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TRISTEZAS AMERICANAS
De Alexandre Biondi

FALA COMIGO DOCE COMO A CHUVA

PERSONAGENS:
HOMEM
MULHER
CRIANÇAS

UM QUARTO MOBILIADO A OESTE DA OITAVA AVENIDA NO CENTRO DE


MANHATTAN. NUMA CAMA DE ABRIR E FECHAR ESTÁ DEITADO UM HOMEM
DE CUECAS AMARROTADAS TENTANDO DESPERTAR E SEUS SUSPIROS SÃO
OS DE UM HOMEM QUE FOI DEITAR MUITO BÊBADO. A MULHER ESTÁ
SENTADA NUMA CADEIRA DE ESPALDAR RETO JUNTO À ÚNICA JANELA DO
QUARTO, LÁ FORA O CÉU ESTÁ CINZENTO CARREGADO DE UMA CHUVA
QUE AINDA NÃO COMEÇOU A CAIR. A MULHER ESTÁ SEGURANDO UM COPO
DE ÁGUA DO QUAL ELA TOMA PEQUENOS GOLES COM GESTOS NERVOSOS
COMO UM PASSARINHO BEBENDO ÁGUA. AMBOS TÊM ROSTOS JOVENS E
DESOLADOS COMO OS ROSTOS DE CRIANÇAS EM PAÍSES DEVASTADOS PELA
FOME. NA MANEIRA DE FALAR EXISTE UMA CERTA DELICADEZA, UMA
ESPÉCIE DE FORMALIDADE MEIGA COMO DE DUAS CRIANÇAS SOLITÁRIAS
QUE DESEJAM SEREM AMIGAS E, NO ENTANTO TEM-SE A IMPRESSÃO QUE
ELES VIVEM NESTA SITUAÇÃO ÍNTIMA HÁ MUITO TEMPO E A CENA QUE
ESTÁ SE PASSANDO ENTRE ELES NESTE MOMENTO É UMA REPETIÇÃO DE
CENAS ANTERIORES, TÃO FREQÜENTES QUE SE TORNARAM PATÉTICAS,
POIS NADA MAIS RESTA DO QUE A ACEITAÇÃO DE UMA SITUAÇÃO
INALTERÁVEL ENTRE ELES, SEM NENHUMA ESPERANÇA DE MUDANÇA.

HOMEM - (COM VOZ ROUCA.) Que horas são? (A MULHER MURMURA ALGO
INCOMPREENSÍVEL.) O que, bem?
MULHER - Domingo.
HOMEM - Eu sei que é domingo. Você nunca dá corda no relógio. (A MULHER
ESTICA UM BRAÇO MAGRO PARA FORA DA MANGA DO QUIMONO DE RAYON
ROSA E VELHO E PEGA UM COPO DE ÁGUA E O PESO DESTE PARECE PUXÁ-
LA UM POUCO PARA FRENTE. O HOMEM A OBSERVA DA CAMA, DE MODO AO
MESMO TEMPO SOLENE E CARINHOSO, ENQUANTO ELA BEBE ÁGUA. UMA
MÚSICA COMEÇA A TOCAR AO LONGE, HESITANTE, REPETINDO UMA FRASE
MUSICAL VÁRIAS VEZES, COMO SE ALGUÉM NUM QUARTO AO LADO
ESTIVESSE PROCURANDO LEMBRAR UMA CANÇÃO NUM BANDOLIM. ÀS
VEZES UMA FRASE É CANTADA EM ESPANHOL. A CANÇÃO PODERIA SER
ESTRELLITA. COMEÇA A CHOVER. CHOVE E PARA DE CHOVER DURANTE
TODA A PEÇA. HÁ O BARULHO FORTE DO ESVOAÇAR DE POMBOS PASSANDO
PELA JANELA E A VOZ DE UMA CRIANÇA CANTAROLA DO LADO DE FORA).
CRIANÇA - Chuva, chuva, vai embora! Volta novamente num outro dia! (O CANTO É
REPETIDO POR OUTRA CRIANÇA MAIS AO LONGE EM TOM DE ZOMBARIA).

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HOMEM - (EM CONCLUSÃO.) Será que eu descontei o meu cheque de desemprego?


(A MULHER SE INCLINA PARA FRENTE COMO SE O PESO DO COPO A
PUXASSE; COLOCA-O NO PARAPEITO DA JANELA COM UM PEQUENO
BARULHO QUE PARECE ASSUSTÁ-LA. ELA COMEÇA A RIR SEM FÔLEGO POR
UM MOMENTO. O HOMEM CONTINUA FALANDO DESANIMADO.) Eu espero não
ter descontado o meu cheque. Onde está minha roupa? Procura nos meus bolsos e vê se o
cheque está comigo.
MULHER - Você voltou quando eu tinha saído para te procurar, pegou o cheque na cama
e deixou um bilhete que eu não pude entender.
HOMEM - Você não entendeu o bilhete?
MULHER - Somente um número de telefone, eu telefonei, mas o barulho era tanto que
não pude escutar coisa alguma.
HOMEM - Barulho? Aqui?
MULHER - Não, barulho lá.
HOMEM - Lá aonde?
MULHER - Eu não sei. Alguém disse "vem para cá" e desligou e tudo que eu consegui
depois foi um sinal de ocupado.
HOMEM - Quando eu acordei eu estava numa banheira cheia de cubos de gelo
derretendo e cerveja Miller's High Life. Minha pele estava azul. Eu estava respirando com
dificuldade numa banheira cheia de cubos de gelo. Era perto de um rio, mas não sei se era o
East ou o Hudson. As pessoas fazem coisas horríveis quando alguém está inconsciente
nesta cidade. Eu estou todo dolorido, como se tivessem me dado pontapés escada abaixo,
não como se eu tivesse caído, mas como tivesse sido chutado. Eu me lembro de uma vez
que rasparam todo o meu cabelo. Outra vez me enfiaram numa lata de lixo, em um beco e
eu acordei com cortes e queimaduras no meu corpo. Gente má abusa de você quando você
está inconsciente. Quando eu acordei estava despido numa banheira cheia de cubos de gelo
que derretiam. Eu me arrastei para fora da banheira, fui para a sala e alguém estava saindo
pela outra porta quando eu entrei, eu abri a porta e ouvi a porta de um elevador fechando e
vi as portas de um corredor de hotel. A TV estava ligada e havia um disco tocando ao
mesmo tempo; a sala estava cheia de carrinhos de chá carregados de coisas da copa,
presuntos inteiros, perus inteiros, sanduíches de três andares já velhos e ficando duros, e
garrafas, garrafas e mais garrafas de todos os tipos de bebidas que ainda nem tinham sido
abertas, e baldes de gelo derretendo... Alguém fechou uma porta quando eu entrei... (A
MULHER BEBE ÁGUA.) Quando eu entrei alguém estava saindo. Eu ouvi a porta de um
elevador fechar... (A MULHER POUSA O COPO.) Tudo espalhado pelo chão daquele
quarto perto do rio. Coisas, roupas por todo lado... (A MULHER SE ASSUSTA QUANDO
POMBOS PASSAM VOANDO PELA JANELA ABERTA.) Soutiens! Calcinhas!
Camisas, gravatas, meias e outras coisas...
MULHER - (BAIXINHO.) Roupas?
HOMEM - Sim, todo tipo de coisas pessoais e vidros quebrados e móveis derrubados,
como se estivesse acontecido uma briga do tipo vale-tudo na rua e a polícia tivesse dado
uma batida lá.
MULHER - Oh.
HOMEM - Deve ter havido violência naquele lugar...
MULHER - Você estava?
HOMEM - Na banheira gelado...
MULHER - Oh...

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HOMEM - E eu me recordo de pegar o telefone para perguntar o nome do hotel, mas


não me lembro se eles me disseram ou não... Me dá um gole de água. (OS DOIS SE
LEVANTAM E SE ENCONTRAM NO MEIO DO QUARTO. O COPO É PASSADO DE
UM PARA O OUTRO COM SERIEDADE. ELE COMEÇA A BOCHECHAR
OLHANDO FIXAMENTE PARA ELA, E CRUZA PARA CUSPIR A ÁGUA PELA
JANELA. DEPOIS ELE VOLTA AO CENTRO DO QUARTO E DEVOLVE O COPO
PARA ELA. ELA TOMA UM POUCO DE ÁGUA. ELE COLOCA OS DEDOS DE
MODO CARINHOSO SOBRE O LONGO PESCOÇO DELA.) Agora que recitei a
ladainha de minhas tristezas (PAUSA. O BANDOLIM É OUVIDO.) O que você tem para
me contar? Diga-me um pouco do que está se passando dentro do... (OS DEDOS DELE
PASSAM SOBRE A TESTA E OS OLHOS DELA. ELA FECHA OS OLHOS E
LEVANTA A MÃO NO AR COMO SE FOSSE TOCÁ-LO. ELE PEGA A MÃO E
EXAMINA DE CIMA PARA BAIXO, DEPOIS BEIJA OS DEDOS DELA
APERTANDO-OS CONTRA SEUS LÁBIOS. QUANDO ELE SOLTA OS DEDOS, ELA
TOCA SEU PEITO MAGRO E LISO COMO DE UMA CRIANÇA E DEPOIS TOCA
SEUS LÁBIOS. ELE LEVANTA A MÃO E DEIXA QUE SEUS DEDOS DESLIZEM
PELO PESCOÇO DELA E PELA ABERTURA DO QUIMONO ENQUANTO O
BANDOLIM TOCA COM MAIS FORÇA. ELA SE VOLTA PARA ELE E SE
ENCOSTA-SE A ELE CURVANDO O PESCOÇO SOBRE OS OMBROS DELE E ELE
CORRE OS DEDOS PELA CURVA DO PESCOÇO DELA E DIZ.) Faz tanto tempo que
não estamos juntos a não ser como dois estranhos vivendo juntos. Vamos nos reencontrar e
talvez não ficaremos mais perdidos. Fala comigo! Eu estive perdido! Eu pensei em você
muitas vezes, porém não podia lhe telefonar, meu bem. Pensei em você o tempo todo, mas
não podia telefonar. O que eu poderia dizer se telefonasse? Poderia dizer, estou perdido?
Perdido nesta cidade? Jogado de um lado para outro entre o povo como um cartão postal
sujo? E depois desligar o telefone... Eu estou perdido nesta cidade...
MULHER - A única coisa que botei na boca desde que você saiu foi água! (ELA DIZ
ISTO QUASE ALEGRE SORRINDO. O HOMEM A ABRAÇA COM DESESPERO
COM UM GRITO SUAVE E CHOCADO.) Nada a não ser café instantâneo até que
acabou, e água (ELA RI CONVULSIVAMENTE).
HOMEM - Você pode falar comigo, meu bem? Você pode falar comigo agora!
MULHER - Sim!
HOMEM - Então fala comigo como se fosse a chuva e me deixa ouvir, me deixa deitar
aqui e ouvir... (ELE CAI PARA TRÁS ATRAVESSADO NA CAMA, VIRA-SE SOBRE
O ESTÔMAGO COM UM BRAÇO CAINDO DO LADO DA CAMA E ÀS VEZES
BATENDO UM RITMO NO CHÃO COM OS DEDOS DA MÃO FECHADA. O
BANDOLIM CONTINUA.) Faz tanto tempo que não nos entendemos. Agora me conta as
coisas. O que você tem pensado em silêncio? Enquanto eu era jogado de um lado para outro
nesta cidade como se fosse um cartão postal sujo... Conta-me, fala comigo! Fala comigo
como se fosse a chuva e eu ficarei deitado aqui e ouvirei.
MULHER - Eu...
HOMEM - Você tem que falar é necessário! Eu preciso saber, por isso fala comigo
como a chuva e eu ficarei deitado aqui e ouvirei, eu ficarei deitado aqui e...
MULHER - Eu quero ir embora.
HOMEM - Você quer?
MULHER - Eu quero ir embora.
HOMEM - Como?

