Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
com
Dea Loher
A VIDA NA PRAÇA
ROOSEVELT
1
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 1/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Personagens:
Observações:
Aurora, Bibi e Suzana são Transexuais. Não fizeram cirurgia para mudança de
sexo.
O tema musical de Aurora é: Manhã tão bonita manhã ... (Manhã de Carnaval, cf.
Virgínia Rodrigues: Sol Negro).
2
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 2/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
01.
LARANJAS I
3
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 3/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Pausa.
As laranjas derreteram as suas mucosas
a acidez varou as paredes do estômago
perfurou seu intestino.
Dizem
que a sua
e o céu dalaringe, faringe
boca estão corroídos.
Mostra a língua.
Deixa ver seus lábios
Ri. Descasca laranjas, rasga a fruta com as mãos
Dizem que a acidez
não pára de corroer
que o sangue vai inundar a sua barriga
dizem,
que você sente dor quando respira
dizem que você vai morrer de fome,
masmorrer
vai antes de sede.
morrer de fome
Pausa.
É assim
Pausa.
É assim.
Você queria saber como é.
Uma morte lenta,
você queria morrer
como ele morreu.
Pausa
fedendo
em plenoaverão.
laranja
Mandei embrulhar dúzia por dúzia
só as boas e as docinhas.
Vou trazer uma por uma aqui
para que o cheiro faça você lembrar.
Pausa.
Você vai ter que se lembrar..
4
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 4/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
02.
SR. MIRADOR Sou apenas um policial. Meu posto ficava na Praça Roosevelt.
A Praça Roosevelt é um lugar feio e torto. Um lugar onde tudo parece estar
fora do lugar, até as árvores, não posso dizer que a amo. No meio da praça
tem uma O
entrada. igreja
nossodeposto
pedrafica
e passa uma avenida
à esquerda de quatro
da igreja, pistas na porta
uma construção de de
concreto e à direita de um estacionamento subterrâneo. Deixaram os
plátanos em volta da igreja. Ali moram os traficantes. Eles moram nas
árvores, dormem ali e penduram suas roupas nos galhos e, às vezes,
quando algum dos moradores passa embaixo das árvores eles cospem na
cabeça deles, cospem em você ou mijam na tua cabeça. Os esconderijos
deles ficam debaixo da calçada, nas galerias onde a canalização se bifurca.
Eles levantam as tampas do esgoto, na cara de todo mundo e descem os
pacotes com a mercadoria, em lugares que podem vigiar do alto das árvores,
mas ninguém, nem criança, nem a vendedora de bombons , ninguém, nem
aqueles queousaria
passageiro, moram roubar
nos nichos subterrâneos,
qualquer que
coisa deles. se prédios
Nos instalaram
em ali,
voltanum
da lar
praça, ficam os bordéis. Nos bordéis é assim: vamos supor que um prédio
tenha 18 andares. Então, você vai até a entrada, digamos que lá pelas nove
ou dez da noite e paga, uns 50 reais. Você pega o elevador até o 18 ° andar.
Aí você procura um quarto com uma mulher ou um homem, ou uma mulher
que é homem ou um homem que é mulher, ou com os dois, em cada andar
você pode escolher uma coisa diferente ou uma pessoa diferente. E aí você
vai trepando por todos os andares até chegar no térreo às 7 da manhã.
Pausa.
Daí ainda tem uns botecos e um monte de escritórios, um salão de bingo,
uma costureira,dealimetal.
de... produtos do outro
Ri. lado o ponto dos travestis e uma pequena fábrica
No fundo, a Praça Roosevelt é tão boa ou tão ruim como qualquer outra
praça nessa cidade. Ou talvez eu devesse dizer, como qualquer outra praça
que eu conheço.
Eu não conversava muito com os meus companheiros. Eles faziam seus
negócios sem mim, isso não foi inteligente da minha parte. O que eu podia
fazer? Eu sou assim. Eu tinha sorte. Eles me deixavam em paz. Muitas
vezes eu por ali sozinho à noite, pelas ruas, nenhum dos meus
companheiros fazia isso, é proibido até. Até isso eles deixavam, talvez eles
quisessem que eu tivesse um outro fim
Um dia entrei numa
Roosevelt. Quelivraria para
significa descobrir
isso, poraque
perguntei umaa senhora
praça tinha o nome
atrás de Uma
do balcão.
pergunta simples: meu trabalho não tinha sentido. Eu sabia. Talvez fosse
diferente se eu conseguisse encontrar relação nas coisas. Roosevelt fez o
que, exatamente? E por que essa praça de merda tem esse nome? O que
esse Franklin tem a ver com a gente? Onde está a nossa história e onde eu
apareço. Não pode ser tudo pura arbitrariedade. Tem de haver uma razão
para eu estar aqui. Pausa.
A minha desgraça começou numa noite em que vi alguém debaixo das
5
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 5/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
6
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 6/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
03.
7
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 7/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
o que, que eu fico pensando no que o dia todo, quando fico aqui sentado
bebendo minha cerva e saio por aí catando as lata de alumínio.
Ce pensa nos troco que vai juntá quando vendê as lata, bundão, nisso que cê
pensa.
Cala essa boca já, seu fio duma égua.
Silêncio.
Tava pensando num troço. Eu quiria falá cocê porque me passou uns troço na
cabeça.
Ou caga ou desocupa a moita.
Tava pensando se por acaso ele num tinha nenhum amigo
Num parece.
Acho que comigo num ia acontecer um troço desse porque eu ia poder me
encostar no barraco dum amigo por uns tempo e tal.
Claro, ele ia trabaiá procê, ganhá dinhero, enche teu bucho e ainda te emprestá a
muié dele, ia dividir tudo cocê, um bundão solidário.
Tava pensando
Caraio,
verporque
que numnum pergunta
abrigo pro uma
e chega Mundo onde
hora queele
cêpassou os ultimo
que mandar numtrês méis.
güenta Vai
mais.
Pausa.
Pois é, bundão, claro que eu ia ajudar ocê, mas não pra sempre, tudo tem limite, o
dinheiro em primeiro lugar. E quando nois dois num tiver mais serviço, já
pensou nisso, quem é que vai segurá a barra de quem.
Pausa.
Tão dizendo que o Mundo num qué sabê de mais nada.
Óia, quem fala assim é por que num tem outro jeito. Conhece a raposa e as uva
Fica lá o dia todo, só ali e quando cê pergunta, ele diz—
O quê.
Num diz mais nada. Parou de falá.
Pausa.
E o cara vive do quê, ou já virô santo que só precisa de água, nada de pão, nada
pra mastigá, já ta flutuando qui nem indiano, já passô pro lado de lá ou quê.
Num güento quando cê fica tirando sarro
Pausa.
O povo por aí dá comida pra ele, vem do mercado, sacola na mão, deixam uma
banana lá, um pacote de leite, meia salchicha
Pausa.
Só isso.
Só isso.
Pausa.
Uns tempo atrás, deu na cabeça dele de escrevê. Dia e noite. Dia e noite
escrevendo em papel, papelão, depois ele dava de presente pra quem
aparecia..
Uns versinho ou quê.
Umas prece
Umas prece
Umas prece
Pausa.
8
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 8/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Dá um tempo. Prece, versinho, essas merda, que bosta, prece, o que o Mundo ia
pedir, pra que.
Diz que o povo vai lá e conta umas história pra ele – conta tudo. A vida inteira. Ele
fica escutando. E aí tinha essas prece. Pausa. Por um tempo. Agora num sei
de mais nada.
Um
Numbiscoito
güento da sorte ce
quando vivofica tirando sarro. Então, vamu passar lá agora, que aí cê
vai ver
Num credito.
Vamos lá agora que cê vai ver, seu bundão, aí quem sabe cê pega no tranco.
Vão até ele. Chove. Alguém está sentado ali debaixo de um saco de lixo preto,
imóvel. Parece uma estátua embrulhada. Os dois esperam um tempo,
calados. Nada acontece, a chuva cai.
9
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 9/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
04.
Escritório.
CONCHA Fico aqui num escritório grande. Doze mesas, vinte e quatro cadeiras,
parece uma sala de aula. As mesas estão vazias, as cadeiras abandonadas,
como se fosse férias. As grandes férias de demissão. Meu lugar fica no meio
da sala, tento preencher o máximo de espaço possível, tento parecer mais,
como se eu fosse muito mais gente, muito mais. A porta do corredor que dá
no escritório fica próxima à minha mesa. Também por isso fico no meio da
sala. Se o diretor da fábrica entra, ele fica obrigatoriamente na minha frente,
a sua secretária chefe. Me reporto a ele. Agora sou passado e futuro numa
só. Em mim ele vê os funcionários do escritório que um dia trabalharam
aqui, que ele demitiu. E em mim ele deve ver o potencial que apesar de tudo
CONCHA Não dá para perceber pela minha cara. Não dá para perceber nada.
Minha aparência permite pensar num futuro, com certeza.
Entra Vito.
