia”?
Dominique Tilkin Gallois

Logo descobriram que dominar as técnicas


H

novas (montar tabelas, filmar, desenhar no


A T R I M Ô N I O

papel, escrever no computador, etc.) não


era o mais importante nem o mais difícil.
Aprender a editar usando linguagens
P
D O

apropriadas à comunicação com os não-


E V I S T A

índios era o desafio.14 Selecionar de forma


neutra entre centenas de desenhos e
R

composições gráficas, garantindo, por


exemplo, que todas as aldeias estejam
representadas numa mostra desses
desenhos, é penoso já que a tendência seria
122 escolher os desenhos do próprio grupo
familiar. Esses exemplos, entre tantos
outros, mostram que atender à demanda dos
brancos a respeito da representatividade de
uma expressão cultural é um processo de
extrema complexidade. Sérios
constrangimentos continuam ocorrendo
quando os jovens diretores do Apina devem
escolher peças de artesanato aplicando
critérios neutros de qualidade: como podem
Padrão suruvi kãgwerã (espinha de peixe surubim) realizado por
recusar uma peça produzida por um sogro,
Januari amyrã, Aldeia Mariry, 1993. pai ou avô, afirmando que ela foi descartada
Composição em papel, a partir dos padrões pira kãgwerã, panã, porque é mal feita? Na produção de textos,
rykyry e elementos da bandeira nacional, 1998. Foto: Makarato.
generalizar a idéia de uma cultura wajãpi,
página seguinte
Composição em papel, a partir dos padrões pira kãgwerã
passando por cima das variantes locais, é um
(espinha de peixe) e pana (borboleta), 2000. Obra de Waivisi. exercício politicamente complexo,
R E V I S T A D O P A T R I M Ô N I O H I S T Ó R I C O E A R T Í S T I C O N A C I O N A L
123

Dominique Tilkin Gallois O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a


O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a especialmente se querem respeitar a ética de mesmo tempo, os professores bilíngües
um povo em que ninguém pode falar pelos compreenderam que se representar diante
outros e no qual, como afirmava um dos dos karaikõ não seria suficiente.
A C I O N A L

diretores do Apina, “não tem coletivo, só na


família”! Eles entendem, porém, que para os Aprender a enunciar
karaikõ os argumentos devem ser opostos. sentimentos: os
N

desafios de um
R T Í S T I C O

Alguns foram bem sucedidos, como no Livro


do artesanato Wajãpi, onde se encontra a i n v e n t á r i o p a r t i c i p at i v o
afirmação “Wajãpi não é pobre!” (1999: 10),
A

argumento que resultou do entendimento Os jovens wajãpi estão, agora, descobrindo


E
I S T Ó R I C O

do discurso dos brancos a respeito do o tesouro vivo (15) que seus pais, sogros e avós
primitivismo dos índios. Reagir aos – os velhos, jovijãkõ – representam. E é com
Dominique Tilkin Gallois

preconceitos vigentes certamente foi um esse espírito que empreenderam, a partir de


H

passo essencial no processo aqui descrito. 2002, uma nova etapa de experimentos na
A T R I M Ô N I O

Resumindo: sem um longo investimento representação de sua cultura.Trata-se de


em atividades que incluam procedimentos implementar, através de pesquisas por eles
reflexivos, os membros de um grupo realizadas, um inventário de práticas e
P
D O

indígena como os Wajãpi não poderiam conhecimentos transmitidos oralmente. Os


E V I S T A

assumir a edição de documentários, formatos desse inventário ainda estão em


exposições ou livros, nem se mobilizariam discussão 16 e trazem delicados
R

para realizar um inventário de cantos, equacionamentos da oralidade com a escrita.


narrativas ou técnicas tradicionais. O Como gerir formas de expressão cuja
interesse que demonstram hoje por essas natureza não é, evidentemente, destinada
atividades resultou do incentivo que nem à representação étnica nem à
124 conjugou a produção de registros nas aldeias patrimonialização?
com a possibilidade de perceberem seu A proposta de inventário participativo que
impacto na cidade. Assim, a exposição integra o Plano selecionado pela Unesco não
etnográfica montada no Museu do Índio em visa apenas a atender demandas de visibilidade
2002 possibilitou aos Wajãpi que nem necessariamente corresponderá aos
participaram de sua realização constatar, com procedimentos habitualmente indicados por
orgulho, a admiração do público. Perderam políticas na área da cultura, especialmente
um pouco a vergonha que costumam sentir preocupadas com a difusão nacional de
quando são indagados sobre práticas como aspectos da cultura brasileira. A discussão do
resguardos femininos, curas xamanísticas, inventário a ser realizado pelos Wajãpi
formas de casamento entre primos, etc. considerou, necessariamente, um dos
Entenderam que o interesse dos visitantes questionamentos mais freqüentes a essas
estava justamente no detalhamento desses políticas: patrimônio de quem e para quem?
aspectos de sua cultura. Ou seja, Uma das respostas os jovens Wajãpi já
compreenderam que, para valorizar uma experimentaram, quando incentivaram a
cultura, é preciso enunciá-la. Mas, ao produção de artesanato, de festas e de
discursos para consumo dos karaikõ. Ao lado • Meu pai não gostou quando soube que os jovens

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
disso, a preocupação dos mais velhos, como estavam anotando músicas no caderno, porque diz
se viu, está menos no registro (seja ele escrito que vão ficar olhando no caderno, quando têm que

A C I O N A L
ou visual) que na continuidade de uma ética e saber na cabeça (Moropi).
estética do wajãpi reko, um modo de ser. • Se nós professores só escrevermos nos livros, eles
Nesse sentido, os mais velhos têm perseguido (os alunos) vão ficar dependentes dos livros, não

N
R T Í S T I C O
sua própria meta, reiterando seu interesse em vão se interessar em conversar com seus pais e seus
transmitir às jovens gerações modos de avós, vão dizer:“Já tem nos livros, então não preciso
enunciar conhecimentos, pontos de vista, pedir ao meu pai para contar as histórias (Seki).

A
experiências e trajetórias, sejam deles

E
I S T Ó R I C O
mesmos ou de outros. E é este desafio que os A proposta do inventário a ser realizado a
professores bilíngües aceitaram quando partir da capacitação de pesquisadores

Dominique Tilkin Gallois


afirmaram que desejam aprender os modos Wajãpi não se limita, portanto, ao simples

H
de expressar sentimentos. registro de narrativas míticas, de letras de

A T R I M Ô N I O
Mas, qual será, então, o conteúdo desse cantos, etc. O que está em jogo é um duplo
inventário? Como registrar formas de movimento, anunciado nos experimentos
expressão tão fluidas e efêmeras? Quais descritos ao longo desse artigo: de um lado,

P
D O
objetos de conhecimento serão registrados? aprender a identificar e selecionar elementos

E V I S T A
Especialistas no estudo da mitologia e das de um corpus de conhecimentos orais, para
formas de transmissão oral trazem então transpor parte deles em suportes

R
consolidada contribuição a respeito dos variados, para uso escolar ou de difusão
riscos envolvidos em processos como esse. cultural; do outro, aproximar gerações
O que acontece quando relatos orais são através da valorização e execução local de
transcritos, resumidos, presos em textos? formas de enunciação consideradas belas,
Como lembra Detienne, corre-se um sério corretas e, portanto, valiosas. Esse segundo 125
risco de os seus enunciadores não objetivo, se alcançado, será sem dúvida o
reconhecerem mais as palavras fixadas pela ganho mais importante de todo esse
escrita e, inclusive, recusá-las. Outro desafio processo. Até o momento, constitui o lócus
reside na própria transcrição e difusão de de um efetivo, embora frágil, consenso entre
narrativas, quando passam da enunciação professores bilíngües e chefes tradicionais.
local à visibilidade geral (1994:8-9). No que diz respeito ao primeiro conjunto
É interessante verificar que os professores de tarefas, um passo significativo foi dado em
wajãpi chegaram a conclusões semelhantes17: 2003, quando os professores bilíngües se
mobilizaram para a construção de um
• Tem que registrar muita coisa, porque não pode currículo para as etapas do ensino
ter só uma versão, tem que respeitar o jeito dos fundamental, que em breve estarão sob sua
velhos, tem que aparecer as versões dos outros... Na exclusiva responsabilidade nas escolas das
minha pesquisa sobre ture (clarinetes) não aldeias. Juntos, decidiram que as atividades
adianta só escrever, tem que aprender a tocar para escolares priorizarão a língua wajãpi, ou seja,
responder, fazer o diálogo dentro do turé (Aikyry). que a alfabetização em língua materna não
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a será mais realizada como uma etapa prévia,
seguida de uma suposta transição para o
português. Em vez de transição, a proposta é
A C I O N A L

a comparação de conhecimentos e pontos de


vistas explicando às crianças a diferença entre
o pensamento dos Wajãpi e o pensamento dos não-
N
R T Í S T I C O

índios. Nessa empreitada, sabem da


necessidade de se aproximar dos mais velhos,
a quem pedem ajuda para comparar sua
A

própria lógica classificatória com os


E
I S T Ó R I C O

ensinamentos que obtêm dos brancos. E nessa


aproximação vêm percebendo que sua língua
Dominique Tilkin Gallois

pode dizer tudo, inclusive assuntos dos brancos


H

que antes eles julgavam que só instrutores


A T R I M Ô N I O

não-índios seriam capazes de ensinar. Podem


ensinar a história do Brasil em língua wajãpi,
podem traduzir noções jurídicas, conceitos
P
D O

matemáticos, etc. Essa recente etapa no


E V I S T A

manejo de traduções culturais contribuirá


efetivamente para a valorização do que
R

chamamos patrimônio imaterial, cuja riqueza


está menos numa lista de traços do que na
lógica de construção e organização desses
itens culturais. Assim, poder comparar, na
126 escola e falando em wajãpi, distintos modos
de conhecer seres e objetos é sem dúvida deles se exigir a finalização de produtos, o risco
Kasiripinã e Teju, uma etapa importantíssima no processo de será o de realizarem apenas escritos diversos,
respectivamente, chefes
valorização em pauta.18 com conteúdos simplificados e esvaziados dos
das aldeias Okakai e
Kumakary selecionam Para concluir, enfim, ressaltamos que o sentimentos que tanto desejam aprender a
peças para a exposição
segundo conjunto de tarefas – relativas à expressar. Passar da oralidade e dos contextos
Wajãpi no Museu do
Índio – Funai, aldeia pesquisa propriamente dita – é o mais difusos de transmissão para a fixação de
Mariry, 2000. Foto:
delicado. Espera-se que tais pesquisas não se fragmentos desse patrimônio oral em suportes
Dominique Tilkin Gallois.
limitem ao levantamento de conteúdos, mas novos trará, necessariamente, impactos
Paramentado para uma
festa, Tapenaiky testa incluam o registro cuidadoso dos ricos diversos sobre a concepção da cultura wajãpi.
sua flauta de taquara.
elementos performativos da arte verbal, dos A disseminação de versões distintas, a
Aldeia Mariry, 1994. Foto:
Dominique Tilkin Gallois. padrões de apreciação estética, o respeito aos comparação entre elas, a troca de saberes e
contextos de enunciação de cada tipo de tradições familiares poderá, sem dúvida,
discurso e conhecimento, etc. Mas, enriquecer e evitar a pasteurização de versões
dependendo da pressão exercida sobre os genéricas. A grande dúvida, no entanto,
pesquisadores indígenas, especialmente se continua sendo como transpor para esses
suportes novos a riquíssima contribuição que instituições envolvidas na preservação de

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
os povos de tradição oral oferecem ao debate patrimônios imateriais. Índios vendem CDs,
epistemológico ou, nos termos de Boyer, à montam exposições, produzem livros e estão

A C I O N A L
relação entre “tradição e verdade” (1986). interessados em se apropriar de todas essas
A contribuição de pesquisadores de formas de sistematização e difusão. Devemos
universidades e de museus é essencial nesse agora ajudá-los a assumir essas tarefas

N
R T Í S T I C O
processo. Por parte dos acadêmicos, trata-se enquanto efetivos autores. Mas não se pode
de colaborar com a discussão de mascarar a radical transformação dos
procedimentos de identificação de categorias contextos de enunciação dos saberes

A
e classificações nativas. Por parte dos imateriais que tais produtos representam –

E
I S T Ó R I C O
profissionais de museus, trata-se de colaborar contextos que jamais serão restituídos num
com a criação de formas de armazenamento CD, num banco de dados, num livro ou

Dominique Tilkin Gallois


adequadas à imensa variabilidade de formas filme. Se um programa de valorização

H
de enunciação de saberes orais. E incluir na cultural não for assumido como da ordem do

A T R I M Ô N I O
pauta de possíveis exposições não mais os projeto (político) só permanecerá na ordem
objetos da cultura, mas os conceitos que estão da memória.
por trás e, especialmente, todas as

P
D O
classificações cosmológicas subjacentes que Referências

E V I S T A
fazem desses objetos elementos particulares bibliográficas
de uma cultura. Expor e pôr à disposição do

R
público menos interpretações fechadas do CARNEIRO DA CUNHA, Manuela M. Culture in
politics: intellectual rights of indigenous and local people. IX
significado e da função de práticas culturais
Congrès d´Antropologia – Federação das Associações
como a pintura corporal, o ritual, a de Antropologia do Estado Espanhol – FAAEE,
mitologia, do que as experiências Barcelona, 2002.
interpretativas dos próprios índios, quando BECQUELIN, Aurore e MOLINIE, Antoinette (org.). 127
Mémoire de la tradition, Société d´Ethnologie, Paris,
aprendem conosco a incorporar uma idéia de
1993. 436p.
cultura. Em vez de colaborar com processos BOYER, Pascal.Tradition et vérité. L´Homme, vol. 97-
de resgate de elementos culturais a serem 98, 1986 (1-2), p.309-329. s./l.
buscados no passado, realizar exposições que CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA (org.).
Livro do Artesanato Waiãpi. Brasília: MEC, Secretaria de
dêem conta dos processos inovadores de
Educação Fundamental, 1999. 60p. il.
sistematização de acervos culturais DETIENNE, Marcel (org.). Transcrire les mythologies.
necessariamente compostos não apenas com Paris: Albin Michel, 1994. 273 p.
a memória da tradição19 de cada grupo, mas GALLOIS, Dominique T. Mairi revisitada: a
reintegração da Fortaleza de Macapá na tradição oral
com a colaboração de procedimentos
dos Waiãpi. Núcleo de História Indígena e do
acadêmicos de sistematização de Indigenismo. Série Estudos. São Paulo: USP, 1994.
conhecimento.20 A escrita de relatos e ___________. Brazil: the case of the Waiãpi. In:
depoimentos indígenas, a produção de discos GRAY, A., PARADELLA, A. e NEWING, H. (eds).
From principle to practice: indigenous peoples and
de músicas, a edição de documentários em
biodiversity conservation in Latin America, IWGIA, Forest
vídeo, a construção de bancos de dados, People Programme & AIDESEP, Copenhagen, 1998,
devem ser avaliadas criticamente pelas p.167-185.
O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a ___________. Gêneses waiãpi, entre diversos e e de capacitação dirigidas aos múltiplos agentes que
diferentes. Anais do colóquio Tempos Índios, Lisboa, atuam direta ou indiretamente junto a essa
2000 (datilografado). comunidade, para que compreendam e respeitem a
___________. Expressão gráfica e oralidade entre osWajãpi riqueza e a dinâmica dos conhecimentos veiculados
A C I O N A L

do Amapá. Síntese do dossiê de candidatura à Segunda oralmente.Trata-se de promover novas formas de


Proclamação de Obras-Primas do Patrimônio Oral e relacionamento e de intervenção, adequadas à
Imaterial da Humanidade – Unesco. Boletim do Museu valorização de patrimônios diferenciados, em
N

do Índio, n.9, Funai, out. 2002. detrimento da promoção genérica da “cultura


R T Í S T I C O

___________. Relatório do 3º módulo de Antropologia. indígena”. O segundo conjunto consiste num programa
Programa Educação Wajãpi / Iepé. Curso de Formação de múltiplas ações, visando à mobilização de todas as
dos Professores Wajãpi - Magistério II, jul. 2004, 34p. aldeias em atividades de pesquisa e inventário das
A

(datilografado). s./l. formas de transmissão oral. Está prevista a formação


E

ICSU/UNESCO. Science, traditional knowledge and de jovens para realizar o registro e a sistematização de
I S T Ó R I C O

sustainable development.ICSU s 2002. s./l. aspectos do amplo corpus de saberes sócio-


cosmológicos, assim como a continuidade da formação
Dominique Tilkin Gallois

de professores bilíngües, responsáveis pela elaboração


N o ta s
H

de um currículo diferenciado e pela implantação de


A T R I M Ô N I O

uma escola “em língua wajãpi”. O plano também inclui


1 Essa candidatura resultou de uma iniciativa do a promoção da participação dos Wajãpi em todas as
Museu do Índio – Funai, e recebeu apoio técnico do ações de gestão dos recursos naturais de sua terra, em
Ministério da Cultura. Naquele ano, as expressões acordo com seus modos de ocupação e práticas de
P

gráficas e orais dos Wajãpi haviam sido registradas manejo, ambientalmente e socialmente sustentáveis,
D O

como Patrimônio Cultural Brasileiro, pelo Conselho que deverão ser valorizadas pelas agências de
E V I S T A

do IPHAN, nos termos do Decreto no 3.551/2000. assistência e de desenvolvimento que atuam naquela
Tanto esse registro como a candidatura atendiam à terra indígena e no seu entorno.
R

solicitação expressa dos principais chefes e dos 5 Refiro-me particularmente aos modos como são
professores indígenas, representados no Conselho das operados o reconhecimento da diversidade cultural e,
Aldeias Wajãpi / Apina, com o qual o Museu do Índio em especial, da diversidade indígena no Brasil,
vinha mantendo parceria desde 2001, no âmbito das incentivando uma profusão de discursos contraditórios a
atividades de preparação e montagem da exposição respeito da “tradição” desses povos. Até hoje, a maior
128 Tempo e Espaço na Amazônia: os Wajãpi. A discussão, nas parte dos setores interessados em promover o “resgate
aldeias, de um plano de ações a ser proposto à cultural” continuam se apoiando em velhas idéias a
UNESCO, assim como a elaboração do dossiê, foram respeito da “autenticidade”, “aculturação”, etc., já
realizadas por mim, com apoio de outros superadas pela Antropologia. É este “pessimismo
pesquisadores do Núcleo de História Indígena e do sentimental” (Sahlins, 1997) que fundamenta os
Indigenismo da Universidade de São Paulo / NHII- discursos de “resgate” difundidos por essas agências, sem
USP e com a colaboração dos assessores do Programa coerência com as ações francamente integracionistas que
Wajãpi desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e elas continuam praticando seja através da assistência à
Formação em Educação Indígena – Iepé. O Núcleo de saúde, educação, alternativas econômicas, etc.
Educação Indígena da Secretaria de Educação do 6 Para o surgimento de uma noção de “terra” e do
Governo do Estado do Amapá também apoiou a coletivo “wajãpi”, ver: Gallois,1998. Para o processo
candidatura, no momento de sua apresentação à inicial de reflexões dos Wajãpi frente à sua cultura, ver
UNESCO, em setembro de 2002. Gallois, 1994. Para um panorama das formas de
2 No Amapá, os Wajãpi totalizam hoje cerca de 700 indianidade construídas pelos grupos do Amapá e
pessoas, atualmente distribuídas em 38 aldeias. Na norte do Pará, ver Gallois & Fajardo Grupioni, 2003.
Guiana Francesa, vivem cerca de 1.000 Wajãpi, em 7 De forma bastante próxima do modo como os
poucas aldeias à margem do rio Oiapoque. Gregos definiam “mitologia”: “uma maneira de
3 Coletivo genérico para designar os não-índios. designar os relatos dos outros, incluindo os de dentro,
4 Esse plano prevê medidas de duas ordens. De um quando se quer marcar um estranhamento” (Détienne,
lado, a implementação de campanhas de sensibilização 1994:7).Ver também Gallois, 2000.
8 Mais recentemente, os professores bilíngües 14 Para citar um exemplo, a primeira versão do

O s Wa j ã p i e m f r e n t e d a s u a c u l t u r a
esboçaram um levantamento das sete formas documentário “Segredos da Mata” (Centro de Trabalho
discursivas usadas em seu cotidiano, caracterizadas por Indigenista, 1998) que eles julgavam adequada tinha
variações na modulação da voz, na forma de duas horas de duração, a segunda uma hora e meia. Era

A C I O N A L
tratamento entre interlocutores, etc. Etiquetas que são difícil aceitar que um formato adequado à exibição
inclusive mais significativas que o próprio conteúdo para publico amplo não poderia passar de 30 minutos,
das conversas. porque nenhum karaikõ teria paciência de ouvir longos

N
9 Não queriam escrever em sua língua, que diziam já diálogos ou cenas repetidas.

R T Í S T I C O
“conhecer”. A recusa se devia sobretudo ao mal-estar 15 “Tesouros humanos vivos são pessoas que encarnam,
dos professores em adotar uma única grafia, que em grau máximo, as habilidades e as técnicas necessárias
passaria por cima das diferenças dialetais e das para a manifestação de certos aspectos da vida cultural de

A
experiências de cada grupo local (uns alfabetizados um povo e da perduração de seu patrimônio cultural

E
pela Missão Novas Tribos, outros pelo Summer material”. Jorge Wertheim, Entrevista – in: Museu ao

I S T Ó R I C O
Institute of Linguistics, outros acostumados à grafia Vivo, Informativo do Museu do Índio – Funai,Ano XIV,
usada pela professora da Funai, ou da Secretaria de no 25. Dezembro de 2003, pág. 3.

Dominique Tilkin Gallois


Educação do Estado, etc.). Superada essa fase, 16 A formação de pesquisadores foi iniciada pelo

H
chegou-se ao compromisso em que cada um escrevia Programa Educação Wajãpi - Iepé em 2002, com a

A T R I M Ô N I O
com sua própria grafia, valorizando diferenças inclusão de uma carga horária não presencial no
significativas nas relações políticas wajãpi. As currículo de formação em magistério. Em 2003,
dificuldades das crianças diante desses textos levaram ampliou-se com apoio do NHII-USP e FAPESP, através
os professores a se interessar novamente nas do projeto Documentação Wajãpi: memória para o futuro

P
alternativas para a grafia de sua língua. Outra que viabilizou a vinda de duas equipes de jovens para

D O
progressão a ser notada é que, se de inicio discutiam desenhar o formato de um banco de dados da história

E V I S T A
entre si modos de escrever determinados sons, e cultura Wajãpi. Em 2004, iniciou-se a seleção e
palavras ou formas de nasalização, agora chegaram a capacitação de uma nova turma de 20 jovens. Uma

R
alguns consensos sobre os aspectos acima e orientam oficina inicial foi realizada com apoio do
seus debates em torno da tradução de conceitos. Com IPHAN/MINC e cursos estão previstos até 2006
o relativo domínio da transposição lexical, enfrentam através do Projeto Valorização e gestão de patrimônios
agora questões propriamente semânticas. culturais indígenas no Amapá e norte do Pará financiado
10 O aspecto positivo desse processo é que consolida a pela Petrobrás Cultural.
necessidade de uma produção própria para garantir um 17 Para esse debate, ver Gallois, 2004. Ilustra o 129
mínimo de autonomia na aquisição de objetos que os interesse pelas questões epistemológicas mencionadas
Wajãpi já usam há muito tempo em seu cotidiano. E por Boyer (1986), quando os professores discutiram
muitos já consideram melhor vender artesanato do que marcadores relativos a posições e autoria, a distância
pedir dinheiro ou depender da assistência da Funai. ou aceite em relação a uma afirmação ou asserção de
Isso não significa, entretanto, que pedidos incessantes verdade, etc.
de apoio familiar ou individual tenham cessado, pois 18 Na maior parte das escolas indígenas, o ensino de
são formas valorizadas de se relacionar com as agências ciências naturais limita-se a repor as categorias ocidentais
de assistência. e oposições do tipo “seres vivos” e “seres inanimados”, ou
11 Programa de Formação de Professores Wajãpi em a distinção entre “mamíferos” e “invertebrados”, que não
Magistério, realizado pelo Iepé em parceria com a é nada universal. É intenção dos professores wajãpi
Secretaria de Educação do Governo do Estado do Amapá. mostrar que essas classificações são muito diferentes das
12 Esse estatuto foi elaborado em 1994 por um suas, nas quais a própria oposição entre humano e não
advogado, a partir das decisões e sugestões dos chefes humano é muito mais complexa.
wajãpi que fundaram esta organização representativa. 19 Cfr. Becquelin & Molinié, 1993.
13 É importante ressaltar que esse processo é lento e 20 Cfr. ICSU/UNESCO, 2002.
trabalhoso e que até o momento a edição propriamente
dita – de vídeos, livros ou curadoria de exposições – Nota: todas as imagens que ilustram este artigo integram o Arquivo
ainda é conduzida por assessores, o que não significa que Documentação Wajãpi, pertencente ao Conselho das Aldeias Wajãpi,
eles sejam, ou se considerem, apenas “informantes”. Apina, atualmente sob a guarda do NHII/USP
Pedra da Anta.
Geraldo Andrello
N o s s a h i s t ó r i a e s t á e s c r i ta n a s p e d r a s :

A C I O N A L
C O N V E R S A N D O S O B R E

N
C U L T U R A E P A T R I M Ô N I O C U L T U R A L

R T Í S T I C O
C O M O S Í N D I O S D O U A U P É S

A
Em maio de 2004, a Federação das Imaterial no âmbito do Iphan em 2004,

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I S T Ó R I C O
Organizações Indígenas do Rio Negro – abriu, assim, a possibilidade de realização de
FOIRN, em atendimento a uma solicitação projetos junto aos povos indígenas, de modo
do Instituto do Patrimônio Histórico e a incluí-los no contexto institucional das

H
Artístico Nacional (Iphan), abriu as portas da ações de preservação. Nesse sentido, dois

A T R I M Ô N I O
grande maloca existente em sua sede na projetos pilotos foram iniciados: um sobre as
cidade de São Gabriel da Cachoeira – AM referências culturais dos Guarani de São
para a realização de uma reunião destinada a Miguel das Missões (RS), desenvolvido pela

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D O
iniciar a discussão sobre patrimônio cultural 12ª Superintendência Regional do Iphan e

E V I S T A
com os grupos indígenas do rio Negro. O outro, precisamente, sobre as referências
pano de fundo da reunião dizia respeito à culturais indígenas no alto rio Negro – AM.

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nova política de registro dos chamados “bens Em ambos os casos, a expectativa é que as
culturais de caráter imaterial”, instaurada experiências acumuladas resultem em
pelo órgão após a promulgação do Decreto propostas de políticas patrimoniais voltadas
3.551/2000. Por esse decreto, ficou para os povos indígenas. O alto rio Negro foi
estabelecido um novo domínio patrimonial escolhido por vários motivos, entre eles a 131

referente a certos bens culturais que, por suas própria existência da FOIRN, talvez a
características não monumentais ou organização indígena de maior destaque na
excepcionais, escapavam das ações de Amazônia, e de sua parceria consolidada há
preservação preconizadas pelo Decreto mais de dez anos com o Instituto
25/1937, a lei do tombamento, que, já em Socioambiental – Isa. Além disso, é uma
1937, deu origem ao Serviço do Patrimônio região essencialmente indígena, com uma
Histórico e Artístico Nacional, o antigo população de mais de 30 mil pessoas
Sphan.1 O novo decreto, em suma, veio criar subdividida em mais de vinte grupos. Trata-
uma política de reconhecimento pelo Estado se, com efeito, de um extenso complexo
da diversidade cultural brasileira, cultural que ultrapassa as fronteiras
constituindo um sistema oficial de inventário nacionais.3 Por tudo isso, a região parecia
e registro formal das referências culturais dos atrativa ao Iphan. A reunião de São Gabriel
inúmeros segmentos da população nacional.2 foi patrocinada pelo Departamento de
O novo instrumento legal, bem como a Patrimônio Imaterial e pela 1ª.
criação do Departamento de Patrimônio Superintendência do órgão.
Nossa história está escrita nas pedras Por se tratar de uma reunião sobre projeto formal de educação indígena,
cultura, foram convocadas as lideranças de vinham manifestando vivo interesse em
alguns grupos indígenas que, no vasto rol registrar suas histórias de origem e retomar
A C I O N A L

dos projetos atualmente gerenciados pela antigas práticas rituais e que desde o ano
FOIRN, vinham desenvolvendo atividades anterior vinham se dedicando a levantar uma
genericamente definidas como projetos de maloca em Iauaretê, principal centro
N
R T Í S T I C O

revitalização cultural. Assim, foram missionário do rio Uaupés, onde atualmente


convidados especialmente aqueles grupos residem cerca de três mil pessoas
envolvidos em processos de implantação de pertencentes a várias etnias indígenas.
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escolas indígenas diferenciadas, nas quais o Embora não se tratasse de uma escola, esta
E
I S T Ó R I C O

calendário, os materiais e, de um modo mais maloca vinha sendo apoiada pelo mesmo
amplo, o projeto político-pedagógico são projeto através do qual as novas escolas
adaptados à realidade cultural das estavam sendo criadas.
H

Geraldo Andrello

comunidades indígenas. Assim, além de No primeiro dia, houve uma apresentação


A T R I M Ô N I O

técnicos e antropólogos, do Isa e do Iphan, geral a respeito da política de registro dos


participaram da reunião os Tukano da Escola chamados “bens culturais de caráter
Yupuri (médio rio Tiquié), os Tuyuka da imaterial”, e de seu instrumento técnico
P
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Escola Utapinoponã (alto rio Tiquié) e os correspondente, o Inventário Nacional de


E V I S T A

Baniwa da Escola Pamáli (alto rio Içana). Referências Culturais – INRC. Explicou-se
Além desses vieram também os Tariano de que este inventário é o modo pelo qual se
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Iauaretê, que embora não participem de um procede a um mapeamento das referências


culturais de uma determinada região: “o
INRC é um instrumento de conhecimento e
aproximação do objeto de trabalho do
132 Iphan”, tendo como principal objetivo
“identificar e documentar bens culturais”
(ver Corsino, 2000). Esses bens, para fins de
inventário, são classificados de acordo com
as categorias já estabelecidas pelo próprio
decreto. São elas: a) celebrações (“rituais e
festas que marcam a vivência coletiva do
trabalho, da religiosidade, do
entretenimento e de outras práticas da vida
social”); b) formas de expressão
(“manifestações literárias, musicais, plásticas,
cênicas e lúdicas”); c) saberes
(“conhecimentos e modos de fazer
enraizados no cotidiano das comunidades”);
Mapa do alto rio Negro, elaborado pelo Laboratório de
e d) lugares (“mercados, feiras, santuários,
Geoprocessamento do Instituto Socioambiental praças e demais espaços onde se concentram
e reproduzem práticas culturais coletivas”). atualmente passa a ser vista como fator de

Nossa história está escrita nas pedras


Para todas as quatro categorias buscou-se fortalecimento cultural. Isso se dá na medida
sugerir exemplos locais, com evocações aos em que, na construção de novos currículos

A C I O N A L
dabucuris (rituais de troca como escolares, os grupos envolvidos buscam
celebrações), aos benzimentos (encantações conciliar a incorporação de novos
xamânicas como formas de expressão), aos conhecimentos a conteúdos culturais

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R T Í S T I C O
cacuris (armadilhas de pesca como saberes) e próprios. De modo importante, esses
à importância das cachoeiras como locais de processos vêm ensejando o registro de vários
emergência mítica dos grupos (lugares). E tipos de conhecimento indígena através de

A
assim, embora o assunto apresentasse alguns produção literária e de materiais didáticos,

E
I S T Ó R I C O
aspectos jurídicos que não eram sejam aqueles relacionados às suas
prontamente acessíveis à platéia, além de tecnologias e formas de manejo de recursos
uma linguagem baseada em noções naturais, como também às histórias contadas

Geraldo Andrello
institucionalmente muito marcadas – tais pelos mais velhos, os mitos e os rituais.

