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TRISTEZAS AMERICANAS
De Alexandre Biondi
PERSONAGENS:
HOMEM
MULHER
CRIANÇAS
HOMEM - (COM VOZ ROUCA.) Que horas são? (A MULHER MURMURA ALGO
INCOMPREENSÍVEL.) O que, bem?
MULHER - Domingo.
HOMEM - Eu sei que é domingo. Você nunca dá corda no relógio. (A MULHER
ESTICA UM BRAÇO MAGRO PARA FORA DA MANGA DO QUIMONO DE RAYON
ROSA E VELHO E PEGA UM COPO DE ÁGUA E O PESO DESTE PARECE PUXÁ-
LA UM POUCO PARA FRENTE. O HOMEM A OBSERVA DA CAMA, DE MODO AO
MESMO TEMPO SOLENE E CARINHOSO, ENQUANTO ELA BEBE ÁGUA. UMA
MÚSICA COMEÇA A TOCAR AO LONGE, HESITANTE, REPETINDO UMA FRASE
MUSICAL VÁRIAS VEZES, COMO SE ALGUÉM NUM QUARTO AO LADO
ESTIVESSE PROCURANDO LEMBRAR UMA CANÇÃO NUM BANDOLIM. ÀS
VEZES UMA FRASE É CANTADA EM ESPANHOL. A CANÇÃO PODERIA SER
ESTRELLITA. COMEÇA A CHOVER. CHOVE E PARA DE CHOVER DURANTE
TODA A PEÇA. HÁ O BARULHO FORTE DO ESVOAÇAR DE POMBOS PASSANDO
PELA JANELA E A VOZ DE UMA CRIANÇA CANTAROLA DO LADO DE FORA).
CRIANÇA - Chuva, chuva, vai embora! Volta novamente num outro dia! (O CANTO É
REPETIDO POR OUTRA CRIANÇA MAIS AO LONGE EM TOM DE ZOMBARIA).
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cabelo ficou branco. Branco, completamente branco. Tão branco quanto à espuma das
ondas. (ELA SE LEVANTA E ANDA PELO QUARTO ENQUANTO CONTINUA A
FALAR.) Passarei as mãos pelo meu corpo e sentirei o quanto fiquei leve e magra. Oh,
como estarei magra. Quase transparente. Quase irreal. Então compreenderei, saberei, de
modo vago, que estava morando neste pequeno hotel, sem nenhuma relação social,
responsabilidade, ansiedades ou perturbações de qualquer tipo por quase cinqüenta anos.
Meio século. Praticamente uma vida inteira. Nem sequer me lembrarei dos nomes das
pessoas que conhecia antes de vir para cá nem da sensação de ser alguém esperando por
alguém que talvez não venha... Então saberei olhando no espelho que pela primeira vez
chegou o momento de andar sozinha mais uma vez na calçada com o vento forte batendo
em mim, o vento limpo e branco que vem do princípio do mundo, ainda mais além do que
isto, vem do princípio do espaço, ainda mais além de qualquer coisa que haja além do
princípio do espaço... (ELA SENTA NOVAMENTE SEM MUITA FIRMEZA PERTO DA
JANELA.) Então sairei e andarei pela calçada. Andarei sozinha e serei empurrada pelo
vento e ficarei pequenina, pequenina.
HOMEM - Amorzinho. Vem para a cama.
MULHER - Pequena, pequena, pequena, e mais pequenina e pequenina! (ELE
ATRAVESSA O QUARTO INDO A SUA DIREÇÃO E A LEVANTA DA CADEIRA À
FORÇA.) Até que finalmente não teria mais corpo e o vento viesse me tomar em seus
braços brancos e refrescantes para sempre, e me levasse embora!
HOMEM - (ELE APERTA A BOCA CONTRA O PESCOÇO DELA.) Vem para a
cama comigo!
MULHER - Quero ir embora, quero ir embora! (ELE A SOLTA E ELA VOLTA AO
CENTRO DO QUARTO SOLUÇANDO DESCONTROLADAMENTE. ELA SENTA NA
CAMA. ELE SUSPIRA E SE DEBRUÇA NA JANELA, AS LUZES PISCANDO ALÉM
DELE, A CHUVA CAINDO MAIS FORTE. A MULHER TREME DE FRIO E CRUZA
OS BRAÇOS CONTRA O PEITO. SEUS SOLUÇOS MORREM MAS ELA RESPIRA
COM DIFICULDADE. A LUZ PISCA E OUVE-SE O VENTO FRIO. O HOMEM
CONTINUA DEBRUÇADO NA JANELA. FINALMENTE ELA FALA COM ELE
SUAVEMENTE.) Volta para a cama. Volta para a cama, meu bem... (ELE VIRA O
ROSTO PARA ELA COM UMA EXPRESSÃO PERDIDA).
AUTO DA FÉ...
PERSONAGENS:
MADAME DUVENET
MYRA
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PERSONAGENS:
CORNÉLIA SCOTT
GRACE LANCASTER
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Esmeralda Hawkins telefonasse para ela assim que chegasse. Obrigada. Até logo.
(DESLIGA.) Como você está vendo, tive que personificar minha secretária esta manhã!
GRACE - O dia estava tão escuro que não acordei. (GRACE LANCASTER
TEM QUARENTA OU QUARENTA E CINCO ANOS, ENVELHECIDA, MAS AINDA
BONITA. SEUS CABELOS LOUROS, QUE POUCO A POUCO SE TORNA
GRISALHO, SEUS OLHOS OPACOS E SUA SILHUETA ESBELTA NUM "ROBE DE
CHAMBRE" DE SEDA ROSA LHE DÃO UM QUÊ INSUBSTÂNCIAL EM FRANCO
CONTRASTE COM A GRANDEZA ROMÂNICA DA SENHORITA SCOTT.
MUDANDO DE ASSUNTO.) O catálogo novo da loja de discos, em Atlanta!