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MULHER - Sozinha! (ELA VOLTA PARA A JANELA.) Eu me registrarei sob um


nome falso num pequeno hotel na costa...
HOMEM - Que nome?
MULHER - Anna Jones... A arrumadeira será uma pequena velhinha que tem um neto e
ela fala sobre ele... Eu sentarei numa cadeira enquanto a velhinha faz a cama, meus braços
cairão dos lados da cadeira, e a voz dela será tranqüila... Ela me contará o que o neto comeu
no almoço! Mingau de tapioca... (A MULHER SENTA-SE PERTO DA JANELA E
TOMA PEQUENOS GOLES DE ÁGUA.) O quarto estará na penumbra, fresco, e cheio do
murmúrio da...
HOMEM - Chuva?
MULHER - Sim. Chuva.
MULHER - A ansiedade desaparecerá. Depois de algum tempo a velhinha dirá, sua cama
está feita, Senhorita, e eu direi obrigada... Tire um dólar da minha carteira para você. A
porta fechará. E eu ficarei sozinha novamente. As janelas serão altas com venezianas azuis
e será a estação da chuva, chuva, chuva... Minha vida será como o quarto, fresco cheio de
sombra fresca e do murmúrio da...
HOMEM - Chuva...
MULHER - Eu receberei um cheque pelo correio toda semana no qual eu possa confiar.
A pequena velhinha irá ao banco descontar meu cheque e me trará livros da biblioteca e
pegará minha roupa lavada... Eu sempre terei coisas limpas! Eu me vestirei de branco. Eu
nunca serei muito forte nem terei muita energia, porém depois de algum tempo terei energia
suficiente para andar na calçada para passear na praia sem esforço... Á noite eu passearei na
calçada junto à praia. Eu terei um certo lugar onde me sentarei, um pouco afastada do
pavilhão onde a banda toca as músicas de Victor Herbert ao anoitecer... Eu terei um quarto
grande com venezianas na janela. Haverá uma estação de chuva, chuva, chuva, e eu estarei
tão cansada de uma vida passada na cidade que eu não me importarei de ficar apenas
ouvindo a chuva. Eu ficarei tão quieta. As rugas desaparecerão do meu rosto. Meus olhos
não ficarão mais inflamados. Eu não terei amigos. Eu nem sequer terei conhecidos. Quando
eu ficar com sono, andarei devagarzinho de volta para o pequeno hotel. O empregado dirá,
boa noite, senhorita Jones, e eu apenas sorrirei e pegarei minhas chaves. Eu nunca olharei
um jornal ou escutarei o rádio; eu não terei a menor idéia do que está acontecendo no
mundo. Eu não terei consciência da passagem do tempo... Um dia eu me olharei no espelho
e notarei que meus cabelos começam a embranquecer e pela primeira vez terei consciência
de estar vivendo neste pequeno hotel sob um nome falso, sem amigos ou conhecidos de
qualquer tipo por vinte e cinco anos. Isto vai me surpreender um pouco, mas não me
incomodará nem um pouco. Eu ficarei contente que o tempo tenha passado tão facilmente
assim. De vez em quando eu talvez vá ao cinema. Sentarei nas filas de trás, com toda a
escuridão ao meu redor e, ficarei sentada com as pessoas imóveis ao meu lado sem
tomarem conhecimento da minha presença. Olhando a tela. Pessoas imaginárias. Pessoas
das histórias. Lerei grandes livros e os diários de escritores mortos. Eu me sentirei mais
próxima deles do que das pessoas que conheci antes de ter me retirado do mundo. Esta
minha amizade com poetas mortos será doce e refrescante, porque não terei que tocá-los ou
responder suas perguntas. Eles falarão comigo sem esperar minhas respostas. E ficarei
sonolenta ouvindo suas vozes explicando os mistérios para mim. Dormirei com o livro
ainda entre os dedos, e choverá. Acordarei e ouvirei a chuva e tornarei a dormir. Uma
estação de chuva, chuva, chuva... Então um dia, quando tiver fechado um livro ou voltado
sozinha do cinema para casa às onze horas da noite olharei no espelho e verei que o meu

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cabelo ficou branco. Branco, completamente branco. Tão branco quanto à espuma das
ondas. (ELA SE LEVANTA E ANDA PELO QUARTO ENQUANTO CONTINUA A
FALAR.) Passarei as mãos pelo meu corpo e sentirei o quanto fiquei leve e magra. Oh,
como estarei magra. Quase transparente. Quase irreal. Então compreenderei, saberei, de
modo vago, que estava morando neste pequeno hotel, sem nenhuma relação social,
responsabilidade, ansiedades ou perturbações de qualquer tipo por quase cinqüenta anos.
Meio século. Praticamente uma vida inteira. Nem sequer me lembrarei dos nomes das
pessoas que conhecia antes de vir para cá nem da sensação de ser alguém esperando por
alguém que talvez não venha... Então saberei olhando no espelho que pela primeira vez
chegou o momento de andar sozinha mais uma vez na calçada com o vento forte batendo
em mim, o vento limpo e branco que vem do princípio do mundo, ainda mais além do que
isto, vem do princípio do espaço, ainda mais além de qualquer coisa que haja além do
princípio do espaço... (ELA SENTA NOVAMENTE SEM MUITA FIRMEZA PERTO DA
JANELA.) Então sairei e andarei pela calçada. Andarei sozinha e serei empurrada pelo
vento e ficarei pequenina, pequenina.
HOMEM - Amorzinho. Vem para a cama.
MULHER - Pequena, pequena, pequena, e mais pequenina e pequenina! (ELE
ATRAVESSA O QUARTO INDO A SUA DIREÇÃO E A LEVANTA DA CADEIRA À
FORÇA.) Até que finalmente não teria mais corpo e o vento viesse me tomar em seus
braços brancos e refrescantes para sempre, e me levasse embora!
HOMEM - (ELE APERTA A BOCA CONTRA O PESCOÇO DELA.) Vem para a
cama comigo!
MULHER - Quero ir embora, quero ir embora! (ELE A SOLTA E ELA VOLTA AO
CENTRO DO QUARTO SOLUÇANDO DESCONTROLADAMENTE. ELA SENTA NA
CAMA. ELE SUSPIRA E SE DEBRUÇA NA JANELA, AS LUZES PISCANDO ALÉM
DELE, A CHUVA CAINDO MAIS FORTE. A MULHER TREME DE FRIO E CRUZA
OS BRAÇOS CONTRA O PEITO. SEUS SOLUÇOS MORREM MAS ELA RESPIRA
COM DIFICULDADE. A LUZ PISCA E OUVE-SE O VENTO FRIO. O HOMEM
CONTINUA DEBRUÇADO NA JANELA. FINALMENTE ELA FALA COM ELE
SUAVEMENTE.) Volta para a cama. Volta para a cama, meu bem... (ELE VIRA O
ROSTO PARA ELA COM UMA EXPRESSÃO PERDIDA).

AUTO DA FÉ...

PERSONAGENS:
MADAME DUVENET
MYRA

UMA VELHA CASA DE MADEIRA DE UM BAIRRO DECADENTE DE NEW


ORLEANS. PLANTAS EM VASOS. AO CENTRO A PORTA DA CASA. DURANTE A
PEÇA OUVEM-SE VOZES E ASSOVIOS DE MÚSICAS, VIDAS DE UMA RUA MAL
FREQÜENTADA, MUITO PRÓXIMA. FIM DE TARDE.

DUVENET - Você já está arquejando. É isso que te provoca a asma. Essa


excitação.
MYRA - (DEPOIS DE UMA PAUSA EM QUE MEDITA.) Estou arquejante,
eu sei.

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DUVENET - Sente-se e tente acalmar-se.


MYRA - Não posso.
DUVENET - Você devia entrar e tomar uma pastilha de “amital”.
MYRA - Não quero abusar de remédio. Não me sinto bem, nunca me sinto
bem...
DUVENET - É porque não se cuida como devia...
MYRA - Nem me lembro do tempo em que me sentia bem.
DUVENET - Você nunca foi sã como eu gostaria que fosse...
MYRA - Parece que sofro de um cansaço crônico.
DUVENET - Na família de seu pai o ponto fraco sempre foram os nervos.
MYRA - Nervos! Nervos, mamãe! Eu sofria de sinusite. Você chama isso de
“nervos”?
DUVENET - Não, mas...
MYRA - Então? Esta asma, esta aflição, esta meu sufocamento, também
chama isso de “nervos”?
DUVENET - Nesse ponto nunca concordei com os médicos.
MYRA - Você detesta todos os médicos e é de uma teimosa atroz...
DUVENET - Acho que todas as curas necessitam de força de vontade.
MYRA - E como posso ter força de vontade se não consigo dormir?
DUVENET - Essa sua insônia vem do que você come de noite.
MYRA - Não agüento ficar com o estomago vazio.
DUVENET - Por que não toma líquido?
MYRA - Não gosto de líquidos.
DUVENET - Bom. Uma sopa de legumes... Com aveia.
MYRA - Todas essas porcarias só servem para me enjoar. Parece que acha que
“saboto” a minha própria saúde.
DUVENET - Acho mesmo.
MYRA - Você não sabe nada. (SOMBRIA.) Há uma porção de coisas que
você não sabe, mãe.
DUVENET - Nunca me diz nem me deixa saber muita coisa. (SILENCIO. A LUZ
BAIXOU. MUSICA AO LONGE. POR FIM ELA FALA, SIMPLESMENTEM, NUM
TOM RELIGIOSO.) Você precisa de um pouco mais de fé na sua saúde espiritual. (MYRA
OLHA PARA ELA COMO SE A DESAPROVASSE. DEPOIS RESMUNGA E
LEVANTA-SE.) Por que esse olhar?
MYRA - (INTENSAMENTE.) Você não sabe nada.
DUVENET - Não sei o que?
MYRA - Seu mundo é tão simples! Você vive num paraíso para idiotas.
DUVENET - Não diga!
MYRA - Pois é como eu digo, mamãe. Para você, eu sou uma estrangeira, uma
desconhecida. Moro numa casa em que ninguém sabe o meu próprio nome.
DUVENET - Você se cansa, Myra, quando fica assim excitada.
MYRA - Você não sabe nada.
DUVENET - De que é que você esta falando desta vez, querida?
MYRA - É uma carga intolerável! A consciência de uma miserável como eu!
DUVENET - Não te compreendo, minha filha.
MYRA - Não posso falar mais claramente, mãe.
DUVENET - Vá se confessar.

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MYRA - O padre é um aleijado de saias.


DUVENET - Como ousa dizer uma coisa dessas!
MYRA - Porque vi as suas sais e as muletas, é por isto! Por que ouvi as
bobagens que sussurra por trás das grades do confessionário.
DUVENET - Não fale assim na minha frente.
MYRA - Ele não passa de um mágico aposentado, não queima mais ninguém.
DUVENET - Não queima mais? E por que havia de queimar?
MYRA - Porque há necessidades de fogueiras!
DUVENET - Para que?
MYRA - Pelo bem de queimar, por Deus, pela purificação. Oh! Meu Deus!
Não posso nem se quer respirar direito, não sei o que esta para me acontecer.
DUVENET - Você acaba tendo um ataque, Myra. Sente-se. Agora conte direitinho
e com toda a calma o que foi que aconteceu. O que há nessa cabeça nestes dez dias?
MYRA - Como sabe que tenho alguma coisa na cabeça?
DUVENET - Há qualquer coisa nessa cabeça, e já fazem dez dias, desde terça-feira
passada.
MYRA - É sim, é verdade. Tenho. Não sabia que tinha percebido...
DUVENET - Que foi que aconteceu no correio?
MYRA - Como pode desconfiar que fosse lá?
DUVENET - Porque aqui em casa não há nada que possa explicar o seu estado.
MYRA - (EXAUSTA.) Não mesmo.
DUVENET - Então tinha de ser alguma coisa que aconteceu a onde você trabalha.
MYRA - Pois é.
DUVENET - E o que foi, Myra? (GRITO DE UM VENDEDOR, AO LONGE E
QUE SE AFASTA.) Que foi?
MYRA - Uma carta.
DUVENET - Recebeu uma carta de alguém? E isso te deixou nervosa?
MYRA - Não recebi carta nenhuma.
DUVENET - Então que quer dizer com essa tal “carta”?
MYRA - Uma carta chegou-me às mãos, acidentalmente, mamãe.
DUVENET - Enquanto estava separando a correspondência?
MYRA - É.
DUVENET - E o que aconteceu que te impressionou tanto?
MYRA - A carta não tinha sido bem fechada e de dentro do envelope caiu uma
coisa.
DUVENET - De dentro do envelope?
MYRA - É.
DUVENET - E o que foi que caiu?
MYRA - Um retrato.
DUVENET - Que espécie de retrato? (ELA NÃO RESPONDE. OUVE-SE DE
NOVO A MÚSICA AO LONGE.) Myra, que espécie de retrato caiu de dentro do
envelope?
MYRA - Uma fotografia obscena caiu do envelope.
DUVENET - Uma fotografia o que?
MYRA - Uma fotografia pornográfica.
DUVENET - Ah! E que mais?
MYRA - Você não viu aquela fotografia.

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DUVENET - É tão indecente assim?


MYRA - Ultrapassa toda e qualquer descrição.
DUVENET - Tanto assim?
MYRA - Não. Pior ainda. Senti como se uma coisa tivesse explodido nas
minhas próprias mãos e queimasse as minhas faces como um ácido.
DUVENET - E quem te mandou essa fotografia tão horrível, Myra?
MYRA - Não era para mim.
DUVENET - Era endereçada a quem, então?
MYRA - A um desses antiquários riquíssimos, do centro...
DUVENET - E quem foi que mandou?
MYRA - Um estudante da universidade.
DUVENET - E o autor não é passível de uma perseguição judicial?
MYRA - É evidente. E de anos de prisão!
DUVENET - Não vejo razão para usar de benevolência em tais casos.
MYRA - Nem eu.
DUVENET - Então, que fez?
MYRA - Nada ainda.
DUVENET - Myra? Ainda não o denunciou as autoridades?
MYRA - Não. Ainda não.
DUVENET - Não vejo por que hesita.
MYRA - Não podia agir sem antes investigar.
DUVENET - Investigar o que?
MYRA - As circunstâncias que precederam o caso.
DUVENET - Que circunstâncias te podem interessar senão o fato de alguém ter
usado o correio para esse fim?
MYRA - A pouca idade do autor tem alguma importância no caso.
DUVENET - Ah! E o autor era muito moço?
MYRA - Dezenove anos, apenas!
DUVENET - E os pais dele, ainda vivem?
MYRA - Vivem. E nesta cidade. E ele é filho único, ainda por cima.
DUVENET - E como conseguiu saber tanta coisa?
MYRA - Investiguei pessoalmente.
DUVENET - Como assim?
MYRA - Procurei o autor da carta. Estive no internato. Conversamos,
discutimos. Fingi que tinha ido procurá-lo para extorquir-lhe dinheiro: que tinha guardado a
carta para tentar uma “chantagem”.
DUVENET - Que coisa horrorosa!
MYRA - Fui obrigada a contar que era empregada do correio, que tinha de
prestar contas ao governo, e que era uma verdadeira imprudência ter esperado tanto tempo
para tomar as providencias que o caso requer.
DUVENET - As providencias que o caso requer!
MYRA - E foi ai que ele começou a mostrar quem realmente era. Insultou-me.
Injuriou-me. Não posso repetir do que me acusou, as propostas que me fez. Fugi do quarto.
Esqueci lá a minha sombrinha, não tive coragem de ir buscá-la depois...
DUVENET - Myra, Myra, minha filha! E quando foi que isso aconteceu? Essa sua
entrevista com o autor da carta?
MYRA - Sexta-feira.

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DUVENET - Há três dias. E ainda não fez nada?


