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Introdução
Dona Chêro. Mulher preta velha de corpo magro, cabelos amarrados, olhos alargados, um
modo peculiar de mexer a boca, como se estivesse a mascar a própria língua. Senhora de uma
mirada profunda e atenta aos acontecimentos. Olhava no olho, pois a aparência, segundo ela, pouco
comunicava, enquanto os olhos podiam revelar as intenções. Conhecedora dos saberes religiosos de
matrizes africanas, demonstrava confiança na sua vocação espiritual. Rezava tudo. Não andava só.
A sua força e sabedoria se fundamentavam na energia de todos os orixás que a guiavam. A saudosa
liderança do Jongo Tambores de Machadinha foi a personagem principal de um documentário
chamado “Retalhos”2, que põe foco sobre a Comunidade Remanescente de Quilombo Machadinha,
Quissamã, Rio de Janeiro, Brasil.
Revendo o material bruto do filme acima descrito, uma cena chamou a nossa atenção. Nela,
Dona Chêro se ajeitava algumas vezes no sofá da sua sala. A imagem de um preto velho fumando
charuto se destacava ao fundo do quadro. Os olhos desconfiados acompanhavam atentamente os
visitantes que preparavam os materiais para a filmagem, organizavam a cena e testavam os ângulos.
A entrevista começou, o diálogo parecia transcorrer conforme o planejado. Até que, a cena é
bruscamente interrompida por alguém da equipe de produção, que, posicionando-se em frente à
Dona Chêro, se ajoelhou e pediu uma luz. Numa postura de autoridade, Chêro disse: “Se
estrumiceu, né? Eu tenho uma luz pra te dar! Você quer que eu te dê uma luz ou quer que eu rezo a
sua cabeça? Quer que eu rezo, né?”. “Sim”, respondeu o homem. Assim, ela iniciou um ritual,
começando com o sinal da cruz em seu próprio corpo e um pedido de benção ao senhor Deus.
Impondo as mãos sobre a cabeça do homem recitou, inicialmente, versos inaudíveis, assobios de
seu murmúrio.
Ela continuou rezando o Pai nosso, seguidos por trechos da “Ave Maria”, “Creio em Deus
Pai” e por fim, uma oração autoral para descarrego. De repente gritou “Aí, que irmão maldito!”
Tomando o homem pela nuca, encostou a testa dele com a sua. Ficou em silêncio durante alguns
segundos, enquanto pressionava a cabeça do homem. Ele, por sua vez, pareceu estar com o corpo
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R.R.S. Costa and A.B. Fonseca
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: rutecosta@macae.ufrj.br
2
O trecho descrito faz parte de uma entrevista gravada com Guilhermina, conhecida como Dona Chêro, para o documentário Retalhos de
Antônio Molina e está disponível no acervo do Espaço Cultural José Carlos de Barcellos que fica em Quissamã-RJ.
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fraco, cambaleante. Então, ela o afastou e fitou em seus olhos. As câmeras registraram aquele olhar
penetrante. Por fim, suspirando continuou: “Deus Pai é poderoso”. Na sequência apontou as palmas
das mãos para o céu. O homem se levantou e saiu.
Parecendo estar sentindo forças sobrenaturais, o corpo de Chêro enrijeceu. Ela sacudia os
braços para cima. Levantou e sentou-se algumas vezes no sofá. Tocou a cabeça em pontos
específicos e, em seguida rodeou-a com as mãos. Disse mais algumas palavras, uma oração que
citava os nomes de cada uma de suas proteções. Agachou-se, batendo com a mão no chão, invocou
um orixá boiadeiro. O foco das lentes encontrou o seu olhar. Pela última vez a câmera capturou
aquela mirada, que mais parecia uma fortaleza. Fade out.
A narrativa dessa cena instigante, na qual uma mulher quilombola reza um homem branco,
nos servirá de estrutura de superfície3 para aprofundar reflexões sobre a experiência de
espiritualidade de uma comunidade quilombola. As rezas são amplificadores de vozes contra
coloniais4, no fazer e no saber orgânicos5 de educação e de cuidados à saúde, baseados em
experiências comunitárias de cosmologia politeísta6.
Para compor a presente introdução, retomaremos o contexto histórico. O Brasil, último país
das Américas a abolir a escravidão, foi território de exploração de cerca de 5 milhões de pessoas
escravizadas. Em sua história, nunca houve compensações ou reparações àqueles(as) recém
libertos(as) no final do século XIX. Cerceadas(os) da possibilidade de cidadania, passaram a viver
em regiões periféricas e em situação precária de moradia e saneamento básico. Os impactos desta
história iníqua são expressos e persistentemente naturalizados, a exemplo do genocídio da
juventude negra; as desigualdades salariais por gênero e raça; no acesso aos serviços fundamentais à
dignidade humana, como a saúde, educação, saneamento básico, alimentação saudável e adequada;
às múltiplas violência contra à mulher negra, desde a obstétrica até o feminicídio, entre outros que
poderíamos citar (BRASIL, 2018).
3
Aquela que, no processo de codificação do contexto teórico, explicita os elementos constitutivos da codificação de maneira puramente
taxeonômica, para ser analisado posteriormente (FREIRE, 1981, p.42).
4
Conceito elaborado pelo autor quilombola Antônio Bispo Santos (Nego Bispo). Ver maiores informações no seu livro SANTOS,
Antônio Bispo. Quilombos, Modos e Significados. Editora COMEPI, Teresina/PI, 2007.
