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Filologia Românica

José Raimundo Galvão

São Cristóvão/SE
2009
Filologia Românica
Elaboração de Conteúdo
José Raimundo Galvão

Projeto Gráfico e Capa


Hermeson Alves de Menezes

Diagramação
Lucílio do Nascimento Freitas
Neverton Correia da Silva
Nycolas Menezes Melo

Reimpressão

Copyright © 2009, Universidade Federal de Sergipe / CESAD.


Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e grava-
da por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a
prévia autorização por escrito da UFS.

FICHA CATALOGRÁFICA PRODUZIDA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Galvão, José Raimundo.


G182f Filologia Românica / José Raimundo Galvão -- São
Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, CESAD,
2009.

1. Filologia. 2. Português. 3. Língua Portuguesa I. Título.

CDU 801
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Sumário
AULA 1
Noções básicas de Filologia ............................................................. 07

AULA 2
Filologia Românica ........................................................................... 19

AULA 3
Método em Filologia Românica I: o método histórico-comparativo .... 31

AULA 4
Método em Filologia Românica II: o método idealista ....................... 41

AULA 5
Origem das línguas românicas ......................................................... 53

AULA 6
Fatores da romanização ................................................................... 67

AULA 7
O latim e suas evoluções .................................................................. 79

AULA 8
O latim, o cristianismo e as línguas românicas ................................ 93

AULA 9
Línguas românicas na atualidade .................................................... 105

AULA 10
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias ....................................... 117
Aula

NOÇÕES BÁSICAS DE FILOLOGIA


1
META
Compreender a ciência filológica como ponto de partida para os estudos da lingüística
românica.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
definir a filologia no contexto dos discursos produzidos pelo ser humano;
reconhecer a correlação entre filologia e lingüística;
discutir as principais teorias em que se baseia a ciência filológica;
conhecer o percurso histórico em que a ciência filológica vai-se definindo.

PRERREQUISITOS
Os prerrequisitos desta aula referem-se à compreensão da terminologia que serve de base à
ciência filológica.
Muitas dessas expressões se fundamentam na língua grega e já fazem parte de um contexto
em que são empregadas para fazer referência a conceitos específicos.
O certo conhecimento da língua latina vai sendo aos poucos necessário sobretudo a fim de bem
compreender o processo pelo qual a língua falada em Roma é levada juntos com os conquistadores
nas suas expedições que resultaram na conquista de territórios longínquos e deram origem aos
idiomas atualmente denominados de neolatinos, novilatinos, romances ou romanços.
Tal conhecimento diz respeito ao latim básico que lida com elementos estruturais da língua e as
transformações que sofreram – de ordem gráfica, fonética, sintática e semântica – no contato
com as línguas dos povos conquistados.
A filologia requer que se faça um percurso por elementos da história geral, das culturas diversas,
da geografia e das outras línguas sobretudo o grego e aquelas oriundas da evolução do latim.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Habitue-se a relacionar palavras e expressões que já fazem parte do


seu vocabulário aos termos ainda desconhecidos. A cada novo termo,
busque reconhecer qualquer semelhança fonética ou gráfica com algo que
já faça parte do seu saber acumulado. É este um trabalho de
interdisciplinaridade e relações conceituais. Aos poucos você vai percebendo
como as palavras se relacionam quando possuem elementos sonoros e
gráficos que se parecem e vai ainda perceber como muitas bases do saber
guardam elementos comuns que já entraram na constituição de outras
palavras, remetendo ao mesmo significado. Tal procedimento, além de
ampliar as perspectivas do léxico intensificando o conhecimento da pró-
pria língua, vai ser bastante útil no exercício da filologia românica, fazen-
do ver a proximidade entre as línguas que guardam uma origem comum.
Desta maneira, para exercitar o processo de associação entre pala-
vras, comece com a palavra FILOLOGIA. Tente compreender este ter-
mo a partir de elementos fonéticos e gráficos que você já viu em outras
palavras: FIL(OS) (fil) + LOG(IA) (log). Daí em diante, procure perce-
ber as associações de significado entre as palavras, observando, primeira-
mente, a incidência do elemento FILOS (fil) = amigo, amante: FILosofia,
FILantropia, pedoFILia etc. Em seguida, continue o exercício associando
termos da mesma ordem de LOGIA (log) = palavra, estudo, conhecimento, e
encontrará palavras como socioLOGia, psicoLOGia, LOGoterapia,
LOGística etc.
Agora já é possível compreender que a FILoLOGia é a ciência que
estabelece amizade (fil) com a palavra (log) e, assim sendo, o FILóLOGo
é, por excelência, aquele que procura aproximar-se das palavras, conhecê-
las, explicá-las fazendo desse procedimento uma verdadeira ciência com
seus objetivos, problemas, métodos, discursos etc. Como ciência, tam-
bém abriga uma série de teorias às quais estão ligados estudiosos e espe-
cialistas que apresentam suas propostas e descobertas.
Os segredos da língua sempre foram objeto de muita curiosidade e
este curso abrande, ao mesmo tempo, uma proposta de análise e crítica
textual, buscando no elemento histórico e literário a compreensão dos
pormenores que fazem de cada nova língua oriunda do latim vulgar uma
estrutura individual recheada de características próprias.

8
Noções básicas de Filologia
Aula

Existe uma certa diversidade na conceituação de Filologia e o seu


verbo correspondente Filologar e isso atinge sobretudo a determinação de
1
seu campo de atuação e até o seu objeto de estudo.
A terminologia específica, como se frisou acima, remete aos legados da
língua grega. Platão e Aristóteles já se referem ao filólogo, cuja configuração
etimológica de amigo da palavra também se observa na filosofia dos estóicos.
O grego concebe o logos como sendo a palavra, a expressão
exteriorizada do nous, isto é, da inteligência.
Manifestação bastante apropriada do logos encontra-se no prólogo do
evangelho de João, texto considerado não apenas por sua importância
religiosa, mas igualmente filosófica, sendo, por isso, apontado como um
dos textos mais belos da literatura universal:
No princípio era o logos e o logos estava junto a Deus e Deus era o logos.
(Complete a leitura substituindo os termos verbo ou palavra, geral-
mente usados nas traduções, pelo termo logos. Isso lhe dará maior pro-
fundidade na compreensão do texto – João 1, 1- 14).
Sabe-se que, pelo menos até o século V a. C., não sendo ainda muito
comum o uso da escrita, a palavra (logos) possuía uma feição eminente-
mente ligada à oralidade e, em decorrência disso, o filólogo fazia pensar
no bom falante ou ouvinte. A divulgação progressiva da escrita, porém,
vai dar ao termo filólogo a conotação de amigo da palavra falada, ouvida ou
escrita, ampliando-se para designar os que fazem bom uso da leitura e da
escrita. A idéia que se vai firmando é de refinamento intelectual, de co-
nhecimentos amplos e específicos no terreno da linguagem, tendo, para
tanto, a necessidade do domínio de cultura geral.
Existe, no entanto, um percurso longo até que o termo se afirme na
acepção com que é usado na atualidade dos estudos lingüísticos. Este
percurso, porém, conhece pequenas sutilezas de significado que não che-
gam a atingir a essência da compreensão do fenômeno, porquanto as no-
ções de filos (amigo) e logos (palavra) raramente se ausentam dos termos
que vão sendo usados:
Polylogos = o que fala muito.
Braquílogos = o que fala pouco, de maneira concisa.
Philologotera = obras literalmente bem cuidadas.
Philologein = discursar, dissertar com conhecimento.
Logophilos = em sentido pejorativo, o que diz verborréias.
Philolalos = também de sentido pejorativo, o que fala por falar.
Alguns chegaram a confundir o filólogo com o gramático, mas uma dis-
tinção se impõe ao se ligar o gramático com a preocupação pelas regras
do bom falar e não necessariamente com a pesquisa sobre os fatos da
língua, sua evolução, sua história, sua relação com outros falares.
Uma preocupação de influência cristã vai insistir nas abordagens
etimológicas e sobretudo nos trabalhos de Isidoro de Sevilha (354 – 430)
e o estudo da linguagem muito tem a ver com busca incessante das raízes

9
Filologia Românica

e significados das palavras, reduzindo-se o emprego do termo filólogo no


Ocidente, a partir do século VI. A cultura greco-latina começa a ser repen-
sada no contexto cristão e uma nova mentalidade levou os estudiosos a
uma visão de mundo em que se priorizavam os interesses do cristianismo e
os textos clássicos eram copiados com finalidades didáticas para servirem
de modelos estilísticos a serviço de um público bastante reduzido.
Sabe-se que, no século VIII, muitos membros do clero usavam um
latim deturpado ao qual a Igreja teve que dobrar-se no uso corrente da
língua nos atos litúrgicos. Priorizavam-se, então, os falares das regiões
dominadas pelos romanos, na preocupação de fazer chegar a mensagem
do evangelho da forma mais acessível e todo e qualquer fiel. Aqui reside
um paradoxo: a Igreja, que, até o século XX, tanto contribuiu para a valo-
rização e a manutenção do latim é também a grande incentivadora dos
falares românicos, constatando a eficácia da transmissão da mensagem
na língua em que melhor fosse entendida.
Até houve, sob Carlos Magno (768 – 814), tentativas de recuperar a
derrocada do latim ante as línguas românicas, mas isso se revelou sem
grandes resultados, pois a própria Igreja no Concílio de Tours (813) le-
vanta sua voz em favor dos falares do povo. O latim, então, vai seguir o
seu curso nos ambientes mais eruditos, nos mosteiros sobretudo, tornan-
do-se objeto de estudos refinados e para domínio de poucos embora não
tenha sido totalmente abandonado para utilização do culto e da divulga-
ção de documentos oficiais.
Humanistas e Renascentistas dos século XV e XVI retomam a filologia
na perspectiva de exploração dos textos clássicos ao lado de toda a valori-
zação da cultura greco-romana. O termo filólogo volta a indicar expoentes
intelectuais no conhecimento da língua e a novidade é o surgimento de
obras em línguas românicas e suas respectivas gramáticas. Surgem também
estudos que exploram a questão da origem das línguas, numa visão de que
o hebraico seria a língua antiga por excelência, no entanto as teorias nem
sempre se apresentam lógicas e conseqüentes, apesar de já se observarem
obras que reconhecem um certo entrelaçamento entre as línguas.
Romanos e gregos não demonstram interesses por outras línguas que
não a própria, daí a designação de bárbaros para os que se expressavam em
outros idiomas. Na Idade Média, por causa da valorização do latim, até o
grego é reduzido a segundo plano. Também por causa disso, a um certo
momento, o filólogo é praticamente o latinista com uma certa insistência
nos estudos dos textos escritos e antigos. O conhecimento de outras áre-
as do saber vai ser buscado quando o texto específico assim o exigir.
Modernamente, outras denominações apareceram: glotólogos, lingüistas, li-
teratos, gramáticos etc.
Nos séculos XVII e XVIII outros estudos lingüísticos merecem des-
taque, a exemplo da Gramática de Port Royal, abordando questões de foné-
tica, ortografia e teorias sobre a origem das línguas. Muitos dos elementos

10
Noções básicas de Filologia
Aula

considerados pela ciência lingüística na atualidade não são, de forma al-


guma, novidade para os estudos anteriores.
1
O século XIX aprofunda o conhecimento do sânscrito e suas relações
com o latim e o grego, a língua persa e a germânica vêm ser a contribuição
mais significativa para a abordagem das famílias lingüísticas, tendo a hi-
potética língua Indoeuropeia como ancestral de um grande número ou,
praticamente, de todas as línguas faladas no mundo. A grande e valiosa
observação é de que as línguas evoluem a partir de ramos mais antigos,
verdadeiras famílias que não perdem as características fonológicas, se-
mânticas, sintáticas e gráficas. Estas últimas características, quando se
modificam de uma língua à outra, obedecem, geralmente, a determinados
critérios que mantêm uma certa regularidade na variação, o que fez com
que os estudos fonéticos tivessem grande apreço, na tentativa de, por
meio deles, elucidar diferentes fenômenos de similitude entre as línguas.
Outros vários movimentos, correntes e teorias surgiram no fim do
século XIX e começo do século XX, mas elas não fazem distinção entre
filologia e lingüística. Já se inicia no século XIX o trato científico da lin-
guagem, indo, no início do século XX, ganhar mais impulso com os estu-
dos e teorias de Ferdinand de Saussure (1857 – 1913), o qual, por isso,
passa a ser reverenciado como o pai da lingüística moderna. Sua obra
póstuma, Cours de linguistique générale, foi publicada por discípulos em 1916,
com base em notas colhidas durante as aulas.
Muitas teorias modernas sobre a lingüística ainda hoje divulgadas
devem-se às observações de Saussure, para quem a filologia é a ciência
que estuda textos e tudo quanto for necessário para fazer tais textos aces-
síveis, muito embora o conhecimento filológico implique a articulação
com outras ciências, como história, geografia, epigrafia, paleografia, hermenêutica,
exegese edótica, literatura etc. Tudo isso exige do filólogo uma erudição bas-
tante vasta, ainda que o ajudem na modernidade a variedade de meios e
instrumentos técnicos.
Continua-se, porém, a falar da imprecisão da finalidade e da delimita-
ção da abrangência que sempre foram observadas durante todo o percur-
so da constituição da filologia como ciência e muitas definições ainda são
expressas sob a ótica de cada estudioso do assunto. Ao se falar, por exem-
plo, da filologia como o estudo geral das línguas, a definição, que também
permanece vaga, mais parece referir-se a uma definição de lingüística.
Igualmente impreciso e sem limites de abrangência é falar-se da filologia
como estudo de todos os discursos que os homens pronunciam ou pro-
nunciaram, ou como o estudo da língua na literatura.
Muitas definições, como se pôde perceber, continuam sem deixar cla-
reza quanto àquilo que realmente se pretende do saber e da prática
filológica. Importante é observar as diferentes abordagens e buscar uma
síntese que mostre a exclusividade desta ciência, com seus objetivos e
métodos, bem como a objetividade na seleção de seus conteúdos, justa-

11
Filologia Românica

mente para que não ocorra que se esteja invadindo o território próprio de
outras ciências, ainda que afeitas ao trato com a língua.
É preciso que fique bem claro que a filologia somente adquire status
de ciência se ela mostrar sua especificidade, sua originalidade e de que
forma pode contribuir para o conhecimento das línguas naquilo que não
repete o que as abordagens de outras ciências já vêm fazendo com serie-
dade e mediante os instrumentos com que pode trabalhar.
Em um curso de letras verdadeiramente respeitável, o estudo da
Filologia, sobretudo da Filologia Românica, no caso das culturas lingüís-
ticas oriundas do latim, merece especial destaque, pois abre perspectivas
de percepção da própria língua portuguesa e das articulações que as lín-
guas românicas estabelecem entre si, graças às marcas latinas jamais apa-
gadas e, por extensão, à contribuição do grego e de suas heranças cultu-
rais ainda tão visíveis na atualidade.

CONCLUSÃO

De tudo quanto se disse nesta aula, você pôde perceber as diferentes


abordagens para se chegar à conceituação de filologia. Na verdade, não
existe unanimidade clara na questão conceitual, mas, em princípio, as
considerações tendem a ver na ciência filológica aquilo que a própria
etimologia comporta: amizade pela palavra, pelo logos, a ciência do logos.
Como também é bastante amplo o conceito de logos, importa pensar
em comunicação, oral ou escrita, através da qual as pessoas conseguem
ler o mundo e transmitir suas impressões na forma do discurso.
Percorrendo os caminhos do tempo, foi possível observar que a pre-
ocupação com o dizer, o expressar-se é tão antiga quanto o mundo e,
fazendo história, o homem vai tecendo o fio condutor do seu próprio
estar-no-mundo.
Assim é que, num determinado momento e por exigência de toda
uma bagagem de conteúdo que se foi acumulando, a filologia assume o
status de ciência, ao lado de todos os ramos do saber que conseguiram
definir o seu problema, os seus objetivos, os seus métodos e um discurso
que lhe é pertinente.
Tudo isso vai ser tratado ao longo das deze lições que compõem o
presente curso, de fundamental importância para o estudante de Letras.
Não há como tratar seriamente a língua portuguesa desconhecendo a sua
história, os passos pelos quais foi adquirindo feições próprias a partir do
latim vulgar levado nas bagagens dos romanos – soldados, funcionários
da administração, comerciantes, aventureiros – os quais, não tendo pro-
priamente uma intenção de cunho lingüístico, acabaram por gerar uma
revolução neste domínio.

12
Noções básicas de Filologia
Aula

A compreensão da abordagem filológica é o elemento de base para


desencadear todo o processo de assimilação dos conteúdos que serão tra-
1
tados a partir de agora.
Um certo conhecimento da terminologia remete às configurações plan-
tadas no grego e no latim, daí ser necessário ir-se familiarizando e até
pesquisando mais profundamente a pertinência desses elementos de base.
Como, porém, ficou bastante acentuado ao longo das aulas de latim que
dão respaldo aos estudos da filologia românica, não será exigida uma
memorização inconseqüente, mas, pelo contrário, será incentivada uma
postura de constante pesquisa, consulta às fontes visando à construção
do saber de forma inteligente e articulada.
Vá em frente! E descubra o quanto a ciência filológica tem de fasci-
nante. Procure também executar o trabalho de um filólogo.
Claro que este curso não vai garantir uma formação nesta área, mas é
possível que desperte o filólogo que existe dentro de você. Não custa
tentar, mas é preciso ter amor e dedicação ao trabalho que esta disciplina
exige de você.

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Filologia Românica

RESUMO

A filologia é a ciência que trata do logos, da palavra como elemento


básico da comunicação humana. A forma atual deste termo e de da do
termo Este conceito chegou até nós pela cultura grega, fundamentando
todas as abordagens sobre a matéria mediante a compreensão segura dos
termos que o identificam. Esta base terminológica, não só neste momen-
to, mas também em outros instantes deste curso vai ser evocada visando
à conceitualização a partir da qual os conteúdos se firmam.
Importa também revisar as sutilezas de percepção com que se desen-
volvem as teorias em diferentes épocas da história da linguagem; sempre,
porém, remetendo a um pano de fundo que é característico de qualquer
definição do que seja a filologia: a amizade (philos) com a palavra (logos). O
que diferencia - falando em linguagem bastante simples – é a profundida-
de desta amizade (o grau mais ou menos intenso desta relação com a
palavra: uns conhecem mais; outros, menos).
Muitas vezes, o recurso aos textos torna-se indispensável para o
aprofundamento dos conteúdos e esta busca pelos documentos é muito
própria do método histórico-comparativo, que vai ser explanado nas pró-
ximas aulas, sobretudo quando se quer perceber as marcas da evolução
do latim vulgar em contato com cada região e o seu falar original, antes da
chegada dos romanos.
Enfim, após estudar filologia, embora no espaço reduzido de vinte
lições, a sua percepção do mundo das letras terá sido ampliada, reconhe-
cendo você mesmo que o título de filólogo não convém apenas a especi-
alistas. Afinal de contas, a amizade é uma coisa tão simples, faz tanto bem
que vale a pena tentar, ainda que seja com a palavra, aparentemente con-
siderada coisa morta e, no entanto, ela move o mundo.
O francês denomina a palavra de mot, em português se pede um
mote. Em ambas as designações encontra-se a raiz latina mot, de onde
surgiram os termos motor, motim, motivo, emotivo, moção ao emoção
e vai por aí a viagem com uma única mot ivação. Afinal é ou não é a
palavra que move, que movimenta o mundo?
Imagine você aprofundando este tipo de conhecimento, despertando
para coisas que você já sabe, mas nunca lhe disseram que assim o era?
Algumas palavras resumem tudo quanto você precisa para ter suces-
so nos estudos filológicos: CONSULTA, INTERDISCIPLINARIDE,
DISCUSSÃO COM OUTROS PROFESSORES E COLEGAS. O que
menos você vai usar é a DECOREBA, a MEMORIZAÇÃO INCONSE-
QÜENTE, a REPETIÇÃO IPSIS LITTERIS DOS CONTEÚDOS
ABORDADOS.
É claro que existe algo de fixo (ou melhor, relativamente fixo) que
compõe o lastro conceitual de qualquer disciplina; mas, ao lado disso,
existe o poder da percepção, da comparação, da capacidade de realizar

14
Noções básicas de Filologia
Aula

novas descobertas, propor novas teorias. A coisa mais observada e mais


lamentável nos manuais de filologia românica é, certamente, a intensida-
1
de com que os exemplos se repetem de autor para autor, incutindo no
leitor, no aluno a impressão de que tais ilustrações são únicas.
Desde o início dos estudos filológicos, reaja contra isso, aprenda a
buscar seus próprios exemplos e reconhecer como é vasto o número das
ocorrências. Tudo isso, porém, só será possível com o recurso às ciências
afins e, como não poderia deixar de ser, com o valioso auxílio do latim, do
grego e das outras línguas, as românicas, especialmente.
A filologia é tudo isso e muito mais. Acredite que você já é um filólogo
em potencial.
PROSSIGA! ACREDITE! INVISTA!

ATIVIDADES

As questões para avaliação desta aula são muito mais de ordem subjetiva,
haja vista a necessidade de reflexão e assimilação dos conceitos que este
tipo de conteúdo requer.
Fique sempre atento a que você pode realizar as avaliações consultando
os módulos, não só os desta disciplina, mas, igualmente, os de Funda-
mentos da Língua Latina, pois muitos conteúdos de Filologia vão reque-
rer que se retomem os conhecimentos do latim e até mesmo de outras
áreas do saber humano: história, geografia, língua grega, línguas latinas
modernas, cultura geral, filosofia, religião, edótica, exegese etc.

a) Recorrendo à explanação acima, realize uma listagem de todas as bases


conceituais usadas para definir o termo FILOLOGIA, bem como outras
terminologias que se incluem na ciência filológica. Destaque as seme-
lhanças e diferenças desses conceitos entre si.
b) Faça uma síntese do percurso dos estudos filológicos ao longo dos tem-
pos, reconhecendo a maior ou menor intensidade no trato dessa ciência.
c) A Igreja é a grande responsável pela manutenção do latim e da cultura
românica até o século XX. Mas a Igreja também contribuiu para o pro-
gresso das línguas românicas. COMENTE ESSAS AFIRMAÇÕES.

15
Filologia Românica

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

As questões acima avaliam a percepção que você, caro aluno, pôde


demonstrar depois de ter lido e relido os conteúdos expostos.
O grau de percepção que você demonstra é um forte elemento para
você mesmo, enquanto aluno de um curso universitário a distância,
avaliar o seu envolvimento no processo aliado à capacidade de estudar
sozinho e tirar suas próprias conclusões. As respostas para as questões
propostas estão espalhadas por toda a explanação do conteúdo. Aqui
se pede, tão somente, é a realização de um trabalho de síntese,
compilação, comparação, uma espécie de exercício menor de tudo
quanto você vai precisar fazer ao logo das aulas, haja vista ser
altamente investigativa a postura da ciência filológica.

BOA SORTE!

O mecanismo de avaliação desta disciplina sugere a construção


progressiva de um glossário, que vai formando a partir do conteúdo
de cada aula, pois novos termos estarão surgindo, sendo indispensável
associá-los entre si e organizá-los em ordem alfabética até o conteúdo
da última aula. ESTA COMPILAÇÃO SERÁ COBRADA DE
CADA ALUNO COMO CONCLUSÃO PARA UMA AVALIAÇÃO
FINAL NA DISCIPLINA.
A marca deste trabalho final será o originalidade que cada aluno
conseguiu imprimir ao seu trabalho como fruto de sucessivas
pesquisas e assimilação dos conteúdos apresentados ao longo das
lições. NÃO, PORTANTO, COMO TER NO FINAL UM
TRABALHO IGUAL AO OUTRO.
INICIANDO ESTE TRABALHO, componha você mesmo o
glossário que o conteúdo desta aula sugere. Muitas palavras aqui
colocadas serão pura seleção dos termos usados na exposição teórica.
ACREDITE QUE VOCÊ JÁ É UM FILÓLOGO EM
POTENCIAL! SUCESSO!
PALAVRAS SUGERIDAS:
Filologia / Filólogo / Logos / Epigrafia / Paleografia / Hermenêutica
/ Exegese / Edótica ou Ecdótica / Polilogia / Braquilogia / Logófilo.

16
Noções básicas de Filologia
Aula

REFERÊNCIAS 1
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à lingüística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de lingüística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

17
Aula

FILOLOGIA ROMÂNICA
2
META
Compreender a filologia românica no âmbito geral dos estudos filológicos e nas
particularidades que lhe são próprias.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
definir a filologia românica no contexto dos discursos filológicos;
reconhecer a correlação entre a filologia românica e a linguística em geral;
discutir as principais teorias que sevem de base para os estudos da filologia românica;
conhecer o percurso histórico em que a filologia românica se definiu ao longo dos tempos;
situar a língua portuguesa no contexto das outras línguas românicas.

PRERREQUISITOS
A compreensão do fenômeno linguístico é o primeiro pré-requisito desta aula, daí ser
necessário retomar, reler, revisar tudo quanto se disse na aula anterior.
Por fazer referência especificamente à filologia românica, esta aula também requer um vasto
conhecimento da cultura romana, ou melhor, greco-romana, na qual a língua latina e a língua
grega tornam-se elementos indispensáveis para o bom conhecimento do ponto aqui abordado.
É Aqui não se trata, é claro, de um conhecimento seguro dessas duas línguas, mas algo que
sirva de base não só para assimilar conceitos, mas também para perceber o processo de
variação ocorrido dentro do próprio latim.
Outro requisito básico diz respeito ao domínio de elementos básicos da cultura greco-latina e da
cultura geral, aliado às abordagens de cunho histórico, geográfico, político, social, religioso e
econômico, a fim de bem perceber o que se encontra nas entrelinhas do processo de domínio e
colonização que Roma exerceu sobre os povos mais fracos.
Leia, portanto, com muito cuidado, a aula anterior. Faça também uma séria revisão dos
elementos sócio-culturais condutores de todo o processo de domínio e civilização.
latim. Nada, porém, que espante; pelo contrário, prepare-se para viver agradáveis surpresas e
realizar viagens por demais interessantes.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Algo bastante constrangedor ainda prejudica o desenvolvimento das


nações menos importantes, menos poderosas. Trata-se, certamente, da
concepção de cultura, levando muitos povos a se sentirem inferiorizados,
olhando a cultura alheia como algo superior, refinado, de maior valor,
tanto se disse da cultura europeia, tratada até como algo de direito divino.
Tal postura vem de longas datas, por isso os romanos se achavam no
direito de chamar de bárbaros aos povos que não falassem a língua latina.
Até hoje, as nossas gramáticas denominam de barbarismo o costume de in-
troduzir elementos de outras línguas no discurso corriqueiro dos falantes,
sobretudo quando se possui uma denominação correspondente na própria
língua. Vem de longe, portanto, o preconceito das línguas consideradas no-
bres contra as outras tratadas como vulgares, ou seja, do vulgo, do povo,
geralmente constituído de pessoas economicamente mais pobres.
Note-se que o preconceito linguístico está muito associado à condi-
ção econômica de cada falante, mas também já esteve e ainda está ligado
à xenofobia. O preconceito é tão forte que certos termos relacionados a
este fenômeno (bárbaro, brabo, brabeza) se mostram pejorativos. Os ju-
deus, durante muito tempo de sua história, falavam dos gentios, para de-
signar os povos de outra religião, sobretudo os incircuncisos.
Em muitos meios católicos, o termo pagão ainda se refere ao não
batizado, numa alusão velada ao camponês, ao homem rude (em oposi-
ção velada ao erudito, e(x)+rude).
Perceba, você, então, que o preconceito linguístico de que hoje tanto
se fala possui outras formas de apresentar-se e muitas delas provêm de
longas datas.
Os romanos acharam de conquistar os povos bárbaros e conseguiram
estender o seu domínio a lugares bem distantes. Levavam com eles a lín-
gua latina e, mesmo que os objetivos das conquistas fossem de ordem
econômica, política, administrativa e territorial, o latim acabou sendo le-
vado junto com os conquistadores. Em contatos com novos falares, o
latim aqui em pauta era o latim vulgar, falado pelo povo, sobretudo pela
população do campo. Era, portanto, já bastante diferenciado do latim
clássico, escrito e documentado, dos oradores, escritores, e dos habitan-
tes das cidades. Este latim não se desloca tanto como se deu com a ver-
tente popular.
Do contato que o latim teve com os falares dos povos desconheci-
dos, vai surgir uma terceira língua, que já não é mais o puro latim nem
tampouco o falar específico de cada região.
O nosso objeto de estudo é, pois, a Filologia Românica, ou seja, o
processo e as caracterizações das mudanças sofridas pelo latim nestes
contatos de língua e o que se foi tornando com o passar do tempo.