CONCHA E o senhor.
VITO Também vou para casa mais cedo
Silêncio.
CONCHA Então por que vive demitindo cada vez mais pessoas.
VITO Toda manhã, a senhora me pergunta como estou indo. Mas não pergunta
por mim, na verdade quer saber como vai a empresa. Só isso interessa à
senhora.
10
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 10/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Não fui eu quem contratou a senhora, foi o meu pai que a contratou; eu
herdei a senhora como herdei as mesas e as cadeiras e as luminárias e as
cortinas daqui e as máquinas lá embaixo do galpão e até o carro dele e o
motorista dele.traças.
furados pelas E tudoGraças
é horrível. Móveis
a Deus, de escritório
o carro horríveis,
pifou. Graças velhos
a Deus, o e
motorista teve um derrame, pelo menos não preciso mais olhar para ele. E
desculpe-me se eu digo isso, Concha, mas a senhora está de novo com um
fedor insuportável de coco de gato. Eu posso entender sim que é difícil ficar
sozinha, mas por que esses seus bichos fedem tanto.
Silêncio.
CONCHA O que vai ser das pessoas, sem trabalho.
VITO Vão acabar morrendo. Mais cedo ou mais tarde. Taí uma coisa em que a
senhora ainda não tinha pensado, Concha. Porque se tivesse pensado uma
única vez e fosse uma funcionária competente, não só uma herança
manchada do meu pai, a senhora já teria me avisado há muito tempo. Ou
não. A gente morre. Mais cedo ou mais tarde.
VITO Vou explicar uma coisa para a senhora, Concha, uma coisa que talvez a
senhora não entenda, eu mesmo só entendi recentemente, mas eu quero
muito que a senhora também entenda.
CONCHA Tem uma coisa que eu também quero deixar bem clara para o meu
chefe. Não sou deficitária. Não sou uma mulher solitária que foi abandonada
pelo marido e agora tem mania de gato e passa a noite na frente da televisão
cheia de almofadas de reumatismo vivas enfiadas nas costas. Fui eu que
mandei ele pro inferno. E – eu tenho três filhos adultos. Que não precisam
mais de mim. Isso eles tem que agradecer a mim mesma. Pronto. Agora
vamos comparar. O senhor tem o quê, além da gastrite.
Para Vito
Eu posso tentar.
11
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 11/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
CONCHA Por que teve. Quer economizar em quê. Os negócios vão bem. Os
demitidos odeiam o senhor..
VITO E vou demitir mais ainda. Vou demitir a senhora também. Aliás, por último.
Porque preciso da senhora até o fim. Mas não vai demorar mais muito
tempo. Aí serãosetodos,
É isso. Mesmo todos
nenhum deos 48 funcionários
vocês e esse
achar trabalho, ponto
o que será fechado.
eu duvido, não
vão morrer de fome. Não vão morrer de fome. Mas mesmo nesse caso,
mesmo nesse caso, vamos ter 48 esfomeados mais os esfomeados das
outras filiais que eu também vou fechar. E agora pergunto à senhora,
Concha, agora pergunto à sua consciência, quantas pessoas morreram no
ano passado. Por PAF.
CONCHA Bobagem?
Silêncio.
1
urspr. „PAF“: „perfuraçao por arma de fogo“ oder „projetil de arma de fogo“
12
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 12/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Aquele que esteve aqui atrás de trabalho. Faz umas semanas. Aquele que
a senhora me disse que ficou esperando duas horas por mim.
VITOmais
Eu ninguém.
gostaria de ter falado com ele, explicado por que não vou contratar
CONCHA Rapaz bonito, de uns 19 ou 20. Foi bom ele ter ficado aqui umas duas
horas. Durante duas horas eu não fiquei sozinha. O pai dele é policial ali na
praça. E ele adora chupar laranja. Os dedos dele estavam amarelos, não de
cigarro,
fruta dasalaranjas.
cítrica, Ele carregava
roupa sobrava esse cheiro,
nele. Gostei. de fruta recém-cortada,
Silêncio.
Ele disse uma frase estranha, disse com esse trabalho eu ia poder ganhar
mais respeito. Ia salvar a minha vida.
Pega o espelho e se olha nele.
CONCHA Não posso contar nada para ele. Pausa. Não posso contar para ele de
jeito nenhum. Meu ex-marido está com uma nova mulher. Jovem. Também
não posso contar para ele.
As crianças. Roberto está na Flórida, falta pouco para as provas, Ronaldo
em Florianópolis com o bebê recém–nascido, Liliana está estudando
enfermagem em Belém. Talvez pudesse contar para ela. Pausa. Não, não
dá.
13
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 13/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
5.
Mundo continua sentado debaixo do saco de lixo. Aurora se aproxima, pára perto
dele, espera. Cantarola. „Manhã tão bonita manhã ...“
ebem, bem
aí vão te inútil,
apagar.meu bem
Eu não posso te oferecer um lugar para dormir,
meu barraco tá cheio.
Eu divido com a Bibi, você conhece ela,
às vezes passa por aqui de madrugada,
como eu, mas ela vestida de mendiga
tem clientes que gostam dela assim.
E aí ela leva os caras lá prá casa
apesar de eu já ter proibido mais de cem vezes
Ri. Pausa.
Por causa
por outro lado eu não
da minha queroavisitar
alergia gatos.a Concha
Cada vez tem mais na casa dela.
As condições de multiplicação ali devem ser fantásticas.
Na casa da Concha os gatos se multiplicam
feito baratas na casa dos outros.
Então temos que procurar um lugar neutro.
Ri
Um lugar de ninguém
Ri
Vigiada por um mudo –
Uma testemunha muda –
Você ainda escreve preces -
Pausa
Oh, Raimundo, Mundo, po,
sai daí
sai desse teu saco.
Como é que você consegue respirar
Não dá nem para fumar desse jeito
14
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 14/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Pausa.
Sai fumaça de um buraquinho no saco.
Pausa.
Eu sei, você não tem mais trabalho
mas – caracaracaravocê, eu também estou frita
Surge
Deus teum cigarro pelo buraco.
pague
Aparece Concha
Onde foi que você se meteu.
AURORA para Mundo Ela sempre faz isso. Quando está mal, vai pro cemitério,
senta na grama e fica olhando essa – solidão. Esse deserto de covas. Não
dá pra chamar de outra coisa, um cemitério de pobres. E o sobrinho dela
está enterrado ali. E o meu Paulinho, que Deus o tenha.
CONCHA O cemitério São Luís fica bem longe lá na zona sul, leva mais de duas
horas até eu chegar lá, tenho que pegar três conduções e daqui a uma hora
já vai escurecer. Temos que sair já.
AURORA E a gente se conheceu lá – Eu não quero ir. Vamos tomar um café.
CONCHA para Mundo Ele se chamava Rodrigo. Às vezes eu levo uma vela para
ele e uma flores, para ele saber que eu não me esqueci dele.
AURORA Ela sempre faz isso. Quando fica mal, vai até o cemitério. Eu não digo
nada.
AURORA O cemitério parece uma lavoura. É, uma lavoura de Deus. Não tem
árvores, nem flores, nem bancos. A maior parte dos túmulos está
abandonada, se afundam na terra cobertos pelo mato e capim, aqui e ali
sobra uma cruz torta.
15
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 15/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
CONCHA Fico imaginando as vozes desses rostos: naquele muro meio alto à
esquerda da entrada, centenas de imagens ovais com o retrato dos mortos.
Sem nomes. Só os rostos. E ali eu me encontrei com ela. Aurora. No dia
25.11 do ano passado. Aponta para Aurora. Usava um modelito brega e
parecia uma dama.
AURORA E eu disse para esse barrilzinho, para essa codorna podre, parada ali
no meio do barro com seus sapatinhos de secretária que logo pus reparo –
CONCHA Fique mais um pouco aqui, ela disse. Estou vendo os retratos
esmaltados. Um por um.
CONCHA Caso encontre um rosto caído, perdido nesse deserto, então entregue-
o à administração do cemitério por favor. Eles vão colar no muro, para que
ao menos por um tempo fique em ordem. Chegue mais perto..
AURORA No muro não têm muitos lugares vazios, de um rosto que tenha sido
reconhecido e tirado de lá. – De volta à família.
Pausa.
16
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 16/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
AURORA Você tem de encarar os fatos, a Concha disse para mim, eles não vão
assaltar você
nas calças. E por ser mulher,
aí vamos juntasmas por não
procurar ser. Então
o túmulo não fica
do coitado se borrando
do meu Paulinho,
eu já me esqueci onde ele está enterrado.
CONCHA É, dele
negócios bem edevagar. Pausa.
do Paraguai, Quando
a testa delacontei
ficoupara ela doEu
sombria. meu
digochefe
a elaeque
dos
não é pior que ficar oferecendo a bunda siliconada nessas boates fedidas,
como você faz.