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Conceito elaborado pelo autor quilombola Antônio Bispo Santos (Nego Bispo). Ver maiores informações no seu livro SANTOS,
Antônio Bispo. Quilombos, Modos e Significados. Editora COMEPI, Teresina/PI, 2007.
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Conceito elaborado pelo autor quilombola Antônio Bispo Santos (Nego Bispo). Ver maiores informações no seu livro SANTOS,
Antônio Bispo. Quilombos, Modos e Significados. Editora COMEPI, Teresina/PI, 2007.
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“Quilombo: a remote settlement originally founded as a refuge by fugitive slaves or their descendants.” (Oxford English Dictionary)
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Os Quilombos foram locais de refúgio e resistência de negros no Brasil no século XIX e permanecem até os dias
atuais. Dados da Fundação Palmares indicam a existência de cerca de 3,3 mil Comunidades Remanescentes de
Quilombos no país, reunindo cerca de 1,2 milhões de pessoas (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, 2020). Nos
outros países da América Latina espaços similares possuem outros nomes, como: Palanqueros, Cimarrones, Semínolas,
Cumbes, Garifunas, Marrons e Mascogos (FONSECA et al, 2019).
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racializados. Espaços contestatórios, que apesar de suas contradições internas, criavam mecanismos
estratégicos para sobrevivência e preservação dos elementos culturais, tecnológicos, religiosos de
referência negra. Tratava-se da tentativa de implantação de outra forma de vida e de estrutura
política, social e econômica singular, oponente às instituições escravocratas (LEITE, 2000;
BRASIL, 2012).
Por outro lado, a definição de quilombo, na ótica do colonizador, pode ser exemplificada
pela designação do Conselho Ultramarino Português, que em 1740, que o descreve como “toda
habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham
ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Tal título, propositalmente generalizante, reduzia
quilombo a uma atitude antijurídica de contraposição à ordem social sem que houvesse explicações
sobre os reais motivos da formação de tais organizações de resistência. Objetivando enquadrar
quilombos entre os critérios de punição (LEITE, 2000; ARRUTI, 2008), englobam elementos
centrais: 1) a ideia incriminatória de fuga; 2) o número mínimo de fugidos; 3) a marginalização da
chamada civilização, caracterizada pelo isolamento geográfico (um modo de vida incompreensível);
4) o tipo de moradia comum, o “rancho”; e 5) a capacidade ou não de sustentabilidade alimentar,
simbolizada pelo pilão (ALMEIDA, 2002).
Após a proclamação da República do Brasil, houve um silêncio legislativo centenário a
respeito das ações de reparações e garantia de dignidade à população negra. No entanto, lideranças,
intelectuais e movimentos negros, representados pelos ilustres Abdias Nascimento, Clóvis Moura,
Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Décio Freitas e Lélia Gonzalez lutaram contra essa
negligência estatal. Como resultado da luta política; de crime, no período colonial, os quilombos
são pautados na Constituição Federal de 1988, não mais associados a um crime contra a ordem
social, mas como sujeitos portadores de direitos à propriedade de suas terras e à preservação de suas
culturas9. O texto constitucional denomina as comunidades como “remanescentes”, o que pode
significar um alerta para a condição de vulnerabilidade vivenciada, assim como outras tantas
culturas aniquiladas pelo colonizador e negligenciadas pelo próprio Estado Brasileiro, o qual elegeu
9
Art. 215. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as
criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
6
um modelo hegemônico e ideal de sociedade. Apesar deste marco legal assegurar direitos dos povos
quilombolas sobre seus territórios, pouco se avançou na efetivação desta e de outras conquistas.
Quinze anos após a Constituição, em 20 de novembro de 2003, dia Nacional da Consciência
Negra, publicou-se o Decreto Presidencial nº 4.887, que tratava do ordenamento dos procedimentos
de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes quilombolas. Foi um marco importante na luta para a efetivação dos direitos
constitucionais aos remanescentes de quilombos, que passam a ser definidos como:
...grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2003).
que habitavam anteriormente (em geral, terras abandonadas por seus “donos”), porém há um caso
peculiar como o exemplo da CRQ Machadinha, no município de Quissamã, em que os (as) negros
(as) mantiveram as senzalas10como suas moradias.
Localizada na zona rural de Quissamã, a CRQ Machadinha tem uma arquitetura que atrai a
atenção dos visitantes, seja pelas ruínas da casa grande, pelas senzalas, a ermida, o Memorial
Machadinha ou mesmo pelo armazém antigo. Porém, como afirma Tobias11, o presidente da
Associação de Remanescentes de Quilombo Machadinha (ARQUIMA)12, Machadinha é viva e a
comunidade são as pessoas. Esta é constituída por cerca de 300 famílias em um total de 983
habitantes que descendem de negros escravizados da antiga Fazenda de cana de açúcar
“Machadinha” (REIS, SOARES, COSTA, 2017).
Os moradores residem nos cinco núcleos comunitários que compõem a CRQ, a saber:
Fazenda Machadinha (núcleo central), o Sítio Santa Luzia, o Mutum, o Sítio Boa Vista e o Bacurau.
No território, há uma escola municipal que oferece educação infantil e o primeiro segmento do
ensino fundamental aos estudantes da CRQ Machadinha e moradores(as) de bairros vizinhos. A
unidade escolar, encontra-se em processo de implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação Escolar Quilombola (Brasil, 2012). Há ainda uma unidade de saúde, nos moldes
Estratégia de Saúde da Família, que não implementou da Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra (BRASIL, 2018).