20
Filologia Românica
Aula

Depois de ter visto na primeira aula a Filologia de modo geral, agora


você vai conhecer o que seja a Filologia Românica. Na verdade, esta aula
2
é um ampliação da anterior, mas atem-se a uma filologia bem caracterís-
tica: a filologia românica, aquela que se limita ao conhecimento da evolu-
ção do latim e suas marcas atuais no terreno das línguas novilatinas.
Tenha certeza de que o estudo é muitíssimo interessante. BOA SORTE!

FILOLOGIA ROMÂNICA

Para realizar estudos filológicos, pode-se tomar uma determinada fa-


mília linguística e aplicar a ela todos os princípios válidos para os estudos
da filologia em geral. Assim, você vai ouvir falar de filologia grega,
germânica, eslava, das línguas árabes etc. conforme seja direcionada a
atenção para uma dessas famílias especificamente.
O estudo aqui proposto é de FILOLOGIA ROMÂNICA e, neste
sentido, estaremos interessados em conhecer a filologia das línguas oriun-
das do latim e suas respectivas literaturas de qualquer espécie, desde as
origens até os dias atuais.
Estas línguas também possuem outras denominações: Romances,
Romanços, Neolatinas e Novilatinas e entre entre elas se situa o nosso portu-
guês. Procuraremos conhecer o percurso do latim até às formas atuais,
bem como faremos um estudo comparativo dessas línguas entre si, reco-
nhecendo diferenças e semelhanças no processo de variação. Tais varia-
ções ocorrem muito mais no plano fonético, mas também atingem os as-
pectos gráficos, sintáticos e semânticos, caracterizando o surgimento de
novos idiomas.
Importa, logo de início, captar com muita segurança as verdadeiras
acepções do termo ROMANCE. O senso comum possui desta palavra
uma noção unicamente associada a obras literárias. Até a maioria dos
estudantes de Letras vai demonstrar sua compreensão de Romance como
composição literária tratando de amor, paixão, ódio, ciúme, traição. As-
sim, se fala que o Cortiço, de Aluízio Azevedo; Iracema, de José de
Alencar; Dom Casmurro, de Machado de Assis são exemplos de obras
românticas.
É bom que se distingam bem os dois conceitos:
ROMANCE, qualquer que seja a ótica em que é considerado, tem a
sua origem ligada à palavra ROMA, mas uma coisa é o ROMANCE
ROMÂNTICO e outra coisa é o ROMANCE ROMÂNICO.
No primeiro caso, trata-se do conceito assimilado pelo senso comum,
quer dizer, as obras de cunho amoroso e sentimental. No segundo caso,
estão todas as línguas oriundas do latim. Assim sendo, o português, o
francês, o espanhol, o romeno são ROMANCES ou ROMANÇOS como
também se usa falar.

21
Filologia Românica

Inicialmente, a denominação ROMANI era reservada aos habitantes


de Roma, enquanto o termo LATINI designava os habitantes do LATIUM,
território do mesmo nome, mas constituído de diferentes etnias, que se
foram agrupando em comunidades maiores (Séc. VI-IV a. C.), ligadas,
muitas vezes, por motivos de ordem religiosa. Quando, posteriormente,
(a partir do século III a.C.) Roma vai-se impondo aos outros povos, os
conceitos tornam-se mais distintos.
Romanus tinha, originariamente, um conteúdo étnico e político, como
se pode ver nas expressões Civis Romanus e Populus Romanus. Depois, com
a expansão do Império, o direito civil manteve em evidência o significado
político de Romano.
No ano de 212 de nossa era, o Edito de Caracala concede o direito de
cidadania romana a todos os habitantes livres do Império. Assim, todos
passaram a ser chamados Romanos e o termo adquire um conteúdo coleti-
vo, passando a designar os povos mais diversos desde que estivessem sob
o domínio do poder de Roma.
Como já se frisou, os conquistadores romanos não tinham objetivos
linguísticos. Os romanos não saíam de sua pátria com a finalidade de
ensinar a língua latina pelo mundo conquistado. O latim, como já se ob-
servou, seguia na bagagem dos conquistadores, geralmente soldados, co-
merciantes, funcionários da administração, aventureiros, todos eles, cada
qual a seu modo, interessados em conquistar, avançar em territórios alhei-
os, saquear, subjugar, revelando concretamente o poder militar de Roma.
Por isso, já se disse que o latim acompanha a romanização e do fato da
expansão do poderio militar nasceu o termo România, tal como se fala de
Britânia, Germânia, Ibéria, Gália etc, numa referência à dominação territorial
exercida por outros povos.
Na verdade, o termo România designa o conjunto de regiões onde se
falou o latim e, posteriormente, os territórios onde se fala uma língua
românica. Esta nova designação, aparecida já no século V, vai substituin-
do as antigas denominações Imperium Romanum e Orbis Romanus.
Finalmente, após a queda do Império Romano do Ocidente, os termos
Romanus e Romania vão ficando restritos semanticamente ao campo linguístico
e cultural. Romani vai designar os que falavam uma língua derivada do latim.
Sabe-se que o Concílio de Tours (813) representa o grande marco no
impulso das línguas românica quando o artigo 17 dos Cânones deste sínodo,
além de registrar o aparecimento da expressão Romana Língua, ordena aos
pregadores e bispos que façam uso desses falares do povo em suas homilias
e traduzam as mensagens para que todos as possam entender:
Visum est unanimitati nostrae ut quilibet episcopus habeat omelias
continentes necessarias ammonitiones, quibus subiect erudiamur... Et ut
easdem omelias quisque aperte transferrestudeat in rusticam Romanam
linguam aut Thiotiscam, quo facilius cuncti possint intelligere quae dicunt.

22
Filologia Românica
Aula

A todos nós pareceu necessário que cada bispo faça Homilias, que con-
tenham os ensinamentos indispensáveis, com os quais os fiéis sejam
2
instruídos...E cada um procure traduzir para a rústica romana língua ou
teodística, de modo que todos possam compreender facilmente o que se diz.
Esta preocupação em fazer os sermões na língua que melhor os fiéis
entendessem já se encontra em São Paulo e mais tarde em Santo Agosti-
nho. Melius est reprehendant nos grammatici quam non intelligant populi / É
melhor que os intelectuais nos critiquem, do que não nos entendam às pessoas sim-
ples. (Agostinho, Enarratio in psalmum 138, 20).
Ao que se percebe, existe uma atitude de dupla face no trato do
latim pela Igreja: por um lado, ela insiste no uso da língua popular de cada
região para facilitar a compreensão da mensagem; por outro, incentiva a
valorização do latim como língua culta, que vai ganhar espaços nos gran-
des centros intelectuais desde a Idade Média até os tempos modernos,
fazendo-se presente sobretudo nos mosteiros, nas bibliotecas, nas uni-
versidades, nos documentos oficiais, nas obras literárias.
O primeiro caso muito favorece o avanço dos diferentes romances,
sendo o ambiente eclesial e pastoral um excelente lugar para a sua ampli-
ação e consistência.
O segundo caso leva a encarar o latim como língua de grande impor-
tância para a compreensão da cultura em geral, chegando-se, pouco a
pouco, a considerá-lo como uma espécie de língua sacra e de pleno direito
divino. É assim que a recomendação original de usar os diferentes romanços
visando à plena compreensão da mensagem, vai perdendo a sua força e
cedendo espaço até chegar-se à imposição do latim como única língua
oficial da Igreja, tornando-se obrigatório o seu uso no cultos, nos docu-
mentos, nos cânticos etc.
Esta postura exagerada consegue manter-se até a década de 1960
quando, finalmente, e não sem muita polêmica, se volta à posição inicial
de poder articular a divulgação da mensagem na língua de qualquer povo.
Não há como negar que esta imposição tenha sido responsável pala anti-
patia e rejeição que se criou em relação ao estudo do latim. No Brasil, a língua
latina foi inteiramente retirada dos currículos do ensino fundamental e o que
restou do ensino de latim nos cursos superiores de Letras vai sendo reduzido,
pouco a pouco, com tendência, lamentavelmente, à extinção total.
A compreensão da filologia românica, o avanço dos estudos nesta
área, a pesquisa documental, o estudo aprofundado sobre o significado
das palavras, a aplicação do método histórico-comparativo e outros afins
nunca serão satisfatoriamente conseguidos sem o recurso ao latim e ao
grego. É por isso que os conhecimentos de língua latina são considerados
prerrequisitos para os estudos de filologia românica.
Esta disciplina, portanto, é para ser estudada tendo às mãos os módulos
1 e 2 de Fundamentos da Língua Latina. Você vai perceber que os assun-

23
Filologia Românica

tos se entrelaçam e muita coisa vai-se esclarecendo nesta articulação que


deve ser feita entre os estudos de Filologia Românica e os de Fundamen-
tos da Língua Latina.
É lamentável que os métodos geralmente usados no ensino do latim
em nada contribuem para favorecer esta articulação e, o que é pior, nem
se atina para essa necessária articulação. O ensino do latim em muitas
universidades acaba sendo intragável, quando não uma fonte de reprova-
ções por semestres consecutivos. Também não é raro ser o latim usado
como fonte de pegadinhas pela qual se insiste na cobrança de regras e mais
regras que exigem a memorização sem estabelecer qualquer ligação com
outros ramos do saber, a iniciar-se pela filologia romântica.
Segundo Sílvio Elia (1979, p. 2-4), existe uma forte relação entre a
filologia e a linguística, relação da parte para o todo, no sentido em que a
linguística é mais abrangente enquanto representa o estudo das línguas
em todos os seus aspectos, inclusive o filológico. Historicamente, porém,
a filologia precede à linguística, mas esta acabou assumindo um aspecto
mais generalizado em que se incluem todas as abordagens possíveis no
terreno das línguas e, neste âmbito, situa-se, modestamente, a filologia.
O propósito de formular princípios gerais de explicação dos fenôme-
nos trouxe maior aproximação entre filologia e linguística e os dois ter-
mos passaram a ser usados indistintamente embora algumas ressalvas sem-
pre se imponham. A linguística é, na verdade, a ciência dos fatos da lin-
guagem, estudados em todos os seus aspectos. Em sentido amplo, todo
filólogo é um linguista, mas há muitos domínios da ciência da linguagem
ou, melhor dizendo, da linguística geral, que escapam ao filólogo.
Por estas considerações, o termo LINGUÍSTICA ROMÂNICA tem
sido uma designação alternativa para a disciplina aqui estudada, haja vista
ter a linguística como objeto o instrumento da língua pelo qual igualmente
produz textos e se ocupa com a capacidade e a atividade de discursar.
No primeiro caso, o texto tem que ser visto como algo articulado, coe-
rente, conciso e portador de significado, algo que se consegue pela articula-
ção paulatina de elementos diversos até se constituir um todo. Você deve
associar a palavra texto a tecido, numa perfeita articulação com o termo têxtil.
A língua é, por assim dizer, uma verdadeira indústria têxtil, lugar em que se
tecem os fios das palavras e a língua também se realiza nos discursos.
Assim, a linguística românica vai ter como objeto os discursos tecidos
nas línguas românicas, que são reveladoras dos aspectos comuns da
romanidade. Considerando-se os detalhes menores, pode-se chegar aos
fenômenos linguísticos singulares que nada têm a ver com aspectos co-
muns da romanidade, mas revelam feições bastante particularizadas de
determinadas regiões, de determinado povo. A este exemplo, pode-se fa-
lar do desenvolvimento do espanhol no México.
Este assunto não diz respeito à linguística românica, mas, sim, à
linguística particularizada de cada povo, de cada idioma. Mesmo assim, é

24
Filologia Românica
Aula

bom que se diga que os limites dificilmente podem ser traçados e há muitos
casos em que os problemas básicos da linguística românica só podem ser
2
resolvidos na compreensão das linguísticas particulares de cada língua.
A formação das línguas românicas tanto se deve à relaxação dos laços
exteriores e à debilitação da vitalidade cultural do Império Romano, quanto
se deve à formação de novas comunidades linguísticas nacionais que resta-
belecem e vivificam, de forma independente, a tradição cultural antiga.
A formação e a história das línguas românicas representam causas e
razões étnicas, geográfico-econômicas, sociológicas, políticas, religiosas,
dinásticas, culturais. Você percebe com isso que o aspecto puramente
linguístico não existe. Você consegue imaginar os romanos querendo con-
quistar os povos de regiões longínquas com a única finalidade de ensinar-
lhes o latim?
Você consegue imaginar o poder romano enviando aos territórios
conquistados professores de latim em vez de soldados, comerciantes, fun-
cionários públicos?
Não é sem razão que a linguística recebe o nome de nobilis ancilla,
serva nobre, ou seja, uma proveitosíssima ciência auxiliar da história.
A filologia românica muito se firmou com o advento do método his-
tórico-comparativo. A sua aplicação no domínio das línguas neolatinas e
o nome filologia românica com que a disciplina surgiu são dados significati-
vos no contexto intelectual de uma época, haja vista o interesse de estu-
diosos por textos e temas dos estudos clássicos, uma tarefa que exigia
conhecimentos técnicos com vistas a restabelecer o texto em sua forma
original e a capacidade de manipular informações extremamente variadas
a respeito da época alusiva aos textos, exigindo, paralelamente, um domí-
nio muito seguro das línguas antigas, donde o emprego mais antigo do
termo filologia clássica.
A proposta de estudar filologia românica se prende à demonstração
de como se deu a multiplicidade das línguas oriundas do latim. A trans-
formação decisiva da România em grandes territórios linguísticos com
características nacionais definidas começa, portanto, no momento em que
um dialeto formado a partir do latim vulgar já não é mais sentido pelos
seus falantes como uma espécie de latim modificado, mas sim como lín-
gua nova tendo condições de cumprir suas tarefas individualmente. Para
isso, tinha-se um ponto de comparação naquele latim que vai continuar
empregado normalmente como língua litúrgica pela Igreja Católica.
Observe a seguir as línguas românicas em suas diferentes denomina-
ções e distribuições territoriais:

I. România Ocidental com as zonas parciais seguintes:


a) Galo-românia (provençal, franco provençal e francês).
b) Reto-românia.
c) Norte da Itália.

25
Filologia Românica

d) Ibero-românia (catalão, espanhol e português).

II. România Oriental com as seguintes zonas parciais:


a) Centro e Sul da Itália.
b) Dalmácia.
c) Romênia.

III. Sardenha

Esta divisão da România é quase a mesma do fim da época imperial:


não leva em consideração, como se percebe na bipartição da Itália, a divi-
são atual em grandes espaços linguísticos nacionais (que são um fato da
história medieval e moderna) criados pelo prestígio das línguas escritas,
mas apóia-se exclusivamente na averiguação dos dialetos.

Povos da Itália Antiga.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 354).

26
Filologia Românica
Aula

Posteriormente, os territórios serão mostrados em detalhes, bem como


será apresentada uma configuração exaustiva das características linguísticas
2
de cada denominação. Temos a totalidade de dez línguas que hoje consti-
tuem o bojo das que são consideradas românicas: português, espanhol,
catalão, provençal, francês, reto-romano, italiano, dálmata, romeno e sardo.
Cada uma dessas línguas será objeto de análise durante este curso e você
vai ter a oportunidade de conhecer as suas características principais, bem
como de identificar semelhanças e diferenças entre elas, tendo sempre
como pano de fundo o latim vulgar, como os conquistadores o trouxe-
ram, sobretudo na sua modalidade falada.

CONCLUSÃO

A filologia românica se impõe como ciência que analisa a trajetória


da língua latina em diferentes territórios dominados pelo poder de Roma.
Como era de se esperar, o contato com povos diversos e destes com o
povo romano opera transformações significativas nas culturas desses po-
vos e o reflexo na língua de cada um imediatamente se faz notar: é um
processo de perdas e ganhos e isso vai ocasionar o surgimento de uma nova
língua, como foi o caso da língua portuguesa, um dos romances do latim.
Os métodos dos estudos filológicos em geral se aplicam aos estudos
da filologia românica em particular e esta, sobretudo a partir do século
XIX, vai definindo seu problema, construindo suas teorias e percebendo
o seu campo de atuação. Atualmente, muitas obras neste domínio reve-
lam a seriedade com que os estudos filológicos românicos vêm sendo
considerados servindo de apoio e reflexão para outras áreas afins.

27
Filologia Românica

RESUMO

Importa, inicialmente, reconhecer tudo quanto se diz da filologia em


geral e daí tentar criar analogias com a romanística em particular. É preci-
so transitar por elementos de toda ordem como os históricos, geográficos,
culturais e outros e, por meio deles, compreender os constituintes
linguísticos das variações do latim até chegar aos diferentes romanços.
Para isso, recomenda-se uma revisão dos elementos básicos do latim
e até mesmo um estudo articulado aos conteúdos dos módulos já estuda-
dos de Fundamentos da Língua Latina (I e II).
Muitos conteúdos de filologia ficarão mais evidentes quando com-
preendidos à luz da constituição do latim vulgar em contato com outras
bases linguísticas. Há todo um processo histórico que explica certos fatos
no trato com as línguas, inclusive o preconceito, que até hoje não desapa-
receu e que está muito associado à questão da dominação de um povo
sobre outro, de cuja contexto não está ausente o aspecto linguístico e
talvez seja mesmo um dos mais agravantes a começar pelas denomina-
ções pejorativas com que são tratados os povos considerados inferiores.

ATIVIDADES

As questões para avaliação desta aula continuam sendo de ordem


subjetiva, sempre reforçando a necessidade de reflexão e assimilação dos
conceitos, valendo tudo quanto se falou anteriormente sobre a consulta,
a pesquisa.

a) Recorrendo à explanação acima, realize uma listagem de todas as bases


conceituais usadas para situar a FILOLOGIA ROMÂNICA no âmbito da
linguística, bem como outras terminologias que se incluem na ciência
filológica. Destaque as semelhanças e diferenças desses conceitos entre si.
b) Faça uma síntese do percurso dos estudos filológicos ao longo dos tem-
pos, reconhecendo a maior ou menor intensidade no trato dessa ciência.
c) A Igreja é a grande responsável pela manutenção do latim e da cultura
românica até o século XX. Mas a Igreja também contribuiu para o pro-
gresso das línguas românicas. COMENTE ESSA AFIRMAÇÃO.

28
Filologia Românica
Aula

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES


2
Essas questões avaliam a percepção que você, caro aluno, pôde
demonstrar depois de ter lido e relido os conteúdos expostos.
O grau de percepção que você demonstra é um forte elemento para
você mesmo, enquanto aluno de um curso universitário a distância,
avaliar o seu envolvimento no processo, aliado à capacidade de
estudar sozinho e tirar suas próprias conclusões. As respostas para as
questões acima estão espalhadas por toda a explanação do conteúdo.
Aqui se pede, pois, é a realização de um trabalho de síntese,
compilação, comparação, uma espécie de exercício menor de tudo
quanto você vai precisar fazer ao logo das aulas, haja vista ser esta a
postura da ciência filológica.
BOA SORTE!

Prossegue a sugestão da aula anterior: é importante que o aluno de


Letras vá constituindo um vocabulário dos termos que se destacam
de cada lição, visto serem esses elementos a base para a compreensão
e o aprofundamento dos conceitos e teorias. Deste modo, complete
o seu trabalho pesquisando e organizando por ordem alfabética os
seguintes termos:
Romance / Romanço / Populus Romanus / Romani / Edito
de Caracala / Concílio de Tours / România / Gália / Britânia
/ Germânia / Romanística / Romanidade / Rético / Dalmácia
/ Romênia e outros.
Muitas palavras sugerida aqui e nas outras aulas serão pura seleção
dos termos usados durante as explanações.
Certamente virão compor este glossário palavras outras, novas, fruto
de suas pesquisas como aluno ou, melhor dizendo, de seu trabalho
como filólogo, segundo o espírito desta disciplina e a capacidade que
você vai demonstrando de desenvolver um trabalho nesta área.

29
Filologia Românica

REFERÊNCIAS

BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-


lo: EDUSP, 2005.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

30
Aula

MÉTODO EM FILOLOGIA ROMÂNICA I:


3
O MÉTODO HISTÓRICO-COMPARATIVO

META
Compreender a proposta do método histórico-comparativo e sua aplicação aos estudos da
filologia românica.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
situar a filologia românica no espírito científico de uma época;
abordar a questão do método como recurso para o desenvolvimento de trabalhos científicos;
compreender a proposta do método histórico-comparativo e sua aplicação às pesquisas em
filologia românica.

PRERREQUISITOS
As aulas anteriores deste módulo e os módulos I e II de Fundamentos da Língua Latina são o
primeiro prerrequisito para esta e outras aulas desta série, tendo em vista uma proposta de
trabalho em que se busca o encadeamento dos saberes abordados e a visão do conhecimento
como um todo articulado.
No material acima referido, sempre se falou dos recursos auxiliares e das ciências afins. Para
abordar o método histórico-comparativo, como se propõe esta aula, é preciso estar atento aos
conhecimentos de história, geografia e cultura geral, entre outros. Além do seguro domínio do
português, que se espera de qualquer estudante de Letras, o trato com os estudos de filologia
românica vai exigindo um certo trânsito pela área de outras línguas românicas (espanhol,
francês, italiano etc.) sob pena de se reduzir este trabalho ao plano da superficialidade. O grego
também não pode ser negligenciado em muitos momentos das abordagens filológicas.
Assimile, portanto, com muito empenho, todos os conteúdos apresentados e, em se tratando do
estudo de um método, não se esqueça de que você vai seguir um caminho a fim de alcançar
objetivos bastante definidos, você vai realizar um trabalho científico ainda que seja no amplo e
imprevisível terreno da linguagem.
Nada, porém, deve assustar ou desanimar. É preciso tão somente cultivar uma atitude de
abertura às propostas e de plena confiança na capacidade pessoal de vencer todas as etapas.
VÁ EM FRENTE!
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

O Discurso sobre o Método teve como criador o francês René Descartes


(1596 – 1650, em latim Carthesius, de onde provém a denominação Mé-
todo Cartesiano).
Seus pensamentos supõem a implantação do método científico de
caráter lógico-dedutivo, no que os fenômenos podem ser explicados a
partir do mecanismo natural de causa-efeito e estão, portanto, sujeitos a
predição e interpretação por parte do intelecto humano.
A dúvida, o questionamento da raiz do estabelecido, supõe a ferra-
menta básica da busca da verdade e o início de todo conhecimento
(Cogito, ergo sum! = Penso, logo existo!). Sendo ele muito interessado
em matemática, ciência e filosofia, seu método exclui tudo o que não seja
racionalmente demonstrável de maneira matemática e abre caminhos para
as exigências do espírito científico que ditam normas no século XIX, épo-
ca do surgimento da filologia românica, ou seja, a linguística românica
tentando firmar espaços entre as outras ciências.
Para comprovar a pertinência do status científico da filologia, os
divulgadores do método agora estudado insistem na valorização dos ele-
mentos históricos e na necessidade de estabelecer a comparação entre as
línguas da mesma família identificando as semelhanças e diferenças entre
elas. No meio científico europeu, os trabalhos de Franz Bopp, em 1816,
alertam para a possibilidade de relacionar línguas até então vistas isolada-
mente e perceber uma forte semelhança formal entre elas.
No seu famoso livro Sobre o Sistema de Conjugação do Sânscrito em compara-
ção com o do Grego, Latim, Persa e Germânico, Franz Bopp estava lançando as
bases para a exploração do parentesco das línguas, cujo maior resultado foi a
classificação genealógica que associa as línguas aos antepassados comuns.
Deste método é que nasceu a Filologia Românica conduzindo na mes-
ma linha as investigações aplicadas, desta vez, às línguas oriundas do latim.
Esta lição trata, portanto, da caracterização do método histórico-com-
parativo aplicado às línguas românicas. Apresentam-se aqui os passos do
seu desenvolvimento, seus problemas, os especialistas envolvidos e os
resultados a que foi possível chegar, muitos deles disponíveis em obras
de inquestionável valor científico..
Uma coisa, porém, deve ficar, desde o início, bastante clara: a pesqui-
sa linguística não pode restringir-se ao emprego de um só método, pois
nenhum deles é perfeitamente completo. Daí ser necessário conhecer to-
das as propostas metodológicas e escolher aquela (ou aquelas) que me-
lhor se coadune(m) com o tipo de pesquisa que se deseja realizar.

32
Métodos em Filologia Românica I: o método histórico-comparativo
Aula

O MÉTODO HISTÓRICO-COMPARATIVO 3
O método histórico-comparativo aplicado ao latim e às línguas
neolatinas deve-se aos trabalhos do alemão Friedrich Diez (1794 – 1876),
considerado o pai da Linguística ou Filologia Românica.
Trata-se, na verdade, da retomada dos estudos de Franz Bopp e Jakob
Grimm tendo, agora, o enfoque centrado sobre a trajetória do latim vulgar
até as línguas românicas. É verdade que os principais mentores da Escola
Comparatista, Max Muller, Curtius e Friedrich Schleicher, por lidarem com
línguas muito antigas, nem sempre dispunham de bons elementos que le-
vassem a resultados satisfatórios o trabalho de comparação.
Com as línguas românicas, no entanto, a situação de pesquisa e com-
paração torna-se bem mais facilitada, pois se trata de lidar com o latim e
com as línguas que gerou, cujos documentos de apoio são numerosos.
Daí ter sido muito grande o sucesso que logo se pôde verificar, dada a
facilidade com que se pode trabalhar no contexto destas línguas, permi-
tindo fortes possibilidades de determinar, no processo de evolução do
latim, aquilo que se denominou de terminus a quo e terminus ad quem, ou
seja, a forma que a palavra possuía no latim e a forma em que, finalmen-
te, se mostra no momento da análise em qualquer das línguas novilatinas.
Um exemplo:

Terminus a quo: plicare


Processo evolutivo: plicare > plicar >chegar
Terminus ad quem: chegar.