CORNÉLIA - (CONDESCENTE.) Sim, aí está.
GRACE - Estou vendo que você marcou vários artigos.
CORNÉLIA - Acho que deveríamos enriquecer nossa coleção de peças alemãs.
(ELA FAZ UMA INSPIRAÇÃO PROFUNDA E SUSPIRA, O OLHAR FIXO SOBRE O
TELEFONE SILENCIOSO.) Você vai ver que eu também escolhi uma ou outra seleção
lírica.
GRACE - Onde, quais? Não estou vendo!
CORNÉLIA - Por que você está tão entusiasmada pelo catálogo, querida?
GRACE - Eu adoro discos!
CORNÉLIA - Gostaria que você os adorasse o suficiente para colocá-los em seus
devidos lugares, nos álbuns.
GRACE - O Vivaldi que queríamos!
CORNÉLIA - "Nós" não, querida. Só você.
GRACE - Estranho que eu tivesse a impressão de que você... (O TELEFONE
TOCA.) Atendo?
CORNÉLIA - Tenha a bondade.
GRACE - (APANHANDO O FONE.) Residência da Senhorita Scott! (TAL
ANÚNCIO É FEITO COM UM TOM DE REVERÊNCIA, COMO SE MENCIONASSE
UM LUGAR SAGRADO.) Oh, não, não, que está falando é Grace, mas Cornélia está logo
aqui ao lado. (PASSA O TELEFONE.) Esmeralda Hawkins.
CORNÉLIA - (RÍGIDA AO TELEFONE.) Alô, Esmeralda, querida. Estava
esperando seu telefonema. Claro que sei que você está ligando da reunião, "ça va sans dire,
ma petite!”. Agora, o que está acontecendo? Discutindo o Programa dos Direitos Civis?
Então elas não vão iniciar a votação até pelo menos daqui a meia hora! Agora, Esmeralda
eu espero realmente que você entenda minha posição claramente. Eu não quero exercer
nenhum cargo a não ser que seja por aclamação. Você sabe o que isto significa, não sabe?
Em outras palavras, eleita automaticamente, simplesmente por nomeação, sem qualquer
oposição. Sim, meu bem, é exatamente isto. Bem, agora, querida, o assunto é simplesmente
este. Se as Confederadas acharem que demonstrei minhas capacidades e lealdade com tal
força para que possa simplesmente ser nomeada Presidente sem nenhum voto por
aclamação unânime! Bem, aí, é claro que eu me sentirei na obrigação de aceitar... (SUA
VOZ TREME DE EMOÇÃO.) Mas se, por outro lado, a... "Claque"! E você sabe de quais
eu estou falando! São descaradas o suficiente para propor mais alguém para o cargo. Você
entende minha posição? Prefiro não participar da eleição. Entendeu bem, Esmeralda? Bom!
Volte lá para baixo para a reunião. (ELA DESLIGA E FITA O VAZIO).
GRACE - As... Filhas da Confederação?
CORNÉLIA - Sim! Elas estão tendo sua eleição anual hoje.
GRACE - Que ótimo! Por que você não está na reunião?
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você para que você lhes dê opiniões sobre isto ou aquilo. Quais as peças da Broadway são
as melhores da temporada, quais os livros que valem a pena serem lidos e quais são ruins, e
quais discos são valiosos, qual a atitude correta perante projetos de lei no Congresso! Você
é uma fonte de sabedoria! Além disto, você tem sua riqueza! Sim, você tem sua fortuna.
Todas as suas propriedades, seu gado premiado, suas hipotecas, sua mansão na estrada
Edgewater, sua... Secretariazinha tímida, seus jardins fabulosos.
CORNÉLIA - Sim! Agora você está falando, agora você está falando! Continue, por
favor, continue falando.
GRACE - Esta a diferença entre nós duas, você não deve esperar que eu dê
respostas corajosas a perguntas que fazem a casa tremer em seu silêncio! Falar de coisas
que não foram faladas durante quinze anos! Este tempo pode fazer do silêncio uma parede
que nada, a não ser dinamite, pode quebrar e... Eu não sou forte o suficiente, corajosa o
suficiente... (LEVANTANDO-SE.) Posso sair, agora?
CORNÉLIA - Não! Fique aqui! (GRACE SENTA E FECHA OS OLHOS.) Quando
você veio para esta casa pela primeira vez... Você sabe que eu não esperava que viesse?
GRACE - Ora, Cornélia, você havia me convidado.
CORNÉLIA - Nós mal nos conhecíamos.
GRACE - Nos encontramos no verão anterior quando Ralph ainda...
CORNÉLIA - Ainda vivia! Sim, nos encontramos em Sewanes, ele era instrutor de
educação física lá.
GRACE - Ele já estava doente.
CORNÉLIA - Pensei que era uma pena que aquela moça adorável e delicada não
havia encontrado ninguém em quem pudesse se apoiar, que pudesse protegê-la. E dois
meses depois eu soube por Clarabelle Drake que ele havia morrido...
GRACE - Você me escreveu uma carta tão amável, dizendo como você ficara
sozinha desde que sua mãe havia morrido e me incentivando a descansar aqui até ter
passado o choque. Eu hesitei em vir. Não o fiz até que você me escreveu uma segunda
carta...
CORNÉLIA - Depois que recebi a sua. Você queria incentivo.
GRACE - Eu queria estar bem certa de estar sendo desejada! Eu vim
pretendendo ficar apenas por umas poucas semanas. Eu estava com tanto medo de ficar
mais tempo do que o desejado!
CORNÉLIA - Como você foi cega em não perceber o quão desesperadamente eu
quis conservar você aqui para sempre!
GRACE - Mas eu vi que... (O TELEFONE TOCA.) Residência da Senhorita
Scott! Sim, ela está aqui.