AURORA Eu digo que sou uma artista e que você não entende nada disso; mas
um dia vai te acender uma luz, o amanhecer de Córdoba, o amanhecer,
como fica feliz pelo dia, como fica feliz pela vida, como luta por cada dia, e
pela vida que havia sido negada a ela; mas esse coração, essa alma, ainda
assim tenta ser ela mesma...
CONCHA Meu Deus, ela é tão patética – .
AURORA Mas ela me escuta, Concha me escuta. Eu animo ela. Não é verdade
Concha.
AURORA Nunca me meti em quebra pau, nunca, qual é. Mas você não me
escuta, você não me escuta.
CONCHA Mundo, escuta. Para a crônica. Ele ainda está escrevendo a crônica.
17
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 17/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
AURORA O menino de 12 anos, que era eu, saiu correndo do quarto de hotel
onde o homem, que consertava carros na garagem do hotel tinha acabado
de meter o pau no cu dele; o menino de 12 anos, que era eu, desceu
correndo as escadas, passou pelo saguão, desceu a rua para casa,
escondeu-se no seu quarto, limpou o sangue da bunda com as toalhas
brancas
debaixo daquecama,
a suamal
avólavadas,
tinha bordado e queEnrique
molhadas. a mãe encontrou no dia seguinte
Enrique Enrique, meu
irmão se chamava assim, Enrique o que você aprontou com o meu menino
Enrique já tinha estado preso por causa de uma briga. Enrique Enrique
Enrique, Enrique deu de ombros mas por acaso o homem, que estuprou o
menino de doze anos que era eu, também se chamava Enrique e os gritos
da minha mãe ecoaram pela rua, tão alto que eu pensei que o outro Enrique
ia ouvir e pensar que eu tivesse dedurado ele e aí ele nunca mais ia pagar
100 cruzeiros pela minha bunda, porque ele deu, ele deu 100 cruzeiros pela
minha bunda, e eu, eu pensei que agora que as minhas pregas já tinham se
arrebentado mesmo, agora que eu conheço a dor, eu vou morder os dentes
cadaprazer
e pelo dia eledele,
vai ter de darsabe
e quem um pouco
o meumais, essemas
também; Enrique, pelo eu
enquanto meu silêncio
pensava
meu tio apareceu e disse, o menino estava no hotel, estava num quarto com
o mecânico, e trouxeram o Enrique dos carros; e ele vestia uma calça branca
e uma camisa branca e disse com seus dentes brancos, o menino me
seduziu, passou dias me rodeando e rodeando o carro e ele queria 150
cruzeiros, para dormir comigo, já pensou, 150 cruzeiros, isso é quase o que
a minha irmã ganha no correio, é, eu levei ele pro meu quarto, arrastei ele
pelo braço, é verdade, para castigar ele e antes que eu percebesse ele me
tirou 150 cruzeiros da gaveta e saiu correndo e agora eu estou querendo o
meu dinheiro de volta, e além disso, acaso eu tenho cara de bicha, isso
também
foi vai custar
trancado no seuextra pela
quarto. difamação.
Pausa. O menino
Eu vesti de 12
as roupas da anos,
minhaque
irmãera eu,
e fiquei
me exibindo pela janela para as pessoas que passavam na rua. Minha mãe
dizia você vai acabar como a Marlene Fernandes que canta no puteiro com
uma banda, o meu pai me pegou pelo braço e disse lute, lute meu filho pelo
que tem dentro de você. Seja lá o que for. Depois disso a minha mãe nunca
mais falou comigo e eu falsifiquei a minha identidade; com 15 anos, eu me
emancipei e deixei a cidade com um grupo de dança e ainda levei comigo as
castanholas mais preciosas da minha mãe, cor-de-rosa, presente do meu pai
de Castilha, que eu trago comigo.
Longa pausa.
CONCHA E assim a gente foi ficando amiga. Pausa. Agora já estou melhor.
AURORA A história animou você..
18
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 18/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
CONCHA Vamos até o bar. – Espera. Pega uma máquina fotográfica. Junta todo
mundo aí. – Uma foto a cada dia. Bate a foto.
As duas saem. Pausa. Concha volta, com um cigarro aceso. Enfia pelo burcao do
saco. Mundo fuma.
CONCHA Eu não posso contar para ela. Eu não posso contar para ela. Ela é
minha amiga e eu não posso contar para ela. Silêncio. Dá de ombros. Eu não
posso contar para ela. Silêncio.
Ainda por cima ela tem alergia a gato. Às vezes ela tosse por causa de um
pelinho que fica na minha roupa, por acaso. Não dá para escovar com mais
cuidado ainda. Aurora odeia gatos. Então o que eu posso fazer. Pausa. Eu
não posso contar para ela. Sai..
19
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 19/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
06.
20
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 20/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
com delicadeza, por favor. Depois não vai me ficar parecendo um punk
morto. – Isso, junto com o terno, sempre pega bem. Abaixa-se e desamarra
um dos cadarços dos sapatos de Mundo. Não posso me dar ao luxo da
moda. Já tive um cinto com pinos de metal, alternado, um pino, um furo, o
pino encaixava no furo. Couro preto, pra lá de chique, combinava muito bem
com o terno.
Quando O problema
eu colocava era eu
o cinto quetinha
a calça
queera muito
virar largapor
a calça e comprida demais.
cima e dobrar. A
calça ficava parecendo uma saia de pregas, uma saia-calça pregada
colorida. Fiquei com vergonha. Abaixa e desamarra o outro cadarço. Aí
vendi o cinto e um compadre de uma oficina de costura me fez essas pences
na calça, para que assentassem, vou mostrar, ficou assim, uma pence de
cada lado e na frente e atrás de cada perna. Agora não fica escorregando
toda hora.
É agora só estou esperando um telefonema, aí podia começar a minha
entrevista.
Espera. Senta-se ao lado de Mundo. .
Acho que
velho. vou vender
Esfrego a mala.
as folhas Vouuma
do jornal procurar umapara
na outra sacola limpabem
ficarem e ummacias,
jornal
como seda. E para tirar o grosso da tinta preta, se não fica todo manchado.
Vou dobrar bem dobradinho, e embrulhar com jornal, talvez eu encontre
papelão pra colocar no meio para dar estabilidade – aí é só cuidar bem da
sacola. Melhor ainda, eu sento em cima que aí já fica passado.;
Isso mesmo.
Abre a mala.
21
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 21/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
07.
LARANJAS II
22
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 22/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
23
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 23/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
24
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 24/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
08.
SR MIRADOR Ele não voltou para a Praça, claro que não. Fazia os seus
negócios em outro lugar e eu sabia que ele fazia em outro lugar. Eu podia
sentir.
costuraEudanotava
calça, nos gestosque
as unhas dele,
elenas mãos, que
escovava ele às
debaixo davezes esfregava na
água corrente,
apressado, como se pudesse lavar o cheiro, as marcas, o conhecimento do
seu negócio no córrego. Eu via pelo cabelo, que ele penteava molhado toda
manhã, eu via pelo cinto que ele ajeitava, os sapatos que usava, eu via pelo
gorro que só tirava da testa quando pensava que não tinha ninguém
olhando. Eu reconhecia todos os momentos que eu tinha visto centenas de
vezes quando escurecia, à noite na praça Roosevelt, quando eles estão
juntos, aparentemente ociosos, às vezes brigando feito gatos no cio, mas na
verdade sempre atentos, quase eletrizados, antes de guardar a muamba
debaixo do concreto da calçada e antes de subir nas árvores para dormir.
Meus companheiros
recebia recebiam
nada e não dormia nema de
parte deles
noite neme de
também dormiam.
dia. Talvez Eu não
eu preferisse
até que o meu filho fosse um cliente, não um dos que vendem, é sim, eu
queira que fosse comprador, aí talvez ainda tivesse tido esperança. Eu sabia
que ele estava procurando trabalho, um trabalho de verdade, com salário
fixo. Ele se candidatou na fábrica ali na praça e não arrumou emprego.
Pausa. O que ia ser dele? Às vezes ele ficava dias e noites desaparecido.
Comecei a procurar por ele, de noite, sozinho.
25
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 25/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
09.
Noite. Concha se arrasta pela praça carregando uma caixa grande de papelão.
Tem algo vivo dentro dela. Ela tenta deixar a caixa em vários lugares. Fala com
Mundo por precaução “você não viu nada, não viu nada, você não tem nada com
isso.” Por fim
um tempo, deixa a caixa
novamente debaixo
indecisa, deauma
pega caixaárvore
e sai eandando.
vai embora. Volta depois de
26
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 26/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
10.
Bar vazio, exceto por Vito e Bingo sentados em mesas separadas. Cada um com
uma de
jogo bebida à frente. Vito olha ao redor com rigor. Silêncio. Televisão transmite
futebol.
BINGO Eu detesto
levando o ar puro.
suas crianças O sol
prá lá. Umaque brilha. O campo
barulheira. Pausa.cheio.
E issoAs
numfamílias
dia de
folga, isso eu não agüento.
Silêncio
BINGO Gol.