MYRA - Pensei e tornei a pensar. Não consegui tomar uma resolução.
DUVENET - Agora é tarde.
MYRA - Por que?
DUVENET - Guardou a carta tempo demais para que ainda possa agir.
MYRA - Não. Não guardei. Não me sinto mais paralisada.
DUVENET - Mas se denunciá-lo agora, vão perguntar porque não o fez antes.
MYRA - Posso explicar porque foi...
DUVENET - Não. Não. Agora é melhor não fazer mais nada.
MYRA - Tenho de fazer alguma coisa, mamãe.
DUVENET - É melhor destruir essa carta.
MYRA - E deixar os culpados livres?
DUVENET - Que mais pode fazer depois de ter hesitado tanto?
MYRA - Eles têm que ser castigados!
DUVENET - Onde esta a carta?
MYRA - Aqui, no meu bolso.
DUVENET - Tem essa... Coisa sobre a sua pessoa?
MYRA - No meu bolso de dentro.
DUVENET - Ah! Myra, que estupidez, que loucura! Imagine se acontece alguma
desgraça e uma coisa dessas fosse encontrada no seu bolso, enquanto estivesse inconsciente
e não pudesse explicar a razão de tê-la em seu poder.
MYRA - Não fale tão alto.
DUVENET - Myra, você tem que destruir essa carta já.
MYRA - Destruí-la?
DUVENET - É.
MYRA - Como?
DUVENET - Queimando-a. (OUVE-SE PELA TERCEIRA VEZ A MUSICA, AO
LONGE).
MYRA - É sim, é sim... Queimá-la!
DUVENET - Queime-a imediatamente.
MYRA - Vou entrar para queimá-la lá dentro.
DUVENET - Não. Queime a carta aqui, na minha frente.
MYRA - Você não deve ver uma coisa dessas...
DUVENET - Preferia antes arrancar os olhos a olhar para essa fotografia.
MYRA - Acho melhor fazer isso na cozinha ou no porão.
DUVENET - Não, não, Myra! Queime-a aqui. Na minha frente.
MYRA - Alguém pode ver.
DUVENET - E daí?
MYRA - E pensar que isto me pertencia.
DUVENET - Myra, Myra! Pegue isso e queime, está me ouvindo? Queime.
Imediatamente!
MYRA - Então vire de costas. Vou tirá-la do bolso.
DUVENET - (VIRANDO-SE.) Você tem fósforos, Myra?
MYRA - (TRISTEMENTE.) Tenho sim, mamãe.
DUVENET - Bem. Então queime a carta e essa fotografia horrível. (MYRA TIRA
DESAJEITADAMENTE ALGUNS PAPEIS DA BOLSA. TREME TANTO QUE A

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FOTOGRAFIA CAI NO CHÃO. MYRA RESMUNGA ENQUANTO ABAIXA PARA


PEGÁ-LA.) Que foi, Myra?
MYRA - Deixei... Cair à fotografia.
DUVENET - Pegue-a e ponha-lhe fogo, depressa!
MYRA - Já vai. (RISCA O FOSFORO. ESTA LIVIDA A LUZ DA CHAMA,
TEM OLHOS FORA DAS ORBITAS. OFEGANTE, ENQUANTO APROXIMA A
CHAMA DO PAPEL SEM OUSAR QUEIMÁ-LO. DE REPENTE DA UM GRITO E
DEIXA CAIR O FOSFORO).
DUVENET - (VIRANDO-SE.) Queimou o dedo, Myra?
MYRA - Queimei...
DUVENET - Venha, vamos a cozinha para que eu lhe ponha um pouco de soda.
(MYRA VIRA-SE E ENTRA DEPRESSA NA CASA. MME. DUVENET VAI
ACOMPANHÁ-LA.) Vá já para a cozinha. Vamos por um pouco de soda nesse dedo.
(CHEGA A PORTA. PÕE A MÃO NO TRINCO QUE MYRA FECHOU POR DENTRO.)
Myra! (ELA OLHA PARA MÃE. MME. DUVENET SE ASSUSTA.) Myra! Você trancou
esta porta! No que esta pensando, Myra! (MYRA SOME.) Myra, Myra! Volte e abra esta
porta. (A MAE CHAMA APAVORADA.) Myra! Myra! Por que me fechou aqui dentro?
Que esta fazendo ai? Abra a porta, abra esta porta, por favor. (OUVE-SE A VOZ DE
MYRA, GRITANDO.) Myra! Myra! Pelo amor de Deus, responda Myra! (VÊ-SE O
REFLEXO DO FOGO ATRAVÉS DA PORTA. ELA GRITA E CORRE DE UM LADO
PARA OUTRO, AOS GRITOS.) Fogo! Fogo! A casa esta pegando fogo! A casa esta
pegando fogo!...

ALGO QUE NÃO É FALADO

PERSONAGENS:
CORNÉLIA SCOTT
GRACE LANCASTER

SENHORITA CORNÉLIA SCOTT, UMA RICA SOLTEIRONA SULISTA DE


SESSENTA ANOS ESTÁ SENTADA A UMA MESA DE MOGNO, POSTA PARA
DUAS PESSOAS. O OUTRO LUGAR, AINDA NÃO OCUPADO, TEM À SUA
FRENTE UMA ROSA NUM JARRO DE CRISTAL. SOBRE A MESA, PERTO DE SI,
SENHORITA SCOTT TEM UM TELEFONE DE PÉ, UMA BANDEJA DE PRATA
PARA CORRESPONDÊNCIA; E UM BULE DE CAFÉ EM PRATA TRABALHADA.
UM TOQUE MAJESTOSO É DADO PELOS REPOSTEIROS DE VELUDO PÚRPURO,
LOGO ATRÁS DE SUA FIGURA À MESA. NA PERIFERIA DA ÁREA ILUMINADA,
O MÓVEL DO GRAMOFONE. AO LEVANTAR AS CORTINAS, ELA ESTÁ
DISCANDO O TELEFONE.

CORNÉLIA - É da residência da Senhora Horton Reid? Estou telefonando da parte


da Senhorita Cornélia Scott. A Senhorita Scott sente muito por não poder ir à reunião das
Filhas da Confederação esta tarde. Poderia, por favor, transmitir a Senhora Reid suas
desculpas por não ter avisado mais cedo? Obrigada. Oh, um momento! Creio que a
Senhorita Scott tem mais um recado. (GRACE LANCASTER ENTRA NA ÁREA
ILUMINADA. CORNÉLIA ERGUE A MÃO, NUM AVISO.) O que é, Senhorita Scott?
(HÁ UMA PEQUENA PAUSA.) Ah. A Senhorita Scott gostaria que a Senhorita

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Esmeralda Hawkins telefonasse para ela assim que chegasse. Obrigada. Até logo.
(DESLIGA.) Como você está vendo, tive que personificar minha secretária esta manhã!
GRACE - O dia estava tão escuro que não acordei. (GRACE LANCASTER
TEM QUARENTA OU QUARENTA E CINCO ANOS, ENVELHECIDA, MAS AINDA
BONITA. SEUS CABELOS LOUROS, QUE POUCO A POUCO SE TORNA
GRISALHO, SEUS OLHOS OPACOS E SUA SILHUETA ESBELTA NUM "ROBE DE
CHAMBRE" DE SEDA ROSA LHE DÃO UM QUÊ INSUBSTÂNCIAL EM FRANCO
CONTRASTE COM A GRANDEZA ROMÂNICA DA SENHORITA SCOTT.
MUDANDO DE ASSUNTO.) O catálogo novo da loja de discos, em Atlanta!
CORNÉLIA - (CONDESCENTE.) Sim, aí está.
GRACE - Estou vendo que você marcou vários artigos.
CORNÉLIA - Acho que deveríamos enriquecer nossa coleção de peças alemãs.
(ELA FAZ UMA INSPIRAÇÃO PROFUNDA E SUSPIRA, O OLHAR FIXO SOBRE O
TELEFONE SILENCIOSO.) Você vai ver que eu também escolhi uma ou outra seleção
lírica.
GRACE - Onde, quais? Não estou vendo!
CORNÉLIA - Por que você está tão entusiasmada pelo catálogo, querida?
GRACE - Eu adoro discos!
CORNÉLIA - Gostaria que você os adorasse o suficiente para colocá-los em seus
devidos lugares, nos álbuns.
GRACE - O Vivaldi que queríamos!
CORNÉLIA - "Nós" não, querida. Só você.
GRACE - Estranho que eu tivesse a impressão de que você... (O TELEFONE
TOCA.) Atendo?
CORNÉLIA - Tenha a bondade.
GRACE - (APANHANDO O FONE.) Residência da Senhorita Scott! (TAL
ANÚNCIO É FEITO COM UM TOM DE REVERÊNCIA, COMO SE MENCIONASSE
UM LUGAR SAGRADO.) Oh, não, não, que está falando é Grace, mas Cornélia está logo
aqui ao lado. (PASSA O TELEFONE.) Esmeralda Hawkins.
CORNÉLIA - (RÍGIDA AO TELEFONE.) Alô, Esmeralda, querida. Estava
esperando seu telefonema. Claro que sei que você está ligando da reunião, "ça va sans dire,
ma petite!”. Agora, o que está acontecendo? Discutindo o Programa dos Direitos Civis?
Então elas não vão iniciar a votação até pelo menos daqui a meia hora! Agora, Esmeralda
eu espero realmente que você entenda minha posição claramente. Eu não quero exercer
nenhum cargo a não ser que seja por aclamação. Você sabe o que isto significa, não sabe?
Em outras palavras, eleita automaticamente, simplesmente por nomeação, sem qualquer
oposição. Sim, meu bem, é exatamente isto. Bem, agora, querida, o assunto é simplesmente
este. Se as Confederadas acharem que demonstrei minhas capacidades e lealdade com tal
força para que possa simplesmente ser nomeada Presidente sem nenhum voto por
aclamação unânime! Bem, aí, é claro que eu me sentirei na obrigação de aceitar... (SUA
VOZ TREME DE EMOÇÃO.) Mas se, por outro lado, a... "Claque"! E você sabe de quais
eu estou falando! São descaradas o suficiente para propor mais alguém para o cargo. Você
entende minha posição? Prefiro não participar da eleição. Entendeu bem, Esmeralda? Bom!
Volte lá para baixo para a reunião. (ELA DESLIGA E FITA O VAZIO).
GRACE - As... Filhas da Confederação?
CORNÉLIA - Sim! Elas estão tendo sua eleição anual hoje.
GRACE - Que ótimo! Por que você não está na reunião?

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CORNÉLIA - Eu preferi não ir.


GRACE - Você preferiu não ir?
CORNÉLIA - Sim, preferi não ir... (TOCA O PEITO, RESPIRANDO
PROFUNDAMENTE COMO SE TIVESSE SUBIDO CORRENDO UM LANCE DE
ESCADAS.) Intriga, intriga e hipocrisia, me revoltam de tal maneira que eu seria incapaz
de respirar naquela atmosfera! (GRACE TOCA A CAMPAINHA.) Porque você está
tocando a campainha? Você sabe que Lucinha não está aqui!
GRACE - Desculpe. Onde Lucinha foi?
CORNÉLIA - (NUM SUSSURRO ÁSPERO, MAS AUDÍVEL.) Está havendo um
grande funeral para negros na cidade. (LIMPA A GARGANTA VIOLENTAMENTE E
REPETE A FRASE).
GRACE - Querida, você está com aquela laringite nervosa.
CORNÉLIA - Eu não dormi, não dormi à noite passada.
GRACE - Acho que a eleição lhe daria menos tensão se você tivesse ido,
Cornélia.
CORNÉLIA - Não sei do que você está falando.
GRACE - Você não está na concorrência?
CORNÉLIA - "Na concorrência"? Como assim "na concorrência?”.
GRACE - Bem, se candidatando a algum posto!
CORNÉLIA - Você alguma vez ouviu falar de mim "me candidatando" para alguma
coisa, Grace? Toda vez que assumi um cargo numa sociedade ou num clube foi por
insistência dos membros. Mas agora é outra coisa; uma coisa completamente diferente. É
como um teste. Você sabe, eu já sei há algum tempo, há um grupo, uma "claque", dentro
das Confederadas, que é hostil a mim!
GRACE - Ah, Cornélia, tenho certeza que você deve estar errada.
CORNÉLIA - A sociedade tem se expandido muito rapidamente nos últimos
tempos. Têm sido admitidas mulheres que não sentariam sequer nos primeiros bancos da
Segunda Igreja Batista! E esta é a infame verdade.
GRACE - Mas já que é uma sociedade patriótica...
CORNÉLIA - Minha querida Grace. Há duas sociedades das Filhas Confederadas
na cidade de Meridian. Há a divisão de Forest, que é para a arraia-miúda, e há esta divisão
em que eu deveria ter um pouco mais de distinção! Eu não sou esnobe. Não sou nada mais
que uma democrata. Você sabe disto. (ABRUPTAMENTE PARA GRACE.) Onde é que
você vai?
GRACE - Vou lá em cima um instantinho! Acabei de lembrar que eu deveria ter
tomado minhas gotas de beladona!
CORNÉLIA - Não é bom depois de comer.
GRACE - Creio que não. Não é bom.
CORNÉLIA - Mas você quer fugir?
GRACE - Claro que não...
CORNÉLIA - Várias vezes, ultimamente, você tem corrido de mim como se eu
tivesse de repente te ameaçando com uma faca.
GRACE - Cornélia! Eu tenho estado... Nervosa!
CORNÉLIA - É sempre quando algo é quase falado entre nós! (MUDANDO DE
ASSUNTO.) Querida, será que não há alguma coisa que você deixou de reparar?
GRACE - Onde?
CORNÉLIA - Exatamente debaixo do seu nariz.

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GRACE - Oh! Você quer dizer minha flor?