CORNÉLIA - (AGARRANDO DECIDIDAMENTE O TELEFONE.) Cornélia
Scott falando. É você, Esmeralda? Bem e como foi? Eu não acredito! Eu simplesmente não
acredito... (GRACE SENTA-SE SILENCIOSAMENTE, À MESA.) A Senhora Hornesby
eleita? Menos de um ano no clube... Você me... Sugeriu? É claro. Mas eu disse para retirar
meu nome se não, não, não explique, não tem importância, já foi o suficiente. Ora, claro
que eu vou me demitir da divisão local! Ah, vou sim! Minha secretária está logo aqui ao
lado. Está com lápis e papel! Vou ditar minha carta de demissão da seção local logo depois
de desligar. Obrigada e até logo, Esmeralda. (ELA DESLIGA, ATORDOADA. GRACE
SE LEVANTA).
GRACE - Papel e lápis?
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CORNÉLIA - Sim. Papel e lápis... Eu tenho de ditar uma carta. (GRACE DEIXA A
MESA. EXATAMENTE NA BORDA DA ÁREA ILUMINADA ELA SE VOLTA PARA
OLHAR OS OMBROS RÍGIDOS DE CORNÉLIA E UM LEVE, VAGO SORRISO
APARECE MOMENTANEAMENTE EM SEU ROSTO; NÃO MALICIOSO DE TODO,
MAS NÃO VERDADEIRAMENTE COMPASSIVO. ENTÃO SE RETIRA DA ÁREA
ILUMINADA. UM MOMENTO APÓS OUVIMOS NUMA VOZ VINDA DA COXIA).
GRACE - Que lindas rosas! Uma para cada ano. Um ano para cada rosa!
PERSONAGEM:
MISS. LUCRÉCIA COLLINS
PORTEIRO
UMA ASCENSORITA
MÉDICA
MISS. ABRAMS
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MISS. COLLINS - Publicidade? Oh, não! Seria tão humilhante! Espero que Miss.
Abrams não tenha contado nada aos jornais.
PORTEIRO - Não, senhora. Não ouça o que ela diz.
MISS. COLLINS - (AJEITANDO OS CACHOS.) O senhor acha que vão tirar
fotografias? Há uma dele em cima da lareira.
ASCENSORISTA - (INDO À LAREIRA.) Está aqui, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - É. A do pic-nic dos professores da Escola Dominical. Nesse ano, eu
estava ensinando no Jardim da Infância e ele no Primário. Tínhamos viajado numa cabine
de trem que vai de Webb até Crystal Springs. (TAPA OS OUVIDOS COM UM GESTO
INFANTIL, SACUDINDO OS CACHOS.) Oh, como apitava a locomotiva... Apitava!
(RISINHO.) Uhuhuhuhuhu! Fiquei tão assustada! Então, ele pôs o braço nos meus ombros.
Mas ela esta lá também, fazendo não sei o que. Pegou o chapéu dele e o colocou no
cocuruto da cabeça. Aí, os dois... Os dois se atracaram por causa do chapéu e acabaram
rolando juntos pelo chão... Os dois... Todo mundo achou que era um escândalo. E o senhor,
o que me diz disso?
PORTEIRO - Também acho, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Aquela é a fotografia dele, a que está na moldura de prata, em cima
da lareira... Esfriamos a melancia no riacho e depois organizamos algumas brincadeiras. Foi
então que ela se escondeu, ninguém sabia onde. E ele levou séculos para encontrá-la.
Acabou ficando escuro e ele ainda continuava procurando por ela, com todo mundo rindo e
comentando o caso. Até que eles voltaram, os dois, juntinhos... Ela, pendurada no braço
dele como uma sujeitinha vulgar... Então, a Daisy Belle Huston gritou: “Meu Deus, olhem
todos, o que é isso! Olha só o traseiro da Evelyn!” A saia dela estava coberta de capim. O
senhor já viu alguma coisa mais indecente? Ela, porém, nem se importou. Até riu, como se
aquilo fosse a coisa mais divertida desse mundo. Chegou a desfilar, rebolando, no meio de
todos. Imagine!
ASCENSORISTA - Quem é ele, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - É esse rapaz alto, de camisa azul, que está segurando um dos meus
cachos. Ele gostava tanto de brincar com eles...
ASCENSORISTA - Um autêntico Alfa Romeu, 1910, não é, Miss. Collins?
MISS. COLLINS - Desculpe, as damas do sul não entendem bem de carro ou de
qualquer coisa que diz respeito a homens. Ah, e isso já não têm a menor importância. Não
tem mesmo... Eu adorava essas golas redondas. Dizia para mamãe: “Mesmo que eu não
use, mamãe, ficarão para o meu enxoval!”.
ASCENSORISTA - E como é que ele estava vestido hoje, quando subiu no seu quarto,
Miss. Collins?
MISS. COLLINS - Como?
ASCENSORISTA - Com essa camisa listrada o colarinho de celulóide?
MISS. COLLINS - Ele não mudou nada...
ASCENSORISTA - Então vai ser fácil encontrá-lo vestido assim. De que cor são as calças
dele?
MISS. COLLINS - (DISTANTE.) Não me lembro...
ASCENSORISTA - Talvez ele nem use calças, heim? Talvez tenha perdido elas,
escalando o hotel... Se for assim, a senhora poderá denunciá-lo por atentado ao pudor, Miss.
Collins...
PORTEIRO - (AGARRANDO A ASSESSORISTA PELO BRAÇO.) Pare com isso
e volte para a sua gaiola, está me ouvindo?
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AS MÃOS PARA CIMA.) Acham uma graça dos diabos!... (RECOBRA O FÔLEGO E
APALPA MOLEMENTE O “NEGLIGE”).
PORTEIRO - Procura alguma coisa, Miss. Collins?
MIS. COLLINS - Meu... Lenço... (PISCA OS OLHOS PARA NÃO CHORAR).