As obras de Diez representam o impulso inicial de uma nova era na


compreensão do latim e das línguas dele advindas:
Gramática das Línguas Românicas (1836 – 1843).
Dicionário Etimológico das Línguas Românicas (1854).
Costuma-se mencionar o nome do francês François Raynouard, co-
nhecedor profundo do antigo provençal, como precursor de Diez, no en-
tanto as teorias do especialista francês não tiveram efeito porque defen-
dem que as línguas neolatinas se explicariam não como derivadas direta-
mente do latim, mas de um língua romana como se fora o provençal falado
do século VII ao IX.
O empenho de explicar as origens e as correlações entre as línguas
afins é uma tentativa de acompanhar o espírito cientificista dos meados
do século XIX, para o qual o status de ciência só deveria ser privilégio
daquelas áreas do saber que comprovassem plena adequação ao método
científico experimental. Assim, restariam poucas chances às ciências hu-
manas (filosofia, teologia, pedagogia, linguística etc.), razão pela qual os
linguistas do século XIX deverão estar atentos às exigências do seu tem-

33
Filologia Românica

po e imediatamente encontrar provas de plena adequação das letras às


exigências científicas.
Para bem captar o espírito da época, convém evocar os princípios do
Realismo-Naturalismo aplicados à literatura e recordar as grandes correntes
de pensamento que fundamentam este estilo literário de época:
Evolucionismo, Positivismo, Determinismo, Psicologismo e Socialismo.
Para isso, a linguística histórica encontrou um excelente apoio nos
trabalhos de um grupo de teóricos da Escola dos Neogramáticos, iniciada em
1878 por Karl Brugmann e Hermann Osthoff com a obra Morphologische
Untersuchungen (Investigações Morfológicas).
Defendiam os Neogramáticos a teoria de que o processo de evolução
das línguas não acontece aleatoriamente, mas obedecem a princípios que
permitem uma certa regularidade no processo evolutivo quando as cir-
cunstâncias são as mesmas. Considerando o lado fonético, segundo dizi-
am, podem ser observadas verdadeiras leis sonoras às quais o processo
evolutivo raramente desobedece. Para eles, as leis fonéticas não sofrem
exceções, mas, na realidade, sofrem desvios que são motivados pela in-
terferência de outros fatores naturais.
Se existem, às vezes, exceções, os Neogramáticos as atribuem às ana-
logias, a exemplo da língua falada em que, por associação a uma forma
anteriormente conhecida: vender / vendido / vendeu se feflete em fazer /
fazido / fazeu; ou eu sigo / tu segues e, daí, eu vivo, tu veve etc.
Para melhor compreender as idéias aqui expostas, é bom você reto-
mar o conteúdo da aula 20, do módulo 2, da disciplina Fundamentos de
Língua Latina. Aí alertamos para a noção de Metaplasmo e fazemos uma
exposição detalhada de muitas variações sonoras ocorridas desde o latim
até o português. Alertamos igualmente para a persistência na atualidade
da língua de formas variadas de um mesmo conceito, sob a denominação
de Alomorfias. Essa revisão ajuda a melhor compreender o que era a prá-
tica de análise linguística sugerida pela escola aqui em apreço.
Queriam os neogramáticos que as leis fonéticas fossem infalíveis e
foi, justamente, a utilização do termo leis o elemento de maior polêmica
nas discussões em torno deste assunto. Tivessem eles falado de normas,
tendências, possibilidades etc. e seriam certamente bem mais aceitos.
Mas não se pode negar a valiosa contribuição que prestaram para a
compreensão histórica e para ao entendimento de como as línguas vari-
am segundo princípios mais ou menos frequentes.
Meyer-Lübke foi o continuador dos trabalhos de Diez, incorporando
ao método as contribuições dos neogramáticos e dando mais coerência e
consistência aos estudos da Filologia Românica.
O método histórico-comparativo aplica-se a casos de grupos de lín-
guas genealogicamente afins e, dos dados pertencentes às línguas da mes-
ma origem, são determinados os metaplasmos e buscados os campos se-

34
Métodos em Filologia Românica I: o método histórico-comparativo
Aula

mânticos e logo vai ser constatada uma pertinência fonológica e inúmeras


semelhanças de uma língua à outra. Meyer-Lübke fora bastante rigoroso
3
na aplicação do método e conseguiu, pelo uso de farto material, superar a
obra de Diez.
O método aqui analisado tem sido de grande utilidade na
reconstituição do léxico do latim vulgar (também denominado de
protorromance), de onde realmente vieram as línguas românicas. Deste la-
tim popular as fontes escritas são pouquíssimas, mas os romances po-
dem, muitas vezes, traçar uma idéia perfeita de estágios anteriores até se
chegar a períodos mais remotos. É bom que se diga, no entanto, que este
método não obteve os mesmos proveitos animadores em todos os níveis
da linguagem.
A eficácia se verifica, por exemplo, nos aspectos da fonologia,
morfologia e do léxico, mas existem grandes dificuldades no terreno da
sintaxe, pois nesse nível fica muito mais complicado comprovar a regula-
ridade das ocorrências , haja vista estar o elemento sintático muito mais
sujeito às oscilações individuais ou mesmo de um grupo, o que compro-
mete muito o trabalho de análise.
Nos manuais de filologia românica, sempre aparecem quadros sinóticos
em que se destacam termos próprios do latim vulgar e se apresentam,
paralelamente, as formas correspondentes em cada língua românica.
Um exemplo desta prática pode ser visualizado em LINGUISTICA
ROMÂNICA, de Rodolfo Ilari, p. 23:

35
Filologia Românica

A divisão do quadro em quatro blocos remete às palavras latinas em


suas configurações. Este quadro é apenas uma pequena amostra das com-
parações possíveis no terreno das vogais. Mais tarde será demonstrado
este mesmo procedimento no domínio das consoantes. Este, porém, é um
passo inicial para ajudar a entender o procedimento comparativo que en-
volve as línguas românticas. Cabe a você ir buscando ampliar este quadro
com exemplos descobertos por você mesmo, dando, com isso, provas con-
cretas de ter assimilado o conteúdo aqui exposto.

CONCLUSÃO

A existência de um método histórico-comparativo leva a uma prática


científica no trato com as línguas. Buscam-se elementos que se repetem
na ocorrência das mudanças levando os especialistas ao reconhecimento
de leis fonéticas, ou melhor dizendo, de normas e princípios que regem as
variações. O trabalho dos neogramáticos sugere a constatação de regula-
ridades – sobretudo de ordem fonética – levando a concluir pela existên-
cia de normas às quais obedece o processo de mudança linguística.
O método tem o seu valor desde que não se faça dele o caminho
exclusivo. A melhor abordagem científica da filologia consiste em conhe-
cer as diferentes propostas metodológicas e saber recorrer àquela que
melhor corresponde às necessidades do momento ou dos objetivos que se
deseja alcançar.
Por isso mesmo, você vai conhecer todos os outros métodos e poder
trabalhar livremente cada proposta, na perspectiva de realizar um estudo
bastante completo.

36
Métodos em Filologia Românica I: o método histórico-comparativo
Aula

RESUMO 3
A questão do método em filologia românica se insere no contexto
geral das ciências para as quais se busca um caminho que possa surtir
resultados satisfatórios segundo os objetivos anteriormente definidos.
O método histórico-comparativo é o primeiro de uma série de pro-
postas metodológicas e ele procura responde às exigências dos cientificistas
do século XIX, para os quais o status de ciência só seria devido às áreas
do saber que demonstrassem precisão, continuidade e comprovação ex-
perimental de suas teorias.
Os especialistas em linguística românica, ajudados pela Escola dos
Neogramáticos, tentaram demonstrar a pertinência de leis fonéticas que
funcionam regularmente sempre que as circunstâncias são idênticas.
Nesta perspectiva, buscou-se comparar as diferentes línguas români-
cas tendo como ponto de partida o latim falado, o latim vulgar. Um mes-
mo vocábulo dito nas diversas línguas revela semelhanças e diferenças
que vão ser o objeto de análise.
Um trabalho desta natureza não pode restringir-se a um número limi-
tado de palavras como geralmente fazem crer os manuais ao repetirem
quase sempre os mesmos exemplos. Importante é motivar a criatividade
do aluno e a sua persistência para aplicar o método a muitas e muitas
palavras. Tal procedimento, porém, somente se mostra eficaz com o apoio
de bons dicionários de cada língua românica que fizer parte do trabalho
de investigação.
Aos poucos, porém, você, caro aluno, vai-se familiarizando com o mé-
todo e vai conseguindo ampliar os horizontes dos seus conhecimentos.
Para começar, importa conhecer a essência do método e visualizar a
sua aplicação em um certo número de palavras. O restante vai-se firman-
do aos poucos.
VÁ EM FRENTE! CORAGEM!

37
Filologia Românica

ATIVIDADES

As questões para avaliação desta aula têm muita relação com o en-
tendimento que você assimilou dos conteúdos aqui expostos. Não se pode,
por isso, esperar respostas formalmente idênticas de aluno para aluno.
Desde que o pano de fundo das respostas seja o mesmo, a formulação das
respostas pode divergir entre alunos sem que isso seja indicativo de uma
resposta errado.

a) Destaque alguns especialistas do período da filologia românica aqui


abordado e identifique os fatos a que eles estão relacionados.
b) O método histórico-comparativo prestou-se muito bem aos objetivos da linguística
românica. COMENTE ESSA AFIRMAÇÃO APRESENTANDO FATOS
QUE A JUSTIFIQUEM.
c) Demonstrando ter compreendido a relação Terminus a quo ~ Terminus ad
quem, apresente mais 5 palavras que exemplifiquem este processo.
d) A evolução da palavra deveria ser nesta ordem: tenebra ~ tevra, e, no
entanto, fez o seguinte percurso: tenebra ~ treva. Por analogia, encontre
exemplos semelhantes na linguagem popular falada.
e) Que correlação semântica pode ser visualizada na evolução de
plicare ~chegar?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Estas questões revisam, primeiramente, os nomes das pessoas ligadas


à ciência filológica românica (a). Releia o conteúdo inicial do módulo
para bem situar-se na questão.
Em segundo lugar, discute-se a conveniência do método histórico-
comparativo na lingüística românica (b), pois existem fortes razões
para que o uso tenha dado certo.
O ponto de partida (latim) e o ponto de chegada (línguas românicas)
podem ser detectados em quase todas as palavras no processo de
evolução. Aqui se pede (c) que você identifique 5 delas,
demonstrando que você compreendeu o assunto.
O número de exemplos é por demais reduzido, mas você, de agora em
diante, deve habituar-se a este tipo de exercício, que é, na verdade, a
essência da disciplina que estamos estudando. Faça todo o possível para
criar exemplos próprios sem preocupação de estar copiando dos manuais.
A resposta da próxima questão (d) deve ser buscada no contexto da oralidade
sobretudo no que se pode observar nos falantes menos instruídos.
Esta última questão (e) requer uma consulta ao dicionário, um
dicionário que remeta à etimologia da palavra.

38
Métodos em Filologia Românica I: o método histórico-comparativo
Aula

Prosseguem as recomendações anteriores. Você, como bom


pesquisador, deve habituar-se à fixação de determinados termos que
3
compõem a terminologia de cada disciplina estudada.
A filologia românica também trabalha com termos específicos que
remetem a conceitos próprios que podem ter acepções diferentes se
usados no contexto de outras áreas do saber. Desta forma, vá
construindo um glossário próprio para bem definir os termos com
que a filologia precisa trabalhar. Faça isso observando a ordem
alfabética a fim de facilitar a consulta, à medida que o número de
palavras for sendo ampliado.
Neogramáticos / Realismo – Naturalismo / Terminus a quo /
Terminus ad quem / Leis fonéticas / Analogia / Protorromance /
Método / Neogramáticos .

REFERÊNCIAS

BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-


lo: EDUSP, 2005.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.

39
Aula

MÉTODO EM FILOLOGIA ROMÂNICA II:


4
O MÉTODO IDEALISTA

META
Compreender a proposta do método idealista e sua aplicação aos estudos da filologia
românica.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
situar a filologia românica no espírito filosófico e no caráter geral da linguística;
abordar a questão do método idealista como aplicação de hipóteses filosóficas sobre a
natureza da língua e os mecanismos de sua evolução;
compreender os elementos de oposição do método idealista ao método histórico-comparativo.

PRERREQUISITOS
As aulas anteriores deste módulo e os módulos I e II de Fundamentos da Língua Latina
continuam sendo pré-requisitos até porque será necessário dominar bem o assunto da aula
anterior haja vista o confronto que se deve fazer entre esses dois métodos, vistos como as
grandes linhas teórico-metodológicas na abordagem da filologia românica.
Na aula anterior, falou-se dos recursos auxiliares e das ciências afins. Para abordar o método
idealista, é preciso sempre se estar referindo à filosofia, à poesia, à criatividade e ao livre curso
que o homem imprime à linguagem, sobretudo no âmbito da fala, sem muita cobrança de
rigidez formal ou normativa.
De certa forma, o método idealista se opõe ao histórico-comparativo, por isso importa ter bem
claro o conteúdo da lição anterior para identificar os elementos divergentes entre os métodos.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Abordar o método idealista é reconhecer a possibilidade de tratar a


língua em consonância com o lado filosófico e espiritual do ser humano
pondo em evidência aspectos de cunho estético e artístico que levam o
falante a usar a linguagem sem estar muito preocupado em cumprir regras
que ditam formas corretas e únicas de expressão.
Este método é mais um caminho possível em filologia românica, mas
também nada exclusivo nem perfeitamente acabado. É preciso considerá-
lo no conjunto das outras propostas metodológicas e, após um conheci-
mento global, buscar uma síntese que contemple as necessidades da ciên-
cia filológica como um todo.

42
Métodos em Filologia Românica II: o método idealista
Aula

DIACRONIA E SINCRONIA 4
Para bem compreender estes dois métodos fundamentais, importa
considerar as duas grandes tendências da linguística:

1. Diacronia / langue / forma / sintagma


2. Sincronia / parole / função / paradigma.

Praticamente todas as considerações sobre o fato linguístico giram em tor-


no desses dois grandes condutores básicos do processo. No primeiro caso, estão
as considerações sobre o que as línguas possuem de formal, de estruturado,
obedecendo sempre a princípios que acabam por se constituir em regras fixas e
assim transmitidas. Neste aspecto, enquadram-se os que amam pesquisar a his-
tória das línguas e o que elas possuem de elementos fixos, constantes e, quando
variados, o fazem dentro de regras mais ou menos precisas.
No segundo caso, enquadram-se os que vêem nas línguas o seu lado
comunicativo, prático, possibilitando variações de acordo com as neces-
sidades do uso. Neste aspecto, a língua é liberdade, é variação constante
e deve ser considerada na dinâmica de cada momento segundo as oscila-
ções próprias do espírito humano.
Tais posturas, no entanto, não devem ser excludentes uma da outra.
A diacronia precisa da sincronia e vice versa; daí ser mais completo falar
de pancronia, no sentido da existência de um tempo global no qual a língua
se insere, no qual todas as ocorrências têm o mesmo relevo, a mesma
significação para os estudos linguísticos.
No primeiro caso está o que Ferdinand de Saussure denominou de
langue, ou seja, o todo organizado, o aspecto formal. No segundo caso,
tem-se o domínio da noção também saussureana de parole, isto é, a língua
viva na comunicação do tempo presente, ou de uma época específica, tal
como o falante a utiliza naquele determinado momento.
O método histórico-comparativo, como foi visto na aula anterior, pren-
de-se ao primeiro aspecto das considerações acima. O método idealista, por
sua vez, prende-se ao segundo aspecto e, assim sendo, põe em destaque o
caráter filosófico, fugindo um pouco dos parâmetros propriamente filológicos.
O criador deste método, Karl Vossler (1872 – 1949), aplica princípi-
os idealistas e estéticos às línguas românicas e, atribuindo ao positivismo
a pesquisa objetiva dos fatos linguísticos, propõe que o método idealista
realize o processo contrário, ou seja, considere a influência de dados sub-
jetivos no trato com a linguagem. Para ele, a língua é motivada e, de certa
maneira, imprevisível tal como o espírito humano.
Sendo expressão da alma, a linguagem humana tem a sua história
semelhante à história da arte, influenciada pela força da espiritualidade e
da estética com que se busca expressar o belo.

43
Filologia Românica

O nome Benedetto Croce também se destaca na correlação entre a


expressão linguística e a obra de arte, a estética. A concepção de língua
elaborada por Croce procede da de Giam Battista Vico, que identifica a
língua com a poesia, concepção posteriormente elaborada com funda-
mentos mais sólidos por Wilhelm von Humbold, para quem a língua é
produto do espírito humano, que se manifesta tanto na linguagem quanto
na sociedade, nas ciências e nas artes.
Decorre daí a insistência sobre a valorização da criatividade indivi-
dual dos falantes como aspecto central da língua e a intuição como facul-
dade maior do linguista. Este método busca, mais do que tudo, reconhe-
cer a influência da cultura sobre os fatos linguísticos, de modo especial
sobre a produção literária.
Porque o espírito humano se mostra como atividade, a língua jamais
será considerada como um produto (ergon), mas como algo em constante
criação (energeia). A abordagem do método idealista quer refletir a dispo-
sição espiritual e a vida interior do falante tendo resultados bastante visí-
veis no contexto da língua, na constituição das expressões da fala, ou
seja, da própria maneira de ser de cada indivíduo.
Fica bastante clara a reação contra o método anteriormente exposto,
fortemente recheado de positivismo desde a coleta e o trato rigoroso dos
materiais até a formulação indutiva de regras.
O idealismo linguístico, pelo contrário, preconizou uma metodologia
intuitiva e sintética, voltada para formulações globais atentas ao próprio
ritmo do espírito humano, sua liberdade de criação e expressão individual
também refletidas na linguagem.
Vossler acentua o caráter alógico da língua, considerando as palavras
apenas como símbolos levando a expressão linguística ao puro terreno da
individualidade. Para ele, cada expressão é uma recriação, carregando sem-
pre algo da alma do falante e, por isso, é única e exclusiva, diferente de
qualquer outra expressão de todos os outros falantes. Tal concepção tem
apoio na teoria da intuição de Bergson, identificando a expressão, a ima-
gem com a impressão e decorrendo daí a idéia de que a expressão linguística
é contínua criação, contínua impressão, um fenômeno estético.
Karl Vossler retoma as concepções filosóficas expostas acima e as
aplica ao terreno propriamente linguístico. Vossler, a exemplo de Croce,
também combateu o positivismo muito bem expresso no método natura-
lista histórico-comparativo. Sendo contrário ao método indutivo-analíti-
co, Vossler apresenta o método intuitivo –sintético, que busca por todas
as partes o espírito na vida linguística.
Tenta ainda demonstrar que as mudanças fonéticas dependem do
acento e do ritmo, os quais também dependem do estado de espírito de
quem fala. Assim, as mudanças fonéticas procedem das nossas intuições
por meio do aparelho articulatório. Aos poucos, determinadas mudanças,
que nasceram no plano individual, vão permanecendo e se desenvolven-

44
Métodos em Filologia Românica II: o método idealista
Aula

do segundo a inclinação coletiva que as aceita e adota, passando, então, a


fazer parte da linguagem como nova forma de variação.
4
Na visão de Vossler, toda expressão é uma criação do espírito, fazen-
do parte da história do espírito, história da cultura. Assim, fica estabelecida
a coesão da língua com a mentalidade e a cultura de um povo, ou seja,
suas variáveis posturas sociais culturais e espirituais. Ele tenta, desta
maneira, compreender o espírito de um determinado período linguístico,
tendo por base uma visão total das condições culturais, políticas, literári-
as e de toda a vida daquele período. Daí, é detectado o paralelismo com
as mutações linguísticas.
Você deve ter observado que, salvo raras exceções, os grandes espe-
cialistas em filologia românica são de língua alemã. Isso cria um
questionamento curioso: como é que pessoas que não falam línguas oriun-
das do latim se mostram tão interessados pela romanística e apresentam
as melhores contribuições para os aprofundamentos nesta área? Na ver-
dade a língua latina nunca foi desprezada em seus países e continua fa-
zendo parte dos currículos escolares como elemento indispensável para a
formação integral dos indivíduos. Já no Brasil, cuja língua falada apresen-
ta a aproximação mais perfeita com latim, o preconceito e a redução vão-
se impondo até chegar ao seu total aniquilamento.
O método idealista se utiliza de alguns termos que, aqui e ali, estarão
sendo evocados para a melhor elucidação dos conceitos: de um lado, a
innere Sprachform, que traduz a forma linguística interior, ou seja, um sistema
de morfemas, o esqueleto das possibilidades de expressão em que, sim-
plesmente, devem ser introduzidos os semantemas (palavras) para obter
uma manifestação linguística concreta. Esta se opõe à aussere Sprachform,
que traduz a forma linguística externa, isto é, a fonética, a morfologia de
uma língua.
Um olhar crítico constata os exageros cometidos por todos os teóri-
cos e a maneira incisiva com que defendem seus pontos de vista. Foi
assim com o método histórico-comparativo; é assim também com o mé-
todo idealista. Logo de início, vale ressaltar a dificuldade natural que se
apresenta no trato com elementos de ordem filosófica, espiritual, onde as
evidências nem sempre são tão claras como se pretenderia que fossem.
Um exemplo disso é a veemência com que se tratou a questão do partitivo,
muito característico da língua francesa manger du pain, boire de l´eau etc.
Muito se apregoou, a fim de dar respaldo ao uso do método idealista,
que este costume da língua francesa seria devido à influência do espírito
mercantilista da Idade Média, no qual a língua francesa se estava forjan-
do. Não poderia existir melhor exemplo para comprovar a influência de
uma época, de um momento cultural sobre a forma da língua.
Pesquisas históricas, no entanto, (e isso dá provas de que não se pode
fazer uso exclusivo de um método) assinalam o uso bem antigo do partitivo
no latim clássico e que o latim vulgar adotou sem restrições na forma de

45
Filologia Românica

partitivo-objeto bibere de aqua. Não se pode concluir, portanto, que o uso


do partitivo tenha sido resultado do espírito daquela época.
Daí se percebe o cuidado que se deve ter antes de adotar generaliza-
ções, pois o erro do raciocínio idealista consiste em querer descobrir com
total regularidade o reflexo do espírito dos tempos em fatos linguísticos
incompletos ou mal comprovados. O falante, por mais criativo que seja,
não pode sair criando livremente sem qualquer articulação com a tradi-
ção de sua língua.
Tal como se fala do processo da formação de neologismos, quase não
existe criação ex nihilo, como se os falantes tirassem as palavras do nada e
assim as impusessem para o uso comum. Daí ser importante sempre re-
correr à noção de pancronia e imaginar a língua inserida num tempo glo-
bal no qual uma rede de associações se faz necessária, pois não existe
uma língua inteiramente pura, que não tenha sofrido influência de outra
ou que não tenha exercido influência sobre outra.

CONCLUSÃO

O método idealista tem grande importância para os estudos de filologia


românica até porque as culturas dos povos imbuídos neste processo em
muitos aspectos podem ser recuperadas, deixando transparecer muitos
dados significativos para a compreensão dos fatos linguísticos.
Não se pode, porém, imaginar um método que seja perfeito; por isso
um trabalho sério e abrangente deverá fazer uso de mais de uma proposta
metodológica, sempre levando em conta que um método pode se prestar
mais que outro a determinadas abordagens. A opção por um método de
trabalho depende muito do tipo de investigação que se deseja empreen-
der, sem contar que as pessoas, por questão de simpatia, podem preferir
esta ou aquela proposta. A questão, portanto, é bastante ampla.

46
Métodos em Filologia Românica II: o método idealista
Aula

RESUMO 4
O idealismo tem metodologicamente um significado importante en-
quanto associa língua e cultura, filologia e filosofia, linguagem e
espiritualidade, mas o método requer uma maneira positiva de operar sob
pena de conduzir a resultados totalmente inexatos e infundados.
O contato direto com os fatos linguísticos evitaria conclusões equi-
vocadas, o que, muitas vezes, procede de dados tomados de segunda mão
ou sem o rígido controle necessário. Também não se pode negligenciar o
contato com outras línguas românicas pelo qual muitos problemas se so-
lucionam e, não raras vezes, com o apoio dos resultados positivistas.
O método idealista, no entanto, possui o grande mérito de ter alertado
para o lado individual e criativo da vida da linguagem, dando ênfase espe-
cial aos fatores artísticos, estétiticos e espirituais na constituição da lín-
gua. O idealismo também reage ao excesso de fonética característico do
método histórico-comparatista ou do positivismo fonetizante em cuja
ótica a analogia na fonética foi vista como fator de perturbação na exati-
dão das leis e não - como realmente parece ser - uma força diretriz de
ordem espiritual.
Insistindo sobre puros valores de ordem estética e espiritual, o Idealismo
afastou a língua de tudo o que ela tem de objetivo, tradicional e coletivo.
Insista-se sempre no grande mérito do idealismo: alertar para a essên-
cia social da linguagem e para o caráter sociológico da linguística.

ATIVIDADES

As questões para avaliação desta aula continuam tendo forte ligação rela-
ção com o entendimento que você assimilou dos conteúdos aqui expos-
tos. Não se pode, como se disse na aula anterior, querer respostas formal-
mente idênticas de aluno para aluno. O questionário suscita uma discus-
são em torno do assunto, devendo o aluno desenvolver uma linha própria
de raciocínio dando conta da plena compreensão que assimilou do con-
teúdo exposto.

a) Destaque alguns especialistas do método idealista e relacione-os às


respectivas abordagens teóricas.
b) O método idealista também prestou-se aos objetivos da linguística românica.
COMENTE ESSA AFIRMAÇÃO APRESENTANDO EXEMPLOS\
QUE A JUSTIFIQUEM.
c) Demonstrando ter compreendido a relação entre o espírito do homem
e as configurações da língua, apresente, em linhas gerais, a essência do
método idealista.

47
Filologia Românica

d) Apresente algumas críticas ao método idealista sugerindo possíveis


ajustamentos.
e) Explique os conceitos de ERGON e ENERGEIA e outros contidos
no glossário, os quais sempre se evidenciam nas discussões em tono da
ciência da linguagem. Apresente exemplos.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Estas questões revisam, primeiramente, os nomes das pessoas ligadas


à ciência filológica românica (a). Releia o conteúdo inicial do módulo
para bem situar-se na questão.
Em segundo lugar, discute-se a conveniência do método idealista na
linguística românica (b), pois existem fortes razões para que ele seja adotado.
A correlação entre língua e espírito (c) é o ponto forte do método
idealista, o qual revela maior aproximação com a sincronia.
COMENTE ESTE DADO.
As críticas vão evidenciar (d) que nenhum método é completo e o
melhor trabalho metodológico no âmbito linguístico resulta do
emprego de diferentes abordagens.
Faça todo o possível para criar exemplos próprios sem preocupação
de copiá-los dos manuais.
A resposta da próxima questão (d) reflete uma preocupação de colher
o que há de mais plausível na proposta idealista.
Esta última questão (e) visa à aquisição segura dos conceitos básicos
em filologia.