CORNÉLIA - Sim! Estou querendo dizer sua rosa!
GRACE - Claro que reparei na minha rosa, no momento em que entrei na sala
eu a vi aqui!
CORNÉLIA - Você não fez qualquer alusão a ela.
GRACE - A quem devo agradecer por esta adorável rosa? À minha bondosa
patroa?
CORNÉLIA - Você vai encontrar mais quatorze em sua mesa na biblioteca quando
você for se encarregar da correspondência.
GRACE - Mais quatorze rosas?
CORNÉLIA - Um total de quinze!
GRACE - Que maravilha! Porque quinze?
CORNÉLIA - Há quanto tempo você está aqui, querida? Há quanto tempo você
vem fazendo desta casa uma casa de rosas?
GRACE - Que maneira linda de se referir a isto! Ora, é claro! Tenho sido sua
secretária por quinze anos!
CORNÉLIA - Há quinze anos minha acompanhante! Uma rosa para cada ano, um
ano para cada rosa!
GRACE - Que jeito adorável de mencionar a ocasião.
CORNÉLIA - Foi há quinze anos atrás nesta mesma manhã, seis de novembro, que
alguém muito doce, suave e silenciosa. Uma viuvinha tímida, pequena, quieta. Apareceu
pela primeira vez no número sete da Estrada Edgewater. Era o Outono. Eu estava
estendendo folhas mortas sobre as roseiras, para protegê-las da geada, quando ouvi passos
sobre o cascalho, passos leves, rápidos e delicados como a primavera se aproximando no
meio do outono, e olhei, e com toda a certeza lá estava a primavera! Uma pessoinha tão
leve, que a luz brilhava através dela como se ela fosse feita da seda de uma sombrinha
branca!
GRACE - Obrigada pelas rosas.
CORNÉLIA - Grace, eu tenho sentido há muito tempo algo que não é falado entre
nós.
GRACE - Você não acha que entre duas pessoas há sempre algo que não é
falado?
CORNÉLIA - Não vejo razão para isto.
GRACE - Mas muitas coisas não existem sem razão?
CORNÉLIA - Não vamos transformar isto numa discussão metafísica.
GRACE - Está bem.
CORNÉLIA - É o simples fato de que eu acho que há algo não falado entre nós e
que precisa ser falado...
GRACE - Você diz que há algo que não é falado. Talvez haja. Eu não sei. Mas
eu sei que há certas coisas que ficam melhores se as deixarmos não faladas. Também sei
que quando o silêncio entre duas pessoas se manteve durante muito tempo, ele é como uma
parede, impenetrável, entre elas! Talvez haja uma parede destas entre nós. Uma que é
impenetrável. Ou talvez você possa rompê-la. Eu sei que não posso. Não posso. Não posso
nem tentar. Você é a mais forte entre nós duas e você seguramente sabe disto. Nós duas nos
tornamos acinzentadas. Mas não da mesma espécie de cinzento. Você parece o imperador
Tibério! Em sua toga imperial! Parece invencível! As pessoas dos arredores, todas são um
pouco intimidadas por você. Elas sentem sua força e admiram você por isto. Elas vêm a

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você para que você lhes dê opiniões sobre isto ou aquilo. Quais as peças da Broadway são
as melhores da temporada, quais os livros que valem a pena serem lidos e quais são ruins, e
quais discos são valiosos, qual a atitude correta perante projetos de lei no Congresso! Você
é uma fonte de sabedoria! Além disto, você tem sua riqueza! Sim, você tem sua fortuna.
Todas as suas propriedades, seu gado premiado, suas hipotecas, sua mansão na estrada
Edgewater, sua... Secretariazinha tímida, seus jardins fabulosos.
CORNÉLIA - Sim! Agora você está falando, agora você está falando! Continue, por
favor, continue falando.
GRACE - Esta a diferença entre nós duas, você não deve esperar que eu dê
respostas corajosas a perguntas que fazem a casa tremer em seu silêncio! Falar de coisas
que não foram faladas durante quinze anos! Este tempo pode fazer do silêncio uma parede
que nada, a não ser dinamite, pode quebrar e... Eu não sou forte o suficiente, corajosa o
suficiente... (LEVANTANDO-SE.) Posso sair, agora?
CORNÉLIA - Não! Fique aqui! (GRACE SENTA E FECHA OS OLHOS.) Quando
você veio para esta casa pela primeira vez... Você sabe que eu não esperava que viesse?
GRACE - Ora, Cornélia, você havia me convidado.
CORNÉLIA - Nós mal nos conhecíamos.
GRACE - Nos encontramos no verão anterior quando Ralph ainda...
CORNÉLIA - Ainda vivia! Sim, nos encontramos em Sewanes, ele era instrutor de
educação física lá.
GRACE - Ele já estava doente.
CORNÉLIA - Pensei que era uma pena que aquela moça adorável e delicada não
havia encontrado ninguém em quem pudesse se apoiar, que pudesse protegê-la. E dois
meses depois eu soube por Clarabelle Drake que ele havia morrido...
GRACE - Você me escreveu uma carta tão amável, dizendo como você ficara
sozinha desde que sua mãe havia morrido e me incentivando a descansar aqui até ter
passado o choque. Eu hesitei em vir. Não o fiz até que você me escreveu uma segunda
carta...
CORNÉLIA - Depois que recebi a sua. Você queria incentivo.
GRACE - Eu queria estar bem certa de estar sendo desejada! Eu vim
pretendendo ficar apenas por umas poucas semanas. Eu estava com tanto medo de ficar
mais tempo do que o desejado!
CORNÉLIA - Como você foi cega em não perceber o quão desesperadamente eu
quis conservar você aqui para sempre!
GRACE - Mas eu vi que... (O TELEFONE TOCA.) Residência da Senhorita
Scott! Sim, ela está aqui.
CORNÉLIA - (AGARRANDO DECIDIDAMENTE O TELEFONE.) Cornélia
Scott falando. É você, Esmeralda? Bem e como foi? Eu não acredito! Eu simplesmente não
acredito... (GRACE SENTA-SE SILENCIOSAMENTE, À MESA.) A Senhora Hornesby
eleita? Menos de um ano no clube... Você me... Sugeriu? É claro. Mas eu disse para retirar
meu nome se não, não, não explique, não tem importância, já foi o suficiente. Ora, claro
que eu vou me demitir da divisão local! Ah, vou sim! Minha secretária está logo aqui ao
lado. Está com lápis e papel! Vou ditar minha carta de demissão da seção local logo depois
de desligar. Obrigada e até logo, Esmeralda. (ELA DESLIGA, ATORDOADA. GRACE
SE LEVANTA).
GRACE - Papel e lápis?

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CORNÉLIA - Sim. Papel e lápis... Eu tenho de ditar uma carta. (GRACE DEIXA A
MESA. EXATAMENTE NA BORDA DA ÁREA ILUMINADA ELA SE VOLTA PARA
OLHAR OS OMBROS RÍGIDOS DE CORNÉLIA E UM LEVE, VAGO SORRISO
APARECE MOMENTANEAMENTE EM SEU ROSTO; NÃO MALICIOSO DE TODO,
MAS NÃO VERDADEIRAMENTE COMPASSIVO. ENTÃO SE RETIRA DA ÁREA
ILUMINADA. UM MOMENTO APÓS OUVIMOS NUMA VOZ VINDA DA COXIA).
GRACE - Que lindas rosas! Uma para cada ano. Um ano para cada rosa!

RETRATO DE UMA SOLTEIRONA

PERSONAGEM:
MISS. LUCRÉCIA COLLINS
PORTEIRO
UMA ASCENSORITA
MÉDICA
MISS. ABRAMS

A SALETA DE ENTRADA DO APARTAMENTO DE UM HOTEL DE CLASSE


MÉDIA. A MOBÍLIA É ANTIGA E TUDO SE ENCONTRA EM DESORDEM. UMA
PORTA AO FUNDO, DANDO PARA O QUARTO E OUTRA À DIREITA, SERVINDO
DE ENTRADA.

MISS. COLLINS - Richard! (A PORTA DO QUARTO É ABERTA


VIOLENTAMENTE E MISS. COLLINS ENTRA RÁPIDO, ANGUSTIADA. É UMA
SOLTEIRONA DE MEIA IDADE, FRANZINA E RECURVADA, O ROSTO
CHUPADO, AGORA VERMELHO DE EXCITAÇÃO. SEU CABELO É PENTEADO
EM CACHINHOS, QUE FICARIAM MELHORES NUMA MOCINHA. USA UM
VAPOROSO “NEGLIGE”, RELIQUIA TALVEZ DE UM VELHO ENXOVAL. FEITO
HÁ MUITOS ANOS.) Não, não, não, não... Pouco me importa que toda a Igreja saiba
disso! (AGARRA O TELEFONE, FRENETICAMENTE.) Alô! Portaria! Preciso falar com
a gerência. Depressa! Bem depressa, por favor! Aquele homem está de novo aqui! (COM
RAIVA, À PARTE, COMO SE FALASSE COM ALGUM PERSONAGEM INVISÍVEL.)
Perdeu todo o respeito! Perdeu todo o respeito por completo! Miss. Abrams? (SUA VOZ É
TENSA E SUSSURRANTE.) Não quero que nenhum jornalista saiba disso, mas aconteceu
uma coisa horrível aqui em cima. Sim, é do apartamento de Miss. Collins, no último andar.
Até agora evitei fazer qualquer reclamação por causa dos meus compromissos com a Igreja.
Já fui assistente do superintendente na Escola Dominical e até cheguei a ensinar no curso
primário. Fui eu quem os ajudou nas festas de Natal. Fazendo os vestidos da Virgem Maria
e os mantos para os Reis Magos. Pois muito bem; agora me acontece isso! Não tenho culpa,
mas noite após noite, todas as noites, esse homem tem entrado no meu apartamento e
satisfeito seus desejos. A senhora me compreende? Não uma vez, mas repetidamente, Miss.
Abrams! Eu não sei se ele entra pela porta, pela janela ou pela escada de incêndio, ou se
existe alguma entrada secreta que ele conheça na Igreja, mas agora ele está aqui, em meu
dormitório, e não posso forçá-lo a sair, preciso de alguma ajuda! Não, ele não é um ladrão,
Miss. Abrams, ele é de uma família muito boa de Webb, Mississippi, mas aquela mulher
estragou seu caráter, ela destruiu seu respeito pelas damas! Miss. Abrams? Miss. Abrams!
Meu Deus! (BATE COM O FONE E OLHA AO REDOR DISTRAIDAMENTE; E

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ENTÃO, VOLTA DEPRESSA PARA O SEU DORMITÓRIO.) Richard! (A PORTA SE


FECHA VIOLENTAMENTE. DEPOIS DE ALGUM TEMPO ENTRA UM VELHO
PORTEIRO VESTINDO UM ESTRAGADO MACACÃO CINZENTO. ELE OLHA AO
REDOR COM CURIOSIDADE TRISTEMENTE HUMORÍSTICA, E ENTÃO CHAMA
TIMIDAMENTE).
PORTEIRO - Miss. Collins (A PORTA DO ELEVADOR SE ABRE
VIOLENTAMENTE NO HALL E UMA JOVEM ASSESSORISTA, QUE ESTÁ DE
UNIFORME ENTRA).
ASCENSORISTA - Onde ela está?
PORTEIRO - Foi para o quarto.
ASCENSORISTA - (COM UM SORRISO FORÇADO.) O cara ta lá dentro com ela?
PORTEIRO - Parece que sim. (OUVE-SE LEVEMENTE A VOZ DE MISS.
COLLINS DISCUTINDO COM O MISTERIOSO INTRUSO).
ASCENSORISTA - O que é que a Miss. Abrams disse para fazer?
PORTEIRO - Ficar aqui e impedir que eles saiam até que ela chegue.
ASCENSORISTA - Puxa!
PORTEIRO - Feche a porta.
ASCENSORISTA - Devemos deixá-la um pouquinho aberta; assim podemos ouvir a
campainha. Puxa, que lugar esquisito, não é?
PORTEIRO - Parece não ter sido limpo durante uns 15 ou 20 anos, e aposto que
não recebeu mesmo. Miss. Abrams explodirá quando olhar as paredes.
ASCENSORISTA - Como é que chegou nestas condições?
PORTEIRO - Ela não deixa entrar ninguém.
ASCENSORISTA - Nem mesmo os homens que mudam os papéis de parede?
PORTEIRO - Ninguém. Nem o encanador. Quando caiu o estuque do teto do
banheiro de baixo, descobriu-se que o encanamento aqui estava entupido. Pois nem assim
ela permitiu que o encanador entrasse. Foi preciso que Miss. Abrams abrisse a porta para
ele com a chave-mestra, numa hora em que ela não estava.
ASCENSORISTA - Nossa! Só gostaria de saber se ela tem dinheiro escondido por aqui.
Quase todos os loucos escondem fortunas no colchão ou em lugares parecidos.
PORTEIRO - Ela não tem nada. Antigamente, ainda recebia o cheque de uma
pensão ou coisa desse tipo. Costumava dar o cheque para Miss. Abrams descontar, dizendo
que as senhoras no sul não eram educadas para tratar de negócios. Depois, os cheques
pararam de chegar...
ASCENSORISTA - É?
PORTEIRO - Acho que a tal pensão acabou. Deve ter sido isso. A Miss. Abrams
disse que recebe uma contribuição da Igreja para mantê-la aqui, mas sem que ela saiba. É
mais orgulhosa que uma Madonna do Metropolitan, apesar da aparência.
ASCENSORISTA - Escuta só o que ela está dizendo...
PORTEIRO - O que é?
ASCENSORISTA - Está pedindo desculpas a ele, por ter chamado a polícia.
PORTEIRO - Ela pensa que a polícia virá aqui?
MISS. COLLINS - (DE DENTRO DO QUARTO.) Pare com isso... Você tem que parar
com isso!
ASCENSORISTA - Sempre lutando para salvar sua honra... Com todo esse barulho, não
me admira que os vizinhos tenham reclamado.
PORTEIRO - Hoje será a última vez.

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ASCENSORISTA - (ACENDENDO O CIGARRO.) Ela vai mesmo embora?