PORTEIRO - (TIRANDO UM TRAPO DO BOLSO.) Pronto. Use isso, Miss.
Collins. É apenas um trapo, mas está limpo, exceto desse lado com que eu limpei a
manivela da vitrola.
MISS. COLLINS - Obrigada. Vocês são muito gentis. Daqui a pouco mamãe trará alguns
refrescos.
ASCENSORISTA - (COLOCANDO UM DISCO NA VITROLA.) O título desse aqui é
estrangeiro.
MISS. COLLINS - (ABANANDO-SE, DELICADAMENTE, COM O TRAPO.) Queira
desculpar, mas que tempo está fazendo lá fora?
PORTEIRO - (SURDAMENTE.) Está uma linda tarde, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (SONHADORA.) Mas tão quente para esta época do ano! Usei
minha capinha de astracã para ir à Igreja, mas na volta tive de carregá-la na mão, pois ela
parecia de chumbo. (FECHA OS OLHOS.) Todas as calçadas parecem incrivelmente
longas no verão...
ASCENSORISTA - Mas nós não estamos no verão, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - (CONTINUANDO, SONHADORA.) Cheguei a pensar que nunca
mais chegaria ao fim desse quarteirão! Esse é o trecho onde todas as árvores foram
arrancadas por aquele grande furacão. A calçada como que cintila com tanto sol! (APERTA
OS OLHOS.) O rosto em plena luz... E logo eu, que transpiro com a maior facilidade!
(MUITO DELICADAMENTE, ENXUGA A TESTA COM O TRAPO.) Nem um galho,
nem uma folha sorvendo de proteção... Só resta seguir em frente, virado o rosto vermelho e
coberto de suor para o outro lado das casas e andando tão depressa quanto uma pessoa
decente pode andar, até passar por elas todas... Oh, Deus, querido Deus! Às vezes não se
tem sorte e se encontra um conhecido a quem se tem de cumprimentar, sorrindo... Só se
pode evitar isso, atravessando a rua. E seria uma grosseria, vocês não acham? Todo mundo
diria logo que a gente é... É diferente! A casa dele fica bem no meio desse horrível
quarteirão sem folhas... Aliás, a casa deles... Dele e dela... Os dois tem um carro e sempre
chegam cedo em casa para se sentarem na varanda e ficarem esperando que eu passe; Deus
do céu!; Para então se divertirem, maldosamente, às minhas custas... (VIRA O ROSTO
COM A LEMBRANÇA DESSA TORTURA.) Os olhos dela são tão penetrantes... Parece
me atravessar... Creio que ela advinha o aperto asfixiante na minha garganta e a dor que e
sinto aqui... (TOCA O PEITO.) Pois então aponta, rindo, para mim e murmura no ouvido
dele: “lá vai ela, a pobre solteirona que gosta de você, com seu brilhante narigão
vermelho!”. (SOLUÇA E ESCONDE O ROSTO NO TRAPO).
PORTEIRO - Talvez fosse melhor esquecer isso tudo, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Esquecer, nunca. Nunca, nunca! Uma vez esqueci minha sombrinha,
aquela de largas franjas brancas, que pertenceu à mamãe; esqueci no banco da Igreja e por
isso fiquei sem nada para cobrir o rosto enquanto voltava... Nem podia virar-me, com toda
aquela gente atrás de mim, dando risinhos nas minhas costas, divertindo-se com minhas
roupas... Oh, Deus, meu Deus! Tive de seguir sempre em frente, até passar a última árvore,
com aquele miserável fulgor de sol batendo em cheio em mim, me queimando toda! Jesus!
Sobre o meu rosto e o meu corpo!... Ainda tentei caminhar mais depressa, embora tonta e
com eles cada vez mais perto de mim... Acabei tropeçando e quase caí... Eles, então,
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estouraram de rir! Tinha o rosto em brasa, em brasa coberto de suor! Podia até sentir, em
todos aqueles olhares impiedosos, como ele estava feio! E sem uma única sombra para
escondê-lo! Foi então... (SEU ROSTO SE CONTORCE DE ANGÚSTIA.) Que o
automóvel parou em frente da casa deles, exatamente por onde eu tinha que passar, e ela
saltou toda de branco, fresca e descansada, a barriga arredondada pelo bebê, o primeiro dos
seis que eles tiveram... Oh, meu Deus! Ele parou, sorrindo, atrás dela, também de branco,
tão saudável e descansado... E ficaram ali, ambos, esperando por mim! Esperando, os dois!
E eu tinha que continuar! Nada mais podia fazer, se não continuar! Não podia voltar,
podia? Não!... Então, rezei: “Oh, Senhor! Misericórdia! Fazei com que eu morra agora
mesmo!”. Ele, porém, não me atendeu... Abaixe cabeça para não vê-los. Pois sabe que eles
fizeram? Ela estendeu a mão para me deter e ele se colocou de pé na minha frente, sorrindo
sempre, interrompendo meu caminho como um gigante de branco. “Lucrecia”, me disse,
“Lucrecia Collins!”. Eu... Eu tentei falar, mas não consegui! Foi como se todas as minhas
forças me tivessem abandonado de repente! Cobri o rosto e saí correndo, correndo,
correndo!... (BATE NO BRAÇO DO SOFÁ.) Até que cheguei no fim do quarteirão e então
pude respirar outra vez! Oh, céus! Eles foram tão maldosos... (INCLINA-SE, EXAUSTA,
PARA TRÁS, SUA MÃO ABANDONADA NO SOFÁ. HÁ UMA PAUSA, DURANTE
QUAL A MÚSICA TERMINA.) Eu Disse para mamãe: “Temos que deixar esta cidade!” E
deixamos mesmo. E agora, depois de todos esses anos, ele se lembrou finalmente de mim
voltou! Abandonou aquela casa e a mulher para ficar comigo. Primeiro, eu o vi nos fundos
da Igreja. Não estou bem certa, mas só podia ser ele! A noite seguinte foi à noite em que ele
apareceu de fato para... Para se aliviar comigo! Sem mesmo perceber que eu mudei, que eu
já não posso sentir o mesmo que sentia por ele antigamente, agora que ele tem seis filhos
com aquela moça de Cincinnati... Três deles já estão até no ginásio... Seis! Seis filhos!