A T R I M Ô N I O
como patrimônio, tombamento, registro, De modo geral, a adesão crescente ao
salvaguarda, bens móveis e imóveis, projeto de educação reflete um amplo
monumentos, pedra e cal e, principalmente, interesse por parte dos grupos indígenas dos

P
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referência cultural –, os presentes rios Uaupés e Içana em registrar cultura dos

E V I S T A
demonstraram grande interesse pelo tema, o antigos para as novas gerações, que lhes
que pôde também ser confirmado nas parecem cada vez mais voltadas para as coisas

R
reuniões em grupo do dia seguinte. Essas da cidade e dos brancos. Assim, além da
reuniões menores foram a ocasião para que implantação das escolas indígenas, a FOIRN
os grupos presentes pudessem manifestar vem, paralelamente, apoiando a publicação
um interesse notável pelo assunto. de livros de autores indígenas através da
Com efeito, as novas escolas que vêm coleção Narradores Indígenas do Rio Negro4 133
sendo implantadas através do projeto de (já com seis volumes publicados de mitologia
educação priorizam a valorização das línguas – Desana,Tariano, Baniwa e Tukano). Esses
e conhecimentos indígenas, constituindo materiais somam-se às numerosas cartilhas e
uma reação ao sistema escolar vigente na livros didáticos e a uma série de CDs
região que, tendo se originado a partir da elaborados pelos Tuyuka com seus cantos
chegada dos missionários salesianos nas cerimoniais. Já representam um volume
primeiras décadas do século XX, sempre se significativo de registros culturais, todos eles
pautou no sentido de promover a civilização assessorados por antropólogos com
dos índios. Concretamente, esse projeto está experiência de pesquisa na região.
proporcionando uma inversão radical do Pode-se dizer que essas experiências
papel que, historicamente, a educação forneceram uma chave de leitura à exposição
escolar desempenhou no rio Negro. Se, no apresentada por funcionários do Iphan à
passado, a escola serviu como instrumento audiência indígena então reunida na maloca
por excelência da campanha missionária da FOIRN. Como resumiram os Tariano,
contra as culturas e as línguas indígenas, “agora o governo também está querendo
Nossa história está escrita nas pedras apoiar o trabalho que já estamos fazendo”. A Stok e Pão de Açúcar (ver Isa e Oibi, 2001)
avaliação, portanto, é de que algumas das – como um saber, os Tariano passaram a
ações que a FOIRN vêm estimulando nas conjecturar a possibilidade de proceder ao
A C I O N A L

comunidades já estão dando passos registro de seus lugares sagrados, o que, de


significativos na direção de um inventário seu ponto de vista, implicava diretamente
cultural. A proposta do Iphan foi, dessa num registro sobretudo visual, isto é,
N
R T Í S T I C O

maneira, muito bem acolhida, e interpretada fotográfico. Por que esse interesse?
como uma iniciativa oficial que vem
respaldar e fortalecer todas essas iniciativas. ***
A

A reunião teve, também, pelo menos um


E
I S T Ó R I C O

efeito prático imediato, pois, de saída, os Passa-se que os Tariano, ainda que
Tariano reivindicaram apoio para a finalização participem do sistema de exogamia
da maloca que estavam levantando em lingüística que liga os diferentes grupos do
H

Geraldo Andrello

Iauaretê, argumentando ser um espaço de rio Uaupés entre si – isto é, lá não se casa
A T R I M Ô N I O

fundamental importância para levar adiante dentro do próprio grupo –, ocupam aí uma
seus intentos de registrar suas histórias e posição peculiar. Ao contrário dos demais
cantos e retomar antigos rituais. O saldo dos grupos, são originários da bacia do rio
P
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recursos disponíveis para a realização da Içana, ao norte, tendo se fixado no Uaupés


E V I S T A

reunião lhes foi então entregue para que, ainda em período pré-colonial.5 Vieram
ainda na cidade, pudessem adquirir grande então a ocupar uma extensa área no
R

quantidade de gêneros alimentícios – território dos grupos tukano, dos quais


quantidade suficiente para que pudessem passaram não apenas a obter esposas em
animar toda a sua comunidade no trabalho de troca de irmãs, mas também
finalização da maloca. Por esse motivo, a progressivamente a adotar a língua. O
134 interlocução prosseguiu especialmente com centro da área dos Tariano no Uaupés é
eles nos meses seguintes. Havia a expectativa Iauaretê-cachoeira, termo da língua geral
da inauguração da maloca, que infelizmente traduzido por Dzaui-pani na antiga língua
não pôde ocorrer na data marcada, sete de tariano, ou Yaí-poewa na língua tukano: em
setembro, já que um forte temporal danificou todos os casos, “cachoeira da onça”. Esta
parcialmente sua estrutura. Mas enquanto localidade faz parte, dessa maneira, das
cuidaram dessa construção, não deixaram de histórias de origem dos vários grupos que
refletir sobre o que ouviram naquela primeira ali residem atualmente. Nessas extensas
reunião sobre patrimônio cultural. narrativas, o surgimento e crescimento dos
Assim, enquanto os Tuyuka cogitaram dar diferentes grupos do Uaupés são
continuidade ao registro de suas cerimônias tematizados na forma de sucessivos
e cantos (como celebrações ou formas de deslocamentos espaço-temporais, através
expressão) e os Baniwa a registrar a marca dos quais a memória social articula os
Arte Baniwa – através da qual esse grupo vem eventos da época da transformação mítica
comercializando grande quantidade de àqueles que já fazem parte de trajetórias
cestaria com grandes empresas, como Tok históricas particulares. Fontes de fórmulas
xamânicas e de performances rituais, as militares, que vinham do rio Negro

Nossa história está escrita nas pedras


narrativas mito-históricas do Uaupés arregimentando trabalhadores para a
definem ainda territórios que, sem construção do forte de São Gabriel da

A C I O N A L
apresentar fronteiras precisas, se estendem a Cachoeira. Aqui é possível sugerir uma
partir de certos pontos culminantes, por datação, pois a construção desse forte pelos
assim dizer, da saga de cada um dos grupos. portugueses ocorreu na segunda metade do

N
R T Í S T I C O
Na visão dos grupos tukano, o século XVIII. A essa altura, os Tariano já
povoamento do rio Uaupés se deu através da haviam chegado do Içana, e sob sua guarda os
viagem da cobra-canoa dos ancestrais, que em Tukano teriam deixado, antes de adentrar o

A
seu ventre trouxe os ancestrais indígenas até a Papuri, a cahoeira de Iauaretê. É o que

E
I S T Ó R I C O
cachoeira de Ipanoré, localizada no médio relatam os Tukano que, bem mais
curso do Uaupés, de onde saíram para terra recentemente, voltam, em busca de escola,
através de um buraco existente em uma de saúde, mercadorias e dinheiro, a se aproximar

Geraldo Andrello
suas lajes. A partir daí, separam-se e cada um novamente de Iauareté, onde sua população

A T R I M Ô N I O
vai buscar seu próprio lugar. Os Tukano soma atualmente mais de 600 pessoas.
propriamente ditos estabeleceram-se no O surgimento dos Tariano se dá através de
igarapé Turi, afluente no baixo rio Papuri processo semelhante, que envolve

P
D O
(cuja foz se localiza no Uaupés, à altura de igualmente uma extensa jornada através do

E V I S T A
Iauaretê). Foi ali que Doétihiro, seu líder e curso dos rios seguida pela emergência dos
ancestral, fixou moradia para sempre na serra ancestrais de vários grupos através das pedras

R
da Garça, na verdade uma casa invisível aos de uma cachoeira – o motivo da cobra-canoa
humanos de hoje – “está lá até hoje sentado encontra-se ausente de suas narrativas, e a
em sua casa”. Ali, como dizem, é a descrição do trajeto que perfazem tem um
“verdadeira terra dos Tukano”, onde se caráter mais espiritual. Mas nesse caso trata-
tornaram definitivamente humanos. Ali se da cachoeira de Uapui, localizada no alto 135
viveram por muito tempo e cresceram rio Aiari, afluente do rio Içana, onde têm
casando-se com mulheres de outros grupos. origem junto com outros grupos de língua
Eles são capazes de listar um extenso arawak, como os Baniwa. A partir daí
conjunto de nomes de lugares nas cabeceiras rumaram em direção ao sul, por uma curta
desse igarapé, onde seus vários clãs viveram via terrestre que permite passar com
no passado. O igarapé Turi é, assim, descrito facilidade do Içana ao alto Uaupés.Tal como
como ponto de partida de um processo de ocorre entre os Tukano, é então que os
dispersão de longo alcance, pois dali os Tariano irão tornar-se definitivamente
Tukano ocuparam várias localidades nos rios humanos. Assim, Ipanoré e Uapui são locais
Papuri,Tiquié e Uaupés. Um detalhe considerados o centro do mundo pelos Tukano
importante que fazem questão de frisar, e Tariano, respectivamente. Locais de
porém, é que, ao sair do Turi, viveram por transformação mítica, que marcam as etapas
certo tempo em Iauaretê, de onde se finais do processo de gestação da
retiraram somente quando os brancos humanidade, são, ao mesmo tempo, locais de
começaram a chegar para pedir gente. Eram separação dos diversos grupos que hoje
vivem na região. É sua separação que instaura teriam encontrado com os Tukano, que logo
a exogamia: a partir de então, o crescimento passaram a chamar de cunhados. E ainda
dos grupos, uma vez estabelecidos em seus hoje o principal contingente dessa etnia
lugares próprios, vai ocorrer via reprodução encontra-se em Iauareté, onde soma cerca
sexual.6 Para os Tariano, tal processo se de 850 pessoas.
conclui com seu estabelecimento em Iauaretê é hoje quase uma cidade, com
Iauaretê, onde seus ancestrais míticos irão colégios, hospital, energia elétrica, correios,
fixar-se para sempre. Para eles, Iauaretê é o televisão, pista de pouso, pelotão do exército
equivalente daquilo que o igarapé Turi e um ativo comércio indígena. Até meados
representa para os Tukano. E em algumas das dos anos 80 do século passado, eram quatro
versões da narrativa tariano nos damos conta as comunidades Tariano em torno da missão;
de que eles haveriam descido o Uaupés até hoje são dez comunidades que, apresentando
Ipanoré, de onde alguns grupos retornaram uma média demográfica muito acima da
rio acima. Os principais grupos tariano, usual (de 250 a 400 pessoas), e em relação
considerados hierarquicamente superiores, de contigüidade umas com as outras, são
se estabeleceram então em Iauareté, onde se consideradas bairros ou vilas, isto é, partes de
um conjunto maior que já apresenta feições formação das novas comunidades. Nesse
urbanas. Em geral, considera-se que o fim do contexto, a gestão dos assuntos comunitários
internato que os salesianos mantiveram ali é crescentemente envolvida em novas
por décadas foi a principal causa dessa dificuldades. As famílias de uma mesma
explosão demográfica. Sem os meios usuais comunidade de origem encontram-se, via de
para manterem as crianças freqüentando os regra, dispersas em diferentes bairros, o que
bancos escolares, muitas famílias passaram a reflete a circunstância específica da chegada
fixar residência permanente em Iauaretê. de cada uma delas ao povoado. As crianças e
Inicialmente, cresceram as antigas os jovens passam grande parte do tempo no
comunidades dos Tariano, que se viram colégio e desfrutam de uma convivência bem
obrigadas a ceder espaço de moradia, como menos intensa com pais e avós. Boa parte do
também para abertura de roçados, a seus dia é gasta em frente do televisor. E, assim, o
cunhados Tukano, Pira-Tapuia,Wanano e comentário mais freqüente em torno das
assim por diante. Em seguida, os padres dificuldades enfrentadas em Iauaretê diz página anterior
passaram a ceder as áreas por eles ocupadas respeito a um certo descontrole da juventude, Pedra do Abacate.

com pastos e roças, no passado, para a que se traduz concretamente em muitos Pedra do Gavião.
Nossa história está escrita nas pedras casos de briga por ocasiões de festas e em ali. Por tudo isso, Iauaretê é uma localidade
gravidez precoce. única no contexto regional.
Outra linha de tensão que se pode A situação incomoda, sobretudo, aqueles
A C I O N A L

perceber no cotidiano de Iauretê relaciona- moradores Tariano das comunidades mais


se, precisamente, a um debate nem sempre antigas. Alguns deles reivindicam maior
explícito referente às prerrogativas respeito às prerrogativas dos Tariano por
N
R T Í S T I C O

reivindicadas pelos Tariano e pelos demais parte daqueles que vieram se estabelecendo
grupos de língua Tukano quanto a quem são no povoado nas últimas décadas, em
os moradores legítimos de Iauaretê. O debate particular quanto a seus direitos sobre as
A

refere-se diretamente à situação de terras circunvizinhas ao povoado e aos


E
I S T Ó R I C O

urbanização do lugar e à convivência melhores locais de pesca. Esta posição é


incontornável que a nova situação impôs a mais nitidamente perceptível entre os
esses grupos. Esses fatos, que fazem parte da membros dos bairros de São Pedro e Santa
H

Geraldo Andrello

história recente de contato dos índios do Maria, situados na margem oposta à Missão.
A T R I M Ô N I O

Uaupés com a sociedade nacional, acionam e No passado, os primeiros moradores dos


opõem com freqüência cada vez maior, e dois bairros formaram uma única
particularmente quando se trata de apaziguar comunidade, composta pelos membros de
P
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atritos entre co-residentes pertencentes às um clã Tariano de alta hierarquia, os


E V I S T A

diferentes etnias, diferentes interpretações Koivathe, cujos antepassados ali viviam em


sobre quem, afinal, chegou primeiro a duas grandes malocas, por ocasião da
R

Iauaretê. O fato é que, para além das chegada dos salesianos. Foram alguns
contradições, todos parecem concordar que membros desse clã que vieram a São Gabriel
Iauareté é uma localidade do rio Uaupés para participar da reunião promovida pelo
onde as trajetórias de dois dos principais Iphan na maloca da FOIRN.
138 grupos indígenas da região se cruzam. Além Como dissemos acima, contando com
de sua posição estratégica – de convergência alguns recursos disponibilizados pelo projeto
das comunidades dos rios Uaupés e Papuri de educação, eles vinham mobilizando os
–, que influenciou decisivamente sua escolha moradores das duas comunidades para
para sediar o principal centro missionário do levantar uma maloca com a mesma aparência
Uaupés, trata-se, assim, de um lugar cujas e no mesmo local em que viveu um de seus
prerrogativas para o estabelecimento de antepassados de grande prestígio em Iauaretê,
novas comunidades são disputadas pelos o antigo tuxaua, Leopoldino, que em 1927
Tukano e pelos Tariano. Embora seja difícil recepcionou os salesianos em Iauaretê.
avaliar, é possível aventar que a concentração Celebrado na crônica missionária como um
demográfica e, assim, o processo de dos mais importantes chefes indígenas do
urbanização em curso também resultem Uaupés e grande colaborador da obra
dessa característica particular: para além das missionária, Leopoldino, dizem seus
facilidades em termos de educação, saúde e descendentes, morreu, no entanto, de
renda, muitos grupos parecem julgar-se no tristeza. “Despojado de suas riquezas”, e já
mais pleno direito de viver e criar seus filhos doente, derrubou sua maloca e foi viver no
baixo rio Negro, onde morreu anos mais concentração de gente sem precedentes já

Nossa história está escrita nas pedras


tarde. As riquezas a que se referem os Tariano não permite que a juventude adquira um
de hoje dizem respeito especialmente a uma conhecimento apropriado sobre o mapa das

A C I O N A L
caixa de enfeites cerimoniais e a um conjunto relações sociais no qual sua família se insere.
de cantos rituais. Esses adornos, considerados E isso passa a acarretar problemas sérios no
sagrados, eram usados nos rituais de troca e de que diz respeito à observação das uniões

N
R T Í S T I C O
iniciação, quando eram exibidos os cantos e conjugais apropriadas e à intensidade da vida
danças distintivos de cada clã. Com a nova sexual dos jovens. Mencionam também o fato
maloca de Iauaretê, os Tariano do clã Koivathe de que hoje há muitos alunos no Colégio que

A
intentam retomar essas práticas antigas, não sabem dizer a qual clã específico

E
I S T Ó R I C O
como, aliás, já vêm experimentando nas festas pertencem, pois já não receberam tal
da comunidade. Conjecturam ainda reaver sua informação dos seus próprios pais. Cumpre,
caixa de enfeites há décadas entregues aos pois, garantir que certas coordenadas sociais

Geraldo Andrello
padres e que, segundo informações que já de relacionamento entre os grupos sejam

A T R I M Ô N I O
circulam em Iauaretê, se encontra depositada devidamente transmitidas aos jovens que
ao lado de muitas outras em um museu nasceram e cresceram em Iauaretê.
mantido por freiras salesianas em Manaus.7 Na verdade, o plano é também uma

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Os homens que estão à frente dessa tentativa de recuperar um prestígio que, no

E V I S T A
iniciativa apontam como sua principal passado, este clã Tariano parece ter
motivação a necessidade de proporcionar aos experimentado mais efetivamente. Com

R
jovens as condições básicas para que possam efeito, as hierarquias sociais entre os grupos
apropriar-se do conhecimento ancestral dos indígenas do Uaupés expressam-se de
Tariano, sem o qual não poderão ser alguém maneira ambígua em Iauaretê. Entre os
futuramente. Esta afirmação tem muitas segmentos que, tal como os Koivathe,
implicações, pois além de expressar uma reivindicam a posição de chefes, nota-se um 139
preocupação em garantir aos mais novos uma incômodo reinante, que diz respeito ao fato
referência identitária diante do mundo dos de que tais posições, segundo eles próprios
brancos – se entram em uma universidade, as apontam, deveriam ser objeto de
pessoas vão lhes perguntar quem são –, quer reconhecimento por parte dos segmentos
também persuadi-los a adotarem certos inferiores.Vivendo em bairros multiétnicos,
comportamentos tradicionalmente pessoas que em seu contexto de origem
valorizados. Um deles, ao comentar a contavam com meios para afirmar uma
situação atual de Iauaretê, é enfático: Com posição hierárquica – como a promoção de
tanta gente amontoada aqui em Iauaretê, já não se festas e rituais – já não dispõem dos
pode esperar que os nossos filhos respeitem as moças mesmos recursos, pois aqui cabe participar
como se fazia antes. Com essa afirmação, ele do dia-a-dia de uma comunidade onde seu
alude a uma conseqüência do crescimento voto vale tanto como o dos demais na
demográfico do povoado atualmente muito eleição do capitão. Esse estado de coisas
debatida pelas pessoas.Trata-se do tanto impede o reconhecimento da sua
diagnóstico corrente de que essa posição por outros, como não facilita as
Nossa história está escrita nas pedras ocasiões nas quais as prerrogativas ***
tradicionais poderiam vir a ser enfatizadas.
Ao contrário, como em geral se comenta De posse de um mapa detalhado do
A C I O N A L

em Iauaretê, com os padres foi introduzida a povoado, visitamos Iauaretê muito


história de que “todos são irmãos”, e as rapidamente, em novembro de 2004, com a
diferenças entre os grupos passaram a ser finalidade de elencar e plotar algo a que até
N
R T Í S T I C O

minimizadas. Antes cada qual tinha seu o momento os Tariano vinham se referindo
próprio lugar para morar; agora todos como seus lugares sagrados. Não nos dávamos
querem vir para Iauaretê, e os moradores conta, naquele momento, de que havia
A

antigos foram exortados pelos missionários naquilo tudo uma imprecisão que nos iria
E
I S T Ó R I C O

a ceder espaço para famílias de outras assaltar meses depois: afinal de contas,
etnias. Nesse contexto, as iniciativas de estávamos falando de um ou de inúmeros
revitalizar a cultura constituem ainda uma lugares? A questão, evidentemente, não
H

Geraldo Andrello

reação a uma tendência de indiferenciação perturbava os Tariano, cuja obstinação se


A T R I M Ô N I O

que parece ser pressentida cotidianamente concentrava em mostrar como sua história
por vários dos moradores de Iauaretê. podia ser ilustrada através de um passeio
É preciso, pois, “organizar Iauaretê”, pelas pedras, lajes, fendas, paranás e ilhas
P
D O

afirmam os Tariano Koivathe, valorizando a que, num extenso trecho do rio Uaupés,
E V I S T A

cultura dos antigos, que era a própria conformam a cachoeira da onça. Nessa
civilização que os índios já desfrutavam antes ocasião, assinalamos com eles um conjunto
R

da chegada dos padres. Eles dizem que se os de mais de vinte pontos que deveriam ser
Tariano tivessem saído de Iauaretê para visitados em fevereiro ou março do ano
invadir a terra de outros, ninguém iria seguinte, quando as águas do Uaupés
gostar, de forma que aqui, eles, os donos do estivessem no seu nível mais baixo. Era
140 lugar, deveriam ser mais respeitados. Assim, imprescindível também que viéssemos
a formulação de um discurso explícito sobre munidos de instrumentos que permitissem
a cultura tariana insere-se em um contexto um registro daquilo que iríamos ver:
de alta complexidade política, no qual o paralelamente à narrativa que se faria in loco,
conhecimento e a interpretação das histórias era preciso fotografar e, se possível, filmar
contadas pelos antepassados prestam-se tanto aquelas pedras. Pois tratava-se de um
para cuidar dos mais novos – dentro do testemunho visível, uma prova material dos
próprio grupo – como para afirmar conhecimentos que os Tariano queriam
prerrogativas – em face de outros grupos. registrar com o apoio do Iphan.
Ao que parece, é por isso que os Tariano, ao Já em fevereiro de 2005 estávamos em
tomarem conhecimento da nova política de Iauaretê novamente (Geraldo Andrello pelo
patrimônio imaterial do governo, optaram Isa, Ana Gita de Oliveira pelo Iphan e
por um registro no Livro dos Lugares. Pois, Vincent Carelli, videodocumentarista da
como tentaram nos demonstrar meses ONG Vídeo na Aldeias). Durante dez dias os
depois: “nossa história está escrita nas pedras Tariano Koivathe puseram-se inteiramente à
da cachoeira de Iauaretê”. nossa disposição para efetuar o trabalho. Ao
longo desses dias, realizaram um esforço instantâneas na narrativa. Nesse tempo,

Nossa história está escrita nas pedras


notável, debatendo entre si e recitando de Iauaretê foi o cenário onde os Diroá
maneira formal e solene uma história que se entraram em rivalidade com uma gente-onça,

A C I O N A L
passou em Iauaretê muito tempo antes do yaí-masa, um grupo canibal que ali vivia e
surgimento da atual humanidade (Tariano, representava um empecilho para o
Tukano, demais grupos e brancos).Tratava- povoamento do rio Uaupés. A palavra

N
R T Í S T I C O
se da história dos Diroá, seres míticos Iauaretê cachoeira da onça é um topônimo que
associados ao sangue do Trovão, o Avô do faz alusão a esses primeiros moradores do
Mundo que, de maneiras variadas, aparece lugar. É a partir da narrativa desse mito que

A
na mitologia de todos os grupos da região. A

E
I S T Ó R I C O
narrativa dizia respeito, assim, ao tempo
primordial da pré-humanidade, a um mundo
povoado por divindades criadoras que

Geraldo Andrello
buscavam fazer surgir rios, animais, plantas e

A T R I M Ô N I O
verdadeiros seres humanos. A respeito desse
tipo de relato, algumas pessoas de Iauaretê
costumam fazer uma analogia esclarecedora,

P
D O
apontando tratar-se do “Antigo Testamento

E V I S T A
dos índios”.Trata-se daquilo que Christine
Hugh-Jones (1979) qualificou em seu estudo

R
sobre os Barasana como “era pré-
descendência”, um longo período de
gestação da atual humanidade, anterior à sua
organização social em grupos exogâmicos
compostos por clãs hierarquizados. 141
Com efeito, o relato dos Tariano a
respeito de seu surgimento no rio Aiari e
migração em direção ao Uaupés é precedido Petroglifo com a figura de Okomi.

por um extenso relato mítico em que são


narrados os feitos dos primeiros demiurgos. os Tariano fundamentam suas reivindicações
Além de Ennu, o Trovão, o mito fala de como moradores verdadeiros de Iauaretê, pois,
outras figuras, como o casal de irmãos Kui e entre os grupos do Uaupés, seriam eles os
Nanaio, Okomi e os irmãos Diroá que, descendentes diretos dos Diroá.
segundo eles, serão os responsáveis, mais A narrativa dos Tariano, em língua
tarde, pelo aparecimento dos ancestrais tukano, se iniciou da seguinte maneira:
Tariano no rio Aiari. A história se passa em No início, quando não existia nada, só existia
um mundo em formação. A passagem por um ser [masa bahutígı̃ , pessoa que não aparece],
diferentes lugares muito distantes dos o Trovão, Ennu [Hipéweri Hekoapi]. Em seu corpo
homens de hoje, bem como por distintos ele tinha vários enfeites, a acângatara, o itaboho
domínios do cosmo, são operações [cilindro de quartzo usado como pingente de
Nossa história está escrita nas pedras colar], o betâpa’ [enfeite de cotovelo feito de pele distribuíram ao longo dos rios e vieram a
de macaco], o yaigı̃ [bastão de comando], o formar muitos acidentes geográficos, sendo
escudo, o kitió [chocalho de tornozelo]; também uns de boa índole, outros não. Eles vivem até
A C I O N A L

levava seu cigarro encaixado na forquilha, sua hoje nas pedras das cachoeiras e nas serras
cuia de epadu e sua cuia de bebidas doces. Ele que, na verdade, são suas casas. Os Tariano
vivia só em sua casa, no alto, e começou a pensar apresentam uma lista extensa deles, alguns
N
R T Í S T I C O

sobre a possibilidade de criar novas pessoas. Mas associados a animais como a onça, a anta, o
inicialmente apenas pensou neles. E pensou em um tatu, o macaco zogue-zogue, a borboleta,
homem e em uma mulher, Kui e Nanaio. Mas ele outros tendo apenas nomes sem tradução e
A

não sabia ainda como faria. Pensou então em com atributos muito distintos, como um ser
E
I S T Ó R I C O

preparar os meios [bahuresehe, coisas de propiciar chamado Okômi. Os ı̃ ta-masa mencionados


surgimento] para conseguir isto. Ele pegou um no mito moram nas imediações de Iauaretê,
cigarro, e pensou num par de pari [esteira de em pedras, paranás e ilhas que existem na
H

Geraldo Andrello

talas] de quartzo transparente, num par de bancos acidentada região do povoado – com
A T R I M Ô N I O

de quartzo transparente, em duas cuias de quartzo corredeiras, pedrais e a encachoeirada foz do


transparente com seus dois suportes, em um par de rio Papuri. Okômi morava em uma parte
Yaigı̃ de quartzo, em dois cigarros encaixados em elevada do povoado, conhecida hoje como o
P
D O

suas forquilhas e em duas cuias de epadu. Pensou “morro do Cruzeiro” – onde, aliás, se situa
E V I S T A

também em um par de escudos e também em um atualmente o bairro do Cruzeiro.


par de maha poari [acângataras de penas de Em uma das partes da cachoeira de
R

arara] e em dois pares de brincos de ouro. Pensou Iauaretê vivia a gente-onça, Yaí-masa,
ainda em um par de itaboho e em dois pares de referida mais especificamente como Yaípiri-
kitió.Também pelo seu pensamento, enchia as pakâna-masa, gente onça de dente grande. Umas
cuias com bebidas doces: suco de buiuiu, suco de das filhas da gente onça veio a se casar com
142 abiu, suco de wéry, caldo de cana, suco de ingá, Yetoı̃, o caba grande, que vivia na foz do
mel de abelhas e suco de cucura. Eram várias Papuri. Por serem xamãs poderosos, os Yaí-
espécies dessas frutas. Depois disso, ele fumou seu masa sabiam que Okômi iria ser o chefe de
cigarro e soprou a fumaça no chão e todas as um grande e muito poderoso grupo. Por
coisas que havia em seu pensamento apareceram isso, eles o torturaram até a morte. Muitas
ali. Kui e Nanaio apareceram também, e das características visíveis das pedras da
sentaram-se nos bancos de quartzo, que estavam cachoeira de Iauaretê tiveram origem a
sobre os paris. Eles não eram pessoas como nós, partir das torturas a que a gente-onça o
pois seus corpos não eram ainda como os nossos. submeteu. Ele foi arrastado por vários
Nós os chamamos de ı̃ ta-masa, literalmente lugares e transformado em diferentes
“gente pedra” [em tariano, hipada-nauiki], não animais e plantas até finalmente ser morto.
porque fossem feitos de pedra, mas porque a Esse trecho do mito dá origem a uma boa
duração de sua vida é indeterminada. parte da extensa toponímia que se verifica
Conta-se que muitos outros ı̃ ta-masa nas imediações de Iauaretê. Eram esses
surgiram no começo do mundo, incluindo lugares que os Tariano nos convidavam a
vários tipos de gente (masa). Eles se visitar e registrar. Lugares sagrados, de seu
ponto de vista, pois, entre a gente pedra que convertem em sangue. O sangue transforma-

Nossa história está escrita nas pedras


existiu no começo dos tempos, Okômi é se em peixes e grilos sucessivamente, até
aquele cujo princípio vital viria, de seu alcançar a forma humana. O processo não é

A C I O N A L
ponto de vista, a tornar possível a existência ainda a origem dos humanos, mas de sua
dos Tariano. O tempo todo eles se referiam a forma, que vem marcada com os nomes
este personagem como “nosso avô”. Com as então adquiridos pelos Diroá. Os nomes,

N
R T Í S T I C O
filmagens que viemos a fazer, um deles assim, prefiguram a humanidade. O mito
chegou a dizer o seguinte: “para mim, nosso segue narrando os feitos dos Diroá para
avô já ressuscitou”. De Okômi aos Tariano de obter poderes xamânicos e os muitos

A
hoje, o processo, resumidamente, se deu da estratagemas que planejam para matar os

E
I S T Ó R I C O
seguinte maneira: filhos da gente-onça.Vários episódios se
Os Yaí-masa convidaram todos as outros sucedem, nos quais os Diroá são chamados a
ı̃ ta-masa para um banquete em que Okômi, já colaborar com os cunhados na abertura de

Geraldo Andrello
morto, seria devorado, sendo que nenhuma seus roçados ou lhes oferecer dabucuris, os

A T R I M Ô N I O
parte de seu corpo deveria restar. O cunhado rituais de troca de alimentos entre afins. A
Yetoı̃ foi também convidado, e foi o gente-onça já os odeia e tenta devorá-los
responsável por impedir a devoração absoluta sem sucesso. Finalmente, ao roubarem o raio

P
D O
de Okômi, tendo, disfarçadamente, atirado da mão direita do Trovão (um osso), os

E V I S T A
para o alto os três pequenos ossos de seu Diroá terminam por aniquilar a gente-onça
dedo mínimo. Mais tarde, esses ossos caíram com uma trovoada, enquanto faziam festa

R
no Uaupés com uma trovoada e se em sua maloca.
transformaram em peixes. Foram recolhidos A versão que nos foi fornecida é que, após
por Yetoı˜ e sua esposa e levados para casa. o fim da gente-onça, há a subida dos Diroá à
Foram postos em um matapi (trançado em casa do Trovão, onde sua vida irá passar a um
forma tubular para captura de peixes) de cigarro cuja fumaça, ao ser soprada no lago 143
defumar pimenta, onde se transformaram em do Trovão, vai dar origem aos Tariano. Desse
grilos e começaram a crescer. Mais tarde, ela lago, eles passam a Uapui-cachoeira, no rio
os coloca dentro de um pilão usado para Aiari, através de uma zarabatana de quartzo,
socar ipadu, o qual foi vedado com breu e e iniciam a jornada em direção ao Uaupés.
atirado ao rio. O pilão boiou Uaupés abaixo, Nanayo, a primeira mulher criada pelo Trovão
encostando-se à outra margem. Foi então que no começo dos tempos, é quem efetua a
os irmãos Diroá apareceram pela primeira operação de transportar a vida dos Diroá. Ela
vez com a aparência humana, e já se o faz ao colocar seu próprio leite no cigarro.
chamando Kuenaka, Kali e Kui, os principais O leite da primeira mulher, uma vez
nomes cerimoniais até hoje usados pelos associado ao tabaco, é o que propicia que a
Tariano Koivathe. essência vital dos Diroá venha a dar origem
O aparecimento dos Diroá resulta, aos Tariano. É essa substância imaterial que,
portanto, de um longo processo de dizem os Tariano, continua a ser transmitida
transformação em que, inicialmente, através das gerações junto com os nomes
pequenos ossos de um demiurgo devorado se Kuenaka, Kali e Kui.
Nossa história está escrita nas pedras O mito da aniquilação da gente-onça é, de atuais etnias da região. Para alguns, eles são
fato, parte importante das narrativas míticas irmãos menores, ou aspectos, dos seres
de vários grupos da região. Ele aparece em criadores. No caso dos Tukano, eles são como
A C I O N A L

versões já publicadas da mitologia dos que a versão jovem do demiurgo Ye´pâ-


Desana e Tukano (família lingüística tukano – O´akı̃ hı̃ . Como vários dos demais seres da
ver Pãrõkumu & Kẽhíri, 1995; Fernandes & era da pré-humanidade, sua capacidade
N
R T Í S T I C O

Fernandes, 1996; Nahuri & Kũmarõ, 2003), transformacional é marcada por seu
Baniwa e Tariano (família lingüística arawak aparecimento através de um osso. Em língua
– ver Cornelio et al, 1999;Tariano, 2002) e tukano, são os seres O´akı̃ hı̃ , e nas línguas
A

Maku (família lingüística maku – ver arawak, os Iaperikunai. A tradução para os


E
I S T Ó R I C O

Silverwood-Cope, 1990). Em todas as dois termos é a mesma: do osso. Isso remete


versões, os personagens principais são os às potências primordiais de que eram
irmãos que se originaram das falanges que portadores esses seres. Seus feitos dão forma
H

Geraldo Andrello

restaram daquele banquete macabro, onde as e qualidade ao mundo em que a futura


A T R I M Ô N I O

onças devoram seu próprio cunhado. O mito humanidade irá viver, de maneira que as
tematiza assim o potencial de hostilidade histórias a seu respeito dão conta da
embutido nas relações de afinidade, conformação e da origem dos elementos
P
D O

incluindo vários episódios em que as partes visíveis e invisíveis do mundo atual. Suas falas
E V I S T A

se confrontam ritualmente. Para além da e seus pensamentos – que correspondem às


prestação de serviços na abertura de roças sentenças formais que entremeiam os mitos
R

para as onças, os cunhados são convidados de origem – são as encantações xamânicas de


para festas e dabucuris, os rituais de troca de hoje, que se prestam à atribuição dos nomes,
alimentos e artefatos que ocorrem até hoje à alocação de proteções invisíveis sobre as
com freqüência entre grupos aliados. Nesses pessoas, à cura de doenças, à
144 dabucuris, os cunhados exibem seus cantos e despotencialização do caráter maléfico de
danças e humilham, por assim dizer, seus certos alimentos e à feitiçaria.
parceiros de troca, ao oferecer enormes Esse mundo de potências descrito na
quantidades de peixes ou artesanato. Nessas mitologia é manejado diferencialmente pelas
ocasiões, as onças tentam devorar os etnias da região, mas o ponto importante é
cunhados, que se safam graças a habilidades que suas categorias e estrutura mais gerais
xamânicas excepcionais. são partilhadas por todas elas. Assim, o mito
Nas diversas versões publicadas, os registrado pelos Tariano buscava afirmar uma
cunhados das onças são um grupo de irmãos versão entre outras possíveis, com a
cuja avó é também uma mulher-onça. Sua peculiaridade de que, como moradores de
característica principal é a juventude, o que Iauaretê por muitas gerações, agregaram ao
lhes atribui um caráter inconseqüente e seu relato um detalhado conhecimento da
vingativo, como também certo descontrole toponímia local. Outras versões registradas,
sobre seus poderes xamânicos. Em todos os ainda que apontem Iauaretê como sendo o
casos, eles são associados aos seres que lugar onde viveu a gente-onça, não incluem
vieram a criar, ou propiciar o surgimento das a extensa lista de nomes das pedras, ilhas e
paranás que os Tariano arrolam. Além disso, À medida que a narrativa Tariano foi

Nossa história está escrita nas pedras


e esse é o ponto mais importante, sua versão sendo registrada naqueles dias de filmagem,
os coloca em linha direta com os Diroá. Isto os cerca de vinte lugares iniciais foram se

A C I O N A L
é, buscam afirmar que eles, os Tariano, são multiplicando. A própria performance
os seus descendentes diretos, portadores de narrativa parecia induzir os narradores a
seus nomes e, assim, de sua alma. considerar a necessidade de incluir no

N
R T Í S T I C O
Curiosamente, a palavra diroá é um termo da registro visual a casa das onças, ponto
língua tukano, cuja tradução seria coágulo de principal da cachoeira de Iauaretê, e as
sangue, ou sangue materializado. O nome demais casas invisíveis da gente-pedra. Além

A
refere-se à substância que preenche a disso, sugeriam que, na baixada de volta a

E
I S T Ó R I C O
cavidade óssea, o tutano, que possui São Gabriel, parássemos para registrar
exatamente esse aspecto. Esta substância é a outros lugares do Uaupés onde os Diroá
expressão material do princípio vital fizeram surgir outros elementos. Foi no

Geraldo Andrello
transmitido pelos seres primordiais à atual retorno que viemos a saber, por exemplo,

A T R I M Ô N I O
humanidade. De Okomi, passando pelos que a casa do avô Caba, aquele que salvou os
Diroá, é esse mesmo princípio que hoje, de Diroá, era situada por um outro clã Tariano
acordo com os próprios, dá vida aos Tariano. em Urubuquara, várias horas abaixo de

P
D O
Este ponto está, no entanto, ausente das Iauaretê. Isso tudo provocava novas questões.