Apesar de certificada pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2006, os moradores de
Machadinha não possuem a posse da terra. O processo de titulação do território caminha a partir de
duas vias. A primeira trata da passagem do título do núcleo central Fazenda Machadinha pela
prefeitura, atual proprietária. Nos outros núcleos, o processo junto ao Incra encontra-se em
10
O termo senzala(s) indicará a forma pela qual as antigas habitações das pessoas negras escravizadas eram referidas
pelos seus moradores atuais, quando mencionavam as suas próprias casas (Soneghetti, 2016, p.20).
11
Em respeito às questões éticas implícitas na pesquisa com seres humanos, utilizamos pseudônimos.
12
A ARQUIMA é uma organização social importante para os avanços dos pleitos da CRQ Machadinha. Fundada em
novembro de 2015 e composta por uma diretoria que compreende membros representantes dos núcleos da Comunidade.
Com um mandato de três anos, seus objetivos principais são: a posse da terra; a reorientação do modelo escolar a partir
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Brasil, 2012); a implementação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (Brasil, 2018); a assunção da gestão da Casa de Artes, através de uma
cooperativa de mulheres quilombolas; a construção de uma horta comunitária; a reestruturação do armazém em um
espaço de venda dos produtos cultivados localmente; o fomento às práticas culturais e identitárias como o Jongo, o
Fado, o Boi malhadinho, o artesanato e a contação de histórias; e a regularização dos serviços públicos, dos quais se
destacam a oferta de água potável, a implantação do sistema de esgotamento sanitário e o transporte público regular, a
um preço justo.
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Não estamos com isto dizendo que estas práticas são resquícios arqueológicos e tampouco que não podem ser
transformadas (cabe à comunidade definir como e até quando praticá-las), mas apenas destacar a importância das
mesmas na construção da identidade de uma comunidade quilombola.
14
Os quilombos nunca foram territórios isolados, mesmo no período colonial, cf. Moura (1988)
15
Não podemos romantizar os quilombos. Flavio dos Santos já indicava que os quilombos mesmo no período colonial
não eram isolados das vilas, ao contrário, viviam em relação direta com elas e em muitos casos sobreviviam a partir
desta relação de troca.
10
Portanto, é a dinâmica interna e de organização da CRQ, sobretudo, que vai dizer como estas
práticas educativas e de saúde se manterão, transformarão ou mesmo serão substituídas. Não cabe
imposição de modelos ou mesmo propostas externas que se coloquem como guardiões e salvadoras
delas, tirando o protagonismo das próprias comunidades. O papel de agentes externos (como
universidades, ONGs, movimentos populares) deve ser de prestar assessoria e contribuir com a
efetivação de direitos destas comunidades.
Os órgãos públicos, por sua vez, devem reconhecer a importância destas práticas educativas
e de saúde, e propiciar instrumentos que favoreçam o diálogo entre estas e os sistemas de saúde e
educação, por exemplo. Uma médica ou uma enfermeira que trabalhem na unidade de saúde, ou
uma professora que atua na escola local devem compreender, estudar, dialogar com estas práticas
locais e acima de tudo, respeitá-las e valorizá-las como parte de um saber/conhecimento. Isto não
pode ser visto como um compromisso pessoal (individual) do profissional, mas parte de uma
proposta de saúde e educação e para isso deve haver investimento público.
poder e do saber operam na dominação das massas, criando padrões universais que generalizam o
conteúdo, negam as versões da história; e desvalorizam formas de identidade que diferem do dito
padrão.
As diferenças regionais e étnicas são colocadas de forma subordinada a uma ideia
pasteurizada de todo, a exemplo do mito da democracia racial, que na realidade brasileira oculta às
diferenças em nome de uma identidade nacional, que parte do fundamento europeu, branco,
masculino (NASCIMENTO, 2016). Tal violência contra os saberes dos povos “conquistados”, suas
cosmovisões, modos de existir no mundo e significar a vida, foi denominada pelo professor
Boaventura de Sousa Santos (2009, p.10) de “epistemicídio”.
Frente à necessidade de refutar formulações teóricas monoculturais e universais que
posicionam o conhecimento científico ocidental e eurocêntrico como central, e a emergência dos
saberes locais produzidos a partir de racionalidades sociais e culturais distintas, surge o conceito
decolonialidade. No presente texto, pretendemos apontar as rezas como saberes e práticas
decoloniais de educação e saúde, presentes na CRQ Machadinha, considerando para tal análise as
lentes da cosmovisão africana.
As CRQ congregam saberes, modos de aprender e ensinar suas práticas de preservação de
modos de vida ligados aos campos da comunicação, educação, religião, produção e saúde. Para
pensar nas práticas educativas e de saúde próprias das CRQ, torna-se imperioso pautar a ideia
fundamentalmente perspectivista do paradigma da afrocentricidade e da cosmovisão africana, a fim
de proporcionar um solo epistêmico profícuo. A proposta conceitual da afrocentricidade foi
sistematizada na década de 1980 e aponta para a necessidade da assunção das perspectivas e dos
referenciais epistêmicos africanos, sem impor uma realidade como sendo universal ou de
valorização etnocêntrica à custa da degradação das perspectivas de outros grupos, a exemplo de
como atua o eurocentrismo (NOGUERA, 2010).