Pausa.
VITO Veja só, que estranho. Faz oito anos que tenho meu escritório no prédio
aqui do lado. Mas nunca tinha entrado aqui antes. Nem uma única vez.
27
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 27/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO É. Por quê. Silêncio. Sempre fiz tudo como o meu pai. A fábrica, o
escritório, eu herdei do meu pai e ele nunca entrou aqui. Talvez por isso.
BINGO O senhor
senhor. é velho
O senhor não demais para fazer tudo como seu pai. Olhe para o
é pai também.
VITO ri Não, não sou não. Sou só filho. Infelizmente. Pausa. Meu pai morreu faz
dois anos.
VITO É. Pausa. Meu escritório é mais ou menos do tamanho desse lugar aqui e
só tem duas mesas. A dele e a minha. Numa distância parecida com essa
entre a gente aqui. Pausa. A gente discutia tudo um com o outro, eu não
encomendava
anos uma chave
que fico sozinho de fenda sem
no escritório, perguntar
faz dois paracadeira
anos uma o meu vazia
pai. Faz dois
e uma
mesa vazia. É com elas que eu falo, como se meu pai estivesse presente.
Silêncio.
VITO Isso significa que eu falo comigo mesmo. Eu só imagino que falo com o
meu pai, mas na verdade eu falo comigo mesmo.
Silêncio.
VITO limpa a garganta Armas.
BINGO Não, eu –
28
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 28/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Tudo bem. Para mim tanto faz. Se a senhora soubesse quanto vezes isso
já me aconteceu, é a coisa mais normal. Todo mundo quer segurança, quer
proteção, todo mundo quer que a polícia ande armada, todo mundo quer ter
o direito de se defender por conta própria numa situação de risco, com um
revólver pequenininho, uma pistolinha de bolsa de mulher, não é verdade – e
adosenhora
céu, quepensa
o bomo Deus
quê, que
jogaesses
de lá brinquedos
de cima pravem
cair de
na onde, que eles caem
cidade?
BINGO Não, eu –
VITO Tá certo. Não precisa falar comigo. Já não falo com mais ninguém mesmo.
Dou as ordens para a minha secretária e aí vou para a minha sala e por cima
da cadeira vazia atrás da mesa vazia vejo o rosto vazio do meu pai e falo
comigo mesmo.
VITO Cuide da sua voz. Claro. Pausa. É melhor mesmo. Cuidar da nossa voz.
Vamos parar de falar. Pausa. Como a minha mãe. Ri . Quando chego em
casa, falo com a minha mãe. Toda noite. Toda noite. Toda manhã. Mas ela
não responde. Ela não fala mais. Estourou uma veia aqui em cima e então
adeus. Pausa. Ela não faz mais nada, nadinha. Reformei a casa para ela,
para que as enfermeiras pudessem andar com ela na cadeira de rodas por
todos os lados. Quatro enfermeiras se revezam em turnos. Ela não se mexe,
não move um membro, ela é alimentada com uma sonda. A única coisa que
faz é engolir. Engolir, dormir, cagar.
Silêncio.
Ela éuma
com a única pessoa
planta. comEu
Pausa. quem eu converso.
suponho É uma
que ela sinta planta.coisa
alguma Eu converso
mas não sei
o quê. Observo a planta, dou comida, olho nos olhos dela, dou banho, dou
carinho, penteio, cheiro. Pausa. Coloco no sol, deixo cair luz no rosto e nas
mãos. Pausa. Não sei. Silêncio. Essa é a minha vida. Produzo armas e amo
uma planta.
BINGO O senhor às vezes também tem a impressão que essa sua vida aqui não
é a sua vida de verdade.
VITO Como assim.
29
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 29/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO E como fazer para juntar as duas de novo. Como fazer para conseguir
voltar para a sua vida de verdade.
BINGO Não sei. Mas às vezes eu duvido que a minha vida possa ter sido
planejada assim,
Porque é isso queeueufaço,
o que tenha que passar o dia Étodo
profissionalmente. porditando
isso quenúmeros.
eu não gosto
de ficar falando. Preciso cuidar a minha voz. E eu também treino. Nos
intervalos. Os números têm de ser apresentados discretamente,
delicadamente, mas ainda assim com nitidez, num volume apropriado. Vou
mostrar como. Vai até o proscênio, fala um monte de números, como no
salão de bingo. Quando fico rouca, faço um gargarejo de manhã e de noite
com folha de pitanga macerada, deixo curar por vinte minutos. Essa é a
minha vida. Tá certo, não passo fome e não fabrico armas. Então é isso.
Silêncio.
BINGO Talvez o senhor não esteja mais acostumado, mas isso agora foi uma
pergunta. Dirigida ao senhor. Então é isso.
VITO Meu nome é Vito. Fico muito feliz por ter conhecido a senhora.
BINGO Bingo.
VITO Me lembro da época em que eu achava muita coisa possível. Mas daí. A
gente aprende logo a aceitar a cama de pregos que a vida dá pra gente. A
gente se deita nela e aprende a não gritar de dor. Uma cidade inteira de
faquires. Mas vai melhorar quando a gente começar a mostrar as nossas
feridas.
30
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 30/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
BINGO Às vezes eu até que acho a minha profissão legal. Achava. Pelo menos
eu trazia sorte para as pessoas. Veja bem, o legal é que, tanto faz o número
que eu cantar, sempre tem alguém que ganha. Pausa. Apresentadora de
telejornal, apresentadora de telejornal eu não podia ser. Mas locutora de
bingo é outra coisa. Uma locutora de bingo é quase como se fosse uma fada
lotérica. Pausa. Era – era quase como uma fada lotérica.
Silêncio.
VITO Que besteira. Isso é uma grande besteira muito grande. Pause. Que
coincidência mais besta.
BINGO Qual.
VITO É que eu estou demitindo os meus funcionários. Já são 28. E cada vez
aumenta mais. No final, vou acabar fechando a fábrica.
Pausa
VITO Eu estava feliz com a minha vida. Era feliz. Pelo menos eu achava que era.
Não conhecia
futuro, que vai outra coisa.
continuar Pausa. Mas
o mesmo e eu sabe,
tambémquando eu pensoono
vou continuar meu
mesmo,
quase que não dá para agüentar.
BINGO Entendo.
VITO Posso contar uma coisa pra senhora. Posso contar uma coisa que ainda
não contei para ninguém.
VITO Alguma coisa mudou. Desde que eu comecei a ficar sozinho no escritório.
Sozinho comigo mesmo. Ninguém me apressando. A papelada na minha
mesa aumentando, formando pilhas tortas e eu sem vontade nenhuma, nem
de pegar na mão. Se tinha alguma coisa muito urgente pra tratar, a minha
secretária resolvia. Eu podia passar um tempão sem fazer nada. Não fazia a
menor diferença. A menor diferença. Pausa. Eu passava tardes inteiras na
janela, olhando a praça lá embaixo, a igreja, o posto policial. Pausa. E daí,
uma noite, quando o sol estava se pondo, as folhas das árvores em brasa,
um policial saiu da guarita e se aproximou de um menino que estava debaixo
31
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 31/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
das árvores. O menino tinha alguma coisa nas mãos e entregou para alguém
na árvore, sei lá, um traficante mirim, entregando seu serviço, talvez algum
papelote que sobrou, não consegui perceber. Ele vê o guarda, se assusta e
sai correndo. O homem atrás dele. Eu fico admirado com esse pacto
silencioso, a gente deixa vocês em paz e vocês a gente, mas esse guarda
resolveu
moleque correr atrás
correndo, do moleque,
a mão do homemcompega
umaocara desesperada,
revólver, já puxou ochama ele, o
revólver,
então ele percebe e fica parado. Ele ainda grita alguma coisa para o
moleque, que nem vira a cabeça e some.
BINGO Conheço o policial. Seu Mirador. Seu Mirador sempre faz a ronda
sozinho. Às vezes fica parado na porta do salão de bingo e assiste uma
rodada. Às vezes eu dou uma cartela pra ele. Uma baratinha. Ele nunca
ganha nada.
Silêncio.
SR MIRADOR Foi nessa hora que entrei no bar. De novo longe do posto. De
novo procurando. Pretendia beber umas cervejas mas, na verdade, eu queria
observar as pessoas, queria encontrar uma pista, uma pista que me levasse
ao meu menino, às pessoas com quem ele fazia negócios na noite.
VITO olha algumas vezes irritado para o Sr. Mirador, não o reconhece de
imediato. Bingo cumprimenta-o, acenando calada. Veja só. Veja só. Tira um
catálogo da bolsa, folheia-o, forçando Bingo a olhar. Calibre 38, todos os
tipos, a palheta para a polícia, seguranças, vigias. Aqui eu sou tenho uma
filial, aqui só faço os tambores. A matriz é no Paraguai. De lá faço os
melhores negócios. Quer dizer, fazia. A senhora entende agora –
32
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 32/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO olha para o Sr. Mirador É ele. Foi ele quem eu vi. Apontou a arma para um
menor de idade, um menino, bem menino, é ele –
BINGO Por favor, se acalme. Ele deve ter tido suas razões para isso.