Prossiga a tarefa de ampliar o glossário. Pesquise as palavras desta


aula e vá acrescentando novas informações às anteriores, sempre
guardando a ordem alfabética.
Diacronia / Sincronia / Pancronia / Langue / Parole / Sintagma
/ Paradigma / Formalismo / Funcionalismo / Ergon / Energeia
/ innere Sprachform / aussere Sprachform / criação ex nihilo /
Neologismo.

48
Métodos em Filologia Românica II: o método idealista
Aula

PROPOSTA DE TRABALHO
4
Os dois métodos básicos, exaustivamente explanados nas aulas 3 e
4, servem de base para a compreensão de outros métodos
secundários, mas igualmente importante para o domínio das
diferentes faces metodológicas com que, comumente, se trabalha a
filologia românica.
Para complementação deste conteúdo, sugere-se que você, caro
aluno, realize uma pesquisa definindo e exemplificando os seguintes
métodos:
- da geografia linguistica;
- “Palavras e coisas”
- Onomasiológico;
- Neolíguistico ou espacial;
- da Teoria das ondas;
- Métodos afins.
Procure, enfim, relacioná-los entre si (semelhanças e diferenças) e
evidenciar em que mais se aproximam dos métodos Histórico-
comparativo e Idealista.

COMO UMA ONDA

Lulu Santos
(Composição: Lulu Santos / Nelson Motta)

Nada do que foi será


De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

A vida vem em ondas


Como um mar
Num indo e vindo infinito

Tudo que se vê não é


Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo
No mundo

49
Filologia Românica

Não adianta fugir


Nem mentir
Pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar

Nada do que foi será


De novo do jeito
Que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

A vida vem em ondas


Como um mar
Num indo e vindo infinito

Tudo que se vê não é


Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo
No mundo

Não adianta fugir


Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre

Como uma onda no mar


Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar

50
Métodos em Filologia Românica II: o método idealista
Aula

REFERÊNCIAS 4
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

51
Aula

5
ORIGEM DAS LÍNGUAS ROMÂNICAS

META
Entender a trajetória das conquistas romanas e a consequente repercussão deste processo na
transformação linguística.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
identificar as intenções reais das expedições romanas em direção às diferentes províncias;
analisar a interferência de elementos de cunho histórico, geográfico, cultural e social nas
transformações linguísticas ocorridas na România;
compreender o processo de evolução do latim e a implantação progressiva das diversas
línguas românicas.

PRÉ-REQUISITOS
Para bem assimilar o conteúdo desta aula, importa lançar um olhar sobre um período bem
preciso da história universal; importa visualizar certas áreas geográficas e compreender
elementos de cultura que determinam a postura de um povo em determinados momentos da
história. Em suma, é preciso ter em mente a pequena porção territorial onde se situa a cidade
de Roma, de onde realmente tudo teve início.
É bom reler o conteúdo da aula 2, do livro 1 de Fundamentos de Língua Latina, que trata
especificamente da ORIGEM E EXPANSÃO DO LATIM, algo que não se pode entender sem a
contextualização que o assunto requer. Lá você vai encontrar mapas, cronologias e outras
noções básicas para fundamentar o conteúdo da presente aula.
Não se esqueça: você está estudando FILOLOGIA ROMÂNICA, cujo enfoque é a evolução do
latim até às chamadas línguas românicas, entre as quais se situa a nossa língua portuguesa.
Muitos assuntos tratados nos módulos de Fundamentos de Língua Latina vão ser
obrigatoriamente necessários para a plena assimilação da matéria que estamos estudando,
sem contar com a viabilidade de estar sempre recorrendo às informações contidas nas aulas
anteriores deste próprio módulo.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Roma é o início de tudo. Se o povo romano nunca tivesse deixado o


seu pequeno espaço em busca de conquistar outros territórios - muitos
deles bastante longínquos - a configuração das línguas do mundo ociden-
tal certamente teria outro aspecto, até porque, se Roma não realizasse as
expedições que realizou, outros povos certamente o fariam e aí o aspecto
linguístico ganharia outra feição.
As línguas hoje denominadas Românicas são filhas do latim, precisa-
mente, do latim vulgar, a língua originária do LATIUM ou LÁCIO, região
da cidade de Roma e suas circunvizinhanças.
Este latim, levado às diferentes províncias conquistadas pelo exérci-
to romano, encontra-se com os falares de cada território conquistado, fa-
lares diferenciados de um território a outros. O resultado vai ser o seguin-
te: nem o latim e nem os falares nativos serão mais os mesmos.
O contato do latim com diferentes línguas vai, progressivamente, gerar
novos idiomas, os quais serão o próprio latim modificado por força das
línguas com as quais foi mantendo contato. Se todos os territórios con-
quistados falassem uma só língua, a modificação do latim teria uma única
configuração. Isso não aconteceu: cada língua neolatina é o reflexo do
contato da língua de Roma com cada província especificamente.

Românica Ocidental e Oriental.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 377).

54
Origem das línguas românicas
Aula

Este estudo é muito interessante até para você entender o que se


passa atualmente por efeito do contato de línguas. Elas se influenciam, se
5
modificam, se misturam, havendo um processo de perdas e ganhos em que
as línguas necessariamente estão implicadas.
Ao final desta aula, você terá uma idéia do processo que deu início às
línguas que hoje são faladas em muitas regiões do mundo e, certamente,
concluirá pela importância da língua latina em todo este contexto, pois,
na verdade, falar hoje português, espanhol, italiano, francês etc. nada mais
é do que falar o latim modificado por influência dos falares com os quais
se relacionou, os quais, de certa forma, também estão presentes nesses
idiomas atuais.

O LATIM

De um simples dialeto de camponeses e pastores das margens do rio


Tibre, em Roma, como era no início, o latim vai-se projetando à medida
em que o próprio território da Península Itálica vai sendo conquistado
pelos romanos. A situação geográfica privilegiada oferece aos romanos
condições estratégicas de domínio e conquistas a que os povos vizinhos
vão cedendo paulatinamente.
A fundação de Roma data de 753 a. C. e, daí, três fases importantes
de sua história relacionadas com as formas de governo se evidenciam:
1. Realeza – das origens a 509 a. C.
2. República – de 509 a. C. até 27 a. C.
3. Império – de 27 a. C. até 476 d.C.
Tais datas não têm muito a ver com a história do latim e das línguas
românicas, mas representam referências obrigatórias no entendimento da
contextualização em que a língua se situa e se vai modificando.
O certo é que os romanos não saíram de Roma com objetivos linguísticos,
ou seja, não se pretendia ensinar latim a ninguém; os objetivos eram políticos,
econômicos, territoriais, de submissão dos povos conquistados.
De certa maneira, muito se elogia o grau de tolerância com que eram
tratados os povos conquistados, isto motivado pela capacidade de absor-
ver outros povos numa espantosa dimensão territorial, verificada sobretu-
do entre os séculos V a. C. e II d. C. Esta era, na verdade, uma postura
inteligente, pois se tratava de conviver com populações de diferentes cultu-
ras já invadidas em seus limites geográficos, espoliadas de duas riquezas
materiais e submetidas à administração política sob o comando de Roma.
Para você ter uma idéia de como se expandiu o domínio de Roma, na
época do nascimento de Jesus Cristo, a Palestina e outras partes da Ásia
Menor eram dominadas pelos Romanos, mas nestes territórios a influência
do latim não parece ter sido tão forte como em outros lugares da Europa.

55
Filologia Românica

O filme A PAIXÃO DE CRISTO, de Mel Gibson, oferece uma boa


visão da presença romana entre os judeus: costumes, figurinos, falares,
religião etc. e a questão linguística aí é muito bem retratada, mostrando o
uso, indistintamente, do latim e do aramaico, embora afeito a cada comu-
nidade de falante.
É pena que não se tenha destacado a presença do grego neste contex-
to, haja vista ser também muito forte a importância desta língua. Jerusa-
lém, à época, era uma espécie de território em que circulavam várias etnias,
onde se praticava normalmente o câmbio de moedas para satisfazer as
necessidades dos visitantes destas nacionalidades (Marcos 11, 14). Ou-
tra informação curiosa é o fato de ter sido colocada sobre a cruz de Cristo
a justificativa de sua condenação para ser lida em três línguas: hebraico,
latim e grego (João 19, 20), facilitando, assim, pelo recurso à tradução, a
mais ampla compreensão pelos visitantes.

Cena do filme A Última Paixão de Cristo, de Mel Gibson. (Fonte: http://www.hollywoodjesus.com).

Estamos alertando, desde o início, para a importância de um certo


conhecimento do latim para bem trabalhar a filologia românica.
Aqui uma observação se impõe em relação ao grego: a compreensão
de alguns conteúdos passa muito perto das marcas que a língua grega
deixou no latim e, consequentemente, nas línguas que daí se originaram.
Os romanos nunca desprezaram a língua grega e muitos aspectos da cul-
tura romana revelam a interferência do grego, quando não a tradução ou a
cópia direta de seus valores. Este dado é muito importante para os estu-
dos de filologia românica até porque o latim, que tanto influenciou o
cristianismo, recebe, traduz e adapta muitas palavras da língua grega e as
contextualiza. Um exemplo: o apóstolo Paulo de Tarso escreve a sua Car-
ta aos Romanos (inverno de 57 / 58) em grego e, ao que parece, os roma-

56
Origem das línguas românicas
Aula

nos, que eram falantes do latim, não tinham dificuldade de entender o


que Paulo lhes dirigia em grego.
5
Ademais, existe forte semelhança na estruturação dessas duas lín-
guas: sistema das declinações, nomes dos casos, formação das palavras
etc. A mitologia grega, por sua vez, é quase toda transposta e assimilada
pela cultura latina, tendo reflexos bastante interessantes sobre os fatos da
língua devido aos significados contidos nas diversas denominações com
que os deuses, os lugares e o próprio mito são tratados.
Voltemos às conquistas romanas. O processo de Romanização apre-
senta algumas etapas:
a) Itália Peninsular. A expansão do poder de Roma começa aos poucos e
vai atingindo os povos vizinhos do Lácio (sabinos, volscos, equos, etruscos
etc.) até atingir toda a península.
b) Observe o mapa da Península Itálica (a tradicional forma de uma bota)
e visualize o Lácio e os povos circunvizinhos. Roma, em pouco mais de
meio século, já havia conquistado a Itália Peninsular, mas só vai conquis-
tar as ilhas da região (Sicília, Sardenha e Córsega) após a primeira guerra
púnica (264 a 241 a. C.). Conquistou também a região da Magna Grécia,
mais ao sul da Península.

As regiões da Itália Antiga.


(Fonte: ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004. p. 43).

57
Filologia Românica

c) Europa Mediterrânea. O próximo passo é favorecido pela situação ge-


ográfica mesma da península, facilitando a projeção de Roma na política
do Mediterrâneo e obrigando-a a vencer Cartago, a mais importante colô-
nia fenícia, detentora, desde tempos remotos, da exploração do comércio
marítimo. As lutas sangrentas por esta causa ficaram conhecidas como
Guerras Púnicas, numa alusão aos cartagineses, também chamados de
phoínicoi, ou seja, fenícios. Aos poucos, Roma ter-se-á estendido de Portu-
gal até o Líbano.
Livre por um certo tempo das ameaças de Cartago, Roma conquista
os territórios do norte da Itália (Ligúria, Ilíria e Gália Cisalpina).
Comandada por Aníbal, Cartago reage e dá ocasião à segunda guerra
púnica (219-201 a. C.). Vencedora, Roma começa a conquistar colônias
não itálicas, já em território da Ibéria.
Em 190 a. C., toma dos sírios a Anatólia e, posteriormente, (197 e
146 a. C.) submete a Macedônia e a Grécia.

Formação do Império Romano


(Fonte: ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004. p. 45).

Numa terceira guerra púnica, Cartago é, finalmente, arrasada (146 a.


C.), fazendo os romanos realizarem um sonho que vinham alimentando
há muito tempo contra a sua rival: DELENDA CARTHAGO =

58
Origem das línguas românicas
Aula

CARTAGO DEVE SER DELETADA, APAGADA DO MAPA,


DESTRUÍDA!
5
Avançando sempre, conquista a Lusitânia (139 a. C.) e, em seguida (
118 a. C. ), domina a Gália Narbonense (atual Provença).
d) Gália e Europa Central, Ásia Menor e Norte da África.
Sempre encontrando espaço favorável, Roma vai-se expandindo, guerre-
ando agora em três frentes principais: a Gália e a Europa Central, a Ásia
Menor e a África.
Na Ásia, atinge Chipre, a Bitínia, a Galácia, a Capadócia e a Síria
(incluindo a Palestina).
Na África, domina a Cirenaica e Creta (74 a. C.), a Numídia (46 a.
C.), a Mauritânia (42 a. C.) e o Egito (30 a. C.).
A expedição à Gália sob Júlio César (58 a 51 a. C.) é a mais importan-
te conquista da Europa continental. Prossegue, já na época de Augusto, a
submissão do Danúbio até a Récia (17 a. C.), a Nórica (17 a. C.), a
Panônia (9 a. C.) e a Mésia (23 a. C.).
A Britânia foi conquistada mais tardiamente (46 d. C.), mas o poder
de Roma sofreu muita resistência neste território e o aspecto linguístico
não teve o mesmo peso que em outras regiões conquistadas.
Conquistando a Trácia (46 a. C.), o Império Romano vai aos limites
naturais do Reno e do Danúbio e, com toda a expansão a que chegaram as
conquistas, atinge o Mediterrâneo. A este, por ser um mar fechado
(Medi+terrâneo = entre terras), aplica-se apropriadamente a denominação
de Mare Nostrum Internum, como se fora um grande lago.
e) Conquistas posteriores anexam os territórios da Caledônia (Escó-
cia atual, em 85 d. C.), a Dácia (atual Romênia, em 106 d. C.) e a Arábia
Pétrea. Já se trata, porém, de um período de enfraquecimento do Império
até a sua queda no ano de 476. O esfacelamento vai-se processando aos
poucos até mesmo porque, em um território tão imenso, a administração
central situada em Roma já não tem mais condições de assegurar todas as
conquistas e já se contavam 301 províncias. As fronteiras ficam vulnerá-
veis, o controle se torna quase impossível, populações bárbaras ameaçam
invadir e habitantes das províncias também manifestam hostilidades além
de apresentarem crescente diferenciação linguística. E, como se deu com
todos os grandes domínios, um dia Roma também caiu.

59
Filologia Românica

Principais centros de cultura do Império Romano.


(Conte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 355).

ASPECTOS LINGUÍSTICOS

Toda a exposição precedente pode parecer desnecessária, mas ela


possui um grande ponto de apoio a fim de que se entenda a
contextualização em que a língua latina, levada pelos romanos às provín-
cias, pouco a pouco, vai-se transfigurando graças ao contato com os fala-
res nativos dos povos conquistados.
Ao conquistar as regiões gregas (272 a. C.), os romanos usavam levar
para Roma homens cultos como escravos, os quais em muito contribuíram
para a implantação de uma cultura literária latina, o que não se dá sem a
profunda influência da cultura helênica. Um exemplo disso é Lívio Andrômaco,
que, em 240 a. C., apresenta sua primeira peça teatral, como também fizera
adaptação da obra de Homero para o latim com o mesmo nome de Odisséia.
Outras contribuições podem ser citados nesta mesma linha de adaptação
de trabalhos literários, abrangendo a tragédia, a lírica e dando início à forma-
ção de uma norma linguística latina sob a influência grega, a que se chamou
de sermo litterarius ou classicus. Tais normas conseguiram viger por muitos sécu-
los, embora sendo sempre atropeladas pelas influências regionais.

60
Origem das línguas românicas
Aula

Assim, pouco a pouco, se vão desenvolvendo duas maneiras de tratar


o latim: o sermo urbanus e o sermo plebeius. O primeiro se caracteriza pela
5
sua forma erudita, clássica e mais afeita à língua escrita ou aos discursos
dos oradores, poetas, escritores, gramáticos; o segundo reflete a fala po-
pular, gerada nos meios mais simples dos iletrados e tende a não seguir
regras e adaptar-se mais facilmente às circunstâncias da oralidade.
Foi justamente esta segunda modalidade de latim que acompanhou
os passos da Romanização. Falado por gente simples, era justamente a
língua dos que se deslocavam de Roma na rota de suas conquistas: solda-
dos, comerciantes, aventureiros e até de membros menos graduados da
administração pública. O latim que eles levavam já era, portanto, menos-
prezado na própria Roma. Deste latim quase não existem documentos
escritos e foi este latim que, encontrando-se com os falares de cada região
conquistada, sofreu forte influência e também influenciou sobre as lín-
guas que encontrou.
A necessidade premente, no entanto, não era linguística; era de so-
brevivência em novos espaços, onde deveriam permanecer por muito tem-
po, exercer o comércio, construir casas, estradas, constituir família etc.
Para bem compreender a origem das línguas românicas, tema princi-
pal desta aula, importa assimilar alguns conceitos básicos resultantes des-
te contato de diferentes falares.
A romanização tem profunda relação com o exército romano, daí o
termo estrato usado para entender este processo. A expressão grega stratos
significa exército, daí a noção de pessoas enfileiradas por ordem de hierar-
quia, como bem se observa no conceito de estratificação social, ou seja, a
sociedade concebida em camadas, em diferentes graus de importância,
como se costuma visualizar no desenho de uma pirâmide: no alto e em
menor quantidade estão os mais graduados e, daí descendo, chega-se à
base onde estão os menos graduados e em maior contingente.

61
Filologia Românica

A palavra estrato tanto remete à noção de exército que outros termos


daí derivados podem completar a exemplificação: estratégia, estrategista, es-
tratégico, nomes indicativos da ação planejada dos soldados (stratiotes =
soldado em grego) a fim de bem atingir os objetivos militares.
Com essa fundamentação, é possível notar a pertinência destes ter-
mos gregos aplicados ao processo de contato de línguas:
SUPERESTRATO – diz-se da língua de maior importância, aquela
que vem de cima, de fora e, embora usada por menor número de pessoas,
conserva posição privilegiada normalmente assegurada por outros fato-
res de ordem política, econômica, cultural, social, religiosa etc. Assim
aconteceu com o latim. Ele chegou com a força das armas dos soldados,
dos dominadores e a tendência é de que seja prestigiado pelos próprios
dominados, que vão até sentir vergonha da língua que vinham falando.
Não é de se estranhar que o latim nas províncias se tenha modificado
com menor rapidez do que nos territórios da Itália.
SUBSTRATO – é o termo usado para as línguas de base, aquelas que
os romanos encontraram em cada território conquistado. A tendência é
tê-las por inferiores, de menor prestígio, o que quase sempre é alimentado
pelo próprio falante nativo, cujos filhos, muitas vezes, já não querem mais
se expressar na língua materna, no afã de assimilar os valores dos povos
que os subjugaram e negociar certos postos de comando por questão de
sobrevivência e adaptação à nova ordem.
ADSTRATO – é o que se diz quando o contato das línguas, mesmo
evidenciada a questão do prestígio, não consegue eliminar certas expres-
sões usadas e já enraizadas quando da chegada do dominador. Neste as-
pectos, o latim teve de conservar muitos termos gregos em seu vocabulá-
rio ou adaptá-los mediante o mesmo processo com que foram formados
na língua de menor prestígio. O adstrato é, por assim dizer, um forma de
convivência pacífica muito motivada, às vezes, pela questão comercial.
O mais necessário é vender o seu produto, não importando o nome com
que seja identificado.
Observe um exemplo interessante: o conceito de cavalo pode ser usa-
do até na atualidade mediante três configurações: a grega ippos = hipismo,
hipódromo, Filipe; a latina clássica equum = equestre, equino, égua; a lati-
na vulgar caballum = cavalo, cavaleiro, cavalar. Assim aconteceu com
muitas palavras e você mesmo pode enriquecer a ilustração com outros
exemplos igualmente interessantes.
Tente, pois, realizar o que se propõe acima!
Quando os soldados voltavam à terra de origem, certamente já trazi-
am uma linguagem modificada, o que exercia um forte contágio sobre a
língua de Roma. O mesmo se pode dizer das pessoas de cada província
que iam a Roma, dos filhos dos senhores ricos ao voltarem de seus estu-
dos na capital do império.

62
Origem das línguas românicas
Aula

Não há como evitar este contágio e ele vai minando por dentro as
línguas vivas, sem contar as dificuldades naturais na realização de certos
5
fonemas, o que já vai dando novas feições a certas palavras.
Até hoje é assim. O trabalho de filologia românica torna-se muito
mais interessante na medida em que se percebe que fenômenos antigos
ainda se repetem e que, tal como ocorreu com o latim, as línguas não
param de variar, num processo dinâmico gerador de novos fatos. Tornam-
se os estudos ainda mais produtivos quando se consegue entender um
certo percurso que vai direcionando as ocorrências variacionais e a
pertinência com que os fatos se verificam.

CONCLUSÃO

Esta aula é muito densa, pois aborda muitos aspectos da romanização


e requer o conhecimento de dados provenientes das ciências auxiliares
deste estudo. O que, porém, mais se evidencia é a capacidade administra-
tiva de Roma, justamente baseada numa certa tolerância para com as
culturas e as religiões dos povos conquistados.

Segundo afirma Walther von Wartbourg,

parece quase inconcebível que uma força originária de uma única


cidade, durante cerca de três séculos, tenha conseguido unir, numa
sequência quase ininterrupta de vitórias, todos os países em volta
do Mediterrâneo e ainda mais distante em direção ao Norte. É
ainda mais difícil compreender que todos estes povos, todas estas
raças, inumeráveis, dispersas, tenham podido chegar a uma única
forma de civilização, uma única comunidade de língua... As medidas
de violência com a finalidade de assimilação linguística eram sempre
inteiramente estranhas aos conquistadores. Eles contentavam-se
com a dominação política (cujo corolário era o direito de fazer
justiça) e com a penetração econômica dos países. O que vinha em
seguida se processava como consequência natural da superioridade
de Roma em todos os domínios” (p. 37-38) (a tradução é nossa).

63
Filologia Românica

RESUMO

O surgimento das línguas românicas vai de par com a trajetória do


latim levado às províncias pelos soldados no processo de conquista e
dominação de territórios que já possuíam as suas marcas linguísticas an-
tes da chegada dos romanos. Cada língua neolatina é o reflexo deste con-
tato em que há perdas e ganhos para ambas as partes e o resultado é um
novo idioma que se vai forjando. As novas línguas serão tantas quantas
forem os substratos com que o latim teve de conviver, influenciando e
sendo influenciado.
Uma certa compreensão histórica, política, geográfica e cultural con-
fere aos estudos da filologia românica maior segurança nas abordagens
dos conteúdos, ampliando a ótica de trabalho para muito além das consi-
derações de puro cunho linguístico. Na verdade, a língua está inserida
num contexto que é a própria vida do homem em sociedade.
Habitue-se a visualizar os mapas, identificar os territórios por onde o
latim deixou suas marcas, reveja nomes de lugares e de pessoas envolvi-
das no processo e exercite-se na construção de seus próprios exemplos,
dando maior ênfase ao lastro conceitual que aqui foi apresentado.
Em suma, a trajetória do latim legou ao mundo a valiosa contribui-
ção dos seguintes idiomas:

Português (galego português)


Castelhano
Catalão
Provençal
Francês
Rético
Sardo
Italiano
Dalmático
Romeno.

São eles que fazem o objeto de nossas investigações na presente disciplina.

64
Origem das línguas românicas
Aula

ATIVIDADES 5
Esta aula é muito densa devido à grande quantidade de nomes, datas,
fatos e lugares sem os quais fica muito difícil compreender o verdadeiro
conteúdo aqui exposto. Procure, portanto, somente responder às ques-
tões quando tiver pleno domínio dessas informações.

Questão 1.
a) Explique como e a partir de onde se inicia a expansão do latim pelo
mundo.
b) Por que se diz que a questão linguística não era de fundamental impor-
tância para as conquistas romanas?
c) Qual a função desempenhada pelo exército no processo de romanização?
d) Defina e exemplifique SUPERESTRATO, SUBSTRATO e
ADSTRATO.
e) Que importância tem o grego para os estudos de filologia românica?
f) Explique as modalidades que a língua latina já apresentava no próprio
território italiano.
g) Que causas são apontadas para a decadência do Império Romano no V
século?

Questão 2.
a) Com o auxílio dos mapas, relacione as grandes áreas conquistadas pelo
império romano.
b) Assinale alguma região em que o aspecto linguístico não obteve êxito.
Por quê?
Aponte nos mapas, por ordem cronológica, as diferentes etapas das expe-
dições romanas.

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Essas questões cobram, na verdade, os conteúdos desta aula numa


perspectiva de pesquisa que deve que se deve conduzir mediante a
consulta a outras obras complementares. Importante é você ter
assimilado, em linhas gerais, tudo quanto foi exposto nesta aula. O
recurso aos mapas e a continuidade da elaboração do glossário
permitem a você a construção de um lastro teórico que vai sempre
servir de apoio a outros momentos do estudo desta disciplina.

65
Filologia Românica

Prossiga na elaboração do glossário que já vem sendo sugerida desde


a primeira aula. Isto faz parte de uma conduta pessoal de estudo que
vai dando a você condições de confeccionar seu próprio material de
trabalho.
Lácio / Etruscos / Oscos / Úmbios / Equos / Romanização /
Península Itálica / Guerras Púnicas / Cartago / Fenícia / Ligúria
/ Ilíria / Gália Cisalpina / Ibéria / Península Ibérica / Lusitânia /
Gália Narbonense (Provença) / África do Norte / Ásia Menor /
Chipre / Bitínia / Galácia / Capadócia / Síria / Cirenaica /
Creta / Numídia / Mauritânia / Egito / Danúbio / Récia /
Nórica / Panônia / Mésia / Britânia / Trácia / Reno / Danúbio
/ Mediterrâneo / Caledônia / Dácia / Arábia Pétrea / Cultura
Helênica / Sermo Litterarius ou Classicus / Sermo Plebeius / Estrato
/ Superestrato / Substrato / Adstrato /

REFERÊNCIAS

BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-


lo: EDUSP, 2005.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WARTBOURG, Walther von. Les origines des peuples romans. Tra-
dução de Claude Cuénot de Maupassant. Paris: PUF, 1941.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

66
Aula

6
FATORES DA ROMANIZAÇÃO

META
Compreender a política de Roma para com os povos conquistados e a consequente adoção da
cultura latina pela população das diversas províncias.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
conhecer os diferentes fatores implicados no processo de latinização;
analisar a expansão da língua latina no contexto de relativa tolerância com que a administração
romana tratava os valores religiosos e culturais de cada província;
evidenciar as reações das províncias perante o invasor romano e as suas consequências no
âmbito linguístico.