Nesse sentido, o termo “centro” diz respeito à localização, uma assunção do protagonismo
no universo cognoscitivo, o reconhecimento de perspectiva por vezes marginalizada e
invisibilizada, porém não uma ortodoxia (ASANTE, 2009). O conceito de centro encontra, na
geografia, dimensões da política e da cultura e articula pares como dominação e apropriação, poder
e identidade, função e símbolo (CARNEIRO, 2013). Sendo assim, como elemento constitutivo da
afrocentricidade no presente texto, elegemos as bases filosóficas africanas para fundamentarem as
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nossas discussões, a partir das reflexões complementares, propostas pelos autores Bâ (1982) e
Oliveira (2006a).
Bâ (1982) elucida um horizonte epistêmico composto pela indissociabilidade do sujeito e a
palavra, elemento estruturante das comunidades tradicionais orais africanas da região da savana ao
sul do Saara. Na complexa ideia filosófica africana, as concepções de ser humano, de natureza e de
conhecimento são especialmente importantes. A complexidade reside no sentido de integração entre
natureza e política, poder e religião, sujeito e universo, passado-presente-futuro, sagrado e profano,
o que transcende a dicotomia ocidental e implica um sistema de inclusão, politeísta (OLIVEIRA,
2006a; SANTOS, 2015). A conscientização de estar inerente a um universo de interações faz com
que se engendre a força vital, a qual orienta relações justas e de conhecimento da natureza, dos
outros sujeitos/coletivos e do sobrenatural (CARNEIRO, CURY, 2007).
O conhecimento, de acordo com a concepção moderna ocidental hegemônica, estaria
pautado na dominação, na exploração dos recursos e na objetivação da natureza e dos demais seres
vivos (NOGUERA, 2010; SANTOS, 2015). O conhecimento é um mecanismo que possibilita uma
relação viva com os reinos da vida, não uma relação de pura utilização (BÂ, 1982). Para Oliveira
(2006a), na perspectiva afrocentrada, o conhecimento não está para o conhecimento, mas pelo bem
do universo. Assim, experiência orienta o conhecimento, a partir de outro elemento estruturante
chamado tempo (BÂ, 1982).
Destacamos a palavra ou a linguagem oral, cujo conceito é importante, se consideradas a
violência simbólica do processo de colonização e a transposição da língua portuguesa para o Brasil
colônia, a qual desconsiderou as diferentes linguagens africanas e indígenas existentes
(NOGUERA, 2010). Além disso, ainda que as comunidades tradicionais, com destaque às
remanescentes de quilombo, utilizem a linguagem oral como fundamento cultural, existe uma
compreensão discriminatória das nações modernas que considera de pouco valor a oralidade e a
precedência da escrita sobre esta (BÂ, 1982).
A tradição oral não se limita a histórias e lendas, aos relatos mitológicos, mas é a “escola da
vida”, é “o conhecimento total” (BÂ, 1982, p.169), que pode acontecer através das experiências
cotidianas do dia a dia, como, por exemplo, as rezas e benzeções. Por meio desse processo de
ensino-aprendizagem, as categorias indissociáveis da vida são ensinadas, sejam elas ligadas à
religião, às ciências naturais, às artes, à história.
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Apesar do cenário religioso de Machadinha ser bastante heterogêneo, com uma maioria de
católicos, muitos convertidos a igrejas evangélicas e poucas pessoas que se dizem umbandistas, é
bem difícil enquadrar as pessoas em categorias fixas (SONEGHETTI, 2016). Por mais que os
próprios moradores se esforcem para classificar a sua própria religião e a religião dos outros,
existem práticas culturais de cunho religioso que permeiam o cotidiano de todos (as), religiosos (as)
ou não, a reza é um exemplo disso.
Uma das entrevistadas, Tiane, se declarou evangélica pentecostal, com pretensões de ocupar
um cargo de liderança na igreja. Em seu discurso contraditório, enunciou o abandono da reza: “Vou
acabar com esse negócio de reza. Aí eu procurei uma igreja e acabei com esse negócio, em nome de
Jesus (olha e aponta para o céu)”. Durante a mesma narrativa, diz ter recebido de dona Chêro (mãe
de terreiro), o ensino de duas “simpatias” que é um segredo de cura de sua prática, que não pretende
compartilhar:
Eu sei duas simpatias de bronquite. A do prego virgem com barbante virgem (expressão de orgulho). Tem que tirar a medida da
criança, mas tem que ser antes das 06 horas, antes do sol sair (coloca a mão na boca e dá risadas). Essa simpatia do barbante tem que
ser na casa da pessoa mesmo, não pode ser na minha casa. Botei ele na porta de Ganga Zumba (pai da criança), aquela porta que dá da
varanda para a cozinha. “Ganga Zumba, você compra um prego virgem e um barbante”. De manhã cedinho, antes do sol sair eu tô
aqui na sua casa. Bota a criança de costas para fora e de frente pra dentro (da casa). Aí eu boto o barbante na direção da cabeça até lá
no carcanhar. Aí eu já medo direitinho, já bato o prego, vou rodando o barbante e falando umas duas palavras que eu sei e eu não
ensino ninguém (rodando o dedo indicador e dando risadas). As duas palavras eu não ensino ninguém. Ai eu dou o xarope. Tá o Jaí
(nome da criança rezada)! Nunca mais deu crise de bronquite. Tá aí o pai dele, pode ir lá perguntar (Apontando o dedo indicador para
a entrevistadora). Aí eu digo para a mãe: “Você nunca diga para ele (criança) o que é isso aqui (prego com o barbante). E vai
continuando dando o xarope. Até hoje é um rapazinho e nunca mais deu. O prego com o barbante só pode tirar quando tiver
maiorzinho. Toda vez, na quadra de lua, você vai percebendo que vai dando fraquinho. Depende muito da quadra de lua. Bronquite
ataca muito na lua cheia e mais no frio. Você vai observando com o tempo... (Coloca as mãos no peito e respira forte). Que bronquite
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dá um cansaço. Toda vez que der quadra de lua, na lua cheia que não vai mais ficar dando aquele chiado no pulmão, deixando roncada
nos peitos.