E V I S T A
versões fornecidas pelos outros grupos. Por um lado, incluir todos os lugares

R
145

Anotando antes de narrar.


Nossa história está escrita nas pedras mencionados na narrativa terminaria por Iauaretê, o primeiro Tukano que ocupou o
apontar toda a cachoeira de Iauaretê como o cargo desde sua instituição, veio até nós para
lugar, de fato, a ser registrado como lugar saber melhor do que se tratava esse trabalho
A C I O N A L

sagrado. Por outro, as diversas versões sobre patrimônio cultural que estávamos
existentes do mesmo mito nos levava a fazendo. A essa altura, já pensávamos em
pensar no risco que o registro por parte do discutir com os Koivathe o assunto da
N
R T Í S T I C O

Iphan, ao reconhecer a titularidade dos titularidade, assim como a possibilidade de


Tariano do clã Koivathe com relação àqueles envolver outros grupos no processo. Sabendo
lugares – ou à cachoeira como um todo –, disso, o líder geral de Iauaretê colocou-se
A

apresentaria no sentido de privilegiar uma imediatamente à disposição para organizar


E
I S T Ó R I C O

versão, reificando, isto é, cristalizando como uma reunião mais ampla no povoado e,
patrimônio reconhecido pelo Estado, sua assim, chamar os Koivathe para o debate.
narrativa. Extrair a narrativa de seu contexto
H

Geraldo Andrello

usual de enunciação para incluí-la em um ***


A T R I M Ô N I O

dossiê técnico parecia ser a condição para


efetuar o registro daquela toponímia como Ficava mais uma vez bastante claro que, no
patrimônio cultural. No fundo, seria como Uaupés, o tema da cultura é extremamente
P
D O

reconhecer aos Tariano Koivathe o direito de sensível. Mencionamos no início o grande


E V I S T A

propriedade intelectual sobre o mito dos interesse demonstrado pelos índios do rio
Diroá, consignando-lhes assim a ascendência Negro de hoje em registrar cultura dos antigos.
R

sobre a cachoeira de Iauaretê em relação às As formas como isso vem acontecendo


demais etnias. E por várias atitudes que privilegiam iniciativas locais, em geral
outros moradores de Iauaretê demonstraram empreendidas por clãs específicos que, por
naqueles dias, a empreitada nos pareceu circunstâncias diversas, e principalmente
146 bastante problemática. quando contam com antropólogos para os
Com efeito, em vários níveis a iniciativa assessorar, logram criar suas escolas e
dos Tariano Koivathe estava gerando produzir textos. Mencionamos também que a
questionamentos. Em sua própria FOIRN vem publicando uma coleção de
comunidade, o capitão, pertencente a outro livros intitulada Narradores Indígenas do Rio
clã Tariano, mostrava-se descontente com o Negro, destinada a acolher manuscritos de
modo pelo qual os Koivathe vinham autoria indígena. Até o momento seis
gerenciando os recursos que haviam recebido volumes foram editados, todos eles
do Iphan, particularmente quanto à forma de apresentando versões da mitologia de origem
repartir os alimentos comprados nas jornadas de acordo com a visão de clãs específicos. De
de trabalho coletivo. Outro clã Tariano modo geral, as lideranças das organizações
manifestou explicitamente seu indígenas avaliam que se impõe atualmente,
descontentamento ao perceber que os de maneira cada vez mais candente, a tarefa
Koivathe recebiam uma equipe de de proceder a esses registros, argumentando
antropólogos para contar uma história e os que o que restou da cultura indígena da região,
deixava de lado. E, por fim, o líder geral de após décadas de ação missionária, corre um
sério risco. Consideram que há velhos de melanésio, o termo vernacular pelo qual os

Nossa história está escrita nas pedras


várias etnias que ainda podem narrar as nativos daquela região referem-se de maneira
histórias ancestrais, descrever os antigos reflexiva e objetificada a seus próprios

A C I O N A L
rituais e ensinar encantações. Às vezes costumes (trata-se de um pidgin do termo
afirmam que esses velhos são como Bíblias, inglês “custom”).
depositários de uma vasta gama de Lidar hoje com a chamada cultura dos

N
R T Í S T I C O
conhecimentos cuja integridade e transmissão antigos é algo que está, sem dúvida, a exigir
passa hoje também pela escrita. A geração dos criatividade por parte das lideranças do
que começam a assumir postos de capitão ou movimento indígena do rio Negro, e cumpre

A
de líderes de organizações indígenas é a que potencializá-la também através de novos

E
I S T Ó R I C O
mais freqüentemente expressa esse dilema; e recursos. Os desafios que isso acarreta para
são seus filhos quem cada vez mais se uma instância de representação macro-
interessam pelas coisas dos brancos. regional como a FOIRN são inúmeros, e não

Geraldo Andrello
Ora, o modo como as lideranças se há espaço aqui para enumerá-los (para essa

A T R I M Ô N I O
referem hoje à cultura parece corresponder discussão ver Jackson, 1991 e 1995). No
àquilo que M. Strathern (1998:118) classifica entanto, é importante lembrar que, da ótica
como uma tradição “valorizada e explícita”, o das lideranças, a proposta que surge agora da

P
D O
que não seria o mesmo que uma “tradição parte do Iphan para um convênio visando à

E V I S T A
não manifesta, implícita ”. Esta última seria realização do INRC (Inventário Nacional de
tradição apenas para o observador; para o Referências Culturais) na região como um

R
portador ela seria simplesmente vida. Assim todo é extremamente bem-vinda, certamente,
sendo, esta cultura que se pretende salvar já por ensejar também um fortalecimento tanto
faz parte, afirma Strathern, de um novo tempo, em relação à arena política local, como a uma
e não do velho mundo da cultura indígena. Ela opinião pública externa.
não estaria, por assim dizer, em choque com No exato momento em que uma primeira 147
os novos comportamentos, pois tantos estes iniciativa aterrissa numa localidade como
quanto a tradição assim reinventada fazem Iauaretê, porém, as coisas se tornam mais
parte de um novo tempo. Nessa mesma linha, complexas, pois aqui a questão parece
Manuela Carneiro da Cunha (2004) sugeriu manifestar-se com nuanças próprias; isto é, o
recentemente que hoje, em diferentes tema da cultura é nesse âmbito ainda mais
circunstâncias, se verifica a existência de dois local um assunto de política interna, e talvez
níveis de aplicação da noção de cultura: um, o principal deles (a esse respeito, ver
literal, que corresponderia ao uso geralmente também S. Hugh-Jones, 1998). Como
observado em textos antropológicos, isto é, viemos discutindo, conversar ali sobre
something that, though dynamic and changeable, “patrimônio cultural” nos leva a tocar na
would inform values and actions; outro que diferenciação hierárquica entre os grupos, e
corresponderia a um uso político por parte justapor, por assim dizer, suas perspectivas
de seus portadores. Esta última consistiria diferenciais a respeito de si mesmos e de
em um metadiscurso sobre a cultura; de outrem. Assim, entre os Tariano, por
acordo com a autora, um análogo do kastom exemplo, somente aqueles reputados chefes
Nossa história está escrita nas pedras se encontram, de seu próprio ponto de vista, que possuíam um grande conhecimento
em posição de reivindicar prerrogativas e de esotérico e se mobilizavam para manter e
pensar formas de organizar Iauaretê com aumentar os bens sagrados de sua maloca, podendo
A C I O N A L

base em um discurso consciente sobre disponibilizar os recursos necessários para


revitalização cultural. A cultura é, deste patrocinar os rituais.Tais capacidades rituais
modo, não apenas aquilo que diferencia os prestavam-se a fortalecer sua posição política.
N
R T Í S T I C O

índios dos brancos, mas também aquilo que


diferencia os índios entre si. Uma afirmação Em Iauaretê, e na região do alto rio
que se ouve em Iauaretê ilustra bem este Negro como um todo, poder-se-ia
A

ponto: “Os índios aqui em Iauaretê são o questionar a integridade desse patrimônio.
E
I S T Ó R I C O

mesmo tipo de gente, porque comem a Já vimos que uma enorme erosão se
mesma comida, o que muda entre nós, processou em seu aspecto material, com a
Tukano, Desana, Pira-Tapuia, são as obstinação missionária em tomar as caixas
H

Geraldo Andrello

histórias, os cantos, as danças, quer dizer, a de enfeites dos índios e destruir suas
A T R I M Ô N I O

cultura.” A cultura, portanto, aparece como malocas. Por outro lado, como vimos
algo exclusivo dos índios, e que os distingue através da narrativa dos Tariano Koivathe, o
entre si. Já os brancos, com suas outras uso de nomes cerimoniais ainda vigora –
P
D O

comidas, seriam outro tipo de gente. Não além de um nome cristão, eles ainda dão a
E V I S T A

têm cultura, pois não têm benzimentos ou seus filhos os nomes dos Diroá, que é,
nomes cerimoniais, e suas coisas, isto é, as afinal, o que os torna verdadeiramente
R

mercadorias, o dinheiro, a escrita e os Tariano. Assim, poderíamos dizer que o


conhecimentos, foram historicamente componente imaterial do patrimônio
classificados como civilização. distintivo dos clãs do Uaupés parece, em
De modo importante, aquilo que hoje em certa medida, ter persistido, apesar da
148 Iauaretê é chamado de cultura dos antigos entrada na civilização dos brancos.Talvez seja
configura-se como uma referência ao também por esse motivo que às vezes
patrimônio material (ornamentos e ouvimos os índios do Uaupés afirmarem que
instrumentos sagrados) e imaterial (nomes, “não perderam toda a sua cultura, mas
rituais, mitos, encantações e cantos) que apenas 50%”. A meu ver, esta é uma forma
distinguiam os clãs pertencentes às hoje de comunicar aos brancos que, apesar da
chamadas etnias do Uaupés. Era esse ausência de malocas e de performances
patrimônio que, mais nitidamente no rituais grandiosas, isto é, apesar de vermos
passado, constituía a expressão formal da pouco, certas práticas discretas, e próprias
identidade dos clãs. Os rituais que envolviam do espaço doméstico como a nominação,
esse patrimônio formavam também a base persistem. Ou seja, o lado imaterial e
das relações políticas entre os grupos, e era invisível daquilo que alguns moradores de
nesse nível que as posições hierárquicas eram Iauaretê chamam cultura parece ter
reconhecidas e consolidadas em diferentes permanecido inatingível pelos missionários.
conjunturas. De acordo com S. Hugh-Jones Isso que estamos aqui chamando de
(2003), os líderes eram aqueles patrimônio é aquilo a que os moradores de
Iauaretê se referem freqüentemente como porém com atributos e capacidades distintas

Nossa história está escrita nas pedras


sendo a sua riqueza, cujo valor, wapatisehé, se de acordo com sua trajetória mito-histórica.
explica por sua própria origem: trata-se de

A C I O N A L
itens materiais e imateriais obtidos pelos ***
ancestrais em sua transformação mítica e
repassados através das gerações de um clã. Antes de deixar Iauaretê, tivemos a

N
R T Í S T I C O
Por isso, a expressão na língua tukano usada oportunidade de expor aos Tariano Koivathe
para qualificá-los é ı̃sâ yı̃ kı̃sı̃ mı̃a kı̃óke, nossas preocupações quanto à importância
literalmente, o que nossos avós tiveram. No de ampliar a discussão no povoado a respeito

A
contexto de Iauaretê, começa a se tornar de todo o trabalho e do futuro e eventual

E
I S T Ó R I C O
importante dar nova visibilidade a este registro. Como deveríamos proceder, tendo
patrimônio, o que implica dar-lhe nova em vista que a cachoeira de Iauaretê é
forma material. É isso que move os Tariano também um lugar de referência para os

Geraldo Andrello
Koivathe em seu esforço de reconstruir uma outros grupos? Registrar o lugar como

A T R I M Ô N I O
maloca em Iauaretê. O registro audiovisual patrimônio cultural dos Tariano não iria
de sua história que está sendo apoiado pelo causar estranheza aos demais? Admitindo
Iphan consiste, igualmente, em uma nova essa possibilidade, conjecturaram

P
D O
forma de apresentação externa – uma inicialmente mudar de estratégia, sugerindo

E V I S T A
objetificação – dessa riqueza ancestral. então o registro do lugar de uma das
Parecem, assim, constituir novos meios que primeiras malocas que ergueram em

R
vêm desempenhar a mesma função dos Iauaretê, onde foi feita a aliança com os
ornamentos e instrumentos sagrados que no Tukano, isto é, onde foi tratado há muito
passado constituíam o aspecto material do tempo o primeiro casamento entre uma
patrimônio dos clãs.Tal como esses objetos, moça Tukano com um rapaz Tariano. Isso
as falas ancestrais, u’ukunsehé, que incluem alterava todo o processo, pois já não se 149
os mitos, as encantações, os nomes e os trataria de enfatizar a identidade de um
cantos, são veículos do princípio vital grupo particular, mas de pôr em evidência as
transmitido através das gerações. É através relações entre os grupos, muito embora o
destes novos meios que, em suma, as novo lugar proposto fosse o de uma antiga
distinções entre os clãs Tariano, e destes maloca dos Tariano. Era preciso, enfim,
para com os outros grupos presentes no realizar um debate maior. Ao saber do
povoado, podem ser reafirmadas. interesse do líder geral de Iauaretê em
As novas circunstâncias sociais vieram, organizar uma reunião específica para tratar
portanto, engendrar uma associação nítida do assunto, decidiram marcar a reunião para
entre o negócio da revitalização cultural e a o mês seguinte, num Domingo de Páscoa,
reafirmação das prerrogativas diferenciais quando a maior parte das pessoas de Iauaretê
dos grupos do Uaupés, o que leva alguns a poderá participar.
definir este processo virtual como uma Ainda não sabemos se a reunião ocorrerá
forma de “mostrar quem é quem em de fato, mas em caso positivo será um
Iauaretê”. Um mesmo tipo de gente, é certo, evento que irá marcar, talvez mais
Nossa história está escrita nas pedras efetivamente do que aquela primeira reunião 22-23, p. 179-201. Paris: Survival International, 1998.
______________. Etnias do Rio Uaupés. Instituto
na sede da FOIRN, a entrada dos grupos
Socioambiental, Enciclopédia dos Povos Indígenas
indígenas do Uaupés em um debate mais (versão eletrônica:
A C I O N A L

amplo sobre patrimônio cultural e http://www.socioambiental.org/pib/epi//uaupes/ua


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propriedade intelectual. Cabe-nos JACKSON, Jean. Being and becoming Indian in the
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N

Nation-states and Indians in Latin America. Austin:


R T Í S T I C O

com os Tariano e Tukano em que medida a


University of Texas Press, 1991.
forma como vem sendo estruturada a ______________. Culture, genuine and spurious:
política de proteção do patrimônio imaterial the politics of indianness in the Vaupés, Colombia.
A

apresenta ressonâncias com sua própria visão American Ethnologist, v.22, n.1, p. 3-27, 1995.
E

LONDRES, Cecília. Referências Culturais: base para


I S T Ó R I C O

acerca do que é patrimônio e da relação entre novas políticas de patrimônio. In: Inventário nacional de
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MAIA, Moisés (Akı̃to) e MAIA,Tiago (Ki’mâro). Isa


Geraldo Andrello

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Repenser l´ école: témoignages et expériences
éducatives en milieu autochtone. Ethnies Documents, v.
N o ta s 6 No mundo presente, os meios de vida e

Nossa história está escrita nas pedras


transformação da era mítica – o tabaco, a cuia com o
1 Para uma introdução geral e uma minuciosa caldo de frutas doces, o pensamento dos demiurgos e
descrição do processo institucional que levou à os adornos obtidos junto às divindades que vivem na

A C I O N A L
formulação das bases e da edição do decreto 3.551, casa do céu – possuem como análogos as substâncias e
ver Minc/Iphan, 2003. as propriedades dos corpos masculino e feminino.
2 Sobre a noção de referência cultural que orienta a 7 Em grande medida, esses planos são possíveis hoje
em dia também em função de uma mudança

N
nova política, ver Londres, 2000; sobre as diretrizes
importante na postura dos próprios missionários a

R T Í S T I C O
adotadas para o inventário dos bens culturais, assim
como para uma definição metodológica da própria partir do final dos anos 70 quanto às expressões
idéia de “bem cultural”, ver Arantes, 2000. culturais indígenas. Sua aproximação da pastoral
3 De acordo com o Handbook of South American Indians indigenista mais progressista do Cimi, bem como a

A
(ver Goldman, 1948), esta área faz parte de uma influência dos padres Javerianos da Colômbia que

E
assumiram as missões do Papuri nos anos 50, mais

I S T Ó R I C O
região maior, denominada Uaupés-Caquetá,
considerada uma “província cultural” e que alcança os propensos à Teologia da Libertação, os fez, já nos anos
seguintes limites: ao norte, limita-se pelo rio 70, iniciarem uma mudança radical na prática
Guaviare; a leste, pelos rio Negro e Guainia; ao sul, missionária. Foi a partir daqueles anos que, como se

H
recordam várias pessoas de Iauaretê, começaram a

Geraldo Andrello
pelo rio Caquetá-Japura; a oeste, pelos Andes. Na

A T R I M Ô N I O
parte barasileira, residem 21 grupos étnicos aparecer novos salesianos que, além de falarem em
diferentes, representantes das famílias lingüísticas promoção humana e projetos econômicos, passariam a
Tukano Oriental (Cubeo, Desana,Tukano, Miriti- recomendar aos índios que valorizassem sua própria
Tapuia, Arapaso,Tuyuka, Makuna, Bará, Siriano, cultura. A mudança de postura dos religiosos foi

P
Karapanã,Wanano e Pira-tapuia), Arawak (Tariano, também motivo de perplexidade para os índios, pois

D O
Baniwa, Kuripako,Warekena e Baré) e Maku (Hupda, quem poderia esperar que tudo aquilo que fora
condenado como coisas do diabo – o xamanismo, a

E V I S T A
Yuhup, Nadeb e Dow). Esta área cultural foi
caracterizada pelos seguintes traços: ênfase no cultivo iniciação, os instrumentos sagrados, etc. – pudesse
da mandioca amarga e na pesca, aldeias compostas por então passar a ser recomendado enfaticamente?

R
uma única casa coletiva ocupada por um grupo local
de parentes, rituais complexos de iniciação masculina,
organização social baseada em clãs patrilineares
exogâmicos, entre outros (ver também Galvão,
1979). Etnólogos que visitaram a região antes da
formulação da teoria das áreas culturais, como Koch- 151
Grünberg em 1903-4 e Nimuendajú em 1927,
também a tratam como uma unidade. Nimuendajú é
quem primeiro formula uma hipótese sobre o
povoamento Maku, Arawak e Tukano – exatamente
nesta seqüência – da região em tempos pré-coloniais
(ver Nimuendajú [1927]1982 e para uma
problematização da hipótese,Wright 1992).
4 A Coleção Narradores Indígenas do rio Negro vem
sendo editada pela FOIRN desde 1995. Até o
presente, publicou sete títulos, todos eles de autoria
indígena. Esses livros contam a história da origem do
mundo e da humanidade de acordo com a visão dos
grupos indígenas do rio Negro. Dos sete volumes
publicados, três foram narrados por índios Desana,
dois por índios Tukano, um por índios Baniwa e um
por índios Tariano.
5 Os rios Uaupés e Içana são os dois principais
afluentes do rio Negro em seu alto curso. Com seus
subafluentes e com os rios Xié e Curiciriari compõem Nota: Todas as fotos utilizadas neste artigo são de Geraldo
Andrello, em Iauaretê, rio Uaupés. Pertencem a seu arquivo pessoal
a bacia dos formadores do rio Negro.
e foram tiradas em fevereiro de 2005.
Ana Gita de Oliveira e Beatr iz Muniz Freire
N ota s o b r e d u a s

A C I O N A L
e x p e r i ê n c i a s p at r i m o n i a i s

N
R T Í S T I C O
A
Introdução dinâmica, por suas características não

E
I S T Ó R I C O
monumentais ou excepcionais, escapavam
Este artigo tem por objetivo descrever das ações de preservação preconizadas pelo
duas experiências-piloto, ainda em curso, Decreto-lei nº 25/1937.

H
desenvolvidas pelo Departamento do Isto significa dizer que os novos

A T R I M Ô N I O
Patrimônio Imaterial do Instituto do instrumentos instituídos em 2000 passam a
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional organizar a retomada de políticas de
(Iphan), que colocam em perspectiva identificação de bens culturais, ao

P
D O
questões relacionadas tanto com ações de possibilitarem o reconhecimento, pelo

E V I S T A
preservação voltadas para os povos Estado, da diversidade cultural brasileira.
indígenas, quanto com a adequação de novos Dito de outro modo, a criação do Registro e

R
instrumentos, recentemente criados, no do INRC corresponde a uma mudança na
campo do patrimônio cultural: trata-se da maneira como o Estado percebe a cultura
aplicação de Inventários de Referências brasileira e os processos de construção de
Culturais junto aos Mbyá-Guarani de São identidades contemporâneas, nela
Miguel das Missões/RS e também da reconhecendo a existência de diferentes 153

proposta de Registro dos Lugares Sagrados mundos socioculturais e a convivência de


no contexto multiétnico do alto rio Negro. práticas e valores distintos.
Tais experiências inauguram políticas Estes instrumentos e a política
patrimoniais voltadas para os povos patrimonial que organizam têm como Participação dos
Guaranis em evento
indígenas, lançando mão dos instrumentos pressuposto o entendimento de que o
cívico. São Miguel das
criados pelo decreto 3.551/2000: o exercício da cidadania passa, Missões, Rio Grande
do Sul, 2004.
Inventário Nacional de Referências necessariamente, pelo reconhecimento da
Culturais – INRC, e o Registro de Bens de imprescritibilidade dos diferentes sistemas
Natureza Imaterial. Por esse decreto, que culturais. Mais ainda, que os conhecimentos,
recupera preocupações já presentes por as inovações e práticas orientadas por
ocasião da criação de uma política de tradições estão intimamente relacionadas
patrimônio cultural no País, em 1937, ficou com a existência de um povo, são parte
estabelecido um novo domínio patrimonial constitutiva de suas experiências culturais e,
relativo aos chamados bens culturais de caráter por essa razão, inalienáveis e irrenunciáveis.
imaterial que, por sua natureza processual e Neste sentido, e em razão da permanente
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire construção dos símbolos e signos sociais. Põem em perspectiva até mesmo os
Nota sobre duas experiências patrimoniais
estruturantes dos processos de produção de bens culturais consagrados pelo Decreto-lei
novas identificações locais (Hall-2003), o nº 25/37, os assim chamados bens culturais
A C I O N A L

campo do patrimônio cultural constitui, na móveis e imóveis, por terem eles mesmo
modernidade, lugar focal para articulação uma carga semântica referencial para
entre tradições locais e constituição de grupos sociais e por serem indicativos de
N
R T Í S T I C O

direitos culturais. formas históricas e estilos artísticos


O chamado patrimônio imaterial, objeto definidores dos processos culturais que
das ações aqui comentadas, está ancorado na ensejaram nossa condição nacional.
A

noção de referências culturais, conceito cuja A criação do Departamento de


E
I S T Ó R I C O

historicidade remonta ao Centro Nacional Patrimônio Imaterial, no âmbito do Iphan,


de Referências Culturais – CNRC, criado em 2004, tornou possível o
por Aloísio Magalhães, na década de 1970 e desenvolvimento de projetos sistemáticos
H

que, posteriormente, com a criação da que tenham por objeto as referências


A T R I M Ô N I O

Fundação Nacional Pró Memória, se culturais dos povos indígenas, de modo a


constituiu domínio específico do campo incluí-los no contexto institucional das
patrimonial. É precisamente da tensão que ações de preservação. Dois projetos pilotos
P
D O

se estabeleceu entre o pedra e cal, expressão foram, então, estruturados: um voltado


E V I S T A

que designava o conjunto das ações de para as referências culturais dos Mbyá-
proteção ao patrimônio edificado, Guarani de São Miguel das Missões/RS,
R

principalmente, e as referências culturais, desenvolvido pela 12ª Superintendência


oriundas do CNRC, no final da década de Regional do Iphan; e outro sobre
1970 e início de 1980, que o campo do referências culturais no alto rio Negro,
patrimônio imaterial se constituiu. desenvolvido em parceria com o Instituto
154 A Constituição Federal de 1988 significou Socioambiental e a Federação das
um importante avanço para o entendimento Organizações Indígenas do Rio Negro. Em
do campo patrimonial. Os artigos 215 e 216 ambos os casos, o pressuposto é que os
deixaram estabelecidas as bases para a conhecimentos a serem produzidos venham
constituição das políticas de preservação ao a propor elementos organizadores de
preceituarem que o patrimônio cultural políticas de salvaguarda específicas para os
brasileiro é constituído pelos bens de povos indígenas, resguardadas suas
natureza material e imaterial, portadores de características diferenciais.1
referências à identidade, à ação e à memória Mais do que a revisão do elenco de bens
dos diferentes grupos formadores da que constituem o patrimônio nacional, com
sociedade brasileira. a inclusão de outros, representativos de
As referências culturais são constitutivas segmentos sociais até então ignorados pelas
da diversidade cultural, categoria ampla e políticas de preservação, a instituição do
politicamente abrangente. Dizem respeito INRC e do Registro de Bens de Natureza
aos sentidos e valores atribuídos por Imaterial significa uma ampliação da noção
sujeitos diferenciados a bens e práticas de bem cultural, compreendendo dinâmicas
e singulares, dando ênfase aos processos de destinados a reunir nativos de modo a

Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire


Nota sobre duas experiências patrimoniais
sua constituição e atualização. 2 facilitar sua catequese. A criação das Missões
Grupos sociais desconsiderados ou tidos Guarani – das quais se preservam, hoje, em

A C I O N A L
como coadjuvantes na formação social e solo brasileiro, quatro remanescentes – foi
cultural brasileira passam a ser vistos como parte do projeto de ocupação do Novo
sujeitos cuja atuação deve ser conhecida na Mundo baseado, como se sabe, na fé e na

N
R T Í S T I C O
sua lógica própria. Este é o espírito dos espada. As Missões constituíram uma
projetos que comentaremos a seguir e cuja experiência singular de contato entre nativos
execução tem sido marcada por e europeus, uma vez que a vida em redução

A
questionamentos quanto aos limites da implicou a estreita negociação entre jesuítas

E
I S T Ó R I C O
metodologia empregada (considera-se que e indígenas, além de produzir um tipo social
o INRC ainda está em construção, específico, o guarani missioneiro, indígena
podendo ser aperfeiçoado por acréscimos e acostumado à rotina de trabalho diário e

H
alterações sugeridas pelo seu uso) e quanto qualificado para executar ofícios diversos,

A T R I M Ô N I O
às possibilidades de aplicação da noção dos quais a sociedade colonial era
institucional de patrimônio a grupos que extremamente carente, conforme aponta
não compartilham das concepções de Neumann (1996).3

P
D O
tempo e de memória sobre as quais ela O fracasso da experiência missioneira, a

E V I S T A
está baseada. concessão de sesmarias pela Coroa
portuguesa e, posteriormente, a chegada de

R
O Inventário junto aos imigrantes europeus produziram novas
Mbyá-Guarani de São configurações fundiárias na região,
Miguel das Missões expandindo-se a criação do gado
introduzido pelos jesuítas e o cultivo da
A presença dos Mbyá-Guarani no erva-mate, uma prática dos Guarani que foi 155
município de São Miguel das Missões apropriada pelos colonizadores em moldes
proporciona situação única para uma mercantilistas. A dispersão que se seguiu da
aproximação patrimonial: trata-se de um população missioneira é pouco conhecida.
grupo indígena que se reestabeleceu em área Parte significativa teria retornado a seu
considerada patrimônio histórico brasileiro modo tradicional de vida, enquanto os
pelo Iphan e da humanidade pela Unesco. indígenas aprisionados na Guerra
A ocupação Guarani da área onde hoje se Guaranítica foram escravizados pelos
encontra o Sítio Arqueológico de São Miguel portugueses. Sabe-se que houve
Arcanjo é anterior à era cristã. Nos séculos deslocamentos de missioneiros tanto para
17 e 18, expressivo segmento do povo cidades coloniais quanto para fazendas de
Guarani, então estabelecido no atual sul do criação de gado, onde trabalharam como
Brasil, na Argentina, no Paraguai e no peões. Sua integração à sociedade local pode
Uruguai, passou a viver em reduções – ser pensada à luz das expressões hoje
aldeamentos complexos, organizados por utilizadas seja para nos referirmos à
jesuítas ligados à Coroa Espanhola, e população mestiça – como a palavra bugre,
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire de sentido pejorativo –, seja para designar Museu das Missões, dentro do Sítio de São
Nota sobre duas experiências patrimoniais
pessoas nascidas na região missioneira e/ou no Miguel Arcanjo.
Rio Grande do Sul – como os designativos Em julho de 2001, foram assentados em
A C I O N A L

índio velho e indião, que denotam amor à uma área de 237 hectares, às margens do rio
terra e adesão a determinada representação Inhacapetum, adquirida pelo governo do
identitária – a de gaúcho –, à semelhança do Estado na gestão de Olívio Dutra, em local
N
R T Í S T I C O

que ocorre em outras áreas do país distante 30 quilômetros do Sítio, na


(Oliveira: 1999, p. 199).4 vizinhança de dois assentamentos de
Por longo tempo, a historiografia agricultores sem terra e de fazendas. A
A

brasileira, notadamente aquela produzida apropriação do local pelos Guarani foi lenta
E
I S T Ó R I C O

no Rio Grande do Sul, abordou a e sua sobrevivência dependeu do


experiência missioneira na perspectiva da fornecimento de alimentos pela Funai e do
obra jesuítica, entendida como ação apoio de outras instituições. A
H

civilizadora, cuja importância estaria, comercialização do artesanato assumiu


A T R I M Ô N I O

sobretudo, na sua relação com a definição grande importância sendo, hoje, a principal
da fronteira sul do Brasil. Estudos mais fonte de renda do grupo.
recentes feitos por historiadores e por A presença dos Mbyá em local onde, no
P
D O

antropólogos, baseados em fontes primárias passado, indígenas Guarani viveram


E V I S T A

e em contato direto com os Guarani aldeados, gerou uma situação paradoxal,


contemporâneos, têm possibilitado pois o discurso do Iphan sobre a
R

repensar tanto a experiência histórica experiência missioneira, à luz da


missioneira quanto as especificidades da historiografia tradicional sobre o tema, está
convivência entre índios e não-índios na centrado na atuação dos jesuítas e no
região em questão, bem como o comentário das características
156 relacionamento do Iphan com os Mbyá- arquitetônicas da igreja e da redução. A
Guarani que freqüentam diariamente o atual exposição do Museu das Missões,
Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo. montada em 1985, propõe uma abordagem
Segundo relatório da 12ª artística do acervo, constituído quase
Superintendência Regional do Iphan (2003), exclusivamente de imagens religiosas.
esse grupo – hoje constituído por cerca de Pouco informa sobre os artífices – os
250 indivíduos – teve início com o retorno, Guarani – e os processos a que estiveram
em 1989, de algumas famílias para o submetidos. A referência aos Guarani como
município de São Miguel das Missões, e com coadjuvantes de uma experiência datada,
o deslocamento de outras, em 1994, levadas associada à representação do índio como ser
por veículo de prefeitura vizinha, segundo a pretérito, amplamente difundida no senso
qual “lugar de índio é nas missões”. As comum, contrapõe-se, de certo modo, à
famílias estabeleceram-se provisoriamente visão dos Mbyá, sentados no alpendre do
no entorno da Fonte Missioneira e, com a Museu, conversando em sua língua e
concordância do Iphan, passaram a oferecendo aos visitantes a oportunidade de
comercializar seu artesanato no alpendre do uma reflexão sobre as relações inter-étnicas
no presente. Tal oportunidade apresenta-se, submetidos pelas circunstâncias históricas já

Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire


Nota sobre duas experiências patrimoniais
é claro, para o próprio Iphan. descritas. Sabemos, contudo, que essa
Foi neste contexto que o Inventário mesma condição tem, de certa forma,

A C I O N A L
Nacional de Referências Culturais começou amparado os Guarani na preservação de seu
a ser desenvolvido junto aos Mbyá-Guarani modo de ser e de ver o mundo, o que
de São Miguel das Missões, como parte do evidencia a delicadeza do processo ora

N
R T Í S T I C O
projeto da atual gestão da 12ª vivenciado.Tal aceitação deve-se, em grande
Superintendência Regional do Iphan de parte, à habilidade dos pesquisadores,
reconhecer a participação de indígenas e de notadamente à longa experiência de

A
negros em processos históricos de grande convivência com os Guarani do antropólogo

E
I S T Ó R I C O
relevância, alguns dos quais são referidos José Otávio Catafesto de Sousa. Mas pode
pelo que hoje é considerado patrimônio ser atribuída, também, à percepção, expressa
nacional no Rio Grande do Sul, como é o pelos Mbyá, em reunião de apresentação da

H
caso dos remanescentes das chamadas proposta, de que se trata de uma tentativa de

A T R I M Ô N I O
Missões Jesuíticas Guarani.5 ‘entender o jeito de ser do Guarani’.
A aplicação do INRC junto aos Mbyá, Ainda em fase de levantamento
coordenada pelo antropólogo Cristian Pio preliminar, o INRC aponta como bens a

P
D O
Ávila, com assessoramento do Dr. José serem inventariados o artesanato Mbyá e sua

E V I S T A
Otávio Catafesto de Sousa, teve como música, entre outros. Questões relacionadas
objetivo inicial gerar conhecimento sobre o à convivência do grupo com a população e