PORTEIRO - Hoje à noite.
ASCENSORISTA - (APAGANDO O FÓSCORO.) Para onde?
PORTEIRO - (DIRIGINNDO-SE, LENTAMENTE, PARA A VELHA
VITROLA.) Para o Hospício Estadual.
ASCENSORISTA - Santo Deus!
PORTEIRO - Você conhece essa música? (TOCA “I’M FOREVER BLOWING
BUBBLES”).
ASCENSORISTA - Não. De quando ela é?
PORTEIRO - Não é do seu tempo, minha jovem. Esse negócio está precisando de
um pouco de óleo. (TIRA DO BOLSO UMA PEQUENA LATA DE ÓLEO, COM QUE
LUBRIFICA O BRAÇO E OUTRAS PARTES DA VITROLA).
ASCENSORISTA - Há quanto tempo à velhota está vivendo aqui?
PORTEIRO - A Miss. Abrams disse que há uns 25 ou 30 anos. Antes mesmo de ele
ser a gerente daqui.
ASCENSORISTA - E ela morou sempre sozinha, todo esse tempo?
PORTEIRO - No começo, parece que ela ainda tinha a mãe, que morreu fazem
mais ou menos uns 15 anos. Desde então, ela só sai do hotel aos domingos, para ir à Igreja,
e nas noites de sexta-feira, para assistir uma espécie de reunião religiosa.
ASCENSORISTA - Olha só o monte de revistas velhas que ela guarda aqui.
PORTEIRO - Ela tinha uma mania de juntá-las. Ia lá em baixo, apanhá-la no lixo.
ASCENSORISTA - Ué!... Para que?
PORTEIRO - Miss. Abrams diz que ela costumava recortar aqueles garotos que
aparecem nos anúncios da Sopa Campbell.Você sabe quais são, não é? Aqueles, com
cabeça de tomate...
ASCENSORISTA - Hum, hum...
PORTEIRO - Tinha uma coleção deles, colados em cadernos eu levava para o
Hospital Infantil na noite de Natal e no domingo de Páscoa. Duas vezes por ano,
exatamente. Agora está melhor, hein? (REFERE-SE À VITROLA, QUE RECOMEÇOU A
TOCAR BAIXINHO E FANHOSA.) O chiado acabou.
ASCENSORISTA - Eu não sabia que ela estava biruta há tanto tempo!
PORTEIRO - Biruta! Todos nós somos birutas... Uns mais, outros menos... Acho
que o mundo está cheio de pessoas tão esquisitas quanto ela.
ASCENSORISTA - Mas é nojento uma velha dessas imaginando que alguém quer
violentá-la.
PORTEIRO - Nojento, não. É triste... Cuidado com a cinza do cigarro.
ASCENSORISTA - Por que? Com toda essa poeira, ninguém vai notar. Vão esvaziar tudo
isso aqui amanhã de manhã, não é?
PORTEIRO - Hum, hum...
ASCENSORISTA - Acho que vou levar uma ou duas relíquias dessas para casa. Eu tenho
uma vitrola no quarto.
PORTEIRO - Deixe esses discos aí, mocinha. Eles ainda pertencem a Miss. Collins.
ASCENSORISTA - Ora, ela pode muito bem conseguir outros com algum desses amantes
imaginários.
PORTEIRO - Cale a boca! (FAZ UM GESTO DE ADVERTÊNCIA, VENDO
MISS. COLLINS SAIR DO QUARTO. ELA PARECE DELIRAR. PÁRA NA PORTA,
EXAUSTA, AS MÃOS ENTRELAÇADAS SOBRE SEU PEITO CHATO E VIRGINAL).

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MISS. COLLINS - (ARQUEJANTE.) Oh, Richard... Richard!…


PORTEIRO - (TOSSINDO.) Miss... Collins!
ASCENSORISTA - Alô, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (NOTANDO A PRESENÇA DELES.) Oh, meu Deus! Vocês já
chegaram? Mamãe não me avisou que estavam aqui. (AUTO-CONSCIENTEMENTE,
ELA ARRUMA SEUS RIDÍCULOS CACHINHOS, AMARRADOS COM UMAS FITAS
COR DE ROSA DESBOTADAS. SUAS MANEIRAS SÃO DE UMA JOVEM BEM
EDUCADA, UM POUCO COQUETE, DE BOA FAMÍLIA SULISTA.) Por favor, não
reparem na desordem...
PORTEIRO - Está tudo muito bom, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Hoje é o dia de folga da empregada. As moças aqui no norte recebem
uma excelente educação doméstica. Nos sul, porém, nós consideramos indispensável que as
moças tenham outra coisa para cuidar além da beleza e do encanto... (RI, COMO SE
FOSSE UMA MOCINHA.) Sentem-se, por favor. Não acham que está muito abafado aqui?
Talvez fosse melhor abrir uma janela.
PORTEIRO - Não é preciso, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (DIRIGINDO-SE GRACIOSAMENTE PARA O SOFÁ.) Mamãe
trará refrescos daqui a pouco. Oh!... (LEVA A MÃO À TESTA).
PORTEIRO - (SOLÍCITO.) Está sentindo alguma coisa, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - Oh, não, não... Não é nada. Obrigada. Só minha cabeça que está um
pouco pesada. Nesta época do ano, fico sempre assim... Febricitante!... (VASCILA, AO
SENTAR-SE NO SOFÁ).
PORTEIRO - (AJUDANDO-A.) Cuidado, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (VAGAMENTE.) Sim, é isso... Não tinha notado antes! Engraçado...
(OLHA PARA OS DOIS, COM DIFICULDADE, UM SORRISO AÉREO NOS LÁBIOS.)
Vocês foram mandados pela Igreja?
PORTEIRO - Não, senhora. Eu sou Mick, o porteiro, Miss. Collins. E esta moça é
Lucy, a ascensorista do elevador.
MISS. COLLINS - Sim! Compreendo... (EXAMINA OS DOIS).
PORTEIRO - (GENTILMENTE.) Miss. Abrams pediu que viéssemos até aqui, ver
se a senhora precisava de alguma ajuda.
MISS. COLLINS - Oh, então ela deve tê-los informando do que está se passando aqui.
PORTEIRO - Ele falou numa espécie de... Confusão.
MISS. COLLINS - Exatamente! Não é uma vergonha? O senhor deve compreender que
isso não pode continuar. Quer dizer... O senhor não deve contar isso para mais ninguém.
PORTEIRO - Não direi nada. Prometo.
MISS. COLLINS - Nem uma palavra, por favor.
ASCENSORISTA - O homem ainda está aí dentro?
MISS. COLLINS - Oh, não. Não. Agora, ele já se foi...
ASCENSORISTA - E por onde foi que ele saiu, Miss. Collins? Pela janela do quarto?
MISS. COLLINS - (DISTANTE.) Foi...
ASCENSORISTA - Uma vez conheci um camarada que fazia isso. Escalava o prédio pelo
lado de fora. Chamavam ele de “A Mosca Humana”. Puxa! Aí está um troço que vale
milhões com publicidade, Miss. Collins: “Linda Moça de Sociedade é violentada pelo
Mosca Humana”!
PORTEIRO - (DANDO-LHE UMA COTOVELADA.) Vá para o elevador.

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MISS. COLLINS - Publicidade? Oh, não! Seria tão humilhante! Espero que Miss.
Abrams não tenha contado nada aos jornais.
PORTEIRO - Não, senhora. Não ouça o que ela diz.
MISS. COLLINS - (AJEITANDO OS CACHOS.) O senhor acha que vão tirar
fotografias? Há uma dele em cima da lareira.
ASCENSORISTA - (INDO À LAREIRA.) Está aqui, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - É. A do pic-nic dos professores da Escola Dominical. Nesse ano, eu
estava ensinando no Jardim da Infância e ele no Primário. Tínhamos viajado numa cabine
de trem que vai de Webb até Crystal Springs. (TAPA OS OUVIDOS COM UM GESTO
INFANTIL, SACUDINDO OS CACHOS.) Oh, como apitava a locomotiva... Apitava!
(RISINHO.) Uhuhuhuhuhu! Fiquei tão assustada! Então, ele pôs o braço nos meus ombros.
Mas ela esta lá também, fazendo não sei o que. Pegou o chapéu dele e o colocou no
cocuruto da cabeça. Aí, os dois... Os dois se atracaram por causa do chapéu e acabaram
rolando juntos pelo chão... Os dois... Todo mundo achou que era um escândalo. E o senhor,
o que me diz disso?
PORTEIRO - Também acho, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Aquela é a fotografia dele, a que está na moldura de prata, em cima
da lareira... Esfriamos a melancia no riacho e depois organizamos algumas brincadeiras. Foi
então que ela se escondeu, ninguém sabia onde. E ele levou séculos para encontrá-la.
Acabou ficando escuro e ele ainda continuava procurando por ela, com todo mundo rindo e
comentando o caso. Até que eles voltaram, os dois, juntinhos... Ela, pendurada no braço
dele como uma sujeitinha vulgar... Então, a Daisy Belle Huston gritou: “Meu Deus, olhem
todos, o que é isso! Olha só o traseiro da Evelyn!” A saia dela estava coberta de capim. O
senhor já viu alguma coisa mais indecente? Ela, porém, nem se importou. Até riu, como se
aquilo fosse a coisa mais divertida desse mundo. Chegou a desfilar, rebolando, no meio de
todos. Imagine!
ASCENSORISTA - Quem é ele, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - É esse rapaz alto, de camisa azul, que está segurando um dos meus
cachos. Ele gostava tanto de brincar com eles...
ASCENSORISTA - Um autêntico Alfa Romeu, 1910, não é, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - Desculpe, as damas do sul não entendem bem de carro ou de
qualquer coisa que diz respeito a homens. Ah, e isso já não têm a menor importância. Não
tem mesmo... Eu adorava essas golas redondas. Dizia para mamãe: “Mesmo que eu não
use, mamãe, ficarão para o meu enxoval!”.
ASCENSORISTA - E como é que ele estava vestido hoje, quando subiu no seu quarto,
Miss. Collins?
MISS. COLLINS - Como?
ASCENSORISTA - Com essa camisa listrada o colarinho de celulóide?
MISS. COLLINS - Ele não mudou nada...
ASCENSORISTA - Então vai ser fácil encontrá-lo vestido assim. De que cor são as calças
dele?
MISS. COLLINS - (DISTANTE.) Não me lembro...
ASCENSORISTA - Talvez ele nem use calças, heim? Talvez tenha perdido elas,
escalando o hotel... Se for assim, a senhora poderá denunciá-lo por atentado ao pudor, Miss.
Collins...
PORTEIRO - (AGARRANDO A ASSESSORISTA PELO BRAÇO.) Pare com isso
e volte para a sua gaiola, está me ouvindo?

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ASCENSORISTA - (AINDA ZOMBANDO.) Calminha! Ela não entendeu nada.


PORTEIRO - Cale a boca ou então vá para o inferno. Miss. Collins é uma senhora,
entendeu?
ASCENSORISTA - Sei... Ela é a Shirley Temple!
PORTEIRO - Eu disse uma senhora!
ASCENSORISTA - Sei, sei... (VAI À VITROLA E COMEÇA A EXAMINAR OS
DISCOS).
MISS. COLLINS - Francamente, eu não devia ter provocado essa discussão. Agora,
quando as autoridades chegarem, serei obrigada a explicar o caso para eles. O senhor me
compreende, não é mesmo?
PORTEIRO - Compreendo, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Talvez exista alguma desculpa para os homens que se aproveitam
dessas mulherzinhas vulgares, que fumam em público. Mas quando isso acontece com uma
senhora solteirona, sujo comportamento moral está acima de qualquer suspeita, então, a
única coisa que resta a fazer, realmente, é pedir proteção da polícia. A não ser, é claro, que
ela tenha a felicidade de possuir ainda pai ou irmãos que resolvam o problema em
particular, sem escândalos.
PORTEIRO - É verdade, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Mesmo assim, isso irá provocar, com toda a certeza, mexericos bem
desagradáveis. Sobretudo na Igreja. Vocês são protestantes?
PORTEIRO - Não, senhora. Eu sou católico, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Oh! Deus. Suponho que vocês não ignoram que na Inglaterra somos
conhecidos como Igreja Católica Inglesa, com sucessão apostólica vinda diretamente de
São Paulo. Foi São Paulo quem batizou os antigos anglos; era assim que se chamavam os
ingleses primitivos; fundando lá o ramo inglês da Igreja Católica. Portanto, quando vocês
ouvirem pessoas ignorantes afirmando que a nossa Igreja foi fundada por... Por Henrique
VIII, aquele velho horrível e devasso, que teve também tantas mulheres... Compreenderão
como isso é ridículo e absolutamente intolerável para quem conhece e estuda a História da
Igreja.
PORTEIRO - (CONFORTANDO-A.) Claro, Miss. Collins. Todo mundo sabe
disso.
MISS. COLLINS - Quem dera que soubessem! Muita gente ainda ignora isso. Antes de
morrer, meu pai foi reitor na Igreja de São Miguel e de São Jorge em Glorious Hill, no
Mississippi. Pode-se dizer que eu cresci praticamente à sombra da Igreja Episcopal. Em
Pass Christian e Natchez... Em Biloxi... Em Gulport... Em Port Gibson... Columbus...
Glorious Hill! (COM ADMIRAÇÃO TRISTE E CALMA.) Os senhores querem saber de
uma coisa? Às vezes fico desconfiada de que houve uma espécie de desmoronamento
espiritual na Igreja moderna. Essas dioceses do norte afastaram-se completamente das
velhas e boas tradições da Igreja. Por exemplo: nosso reitor da Igreja da Santa Comunhão
nunca me visitou! Eu sei que aquela Igreja está na moda por isso ele deve andar
terrivelmente atarefado. Ainda assim, acho que ele bem que poderia encontrar um tempinho
para fazer com que um estranho na congregação se sentisse à vontade. Ele, porém não faz
isso. Parece que ninguém mais tem tempo para coisa alguma. (FICA CADA VEZ MAIS
EXCITADA À MEDIDA QUE SUA MENTE MERGULHA NA ILUSÃO.) Eu não devia
falar nisso, mas, vocês sabem? Agora eles deram para maliciar e se divertir, lá na Igreja da
Santa Comunhão, que estou freqüentando ultimamente, deram para se divertirem com o que
tem se passado aqui no meu apartamento, à noite. (RI, SELVAGEMENTE, ATIRANDO