PRÉ-REQUISITOS
Como sempre vem sendo dito, vale reconhecer, no âmbito dos estudos aqui propostos, o
caráter acumulativo com que os assuntos estudados vão-se fazendo necessários na
compreensão de novos conteúdos. As aulas se sucedem em cadeia e cada nova exposição
implica, certamente, a referência aos dados anteriormente discutidos.
Continuam valendo também os conhecimentos fundamentais do latim, pois, na verdade, é de
sua evolução que estamos aqui tratando e este processo evolutivo durou séculos, implicou
diversas culturas, reuniu diferentes falares.
Adotando uma postura eclética, você estará abrindo os caminhos para adquirir bons
conhecimentos da filologia românica, preparando, quem sabe, novos rumos de continuidade
dos estudos nesta área logo após a graduação.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Latinização e Romanização remetem à mesma fonte de conhecimento,


ou seja, referem-se ao processo em que, pouco a pouco, a língua e a cultu-
ra latinas foram sendo assimiladas pelos povos dominados nos diferentes
territórios sobre os quais se impôs o poderio de Roma. Comenta-se que a
postura administrativa dos romanos nas províncias dominadas primava
pela tolerância com que eram tratadas as religiões locais, bem como mui-
tos traços culturais, desde que não entrassem em choque com a civiliza-
ção invasora e o seu tão propalado Direito Romano (Ius Romanum).
Deve-se, porém, considerar que, por mais flexíveis que tenham sido
os romanos, invasão será sempre invasão, implicando da parte do domi-
nado a convivência com uma situação que ele não desejaria que aconte-
cesse: ver suas terras ocupadas, seus concidadãos obrigados a prestar
obediência a um povo que chega de longe, de repente e, com o poder das
armas, se faz dono de toda uma situação na qual estão implicados valores
ancestrais de língua, religião, etnia, costumes, coisas que conferem a cada
povo o caráter de nação que o diferencia de outros povos.
É preciso, portanto, que a marca de tolerância tão elogiada na postu-
ra do conquistador romano seja vista com certa reserva e que, sobretudo,
não faça esquecer a violência mais íntima com que cada povo dominado
encarou a presença incômoda do invasor em seus territórios.
Não há referencial positivo que faça apagar a ferida interna causada
pela destruição dos valores mais caros de uma nação, algo que está alia-
do, quase sempre, à destruição material, incendiária, arrasadora com o
dominador quer demonstrar a sua força.
Mas, enfim, a romanização aconteceu e tantos povos, de língua, raça
e cultura diferentes, adotaram, pelo menos em parte, a língua e a cultura
dos vencedores, tornando este um fenômeno único na história da huma-
nidade pela sua extensão territorial e pelo grande espaço de tempo em
que consegue se manter.
Esta aula vai apresentar e analisar os fatores implicados neste processo.

68
Fatores da romanização
Aula

ROMANIZAÇÃO 6
Já se disse anteriormente que Roma não tinha objetivos linguísticos
em suas expedições de conquista. Quando se evidencia a tolerância da
administração romana para com os povos dominados, não se pense que
esta postura envolvia todos os aspectos da vida. Roma tolerava as religi-
ões e culturas e até contribuía para a sua manutenção desde que não se
opusessem aos princípios do direito e da justiça por ela concebidos, o
célebre Direito Romano. Nunca, porém, abriu mão da parte econômica e
sempre cobrou religiosamente os impostos que lhe considerava devidos.
Temos, nos evangelhos, um excelente demonstrativo da postura ro-
mana numa terra dominada. A Palestina da época de Jesus era adminis-
trada pelos romanos, que cobravam os impostos deste povo, mas enfren-
tavam sérios questionamentos da população: É justo pagar tributo a César
ou não? (Mateus 22, 15-22).
A pergunta era capciosa e desafiadora, Jesus, aparentemente, não te-
ria saída. Se recomendasse pagar o imposto, viria a reação violenta dos
compatriotas que ali estavam: Então estás contra o teu povo e a favor destes
invasores? Se dissesse o contrário, haveria, imediatamente, a acusação de
que Jesus era contra o poder de Roma na sua terra, o que, certamente, o
faria prisioneiro dos romanos como sendo um agitador. E a resposta veio
com profunda sabedoria: De quem é esta moeda? De quem é o rosto que ela
estampa? ...Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Sabe-se da existência de bajuladores e aproveitadores, que congrega-
vam simpatizantes sob a denominação de herodianos, declarando apoio aberto
às forças dominadoras, o que, com certeza, não se fazia sem a negociação
de cargos, posições e privilégios. Coisas da política de ontem e de hoje...
A terra bíblica, no entanto, é também um demonstrativo da antipatia
e da aversão que a presença dos romanos suscitava, havendo, inclusive,
um grupo de resistência política, uma espécie de guerrilheiros intitulada
de Zelotas, recorrendo, não raras vezes, ao poder das armas contra a domi-
nação romana. Os judeus possuíam, como nenhum outro povo, a consci-
ência de ser o povo eleito de Deus, daí ser mais difícil aceitar ser domina-
do por uma nação de cultura essencialmente politeísta e de práticas mo-
rais permissivas e levianas.
O termo remete a zelo, sentimento de ciúme amoroso, pelo fato de ver
alguém desejar a pessoa amada e dela querer apropriar-se sexualmente.
O termo na sua origem designa um movimento político judaico do
século I com a finalidade de incitar o povo da Judéia a rebelar-se contra o
Império Romano. O resultado foi a rebelião judaica ocorrida entre 66 e
70, levando outras facções (fariseus, saduceus e essênios) a também rea-
girem contra o poder de Roma, o que teve por desfecho a destruição de
Jerusalém e do Templo de Salomão pelos romanos, temerosos de que os
protestos na Judéia tivessem efeitos semelhantes em outras províncias.

69
Filologia Românica

Se todos os compêndios de filologia românica destacam e enaltecem


a tolerância dos romanos e a aceitação quase tácita de todos os povos ao
poder do invasor, é preciso ter cautela quando se trata de certos povos
dominados, a exemplo dos judeus. Sabe-se também que a tolerância ro-
mana tem seus limites e que, numa terra estranha, os administradores do
império a exemplo dos judeus e que, numa terra estranha, também viviam
temerosos e não faltavam motivos para tanto, haja vista as constantes
manifestações de insatisfação dos povos nativos, chegando, muitas ve-
zes, ao recurso das armas e ao derramamento brutal de sangue.
As reações do poder chegam a absurdos terríveis como fizera Herodes
ao mandar matar todas as crianças com idade inferior a dois anos pelo
simples receio de que algum rei lhe pudesse ser superior (Mt 2, 16-18).
Também são conhecidas as perseguições cruéis movidas, desde Nero,
contra os cristãos, cuja ideologia parecia querer abalar os alicerces do
poderio de Roma.
Outros casos poderiam ser ventilados, no entanto temos o suficiente
para perceber o quanto é relativa a tão propalada e elogiada tolerância
dos romanos para com os povos conquistados.
No início de todo o processo de conquistas, os romanos até foram
violentos em extremo querendo submeter a todo custo as populações do-
minadas. Aos poucos, porém, o costume de arrasar cidades e levar para
Roma a população escravizada vai cedendo lugar à postura de criar a boa
convivência no próprio território tornado província romana. Até porque o
costume de transportar para Roma as populações subjugadas acabou por
trazer sérios problemas para a sede do Império, tais como o superpovoamento
da cidade, as dificuldades de conseguir provisões suficientes para matar a
fome da população, problemas de moradia e ordem pública etc.
Reforçando o que já se disse, Roma não impunha sua língua, mas
permitia o livre uso de cada idioma nativo, de tal sorte que a romanização
ou a latinização acontecerão de forma indireta, na qual, segundo Bruno
Fregni Basseto (Cf. p. 103-110), estão implicados os seguintes fatores:

O EXÉRCITO ROMANO

O exército romano era muito bem organizado em suas subdivisões a


fim de facilitar o comando e o controle dos chefes sobre as tropas. Deve-se
à estrutura militar o trabalho inicial de conquista e ocupação dos territórios
e, logo em seguida, a realização de casamentos com as mulheres do local
amplia a integração em cada província. Com a expansão territorial acentu-
ada, aos poucos, os soldados (milites), antes recrutados apenas entre os ple-
beus da península itálica, passam a ser buscados nas diferentes províncias.
A organização militar, como ainda hoje se observa, mantém-se à par-
te do comum da população em acampamentos de difícil acesso. Tais alo-

70
Fatores da romanização
Aula

jamentos ou colônias militares, em latim castra, castrorum, passam a idéia


de isolamento, de vida à parte, tal como se pode ver no termo latino, cuja
6
etimologia remete à família em que também se enquadra a noção de castrare,
ou seja, segregar, pôr à parte. Em termos linguísticos, fala-se de um sermo
castrensis, que traduz as particularidades do linguajar dos soldados.
Neste sentido, não se pode acentuar demasiadamente a atuação dos mi-
litares como fator de integração; eles até o foram, mas na medida em que
eram obrigados, por força do próprio ofício, a estar perto do povo e a manter
com ele algum tipo de relacionamento. Outros setores podem ter igual ou
maior importância no que tange à divulgação da língua e da cultura de Roma.

AS COLÔNIAS CIVIS

Tais colônias, também conhecidas por colônias agrárias, eram organi-


zações menores, onde se instalavam cerca de 300 pessoas e tinham a
finalidade de manter a ordem, reprimir possíveis rebeliões e produzir ali-
mentos e bens de consumo. Povoando rapidamente campos e cidades,
aceleravam também o processo de latinização, em que a língua e a cultura
de Roma iam facilmente sendo assimiladas e ainda se conservam mesmo
após a invasão dos bárbaros.
Nestes espaços ocupados pela população ampliam-se as possibilida-
des de contato, pois a necessidade de contato se faz bem mais intensa e as
pessoas, devendo estabelecer relações de todo tipo, têm a língua como
forte fator de integração.

A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

O poder de Roma, por meio de representantes confiáveis, pratica-


mente se deslocava para as províncias nos mesmos moldes com que era
exercido na capital do império. Os administradores locais tinham, além
do poder administrativo, o comando da guerra, a interpretação e a aplica-
ção das leis e até o exercício da pena de morte. O objetivo era manter a
ordem e evitar rebeliões, em total fidelidade às orientações de Roma.
Pessoas ligadas à administração e funcionários mais graduados per-
tencem à aristocracia romana fazendo uso, portanto, do latim mais erudi-
to, o sermo urbanus. Eles mantém contato mais frequente com a capital,
contribuindo para uma certa unidade do latim erudito por ser também a
língua oficialmente usada nos documentos e levando, de algum modo,
esta modalidade de língua até às províncias, fato que, certamente, deixa
reflexos sobre os falares mais simples recebendo também a influência deles.
A grande influência dos administradores, porém, possui maior peso
em meio às elites dominadas, que, à busca de títulos e cargos, tudo farão
para assimilar a língua do dominador.

71
Filologia Românica

AS OBRAS PÚBLICAS

Muito se comenta sobre as grandes obras que marcaram a ação da


administração romana. Inicialmente, as estradas pavimentadas com pe-
dras refletem a preocupação de facilitar o acesso aos principais pontos
dentro da própria Itália e com as províncias mais próximas e até as mais
distantes, sendo notáveis os pontos de apoio aos viajantes e os serviços
de manutenção constante.
Destacam-se ainda as obras para o abastecimento de água às cidades,
nas quais se evidencia a competência técnica para criar reservatórios,
fontes, termas, piscinas, saunas e consumidores particulares, para cuja
administração se contava com a responsabilidade da comunidade.
Roma incentivava também os espetáculos públicos, construindo, para
isso, teatros e estádios e, como é de se esperar, o latim teve papel prepon-
derante nesses lugares.
Outros edifícios revelam o tipo de cultura da população romana: tem-
plos, arcos, bibliotecas, mausoléus podem ser também vistos como luga-
res de irradiação da língua latina. Quanto às escolas, nunca houve o de-
senvolvimento de um sistema próprio do Estado, mas é conhecido o em-
penho em valorizar pessoas de cultura, tais como os mestres gregos muito
bem acolhidos na comunidade romana.

O COMÉRCIO

Todos os compêndios de filologia românica destacam a presença do


exército romano como veículo de transformação e difusão do latim vulgar,
mas não se pode esquecer a valiosa contribuição de todos os que se deslo-
caram de Roma até às províncias, sobretudo os comerciantes, cujo contato
com as populações dominadas se fez com bem maior intensidade.
Importa, no entanto, repetir que a influência sobre a transformação
do latim e dos falares locais se opera de forma indireta, isto é, sem a
intenção de operar realmente sobre a linguagem.
Algumas atividades merecem especial destaque: taberneiros, negoci-
antes, armadores e negociadores (banqueiros, industriais e donos de
entrepostos). Todos eles são importantes no processo de transformação
do latim e das línguas autóctones.
Tal como ainda hoje acontece, muitos fatores contribuem para a dis-
seminação de uma língua. Para isso, nem sempre se faz necessário um
propósito de cunho verdadeiramente linguístico: as próprias circunstân-
cias da vida vão favorecendo o uso da linguagem e o contato com outros
falares, o que leva, muitas vezes, a transformações e adaptações de toda
ordem, refletidas, como se verá adiante, no domínio fonético, morfológico,
sintático e semântico. Foi assim com o latim e o fenômeno se repete tam-

72
Fatores da romanização
Aula

bém na atualidade quando as línguas se relacionam entre si por força das


necessidades comunicativas.
6
O papel da escola aparece posteriormente e quase sempre após ter
lutado com todas as forças contra as possíveis adaptações, variações,
querendo que vigore, inalteradamente e a todo custo, uma língua padrão
sem defeitos, sem contaminações.
A este exemplo, os manuais de Filologia Românica costumam falar
das reações de um gramático chamado Probus (século III), professor em
Roma ou no norte da África. Num documento conhecido como Appendix
Probi, ele apresenta uma relação de mais de 200 erros e suas respectivas
correções. Na realidade, ele fez exatamente o que fazem hoje os gramáticos
que se acham guardiões de uma única forma possível da língua e se es-
candalizam com as modalidades que vão surgindo e se impondo pelas
vias do vulgar. Entre outras coisas, ele reclama de que o povo diz:

Articlus em lugar de articulus


Paupera mulier em lugar de pauper mulier
Nura em lugar de nurus
Socra em lugar de socrus
Speclum em lugar de speculum
Masclus em lugar de masculus

Se mais tempo ele vivesse, certamente teria outros dissabores ao cons-


tatar que, no âmbito da língua portuguesa, por exemplo, as variações pros-
seguiram, respectivamente, para as formas: artelho, pobre mulher, nora, so-
gra, espelho e macho.
Este assunto será visto mais adiante ao ser abordada a questão dos
metaplasmos, mas é importante observar, por meio dessas ilustrações,
como começam a acontecer certas modificações, tais como a redução do
número de declinações, a caracterização de gênero e a adaptação fonética
mediante a aplicação dos metaplasmos.

73
Filologia Românica

CONCLUSÃO

Mesmo sem ter objetivos expressamente linguísticos em suas ações


invasoras, o povo romano leva a língua latina a todas as regiões conquis-
tadas e consegue, pouco a pouco, transformar as línguas autóctones, mas
não sem ver também profundas transformações no próprio latim. Neste
processo denominado de romanização, incluem-se os fatores culturais, eco-
nômicos e políticos e, assim, o que daí resulta constitui-se um todo com
características próprias: o latim e os falares autóctones inteiramente mo-
dificados, fundidos em novos idiomas contendo as marcas de ambos, mas
inteiramente diversificados de região para região.
Uma certa tolerância dos romanos permite que as línguas e culturas
autóctones também exerçam influência, mas nunca se deve esquecer que
o dominador nunca dispensará o controle da situação. A queda do Impé-
rio Romano acontece após sucessivos lapsos que facilitam, paulatinamente,
as invasões bárbaras e a perda total do controle sobre as fronteiras e as
cidades estabelecidas. Como se verá adiante, este será o terreno propício
para a afirmação progressiva dos romances, os quais, também incentiva-
dos pela Igreja, vão adquirindo status próprio de língua desprendendo-se
cada vez mais do latim.
Assim a romanização vai ceder lugar à cristianização e a Igreja vai cres-
cendo em poder e prestígio, fazendo-se presente em todas as regiões con-
quistadas pelos romanos e ditando aos poucos uma nova origem motiva-
da pelo trabalho de evangelização.
Outrora perseguida sob quase todos os imperadores a partir de Nero
(54 – 68) e obrigada a refugiar-se nas trevas das catacumbas, a Igreja vai
ganhando força desde que o imperador Constantino (início do século IV)
se converte ao cristianismo e passa a conceder regalias e privilégios ao
clero e aos cristãos.
Em muitos aspectos, são adotados os modelos administrativos dos
romanos e muitas denominações que ainda povoam os meios católicos
(paróquia, diocese, província, cúria, sumo pontífice, sua santidade etc.)
não passam de simples empréstimos.
Tudo isso tem profundo reflexos sobre o fato linguístico e uma nova
realidade se visualizada desde a queda do Império Romano e a progressi-
va ascensão da Igreja: é o caminho livre para a afirmação dos romances.
O poder e a influência de Roma sobre as províncias são coisas algo
que se vão construindo paulatinamente, sendo muitos os fatores implica-
dos nesse processo. O resultado final do que foi a transformação do latim
e dos falares nativos é, na verdade, uma soma de valores que provêm de
diferentes ângulos. Há muitos setores implicados neste processo, sendo
maior ou menor a influência de cada um a depender do momento ou das
circunstâncias, mas uma coisa é certa: a partir de um certo momento, nem

74
Fatores da romanização
Aula

o latim nem as línguas autóctones terão mais as mesmas configurações


anteriores e os passos vão evoluindo até as novas modalidades que as
6
línguas implicadas adquirem.
Em filologia românica, essas são as considerações básicas para que
se entendam os momentos posteriores até o desfecho daquilo que hoje se
pode chamar de línguas neolatinas ou línguas românicas.

RESUMO

Importa fixar os conceitos de Latinização e Romanização que fazem


pensar no processo em que, pouco a pouco, a língua e a cultura latinas
foram sendo assimiladas pelos povos submetidos ao poderio de Roma.
Apesar de todos os manuais de filologia românica fazerem alusão à pos-
tura tolerante com que Roma tratava os povos dominados, não se pode des-
conhecer o outro lado da questão quando os administradores romanos se
mostram fortemente violentos perante qualquer suspeita de reação negativa
por parte dos dominados. Um exemplo bastante visível diz respeito à domi-
nação romana na Palestina dos tempos do nascimento do cristianismo.
Não se pode negar que o desenvolvimento do Império Romano che-
gou a dimensões inacreditáveis e que para isso tenha contribuído uma
certa filosofia do bom viver provinda de Roma. Nada, porém, seria possí-
vel sem a interferência de outros setores destacados no conteúdo desta
aula: o exército, as colônias, o comércio, a administração etc. Cada um
desses setores vem acrescentar uma contribuição específica ao processo.
Importante é ter uma visão de conjunto sem negligenciar, portanto, qual-
quer um dos aspectos e ver a romanização que vai acontecendo lenta-
mente, gerando um fato linguístico único na história dos povos. Até hoje
o latim se faz presente, embora transformado nas diferentes línguas que
pôde originar tendo penetração ampla em vários territórios do mundo.
Latinização e Romanização referem-se ao processo de assimilação pro-
gressiva da língua e da cultura latinas nos diferentes territórios domina-
dos pelo poderio de Roma. Mesmo sendo tolerantes em alguns aspectos,
os romanos conseguem subjugar e até aniquilar muitos valores dos povos
dominados, muito embora os falares locais fundidos ao latim tenham ori-
ginado as línguas latinas ainda vigentes.
Alguns povos, a exemplo dos judeus na Palestina, reagiram fortemente
ao domínio de Roma e os traços deixados pelo latim nesta região não che-
gam a criar novos idiomas. Como também ocorre em outros lugares, muitos
tiram proveito da presença dos invasores e adquirem cargos e privilégios,
mas isso não atinge a maioria da população, que até se organiza em movi-
mentos de guerrilha para livrar-se da presença incômoda do dominador.
Ainda que sem objetivos declaradamente linguísticos, o latim teve a
seu favor as ações do exército romano e de outros setores da sociedade

75
Filologia Românica

romana, que necessitavam usar a língua como veículo de comunicação


com as populações conquistadas. Serviram ainda de meio para a divulga-
ção do latim as estradas, os monumentos, moedas e documentos escritos
sob os mais variados pretextos.
O certo é que novos falares vão surgindo motivados por circunstân-
cias diversas refletindo, sobretudo, a necessidade e o poder da comunica-
ção em todos os seus aspectos.

ATIVIDADES

a) Explique em que consiste o processo de romanização ou latinização.


b) Como você explicaria a tão propalada tolerância na postura dos roma-
nos para com os povos conquistados?
c) Que exemplo de resistência ao poder de Roma nos oferecem os povos
palestinos dos inícios do cristianismo?
d) Apresente detalhadamente as contribuições de cada setor da vida ro-
mana para a expansão da língua e da cultura latinas.

Continue o trabalho de ir construindo o glossário. Todos os conceitos


básicos devem ser perfeitamente assimilados, pois eles sempre se
mostrarão necessários na continuidade dos estudos filológicos.
Prossiga a pesquisa com as palavras desta aula e vá acrescentando
novas informações às anteriores, sempre guardando a ordem
alfabética.
Eis os termos novos:
Latinização / Romanização / Zelotas / Fariseus / Saduceus /
Essênios / Exército Romano.

76
Fatores da romanização
Aula

REFERÊNCIAS 6
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
GALVÃO, José Raimundo. Alomorfias do léxico português. São Cris-
tóvão: EDUFS, 2008.
_______. Fundamentos da língua latina. Universidade Federal de
Sergipe. São Cristóvão - CESAD : EDUFS, 2008. 2 v.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Tradução de Mar-
cos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

77
Aula

7
O LATIM E SUAS EVOLUÇÕES

META
Compreender as transformações havidas no latim vulgar e sua relação com o surgimento dos
diferentes romances.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
Conhecer as diferentes modalidades do latim.
identificar as fontes documentais do latim vulgar;
compreender as transformações que deram origem às diferentes línguas românicas;
acompanhar o percurso do latim vulgar em suas diversas transformações ocasionadas pelo
contato com outras línguas e culturas;
identificar as características do latim vulgar em seus aspectos variados: fonológicos,
morfológicos, sintáticos e semânticos;
compreender a relação entre a evolução do latim vulgar e a expansão do cristianismo.

PRÉ-REQUISITOS
Os estudos de filologia românica estão intrinsecamente ligados aos conhecimentos
fundamentais de língua latina. Muito da terminologia usada nesta disciplina assim como outros
dados necessários para o conhecimento histórico da transformação das línguas só podem ser
verdadeiramente assimilados mediante um certo conhecimento do latim, de sua estrutura e de
sua configuração como língua. Daí ser indispensável estar sempre recorrendo aos estudos
anteriores do latim.
Outro prerrequisito refere-se aos conhecimentos de cunho histórico visando à compreensão
das relações entre romanização e cristianização. Sabe-se do grande impulso dado pelo
cristianismo à divulgação e expansão da língua latina, mas também é indispensável perceber o
quanto a Igreja Cristã foi de fundamental importância para o desenvolvimento e a concretização
das línguas românicas.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

A língua levada pelos conquistadores romanos às províncias era, na


verdade, a versão mais popular do latim, ou seja, o latim vulgar, o idioma
das grandes massas e continha diferenciações significativas em relação ao
latim clássico, usado por uma pequena elite e tendo feições literárias bas-
tante acentuadas.
O termo latim vulgar (sermo plebeius ou sermo rusticus) também aparece como
latim popular, latim familiar ou latim cotidiano expressões que mais se afinam ao
ponto de vista social e sincrônico em que a língua se insere. Também se fala
de romance comum ou protorromance na tentativa de situar os fenômenos não
clássicos em uma perspectiva histórica, com base nas línguas romances.
Outra modalidade de língua latina é conhecida como latim clássico (ser-
mo eruditus ou sermo urbanus) e, conforme indica o próprio nome, reflete a
linguagem das camadas mais letradas da população, ou seja, das pessoas
intelectualizadas.
Não se pode imaginar uma oposição radical entre essas duas modali-
dades de latim como se existissem duas línguas inteiramente diversas. Na
verdade, as dominações vulgar ou clássico apenas designam duas faces
de um mesmo idioma, de uma mesma configuração linguística, sendo a
primeira de feição mais popular e mais afeita à oralidade e a segunda de
característica mais erudita e bastante documentada em textos literários.
Assim, não se pode ter do latim a noção de uma língua unida e fixada
para sempre, sem possibilidades de sofrer transformações. Existem, como
é normal em qualquer língua, muitas variantes da língua de Cícero, mas,
em resumo, se diga que a primeira variante era a língua do povo; a segun-
da, a língua da aristocracia romana e a terceira não era senão estilização
da norma linguística aristocrática.
Para os estudos filológicos da romanística, interessam as configura-
ções do latim vulgar, de onde provieram as línguas neolatinas, sendo inte-
ressante saber como essa variedade latina foi levada aos quatro cantos do
império, dando início aos processos de latinização das províncias.
Antes da expansão romana, a Itália era apenas um mosaico de raças:
gauleses ao norte, etruscos e latinos mais ao centro e gregos ao sul e, nos
seus primórdios, o latim era somente um dialeto de Roma, situada no
coração do Lácio. Iniciada a expansão pela Península Ibérica, o poder de
Roma vai conquistando territórios mais distantes e defrontando-se com
línguas e culturas diferentes, algo determinante para a transformação do
latim. Outro passo é conquista do Mediterrâneo que viria após as Guer-
ras Púnicas travadas contra Cartago. E o poder de Roma vai mais além,
incluindo: Macedônia, Síria, Grécia, Egito, Península Ibérica e outras.
Notam-se as diferenças entre as modalidades do latim aqui já citadas
nos aspectos lexicais, fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos,
o que será o grande objetivo desta aula. A princípio, a distância que sepa-

80
O latim e sua evolução
Aula

rava as modalidades do latim não eram tão fortes, mas elas já se podem
notar desde o século IV a. C. Sendo o vocabulário praticamente o mesmo,
7
as modalidades de emprego da língua nunca foram realidades tão isolada-
mente que não permitissem entendimento entre elas. Ademais, as classe
sociais, apesar de possuírem características próprias, mantinham certos
contatos em que o uso da língua era elemento comum: comércio, escola,
teatro, circo etc.
Importa reconhecer que, antes mesmo de ser levado às províncias, o
latim já conhecia variações internas denotando a existências de falares
diversos num mesmo âmbito linguístico. O assunto desta aula vai tratar
de todas essas variações, as quais foram assimiladas, desta ou daquela
forma, pelos novos falares provenientes dos contatos externos ao territó-
rio do Lácio e de toda a Itália.
É preciso visualizar nos mapas o percurso da língua latina desde o
território limitado do Lácio, de onde se partiu para conquistas de
imprevisíveis dimensões.

Romana Contínua (segundo A. ALONSO e VIDOS).


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 378).