R
grupo e sua relação com o Sítio de São com instituições locais afloraram no
Miguel Arcanjo, possibilitando ao Iphan decorrer da pesquisa, tendo sido
atualizar seu discurso sobre a experiência documentada a participação dos Mbyá em
missioneira, associando-a aos processos eventos municipais, em alguns dos quais a
contemporâneos de constituição de relação entre índios e não-índios foi 157
identidades locais, bem como a questões de tematizada. Segundo relato dos
relacionamento inter-étnico, no presente. pesquisadores, o interesse de uma
Mais do que isso, o conhecimento produzido instituição federal em conhecer o grupo e
deverá dar subsídios ao Iphan para responder em documentar seu cotidiano parece estar
às demandas que os Mbyá têm dirigido à influenciando no modo como os Guarani
instituição, demandas relacionadas ao uso do são vistos pela população local. Também os
Sítio, à construção de uma casa de passagem relatos míticos e sua possível relação com a
que lhes permita permanecerem no local em região em questão estão sendo pesquisados,
melhores condições (já que o ir e vir da bem como as estratégias nativas de
aldeia para o Sítio não se faz num mesmo referência ao que consideramos passado e
dia), à comercialização de seu artesanato e memória. O desenvolver da pesquisa
ao relacionamento com o público visitante. apontará as reais possibilidades de
A realização do Inventário foi bem aceita incorporação, as políticas de preservação, de
pelos Mbyá, claramente interessados em sair categorias locais, representativas de um
da condição de invisibilidade a que foram modo de ver Mbyá-Guarani.
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire A Experiência referências que pudessem distingui-los como
Nota sobre duas experiências patrimoniais
P at r i m o n i a l n o os habitantes imemoriais no contexto de
Alto Rio Negro Iauaretê e constituir reservas de memória a
A C I O N A L

serem salvaguardadas e transmitidas às


O projeto desenvolvido no alto rio gerações futuras.
Negro é também instigante por diversas Sob esta perspectiva estava em andamento
N
R T Í S T I C O

razões. Primeiro, porque a região abrangida a construção de uma maloca, em Santa


pela calha do rio Negro, local de habitação Maria, como parte deste projeto que
de 22 etnias e de fronteiras nacionais – articulava tradição e território, cultura e
A

Brasil, Colômbia e Venezuela – apresenta política, focado em um lugar considerado


E
I S T Ó R I C O

uma ordem de complexidade significativa sagrado e referido no mito que narra a


para testar a adequação do INRC e do origem e fixação dos Tariano em Iauaretê.
Registro. Segundo, porque a organização Para os Tariano, tratava-se de, ao narrar
H

política da população indígena da região um mito, explicitar um projeto político


A T R I M Ô N I O

constitui-se num contexto onde o diálogo se articulador de prerrogativas territoriais e


realiza tanto por mediações institucionais legitimadoras de sua posição no contexto
quanto étnicas. multiétnico de Iauaretê, conforme pude
P
D O

Em maio de 2004, com o propósito de notar mais tarde, em campo, e em conversas


E V I S T A

estabelecer um contato inicial com a FOIRN com Geraldo Andrello.


de modo a anunciar a nova política para Para os Baniwa, a perspectiva patrimonial
R

preservação de bens culturais, fizemos uma que se anunciava apontava, de forma mais
reunião, juntamente com o Instituto explícita, para questões referentes à
Socioambiental, para apresentar os propriedade intelectual.
instrumentos organizadores das políticas de
158 patrimônio imaterial e ouvir propostas. No caso da produção coletiva, como ficaria o
Nesta reunião, realizada na maloca da produtor individual com seu produto? Porque a
FOIRN, em São Gabriel da Cachoeira, produção de urutu é do conhecimento de todos
estavam presentes representantes dos Tuyuka mas os urutus são produzidos por indivíduos
(alto rio Tiquié), dos Baniwa (rio Içana) e que, ao reproduzirem um artesanato que é do
dos Tariano (Iauaretê/Rio Uaupés). Cada um conhecimento coletivo, realizam inovações
dos grupos presentes apresentou questões e (André Baniwa, São Gabriel da Cachoeira, maio
propostas: os Baniwa, dispostos a constituir de 2004).6
valor patrimonial ao seu projeto comercial, já
em curso, de cestaria em arumã; os Tuyuka Para os representantes da FOIRN,
tentando articular as experiências da escola presentes à reunião, nossa proposta
diferenciada com a política patrimonial, patrimonial poderia ser vinculada à gestão
visando ao seu reconhecimento; e os Tariano, dos 10,6 milhões de hectares de terra
que há algum tempo tentavam retomar indígena demarcada, conforme expressou
elementos de suas tradições, inserindo estes André Baniwa, membro da atual diretoria da
elementos na contemporaneidade como FOIRN. Para o Iphan, anunciava-se um
campo de aplicação dos instrumentos O multiculturalismo que existe no rio Negro

Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire


Nota sobre duas experiências patrimoniais
voltados para políticas de preservação esconde o diferencial entre nós (...). [Isto
completamente novo e desafiador. significa dizer que, mesmo partilhando um

A C I O N A L
Vale mencionar que, para os povos substrato cultural comum], cada etnia se
indígenas do rio Negro, algumas noções diferencia da outra por aspectos sutis nos ritos,
como a de sustentabilidade têm sido na produção do artesanato, na especialidade de

N
R T Í S T I C O
articuladoras de ações específicas e cada etnia. O que teria que aparecer seria o
estruturantes de um campo político local diferencial. Mas, por outro lado, nem sempre esse
ainda organizado pelos princípios da diferencial deve ser comentado, divulgado

A
hierarquia mítica e da exogamia lingüística. (Higino Tuyuka – São Gabriel da Cachoeira –

E
I S T Ó R I C O
Também neste campo estão algumas maio de 2004).
questões postas pela modernidade, como a
necessária capacidade para elaborar projetos As intervenções indicavam, ainda, de

H
sustentáveis voltados para a fiscalização das modo fragmentado, preocupações voltadas

A T R I M Ô N I O
terras indígenas demarcadas e as dificuldades para a titularidade de aspectos ou elementos
inerentes em vista da extensão do território culturais que se objetivavam no contexto das
indígena e da complexa sócio e dinâmicas contemporâneas, postas pela

P
D O
biodiversidade existente, a exemplo do relação com mercados locais e nacionais;

E V I S T A
isolamento das áreas de roçado no rio dinâmicas postas na interlocução entre as
Uneuixi, conforme declarado pela FOIRN, etnias; dinâmicas postas pelo agenciamento

R
por ocasião da 6ª Assembléia Eletiva, em de instituições governamentais, não-
outubro de 2004. governamentais e outras.
Entre tradições e modernidades estão, da Neste sentido, e como se verá a seguir,
mesma forma, indicativos de mudança no o projeto Tariano explicitou, em Iauaretê,
comportamento entre as mulheres. Elas preocupações referentes à titularidade dos 159
começam a participar como interlocutoras elementos referenciais locais. É que no
do contexto político local, a exemplo da contexto multicultural do alto rio Negro,
criação de um departamento de mulheres, parte da narrativa e dos lugares sagrados
no âmbito da FOIRN, como espaço indicados pelos Tariano das comunidades
específico de articulação entre as associações de Santa Maria e de São Pedro eram
femininas existentes na região. A Associação igualmente compartilhados pelas outras
das Mulheres Indígenas do Distrito de etnias. Fazer a apresentação do trabalho
Iauaretê – Amidi é exemplo disso e, em expondo os interlocutores Tariano dessas
2002, criou um fundo rotativo, gerido pelo comunidades indicou, de modo claro, que
departamento de Mulheres, visando ao apoio se tratava ali de afirmar o diferencial, os
a pequenos projetos voltados, especialmente, elementos distintivos que conferiam a
para as mulheres indígenas.7 esses Tariano um lugar de fala e de
De outra forma, questões relacionadas reivindicação legítima quanto à titularidade
com as tradições locais foram expressas da sobre os lugares sagrados e narrativas
seguinte forma: associadas.
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire O P r o j e t o Ta r i a n o Nos dias que se seguiram ficamos, seu
Nota sobre duas experiências patrimoniais
Pedro de Jesus, Luís Aguiar, Adriano de
A provocação tinha surtido efeito. Diante Jesus, Geraldo Andrello e eu, debruçados
A C I O N A L

da profusão de sugestões e questões que sobre um mapa. A localização dos lugares


surgiram em maio de 2004, a tarefa vinha no contexto da narrativa do mito de
seguinte seria estabelecer um projeto. Mas Ahkomi, um ser que viveu no tempo da
N
R T Í S T I C O

numa região com tais dimensões e com um gente-onça e que foi duramente perseguido
contexto cultural caracterizado pelo por essa gente. A cada batalha travada com a
compartilhamento de padrões culturais e gente-onça Ahkomi caía. A cada queda, um
A

por sutis diferenças entre os grupos lugar se sacralizava. Às quedas seguiam-se


E
I S T Ó R I C O

étnicos, conforme definira Higino Tuyuka, transformações de sua pessoa em outros


construir um projeto de inventário seria seres. Assim foi que ele se transformou em
uma tarefa complexa. Cuiú-cuiú (peixe), lá na pedra do porto da
H

No final de outubro de 2004, a FOIRN Missão Salesiana, para depois se transformar


A T R I M Ô N I O

realizou sua 6ª assembléia eletiva. Desta em abacate, em raízes, em jacaré, em arara,


assembléia sairiam a nova diretoria e o novo em gavião tesoura, etc. A cada transformação
presidente. Até então, a FOIRN havia sido e a cada queda, o demiurgo cuidava deixar
P
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presidida, duas vezes sucessivas, por pessoas estabelecidas as condições materiais de


E V I S T A

da etnia Baré. Desta vez, chegava à sua existência para seus descendentes, os
presidência um Tukano. Convidada a Tariano, tal como são hoje, em carne e osso.
R

participar do evento tive, no último dia, Mesmo perseguido e derrotado, foi


cinco minutos para falar. deixando, nos pontos de transformação,
Após a assembléia subimos o rio Uaupés cacurís, caiás e matapis para que os futuros
até Iauaretê para conversar com os Tariano Tariano pudessem ter peixe.
160 sobre a proposta de registro dos lugares Até esse momento, a narrativa dava conta
sagrados, conforme o desejo que haviam de uns 20 lugares, aproximadamente. O
manifestado a Geraldo Andrello, em setembro conjunto desses lugares localizados no mapa
de 2004. O registro dos lugares sagrados, no configurava a localidade de Iauaretê,
Livro dos Lugares do Iphan, abria uma incluindo-se aí o porto da aduana
perspectiva diferente daquela esboçada na colombiana e a boca do rio Papuri, afluente
primeira reunião em São Gabriel da do Uaupés. Pedras, igarapés, peixes,
Cachoeira.Tratava-se agora de iniciar o pássaros, répteis e plantas se seguiam na
trabalho de documentação para efeito de narrativa do mito. A trajetória de Ahkomi
inscrição dos lugares sagrados localizados nas transformava em um os vários lugares.
pedras que circundam as margens do rio Naquele momento, só tínhamos as
Uaupés, em território brasileiro e localizações e a narrativa. Os rios Uaupés e
colombiano, e das outras, localizadas no meio Papuri estavam cheios, de modo que os
da cachoeira. Eram vários lugares. E, naquele lugares só poderiam ser visualizados em
momento, o trabalho consistiu em tentar fevereiro, quando os rios estivessem no seu
localizar no mapa, com eles, esses lugares. nível mais baixo.
Iauaretê – Cachoeira da Onça –, dos antigos, pela cultura dos antigos, isto é,

Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire


Nota sobre duas experiências patrimoniais
localizada na confluência dos rios Uaupés e mitos, cantos e danças associadas a outras
Papuri, é considerado território Tariano, práticas sociais.

A C I O N A L
reconhecido pelos Tariano e pelas outras É este o contexto de inserção do mito
etnias que atualmente vivem nesta que narra a chegada e fixação dos Tariana em
localidade. Coabitam neste território Iauaretê, território tradicional dos povos de

N
R T Í S T I C O
aproximadamente 3.000 pessoas, originárias língua Tukano Oriental. Ahkomi e sua saga
do alto rio Uaupés e do rio Papuri, marcam um território e um contexto no
distribuídas em famílias de Arapaço,Tukano, qual a cultura constitui elemento organizador

A
Piratapuia, Uanano e brancos: militares, de prerrogativas, de lugar de fala.

E
I S T Ó R I C O
padres e alguns poucos comerciantes. Em fevereiro de 2005, Geraldo Andrello
Associado a isto, Iauaretê configura um (Isa) e eu (Iphan) voltamos a Iauaretê.
território de fronteiras nacionais – Brasil e Vincent Carelli (Vídeo nas Aldeias) se

H
Colômbia – por onde circulam, na margem juntava a nós para iniciar a documentação

A T R I M Ô N I O
colombiana do rio Uaupés, as Forças em vídeo. Assim, munidos de GPS, máquina
Revolucinárias Colombianas – FARC e o fotográfica digital e filmadora, começamos o
narcotráfico; na margem brasileira, verifica- trabalho de localização das pedras remissivas

P
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se movimento de tropas militares, aos lugares sagrados que fixavam, de modo

E V I S T A
construção de aeroporto e toda a infra- indefectível, a gesta de Ahkomi, quando da
estrutura requerida, além de toda a criação do território Tariano, na Cachoeira

R
estrutura da Missão Salesiana, implantada na de Iauaretê, em tempos imemoriais.
região em 1929. O roteiro do trabalho foi elaborado por
A existência de televisores, desde a nossos interlocutores Tariano, das
década de 1990, em praticamente todas as comunidades de Santa Maria e de São Pedro,
casas das comunidades, transmitindo a profundos conhecedores de sua história. 161
mesma programação dos grandes centros Decidiram que começaríamos pelo marco zero
urbanos do país, e a necessidade de do sítio histórico.Tratava-se de documentar,
deslocamentos para centros urbanos em primeiro lugar, a pedra localizada no
regionais, como São Gabriel da Cachoeira e centro da Cachoeira de Iauaretê, somente
Manaus, para término da educação formal acessível neste período do ano e, segundo o
e/ou tratamento médico, constituem um que nos disseram, onde tudo começa e onde
contexto premido por elementos da tudo termina.
modernidade, geradores de tendências à Até então, considerávamos apenas os
dispersão dos elementos tradicionais. vinte lugares identificados por eles, no
Há, ainda, por parte da geração dos mais mapa, quando de nossa visita em novembro
velhos, uma preocupação recorrente com a de 2004. Como supor que, uma vez iniciado
perda dos elementos da tradição Tariano, o movimento, os lugares se multiplicariam e
especialmente pelos jovens. A dispersão dos a narrativa se tornaria mais complexa pela
elementos de tradições Tariano se reflete no agregação de novos elementos e, por
desinteresse da geração de jovens pelas coisas conseguinte, de novos lugares, desta vez
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire abrangentes de localidades longe dos rios, a culturais e políticos nos quais essas populações
Nota sobre duas experiências patrimoniais
caminho das roças, pontuando antigas e se encontram imersas. A par disso, como
míticas malocas? Estávamos,neste ponto do organizar políticas patrimoniais voltadas para
A C I O N A L

trabalho, enfrentando os desdobramentos da os povos indígenas? Como constituir direitos?


saga de Ahkomi: a criação dos Diroá, seus De que direitos estamos falando?
descendentes diretos inscritos na genealogia Para os Mbyá-Guarani de São Miguel das
N
R T Í S T I C O

como os antecessores dos atuais Tariano. Missões, a questão de sua permanência no


Estes outros lugares que começavam a ser Sítio, em melhores condições que as atuais
identificados ampliavam o perímetro de para a comercialização de seu artesanato, está
A

abrangência de um território legitimamente explicitamente colocada. Outros interesses,


E
I S T Ó R I C O

constituído pelos ancestrais.8 relacionados com um possível projeto


Enquanto identificávamos as pedras político de alteração, ao menos parcial, de
constituídas em lugares sagrados, várias sua condição de invisibilidade diante dos não-
H

famílias residentes dos bairros de Iauaretê e índios, estão apenas apontados. A aplicação
A T R I M Ô N I O

das comunidades de Santa Maria e de São do INRC vem sendo acompanhada pelo
Pedro retiravam pedras do rio Uaupés para o cacique-geral dos Guarani, José Cirilo, que
projeto de construção de um novo aeroporto participou também das decisões quanto à
P
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que a 7ª Comara vem realizando. Segundo escolha dos informantes, durante a fase de
E V I S T A

um Tariano da comunidade de Santa Maria, Levantamento Preliminar.


os militares não haviam consultado o povo O desenvolvimento do projeto no alto rio
R

para a retirada das pedras e, caso retirassem Negro vem mostrando que, para além do ato
as pedras dos lugares sagrados, seriam formal do registro de um bem cultural em
amaldiçoados com doenças ou até mesmo um dos Livros, ênfase deve ser dada ao(s)
com a morte, pois o espírito das pedras soprará processo(s) local(is) posto(s) em curso. Mais
162 em quem mexer nelas. ainda que, para determinados contextos, a
adequação de políticas de salvaguarda do
A Perspectiva do Iphan patrimônio cultural deva ser explicitada
apenas por ações de apoio e fomento, como
As experiências realizadas pelo Iphan com parece ser o caso dos Tariano.9
povos indígenas têm suscitado questões de É possível supor que se trata aqui, apenas,
várias ordens. Uma delas diz respeito à de intermediar propostas que esses Tariano
adequação do Inventário Nacional de vêm realizando entre si, e com outras etnias
Referências Culturais – INRC e do decreto da região, tendo por pressupostos o
3.551/00 para a gestão do patrimônio entendimento que têm de seu repertório
cultural voltada para os povos indígenas. De patrimonial, suas reservas de memória, seu
outro modo, cabe pensar se as “celebrações, território e paisagens e suas formas de
saberes e modos de fazer, formas de expressão interação e convívio.
e lugares”, categorias estabelecidas pelo Há uma agenda de trabalho, articulada
referido decreto, de fato organizam o por eles, que condiciona as ações de
entendimento sobre contextos históricos, preservação às categorias e dinâmicas locais
que abrangem as negociações com os Tuyuka
para compra dos ornamentos sagrados
visando à retomada dos ritos que os
antepassados realizavam; o reconhecimento
das caixas que contêm os ornamentos
sagrados que estão no Museu do Índio, em
Manaus, levadas pelos missionários
Salesianos em sua obra de catequese; o
apoio à construção e reconstrução da maloca
em um dos lugares sagrados, por eles
assinalados.Todas essas ações têm por
objetivo a organização da cerimônia de
inauguração da maloca, em si mesma um
lugar de convergência e articulação dos
signos e símbolos de tradições fixadas pelos
Tariano contemporâneos.
Outras propostas foram se apresentando
no processo. Uma delas se referia à
transformação da casa do antigo Posto de
Proteção aos Índios – SPI –, construída, não
se sabe ao certo, entre as décadas de 30 e de
40 pela 1ª Comissão de Limites e utilizada,
posteriormente, pela Funai como Posto
Indígena (P.I. Iauaretê), em um Centro de
Referências Culturais dos Povos Indígenas da
Região do Rio Uaupés e Rio Papuri, na
região fronteiriça entre Brasil e Colômbia (a
outra margem do rio). Esta proposta traz um
novo significado para a história de contato na
região. É como se a população indígena de
Iauaretê agora, ao ocupar a casa do Posto
Indígena, símbolo da política indigenista
organizadora das formas históricas de
contato, pudesse contar essa história de seu
ponto de vista.10
É possível pensar que as ações propostas Visita ao Museu das Missões, 2004.
até aqui fazem surgir uma gramática de Venda anual de artesanato – mulheres Mbyá-Guarani,
lugares fortemente referidores do contexto alpendre do Museu das Missões. Sítio Arqueológico de São
Miguel Arcanjo, Rio Grande do Sul, 2004.
de Iauaretê e cujos elementos nos ajudam a
entender dinâmicas contemporâneas locais,
Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire ensejando suportes para formulação de GONÇALVES, José Reginaldo.O patrimônio como
Nota sobre duas experiências patrimoniais categoria de pensamento. In: ABREU,Regina e CHAGAS,
políticas de salvaguarda. Esta gramática
Mário (org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos.
expressa uma continuidade, não linear, mas Rio de Janeiro: DP&A, Faperj, Unirio, 2003.
A C I O N A L

de estilos narrativos e temporalidades míticas HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.


Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
– os lugares sagrados referidos na gesta de ________________. Da diáspora – identidades e
Ahkomi, míticos e históricos; o lugar sagrado mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da
N

Universidade Federal de Minas Gerais; Brasília:


R T Í S T I C O

onde se reconstrói, na atualidade, a maloca; o


Representação da Unesco no Brasil, 2003.
lugar histórico, a indicação da casa do Posto LIMA, Ricardo Gomes e FERREIRA, Cláudia Márcia.
Indígena da Funai como Centro de O Museu de Folclore e as artes populares. Revista do
A

Referências Culturais na região do rio Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, nº 28,
E

1999.
I S T Ó R I C O

Uaupés e dos rios afluentes Papuri e Tiquié, MAUSS, Marcel. Institución y culto – representaciones
incluindo-se a localidade de Iauaretê. colectivas y diversidad de civilizaciones. Obras, II.
Barcelona: Ed. Barral, 1971.
De outra forma, a FOIRN vem tentando
H

MOREIRA, Ismael Pedrosa. Contos e lendas mitológicas


implementar um projeto que tem por
A T R I M Ô N I O

do povo tariano. Manaus: Ed.Valer (Governo do Estado


objetivo a constituição de um Centro de do Amazonas), 2001.
NEUMANN, Eduardo.O trabalho guarani missioneiro no
Expressão Cultural Indígena do rio Negro, Rio da Prata colonial (1640-1750). Porto Alegre:
no contexto urbano de São Gabriel da
P

Martins Livreiro, 1996


D O

Cachoeira. Segundo seus dirigentes, este OLIVEIRA, Ana Gita. O mundo transformado: estudo da
cultura de fronteira no alto rio Negro. Coleção Eduardo
E V I S T A

projeto constitui antiga reivindicação de Galvão.Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi,1995.


lideranças indígenas de todo o rio Negro, ______________. Indios e brancos no alto rio Negro: um
R

que buscam criar um espaço para expressar sua estudo da situação de contato tariana. Dissertação de
mestrado apresentada à Universidade de Brasília,
cultura e manifestações artísticas. Ainda mais, 1981.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em antropologia
histórica. Rio de Janeiro: Ed. UFGI, 1999.
foi pensado para ser um espaço público
RELATÓRIO da situação atual – comunidade Mbya
164 permanente, para expressão e intercâmbio cultural Guarani Koenju- São Miguel das Missões. Porto
entre as diferentes etnias do rio Negro, que Alegre: Iphan,12a. Superintendência Regional,maio,
2003.
possibilite a afirmação da identidade, a difusão e SOUZA, José Otávio Catafesto de. Aos fantasmas das
comunicação, além de oferecer oportunidades de Brenhas: etnografia, invisibilidade e etnicidade de
formação, demonstração, registro e memória alteridades originárias no Sul do Brasil (Rio Grande do Sul).
Tese de doutorado apresentada à Universidade Federal
cultural (Ofício da FOIRN ao Bispo D.Walter do Rio Grande do Sul. 1999.
Ivan de Azevedo).
N o ta s
Bibliografia
1 As ações implementadas pelo Departamento do
ANDRELLO, Geraldo L. Iauaretê: transformações sociais e Patrimônio Imaterial, ao tempo em que explicitam a
cotidiano no Uaupés (alto rio Negro,Amazonas). Tese de perspectiva dessas políticas patrimoniais, organizam os
doutoramento apresentada à Universidade de projetos de Inventário e de Registro. Tratam do trabalho
Campinas, 2004. (Mimeografado). voltado para as referências culturais de moradores de
CANCLINI, Nestor Garcia. A globalização imaginada. núcleos históricos tombados, da multiculturalidade em
São Paulo: Iluminuras, 2003. contextos urbanos de megacidades, dos povos indígenas,
____________________. Culturas híbridas. 4ª. ed. de populações afro-brasileiras, de populações tradicionais.
São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2003. Ao todo, ensejaram, em 2004, 32 projetos de inventários
e 25 de Registro, entre os quais dois voltados aos povos urbanista Lúcio Costa foi o responsável pelo trabalho

Ana Gita de Oliveira e Beatriz Muniz Freire


Nota sobre duas experiências patrimoniais
indígenas. de reconhecimento nacional e internacional de São
2 Uma revisão do elenco de bens constitutivos do Miguel das Missões. Em 1996, o Circuito
Patrimônio Nacional foi iniciada nos anos 80, Internacional Integrado das Missões Jesuíticas dos

A C I O N A L
resultando em importantes tombamentos como o do Guarani foi declarado pela Unesco como uma das
Terreiro da Casa Branca, em Salvador/BA, e o do quatro Rotas de Turismo Cultural Internacional.
conjunto de 48 casas representativas da imigração 6 Urutu – cesto produzido com fibra conhecida por
italiana, em Antônio Prado/RS. Arumã, de forma cilíndrica, com desenhos

N
3 Há registros documentais de requisição de guarani geométricos no trançado, feito exclusivamente por

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missioneiros pela Coroa espanhola para prestação de homens.Tanto os povos de língua aruaque como os de
serviços militares ou em obras públicas, transporte e língua Tukano Oriental produzem urutus. Há,
construção naval. Além de dominarem técnicas de entretanto, diferenças em sua manufatura,

A
escultura, marcenaria, fundição, os guarani reconhecidas por seus produtores que podem ser

E
missioneiros eram hábeis agricultores e criadores de tomadas como sinais diacríticos, indicativos das

I S T Ó R I C O
gado, o que lhes garantia meios de sustentarem-se fora identificações locais.
das reduções, trabalhando em cidades como Buenos 7 Com apoio da Missão Salesiana, a nova sede da
Aires e nas estâncias que foram, aos poucos, se Amidi, em Iauaretê, estava sendo construída pelas

H
multiplicando no território do atual Rio Grande do mulheres indígenas, conforme registramos em

A T R I M Ô N I O
Sul, após o fracasso das Missões. novembro de 2004.
4 Em 1750, Portugal e Espanha, que disputavam o 8 Foram identificadas quatro malocas, inscritas na
território onde hoje se localiza o Rio Grande do Sul, narrativa, indicando momentos importantes na
firmaram o Tratado de Madri, pelo qual os Sete Povos trajetória de Ahkomi e, posteriormente, dos Tariano,

P
das Missões seriam entregues aos portugueses em tornados “gente de carne e osso”.Ver ANDRELLO,

D O
troca da Colônia de Sacramento, que passaria a ser Geraldo., 2004.
espanhola. Caberia aos jesuítas conduzir a população 9 O Decreto 3.551/2000 estabelece quatro categorias

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missioneira, seus pertences e seu gado para novos de bens culturais constituídas em: Livro de Registro
povoados, localizados no ‘lado espanhol’. Os Guarani dos Saberes; Livro de Registro das Celebrações; Livro

R
que se recusaram a migrar, partiram para a defesa de Registro das Formas de Expressão; e Livro de
armada das reduções, sob a liderança de caciques como Registro dos Lugares. O INRC está organizado pelas
Sepé Tiaraju e Nicolau Ñeguirú. A eles juntaram-se mesmas categorias, acrescidas de uma: a das
nativos Charrua, Minuano e Guenoa, inimigos dos edificações que não possuem valor histórico ou
colonizadores. Para combatê-los, portugueses e artístico, excepcional ou monumental, conforme
espanhóis uniram-se num exército fortemente preceitua o Decreto-lei nº 25/37 mas que, de outro
armado. A Guerra Guaranítica (1754-1756) terminou modo, são referenciais para grupos sociais. 165
com o massacre dos nativos. 10 Esta casa foi sede do antigo Serviço de Proteção aos
5 Outra experiência de aplicação do INRC está sendo Índios na região do rio Uaupés. No período entre
realizada pela 12ª Superintendência Regional do Iphan extinção do SPI e a criação da Fundação Nacional do
junto à população negra de Porongos, zona rural do Índio, permaneceu fechada por aproximadamente 40
município de Pinheiro Machado onde, em 1844, anos, tendo sido reaberta em1974/75, no contexto do
ocorreu sangrento episódio da Guerra dos Farrapos, Plano Alto Rio Negro desenvolvido pela Funai,
no qual um pelotão de lanceiros, constituído concebido e coordenado pelo antropólogo Peter
majoritariamente de negros, foi dizimado, após ser Lachlan Silverwood - Cope.
traído por seu comandante. A Guerra dos Farrapos,
episódio emblemático da formação histórica do Rio
Grande do Sul, é referida como parte da memória
nacional pelo tombamento das casas de líderes como
Bento Gonçalves, Garibaldi e David Canabarro. A Criança Mbyá-Guarani no
pesquisa está sendo coordenada pela antropóloga Ana Sítio Arqueológico de São
Paula Comin de Carvalho, com assessoria da doutora Miguel Arcanjo. Rio Grande

Dayse Macedo de Barcellos. São Miguel das Missões do Sul, 2004.

está inscrita no Livro de Tombo de Belas Artes, tendo


sido tombada como patrimônio histórico e artístico
pelo Iphan, em 1938, e reconhecida como patrimônio Nota: todas as imagens que ilustram este artigo pertencem ao
cultural da humanidade pela Unesco, em 1983. O acervo do Inventário Nacional de Referência Cultural/Iphan.
No alto, Vanderléia. Abaixo, mãos da artesã Jovência Alecrim. À direita, Maria da Conceição. Na página seguinte, mãos da artesã Maria Gomes.
Maíra Santi Bühler
Desafios na compreensão dos efeitos

A C I O N A L
lo c a i s d a s p o l í t i c a s d e f o m e n t o a o
a r t e s a n at o n o J e q u i t i n h o n h a

N
R T Í S T I C O
A
O barro é a liga urbanos. Este artigo se ocupará dos efeitos

E
I S T Ó R I C O
do mundo? locais gerados pelas políticas de fomento à
produção e comercialização do artesanato
O Vale do Jequitinhonha – MG é em barro, característico da região,

H
conhecido, pelos que vivem nas grandes transformando-o em estratégia de

A T R I M Ô N I O
cidades, como vale da seca, da miséria e da sobrevivência para as famílias envolvidas. O
fome. O rumo da vida é morte na certa, objetivo será pensar em que medida as
morte anunciada, sempre e cedo. Com políticas voltadas para o artesanato

P
D O
base em diagnósticos marcados por garantem à comunidade as condições para a

E V I S T A
ausências (falta água, falta escola, falta transmissão e inovação do conhecimento
desenvolvimento econômico...), o implicado nesse processo de saber-fazer.

R
Jequitinhonha foi alvo de diferentes ações Para além disso, o texto apresenta breve
do Estado. Durante os últimos trinta anos, descrição sobre a produção de um
a população que vive na área rural de documento redigido pela Associação dos
Turmalina, cidade localizada no médio Lavradores de Campo Alegre – ALACA,
Jequitinhonha, passou por um processo de especialmente para este número da Revista 167

transformação bastante profundo, marcado do Patrimônio, em que as artesãs definem o


principalmente pela abertura de canais de que é a sua tradição e formulam as
comunicação com os grandes centros necessidades que têm para dar
continuidade a ela.

O tempo de antes

Hoje em dia, se você sentar um dia


inteiro para remendar, fiar, o dia não acaba
não. Hoje, para esperar um carro, espera
meia hora, acha que está esperando demais.
Ninguém se presta a descaroçar algodão,
catar piolho em menino. Mas nem sempre
foi assim. De primeiro, os anos custavam
passar, o dia custava desenvolver. Tempos atrás,
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais quando o galo era o relógio de nós, Dona próprio pequi. Na volta, eles traziam café,
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
Jacinta, numa Sexta-Feira da Paixão, ouviu o sal em pedra, toucinho, pinga. O caminho de
padre falando no rádio: Deus fez o mundo volta era uma alegriagem: tudo vendido,
A C I O N A L

igual ao cabo do moinho, pra multiplicar os comprado, pagado.


anos, os dias, as semanas. No começo dos O barro não estava separado de nada,
tempos, os anos rodavam devagarinho, estava fazendo a liga entre todas as coisas do
N
R T Í S T I C O

demorava moer. Mas, aplicando, mói ligeiro. mundo: entre Deus e o homem (porque o
Passa ligeiro. Os anos são assim: quando for primeiro homem foi feito do barro), entre a
chegando para o fim dos tempos, fim das mulher e o marido (ela faz, ele troca), entre
A

eras, o tempo vai correr desembestado, o fogo e a comida (feito panela), entre
E
I S T Ó R I C O

moinho tocando. Dona Jacinta não vacilou: plantar e colher (quando estia), entre a casa
Do jeitinho que eu pensava! Mais tarde, Seu e a roça (no terreiro). Entre nós, os campeiros
Leopoldo explicou que hoje compreende e os outros, mateiros. Nas paredes e no chão da
H

tudo. A confusão é essa: Naquele tempo de casa, nos objetos todos.


A T R I M Ô N I O

antes, mal e mal sabia contar os meses. Ano Era um tempo sofrido, mas era alegre. Era
mesmo, se entrasse um ano ouvia falar: entrou ano triste, Deus perdoe, mas passava mal com
novo. Pensava: O trem agora tá todo novo! Que alegria. É que numa comparação com hoje, o
P
D O

todo novo que nada! Cada ano que passa, o povo sofria muito, mas se achava alegre.
E V I S T A

mundo vai ficando é mais velho. Antes de os Quando se achava em casa, se achava
anos se acumularem formando o velho, eles contente. A saudade vem de pouquinho: Ana
R

se repetiam, sempre recomeçando. tem saudades da sua roda de farinha,Timóteo


Era um tempo em que se vivia pegado na tem saudades do gosto do arroz limpo no
lavoura, sem essa andação de hoje. Não tinha pilão, Leopoldo não esquece da farrama que,
carreador e carro ninguém conhecia. As sem mal nenhum, fazia com os primos,
168 famílias viviam envolvidas na terra, fazendo Jovência vive com a lembrança de levar o
cada qual a sua roça e pedindo a Deus para pote d’água na cabeça para os camaradas que
as plantas não tomarem descaminho. O trabalhavam na roça, Celestina lembra da
trabalho de sol a sol, os filhos sempre ao zoeira dos povos dobrando o espigão,
redor. A vida neste tempo era ritmada pela barulhinho da voz dos homens que vinham a
chuva e pela seca. Plantavam milho, cavalo, a bandeira de São Sebastião apontando
mandioca e feijão. Os que tinham engenho, ainda pequenininha, a casa pronta para
plantavam cana pra fazer rapadura. Se a roça receber os foliões, a chuva querendo chover
fosse boa, o povo tinha o que comer. Se não pra molhar as plantas já plantadas. A folia é
fosse, era o aperto, o sofrimento. ato de devoção, promessa sendo paga, tempo
Nesse tempo, quando estiava, as fazedeiras de encontrar, lembrança de todos, sem
de vasilhas faziam pote, panela, botija, buião, exceção. Jacinta lembra da madrinha, a
prato, tigela. Os homens delas arrumavam parteira Mãe Maria, fazendo uma boneca de
tudo nas cargas dos burros e saíam de barro que segurava uma candeia na mão. A
viagem pra vender nas matas. As vasilhas iam boneca era um presente para o irmão Ricardo
junto com óleo de pequi, rapadura e o que, recém-casado, ia receber pela primeira
vez a folia do Divino. Cada um lembra a seu gente se entende por gente plantando roça. Ou

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
modo: o pedaço de uma música, os homens muito, ou pouco, tá bom, agradece a Deus. Com fé
que cantavam enquanto capinavam a roça. toca o barco pra frente.