A reza é uma categoria utilizada pelos moradores de Machadinha tanto para designar um
conjunto de práticas católicas de louvores aos santos católicos, como variadas práticas de cura
realizada por rezadeiras ou rezadores que faziam uso de crucifixos, ervas, preces para realizar cura,
fazer descarrego, atrair sorte (SONEGHETTI, 2016).
Observa-se que há, nas narrativas de vários moradores, a tentativa de estabelecer uma
fronteira entre reza e macumba, o que estaria desassociando a religião católica da umbanda, porém,
por mais que esses dois universos, fossem apontados como distantes, estavam muito interligados.
Nego Bispo, pensador quilombola, considera que as CRQ possuem cosmovisão politeísta, onde os
elementos da natureza são forças cultuadas e evocadas para a manutenção da vida,
independentemente da prática religiosa (SANTOS, 2015). Para Soneghetti,
Os limites entre reza e macumba, pautados a princípio por uma dimensão moral e pela incorporação de espíritos, nem sempre eram
muito claros: uma pessoa poderia ser classificada como rezadeira por determinadas pessoas (o que não necessariamente tinha uma
conotação negativa), e, ao mesmo tempo, como macumbeira por outras (o que normalmente implicava uma avaliação moral
depreciativa). (SONEGHETTI, 2016, p. 157)
Abdias Nascimento chama a atenção para o fato de “aspectos” culturais africanos associados
às práticas religiosas terem sobrevivido no período escravocrata, apesar da intensa repressão e
vigilância. Não havia benevolência do colonizador ou uma suposta confluência cultural criativa,
sincrética, por isso foi necessário criar-se estratégias, inclusive discursivas, para a manutenção de
tais práticas. O autor indica que,
Apesar da Igreja Católica, e não devido a ela, algumas religiões africanas puderam persistir em sua estrutura completa, enquanto
outras sobreviveram através de certo elemento ritual e de uma ou outra divindade cujo culto se manteve. Entretanto, a manifestação
espiritual africana não se circunscrevia ao domínio religioso, mas também abrangia outras formas de celebrações e festejos populares.
É o caso, por exemplo, dos autos populares dos congos, do bumba meu boi, dos quilombos, e assim por diante, através dos quais os
negros reproduzem formas tradicionais africanas adaptadas ao novo ambiente, ou então infundiam a formas culturais estrangeiras um
espírito africano, adaptando-as ou reduzindo-as a seu parâmetro cultural. (NASCIMENTO, 2017, p. 124).
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Os modos de rezar na CRQ Machadinha são os mais variados: de galho, com água sagrada,
com vela, com imposição de mãos. Yancy (mãe de terreiro) explicou que costumava associar a reza
às folhas de mato: “Eu cuidava muito, eu rezava muitas crianças. Eu tenho o testemunho de mãe e
pai aqui de Machadinha. Criança com vente caído, com aquebrante, tudo era chá. Eu dava chá de
atelã (hortelã), carobinha, banho de tipi, guiné”. Enquanto que outras rezadeiras, como dona Chica,
davam algo para comer, segundo Dona Pérola: “ela rezava as pessoas e a gente não percebia,
percebia assim que as crianças chegavam lá caída, mortinho e quando vinha, ela dava uma coisa pra
criança comer. Ela vinha com outra vida.”
Outras rezavam de galho, como disse dona Pérola “ela rezava de galho. Quando era de
quebranto ela pegava, assim, no pasto tem umas vassourinhas brancas ela pegava três galinhos
daquela vassourinha.” Os resultados da força da reza eram vistos nos galhos usados para rezar,
como continuou a explicar Pérola: “se fosse quebranto, minha filha, ela levava o galinho verdinho
quando terminava o galho estava todo arreado. Muito rezadeira, dona Chica Silva.”
Em Machadinha havia muitas rezadeiras e rezadores, das quais citamos: Dona Felizdonaria,
Maria Julia, Tia Bete (parteira que rezava durante a parturição), Dona Maria, Titia Maria Luiza,
Erenita, Dona Madalena, Dona Maria Joana, Chica Silva, Nancy, Dona Íris (mãe de Chêro), Seu
Antônio Jorge. Segundo os relatos, “hoje em dia não se vê mais”, dizem. O olhar desconfiado para
falar sobre o assunto, até sentirem segurança para contar, sem medo do julgamento alheio. O
desprestígio que hoje a rezadeira ou o rezador recebem, fragiliza a manutenção desta prática e faz
com que muitos desistam da “vocação”, conforme relatos desesperançosos de Yancy e Dona Pérola
O que Deus dá ninguém pode negar, né? Uma hora uma pessoa tiver precisando de um remédio, de uma caridade eu to pronta pra
fazer. [...] Vou falar a verdade pra você. Aqui, a gente faz o bem e não ganha bem aqui não, ué. A turma aqui num sabe tratar a pessoa
com... Aí, larguei, num quis mais saber (Yancy, mãe de terreiro e cozinheira).