81
Filologia Românica

O LATIM

O sermo urbanus ao qual está associado o sermo litterarius possui uma


farta documentação escrita sob a forma de textos de oratória e epistolares,
obras poéticas, inscrições oficiais em monumentos, documentos, trata-
dos diversos de medicina, culinária, arquitetura etc. O latim vulgar tam-
bém chamado de sermo rusticus ou sermo quotidianus, por sua vez, não dis-
põe de muita documentação escrita, mas as poucas que ficaram refletem
verdadeiramente a modalidade de língua usada pela população não letra-
da: muitas falhas gramaticais em que já se percebe a modificação que se
vai operando no latim.
São famosos, a este exemplo, os graffiti de Pompéia, ou seja, inscri-
ções em carvão ou estilete nas paredes desta cidade que, tendo ficado
soterrada durante séculos sob as cinzas do Vesúvio, brindou os arqueólo-
gos e toda a humanidade com este precioso documento sobre a língua
latina vulgar. Tais graffiti são uma versão antiga das atuais pichações em
spray e os mais diversos propósitos os motivam: pornográficos, políticos,
imprecatórios, anúncios, propagandas etc. O nível de língua dessas ins-
crições parietais varia bastante, mas é sempre o popular que domina. Os
habitantes locais zombavam do próprio hábito de rabiscarem as paredes,
como se percebe nesta inscrição de configuração mais literária:

Admiror, paries, te non cecidesse ruinis, qui tot scriptorum taedia sustineas.

Traduzindo:

Eu me admiro, parede, de não teres caído em ruínas, tu que sustentas


o tédio de tantos escritores.

Ou mais este grafite revelando o costume de escrever nomes de pes-


soas influentes (como hoje se faz com políticos) nos muros e paredes das
cidades:

Nomina stultorum ubicumque sunt locorum.

Traduzindo: Os nomes dos bestas estão em todo lugar.

Esta e outras fontes do latim vulgar (sepulturas, relatos de viagem,


receitas médicas e culinárias etc.) serão comentadas mais adiante, mas
importa que se diga não serem elas tão numerosas quanto as que ilustram
o latim erudito.
Mais tarde, com o contato de outras línguas motivado pela expansão
territorial, surgirão outras modificações mais intensas, o que fará com

82
O latim e sua evolução
Aula

que o latim assimile feições diversas em cada território onde se deparou


com as línguas nativas.
7
O advento do cristianismo faz surgir o sermo aecclesiasticus, mostrando
o emprego do latim visando à satisfação dos interesses da Igreja na trans-
missão da mensagem cristã e na configuração de seus documentos e ritos
oficiais. Esta modalidade de latim vai, aos poucos, abrigando-se nos con-
ventos e monastérios, ganhando feições próprias em documentos, livros,
tratados, textos oficiais.
Nas celebrações litúrgicas, o latim vai ser ricamente associado à
musicalidade mais simples para atingir as massas populares tornando-se o
chamou de cantus gregorianus ou cantus planus (canto chão). Como se deu com
o latim vulgar nos romances, a Igreja cria também uma forma própria de
escrita e de inspiração musical a fim de atingir as populações mais sim-
ples que estavam aderindo ao cristianismo. Desejava-se com a música,
assim como com a língua, levar a mensagem da forma que mais facilitasse
a compreensão popular. Esta associação da língua latina ao canto
gregoriano é um patrimônio indelével da cultura universal.
Em relação ao latim clássico, a documenta-
ção a que temos acesso faz pensar numa modali-
dade mais fixa que pôde sobreviver até os nossos
dias, porque registrada por escrito. Já o latim vul-
gar não contou com esta forma de registro, pois
os seus contextos são bem menos formais que os
dos textos literários. Além dos graffiti de Pompéia,
já nos referimos às observações do Appendix Probi
(Cf. módulo 7) dando conta de que, desde o II
século, era possível perceber os rumos de uma
evolução já em processo.
Outro documento de igual importância é uma
espécie de relatório de viagem intitulado
Peregrinatio ad Locca Sacra, da monja AEtheria (ou
Egéria), datado do século V e dando conta dos
momentos de sua visita à Terra Santa.
Outros documentos denominam-se
Defixionum Tabellae, ou seja, tabuinhas execratórias,
nas quais se expressam, em gravações no metal, pedra ou terracota, textos
de intenções mágicas para fazer mal às pessoas indesejadas. Tais textos
estão repletos de vulgarismos e refletem um estágio da língua latina.
Além das classes populares, eram usuários do latim vulgar as cama-
das medianas da sociedade, que também conviviam com as classes mais
abastadas e, como se percebe nas línguas modernas, a língua falada pelos
mais cultos não era necessariamente a língua dos textos clássicos. O pró-
prio Cícero emprega expressões populares nas suas correspondências.

83
Filologia Românica

Segundo Bruno Fregni Basseto, o latim falado em Roma a partir do


século III a. C. apresenta três normas:
1. O sermo classicus ou litterarius – burilado, artístico, sintético, que chegou
ao auge estilístico entre 81 a. C. e 14 d. C., considerado o período áureo
da língua latina, destacando-se os nomes de Virgílio, Catulo, Horácio,
Ovídio, Lucrécio e a forte proteção do imperador Augusto. Trata-se, na
verdade, de uma estilização do sermo urbanus.
2. O sermo urbanus – a língua das classes cultas de Roma com suas carac-
terísticas de correção gramatical, mas sem os rebuscamentos próprios da
variedade literária.
3. O sermo pleibeius – era a modalidade da grande massa popular,
desfavorecida e analfabeta. Apesar de ser mal vista pelos gramáticos, era
a língua viva e real com variantes no léxico e que ainda se distingue dos
sermones rusticus, castensis e peregrinus.
A variedade conhecida por latim vulgar é uma realização linguística
que esteve submetida a influências diversas, razão pela qual Rodolfo Ilari
prefere chamá-lo de protorromance, reconhecendo haver fortes motivos para
se crer que a modalidade de língua que deu origem às românicas foi de
fato uma língua eminentemente popular.
Uma prova disso está em textos de escritores clássicos criticando a
rusticitas ou peregrinitas, fazendo votos de que esta modalidade de língua
jamais fosse registrada na escrita, até porque parece provir das camadas
inferiores da população, certamente quase analfabeta em sua totalidade.

CARACTERÍSTICAS MARCANTES

Apesar das modalidades diferentes, não se deve pensar em duas línguas latinas.
Sempre houve um convívio entre as modalidades, algo que o teatro fez ainda
mais visível. O latim urbano e culto transformou-se lentamente entre a época de
Cícero até São Jerônimo e Santo Agostinho e, com a queda o império, foi alojar-
se nos mosteiros perdendo ainda mais o contato com a sociedade e reduzindo-se
aos espaços escolares, tornando-se língua cristalizada, praticamente morta.
A língua literária continuou no discurso eclesiástico e também no
sermo profanus e o sermo urbanus desapareceu no século VI. O que conti-
nuou vigente foi a rustica romana lingua, o latim pobre e humilde das popu-
lações rurais e este latim vai evoluir em cada língua românica.
Alguns aspectos merecem destaque:
1. MUDANÇAS FONOLÓGICAS – As diferenças neste aspecto não se
dão tanto nas posições acentuais, mas na irrelevância da quantidade silá-
bica na modalidade popular (REVER – Fundamentos da Língua Latina –
módulo 1, p. 37-45).
A primeira diferença acontece quando a vogal da penúltima sílaba é
seguida de um grupo consonântico constituído de oclusiva + r. Neste caso

84
O latim e sua evolução
Aula

o acento cai sempre nesta sílaba, diferentemente do acento clássico, que


dependia da quantidade da vogal, da mesma forma que as demais sílabas
7
abertas:
Latim clássico Latim vulgar
Íntegrum Intégrum > inteiro
Isso faz com que haja no latim vulgar predomínio do acento sobre a
penúltima sílaba, como ainda acontece no português atual.
A segunda diferença se verifica no deslocamento do acento
proparoxítono clássico para o paroxítono no vulgar. Enquanto o acento
caía em um e ou i em hiatos posicionados na antepenúltima sílaba, segun-
do as regras de acentuação do latim clássico, no latim vulgar a tendência
é deslocar o acento para a vogal seguinte:

Latim clássico Latim vulgar


Mulíerem Muliérem > mulher

Outra diferença atinge a configuração dos ditongos, que são três em


latim clássico ae, au, oe, exemplificados, respectivamente, em vitae, taurum
e poena, e o latim vulgar os reduz a uma só vogal:

Latim clássico Latim vulgar


AEetatem Etatem > idade
fAUcem fOcem > foz
pOEnam pEnam > pena

Existe tendência a evitar os hiatos ou a fazer a retirada da primeira


vogal fazendo aparecer uma semiconsoante em seu lugar:

Latim clássico Latim vulgar


murtUUs mortUs > morto
linEA linJA > linha

O sistema vocálico apresentava no latim clássico as mesmas cinco


vogais da atualidade; no entanto, devido ao timbre breve ou longo que as
caracterizava, elas são em número de dez. A tendência do vulgar é ir
suprimindo a diferença de pronúncia e elas se simplificam em cinco, já
não se dando mais importância à sutileza de detalhe na pronúncia, como
hoje se verifica.
No latim clássico, o sistema das consoantes, por sua vez, era forma-
do de dezessete sons, incluindo as semivogais j e w e a aspirada h. Modi-
ficações outras envolvem as consoantes t, d, n, l, r, que, se pronunciadas
na região labiodental, passam a ser articuladas na área dental anterior.
Outra mudança faz a consoante f mudar de ponto de articulação de bila-

85
Filologia Românica

teral para labiodental, assim como houve o acréscimo no quadro fonológico


da consoante v fricativa sonora no lugar de articulação labiodental.
Outras mudanças:
- A palatização das velares em que a consoante g antes de e, i conserva o
seu som velar (agiar=aguiar; agia=aja). No latim vulgar, a pronúncia das
velares, mesmo diante das anteriores e, i, passou a ser palatal; em seguida,
no período românico, a pronúncia apresentou evolução diferenciada en-
tre regiões.
Vale ressaltar que a consoante c no início da palavra, em alguns casos,
transformou-se em g (cattum=gato).
- A africação da labial b passa a v em posição intervocálica; já em posição
inicial mantém-se: faba>fava / nubem > nuvem / gubernum> governo.
- A queda do h, que nas línguas românicas não é pronunciado: omine <
hominem.
- No que tange às oclusivas surdas intervocálicas, existe tendência à
sonorização devido à própria sonoridade das vogais, a exemplo de apopora
> abóbora; totu > todo; amicu > amigo.
- Um outro dado é a queda das consoantes finais: cai o m / n (exceto nos
monossílabos) e caem n, t, s: lumen > lume; cantat > canta. Em outros casos,
ocorre metástase com a migração do r final: semper > sempre; super > sobre.
Com relação às palavras iniciadas com s seguido de c, p, t, surge um i
hipotético que geralmente se torna e (sacala > escala; status > estado; spata
> espada. A língua portuguesa tem fartos exemplos desta evolução.
- Os grupos pl, cl, tl, fl tendem a modificar-se em ch (chuva, chuva, vetulus >
vetlo> velho, chama). Também são fartos os exemplos desta mudança, mui-
to embora nem todas as línguas românicas assimilassem este processo.
O assunto aqui tratado pode ser complementado com as consultas ao
módulo II de Fundamentos da Língua Latina (aula 20, páginas 147-160)
quando se aborda a questão da formação das palavras, das leis fonéticas
e dos metaplasmos que conduzem o processo da transformação da língua
latina para as línguas românicas, especialmente para o português.
Nunca se torna demasiado lembrar que os conhecimentos básicos do
latim são prerrequisitos para os estudos de Filologia Românica.
2. MUDANÇAS MORFOLÓGICAS – Agora você vai conhecer o que
ocorreu no domínio da morfologia, ou seja, do estudo das formas que as
palavras possuem, suas possibilidades de emprego quanto a gênero, nú-
mero, grau, declinação, casos, conjugação etc. devendo, por isso, ser en-
quadradas em classes, assim como, tradicionalmente, as gramáticas cos-
tumam fazer.
A morfologia das palavras latinas é muito rica dada a existência do
processo das declinações (no que concerne aos nomes) e das conjugações
(no caso dos verbos). (Vale fazer uma revisão deste assunto nos módulos
I e II de Fundamentos de Língua Latina).

86
O latim e sua evolução
Aula

Inicialmente, a redução atinge o número de declinações que, de cinco,


passam a três apenas com o desaparecimento das declinações quarta e quinta.
7
Os casos começam a se tornar apenas três até se configurarem em
uma forma única. Um exemplo desta redução progressiva é a existência
de casos ainda hoje em alguns pronomes (eu –nominativo; mim -genitivo e
dativo; me – acusativo e ablativo).
Pelo processo das declinações, substantivos e adjetivos latinos dis-
punham de formas variadas para cada função sintática que a palavra pu-
desse exercer na frase e, graças a este recurso, não havia necessidade de
marcar as principais funções sintáticas numa ordem fixa no decorrer das
frases. Neste aspecto, o latim vulgar reduziu os seis casos latinos, desdo-
brados em doze por causa da singular e do plural, a apenas duas formas,
uma do singular e outra do plural.
A questão dos gêneros também deve ser abordada. Houve a queda
do gênero neutro (as marcas deste gênero ainda podem ser vistas em al-
guns pronomes atuais como tudo, algo, isto, isso, aquilo) e houve também a
necessidade de distribuir os nomes neutros latinos com os dois gêneros
que ficaram, mas não existe um critério rigoroso para isso nas próprias
línguas românicas. Assim, a palavra mare é do gênero neutro em latim e se
torna o mar no português e la mer no francês. (ESTE ASSUNTO MOTI-
VA UM EXCELENTE TRABALHO DE PESQUISA).
Muitos nomes neutros, porém, acabaram sendo absorvidos pelo mas-
culino (templum, i) como também houve casos de mudança de declinação
como nos neutros em us, oris, da terceira declinação, que se direcionam
para a segunda.
Nos chamados graus dos adjetivos, a principal inovação foi o aban-
dono progressivo das formas sintéticas que foram substituídas pelas cons-
truções com magis ou plus para o comparativo e mutum para o superlativo.
Na atualidade, porém, ainda vigem formas semelhantes a senior, junior,
melior, pejor, optimo,
Em relação aos pronomes, muitas modificações ocorreram. Nos pes-
soais, aparece a forma de terceira pessoa sobretudo visando à conjugação
dos verbos. Nos relativos, observa-se a redução de todas as formas à
simples configuração do qui. O cujus, de certa forma, ainda aparece até
hoje. Outras modificações serão ventiladas durante o curso em associa-
ção a outros temas em que aspectos comuns se evidenciam.
A maior área de modificações acontece no trato com os verbos. As
conjugações verbais latinas são bastante complexas e, naturalmente, na
tendência do latim vulgar de simplificar a língua, os verbos vão ser a
classe mais atingida.
De início, reduzem-se as conjugações a apenas três. As duas formas
em ere simplificam-se em uma só, mas nem sempre os verbos permane-
cem na mesma conjugação do latim clássico. O verbo studere, por exem-

87
Filologia Românica

plo, migra para a primeira conjugação estudar. O verbo fluere ganha forma de
quarta conjugação fluir, cuja terminação em ir no português torna-se carac-
terística de terceira conjugação. O verbo obedire trorna-se obedecer etc.
O passo inicial no português é o desaparecimento da última vogal e, a
exemplo de cantare, amare, habere, dicere, partire e outros.
(Para melhor compreensão do fenômeno, reveja o assunto de verbos
nos módulos I e II de Fundamentos da Língua Latina.)
Das palavras invariáveis, não há muito o que dizer. Com relação aos
advérbios, parece que o latim vulgar perdeu os recursos morfológicos que
permitiam criar advérbios de modo a partir dos adjetivos, o que acontece
nas línguas românicas com a formação de advérbios de modo com o acrés-
cimo de mente, parece ser algo mais recente.
3. MUDANÇAS SINTÁTICAS - Na sintaxe latina, predomina o costu-
me de colocar o verbo no fim da frase, se bem que em quase todas as suas
modalidades, o latim apresenta-se como de ordem muito livre, o que era
facilitado pelo emprego dos casos.
Uma característica do sermo urbanus, porém, é bem vista na constru-
ção de frases e períodos curtos. A progressiva eliminação dos casos vai de
par com o surgimento dos artigos e o emprego cada vez maior das prepo-
sições. O latim vulgar também vai optando pelo discurso direto por ser
mais facilitador da compreensão do enunciado. Não são muito marcantes
as modificações de regência, mas elas também se verificam aqui e ali nas
românicas.
As MUDANÇAS SEMÂNTICAS também ocorreram, mas elas serão
comentadas na aula seguinte ao ser abordada a questão do latim e a evolu-
ção do cristianismo, pois a Igreja Cristã, no desejo de constituir uma termi-
nologia própria, realiza uma verdadeira transformação em certos termos
latinos que passaram a ter nova concepção na nova fé.

88
O latim e sua evolução
Aula

CONCLUSÃO 7
O contato com outros povos e culturas impõe ao latim falado pelos
conquistadores romanos a obrigação de adaptar-se, no entanto o dina-
mismo que leva à modificação dos falares é algo comum a todas as lín-
guas e estas quando mais se misturam mais adquirem novas feições.
O fenômeno românico é algo especial na história da humanidade e atin-
giu proporções jamais vistas em relação a outros povos que, assim como os
romanos, exerceram o costume de conquistar e dominar povos mais fracos.
A marca que o latim deixou no mundo é algo impressionante, daí dever-
se ter um certo cuidado ao falar do latim como língua morta, pois a sua pre-
sença é algo bem mais forte do que se imagina, haja vista serem as línguas
românicas o melhor testemunho de como o latim ainda hoje se deixa ver.
Cabe ao estudante de letras buscar entender o processo de transfor-
mação e proceder à comparação criteriosa de todos os aspectos do latim,
assumidos ou modificados segundo a conveniência de cada povo e seus
idiomas anteriores ao latim.

RESUMO

O latim é uma língua única, mas as modalidades em que aparece


refletem os níveis sociais que o empregam e os territórios em que se depa-
rou com outras realidades linguísticas, as quais, por sua vez, também se
viram obrigadas a passar por determinadas modificações.
Os diferentes sermones são, na realidade, níveis de aplicação da língua em
circunstâncias variadas e não há como considerar mais ou menos importante esta
ou aquela modalidade. Apenas, infelizmente, a língua reflete também a
estratificação da sociedade e o latim vulgar, embora empregado pela esmagadora
maioria, não deixa de ser visto pelos preconceituosos de todas as épocas como
algo de qualidade inferior. É mais ou menos o que acontece com o português das
camadas populares e aquele que foi eleito como padrão de língua culta.
Muitas modificações havidas traduzem o esforço de adaptar a língua à
realidade de cada região, de cada povo. Na fonética, por exemplo, muitas for-
mas evoluídas convivem com as eruditas sendo possível, ainda hoje, o uso
alternado dessas variações a depender das circunstâncias ou do nível das pesso-
as que as emprega. É certo, por exemplo, que putre tornou-se podre, mas como
não reconhecer ainda em pleno uso termos como putrefato, putrefação e outros?
Um bom EXERCÍCIO para esta aula no que tange às modificações
fonológicas é buscar esta pertinência de formas ainda na atualidade, o que
não deixa de ser uma variedade de sermones ainda possível no presente.
mesmo se diga das mudanças morfossintáticas para as quais uma cer-
ta curiosidade e o costume de associar dados e informações pode estar
conduzindo à mais plena compreensão do fenômeno.

89
Filologia Românica

ATIVIDADES

a) Realize uma pesquisa sobre as mudanças de gênero do latim para as


línguas românticas.
b) Fale das fontes do latim vulgar
c) Organize um quadro sinótico evidenciando as características de cada sermo.
d) Que relação podem ter as mudanças fonológicas, as leis fonéticas e os
metaplasmos? Exemplifique.
e) Apresente outros exemplos que ampliem os quadros acima, ilustrando
ocorrências de mudanças fonéticas.
f) O que houve com o gênero neutro na passagem do latim ao português?
Justifique.
g) Como são as conjugações verbais na língua latina? Exemplifique.
h) O que aconteceu em termos sintáticos após a supressão dos casos latinos?

COMENTÁRIO SOBRE AS ATIVIDADES

Essas atividades e as outras incluídas ao longo desta aula retomam


os assuntos abordados e facilitam a sua compreensão chegando à
ampliação dos exemplos a partir da percepção dos próprios alunos.
Importante é explicar com suas palavras aquilo que se conseguiu
assimilar e não ficar repetindo as mesmas ilustrações dos manuais.

Continue o trabalho de ir construindo o glossário. Vá colocando em


ordem alfabética todos os conceitos aqui desenvolvidos. Todos os
conceitos básicos devem ser compilados, pouco a pouco, segundo o
surgimento ao longo das aulas; ao final, se terá um interessante
glossário.
Graffiti / Sermo rusticus / Sermo quotidianus / Sermo urbanus / Sermo
litterarius / Sermo castensis / Sermo pregrinus / Sermo profanus /
Protorromance / Sermo ecclesiasticus / Cantus gregorianus ou Cantus planus
(canto chão) / Cícero / Santo Agostinho / São Jerônimo.

90
O latim e sua evolução
Aula

REFERÊNCIAS 7
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lo: EDUSP, 2005.
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GALVÃO, José Raimundo. Alomorfias do léxico português. São Cris-
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São Cristóvão - CESAD : EDUFS, 2008. 2 v.
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de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

91
Aula

8
O LATIM, O CRISTIANISMO E AS
LÍNGUAS ROMÂNICAS

META
Compreender as relações entre o latim, o cristianismo e as línguas românicas.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
conhecer o processo de evolução do latim depois do surgimento do cristianismo;
compreender a importância do cristianismo na preservação e divulgação da língua latina;
reconhecer o papel da ação missionária da Igreja no surgimento e afirmação dos diferentes
romances;
analisar os aspectos lingüísticos do latim que se associam à construção de uma terminologia
eminentemente cristã.

PRÉ-REQUISITOS
Todas as informações anteriores são de suma necessidade para a compreensão do fato
linguístico e da análise filológica que se pretende fazer das línguas neolatinas.
Esta aula, por tratar daquilo que o latim representou para o cristianismo nascente, exige alguns
conhecimentos ligados à mensagem do evangelho como proposta de salvação destinada a
todos os povos.
Nos primórdios da pregação cristã, era antes o grego a língua de maior influência e isso fez
com que todo o novo testamento fosse escrito nesta língua.
Importa, pois, conhecer alguns aspectos da história e da geografia deste tempo; fixar alguns
períodos de maior relevância e buscar entender o que, na sua essência, caracteriza o anúncio
do evangelho. Ademais, não se pode negligenciar a cultura desta época em que o cristianismo
teve de conviver com costumes assaz contrários à sua proposta em termos de moral e
costumes, reagindo fortemente contra certas práticas pagãs.
Compreender todo esse contexto é condição sine qua non para conduzir reflexões e discussões
nas quais a presença do latim é um elemento de valor incontestável.
Não se pode negligenciar a importância da língua grega e, para bem compreender o nosso
campo de estudos, algumas noções do grego e da cultura helênica tornam-se prerrequisitos
indispensáveis.
Pelo menos a leitura das palavras gregas vai ser uma exigência necessária para a
compreensão mais ampla de certas colocações filológicas.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

O cristianismo surgiu em ambiente especificamente semita e a língua


de Jesus e dos seus primeiros seguidores, bem como da maioria das gentes
que iam até Ele, era o aramaico. No entanto, estando a Palestina do tem-
po de Jesus sob o domínio romano, a língua latina era o idioma usado pelo
invasor. Nesta região de grande movimentação comercial, o grego tam-
bém fazia parte do cotidiano palestino.
Importa, porém, deixar claro que também a Igreja não tinha objetivos
linguísticos embora, ao longo de toda a história, fosse adotando o latim
como língua oficial, chegando mesmo a revesti-lo de uma certa sacralidade,
como se fosse a única língua verdadeiramente digna do culto, dos docu-
mentos oficiais, das comunicações entre as comunidades. Tal postura vi-
gorou até, mais ou menos, 1964, mas até hoje muitos saudosistas teimam
em trazê-la de volta.
O interesse e a valorização do latim pela Igreja assume, na verdade,
duas feições distintas, pois, ao lado desta sacralidade acima referida, es-
tava a consciência de que o evangelho deve ser anunciado na língua em
que melhor se der a sua compreensão. É verdade que a Igreja supervalorizou
o latim e conservou muitos documentos e obras, graças à dedicação de
monges e estudiosos que dedicaram a vida para conservar e fazer com-
preender todo o patrimônio que a língua latina comporta.
Do mesmo modo, é também verdade que foi a Igreja que mais incen-
tivou o surgimento dos romances passando a pregar, ensinar e realizar
suas ações litúrgicas na língua própria de cada povo ao qual se dirigia.
Aos poucos, a Igreja Cristã vai deixando visível a marca registrada de
sua ação apostólica e vai preocupar-se em criar um culto, emitir docu-
mentos, traduzir a mensagem, formar uma terminologia específica, tudo
isso com feição própria e diferenciada.
O latim certamente está visivelmente presente em todas essas mani-
festações de genuinidade até ser, por fim, considerado a língua oficial da
Igreja, como é ainda hoje.

94
O latim, o cristianismo e as línguas românicas
Aula

O LATIM E A IGREJA 8
O latim vulgar teve em todas as províncias o poderoso apoio da Igre-
ja Cristã ao adotá-lo como língua oficial. A tendência era desprezar o
latim clássico nas pregações e usar o latim popular como forma de fazer a
mensagem mais clara e mais vivida. Santo Agostinho dirá: Mellius est
reprehendant nos grammatici quam non intelligant populi (Cf. VIDOS, p. 164).
Dizem que Santo Agostinho, ao converter-se, leva consigo uma conver-
são linguística e ele próprio já se refere a ecclesiastica loquendi consuetudo.
Este costume se reflete na liturgia, nas escrituras, na administração a
tal ponto de se ter afirmado que nos primeiros séculos os cristãos eram
uma sociedade fechada sobretudo em se considerando o aspecto linguístico.
Mas o latim vulgar não existe como língua; existem textos latinos em
que aparecem vulgarismos revelando a modalidade do latim falado pela
população menos letrada. Se existiram dialetos do latim falado, as inscri-
ções até hoje não confirmaram isso.
Os primeiros documentos cristãos são produzidos por homens de grande
cultura na maioria deles e usavam elementos populares em suas obras, visto
que se dirigem às grandes massas e o objetivo de proselitismo não é o culto.
Nada mais errado do que insistir na oposição entre dois latins como se
fossem dois mundos linguísticos estranhos um ao outro. O latim vulgar, aju-
dado pelo poder da Igreja, não é senão uma modalidade popular do latim
clássico, com toda a sua força e poder transformador de tornar-se, pouco a
pouco, os diversos romances. Existem constatações da existência de um la-
tim homogêneo e popular de onde aparecem as línguas românicas e, para essa
homogeneidade, muito contribuiu a propagação do cristianismo, dada a ne-
cessidade de fazer chegar ao povo a mensagem, que, aos poucos, foi adotan-
do uma linguagem unificada até, finalmente, dogmatizar-se. Os documentos
vão assumindo fórmulas de dogmatização como credo, anathema sit etc.
A força do latim foi-se perdendo dentro da própria Igreja quando se
chegou a um estado tão deplorável de compreensão e uso desta língua que
o papa Zacarias (714-752), por exemplo, se viu obrigado a tolerar a admi-
nistração de certos atos em latim contendo erros considerados graves na
configuração da língua: sacerdotes e fiéis já não mais entendem o que di-
zem ou lêem (Cf. Vidos, p. 203) e os atos litúrgicos passam a ter um caráter
maquinal de pura repetição de fórmulas já decoradas. Coisas como In nomine
da Patria, et Filia et Spiritua Sancta denotam o descaso para com as declina-
ções já nesta época. Aboliam, assim, o exclusivismo e o normativismo do
latim clássico e literário. A preocupação maior é o kerigma, a mensagem
muito mais que a forma literária com que é transmitida.
Nesta concepção, a língua deveria estar servindo aos objetivos do
cristianismo. A Itala ou Vetus Latina é um exemplo da versão da bíblia
repleta de expressões populares e de elementos gregos e semíticos.