A C I O N A L
Aquilo não era a dinheiro, era a dia trocado.
Mas, como se diz, tudo acaba, pra tudo tem um É sofrido, é cansativo, mas com saúde não
fim e hoje ficou individual.1 há sofrimento. Abaixo de Deus: a lavoura. A

N
R T Í S T I C O
lavoura (entendida de forma ampla, como
Campesinidade cultivo não apenas da terra, mas de uma
maneira de perceber e agir no mundo) de

A
Na interpretação de Klass Woortman quem rememora está entre o tempo de antes

E
I S T Ó R I C O
sobre o campesinato como ordem moral (em e o de agora. É simultaneamente memória e
oposição a uma ordem econômica), a terra projeto. Não cristalizada no passado
se constitui como expressão de uma estanque, ela vive na narrativa tecida pela

H
moralidade. Não em sua exterioridade, lembrança, esta obstinada atividade que

A T R I M Ô N I O
como fator de produção, mas como algo fertiliza o futuro.
pensado e representado num contexto de
valorações éticas. A terra é um patrimônio Os homens da

P
D O
da família, sobre a qual se realiza o trabalho Companhia

E V I S T A
e se constitui a família como valor2
(Woortman, K., 1987:12). O autor não Então um dia chegaram os homens da

R
fabrica envelopes nos quais insere o camponês, Companhia,3 fizeram as picadas, foram
mas indica que as categorias centrais de terra, cortando os caminhos e ninguém sabia nada.4
trabalho e família são orquestradas de Era perto de 1970, seu Emídio estava em
maneiras diferentes para expressar casa, o homem chegou e disse que era o
campesinidade. Diz ele: “Não encontramos chefe que comandava tudo. Este homem 169
camponeses puros, mas uma campesinidade falou: “O senhor vai precisar mudar.” Agora
em graus distintos de articulação ambígua veja: Emídio foi criado na lavoura, desde
com a modernidade”. O saber tradicional do pequeno, pequeno mesmo, porque não havia
camponês é, portanto, “uma matriz de estudo naquela ocasião. E veio este homem
conhecimento e de um sistema cognitivo estudado (que o estudo deveria servir pra
capaz de redefinir em seus próprios termos outra coisa) mandando ele sair. Seu Emídio
tais inovações” (Suarez,Woortman K., também não pôde estudar nenhum dos filhos,
Motta,Woortman E., 1983:152). que trabalharam a vida toda na roça com ele.
Hoje muita gente está esmorecendo, Então, quando o homem chegou, todo
deixando de plantar roça, mas Maria de mundo vivia daquela terra. Mas veja, como é
Joaquim conta com orgulho: que nós vamos viver sem a roça se nós não
pudemos estudar que nem o senhor? E daí pra
trabalhamos toda vida, plantamos todos os frente, foi nesta medida. A estrada cortou a
anos, trabalhamos diariamente, sem nunca chapada no meio. Os gerais, que eram um
esquecer, sem nunca falhar. Por essas grotas, a infinito de pequizeiros, viraram um sem-fim
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais de eucalipto. Então, como seu Emídio, muita assiadinha, correndo alegre. Hoje, cadê? O
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
gente está se vendo sem jeito. lugar que Dona Rosa morava, por exemplo,
Antes a chapada era do governo, ou não era era molhado, hoje virou sequidão. Rosa
A C I O N A L

de ninguém, ou era de todo mundo, mas com lembra com tristeza do dia em que, com os
certeza ninguém declarava, uma terra devoluta, filhos, largou a casa na roça, morada da
que na realidade, se você for pensar bem, vida,8 pra amontoar na comunidade. Não faz
N
R T Í S T I C O

era do povo dos buracos, era a liberdade deste tanto tempo, uns dez anos talvez. Hoje ela,
povo.5 Era comum você encontrar com todo como tantos outros, vive na comunidade,
tipo de bicho: veado, onça, lobo-guará, paca, mas é à força.
A

tatu, cotia, caititu, catingueiro. E tinha Emídio conta que a tendência foi cessar
E
I S T Ó R I C O

também muita planta, muita madeira de com a lavoura. A sequidão: a pessoa tem o
fazer casa e cerca, muito remédio e milhões lugar de morar mas não tem a terra pra
de pés de frutas: pé de jaca araticum, trabalhar. Os homens que têm saúde,
H

gabiroba, sapota, pequi.Tudo hoje se acabou. explodem pra qualquer canto, caçando um
A T R I M Ô N I O

A Companhia veio, trouxe máquina, trator, meio de ganhar dinheiro pra pôr comida
quebraram tudo. Bateram dias e dias rolando o dentro de casa. Os homens explodem pra
que tinha pela frente, passando um correntão cidade, onde vão trabalhar na construção
P
D O

que derrubava a vida e fazia o barulho civil, ou para o sertão, onde vão catar lenha
E V I S T A

engrossado da voz do Diabo.6 Joaquim e todo a troco de miséria, ou para as fazendas de


mundo presenciou a devassa ou a devasta: a café, durante a colheita, ou para a usina, no
R

chapada foi invadida, derrubada, tomaram conta. corte de cana.9


O pensamento de Joaquim:
Mas a Companhia não
aquilo foi para os bichos um mundão acabado. chegou sozinha
170 Quando quebrou tudo, quando arregaçou com
tudo, foi uma guerra. Guerra, morte e desunião. Os Na mesma época chegou a Comissão de
bichos se revoltaram uns contra os outros porque Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha –
não cabiam todos no mesmo lugar.Antes, como Codevale.10 Em poucas palavras, o objetivo
nós, os bichos tinham cada qual sua residência. Na central desta autarquia, criada em 1964 sob
falta da área, se aglomeraram todos. Como hoje se o paradigma desenvolvimentista, era
aglomera o povo nas comunidades e nas favelas. modernizar o Jequitinhonha.11 Esta
Então a confusão é o povo aglomerado.A água perspectiva traz em seu bojo a partilha do
faltou para os bichos beberem e, se é verdade que o mundo entre modernos/arcaicos,
mundo acaba, aqui ele acabou a metade.Tem uma avançados/atrasados, desenvolvidos/ em
parte pouca.Você entendeu?7 desenvolvimento, presente/passado e a submissão
do segundo ao primeiro termo da oposição.
Passados alguns anos da devasta veio falta O objetivo desta agência, com base num
d’água. Antes corria água por todo canto, diagnóstico de pobreza absoluta, era, pelo
nas cabeceiras todas. Maria de Marsalino prazo de vinte anos, executar um plano de
ainda lembra daquela água azulinha, desenvolvimento no vale mineiro.12
Em 1972, tendo em vista que da sua que não estavam, naquele momento, direta ou

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
perspectiva a região jazia miserável, a primordialmente ligadas a esta atividade. A
Codevale deu início ao seu primeiro família continuou sendo produzida enquanto

A C I O N A L
programa de artesanato. O objetivo do valor-família, embora a terra trabalhada (seu
programa era começar a suprir as carências patrimônio) tenha passado a ser fertilizada de
do Jequitinhonha, incentivando a outro modo, pela tessitura da memória

N
R T Í S T I C O
comercialização da produção local de peças transformada em imagem.
no mercado ampliado, atividade geradora de O barro passou a ser modelado para fora,
renda para as famílias envolvidas. Assim, o para muito além da Zona da Mata. As

A
sinal arcaico é positivado, tornando-se categorias de alteridade (no que concerne ao

E
I S T Ó R I C O
qualidade de um produto popular genuinamente trânsito dos objetos) foram ampliadas. Novos
brasileiro. A Codevale passou então a outros apareceram no cenário. A situação
imposta pelo palco de relações emergentes

H
realizar trabalhos visando aos amparo e exigiu uma trama original, e para concebê-la

A T R I M Ô N I O
fortalecimento do artesanato como atividade as fazedeiras de vasilhas se reinventaram na
cultural, sem prejudicar sua originalidade e seu vida. Este processo ocorreu em dois níveis
aspecto rudimentar, procurando preservar a distintos, que apontam para a complexidade

P
D O
criatividade e estilos próprios da região.13 dos efeitos do incentivo à venda do artesanato

E V I S T A
para o mercado ampliado.
Assim, o artesanato do Jequitinhonha foi No primeiro nível, a partir do

R
aos poucos sendo incorporado ao mercado deslocamento do contexto e do uso da
de bens simbólicos, procurados por um produção, as peças foram aos poucos se
nicho específico em emergência. modificando. As bonecas, antes não tão
Localmente, esta nova atividade que comuns, emergiram na cena principal
começava a tomar forma produziu, ao longo (grávidas, noivas, amamentando, em roda, 171
do tempo, efeitos cujas nuanças vão além da etc.). As vasilhas se transformaram em
resolução das carências da população local. enfeites, categoria local para designar as peças
Num primeiro momento, com vistas ao fitozooantropomórficas (mulheres-plantas-
desenvolvimento do artesanato como galinhas; sapo-boi; vaqueiro-vaca; pato-
estratégia de sobrevivência, a Codevale promoveu abóbora, e assim por diante) cujo fim não é
em campo oficinas ministradas pelas artesãs o uso interno. O barro escapou da morte
mais experientes que ensinavam às mais novas porque escapou do mesmo/da mesmice e,
aquilo que sabiam. A oficina figurou como com sua plasticidade infinita, continuou
primeiro impulso para a multiplicação do sendo a liga de todas as coisas. Isto porque as
número de ceramistas, um dos principais fazedeiras, com habilidade do conhecimento
efeitos desta ação estatal.14 O espaço da que é propriamente o da união entre o
oficina não se opôs ao ambiente familiar como passado e o presente, fizeram emergir em
locus tradicionalmente privilegiado para símbolo a continuidade: seu mundo explodia
transmissão do saber, embora tenha tido o em imagens ao mesmo tempo em que sua
sentido de um evento mobilizador das pessoas imagem explodia em outros mundos.
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais Se há, por um lado, uma ruptura com propagandas, abriu uma loja em Belo
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
aquilo que se fazia antes, notadamente Horizonte. A venda foi, todo o tempo,
marcada pelo deslocamento de uso e realizada pela própria agência. A
A C I O N A L

contexto, que constitui o artesanato como remuneração:


atividade realizada para fora, há também
aspectos fundamentais de continuidade e deduzindo o preço pago ao artesão no Vale,
N
R T Í S T I C O

inventividade. É por isso que Dona Rosa (a muito maior do que o cobrado nas feiras locais, a
mesma que deixou a casa da roça com a família Codevale cobre as despesas que tem para trazer a
por causa da seca e criou os onze filhos no produção de todos os pontos do Jequitinhonha e
A

cabo de enxada) mostrou às filhas que não há transforma o restante em remuneração indireta,
E
I S T Ó R I C O

diferença entre a vasilha (que ela pronuncia pagando consultas médicas, cirurgias,
vasia) e o artesanato, já que tudo é vazio: o internamentos, etc.15
pote, a galinha, os bichos todos são vazios...
H

A técnica e a tradição são reinventadas Não há quem não se lembre do quão boa
A T R I M Ô N I O

para arquitetar um discurso que revela o ela era para nós. As doações de roupas, farinha
modo como essas pessoas vêem a si mesmas. de trigo, óleo de soja, maisena de fazer
O conhecimento tradicional contém, mingau ficaram guardadas na memória de
P
D O

portanto, o arcabouço de sua transformação, todos. Foi um tempo bom para vender e a
E V I S T A

fazendo encontrar passado e presente num produção do artesanato esteve, a partir de


movimento que estabelece o saber como então, sua comercialização intrinsecamente
R

fluxo, o conhecimento como processo. conectada com os grandes centros urbanos.


Ainda nesse momento inicial, embora em É possível perceber que, do ponto de vista
outro nível, a chegada da Codevale das artesãs, o barro tomou forma, nesse
representou, para as pessoas da região que se segundo nível, antes de produto do que de
172 deparavam com um quadro de profundas saber, antes de necessidade do que de
transformações, a chegada do governo que, conhecimento. Foi na época em que a
enfim, descobrira os pobres. Como bem Codevale descobriu o artesanato, que o
lembrou Moura, “houve, por parte dos Jequitinhonha se descobriu miserável.
lavradores, a crença nas instituições do O povo da roça se sentiu, em relação à
Estado como âncoras contra a Codevale, inscrito num emaranhado de
desestruturação das relações sociais locais”. relações calcadas na caridade,
De acordo com a autora, “isto está ligado a compreendendo assim a ação desta agência
uma concepção antiga no campo brasileiro, à como um ato de benevolência. Ao fazê-lo,
qual Auguste de Saint Hilaire já tinha feito galgou para si próprio a imagem do atrasado,
referência: a de que, para o homem pobre, a do miserável, do fraco sobre ele projetada.
injustiça local não era conhecida pelo rei e Paradoxalmente, sob o signo da miséria e
que se o rei a conhecesse, daria fim a ela” do pitoresco, famílias de artesãs começaram
(Moura, 1991:22). a produzir, nesta nova ordem em que foram
Seguindo o seu objetivo, a Codevale se vendo inseridas, um complicado léxico
realizou feiras de artesanato, veiculou visual que refazia as teias da sua memória
coletiva, produzindo imagens de ciclos de Campo Alegre – Alaca, que, em tese,

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
vida e reprodução, fincados na centralidade significava uma formação jurídica para
simbólica de um princípio feminino. Ao fazê- defesa dos interesses comuns do povoado.

A C I O N A L
lo, desconstruíam em silêncio a outra Entretanto, esta associação, “trazida pelos
imagem (de morte e miséria), antagônica de fora”, pouco se preencheu de eficácia. E
mas igualmente importante na conformação quando a Codevale faltou, faltou também

N
R T Í S T I C O
deste processo. qualquer organização local dos interesses
De fato, de modo complexo, emergiram coletivos.
esses dois níveis distintos de discurso: no Aqui se iniciam novos desdobramentos.

A
primeiro, a partir do momento em que se Por motivos internos e externos os novos

E
I S T Ó R I C O
descobriram miseráveis e passaram a pensar o compradores, majoritariamente lojistas,
artesanato como necessidade, lidavam com figuraram quase que invariavelmente como
uma auto-imagem que se constituía por atravessadores. O pólo de articulação de

H
meio da fala política do pobre, do vale da interesses, na ausência da construção do

A T R I M Ô N I O
miséria merecedor da atenção do estado. No sentido político coletivo da associação,
segundo, como que por um código cifrado, continuou sendo a família.16 As que tiveram
desarmavam esta construção impregnada de possibilidade (seja por desenvoltura de

P
D O
morte e fraqueza, para afirmar e reproduzir alguma artesã, seja pela quantidade de

E V I S T A
a vida como valor. mulheres envolvidas na produção) trataram
Por fim, na concepção das ceramistas, a logo de agarrar cada qual seu atravessador,

R
Codevale tratava todos como iguais, figura que até hoje garante, ainda que a
comprando peças sem fazer diferenciação preços baixíssimos, o escoamento de grande
entre famílias ou pessoas, para ajudar o povo. parte do que é produzido pelas artesãs de
Neste sentido, estreitavam-se os laços locais Campo Alegre. Este esquadrinhamento da
de reciprocidade, aspecto visceral da venda por famílias concorrentes criou 173
sociabilidade camponesa. Este é um tempo também um grupo de artesãs excluídas. Se,
invariavelmente lembrado como tempo de de um lado, isto alimentou a reciprocidade
união, em que as famílias sentiam que no âmbito familiar, de outro, quebrou um
partilhavam uma comunidade de destino. padrão de reciprocidade que se havia
Entretanto, com o passar dos anos, a ação estabelecido entre as artesãs da comunidade
da Codevale foi se tornando esparsa. O com relação ao Estado benfeitor, que nada
órgão foi paulatinamente sendo esvaziado e mais era do que a reposição de um valor
os efeitos sentidos pelas pessoas, que a esta visceral no mundo rural que por meio de
altura esperavam passivamente a compra das instituições diversas (festas, leilões, etc.) faz
peças, que naquele momento garantia, de circular os bens criando entre as pessoas um
fato, uma parte fundamental do sustento das sentimento de comunidade.
famílias, já que a produção da lavoura se Os últimos anos foram marcados também
tornara insuficiente. pela chegada de novos agentes que
Desde 1985, havia se constituído a apresentaram para as artesãs um novo
Associação dos Lavradores e Artesãos de conjunto de conceitos:17 qualidade,
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais aperfeiçoamento, ajuste da produção às são urbanos – traços finos, superfícies lisas,
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
tendências do mercado, otimização de processos cores homogêneas, etc.) geram
produtivos; produção ágil e competitiva; internamente ainda mais efeitos: um novo
A C I O N A L

formação de preço além de revitalização da corte começa a se dar, desta vez entre
cultura; preservação da cultura, etc. gerações, já que as mais novas sabem fazer
Esses novos atores não atravessam a coisas que as mais antigas não sabem. “E esse
N
R T Í S T I C O

compra. Ao contrário, atuam no sentido de povo de hoje”, diz Dona Isabel, “vem
fortalecer a associação como espaço coletivo sempre procurando passarinho, boneca,
de organização. Entretanto, o critério da enfeite, coisa que nós não sabemos fazer
A

compra, a despeito da indignação de parte que nem elas. Então, fica pra trás”.
E
I S T Ó R I C O

das artesãs, é mercadológico. O comprador Além disso, começa a haver uma redução
escolhe a peça que gosta e, em geral, a peça que na diversidade das peças: cada artesã escolhe
mais vende, que tem mais saída. Como disse algumas das que fazia para se especializar e
H

Aparecida, atual tesoureira da Alaca, “hoje atender às demandas do mercado, otimizando a


A T R I M Ô N I O

em dia ninguém está querendo tomar produção. Este processo está em curso e
prejuízo”. Não há como fazê-lo levar uma certamente será preciso observar seu
peça chaboqueira, categoria local aplicada ao desenvolvimento. De qualquer modo,
P
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conjunto de peças feitas para fora, para parece haver uma tendência ao enrijecimento
E V I S T A

designar aquelas cujos traços são mais da capacidade criativa e inovadora. Como se
rústicos.18 Ele escolhe as peças que acha mais o universo simbólico que se desenvolveu de
R

bonitas e que aparecem como sendo as que modo bastante plural nos primeiros anos
têm melhor qualidade. Aqui, as artesãs fosse agora regredindo, sendo reduzido, cada
começam a emergir individualmente e vez mais, ao seu caráter mercadoria. As peças
“muitas, muitas mesmo, ficam sem vender”19. começam a estar de tal modo referidas ao
174 As que vendem bem, também reclamam: “mundo urbano” que tendem a perder o seu
aqui você não pode vender que o povo pega raiva. sentido local.
O conflito está, novamente, instaurado. É por isto que muitas têm saudades da
As exigências do mercado (leia-se: busca união que tinham antes. Do tempo em que a
por uma harmonia estética cujos critérios união era sem falsidade. Dona Isabel explica

Sergina Gomes e
Vanderléia, sua filha.
que “hoje pode até ter muitas pessoas iguais, querer subir num rochedo para não ver o que os

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
mas tem muitas diferentes. Nesta mexida de filhos estão fazendo de errado. Voltam a dizer
vasilha não é todo mundo que tem uma que antes era sofrido, Deus perdoe, passava

A C I O N A L
união firme pra trabalhar, uma não quer mal, mas com alegria. Indignam-se
mais o bem da outra”. Maria de Marsalino profundamente por sentirem-se como
emenda, dizendo que, pelo que vê, “depois verdadeiras (justamente porque são mais

N
R T Í S T I C O
que apresentou esse tanto de vasilha no velhas e conheceram mais a vida)
mundo, tem umas que querem só pra elas”. detentoras da memória e do conhecimento
Hoje ficou mesmo um tempo esquisito em que são, excluídas da venda das peças e,

A
que, como elas dizem, “o povo da roça quer sobretudo, do lugar de quem sabe e,

E
I S T Ó R I C O
seguir o ritmo da cidade”. portanto, de quem ensina o que é bom e o
Para este quadro, as mais velhas olham que é belo. Acumulam por isso um
com extrema desconfiança. Começam a sentimento de desgosto quando vêem as

H
achar que muita gente junta não vira coisa filhas das outras falarem prosas sobre a sua

A T R I M Ô N I O
boa. Lembram-se saudosas, do tempo em tradição. A comunidade, repetem
que não estavam amontoadas na incansáveis, é a tal porcaria.
comunidade, um espaço que aparece Por outro lado, suas filhas e noras vão aos

P
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corrompido, lugar de guerra e desunião. poucos aderindo a seu modo às categorias

E V I S T A
Reparam que hoje a cabeça está quente e o que organizam o campo de ação na relação
mundo desencarrilhado. Preocupam-se com com os de fora. Distanciam-se

R
o futuro dos netos. Observam com pesar o progressivamente da geração que as
tempo passando ligeiro, varrendo as pessoas antecedeu. Sentem-se responsáveis por
pra fora dele. Sentem-se enxotadas por um encontrar caminhos num contexto de
mundo que as está colocando no passado, mudanças, são protagonistas de um universo
ou, como disse Dona Isabel, para trás. em construção. “O mundo”, disse Maria da 175
Perigoso, dizem, se não sair da reta, alguém Conceição, “não fica toda a vida a mesma
passa por cima. Retomam as profecias do coisa”. Escutam atentas o conselho do
final dos tempos, em especial aquela que técnico enviado para falar sobre a eficácia da
diz que vai chegar um tempo em que os pais vão queima.Tentam novas formas de candear o
fogo, alcançam bons resultados para a
venda, peças de melhor qualidade.
Prosseguem. Não se inscrevem mais no
âmbito da miséria, um outro tipo de
formulação para sua atividade começa a ser
pronunciado: o artesanato é a tradição do
lugar, nossa grande cultura, está no sangue, é
um saber. Algumas aceitam encomendas
maiores do que podem dar conta, contratam
ajudantes se preciso for, apressam-se para
cumprir os prazos, ficam sem tempo para
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais outras atividades. Especializam-se. Não fiam repõe todos os dias para as famílias. Não
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
algodão, não catam piolho em menino e adianta dar conselho, falar, pelejar.
começam a achar que o carro está Ninguém consegue dar conta de segurar
A C I O N A L

demorando demais. Suas filhas, a esta altura uma moça quando ela resolve sair. Dizem:
já crescidas, socam o barro, peneiram, “Quem não ouve conselho, ouve
fazem o almoço, cuidam dos irmãos, coitadinha”. Mas o artesanato para aquelas
N
R T Í S T I C O

limpam a casa, vão à escola. que estão descobrindo o mundo é uma coisa
Vão à escola e, enquanto não têm precisão baixa, representa uma falta de opção.
de trabalhar no barro, sonham com um lugar Durvalina diz: “A diferença é que a gente
A

no futuro. Não são mais as Marias, Rosas, não sonhava, elas sonham alto: querem
E
I S T Ó R I C O

Ritas, Jacintas. São Gisleines,Wanderléias, andar de avião, elevador, morar em


Margaretes, Carleanas. Querem ir trabalhar apartamento.”
no Rio de Janeiro, morar em Copacabana, ser E, aqui, mais um universo de problemas se
H

estilistas, secretárias, atrizes, modelos. abre. O que significou, para as duas primeiras
A T R I M Ô N I O

Querem tomar água em taça, suco de laranja gerações envolvidas com os programas de
no café da manhã, vestir biquíni para fomento ao artesanato, uma maneira de se
bronzear, ter um quarto só para elas, comer reinventar no mundo em face das
P
D O

batata frita, vestir roupa de marca, fazer transformações trazidas de fora para dentro,
E V I S T A

escova no cabelo. Para isso, querem ter seu aparece agora, para a terceira geração, como
próprio dinheiro. Atualmente, cerca de vinte um percurso imposto. Sentem-se
R

meninas estão trabalhando fora da aprisionadas pelo destino previsto. E se elas


comunidade, como empregadas domésticas. não quiserem? O dilema exige invenção.
Algumas saem com 14 ou 15 anos com o A suposta falta de interesse das meninas
objetivo de continuar os estudos na cidade e pela produção artesanal está na boca de
176 seguir sua própria vida, para o desespero das todos. Em oposição ao lugar do atraso, elas
mães obstinadas pelo destino das filhas no seio desejam o novo, o moderno. Entretanto, essa
da família. Uma parte pequena das meninas, modernização (que hoje renasce sob aspectos
de fato, não volta para casa – e, neste caso, diferentes daqueles vividos vinte ou trinta
tampouco continua os estudos. A maioria, anos atrás) pode conter a morte não apenas
porém, não agüenta e retorna. Saudades dos das maneiras concretas de construção dos
familiares, dos amigos, dos namorados, da objetos de barro, mas, além disso, da
comunidade, do forró. Aos poucos, começam imaterialidade dos modos de dar sentido à
a querer casar. E quando casam, exatamente vida, de sentir e se pensar no mundo, que
como fizeram suas mães, começam a ter estão associados a esta produção.
precisão e vão mexer com barro, que é o que O desafio está, então, mais uma vez, em
sabem fazer. Assim, desse ponto de vista, o descobrir de que modo é possível tirar o
envolvimento com o fazer do barro está novo do velho, refazer o percurso a partir
intimamente ligado ao ciclo da vida. de um caminho mais ou menos conhecido,
Entretanto, o conflito vivido pelas repensar o atual a partir da memória. Tecer
adolescentes entre migrar ou não migrar se continuidade. O problema está em pensar
um modo de garantir às meninas o acesso à designam este universo do fazer estão sendo

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
modernidade sem o prejuízo de sua construídas na prática das relações entre as
particularidade histórica e biográfica. Em pessoas da comunidade e com os agentes de

A C I O N A L
compreender e respeitar seus desejos, sem fora. Palavras como tradição e cultura
que para isto seja necessário abrir mão dos aparecem com cada vez mais ênfase em
elementos que formam uma especificidade relação às já conhecidas serviço e necessidade.

N
R T Í S T I C O
estética local, que possui em si uma Tendo em vista que os conceitos estão em
convergência de sentidos culturais construção, duas perguntas guiaram a redação
profundos. Este não é apenas um desafio do documento. A primeira: o que é o barro

A
que está posto às meninas, suas mães, pais e para as artesãs de Campo Alegre? E a segunda

E
I S T Ó R I C O
avós. É também um desafio para os (que depende da resposta da primeira): como
antropólogos e para aqueles que formulam dar continuidade a isso que o barro é?
as políticas públicas da preservação de

H
patrimônios imateriais. O documento

A T R I M Ô N I O
*** Nós da Alaca – Associação dos Lavradores
e Artesãos de Campo Alegre, comunidade

P
D O
O documento a seguir foi produzido localizada na zona rural de Turmalina, no Vale

E V I S T A
especialmente para este número da Revista do do Jequitinhonha, MG., fizemos uma reunião
Patrimônio, em reunião realizada em janeiro no dia 13 de janeiro de 2005 para produzir

R
passado, convocada com a ajuda da atual este documento dizendo o que achamos
diretoria da Alaca. importante para que a nossa tradição de
As reuniões da Alaca, em geral, artesanato em barro continue existindo.
constituem-se como espaço político em que
as tensões descritas acima (entre famílias, O que é a nossa tradição? 177
entre gerações e entre pessoas) se
inscrevem em condutas, falas e Em Campo Alegre, as mulheres fazem
posicionamentos articulados por feixes de artesanato por necessidade, enquanto os
interesses diversos e dinâmicos. Ao mesmo homens (e algumas mulheres também)
tempo, a reunião é também espaço de trabalham na lavoura. Hoje em dia, por
constituição de uma coletividade. Isto causa da seca, só da lavoura não dá para
tornou-se evidente na construção do viver. Então, o artesanato é o serviço que
documento que segue, representativo do nós, desde criança, aprendemos. É um ofício
exercício da equalização de uma voz muito antigo, uma tradição de família,
coletiva a partir de vozes diversas. passada das mães para as filhas: nossas avós e
As artesãs do Jequitinhonha, em especial as mães delas também faziam. O barro é
de Campo Alegre, vivem hoje um processo uma fonte de vida para o povo. É uma
intenso de construção de um léxico para invenção na cabeça e também uma distração:
falar sobre o que fazem e sobre o sentido enquanto fazemos as peças, não estamos
daquilo que fazem. As categorias locais que pensando nos problemas que temos. O barro
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais é uma sabedoria nossa porque ele se aprende diminui, nós acumulamos muitas peças
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
dentro de casa. O artesanato significa ao prontas e muitas dívidas para pagar e isto
mesmo tempo uma opção, porque é um não é bom para ninguém.
A C I O N A L

gostar, e uma precisão, porque é o serviço Outra dificuldade que estamos


que tem para quem não quer migrar. A enfrentando e que pode atrapalhar a
pessoa que faz o barro faz porque já tem o continuação da nossa tradição é que o barro
N
R T Í S T I C O

dom, traz no sangue. O artesanato é um está começando a acabar e ainda não


conhecimento porque a cada dia que descobriram um barreiro que tenha um barro
trabalhamos, conhecemos mais e morremos tão bom como este que estamos usando. A
A

sem saber tudo. lenha também está ficando muito difícil.


E
I S T Ó R I C O

Por último, quando a gente pensa no


O que a gente precisa para continuar com a futuro, pensa que as meninas mais novas
nossa tradição? não estão querendo continuar a fazer. Elas
H

estão crescendo desinteressadas, querendo


A T R I M Ô N I O

Precisamos, em primeiro lugar, do apoio sair pra conhecer as coisas. As meninas não
das autoridades para que elas ajudem a fazer valorizam muito o artesanato porque acham
a divulgação e comercialização. Sem a ajuda que é uma coisa mais baixa. Nós reparamos
P
D O

das autoridades, nós ficamos muito isoladas que antes a gente não conhecia quase nada e
E V I S T A

com as peças prontas sem poder vender. hoje elas conhecem tudo. A gente não tinha
Além disto, nós precisamos de apoio sonho e o sonho delas é muito alto.
R

financeiro porque a associação não tem Nenhuma fala: “eu quero ser artesã igual
condições de levar as peças nas feiras das mamãe”. Então nós pensamos que é preciso
cidades grandes, que são as feiras que mais valorizar mais o artesanato, de três formas:
vendem. O transporte das peças sai muito a primeira é, em cada casa, cada mãe deve
178 caro e nós também não temos recursos incentivar suas filhas desde pequenas,
para pagar os estandes porque o preço é porque depois que cresce a gente não
muito alto. consegue mais virar a cabeça delas; a
Além disto, hoje em dia, os compradores segunda ter uma valorização maior por
compram da mão de poucas artesãs e a gente parte de todos que vêm de fora,
não pode obrigar o comprador a comprar o principalmente os órgãos do governo,
que ele não gosta. Eles escolhem o que porque quando eles chegam, a comunidade
vende mais para não tomar prejuízo. Nem passa a valorizar sua cultura; e a terceira é
todos os compradores estão interessados nos que as mães artesãs possam falar na escola
interesses da comunidade, eles estão sobre artesanato e que na escola a criança
preocupados com o que eles vão vender. também aprenda a gostar do barro.
Seria muito importante ter compradores de
todos os gostos. Gente que goste das coisas
diferentes. Assim todo mundo venderia.
Além disso, vender estimula as pessoas a Alaca – Associação dos Lavradores
continuarem fazendo. Quando a venda e Artesãos de Campo Alegre – MG.
Bonecas de barro.
Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais N o ta s 8 A morada da vida é a terra da qual se é dono
das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
legítimo por meio do trabalho (Heredia, 1979, apud
1 Depoimento de Joaquim de Isabela, morador do Woortman, 1987, p.18).
Campo do Buriti, em 2004. 9 Há diversos trabalhos cujo foco está na migração
A C I O N A L

2 Vale sublinhar a centralidade simbólica da mulher na sazonal predominantemente masculina. Entre outros,
ordem moral camponesa. Como lembrou Martins, a Amaral,1988.
10 Além de outros órgãos governamentais: Cemig,
N

mulher é o liame da família entendida como valor. A


Dae, Copas, Emater, Ies, Rural Minas, Ieef, Ibdf, Der,
R T Í S T I C O

virgindade representada pela roupa branca da noiva é


uma oferenda ritual ao esposo e à comunidade. É que tinham o intuito de realizar ações do tipo
possível associar à mulher elementos como a casa implantação de sistemas viários, comunicação, energia,
organização produtiva, etc.
A

camponesa uterina, cujo lugar central é o quarto do


E

casal (em que ocorre a fecundação que transforma a 11 A noção de modernização, que guiou a intervenção
I S T Ó R I C O

impureza do ato pecaminoso em pureza da do Estado na região, pode ser aqui compreendida a
concepção), o vaso, útero metafórico, o forno, etc. partir da definição de Marcus, como paradigma de
(Martins, 1998). desenvolvimento ao mesmo tempo político e intelectual,
H

3 A Acesita Energética foi criada em 1974, ano em que por meio do qual se avaliam processos de
A T R I M Ô N I O

iniciou o plantio de eucalipto no Vale do transformação social com relação à existência de


Jequitinhonha, com o objetivo de produzir carvão para etapas progressivas de desenvolvimento, baseadas na
a usina siderúrgica Acesita. Sobre os conflitos da terra experiência ocidental (urbana) e aplicadas ao
e trabalho no Jequitinhonha, ver Moura, 1988. restante do mundo (Marcus, 1991).
P

12 Tal como está descrito na Lei Constitucional n. 12,


D O

4 As terras das chapadas foram vendidas com


incentivos fiscais às reflorestadoras, visando ao de 6/10/1964.
E V I S T A

desenvolvimento para uma região tida como miserável. 13 Documento Codevale: Artesanato no Vale do
Levamos aqui em consideração as afirmações de Jequitinhonha. Aspectos Básicos, p. 11. s/d. Loja de
R

Moura: “Na verdade, até aquele momento, a pobreza artesanato da Codevale, av. Do Contorno 1145, B.H.
rural era relativa, porque não era uma pobreza M.G. Apud Matos, 1998.
expropriada. A presença dos planos do Estado, através 14 O número de artesãs envolvidas com a produção de
de sucessivos governos – da ditadura e posteriores a artesanato aumentou, só em Campo Alegre, de 9 (em
ela – tornou essa pobreza uma pobreza absoluta, 1972) para cerca de 65 (atualmente).
180 15 Documento Codevale: Artesanato no Vale do
porque colaborou ativamente com as classes
dominantes rurais. (...) Portanto, aquilo a que os Jequitinhonha. Aspectos Básicos, p .11 s/d. Loja de
planos de governo se referiam como a priori foi, na artesanato da Codevale,. av, Do Contorno 1145, B.H.
verdade, um a posteriori.” (Moura, 1991). M.G. Apud Matos, 1998.
5 Era a liberdade no sentido local que tem esta palavra. 16 Nos últimos quatro anos, a Alaca já foi presidida
A liberdade significa a terra que está longe do mando por membros de famílias diferentes que trocam
(seja da companhia, seja do fazendeiro, do funcionário acusações intermináveis de favorecimento dos seus.
do Incra, etc.). A terra da chapada era uma dádiva de 17 Sebrae, Comunidade Solidária, Central Arte-Sol,
Deus de uso comum. Nesse sentido, ela representava o etc.
exercício da liberdade. Para considerações sobre as 18 A categoria chaboqueira é nova e faz sentido apenas
noções camponesas de liberdade e igualdade, ver a partir do deslocamento do uso e contexto das peças
Moura, 1991. de barro. Pode ser aplicada nesse universo de
6 A associação entre o uso capitalista da terra e as relações comerciais ampliadas, mas não se aplica, por
interpretações locais sobre a presença do diabo besta- exemplo, aos potes utilizados no universo
fera é comum no meio rural. Entre outros Moura, doméstico.
1991; Martins, 2000; Woortman, 1987. 19 Depoimento de Maria de Marsalino, moradora de
7 Depoimento de Joaquim de Isabela, morador do Campo Alegre, 2004.
Campo do Buriti, 2004.
Bibliografia

Maíra Santi Bühler Desafios na compreensão dos efeitos locais


das políticas de fomento ao artesanato no Jequitinhonha
AMARAL, Leila. Do Jequitinhonha aos canaviais: em busca
do paraíso mineiro. Dissertação de mestrado

A C I O N A L
apresentada ao Departamento de Sociologia e
Antropologia da UFMG. Belo Horizonte, 1988.