VITO Não me interessa. Tanto faz. Para mim tanto faz. Se é traficante ou
policial, tanto faz. Ele estava com a minha arma, que eu fabriquei. Meus
trabalhadores. Ele podia ter matado o menino e teria sido o meu assassinato.
Pausa. Passei anos na frente desse posto policial, todo dia eu vejo batida
policial, toda vez que ultrapasso a fronteira, eu passo pelas armas que eu
mesmo produzi. Mas tanto faz para quem. Não faz a mínima diferença,
caguei, seu Mané vende presunto parma, onde é que tem uma boa arma,
arma é arma. Não faz diferença. Eu sabia, é claro, mas eu nunca tinha
entendido. Pausa. Até aquele dia.
Levanta-se e vai até o Sr. Mirador, estende-lhe a mão.
VITO Boa noite. O senhor me dá licença de me desculpar. Peço desculpas por
ter fabricado a sua arma. O senhor me perdoe, por favor.
Ele não espera pela reação do Sr. Mirador e vai até Bingo.
SR MIRADOR Foi aí que eu entendi que não tinha sentido mais pedir um
trabalho para ele, um trabalho para o meu filho. Já era. Eu olhei para as
minhas mãos e para a foto do meu filho que eu segurava. Olhei para o copo
de cerveja na minha frente, a parede, o luminoso e a lâmpada queimada
nele, olhei
boca. E eupara o homem eles
não escutava do revólver
. Estavae completamente
sua amiga, como eles mexiam
sozinho. E sem a
coragem.
SR. MIRADOR E enquanto eles falavam, entrou uma mulher, uma mulher
magra, morena com quatro, cinco sacolas cheias de plástico e papelão e
jornais. Ela se sentou na mesa entre nós e largou as sacolas. Uma mulher
com o rosto enrugado, ombros finos, um casaco amarelo de crochê e os
cabelos amarrados com um nó solto. Ela afundou o braço até o cotovelo
numa das sacolas e pescou um espelhinho que ficou segurando à sua frente,
nas mãos um bem valioso, um bem valioso ele próprio e um bem valioso o
que mostrava. A mulher observa os dentes, os lábios bem puxados para trás,
uma fileira de dentes em cima da outra. Os olhos caminham no pequeno
redondo insuficiente do espelhinho da direita para a esquerda, de cima para
baixo; as mãos movimentam o espelho, para que capte a imagem de cada
dente; os lábios se esforçam em desnudar o maior número de dentes e
quanto mais gengiva possível. Os dentes são fortes e grandes no rosto fino,
sem espaços, nenhum dente quebrado, nenhuma ruína, nenhuma mancha
33
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 33/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO É, exato. Porque ainda tem isso. Sofri como um porco no Paraguai. O
Ninguém gostaria de viver num lugar como o Paraguai. Ninguém de livre e
espontânea vontade, vai quer viver no Paraguai. No Paraguai só vive
cachorro. E empregada doméstica. O Paraguai é o país mais deprimente de
todo o continente. Nem capital tem, ou pior, tem capital mas ninguém
consegue Pode
Paraguai. se lembrar do nome.
perguntar Ninguém
na rua. sabe
Pergunto o nome
para da capital
a senhora agora,doqual é a
capital do Paraguai.
Longa pausa.
BINGO Assunção.
BINGO Tá certo.
BINGO Entendi.
VITO É por isso que pessoas como eu podem tranqüilamente ficar fabricando
armas por lá.
34
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 34/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
CONCHA Bebendo.
CONCHA É, domingo de manhã dou uma forcinha para minha sorte. Não passo
de uma hora, se ganhar ou perder, sou rigorosa. Às vezes ganho minha
ração de gatos. Gosta de gatos –
SR MIRADOR Para provar que Bingo não estava errada, o homem do revólver
pediu uma garrafa de vinho e uma garrafa de Martini para Concha. E eles se
sentaram e conversaram e beberam. Daí um homem entrou no local, um
homem que tinha elefantíase. Era magro, com um corpo de membros
delgados, mas no rosto ele tinha elefantíase. Aproximou-se da minha mesa e
muito educadamente pediu se podia terminar a minha cerveja. Eu disse que
sim. Sedento, ele virou toda. Espere um pouco eu disse, espere um pouco, e
ergui a mão com a foto do meu filho. Ele olhou triste para mim e balançou a
cabeça, balançando as bochechas de um lado a outro. Ele perguntou se
podia experimentar o vinho e eles disseram que sim e ele virou até a última
35
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 35/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Levanta, anda alguns passos, desmaia. Vito e Concha juntam umas cadeiras e
deitam ela em cima, Mirador fica alerta. Bingo acorda.
VITO Querida Bingo – o que aconteceu – Ela quase não bebeu nada –
CONCHA De lixo –
CONCHA embriagada Tá certo. Estou indo, estou indo. Vou sumir. Tenham uma
boa noite. Sai..
Vito leva Bingo para casa no colo.
36
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 36/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
de pintar, mais esplêndido até do que qualquer coisa que a natureza poderia
criar; nenhuma mulher nunca vai ter esses músculos suaves, essa carne
delicada, esses cabelos brilhantes e volumosos, essa bunda completa, esses
seios plenos. Tem homem que dormiu com a Suzana sem perceber que
estava transando com um homem; Suzana é grande e orgulhosa e ri com
uma uma
pôs voz escura, como
bolsa de umana
silicone voz de chocolate.
coaa Quando
, mas atrevida, nãoera
tevenovinha, Suzana
paciência e
pulou do repouso para fora da cama cedo demais e a bolsa foi escorregando
devagar pela perna durante longos e tortuosos dias, descendo pelo joelho
até o tornozelo onde presenteou Suzana com um pé eqüino e ali Suzana se
queixa de inchaço. Suzana faz um strip-tease super estonteante, vai usar
fitinhas e sininhos dourados no tornozelo inchado ou não vai tirar as botas,
Suzana é a mais bela das mais belas mas é envergonhada e se você ficar
olhando muito tempo pata o tornozelo inchado dela, ela vai fazer você
chorar...
Eu não precisava mostrar a foto para ela, eu só perguntei, só perguntei se
ela tinha visto
acariciou o meu
a face, filho naquela
faz tempo que nãonoite,
vejo.ela esticou
Saímos a mão,
juntos quase
para a rua,me
caminhei
com ela por um tempo, na esquina estava o homem com elefantíase. Pensei
que iam combinar alguma coisa nessa noite, o homem com a cara estragada
e as mãos delicadas, a mulher com o corpo delicado e o pés inchado. E eu,
eu esperei, esperei que aparecessem outros seres na rua a quem eu
pudesse perguntar pelo meu filho... .
37
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 37/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
11.
Noite. Concha se arrasta pela praça carregando uma caixa grande de papelão.
Tem vida dentro dela. Ela tenta vários lugares onde deixar a caixa. Fala com
Mundo por precaução “você não viu nada, não viu nada, você não tem nada com
isso.” Por fim
um tempo, deixa a caixa
novamente debaixo
indecisa, deauma
pega caixaárvore
e sai eandando.
vai embora.
VoltaVolta depois
depois de de
algum tempo, traz a caixa de papelão, põe novamente debaixo da árvore.
Silêncio.
Silêncio.
VOZ DE AURORA O que você está fazendo com essa caixa –
Silêncio.
VOZ DE AURORA O que está fazendo o gato dentro da caixa – Você vai fazer o
quê –
Silêncio.
VOZ DE CONCHAele,Quero
encontrasse me livrarconta
que tomasse Pausa.
dele.dele. NãoTinha esperança
agüento quedá
mais. Não alguém
mais.
Eu queria ir dando de um em um, para poder ficar em paz
VOZ DE CONCHA Mas você tem alergia. Você odeia gatos. Pausa. Aí eu não
consegui. E se alguém encontrar e fosse afogar ele. Ou deixar morrer de
fome na caixa. Então eu peguei de volta.
Silêncio.
VOZ DE CONCHA Eu vou morrer. Pausa. Pode ser que leve ainda algumas
semanas. Pode ser. Se eu tiver sorte. Pausa. Câncer linfático. Não faz mal
Aurora, ao menos eu sei do que eu vou morrer. Eu posso me preparar.
Silêncio.
38
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 38/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VOZ DE AURORA Não por tua causa, por minha causa, minha querida, por
mim. Pausa. Deve dar para tratar da alergia a gatos. Pausa. Se alguém
tivesse me dito que eu ia herdar três gatos –
Silêncio.
Silêncio.
39
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 39/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
12.
Mundo. Maria.
MARIA Como é que o jogo se chama. Ainda não foi nem lançado no mercado.