95
Filologia Românica

Por volta do século IV, nota-se um certo retorno à antiga tradição ro-
mana e helenística, o que confere um caráter mais douto às obras cristãs e
este fato é mais uma prova de incontestável contribuição do cristianismo
para a manutenção do latim e para a formação das línguas românicas.
Até se questionou se o latim vulgar e o latim cristão não seriam a mesma
exatamente a mesma coisa. Na verdade, o latim vulgar desenvolve tendênci-
as ancestrais de configuração indoeuropeia, o que tem pouco a ver com o
latim cristão com suas tendências popularizantes com vistas aos objetivos da
evangelização dos povos. Este latim cristão também se difere do próprio
latim eclesiástico, tendo este configuração mais culta, literária e técnica.
A língua técnica do cristianismo é toda calcada no grego, haja vista
ser costume do próprio latim realizar empréstimos da língua e cultura
helênica e não dispor o cristianismo de uma terminologia própria para
expressar conceitos cristãos. O grego, por excelência, é uma língua técni-
ca, muito apropriada para transmitir com mais exatidão os conceitos de
qualquer área do saber humano. E foi assim também utilizado para fixar
conceitos teológicos. Este dado é muito importante nos estudos da
filologia, porquanto será possível perceber a carga semântica contida em
muitas palavras e como, sabiamente, a Igreja soube associar palavras e
coisas na elaboração de toda a fundamentação de sua doutrina.
De início, os convertidos ao cristianismo faziam parte das classes
menos favorecidas, que, como já se disse, assimilavam facilmente o gre-
go. Aos poucos, porém, filhos e filhas da nobreza também começam a
aderir à fé cristã (a exemplo de Perpétua e Felicidade, Inês, Cecília, Luzia,
Apolônia, Sebastião) gerando certas necessidades de ordem linguística,
pois era o latim a língua das classes nobres de Roma e dos domínios do
império, incluindo o norte da África. Por muito tempo acreditou-se que a
latinização da Igreja tenha começado pelo norte da África, mas, na verda-
de, esta fato é contemporâneo ao processo de latinização da Igreja de
Roma, que já estava em curso no século II.
Realmente dois antigos documentos - Acta Martyrum Scillitanorum e
Passio Fellicitatis et Perpetuae – foram gerados em meios africanos, mostran-
do a importância deste território para os primórdios do cristianismo. Na
verdade, duas versões das escrituras já circulam desde os tempos remo-
tos: uma, denominada Afra, atende às necessidades do norte da África;
outra, a Vetus Latina, destina-se às comunidades europeias. Em ambas já
se percebe uma certa erudição fugindo um pouco ao estilo vulgarizante.
Dois nomes merecem destaque: Santo Agostinho (africano de Tagaste e
bispo de Hipona / 354-430) e São Jerônimo (Dalmácia, hoje, Croácia /
340- 420). Contemporâneos, ao primeiro se devem grandes obras de dou-
trinação, mostrando os passos da afirmação da fé cristã; ao segundo atri-
bui-se a primeira versão da bíblia em latim, denominada Vulgata.
Após a queda do império romano (em 476 d. C.), a Igreja, que já
vinha gozando de certas vantagens desde Constantino pelo famoso Edito

96
O latim, o cristianismo e as línguas românicas
Aula

de Milão (ano 313), vai assumindo posição de superioridade e vai adotan-


do muitas marcas do extinto império em suas denominações e maneiras
8
de conduzir a administração de suas comunidades.
O latim continua tendo a sua importância, mas, desfeito o império, as
províncias vão ter mais liberdade para dar força aos dialetos nativos, embora
já fortemente desfigurados pelo contato com a língua de Roma. São esses
falares, no entanto, que muito interessam no trabalho de levar a mensa-
gem cristã, então os romances passam a ser incentivados pela Igreja.
Ainda se tentou com a Reforma de Carlos Magno (768 – 814) restaurar
a importância do latim numa atitude aliada aos grandes empreendimentos a
favor do ensino e das escolas. As línguas românicas, no entanto, já estavam
em tão franca expansão que apenas se conseguiu revigorar o latim em am-
bientes diretamente ligados às atividades de valorização dos documentos
antigos, tais como os conventos e monastérios. É louvável a atitude de um
monarca germânico pela restauração do latim, mas que força poderia ter tal
atitude às vésperas do pleno florescimento dos romances?
Finalmente, veio o Concílio de Tours, em 813, a prescrever que as
pregações fossem feitas nos dialetos próprios de cada comunidade e, já
em 842, aparece o mais antigo texto em romance francês: Os juramentos de
Strasburg. Assim, inicia-se uma nova fase no âmbito linguístico com o
fortalecimento das línguas de cada província, terreno fértil para o
surgimento das atuais línguas neolatinas ou línguas românicas de que fa-
zem parte o português, o espanhol, o francês, o italiano entre outras.

CARACTERÍSTICAS MARCANTES

Cabe aqui questionar: que características marcam este percurso entre


o latim clássico – latim vulgar e os diferentes romances?
Você já viu, caro aluno, na aula anterior determinadas variações que
atingiram o plano fonológico e morfossintático na passagem de uma realida-
de linguística para outra. Agora esses aspectos serão retomados levando em
consideração o fato de ter sido o cristianismo o lugar em que essas modifica-
ções aconteceram com maior intensidade, pois se tratava do uso concreto de
uma modalidade de língua que melhor se prestasse à divulgação da mensa-
gem; daí a palavra de ordem é facilitar, como, de certa forma o latim vulgar já
vinha fazendo. Aqui, porém, quanto mais se aproxima da realidade de cada
povo, mais a mensagem será assimilada. E, para isso, existirão tantas modali-
dades quantas forem as peculiaridades de cada território.

NO VOCABULÁRIO

O grande recurso para o léxico são os empréstimos tomados ao grego


e, neste âmbito, não há como esquecer os efeitos de ordem semântica que

97
Filologia Românica

surgem na adoção de novos termos e na tentativa de criar uma terminologia


eminentemente cristã. Muitas palavras assimiladas do contexto profano vão
ganhar novo sentido, nova ampliação de significado e assim passam a ser co-
nhecidas de agora em diante. Na sua origem, por exemplo, sacramentum nada
mais é do que um juramento geralmente exigido dos soldados que se engajam na
guerra. No contexto eclesiástico, porém, a palavra ganha sentido sinal eficaz da
graça de Deus, visto em sete modalidades que devem acompanhar todos os ins-
tantes da vida. Outro exemplo significativo: salus = bem estar evolui para desig-
nar a salvação eterna, donde vem a palavra salu(s)ator = salvador (soter em grego).
Outros exemplos de uma terminologia própria do cristianismo: certamen
= perseguição/ martyrion = testemunho de sangue / lapsus, relapsus = caído em
falta / candidatus = adversarius / stephaneo = coronare / cadere = ruere.
Muitos empréstimos provindos do hebraico também vão ser incor-
porados, embora em menor quantidade: o termo geena, lugar onde era
depositado e queimado o lixo de Jerusalém, passa a indicar lugar de suplício
destinado aos condenados, algo como inferno. Outros termos do hebraico:
go’el= red empt or; amém = sim, firmeza).
Outros desvios de significado ainda servem de exemplo: fides – passa
de lealdade a ato de fé / virtus evolui de valor a virtude / spiritus designa não
mais sopro, vento e passa a ser espírito, uma pessoa divina.
Outros empréstimos ao grego: metanoia / epifania / epíscopo / carisma /
catecúmeno / neófito / mártir / evangelho / apóstolo.
Alguns neologismos aparecem na tentativa de adaptar o grego ao la-
tim: sárkikos – carnalis / pneumátikos – spiritualis / paráklitos - advocatus /
soter – salvator / logos – verbum etc.
PALMER (p. 184-207) chama a atenção para outras modificações:
Ainda no domínio do vocabulário, da formação das palavras:
- Predileção por palavras extensas: coronamentum / grandimenium.
- Formação de abstratos em –tudo: magnitudo / consuetudo / rectitudo.
- Indicação dos diminutivos: ovicula / aurícula/ caecicula.
- Adjetivos terminados em –bilis: amabilis / admirabilis / accepitabilis.
- Formas adjetivas em -osus: meticulosus.
- Adjetivos terminados em –bundus: meditabuldus, mirabundus.

NA MORFOLOGIA

Muitas características morfológicas possuem feição própria do la-


tim popular:
- O neutro plural muitas vezes é assumido pelo feminino singular: agenda,
legenda, vota, merenda, apostilla.
- O desaparecimento do neutro faz também com que certas palavras apa-
reçam com forma masculina: signus, vinus/ verbus.
- Alguns verbos mudam de conjugação: fugere > fugir / studere > estudar.

98
O latim, o cristianismo e as línguas românicas
Aula

NA SINTAXE 8
- É muito freqüente o uso do adjetivo substituindo o genitivo restritivo:
domus aurea / turris eburnea / apostolica verba / misericordia divina / disciplina
ecclesiastica.
- As orações subordinadas substantivas objetivas diretas reduzidas de
infinitivo ou não reduzidas funcionam da seguinte forma:
No latim clássico: verbo no infinitivo, sujeito no acusativo e ausência
do conectivo (forma reduzida):
Dico Deum esse bonum (Digo Deus ser bom).
No latim vulgar: sujeito e predicativo do sujeito no nominativo, ver-
bo no tempo requerido pelo contexto e presença do conectivo:
Dico quia Deus bonus est (Digo que Deus é bom).
Dois exemplos da própria liturgia da Igreja:
Clássico: Memento, homo, te esse pulverem et in pulverem reversurum.(Lembra-
te, homem, tu seres pó e ao pó haverás de voltar!).
Vulgar: Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (Lembra-te,
homem, que tu és pó e ao pó voltarás!).
- Conforme se disse, a ausência dos casos força o aparecimento dos arti-
gos e intensifica o uso das preposições.
- O artigo indefinido provém da forma no numeral unus, una.
- O desaparecimento do dativo obriga o emprego de preposições: dixit ad
Ioseph (também porque muitos nomes próprios não se decinam).
- Usa-se o modo indicativo no discurso indireto e a forma do gerúndio-
ablativo em lugar do particípio presente: amando por amante.
- Nos aspectos linguísticos, costume-se diferenciar os cristianismos lexicais
(apokalypsis = revelatio) dos cristianismos semânticos (‘omologein = confiteri).
Outras mudanças semânticas a partir do grego: dioikesis; sínodos;
paroikia.
São chamados cristianismos indiretos aqueles que, por natureza, não estão
associados à religião cristã. Atestam uma diferenciação linguística e soci-
al dos cristãos. Essas inovações não especificamente cristãs podem ter
origem na língua comum.
- Outro dado interessante diz respeito à predileção por certos sufixos:
opperator, redemptor, salvator, redemptio, illuminatio, purificatio.
Também se observa a predileção por verbos em ficare: beatificare,
sacrificare, sanctificare, glorificare.
Os missionários imprimem à língua o mesmo dinamismo que os sol-
dados durante o império e a forma característica de correspondência es-
crita são as epístolas.

99
Filologia Românica

CONCLUSÃO

Desde os primeiros passos de sua existência, o cristianismo vai firman-


do uma linguagem própria que se reflete tanto na fala quanto na escrita. A
base inicial foi o grego, embora recheado de hebraísmos. Em seguida vem o
latim, o qual consegue atravessar séculos graças ao emprenho que a Igreja
sempre lhe dedicou. Por questões de ordem prática, a Igreja também favo-
rece os romances, meios mais eficazes para se fazer compreender.

RESUMO

O latim vulgar teve em todas as províncias o poderoso apoio da Igre-


ja Cristã, sobretudo quando foi por ela adotado como língua oficial, mas
esta modalidade de latim também se presta muito bem aos objetivos do
cristianismo. Existe até uma certa aversão ao latim clássico por se tratar
de produção de autores pagãos, mas sobretudo por ser mais difícil, por
este meio erudito, atingir as classes populares.
A preocupação maior é pelo kerigma, não importando muito a feição literá-
ria do discurso, embora muitos autores cristãos tenham bom conhecimento do
latim clássico e apreciem os bons autores desta modalidade. Costuma-se dizer
de São Jerônimo, em tom de anedota, que era mais ciceronianus do que christianus.
Por volta do século IV, nota-se um tímido retorno à tradição romana e
helenística, o que confere um caráter mais douto às obras cristãs do período.
A princípio, era o grego a língua mais usada pela Igreja haja vista ser
de fácil compreensão este idioma pelas classes mais simples. Paradoxal-
mente, Paulo escreve sua carta aos romanos em língua grega e o primeiro
catecismo cristão, a Didaké, foi também escrito em grego.
O grego tornou-se uma espécie de língua técnica e quase toda a ter-
minologia básica do cristianismo foi calcada na língua grega, sendo, inclu-
sive, necessária uma certa compreensão da cultura helenística para bem
assimilar os conceitos.
Ressaltem-se também os hebraísmos que compõem as palavras de
base: Siloé, Telônio, Belém, Betel, Betfagé, Betânia, Sinédrio, Racca etc.
O norte da África também merece destaque pelos autores e obras de
lá originados.
Desde o primeiro século, já se fala de uma comunidade cristã bem
estruturada em Roma (Cf. a perseguição de Nero) e muitos membros da nobre-
za, aderindo à fé cristã, ajudam a imprimir nova feição ao catecumenato cristão.
Importa salientar duas importantes contribuições literárias oriundas
da Espanha: Peregrinatio Etheria (Egéria) (Cf. módulo 8) e as famosas
Etimologias de Isidoro de Sevilha, obra fortemente calcada sobre o imaginá-
rio popular.

100
O latim, o cristianismo e as línguas românicas
Aula

Uma certa homogeneidade do latim vai-se rompendo diante dos conta-


tos com os diversos falares das províncias e isto faz com que elementos po-
8
pulares aparecem permeando os escritos, bem com o recurso às glosas passa
a ser uma necessidade de esclarecimento à medida em que se está mais dis-
tante das origens (Ex.: Siloé, que quer dizer o enviado). Combate-se, então, o
exclusivismo clássico e a tendência é abrir espaços para os falares regionais.
O latim, mesmo oficialmente adotado, terá que conviver com as ten-
dências linguísticas de cada território. Um francês, por exemplo, não es-
tando habituado às proparoxítonas (grande marca latina) será levado a
pronunciar: Dominús vobiscúm; Patér Nostér etc.
O latim clássico já é língua morta ainda nos tempos do império: latim
da elite, das escolas, dos escritores, os quais também usam expressões
populares nas suas obras.
Isso vai caracterizar o que se chamou de baixo latim, aos poucos tor-
nando-se a língua oficial da Igreja, tendo mais tarde (séculos XII e XIII)
representantes ilustres como Antônio de Pádua, Bernardo de Claraval,
Tomás de Aquino e outros.
O latim cristão é popularizante como o vulgar, mas centrado em ob-
jetivos definidos: evangelizar, atingir o povo.
O latim eclesiástico é culto, litúrgico, literário, respondendo a finali-
dades mais administrativas, burocráticas, possuindo terminologia oficial
com tendências ao dogmatismo, à formulação de padrões doutrinários.
Houve até, sob Carlos Magno, uma tentativa de reerguer o latim dos
clássicos, mas a marcha dos romances era tal que o Concílio de Tours vem
abrir amplas perspectivas aos romances. Daí ter-se recolhido nos mosteiros o
latim dos estudos, dos documentos, das pesquisas, das obras literárias. É
notável o empenho dos monges pelo ensino do latim, tendo em Cluny, na
França, o seu melhor ponto de florescimento e irradiação sobretudo no as-
pecto litúrgico com a perfeita ligação entre o latim, a poesia e a música, muito
bem conseguido pelo canto gregoriano.
As modificação do latim tocam todos os aspectos da linguagem:
fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos.
Em suma, a trajetória do latim na Igreja vai de par com o processo de
evangelização, sendo impossível dissociar o latim do cristianismo, os as-
pectos religiosos dos aspectos da linguagem.

101
Filologia Românica

ATIVIDADES

As atividades aqui sugeridas dizem respeito à melhor compreensão da-


quilo que a língua latina representou e representa para a religião cristã.
1. ORGANIZE um Quadro Sinótico contendo todas as modalidades em
que o latim se desdobra destacando o caráter específico de cada uma
delas.
2. APRESENTE as principais mudanças ocorridas do latim clássico ao
latim vulgar utilizado pela Igreja especificando os dados fonológicos,
morfológicos, sintáticos e semânticos. Procure outros exemplos fora do
conteúdo desta aula para ilustrar cada item.
3. PESQUISE as semelhanças e diferenças na denominação dos DIAS
DA SEMANA nos diferentes romances. Em que a língua portuguesa ino-
vou nesta aspecto graças à influência da Igreja?
4. RESPONDA:
a) Por que motivos a Igreja ao mesmo tempo que ajudou a preservar o
latim também incentivou a expansão e afirmação dos romances?
b) O que foi a Reforma Carolíngia?
c) Que importância tem o grego para o cristianismo nascente?
d) Que autores cristãos podem ser citados nos primeiros séculos do cris-
tianismo?
e) Por que meios a Igreja associou literatura, música e arte?
f) O que representam os mosteiros na tarefa de preservar o latim?

Continue o trabalho de ir construindo o glossário. Vá dispondo as


palavras em ordem alfabética e acrescentando informações que não
deixem dúvidas sobre a conceituação de cada item.
Este é um trabalho de pesquisa para o qual você pode recorrer aos
dicionários, internet, manuais de filologia, gramáticas láticas etc.
Importa, enfim, que você mesmo se dê por satisfeito estando
plenamente seguro daquilo que cada conceito quer expressar. Para
isso, muito contribui a busca de elementos comuns entre conceitos
permitindo que tenha uma visão global daquilo que se discute. Eis
as novas palavras motivadas por esta aula:
Kerigma / Ítala ou Vetus Latina / Vulgata / Semita / Aramaico /
Helenismo / Koiné / Edito de Milão / Constantino / Queda do
Império Romano / Invasão dos povos bárbaros/ Reforma Carolíngia
/ Concílio de Tours / S.P.Q.R. / Cúria / Província / Legião / Diocese
/ Paróquia / Sumo Pontífice (Pontifex Maximus ou Augustus) /
Catecumenato / Sacramento / Batismo / Eucaristia / Acólito /
Diácono / Presbítero / Cardeal / Eminência / / Fonologia /
Morfossintaxe / Semântica.

102
O latim, o cristianismo e as línguas românicas
Aula

REFERÊNCIAS 8
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
BOUET, Pierre et alii. Initiation au système de la langue latine. Paris:
Nathan, 1975.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. São Paulo: Ática, 1993.
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao
livro técnico, 1976.
DANGEL, Jacqueline. Histoire de la langue latine. Paris: 1995.
ELIA, Sílvio. Preparação à lingüística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
GALVÃO, José Raimundo. Alomorfias do léxico português. São Cris-
tóvão: EDUFS, 2008.
_____. Fundamentos da língua latina. Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão - CESAD : EDUFS, 2008. 2 v.
HECKLER, Evando et alii. Dicionário morfológico da língua portu-
guesa. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1984, 5 v.
______. Estrutura das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1994.
______. História e estória das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS,
v. I-XX, 1988-1997.
ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à lingüística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
NUNES, José Joaquim. Compêndio de gramática histórica portugue-
sa. Lisboa: Livraria Clássica, 1956.
PALMER, L. R. Introducción al latin. Tradução de Juan José Moralejo e
José Luis Moralejo. Barcelona: Ariel, 1984.
TARALLO, Fernando. Tempos lingüísticos. São Paulo: Ática, 1994.
VÄÄNÄNEM, Veikko. Introducción al latín vulgar. Tradução de Ma-
nuel Carrión. Madrid: Gredos, 1968.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de lingüística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da lingüística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

103
Aula

9
LÍNGUAS ROMÂNICAS NA
ATUALIDADE

META
Visualizar a extensão geográfica e linguística das línguas românicas na atualidade.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
classificar as línguas românicas pela sua distribuição territorial;
evidenciar as características de cada língua originada do latim;
reconhecer traços comuns entre as línguas românicas;
identificar as marcas latinas nas línguas românicas, especialmente na língua portuguesa.

PRÉ-REQUISITOS
Volta-se a exigir um certo conhecimento do latim como ponto de referência no estudo das
línguas românicas ou neolatinas.
Importa também estar atento a aspectos da história e da geografia como recursos
indispensáveis para bem situar a evolução das línguas e os diferentes territórios onde estas
línguas se firmaram.
Que também se esteja atento ao glossário que se vem formando ao longo deste módulo a fim
que a terminologia de base possa estar muito bem assimilada.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Conforme se falou muito bem ao logo das aulas, as línguas românicas


foram-se firmando pelo próprio desenvolvimento da história dos povos.
Tendo as línguas um caráter fortemente dinâmico, o latim levado pelos
romanos às províncias foi-se transformando no contato com outras cul-
turas e com as diversas línguas faladas pelos povos conquistados. Tam-
bém se transformaram as línguas nativas e o resultado desse processo
vem a ser o surgimento das chamadas línguas neolatinas.
Em cada território, uma nova possibilidade linguística; fazendo acon-
tecer um fenômeno muito especial na história das línguas modernas. O
latim é a língua responsável por grande parte dos falares que hoje com-
põem o elenco das principais línguas do mundo. Por esta razão, as línguas
românicas, quando comparadas ao latim clássico, mostram, em seu de-
senvolvimento, muitas tendências comuns. O que há de diferente
corresponde ao caráter próprio do idioma de cada região. Se existisse um
único idioma nos territórios conquistados, o latim teria evoluído apenas
em uma direção única.
Muito já se falou dos aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos e
semânticos em que as transformações aconteceram. Estes aspectos refle-
tem o desgaste da língua latina, a qual, inevitavelmente, vai-se perdendo
nas novas línguas que vão sendo geradas.
Nesta aula, interessa-nos ver o efeito atual de todo este processo,
reconhecendo as denominações, os territórios e as características de cada
língua românica.

106
Línguas românicas na atualidade
Aula

A ROMÂNIA 9
Segundo Heinrich Lausberg (p. 27-43), devido ao grau de parentesco,
pode-se dividir a România em três zonas:
I. România Ocidental – com as zonas parciais seguintes:
a) Galo-românia (provençal, franco-provençal e francês).
b) Reto-românia.
c) Norte da Itália.
d) Ibero-românia (catalão, espanhol, português).
II. România Oriental – com a seguintes zonas:
a) Centro e Sul da Itália.
b) Dalmácia.
c) Romênia.
III. Sardenha.
A divisão acima corresponde aproximadamente ao fim da época im-
perial e não leva em consideração a divisão atual em grandes espaços
linguísticos nacionais – traço da história medieval e moderna – criados
pelo prestígio das línguas escritas, mas apóia-se exclusivamente na averi-
guação dos dialetos.
Para estabelecer o quadro da Romênia atual, usa-se o critério das lín-
guas escritas. Assim, fazem parte deste quadro: o português, o espanhol, o
catalão, o francês, o provençal, o grisão, o italiano, o romeno. O critério de
língua escrita não é aplicado ao sardo, que hoje pertence ao domínio da
língua escrita italiana e ao dálmata. Também o reto-romano é considerado
como língua própria, apesar de somente o Grisão ter alcançado relevo como
língua escrita, ainda que seja em território unicamente Grisão.
Em resumo, podemos admitir uma série de dez línguas fazendo parte
deste conjunto denominado de línguas românicas:
Português – língua da parte ocidental da Península Ibérica, é falado
no Portugal atual e ao norte desse país, na província espanhola da Galízia.
Estendeu-se a grande parte do mundo (Brasil, África, Timor Leste) gra-
ças à colonização portuguesa.
Espanhol – também conhecido por Castelhano, compreende a
Espanha de hoje, com exceção da região em que se fala o português ou o
catalão e de um território na extremidade do Golfo de Biscaia, onde se
fala o basco, uma língua preindogermânica.
Catalão – língua falada na Catalunha, na região de Valência, nas Ba-
leares, no território francês do Pirineus Orientais e na cidade de Alghero,
no norte da Sardenha.
Provençal – também denominado de occitano ou língua d’oc é a lín-
gua do sul da França e não somente da região de Provença. Atualmente
compreende a Gasconha, o Périgord, o Limousin, uma grande parte da
Mancha, o Auvergne, o Languedoc e a Provença, mas não ultrapassa o

107
Filologia Românica

norte do Maciço Central. Seus domínios, no entanto, no princípio da Ida-


de Média, se estendiam mais longe para o Norte. É uma das línguas mais
importantes da Idade Média, mas hoje tem uma importância literária de
segunda ordem.
Francês – inicialmente, foi a língua românica falada no norte da Gália
e, aos poucos, tornou-se a língua oficial e literária de toda a França. Ain-
da é falado em parte da Bélgica e da Suíça, nas ilhas normandas perten-
centes à Inglaterra e num pequeno território italiano dos Alpes ociden-
tais, ao norte do Monte Cenis. Existem também áreas em que se misturou
ao provençal, caracterizando falares denominados de franco-provençais.
Ainda pode ser encontrado em territórios africanos colonizados pelos fran-
ceses ou pelos belgas.
De todas as línguas românicas ocidentais, o francês é a mais distanci-
ada das origens latinas, muito embora os termos derivados reflitam niti-
damente as marcas da língua mãe.
Reto-romano – é falado numa parte dos Grisões, em alguns vales a
leste de Bolzano (Tirol) e na planície do Friaul, sendo reconhecido pela
Suíça como a quarta língua oficial do país, ao lado do alemão, do francês
e do italiano.
Italiano – é a língua da Itália continental e peninsular, da região de
Menton, da Cósega, da Sicília, do cantão suíço dos Grisões. O alemão é
falado nas regiões (no Tirol) anexadas à Itália após a Primeira Guerra
Mundial. Por volta do ano 1000, uma grande parte da Itália meridional (a
Calábria, a Apúlia, a Sicília), antes de colonização grega e bizantina, ado-
tava a língua grega. Na Sicília, houve a influência e concorrência dos
árabes por volta de 900, mas estas regiões foram romanizadas, muito
embora alguns resquícios do grego ainda sobrevivam na atual Calábria.
Dálmata – nos Bálcãs, existiu até o século XIX uma segunda língua
românica, o Dálmata, falado no litoral da Dalmácia e nas ilhas do Adriático.
Romeno – é falado hoje na Romênia e em algumas regiões limítrofes
ou isoladas dos países vizinhos e sofre grande influência dos falares eslavos.
Sardo – a Sardenha e a Córsega foram pouco atingidas, na Antiguida-
de e na Idade Média, pela circulação comercial, daí ter ficado nestes ter-
ritórios uma forma de língua românica bastante arcaica, o sardo, ainda
falada na maior parte da Sardenha.