N
(Mimeografado).

R T Í S T I C O
BITTENCOURT, Luciana.Tecendo textos culturais:
tecelagem, narrativas orais e gênero no Vale do
Jequitinhonha. Revista de Antropologia. São Paulo: Usp,

A
v. 38 n. 2, p. 187-206, 1995.

E
HEREDIA, Beatriz Maria de Alásia de. A morada da vida

I S T Ó R I C O
– trabalho familiar de pequenos produtores do
Nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MARTINS, José de Souza. A vida privada nas áreas de

H
expansão da sociedade brasileira. In:_.

A T R I M Ô N I O
____________. (Org.). História da vida privada no
Brasil, v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e
emergentes: requisitos para etnografias sobre a

P
D O
modernidade no final do século XX ao nível mundial.
Revista de Antropologia. São Paulo: USP, v. 4, 1991.

E V I S T A
MATOS, Sônia Missagia. Artefatos de gênero na arte do
barro. Campinas.Tese de doutorado apresentada ao

R
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas,
1998.(Mimeografado).
MOURA, Margarida Maria. Os deserdados da terra:
lógica costumeira e judicial dos processos de expulsão
181
e invasão da terra camponesa no sertão de Minas
Gerais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
———————————————-. Liberdade
e igualdade: reflexões sobre campesinato sertanejo e
política.Cadernos Ceru, n. 3, série II, p. 7-33. São Paulo:
Centro de Estudos Rurais e Urbanos, 1991. Vasilha de barro.
SUAREZ, M.;WOORTMANN, K.; MOTTA, M.;
WOORTMANN, E.; Introdução. Anuário Antropológico.
Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1983.
WOORTMANN, Klaas. Com parente não se
“neguceia” O campesinato como ordem moral.
Anuário Antropológico

Nota: todas as fotos que ilustram este artigo foram tiradas pela
pesquisadora Maíra Santi Bühler, em trabalho de campo na
localidade de Campo Alegre, Minas Gerais, em 2002.
Br una Franchetto
Línguas em perigo e línguas
A C I O N A L

c o m o p at r i m ô n i o i m at e r i a l :
N

D U A S I D É I A S E M D I S C U S S Ã O
R T Í S T I C O
A

Línguas em perigo de extinção, ou fundação, em 1992, do Comitê para as Línguas


E
I S T Ó R I C O

simplesmente línguas em perigo, línguas em Perigo e sua Preservação, liderado,


ameaçadas, línguas moribundas, agonia, inicialmente, por Michael Krauss, do Centro
extinção, morte de línguas: estas expressões, de Línguas Nativas do Alaska. A discussão
H

o tema e o problema, embora não inéditos, eclode na LSA e é publicada, em 1992, em


A T R I M Ô N I O

bem como o anúncio de uma espécie de um número especial da revista Language,


cruzada de salvamento dessas línguas, invadem completamente dedicado ao assunto e,
a literatura especializada, as revistas coincidentemente, digamos, comemorativo
P
D O

científicas e a mídia. As línguas começam a dos 500 anos da conquista do Novo Mundo.
E V I S T A

ser chamadas de patrimônio ou, mais Línguas em perigo são protagonistas do


especificamente, de patrimônio imaterial ou Congresso Internacional de Lingüistas em
R

intangível, ora da humanidade, ora de povos, Quebec, em 1992, e dos encontros da LSA a
etnias, grupos sociais, comunidades, partir de 1993, ano que viu mais dois
indivíduos. Este artigo pretende historiar e eventos, o encontro da Associação
discutir, mesmo se brevemente, essas Lingüística de Grã Bretanha – LAGB, e a
182 noções, tendo no horizonte a possibilidade conferência internacional de Dartmouth
de iniciativas relacionadas a políticas (Grinevald, 2003; Everett, 2003; Mufwene,
lingüísticas voltadas para populações 2004). Desde então, numerosas reuniões
minoritárias. O foco, afinal, elege o Brasil e, aconteceram, abordando quase todos os
nele, as minorias indígenas e suas línguas. aspectos da problemática. Poderia fazer uma
Tudo parece ter começado pouco tempo longuíssima lista de publicações, mas
depois da publicação do livro organizado por menciono aqui apenas alguns títulos:
Nancy Dorian (1989), Investigating Fishman (1991), Robins & Uhlenbeck
obsolescence. A paternidade da expressão (1991), Hagège (1992, 2000), Bobaljik,
línguas em perigo (endangered languages) é Pensalfini & Storto (1996), Dixon (1997),
atribuída ao lingüista Kenneth Hale. A Grenoble & Lindsay (1998), Crystal (2000),
história é a que se segue e tem sua origem Hinton & Hale (2001), Maffi (2001), Dalby
em terras norte-americanas. No encontro (2202), Harmon (2002), Austin (2003).
anual da Linguistic Society of America–LSA, Têm surgido várias instituições voltadas
em 1991, Hale e Dorian organizam uma para a documentação de línguas em perigo, com
sessão sobre línguas em perigo que leva à o apoio de fundações privadas e
Caderno de campo
de Bruna Franchetto,
com as primeiras
tentativas de escrita
em língua Kuikuro.
Aldeia Kuikuro, Mato
Grosso, 1977. Acervo
pessoal.

Caderno de campo
de Bruna Franchetto
com dados da
língua Kuikuro.
Aldeia Kuikuro,
Mato Grosso, 1981.
Acervo pessoal.

R
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial governamentais, configurando um novo existentes em 1992 (Grimes, 1992).
mercado com novos acessos a financiamentos Outros confirmam: metade das 6000
para a pesquisa, nos Estados Unidos e na línguas do mundo desaparecerá no século
A C I O N A L

Europa. Menciono aqui apenas as mais XXI, enquanto muitas das remanescentes
importantes: o Programa DoBeS – serão perdidas no século sucessivo (Hash,
Documentação de Línguas Ameaçadas, Firmino & Hale, 2001). Hinton diz que, se
N
R T Í S T I C O

financiado pela Fundação Volkswagen em um mundo de cerca de 250 nações


(Alemanha) e com a assessoria técnica do existem umas 6000 línguas, isto significa
Instituto Max Planck, hoje com mais de 20 que há muito poucas línguas com um país
A

projetos espalhados pelos quatro cantos do próprio e ainda que “uma língua que não é
E
I S T Ó R I C O

mundo; no Reino Unido, a Fundação para uma língua da educação, nem uma língua
Línguas em Perigo – Foundation for do comércio ou de ampla comunicação, é
Endangered Languages, e o Projeto de uma língua cuja existência é ameaçada no
H

Documentação de Línguas em Perigo – mundo moderno” (Hinton, 2001:3). Krauss


A T R I M Ô N I O

Endangered Languages Documentation prevê um desfecho trágico se for mantida a


Project/ELDP, da School of Oriental and atual velocidade de extinção, sobretudo no
African Languages / Soas, este último com que concerne a línguas faladas em pequenas
P
D O

fundos da Lisbet Rausing Charitable Trust; áreas e que não têm status de língua
E V I S T A

nos Estados Unidos, o Centro para as nacional oficial.


Bruna Franchetto

Línguas Indígenas da América Latina – Cilla. A retórica dos folhetos e cartazes das
R

A essas iniciativas se somam os projetos instituições envolvidas na cruzada das línguas


realizados em vários países do mundo, com em perigo é contundente.
financiamentos locais, como no Brasil e na
Austrália, definindo uma nova agenda de “Because every last word means another
184 pesquisa, que coloca no cerne do trabalho a lost world...” (Austin, 2003);
assim chamada documentação. Um
considerável debate se desenvolve em torno “Today, half of the world’s languages are
da fundamentação e da razão de ser de um under threat of extintion. A threat that
novo ramo da lingüística, a assim affects all of us. A handful of civilizations
denominada Lingüística Documental – left us the ideas that form the basis of
documentary linguistics, competidora no today’s world. Countless others left behind
balcão dos recursos para a pesquisa, de nothing. No thoughts, insights or culture.
campo e de gabinete. Because they left us no language.The
Vários lingüistas oferecem balanços e Endangered Languages Documentation
perspectivas assustadores e cheios de Project at London University’s School of
pessimismo. Michael Krauss (1992:7) Oriental and African Studies is a powerful
afirmou que o século XXI verá o response to one of the century’s biggest
desaparecimento de 90% das línguas challenges....If you share our values, share
humanas; estimou ainda que em 2100 our mission” (folheto e cartaz distribuídos
estarão vivas somente 600 das 6528 línguas pelo Soas na Unesco em 2001).
O que são, então, línguas em perigo, e o No Brasil, por exemplo, é comum ouvir que

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


que é a documentação lingüística que os índios não falam línguas, mas dialetos, ou,
pretende salvá-las? Antes de tudo, é preciso, pior, gírias. Isto reflete os preconceitos que

A C I O N A L
se possível, definir o termo língua, tarefa que normalmente caracterizam o tratamento das
pode parecer trivial, mas que revela variantes dialetais da própria língua
armadilhas nada científicas. portuguesa, relegadas a maneiras de falar do

N
R T Í S T I C O
interior, do campo, erradas e ridicularizadas,
O que é lingua? associadas ao popular, à oralidade,
contrapostas à norma culta prescrita, escrita

A
É possível definir o que constitui uma e escolar.Vejamos alguns exemplos.

E
I S T Ó R I C O
língua do ponto de vista científico. Não é A noção de língua versus dialeto é crucial na
esta, porém, a definição que está em jogo no educação formal escolar, primária e
cenário que estamos contemplando, onde os obrigatória. O primeiro exemplo vem do

H
determinantes do processo de rotulação são Brasil e da minha experiência pessoal. Na

A T R I M Ô N I O
fatores culturais e políticos. região conhecida como Alto Xingu, no
A noção língua é, no mínimo, estado de Mato Grosso, ao sul do Parque
pesadamente dependente de contextos Indígena do Xingu, existe um complexo

P
D O
históricos, econômicos e sociais. Lembre-se o sistema social e cultural nativo que congrega

E V I S T A
famoso dito: “Língua precisa ter exército, grupos que falam línguas geneticamente

Bruna Franchetto
marinha e aeronáutica”. Trata-se, em distintas, com variantes internas. A cultura

R
primeiro lugar, de um construto cultural que comum é fruto de um longo processo de
encerra oposições e dinâmicas entre valores e amálgama e costura de diferentes tradições.
atitudes, tais, por exemplo, como identidade A língua é diacrítico crucial da atribuição
e diferença, superioridade e inferioridade. reflexiva de identidades distintas das
Faz parte do problema o estabelecimento de unidades povos que compõem o sistema, por 185
fronteiras entre línguas e dialetos de uma outro lado caracterizado pela difusão de
mesma língua, questão particularmente rituais, de cosmologias, de palavras e cantos
delicada, sobretudo em situações de em línguas distintas. No alto Xingu, há
bilingüismo e multilingüismo, muito mais aldeias multilíngües, mas, em sua maioria, os
freqüentes do que se pode imaginar. Em povos alto-xinguanos expressam uma
princípio, os lingüistas nos dizem que o único ideologia de endogamia lingüística que
critério útil para reconhecer que estamos recusa a mistura (de gente e de línguas).Três
diante de variantes dialetais de uma mesma variantes dialetais de uma mesma língua
língua é o fato de que seus falantes se pertencente à família karib são faladas por
entendem com facilidade e se comunicam quatro povos em nove aldeias ao longo dos
entre si sem grandes problemas, ou seja, de rios Culuene e Curisevo. Sinto-me segura,
que há inteligibilidade mútua. como lingüista, ao afirmar que se trata de
Geralmente o termo língua contém uma mesma língua com três variantes. Para
conotações positivas, enquanto o rótulo os Kuikuro, Kalapalo, Nahukwá e Matipu,
dialeto carrega o estigma da inferioridade. todavia, meus critérios científicos têm pouco
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial apelo e nem sempre convencem. Souberam que, reduzidos a poucos indivíduos no
da existência de línguas e dialetos, com seus começo do século XX, passaram a conviver e
valores, ao entrarem na era da escola e da se misturar com os sobreviventes Nahukwá.
A C I O N A L

mídia. Em certos contextos, sobretudo Falamos de sobreviventes de uma história de


formais e públicos, contestam a idéia de que dizimação populacional que caracterizou os
falam dialetos e querem que se diga que falam séculos de XVIII a XX, da subseqüente fusão
N
R T Í S T I C O

línguas distintas; em outros contextos, como de grupos lingüisticamente distintos, da


em conversas com o pesquisador, ou nos permanência de uns e do ocaso de outros. É
cursos de formação de professores indígenas um exemplo, como tantos outros, do contato
A

(do magistério ao terceiro grau), lidam com e de seus resultados, no contexto específico
E
I S T Ó R I C O

as noções do lingüista com desenvoltura e dos efeitos da colonização do Novo Mundo.


competência. Um efeito interessante, e em Outros exemplos não são difíceis de
nada excepcional, é a oscilação nas decisões encontrar, como os mencionados em
H

relativas à produção de livros em língua Bobaljik et al (1996). É famoso o caso


A T R I M Ô N I O

indígena a serem usados nas escolas das judicial “Ann Arbor”, quando os falantes do
aldeias ou, ainda mais, mostrados e vendidos Inglês Vernacular Afro-Americano da
para o público não-indígena. O livro é a comunidade de Ann Arbor, nos Estados
P
D O

reificação de uma língua tornada objeto. As Unidos, conseguiram o reconhecimento


E V I S T A

decisões são, em definitivo, dos índios, não oficial de seu dialeto como separado, ou seja,
Bruna Franchetto

sem alguma influência do lingüista e dos como tendo o status de língua,


R

agentes educacionais externos. O argumento possibilitando, entre outras coisas,


da limitação de recursos precisou todo o financiamentos dirigidos à produção de
tempo fazer as contas com as representações materiais escolares específicos. Há, ainda, o
metalingüísticas, e relativas demandas, dos caso da luta pelo reconhecimento do Kriol,
186 índios, alicerçadas por um profundo língua crioula2 da Austrália, como língua
sentimento de ojeriza à já mencionada distinta e não como uma variante do inglês,
mistura. Assim, a primeira cartilha única de condição para a reivindicação de educação
alfabetização, publicada em 1996, causou bilíngüe, sendo o inglês apenas a segunda
mal-estar e decepção; sucederam-se, então, língua ensinada na escola. As definições são,
livros distintos para as duas línguas/variantes então, de natureza sócio-política e nunca é
dominantes, Kuikuro e Kalapalo/Nahukwá. desnecessário avaliar as conseqüências de
Uma outra publicação em conjunto foi longo alcance de qualquer tipo de rotulação:
negociada mais recentemente entre língua ou variante dialetal? E esta, variante
professores indígenas, suas comunidades, de que língua? Mesmo escolhendo uma
editores e pesquisadores, com a promessa de definição, aparentemente a menos ofensiva
reativar a distinção entre as línguas nas possível, os casos da Sérvia e da Croácia e
próximas publicações.1 Das três variantes dos Tutsi e Utu (Burundi e Rwanda),
existentes, uma foi excluída e entrou no exemplos de grupos que falam variantes
limbo do esquecimento; é falada apenas, dialetais minimamente distingüíveis, nos
ainda, pela geração mais velha dos Matipú dizem que a proximidade dialetal, mesmo a
mais evidente, não impede divisões políticas imediato, como o léxico que encerram:

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


que podem apelar por distinções lingüísticas. sistemas de contagem, numerais, expressão
E o que fazer no caso dos Inuit/Eskimo? do tempo, calendário; modalidades

A C I O N A L
Observa-se um continuum de dialetos, do epistêmicas, narrativas, rezas, discursos
nordeste do Alaska ao norte do Canadá e até rituais. A extinção estaria próxima quando a
à Groenlândia: há inteligibilidade entre língua só subsiste em uns poucos velhos e

N
R T Í S T I C O
dialetos geograficamente próximos, mas os morta (ou adormecida) se não existem mais
extremos do continuum são bem distintos e falantes, mas apenas registros escritos ou
entre eles não há inteligibilidade. Entrando gravados (Wurm, 1991).

A
no tempo da escola, como produzir material Quais seriam as ameaças primordiais?

E
I S T Ó R I C O
didático? Algum tipo de idealização ou Entre as várias que podem ser arroladas,
estandardização é necessário, mas qual? duas são constantemente apresentadas: o
Escolher uma variante? Cada variante terá número diminuto de falantes e as condições

H
seu próprio material, inclusive as faladas por sociais, políticas e econômicas. O primeiro

A T R I M Ô N I O
grupos muito pequenos, desconsiderando os pressuposto é, em geral, válido, mas há
processos de fissão, sempre em gestação, e a exceções que não podem ser ignoradas,
variável custos? como é o caso dos grupos indígenas

P
D O
amazônicos, em sua maioria muito

E V I S T A
O que é uma língua pequenos, e entre os quais se encontram

Bruna Franchetto
em perigo? exemplos surpreendentes de manutenção

R
lingüística, apesar de sofrerem, todos,
O que é uma língua em perigo ou ameaçada? basicamente, as mesmas condições políticas e
Acompanho algumas das considerações de sócio-econômicas. Seria interessante saber as
Bobaljik e Pensalfini (Bobaljik et al, 1996), razões ou os prováveis determinantes de tais
autores de um dos melhores textos exceções à regra do declínio, seguido pela 187
introdutórios ao tema, entre os que eu extinção. Bobaljik e Pensalfini reduzem o
conheço. Uma primeira e simples resposta critério de definição ao seguinte: as línguas
seria: está ameaçada uma língua que, em estão em perigo somente quando seus falantes
poucas gerações, não será mais falada por são submetidos a uma pressão extensiva para
ninguém. Seria melhor dizer que a condição a assimilação ou conformidade à população
de estar em perigo caracteriza um sociolingüística dominante. A assimetria de
continuum do salvo/seguro ao quase extinto. poder, a absorção em estruturas de controle,
Resta definir claramente o que significa estar os produtos do colonialismo cultural,
próximo da extinção. Não obstante, uma explícito ou não, marcam este quadro.
língua não precisa estar próxima da extinção Esquece-se, todavia, um fator que, embora
para estar em perigo. Qualquer sinal de raro, pode se contrapor ao esmagamento do
declínio na sua transmissão de uma geração colonizado: a persistência de atitudes e
a outra e nos domínios de seu uso deveria valorações metalingüísticas positivas do
ser visto como sinal de perigo. Certas áreas grupo e de indivíduos, mesmo em situações
de conhecimento entram em crise de altamente repressivas.
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial Na medida em que o uso da língua sociedades agrícolas e pastoris criou grandes
diminui, com a diminuição de suas funções regiões ocupadas por uma única família
expressivas e comunicativas, ela empobrece lingüística, aquelas mesmas regiões acabaram
A C I O N A L

em sua riqueza e complexidade: cantos e abrigando, graças aos processos naturais da


narrativas são esquecidos, palavras são diferenciação lingüística, grandes famílias
perdidas, propriedades morfológicas e internamente diversificadas (Diamond &
N
R T Í S T I C O

gramaticais desaparecem. Passa-se de uma Bellwood, 2003; Franchetto, 2003).


geração de monolíngües em língua nativa a A história dos últimos 500 anos, contudo,
uma geração de monolíngües na língua parece ter sido outra: a diversidade
A

dominante, seja ela regional ou nacional. lingüística está, de fato, desaparecendo sem
E
I S T Ó R I C O

É necessário dizer que não estamos que haja substituição de línguas. As forças
falando aqui de processos de mudança que dominam neste período são inerentes ao
natural. De um lado, a perda de línguas tem modelo de dominação que se originou com a
H

sido um fato ao longo de toda a história invasão européia do mundo ocidental e do


A T R I M Ô N I O

humana. Diversificação, convergência e meridional e, como demonstra Mufwene


rediversificação entre dialetos são processos (2004), o modelo colonial que se revelou
contínuos que seguem linhas de distribuição particularmente destrutivo – o de
P
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no espaço geográfico e entre grupos sociais. povoamento – é exatamente o que tem


E V I S T A

De outro lado, condições sociológicas e dominado nas Américas (e na Austrália).3 A


Bruna Franchetto

políticas complexas mantêm as diferenças pressão para abandonar a língua materna e


R

dialetais em estado de fluxo e fazem com adotar a língua dominante, em curto espaço
que, da fusão entre línguas, resultem novas de tempo, de duas ou três gerações, é
línguas. Através do estudo da diversidade irresistível, sendo na maioria das vezes a
lingüística das sociedades de caçadores e única escolha racional capaz de garantir a
188 coletores modernas, se avança a hipótese de sobrevivência do indivíduo e de seu grupo
que, entre 100.000 e 10.000 anos atrás, o familiar. Além disso, o surgimento da
mundo habitável teria sido ocupado por estandardização, através do estabelecimento
grupos pequenos e lingüisticamente de normas prescritivas, da escrita e da
distintos, falando pelo menos 15.000 línguas escolarização centralizada, tem sido um fator
diferentes (Ash, Fermino & Hale, 2000). No determinante da perda da diversificação
mundo moderno, vastas extensões do dialetal. Outros fatores decorrem das
mundo são habitadas por populações que mudanças dos padrões de mobilidade no
falam línguas de famílias lingüísticas com espaço, bem como da assim chamada
curta profundidade temporal, 5.000 anos ou comunicação global.
menos. Muitas línguas foram substituídas no Mesmo estando de acordo com os críticos
curso da expansão de umas poucas, que, da ‘moda da morte de línguas’, que nos
depois, se diferenciaram para formar as lembram que o contato entre línguas
famílias modernas. Os arqueólogos atribuem possibilitado pela colonização fez surgir
essa dinâmica à expansão da agricultura; novas línguas (crioulos) e novos dialetos
enquanto a primeira fase do crescimento das (como o inglês vernacular afro-americano;
Carta do Professor
Sepé Kuikuro à
pesquisadora. Aldeia
Kuikuro, Mato
Grosso, 1995.
Caderno de campo
de Bruna Franchetto,
acervo pessoal.
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial
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Bruna Franchetto
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190

Desenho e escrita
do Professor Aigi
Nahukwá, curso de
Formação de
professores
indígenas. Terra
indígena do Xingu,
1995. Acervo pessoal
de Bruna Franchetto.
Mufwene, 2004), é inegável que o indígenas passam de sua língua ancestral

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


desaparecimento de línguas se acelerou nos para alguma das línguas principais de
últimos 500 anos ou, mais ainda, nos últimos comunicação internacional?

A C I O N A L
200 anos, sobretudo no que concerne às Não é melhor para um grupo dentro de
línguas nativas das Américas e da Austrália uma nação passar a falar a mesma língua de
(Wurm, 1991). Com isso, é inegável todos os outros? Não é inevitável que as

N
R T Í S T I C O
também a rápida e irreversível perda da línguas morram, já que sempre morreram
diversidade cultural e intelectual, como ao longo da história humana? O que
muitas vezes alertou Kenneth Hale (1992, significam as diferentes modalidades de

A
1996, 1998). Falando como cientista (e sem salvamento: documentação, preservação,

E
I S T Ó R I C O
culpa), Hale nos deixou um recado manutenção, revitalização? Afinal, porque
fundamental. A diversidade lingüística e seu se preocupar com línguas em perigo? Há
registro são imprescindíveis para que se diversos pontos de vista.

H
possa responder a questões cruciais acerca da Já mencionamos as razões dos lingüistas,

A T R I M Ô N I O
natureza da linguagem humana e da ou dos cientistas em geral, em defesa da
diversidade cultural, com suas variações e diversidade lingüística; para estes, a perda
invariantes, incluindo os conhecimentos lingüística é um termômetro da perda

P
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ecológicos. A perda lingüística significa a cultural. Há o que Bobaljik e Pensalfini

E V I S T A
impossibilidade de reconstruir a pré-história (1996) chamam visão museológica, sem

Bruna Franchetto
lingüística de um povo, ou de determinar a atribuir-lhe, contudo, qualquer demérito. O

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natureza, o alcance e os limites das museu é o lugar da preservação, memória,
possibilidades da linguagem humana, seja em exposição, educação e celebração da
termos de estrutura, seja em termos de diversidade. Aqui colapsam diversidade
comportamento comunicativo, expressão e cultural, lingüística e biológica. Mesmo
criatividade poética, ontologia e perspectivas atentos às críticas do abandono da 191
cosmológicas. Diversidade lingüística e diversidade na própria celebração da
diversidade cultural não se confundem, mas diversidade (ver o artigo de Ball neste
correm em paralelo e, nesse sentido, a perda volume), estamos certos de que nada
lingüística implica uma catástrofe, tanto do sabemos sobre as conseqüências da perda da
ponto de vista local, quanto para a diversidade lingüística em termos de sua
humanidade como um todo. necessidade para sistemas complexos de
interação, vitais para a sobrevivência geral.
D o c u m e n ta r , p r e s e r va r , Neste sentido, a documentação é a cruzada
m a n t e r , r e v i ta l i z a r atual dos museólogos (também sem nenhuma
conotação depreciativa).4 No modelo
Porque salvar uma língua em perigo? Por clássico de documentação, que remonta a
que deveríamos nos preocupar com a Franz Boas, a tarefa é fornecer uma
diminuição da diversidade lingüística no descrição geral de uma língua, contida em
mundo? Por que alguém deveria se uma gramática, um léxico e textos. Hoje,
preocupar com o fato de que grupos este modelo é ampliado e modificado a
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial partir de novos fatos: a constatação do Há, enfim, a visão emancipatória do
processo rápido e sem volta de perda problema salvar línguas em perigo. Estão, aqui,
lingüística; as novas tecnologias de registro, todas as iniciativas de intervenção, inseridas
A C I O N A L

anotação e armazenamento de dados; o ou não em políticas mais amplas de


envolvimento em projetos de manutenção e manutenção e revitalização lingüísticas.
revitalização lingüísticas. A nova Pessimismo e otimismo caracterizam os
N
R T Í S T I C O

documentação – carro-chefe de projetos e atores envolvidos. Os otimistas mostram


programas financiados, hoje, por instituições resultados alentadores de projetos,
internacionais – visa principalmente à coleta sobretudo dos mais localizados e específicos,
A

de textos (orais e escritos) como ao redor do mundo, no que chamam


E
I S T Ó R I C O

representação direta de gêneros de discurso “reversão da mudança lingüística” (reverse


natural; descrição e análise são vistas como language shift) (Hinton & Hale, 2000).5 A
atividades contingentes, produtos que se preservação das línguas é parte dos direitos
H

acumulam ao longo da documentação, e humanos e instrumento de autonomia


A T R I M Ô N I O

sempre passíveis de serem reelaboradas política. Os pessimistas lembram os muitos


(Woodbury, 2003).Vários grupos indígenas pré-requisitos que precisam ser satisfeitos
estão começando a participar ativamente em para o sucesso de um programa de
P
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projetos de documentação; assumindo-os revitalização de línguas em perigo: contextos


E V I S T A

até. Resta um paradoxo: a disponibilização e culturais e políticos favoráveis; prestígio da


Bruna Franchetto

divulgação dos produtos da documentação língua dentro e fora da comunidade e


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(em forma escrita ou na web) ainda passa confiança de seus membros nas boas razões
necessariamente pela tradução em uma das para o seu resgate; reconhecimento oficial e
chamadas línguas internacionais. Resta um formal das línguas; recursos suficientes para
problema: a inevitável transformação em todas as ações julgadas necessárias; na escola,
192 escrita de todo material coletado, manutenção das línguas em perigo em pé de
proveniente, na maioria dos casos, de igualdade com as línguas dominantes.
línguas de tradição oral primária. Na base Entre pessimistas e otimistas, restam
disso está um equívoco, não tão bem algumas observações de Bobaljik e Pensalfini.
intencionado e alimentado pelas missões de De um lado, é difícil pensar em qualquer
conversão cristã, sintetizado num dos ação de salvamento bem sucedida e estável sem
folhetos do Summer Institute of Linguistics. mudanças culturais, políticas e econômicas
Um homem Machiguenga (Peru) declara em profundas das sociedades englobantes. Entre
um dos workshops promovidos pela missão: as mudanças, está a aceitação da idéia de que
“If I learn to write well, my language will o monolingüismo é um estado não-natural do
never desappear”. A escrita de línguas ser humano: “O monolingüismo pode ser
indígenas é, de fato, pressuposto para a curado!”, diz um adesivo de uma associação
tradução da palavra de Deus e sua difusão; de professores na Austrália.
sabemos, todavia, que a escrita não salva China, Rússia, Austrália, Papua Nova
línguas e, ainda menos, a diversidade Guiné, Maori, Havaiano, Irlandês, Hebraico:
cultural nelas encerrada. livros e manuais relatam dados e
experiências de várias regiões do mundo. sistema mais complexo e articulado de

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


América do Sul, Brasil: as informações são evidenciais do mundo (observado, citado,
raras, aproximativas, quando não ausentes. inferido ou presumido)”.

A C I O N A L
No contexto sulamericano, o Brasil
No Brasil continua sendo o país onde se encontra a
maior densidade lingüística – ou diversidade

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R T Í S T I C O
A América do Sul abriga mais de 400 genética; é, também, o país onde se encontra
línguas nativas, número maior do que no a menor concentração demográfica por
restante das Américas, com uma variedade língua. Mas quantas são as línguas faladas

A
genética surpreendente (118 famílias por uma população que hoje se estima em

E
I S T Ó R I C O
lingüísticas), só igualável à diversidade 400000 pessoas, distribuídas em cerca de
encontrada na Nova Guiné. Qual teria sido o 200 grupos étnicos? Sabemos que elas
panorama às vésperas da conquista e nos pertencem a 41 famílias, a dois troncos

H
primeiros tempos da colonização? Aryon lingüísticos, e que há uma dezena de línguas

A T R I M Ô N I O
Rodrigues (1993) estima que 1.273 línguas isoladas (Rodrigues, 1993), além de duas
teriam sido faladas na época na área que línguas crioulas. O número de falantes pode
abrange as terras baixas da América do Sul. chegar a vinte mil (Guarani,Tikuna,Terena,

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Quinhentos anos depois, cerca de 85% Macuxi e Kaigang), assim como ao número

E V I S T A
dessas línguas se perderam. de dedos de uma mão, ou mesmo a um

Bruna Franchetto
Uma vez inseridas no cenário da questão único e último falante. A média fica em

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línguas em perigo, as amazônicas, ou menos de 200 falantes por língua.
brasileiras, provocam lamentação e Um quadro mais atualizado está em dois
encantamento de muitos pesquisadores, em artigos recentes de Denny Moore (no prelo;
particular estrangeiros. Observando dados 2005). No entanto, mesmo esta contribuição
dos anos 80 do século passado,Willem contém dados ainda aproximativos e 193
Adelaar declarava: “A maioria das línguas provisórios. Baseado em dados oferecidos
são faladas por comunidades tão pequenas pelo Instituto Socioambiental – Isa, no que
que é praticamente impossível imaginar para concerne ao número de etnias, em
elas um futuro viável” (1991:59). Mais publicações e inéditos produzidos no Brasil e
recentemente, Dixon e Aikhenvald no exterior, bem como em comunicações
(1999:1), autores de um ambicioso, embora pessoais de pesquisadores, Moore, tentando
apressado, trabalho enciclopédico sobre as contornar o problema da identificação de
línguas amazônicas, dizem: “A Amazônia é a línguas, enumera unidades lingüísticas
região menos conhecida e menos indígenas existentes hoje no Brasil e chama a
compreendida do mundo do ponto de vista atenção para as diferenças dialetais e o pouco
lingüístico. As gramáticas oferecem contra- que sabemos sobre estas últimas, e até para a
exemplos para conclusões dos estudos natureza e as fronteiras do que ele chama de
tipológicos. Encontramos os exemplos mais “unidades lingüísticas”. Para cada uma destas,
ricos de categorias que são pouco ou nada o autor apresenta o que é possível calcular
atestadas alhures. As línguas Tukano têm o em termos de população e número de
Transcrição feita em
língua Kuikuro pelo
professor Mutua M.
Kuikuro a partir de
uma fita gravada
com a história de
vida de seu avô.
Aldeia Kuikuro, Mato
Grosso, 1999.
Caderno de campo
de Bruna Franchetto,
acervo pessoal.
no alto
Texto escrito pelo
Professor Amatiwana
Matipu, que escreve
sobre tipos de
vegetação no Alto
Xingu, curso de
formação de
professores
indígenas. Terra
indígena do Xingu,
1998. Acervo pessoal
de Bruna Franchetto.

embaixo
Texto escrito pelo
Professor Aigi
Nahukwá sobre a
maneira de ser do
pescador, curso de
formação de
professores
indígenas. Terra
Indígena do Xingu,
1997. Acervo pessoal
de Bruna Franchetto
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial falantes, bem como o nível ou grau de Muitos lingüistas que se dedicam ao estudo
transmissão entre gerações, um dos critérios das línguas indígenas têm testemunhado um
mais usados para medir a vitalidade de uma processo mais ou menos agudo de perda.
A C I O N A L

língua. A consideração conjunta do número Storto (1996) relata a situação grave, e, ao


de falantes e do grau de sua transmissão mesmo tempo, emblemática, do estado de
permitiria atribuir a uma unidade lingüística Rondônia, onde 65% das línguas correm
N
R T Í S T I C O

seu estado de ameaçada/em perigo. Nos limites sério risco de desaparecimento, uma vez que
do que é possível saber no momento, Moore as crianças não mais as utilizam e restam
considera em perigo e sem documentação poucos falantes. Por enquanto, apenas 35%
A

alguma pelo menos 40 das 161 “unidades delas estão a salvo. No ainda bem protegido
E
I S T Ó R I C O

lingüísticas” listadas. A grande maioria é Alto Xingu, algumas línguas já se encontram à


composta de línguas faladas por populações beira do desaparecimento, como o Trumai
com menos de 500 indivíduos, e um número (uma língua isolada) e o Yawalapiti (Arawak)
H

considerável vem sofrendo crescente perda (Monod-Bequelin & Guirardello 2001;


A T R I M Ô N I O

cultural e lingüística. Está clara uma Guirardello, 2002; Franchetto 2001; França,
necessidade primordial: empreender uma 2000). Outras línguas alto-xinguanas, ainda
coleta competente, ampla e detalhada de vitais, começam a dar sinais de uma certa
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informações, quantitativa e qualitativa, não instabilidade: a escola é considerada o


E V I S T A

apenas sobre o risco de perda lingüística mas, espaço/tempo onde se deve aprender a língua
Bruna Franchetto

antes de tudo, sobre quais e quantas são as dos brancos; os mais jovens, fascinados com
R

línguas indígenas no Brasil hoje, suas tudo o que vem do universo urbano,
variantes, sua situação de plenitude e de procuram cada vez mais falar o português, ao
uso, os fatores de manutenção e mesmo tempo em que se distanciam das
enfraquecimento, etc. tradições orais. A televisão vem tomando o
196 Sem dúvida, o número total de línguas irá lugar da transmissão oral que se fazia por
aumentar na medida em que se avolumam as meio de narrativas cotidianas, no interior das
descrições de línguas ainda desconhecidas ou casas, ao cair da noite, ou na casa dos homens,
apenas parcialmente documentadas.6 Além centro político e ritual da aldeia.
disso, essas classificações passam por São significativos os dados obtidos por
constantes modificações em virtude da meio de um questionário sociolingüístico
expansão de descrições resultantes de contendo 37 perguntas e distribuído em
reanálises de material lingüístico já existente julho de 2002 aos alunos da primeira
e previamente descrito, e também em razão universidade indígena brasileira.7 As
de trabalhos comparativos que vêm informações ali coligidas referem-se aos
permitindo reexaminar algumas hipóteses nove “fatores de vitalidade lingüística”
sobre pré-história e história indígena. listados no documento intitulado Vitalidade e
Números e classificações podem ainda se Risco de Perda Lingüística (Language Vitality and
alterar na medida em que as diferenças entre Endangerment) proposto e discutido por
línguas e dialetos vão-se tornando mais especialistas durante um encontro realizado
claras – tarefa complexa, como foi visto. na Unesco em março de 2003.8
Nenhum dos 200 alunos – a maioria de nove línguas gravemente ameaçadas de

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


professores em escolas indígenas – é extinção, pois apresentam uma típica ruptura
monolíngüe (em sua própria língua entre gerações: a geração dos avós e pais é

A C I O N A L
materna), por razões óbvias, já que aulas e falante de sua língua nativa, enquanto filhos e
materiais didáticos são em português. Oito netos falam apenas o português, língua que,
deles fazem parte de grupos étnicos cujas cada vez mais, vem se tornando dominante,

N
R T Í S T I C O
línguas nativas já estão extintas (Pataxó, no contexto doméstico. Treze línguas
Tuxa, UaçuCocal,Tapeba, Potiguara e deveriam ser consideradas ameaçadas.11
Tupiniquim).9 Dezoito não são mais falantes Pataxó,Tuxa, Uaçu-Cocal,Tapeba, Potiguara

A
de suas línguas maternas. Quarenta e quatro e Tupiniquim, cujas línguas originais não mais

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I S T Ó R I C O
alunos da turma são bilíngües (em sua língua existem, vêm tentando, dramaticamente,
materna e em português), mas fazem uso do descobrir modos de recuperar uma língua
português em seu ambiente doméstico. Em ancestral – virtual, simbólica ou real.Tapeba

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casa, 74 estudantes bilíngües utilizam tanto e Potiguara tentam aprender o Tupinambá –

A T R I M Ô N I O
uma quanto a outra língua. Há também 49 língua da família TupiGuarani que deixou de
alunos que podemos considerar bilíngües existir no século XVIII – tomando por base
incipientes, já que utilizam a língua nativa no gramáticas e catecismos produzidos pelos

P
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contexto doméstico e no domínio público jesuítas nos primórdios da colonização.