Vejam só, seis! Nem quero pensar no que irá dizer quando souber que o sétimo está
chegando... Com certeza vai por a culpa toda em cima de mim! Os homens sempre fazem
isso... Nem se lembrará mais que, afinal de contas, foi ele quem me forçou...
ASCENSORISTA - (COM O SORRISO DE MOFA.) A senhora disse... Um bebê, Miss.
Collins?
MISS. COLLINS - (SOMBRIAMENTE, MAS FALANDO COM TERNURA E
ORGULHO.) É verdade... Eu estou esperando uma criança!
ASCENSORISTA - Nossa! (VOLTA-SE, RAPIDAMENTE, PRENDENDO O RISO).
MISS. COLLINS - Embora não seja legítimo, acredito que tenho todo o direito de usar o
nome do pai, não? O que é que o senhor acha?
PORTEIRO - Acho que sim, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Toda criança é inocente e pura, não importa como tenha sido
concebida. E é preciso que não sofra... Por isso mesmo eu pretendo dispor da pequena
propriedade que prima Ethel me deixou para dar a essa criança uma educação bastante
esmerada, capaz de impedir que ela mais tarde venha a viver sob a influência perniciosa da
Igreja Cristã. Quero ficar bem certa de que ela não crescerá à sombra de nenhuma cruz para
depois ter de caminhar ao longo de quarteirões, de quarteirões sem fim, queimada pelo sol
escaldante... (FORA, A CAMPAINHA DO ELEVADOR TOCA).
PORTEIRO - Estão chamando o elevador, Lucy. (A ASCENSORITA SAI.
POUCO DEPOIS, OUVE-SE A PORTA DO ELEVADOR SENDO FECHADO COM
UMA BATIDA SECA. O PORTEIRO PIGARREIA.) Sim... Tenho impressão que será
melhor mesmo... A senhora se mudar...
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MISS. COLLINS - Se ao menos eu tivesse coragem... Mas, não tenho... Já estou tão
acostumada com isto aqui! E é sempre tão difícil enfrentar pessoas estranhas...
PORTEIRO - Talvez a senhora não precise enfrentar ninguém, Miss. Collins.
(FORA, A PORTA DO ELEVADOR É ABERTA RUIDOSAMENTE).
MISS. COLLINS - (LEVANTANDO-SE, ASSUSTADA.) Quem é que está vindo para
cá?
PORTEIRO - Calma, Miss. Collins!
MISS. COLLINS - Se forem os guardas que vieram por causa de Richard, pode mandá-
los embora. Decidi não mais processar Mr. Martin. (MISS. ABRAMS ENTRA, COM A
MÉDICA. A ASCENSORITA FICA OLHANDO, CURIOSA, DA PORTA. A MÉDICA É
ABSOLUTAMENTE PROFISSIONAL. JÁ MISS. ABRAMS É MIUDINHA, CHEIA DE
BONDADE, SINCERAMENTE EMBARAÇADA COM AQUELA SITUAÇÃO. RECUA,
A VOZ POR UM FIO.) Decidi não mais processar Mr. Martin...
MÉDICA - A senhora é Miss. Collins?
MISS. ABRAMS - (MUITO ATENCIOSA.) Perfeitamente. A pessoa que o senhora
estava procurando, Dra. White.
MÉDICA - Hum... (BRUSCAMENTE, PARA MISS. COLLINS.) Vá ao seu
quarto e arrume as suas coisas.
MISS. COLLINS - (ENCOLHENDO-SE, AMEDRONTADA.) Coisas?...
MÉDICA - Sim, senhora. (COM UM SORRISO MECÂNICO.) Um lugar
estranho sempre parece menos estranho quando a gente leva conosco as coisas de uso
pessoal.
MISS. COLLINS - Um lugar... Estranho?...
MÉDICA - (PREENCHENDO, COM NEGLIGÊNCIA, UMA FICHA.) Não
precisa se assustar, Miss. Collins.
MISS. COLLINS - Eu sei!... (EXCITANDO-SE.) A senhora foi mandado pela Igreja da
Santa Comunhão para me prender, em nome da moralidade pública!
MISS. ABRAMS - Oh, não, Miss. Collins. A senhora está enganada. Esta senhora é a
médica que...
MÉDICA - (IMPACIENTE.) Vamos, vamos! A senhora não ficará longe por
muito tempo. Apenas até as coisas se endireitarem... (OLHANDO O RELÓGIO.) Duas de
vinte e cindo!
MISS. COLLINS - (COMPREENDENDO, LENTA E TRISTEMENTE.) Quer dizer
que... Que estão me levando para... Para... Não vou precisar de nada, vou voltar logo.
MISS. ABRAMS - Ela sempre foi uma senhora, doutora. Uma verdadeira senhora!
MÉDICA - Sei, sei... Não há duvidas...
MISS. ABRAMS - Como tudo isso é desagradável!
MISS. COLLINS - Deixe-me ao menos escrever um bilhete para ele. O senhor tem um
lápis, por favor?
MISS. ABRAMS - Está aqui, Miss. Collins. (ELA PEGA O LÁPIS E SE DEBRUÇA
SOBRE A MESA, ESCREVENDO).
MÉDICA - (DIRIGINDO-SE A MISS. COLLINS.) Vamos, querida. Deixe isso para
mais tarde.
MISS. ABRAMS - (INTERVINDO.) Ela ainda não acabou de escrever.
MISS. COLLINS - (ERGUENDO-SE E TENTANDO ESCONDER SUA APREENSÃO
COM UM SORRISO.) Já acabei, sim.