Estou testando. Para que eles possam fazer os últimos acertos no programa
que é quase perfeito. Você escolhe um dia, uma hora, um ano, escolhe um
lugar. Você determina o sexo. Você escolhe a família, o País, a língua, a
formação. Todo dia você alimenta o computador com informações novas. O
computador cria uma nova personalidade, uma vida completamente nova.
Durante o dia vou até o jornal, no mesmo lugar onde trabalho há mais de
quinze anos, um buraco sem janelas, quadrado, onde fica a minha mesa, a
minha cadeira e o meu computador. Quando afasto a cadeira, a parte de
cima do encosto bate na parede. Com o passar do tempo, ao longo desses
quinze anos
marcam eu fiz uma da
o crescimento marca na parede,
criança comoMinha
na parede. um sinal, daqueles
marca que a
se aprofunda
cada semana, a cada ano, cava na parede, quinze anos no mesmo lugar,
quinze anos a mesma altura.
É expressamente proibido: utilizar os dados pessoais. É expressamente
proibido querer olhar se o acaso gerou um outro destino no computador.
Quando estou de folga – quando estou de folga, aí...
Gostava de ir ao bingo. Era uma distração. Conhecia as principais casas de
bingo da cidade. A que eu mais gostava era a da praça Roosevelt. Um lugar
agradável, com ar condicionado, onde servem café e água de graça. A
vontade.. Enquanto estiver jogando. A cantadora de números falava com voz
abafada, sem
Dificilmente euenfatizar.
ganhava.EuComgostava.
o que Eu ia atráscomprava
ganhava, da paz, donovas
sossego.
cartelas. Há
pouco tempo, os bingos foram fechados. Fico nos bares em volta. Às vezes
pego um cineminha. Minhas mãos ficam sem ter o que fazer.
Pausa
A pessoa do computador reage; escreve um diário para você, pra você
participar do seu desenvolvimento.
Acordei às 7:00h, não tomei café, atrasada pro trabalho, passei fome no
almoço. Café preto. À noite cinema. Quatro cervejas, fumei demais.
A pessoa vai ficando sua amiga. Você se acostuma com ela, com a
aparente troca diária de idéias.
Pausa
Eu fiz o que era proibido. Alimentei o computador com a minha própria data
de nascimento. Não sei por quê. Pausa. Reconstituir as condições iniciais.
Mais uma vez começar do começo. Pausa. Eu dei pra ela até o mesmo
nome. Minha amiga e irmã, meu gêmeo, meu duplo.
Bom dia Maria, dormi mal, tomei duas aspirinas com o estômago vazio,
tenho de ir.
Perdi muito dinheiro no bingo. Ganho dinheiro no jornal para torrar no bingo.
Não pago aluguel faz três meses. Moro na cada da minha mãe. Quer dizer, a
40
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 40/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
minha mãe é que mora na minha casa. Isso significa que eu também não
paguei o aluguel da minha mãe. De noite ela fica me esperando. Nunca me
casei. Minha mãe dá a impressão de sair pouco de casa. Pausa. Durante o
dia ela sempre ia ao bingo. Eu percebia a barulheira no fundo quando ela me
ligava do celular e respondia, quando eu perguntava, que era o barulho da
televisão.
pergunto. Se vocêeu
Porque está em casa,
posso, por do
ela grita queoutro
estálado
falando do celular, eu
e desliga.
A Maria do computador está cada vez mais parecida comigo. Todo dia
aparece com um caso novo a mãe trata todos bem. Trabalha num jornal e já
alcançou o mesmo cargo que eu tenho. Estudei política. Queria comentar o
que acontecia no mundo. Os artigos de pauta eram para ser meus. Fiquei
presa no roteirode cinema. Sinopses. Resumo as vidas inventadas e deixo
os outros julgarem.
Pausa
Às vezes folheio para trás, na parte de anúncios, escolho um número e vou
num hotel com um homem.
Estou com
possa morar,quarenta
quandoeforpoucos.
velha.Eu não tenho nem uma filha, com quem eu
Mas com a Maria aqui –. Posso criar um novo começo..
Oi Maria. Hoje não fui ao jornal. Passei horas no parque, olhando os cisnes
negros, como eles se atiram atrás do pão que as pessoas jogam. Ri Na hora
do almoço comi sem pagar. Ri. Os talhares foram parar na minha bolsa. E
um copo. E a carteira da minha vizinha de mesa. Ri Saí, andei duas quadras
e joguei tudo no lixo. Ri.
Eu ia mesmo ter de abandonar o jogo de bingo. As dívidas – Vamos perder o
apartamento. Vou perder o meu trabalho. Talvez agora fique tudo diferente.
Agora que eu não posso mais jogar.
Não tem de ser tudo diferente. Algumas coisas podiam mudar, só algumas
coisas.
Quando volto para casa, ela parece mais vazia do que antes. Me pergunto
com qual lembrança eu vivo. São os móveis que mudam ou sou eu. Ou eu
estou começando a olhar ao meu redor de outra forma. Com os olhos da
Maria do computador. Minha mãe compra pinga para ela, três reais a garrafa.
O primeiro trago, de manhã, no café.
Sexta-feira 21:00h, Não fui ao cinema como tinha planejado. Perambulei
pelas ruas. Abordei um menino no semáforo. Bonito, uns quinze ou
dezesseis anos. Paguei uma coca para ele e convidei-o para ir em casa. Ele
hesitou.
O Bingo, o Bingo é pura concentração. Exige toda sua atenção. Você tem de
reagir rápido, no bingo; se perder um só número, tá fora. O bingo me
estimula, é como se eu pudesse forçar a minha sorte, o meu prêmio, se for
rápida e boa o suficiente. Como substituir isso.
Dentro do carro abri a calça dele e coloquei osexo dele na boca. A faca
estava debaixo do banco. Foi fácil. Uma estocada na barriga, o sangue
jorrou pelas mãos dele, ele queria se proteger. Cortei a garganta dele.
Tenho que rir – Tenho que rir.
Algumas coisas podiam mudar, só algumas coisas.
41
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 41/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Silêncio. No jogo.Silêncio.
um silenciador. Onde é queSilêncio.
Muito engraçado. arrumeiMatei
uma pistola
quatro com silenciador.
pessoas. De
brincadeira. Muito muito engraçado. Na realidade não teria sido possível. Na
realidade você não iria saber onde arrumar uma arma ou como usar uma
arma para matar alguém. Ou ia. Na realidade eles já teriam te prendido faz
tempo. Essa realidade não é possível para você.
Na realidade isso não sou eu. É só um programa. Silêncio. A única
possibilidade. Mundo mostra uma placa com uma cruz preta pelo buraco do
braço.
42
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 42/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
13.
CONCHA Eu sei.
CONCHA aborrecida.
CONCHA Você não tem noção. Passa um tempo e as mãos não só deixam de
ser amáveis como escondem uma faca afiada e ficam especulando com
churrasquinho de gato.
CONCHA
Mundo enfiaEm
umamim falapelo
placa a voz da experiência.
buraco do saco: “Zôo”.
Silêncio.
AURORA acaricia os cabelos de Concha que perde muitos cabelos. Não fica
triste.
Silêncio
43
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 43/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Silêncio.
Silêncio. Concha arranca mechas de seus cabelos. Aurora fuça na cabeça, tira a
peruca, coloca-a delicadamente sobre os cabelos de Concha, ajeita.
44
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 44/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Silêncio
AURORA A única coisa que sobrou da minha vida são as minhas perucas e os
figurinos. Meu armário parece um compêndio de moda. Ri . E meus
caminhos
de passeiotambém contam
de Buenos histórias:
Aires, os dekolletées
as rendas do Panamá,
brancas da Bahia, os vestidos
os borzeguins
empoeirados do interior.
Só tinha saudade de subir no palco e aí: para cada vida uma canção. Para
que não se perdesse. Mas não consegui. Você é a única que me ouve.
Silêncio.
CONCHA Queria te dar isso. Uma lembrança. Entrega uma caixa a Aurora.
AURORA abre a caixa, cheia de fotografias. 2. 4. 94, 23. 10. 81, 5. Junho 02..
AURORA Minha querida, também tem alguma em que dá pra ver alguma coisa,
essas aqui estão todas pretas.
45
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 45/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
CONCHA Não é verdade. Olha aí um traço de luz e acho que essa foi, espera,
no primeiro de maio, a mancha vermelha de uma faixa –
AURORA Concha, Concha, você passou a vida tirando uma foto por dia,
praticamente todas pretas ou desfocadas.
CONCHA Sei lá que quebrou a lente da máquina. Mas isso não tem importância.
CONCHA A lembrança. Você vai se lembrar de mim todo dia. Toda vez que
você segurar uma na mão.
Silêncio.
Pausa.
AURORA Canto. Pausa. Canto.
Silêncio.
Silêncio.
CONCHA Você é a única pessoa que nunca me disse que eu tenho um cheiro
estranho..
46
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 46/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
14.
LARANJAS III
47
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 47/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
como o filho.
Ele comeu todas as laranjas
que tinham sido plantadas para o nosso filho.