E V I S T A
interno, mas falam o português nos Alguns Pataxó, após tentativa frustrada de

Bruna Franchetto
domínios públicos externos. aprender o Maxakali, língua do mesmo

R
Quanto à presença das línguas indígenas tronco (Jê) e ainda falada em Minas Gerais,
nas escolas, obtivemos as seguintes experimentam a construção de uma língua
informações: o português é a língua utilizada sua a partir de fragmentos lexicais
por quase todos os professores, mesmo encontrados em arquivos e documentos
quando os alunos só falam a língua indígena; históricos. Espontâneas ou induzidas, essas 197
somente 20, dos 114 professores, lecionam experiências isoladas refletem a busca por
na língua materna de seus alunos. Alguns um emblema distintivo apresentado como
professores disseram lecionar ao mesmo essencial para marcar uma identidade indígena
tempo em português e em línguas nativas, no quadro das reivindicações por direitos
mesmo quando os alunos da escola são territoriais, sociais e políticos no Brasil. De
falantes unicamente dessas últimas, o que maneira geral, o Brasil não tem nenhum
resulta em uma situação surreal, mas típica, projeto consistente e sistemático de
na qual o professor – que ainda não domina revitalização lingüística e tampouco há
plenamente o português – tenta ensinar a qualquer investigação das poucas
alunos que não falam português a ler e experiências existentes.
escrever em português.10 Diante do quadro exposto pretendo aqui
Em suma, usando a classificação em voga, enfatizar não a necessidade, óbvia, do
no primeiro curso universitário indígena salvamento documental, mas sim a constatação
temos representantes de seis línguas já de que não há línguas indígenas a salvo no
extintas, de oito línguas em vias de extinção, e Brasil: são todas línguas minoritárias e
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial dominadas, faladas em contextos submetidos chamadas tradições orais (e seus gêneros). É
a transformações rápidas e profundas. De inevitável discorrer em torno da virtual
duas, uma: ou abandonamos o filtro da força política destas palavras no atual
A C I O N A L

classificação, um tanto de mau gosto, que contexto brasileiro, onde começam a


distribui as línguas indígenas de quase extintas aparecer iniciativas e estratégias que
(o último testemunho do último falante) até a navegam, oportunamente, na corrente de
N
R T Í S T I C O

salvo, ou reconhecemos de cara a diversidade temas que conquistam instâncias


ainda existente e, se não conseguimos mantê- internacionais e na direção, provável, de
la, pelo menos arregaçamos as mangas para definir formas de reconhecimento formal
A

conhecê-la. As situações ideais para das línguas minoritárias.Trata-se de navegar,


E
I S T Ó R I C O

empreender alguma forma de intervenção, contudo, contra a corrente já muito


com vista à preservação lingüística, são solidificada que vê a unidade lingüística
aquelas caracterizadas por resistência e “como signo de modernidade... criada com
H

vitalidade resistente. Baseada nos resultados repetidas ações de violência física e simbólica
A T R I M Ô N I O

preliminares de minha própria experiência, contra os falantes de outras línguas” (Muller,


sem querer generalizar indevidamente, 2003:8). Citando ainda Muller: “Aceita
entendo por intervenção um trabalho de como pilar da ‘construção da nacionalidade’,
P
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documentação e pesquisa no qual os falantes a política glotocida, em suas diversas


E V I S T A

participem de modo ativo e construtivo, formulações, contou e conta com amplo


Bruna Franchetto

definindo e experimentando caminhos de apoio nos diversos setores do espectro


R

preservação e inovação.12 Isto nos remete a político brasileiro, de direita e de esquerda”


uma outra questão: a mudança interna a uma (op.cit.: 8). Contudo, graças às mudanças na
língua é sintoma de vitalidade e não de política de integração a partir da
declínio e deve ser, também, objeto de Constituição de 1988, cujos artigos 210 e
198 registro e de análise. 231 reconhecem aos índios direitos
territoriais, culturais e lingüísticos,
Línguas como assistimos à tentativa de construção de uma
p at r i m ô n i o i m at e r i a l educação escolar indígena qualificada de
o u i n ta n g í v e l “diferenciada, bilíngüe e intercultural” 13.
Não é raro se fazer um investimento nessa
É comum ouvir e ler expressões como “a nova educação escolar para índios como sendo
diversidade lingüística é patrimônio da a solução para a preservação de patrimônios e
humanidade”, ou “as línguas indígenas são da diversidade, culturais e lingüísticos. Não
patrimônio brasileiro”, ou ainda “a língua X é podemos negar que se trata de uma
patrimônio do povo X”, “nossa língua é conquista, como tal reconhecida por parcelas
nosso patrimônio”. A partir da explosão do das populações indígenas, e podemos
tema línguas em perigo, a idéia de língua como constatar a existência, hoje, de uma
patrimônio acabou adquirindo novas interessante diversidade de experiências
conotações, associando de modo explícito e escolares indígenas. Problemas? Vários e
enfatizado língua e cultura, através das assim pouco discutidos. De novo, o equívoco da
salvação através da escrita aparece em necessidade de termos consciência dos

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


primeiro plano: escrever, na escola, línguas efeitos dos processos de rotulação, sobretudo
indígenas, mitos, etnoconhecimentos. quando estes se propõem a cristalizar

A C I O N A L
Esquece-se de que o modelo dominante da palavras e seus supostos referentes em
educação bilíngüe é, ainda e em muitos casos, e documentos e programas oficiais. Resta nos
a despeito de suas muitas versões, dependente perguntarmos, ainda, se a materialidade

NR T Í S T I C O
da matriz missionária com sua ideologia sonora é algo imaterial?
civilizadora. O discurso oficial (muitas vezes Em segundo lugar, me parece crucial
apenas retórico) e as práticas locais se desvincular políticas lingüísticas e políticas

A
contradizem. Se, de um lado, as línguas não educacionais. Se olharmos o documento da

E
I S T Ó R I C O
dominantes são formalmente protegidas, de Unesco First Proclamation of Masterpieces
outro, há claras diferenças nos contextos de of the Oral and Intangible Heritage of
uso da língua oficial ou dominante e das Humanity14, onde constam línguas, danças,

H
línguas não dominantes (protegidas). Os músicas, festas, performances e espaços

A T R I M Ô N I O
índios são incentivados a preservar e utilizar rituais, heranças orais e teatro de
suas línguas nativas em seus domínios
privados ou em ocasiões cerimoniais, mas

PD O
esse estímulo não é tão explícito quando se

E V I S T A
trata de utilizar as línguas nas escolas, e há

Bruna Franchetto
uma inegável oposição ao seu uso na mídia.

R
Na grande maioria das situações locais –
justamente as mais próximas das áreas
indígenas –, ainda prevalecem atitudes
visando à assimilação, passiva ou ativa.
Em que sentido uma política de 199
patrimonialização de línguas, no estilo Texto do professor
Unesco, ou seja, línguas como ‘bens/herança Sepé Kuikuro sobre
os cantos da
imateriais/intangíveis’ (da humanidade ou de mandioca, com
grupos específicos), poderia incidir nesse desenho dos troncos
do Kwaryp1.
quadro complexo e contraditório? Publicado no livro
Em primeiro lugar, há que se enfrentar a marionetes, entre as 19 obras-primas Tisügühütu,
Kukügühütu, Livro de
discussão crítica de noções básicas dadas intangíveis reconhecidas, os efeitos desejados leitura e atividades
como indiscutíveis: o que significa afirmar do reconhecimento estão, com uma de escrita na língua
Kuikuro, São Paulo:
que uma língua é patrimônio de X, para além insistência que chama a atenção, bastante ISA, 2002: 37.
da reificação de algo que em si, não pode ser circunscritos ao campo da educação formal. [1 a palavra Kwaryp é
reificado? Qual a tensão conceitual e política Em terceiro lugar, não sabemos ainda de origem Kamayurá
e esta forma de
entre as idéias de patrimônio/herança da quais são os efeitos locais e supralocais de tal grafar respeita a
humanidade e patrimônio/herança de grupos reconhecimento seletivo; em princípio, não há escrita indígena. A
grafia clássica feita
sociais específicos? Já vimos a não trivialidade como justificar a escolha de propostas de pelos não-índios é
do significado da palavra língua e a coletivos individuais, nem a lógica do tipo Quarup.]
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial concurso ou edital ou exemplo. Se aceitarmos a locais reforçaria a descentralização e a
idéia de que uma língua pode ser registrada disseminação da produção de
em um livro de tombo, que disto decorra conhecimentos, considerando, inclusive, que
A C I O N A L

que todas as línguas sejam assim registradas. a formação de lingüistas indígenas, hoje, é
uma possibilidade real, uma vez que sejam a
À guisa de conclusão: eles garantidos o estudo, a documentação e o
N

n e c e s s i d a d e s e a lg u m a s
R T Í S T I C O

arquivamento de materiais de suas próprias


soluções possíveis línguas. É preciso encontrar soluções que
não percam de vista a vastidão territorial do
A

A Constituição Federal brasileira e outros Brasil, sua diversidade étnica, lingüística e


E
I S T Ó R I C O

instrumentos jurídicos correlatos social, bem como as experiências históricas


reconhecem, embora de maneira tímida e diversas, no que diz respeito principalmente
vaga, que o Brasil é um país multilíngüe e às relações entre populações indígenas, não-
H

multicultural. Não há, todavia, nenhuma indígenas e o Estado. Além disso, devem ser
A T R I M Ô N I O

política lingüística explícita e endossada, divulgados, comparados e discutidos, em


bem como praticada, no nível nacional. fóruns abertos, os conhecimentos e as
Muito pode ser feito, antes e experiências acumulados no Brasil e em
P
D O

concomitantemente à patrimonialização de outras partes do mundo, no que concerne,


E V I S T A

línguas; menciono aqui apenas alguns sobretudo, a técnicas e métodos de


Bruna Franchetto

objetivos que me parecem relevantes e em documentação, com as questões éticas e


R

parte já apontados neste artigo. jurídicas envolvidas, projetos educacionais


Em primeiro lugar, nenhuma proposta bem sucedidos, processos de redução à
pode ser apresentada e discutida sem um escrita, práticas de transcrição e tradução de
conhecimento atualizado e sistematizado das gêneros indígenas de artes verbais.
200 línguas minoritárias e de suas variantes, Em segundo lugar, precisamos saber
através de estudos lingüísticos, mais sobre casos, no Brasil, de preservação
etnolingüísticos e sociolingüísticos, não excepcional, de recuperação ou resgate de
superficiais e articulados entre si, confluindo, línguas que pareciam fadadas ao
por exemplo, na elaboração de um atlas das desaparecimento, ou até reinvenção de
línguas indígenas no Brasil. Destaca-se, entre línguas, todos casos dos quais temos apenas
as linhas de pesquisa, a documentação notícias esparsas e vagas. Por outro lado,
lingüística por meio da elaboração de pouco ou nada se sabe sobre o que significa
gramáticas e léxicos e do registro e análise a hoje tão citada revitalização lingüística.
de diferentes gêneros e tradições orais. O Um certo tipo de investigação
apoio à pesquisa desenvolvida em participativa, em que objetos e sujeitos de
universidades e centros de pesquisa, no Brasil pesquisa se confundem ou estabelecem
e no exterior, desvinculados de instituições relações de reciprocidade, produzem
missionárias, é uma condição para o resultados interessantes quanto ao
empreendimento de qualquer iniciativa. A fortalecimento de línguas que começam a
criação de centros de pesquisa regionais e dar sinais de crise e de perdas.
Por último, há duas medidas desejáveis, DORIAN, N (ed.). 1989. Investigating Obsolescence:

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


apesar de politicamente árduas. Falo, de um Studies in Language Contraction and Death. Cambridge:
Cambridge University Press.
lado, do reconhecimento formal de todas as EVERETT, Daniel L. Documenting languages: a view

A C I O N A L
línguas minoritárias; para isso, o seu registro from the Brazilian Amazon. In: Austin, Peter (ed.).
Language Documentation and Description,Volume 1.
como bens ou patrimônio imaterial pode
London:The Hans Rausing Endangered Languages
representar um primeiro passo ou uma

N
Project. 2003, pp. 140-158.

R T Í S T I C O
sinalização importante desse FISHMAN, J.A. 1991. Reversing Language Shift:
Theoretical and Empirical Foundation of Assistance to
reconhecimento. Por outro lado, penso na Threatened Languages. Clevedon: Multilin. Matters.
garantia da liberdade para criar modos de FRANCHETTO, Bruna. O conhecimento científico

A
comunicação oral e escrita que não se das línguas indígenas da Amazônia no Brasil. In: F.

E
Queixalós and O. Renault-Lescure (orgs), As línguas

I S T Ó R I C O
limitem a materiais de natureza educacional amazônicas hoje. São Paulo: Instituto Socioambiental,
e local: por que não filmes, documentários e 2000a, pp. 165-182.
vídeos em língua indígena, e rádios e canais FRANCHETTO, Bruna. O que se sabe sobre línguas

H
indígenas no Brasil. In: C. A. Ricardo (ed.), Povos
televisivos, quebrando a barreira do

A T R I M Ô N I O
Indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo: Instituto
monolingüismo da soberania nacional? Socioambiental, 2000b, pp. 84-88.
FRANCHETTO, Bruna. Línguas Indígenas no Brasil:
Pesquisa e Formação de Pesquisadores. In: L. Donisete
Referências

P
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D O
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Universidade de São Paulo, 2001a, pp. 133-156.

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AUSTIN, Peter (ed.). Language Documentation and

Bruna Franchetto
Description,Volume 1. London:The Hans Rausing FRANCHETTO, Bruna. Línguas e História no Alto
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R
ADELAAR,Willem F. H. The endangered languages Os Povos do Alto Xingu. História e Cultura (The Upper
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Maluhi Kuikuro
filma uma festa na
sua aldeia Kuikuro,
Mato Grosso, 2003.
Foto: Carlos Fausto,
arquivo pessoal.
London: The Hans Rausing Endangered Languages STORTO, Luciana 1996. A Report on language

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


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Editions Odile Jacob. UNESCO Intangible Cultural heritage Unit’s Ad Hoc
HAGÈGE, C. 2000. Halte à la Mort des Langues. Paris: Expert Group on Endangered Language. Language

N
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HALE, Ken. Language endangerment and the human Wurm, Stephen A. 1991. Language Death and
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HALE, Ken. Universal Grammar and the roots of H. Robert & Uhlenbeck Eugenius M. Endangered

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linguistic diversity. In: J. D. Bobaljik, R. Pensalfini & L. Languages. Oxford/New York: Berg (1-18).

E
Storto (eds.) Papers on Language Endagerment and the

I S T Ó R I C O
Maintenance of Linguistic Diversity.The MIT Working
Papers in Linguistics Vol. 28, 1996. pp. 137-162. N o ta s
HALE, Ken. On endangered languages and the

H
importance of linguistic diversity. In: L. A. Grenoble & 1 Vale a pena mencionar o fato de o livro bilíngüe

A T R I M Ô N I O
L. J.Whaley (eds.), Endangered Languages. Language loss (língua indígena e português) Iku ügühütu.Arte gráfica
and community response. Cambridge: Cambridge dos povos karib do Alto Xingu, publicado em 2004,
University Press, 1998, pp. 192-216. organizado por mim e escrito por professores falantes
HINTON, Leanne and Hale, Ken (eds). The Green Book da língua karib alto-xinguana, contém mais do que um

P
of Language Revitalization in Practice. São Diego: nível ou domínio de objetificação: de línguas/dialetos

D O
Academic Press, 2001. transformados em línguas/dialetos escritos; de um
HINTON, Leanne. “Language Revitalization: an

E V I S T A
repertório de grafismos (desenhados, fotografados,

Bruna Franchetto
Overview”. In Hinton, Leanne and Hale, Ken. (eds), descritos, comentados) comum aos diversos grupos do
The Green Book of Language Revitalization in Practice. São sistema alto-xinguano e apropriado como uma suposta

R
Diego: Academic Press, 2001 (3-18). versão do sub-sistema karib.
KRAUSE, Fritz. “Die Yaruma und Arawine Indianer 2 Uma língua crioula é um dos possíveis resultados
Zentrabrasiliens”. Berlin: Baessler-Archiv XIX, 1936: do contato entre falantes de línguas distintas,
32-44.
obrigados a uma convivência intensa em uma situação
KRAUSS, Michael. Language 68, 1992:
que impossibilita a manutenção das relações destes
MAFFI, L. (ed.) On Biocultural Diversity: Linking
falantes com suas respectivas línguas maternas. Uma 203
Language, Knowledge, and the Environment.Washington,
língua crioula é, freqüentemente, uma adaptação
DC: Smithsonian Institute Press, 2001.
recíproca de um nível gramatical herdeiro da língua
MONOD-BECQUELIN, Aurore and Guirardello,
materna com um nível lexical influenciado por outra
Raquel. Histórias Trumai. In: B. Franchetto and M.
língua. Pode ser o desenvolvimento de um sistema de
Heckenberger (eds.), Os Povos do Alto Xingu. História e
Cultura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, pp. comunicação de contato a partir do momento em que
401-443. este se torna a língua materna de uma geração e,
MOORE, Denny (no prelo). Endangered Languages assim, é transmitida às gerações subseqüentes.
of Lowland Tropical South America. In: Brezinger M. 3 Faz-se distinção entre dois modelos históricos de
(ed.), Language Diversity Endangered. Berlin: Mouton colonização por parte dos europeus: colônias de
de Gruyter. povoamento (settlement colonies) e colônias de extração
MOORE, Denny (2005).The Study of Native Brazilian (de recursos, exploitation colonies). Mufwene (2004)
Languages. ms observa que, nestas últimas, geralmente consideradas
MUFWENE, Salikoko S. Language Birth and language como as mais violentas em termos de espoliação das
Death. Annual Review of Anthropology, 2004, 33-201-22. populações colonizadas, as línguas nativas tendem a se
ROBINS, H. Robert & Uhlenbeck Eugenius M. 1991. manter mais; também surgem novas línguas
Endangered Languages. Oxford/New York: Berg (crioulos), frutos do contato entre falantes de línguas
RODRIGUES, Aryon D. Línguas Indígenas. 500 anos distintas que convivem forçadamente como escravos
de descobertas e perdas. Ciência Hoje 16 (95), 1993. ou mão de obra explorada pelos colonizadores, cujo
SEKI, Lucy . A lingüística indígena no Brasil. Delta, v. interesse não é, prioritariamente, a fixação e o
15, Número especial. 2000, pp. 257-290. povoamento das colônias.
Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial 4 Desde 1995, a LSA, em seus encontros sobre lingüísticos existentes; 5) resposta a novos domínios;
línguas em perigo, coloca as necessidades científicas 6) material para educação lingüística e alfabetização; 6)
como exclusivas na definição de prioridades para políticas governamentais e institucionais no tocante à
obtenção e distribuição de recursos. Lê-se no língua; 7) atitude dos membros da comunidade em
A C I O N A L

prefácio de uma das primeiras publicações sobre relação à sua própria língua; 9) quantidade e qualidade
línguas em perigo (Robins & Uhlenbeck, 1991): “ The da documentação.
Comité International Permanent de Linguistes 9 Não por acaso se trata dos descendentes de povos
N

(CIPL) is fully aware that as an apolitical organization que habitavam a costa atlântica na época da conquista,
R T Í S T I C O

it is unsable to reverse this process of gradual decline e que sofreram os primeiros, e devastadores, impactos
of many languages...Nevertheless CIPL cannot da colonização européia.
remain idle...we have to make an effort at least to 10 Vale a pena destacar algumas frases retiradas dos
Record the languages threatened by extintion, to depoimentos, já que elas mostram a variedade de
A

encourage and to enable linguists to do fieldwork, to situações, práticas e atitudes que se vêem nas escolas
E
I S T Ó R I C O

write grammars, to compose dictionaries, and to indígenas, mesmo depois de oficializada, e


preserve and make accessible their oral and written supostamente difundida, a chamada ‘educação
literature. The extinction of languages seriously bilíngüe’, ‘diferenciada’ ou ‘específica’: “A escola é a
affects the empirical basis of linguistics, of general única instituição capaz de recuperar nossa língua, que
H

linguistics as well as of historical, comparative and está em vias de desaparecer”; “os alunos aprendem a
A T R I M Ô N I O

typological studies”. Os estudos descritivos ler e escrever na nossa língua, mas não a falam em
(documentação) são a “ação” para a qual os lingüistas casa”; “a comunidade decidiu que a alfabetização tem
são conclamados e pede-se o urgente apoio da que ser apenas em português, porque a escola é o
Unesco, no seio da qual, cerca de dez anos depois, lugar de aprender o conhecimento dos brancos e não
P

será gerada a idéia de ‘línguas e tradições orais como aquilo que nós já sabemos”; “a escola ajuda a preservar
D O

parte do patrimônio intangível” . a língua, quando a política do povo é preservá-la, caso


E V I S T A

Bruna Franchetto

5 O livro é extremamente interessante pela contrário ela pode acabar com a língua mais
documentação cuidadosa de várias experiências de rapidamente do que a gente imagina”; “quando
R

revitalização; seus autores o dedicam “to the brave aprendemos a escrever na nossa própria língua, as
people who work against all odds to help their crianças começam a valorizá-la mais”; “a escola não
endangered languages to survive”. E não esqueçamos tem nada a ver com o problema, a culpa é do
que nos Estados Unidos, a Administration for Native professor, que não tem formação adequada, não fala a
Americans distribui $2 milhões por ano para ‘tribos’ língua e não sabe como usá-la na escola”; “as coisas
desenvolvendo programas de resgate de suas línguas. mudaram desde que a escola diferenciada começou”.
204
6 Para um histórico e um panorama dos estudos 11 Alguns dos estudantes entrevistados pertencentes a
sobre línguas indígenas no Brasil, ver Seki, 2000; grupos étnicos cujas línguas podem ser consideradas
Moore, 2005 e, no prelo; Franchetto 2000a, 2000b, vitais argumentaram que os professores, como muita
2001a, 2001b. Nestes artigos há dados sobre a gente de suas comunidades, “têm vergonha de falar sua
presença do SIL, missão evangélica norte-americana, língua”; que “a maioria das pessoas não falam mais a
no Brasil, e avaliações de seu papel na formação desse língua”; e que “em casa as línguas estão
campo de pesquisas. acabando/morrendo”.
7 O curso em nível universitário teve início no ano de 12 Refiro-me ao projeto “Documentação lingüística,
2000 por iniciativa da Universidade do Estado do Mato etnográfica e histórica do Karib alto-
Grosso (UNEMAT). Situado no campus de Barra do xinguano/Kuikuro”, parte do programa DOBES já
Bugres, a 170km de Cuiabá, o curso é freqüentado por mencionado. O caso Kuikuro é emblemático. A língua
200 estudantes indígenas, oriundos de 37 grupos está ainda em plena vitalidade, mas começa a
étnicos, falantes de 30 línguas diferentes apresentar os sintomas de um prenúncio de crise, que
(www.unemat.br/indigena). será, muito provavelmente, irrefreável. Se tomarmos
8 O documento foi produzido pelo grupo da Unesco o documento da Unesco (Vitalidade e Risco de Perda
Intangible Cultural Heritage Unit’s Ad Hoc Expert Group on Lingüística), percebe-se seu afastamento de um
Endangered Languages. Os nove “fatores de vitalidade estágio seguro ou de uso universal da língua. A língua
lingüística” citados são: 1) transmissão intergeracional; indígena vem sendo utilizada em novos domínios,
2) número absoluto de falantes; 3) proporção de como a educação escolar, juntamente com o idioma
falantes no total da população; 4) perda dos domínios nacional (dominante), e tornando-se inativa (e
obliterada) em outros novos domínios, como a mídia.

Línguas em perigo e línguas como patrimônio imaterial


A maioria dos Kuikuro é favorável e apóia a
manutenção da língua. Os mais jovens, porém, vêm
considerando, de maneira acentuada, que o português

A C I O N A L
(ou o Inglês) é mais rico e mais poderoso em termos
de suas expectativas de futuro: eles pretendem tornar-
se advogados, médicos e engenheiros, em vez de

N
chefes, xamãs, narradores ou cantores. Parece ser este

R T Í S T I C O
o momento ideal para empreender uma
documentação lingüística e cultural – trabalho que se
envolve em processos de preservação lingüística e
cultural. É uma situação que pode responder

A
positivamente a um projeto de pesquisa que chamo,

E
I S T Ó R I C O
mesmo se um tanto retoricamente, de participativo.
13 Segundo dados apresentados pelo Ministério da
Educação em 1998 e, evidentemente, já
desatualizados, haviam na época 76000 alunos em

H
1600 escolas localizadas em áreas indígenas no Brasil.

A T R I M Ô N I O
14 O documento, de 18 de maio de 2001, inclui as
línguas, e a literatura oral, como formas de expressão
popular e tradicional que devem ser preservadas como
fator vital da identidade cultural, da promoção da

P
criatividade e da preservação da diversidade cultural.

D O
Entre os objetivos da iniciativa está encorajar os países

E V I S T A

Bruna Franchetto
membros a estabelecer inventários nacionais de sua
herança intangível, providenciando medidas legais e

R
jurídicas para a sua proteção. É neste contexto que foi
recentemente reconhecida, pela primeira vez, uma
manifestação cultural indígena no Brasil: o repertório
dos grafismos Wajãpi. É interessante notar que, na
proposta Wajãpi, há um certo cuidado em não colapsar
preservação cultural e educação escolar.
205
Chr istopher Ball
Fa z e n d o d a s l í n g u a s o b j e t o s

A C I O N A L
L Í N G U A S E M P E R I G O D E E X T I N Ç Ã O

N
E D I V E R S I D A D E C U L T U R A L

AR T Í S T I C O
1 Introdução diversidade local” (Sahlins, 1993). A

E
I S T Ó R I C O
antropologia lingüística tem tentado
A expressão línguas em perigo de extinção é, demonstrar como as conexões entre a língua
hoje, não apenas um termo técnico- e a cultura são criadas, mantidas,

H
científico, como também o cerne de projetos transformadas e interpretadas nos contextos

A T R I M Ô N I O
sociais que mais e mais vão solidificando as complexos de mudança rápida da língua. A
ligações entre as esferas locais e globais. É idéia de línguas ameaçadas ou línguas em perigo
nos contextos locais da pedagogia de línguas de extinção é importante e vale a pena

PD O
indígenas, nas publicações científicas, no considerar como ela cabe num espaço de

E V I S T A
debate de políticas sociais e no possíveis conceitualizações sobre as relações
desenvolvimento de programas de entre língua, cultura, propriedade,

R
financiamento para a pesquisa1 que o conhecimento, localidade, etc. Sugerimos
conceito de línguas em perigo de extinção se que a simples premissa segundo a qual a
torna um objeto, uma premissa assumida da perda das línguas no mundo causa a perda da
onda mais recente dos alertas sobre o diversidade cultural não é analiticamente
desaparecimento de povos indígenas. Franz adequada. Nós nos propomos a explorar as 207

Boas já assumia, no começo do século várias formas que o processo de


Les Indiens de L’Amazonie
passado, que os povos indígenas da América reconhecimento da língua como um tipo
Adorant le Dieu Soleil (Os
do Norte iriam desaparecer dentro de pouco específico de patrimônio imaterial assume índios da Amazônia
adorando o deus sol). Óleo
tempo. Seguimos, todavia, a teoria de Boas localmente. Mais especificamente,
sobre tela, 90,2 x 116,8 cm.
de que língua e cultura são estruturas procuramos discutir as maneiras Coleção Kugel, Paris,
França. Autor: François
distintas, embora se interpenetrem de vários culturalmente diversas de conceitualizar a
Auguste Biard. In: O Brasil
modos. Argumentamos que as descrições perda da língua. dos viajantes, vol. III, p.
113. Pesquisa coordenada
etnográficas de línguas em perigo de Na primeira parte do artigo, apresentamos
por Ana Maria de Moraes
extinção nos oferecem dados que revelam o quadro teórico por nós utilizado e Belluzzo e publicada pela
Editora Metalivros, com
uma quantidade surpreendente de variação e argumentamos que o conceito de línguas em
patrocínio da Construtora
de continuidade cultural. Segundo Marshall perigo de extinção deve ser analisado como um Norberto Odebrecht, 1994.

Sahlins, “as maneiras como as sociedades conceito ideológico. Na segunda parte do


mudam têm a sua própria autenticidade, de artigo, comparamos os resultados de algumas
modo que a modernidade global é etnografias da mudança lingüística em
freqüentemente reproduzida como comunidades indígenas distintas;
Fazendo das línguas objetos tentaremos analisar os mecanismos e à não-alienabilidade, aos critérios que
interpretativos presentes nos casos descritos. definem a posse legítima ou aos conceitos de
Na terceira parte, nos voltaremos para o posse privada ou comum. O discurso da
A C I O N A L

Brasil, tratando dois casos de mudança posse e da propriedade da cultura e seus


lingüística com os quais temos alguma atributos e produtos, inclusive os
familiaridade e apontando direções para lingüísticos, tem se tornado cada vez mais
N
R T Í S T I C O

pesquisas futuras sobre línguas indígenas poderoso no cenário político internacional.


amazônicas. Os casos etnográficos mostram a Na academia, fala-se em termos de proteção
existência de uma diversidade de situações dos direitos de propriedade intelectual e do
A

que, embora muitas vezes sutil, questiona o conhecimento tradicional dos povos locais
E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

que o senso comum pode nos fazer pensar (Carneiro da Cunha s/d; Coombe, 1998;
sobre línguas em perigo de extinção. É Hayden, 2003; Nijar, 1996; Sillitoe, 1998;
importante falar dessa diversidade, já que é o Strathern et al, 1998).
H

que assumimos existir também no Brasil. Na Na medida em que a língua pode existir
A T R I M Ô N I O

conclusão, retornaremos ao problema da como propriedade e, assim, como um objeto


perda lingüística, procurando mostrar que em potencial perigo de perda, em muitos
novos usos e novas formas apontam mais para casos ela é ligada explicitamente ao
P
D O

processos de transformação do que de conhecimento. O conhecimento pode-se


E V I S T A

extinção. referir ao conteúdo de taxonomias, a


narrativas míticas, à ciência ou a outros
R

2 O b j e t i va ç ã o d a l í n g u a gêneros de discurso esotérico. Para dar um


e i d e o lo g i a s d a p e r d a exemplo geral, nas comunidades que
lingüística. experimentam variedades de mudança
lingüística rápida, o conhecimento
208 Comecemos apontando dois elementos- lingüístico pode ser reconhecido socialmente
chaves na consideração do tema da perda e constar do conhecimento de tecnologias
lingüística: propriedade e conhecimento. específicas para a reprodução de formas
Vamos explorar o modo como estes relativamente descontextualizadas da língua.
conceitos estão ligados a um terceiro Distinto da noção chomskiana de
conjunto de termos tais como alfabetização, conhecimento lingüístico como capacidade de
biodiversidade, território, identidade, geração de infinitos objetos lingüísticos, este
patrimônio, etc., a fim de produzir maneiras tipo de conhecimento consiste no controle
distintas de pensar sobre a perda da língua. sobre os índices remanescentes, muitas vezes
Durante a discussão que se segue, nós nos escritos, de uma comunidade lingüística
referimos aos regimes de propriedade anteriormente íntegra. Assim, o acesso a
enquanto socialmente construídos e listas, dicionários, gramáticas e textos
culturalmente conceitualizados. É narrativos produzidos e coletados por
importante reconhecer que regimes lingüistas, antropólogos e missionários de
diferentes tratam a propriedade de maneiras gerações anteriores acaba se tornando fator
distintas no que diz respeito à alienabilidade determinante na formação de uma elite
indígena possuidora de conhecimentos beleza ecológica; em lingüística, este

Fazendo das línguas objetos


lingüísticos sob a forma de traços materiais argumento pode adotar a retórica da política
de um patrimônio imaterial (Moore, s/d). É verde ou da política dos direitos humanos. A

A C I O N A L
assim que categorias de conhecimento e biodiversidade das espécies é, assim, o
propriedade podem se associar a uma terceiro termo operativo que se combina
terceira categoria, tal como a escrita, e com a propriedade e o conhecimento. O

N
R T Í S T I C O
produzir trajetórias novas de mudança conhecimento lingüístico é concebido como
lingüística em situações de transformação propriedade que deve ser preservada pro
das comunidades locais. bono publico ou, problematicamente, como

A
Na ciência ocidental, a concepção propriedade privada sem a qual uma

Christopher Ball
I S T Ó R I C O
convencional de línguas em perigo de extinção determinada cultura entraria em falência.
é, há muito tempo, uma metáfora do modelo Uma das conseqüências mais discutíveis
ecológico da ameaça às espécies e ao meio resultantes de argumentos deste tipo, do

H
ambiente. Esta relação metafórica, porém, ponto de vista da antropologia lingüística, é

A T R I M Ô N I O
parece desaparecer em trabalhos recentes a tendência a se equiparar a língua com a
sobre a evolução’ e a extinção das línguas cultura de maneira simplista: quando se
(Mufwene, 2000; Sutherland, 2003). Neste perde uma, se perde a outra. Note-se,

P
D O
esquema, os argumentos a favor da também, a forte ênfase que é dada à morte

E V I S T A
preservação da diversidade lingüística são das línguas, implicada no fato de serem
paralelos aos argumentos a favor da consideradas em perigo de extinção.