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PERSONAGENS:
WILLIE
TOM
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WILLIE - Eu não quero que ela quebre quando eu cair! E acho que não vou agüentar
muito mais. Você não acha?
TOM - Não sei...
WILLIE - Estou quase caindo. (TOM VAI AJUDÁ-LA.) Não, não toca em mim! Se
ajudar não vale. Tem de ser sozinha. Meu Deus, eu estou tremendo hoje! Não sei o que me
botou nervosa! Ta vendo o reservatório d'água lá atrás?
TOM - Han?
WILLIE - Foi lá que subi no trilho! É o mais longe que eu já consegui vir sem cair
nenhuma vez. Quer dizer, se eu conseguir chegar lá no poste de telefone! Ah! Lá vou eu!
(CAI).
TOM - Machucou?
WILLIE - Ralei o joelho, só. Ainda bem que eu não estou com minhas meias de seda,
ainda bem.
TOM - (SENTANDO.) Cospe no joelho. É bom, não inflama.
WILLIE - Ta. (FAZ).
TOM - Os bichos todos fazem isso. Eles sempre lambem as feridas.
WILLIE - Eu sei. Acho que o principal foi minha pulseira. Caiu um dos diamantes.
Onde é que será que está?
TOM - Não vai ser fácil achar não, no meio desse cascalho todo.
WILLIE - Mas deve dar, ele brilha muito.
TOM - Mas não era verdadeiro, era?
WILLIE - (RINDO.) Como é que você sabe?
TOM - (ENCABULADO.) Imaginei. (REFAZENDO-SE.) Porque se fosse você não
ficaria aí andando em cima dos trilhos com sua boneca velha e meia banana...
WILLIE - Eu não teria tanta certeza, pode ser que eu seja excêntrica ou qualquer coisa
assim, nunca se sabe. Como é seu nome?
TOM - Tom.
WILLIE - O meu é Willie, nós dois temos nome de homem.
TOM - (RINDO.) E como é que foi isso?
WILLIE - Meus pais estavam esperando um garoto, eu acho, garota eles já tinham.
Alva é o nome dela. Minha irmã. Por que você não está no colégio?
TOM - Achei que ia ventar e que eu ia poder levantar meu papagaio.
WILLIE - Por que é que você achou que ia ventar?
TOM - Porque o céu está branco.
WILLIE - E isso é sinal de vento?
TOM - Claro!
WILLIE - Eu sei que é. E está branco mesmo. Parece que foi tudo varrido com uma
vassoura, não parece?
TOM - Parece mesmo.
WILLIE - Branquinho. Como uma folha de papel.
TOM - Hum, hum.
WILLIE - Mas não tem vento.
TOM - Não tem não.
WILLIE - Tem sim, bobo, mas está alto demais pra gente sentir. Alto, alto, varrendo
tudo, lá no sótão do céu.
TOM - Hum, hum. E você, não está no colégio?
WILLIE - Eu não, eu larguei. Já faz dois anos que eu larguei.
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WILLIE - Mamãe fugiu com um homem que freava o trem das oito. Depois disso foi
tudo pro brejo. (UM TREM APITA LONGE.) Ouve isso? Esse é o apito do Expresso do
Sul. A coisa mais veloz que corre entre Saint Louis, Menfis e New Orleans. Meu pai bebia
muito. Era um bêbado mesmo.
TOM - Quede ele agora?
WILLIE - Sei lá, desapareceu. Acho que qualquer dia eu devia dar parte à polícia, eles
lá tem uma seção de desaparecidos. Sei porque ele deu parte quando mamãe desapareceu, aí
ficou eu e Alva. Até os pulmões de Alva ficarem doentes. Você vai ao cinema? Viu Greta
Garbo na "Dama das Camélias?" Passou aqui no ano passado na primavera. Ela tinha a
mesma coisa que Alva teve, doença do pulmão.
TOM - É?
WILLIE - Só que com ela, a Greta Garbo, foi mais bonito. Você sabe como é no
cinema, violinos tocando. E montes e montes de flores brancas e os namorados todos
voltando pra ver ela morrer.
TOM - Eu não vi.
WILLIE - Os de Alva sumiram todos, não apareceu um.
TOM - Foi, é?
WILLIE - Como ratos que abandonam um navio naufragando! Assim é que ela falava.
Perguntava: Cadê o Alberto? Cadê o Clemente? Mas não tinha ninguém por perto. "Onde é
que está o Johnson", ela me perguntou. O Johnson era o superintendente do almoxarifado
da ferroviária, o cara mais importante que já tinha ido lá em casa. "Ele não trabalha mais
aqui. Foi transferido de cidade, eu dizia. Mas deixou lembranças". Mas ela sabia que eu
estava mentindo. "Assim é que eles me pagam", ela dizia; "Ratos!" Fugiram todos, menos o
Sidney.
TOM - Quem era o Sidney?
WILLIE - Aquele das caixas de bombom.
TOM - Ah.
WILLIE - Mas Alva não ligou nunca pro Sidney. Ela dizia que os dentes dele não eram
bons.
TOM - Ah.
WILLIE - Não foi uma morte como nos filmes, ah, não foi não. Não teve violinos. Não
teve nem vitrola! Ela pediu, mas o hospital não deixou, era contra os regulamentos. Ela
gostava muito de cantar.
TOM - Alva?
WILLIE - Sabia todas as letras. A favorita dela era assim: (CANTA).
All my tomorrows depend on your love
So wish me a rainbow and wish me the stars
Só que eu desafino, eu sou horrorosa, quando eu cantava Alva me mandava calar a boca.
Mas ela não, ela cantava àbeça, a noite toda. Essas roupas eram dela. Herdei. Tudo de Alva
agora é meu. Menos o colar de bolinhas de ouro puro.
TOM - Aconteceu o que com ele?
WILLIE - O colar? Ela nunca tirou.