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AS MÃOS PARA CIMA.) Acham uma graça dos diabos!... (RECOBRA O FÔLEGO E
APALPA MOLEMENTE O “NEGLIGE”).
PORTEIRO - Procura alguma coisa, Miss. Collins?
MIS. COLLINS - Meu... Lenço... (PISCA OS OLHOS PARA NÃO CHORAR).
PORTEIRO - (TIRANDO UM TRAPO DO BOLSO.) Pronto. Use isso, Miss.
Collins. É apenas um trapo, mas está limpo, exceto desse lado com que eu limpei a
manivela da vitrola.
MISS. COLLINS - Obrigada. Vocês são muito gentis. Daqui a pouco mamãe trará alguns
refrescos.
ASCENSORISTA - (COLOCANDO UM DISCO NA VITROLA.) O título desse aqui é
estrangeiro.
MISS. COLLINS - (ABANANDO-SE, DELICADAMENTE, COM O TRAPO.) Queira
desculpar, mas que tempo está fazendo lá fora?
PORTEIRO - (SURDAMENTE.) Está uma linda tarde, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (SONHADORA.) Mas tão quente para esta época do ano! Usei
minha capinha de astracã para ir à Igreja, mas na volta tive de carregá-la na mão, pois ela
parecia de chumbo. (FECHA OS OLHOS.) Todas as calçadas parecem incrivelmente
longas no verão...
ASCENSORISTA - Mas nós não estamos no verão, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (CONTINUANDO, SONHADORA.) Cheguei a pensar que nunca
mais chegaria ao fim desse quarteirão! Esse é o trecho onde todas as árvores foram
arrancadas por aquele grande furacão. A calçada como que cintila com tanto sol! (APERTA
OS OLHOS.) O rosto em plena luz... E logo eu, que transpiro com a maior facilidade!
(MUITO DELICADAMENTE, ENXUGA A TESTA COM O TRAPO.) Nem um galho,
nem uma folha sorvendo de proteção... Só resta seguir em frente, virado o rosto vermelho e
coberto de suor para o outro lado das casas e andando tão depressa quanto uma pessoa
decente pode andar, até passar por elas todas... Oh, Deus, querido Deus! Às vezes não se
tem sorte e se encontra um conhecido a quem se tem de cumprimentar, sorrindo... Só se
pode evitar isso, atravessando a rua. E seria uma grosseria, vocês não acham? Todo mundo
diria logo que a gente é... É diferente! A casa dele fica bem no meio desse horrível
quarteirão sem folhas... Aliás, a casa deles... Dele e dela... Os dois tem um carro e sempre
chegam cedo em casa para se sentarem na varanda e ficarem esperando que eu passe; Deus
do céu!; Para então se divertirem, maldosamente, às minhas custas... (VIRA O ROSTO
COM A LEMBRANÇA DESSA TORTURA.) Os olhos dela são tão penetrantes... Parece
me atravessar... Creio que ela advinha o aperto asfixiante na minha garganta e a dor que e
sinto aqui... (TOCA O PEITO.) Pois então aponta, rindo, para mim e murmura no ouvido
dele: “lá vai ela, a pobre solteirona que gosta de você, com seu brilhante narigão
vermelho!”. (SOLUÇA E ESCONDE O ROSTO NO TRAPO).
PORTEIRO - Talvez fosse melhor esquecer isso tudo, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Esquecer, nunca. Nunca, nunca! Uma vez esqueci minha sombrinha,
aquela de largas franjas brancas, que pertenceu à mamãe; esqueci no banco da Igreja e por
isso fiquei sem nada para cobrir o rosto enquanto voltava... Nem podia virar-me, com toda
aquela gente atrás de mim, dando risinhos nas minhas costas, divertindo-se com minhas
roupas... Oh, Deus, meu Deus! Tive de seguir sempre em frente, até passar a última árvore,
com aquele miserável fulgor de sol batendo em cheio em mim, me queimando toda! Jesus!
Sobre o meu rosto e o meu corpo!... Ainda tentei caminhar mais depressa, embora tonta e
com eles cada vez mais perto de mim... Acabei tropeçando e quase caí... Eles, então,

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estouraram de rir! Tinha o rosto em brasa, em brasa coberto de suor! Podia até sentir, em
todos aqueles olhares impiedosos, como ele estava feio! E sem uma única sombra para
escondê-lo! Foi então... (SEU ROSTO SE CONTORCE DE ANGÚSTIA.) Que o
automóvel parou em frente da casa deles, exatamente por onde eu tinha que passar, e ela
saltou toda de branco, fresca e descansada, a barriga arredondada pelo bebê, o primeiro dos
seis que eles tiveram... Oh, meu Deus! Ele parou, sorrindo, atrás dela, também de branco,
tão saudável e descansado... E ficaram ali, ambos, esperando por mim! Esperando, os dois!
E eu tinha que continuar! Nada mais podia fazer, se não continuar! Não podia voltar,
podia? Não!... Então, rezei: “Oh, Senhor! Misericórdia! Fazei com que eu morra agora
mesmo!”. Ele, porém, não me atendeu... Abaixe cabeça para não vê-los. Pois sabe que eles
fizeram? Ela estendeu a mão para me deter e ele se colocou de pé na minha frente, sorrindo
sempre, interrompendo meu caminho como um gigante de branco. “Lucrecia”, me disse,
“Lucrecia Collins!”. Eu... Eu tentei falar, mas não consegui! Foi como se todas as minhas
forças me tivessem abandonado de repente! Cobri o rosto e saí correndo, correndo,
correndo!... (BATE NO BRAÇO DO SOFÁ.) Até que cheguei no fim do quarteirão e então
pude respirar outra vez! Oh, céus! Eles foram tão maldosos... (INCLINA-SE, EXAUSTA,
PARA TRÁS, SUA MÃO ABANDONADA NO SOFÁ. HÁ UMA PAUSA, DURANTE
QUAL A MÚSICA TERMINA.) Eu Disse para mamãe: “Temos que deixar esta cidade!” E
deixamos mesmo. E agora, depois de todos esses anos, ele se lembrou finalmente de mim
voltou! Abandonou aquela casa e a mulher para ficar comigo. Primeiro, eu o vi nos fundos
da Igreja. Não estou bem certa, mas só podia ser ele! A noite seguinte foi à noite em que ele
apareceu de fato para... Para se aliviar comigo! Sem mesmo perceber que eu mudei, que eu
já não posso sentir o mesmo que sentia por ele antigamente, agora que ele tem seis filhos
com aquela moça de Cincinnati... Três deles já estão até no ginásio... Seis! Seis filhos!
Vejam só, seis! Nem quero pensar no que irá dizer quando souber que o sétimo está
chegando... Com certeza vai por a culpa toda em cima de mim! Os homens sempre fazem
isso... Nem se lembrará mais que, afinal de contas, foi ele quem me forçou...
ASCENSORISTA - (COM O SORRISO DE MOFA.) A senhora disse... Um bebê, Miss.
Collins?
MISS. COLLINS - (SOMBRIAMENTE, MAS FALANDO COM TERNURA E
ORGULHO.) É verdade... Eu estou esperando uma criança!
ASCENSORISTA - Nossa! (VOLTA-SE, RAPIDAMENTE, PRENDENDO O RISO).
MISS. COLLINS - Embora não seja legítimo, acredito que tenho todo o direito de usar o
nome do pai, não? O que é que o senhor acha?
PORTEIRO - Acho que sim, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Toda criança é inocente e pura, não importa como tenha sido
concebida. E é preciso que não sofra... Por isso mesmo eu pretendo dispor da pequena
propriedade que prima Ethel me deixou para dar a essa criança uma educação bastante
esmerada, capaz de impedir que ela mais tarde venha a viver sob a influência perniciosa da
Igreja Cristã. Quero ficar bem certa de que ela não crescerá à sombra de nenhuma cruz para
depois ter de caminhar ao longo de quarteirões, de quarteirões sem fim, queimada pelo sol
escaldante... (FORA, A CAMPAINHA DO ELEVADOR TOCA).
PORTEIRO - Estão chamando o elevador, Lucy. (A ASCENSORITA SAI.
POUCO DEPOIS, OUVE-SE A PORTA DO ELEVADOR SENDO FECHADO COM
UMA BATIDA SECA. O PORTEIRO PIGARREIA.) Sim... Tenho impressão que será
melhor mesmo... A senhora se mudar...

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MISS. COLLINS - Se ao menos eu tivesse coragem... Mas, não tenho... Já estou tão
acostumada com isto aqui! E é sempre tão difícil enfrentar pessoas estranhas...
PORTEIRO - Talvez a senhora não precise enfrentar ninguém, Miss. Collins.
(FORA, A PORTA DO ELEVADOR É ABERTA RUIDOSAMENTE).
MISS. COLLINS - (LEVANTANDO-SE, ASSUSTADA.) Quem é que está vindo para
cá?
PORTEIRO - Calma, Miss. Collins!
MISS. COLLINS - Se forem os guardas que vieram por causa de Richard, pode mandá-
los embora. Decidi não mais processar Mr. Martin. (MISS. ABRAMS ENTRA, COM A
MÉDICA. A ASCENSORITA FICA OLHANDO, CURIOSA, DA PORTA. A MÉDICA É
ABSOLUTAMENTE PROFISSIONAL. JÁ MISS. ABRAMS É MIUDINHA, CHEIA DE
BONDADE, SINCERAMENTE EMBARAÇADA COM AQUELA SITUAÇÃO. RECUA,
A VOZ POR UM FIO.) Decidi não mais processar Mr. Martin...
MÉDICA - A senhora é Miss. Collins?
MISS. ABRAMS - (MUITO ATENCIOSA.) Perfeitamente. A pessoa que o senhora
estava procurando, Dra. White.
MÉDICA - Hum... (BRUSCAMENTE, PARA MISS. COLLINS.) Vá ao seu
quarto e arrume as suas coisas.
MISS. COLLINS - (ENCOLHENDO-SE, AMEDRONTADA.) Coisas?...
MÉDICA - Sim, senhora. (COM UM SORRISO MECÂNICO.) Um lugar
estranho sempre parece menos estranho quando a gente leva conosco as coisas de uso
pessoal.
MISS. COLLINS - Um lugar... Estranho?...
MÉDICA - (PREENCHENDO, COM NEGLIGÊNCIA, UMA FICHA.) Não
precisa se assustar, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Eu sei!... (EXCITANDO-SE.) A senhora foi mandado pela Igreja da
Santa Comunhão para me prender, em nome da moralidade pública!
MISS. ABRAMS - Oh, não, Miss. Collins. A senhora está enganada. Esta senhora é a
médica que...
MÉDICA - (IMPACIENTE.) Vamos, vamos! A senhora não ficará longe por
muito tempo. Apenas até as coisas se endireitarem... (OLHANDO O RELÓGIO.) Duas de
vinte e cindo!
MISS. COLLINS - (COMPREENDENDO, LENTA E TRISTEMENTE.) Quer dizer
que... Que estão me levando para... Para... Não vou precisar de nada, vou voltar logo.
MISS. ABRAMS - Ela sempre foi uma senhora, doutora. Uma verdadeira senhora!
MÉDICA - Sei, sei... Não há duvidas...
MISS. ABRAMS - Como tudo isso é desagradável!
MISS. COLLINS - Deixe-me ao menos escrever um bilhete para ele. O senhor tem um
lápis, por favor?
MISS. ABRAMS - Está aqui, Miss. Collins. (ELA PEGA O LÁPIS E SE DEBRUÇA
SOBRE A MESA, ESCREVENDO).
MÉDICA - (DIRIGINDO-SE A MISS. COLLINS.) Vamos, querida. Deixe isso para
mais tarde.
MISS. ABRAMS - (INTERVINDO.) Ela ainda não acabou de escrever.
MISS. COLLINS - (ERGUENDO-SE E TENTANDO ESCONDER SUA APREENSÃO
COM UM SORRISO.) Já acabei, sim.

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MÉDICA - Pois, então, vamos embora. (CONDUZ MISS. COLLINS COM


FIRMEZA EM DIREÇÃO À PORTA).
MISS. COLLINS - (VOLTANDO-SE, DE REPENTE.) Oh, Mr. Mick…
PORTEIRO - Diga, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Se ele aparecer de novo... E não me encontrar, gostaria que o senhor
não lhe contasse nada... Sobre o bebê. Acho melhor eu mesma lhe contar isso,
pessoalmente. (SORRINDO, GENTILMENTE.) O senhor sabe como são os homens, não?
PORTEIRO - Adeus, Miss. Collins. (A MÈDICA PUXA-A COM FORÇA PELO
BRAÇO. POR CIMA DO OMBRO, SAINDO, ELA AINDA SORRI, FAZENDO UM
VAGO GESTO DE DESCULPA).
MISS. COLLINS - Daqui a pouco... Mamãe trará alguns refrescos! (SAI, COM A
MÉDICA, A PORTA DO ELEVADOR VOLTA A SE FECHAR,
ESTREPITUOSAMENTE, COMO UMA GAIOLA DE METAL. OUVE-SE, DEPOIS, O
ELEVADOR DESCENDO).
PORTEIRO - Ela deixou um bilhete para ele...
MISS. ABRAMS - O que é que diz, Mick?
PORTEIRO - “Querido Richard. Estarei ausente por algum tempo. Mas não se
preocupe. Eu voltarei. Tenho um grande segredo para lhe contar. Com todo o meu amor.
Lucrecia”. (TOSSE).
MISS. ABRAMS - Precisamos levar essa tralha toda lá para o porão, até encontrarmos
um lugar onde guardá-la.
PORTEIRO - (COM PREGUIÇA.) Ainda hoje à noite, Miss. Abrams?
MISS. ABRAMS - (COM ASPEREZA, ESCONDENDO SUA EMOÇÃO.) Não, não,
hoje à noite não. Por hoje, já basta o que aconteceu! (E, ENTÃO, MAIS GENTIL.)
Amanhã. Apague a luz do quarto e feche a janela... (COMEÇA A TOCAR UMA MÚSICA
MUITO SUAVE, ENQUANTO OS DOIS HOMENS SAEM LENTAMENTE,
FECHANDO A PORTA, A LUZ SE APAGA).