R
preservação da biodiversidade (Hale et al Sugerimos que o conceito de línguas em
1992; ver também Grenoble & Whaley, perigo de extinção vem de uma forma
1998; Nettle & Romaine, 2000; e a crítica particular da objetivação. O que queremos
de Moore, 2001). Gera-se, assim, um dizer com objetivação? Em sua discussão do
discurso da conservação das línguas baseado tratamento da posse da terra e de rituais 209
em duas considerações. De um lado, o entre os povos aborígines do deserto do
objetivo é guardar as fontes de dados oeste de Austrália, Fred Myers (1986)
lingüísticos vivos, ou como objeto de apresenta a objetivação como um processo
descrição ou como possíveis evidências de que leva à fixação de distinções. Do ponto
características da gramática universal. Do de vista das pessoas inseridas em sua própria
outro lado, procura-se preservar conteúdos cultura, é como se “essas distinções não
intelectuais e culturais para a posteridade. fossem assuntos de vontade e rejeição
O primeiro objetivo é parecido ao desejo de individual, mas acordos já realizados e
se preservar o genoma em biologia. Neste aceitos: objetivações” (Myers, 1986:295).
caso, presume-se que a faculdade inata da Outra maneira de se pensar essa questão é
linguagem humana é representada nos perguntarmos como estruturas culturais
igualmente em todos os membros da espécie fornecem esquemas já prontos para sustentar
e focaliza-se o descobrimento das restrições idéias sobre a sociedade e os laços que
sobre os parâmetros da gramática universal. amarram o grupo social: língua, parentesco,
O segundo objetivo visa à preservação da localidade, etc. Podemos tirar proveito das
Fazendo das línguas objetos idéias de Gregory Bateson sobre a conexão centro da produção e da reprodução de
entre cultura e o que é dado. Para Bateson, a formas sociais e culturais (Silverstein, 1976).
maneira como certos fatos aparecem como Reconhece-se que além do nível do uso da
A C I O N A L

dados, dentro de uma tradição herdada de língua, há um segundo nível (indicado pelo
idéias e de práticas, forma a base da prefixo meta); a repetição do uso de formas
estrutura cultural. Os fatos assumidos são comunicativas apropriadas ou não
N
R T Í S T I C O

premissas, ou seja, “afirmações generalizadas apropriadas, nos seus contextos, reforça


de uma assunção ou implicação particular, interpretações do uso nesse segundo nível
reconhecíveis em detalhes do reflexivo. O sistema implícito e explícito de
A

comportamento cultural” (Bateson, normas de uso da língua, ou meta-pragmática,


E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

1958:25). Bateson deriva disso sua definição é a área de maior interesse na localização
de estrutura cultural: “Um termo coletivo analítica da interação entre língua e cultura.
para o esquema lógico e coerente que pode Como mostra Silverstein (1976, 1979), a
H

ser construído pelo cientista, juntando as meta-pragmática é o nível semiótico que


A T R I M Ô N I O

várias premissas culturais” (Bateson, filtra idéias sobre o uso tanto adequado ou
1958:25). É óbvio que Bateson fala, aqui, de apropriado como criativo de formas da
como o pesquisador ocidental (re)constrói a língua ou de várias línguas. Ela media o uso
P
D O

estrutura cultural de um outro etnográfico da língua e as noções culturais básicas sobre


E V I S T A

não-ocidental. O conceito analítico de a composição das categorias sociais e as


sistemas de premissas culturais serve, relações apropriadas entre elas. Desse modo,
R

contudo, tanto para analisar as idéias a fenomenologia da língua está relacionada


reflexivas que o outro etnográfico pode ter, com a ontologia de seus falantes.Tudo isso é
como as idéias que o próprio cientista explicitamente um problema relacionado ao
ocidental pode gerar sobre este outro. uso da língua. No que tange à mudança
210 A antropologia lingüística tem trabalhado lingüística, essa teoria nos distancia de uma
com o objetivo de formular uma teoria dos visão da mudança em que a língua é uma
processos semióticos através dos quais força autônoma. Ela nos leva a pensar que o
fenômenos lingüísticos podem ser lugar da mudança é a dialética entre as
objetivados ou ideologizados. As ideologias percepções dos falantes e o uso que eles
lingüísticas são assim definidas na literatura: fazem da língua.
“Conjuntos de crenças sobre a língua,
articulados pelos usuários como 3 Diversidade nas
racionalização ou justificação da estrutura e i d e o lo g i a s d a p e r d a
do uso da língua” (Silverstein, 1979:193); lingüística
ou: “Sistemas culturais de idéias sobre
relações sociais, junto com os conseqüentes Etnografias de comunidades locais,
interesses morais e políticos” (Irvine, inclusive das que estão experimentando um
1989:255). Este conceito analítico facilita tipo de mudança lingüística, mostram um
uma visão semiótica da língua e da cultura continuum de modos de pensar e falar sobre a
que coloca eventos de uso da língua no língua e sobre o conhecimento que
incorpora vários tipos de ideologias propriedade pública para exposição na esfera

Fazendo das línguas objetos


lingüísticas, tanto tradicionais como modernas comunitária em nome do patrimônio, esafia
(Silverstein, 1998). Parece existir um as noções indígenas relativas ao tipo de

A C I O N A L
processo comum de objetivar a língua e a propriedade que os nomes pessoais
cultura em diversos lugares, embora o poderiam ser.Tudo isso deriva de uma
conteúdo semiótico dos processos varie. tendência geral atual na cultura Wasco. A

N
R T Í S T I C O
Kiksht é um dialeto Wasco-Wishram do ideologia local ou popular da obsolescência
Upper Chinookan, do noroeste dos Estados lingüística muitas vezes enfatiza traços
Unidos. O número de falantes nativos da lexicais, a perda das palavras, como

A
língua na reserva Warm Springs, no estado indicativos da mudança lingüística. Assim,

Christopher Ball
I S T Ó R I C O
de Oregon, está atualmente em menos de vemos o surgimento de uma ideologia
dez pessoas (Moore, s/d). A comunidade particular a que poderíamos chamar, com
está experimentando uma mudança no uso Moore, artefatualização das palavras em

H
da língua do Kiksht para o inglês e o Kiksht (Moore, 1988, 2000). Especialmente

A T R I M Ô N I O
Sahaptin. Nesse contexto de obsolescência no caso de semifalantes mais jovens, as
lingüística há, contudo, um interesse em palavras são itens a serem recordados e
continuar o ensino da língua nas escolas da mostrados com apreciação. As sessões de

P
D O
comunidade. Os administradores tribais coleta de dados e as entrevistas com

E V I S T A
também se interessam cada vez mais pela lingüistas se tornaram os únicos contextos
língua. Silverstein (s/d) descreve como as de uso de gêneros verbais não mais

R
lideranças políticas do conselho tribal Wasco, praticados, como a narrativa mítica. Estes
que tiveram sua formação nas escolas do contextos contribuem para a generalização
branco, consideram objetos do patrimônio das formas lingüísticas dos gêneros verbais,
lingüístico os nomes pessoais tradicionais em já que são acessíveis cada vez mais
Kiksht. As lideranças querem ter novamente unicamente como objetos que podem ser 211
de volta os nomes registrados nos cadernos apenas mencionados.
dos antropólogos e levados por eles anos Na sua descrição da mudança lingüística
atrás.Tais nomes, no processo de serem em Warm Springs, Moore é cuidadoso ao
objetivados, são considerados propriedade distinguir os elementos gramaticais, que são
tribal, comum. A consideração dos nomes o foco dos lingüistas, da ideologia do
pessoais como propriedade não é nova na artefato que caracteriza os discursos
cultura Wasco, nos diz Silverstein. Só que o populares na comunidade de falantes da
regime de propriedade tradicional, no qual língua. Nesta, existe uma distinção entre o
os nomes circulavam, envolvia uma Kiksht dito puro ou verdadeiro e o Kiksht
hierarquia de status, pagamento e prestígio, quebrado. Gramaticalmente falando, o
de modo que os nomes pessoais eram registro do Kiksht quebrado é marcado pela
secretos e a possibilidade de sua exposição continuação de um processo de
era ritualmente complexa e intensamente lexicalização, incipiente na época em que
discutida. Neste caso,o desejo de tornar Edward Sapir pesquisou a língua, no começo
certas categorias de artefatos lingüísticos do século XX. O registro do Kiksht quebrado
Fazendo das línguas objetos apresenta duas características relevantes. Em cultural do conhecimento. O inglês, a língua
primeiro lugar, o modo de falar que o marca que é cada vez mais o alvo da mudança
vem de um processo resultante da situação lingüística na comunidade, está associado a
A C I O N A L

particular em que a comunidade de fala de um tipo distinto de prestígio. Os Tewa mais


Warm Springs se encontrou, facilitando a jovens, que falam o inglês e o Tewa, se voltam
mistura de elementos morfossintáticos de para a cultura euro-americana moderna e para
NR T Í S T I C O

Kiksht com elementos da língua vizinha, o valores como o individualismo (Kroskrity,


Sahaptin. Em segundo lugar, a racionalização 1993: 42-43; ver também Silverstein, 1998).
dos membros da comunidade ignora as Disso vem a desvalorização da fala Tewa dos
A

transformações no sistema gramatical, já que jovens bilíngües pois, do ponto de vista


E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

a formulação da teoria local é que a normativo, o Tewa dos membros tradicionais


diferença entre o Kiksht verdadeiro e o da comunidade ocupa a posição do estilo
quebrado está apenas na quantidade de superior esotérico, e o Tewa dos jovens é
H

palavras, ou seja, na riqueza da coleção de categorizado como maneira de falar


A T R I M Ô N I O

artefatos (Moore, 1988). exotérica, inferior. A oposição entre um


Moore explica que a divisão na língua regime que delimitava a distribuição de
Kiksht resulta do processo de obsolescência e conhecimentos esotéricos conforme a
PD O

que o conceito dum Kiksht puro não provém hierarquia social tradicional e um registro
E V I S T A

da presença de nenhuma variedade exotérico vai-se transformando numa


anteriormente mais prestigiada da língua “em oposição entre o Tewa verdadeiro dos velhos
R

termos de um padrão de uso e o Tewa associado à esfera social


cosmologicamente centrado ou ritualmente individualista, incorreta, das gerações mais
autorizado” (Moore, 2000:150). Outras jovens. A interpretação das variedades
situações de mudança lingüística mostram remanescentes de Tewa no contexto da
212 diferenças nas bases sócio-históricas das mudança do Tewa para o inglês reflete
divisões entre variedades puras e quebradas. mudança na estrutura e na distribuição de
Forêt Vierge du Brèsil Kroskrity (1993) descreve o caso do Tewa de conhecimentos na comunidade.
(Floresta virgem do Brasil).
Buril colorido, 55 x 76,6
Arizona, no sudoeste dos Estados Unidos. A Kulick (1992) descreve a situação da
cm. Museus Castro distinção contemporânea entre registros do língua Taiap falada na comunidade de Gapun,
Maya/Iphan, Rio de
Janeiro, Brasil. Autor:
Tewa concebidos como verdadeiros e em Papua, Nova Guiné. Esta pequena língua
Claude François Fortier ou adulterados tem como base uma divisão indígena está sendo substituída por outra, o
Conde de Clarac. In: O
Brasil dos viajantes, vol.
histórica. A presença de diglossia sincrônica é Tok Pisin. A área em que está localizada é
III, 165. Pesquisa o resultado de uma reavaliação da distinção uma área de diversidade lingüística. Kulick
coordenada por Ana Maria
de Moraes Belluzzo e
entre um registro esotérico da lingua do kiva, apresenta um analise detalhada das maneiras
publicada pela Editora a casa cerimonial sagrada, e registros pelas quais a execução (performance)
Metalivros, com patrocínio
da Construtora Norberto
exotéricos, tais como cantos de guerra, por lingüística marca valores dentro das
Odebrecht, 1994. exemplo. Kroskrity detalha como os valores dicotomias masculino/feminino,
associados à língua Tewa estão ligados a um coletivo/individual, moderno/atrasado,
sistema social centrado no kiva, que implica bom/mau, etc.Trata-se, de fato, de uma
uma hierarquia tradicional e a estratificação estrutura cultural composta de elementos
Fazendo das línguas objetos opostos organizados em duas linhas Tudo isto nos leva a considerar a questão
paralelas; de um lado, com associações da identidade e a relação desta com a língua,
positivas, do outro lado, com associações a propriedade e o conhecimento. Na política
A C I O N A L

negativas. Central ao sistema é a oposição indígena, é muitas vezes problemático para


entre o estado mental negativo de hed, raiva um grupo afirmar autenticidade cultural
quente e explosiva, e o estado mental positivo quando os diacríticos lingüísticos adequados
N
R T Í S T I C O

de save, conhecimento calmo e razoável. são vistos em fase de rápido


O Tok Pisin entra na comunidade em desaparecimento ou já não existem mais.
conseqüência da migração e do retorno dos Alan Rumsey (1983) mostra que, em
A

homens que trabalham temporariamente fora oposição às análises que postulam uma
E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

da comunidade, em lugares onde domina ligação direta entre língua e identidade, nas
esta língua franca.Tok Pisin, deste modo, ideologias lingüísticas das populações
tem uma associação com a esfera masculina aborígines da Austrália as línguas entram em
H

e, por extensão, chega a ser associado com relação direta com partes de territórios
A T R I M Ô N I O

outros elementos positivos, tais como a específicos. Os índivíduos derivam a sua


educação e a escola, a igreja e o cristianismo, identidade enquanto membros de grupos
os interesses da coletividade e a lingüísticos com referência a territórios nos
P
D O

modernidade. Antes de tudo, a fala em Tok quais as línguas foram miticamente geradas,
E V I S T A

Pisin tem associações com save, o ideal de e não com referência às conexões
subjetividade no esquema cultural de Gapun. comunicativas entre os membros de uma
R

Por outro lado, a língua Taiap traz todas as comunidade de pessoas. Rumsey diz:
associações negativas: o individualismo, a
religião pagã, o atraso e a esfera feminina A língua e o território estão diretamente
caracterizada pela manifestação de hed. A ligados, enquanto a ligação entre a língua e as
214 desvalorização da linguagem vernácula não é pessoas é mediada; as pessoas Jawoyn são Jawoyn
consciente. Apesar de os adultos quererem não porque elas falam Jawoyn, mas porque elas
que a língua seja transmitida às gerações estão ligados aos lugares aos quais a língua
descendentes e apesar de Kulick ter Jawoyn está também ligada (Rumsey, 1983). Isso
observado o uso da língua Taiap na resulta em casos onde uma pessoa não precisa falar
socialização de crianças, os residentes adultos uma língua para ser considerada membro de um
da comunidade de Gapun reclamam de que grupo lingüístico.
não podem entender os jovens que preferem
Tok Pisin e não falam Taiap. Neste caso, a Atualmente, essa situação caracteriza não
objetivação e a inserção de um novo modo somente a cultura tradicional aborígine, mas
de falar dentro de uma estrutura cultural faz está presente nas leis e no cálculo legal que
com que a língua indígena seja depreciada. define a identidade grupal. Rumsey relata
De certo modo, a continuidade cultural que, em audiências legais sobre reclamações
assegura a perda da língua. Esta perda, de terra no Australian Land Comissioner, alguns
todavia, nada tem a ver, necessariamente, grupos lingüísticos foram oficialmente
com a perda da estrutura cultural. reconhecidos sem que o critério da
habilidade de falar uma língua aborígine que quando morre uma língua morre uma

Fazendo das línguas objetos


entrasse em jogo. Deste modo, falantes de cultura é que, nesses casos, a possibilidade da
uma determinada língua que não se existência de um sentido íntegro de

A C I O N A L
identificam com a comunidade reclamante comunidade, com fortes ligações com uma
de terra podem ser excluídos mesmo falando tradição de patrimônio imaterial, não
a mesma língua dos reclamantes. Da mesma depende do código lingüístico.Vemos que a

N
R T Í S T I C O
forma, direitos e benefícios atribuídos a língua interpretada como propriedade
determinado grupo lingüístico podem interage com o conhecimento e a identidade
incluir pessoas que não falam a língua de maneira complexa. É a estrutura cultural

A
daquele grupo. No caso de línguas em que define as relações entre a localidade, a

Christopher Ball
I S T Ó R I C O
perigo de extinção, nas comunidades onde o identidade, a língua, a propriedade e o
inglês está se impondo, falantes de inglês conhecimento, e isso não depende
monolíngües mais jovens podem ser necessariamente da sobrevivência de uma

H
considerados donos legítimos da língua língua ou outra. É muito interessante ver em

A T R I M Ô N I O
indígena, tanto no regime tradicional como casos assim, seguindo o excelente trabalho
no regime legal. O exemplo citado por sobre Dyirbal de Schmidt (1985), como a
Rumsey é o da audiência Finniss River, em variedade nas práticas lingüísticas, resultante

P
D O
1980, envolvendo as tribos Maranunggu, de mudanças lingüísticas, é interpretada

E V I S T A
Kungarakany e Warai. como pertencendo ou não pertencendo a certos
Em certos casos aborígines, o território grupos ou locais aborígines.

R
também está diretamente ligado ao
conhecimento; o fato do indivíduo estar 4 Implicações para a
propriamente situado é uma condição para ser pesquisa de línguas
dono de conhecimentos tradicionais, e vice- ameaçadas no Brasil
versa. Myers (1981) fala de como os Pintupi 215
do deserto oeste da Austrália concebem a Vejamos agora, brevemente, as implicações
posse da terra e o controle sobre os direitos de tudo o que foi dito para a análise de
de outros com respeito a ela. O línguas ameaçadas no Brasil, tomando os
reconhecimento da posse de determinado casos da língua Piratapuya, da família Tukano
território por parte de um indivíduo depende oriental do alto rio Negro e do Yawalapiti, e
do reconhecimento de seu domínio do da língua Arawak do alto Xingu. Em ambos
conhecimento associado ao território: os casos, é preciso reconhecer a importância
história, mitologia e rituais.Tal conhecimento do contexto multilíngüe no qual essas línguas
é inerente à terra e derivado da geração se encontram.Veremos que as ideologias
mítica dos sítios particulares. A organização lingüísticas correntes nas duas regiões,
social da transmissão de tais conhecimentos consideradas áreas culturais, apresentam
entre os membros da sociedade permite respostas distintas ao problema da
aquilo a que Myers chama “a elaboração do convivência e da organização social em áreas
conhecimento esotérico” (Myers, 1986:149). multilíngües (Franchetto, 2001). Embora
Conseqüência interessante para a hipótese de sejam as duas regiões, de fato, multilingües, no
Fazendo das línguas objetos alto rio Negro o multilingüismo é uma natal, adquire a língua do pai, a língua da
propriedade individual, enquanto que no alto mãe e possivelmente as línguas das outras
Xingu domina a presença do indivíduo mulheres (Jackson, 1983; Sorenson, 1967).
A C I O N A L

monolíngüe. Sugerimos que a mudança Os Piratapuya estão experimentando a


lingüística, nos dois casos, entra numa relação mudança lingüística e as lideranças estão
dialética com as estruturas culturais preocupadas com a possibilidade de sua
N
R T Í S T I C O

regionais. De um lado, os padrões de língua vir a ser eventualmente substituída


parentesco, aliança, troca, cosmologia e pelas línguas Tukano e português.Tratamos
identidade influenciam a (meta) pragmática de idéias sobre a perda da língua do ponto
A

lingüística; do outro lado, mudanças no de vista das elites Piratapuya.2 Consideremos,


E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

comportamento lingüístico criam contextos então, a história Piratapuya e a trajetória


novos para a avaliação sistemática das temporal-espacial da perda cultural,
premissas culturais em jogo. Deste modo, incluindo a lingüística, a partir dos
H

bases ideológicas lingüísticas distintas depoimentos orais ouvidos no local. No


A T R I M Ô N I O

contribuem para processos diferentes que Vaupés, a língua paterna é um traço central
geram conceitos diferentes de mudança. Nem da identidade herdada. Objetos rituais,
toda a perda lingüística indígena no Brasil é nomes e conhecimento de histórias e lugares
P
D O

culturalmente igual. contribuem, também, para a identidade dos


E V I S T A

Piratapuya é uma língua da subfamília grupos exogâmicos. No contexto


Tukano Oriental. A língua está inserida no Piratapuya, o lamento sobre a perda da
R

sistema de alianças e trocas do Vaupés, propriedade e do conhecimento culturais –


composto de grupos lingüísticos organizados “nossas culturas” – inclui a destruição das
em uma rede de exogamia lingüística malocas tradicionais pelos missionários
horizontal e uma hierarquia social vertical. salesianos e, crucialmente, a ruptura das
216 Neste sistema, o casamento tem linhas de transmissão dos conhecimentos
restrições em, pelo menos, dois níveis: 1) culturais, inclusive o lingüístico, resultante
entre membros do mesmo grupo lingüístico; do deslocamento obrigatório das crianças
e 2) entre membros da fratria, conjunto de para as escolas Salesianas, nos centros
irmãos metafóricos composto de vários regionais, desde o começo do século
grupos lingüísticos.Todos os homens passado. As escolas salesianas, onde jovens de
residentes em uma determinada comunidade várias etnias se encontravam, são, hoje,
são falantes e possuidores da língua de consideradas os lugares da mistura lingüística.
identificação da etnia da comunidade.Todas A mistura é representada enquanto processo
as mulheres casadas residentes em uma de substituição lexical, tendo o Tukano e o
determinada comunidade vêm português como as línguas mais faladas no
necessariamente de outras comunidades de contexto escolar e línguas francas regionais.
onde elas herdaram a língua de uso e de As outras línguas das famílias Tukano e
identificação paterna. Isso resulta em um Arawak, representadas por populações
multilingüismo ao nível da comunidade e do menores de falantes nas escolas, foram
indivíduo, já que cada criança, na sua aldeia corrompidas pelos efeitos do contato
lingüístico, já que este não era regulado em um forte laço com a língua paterna de

Fazendo das línguas objetos


termos do sistema de casamento e troca. identidade, a perda da língua é percebida
O panorama lingüístico contemporâneo como uma crise imanente para as lideranças

A C I O N A L
Piratapuya inclui o território tradicional dos Piratapuya, especialmente pelo fato de eles
Piratapuya no rio Papuri, onde ficam as já falarem apenas o português ou o Tukano e
aldeias, o próximo centro escolar regional o português, até os que se identificam como

N
R T Í S T I C O
salesiano de Iauaretê, na confluência dos rios semifalantes de Piratapuya. Estamos aqui
Papuri e Vaupés, e o centro administrativo da diante de uma reflexão indígena que serve
política indígena e governamental, a cidade para embasar, entre outras coisas, uma

A
de São Gabriel da Cachoeira, no rio Negro. política indigenista recuperadora, incluindo

Christopher Ball
I S T Ó R I C O
O movimento das gerações mais recentes nesta o desejo de se ter algum tipo de
(nos últimos cem anos) rio abaixo, marca o documentação lingüística.
começo do fim nas narrativas da perda da Yawalapiti é uma língua Arawak falada

H
língua; este movimento está correlacionado (com muita variação em competência) por

A T R I M Ô N I O
com as rupturas na transmissão patrilinear dez a 15 pessoas em uma aldeia multilíngüe
da língua como propriedade e como de cerca de 200 habitantes no alto Xingu,
conhecimento dos nomes dos sítios locais e Mato Grosso (Mujica, 1990). A fundação da

P
D O
seus mitos. O movimento espacial comunidade Yawalapiti contemporânea, em

E V I S T A
representa a inversão da trajetória da cobra- meados do século passado, fez parte do
canoa ancestral que gerou os povos Tukano, projeto indigenista dos irmãos Villas-Boas

R
depositando-os na ordem de sua posição de salvar os grupos xinguanos (Bastos,
social hierárquica. O tema do deslocamento 1989). A reconstituição da aldeia Yawalapiti
é também ligado à perda, através da história nos anos 50 envolveu um fluxo de falantes
recente, das restrições exogâmicas de de Kamayurá (Tupi-Guarani) e Kuikuro
casamento. Não obstante as restrições ao (Carib) de comunidades vizinhas, levando à 217
nível do grupo lingüístico continuem sendo atual demografia multilíngüe da
observadas, os Piratapuya reclamam de que comunidade Yawalapiti.
as restrições ao nível da fratria são cada vez Podemos falar de uma objetivação clara
menos observadas. Desse modo, a perda da da língua no caso do alto Xingu. Na rede
língua devida à mistura lingüística e étnica regional de trocas de bens, a função da
inapropriada está ligada a casamentos língua é, em parte, reforçar identidades ao
ilícitos, ao deslocamento espacial e à ruptura nível tribal. Assim como os artefatos
temporal na transmissão da língua como especializados são diacríticos étnicos, a
objeto de propriedade identitária e dos língua ocupa uma posição paralela nos
conhecimentos culturais associados. A encontros intergrupais, cada representante
transformação percebida no sistema ou chefe executando discursos públicos na
exogâmico é sinal de uma transformação na língua de sua etnia (Franchetto, 2000). Além
prática lingüística e, tendo-se em vista a disso, formas lingüísticas como nomes,
ideologia lingüística regional que valoriza cantos, etc. podem ser objetos de transações
repertórios lingüísticos diversos, aliados a econômicas entre indivíduos; o aprendizado
Fazendo das línguas objetos xamânico, por exemplo, requer pagamentos ao regime de propriedade lingüística tivesse
custosos (Barcelos Neto, 2002:205). O sido, em parte, suplantada; muitas pessoas
conceito de uma língua, propriedade de um que não falam Yawalapiti se identificam como
A C I O N A L

grupo étnico especifico, é resultado de um Yawalapiti, embora com complicações


processo de objetivação que equipara a intragrupais interessantes (ver Viveiros de
língua à etnicidade (Franchetto, 1986, 2001). Castro, 1977: 89), e a aldeia é Yawalapiti.
N
R T Í S T I C O

Barcelos Neto diz: De fato, no caso em pauta, os últimos


falantes da língua são, na maioria, membros
Da perspectiva wauja, osYawalapiti, enquanto de uma família de chefes. Para a etnia
A

grupo étnico distinto, estão virtualmente extintos, Yawalapiti, enquanto entidade autônoma, se
E

Christopher Ball
I S T Ó R I C O

pois em sua aldeia o kuikuru e o kamayura podemos considerá-la assim, a categoria de


tornam-se os idiomas mais falados. Essa idéia de propriedade parece não mediar a relação
extinção lingüística associada a idéia de extinção entre a língua e a identidade.
H

étnica pode parecer muito rigorosa ou até mesmo E qual seria a relação entre a língua
A T R I M Ô N I O

essencialista; no entanto, para os xinguanos, a Yawalapiti e os regimes do conhecimento? É


língua é considerada a principal fronteira que difícil saber, sem mais pesquisa. Em termos
demarca as distintividades étnicas de conhecimento lingüístico, temos as
P
D O

(Barcelos Neto 2002:55, nota). observações de Medeiros de França sobre as


E V I S T A

divisões operadas pelos próprios Yawalapiti


A ligação ideológica entre a língua e a entreYawalapiti puro, verdadeiro e misturado
R

etnicidade interage com um conjunto de (Medeiros de França, s/d). Estas categorias,


outros ideais sobre a linguagem no alto que pretendem demarcar o grau de
Xingu. Entre elas, mencionamos a ênfase conhecimento manifestado em variantes da
regional dada ao sujeito monolíngüe e a prática lingüística, são ligadas a divisões
218 divisão entre a fala pública e a privada sociais que têm como base trajetórias
(Basso, 1973, Gregor 1976). Entre os espaçotemporais distintas na medida em que
Yawalapiti, em particular, existe um distintos grupos de parentes confluíram para
interesse específico a respeito da função a aldeia Yawalapiti de lugares distintos e em
classificatória da língua no que concerne à épocas distintas, como parte do processo de
categorização dos seres no mundo, o que povoamento da aldeia (Medeiros de França,
representa, em forma lingüística, um ideal cp.). Permanece a questão de saber se essa
do sistema de conhecimentos cosmológicos distinção teria como fundamento a
(Viveiros de Castro, 1977, 200?). obsolescência, como no caso Kiksht, ou
No caso Yawalapiti, observamos a divisões sociolingüísticas anteriores, como
reestruturação do padrão regional alto- no caso Tewa. Em termos da função
xinguano de monolingüismo particular e classificatória cosmológica, seria interessante
grupal (Franchetto, 2001;Viveiros de ver a atitude reflexiva da comunidade, ou a
Castro, 1977:90-91). Interpretamos esse variação nas atitudes reflexivas, sobre a
processo em termos de propriedade. É perda potencial das modalidades cognitivas
como se a questão da identidade em relação corretas de conceber – no sentido de
apreender e criar – o universo. A perda história dos Yawalapiti pode ser analisada

Fazendo das línguas objetos


desse conhecimento classificatório depende como um processo de espacialização que vai
de formas lingüísticas específicas em abrindo os limites do alto Xingu para além

A C I O N A L
Yawalapiti (Viveiros de Castro, 1977). do Parque, para incorporar escalas
Gostaria de reformular as questões socioculturais, econômicas, políticas e
colocadas por Franchetto sobre qual seria lingüísticas supra-regionais. Notamos que

N
R T Í S T I C O
realmente o conhecimento lingüístico qualquer resposta a estas perguntas precisa
atribuído a, ou existente em falantes dos reconhecer o potencial para objetivação
diferentes níveis ou variantes e sobre a lingüística que existe no alto Xingu.

A
relação entre heterogeneidade interna à Ironicamente, é exatamente essa potencial

Christopher Ball
I S T Ó R I C O
aldeia e identidade sociopolítica coletiva, diante objetivação (ideologia lingüística) que
da necessidade de se ter um diacrítico serve para manter o padrão geral alto-
lingüístico próprio (Franchetto, 2001:146). xinguano da equiparação falante

H
Dado que a mudança da língua Yawalapiti é de monolíngüe/localidade/etnia particular e, ao

A T R I M Ô N I O
uma língua indígena para outra(s), Kuikuro mesmo tempo, no caso da ruptura do padrão
(Karib) e/ou Kamayurá (Tupi-Guarani), além pelos Yawalapiti, que facilita a sua
do português, quais são as diferenças entre o transformação na equiparação de falante

P
D O
que está em jogo em termos do sistema multilíngue/região/indianidade genérica.

E V I S T A
regional e do sistema supra-regional (Estado,
Nação, etc.)? De acordo com a lógica do alto 5 Conclusão

R
Xingu, os Yawalapiti devem falar sua própria
língua; no contexto nacional, no entanto, A visão de uma língua ameaçada e de sua
qualquer língua indígena, seja Kamayurá ou morte eventual ou iminente implica, muitas
Kuikuro, por exemplo, pode ser valorizado vezes, um processo de simplificação finita e
como índice autêntico de indianidade. A tensão total. Apesar de ser verdade que traços e 219
entre escalas é manifestada na forma de uma estruturas lexicais e gramaticais se perdem
negociação dentro da comunidade para o com a extinção de uma língua, um efeito
controle de vários textos e formas discursivas colateral do discurso que leva a sério a
as regras e artefatos da educação Yawalapiti, a metáfora da morte é a falta de atenção aos
oratória política, etc. A face voltada para elementos culturais que estruturam
fora, porém, não mostra essa diversidade transformações sociolingüísticas. É
interna. Isto nos leva à questão que é talvez a importante investigar como continuidades e
mais importante: como é que a até inovações podem aparecer em situações
heterogeneidade interna, o status simbólico de perda da língua.Vale a pena perguntar,
da aldeia Yawalapiti como ícone também, em que ponto de um processo de
microcósmico do macrocosmo do alto perda a situação pode se tornar um
Xingu, mostra a indigenização do processo da problema consciente para a reflexão
superposição de escalas (Menezes, 1999: 295), coletiva. Pesquisas concebidas com o
tão importante para a construção do objetivo de conhecer esses processos podem
território do Parque Indígena do Xingu? A servir para desfazer ideologias lingüísticas
Fazendo das línguas objetos ocidentais que apresentam o quadro línguas CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. . Calture [sic]:
em perigo de extinção culminando na morte total anthropological qualms and indigenous intellectual rights
claims (Manuscrito s./d.).
da língua e cultura.Woolard comenta sobre a COOMBE, Rosemary. The cultural life of intellectual
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mudança lingüística em situações de contato: properties: authorship, appropriation, and the law.
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Não é a sobrevivência do mais adaptado que FRANCHETTO, Bruna. Falar Kuikúro. Estudo
N

etnolinguístico de um grupo karíbe do altoXingu.Tese


R T Í S T I C O

vemos acontecer quando há coincidência de


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