TOM - Ah!
WILLIE - E eu herdei também todos os namorados dela. Alberto, Clemente e até o
superintendente do almoxarifado. No início eles sumiram todos. Acho que ficaram com
medo de ter de pagar alguma despesa, ou coisa assim. Mas, de uns tempos para cá
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voltaram. Igual andorinhas. Levam-me para sair de noite. Agora eu sou popular: vou a
todas as festas da ferroviária. Olha aqui!
TOM - O quê?
WILLIE - Como eu danço bem. Eu sei mexer minhas cadeiras. (E MEXE).
TOM - (NUM RASGO DE CORAGEM.) Frank Waters disse que...
WILLIE - O que ele disse?
TOM - Você sabe.
WILLIE - Sei o quê?
TOM - Que você o trouxe aqui para dentro... E dançou pra ele sem roupa.
WILLIE - Ah, isso. Minha boneca maluca está precisando lavar a cabeça. Eu fico com
medo de lavar, com medo que a cabeleira descole, que a cabeça ta meio rachada, você viu.
Os miolos dela devem ter saído todos. Ela anda completamente boboca depois que rachou.
Anda dizendo e fazendo coisas horrorosas. Preciso colar ela.
TOM - Por que você não faz a mesma coisa comigo?
WILLIE - Colar tua cabeça?
TOM - Mesma coisa que você fez com Frank Waters.
WILLIE - Porque naquele dia eu estava me sentindo muito sozinha e hoje não estou. E
você pode dizer isso pro Frank Waters, se você quiser. Diz a ele que eu herdei todos os
namorados de minha irmã. Agora eu saio com homens adultos, homens que têm empregos
importantes. O céu está mesmo branco. Como uma folha de papel. No quinto ano Miss.
Preston dava pra gente folhas de papel em branco e deixava desenhar o que a gente
quisesse. Eu desenhei meu pai bebendo numa garrafa. Ela achou bom e falou: "Olha aqui,
um retrato do Carlitos com o chapéu do lado da cabeça". Aí eu disse: "Não é Carlitos, é
meu pai, e não é chapéu, é uma garrafa". Todo mundo riu muito.
TOM - E Miss, Preston.
WILLIE - Ninguém consegue fazer uma professora rir. E você não meta idéias na
cabeça. Quando passar por aqui grite que se eu estiver apareço na porta, você é um bom
menino. Quer dizer, não sei quanto tempo eu vou morar lá: a propriedade está condenada,
apesar de não ter nada de errado com ela. Um cara do governo ficou rondando anteontem.
Eu reconheci logo, pelo tipo de chapéu.
TOM - E você fez o quê?
WILLIE - Me escondi, ele foi embora. Você dá um recado a Frank Waters que eu
mandar?
TOM - Dou.
WILLIE - Diz a ele que eu fui dançar no Cassino Moon Lake. E que cheguei em casa
bêbada, de manhã! Que lá teve música com todo tipo de instrumento, até trombone e
trompetes, E guitarras havaianas. E que eles tocaram até a música de Alva.
TOM - Está bem. Eu digo.
WILLIE - E agora eu vou voltar.
TOM - Pra onde, Willie?
WILLIE - Pro tanque d'água. Começar tudo de novo. Vai ver qualquer dia eu quebro
um recorde, Alva uma vez quebrou um, numa maratona de Dança em Meville. E eu
atravessando a linha do trem, Alabama. E diz ao Frank que agora não tenho mais tempo pra
garotos da idade dele.
TOM - Eu estou aqui pensando...
WILLIE - O quê?
TOM - Se tudo isso é verdade mesmo ou se você está inventando um bocado.
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WILLIE - Não estou inventando nada não, seu bobo. Nem contei tudo. Eu podia
provar, mas não vale a pena. Tchau. (E VAI, EQUILIBRANDO-SE NOS TRILHOS).
LADY VASELINA
PERSONAGENS:
SRTA. HARDWICKE-MOORE
SRA. WIRE
ESCRITOR
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que tiveram à meia-noite! Vaselina... Para as cutículas? Está pensando que sou boba, é?
Plantação de borracha! Essa, também... (A PORTA SE ABRE. O ESCRITOR ENTRA
VESTIDO COM UM ROBE-DE-CHAMBRE DE COR PÚRPURO, JÁ VELHO).
ESCRITOR - Pare!
WIRE - Ah, é você?
ESCRITOR - Pare de atormentar esta mulher!
WIRE - Entrou em cena o segundo Senhor Shakespeare.
ESCRITOR - As drogas dos seus gritos atormentam meu sono!
WIRE - Sono? Você quer dizer, entorpecimento causado pela bebida!
ESCRITOR - Eu tenho necessidade de descansar, por causa da minha doença! Será que
não tenho direito de...
WIRE - (INTERROMPENDO.) Doença... Alcoolismo! Não queira me enganar.
Estou contente por ter vindo. Vou repetir agora, pra seu governo, o que já disse a esta
senhorita Estou cheia de parasitas! Ficou bem claro agora? Estou pelas tampas com todos
vocês: ratos de pensão, mestiços, ébrios e degenerados que tentam enganar todo mundo
com mentiras, promessas e desilusões.
MOORE - (TAMPANDO OS OUVIDOS.) Oh, por favor, por favor, por favor, parem
de gritar! Não há necessidade!
WIRE - (PARA A SENHORITA HARDWICKE-MOORE.) A senhorita, com sua
plantação de borracha no Brasil. Aquele brasão na parede que comprou no ferro-velho... A
vendedora me contou tudo! Uma das Hapsburgs! Sim! Uma verdadeira lady! Lady
Vaselina! Este é o seu título! (A SENHORITA HARDWICKE-MOORE CHORA
DESCONTROLADAMENTE E SE JOGA DE BRUÇOS SOBRE A CAMA).