ESTA PROPRIEDADE ESTÁ CONDENADA

PERSONAGENS:
WILLIE
TOM

NOS TRILHOS DO TREM NOS ARREDORES DE UMA PEQUENA CIDADE DO


MISSISSIPI. O CÉU ESTÁ BRANCO COMO LEITE. É DE MANHÃ E DE VEZ EM
QUANDO UM CORVO GRASNA. A MENINA WILLIE AVANÇA, EQUILIBRANDO-
SE NO TRILHO, OS BRAÇOS ABERTOS. NUMA MÃO UMA MEIA BANANA, NA
OUTRA UMA BONECA LOURA E DESTRUÍDA. TEM TREZE ANOS E UMA
INOCÊNCIA A DESPEITO DA APARÊNCIA. O GAROTO TOM, UM POUCO MAIS
VELHO, OLHA-A. USA CALÇAS CURTAS, SUÉTER, TRAZ UMA PIPA COM UMA
BONITA CAUDA.

TOM - Oi. Como é seu nome?


WILLIE - Não fale comigo antes de eu cair. Segure minha boneca manca faz favor.
TOM - (PEGANDO NUM SALTO.) Faço.

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WILLIE - Eu não quero que ela quebre quando eu cair! E acho que não vou agüentar
muito mais. Você não acha?
TOM - Não sei...
WILLIE - Estou quase caindo. (TOM VAI AJUDÁ-LA.) Não, não toca em mim! Se
ajudar não vale. Tem de ser sozinha. Meu Deus, eu estou tremendo hoje! Não sei o que me
botou nervosa! Ta vendo o reservatório d'água lá atrás?
TOM - Han?
WILLIE - Foi lá que subi no trilho! É o mais longe que eu já consegui vir sem cair
nenhuma vez. Quer dizer, se eu conseguir chegar lá no poste de telefone! Ah! Lá vou eu!
(CAI).
TOM - Machucou?
WILLIE - Ralei o joelho, só. Ainda bem que eu não estou com minhas meias de seda,
ainda bem.
TOM - (SENTANDO.) Cospe no joelho. É bom, não inflama.
WILLIE - Ta. (FAZ).
TOM - Os bichos todos fazem isso. Eles sempre lambem as feridas.
WILLIE - Eu sei. Acho que o principal foi minha pulseira. Caiu um dos diamantes.
Onde é que será que está?
TOM - Não vai ser fácil achar não, no meio desse cascalho todo.
WILLIE - Mas deve dar, ele brilha muito.
TOM - Mas não era verdadeiro, era?
WILLIE - (RINDO.) Como é que você sabe?
TOM - (ENCABULADO.) Imaginei. (REFAZENDO-SE.) Porque se fosse você não
ficaria aí andando em cima dos trilhos com sua boneca velha e meia banana...
WILLIE - Eu não teria tanta certeza, pode ser que eu seja excêntrica ou qualquer coisa
assim, nunca se sabe. Como é seu nome?
TOM - Tom.
WILLIE - O meu é Willie, nós dois temos nome de homem.
TOM - (RINDO.) E como é que foi isso?
WILLIE - Meus pais estavam esperando um garoto, eu acho, garota eles já tinham.
Alva é o nome dela. Minha irmã. Por que você não está no colégio?
TOM - Achei que ia ventar e que eu ia poder levantar meu papagaio.
WILLIE - Por que é que você achou que ia ventar?
TOM - Porque o céu está branco.
WILLIE - E isso é sinal de vento?
TOM - Claro!
WILLIE - Eu sei que é. E está branco mesmo. Parece que foi tudo varrido com uma
vassoura, não parece?
TOM - Parece mesmo.
WILLIE - Branquinho. Como uma folha de papel.
TOM - Hum, hum.
WILLIE - Mas não tem vento.
TOM - Não tem não.
WILLIE - Tem sim, bobo, mas está alto demais pra gente sentir. Alto, alto, varrendo
tudo, lá no sótão do céu.
TOM - Hum, hum. E você, não está no colégio?
WILLIE - Eu não, eu larguei. Já faz dois anos que eu larguei.

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TOM - Em que ano você estava?


WILLIE - Quinto.
TOM - Miss. Preston.
WILLIE - Ela mesma. Ela sempre dizia que minhas mãos estavam sujas, até que eu
expliquei que era cinza de trem, de tanto eu cair dos trilhos...
TOM - Ela é fogo.
WILLIE - Fogo o quê, ela é seca assim porque não casou. Provavelmente ninguém
quis, coitada. Então ela teve de ficar sendo a professora da quinta até morrer. Eu detestava
era álgebra, nunca consegui entender pra que servia aquele x...
TOM - Andar nos trilhos não ensina ninguém.
WILLIE - Nem empinar papagaio. E sabe o que mais...
TOM - O quê?
WILLIE - Uma menina não precisa saber muita coisa. Precisar saber conviver na
sociedade, isso sim. Minha irmã Alva me ensinou tudo. Os homens da ferroviária a
adoravam.
TOM - Os engenheiros de trens?
WILLIE - Engenheiros, maquinistas, os caras da fornalha... Ela era o que a gente pode
chamar de "Atração Principal". Linda? Jesus, ela parecia uma artista de cinema.
TOM - Sua irmã?
WILLIE - Um deles, da ferroviária, toda viagem trazia pra ela uma caixa de bombom
em forma de coração com um laço vermelho em cima, toda viagem. Não é maravilhoso?
TOM - É. (UM CORVO GRASNA).
WILLIE - Sabe onde Alva está agora?
TOM - Em Menfis?
WILLIE - Não!
TOM - New Orleans?
WILLIE - Não. Terceira chance.
TOM - Saint Louis?
WILLIE - Você nunca vai adivinhar.
TOM - Onde?
WILLIE - Última morada, cemitério, túmulo, tumba, buraco... Não entende inglês não?
TOM - Entendo! Desculpe.
WILLIE - Não tem de quê. Você não sabe nem da metade, meu camaradinha. Nós
passamos uns grandes tempos naquele casarão amarelo.
TOM - Foi, é?
WILLIE - Tinha música o tempo todo, música de verdade, gente, tocando.
TOM - Que instrumentos?
WILLIE - Piano, guitarra havaiana. E tinha vitrola também, quando eles cansavam.
Todo mundo tocava alguma coisa. Agora não. Agora aquilo lá está quieto. Horrivelmente
quieto. Você não ouve nem um som quando passa por lá, ouve?
TOM - Não. Está vazio lá agora, não está?
WILLIE - Quase. E pregaram uma placa enorme na fachada.
TOM - Dizendo o quê?
WILLIE - Esta propriedade está condenada. Só que eu continuo morando lá.
TOM - Sozinha?
WILLIE - Hum, hum.
TOM - Mas o que aconteceu. Por que todo mundo foi embora?

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WILLIE - Mamãe fugiu com um homem que freava o trem das oito. Depois disso foi
tudo pro brejo. (UM TREM APITA LONGE.) Ouve isso? Esse é o apito do Expresso do
Sul. A coisa mais veloz que corre entre Saint Louis, Menfis e New Orleans. Meu pai bebia
muito. Era um bêbado mesmo.
TOM - Quede ele agora?
WILLIE - Sei lá, desapareceu. Acho que qualquer dia eu devia dar parte à polícia, eles
lá tem uma seção de desaparecidos. Sei porque ele deu parte quando mamãe desapareceu, aí
ficou eu e Alva. Até os pulmões de Alva ficarem doentes. Você vai ao cinema? Viu Greta
Garbo na "Dama das Camélias?" Passou aqui no ano passado na primavera. Ela tinha a
mesma coisa que Alva teve, doença do pulmão.
TOM - É?
WILLIE - Só que com ela, a Greta Garbo, foi mais bonito. Você sabe como é no
cinema, violinos tocando. E montes e montes de flores brancas e os namorados todos
voltando pra ver ela morrer.
TOM - Eu não vi.
WILLIE - Os de Alva sumiram todos, não apareceu um.
TOM - Foi, é?
WILLIE - Como ratos que abandonam um navio naufragando! Assim é que ela falava.
Perguntava: Cadê o Alberto? Cadê o Clemente? Mas não tinha ninguém por perto. "Onde é
que está o Johnson", ela me perguntou. O Johnson era o superintendente do almoxarifado
da ferroviária, o cara mais importante que já tinha ido lá em casa. "Ele não trabalha mais
aqui. Foi transferido de cidade, eu dizia. Mas deixou lembranças". Mas ela sabia que eu
estava mentindo. "Assim é que eles me pagam", ela dizia; "Ratos!" Fugiram todos, menos o
Sidney.
TOM - Quem era o Sidney?
WILLIE - Aquele das caixas de bombom.
TOM - Ah.
WILLIE - Mas Alva não ligou nunca pro Sidney. Ela dizia que os dentes dele não eram
bons.
TOM - Ah.
WILLIE - Não foi uma morte como nos filmes, ah, não foi não. Não teve violinos. Não
teve nem vitrola! Ela pediu, mas o hospital não deixou, era contra os regulamentos. Ela
gostava muito de cantar.
TOM - Alva?
WILLIE - Sabia todas as letras. A favorita dela era assim: (CANTA).
All my tomorrows depend on your love
So wish me a rainbow and wish me the stars
Só que eu desafino, eu sou horrorosa, quando eu cantava Alva me mandava calar a boca.
Mas ela não, ela cantava àbeça, a noite toda. Essas roupas eram dela. Herdei. Tudo de Alva
agora é meu. Menos o colar de bolinhas de ouro puro.
TOM - Aconteceu o que com ele?
WILLIE - O colar? Ela nunca tirou.
TOM - Ah!
WILLIE - E eu herdei também todos os namorados dela. Alberto, Clemente e até o
superintendente do almoxarifado. No início eles sumiram todos. Acho que ficaram com
medo de ter de pagar alguma despesa, ou coisa assim. Mas, de uns tempos para cá

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voltaram. Igual andorinhas. Levam-me para sair de noite. Agora eu sou popular: vou a
todas as festas da ferroviária. Olha aqui!
TOM - O quê?
WILLIE - Como eu danço bem. Eu sei mexer minhas cadeiras. (E MEXE).
TOM - (NUM RASGO DE CORAGEM.) Frank Waters disse que...
WILLIE - O que ele disse?
TOM - Você sabe.
WILLIE - Sei o quê?
TOM - Que você o trouxe aqui para dentro... E dançou pra ele sem roupa.
WILLIE - Ah, isso. Minha boneca maluca está precisando lavar a cabeça. Eu fico com
medo de lavar, com medo que a cabeleira descole, que a cabeça ta meio rachada, você viu.
Os miolos dela devem ter saído todos. Ela anda completamente boboca depois que rachou.
Anda dizendo e fazendo coisas horrorosas. Preciso colar ela.
TOM - Por que você não faz a mesma coisa comigo?
WILLIE - Colar tua cabeça?
TOM - Mesma coisa que você fez com Frank Waters.
WILLIE - Porque naquele dia eu estava me sentindo muito sozinha e hoje não estou. E
você pode dizer isso pro Frank Waters, se você quiser. Diz a ele que eu herdei todos os
namorados de minha irmã. Agora eu saio com homens adultos, homens que têm empregos
importantes. O céu está mesmo branco. Como uma folha de papel. No quinto ano Miss.
Preston dava pra gente folhas de papel em branco e deixava desenhar o que a gente
quisesse. Eu desenhei meu pai bebendo numa garrafa. Ela achou bom e falou: "Olha aqui,
um retrato do Carlitos com o chapéu do lado da cabeça". Aí eu disse: "Não é Carlitos, é
meu pai, e não é chapéu, é uma garrafa". Todo mundo riu muito.
TOM - E Miss, Preston.
WILLIE - Ninguém consegue fazer uma professora rir. E você não meta idéias na
cabeça. Quando passar por aqui grite que se eu estiver apareço na porta, você é um bom
menino. Quer dizer, não sei quanto tempo eu vou morar lá: a propriedade está condenada,
apesar de não ter nada de errado com ela. Um cara do governo ficou rondando anteontem.
Eu reconheci logo, pelo tipo de chapéu.
TOM - E você fez o quê?
WILLIE - Me escondi, ele foi embora. Você dá um recado a Frank Waters que eu
mandar?
TOM - Dou.
WILLIE - Diz a ele que eu fui dançar no Cassino Moon Lake. E que cheguei em casa
bêbada, de manhã! Que lá teve música com todo tipo de instrumento, até trombone e
trompetes, E guitarras havaianas. E que eles tocaram até a música de Alva.
TOM - Está bem. Eu digo.
WILLIE - E agora eu vou voltar.
TOM - Pra onde, Willie?
WILLIE - Pro tanque d'água. Começar tudo de novo. Vai ver qualquer dia eu quebro
um recorde, Alva uma vez quebrou um, numa maratona de Dança em Meville. E eu
atravessando a linha do trem, Alabama. E diz ao Frank que agora não tenho mais tempo pra
garotos da idade dele.
TOM - Eu estou aqui pensando...
WILLIE - O quê?
TOM - Se tudo isso é verdade mesmo ou se você está inventando um bocado.

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WILLIE - Não estou inventando nada não, seu bobo. Nem contei tudo. Eu podia
provar, mas não vale a pena. Tchau. (E VAI, EQUILIBRANDO-SE NOS TRILHOS).

LADY VASELINA

PERSONAGENS:
SRTA. HARDWICKE-MOORE
SRA. WIRE
ESCRITOR

MOORE - (TOM ÁSPERO E AFETADO.) Por favor, quem está aí?