108
Línguas românicas na atualidade
Aula

As línguas românicas e alguns de seus dialetos na Europa atual.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 379).

Línguas e principais dialetos da Ibérica.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 375).

109
Filologia Românica

Línguas da Península Ibérica na atualidade.


(Fonte: ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004, p. 178).

Línguas românicas no mundo.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 380).

110
Línguas românicas na atualidade
Aula

Regiões de fala portuguesa no mundo.


(Fonte: BASSETTO, Bruno Fregni. Filologia Românica. São Paulo: Ed USP, 2005. p. 376).

As investigações dialetais vêm comprovando que não existem fron-


teiras precisas nem linhas definidas, mas feixes de caracteres linguísticos
que se entrecruzam formando zonas linguísticas de fronteira.
Anda é possível observar que os fatores históricos que impedem as
comunicações podem fazer surgir uma fronteira dialetal sem que haja
barreiras naturais. A perspectiva histórica, aliada aos laços espirituais e
culturais, muito influenciou a classificação das línguas românicas. Assim,
Diez também evidencia o critério linguístico na classificação e chama a
atenção para a importância dos fatores históricos, geográficos, políticos,
literários e culturais. Tais fatores determinam o aparecimento de algumas
estruturas dialetais:
- NA FRANÇA – O processo de cristalização em território francês se deu
com a linha de separação linguística que ocorre horizontalmente do oriente
ao ocidente e dividiu o território em francês, franco-provençal e provençal.
Aos poucos, o francês suplanta os dialetos da França do norte no terre-
no da literatura e se difunde por todo o território setentrional. A suprema-
cia do francês só encontrou resistência no valão e a língua de Paris vai-se
impondo progressivamente sufocando os demais dialetos do país.
- NA ITÁLIA – Os dialetos italianos, em contraste com os franceses, são
muito conservadores e de grande vitalidade. São fortes as fronteiras dia-
letais permitindo uma pluralidade dialetal de grande expressividade. A
característica da língua escrita italiana é o toscano.

111
Filologia Românica

- NA ESPANHA – A estrutura dialetal do espanhol é muito mais pobre e


uniforme que na França e na Itália, não existindo clara distinção entre
dialeto e língua literária. O complexo dialetal do espanhol se quebra com
a invasão árabe.
Na língua literária catalã, em oposição ao francês, italiano, espanhol
e português, não foram os dialetos que serviram de base. O catalão cha-
ma a atenção por sua extraordinária unidade.
- EM PORTUGAL - Também se verifica o mesmo que aconteceu com a
invasão dos mouros. A língua literária portuguesa não é o resultado da
elevação de um dialeto à categoria de língua literária, mas dela participam
dialetos de diversas regiões de Portugal.
Mesmo existindo delimitações linguísticas, a unidade das línguas ro-
mânicas é relativa, pois cada uma delas se compõe de variados falares
dialetais. Foi a história e a política que as converteram em grupos relati-
vamente unos, cuja unidade se manifesta na língua literária comum aos
membros do grupo. Quase sempre, um dos dialetos foi preponderante na
formação da língua literária, como o toscano, no caso do italiano, e o
dialeto da Ilha de França, no caso do francês.

A CONSTITUIÇÃO DAS LÍNGUAS NACIONAIS

O conceito de língua nacional dispensa algumas interpretações que


apenas evidenciam o desenvolvimento de uma literatura ou o reconheci-
mento de condições políticas e jurídicas para conferir a uma determinada
língua este status. O provençal é um exemplo de farta literatura que, no
entanto, não se impôs ao francês como língua oficial de uma nação.
Também uma imposição legal não é suficiente para elevar um dialeto
à condição de língua nacional, muito embora a unidade política possa ter
bons reflexos na adoção de determinada língua por toda uma comunida-
de de usuários. Em suma, porém, importa muito mais a função que deter-
minado idioma exerce no seio de uma comunidade linguística, suas ne-
cessidades e anseios, causando sérias variações no discurso técnico, reli-
gioso, legal etc.
Qualquer língua românica que se tenha tornado oficialmente a língua
de determinada nação teve um longo processo de evolução e expansão
em todo o território, suplantando em prestígio os outros falares, ainda
que mais antigos e possuidores de produção literária considerável.

112
Línguas românicas na atualidade
Aula

CONCLUSÃO 9
As línguas românicas são hoje a melhor demonstração daquilo que
foram o latim e as línguas de cada província. Em cada território existiam
possibilidades diferentes de transformação a que o latim esteve sujeito e,
num processo que dura séculos, novos falares foram surgindo dando pro-
vas de uma presença inigualável do latim em muitos espaços do mundo
linguístico. Este fenômeno, devido à sua extensão territorial e à variedade
das línguas que gerou, torna-se algo de muito especial na história das
línguas do mundo.

RESUMO

O critério das línguas escritas tem sido usado para estabelecer o qua-
dro atual da România. Neste quadro incluem-se as seguintes línguas: o
português, o espanhol, o catalão, o francês, o provençal, o grisão, o rome-
no. O critério de língua escrita não é aplicado ao sardo, que hoje pertence
ao domínio da língua escrita italiana e ao dálmata. Também o reto-roma-
no é apresenta características muito específicas.
As fronteiras entre as línguas não são rígidas, mas é possível reconhe-
cer a presença de cada uma delas em seu território específico.
Muitas neolatinas se tornam línguas nacionais, mas tal conceito dis-
pensa algumas interpretações que apenas evidenciam o desenvolvimento
de uma literatura ou o reconhecimento de condições políticas e jurídicas
para conferir a uma determinada língua este status. O provençal é um
exemplo de farta literatura que, no entanto, não se impôs ao francês como
língua oficial de uma nação.

ATIVIDADES

As atividades aqui sugeridas dizem respeito à melhor compreensão da


distribuição geográfica daquilo que as línguas românicas se tornaram para
o mundo.
1. ORGANIZE um Quadro Sinótico contendo a localização de todas as
línguas românicas a fim de visualizar sua distribuição e a proximidade
entre elas.
2.PESQUISE os pontos comuns e as diferenças entre as línguas români-
cas.
3. RESPONDA:
a)O que significa uma língua nacional?
b) Que critérios costumam ser usados para dar status de língua nacional a
determinado idioma?

113
Filologia Românica

Inclua novas palavras no glossário que vem sendo construído ao longo


das aulas:
Dálmata / Dalmácia / Adriático / Grisão / Reto-romano /
Provençal.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução de


José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
BOUET, Pierre et alii. Initiation au système de la langue latine. Paris:
Nathan, 1975.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. São Paulo: Ática, 1993.
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao
livro técnico, 1976.
DANGEL, Jacqueline. Histoire de la langue latine. Paris: 1995.
ELIA, Sílvio. Preparação à linguística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
GALVÃO, José Raimundo. Alomorfias do léxico português. São Cris-
tóvão: EDUFS, 2008.
_____. Fundamentos da língua latina. Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão - CESAD : EDUFS, 2008. 2 v.
HECKLER, Evando et alii. Dicionário morfológico da língua portu-
guesa. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1984, 5 v.
______. Estrutura das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1994.
______. História e estória das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS,
v. I-XX, 1988-1997.
ILARI, Rodolfo. Linguística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à linguística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Linguística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.
NUNES, José Joaquim. Compêndio de gramática histórica portugue-
sa. Lisboa: Livraria Clássica, 1956.
PALMER, L. R. Introducción al latin. Tradução de Juan José Moralejo e
José Luis Moralejo. Barcelona: Ariel, 1984.
VÄÄNÄNEM, Veikko. Introducción al latín vulgar. Tradução de Ma-
nuel Carrión. Madrid: Gredos, 1968.
TARALLO, Fernando. Tempos linguísticos. São Paulo: Ática, 1994.

114
Línguas românicas na atualidade
Aula

VIDOS, Benedek Elemér. Manual de linguística românica. Tradução


de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
9
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da linguística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

115
Aula

10
LEIS FONÉTICAS, METAPLASMOS E
ALOMORFIAS

META
Conhecer os elementos pelos quais se regem as transformações havidas do latim às línguas
românicas.

OBJETIVOS
Ao final desta aula o aluno deverá:
conceituar leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias no contexto das variações lingüísticas;
acompanhar o processo de transformação que envolve as línguas românicas;
aplicar os diferentes recursos no processo de transformação das línguas;
reconhecer a relação de parentesco entre as línguas românicas.

PRÉ-REQUISITOS
Nesta aula são retomados os conhecimentos fundamentais de língua latina, daí a necessidade
de revisá-los na perspectiva de bem compreender o processo de evolução do latim a
transformar-se em línguas neolatinas.
Todos os conteúdos das aulas anteriores são, na verdade, indispensáveis para dar uma visão
de um todo fortemente concatenado.
Filologia Românica

INTRODUÇÃO

Este assunto já foi ventilado ao longo deste módulo como também


pode ser revisto na aula 20 do módulo II de Fundamentos da Língua Latina.
Para os estudos do método histórico-comparativo, a compreensão dos
metaplasmos e alomorfias ajuda a visualizar as transformações acontecidas
do latim para as neolatinas. É preciso, porém, não exagerar nas compara-
ções forçando a existência de uma exata relação de causa /efeito.
É claro que se pode pensar em determinados princípios que regem as
línguas humanas, nos quais também se inserem as línguas românicas influin-
do, para isso, o sistema articulatório de uma língua em determinado momen-
to. Melhor seria que se falasse de tendências que podem ter caráter geral e
externo (algo que parece resultar da própria natureza humana) e caráter parti-
cular e interno (algo específico de cada língua em relação ao órgão fonador).
Os especialistas reconhecem uma relação entre a língua de origem e suas
derivadas e destas entre si. Este é o tema desta aula, mas existe uma certa
técnica que precisa ser exercitada, de cujo conhecimento depende a melhor
compreensão de como as línguas românicas se constituíram; de modo especi-
al, a língua portuguesa, razão de nosso maior interesse no estudo da romanística.
A assimilação de alguns conceitos vai
permitir maior segurança no trato com o
conteúdo desta aula:
Leis fonéticas - referem-se a determina-
dos princípios pelos quais as mudanças
linguísticas se operam. Nada há de rigoroso e
nada que faça lembrar uma relação de causa/
efeito, tal como se pode observar no trato com
as ciências exatas. Daí ser preferível falar de
normas, tendências, princípios, fazendo imagi-
nar uma certa flexibilidade no processo de mu-
dança, uma vez que, em muitos aspectos, não
há como visualizar uma relação de continuida-
de mesmo que se lide com casos análogos.
Metaplasmos - dizem respeito à arte com
que as palavras são plasmadas, trabalhadas,
até que se chegue a formas mais evoluídas,
com feições próprias, mas guardando traços
comuns com as origens.
Alomorfias - fazem lembrar que as pa-
lavras possuem outras formas para tratar exa-
tamente dos mesmos conceitos. Tais varia-
ções formais são, na verdade, obtidas medi-
ante a aplicação dos metaplasmos, segundo determinados princípios.

118
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias
Aula

OS METAPLASMOS: HISTÓRIA E INFLUÊNCIAS 10


Teoricamente falando, metaplasmos são transformações fonéticas que
algumas palavras sofrem ao longo da evolução de uma língua. Essas mu-
danças ocorrem por conta das tendências das transformações. A lei foné-
tica relaciona um dado linguístico pertencente à língua de origem com outro pertencen-
te às dela derivadas.
Além disso, elas podem ser motivadas pela troca, pelo acréscimo,
pela substituição, pela supressão e pela transposição de fonemas. Vale
lembrar que alguns autores dividem essas transformações em em quatro
categorias: transformação ou permuta, aumento ou adição, subtração,
supressão ou redução e transposição.

METAPLASMOS POR PERMUTA

São aqueles que se destacam através da substituição ou troca de um


fonema por outro. Eles classificam-se em:
a) vocalização - um fenómeno fonético que consiste na transformação de
uma consoante em vogal. Através desse fenômeno, é possível vocalizar
em i ou u as primeiras consoantes dos grupos ct, lt, pt, lc, lp, bs, gn.
Exemplo.:
Nocte - noite factu - feito
Multu - muito alteru - outro
Falce - foice
Palpare - poupar
Absentia - ausência
Regnu - reino
b) consonantização - é uma transformação de um som vocálico num
consonantal, é inversa à vocalização. Acontece consonantização entre as
semivogais i e u que passam a ser j ou v.
Exemplo.:
Iam -Já Iesus - Jesus maIorem - maJor
Uita - Vida Hieronymu - Jerônimo
UiUére por uiuere -ViVer
lactum -Jeito Uacca -Vaca
IeIunu - JeJum Uagare- vagar
c) sonorização - transformação de um fonema surdo por um sonoro
homorgânico (fonema com mesmo ponto de articulação na sua pronúncia).
A sonorização só acontece quando uma consoante surda encontra-se
entre vogais.
São consoantes surdas: p, t, c, f.
Em geral, as trocas acontecem:

119
Filologia Românica

1. P-B
Capio - caibo
Lupo - lobo
Sapui - soube
2. T - D
Cito-cedo
Acutu- agudo
Civiate - cidade
Maritu - marido

3. C - G
Acutu - agudo
Pacare - pagar
Amica - amiga

4. C(+e,+i) - Z
Acetu- azedo
Vicinu - vizinho
Facere – fazer

5. F - V
Profectu - proveito
Aurifice - ourives

Casos particulares:
- pode acontecer de o b virar v nesse caso ocorre um processo denomina-
do de degeneração (perde as qualidades primitivas). Ex.:
Caballu – cavalo
Faba - fava

d) assimilação - transformação de dois fonemas diferentes em dois iguais.


A assimilação pode ser vocálica e consonantal, total e parcial, progressi-
va e regressiva.

1. Assimilação vocálica: acontece quando o fonema que se assimila é


uma vogal.
Ex.:
Novac(u)la - navalha
Paomba -papumba - poomba - pomba
Caente - calente - queente - quente
2. Assimilação consonantal: acontece quando o fonema assimilado é uma
consoante.
Ex.:

120
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias
Aula

Persona - pessoa
Ipse - isse – esse
10
Ipsu - issu – isso
Verlo - vello - vê-lo
3. Assimilação total (completa): ocorre quando o fonema assimilado é
igual ao fonema assimilador.
Ex.:
Mirabilia - maravilha
Per + Io - pello - pelo
Adversu - avesso – avesso
Persicu - pessicu - pêssego

4. Assimilação parcial (incompleta): ocorre quando o fonema assimilado


apenas se assemelha ao fonema assimilador.
Ex.:
Auru – ouro
Lacte- laite – leite
Faito - factu - feito

5. Assimilação Progressiva: acontece quando o fonema assimilador se


encontra antes do fonema assimilado (um fonema assimila outro que lhe
é posterior).
Ex.:
Nostro - nosso
Esmolla - esmola

6. Assimilação regressiva: opera-se da frente para trás (um fonema assi-


mila outro que lhe é anterior.
Ex.:
Pedir (petire por petere)
Capseu - casseu - queixo
Captare - cattar - catar
Septe - sette - sete

Pode ocorrer também a assimilação por influência de uma consoante


sobre a vogal.
Ex.:
Fame - fome
Cognatu - cunhado
Resecare - rasgar
Regina - rainha
Vipera - víbora
Sibilare - assobiar

121
Filologia Românica

e) nasalização - quando um fonema oral se transforma em um fonema


nasal, ocorre uma nasalização.
Exemplo: nec>ne> nem; mihi>mii>mi>mim; mortadela>mortandela.
f) desnasalização: caminho oposto da nasalização, a desnasalização é a
transfor mação de um fonema nasal em oral. Ex.: bona>boa;
virgem>virgem
g) dissimilação: permuta de um fonema por outro por já haver um fonema
igual a este na palavra. O fonema que muda é chamado dissimilado e o
que permanece intacto é chamado dissimilador
h) Consonantal: é quando os fonemas que se repetem são consoantes.
Ex.: memorare > membrar > lembrar.

II. Vocálica: é quando os fonemas que se repetem são vogais.


Exemplo: rotundo > rodondo > redondo
III. Progressiva: quando o fonema permutado (dissimilado) está depois
do fonema considerado dissimilador. Exemplo: liliu>lírio
IV. Regressiva: quando o dissimilado está antes do dissimilador. Exem-
plo: parabola>paravra>palavra
i) Ditongação: também conhecido por alargamento, é transformação de
um monotongo (hiato ou vogal) em ditongo.
Exemplo: malo>mao>mau; arena>area>areia.
j) Monotongação (Redução): é a redução de um ditongo a um monotongo,
que ocorre diante da tendência histórica de se apagar a semivogal.

122
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias
Aula

Exemplo: aurícula>orelha; eiclesiam> eiclesia > eicresia > eigreja > igreja..
k) Palatização - Entende-se como a transformação de um ou mais fonemas
10
numa palatal (sonorização articulada na região do palato ou “céu da boca”.

1. Assibilação - Trata-se de um fenómeno que consiste em transformar


um ou mais fonemas numa sibilante.
m) Apofonia - Processo de mudança do timbre vocálico por efeito da
contração de um radical com um prefixo. Exemplos: in + aptu > inepto
In + barba > imberbe Sub + jactu> sujeito
Existem situações em que ocorre a assimilação de consoantes, ou seja,
duas consoantes diferentes se tornam iguais como em ad+curro > accurro
assim como sub+ciirro > succurro “correr para baixo (para amparar, logo, para
socorrer). Alguns derivados mudam de sentido, assim: voco significa chamar
(mesmo radical de vox, vocis “voz”, presente em vogal, vocativo, etc.): advoco é
“chamar para perto”, daí advocatus, “o que foi chamado para perto (a fim de
ajudar), isto é o advogado; invoco “chamar para dentro”, donde invocar; provoco
“chamar para a frente (a fim de brigar)”, donde provocar.
n) Metafonia - Processo de mudança de timbre de uma vogal tônica por
influência de outra vogal, geralmente i ou u. debita > dívida / tepidu >
tíbio / tosso (de tossir) > tusso / cobro (de cobrir) > cubro.
Existem situações onde ocorrem alterações no timbre vocálico do o
na passagem do singular para o plural; exemplo: povo e povos (povo e
povos). Existem situações em que não há a alteração de timbre nessa
transição; exemplo: gosto e gostos.

METAPLASMOS POR AUMENTO

Consiste no adicionamento de fonema às palavras. Pertencem a esse


processo: a prótese ou próstese; a epêntese; a anaplixe e a paragoge ou
epítase.
a) Prótese ou próstese - Acréscimo de um fonema no início do vocábulo.
Ex: stare > estar / scribere > escrever
Obs: A prótese em português provém muitas vezes da a aglutinação
do artigo: Ex: minacia > ameaça mora > amora
b) Epêntese - Acréscimo de fonema no meio do vocábulo.
Ex: stella > estrela humile > humilde

123
Filologia Românica

Obs: O r de estrela é influencia de astrum, registro do latim. A propo-


sição do r ao grupo st é o fato comum em portugês: listra, lastro etc.
c) Anaptixe: trata-se de uma epêntese especial que consiste em desfazer
um grupo de consoantes pela intercalação de uma vogal. Ex: grupa
(>kruppa, germ.) > garupa bratta (>blatta) > barata
d) Paragoge: adição de fonema no fim do vocábulo.
Ex: ante > antes
Amor > amore
Obs: nos empréstimos modernos, acrescenta-se “e” quando as palabras
são terminadas em consoantes em português: chique (chie); clube (club);
bife (bif); filme (film).

METAPLASMOS POR SUBTRAÇÃO


OU SUPRESSÃO

a) Aférese: é a supressão de um fonema no início do vocábulo. Ex: acume


> agume > gume / episcopu > biscopu > bispo
b) Síncope: é a supressão de um fonema no meio do vocábulo. Ex: legale
> leal legenda > leenda > lenda
c) Apócope: supressão de fonema no fim do vocábulo. Ex: maré > mar
amat > ama
d) Crase: fusão de duas vogais em uma. Ex: pede > pee > pé / colore
> coor > cor
e) Haplologia: é a síncope especial que consiste na queda de uma silabe
medial, por haver outra idêntica ou quase idêntica na mesma palavra. A
haplologia pode consistir não na simples supressão de um fonema no in-
terior de palawa, mas na redução da primeira de duas sílabas sucessivas
iniciadas pela mesma consoante.
Ex: bondadoso > bondoso / tragicocomédia > tragicomédia

METAPLASMOS POR TRANSPOSIÇÃO

Os metaplasmos por transposição ocorrem através do desloca-


mento de fonemas nas sílabas; daí se originam a Metátese, a Hipértese e
o Hiperbibasmo:
a) Metátese: trata-se do deslocamento do fonema na mesma sílaba. Ex:
semper> sempre perguiça> preguiça inter> intre> entre
Ainda no dialeto caipira, o que concorre na atualidade para
melhor demonstração, temos:
perciso> preciso pertende> pretende purcissão> procissão parteleira>
prateleira
b) Hipértese: é a transposição do fonema para uma sílaba diferente.

124
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias
Aula

Ex: tenebram> treva


primarium> primairo> primeiro
10
rabiam> raiva
hirundinam> andorinha
E na fala vulgar:
pobrema> problema
bicabornato> bicarbonato
largata> lagarta
agordão> algodão
sastisfação> satisfação
c) Hiperbibasmo: trata-se da deslocação do acento tónico, este se divide
em SÍSTOLE e DIÁSTOLE.
Na sístole o acento vai para a sílaba anterior: erámus> eramos
seíva> seiva
benção<bendictione> bênção
Na diástole a tonicidade é posposta: océanu> oceano júdice> juiz
mulíere> mulher

ALOMORFIA

O estudo de alomorfia tem como princípio básico trazer à tona o que


podemos tirar do interior das palavras, ou seja, expressar outras maneiras
de dizer a palavra com base em sua origem.
Ainda se coloca que as alomorfias podem ter sido provocadas
por mudanças morfonêmicas ou por outros fatores (jamais especifi-
cados) como se tal ocorresse sem qualquer relação visível com algo
anterior. O ainda é necessário é que se reconheça que a maioria dos
falantes não tem qualquer dificuldade de circular pelas diferentes
formas, que se tem como é exemplo a palavra provável para proba-
bilidade e chuva para fluvial etc.
Em se tratando do latim, temos formas divergentes na mesma família
que provêm do radical do genitivo singular, que é retomado sem qualquer
alteração nos casos de alomorfia no português. Sua razão de existência no
passado e o no presente se dá pela possibilidade de adjunção de outras
formas que venham propiciar o uso diversificado numa mesma família para
redizer o significado como fazem os radicais ou redirecionar-lhes o rumo,
como se faz pelo acréscimo de prefixos e sufixos.
A semelhança com o latim sugere, numa infinidade de casos. Ainda é
preciso evidenciar a incidência de certas alomorfias que não se enquadram
necessariamente em nenhum tipo de metaplasmo, mas que apenas revelam a
retomada de raízes latinas na atualidade do léxico, sempre obedecendo aos
ditames das formas do genitivo singular, fato mais visível nas palavras oriun-
das da terceira declinação, por exemplo: pectoris > expectorar, expectorante.

125
Filologia Românica

CONCLUSÃO

É certo que as línguas mudam, mas existem determinadas ocorrênci-


as que se verificam em circunstâncias que se assemelham.
Todo o conteúdo exposto demonstrou o que a de constante no pro-
cesso de variação fazendo a forte relação existente entre os termos
cognatos. Este é um caminho aberto para a compreensão do léxico e para
a percepção de uma certa continuidade de significado mesmo havendo
alteração formal.
O mecanismo pode ser aplicado a um sem-número de palavras quan-
do sujeitas às mesmas circunstâncias.

RESUMO

Torna-se difícil apresentar um resumo desta aula. Todos os itens são


de igual importância as é bom que se frise a interligação dos temas e o
caráter de completude que guardam entre si.

ATIVIDADES

1. ORGANIZE um Quadro Sinótico contendo todas as terminologias


referentes aos metaplasmos e suas conceituações.
2. APRESENTE outros exemplos para ilustrar os mesmos casos acima
destacados. É importante ampliar a exemplificação a fim de perceber a
extensão do processo em outros momentos da língua.
3. RESPONDA:
a) O que são leis fonéticas?
b) Qual a relação entre as leis fonéticas e o espírito cientificista do século
XIX?
c) O que são mataplasmos? Exemplifique.
d) Como se pode definir a alomorfia? Exemplifique.

126
Leis fonéticas, metaplasmos e alomorfias
Aula

Ao final desta aula, estará concluído o glossário que se vem


construindo desde o início do curso.
10
APRESENTE-O de forma conveniente, organizado em ordem
alfabética e dando a ele a marca de um trabalho pessoal,
individualizada, que pode ser vista de diferentes maneiras (variação
das fontes das letras, emprego das cores etc.).
Novos termos:
Leis fonéticas / Metaplasmo / Alomorfia / Assimilação /
Dissimilação / Permuta / Sonorização / Vocalização /
Consonantização / Nazalização / Ditongação / Nonotongação /
Palatização / Apofonia / Assibilação / Metafonia / Hiperbibasmo
/ Sístole / Diástole / Hipértese / Metátese.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução de


José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1972.
BASSETO, Bruno Fregni. Elementos de filologia românica. São Pau-
lo: EDUSP, 2005.
BOUET, Pierre et alii. Initiation au système de la langue latine. Paris:
Nathan, 1975.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Iniciação ao latim. São Paulo: Ática, 1993.
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao
livro técnico, 1976.
DANGEL, Jacqueline. Histoire de la langue latine. Paris: 1995.
ELIA, Sílvio. Preparação à lingüística românica. Rio de Janeiro: Ao
Livro Técnico, 1979.
GALVÃO, José Raimundo. Alomorfias do léxico português. São Cris-
tóvão: EDUFS, 2008.
_____. Fundamentos da língua latina. Universidade Federal de Sergipe.
São Cristóvão - CESAD : EDUFS, 2008. 2 v.
HECKLER, Evando et alii. Dicionário morfológico da língua portu-
guesa. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1984, 5 v.
______. Estrutura das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS, 1994.

______. História e estória das palavras. São Leopoldo: EDUNISINOS,


v. I-XX, 1988-1997.
ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 2004.
IORDAN, Iorgu. Introdução à lingüística românica. Tradução de Júlia
Dias Ferreira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Tradução de Marion
Ehrardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1963.

127
Filologia Românica

NUNES, José Joaquim. Compêndio de gramática histórica portugue-


sa. Lisboa: Livraria Clássica, 1956.
PALMER, L. R. Introducción al latin. Tradução de Juan José Moralejo e
José Luis Moralejo. Barcelona: Ariel, 1984.
VÄÄNÄNEM, Veikko. Introducción al latín vulgar. Tradução de Ma-
nuel Carrión. Madrid: Gredos, 1968.
TARALLO, Fernando. Tempos lingüísticos. São Paulo: Ática, 1994.
VIDOS, Benedek Elemér. Manual de lingüística românica. Tradução
de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996.
WEEDWOOD, Bárbara. História concisa da lingüística. Tradução de
Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2002.

128

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