Tinha rezadeira, em Machadinha que rezava vente. Coisa de impinja dava muito. Rezava vente, naquela época. Hoje em dia não tem
uma rezadeira, nem pra rezar um quebranto da criança. Nem a gente. Aqui, fui na rezadeira. A rezadeira disse que quem sofre de
micose não pode rezar outro, nunca vi isso. Tinha uma rezadeira, ela é boa pessoa. Não sei se ela está viva, que foi no mato escuro.
Chica Silva, mas ela já morreu. Há muito tempo também, coitada. Era velha que rezava aqui em Machadinha. Por esses cantos tudo.
Todo mundo quando adoecia ia lá nela e ela rezava (Dona Pérola, mestre de jongo, cozinheira e guardiã da santa Luzia).
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Não há como tratar do tema nesta CRQ, sem citar a dona Guilhermina, mais conhecida
como Chêro. Antiga moradora do núcleo Fazenda Machadinha, falecida em 2010, foi uma liderança
da umbanda e mestre do grupo de jongo Tambores da Machadinha. Ela era uma referência para a
Comunidade na cura de doenças por meio de rezas e pelo domínio no uso de ervas medicinais e
rituais. O terreiro de umbanda de Chêro era dentro de sua própria senzala (próximo a capela
católica) e tocava de 15 em 15 dias. Segundo Soneghetti (2016, p.155) “[...] muita gente vinha de
fora assistir ao toque dos tambores e consultar com as entidades da Umbanda: Oxóssi (orixá de
cabeça de Chêro), Ogum, Xangô, povo da rua, pombagira, caboclo, preto velho...”
Não alcançamos Dona Chêro, mas seu nome esteve presente nas narrativas de todos(as)
os(as) entrevistados da pesquisa:
A Chêro era a cabeça da turma, era a chefe, era a mãe de santo, da umbanda. Muito respeitada. Quando a Chêro batia aquele negócio
de pemba, de curimba, a gente ia. A gente gostava. Que eram uns pontos muito bonitos. Chêro rezava com galhinho de vassourinha,
era um tal de rezar. Aquela era rezadeiras mêmo. Era rezadeira DE VERDADE (ênfase)! (Tiane, pequena agricultora e conhecedora de
ervas medicinais)
A escolha pelo destaque às falas, neste texto, trata-se de uma provocação para uma postura
simétrica em relação à análise da produção do conhecimento sobre a natureza e a sociedade
(LATOUR, 1994). As narrativas de mulheres quilombolas da CRQ Machadinha refletem
aprendizados ancestrais, organizados de um modo próprio e com fundamentos da dimensão
espiritual no cuidado à saúde. Carregam elementos da memória social da comunidade, que ajudam a
compreender sua história, além do afeto, elo fundamental. Os saberes aqui descritos estão
associados ao universo feminino, pelo fato de serem as rezadeiras, as mães de terreiro, as mães
biológicas, as pequenas agricultoras, educadoras populares e as parteiras, as protagonistas e
narradoras desses saberes, referências na dimensão da cura e do cuidado com a saúde. O espaço de
agência dessas atrizes sociais localiza-se, principalmente, no privado, familiar, mas também
atravessa os muros e alcança o coletivo.
Uma das características de culturas matrilineares de matriz africanas, explica Adão (2002, p.
38), é que “a mulher possui um papel central na ordem das coisas sagradas. Assim, vida, família e
comunidade estão profundamente imbricadas”. O autor faz referências ao povo africano banto, para
destacar que em grupos onde a característica do feminino é evidente, “viver é viver em
comunidade”. Nesse sentido esvai-se a construção de fronteiras que identificam em pares como
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Matrial (não patriarcal)- assenta nas formas mais anímicas de sensibilidade em que a figura da grande mãe (mater),
da sábia (Sophia) e da amante (anima) são equivalentes simbólicos e cujas características básicas são: a junção e a
mediação, a religação, a partilha, o cuidado, as narrativas e a reciprocidade (senso de pertença); seu atributo básico é o
exercício de uma razão sensível. O autor usa o termo matrial e não matriarcal, pois, segundo ele, não se trata de
“ginerocracia”, mas também por estarem saturados de uma conotação rígida na literatura antropológica e sociológica
(FERREIRA-SANTOS, 2005, p. 211).
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perspectiva afrocentrada aqui tratada remete a um elemento sagrado de conexão com o divino, com
a ancestralidade; é parte integrante da natureza/território e das pessoas (PETIT, 2015).
Para Petit (2015, p.80), por meio do corpo negro, o sujeito conecta-se com “os ancestrais
divinizados e os ensinamentos que eles deixaram há milhares de anos”. Este, composto por
elementos da natureza e das entidades genitoras, precisa ser preparado e cuidado através “de rituais
de banhos de ervas”, manejos especiais e ainda, da vivência e elo comunitário (Ibidem, p. 81).
A visão afrocentrada do corpo possibilita outras leituras sobre o processo de saúde-doença,
considerando que más intenções humanas (como a inveja) ou energias do ambiente, podem alterar a
força vitalizadora das divindades e promover doenças (QUITANDA, 1999). As práticas médicas
ocidentais, segundo Canguilhem (1978), tendem a não contemplar a significação mais ampla da
saúde e do adoecer, concentrando-se objetivamente no funcionamento dos órgãos e não na pessoa e
suas múltiplas dimensões.