WIRE - (DE FORA, TOM RUDE.) Sou eu!
MOORE - (SEU ROSTO MOSTRANDO PÂNICO MOMENTÂNEO AVANÇA COM
FIRMEZA.) Senhora Wire, entre. Eu ia mesmo até seu quarto para lhe falar uma coisa.
WIRE - (ENTRA. É UMA MULHER DE SEUS CINQUENTA ANOS,
PESADONA E RELAXADA.) Ah, sim? Sobre o quê?
MOORE - (TENTANDO SER ENGRAÇADA, MAS COM DIFICULDADE DE
SORRIR.) Senhora Wire, lamento dizer que não considero estas baratas o tipo mais
desejável de companheiras de quarto, não está de acordo?
WIRE - Baratas, hein?
MOORE - Sim, exatamente. Não tive muita experiência com baratas, mas as poucas
que vi eram do gênero "pedestre", daquelas que andam. Estas Senhora Wire me parecem
ser baratas voadoras! Fiquei chocadíssima, aliás, fiquei mesmo foi atônita, quando uma
delas levantou vôo e começou a zumbir pelo ar, girando e girando em círculos e só não
esbarrou no meu rosto por muito poucos centímetros. Senhora Wire sentei-me à beirada
desta cama e me debulhei em lágrimas. Eu fiquei tão chocada e desgostosa! Imagine só!
Baratas voadoras, que nunca imaginei existirem, zumbindo em voltas e mais voltas ali, na
minha frente! Ora, Senhora Wire queria que soubesse que...
WIRE - (INTERROMPENDO.) Ora, não vejo razão pra tanta surpresa por causa de
simples baratas voadoras. Elas estão por toda parte, até mesmo nos bairros mais elegantes.
Mas não era bem isto o que eu queria...
MOORE - (INTERROMPENDO.) Isto pode ser verdade, Senhora Wire, mas devo lhe
dizer que tenho horror a baratas, até das mais comuns, do tipo pedestre, e sobre estas que
voam...! Se vou continuar a morar aqui, estas baratas voadoras têm que desaparecer. E
desaparecer imediatamente.
WIRE - Como é que vou fazer com que estas baratas voadoras deixem de entrar pelas
janelas? Mas isto, de qualquer forma, não era o que eu...
MOORE - (INTERROMPENDO.) Eu não sei como, Senhora Wire, mas certamente há
de haver uma maneira. Tudo o que sei é que temos que nos livrar delas, antes que eu durma
aqui mais uma noite, Senhora Wire. Porque se eu acordar de madrugada e encontrar
umazinha que for sobre minha cama eu posso ter uma síncope. Juro por Deus, eu
simplesmente morreria de convulsões!
WIRE - Vai me desculpar pelo que vou lhe dizer, Senhorita Hardshell-Moore, mas a
senhorita é o tipo da pessoa que vai morrer mesmo é de bebedeira e não de convulsões de
barata! (PEGA UMA LATINHA DE POMADA SOBRE O GAVETEIRO.) Mas o quê é
isto? Vaselina! Ora, vejam só!
MOORE - (RUBORIZADA.) Eu uso isto para amaciar minhas cutículas.

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WIRE - É, a senhorita é muito exigente!


MOORE - O quê quer dizer com isto?
WIRE - É que em todo este bairro não há uma só destas casas velhas que não tenham
baratas.
MOORE - Mas não esta quantidade absurda, não é? Vou lhe dizer uma coisa: este lugar
está realmente empestado!
WIRE - Não está tão mal assim. A propósito, a senhorita ainda não me pagou o
restante do aluguel desta semana. Não quero fugir do assunto das baratas, contudo gostaria
de receber este dinheiro.
MOORE - Eu lhe pagarei o resto do aluguel, tão logo a senhora extermine estas baratas!
WIRE - Ou a senhorita me paga imediatamente, ou vai pra rua!
MOORE - Eu pretendo sair, se estas baratas não saírem!
WIRE - Pois então saia e pare de ficar ameaçando!
MOORE - A senhora deve estar louca, eu não posso sair agora!
WIRE - Então, o quê quis dizer quando falou em baratas?
MOORE - Eu quis dizer exatamente o que disse: que as baratas não são, na minha
opinião, companheiras de quarto muito desejáveis!
WIRE - Muito bem! Não fique com elas! Arrume suas coisas e mude-se para um
lugar onde não haja baratas!
MOORE - Quer dizer que insiste em ficar com as baratas?
WIRE - Não. Quero dizer que insisto em receber meu aluguel.
MOORE - Neste exato momento isto será fora de cogitação.
WIRE - Está fora de cogitação?
MOORE - Está sim e vou lhe dizer porque! O pagamento trimestral que recebo do
homem que toma conta da minha plantação de borracha, ainda não me foi enviado. Há
semanas que espero por ele, mas hoje recebi uma carta pela manhã, dizendo que houve um
problema com os impostos do ano passado e...
WIRE - Ora, pare com isso! Já ouvi demais sobre sua plantação de borracha!
Plantação de borracha no Brasil! Então a senhorita pensa que estou neste negócio há
dezessete anos e que não aprendi nada sobre mulheres do seu tipo?
MOORE - (TENSA.) O que há por trás desta sua observação?
WIRE - Vai me dizer que os homens que a visitam todas as noites vêm aqui somente
para conversar sobre sua plantação de borracha no Brasil?
MOORE - A senhora deve estar maluca para afirmar tal tipo de coisa!
WIRE - Eu acho e sei muito bem o que vem acontecendo!
MOORE - Eu sei que a senhora fica espionando e escutando atrás das portas.
WIRE - Eu nunca espiono e nem escuto atrás das portas! A primeira coisa que uma
senhora do bairro francês aprende é não ver e nem ouvir somente receber o aluguel!
Enquanto ele estiver sendo pago, tudo bem, sou cega, surda e muda! Mas a partir do
momento em que o dinheiro não vem, recobro minha audição, minha visão e também
minha voz. Se necessário for, vou ao telefone e chamo o chefe de polícia, que por
coincidência é cunhado de minha irmã! Ontem à noite eu ouvi a discussão sobre aquele
dinheiro!
MOORE - Que discussão? Que dinheiro?
WIRE - Ele falava tão alto, que tive de fechar a janela da frente pra que a rua inteira
não tomasse conhecimento do que estava acontecendo aqui! Não ouvi mencionar nenhuma
plantação de borracha no Brasil! Mas ouvi muitas outras coisas serem ditas na conversinha

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que tiveram à meia-noite! Vaselina... Para as cutículas? Está pensando que sou boba, é?
Plantação de borracha! Essa, também... (A PORTA SE ABRE. O ESCRITOR ENTRA
VESTIDO COM UM ROBE-DE-CHAMBRE DE COR PÚRPURO, JÁ VELHO).
ESCRITOR - Pare!
WIRE - Ah, é você?
ESCRITOR - Pare de atormentar esta mulher!
WIRE - Entrou em cena o segundo Senhor Shakespeare.
ESCRITOR - As drogas dos seus gritos atormentam meu sono!
WIRE - Sono? Você quer dizer, entorpecimento causado pela bebida!
ESCRITOR - Eu tenho necessidade de descansar, por causa da minha doença! Será que
não tenho direito de...
WIRE - (INTERROMPENDO.) Doença... Alcoolismo! Não queira me enganar.
Estou contente por ter vindo. Vou repetir agora, pra seu governo, o que já disse a esta
senhorita Estou cheia de parasitas! Ficou bem claro agora? Estou pelas tampas com todos
vocês: ratos de pensão, mestiços, ébrios e degenerados que tentam enganar todo mundo
com mentiras, promessas e desilusões.
MOORE - (TAMPANDO OS OUVIDOS.) Oh, por favor, por favor, por favor, parem
de gritar! Não há necessidade!
WIRE - (PARA A SENHORITA HARDWICKE-MOORE.) A senhorita, com sua
plantação de borracha no Brasil. Aquele brasão na parede que comprou no ferro-velho... A
vendedora me contou tudo! Uma das Hapsburgs! Sim! Uma verdadeira lady! Lady
Vaselina! Este é o seu título! (A SENHORITA HARDWICKE-MOORE CHORA
DESCONTROLADAMENTE E SE JOGA DE BRUÇOS SOBRE A CAMA).
ESCRITOR - (COM PENA.) Pare de importunar esta pobre mulher! Será que não existe
mais compaixão no mundo? O que aconteceu, não há mais compreensão? Acabou-se tudo?
Onde está Deus? Onde está Jesus Cristo? (ELE SE APOIA TRÊMULO NO ARMÁRIO.) E
se não existir nenhuma plantação de borracha no Brasil?
MOORE - (SENTA-SE ERETA, MUITO EMOCIONADA.) Eu digo que existe, existe
sim (SEU PESCOÇO ESTÁ RETESADO E SUA CABEÇA CAÍDA PARA TRÁS).
ESCRITOR - E daí se não existir nenhum rei da borracha em sua vida? Mas tem que ter
um rei da borracha em sua vida? Devemos culpá-la pelo simples fato dela ter necessidade
de compensar as deficiências da realidade exercitando em pouco... Como devo dizer? Um
pouco da sua bem dotada imaginação?
MOORE - (JOGANDO-SE NOVAMENTE DE BRUÇO NA CAMA.) Não, não, não,
não é... Imaginação!
WIRE - Vou lhe pedir, por favor, pare de jogar na minha cara estas frases empoladas!
O senhor, com sua obra-prima de 780 páginas... Faz boa dupla com a Lady Vaselina,
levando-se em conta tão bem dotada imaginação.
ESCRITOR - (COM VOZ CANSADA.) Ora, ora, muito bem, e se isto que disse for
verdade? Suponhamos que não haja nenhuma obra-prima de 780 páginas. (FECHA OS
OLHOS E PASSA A MÃO PELO ROSTO.) Suponhamos que não haja mesmo nenhuma
obra. E que tem isso, Senhora Wire? Somente poucos muito poucos... Rabiscos sem valor...
No fundo da minha canastra... Suponha que eu tenha querido ser um artista, mas me
faltaram à força e o poder de tal! Suponhamos que meus livros não tenham alcançado seus
objetivos no capítulo final e que meus versos sejam enfadonhos e incompletos! Suponha
que as cortinas da minha fantasia mais sublime subam e mostrem dramas maravilhosos...
Mas que as luzes se apaguem antes do pano cair! Suponha que todas estas coisas

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lamentáveis sejam verdades? E suponha que eu... Errando de bar em bar, bebendo um
drinque após outro acabe me estabelecendo no colchão empestado de “chatos” deste
bordel... Suponha que eu tenha que tornar este pesadelo suportável... Suponha que eu
ornamente, ilumine... Glorifique tudo! Com sonhos, ficções e fantasias! Assim como a
existência de uma obra-prima de 780 páginas... Pronta para ser produzida pela Broadway...
E de maravilhosos volumes de poesias nas mãos dos editores, esperando apenas por uma
assinatura para serem liberados! Suponha que eu viva neste lamentável mundo de ficção!
Qual a sua satisfação, boa mulher, de dilacerar tudo... De aniquilar... De dizer que é
mentira? Vou lhe dizer uma coisa, agora ouça! Não existem mentiras, a não ser aquelas que
são atochadas em nossas bocas pelos punhos da miséria e da necessidade Senhora Wire!
Sim, então eu sou um mentiroso! Mas seu mundo é uma hedionda fábrica de mentiras!
Mentiras! Mentiras! Agora estou cansado. Disse o que tinha de ser dito e não tenho
dinheiro para lhe dar, logo suma e deixe esta mulher em paz! Deixa-a sozinha. Vamos, saia!
Vá embora! (ELE A CONDUZ FIRMEMENTE PARA FORA).
WIRE - (GRITANDO DO LADO DE FORA.) Amanhã pela manhã! Ou recebo meu
dinheiro, ou rua! Vocês dois. Os dois juntos! Obra-prima de 780 páginas e plantação de
borracha no Brasil! Lorotas! (DEVAGAR O ESCRITOR E A MULHER VIRAM-SE E SE
ENTREOLHAM, A LUZ DO DIA SE ESMAECE NO CÉU. O ESCRITOR ESTENDE
SEUS BRAÇOS NUM GESTO DE AJUDA, VAGAROSAMENTE E COM FIRMEZA).
MOORE - (DESVIANDO O OLHAR.) Baratas! Por toda parte! Nas paredes, no teto,
no chão! O lugar está cheio delas.
ESCRITOR - (GENTILMENTE.) Eu sei. Acredito que não haja baratas na sua plantação
de borracha.
MOORE - (AFETUOSAMENTE.) Não, claro que não. Tudo sempre esteve
impecável... Sempre. Impecável! O piso era tão claro e limpo, que brilhava como...
Espelho!
ESCRITOR - Eu sei. E as janelas... Com certeza mostravam uma vista maravilhosa!
MOORE - Indiscutivelmente maravilhosa!
ESCRITOR - A que distância fica do Mediterrâneo?
MOORE - (CONFUSA.) Do Mediterrâneo? Ora, somente uma ou duas milhas!
ESCRITOR - Eu ousaria dizer que, numa manhã clara e límpida, seria possível se ver os
cumes brancos de Dove?... Do outro lado do canal?
MOORE - Sim... Quando a atmosfera está limpa (SILENCIOSAMENTE O ESCRITOR
LHE DÁ UMA GARRAFA DE UÍSQUE.) Obrigada... Senhor... Qual seu nome?
ESCRITOR - Tchekhov! Anton Pavlovitch Tchekhov!
MOORE - (SORRINDO, COQUETE.) Obrigada, Senhor Tchekhov.
ESCRITOR - E o seu nome senhorita?
MOORE - (CONFUSA.) Meu nome... Meu nome, bem?!? (DEPOIS DE UMA
PEQUENA PAUSA.) Meu nome é Jezebel!
ESCRITOR - Enchantée. Mademoiselle Jezebel.
MOORE - O senhor é muito gentil.

BERTHA MANDOU LEMBRAÇAS

PERSONAGENS:
BERTHA
GOLDIE

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LENA
UMA MOÇA

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