Que para ele tinham sido colhidas.
Que para ele tinham sugado o sol.
Ele
que comeu
o nossotodas
filho as laranjas,
teria conseguido comer
que ele com certeza teria comido
comeu até mais.
Na cozinha tinha um balde de laranjas,
no quarto tinha uma balde de laranjas
e na sala tinha montanhas de laranjas no sofá.
Ele comia com casca e tudo.
A casa inteira fedia a laranja.
Pelo cheiro parecia que o filho tivesse voltado.
Pausa
Tinha cheiro de morte.
Pausa.
Ele não conseguia mais
Parar com as laranjas.
E eu abandonei ele.
A morte tem cheiro de laranja.
E eu abandonei ele.
Pausa
Você podia levantar o braço
Pra dar um sinal, se você estiver me entendendo.
Pausa.
A mão.
Pausa
Você podia levantar um dedo,
se pudesse.
Debruça-se sobre ele
Agora,
a pálpebra
pisca
Dá uma piscada.
Por favor.
Silêncio
Eu te disse
Deixa ele em paz.
Pausa.
E eu ainda estou viva.
Eu ainda estou viva.
48
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 48/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
15.
anum vestido
gente nem branco, fora depara
tinha dinheiro modadare uma
feliz.festa
A gente nunca se casou
de casamento. namulher
Minha igreja e
já tinha costurado o vestido para ela, em casa de noite, escondida; os pais
dela eram católicos ricos, eu vinha duma família evangélica que não tinha
nada e que não era nada, e por isso mesmo não deixavam a gente
freqüentar a igreja deles. Expulsaram a minha mulher de casa, levando uma
mala, com o vestido de noiva dentro e não desejaram boa sorte prá ela.
Como policial, não dá pra ganhar muito. Então ela começou a fazer o que ela
sabia fazer de melhor: costurar vestidos e vestidos de noiva e ficou famosa
como costureira de vestidos de noiva. Um dia uma cliente queimou a barra
do vestido dela na vela, na prova do vestido e na pressa, como não tinha
49
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 49/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
costas. Silêncio. Quando ele morreu, ela chegou no hospital com o vestido
pendurado no braço, ela se sentou na cama dele, como está sentada na
minha agora, e cobriu o corpo frio dele com o vestido de noiva dela. O
vestido que a gente nunca usou na igreja. O vestido que a gente usou na
cama.
50
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 50/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
16.
Duas
delas,mesas de escritório,
um ventilador. cada uma
Na parede, atrásdelas com uma
da outra, cadeira.
um retrato doAo
pai.lado de uma
Ao lado, um
retrato de.Roosevelt
VITO Pois é. A decoração é mais para prática. Meu pai não gostava de frescura.
Pausa.
Bingo não sabe aonde. A mesa vazia é a do pai, não dá para sentar ali. A que está
cheia de papéis é a do Vito, seria indiscreto.
VITO Não vai dar. Desculpe, não vai dar. Vamos trocar.
VITO É. Pausa. Eu só queira que você visse onde eu trabalho. Pausa. A gente
pode ir embora.
Coloca a cadeira dela e manda Vito colocar a dele entre as mesas. Estão um de
frete para o outro, joelho com joelho.
BINGO Melhorou.
Pausa.
51
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 51/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Pela primeira vez ele via o escritório dele através dos olhos de outra
pessoa. Pela primeira vez, viu o escritório através dos olhos dela. E viu que
era gasto e vazio como a vida dele. Aí ele ligou o ventilador imediatamente
para não virar sentimental.
VITO Vamos encontrar uma nova ocupação para tua voz. No aeroporto. Num
karaokê. Todos a mensagens telefônicas do mundo devem ser feitas por
você. Por que você não tem amigos. Queria te dar um diapasão.
VITO Eu ia querer –
Silêncio.
BINGO Não vai ficar bravo comigo, mas você já funga pra chegar no quarto
andar.
52
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 52/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Ele não sabia o que devia dizer. Não sabia como devia dizer pra ela que
ele a amava. Pausa. ... que ele a amava ... .
VITO Oi Concha.
53
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 53/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
VITO Concha, não posso imaginar a minha vida sem a senhora. Pausa. Ela já
era secretária desde o tempo do meu pai. Trinta e dois anos.
CONCHA Pois é. Justamente. Agora eu não tenho muito mais tempo. Pausa.
Não quero mais saber de ficar enfiada em escritório. Não quero mais saber
de deitar na cama de pregos. Quero – luta, canta um trecho “Manhã tão
bonita manhã ...” – quero sentir um pouco de felicidade, pelo menos uma
vez, uma vez só. Canta. Assim como ver o céu, quando se veste de
vermelho, de um vermelho, como se estivesse envergonhado, antes do sol
nascer e quando ainda está frio, essa felicidade, essa alegria de ver o dia
nascer. Canta. Vou até Foz do Iguaçu, visitar as cataratas. Durante toda
minha vida só viajei a uma distância de até cinco horas de carro, para praia,
onunca paradaaságua
barulho cataratas.
caindo,Vou
quedeitar
é tão numa espreguiçadeira
alto, que e ficar
não dá para falar comescutando
ninguém, não dá para entender nem as próprias palavras. Fecho os olhos e
ergo meu rosto para o céu e sinto a bruma fina trazida pelo vento, já meio
dormindo...
VITO E os gatos.
CONCHA Não são os gatos que estão fedendo assim, Sr. Vito. Sou eu, eu que
estou fedendo.
importo. Quero São os remédios,
que todo é a doença. Estou fedendo. E eu não me
mundo sinta.
Sai.
54
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 54/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
17.
55
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 55/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
18.
Aurora, Mundo.
∗
AURORA canta “ Manhã de Carnaval .
Pausa.
para Mundo Bom, agora enfim o preto está combinando.
Me dá um cigarro, amor.
Mundo enfia um cigarro pelo buraco. Aurora fuma. Pausa.
Não deu mais para ela ir ver as cataratas. Mas ela escolheu um cantinho
bonito, no cemitério público. Lá no Jardim São Luís. A nossa Concha. Com
vista para o gramado ressecado e dá lá nas colinas. Não foi ninguém da
família dela. Como são as coisas. Enquanto o padre falava e abençoava o
caixão, tiros do outro lado do muro do cemitério. Ninguém ligou, só o padre
levantou a cabeça. As testemunhas caladas foram chegando, uma depois da
outra (mulher com dentes e espelho Homem com elefantíase, Suzana,
émulher comque
a menina ossos) Da comigo.
morou história da
DáBibi
paraera que a Concha
reconhecê-la pelagostava
teia demais. A Bibi
aranha
tatuada na testa. Tem uns vinte e tantos anos e desde que conheço ela,
economiza para fazer a operação. Já fez os seios, éramos em três, a gente
se ajudava; injetamos silicone debaixo da pele dela, em volta dos mamilos,
recheamos a bunda, arredondamos as coxas, levantamos os ossos da face.
Tá certo que a gente não conseguiu sumir com o pau dela.
Entra Bibi.
Então, a Bibi trabalha na rua para juntar dinheiro para poder fazer essa bosta
de operação e um dia ela voltou de madrugada para casa, me acordou e
disse –
AURORA Espero que sim. Até porque você precisa de muito muito dinheiro.
BIBI Não, foi um encontro especial. Acho que encontrei o homem da minha vida.
BIBI É, escuta só. Eu estava na esquina da Cesário Motta com a Marquês de Itu,
às três da manhã e, além de mim, nenhuma menina, eu estava
completamente
Cesário uma luz, Pausa.
eu vejo sozinha. De repente
assim uma – de repente
au – auréola lá estou
e quando no fimládaparada
olhando, a luz vai se aproximando, vem vindo na minha direção, tem os
contornos de uma pessoa, pára e aí alguém desce da luz e diz –
s. Virginia Rodrigues, Sol Negro.
56
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 56/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
BIBI Isso mesmo, não tenha medo. Eu olho meio ofuscada pela luz, e vejo –
AURORA Um homem –
AURORA Você viu um cara, que se aproximou de você num feixe de luz, careca,
pelado e verde.
Pausa.
BIBI Só no começo.
57
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 57/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
AURORA Você foi pro hotel Glória com um homem pelado, verde e invisível.
AURORA Verdes.
BIBI Mhm. Pausa. Sabe, Aurora, eu acho que acredito nele. Porque já faz muito
tempo que eu tenho a sensação de que alguém está me seguindo.
AURORA Tá..
BIBI E aí ele disse que não agüentou mais e teve dar um jeito de aparecer. Mas
só para mim.
BIBI O pau dele é bem comprido, assim, e grosso feito o tronco de uma árvore,
eu nunca na minha vida vi um troço desses, só que ele é --
AURORA O quê –
BIBI Invisível. – Pensei que fosse me matar e doeu para cacete. Eu gritei bem
alto, e eu até achei que o sangue que estava saindo ia sujar os lençóis, ia
fazer uma meleca danada, ele mordeu a minha orelha e também gritou feito
louco, nós dois gritamos feito loucos, foi horrível. Eu fiquei morrendo de
medo, Aurora, e não foi nada bom, apesar de ele me amar.