ESCRITOR - (COM PENA.) Pare de importunar esta pobre mulher! Será que não existe
mais compaixão no mundo? O que aconteceu, não há mais compreensão? Acabou-se tudo?
Onde está Deus? Onde está Jesus Cristo? (ELE SE APOIA TRÊMULO NO ARMÁRIO.) E
se não existir nenhuma plantação de borracha no Brasil?
MOORE - (SENTA-SE ERETA, MUITO EMOCIONADA.) Eu digo que existe, existe
sim (SEU PESCOÇO ESTÁ RETESADO E SUA CABEÇA CAÍDA PARA TRÁS).
ESCRITOR - E daí se não existir nenhum rei da borracha em sua vida? Mas tem que ter
um rei da borracha em sua vida? Devemos culpá-la pelo simples fato dela ter necessidade
de compensar as deficiências da realidade exercitando em pouco... Como devo dizer? Um
pouco da sua bem dotada imaginação?
MOORE - (JOGANDO-SE NOVAMENTE DE BRUÇO NA CAMA.) Não, não, não,
não é... Imaginação!
WIRE - Vou lhe pedir, por favor, pare de jogar na minha cara estas frases empoladas!
O senhor, com sua obra-prima de 780 páginas... Faz boa dupla com a Lady Vaselina,
levando-se em conta tão bem dotada imaginação.
ESCRITOR - (COM VOZ CANSADA.) Ora, ora, muito bem, e se isto que disse for
verdade? Suponhamos que não haja nenhuma obra-prima de 780 páginas. (FECHA OS
OLHOS E PASSA A MÃO PELO ROSTO.) Suponhamos que não haja mesmo nenhuma
obra. E que tem isso, Senhora Wire? Somente poucos muito poucos... Rabiscos sem valor...
No fundo da minha canastra... Suponha que eu tenha querido ser um artista, mas me
faltaram à força e o poder de tal! Suponhamos que meus livros não tenham alcançado seus
objetivos no capítulo final e que meus versos sejam enfadonhos e incompletos! Suponha
que as cortinas da minha fantasia mais sublime subam e mostrem dramas maravilhosos...
Mas que as luzes se apaguem antes do pano cair! Suponha que todas estas coisas
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lamentáveis sejam verdades? E suponha que eu... Errando de bar em bar, bebendo um
drinque após outro acabe me estabelecendo no colchão empestado de “chatos” deste
bordel... Suponha que eu tenha que tornar este pesadelo suportável... Suponha que eu
ornamente, ilumine... Glorifique tudo! Com sonhos, ficções e fantasias! Assim como a
existência de uma obra-prima de 780 páginas... Pronta para ser produzida pela Broadway...
E de maravilhosos volumes de poesias nas mãos dos editores, esperando apenas por uma
assinatura para serem liberados! Suponha que eu viva neste lamentável mundo de ficção!
Qual a sua satisfação, boa mulher, de dilacerar tudo... De aniquilar... De dizer que é
mentira? Vou lhe dizer uma coisa, agora ouça! Não existem mentiras, a não ser aquelas que
são atochadas em nossas bocas pelos punhos da miséria e da necessidade Senhora Wire!
Sim, então eu sou um mentiroso! Mas seu mundo é uma hedionda fábrica de mentiras!
Mentiras! Mentiras! Agora estou cansado. Disse o que tinha de ser dito e não tenho
dinheiro para lhe dar, logo suma e deixe esta mulher em paz! Deixa-a sozinha. Vamos, saia!
Vá embora! (ELE A CONDUZ FIRMEMENTE PARA FORA).
WIRE - (GRITANDO DO LADO DE FORA.) Amanhã pela manhã! Ou recebo meu
dinheiro, ou rua! Vocês dois. Os dois juntos! Obra-prima de 780 páginas e plantação de
borracha no Brasil! Lorotas! (DEVAGAR O ESCRITOR E A MULHER VIRAM-SE E SE
ENTREOLHAM, A LUZ DO DIA SE ESMAECE NO CÉU. O ESCRITOR ESTENDE
SEUS BRAÇOS NUM GESTO DE AJUDA, VAGAROSAMENTE E COM FIRMEZA).
MOORE - (DESVIANDO O OLHAR.) Baratas! Por toda parte! Nas paredes, no teto,
no chão! O lugar está cheio delas.
ESCRITOR - (GENTILMENTE.) Eu sei. Acredito que não haja baratas na sua plantação
de borracha.
MOORE - (AFETUOSAMENTE.) Não, claro que não. Tudo sempre esteve
impecável... Sempre. Impecável! O piso era tão claro e limpo, que brilhava como...
Espelho!
ESCRITOR - Eu sei. E as janelas... Com certeza mostravam uma vista maravilhosa!
MOORE - Indiscutivelmente maravilhosa!
ESCRITOR - A que distância fica do Mediterrâneo?
MOORE - (CONFUSA.) Do Mediterrâneo? Ora, somente uma ou duas milhas!
ESCRITOR - Eu ousaria dizer que, numa manhã clara e límpida, seria possível se ver os
cumes brancos de Dove?... Do outro lado do canal?
MOORE - Sim... Quando a atmosfera está limpa (SILENCIOSAMENTE O ESCRITOR
LHE DÁ UMA GARRAFA DE UÍSQUE.) Obrigada... Senhor... Qual seu nome?
ESCRITOR - Tchekhov! Anton Pavlovitch Tchekhov!
MOORE - (SORRINDO, COQUETE.) Obrigada, Senhor Tchekhov.
ESCRITOR - E o seu nome senhorita?
MOORE - (CONFUSA.) Meu nome... Meu nome, bem?!? (DEPOIS DE UMA
PEQUENA PAUSA.) Meu nome é Jezebel!
ESCRITOR - Enchantée. Mademoiselle Jezebel.
MOORE - O senhor é muito gentil.
PERSONAGENS:
BERTHA
GOLDIE
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LENA
UMA MOÇA
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