A inserção do indivíduo em uma comunidade parece funcionar como um elemento que
contribui para um olhar para a totalidade da pessoa, numa percepção em de que a sua “doença” faz
parte de um sistema bem mais amplo que envolve não só os “sinais e sintomas” relatados, mas
também as emoções vividas, a história e as estórias de cada um. Nesse sentido há na prática de
cuidado ancestral quilombola muito do que hoje é definido como uma perspectiva integradora,
possuindo alguns elementos que nos remetem ao modelo biopsicossocial como proposto
inicialmente por Engel (1977).
As doenças citadas pelas entrevistadas possivelmente não estarão em glossários médicos,
mas foram descritas como as que eram tratadas pelas rezadeiras. Alguns exemplos: as Digestive
Disorders and Gastrointestinal Diseases, definidas como doenças de vente (caído, caído de estombo,
costela minguim, de junta, seco); Asthenia, definida como quebranto ou aquebrante (seja de gosto
ou de maldade); Lower Back Pain, espinhela caída; catarro/chiador nos peito; the evil eye, entre
outras.
Aquebrante ou quebrante é o resultado de inveja ou mesmo da admiração de alguém por
uma criança bonita ou bem vestida. Yancy (mãe de terreiro, conhecedora de ervas medicinais e
cozinheira) explicou que quebrante pode ser de gosto (por um olhar de admiração) ou de maldade
(quando se inveja), no entanto, ambos os olhares podem causar mal à criança: “Têm umas que bota
de gosto, mas têm outros que bota de olho mesmo, viçuoso (invejoso), de ver aquela criança bonita,
arrumada, é isso”. O aquebrante “arrebenta o fel da criança. Fica fraca, molinha”, disse Dona Pérola
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(mestre do jongo, cozinheira, guardiã da santa Luzia). O resultado do olhar desejoso é que a
“criança fica molerão, só abrindo boca, chorando” (Yancy, mãe de terreiro, conhecedora de ervas
medicinais e cozinheira).
Quebranto dizem que é mal olhado que as pessoas bota nas crianças tem umas que diz que bota de gosto já tem outros que já vai com
aquela intenção de maldade e bota e diz que esse quebranto quando é muito forte arrebenta o fel das crianças e mata. A criança fica
mole, minha filha, fica molinho. Fica caído, mas depois que reza, melhora. Depois da reza criança pegava outra vida (Dona Lindaê,
pequena agricultura).
O vente caído ou vente caído de estombo está relacionado ao desarranjo (um tipo de
infecção intestinal com a associação de vômitos e diarréia), que pode desencadear após um susto ou
de um grito com o (a) pequenino (a), por exemplo. Existem vários tipos de vente, como já relatado.
O vente de junta é observado através de medidas no corpo da criança. Yancy (mãe de terreiro,
conhecedora de ervas medicinais e cozinheira) explicou que para realizar a medição, deita-se a
criança de bruços e observa se os membros inferiores na paralela. Se uma perna ficar diferente da
outra, conclui-se ser a doença. A reza é a forma de tratar. Em seguida, tiram a medida, mais uma
vez, para verificar a cura. A mãe de terreiro não revelou “as palavras da reza”.
O vente caído costela minguim, “é quando a criança... quando se cata a criança (o momento
que se toma a criança no colo), o (a) bebê sente e fica impame. É um impamento que não passa.
Impamento é quando “a pessoa não sente uma dor”, mas fica emitindo um som, um tipo de gemido.
“Esse pode matar a criança, porque dá na costela e prende a evacuação e a respiração”. O vente seco
é o mais perigoso de todos, pois “a criança vai secando, secando, até morrer” (Lindaê, pequena
agricultura).
A espinhela caída é uma dor que a pessoa sente no peito, na região de encontro das costelas.
A dor ocorria porque, no tempo passado, as pessoas andavam longas distâncias com objetos pesados
na cabeça (facho de lenha, bacia com roupas, sacos de mandioca para dar como comida para a
galinha e/ou porco). O peso na cabeça afetava a coluna e causava algum tipo de assimetria entre as
costelas, que era verificável com a medição da rezadeira, pelo uso de um pano ou barbante virgem.
Rezava-se com agulha e depois colocava um emplasto no peito e nas costas, para tirar a dor. O
doente tinha a sensação de estar com o peito aberto, sentia dores na boca do estômago e nas costas.
Depois de sete dias retirava-se o emplasto.
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Isso aí nós viemos seguindo dos mais velhos. Os mais velhos tinham essa sabedoria e foi passando pra gente. Aqueles que aprendeu,
aprendeu. Aqueles que não quis nada ficou pra trás. Nem filho, nem neto, não dá continuidade. Só eu mesmo que aprendi. Nem
passando eles não aprendem não. Essa mudernagem de hoje, minha filha, quer saber dessa coisa não. Não quer não! Você fala pras
crianças seguir o que nós viemos seguindo de pai e mãe, mas ele quer brisa. Eles quer bagunça: quer beber! É uma beberagem.
Havia rezadeiras que não ensinavam as rezas, como explicou dona Pérola: “fazia e rezava
só, ela nunca ensinou nada a ninguém”. Outras tentaram ensinar, mas aqueles (as) que tem a
vocação para rezar, aprendem através da observação, como o caso de Yancy (mãe de terreiro,
conhecedora de ervas medicinais e cozinheira):
Eu aprendi. Tinha uma dona chamada Dona Erenita, daqui da Machadinha. Era uma rezadeira de mão cheia e eu não saia da casa dela.