58
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 58/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
BIBI Viajou. A gente saiu do hotel, ele se despediu, desceu a rua e aí veio a luz,
que pegou ele e dobraram a esquina e desapareceram.
BIBI Claro. – E ele disse que queria que eu apresentasse você pra ele.
Pausa.
Pausa.
Pausa
BIBI Não tenho certeza. Mas acho que sim, sei lá como.
BIBI Tudo bem. Não dá para ver nada. Não arrombou nada, nenhuma ferida,
nem sangue, sinal ou arranhão, nem marca nenhuma. É esquisito, né.
59
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 59/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
AURORA O doutor em ufologia não conseguiu nos ajudar. A gente saiu de lá tão
perdida como quando a gente chegou. A história da Bibi se espalhou e ela foi
convidada a as
transmitido, participar
travecasdedoum programa
pedaço de TV. Na
se reuniram noitecasa,
lá em em que foi no sofá,
deitadas
pelo chão, com pipoca, cinza de cigarro e migalha de batatinha chips e
deram gritos histéricos quando Bibi apareceu na tela. Foi uma catástrofe.
Bibi contou do caso dela com o extraterrestre verde, careca e pelado, que
queria ter filhos com ela apesar de ela sequer possuir um útero. O público do
estúdio começou a assobiar, a vaiar e Bibi foi sacudida por um crise de
choro.
60
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 60/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Silêncio
É.
61
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 61/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
19.
Casal na janela
MULHER O quê..
HOMEM Aquilo
MULHER O quê.
HOMEM Lá.
MULHER O quê.
HOMEM Lá
MULHER Onde.
Silêncio.
HOMEM Ali
MULHER Sombra.
Debaixo das árvores.
À noite
62
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 62/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Silêncio.
MULHER Nada.
Pausa.
Coisa nenhuma.
HOMEM Tem sim.
Tem sim
Silêncio.
Pausa.
HOMEM É, é
pode ser um bicho mas
está se mexendo
ainda
Pausa.
Tem uma coisa preta se mexendo.
Pausa.
MULHER Um cisne.
63
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 63/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Pausa
HOMEM
saindoTem
deleuma coisa preta
saindo do bicho
ou o que for
HOMEM Mas.
HOMEM Mas
nunca.
MULHER Eu percebi.
Pausa.
64
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 64/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Pausa.
MULHER E daí.
Você viu o quê.
HOMEM Nada.
MULHER A primeira
A primeira coisa.
coisa que vão perguntar..
MULHER Não.
Vamos ver juntos –
HOMEM Não
vi nada.
MULHER Então.
Será que vale a pena.
Silêncio.
MULHER Um cisne.
Um cisne negro
Você mesmo disse
HOMEM Nunca.
65
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 65/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
Pausa.
Voou pro lado errado.
Pausa.
Quebrou a asa.
MULHER Não.
Silêncio.
MULHER E quem
você viu.
HOMEM Ninguém
Não vi ninguém.
HOMEM Um breu.
Não vi ninguém
Silêncio.
66
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 66/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
20.
SR MIRADOR Fiquei perambulando pelas ruas, pela cidade. Procurando o rosto
que estava determinado para mim. Não reconheci ninguém. Não abri a boca
durante noites. Os dias se tornaram cinza-escuro.
67
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 67/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
21.
cf. Virginia Rodrigues, Sol Negro.
68
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 68/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
22.
LARANJAS
Coro das testemunhas mudas.
Mulher
ossos ecom os dentes e espelho, homem com elefantíase, Suzana, mulher dos
Aurora.
Eles o encontraram
Eles o encontraram.
Encontraram o filho dele
Encontraram o teu filho.
O Mirador filho.
À noite, o Mirador filho, procurou o chefe dele. Como o pai queria. O nome do
chefe é O Infinito, tão grande é o seu poder . Ele foi até o chefe, O Infinito e disse,
vou parar, vou cair fora, finito, já era. Estou fora dessa. Não se diz uma coisa
dessas
ao ao Infinito,
Mirador nãoacena
filho. Este a ele,com
não aé mão,
à toa não
que preciso
se chamade assim. Dá dois minutos
tempo nenhum, estou
fora, adeus. O chefe faz um sinal e seguram ele, o Mirador filho e o levam até a
praça; levam ele até a praça para que o pai dele possa achar fácil. E ali, a primeira
coisa que fazem é segurar o queixo, apertar o maxilar e abrir a boca dele à força,
e aí puxam a língua para fora e decepam reto com a faca, num gesto rápido. Não
precisam mais amarrá-lo, não precisam mais amordaçá-lo, é só segurar, só
segurar. E ele está vivo. Seguram a cabeça dele, dois seguram a cabeça, e a
mesma faca arranca os olhos dos buracos, os olhos do Mirador filho, o olho direito
e o olho esquerdo, do Mirador filho, não tem mais língua para gritar, um som, um
som qualquer se espreme para fora do corpo dele, o corpo grita, o corpo dele, que
já não vê
camisa mais nada,
e abaixam as se retorce
calças, atéde
osdor. E eleOvive.
joelhos. Tiram
sangue a roupa
escorre dadele.
bocaArrancam
e dos a
buracos dos olhos do Mirador filho. E ele está vivo. Picotam a cueca, os retalhos
cobrem a coxas. Um pega a faca com uma das mãos com a outra segura o pau e
o saco. Um corta fora os dois membros, é preciso tentar várias vezes, a faca ainda
está afiada, mas depois do primeiro corte as partes estão escorregadias do
sangue. Do Mirador filho. Coração forte. Ainda tá vivo. Eles trouxeram outras
ferramentas. Esticam os braços dele no chão, os braços do Mirador filho. O braço
esquerdo. Um pega um machado e toma distância. Separa a mão do braço, logo
acima da articulação. A mão esquerda do Mirador filho. E ele ainda tá vivo. O
sangue cobre o chão, a terra, onde está deitado, escorre pelo seu corpo, esguicha
na pele e na roupa dos matadores. E ele ainda tá vivo. A mão direita. Esticam o
braço no chão, o braço do Mirador filho, um som se desprende de sua garganta, a
dor está em toda parte, o som da dor está em toda parte. Um corta fora a mão
direita, acima da articulação, é péssimo açougueiro, precisa golpear três vezes,
três golpes para o braço delicado do Mirador filho. Ele ainda está vivo.
Resolvem dar um tempo. Fumam um cigarro. Os sapatos deles pisam no sangue.
A cabeça do Mirador filho é uma ferida. Solta ruídos, se mexe, os braços pulsam,
seu corpo se contorce, sem saber, para onde. E ela ainda está vivo. Um quer
terminar de tirar as calças. Não passa pelo tênis. Precisam tirar os tênis que ele
69
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 69/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
ganhou do pai no dia do santo, eles não sabem disso. Deixam as meias.
Terminam de tirar as calças, ficam olhando as pernas dele. Um se atira com as
duas mãos no joelho, para que a perna pare de pular. O fio do machado está
vermelho. Cortam o pé esquerdo dele, cortam direto na junta, ali é mais fácil. A
junta, o pé esquerdo do Mirador filho. E ele ainda está vivo.
Está vivo mais
Um fuma ainda.um cigarro. Estão cansando. Um outro pega embalo, dessa vez
ninguém segura a perna do Mirador filho. Começa a feder a sangue, o sangue se
decompõe no ar. O machado cai e separa o pé direito. Fora. Corta fora o pé
direito.
O pé direito do Mirador filho.
O que ele sente. Por quem ele chama.
Ficam em volta dele com os braços pendurados. Estão cansados. Querem ir para
casa.
Mas ele ainda está vivo. O Mirador filho ainda está vivo.
Um deles dá de ombros. O outro joga fora a embalagem vazia do cigarro, que
nada no sangue
pertence ao corpoe enrosca
dele. impregnada num pé do Mirador filho, que não mais
Pegam um saco plástico. Um saco de lixo. Colocam os membros cortados no saco
de lixo, a língua, o olho direito, o olho esquerdo, o pênis, as bolas, a mão
esquerda, a mão direita, o pé direito, o pé esquerdo do Mirador filho.
Olham em volta para ver se não se esqueceram de nada. Colocam a faca e o
machado num outro saco. Vão embora. Deixam ele ali deitado. São quatro horas
da manhã.
E ele ainda está vivo. O Mirador filho. Sem a língua. Sem os olhos. Sem o pênis.
Sem as mãos. Sem os pés. Ele está vivo.
Tem um coração forte.
Ele vive até o sol nascer.
70
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 70/71
5/11/2018 Avidanapra aRoosevelt-DeaLoher -slidepdf.com
23.
Verônica, cf. Virginia Rodrigues: Sol Negro
71
http://slidepdf.com/reader/full/a-vida-na-praca-roosevelt-dea-loher 71/71