Quando ela estava rezando eu prestando atenção. Eu era meninota, quando eu panhava a boneca e começava rezando, a boneca. Nisso
eu aprendi as palavra da reza e sei rezar. Não é um qualquer não. Qualquer pessoa não aprende, não. Vários já tentou. Ela já ensinou
muita gente e ninhum aprendeu. Eu que num tava nem aí. Só aprendi porque eu quis. Ela não me ensinou. Eu ficava só abservando ela
rezando e eu aprendi. Tem a pessoa que tem a mente boa e tem outras que num tem. Pra leitura mêmo eu não aprendi a leitura, muito
mal meu nome. Agora, qualquer coisa aí eu sei. Se eu vê você fazer, só em i eu ver eu sei fazer também. Aprendi. Aprendo logo.
Agora outras coisas é mais difícil. Agora a leitura. Eu fui pra escola e não aprendi a ler nada.
em relações de poder e nas contradições implícitas neste contexto. É uma versão da história contada
pelos subalternizados, que ao longo dos anos não tiveram a oportunidade de escapar do silêncio.
O domínio da versão oficial da história reflete o domínio da produção de conhecimentos,
dos hábitos alimentares, dos modos de cuidar. Ou seja, a colonização territorial, política e
econômica também é uma colonização do saber. Para a decolonização do saber, é necessário
valorizar esses saberes tradicionais, impondo limites ao curso violento desse rio que tenta impor
uma consciência sobre a outra. Apesar dos saberes locais serem, muitas vezes, considerados
marginais, congregam a força das margens para frear o fluxo soberbo e invasivo do “centro” das
águas.
A permanência de saberes tradicionais ligados à cultura é uma resistência ao poder do
capital e a determinadas práticas que interessam a classe dominante, os quais impõem um modo
universal de comer, cuidar, o modo capitalista, mercantil, fundado na produção de mercadoria. O
saber tradicional não é uma mercadoria.
Ao trazer os relatos sobre as rezas, nos importa destacar o lugar de quem faz, quem produz,
quem conhece. Os saberes tradicionais, fundamentalmente femininos, que merecem a devida
valorização e não a manutenção no lugar de reprodução. Saber tradicional que agregam técnicas,
habilidades, mas também memória, história, afeto, combinações e posologias.
A tessitura entre “folhas de mato”, ervas para chá, emplastros, xaropes e rezas revelam a
sofisticada sabença dessas mulheres na costura de itinerários terapêuticos singulares, intimamente
relacionados com a experiência de observação do cotidiano e da articulação de conhecimentos
ancestrais e territoriais. As percepções sobre a experiência do adoecer e do curar-se revelam a
inserção destes conhecimentos sistematizados e acionados a partir de um exame cuidadoso da
realidade de cada membro da comunidade, respeitando ordenamentos coletivos de uma rede de
troca de práticas terapêuticas entre as guardiãs desse cuidado.
Pensar educação e cuidado em saúde a partir da realidade de comunidades tradicionais tem
muito a ganhar em alcance e efetividade quando promove a escuta desses saberes ancestrais, numa
busca sincera pelo diálogo a partir das temporalidades e experiências resistentes nestes espaços.
Entre o contar das luas e os julgamentos desprestigiosos de tais rezas, repousam também as
dicotomias entre espaços-tempos paralelos. E mais uma vez, de mãos em mãos, essas sapienciais
folhosas e sacras que resistem e insistem em brotar raízes, podem, quiçá, se materializarem também
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nas folhas de papel de profissionais e educadores em saúde que tem muito a aprender e a trocar com
essas mulheres.
Diante disso, desde uma perspectiva política é imperioso que haja uma mudança nos fluxos.
Não é a comunidade quem deve se adaptar a forma ocidental de observar o corpo, interpretar os
seus sinais e cuidar/curar; tampouco a escola servir de instrumento doutrinador dos modos de
conhecer hegemônicos e dominantes, pois a cosmovisão da comunidade e as suas práticas culturais,
sociais, de produção, educação e cuidado em saúde não são acessórios lúdicos para complementar
as atividades formais.
As rezas, são um exemplo dos modos e saberes que precisam fundamentar, informar,
alimentar e organizar os serviços públicos que atendem a comunidades local. Os saberes
quilombolas devem ser conhecidos e considerados como legítimos; narrativas de sua identidade e
um modo de construção de resistências. Nesse sentido, parece-nos fundamental o desenvolvimento
de ações e de práticas de educação em ciências e saúde que busquem identificar contribuições e os
acúmulos que a história e tradição oferecem, no sentido de assumir formas outras de pensar essas
temáticas, as quais dialoguem mais e melhor com a população de localidade específicas, no caso
quilombolas.
Ações que sejam desenvolvidas a partir de respeitoso e intenso diálogo com lideranças e
organizações locais e comunitárias. No caso aqui relatado esse diálogo tem ocorrido com a
Associação da CRQ Machadinha. Um desafio que se impõe para aqueles envolvidos em educação
em ciências e saúde junto à comunidades tradicionais, necessariamente passa por estabelecer uma
relação. No caso específico tivemos a oportunidade de contar com a parceira de uma grupo
engajado que têm estabelecido de forma consistente as suas pautas e agendas, exercido pressão
junto aos governos municipais em busca de realização plena do direito à vida.
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